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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Filipi César Rodrigues Cardoso da Silva

CINEMA DE ANIMAÇÃO: UM ESTUDO NARRATOLÓGICO DOS FILMES DE


TIM BURTON

Doutorado em Comunicação e Semiótica

SÃO PAULO
2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Filipi César Rodrigues Cardoso da Silva

CINEMA DE ANIMAÇÃO: UM ESTUDO NARRATOLÓGICO DOS FILMES DE


TIM BURTON

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, como
exigência parcial para obtenção do títulode DOUTOR do
Programa de Estudos de Pós-graduados Stricto Sensu,
em Comunicação e Semiótica - COS. Sob orientação da
Profa. Dra. Leda Tenório da Motta.

Doutorado em Comunicação e Semiótica

SÃO PAULO
2018
Filipi César Rodrigues Cardoso da Silva. Cinema de Animação: Um Estudo Narratológico
dos Filmes de Tim Burton. Tese apresentada ao Programa de Comunicação e Semiótica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, para a obtenção do título de Doutor
em Comunicação e Semiótica.

Aprovado em _________________________

Banca Examinadora

Prof. Dr. ____________________________ Instituição: ______________________


Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr. ____________________________ Instituição: ______________________


Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr. ____________________________ Instituição: ______________________


Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr. ____________________________ Instituição: ______________________


Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________

Prof. Dr. ____________________________ Instituição: ______________________


Julgamento: _________________________ Assinatura: ______________________
Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos a reprodução total ou parcial desta tese por
processos de fotocopiadoras ou eletrônicos, desde que citada a fonte.
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq, que me concedeu uma bolsa


integral, durante a realiação deste doutorado.
AGRADECIMENTOS

A Deus, por me dar saúde, força e energia para concluir este estudo.

À minha orientadora Profa. Dra. Leda Tenório da Motta, pela confiança, apoio e
sábias palavras durante todo nosso trajeto para este dia. Uma mulher inteligente, gentil e
firme. Sou muito grato a Deus por ter colocado você em minha vida nesse momento
importante para mim.

Aos meus pais: José Raimundo Costa Cardoso da Silva e Lucineide Maria
Rodrigues Cardoso da Silva, pois sempre me incentivaram a seguir em frente mesmo
diante dos momentos mais difíceis ao longo desses 4 anos de doutorado.

Aos meus amigos: Liu Pinheiros, André Ribeiro, Adélia, Thais, Samária Andrade,
Maria Helena, Neulza Bangoim, Marcos Aurelio Araujo, Marcus Brasileiro, Aguinaldo
Correa e parentes que acreditaram na minha força de concluir mais essa etapa em minha
vida.
Aos meus pais, meus heróis...
Dedico esta tese a Deus, por ensinar que a vida é cheia de altos e baixos, mas nunca devemos desistir
de nada que começamos. Com amor e carinho sempre conseguimos alcançar nossos objetivos.
RESUMO

Esta pesquisa realiza um estudo narratológico em filmes de Tim Burton à luz da teoria
narrativa de Vladimir Propp. Trata-se de analisar na obra de Burton, procedimentos análogos
àqueles do conto maravilhoso tais como descritos por Propp.Atenta-se também para as pautas
que interconectam o mundo maravilhosoproppiano ao mundo fantástico burthoniano. Busca-
se entender como uma reinterpretação no contexto cinematográfico das películas de Tim
Burton criam uma conexão com a estrutura morfológica do maravilhoso de V. Propp. A
revisão bibliográfica efetuada aquienvolve trabalhos abalizados sobre o cinema fantástico, o
cinema de animação em geral e o cinema de Tim Burton em particular. O corpus da pesquisa
é composto pela obra cinematográfica A Noiva Cadáver – 2005 do diretor Tim Burton; O
estabelecimento do corpus pautou-se pelo critério de seleção do filme de animação que
despontam no conjunto da obra de Tim Burton. Metodologicamente, a pesquisa é
bibliográfica e comparativa. O principal referencial teórico é a própria teoria narratológica de
Propp que sempre busca o maravilhoso em suas obras. Este trabalho também leva em
consideração o modelo da obra magistral de Haroldo de Campos, Morfologia do Macunaíma,
que apresenta e reinterpreta o modelo proppiano. A relevância do trabalho está no fato de que
poucas pesquisas foram realizadas sobre conto maravilhoso hibrido ao cinema de animação.
Está também em propor um novo desdobramento da semiologia proppiana, voltando-a desta
vez ao universo do discurso visual e da manipulação digital.

Palavras-chave: Cinema. Cinema de Animação. Tim Burton. Vladimir Propp. Haroldo de


Campos.
ABSTRACT

This research conducts a narratological study of Tim Burton’s films in the light of the
narrative theory of Vladimir Propp. It is to analyze in the oeuvre of Burton, analogous
procedures to those of the wonderful tale such as described by Propp. It also pays attention to
the matters that interconnect the Proppian wonderful world to the fantastic burthonian world.
It seeks to understand how a reinterpretation in the cinematographic context of Tim Burton
films create a connection with the morphological structure of the wonderful of V. Propp. The
conducted literature reviews involve authoritative works on the fantastic cinema, the
animation cinema in general and particularly the cinema of Tim Burton. The corpus of the
research is composed by the Corpse Bride – 2005 of Tim Burton; The establishment of the
corpus was based on the criterion of selection of the animation films that stand out in the
oeuvre of Tim Burton. Methodologically, the research is bibliographical and comparative.
The main theoretical reference is Propp's own narratological theory, which always seeks the
wonderful in his works. This research also takes into consideration the masterful model work
of Haroldo de Campos, Morphology of Macunaíma, which presents and reinterprets the
proppian model. The relevance of this study lies in the fact that little research has been made
on hybrid wonderful tale to the animation cinema. It is also proposing a new unfolding of the
proppian semiology, turning it this time to the universe of visual discourse and digital
manipulation.

Keywords: Cinema. Animation Cinema. Tim Burton. Vladimir Propp. Haroldo de Campos.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 – O CINEMA DO DIRETOR TIM BURTON - REDES DE


HERÓIS: UMA CONEXÃO ENTRE OS PERSONAGENS APRESENTADOS
NOS FILMES DE TIM BURTON À LUZ DE PROPP ...................................... 14

CAPÍTULO 2 – DOSSIÊ HISTÓRICO SOBRE VLADIMIR PROPP ................. 31


2.1. Principais Funções dos Personagens à luz de Propp ........................................ 46

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DESCRITIVA DO FILME A NOIVA CADÁVER,


DE TIM BURTON ..................................................................................................... 80
3.1. Descrição do filme A Noiva Cadáver de Tim Burton ...................................... 80
3.2 Contexto Histórico, Estético-Técnico e Narrativo - O Hibridismo do
Cinema de Animação ................................................................................................. 94
3.3 Animação Tradicional ou Desenho Animado ................................................... 98
3.4 Animação Stop-Motion ou Massa Plástica ......................................................... 99
3.5 Animação Digital .................................................................................................. 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 105

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 108


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INTRODUÇÃO

A pesquisa busca responder às seguintes questões: podemos classificar os filmes do


diretor Tim Burton como, de algum modo, continuadores do gênero maravilhoso, na sua
ordem discursiva, tal como Propp os entende? Se sim, em que medida a teoria narratológica
de Propp sobre o conto maravilhoso pode reinterpretar esse tipo de cinema?
O principal referencial teórico é aquele oferecido pela teoria narratológica de V.
Propp. Ele foi o primeiro teórico a estudar os contos maravilhosos em seus elementos formais
básicos, revolucionando os estudos relacionados ao campo do conto maravilhoso. Ademais,
os autores lidos, pesquisados e consultados para esta pesquisa desenvolveram seus estudos,
sobretudo, no campo da comunicação e do formalismo russo. Também irá contar com o
embasamento dos teóricos: Joseph Campbell, Christopher Vogler, Beth Brait, com a sua obra
A Personagem (1985), Martha Abreu, Nestor Canclini, Nádia Batella Gottil, Boris
Eikhenbaum e Alberto Lucena.
Cabe ressaltar que, ao pesquisar sobre o cinema fantástico burthoniano e o mundo
maravilhoso proppiano, nota-se que Vladimir Propp desmascara uma falsa representação da
natureza e do homem, mostrando a sua articulação, enquanto sistema coerente, com as
condições de produção e de reprodução da vida imediata. Por meio de um trabalho paciente e
infatigável contribuiu para a releitura da esfera mítica, que forma as visões do mundo das
diferentes culturas. Teve pelo menos a coragem de lhe consagrar uma atenção para articular e,
por assim dizer, exclusiva, ao longo de toda a sua vida, tomando como objeto de estudo uma
das fontes mais universais e eloquentes, os contos mágicos ou de fadas, em uma época em que
as tarefas urgentes pareciam se situar noutros ramos do conhecimento, em ramos
aparentemente menos gratuitos e mais eficazes.
A metodologia aqui aplicada envolve a pesquisa bibliográfica e a documental, sendo
que a parte bibliográfica será a leitura e análise dos livros citados na bibliografia, e na
documental será realizada uma análise da obra audiovisual do diretor Tim Burton, que consta
no corpus da pesquisa. O corpus da pesquisa constitui-se do seguinte filme: The Corpse Bride
(A Noiva Cadáver – 2005);
É notório que, a cada ano que passa, crescem os números de projetos cinematográficos
realizados segundo técnicas de animação. Tal gênero tem-se consubstanciado, nas últimas
edições de grandes eventos de animação, como, por exemplo, o Anima Mundi, considerado
um dos maiores festivais de filmes animados do mundo. Cada vez mais se discute o impacto
que a evolução das técnicas de animação revela no panorama do cinema e qual o futuro a que
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esse gênero poderá aspirar. Mas o que será que gera esse interesse, sempre crescente pelo
cinema de animação e cinema fantástico, em obras audiovisuais de Tim Burton e nos filmes
de animação em geral? Seria o uso do fantástico que, por sua vez, abre novas possibilidades e
dá novo fôlego a um gênero? De fato, a animação já foi um tipo de cinema limitado a poucas
produções, e visto, sobretudo, como um cinema menor, para um público de menores.
Como a animação sofreu a revitalização de que necessitava para auxiliar nas
produções de filmes animados, os profissionais desse recurso visual beneficiaram-se da
aplicação de efeitos visuais nos filmes. A partir daí, o prestígio do gênero cresceu
sensivelmente. Assim, torna-se necessário ver o cinema de animação e o cinema fantástico de
Tim Burton com um olhar mais apurado e considerá-lo um gênero.
Esta pesquisa está voltada para realizar um estudo narratológico em filmes de Tim
Burton à luz da teoria narrativa de Vladimir Propp. Trata-se de surpreender aí procedimentos
análogos àqueles do conto maravilhoso, tais como descritos por Propp. Atenta às pautas que
se interconectam do mundo maravilhoso proppiano ao mundo fantástico burthoniano. Busca-
se entender como uma reinterpretação no contexto cinematográfico das películas de Tim
Burton cria uma conexão com a estrutura morfológica do maravilhoso de V. Propp.
Trabalhamos com a hipótese de que 31 funções apontadas por Propp, possivelmente,
são encontradas no discurso narrativo de Tim Burton. As funções dos personagens e do conto
maravilhoso como um todo podem ser identificadas e aplicadas por Propp no cinema
narrativo, fantástuci, de Tim Burton. Eis a morfologia que Propp apresenta e que se pretende
encontrar nas obras cinematográficas do diretor Tim Burton:
O seu interesse é descrever e demonstrar os contos, por meio de suas partes
constitutivas e as relações destas entre elas e com o todo. A uniformidade do conto é mais
relevante para o resultado final de análise dos contos do que seus elementos desmembrados e
analisados de maneira individual. Propp define trinta e uma funções, chegando à conclusão de
que todos os contos são iguais, isso em relação à sua estrutura.
As funções dos personagens nos contos fantásticos, permanecendo sempre diferentes,
em suas aparências, idade, sexo, gênero de preocupação, estado civil e outros traços estáticos
e atributivos, realizam, mantêm-se, durante o curso da ação, rigorosamente as mesmas. Isso
determina a conexão das constantes com as variáveis. As funções dos personagens
representam constantes, mas todo o resto pode variar.
É importante também ficar atento aos resultados já obtidos no campo da literatura e,
em especial, do conto, mediante os seus entrechos e também suas nacionalidades, pois não é
garantia que seja o melhor caminho a ser tomado para chegar ao resultado. Alguns estudiosos
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consideram que, de um ponto de vista mais conciso, o conto tem a base de vestígios sociais,
econômicos e culturais, que são representados pelas seguintes questões: luta de classes,
questões relacionadas à luta antirreligiosa, diversidade cultural e diversidade de mitos, ritos e
folclore de cada povo, etc.
A pesquisa tem como objetivo propiciar resultados, no campo do cinema de animação,
e, em especial, do conto maravilhoso, mediante aos seus entrechos plurais. São esses trabalhos
que dão condições para se avançar em pesquisas acadêmicas.
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CAPÍTULO 1 – O CINEMA DO DIRETOR TIM BURTON - REDES DE HERÓIS:


UMA CONEXÃO ENTRE OS PERSONAGENS APRESENTADOS NOS FILMES DE
TIM BURTON À LUZ DE PROPP

Neste capítulo, tem-se como foco a biografia do diretor Tim Burton e a função dos
principais personagens dos contos fantásticos, permanecendo sempre diferentes em suas
aparências, idades, sexos, gêneros de preocupação e outros traços atributivos, durante o curso
da ação. Tem-se também como objetivo assinalar uma interconexão entre a função do herói
maravilhoso de Propp e o herói fantástico de Burton. O herói é aquele personagem que
representa uma pessoa notável.
Na infância, Tim Burton já achava a vida doméstica e a escola entediantes. O garoto
fugia da rotina do cotidiano lendo livros sombrios de Edgar Allan Poe e assistindo a filmes de
terror de baixo orçamento, que mais tarde homenagearia na sua biografia de Edward D.
Wood, Jr.. Outra figura cinematográfica que influenciou o diretor Tim Burton, em sua
infância, foi Vincent Price, cuja filmografia foi referência à carreira do diretor.
Tim Burton é considerado um dos diretores de cinema mais geniais da atualidade.
Pode-se dizer que uma animação produzida por ele, é facilmente identificada. Nascido na
Califórnia, Estados Unidos, em 25 de agosto de 1958, desde criança se perdia nas histórias
arrepiantes de Edgar Allan Poe e nas imagens dos filmes de terror. Depois de concluir o
colegial, ganhou uma bolsa para cursar o Instituto das Artes da Califórnia e conseguiu um
trabalho na Disney como aprendiz de animador. Já produziu filmes, como o Batman de 1989,
Batman – o Retorno de 1992, A Fantástica Fábrica de Chocolate e o inesquecível Edward
Mãos de Tesoura, filmes cheios de magia e fantasia.
Vale mencionar que Tim Burton tem uma interpretação toda pessoal das histórias de
horror, em que seus personagens transitam entre o bizzaro e o poético. Para compor suas
animações, inspirou-se nos trabalhos de estilo Dark, do ilustrador belga Toon Hertz.
Assim, aquele velho dilema que, na medida em que nos assusta também nos inspira,
está quase sempre presente nos enredos de Burton, mas de uma forma bem- humorada, lúdica,
cercada de uma ironia sutil, que encanta tanto crianças quanto adultos. Afinal a fantasia, como
resgate da infância perdida, é um alento para as almas mais maduras. Seu protagonista
preferido é Johnny Deep, que fica muito à vontade nos personagens criados por Burton, que
também já convidou ícones dos filmes de terror, como Vincent Price e Chistopher Lee, para
suas produções. O primeiro curta de animação de Tim Burton, Vincent, foi baseado em seu
livro de poemas The Melancholy death of Oyster Boy and other stories (O triste fim do
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pequeno Menino Ostra e outras histórias). Em 2010, Burton fez a refilmagem de Alice no País
das Maravilhas, da célebre obra de Lewis Carroll. Agora há rumores de que Tim Burton
estaria trabalhando no remake da Bela Adormecida, porém, dessa vez, com a bruxa Malévola
como a personagem central do clássico.
Burton, conhecido por ter um estilo sombrio, apesar de ter começado a carreira nos
estúdios Disney, foi inovando e criando um novo estilo de cinema de horror/cômico.
Ademais, fez vários filmes de sucesso, venerados até hoje pelos apreciadores do cinema
contemporâneo, que se beneficiam dos recursos nonsenses em suas obras.
Sua carreira como animador teve início com o desenho The Fox and the Hound.
Enquanto trabalhava na Disney, teve a chance de criar e dirigir seu primeiro curta-metragem,
Vincent, com o personagem principal baseado no ator Vincent Price. Depois, trabalhou em
seu segundo curta-metragem, Frankenweenie, onde narra a história de um garoto que
ressuscita seu cachorro. Burton sempre se identificou com histórias e filmes de horror, criando
um enlaçamento entre a comédia e o horror, por meio de suas produções cinematográficas,
onde surgiu seu outro filme Os Fantasmas de Divertem (Beetlejuice). Foi com esse filme que
o diretor conseguiu alcançar visibilidade e foi chamado para realizar uma superprodução:
Batman, em 1989, que mais tarde teria a continuação, Batman - O Retorno (Batman Returns),
também sob a sua direção. Após todo esse destaque no cinema, e com a carreira em alta, o
diretor filmou Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands), que conta a história de um
homem que tem tesouras no lugar das mãos. Para o projeto, Tim Burton chamou o ator
Johnny Depp, que passou a ser seu maior colaborador durante a carreira do cineasta.
Com a grande repercussão das produções supracitadas, o diretor teve um período de
baixa, resultado do insucesso de filmes, como Marte Ataca! (Mars Attacks!) e Planeta dos
Macacos (Planet of the Apes). Em 1999, após lançar o filme, A Lenda do Cavaleiro sem
Cabeça (Sleepy Hollow), sobre uma pequena cidade que sofre uma série de assassinatos, sua
carreira voltou a ficar em alta depois do filme Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas
(Big Fish).
Em 2005, Tim Burton gravou um filme utilizando a técnica de animação stop-
motion, com o filme A Noiva Cadáver (Corpse Bride). Na mesma época, regravou um
clássico dos anos 70, A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and the Chocolate
Factory), novamente com a participação do ator Johnny Depp.
Em 2008, teve o filme, Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, que foi
bem- recebido pela crítica, sendo indicado ao Oscar. O diretor esteve envolvido no filme Alice
no País das Maravilhas, que foi produzido pela Disney. Vale mencionar que seus filmes
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geralmente possuem cenas de Halloween ou Natal, e outras que representam o mundo real e
imaginário. O diretor é conhecido por usar efeitos especiais/fantásticos, o que se pode
considerar como uma das caraterísticas dos contos maravilhosos encaixando-se muito bem
aos contos pesquisados pelo teórico Propp, o que permite realizar uma leitura à luz da teoria
narratológica de Propp sobre contos maravilhosos aos filmes de Tim Burton, que abordam o
horror cômico e os efeitos nonsense.
Nascido em Burbank, Califórnia, no dia 25 de agosto de 1958, Timothy Willian
Burton era uma criança do fim da era do Baby Boom. No subúrbio de Hollywood, onde
cresceu, cada uma das intermináveis casas e bangalôs, iluminados à noite pelo tubo de raios
catódicos do cinescópio, era um santuário de segredos. A imaginação hiperativa do
adolescente reinterpretava tudo o que via, até o Lar, Doce Lar, virar o Castelo do Barba Azul.
A criatividade exuberante, arrancada da maioria pelo conformismo, e as responsabilidades da
vida adulta, criaram um mundo de sonhos sombrios e pesadelos coloridos, um mundo
experimentado, ocasionalmente, por meio dos filmes de Tim Burton.
Pode-se dizer que Burton foi uma criança suburbana alienada, adorava desenhos
animados e filmes de monstros, preferências que, mais tarde, seriam expressadas em seus
próprios desenhos. Esse gosto se transformou em um amor por truques e pelo grotesco,
manifestado em incidentes, como a vez em que cortou a cabeça de seus soldados de brinquedo
dos filmes de terror de baixo orçamento em que assistia nas matinês de sábado à tarde, Burton
pensou: “Quantas coisas vemos quando somos crianças e permanecem com a gente... e
passamos uma boa parte da vida tentando recapturar essas experiências”.
Enquanto seus pais, aparentemente supernormais, ficavam confusos e quase não
conversavam com o filho desajustado, o jovem se refugiou no mundo da imaginação. Como
um Coronel Kurtz suburbano, o pequeno Tim ficou amigo do horror. Mas, ao contrário do
coronel, seu horror não se sentava em um trono sangrento em cima dos corpos das vítimas da
guerra. Seu amor pelo grotesco era um conforto.
“Quando você não tem muitos amigos”, Burton se lembraria muitos anos depois de
sua infância, “nem uma vida social (...) você se distancia do resto da sociedade, é como se
estivesse olhando por uma janela (...), mas existem muitos filmes bizarros por aí, então você
consegue aguentar bastante tempo sem amigos”. Filmes clássicos de monstros em preto e
branco, ficção científica dos anos 1950, desenhos animados, sim, Tim bebeu em todas essas
fontes.
“Cresci vendo coisas como The Brain that Wouldn’t Die aos sábados à tarde na
televisão”, disse Burton, lembrando-se de que também adorava os vergonhosos filmes
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chamados de trash. “Tem um cara com o braço arrancado e o sangue está espalhado pela
parede. Eu vi isso na TV quando tinha oito anos. E nunca enxerguei cenas como esta de forma
negativa. Acho que essas coisas, quando não são podres como na vida real, acabam sendo
catárticas”. Foi assim que a estética gótico-infantil de Burton começou a se formar.
Quando começou a fazer curtas-metragens, em Super 8, aos treze anos, estava
dominado pelos filmes clássicos de terror, dos anos 1930 a 1940; o primeiro foi inspirado em
o Lobisomem; o segundo, no estilo médico-louco, no qual Boris Karloff havia sido
especialista; mas foi o terceiro curta, em stop-motion, que utilizou um modelo de homem das
cavernas. Depois de frequentar o Instituto de Artes da Califórnia, desenvolveu esse dom no
curta animado Stalk of Celery Monster (1979), que chamou a atenção da Disney Corporation.
Criado muito perto dos Estúdios Disney, Burton, apesar de ter ridicularizado o nome
da companhia algumas vezes, também é uma criança do Tio Walt. Os vários anos de trabalho
na Disney, apesar de frustrantes, deram início à evolução gradual da sua estética de desenhos
animados góticos, reconhecida mais tarde como dotada de um estilo único. A Disneylândia de
Burton tem a atmosfera da Mansão Mal-Assombrada do parque, com seus fantasmas
zombeteiros e brincalhões, juntamente com a floresta da Branca de Neve, onde mulheres
bonitas se transformam em velhas caducas, e os medos de crianças pré-púberes se refletem em
árvores sombrias e retorcidas.
E talvez tenha sido bizarramente apropriado que seu primeiro projeto para a Disney
tenha adotado Vicent Price, o sádico com voz sedosa do terror gótico americano, como sua
figura paterna e espiritual. Price emprestou sua voz para o curta animado, Vicent (1982), que
mostrava um garoto neurótico que fingia ser personagens de Edgar Allan Poe, que
“Crescendo como parte da geração da TV, provavelmente acabarei indo na direção do mau
gosto”. Além disso, os arquétipos dos monstros universais de sua juventude, o Monstro de
Frankenstein, Conde Drácula e Lobisomem, todos solitários supremos, não foram
transformados em assassinos, em série sobrenaturais, e destrutivos, em filmes de terror
lançados, depois dos anos 1970. Em vez disso, na cidade de brinquedo gótica, de Burton, o
retardado e sobrenatural monstro de Karloff transforma-se no adorável cachorro da família,
trazido de volta ao mundo dos mortos por parafusos de eletrodos bem-familiares, colocados
em seu pescoço. Para Burton, um sentimentalista mórbido, seu senso de alienação foi gerado
pelos vícios da raça humana e, por isso, investiu muito do amor que tinha em cachorrinhos.
Um de seus grandes fracassos comerciais foi um desenho animado, lançado em 1991,
que se chamava Vida de cachorro. Produzido por Steven Spielberg e engavetado por dois
anos, retratava tramas vistas apenas do ponto de vista do cão que inspirou o título do filme, o
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que presumivelmente parecia estar considerado ser enterrado com seu falecimento chihuahua,
Poppy, caso as autoridades do cemitério de animais permitam.
Os trabalhos de Burton pós-Disney prosseguiram com seu caricaturismo macabro e
um desenvolvimento emocional meio tardio. As grandes aventuras de Pee-Wee (1985), seu
primeiro grande trabalho como diretor, é uma agradável brincadeira infantil no universo fofo-
sinistro do personagem de TV Pee-Wee Herman. Pee-Wee era uma criação do ator Paul
Reubens, que entraria para o círculo dos colaboradores de longo prazo de Burton, e também
incluía o designer de produção Rick Heinrichs, um velho amigo dos tempos da Disney, e o
compositor de trilhas sonoras Danny Elfman. (A assexualidade aguda do personagem de
Reubens ficou desacreditada quando seu criador foi preso por se masturbar em um cinema
pornô. Sem o carimbo do ator de programas infantis das manhãs de sábados, Reubens
continuou a ser um ator secundário, pelo menos nos filmes de Tim Burton). Depois de Pee-
Wee ter alcançado o status de cult, veio o surpreendente sucesso comercial. Os fantasmas se
divertem (1987), que tratava as armadilhas sangrentas de terror gótico como um dos
brinquedos mais sensacionais de um parque de diversões, cujo pergonagem mais famoso e
marcante era um zumbi degenerado e lendário.
Burton estava criando seu próprio nicho de juventude gótica. Apesar desse fato ter
sido inicialmente creditado a Reubens, o criador de Pee-Wee, o estúdio cinematográfico
barato, que o personagem visitava, continha, entre outras coisas, um filme B de Godzilla
sendo rodado. Apesar de os filmes de monstros japoneses serem ridicularizados por seus
efeitos especiais baratos, Tim Burton sempre foi um entusiasta do gênero, e conhecia muito
bem o potencial onírico da técnica que combinava modelos de Stop-motion crus e um homem
em uma fantasia de dinossauro que cospe fogo. (“Porque eu era um garoto muito quieto”,
testemunha Burton, “e nem um pouco expressivo em nada do que fazia, aqueles filmes [do
Godzilla] eram uma forma de me soltar. Eu gostava da ideia de descontar a raiva em uma
escala tão grande”. E como tributo, mais tarde, ele faria seus bonequinhos piromaníacos
alienígenas de Marte ataca! pararem seus atos destrutivos para assistir a um Godzilla destruir
uma maquete de Tóquio na TV. O parque de diversões de Hades em, Os fantasmas se
divertem, é o mais impressionante dos mundos hermeticamente fechados de Burton, com
Betelgeuse, interpretado por Michael Keaton, aparecendo e desaparecendo daquela pós-vida
brega e artificial a seu bel-prazer. Claramente falso, mas com um detalhamento incrível das
miniaturas, foi um antecedente em escala menor da Gotham City escura e sombria, onde
Batman viveria do pesadelo gótico da vila de A lenda do Cavaleiro sem Cabeça (2001). (E,
dado o amor incondicional de Burton por todos os filmes de terror, não é possível que apenas
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esse autor enxergue um paralelo entre o mundo inferior no qual os Maitland entram em Os
fantasmas se divertem e o mundo-limbo que existe dentro de um quadro no filme de terror
surrealista italiano, Terror nas Trevas, de Lucio Fulci.)
Talvez por tudo isso, os donos da imaginação popular tenham escolhido Burton para
imortalizar o mito top americano: Batman (1989) é um filme de ação épico, no qual a
atmosfera é tudo e a ação propriamente dita conta ponto, um filme mais fácil de ser admirado
do que adorado, apesar de Batman – o retorno (1992) seguir as promessas do primeiro
episódio da saga, com caracterizações grotescas e imagens tão memoráveis quanto. Ed Wood
(1994) garante ao cineasta mais comicamente inepto dos anos 1950 uma cinebiografia em
estilo monocromático romântico negada a qualquer diretor “sério”. Burton, que foi arrebatado
na infância pelo surreal e ilógico Plano 9 do espaço sideral, de Wood, fez do filme sua obra-
prima, reconciliando a poesia do terror barato e a ficção científica com a tragédia silenciosa
das aspirações humanas.
Marte ataca! (1997) é um alegre programa de destruição total, baseado nas memórias
vagas e carinhosas de Burton, dos cards de ficção científica dos anos 1960, que foram tirados
rapidamente do mercado por serem muito controversos. Burton, perguntou ao especialista em
ficção científica, Bill Warren, pois aquilo estava guardado em seu subconsciente desde
sempre.) A lenda do cavaleiro sem cabeça se apodera de um pseudofolclore americano,
baseado em uma história de Washington Irving, e o transforma em um conto de fadas
sangrento, uma homenagem sumultânea ao gótico pomposo do estúdio inglês Hammer Films
e a irracionalidade poética do cineasta italiano de filmes de terror Mario Brava. (O leitor
encontrará vários textos e análises feitos por Kim Newman e J. Hoberman, dois autores que
estudam a relação entre o cinema americano e o que o historiador do gênero de terror David J,
Skal chama de “cultura dos monstros”, combinando tudo isso com os elementos da cultura
pop interpretados por Burton.)
Pode-se dizer ainda que Burton foi alvo de críticas devido ao fato de apenas dar
ideias, mas nunca escrever seus próprios roteiros, que são acusados de não focarem o
conteúdo narrativo com seus filmes, sendo no máximo uma série de mise-en-scènes ou então,
na pior das hipóteses, um conjuntos de tomadas sem estrutura. Entretanto, Burton investe um
talento artístico sincero em um material central supostamente frívolo. A suspensão das
descrenças infantis é a ordem do dia. Na tela, é possível a identificação com simpáticas
aberrações, monstros ou demônios, e também com o Morcego, ou pelo menos com seus
sonhos sexuais reprimidos ao se deitar com a Gata. O cavaleiro das trevas é um homem
assombrado, quase tão neuroticamente desajustado quanto seus grotescos inimigos. (“Ele
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permanece nas sombras”, Burton afirmou sobre o Batman. “O poder do personagem está em
sua solidão e tristeza.” Muitos críticos declararam que isso seria uma afirmação
autobiográfica, também presente em Vicent, Edward Mão de Tesoura, e no estranho Ichabod
de A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça. Burton, relutantemente, aceita as analogias, apesar de
claramente ter um senso de humor que equilibra sua melancolia.
É importante destacar que o sombrio e o frívolo caminham de mãos dadas. Os
demônios pagãos que assombram Halloweentown, a cidade do Dia das Bruxas, são apenas
pequenos bonecos malvados, e os bonecos animados estúpidos de Marte só querem se
divertir, apesar de fazerem isso à custa de destruir nosso planeta e matar todo mundo. Esse
comportamento, entretanto, inspira uma catarse adolescente, assim, uma vontade de se juntar
aos bonecos. Como Frank Rose, citando Caroline Thompson, a roteirista de Edward Mãos de
Tesoura (1990), em Tim Cuts UP, comenta: “Tim é a obsessão dos garotos de doze anos. E
esta é (...) uma cultura de garotos de doze anos”.
O próprio Edward, encarnado por um jovem Johnny Depp, é uma das imagens mais
duradouras do jardim de pesadelos de Burton. Originário não da cultura americana de
monstros, mas de caderno de desenhos do jovem Burton, é a imagem onírica do próprio
cineasta, o garoto monstruoso e desajustado com coração de criança e alma antiquada. Como
Pee-Wee, Betelgeuse, Batman e todos os personagens animados de Burton, sua alma é
mostrada por meio de uma fantasia bizarra e muita maquiagem. “Quando você se fantasia”,
diz Burton, “pode deixar algo bizarro sair junto. Isso remete ao teatro grego original. Tudo
são máscaras [...].”
Sendo um monstro de Frankenstein angelical, Edward permanece com o coração
inocente e angustiado, até se lembrar do ditado moral do pai de Maty Shelley, muito utilizado
para descrever o comportamento da sua mais famosa criação: “Trate mal uma pessoa e ela se
tornará má”. “É uma mistura do bem, mal, sombra, luz, alegria e tristeza.” Talvez a expressão
definitiva de como Burton, por intermédio de sua sensibilidade, transmitia emoção genuína
aos contos de fadas góticos, admite: Eu mesmo chorei muito [em Edward Mãos de Tesoura].
Daquele momento em diante, não liguei mais para o que as pessoas pensavam e nunca mais
me senti daquele jeito a respeito de nada que dirigi.
A sentimentalidade de Edward Mãos de Tesoura fica mais explícita na cena de Natal
com neve, como em Batman – o retorno e, é claro, O estranho mundo de Jack (1993),
descaradamente rotulado como “um filme de Tim Burton”, mesmo depois de ele ter passado a
direção para o antigo companheiro de Disney, Henry Selick. Mas esse é um natal que mistura
consumismo espalhafatoso com figuras góticas. “Adoro conto de fadas”, Burton atestou, “mas
21

eles perderam seu significado, por culpa da Disney, que deu uma limpada neles”. Ainda
assim, Burton colocou, aos poucos, elementos dos Irmãos Grimm e Struwwelpeter nas veias
das empresas Disney, durante anos, até que a sensibilidade gótica dos contos de fadas havia
muito tempo engavetados Vicent e Frankenweenie crescesse e se transformasse em O
Estranho Mundo de Jack criando uma conexão entre suas obras.
Parece que Tim Burton vai virar o alvo da Warner e de Hollywood, por extensão, não
só pelo relativo fracasso de Batman - o retorno, mas também graças às reações extremas
contra o filme por parte de alguns pais que, aparentemente, não sabem ler, já que a
classificaçãoo do filme é 13 anos e há avisos de que a supervisão dos pais durante a exibição é
altamente recomendada. Sendo assim, está mais do que na hora de examinar a carreira do
diretor até agora.
Apesar da certa leveza temática na maioria de seus trabalhos (pelo menos à primeira
vista), Burton é possivelmente o cineasta americano com mais talento visual da nossa época,
tendo como rivais apenas Woody Allen, Gus Van Sant e os Irmãos Coen, além de Barry
Sonnenfeld, que corre por fora. Indo direto ao ponto, há um certo significado temático e uma
grande consistência no trabalho de Burton se forem examinadas mais a fundo suas tramas
consideradas leves e até mesmo absurdas.
De acordo com Todorov:

O fantástico implica, portanto não apenas a existência de um acontecimento


estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói; mas também numa maneira de
ler, que se pode por ora definir negativamente: não deve ser nem “poética”, nem
“alegórica”. Se voltamos ao “Manuscrit”, vamos que esta exigência acha-se aí
igualmente preenchida: por um lado, nada nos permite dar imediatamente uma
interpretaçãoo alegórica aos acontecimentos são perfeitamente evocados; por outro,
esses acontecimentos sobrenaturais evocados; por outro, esses acontecimentos são
perfeitamente dados como tais, devemos imaginá-los, e não considerar as palavras
que os designam exclusivamente como uma combinaçãoo de unidades linguísticas.
(TODOROV, 2014, p.38)

Em 1949, Joseph Campbell, escritor norte-americano, nascido em 1904, escrevera uma


obra sobre mitologia comparada, que mudaria a maneira de como o ser humano moderno
compreenderia as histórias. Em o “Herói de Mil Faces”, Campbell analisara inúmeros contos e,
ao compará-los, chegaria à conclusão da existência de um monomito, isto é, uma estrutura
comum a todas as lendas, mitos e histórias. O monomito, ou seja, o mito primário, anos depois
de sua tese, estaria presente principalmente na sétima arte, e amplamente utilizado pelos
estúdios Disney. Assim, durante a renascença da animação, nos anos 90, graças a Christopher
Vogler, um consultor literário, na época contratado pela Disney, utilizou os ensinamentos de
Campbell numa leitura para o cinema, conhecida, depois, como a Jornada do Heroí. Seu
22

trabalho de pesquisa também analisou histórias modernas, assim como muitos roteiros de
filmes.
Sua primeira observação foi que, em todas as histórias, existe um herói e que a
narrativa gira em torno de suas peripécias. Vale comentar que nem sempre o herói é um ser
humano, podendo ser um grupo de pessoas, um animal ou uma figura mitológica.
Campbell desenvolveu uma estrutura de eventos demonstrando que o herói passa por
doze etapas. A seguir, abordar-se-á cada uma delas para dar uma ideia de sua estrutura básica,
mas será conveniente um alerta para os seguintes aspectos:
1) Nem toda história se encaixa como a desse modelo. Portanto, se há o
desenvolvimento de um romance, ou a escrita de um, não não é padrão que se encaixe
perfeitamente no modelo da jornada do herói.
2) Há histórias que se encaixam no modelo de Campbell, mas não contêm todas as
etapas. É importante frisar que não há problema, sem necessidade de reestruturar a história
apenas porque faltam alguns itens, e ela não esteja exatamente seguindo o modelo de
Campbell.
3) No livro, O sucesso de Escrever, foi mencionada a estrutura de três atos. O modelo
de Campbell também pode ser reduzido ao modelo de três atos, e, no decorrer da exposição,
será mencionado cada um dos atos e seus pontos de virada.
Campbell propõe a aventura do herói em 17 etapas, que são divididas em três fases:
1. A partida;
1.1. O chamado da aventura: evento que mudará a vida do herói;
1.2. Recusa do chamado: o herói pode hesitar em aceitar ou declinar ao chamado;
1.3. O auxílio sobrenatural: é comum nesta etapa a presença de figuras-mestras, que
dão ao herói segurança e conselhos para atingir sua meta;
1.4. A passagem pelo primeiro limiar: a figura do guardião, comum nas narrativas
míticas, tem a função de defender o portal que separa o herói da experiência;
1.5. O ventre da baleia: exilado do cotidiano, o herói passa por um processo de
internalização.
2. A iniciação
2.1. O caminho das provas: no processo de metamorfose, o herói vivencia provações;
2.2. O encontro com a deusa: permite a assimilação dos atributos do sexo oposto;
2.3. A mulher como tentação: o herói deve buscar o equilíbrio, sem cair nos extremos
de ver o sexo oposto como um elemento carnal ou sublimá-lo.
23

2.4. A sintonia com o pai: ocorre uma ruptura decisiva com os valores passados,
permitindo ao herói visualizar sua missão no mundo;
2.5. A apoteose: o herói se torna livre para mudar seu nível de consciência;
2.6. A benção última: ultrapassados os limites das imagens terrenas, o herói se
confronta com o desafio final de transcender a simbologia dos ícones.
3. O retorno
3.1. A recusa do retorno: o herói deve voltar e transmitir o conhecimento a seus pares;
3.2. A fuga mágica: alguns heróis precisam de auxílio para retornar ao cotidiano;
3.3. O resgate com auxílio externo: o que pode envolver a presença ativa de outras
personagens na narrativa.
3.4. A passagem pelo limiar do retorno: reentrada do reino místico ao cotidiano;
3.5. Senhor de dois mundos: a mentalidade ampliada do herói leva-o a ter papel
benéfico entre seus contemporâneos;
3.6. Liberdade para viver: renascido, o herói pode desfrutar de uma nova biografia
pessoal e abrir-se para novas experiências.
A estrutura descoberta por Campbell é extremamente rica. Parte de questões sutis,
como a imaginação e os auxiliares sobrenaturais - tanto internos quanto externos – para relatar
a evolução que passa o herói durante sua jornada em direção a patamares ampliados da
consciência. Além disso, é importante notar que esse ganho ultrapassa a dimensão pessoal,
refletindo-se em nível comunitário e/ou humanitário.
Para se compreender o mito, é necessária a iniciação pela ideia de que das mais simples
histórias de contos de fada, os argumentos dos mais difíceis livros filosóficos, como Suma
Teológica de Thomas de Aquino, e até nossos sonhos são influenciados por uma simples
história de passagem de um ponto “a” para um ponto “b”. Crescer ou amadurecer é viver
desafios e sacrifícios que podem ser comparados à estrutura que Joseph Campbell, em seu
livro, o herói de mil faces, escrito em 1949, inaugura, o que viria a ser conhecido como jornada
do herói ao afirmar que todas as histórias são oriundas da psique, e os sonhos são influenciados
por um sistema em que se enquadram absolutamente toda e qualquer narrativa, assim como o
mito. Campbell engrandece o entendimento ao afirmar:

Pois os símbolos da mitologia não são fabricados: não podem ser ordenados,
inventados ou permanentemente suprimidos. Esses símbolos são produções
específicas da nossa psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador da
fonte. (CAMPBELL, 1992, p. 15 -16)
24

A arte de contar e ouvir histórias é tão necessária quanto beber água ou comer, pois está
intrinsecamente ligada ao desenvolvimento de nossa psique. Narrar e escutar histórias ajudam
o ser humano a se desenvolver, abandonar a infância e enfrentar a vida adulta . Campbell
exemplifica:

A função primária da mitologia e dos ritos de passagem sempre foi a de fornecer os


símbolos que levam o espírito humano avançar, opondo-se àquelas outras fantasias
humanas constantes que tendem a levá-lo para trás.[…] Mantemo-nos ligados às
imagens não exorcizadas da nossa infância, razão para a qual não nos inclinamos a
fazer passagens necessárias para a vida adulta. (CAMPBELL, 1992, p. 21-22)

Campbell, em seu livro, faz alusão às provações humanas de ritos de passagens de


sociedades primitivas sendo substituídas com o mesmo efeito pelos mitos, pois a função
primordial, tanto dos mitos quanto dos ritos de passagem, é fornecer símbolos catalizadores do
crescimento humano, uma vez AQ1’ que o homem é paralisado pelos desejos, buscando o
conforto. Fica claro também que a infância necessita passar por provações ou desafios para que
se possa avançar e se desenvolver como adultos, seja por meio dos mitos ou dos ritos de
passagem, como evidencia Campbell. Há necessidade do ser humano se separar da mãe e atuar
num lugar no mundo, num processo de autoconhecimento, podendo ser compreendido o
homem como um herói, uma vez que o próprio Campbell reconhece ser o herói, sendo o
homem da submissão e autoconquista.
Os ritos de passagem, nas sociedades primitivas, têm o papel por meio dos exercícios
formais de rompimento bastante radicais conectar a mente e criar e vínculos típicos de um
estágio anterior (infância, puberdade, ou vida), fornecendo peparo mental para um novo
estágio da vida (seja este a vida adulta, conjugue ou a morte). Provocando ao aventureiro, o
objeto do rito, um renascimento espiritual para uma nova fase. Geralmente os ritos de
passagem seguem uma estrutura de separação, iniciação e retorno do indivíduo à sociedade na
qual pertence. Como exemplo, um ritual proveniente dos aborígenes australianos, no qual para
atingir a idade adulta, o jovem é separado da mãe para iniciar o ritual de circuncisão e retornar
à sociedade como um homem. Isso ocorre da seguinte maneira:

Quando um garotinho da tribo Murngin está prestes a ser circuncidado, dizem-lhe os


pais e os anciões: ‘O grande Pai Cobra sente o cheiro do seu prepúcio; ele o está
chamando’. Os garotos acreditam ser essa afirmação literalmente verdadeira e ficam
extremamente assustados. Em geral buscam refúgio da mãe, dá avó ou de algum
parente do sexo feminino, pois sabem que os homens estão organizados a fim de
levá-los a passar para o seu lado, onde a cobra está vociferando. As mulheres
lamentam-se cerimonialmente pelos garotos; essa ação visa a evitar que a grande
cobra os engula. (VIANNA, 1986, p. 172 apud SEGATTO, 1995, p. 214–215).
25

Se, com efeito, há uma fórmula representada nos rituais de passagem: separação,
iniciação e retorno; o mesmo pode se verificar no mito, e precisamente essa é a estrutura que se
encontra no monômio (estrutura presente em inúmeros mitos). Assim, compreende-se a
história de um herói do mundo cotidiano que se aventura numa região de prodígios
sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém vitória decisiva; o herói retorna de sua
misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. E ainda é possível
constatar na estrutura da tragédia da Poética de Aristóteles uma estrutura similar. A Poética
Clássica, Aristóteles (2005), “Entendo por enredo o que vai do início a aquela parte que é a
última antes da mudança para a ventura ou desdita, e por desfecho o que vai do começo da
mudança até o final.”
No monomito caracteriza-se a presença de três atos bem-construídos, o primeiro
significa a separação, e Campbell o nomeou por A Partida; o segundo denominado de A
Iniciação, e um terceiro, chamado por Campbell de O Retorno. Campbell ainda subdividiu
cada grande unidade em pequenos estágios, que não são necessariamente obrigados a existir. A
essa estrutura, Campbell denominou de a Jornada do Herói. Joseph Campbell recapitula os
estágios de a jornada do herói no capítulo quatro de seu livro, o Herói de Mil Faces, chamado
Chaves. Resumindo a jornada do herói da seguinte maneira:

O herói mitológico, saindo de sua cabana ou castelo cotidianos, é atraído, levado ou


se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali encontra uma presença
sombria que guarda a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode
fazer um acordo com ela, e penetrar com vida no reino das trevas (batalha com o
irmão, batalha com o dragão; oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser
morto pelo oponente e descer morto (desmembramento, crucifixão). Além do limiar,
então o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não
obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas),
ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao
nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua
recompensa. Seu triunfo pode ser representado pela união sexual com a deusa-mãe
(casamento sagrado), pelo reconhecimento por parte do pai-criador (sintonia com o
pai), pela sua própria divinização (apoteose), ou, mais uma vez — se as forças tiverem
mantido hostis a ele- , pelo roubo, por parte do herói, da bênção que ele foi buscar
(rapto da noiva, roubo do fogo);intrinsicamente, trata-se de uma expansão da
consciência e, por conseguinte, do ser (iluminação, transfiguração, libertação).O
trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoarem o herói, ele agora retorna sob a
sua proteção (emissário); se não for esse o caso, ele empreende uma fuga e é
perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos).No limiar do retorno, as
forças transcendentais devem ficar para trás; o herói reemerge do reino de terror
(retorno, ressureição).A bênção que ele traz consigo restaura o mundo (elixir).
(CAMPBELL, 1992, p. 241-242)

De acordo com Beth Brait:


Para explicar a palavra personagem, a palavra pessoa(s) foi utilizada três vezes e a
expressão “ser humano” uma vez. Tratando-se de um dicionário geral da língua e
não de um dicionário especializado em teoria literária, é plenamente justificável o
jogo explicativo em que uma palavra é tomada por outra. Mas esse jogo
26

metalinguístico simplista aponta mais uma vez para uma confusão terminológica que
traduz com clareza a confusão existente entre a relação pessoa — ser vivo — e
personagem — ser ficcional. Ainda que os termos “papéis” e “figuras dramáticas”
indiquem possíveis diferenças existentes entre pessoas e personagens, a frase “Cada
uma das pessoas que figuram em uma narração, poema ou acontecimento” obriga o
leitor a encarar a narração, o poema e o acontecimento como sendo fenômenos de
uma mesma espécie, de uma mesma natureza. E, textualmente, a identificar pessoas
e personagens. (BRAIT, 1985, p.10)

Para a autora, existe um conflito entre a definição do que é pessoa, ser vivo,
personagem e ser ficcional. Brait,

O problema da personagem é, antes de tudo, um problema linguístico, pois a


personagem não existe fora das palavras. Assim, para a mesma, fica claro para ela
que o personagem representa pessoas, segundo modalidades próprias da ficção.
(BRAIT, 1985, p. 11).

A seguir, a mesma autora diz que cabe ao herói, à personagem, escolher ao longo da
intriga entre duas interpretações. E, por fim, diz que o fantástico implica, pois, uma integração
do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio
leitor dos acontecimentos narrados. É necessário desde já esclarecer que, assim falando, tem-
ses em vista não este ou aquele leitor particular, real, mas uma “função” de leitor implícita no
texto, ou seja, aquela que é implícita à noção do narrador. A percepção desse leitor implícito
está inscrita no texto com a mesma precisão com que estão os movimentos das personagens.
Confidencia Todorov, no segundo capítulo de seu livro sobre o fantástico, que
“chegou quase a acreditar: eis a fórmula que resume o espírito do fantástico. A fé absoluta
como a incredualidade total nos levam para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida.”
O autor também acrescenta a seguinte questão: “Quem hesita nesta história?” (TODOROV,
2014, p.25)
É necessário perceber uma conexão ou identificação entre o leitor e o herói. A
hesitação do leitor é a primeira condição do fantástico, ou seja, a identificação do leitor com o
personagem sugere que existiu uma relação facultativa do fantástico, ademais, este pode
existir sem a maior parte das obras fantásticas submete-se satisfazê-lo e ao personagem.
Aristóteles compartilhava o pensamento de que o personagem era o reflexo da pessoa
humana, ou seja, o personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares
que regem o texto ou o filme.
De acordo com Brait,

[...] ele é importante pois, independente do restante do texto, informa ao leitor (por
meio da inclusão de um pronome possessivo, “minha”) que a narrativa é feita em
primeira pessoa, ou seja, o narrador é também personagem. (BRAIT, 1985, p. 24)
27

Sobre o personagem (herói) é importante apontar as características e seus pontos mais


relevantes.
Todorov cita:

A primeira classificação define os “modos da ficção”. Eles se constituem a partir da


relação entre o herói do livro e nos mesmos ou as leis da natureza, e são em número
de cinco:
1. O herói tem uma superioridade (de natureza) sobre o leitor e sobre as leis da
natureza; esse gênero se denomina mito.
2. O herói tem uma superioridade (de grau) sobre o leitor e as leis da natureza; o
gênero é o da lenda ou do conto de fadas.
3. O herói tem uma superiodidade (de grau) sobre o leitor, mas não sobre as leis da
natureza; estamos no gênero mimético alto.
4. O herói está em igualdade com o leitor e as leis da natureza; é o gênero mimético
baixo.
5. O herói é inferior ao leitor; é o gênero da ironia (TODOROV, 2014, p. 33-34).

O teórico Frye tem como base para sua classificação, na relação de superioridade ou
inferioridade entre o herói e nós mesmos, é porque considera essa relação como um elemento
da obra e, além disso, como um de seus elementos fundamentais.
Conforme Brait:

Nesse jogo, em que muitas vezes tomamos por realidade o que é apenas linguagem
(e há que a linguagem e vida são a mesma coisa), a personagem não encontra espaço
na dicotomia ser reproduzido / ser inventado. Ela percorre as dobras e o viés dessa
relação e aí situa a sua existência. (BRAIT, 1985, p.12)

Nesse sentido, ao estudar as particularidades da narrativa, os formalistas preocupam-se


com os elementos que concorrem para a composição do texto e com os procedimentos que
organizam esse material, denominando fábula o conjunto de eventos que participam da obra
de ficção, e trama o modo como os eventos se interligam.
A personagem passa a ser vista como um dos componentes da fábula, e só adquire sua
especificidade de ser fictício na medida em que está submetida aos movimentos, às regras
próprias da trama. Finalmente, no século XX, e por meio da pespectiva dos formalistas, a
concepção de personagem se desprende das muletas de suas relações com o ser humano e
passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia própria.
A contribuição decisiva para este estudo da personagem desvinculada das relações
com o ser humano aparece com a publicação da obra Morfologia skazki (Morfologia do
conto), em 1928, em que o formalista Wladimir Y. Propp (1895-1970) dedica um longo
estudo ao conto fantástico russo, explicitando a dimensão da personagem sob o ângulo de sua
funcionalidade no sistema verbal compreendido pela narrativa.
A partir dessa ruptura com a visão tradicional da obra literária, elemento que coloca o
28

formalismo como um verdadeiro divisor de águas dentro da teoria da literatura, os teóricos


começam a explorar, desde a década de 50, os caminhos abertos pelos formalistas russos na
década de 20. Roman Jakobson, Lévi-Strauss, Tzvetan Todorov, Claude Bremond, Roland
Barthes, Julien Greimas e outros exploram as teses oferecidas pelos formalistas e encaminham
os estudos da narrativa na direção exploratória de suas possibilidades estruturais.
De acordo com Todorov:

A expressão “literature fantástica” refere-se a uma varieadade da literature ou, como


se diz comumente, a um gênero literário. Examinar obras literárias a partir da
perspectiva de um gênero é um empreendimento absolutamente peculiar. Nosso
propósito é descobrir uma regra que funcione para muitos textos e nos permita
aplicar a eles o nome de “obras fantásticas”, não pelo que cada um tenha de
específico. (TODOROV, 2014, p.7-8)

Para o autor, falar de personagens como se fossem seres vivos é uma postura banal e
incoerente. Sob essa Litterature, perspectiva, afirma que a existência de uma teoria literária
rigorosa, entendida aqui como funcional e imanente — de acordo com os termos impostos
pelos formalistas —, implica fazer proceder toda exegese, todo comentário, dentro de um
estado descritivo que se coloca no interior de uma problemática estritamente semiológica ou
semiótica. Isso significa considerar, a priori, a personagem como um signo e,
consequentemente, escolher um ponto de vista que constrói esse objeto, integrando-o no
interior da mensagem, definida como um “composto” de signos linguísticos. Tal
procedimento, segundo o autor, tem a vantagem de não aceitar a personagem como dada por
uma tradição crítica e por uma cultura centrada na noção de “pessoa humana” e, ao mesmo
tempo, torna a análise homogênea a um projeto que aceita todas as consequências
metodológicas nele implicadas.
A partir dessa visão, apresenta a noção semiológica de personagem não como um
domínio exclusivo da literatura, mas como pertencente a qualquer sistema semiótico. Discute
ainda os domínios diferentes e os diversos níveis de análise, colocando a questão do
herói/anti-herói e da legibilidade de um texto como pontos que divergem de sociedade para
sociedade e de época para época. É nesse sentido que se apresenta a interconexão entre a
questão herói/anti-herói dos mundos proppianos e burtonianos.
De acordo com Brait:

Tomando como ponto de partida três grandes tipos de signos, visão pautada na
divisão semântica, sintaxe e pragmática preconizada pelos semiólogos e
semioticistas, Philippe Hamon define três tipos de personagens:
1) Personagens “referênciais”: são aquelas que remetem a um sentido pleno e fixo,
comumente chamadas de personagens históricas. Essa espécie de personagem está
imobilizada por uma cultura, e sua apreensão e reconhecimento dependem do grau
29

de participação do leitor nessa cultura. Tal condição assegura o efeito do real e


contribui para que essa espécie de personagem seja designada herói. Como
exemplos marcantes, considerem-se todas as personagens de A ordem do dia, de
Márcio Souza.
2) Personagens “embrayeurs”: são as que funcionam como elemento de conexão e
que só ganham sentido na relação com os outros elementos da narrativa, do discurso,
pois não remetem a nenhum signo exterior. Seria o caso, por exemplo, de Watson ao
lado de Sherlock Holmes.
3) Personagens “anáforas”: são aquelas que só podem ser apreendidas
completamente na rede de relações formada pelo tecido da obra. Diadorim, de
Grande sertão veredas, poderia estar nessa categoria. Essa classificação, que
permite ainda enfrentar a personagem como participante das três categorias ao
mesmo tempo, foi utilizada aqui apenas como um exemplo da radicalização da teoria
da personagem, tomada como matéria do discurso e analisada sob os critérios
fornecidos pela Linguística e pela Semiologia e/ou Semiótica. A título também de
exemplo do alcance e dos produtos teóricos dessa visão, seria pertinente conhecer a
ótica funcionalista de A. J. Greimas 8. Especialmente nas obras Sémantique
structurale e Du sens, Greimas substitui a designação personagem por ator,
referindo com esse termo a “unidade lexical do discurso”, cujo conteúdo semântico
mínimo é definido pelos semas (unidades de significação): entidade figurativa,
animado, susceptível de individualização. Além disso, Greimas distingue ator de
actante, uma espécie de arquiator, conceito situado num nível superior de abstração
e que, por essa razão, pode expressar-se em vários atores numa mesma narrativa.
Para Greimas, existem seis actantes: sujeito, objeto, destinador, destinatário,
opositor e adjuvante. E as relações estabelecidas entre os actantes, numa dada
narrativa, constituem o modelo actancial. (BRAIT, 1985, p. 33)

Essa visão, também discutível, baseia-se numa longa tradição, empenhada em


enfrentar essa instância narrativa como a soma das experiências vividas e projetadas por um
autor em sua obra. Nesse sentido, a personagem seria um amálgama das observações e das
virtualidades de seu criador.
Ao encarar a personagem como ser fictício, com forma própria de existir, os autores
situam a personagem dentro da especificidade do texto, considerando a sua complexidade e o
alcance dos métodos utilizados para apreendê-la.
Brait diz que:

[...] o mesmo herói; das narrativas tradicionais, cheias de obstáculos a serem


transpostos, o mesmo mocinho romântico, cujo destino é vencer inimigos,
conquistar o coração da mocinha e assumir o reino, ou seja, seu comportamento e o
desfecho das ações por ele protagonizadas estão apoiados por uma tradição narrativa
despida de estranhamento. (BRAIT, 1985, p.32)

Nesse caso, a trajetória narrativa desempenhada pelo herói é por meio de uma
necessidade de identificar até que ponto essa ação é realmente desempenhada pelo herói, é ou
não fundamental para o desfecho da trama. Ademais, o propósito do diálogo entre o herói do
mundo burtoniano com o herói do mundo propriano é interconectar o nonsense com o
maravilhoso e o fantástico.
Brait segue o pensamento de que assim:
30

Como o espectador já assimilou todos esses traços em outras narrativas, identifica de


imediato o herói e espera que a narrativa cumpra, assim como a personagem, o seu
conhecido destino. Dessa forma, as surpresas por conta da articulação das ações e o
desempenho coerente da personagem em suas aventuras. (BRAIT, 1985, p.32)

Nota-se que, em certo momento do desenrolar da narrativa, é necessário criar uma


interconexão entre o herói burtoniano com o herói propiano, porque o percusso da ação
desenvolvido pelas personagens sempre terá o propósito de executar tarefas impostas ao
principal personagem, no caso, o herói. Este terá que desepenhar todas ações obtendo sucesso,
e, por fim, casar-se com a filha do rei ou ter um final feliz.
De acordo com Brait:

Nesse sentido, ao estudar as particularidades da narrativa, os formalistas preocupam-


se com os elementos que concorrem para a composição do texto e com os
procedimentos que organizam esse material, denominado fábula o conjunto de
eventos que participam da obra de ficção, e trama o modo como os eventos se
interligam. De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos
componentes da fábula, e só adquire sua especificidade de ser fictício na medida em
que está submetida aos movimentos, às regras próprias da trama. Finalmente, no
século XX e através da perspectiva dos formalistas, a concepção de personagem se
desprende das muletas de suas relações com o ser humano e passa a ser encarada
como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia própria. (BRAIT, 1985, p.43)

Conclui-se que o personagem, no caso, o herói, é o principal elemento da narrativa. É


por meio dele que realizar-se-á o sintagma de toda trama, como é proposto por Propp, em sua
teoria. Aqui, será observado qual o ponto inicial da trama, todas suas ações, cada passo a
passo dessa trama até o seu desfecho.
31

CAPÍTULO 2 – DOSSIÊ HISTÓRICO SOBRE VLADIMIR PROPP

O teórico Claude Lévi-Strauss foi o principal responsável pela ascensão de Propp.


Strauss reconheceu e também fez uma forte crítica à teoria proppiana com a obra A estrutura
e a forma – 1960, já que a visão de Lévi, (antropólogo francês), é que, ao se realizar a partilha
entre o que se chama de formalismo de um ponto de vista e estruturalismo de outro ângulo,
Propp possa ter tomado seu trabalho como um ataque crítico à sua obra Morfologia.) Aqui,
segue o comentário de Lévi- Strauss ao artigo-resposta proppiano: “É com surpresa e
amargura que verifico que o estudioso russo, para cuja recolocação na merecida celebridade
eu acreditava ter modestamente contribuído, tenha visto no meu escrito coisa bem diversa:
não a discussão, como o devido respeito, de certos aspectos teóricos e metodológicos de sua
obra, mas uma agressão cheia de malícia”.
Segundo Campos:

Na realidade, lúcidas e percucientes que são as observações de Lévi-Strauss sobre o


método de Propp, e embora em seu trabalho esteja devidamente ressaltado o
pioneirismo do folclorista russo (...) Aqueles dentre nós quem empreenderam a
análise estrutural da literatura oral em redor de 1950, sem conhecimento direto da
tentativa de Propp, anterior de um quarto de século encontrarão nela não sem
assombro fórmulas, por vezes frases inteiras, que todavia sabem que não tiraram
dele”), fica manifesto por outro lado que Lévi-Strauss, enrijecendo para além de
qualquer medida uma oposição “formalismo x estruturalismo”, fez dela um
desnecessário “cavalo-de-batalha”e, para documentá-la, tomou como evidência de
uma “miragem formalista”certos aspectos mais lacunares ou vacilantes da exposição
proppriana, explicáveis, antes, sem tal esquematismo contestatório, por uma natural
indecisão de trabalho inaugural em campo tão complexo e pela deliberada limitação
de objeto de seu autor, que não se propusera estudar a fábula em geral, ou o “mito”,
como quereria Lévi-Strauss, mas um certo e determinado setor do fabulário russo, os
“contos de magia”, atendo-se às circunstâncias empíricas ditadas por este material.
(CAMPOS, 2008, p. 25-26)

A discussão em torno da teoria apresentada pelo teórico russo, Propp, sobre contos
maravilhosos, e a teoria de Lévi-Strauss sobre mito, é algo que não é de agora. Ambos
tiveram o papel fundamental para o desenvolvimento no gênero do conto e do mito. É nesse
sentido, que se pode abrir o seguinte parêntese, para comentar um pouco sobre a teoria de
cada um e qual a sua relação com a pesquisa proposta. Ademais, relacionando a conclusão
desse diálogo entre Propp e Lévi-Strauss com o corpus do trabalho.
Vladimir Propp é um dos mais importantes pensadores do conto maravilhoso, reputado
por ter estudado sua morfologia. Segundo Propp:

O conto é um dos objetos mais difíceis da indagação científica. No processo de


desagregação da ciência burguesa que leva à formação de um número infinito de
disciplinas isoladas entre si, o conto é estudado pelos arqueólogos, pelos
32

orientalistas de várias tendências, pelos arqueólogos, pelos historiadores da religião,


pelos sociólogos, pelos historiadores de literatura, etc., e cada uma destas disciplinas
vê apenas um aspecto da matéria e não está em posição de ver os outros. Entre os
estudiosos do conto proponderam os filólogos e no seu estudo transferem-se os
procedimentos das pesquisas histórico-literárias com algumas correcções que tomam
nota do material estudado, quer dizer que a criação poética é considerada somente
como tal. […] Não obstante, a comissão encontrou uma via de saída consoladora,
propondo estudar o conto, não Segundo os enredos, mas sim Segundo as
nacionalidades. Esta orientação nacionalista no que respeita ao material narrativo,
que é antes de tudo internacional, deverá levar a uma situação mais desesperada e à
paragem completa do pensamento científico burguês. (PROPP, 2006, p. 29-30)

É importante atentar para os resultados e pesquisas já obtidos no campo da literatura,


e, em especial, do conto, mediante os seus entrechos e suas pluralidades. São essas pesquisas
que irão dar subsídios mais coerentes para se obter resultados no campo do conto
maravilhoso. Alguns estudiosos, como Vladimir Propp, Joseph Campbell, Christopher
Vogler, Haroldo de Campos e demais pesquisadores, consideram que, de um ponto de vista
mais conciso, o conto tem a base de vestígios sociais, econômicos e culturais que são
representados pelas seguintes questões: luta de classes, questões relacionadas à luta
antirreligiosa, diversidade cultural e diversidade de mitos, ritos e folclore de cada povo, etc
Propp afirma:

Os contos são formações coletivas que remontam as crenças e usanças primitivas, e


não foram compostas num determinado lugar e num determinado tempo. Isto é o
máximo que pode alcançar um folclorista burguês. Aqui pelo menos levanta-se a
necessidade de estudar as usanças primitivas e assim se quebram já os esquemas do
estudo segundo os enredos. Também todavia a afirmação idealista de que o conto
remonta às crenças não faz mais que referir uma incógnita a outra. (PROPP, 2006, p.
33)

Ressalta-se que a oralidade torna possível conectar ideias, histórias e universos, entre
diferentes povos. É por meio dessa conectividade social que surgem diversas teorias, e uma
delas é o conto. Seu surgimento acontece da necessidade humana de transmitir sua história,
cultura, criatividade. O homem desde os tempos mais remotos se reuniu para contar estórias
em qualquer tipo de reunião social, dessa forma transmitia ao grupo seus mitos, ritos,
tradições e até mesmo criava histórias com o intuito de entretenimento. Com a criação da
escrita, essa tradição passa a ter registro, para alguns, começando pelos egípcios com os
contos dos mágicos. Tal tradição atravessou os tempos desde a bíblia, passando pelos textos
do mundo clássico greco-latino, vindo do oriente em sânscrito e se espalhando por onde o
homem passava ao redor do globo. Essas histórias escritas ainda traziam a força da tradição
oral, como em As mil e uma noites e no Decameron.
O surgimento do conto teve início por intermédio de histórias contadas ao redor de
fogueiras por povos primitivos. Dessa força natural surge a problemática em descobrir o
33

método de escrever o conto. Sobre esse assunto os teóricos travam uma luta, pois há quem
admita que existam direções a seguir, uma teoria, e há quem não admita uma teoria específica.
Assim, diversos pensadores da literatura tratam esse assunto de forma até irônica, como
Quiroga no Decálogo do perfeito contista. Para Mário de Andrade, conto é conto, segundo a
vontade do seu autor, e ainda completa que contistas de sucesso, como Machado de Assis,
encontraram “a forma do conto indefinível, insondável, irredutível a receitas”. Prosseguindo
com o pensamento machadiano, o próprio autor admite ser o conto um gênero difícil apesar
da sua aparente facilidade.
Do latim computare, o conto evoluiu do oral para registrar histórias de forma escrita.
Ultrapassa o limite do relato, que “re-conta” um fato, pois nele não há a obrigação com a
verdade ou realidade. Se assim fosse, assumiria a posição de documento, o que a literatura
não é, pois, para esse estudo, ocupa-se do conto literário.
De forma geral, o conto literário parte do princípio de invenção que iniciou da forma
oral e evoluiu para o registro escrito. O contador de histórias, enquanto contista, torna-se autor
do conto literário, quando obtém um resultado de ordem estética que ressalte seu próprio valor
de conto, usando intencionalmente a arte do conto, do conto literário. Dessa forma, nem todo
contador de história é um contista. O conto, como forma estética, transforma o contador de
história em narrador que dirige a elaboração desta narrativa, que é o conto.
Diferente do romance, o conto busca causar um efeito no leitor, então surge o
problema da extensão. Num romance, em virtude da sua extensão, esse efeito é modulado, ou
seja, às vezes intenso às vezes inexistente. Já para o conto, é preciso dosar a obra, para que
esse clima dure um determinado tempo, ou seja, o tempo de uma leitura que dure uma
“sentada”, calculado de forma geral em meia hora.
Como toda obra literária, o conto é um produto da intenção do autor, e para atingir
esse efeito, o artista calcula os mínimos detalhes. Então existe a preocupação com a economia
dos meios narrativos, quer dizer que o artista com os “mínimos” meios procura atingir o
“máximo” de efeito. O maior objetivo do escritor, ao desenvolver um conto, é atingir esse
efeito, mantendo a unidade do tema para “fisgar” o leitor, sustentando a tensão sem afrouxá-
la.
Para alguns teóricos, o ápice do conto é um determinado momento especial. Deve
haver na história um ponto de ação onde exista a descoberta de algo especial, ou uma
mudança de caráter moral, ou até mesmo de surpresa ou terror, como nos contos de Poe.
Porém, existem outros que admitem o conto como uma narrativa do cotidiano, sem crise
aparente, ou onde a monotonia é fato marcante, tendo como exemplos os contos de Clarice
34

Lispector. Pode-se destacar então a epifania como uma espécie desse momento especial. O
personagem da narrativa é tomado por esta “manifestação espiritual súbita”, modificando seu
modo de ver o mundo ou a situação narrada. Pode-se ainda encarar a epifania como um dos
quesitos de beleza, que trazem integridade, ou simetria, ou a epifania por ela mesma. O conto
então é um corte no fluxo da vida, um modo moderno de narrar, um momento epifânico ou de
crise existencial, o susto, a surpresa, a emoção.
Por meio do conto, é possível repensar todo o processo constituinte de superestrutura e
a sua doutrina de base, porque ambos remetem a uma época na qual as formas de produção e
desenvolvimento socioeconômico representam a evolução social, sendo possível realizar uma
análise palentológica do motivo narrativo.
Segundo Propp:

Muitos contos conservam vestígios de tal forma nítidos do modo de vida tribal, da
caça e da agricultura, enquanto principal forma de produção, das respectivas formas
primitivas de relações familiares e matrimoniais, das formas de pensamento, etc.,
que um cuidadoso confronto do material narrativo com o passado histórico não
deixa nenhuma dúvida acerca das raízes da maior parte dos motivos narrativos.
(PROPP, 2006, p. 74)

Há uma discussão sobre esse tema, tendo como base os contos russos e suas festas
populares também conhecidas como folclore. Ademais, todas as festas populares russas foram
associadas às formas épicas de uma época que representava o feudalismo e capitalismo. Era
uma sociedade em que mitos e ritos são aportes para tornar os contos híbridos por meio de
tanta cultura social, porque faziam parte de um período em que havia uma divisão de classes ,
além das transformações mediante as pressões das classes burguesas, como sacerdotes,
proprietários de terra, guerreiros. Já, a minoria, ou seja, os escravos e camponeses se
tornavam sua vítima.
Propp corrobora:

A agricultura torna-se mais racional. Em vez de enterrarem carne viva, os homens a


pouco e pouco começam a estrumar os campos. Mas o progresso técnico é acessível
somente às classes superiores. Os camponeses explorados continuam a viver
segundo as tradições milenárias, respeitando, às escondidas da igreja, as antigas
práticas sociais e cerimônias, e contando os antigos contos. Duas coisas que são
perseguidas pela igreja e pelo poder estatal (decretos contra os narradores
profissionais de contos, etc.). Os solenes ritos públicos de algum tempo
transformaram-se em superstições (isto é, em ritos residuais). Enquanto os contos-
mitos sacros se tornaram contos. Este vínculo entre o conto e o rito foi salientado há
tempo, mas não se deve ao conto contemporâneo da prática social contemporânea.
(PROPP, 2006, p. 64)

Propp teve seu primeiro trabalho mais reconhecido e publicado no Ocidente -


Morfologia do conto maravilhoso (1928), um trabalho contemporâneo nos estudos de folclore
35

pela abordagem síncrono em que o autor reinterpreta o conceito e teoria dos contos
maravilhosos, e determinou seu eixo fundamental, constituído por um número certo de
funções dos personagens, que serão analisadas no decorrer do capítulo. Para Propp, era
importante considerar e visualizar o folclore, nos seguintes aspectos: por meio da sua
estrutura, da sua relação genética com o rito e seu funcionamento social.
Vladimir Propp foi o primeiro teórico que teve interesse em pesquisar sobre matrizes
básicas dos contos maravilhosos com o intuito de especificar quais são as partes básicas e a
estrutura narrativa dos contos. O seu objeto de pesquisa foram os contos maravilhosos, sendo
a sua pesquisa considerada pioneira para outros estudos na área e que servirá de referência
teórica para embasar esta pesquisa, que tem o objetivo de realizar um estudo narratológico dos
efeitos nonsense em filmes de Tim Burton à luz da teoria narrativa de Vladimir Propp. Trata-
se de surpreender aí procedimentos análogos àqueles do conto mavarilhoso, tais como
descritos por Propp.
Em 1946, Propp publica seu segundo livro, Raízes históricas do conto maravilhoso,
anteriormente apresentado como sua tese de doutorado. Essa publicação lhe rendeu a expulsão
da Academia de Ciências sob a acusação-padrão de formalismo e de tendências burguesas no
folclore: misticismo e idealismo. Os ataques sofridos por Propp acabaram por lhe trazer uma
crise cardíaca e grandes dificuldades de difusão de seus escritos: nos nove anos subsequentes
ao episódio, tudo o que conseguiu publicar foram três artigos sobre o folclore e um trabalho
sobre os artigos da língua alemã (ibid.).
Nesta sua segunda obra, Propp diz que:

Estuda as narrativas folclóricas partindo da mesma premissa pela qual se estudam os


fenômenos históricos, baseando-se na concepção marxista segundo a qual os
processos social, político e cultural são condicionados ao meio de produção, e o
conto maravilhoso, enquanto fenômeno cultural e produto da superestrutura,
também tem relação direta com o modo de produção desde as suas formas
rudimentares, conservando vestígios de formas extintas de vida social de sociedades
remotíssimas. Contudo, o conto não está condicionado ao sistema social a que
pertence e muitos dos seus motivos só se explicam geneticamente se comparados
aos vestígios dos mitos, ritos e costumes de culturas diferentes e mais antigas. (
PROPP, 2002, p.XII).

Alguns célebres teóricos de língua francesa, notadamente Claude Lévi-Strauss, leram


Propp com as lentes do estruturalismo vigente em seu próprio contexto, de forma que foram
levados a identificar na obra do folclorista elementos metodológicos distribucionistas e
funcionalistas. O funcionalismo proppiano, porém, é fruto do singular ambiente ideológico
russo-germânico, do final dos anos 1920, na Rússia, período ligado às reviravoltas pós-
revolucionárias e pelo Sturm und Drang formalista - muito diferente, portanto, do
36

estruturalismo francês. Foi esboçada também uma imagem de Propp como teórico solitário, A
mesma ideia os formalistas russos, estes que se deixariam levar pelo ensaísmo e casa de
campo tradicional russa.
Ademais, é importante deixar claro que os teóricos, Lévi-Strauss e Propp, um não é
menos relevante que o outro, em relação às suas convergências, porque, é por meio de seus
estudos, que os dois contribuíram no campo da estrutura narratológica do mito e do conto
maravilhoso. Strauss focado em estudar sobre mito e Propp tendo como foco seus estudos
sobre conto. Sabe-se que para Propp, o modelo de análise da estrutura do conto é
sintagmático, ou seja, há uma interconexão entre as relações sociais. Assim, verifica-se que a
análise da estrutura sintagmática não é só necessária em qualidade de primeiro nível de estudo
da estrutura geral do conto, mas serve como direção para o fim proposto por Propp, como
definir o específico do conto, descrição e explicação da sua unidade estrutural, o que levou
Propp a sintetizar todas as funções, elementos e ações existentes e reduzir os contos
maravilhosos a um só.
A questão é, uma vez mais, menos um problema de abstração que de fundamentos: a
morfologia de Propp é indissociável de seu meio intelectual de origem. Sem desconsiderar
seu potencial inspirador para outros sistemas teóricos, o que permanece sendo possível. Pode-
se dizer que é uma distorção interpretá-la fora desse contexto. Antes de mais nada, Propp não
foi formalista por excelência, e sim, um dentre muitos outros membros do movimento que se
espalha pelo território do antigo Império, de São Petersburgo à Ucrânia. O formalismo russo
e, em particular, a vertente praticada por Propp - não deve ser interpretado fora deste
ambiente, da Rússia dos anos 1910-1920. É possível identificar nesse movimento uma certa
dinâmica de grupo cuja ideologia comum, apesar da multiplicidade de pensamento, consiste
em transpor para o solo russo um objeto bastante familiar: a poética morfológica.
A guinada histórica na obra de Propp aparece sob a forma de uma transferência dos
motivos do conto à realidade histórica, onde suas raízes estariam fincadas. Para o autor, as
formas dos contos, assim como seus motivos, estão impregnados da superestrutura social em
cujo ambiente se desenvolvem essas formas parciais. Os motivos e os personagens dos contos
contêm indícios de instituições primitivas desaparecidas, como são seus fósseis, pegadas de
realidades sociais abandonadas. Assim como os contos guardam os traços de vidas há muito
apagadas da história. Para encontrar as fontes de seus motivos, é legítimo compará-los aos
rituais, aos costumes populares e aos mitos. A gênese dos contos encontraria explicação nas
formas do pensamento primitivo do qual são uma espécie de relíquia. Vale esclarecer que o
folclore é parente genético não da literatura, mas da linguagem: a gênese do texto folclórico
37

acompanha as leis de evolução da linguagem. A lei da evolução revela-se nas formas


espirituais e artísticas reunidas na unidade fundamental da cultura material (EREMINA. 1996,
p. 9-10). O procedimento morfológico consiste em extrair da totalidade, chamada conto, o
tecido de tais motivos. É dessa maneira que se reconstrói a fisiologia do pensamento
primitivo.
O folclore estuda a solução popular vivida em sociedade e a forma como se relaciona
os povos imersos nesse contexto cultural. O significado da palavra folclore é a ciência das
tradições e usos populares, que também representa o conjunto das tradições, lendas ou crenças
populares de um país expressas em danças, raízes do oral, provérbios, contos ou canções.
Ademais, o folclore representa a cultura popular de um determinado povo e suas origens
sociais e humanas.
As artes, festas, culinária, personagens, costumes, ritos e acontecimentos fazem parte
da raiz e história de um povo, entretanto,vale ressaltar que não são apenas objetos ou datas,
mas a viva manifestação ou performance de um olhar do mundo e das relações sociais e
humanas. A performance e/ou manifestação popular representa um mundo de objetos,
dimensão estética e valor cultural cheio de maneira de ser, ver e viver de indivíduos e grupos
sociais chamados de cultura popular, também, conhecidos como folclore.
Por meio de suas performances, ritos, mitos, contos, objetos e relações sociais, essas
diversidades culturais, existentes entre os povos de diferentes países, procuram transmitir ao
povo, de um determinado lugar, os objetos e homens, de arte e realidade, de cotidiano e festas,
trabalho e lazer, de vida e morte. Enfim, os múltiplos planos que conformam a realidade
social universal.
De acordo com Carneiro:

A palavra folclore identifica, em conjunto, uma série de maneiras de sentir, pensar e


agir características das camadas populares... Provérbios e adivinhas, as rondas
infantis, as danças e o bumba-meu-boi, a medicina das mezinhas e dos excretos, a
vestimenta do vaqueiro e do gaúcho, a cerâmica e a renda de bilros, costumes rurais
como o de mocambos e casa de sapê, as superstições, etc., são manifestações da vida
do povo que caem na categoria de folclore. Estes aspectos da vida popular nem
sempre são uma criação especial do meio em que se movimenta o povo, mas,
embora de origem erudita ou semierudita, são aceitos e integrados pelo povo na sua
vida cotidiana. O folclore abarca toda a vida popular e se estende a todas as
atividades, em todos os grupos de idade. É todo um sistema de vida. (CARNEIRO,
1965, p. 24)

A pluralidade de raças é representada por uma mestiçagem entre índios, negros,


asiáticos, brancos, etc., onde falar sobre um povo ou raça tão plural e que tiveram a
capacidade de misturar ou fazer conviver com diferenças, hierarquias e muitas tradições
38

culturais.
Por meio da agricultura, as festas regionais que colorem as roupas, nos tachos que
atiçam a fome, nos cantos que celebram a vida e lamentam a morte, na religião e sua fé que
ora leva ao terreiro do candomblé, ora à igreja, assim, todos os povos encontram-se,
diferenciam-se, igualam-se e distinguem-se das nações indígenas que aqui vivem de longa
data, das muitas Áfricas para cá trazidas, de portugueses, alemães, italianos, libaneses, judeus,
japoneses e muitos outros que também chegaram, em épocas diversas, e por motivos vários,
faz-se a expressão ímpar de um povo plural.
Porém não é o foco apenas a cultura popular brasileira. É relevante entender e verificar
a pluralidade cultural russa, porque esta dará subsídios suficientes para melhor entendimento
das raízes históricas de seus povos, de sua cultura e das suas relações sociais existentes nesse
país. A pesquisa tem como objetivo estudar os contos populares russos analisados por Propp.
Ademais, segue uma proposta de criar uma conexão entre os efeitos nonsense dos filmes
burtoniano à luz dos contos maravilhosos proppiano.
Propp diz que:

O confronto do folclore com a realidade histórica é uma tarefa importantíssima dos


estudos folclorísticos. Não se trata, todavia, de descobrir correspondências entre
elementos particulares histórico. Mas trata-se de encontrar na história as <causas>
que suscitaram o próprio folclore e entrechos individuais. Tarefa, esta, realizável
com relativa facilidade, se o entrecho reflete diretamente este passado. Assim, pode-
se realizar plenamente a tarefa de pôr em confronto o noivado dos protagonistas e as
formas de matrimônio algum tempo existentes. Em muitíssimos casos, conseguir-se-
á mostrar que as formas de noivado no folclore correspondem a formas de
matrimônio algum tempo existentes e agora desaparecidas. (PROPP, 2002, p. 117)

Não é possível falar de folclore sem citar sobre os ritos, todavia, o rito de passagem
são aquelas passagens de cerimônias que estão relacionadas aos momentos de crise da vida do
indivíduo, tais como nascimento, puberdade, casamento e morte, e que variam de uma cultura
para a outra. Por isso, existem festas e ritos especiais com o recém-nascido, o batismo, o
vestido de noiva, a cerimônia de casamento, o cortejo fúnebre, que enfatizam a importância
desses momentos de transição de uma categoria social para outra, tanto para pessoa quanto
para o grupo envolvido.
De acordo com Propp:

Ainda que historicamente se tenha tido a hostilidade entre pai e filho (os pais são
mortos pelos herdeiros até ao século XIX), não foi daqui que nasceu o entrecho. As
novas relações sociais não criam um novo entrecho, mas <transportam um velho
conflito para dentro das novas relações>: o filho-herdeiro, sucedido ao genro-
herdeiro, assume a função da hostilidade para com o pai e do seu assassinato. Surge
assim o motivo do parricídio no folclore. (PROPP, 2002, p. 129)
39

Em um entrecho, Propp comenta que o afastamento do filho é motivado pelo medo do


próprio filho. Assim, fica claro que não é por meio da profecia que o filho é motivado. A
profecia foi uma época em que o poder paterno era muito forte, mas era constituído por bases
da vida civil e estatal. No caso, o herói, neste período, não pode querer matar o próprio pai,
porque do contrário não é um herói, mas sim um celerado.
Propp corrobora:

Na grande maioria dos casos, no conto as coisas acontecem mesmo assim: o conto
reflete aqui uma situação que historicamente existiu e reflete também a morte do
futuro sogro sem profecias do gênero. A situação do assassinato do rei e da sua
substituição pelo genro era universalmente conhecida: até o rei sabia que seria
inevitavelmente morto e muitas vezes, suicidava-se por sua iniciativa. Se, o oráculo
diria: <Rei, virá a ti um estrangeiro, que desposará tua filha, te matará e ocupará o
teu trono>. Mas, em regra, não há estes oráculos: existem apenas como excepção.
Tais excepções, porém, mostram que esta é a estrutura da natureza das coisas.
Assim, ao rei Enómao foi predito que seria morto, se sua filha Hipódame de casasse.
(PROPP. 2002, p. 130)

Os ritos e mitos seriam modos de responder às necessidades básicas e primárias, essas


necessidades que determinam uma resposta humana e forçam o grupo na direção de uma
invenção da cultura. É o rito que abre as portas à esperança de viver num mundo de paz.
Assim, tem como significado a fábula, que representa a história de deuses, semideuses e
heróis da Antiguidade pagã, ou seja, a interpretação primitiva e ingênua do mundo e de sua
origem, sob forma alegórica, deixa entrever um fato natural, histórico ou filosófico.
Em certo momento, Propp comenta em seu livro Édipo à Luz do Folclore sobre
questões relacionadas ao rito e sobre a forma da prática social. Afirma a necessidade de
complementar algumas ações, porque estas eram levadas a cabo e também faziam parte de um
fenômeno relacionado à vida cotidiana. Ademais, o teórico também se referia que o elemento
pode-se achar como forma não de uma prática ou vida social. E por fim, faz referência ao rito
como uma possibilidade simbólica, pois é necessário relembrar que o objeto do rito pode ser
sujeito apenas de transformações. Por exemplo, um morto e inumado pode ser um animal ou
também um ser humano.
O significado da palavra mito provém do relato fantástico de tradição do oral,
protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição
humana e lenda, ou seja, também é possível observar que o mito refere-se à narrativa acerca
dos tempos heróicos, que guardam um fundo de verdade.
Propp considera o seu segundo livro, de 1946, como a segunda parte de sua
Morfologia do conto maravilhoso. A conclusão do livro, de 1946, expressa a unidade do
conto por meio da análise de sua composição e situa essa unidade na história primitiva da
40

humanidade. A obra é assim uma busca da base histórica que origina o conto. Em sua
resposta a Lévi-Strauss (1966), Propp ressalta a unidade de suas obras: a Morfologia contém,
para ele, as premissas das Raízes históricas, que tentam explicar as causas históricas dos fatos
estruturais previamente descritos no primeiro livro (PROPP, 1983, p. 566-584).
O fato de que os contos são compostos sempre dos mesmos elementos serve a Propp
como prova de sua origem comum. A Morfologia o leva a vislumbrar o fator social que
constitui a protoforma subjacente ao conto, é o caso do ritual de iniciação como fonte arcaica
dos motivos do conto mágico. A lei da metamorfose, fundamental na morfologia goethiana,
vem completar o paralelismo entre essas duas manifestações. As duas morfologias - a de
Goethe e a de Propp - representam a busca de leis capazes de descrever a repetição dos
fenômenos e também a causa dessa repetição. Longe de um interesse abstrato pela
composição literária, a morfologia proppiana fundamenta-se nessa repetição presente nos
contos russos.
Propp teve por inspiração o projeto de Goethe. Este pretendia formular as leis por
detrás da repetição observada nos reinos animal e vegetal. Essa busca é correlativa à noção de
transformação dos elementos que se repetem. A ideia da metamorfose implica uma
perspectiva monogenética, derivando a diversidade das formas da uniformidade inicial.
comparecem no princípio comum a Goethe e Propp, segundo o qual o estudo da estrutura é o
das transformações.
A mesma ideia influência do formalismo russo. Assim, Alexandre Petróvski, cujo
seminário sobre poética Propp frequentou, inicia seu ensaio de 1921 com esta citação de
Goethe: Gestaltenlehre ist Verwandlungslehre (PETRÓVSKI, 1921, p. 106). Este ensaio de
Petróvski é conceptualmente próximo do estudo de Propp, de 1928, sobre as transformações
dos contos mágicos (PROPP, 1928, p. 70-89). O conto mágico, objeto de estudo de Propp, é
apresentado como metamorfose contínua de um tipo primitivo. A metamorfose é o processo
de onde parte toda a variedade dos contos. É nesse ponto que seu método se cruza com aquele
de Goethe, para quem o objeto de estudo é caracterizado por uma série contínua de
transformações.
Vale mencionar que a forma primitiva é uma noção dinâmica por excelência.
Proveniente dos domínios da ação, marca a própria região da metamorfose. Os personagens
definidos, por meio de sua função no conto, serão, precisamente, por força dessa definição,
unidades instáveis, capturados pelos processos de metamorfose. Desse ponto de vista, os
personagens do conto aparecem como limites de transição, como marcações de graus de
transição realizando-se no interior das polaridades constitutivas do conto. Trata-se de
41

elementos de um único processo de intensificação.


Esse pano de fundo comum, suporte das transições ou das metamorfoses, deixa
entrever que os diferentes personagens formam um mesmo personagem. Analogamente, na
perspectiva morfologista e transformista da unidade do plano de composição, todos os
animais são um mesmo animal e todas as plantas conhecidas formam uma única planta.
Somente em 1958, após o lançamento de uma versão inglesa da obra. Passou-se,
então, a reconhecer que a pesquisa de Propp, totalmente focada nos estudos de contos
maravilhosos e com o objetivo de explicar algumas questões, que, na época, causavam
incômodo para alguns estudiosos de semiótica cultural, como a questão dos mesmos
esquemas narrativos serem utilizados e reinterpretados em diferentes povos ou civilizações
que jamais havia mantido qualquer tipo de contato entre si.
É por intermédio de suas obras: Morfologia do Conto Maravilhoso – 1928; Édipo à
Luz do Folclore – 1944; Raízes Históricas do Conto Maravilhoso – 1946, que o seu método,
considerado indutivo, ou seja, aquele método que ao invés de criar um modelo sem base de
descrição a partir de uma teoria, considera o conto como sua totalidade.
Conforme Propp cita:

[...] esta obra está dedicada aos contos de magia. [...] Por conto de magia
entenderemos, por enquanto, os que estão classificados no índice de Aarne e
Thompson entre os números 300 e 749. Esta definição preliminar é artificial, e
adiante teremos ocasião de dar outra mais correta, baseada nas próprias conclusões
obtidas. (PROPP, 2006, p. 20)

Propp sempre foi um pesquisador de gêneros culturais populares, tendo como objetivo
identificar e analisar a matriz morfológica do conto. Foi por intermédio de sua obra: raízes
históricas do conto maravilhoso - 1946, que foram apontados gêneses dos contos
maravilhosos e narrativas que esclarecem, e estão diretamente ligadas aos antigos rituais de
iniciação, ou quase sempre associadas com o culto dos antepassados.
De acordo com Jerusa Pires:

Vladimir Propp nos abre uma pista valiosa ao dizer-nos que este conto, em suas
versões, foi de fato muito difundido na Rússia, por via livresca, sendo muito popular
no Oriente e na Europa Oriental. E nota que as variantes orais encontradas
conservaram vestígios da elaboração literária e que ele chega a aparecer numa
coletânea do século XVIII, tendendo para o “folclorístico”, com argumento
elaborado literariamente. Ele também nos observa que seu espírito chega a
distanciar-se bastante do universo popular, enveredando por um outro tipo de
racionalidade. (FERREIRA, 2014, p. 22)

A teoria da narrativa estudada por Propp representa uma relevante definição para se
estudar a estrutura do conto fantástico e suas diversas relações sobre a teoria narratológica do
42

conto. O autor diz que “é evidente que, antes de elucidar a questão da origem do conto
maravilhoso, deve-se saber em primeiro lugar o que é conto” (PROPP. 2006, p.7).
O significado da palavra conto é uma narração falada ou escrita, assim, por meio dela,
têm-se subsídios suficientes para que um trabalho coerente e consistente seja desenvolvido.
Por isso, Propp realizou uma pesquisa aprofundada sobre contos fantásticos russos, na qual o
teórico recolheu vários contos tradicionais até chegar a um corpus de 449 contos, buscou
ainda uma estrutura neste corpus e encontrou aproximadamente 31 funções, por suas partes
constitutivas ao final de cada conto. Mas, ao esboçar um modelo geral de análise descritiva e
de funcionamento ao classificar os contos, não por meio de seus assuntos, mas sim, por suas
estruturas, para Propp, o que era mais relevante estava inserido nas regras e construção
estruturais da narrativa e não em seus elementos.
O seu interesse é descrever e demonstrar os contos, por meio de suas partes
constitutivas e as relações destas partes entre elas e com o todo. A uniformidade do conto é
mais relevante para o resultado final de análise dos contos do que seus elementos
desmembrados e analisados de maneira individual. O autor define 31 funções, chegando à
conclusão de que todos os contos maravilhosos são iguais, isso em relação à sua estrutura.
Ainda diz que "da mesma forma que se utiliza um metro para determinar o comprimento de
um tecido, pode-se utilizar este esquema para definir os contos" (PROPP apud GILLIG, 1999,
p. 46).
O estudo de Propp é de uma importância e inovação, na área, para o período em que
foi publicado, mas não deixa de ser uma pesquisa complexa, pois aborda uma quantidade
significativa de 31funções do texto. No entanto, esse estudo é identificado apenas aos contos
maravilhosos. Assim, havendo uma necessidade de estudos mais aprofundados sobre o conto.
Os personagens apontados pelo teórico russo, nos contos maravilhosos, são
classificados em diferentes funções, classes, categorias, elementos ou esferas, de acordo com
cada trama. Essas esferas são sete classes de personagens. A seguir será realizado um
esquema para definir os sete principais personagens e respectivamente suas ações:
1) Definição: O Agressor – o que faz mal; Ação: causa o dano (A), enfrenta o herói em
combate (H) e persegue o herói (Pr);
2) Definição: O Doador – o que dá o objeto mágico ao herói; Ação: submete o herói a
provas (D) e transmite objeto mágico ao herói (F);
3) Definição: O Auxiliar – que ajuda o herói no seu percurso; Ação: este leva o herói
para onde ele precisa ir (G), também repara o dano ou carência (K) e salva o herói quando o
antagonista o persegue (Rs);
43

4) Definição: A Princesa e o Pai – não tem de ser obrigatoriamente o Rei; Ação: estes
sujeitam o herói passar por difíceis tarefas (M), dão ao herói uma marca ou objeto que servirá
para reconhecê-lo mais tarde (J), desmascara o falso herói (Ex), reconhece o herói (Q) e o
0
herói casa-se W;
5) Definição: O Mandador – aquele que manda; Ação: este pode enviar o herói para
sua missão (B).
6) Definição: O Herói (buscador e/ou vítima); Ação: o mesmo segue em viagem para
realizar uma busca (C), também pode ser colocado à prova pelo doador (E) e ao final, casa-
0
se com a princesa W;
7) Definição: O Falso Herói. Ação: ele faz uma busca (C), assim, ele ordena tarefas
ao herói e também é colocado à prova pelo doador, mas falha: sua reação é negativa (Eneg).
Além do principal objetivo da pesquisa, que é o de realizar um estudo narratológico
dos efeitos de nonsense em filmes de Tim Burton à luz da teoria narrativa de Propp. A
principal hipótese deste estudo é identificar estes mesmos sete personagens e respectivamente
suas ações, também apontadas pelo teórico russo nos contos maravilhosos, de acordo com
cada trama.
Conforme Propp, “Para cada função daremos: 1) breve descrição de sua essência, 2)
definição reduzida numa palavra, 3) seu signo convencional. (A introdução de signos
permitirá comparar de modo esquemático a construção do conto.)” (PROPP, 2006, p. 26)
Assim, as funções dos personagens nos contos fantásticos, permanecendo sempre
diferentes, em sua aparência, idade, sexos, gênero de preocupação, estado civil e outros traços
estáticos e atributivos, realizam, mantêm-se, durante o curso da ação, rigorosamente as
mesmas. Isso determina a conexão das constantes com as variáveis. As funções dos
personagens representam constantes, mas todo o resto pode variar.
Conforme cita Propp, “No estudo do conto maravilhoso o que realmente importa é
saber o que fazem os personagens, Quem faz algo e como isso é feito já são perguntas para um
estudo complementar.” (PROPP, 2006, p. 21)
As funções dos personagens são definidas como as partes constituintes. Estas funções,
de alguns personagens dos contos maravilhosos, podem ser repassadas para outros
personagens. Assim, pode-se falar que existem poucas funções, enquanto os personagens são
vários. Propp diz: “Sendo assim, as funções dos personagens representam as partes
fundamentais do conto maravilhoso, e devemos destacá-las em primeiro lugar.” (PROPP,
2006, p.22).
44

De acordo com Propp:

[...] Por função compreende-se o procedimento de um personagem,


definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação.
As observações apresentadas podem ser formuladas brevemente nos
seguintes termos:
I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as
funções dos personagens, independentemente da maneira pela qual eles as
executam. Essas funções formam as partes constituintes básicas do conto.
II. O número de funções dos contos de magia conhecido é limitado.
(PROPP, 2006, p. 22)

O teórico Haroldo de Campos, (São Paulo SP 1929 - São Paulo SP 2003), apresenta e
reinterpreta o modelo proppiano. Poeta, tradutor, ensaísta, irmão mais velho do também poeta,
tradutor e ensaísta da Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de
São Paulo - MAM/SP que, um ano depois, é montada no saguão do Ministério da Educação e
Cultura - MEC, no Rio de Janeiro. Em 1958, publica, em Noigandres 4, o Plano-Piloto para
Poesia Concreta, novamente com seu irmão Augusto e Pignatari. Juntos, em 1965, lançam
também o livro Teoria da Poesia Concreta. Defende a tese de doutorado Morfologia do
Macunaíma, em 1972, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo - FFLCH/USP. No ano seguinte, assume a cadeira de semiótica da literatura, no
programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo - PUC/SP. (http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa21896/haroldo-de-
campos).
De acordo com Haroldo de Campos:

Propp individuou trinta e uma funções nas “fábulas de magia”. Examinando depois
como se combinam estas funções sobre o eixo de sucessão (sintagmático, diríamos,
em terminologia saussuriana), chegou à convicção de que, longe de ser casual (como
supunham Viessielóvski e outros), a sucessão das funções é escrupulosamente
idêntica e a possibilidade de variações tem limites precisos. As “fábulas de magia”
têm assim estrutura monotípica (embora as funções não compareçam todas na
totalidade das fábulas, a ausência de algumas não altera a ordem das outras).
Estabelecendo a base morfológica dessas fábulas sob a forma de um esquema ou
modelo de funções sucessivas, muniu-se Propp de um estalão (“unidade de
medida”) para com ele aferir as fábulas particulares e determiná-las de maneira
precisa. (CAMPOS, 2008, p. 21-22).

O que se pode notar é que, apesar da teoria proppiana apresentar falhas, serviu de base
para o estudo e o desenvolvimento de outros modelos de análise de contos maravilhosos.
(SILVA, 2004, p. 32).
De acordo com Propp, “Se não se pode aplicar esta afirmação ao conto maravilhoso
em geral, em toda a amplitude do vocábulo, pode-se reinterpretá-la certamente aos
45

denominados contos de magia “no sentido exato desta palavra”. O presente trabalho está
dedicado apenas a este último tipo de conto”.
A morfologia do conto maravilhoso por Propp distingue-se de outras pesquisas
relevantes, no campo do folclore, realizadas no tempo (normalmente envolvidas no estudo das
fontes históricas), para a sua abordagem, estritamente síncrona ou descritiva, considerada
preliminar necessária para qualquer análise história genética. Tendo em conta a inconsistência
das explicações acima das histórias, realizadas de uma maneira fragmentada, e com base em
elementos não objetivamente individuais de conteúdo e forma, o autor pretende basear a sua
própria descrição da história, nas magnitudes constantes representadas pelas ações dos
personagens ou funções.
Acima das semelhanças e diferenças, muitas vezes, só aparentes, sobre os nomes e
atributos dos personagens, ou a forma como realizaram determinadas ações, Propp (2006,
p.25) concretizou seu estudo com base em um corpus composto de apenas 100 narrativas: os
contos 50-151 da coletânea Contos de maravilhosos (1855-1863), publicada por Aleksandr
Afanássiev (1826-1871), em 8 volumes com um total de 600 contos. Observou no material
escolhido para a investigação (100 histórias "fantásticas"), a repetição constante de um
número limitado de funções, identificadas de acordo com o seu lugar na economia da
narrativa, e ocorrem sempre na mesma ordem.
A morfologia da influência das ideias de escolaridade formal e, especialmente, a
pesquisa de V. Shklovsky e B. Tomashevsky, sobre a estrutura da prosa literária, são claras,
como demonstrada tanto a prioridade dada à descrição síncrona em relação ao histórico, como
narrativas atribuídas a motivações de ações dos personagens quanto à determinação do seu
significado na história composicional valor fixação mecânica.
As funções listadas por Propp (descrito como dano, away, casamento, etc.) são 31
(nem sempre coexistentes) na história do conto maravilhoso, de modo que prova ser um
gênero estruturalmente homogêneo a ser definido pela presença de tais funções. Para além
desta classificação básica, Propp também sugere a possibilidade de agrupar as funções de
acordo com as esferas de ação de caracteres diferentes (antagonista, assistentes, etc.), com a
sua forma característica. Mas essa proposta, que iria criar um regime global de possíveis
formas desse tipo de história, não é desenvolvida na mesma medida a partir do primeiro.
Portanto, de acordo com o método da linguística estrutural subindo, Propp volta das
realizações concretas às inumeráveis, elementos significativos invariantes à combinação (de
acordo com a divulgação de regras que é insinuado na Morfologia) resulta na variedade
infinita de contos realmente existentes e todos esquemas potencialmente dedutíveis e
46

sequência de funções. Isso equivale considerar que os contos podem ser reduzidos apenas em
um; geneticamente falando. Assim, é possível teorizar referência, transformando todos os
quadros de uma história que de acordo com Propp, poderia muito bem ser bem perto da
história da princesa raptada pelo dragão, obviamente, muito arcaico.
É relevante citar que Propp observou que as funções dos personagens podem ser
denominadas como a parte fundamental do conto maravilhoso, em sua análise ao destacar as
funções, entendeu ainda a existência de uma necessidade a ser definida, e que essa definição é
a conclusão a partir de possíveis pontos de vista. Assim, Propp explana a importância de se
entender os procedimentos de um personagem, seguindo do ponto de partida de sua relevância
para as próximas etapas da ação.
De acordo com Propp:

As observações apresentadas podem ser formuladas brevemente nos seguintes termos:


I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso são as funções dos
personagens, independente da maneira pela qual eles as executam. Essas funções
formam as partes constituintes básicas do conto.
II. O número de funções dos contos de magia conhecidos é limitado. […]
III. A sequência das funções é sempre idêntica. […]
IV. Todos os contos de magia são monotípicos quanto à construção.
(PROPP, 2006. p. 22-25)

A seguir, um estudo descritivo das funções dos personagens à luz da teoria narrativa
de Propp. Trata-se de surpreender aí procedimentos análogos àqueles do conto maravilhoso,
tais como descritos por Propp. Todo o item 2.1., foi um trecho retirado do livro Morfologia
do Conto Maravilhoso de Vladimir Propp (2006), pois todo o trecho a seguir serve como um
esquema de referência para demonstrar todo o processo narratológico de um conto
maravilhoso.

2.1. Principais Funções dos Personagens à luz de Propp

O teórico Vladimir Propp identificou uma quantidade específica de 31 funções


realizadas pelos personagens, no decorrer de toda trama do conto maravilhoso. Foi a partir daí
que pôde classificá- lo. Nesta parte do capítulo, apontar-se-ão quais são essas 31 funções, sua
ação e relevância no contexto narratológico do conto maravilhoso.
O conto maravilhoso inicia-se por meio de uma determinada situação. É realizada uma
ordem cronológica dos membros da família e do herói. Assim, define-se esse elemento como
situação inicial. Representado pelo signo convencional: α.
47

Em seguida, o signo: β: afastamento (partida ou morte de alguém mais velho, de um


1 2
jovem, etc.) : proibição ( - herói recebe proibição; - herói recebe ordem de fazer
1 1 2
algo) : transgressão ( - transgressão da proibição; - execução da ordem) :
interrogação (malfeitor pergunta sobre herói) : obtenção de informações (malfeitor recebe
informações) : persuasão pelo malfeitor (malfeitor engana a vítima) : herói reage ante a
proposta do malfeitor (vítima é enganada).
Além das demais funções: A: dano / a: carência B: mediação, momento de conexão
(apelo; envio/autorização do herói; anúncio do dano) C: início da reação : partida do
herói D: prova (doador submete herói à prova) E: reação (herói tem êxito na prova) F:
transmissão de objeto mágico (herói recebe objeto mágico, informação, etc.) G: viagem ao
lugar de destino H: luta contra malfeitor (combate, competição, etc.) I: marca (herói recebe
marca no corpo ou objeto identificador – lenço, anel, etc.) J: vitória (malfeitor é derrotado,
expulso, morto) K: reparação do dano/carência (quebra de feitiço, soltura da prisão, fim da
pobreza, etc.) : regresso Pr: perseguição (sucessiva transformação em diferentes animais;
tentativa de morte) Rs: salvamento (herói é socorrido ou consegue escapar) O: chegada
incógnito (herói aparece disfarçado ou não se identifica) L: pretensões do falso herói (falso
herói faz-se passar pelo herói) M: tarefa difícil N: realização da tarefa Q: reconhecimento
do herói Ex: desmascaramento do falso herói T: transfiguração (herói ganha nova aparência
física, novas roupas, etc.) U: castigo do malfeitor ou falso herói W: recompensa (casamento,
subida ao trono, enriquecimento, etc.) <: separação diante de um marco indicador (irmãos,
noivos, etc. separam-se) Mot: motivações s: transmissão de objeto sinalizador (herói e
princesa trocam objetos: véu, anel, etc.) §: conexões (ação que interliga duas outras
funções) pos: resultado positivo da função neg: resultado negativo da função (ex.: Eneg
[falso herói não tem êxito na prova imposta pelo doador]; Uneg [malfeitor não é
castigado]) contr: resultado oposto ao significado da função (ex.: Fcontr [doador castiga
herói após êxito na prova]).
De acordo com Propp:

Desta forma, há, no conto, sete personagens básicos. As funções da parte


preparatória (b, g-d, e-x, h-q) também estão distribuídas entre esses personagens,
mas essa distribuição não é uniforme, e por isso essas funções não devem definir os
personagens. Além disso, existem personagens especiais para a ligação das partes
(os queixosos, os delatores, os caluniadores) e também transmissores particulares
para a função x (informação obtida): o espelho, o cinzel, a escova revelam onde se
encontra a vítima procurada pelo malfeitor. (PROPP, 2006, p. 78)
48

Como se vê, as funções dos personagens apresentam contantes, e por vezes


complementares, possibilidades de variações das ações desses personagens, já que se trata de
uma composição complexa, dinâmica, que, para ser compreendida, deve-se recorrer a uma
boa definição de suas funções.
Nesse sentido, faz-se necessário levar em conta as diferentes funções, classes,
categorias, elementos ou esferas de acordo com cada trama. É necessário analisar e verificar
se existe uma pertinência sincrônica entre as funções dos personagens e respectivamente suas
ações nos contos maravilhosos, objeto de estudo desta pesquisa.
Conforme Propp cita:

Os personagens são definidos não por sua disposição favorável ou agressiva, mas
por sua contribuição ao enredo e seu impacto sobre o herói: O importante não é o
que eles [personagens] querem fazer nem tampouco os sentimentos que os animam,
mas suas ações em si, sua definição e avaliação do ponto de vista de seu
significado para o herói e para o desenvolvimento da ação. [...] os sentimentos do
mandante podem ser hostis, neutros ou amistosos, isto não influirá no
desenvolvimento da ação. (PROPP, 2006, p. 79)

Levando em consideração esse pensamento, levanta-se a necessidade de definir bem


todas as 31 funções apontadas por Propp, para que se possa mais adiante compreender sua
relevância para o estudo e reinterpretação das funções dos personagens do conto maravilhoso
de Propp à luz dos personagens dos filmes de Tim Burton.
I. Um dos membros da família sai de casa (definição: afastamento; designação: β).
É uma ação realizada por um dos personagens, no caso, o membro da famíla age,
definição: afastamento; geralmente significa a partida ou morte de algum membro da família
mais experiente e que já possui certa vivência, ou seja, de uma geração mais velha. Mas essa
partida pode ser de alguém mais jovem. Um exemplo citado por Propp:
1) Os pais saem para trabalhar (113). “O príncipe teve de partir para uma longa
viagem, deixando sua mulher confiada a estranhos” (265). “Ele (o mercador) parte para países
estrangeiros” (197). As formas habituais de afastamento são: para o trabalho, para a mata,
1
para dedicar-se ao comércio, para a guerra, “a negócios” (β ).
2
2) A morte dos pais representa uma forma intensificada de afastamento (β ).
3) Às vezes, são os membros da geração mais nova que se afastam. Vão fazer uma
3
visita (101), pescar (108), passear (137), apanhar frutas (224). Designação: β (PROPP, 2006,
p.27)
II. Impõe-se ao herói uma proibição (definição: proibição; designação: γ).
49

1) “Não deves espiar nesta despensa” (159). “Cuida de teu irmãozinho, não saias de
casa” (113). “Se Baba-Iagá vier, não digas nada, cala-te” (106). “O príncipe persuadiu-a
durante muito tempo, proibiu-lhe abandonar a alta torre” (265) etc. A proibição de sair, às
vezes, é reforçada ou substituída pela colocação das crianças num buraco (201). Outras vezes,
pelo contrário, encontramos uma forma mais fraca de interdito, sob a aparência de um pedido
ou de um conselho: a mãe quer persuadir o filho a não sair para pescar: “És ainda pequeno”
(108) etc. O conto maravilhoso menciona, geralmente, primeiro o afastamento e depois o
interdito. Na realidade, a sequência dos acontecimentos é, naturalmente, inversa. Pode haver
interditos sem nenhuma relação com o afastamento: não colher maçãs (230), não levantar a
1
pena de ouro (169), não abrir uma gaveta (219), não beijar a irmã (219). Designação: γ
2) Um aspecto transformado da proibição é a ordem ou a proposta: levar comida ao
2
campo (133), levar o irmãozinho à mata (244). Designação: γ (PROPP, 2006, p. 27-28)
Nessa função do personagem, Propp, aqui, para maior clareza, aponta que se pode
fazer uma digressão. Ele diz que o conto maravilhoso apresenta, em seguida, a chegada
inesperada (mesmo se, de certo modo, essa situação foi preparada) da adversidade. Dessa
forma, o início da situação dá conforto e/ou bem-estar propositalmente sublinhado. O czar (rei
ou majestade) possui um jardim maravilhoso com maçãs de ouro; os velhos pais amam com
ternura seu filho Ivan, etc. Esse bem-estar serve de preparação ou fundo para adversidade que
virá em seguida. O espectro dessa adversidade, embora invisível, paira sobre a família feliz.
Daí o porquê das proibições de sair, etc., são criadas algumas situações que forçam às
crianças irem ao campo ou desobodecer às ordens.
III. A proibição é transgredida (definição: transgressão; designação: δ).
As formas de transgressão correspondem às formas de interdito. As funções II e III
constituem um elemento par. O Segundo membro pode existir, às vezes, sem o primeiro. As
3
princesas vão ao jardim (β ), voltam para casa com atraso. Aqui falta a proibição de atrasa-
2 1
se. A ordem executada (δ ) corresponde como foi observado, à proibição transgredida (δ ).
Penetra agora, no conto maravilhoso, um novo personagem, este pode ser chamado de
antagonista do herói (agressor). Seu papel consiste em destruir a paz da família feliz, em
provocar alguma desgraça, em causar dano, prejuízo. O inimigo do herói pode ser tanto um
dragão como o diabo, ou bandidos, a bruxa, a madrasta etc. [..] Ele chegou, aproximou-se,
furtivamente, veio voando, etc., e começa a agir. (PROPP, 2006, p. 28)
IV. O antagonista procura obter uma informação (definição: interrogatório;
50

designação: ξ).
1) O interrogatório tem por finalidade descobrir o lugar onde se encontram as crianças,
às vezes objetos preciosos, etc. O urso: “Quem pode me dizer onde foram parar os filhos do
rei?” (201). O intendente: “De onde tirais estas pedras preciosas?” (197). O pope na
confissão: “Como é que você conseguiu se restabelecer tão depressa?”(258). A princesa:
“Dize-me, Ivan, filho de mercador, onde está tua sabedoria?” (209). “De que vive a cadela?”,
pensa Iaguichna (filha da Babá-Iagá). Ela envia para explorer Um-Olho, Dois-Olhos e Três-
1
Olhos (100). Designação: ε
2) Uma forma transformada do interrogatório é encontrada nas perguntas feitas pela
vítima ao antagonista. “Onde está a tua morte, Kochchéi (é um personagem do folklore russo,
também chamado “o imortal”)? (156). “Como é rápido o vosso cavalo! Poderíeis encontrar,
2
em algum lugar, outro cavalo como esse, capaz de fugir do vosso? (160). Designação: ε
3) Em casos isolados, encontra-se o interrogatório feito por meio de outras pessoas.
3
Designação: ε (PROPP, 2006, p. 29)
V. O antagonista recebe informações sobre sua vítima (definição: informação;
designação: ζ).
1) O antagonista recebe respostas diretas à sua pergunta. O formão diz ao urso: “Leva-
me para o quintal e joga-me no chão; onde eu ficar cravado, ali tens de cavar” (201). À
pergunta do intendente sobre as preciosas, a mulher do Mercado responde: É uma galinha que
as põe para nós”, (197), etc. Encontram-se aqui, novamente, as funções emparelhadas.
Frequentemente são apresentadas em forma de diálogo. Aqui se situa, entre outros, o diálogo
da madrasta com o espelho. Mesmo que a madrasta nada pergunte diretamente sobre a
enteada, o espelho lhe responde: “Tu és bela, não há dúvida; tens, porém, uma enteada, que
mora na casa dos bogatires (heróis folclóricos e épicos russos, espécie de atletas) na mata
espessa: ela é ainda mais bela”. Como em outros casos semelhantes, o segundo membro pode
também existir sem o primeiro. Nesses casos, a informação toma a forma de um ato
imprudente. A mãe chama o filho para casa em voz alta, e assim denuncia sua presença à
bruxa (108). O velho recebeu uma bolsa encantada. Ele enche sua comadre de presente,
1
denunciando, assim, o segredo de seu talismã (187). Designação: ζ
2-3) O interrogatório invertido, ou de outro tipo, provoca a resposta correspondente.
Kochchéi revela o segredo de sua morte (136), o segredo do cavalo veroz (159), etc.
2e 3
Designações: ζ ζ . (PROPP, 2006, p. 29-30)
51

VI. O antagonista tenta ludibriar sua vítima para apoderar-se dela ou de seus
bens (definição: ardil; designação: η).
Antes de tudo, o antagonista ou agressor assume feições alheias. O dragão se
transforma em cabra de ouro (162), em belo jovem (202). A bruxa se disfarça em “simpática
velhinha” (225). Ela imita a voz da mãe (108). O pope se cobre com uma pele de cabra (258).
A ladra finge ser uma mendiga (139).
Segue-se a própria função.
1) O agressor age por meio da persuasão: a bruxa oferece um anel (114), a comadre
propõe um banho de vapor (187), a bruxa propõe tirarem a roupa (259), banharem-se na
1
represa (265). Designação: η
2) O agressor atua utilizando diretamente meios mágicos. A madrasta dá a seu enteado
bolinhos envenenados (233). Ela espeta em sua roupa uma agulha enfeitiçada (233).
2
Designação: η
3) Ele atua por outros meios de fraude e de coação. As irmãs malvadas enchem de
facas e de pontas a janela pela qual deve entrar voando Finist (234). O dragão muda de lugar
3
as raspas que indicam à moça o caminho para encontrar os irmãos (133). Designação: η
(PROPP, 2006, p. 30)
VII. A vítima se deixa enganar, ajudando assim, involuntariamente, seu inimigo
(definição: cumplicidade; designação: θ).
1) O herói deixa-se persuadir em tudo pelo antagonista, isto é, pega o anel, vai tomar
banho de vapor, vai nadar, etc. Pode-se notar que as proibições são sempre aceitas e as
1
propostas enganosas, pelo contrário, são sempre aceitas e executadas. Designação: θ
2-3) O herói reage mecanicamente ao uso de meios mágicos e outros, isto é, adormece,
fere-se, etc. Esta função também pode existir isoladamente: ninguém faz com que o herói
durma, mas ele adormece de repente, com certeza para facilitar o trabalho do inimigo.
2 3
Designações: θ e θ .
A proposta enganosa e a aceitação correspondente tomam uma forma particular no
pacto ardiloso (“dá-me o que não conheces de tua casa”). Nestas circunstâncias, o acordo é
obtido à força, e o inimigo se aproveita de alguma situação difícil em que se encontra sua
vítima (dispersão do rebanho, miséria extrema etc.). Às vezes, esta situação difícil é criada
propositadamente pelo inimigo (o urso agarra o rei pela barba, 201). Este elemento pode ser
definido como desgraça prévia (designação: Χ, para distingui-lo das demais formas de ardil).
52

(PROPP, 2006, p. 30-31)


VIII. O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família
(definição: dano; designação: A).
É possível observar que esta função é extremamente importante, porque, na realidade,
dá movimento ao conto maravilhoso. O afastamento, a infração ao interdito, a informação, o
êxito do embuste preparam essa função, tornam-na possível ou simplesmente a facilitam. Por
isso, as sete primeiras funções podem ser consideradas como parte preparatória do conto
maravilhoso, enquanto o nó da intriga está ligado ao dano. As formas de dano são
1
extremamente variadas. 1) O antagonista rapta uma pessoa (A ). O dragão rapta a filha do rei
(131), a filha de um camponês (133). A bruxa rapta um menino (108). Os irmãos mais velhos
raptam a noiva do mais novo (168) [..] Esgotam-se assim as formas de dano nos limites do
material escolhido. Nem todos os contos, porém, começam por uma agressão. Existem outros
inícios, que acarretam frequentemente o mesmo desenvolvimento dos contos da função A,
inciados pelo dano. Prestando atenção a ese fenômeno, pode-se ver que esse tipo de conto
começa por certa situação de carência ou penúria, o que leva a uma procura análoga à
procura, no caso do dano-agressão. Daí a conclusão de que a carência pode ser examinada
com um equivalente morfológico, por exemplo, do roubo. Examinem-se os seguintes casos: a
princesa rouba o talismã de Ivan. O resultado desse roubo é que falta a Ivan seu talismã.
Assim, é possível ver que, bem frequentemente, o conto, deixando de lado o dano, começa
diretamente pela carência: Ivan quer possuir um sabre mágico, ou um cavalo mágico, etc. A
carência, tal como o roubo, determina o momento seguinte da intriga: Ivan parte para a busca.
Pode-se dizer o mesmo sobre o rapto da noiva, e da noiva que simplesmente falta, etc. No
primeiro caso tem-se uma ação cujo resultado produz uma carência e que obriga a uma
procura; no segundo, existe uma carência bem-definida, obrigando também a uma procura.
Ainda no primeiro caso, a carência vem do exterior, já no segundo, é reconhecida no interior.
Essa carência pode ser comparada a um zero, que na série dos algarismos representa um valor
determinado. O momento dado pode ser fixado do seguinte modo: (PROPP, 2006, p. 31-35)
VIII-A. Falta alguma coisa a um membro da família, ele deseja obter algo
(definição: carência; designação: ą).
Estes casos dificilmente podem ser submetidos a um agrupamento. Poderiam ser
classificados de acordo com as diferentes formas que apresentam o reconhecimento da
carência, mas pode-se limitar aqui a uma classificação, segundo os objetos da carência.
Assim, distinguem-se as seguintes formas: 1) carência de uma noiva (ou de um amigo, ou de
53

um ser humano em geral). Esta falta, por vezes, é descrita com muita ênfase (o herói está
disposto a procurar uma noiva), outras vezes nem sequer é mencionada. O herói é solteiro e
1
parte à procura de uma noiva – e com isso dá-se início à ação (designação: ą ); 2) é
necessário, indispensável, um objeto mágico, por exemplo, maçãs, água, cavalos, espadas etc.
2
(designação: ą ); 3) é necessário um objeto incomum (sem força mágica) como um pássaro de
3
fogo, um pato com plumas de ouro, a maravilha das maravilhas, etc. (designação: ą ) 4) uma
forma específica: desaparece o ovo mágico devido à morte de Kochchéi (com o amor da
4
princesa) (designação: ą ); 5) formas racionalizadas: falta dinheiro, meios para viver, etc.
5
(designação: ą ), e estes indícios realistas podem transformar-se, às vezes, em completamente
fantásticos; 6) Da mesma forma que o objeto do roubo não determina a construção do conto
maravilhoso, tampouco ela é determinada pelo objeto da carência. Por conseguinte, para as
finalidades da morfologia geral, não é necessário sistematizar todos os casos; é possível
limitar-se aos mais importantes, generalizando os demais.
Surge aqui, forçosamente, um problema: nem todos os contos maravilhosos começam
necessariamente por um dano ou pelo início que acaba de ser descrito. Assim, o conto de
Iemel, o tolo, por exemplo, começa com o tolo pescando um Lúcio, mas não é nem por
agressão, nem por carência. Na comparação de um grande número de contos maravilhosos
entre si, descobre-se, porém, que certos elementos próprios do centro do conto são colocados,
às vezes, no princípio, como é o caso do exemplo citado. A captura do animal e seu perdão é
tipicamente um elemento central, como será citado adiante. De uma forma geral, os elementos
A ou a são indispensáveis em todos os contos da classe examinada. Não existem outras
formas de iniciar o enredo nos contos maravilhosos. (PROPP, 2006, p. 35-36)
IX. É divulgada a notícia do dano ou carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é
dada uma ordem, mandam-o embora ou deixam-no ir (definição: meditação, momento de
conexão; designação: B).
Esta é a função que introduz o herói no conto. Numa análise mais minuciosa pode ser
subdividida em várias partes, mas, para os objetivos propostos, isto não é essencial. Os heróis
do conto maravilhoso só podem ser de dois tipos: 1) Se a jovem foi raptada, e desapareceu
assim das vistas de seu pai (bem como do horizonte do leitor), e Ivan parte à procura da
jovem, então o herói do conto é Ivan, e não a jovem raptada. Podem-se denominar buscadores
a esse tipo de herói. 2) Se uma jovem ou um menino são raptados ou expulsos, e o conto é
centrado em quem foi raptado ou expulso, não se interessando pelos que ficaram, então o
54

herói do conto é a jovem (ou menino) raptada (o) ou expulsa (o). Nesses contos não há
buscador, e o personagem principal pode ser denominado herói-vítima (adiante, ambos os
casos mais explicitamente). Após, será mostrado se os contos se desenvolvem do mesmo
modo quando aparece o primeiro tipo ou o segundo. Neste material não há casos em que o
conto acompanhe por igual o buscador e a vítima (cf. “Ruslan e Ludmila”). O momento de
mediação aparece nos dois casos. O significado deste momento é provocar a partida do herói
de casa.
1
1) Emite-se um pedido de Socorro seguido do envoi do herói (B ). O chamado
geralmente parte do czar e é acompanhado de promessas.
2
2) O herói é enviado imediatamente (B ). O envio do herói é dado em forma de ordem
ou pedido. No primeiro caso é, às vezes, acompanhado de ameaças, no Segundo, de
promessas; às vezes, de ambas simultaneamente.
3
3) O herói sai de casa (B ). Nesses casos, a iniciativa da saída parte frequentemente
do próprio herói e não de um mandante. Os pais lhe dão a bênção. Às vezes, o herói não
menciona seus reais objetivos. Pede permissão para passear, etc., e na realidade parte para a
luta.
4
4) Comunica-se o dano (B ). A mãe conta ao filho o rapto da filha, ocorrido antes do
nascimento dele, mas não lhe pede ajuda. O filho sai à procura (133). Mais frequentemente,
porém, o relato da desgraça não é feito pelos pais, mas por velhinhas, transeuntes casuais, etc.
O estudo dessas quatro formas está relacionado com os heróis-buscadores. As formas
que vêm a seguir se relacionam diretamente com os heróis-vítimas. A estrutura do conto
maravilhoso pede, de qualquer maneira, que o herói saia de casa. Se o dano não foi suficiente,
o conto utiliza-se, para essa finalidade, do momento conexão.
5
5) O herói expulso é levado para longe de casa (B ). O pai leva ao bosque a filha
expulsa pela madrasta. Essa forma é interessante por muitos motivos. As ações do pai são
inúteis do ponto de vista lógico. A filha poderia ir ao bosque sozinha. O conto, porém, exige,
no momento de conexão, a presença dos pais. Pode-se demonstrar que a forma supra é uma
modealidade secundária, mas isto não cabe dentro da finalidade da morfologia geral. Deve-se
notar que é levada também a princesa exigida pelo dragão. Nessas ocasiões, ela é deixada à
beira-mar. Nesse último caso, porém, emite-se ao mesmo tempo um apelo. O
desenvolvimento da ação é determinado pelo apelo, e não pelo fato de se ter conduzido a
princesa à beira-mar; rapto, portanto, não pode ser relacionado, nesse caso, com o momento
55

de conexão.
6
6) O herói condenado à morte é liberado secretamente (B ). O cozinheiro ou o
arqueiro poupa a jovem (ou o menino). Liberta-os, e no lugar deles mata um animal para levar
o coração ou o fígado como prova da morte (210, 195). O momento B supra foi definido
como o fator que provoca a saída do herói de casa. Se a chamada demonstra a necessidade de
partir, então se encontra a possibilidade de partir. O primeiro caso caracteriza o herói-
buscador; o segundo, o herói-vítima.
7
7) Entoa-se uma canção dolente (B ). É a forma específica para o assassínio (é
cantada pelo irmão que ficou vivo ou outros), bruxaria seguida de expulsão, substituição.
Como consequência, conhece-se a desgraça, e ocorre uma reação contrária. (PROPP, 2006, p.
36-38)
X. O herói-buscador aceita ou decide reagir (definição: início da reação;
designação: Ç).
Este momento se caracteriza, por exemplo, por palavras como: “Permite-nos partir em
busca de tuas princesas”, e outras. Às vezes, este momento não é mencionado com palavras,
mas a decisão de vontade precede evidentemente à procura. Este momento é característico
somente aos contos onde o herói é o buscador. Os heróis expulsos, mortos, enfeitiçados,
substituídos não têm a vontade de libertar-se, e então esse elemento está ausente. (PROPP,
2006, p. 38)
XI. O herói deixa a casa (definição: partida; designação: )
Essa partida representa algo diferente do afastamento temporário, designado
anteriormente pelo sinal β. A partida dos heróis-buscadores e a dos heróis-vítimas é diferente.
Os primeiros têm por finalidade uma busca; os segundos começam sua viagem sem buscas,
mas, durante essa viagem, defrontam-se com uma série de aventuras. Deve-se ter em mente o
seguinte: se uma jovem é raptada e o herói-buscador sai à sua procura, são dois personagens
que saem de casa. Então o caminho que segue a narração, o caminho onde se desenvolve a
ação, é o caminho do herói-buscador. O caso contrário, se, por exemplo, uma jovem é
expulsa, e ninguém parte à sua procura, a narração acompanha a partida e as aventuras do
herói-vítima. O signo ( ) designa a partida do herói, seja ele buscador ou vítima. Em alguns
contos maravilhosos falta o deslocamento do herói no espaço: toda a ação se desenrola num
só lugar. Às vezes, pelo contrário, a partida é acentuada e toma a forma de uma fuga.
Os elementos A B C ( ) representam o nó da intriga do conto. Em seguida se
desenvolve a ação.
56

Entra no conto um novo personagem, que pode ser denominado doador (seria, mais
precisamente, o provedor). Geralmente, é encontrado por acaso na mata, no caminho, etc. (cf.
cap. VII, as formas de entrada em cena dos personagens). Tanto o herói-buscador como o
herói-vítima recebem dele um objeto (geralmente um meio mágico) que lhes permite superar
o dano sofrido. Mas antes de receber o meio mágico, o herói é submetido a certas ações bem
diferentes entre si, embora todas elas o levem a tomar posse do objeto mágico. (PROPP,
2006, p. 38-39)
XII. O herói é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque etc., que
o preparam para receber um meio ou um auxiliar mágico (definição: primeira função do
doador; designação: D).
1
1) O doador sumete o herói a uma pova (D ). Baba-Iagá faz a jovem executar
trabalhos caseiros (102). Os “bogatires” da mata propõem ao herói que trabalhe para eles
durante três anos (216). Deverá trabalhar por três anos como barqueiro, sem pedir
remuneração (128). Deverá ouvir o som da gusla sem adormecer (216). Macieira, rio, forno
oferecem-lhe uma comida muito frugal (113). Baba-Iagá oferece-lhe que se deite com sua
filha (171). O dragão propõe-lhe que levante uma pedra pesada (128). Essa ordem aparece por
vezes escrita numa pedra; outras vezes, os irmãos, ao encontrarem uma pedra grande,
resolvem levantá-la por decisão própria. Iagá propõe vigiar um rebanho de éguas,(159) etc.
2
2) O doador saúda e interroga o herói (D ). Pode ser considerada como uma forma
enfraquecida do ato de pôr à prova. A saudação e as perguntas existem também nas formas
supracitadas, mas ali não têm o caráter de prova, e sempre a precede. Nesse caso, a prova em
si não existe, mas o questionário assume caráter de prova indireta. Se o herói responde de
forma grosseira, nada consegue; se responde com delicadeza, recebe um cavalo, uma espada,
etc.
3
3) Um moribundo ou um morto pede ao herói que lhes preste um service (D ). Essa
forma toma também, por vezes, o caráter de prova. Uma vaca pede: “Não comas de minha
carne; recolhe meus ossos, amarra-os num lenço, planta-os no jardim e nunca me esqueças;
rega-os num lenço, planta-os no jardim e nunca me esqueças; rega-os todos os dias” (100). No
conto n 179, esse apelo adota uma forma diferente: o pai, antes de morrer, ordena aos filhos
que passem três noites juntos a seu túmulo.
4
4) Um prisioneiro pede ao herói que o liberte (D ). Um anão de bronze aprisionado
pede que o liberte (125). O diabo encarcerado na torre pede ao soldado que o liberte (236). A
57

jarra da água pede que a quebrem, isto é, o espírito na jarra pede que o libertem (195).
4-a) O mesmo precedido de aprisionamento do doador. Por exemplo, no conto n 123
captura-se o espírito do bosque; essa ação não pode constituir uma função independente, mas
0 4
apenas prepara o subsquente pedido do prisioneiro. Designação: D .
5
5) Alguém se dirige ao herói e lhe pede clemência (D ). Essa forma poderia ser
considerada uma subdivisão da forma anterior. É precedida pela captura, ou o herói faz
pontaria num animal para matá-lo. O herói pesca um lúcio e este pede que o solte (166). O
herói faz portaria em animais, e estes pedem que os soltem (156).
6
6) Pessoas que discutem pedem ao herói que reparta entre elas seu butim (D ). Dois
gigantes pedem que reparta entre eles um bastão e uma vassoura (185). O pedido dos
antagonistas nem sempre vem expresso. Às vezes o herói, por sua própria iniciativa, propõe a
repartição (designação: d6). Animais selvagens não conseguem repartir os despojos; o herói
os reparte para eles (162).
7
7) Outros pedidos (D ). A bem dizer, os pedidos constituem uma classe independente,
e seus diferentes aspectos formam subclasses; mas, para evitar um sistema de designações
demasiadamente complexo, podem-se classificar convencionalmente esses aspectos diferentes
como classes ou categorias. Isoladas as formas principais, podem-se generalizer as demais.
Ratos pedem para serem alimentados (102). Um ladrão pede à sua vítima que traga o que lhe
roubou (238). O caso seguinte pode-se relacionar com duas categorias ao mesmo tempo: a
garotinha aprisiona uma raposa. A raposinha pede: “Não me mates” (pedido de clemência,
5
D ) “Assa para mim uma galinhazinha bem gorda, bem untada” (segundo pedido, D7). Como
0 5
a captura é anterior aos pedidos, será chamado este caso 0 D 7. Um caso diferente, que
também implica uma ameaça prévia, ou que o pedinte se encontra em estado de impotência: o
herói rouba os vestidos de uma banhista; ela lhe pede que os devolva, sem formulação de
pedido (passsarinhos molhados sob a chuva, crianças atormentando um gato). Nesses casos, é
dada ao herói a oportunidade de prestar um serviço.
Objetivamente, existe aqui uma prova, mesmo que subjetivamente de que o herói não
7
a perceba como tal (designação: d ).
8
8) Um ser hostil tenta aniquilar o herói (D ). A bruxa tenta fechar o herói num forno
(105). O dono da casa, durante a noite, corta a cabeça dos heróis (105). O dono da casa,
58

durante a noite, tenta dar seu hóspede como comida aos ratos (212). Um feiticeiro tenta dar
cabo do herói, deixando-o sozinho na montanha (243).
9
9) Um ser hostil luta com o herói (D ). Baba-Iagá e o herói lutam. A luta na casinha
do bosque contra diversos habitantes da floresta se encontra com muita frequência. A luta
pode tomar o aspecto de briga, contenda.
10
10) Mostra-se ao herói um objeto mágico e propõe-se-lhe uma troca (D ). Um
bandido mostra uma clava (216); mercadores mostram objetos raros (212); um velho mostra
uma espada (268). Oferecem-se essas coisas com finalidade de troca. (PROPP, 2006, p. 39-
40)
XIII. O herói reage diante das ações do futuro doador (definição: reação do herói;
designação: E).
Na maioria dos casos a reação pode ser positiva ou negativa.
1
1) O herói supera (não supera) a prova (E ).
2
2) O herói responde (não responde) à saudação (E ).
3
3) Presta (não presta) service ao morto (E ).
4
4) Liberta um prisioneiro (E ).
5
5) Poupa alguém que suplica (E ).
6
6) Efetua a partilha e reconcilia os contendores (E ). O pedido dos adversários
(ou simplesmente a disputa sem pedido) provoca frequentemente outra reação. O herói engana
os contendores mandando-os buscar, por exemplo, uma flecha que atirou e então leva embora
VI
os objetos da disputa (E ).
7
7) O herói realiza algum outro service (E ). Às vezes, esses serviços
corrrespondem ao pedido que lhe foi feito; outras vezes, eles são motivados apenas pela
bondade do herói. A jovem alimenta as mendigas que passam (114). As formas de caráter
religioso poderiam constituir uma subclasse particular. O herói acende um barril de incense à
glória de Deus. Aqui também pode ser incluído um caso de oração (115).
8) O herói se salva dos ataques que lhe são dirigidos, fazendo com que os meios
8
empregados pelo personagem hostil se voltem contra o próprio (E ). Fecha Baba-Iagá no
forno depois de obrigá-la a mostrar-lhe como se entra nele (108). Os heróis trocam de roupa,
59

em segredo, com as dilhas Baba-Iagá, e esta as mata no lugar deles (105). O feiticeiro fica na
montanha onde pretendia abandonar o herói (243).
9
9) O herói bence (não vence) o ser hostil (E ).
10) O herói aceita a troca, mas imediatamente utiliza a força máxima do objeto
10
contra o doador (E ). Um velho propõe ao cossaco aceitar a troca, e ordena imediatamente à
espada que corte a cabeça do velho, o que lhe permite recuperar o barril (270). (PROPP, 2006,
p. 41-42)
XIV. O meio mágico passa às mãos do herói (definição: fornecimento – recepção do
meio mágico; designação: F).
Os meios mágicos podem ser: 1) animais (cavalo, águia etc.); 2) objetos dos quais
surgem auxiliares mágicos (pederneira com o cavalo, anel com os jovens); 3) objetos que
possuem propriedades mágicas, como, por exemplo, clavas, espadas, guslas, bolas e muitos
outros; 4) qualidades doadas diretamente, como, por exemplo, a força, a capacidade de
transformar-se em animal, etc. Todos esses objetos de transmissão são denominados (por
enquanto, convencionalmente) objetos mágicos. As formas de transmissão são as seguintes:
1
1) O objeto se transmite diretamente (F ). Os dons dessa espécie geralmente têm um
caráter de recompensa. Um velho dá um cavalo, animais do bosque oferecem seus filhotes,
etc. Às vezes, o herói, em lugar de receber um animal que ficaria à sua disposição, recebe a
capacidade de transforma-se nele (para maiores detalhes, ver adiante o capítulo VI). Alguns
contos terminam no momento da recompensa. Nesses casos, o presente tem o caráter de um
1
valor material, e não de um meio ou objeto mágico (f ). Se a reação do herói for negativa, a
transmissão pode não ocorrer (F neg.), ou ceder lugar a um severo castigo. O protagonista é
devorado, é congelado, corta-se uma correia de suas costas, é lançado sob uma pedra, etc.
(desinação: F contr.).
2
2) Indica-se o objeto (F ). A velha mostra um carvalho sob o qual se encontra um
barco voador (144). O velho mostra o camponês de quem se pode obter o cavalo mágico
(138).
3
3) O objeto é fabricado (F ). “O feiticeiro vai à beira-mar, desenha um barco na areia
e diz: ‘Então, irmãos, vedes este barco?’ ‘ – Vemos’. ‘- Sentai-vos nele’. " (138).
4
4) O objeto se vende e se compra (F ). O herói compra uma galinha mágica (195), um
cão e um gato mágicos (190). A forma intermediária entre a fabricação e a compra é a
60

fabricação por encomenda. O herói encomenda uma corrente ao ferreiro (105). Este caso é
4
designação por F3 .
5
5) O objeto cai por acaso nas mãos do herói (é encontrado por ele) – (F ). Ivan vê
um cavalo no campo e o monta (132). Depara com árvore de maçãs mágicas (192).
6
6) O objeto aparece súbita e espontaneamente (F ). De repente aparece uma escada
para subir à montanha (156). Um tipo particular de aparição espontânea é quando o objeto
surge da terra (FVI); desse modo podem aparecer arbustos mágicos (160,101), varinhas,
cachorro e cavalo, um anão, etc.
7
7) O objeto se come ou se bebe (F ). Nesse caso, falando propriamente, não se trata
de uma transmissão, mas, mesmo assim, essa forma pode ser relacionada convencionalmente
com as já citadas. Três bebidas proprocionam uma força excepcional (125). As entranhas de
pássaros proporcionam aos heróis que as comem diferentes qualidades mágicas.
8
8) O objeto é roubado (F ). O herói rouba o cavalo de Baba-Iagá (159). Rouba coisas
de contendores (197). A aplicação de objetos mágicos contra o personagem que os trocou e a
retomada das coisas dadas podem ser considerados como uma forma particular de roubo.
9
9) Diferentes personagens colocam-se voluntariamente à disposição do herói (F ). Por
exemplo: um animal pode ou oferecer seus serviços, ou entregar suas crias. Isto equivale a
entregar-se a si mesmo. A seguir a comparação dos seguintes casos: o cavalo nem sempre é
entregue diretamente ou por meio da pederneira. Às vezes, o doador apenas ensina uma
fórmula mágica que permite chamar o cavalo. Nesse último caso, Ivan, a bem dizer, não é
presenteado com nada. Ele só recebe o direito a um ajudante. Tem-se esse mesmo caso
quando o personagem que lhe pede algo concede a Ivan um direito sobre a sua pessoa. O lúcio
dá a Ivan a fórmula mediante a qual pode chamá-lo (“diz e somente: por ordem do lúcio”,
etc.). Finalmente, se o animal abandonado a fórmula, simplesmente promete apresentar-se
“em qualquer momento em que precisares”, encontra-se, mesmo assim, diante de um episódio
em que se coloca à disposição do herói um meio mágico sob a forma de animal. Desse modo,
9
o animal torna-se auxiliary de Ivan (designação: f ). Acontece com frequência que, sem
preparação alguma, diversos seres mágicos aparecem de repente, são encontrados pelo herói
6
no caminho, oferecem a sua ajuda e são aceitos como auxiliares (F 9). Na maioria dos casos,
são heróis com atributos extraordinários ou personagens que possuem diferentes propriedades
61

mágicas: Tudo-Come, Tudo-Bebe, Frio-de-Rachar.


Antes de continuar a enumeração de funções, pode-se formular a seguinte questão:
quais as combinações das variants do element F (transmissão) e do element D (preparação da
transmissão) que podem ser encontradas? É preciso apenas assinalar que, no caso de uma
reação negative do protagonist, só encontra-se F neg. (a transmissão não se produz), ou F
contr. (quem fracassa é severamente castigado). No caso de uma reação positive, encontrar-
se-ão as combinações apontadas no esquema da página seguinte.
Esse esquema permite ver que as combinações são muito variadas; consequentemente,
pode ser fixada uma ampla substituição de umas variants por outras. Mas, examinando o
esquema com mais atenção, salta aos olhos que determinadas combinações estão ausentes.
Isto pode ser explicado em parte pela insuficiência do material apresentado, mas de qualquer
maneira certas combinações seriam realmente ilógicas. Desse modo, chaga-se à conclusão de
que existem tipos de combinações. Se para definir esses tipos parte-se das formas de
transmissão do meio mágico, podem-se fixar dois tipos de combinações: 1) O roubo do meio
mágico se encontra ligado às tentativas de destruição do herói (assá-lo, etc.), aos pedidos de
partilha, às propostas de troca; e 2) Todas as demais formas de transmissão e recepção se
encontram ligadas as outras formas preparatórias. O pedido de partilha se relaciona com este
segundo tipo quando essa partilha é realmente levada a cabo; mas se relacionará com o
primeiro se os adversaries se deixarem enganar. Além disso, é possível assinalar que o
encontro casual, a compra ou a aparição repentina e espontânea do objeto ou do auxiliar
mágicos acontecem, na maioria dos casos, sem nenhuma preparação. São as formas
rudimentares. No caso, porém, de serem preparadas, são formas do segundo tipo e não do
primeiro. A esse respeito, pode-se abordar a questão do caráter dos doadores. O segundo tipo
inclui, sobretudo, doadores amistosos (excluindo aqueles que entregam o objeto mágico
involuntariamente, depois de uma disputa); ao primeiro tipo pertencem os doadores hostis, ou,
de qualquer modo, os enganados. Estes últimos não são doadores no sentido exato da palavra,
mas personagens que vão equipar o herói a contragosto. No interior de cada tipo, as
combinações são possíveis e lógicas, incluindo as ausentes. Assim, por exemplo, o doador
agradecido, ou que acaba de submeter o herói a uma prova, pode lhe dar o objeto mágico,
indicar-lhe o lugar onde se encontra, vendê-lo, fabricá-lo, deixar que seja encontrado, etc. Por
outro lado, no caso do doador enganado, esse objeto somente pode ser tirado ou roubado.
Não é lógico, por exemplo, que o protagonist, após ter executado uma tarefa difícil
para Baba-Iagá, roube-lhe um potro. Isto não significa que essas combinações não se
encontrem nos contos maravilhosos. Elas existem, mas nesses casos, o narrador se esforça
62

para encontrar motivos suplementares às ações de seus heróis. Outro modelo de combinação
ilógica, claramente motivada é: Ivan luta com um velho. Durante a luta, o velho, por
descuido, dá-lhe de beber a água da força. Compreende-se este “descuido” ao se comparar o
episódio com outros contos, em que a bebida é oferecida por um doador agradecido ou
simplesmente amistoso. Assim, é possível perceber que o ilógico na combinação não detém o
narrador. Para seguir um caminho puraremente empírico, convém ser substituídas umas pelas
outras.
Eis alguns exemplos concretos de relações:
TIPO II:
1 1 1
D E F – Babá-Iagá ordena que o herói leve ao pasto um rebanho de éguas. Segue-se
uma segunda tarefa, o herói a cumpre e recebe um cavalo (160).
2 2 2
D E F – Um velho faz algumas perguntas ao herói. Este responde de modo
grosseiro, e nada recebe. Mais tarde volta, responde educadamente; recebe um cavalo (155).
3 3 1
D E F – O pai moribundo pede aos filhos que permaneçam três noites junto a seu
túmulo. Só o filho mais novo cumpre o pedido e recebe um cavalo (179).
1 V1
D E – Um bezerro pede aos filhos do rei que o degolem, o queimem e joguem suas
cinzas em três canteiros. O herói cumpre esse pedido. De um canteiro brota uma macieira, de
outro um cachorro e do terceiro um cavalo (202).
1 1 5
D E F – Os irmãos encontram uma grande pedra. “Será possível deslocá-la?”
(prova sem alguém que a imponha). Os mais velhos não conseguem; o menor desloca a pedra;
sob a pedra há uma cova e na cova Ivan encontra três cavalos (137).
Essa lista poderia prolonger-se ad libitum. É preciso apenas assinalar que, em tais
casos, podem ser transmitidos não somente cavalos, mas também outros meios ou objetos
mágicos. Foram escolhidos exemplos que incluíam cavalos para realçar mais claramente seu
parentesco morfológico.
TIPO I:
6 V1 8
D E F – Três personagens em disputa pedem ao herói que distribua entre eles uns
objetos mágicos. O herói pede-lhes que apostem uma corrida; enquanto isso, rouba os objetos
(gorro, tapete, botas).
8 8 8
D E F – Os heróis casualmente entram na casa de Baba-Iagá. Ela quer cortar-lhes a
cabeça durante a noite. Eles trocam de lugar, às escondidas, com as filhas da velha. Os irmãos
63

fogem e o mais novo rouba um lenço mágico (106).


10 10 8
D E F – O herói tem a seu service um espírito invisível, Chmat-Rázum (significa
pedaço, trapo, e rázum, razão). Três mercadores propõem trocá-lo por um cofrezinho (ou
jardim), um machado (ou navio), uma cornet (ou exército). O herói aceita, e depois chama de
volta seu auxiliary mágico (212). […] (PROPP, 2006, p. 42-48)
XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o
objeto que procura (definição: deslocamento no espaço entre dois reinos, viagem com uma
guia; designação: G).
Geralmente o objeto da busca se encontra em “outro” reino. Esse reino pode-se
encontrar bem-distante em linha horizontal ou bem em cima ou embaixo em linha vertical. Os
meios de comunicação podem ser os mesmos em todos os casos, mas existem formas
específicas para viajar para as alturas ou para as profundezas.
1
1) O protagonista voa pelos ares (G ). A cavalo (171), num pássaro (210), na forma
de um pássaro (162), no navio voador (138), no tapete mágico (192), nos ombros de um
gigante ou de um espírito (210), na carruagem do diabo (154) etc. Voar num pássaro implica,
às vezes, um detalhe: é preciso alimentá-lo durante a viagem; o herói leva consigo um boi,
etc.
2
2) Desloca-se por terra ou água (G ). Montado num cavalo ou num lobo (168). Num
navio (247). Um homem sem braços carrega outro sem pernas (196). Um gato atravessa o rio
no lombo de um cachorro (190).
3
3) É conduzido (G ). Um novelo lhe mostra o caminho (234). Uma raposa conduz o
herói junto à princesa (163).
4
4) Indicam-lhe o caminho (G ). Um ouriço lhe indica o caminho até seu irmão raptado
(113).
5
5) Utiliza meios de transporte imóveis (G ). Sobe por uma escada (156), descobre
uma passage subterranean e a utiliza (141), caminhanas costas de um enorme lúcio como se
atravessasse uma ponte (156), desce preso a cintos, etc.
6
6) Segue rastos de sangue (G ). O herói vence o morador da casinha do bosque, que
foge e se esconde sob uma pedra. Seguindo seu rasto, Ivan descobre a entrada para um outro
reino.
São essas as formas de deslocamento do herói encontradas dentro dos limites desse
64

material. Deve-se assinalar que, às vezes, o transporte, como função particular, pode ser
omitido. O herói simplesmente chega ao lugar de seu destino, isto é, a função G é o
prolongamento natural da função . Nesse caso, a função G não pode ser isolada. (PROPP,
2006, p. 48-49)
XVI. O herói e seu antagonista se defrontam em combate direto (definição:
combate, designação: H)
É preciso distinguir esta forma de combate da luta contra um doador hostil. As duas
formas se diferenciam pelas consequências. Se o herói, como resultado desse confront, recebe
um objeto que deve auxiliá-lo na continuação de sua busca, é possível estar diante de um
elemento D. Por outro lado, se, como resultado da vitória, o herói consegue o próprio objeto
de sua procura, pelo qual foi enviado, é possível estar diante de um elemento H.
1
1) Lutam em campo aberto (H ). Com isto se relaciona, antes, de mais nada, a luta
contra o dragão, contra Tchuco-Iudo (ser fantastic do folklore russo e, de modo geral, tudo o
que provoca espanto) etc. (125), e também o combate contra um exército inimigo, um bogatir
(212), etc.
2
2) Encetam uma competição (H ). Nos contos humorísticos, o verdadeiro combate, às
vezes, não chega a ser realizado. Depois de um bate-boca (em alguns casos, exatamente
análogos à discussão que precede o combate), o herói e o antagonista iniciam uma
competição. O herói vence pela esperteza. Um cigano faz o dragão fugir espremendo um
pedaço de ricotta em lugar de uma pedra, ou fingindo que o golpe de maçã, que lhe aplica na
nuca, é um assobio (148) etc.
3
3) Jogam cartas (H ). O herói joga cartas com o dragão, com o diabo (153, 192).
4) O conto n 93 apresenta uma forma particular. Aqui a dragoa propõe ao herói: “Que
4
o príncipe Ivan suba comigo na balança para ver qual dos dois é mais pesado” (H ). (PROPP,
2006, p. 49-50)
XVII. O herói é marcado (definição: marca, estigma; designação: I)
1
1) A marca é impressa em seu corpo (I ). O herói é ferido em combate, A princesa o
acorda antes da luta abrindo-lhe, com uma faca, uma ferida no rosto (125). A princesa marca
com seu anel a testa do herói (195). Dá-lhe um beijo que faz surgir uma estrela na testa do
herói.
2
2) O herói recebe um anel ou uma toalha (I ). As duas formas se encontram reunidas
65

quando o herói é ferido durante a luta, e sua ferida é fechada com o lencinho da princesa ou
do rei.
3
3) Outras formas de estigma (I ). (PROPP, 2006, p. 50)
XVIII. O antagonista é vencido (definição: vitória; designação: J)
1
1) É vencido num combate em campo aberto (J ).
2
2 ) É vencido numa competição (J ).
3
3) Perde no jogo de cartas (J ).
4
4) É derrotado na prova da balança (J ).
5
5) É morto sem combate prévio (J ). O dragão é morto enquanto dorme (141) Zmiulán
(personagem do folklore, espécie de dragão) se esconde num oco de árvore e é morto (164).
6
6) É expulso imediatamente (J ). A princesa, mantida prisioneira pelo diabo,
coloca no pescoço uma imagem sagrada. “O malign fugiu como um turbilhão (115).
Também pode-se encontrar a vitória sob uma forma negative. Se dois ou três
protagonistas intervêm numa batalha, um deles (o general) se esconde, enquanto outro obtém
0 1
a vitória ( J ). (PROPP, 2006, p. 50-51)
XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (definição: reparação de dano ou
carência; designação K).
Essa função forma uma parelha com o momento em que aconteceu o dano ou a
carência dentro do nó da intriga. (A).
Com essa função o conto atinge o ápice.
1
1) O objeto da busca se consegue ou mediante a força ou mediante a astúcia (K ). O
protagonista utiliza, às vezes, os mesmos meios do malfeitor quando este causou o dano
inicial. O cavalo de Ivan se transforma em mendigo e pede esmola. A princesa lhe dá uma
moeda. Ivan sai dos arbustos, ambos agarram-na e levam-na embora (185).
1-a) Às vezes, o rapto é efetuado por dois personagens, um obrigando o outro a
cumprir a tarefa. O cavalo pisa num lagostim e obriga-o a trazer as roupas para os esponsais;
1
o gato apanha um rato e obriga-o a trazer um anelzinho (190) (K ).
2) O objeto das buscas é recuperado por vários personagens ao mesmo tempo, numa
2
rápida sucessão de ações (K ). A passagem do objeto de um personagem para outro é
66

efetuada graças a uma série de fracassos ou tentativas de fuga. Os sete Semion conseguem a
princesa; um ladrão a leva; ela foge sob a forma de um cisne; um arqueiro a fere com uma
fleche; outro a tira da água em lugar de um cachorro etc (145). De maneira semelhante é
conseguido o ovo que contém a morte de Kochchéi. Uma lebre correndo, um pato voando e
um peixe nadando fogem, levando o ovo. Um lobo, uma gralha e outro peixe voltam a
resgatá-lo (156).
3
3) O objeto da busca se obtém com ajuda de iscas (K ). Essa forma, em muitos casos,
1
é bem próxima da K . O herói atrai a princesa até um navio mostrando-lhe objetos de ouro, e
a rapta (242). A isca sob forma de proposta de troca poderia constituir uma subespécie
particular desse caso. Uma jovem cega borda uma coroa maravilhosa; essa coroa é enviada à
serva malvada. Esta, em troca da coroa, devolve os olhos que tinha roubado da jovem (127).
4
4) A obtenção do objeto da busca é o resultado imediato das ações precedentes (K ).
Se Ivan, por exemplo, matou o dragão e, em seguida, casa-se com a princesa libertada, então
não se produz a captura como ação particular, mas como função, isto é, como etapa do
desenvolvimento da intriga. A princesa não é capturada, não é levada embora, mas mesmo
assim ela é obtida, porque ela é o resultado do combate. A captura é, neste caso, um element
lógico. A obtenção pode resultar também de outra ação diferente que não o combate. Assim,
Ivan pode encontrar a princesa ao final de sua viagem.
5
5) O objeto procurado é obtido imediatamente por meio do objeto mágico (K ) [..].
6
6) A obtenção do objeto mágico suprime a pobreza (K ). Uma pata encantada põe
ovos de ouro (195). Aqui se pode incluir a toalha de mesa que serve comida, e o cavalo cujo
esterco é de ouro (186). Encontra-se, então, outra forma da toalha que serve comida no aspect
de um lúcio: “Por ordem do lúcio e com a benção de Deus, que a mesa se ponha e a comida
seja servida” (167).
7
7) O objeto da busca é caçado (ou pescado) (K ). Essa forma é típica nos casos de
depredação agrícola. O herói aprisiona uma égua que lhe roubava feno (105). Caça uma
cegonha que lhe roubava ervilhas (187).
8
8) O personagem enfeitiçado volta ao normal (K ). Essa forma corresponde
11
tipicamente ao caso A (enfeitiçamento). A rupture do encantamento se realiza atirando ao
fogo a peliça do enfeitiçado ou pronunciando a fórmula: “volta a ser novamente uma jovem,”
67

etc.
9
9) O morto ressuscita (K ). Tira-se de sua cabeça o alfinete ou o dente da morte (202,
206). Borrifa-se no herói a água da vida e da morte.
9-a) Da mesma forma como, no decorrer da recuperação do objeto, um animal obriga
o outro a agir, aqui também o lobo pega o corvo e obriga a mãe do corvo a trazer a água da
IX
vida e da morte (168). Essa ressurreição particular (designação: (K ).
10
10) O prisioneiro é libertado (K ). O cavalo derruba a porta do calabouço e liberta
Ivan (185). Do ponto de vista morfológico, essa forma não tem nada em comum com, por
exemplo, a libertação do silvano, que implica gratidão e transmissão de um objeto mágico;
aqui trata-se de reparar o dano estabelecido na intriga. No conto n 259, vê-se uma forma
particular de libertação. O rei dos mares leva sempre à meia-noite seu prisioneiro até a costa.
O herói suplica ao sol que o liberte. Por duas vezes, o sol se atrasa. Na Terceira vez, “o sol
brilhou com seus raios, e o rei dos mares não pôde mais levá-lo de volta à prisão”.
11) Às vezes, a obtenção do objeto da busca se realiza da mesma forma que a
obtenção do objeto mágico, isto é: é dado de presente, é indicado o lugar onde se encontra, o
1 2
herói o compra, etc. Designa-se este caso: KF - transmissão imediata; KF – indicação do
lugar, etc., como anteriormente. (PROPP, 2006, p. 51-53)
XX. Regresso do herói (definição: regresso; designação: ).
O regresso se realiza, geralmente, da mesma forma que a chegada. Mas não é preciso
fixar aqui uma função particular que segue o regresso, pois este já implica um domínio do
espaço; e nem sempre é assim no momento da partida. Esta é seguida pela transmissão do
objeto mágico (cavalo, água etc.), quando ocorre o voo ou outras formas de deslocamento. A
volta, então, acontece, em seguida, e quase sempre da mesma forma que a partida. Às vezes, o
regress pode tomar o aspect de uma fuga. (PROPP, 2006, p. 53)
XXI. O herói sofre perseguição (definição: perseguição; designação: Pr).
1
1) O perseguidor voa atrás do herói (Pr ). O dragão alcança Ivan (159); a bruxa,
voando, persegue o jovem (105); os patos perseguem a menina (113).
2
2) O perseguidor reclama o culpado (Pr ). Essa forma se encontra também
geralmente unida ao voo. O pai do dragão envia um navio voador; os que estão dentro do
navio gritam: “Ao culpado! Ao culpado!”(125).
3
3) O perseguidor se transforma rapidamente em diferentes animais etc (Pr ). Em
68

alguns estágios essa forma também se encontra unida ao voo. O feiticeiro persegue o herói
sob a aparência de um lobo, de um lúcio, de um homem, de um galo (249).
4) Os perseguidores (as mulheres do dragão, e outros) se transformam em algo
4
atraente e se colocam no caminho do herói (Pr ). “Passarei à sua frente e o sufocarei com um
dia abrasador, e logo me transformarei em verde relva; nesta relva me transformarei em poço,
e neste poço flutuará um cálice de prata… Ficarão esmigalhados como sementes de papoulá”
(136). As dragoas se transformam em maneira pela qual elas tomam a dianteira do herói.
5
5) O perseguidor tenta devorar o herói (Pr ). A dragoa se transforma em jovem, seduz
herói, e logo em seguida se transforma em leoa e que engolir Ivan (155). A dragoa-mãe
escancara uma bocarra que vai da terra até o céu (155).
6
6) O perseguidor tenta matar o herói (Pr ). Tenta cravar-lhe o dente da morte na
cabeça (202).
7
7) Tenta roer com os dentes a árvore onde se escondeu o herói (Pr ). (108). (PROPP,
2006, p. 54)
XXII. O herói é salvo da perseguição (definição: salvamento, resgate; designação:
Rs).
1
1) É levado pelos ares (salva-se, às vezes, fugindo com a rapidez de um raio) Rs . O
herói voa montado num cavalo (160), em gansos (108).
2) O herói foge, colocando, durante a fuga, obstáculo no caminho do seu perseguidor
2
(Rs ). Joga uma escova, um pente, uma toalha. Esses objetos se transformam em montanhas,
bosques, lagos. Caso análogo: Gira- Montanhas e Gira- Carvalhos arrancam montanhas e
carvalhos e os colocam no caminho do dragão (93).
3
3) Durante a fuga, o herói se transforma em objetos, e se torna irreconhecível (Rs ).
A princesa transforma a si mesma e ao príncipe respectivamente em poço e púcaro, ou se
transforma em igreja e ao príncipe em pope (219).
4) O herói se esconde durante a fuga Riacho, macieira, forno escondem a jovem
(113).
5
5) Esconde-se entre ferreiros (Rs ). A dragoa exige que lhe seja entregue o culpado.
Ivan se esconde entre os ferreiros; estes agarram-na pela língua e a golpeiam com martelos
(136). Sem dúvida, existe uma ligação entre essa forma e o conto n 153. Um soldado encerra
os diabos na mochila, leva-os a uma ferraria e os golpeia com martelos.
69

6) Salva-se, transformando-se rapidamente durante a fuga em animais, pedras etc.


6
(Rs ). O herói foge sob forma de cavalo, de ouriço, de anel, de grão de cereal, de falcão
(249); o essencial, aqui, é a própria transformação, já que a fuga pode faltar em certos casos.
Essas formas podem constituir uma subespécie particular. Uma jovem é assassinada, e dela
brota um jardim. O jardim é derrubado e se transforma em pedra, etc. (127).
7
7) Resiste à tentação pelas dragoas disfarçadas (Rs ). Ivan derruba o jardim, quebra
o poço, etc. Deles jorra sangue (137).
8
8) Não se deixa devorar (Rs ). Ivan, montando em seu cavalo, salta por cima da borra
da dragoa. Reconhece a dragoa sob a forma de leoa e a mata (155).
9
9) É socorrido num atentado contra sua vida (Rs ). Animais arrancam, bem a tempo,
o dente mortal de sua cabeça (202).
10
10) Salta para outra árvore (Rs ).
Numerosos contos terminam no momento em que o herói é salvo de seus
perseguidores. Ele volta ao lar e, no caco de ter resgatado a jovem, casa-se com ela, etc. Mas
nem sempre é assim. Às vezes, o conto maravilhoso submete o herói a novas adversidades. O
inimigo reaparece, rouba o objeto que o herói conseguira, mata-o, etc. Resumindo, o dano que
constituíra o nó da intriga se repete, às vezes, sob as mesmas formas, outras vezes sob forma
diferente, nova para um determinado conto […]
VIII bis. Os irmãos tiram de Ivan aquilo que ele obteve (e jogam-no no abismo). O
1
dano é designado por A; se os irmãos tiram a noiva de Ivan, a designação será A ; se lhe
2
tiram o objeto mágico, a designação será A . Se o roubo ou rapto é acompanhado de morte
1 0 1 0 2 2
A 14; As formas ligadas à queda no precipicio serão designadas por A , A , A 14 etc
X – XI bis. O herói reinicia sua busca (C ; cf. X-XI).
Esse elemento é, às vezes, omitido. Ivan anda sem destino, chora e parece não pensar
na volta. O elemento B (o envio do herói) também é sempre omitido, nesses casos, já que Ivan
não é enviado a buscar algo, pois lhe foi tirada sua própria noiva.
XII bis. O herói passa novamente pelas ações que o levam a receber um objeto
mágico (D ; cf. XII).
XIII bis. Nova reação do herói diante das ações do futuro doador (E ; cf. XIII).
XIV bis. Coloca-se à disposição do herói um novo objeto mágico (F ; cf. XV).
70

XV bis. O herói é transportado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto


de sua busca (G; cf. XV). Nesse caso, chega a sua casa.
A partir desse momento, o desenvolvimento da narração toma outro rumo, o conto
propõe novas funções. (PROPP, 2006, p. 54-57)
XXXIII. O herói chega incógnito a sua casa ou a outro país (definição: chegada
incógnito; designação: O).
Distinguem-se aqui duas possibilidades:
1) O herói volta ao lar. Antes, permanence na casa de um artesão qualquer – ourives,
alfaiate, sapateiro – e trabalha como aprendiz.
2) Chega ao palácio de um rei estrangeiro, trabalha na cozinha ou nas cavalariças.
Pode ocorrer também uma chegada simples. (PROPP, 2006, p. 57)
XXIV. Um falso herói apresenta pretensões infundadas (definição: pretensões
infundadas; designação: L).
Se o herói volta para casa, são os irmãos que proclamam essas pretensões. Se ele
trabalhou em um reino estrangeiro, é um general, um aguadeiro, etc. Os irmãos se apresentam
como pesquisadores do objeto que levam; o general, como vencedor do dragão. Essas duas
formas poderiam ser consideradas como duas espécies particulares. (PROPP, 2006, p. 57)
XXV. É proposta ao héroi uma tarefa difícil (definição: tarefa difícil; designação:
M).
Esse é um dos elementos favoritos do conto maravilhoso. Às vezes, são propostas
tarefas difíceis que acabou-se de descrever, mas esses casos serão tratados um pouco mais
adiante. Assim, estudar-se- ão as tarefas um pouco mais adiante. No momento, o estudo será
baseado nas tarefas como tais, e são tão diversas que cada uma delas deveria receber
designação particular. Contudo, não é necessário por enquanto.
Como não será apresentada uma classificação precisa, uma enumeração de todos os
casos faz-se necessária presente no material apresentado, agrupando-os de forma aproximada:
[…]
Outras tarefas: colher os frutos de um arbusto ou de uma árvore (100. 101). Atravessa
um fosso sobre uma vareta (137). “Quem fizer com que a vela se acenda sozinha” (195).
(PROPP, 2006, p. 57-58)
XXVI. A tarefa é realizada (definição: realização; designação: N).
É claro que as formas de as tarefas se realizarem correspondem com precisão às
formas das provas. Algumas tarefas se realizam antes de serem propostas, ou mesmo antes
que o mandante exija seu cumprimento. Assim, o herói acerta quais são os sinais da princesa
71

antes mesmo que lhe seja dada a tarefa. Designar, assim, esses casos de realização prévia por
0
N. (PROPP, 2006, p. 59)
XXVII. O herói é reconhecido (definição: reconhecimento; designação: Q).
É reconhecido graças a uma marca ou estigma (ferida, estrela) ou graças ao objeto que
lhe foi entregue (anel, lenço). Nesse caso, o reconhecimento corresponde à função na qual o
protagonista recebe a marca, o estigma. Também é reconhecido por ter realizado uma tarefa
difícil (geralmente esse caso vem depois da chegada incógnito); também se pode reconhecê-lo
imediatamente após uma longa separação. Nesse caso, são os pais e filhos, irmãs e irmãos,
etc, que podem se reconhecer. (PROPP, 2006, p. 59)
XXVIII. O falso herói ou antagonista ou malfeitor é desmascarado (definição:
desmascaramento; designação: Ex).
Na maioria dos casos, essa função se encontra ligada à anterior. Às vezes, é o
resultado de um fracasso na realização da tarefa (o falso herói não consegue levantar as
cabeças do dragão). Em muitos casos, apresenta-se como uma narração: “Então a princesa
contou o que havia acontecido.” Às vezes, todos os acontecimentos são narrados desde o
começo, sob a forma de um conto. O malfeitor se encontra entre os ouvintes e se trai ao
mostrar sua desaprovação (197).
Às vezes, há uma canção que narra os acontecimentos ocorridos e acusa o malfeitor
(244). Podem-se ainda encontrar outras formas isoladas de desmascaramento (258). (PROPP,
2006, p. 59)
XXIX. O herói recebe nova aparência (definição: transfiguração; designação: T).
1
1) Recebe nova aparência diretamente, graças à intervenção do auxiliar mágico (T ).
O herói passa através das orelhas de um cavalo (uma vaca e recebe uma nova aparência, mais
bela.
2
2) O herói constrói um palácio maravilhoso (T ). Ele próprio mora ali como príncipe.
Uma jovem acorda, da noite para o dia, no palácio esplêndido (127). Mesmo que o herói,
nesse caso, nem sempre mude de aparência, trata-se sem dúvida de um aspecto particular de
transfiguração.
3
3) O herói se veste com novas roupas (T ). Uma jovem coloca um vestido e um colar
(mágicos) e, de repente, surge com uma beleza deslumbrante, que todos admiram (234).
4
4) Formas racionalizadas ou humorísticas (T ). Essas formas devem ser
compreendidas em partes como transformações das precedentes, e, em parte, devem ser
72

estudadas e explicadas em relação aos contos anedóticos de onde provêm. Nesses casos, não
se produz uma troca de aparência propriamente dita, mas uma transformação aparente, devida
a um engano. Exemplos: a raposa leva Kúzinka à presença do rei; diz que Kúnzinka, em
roupas régias, é confundido com um príncipe. Todos os casos dessa espécie podem ser
definidos assim: prova falsa de riqueza e de beleza, tida por prova efetiva. (PROPP, 2006, p.
60)
XXX. O inimigo é castigado (definição: castigo, punição; designação: U).
Leva um tiro, é desterrado, é amarrado à causa de um cavalo, suícida-se, etc. Às vezes,
ele é magnanimamente perdoado (Uneg.). Em geral, são castigados apenas o malfeitor da
segunda sequência e o falso herói; o primeiro antagonista só é castigado no caso de não haver
na narrativa nem combate nem perseguição. Caso contrário, morre durante a luta ou a
perseguição (a bruxa estoura ao tentar beber o mar, etc.). (PROPP, 2006, p. 60)
0
XXXI. O herói se casa e sobe ao trono (definição: casamento; designação: W 0).
1) O herói recebe ao mesmo tempo uma esposa e um reino, ou primeiro a metade do
0
reino e todo ele quando os pais morrerem (W 0).
2) Às vezes, o herói se casa, mas como sua mulher não é princesa, não chega a ser rei
0
(W ).
3) Outras vezes, trata-se somente de ocupar o trono (W0).
4) Se o conto é interrompido um pouco antes do casamento por novo dano, a primeira
1
sequência termina com o compromisso, a promessa de casamento (W ).
5) Caso contrário: o herói casado perde sua mulher; ao final da busca, reata-se o
2
casamento. O casamento renovado será designado por (W ).
6) Às vezes, o herói recebe, em lugar da mão da princesa, uma recompensa em
3
dinheiro ou uma compensação de outro tipo (w ). (PROPP, 2006, p. 61)

Finalizando o conto maravilhoso aqui, é relevante ressaltar que existem alguns pontos
obscuros que, de acordo com Propp, serão designados por Y, são estes elementos de
comparação, ou de formas tomadas de contos que pertencem a outras categorias, como:
anedotas, lendas, etc.
De acordo com Propp:
73

Vimos que um número bem grande de funções agrupou-se em parelhas (proibição –


transgressão; interrogatório – informação; combate – vitória; perseguição –
salvamento etc.). Outras funções podem ser reunidas em grupos. Assim, o dano, o
envio, a reação, a partida do lar (A B C ) constituem o nó da intriga. A prova à
qual o doador submete o herói, sua reação e sua recompensa (D E F) constituem
também um certo conjunto. Além disso, existem também funções isoladas (partida,
castigo, casamento). (PROPP, 2006, p. 61-62)

A semiótica da cultura nos faz refletir sobre a importância de estudar a pluralidade das
línguas e as relações entre culturas porque é por meio de um movimento ou multiplicidade
universal que se é possível compreender uma língua ou cultura. Outro ponto abordado durante
o semestre foi sobre a importância da interconexão oral, ou seja, criar uma rede de
relacionamentos entre a oralidade das diversas línguas e culturas. Durante o semestre, mais
uma questão passada em sala foi sobre a memória recalcada, que é aquela memória que se
guarda, mas não se esquece.
É por meio destas relações e conexões entre oralidade, dicção, contos, imagens e
memória que tentar-me ei, por meio deste relatório, sintetizar algumas das memórias e
conhecimentos mais enriquecedores que tive durante o curso. São algumas sequências e
conexões de uma grande rede ou grande matriz do oral que, de acordo com a profa. Jerusa, é
importante sempre existir uma relação entre as seguintes questões: memória e grande matriz
do oral.
De acordo com Jerusa Pires:

Oralmente transmitida a arquimatriz, ou a “grande matriz oral”, faculta afinidades e


relaciona-se também a um conjunto de textos e imagens impressos trazidos, por
algum motivo, ao encontro das preferências de repertório e situação. Elas constituem
o suporte para a criação do folheto ou dos contos narrados. São contratextos que
funcionam como matrizes impressas do oral, textos que diretamente conduzem
sentidos e formulações básicas. (FERREIRA, 2014, p. 13)

Foi por intermédio dos conceitos de memória e das matrizes da oralidade transmitidos
durante as aulas que consegui repensar todas as etapas de criação, conexões e sequências
referentes aos textos trazidos para discussão durante o curso. Dessa maneira, foi possível
realizar interconexões com minha pesquisa por meio do seguinte referencial teórico da
disciplina que me foi apresentado.
No início do curso, um documentário com o teórico V. V. Ivanov foi exibido. Em um
texto de Boris Schnaiderman, para o jornal Folha de São Paulo, o mesmo comenta sobre a
breve passagem de Ivanov pelo Brasil em que o teórico russo explica sobre seus estudos que
falam sobre o mito, sempre conectando seus estudos com o seu campo de pesquisa. Boris
Schnaiderman ressalva sobre obras relevantes de Ivanov, como: A língua Indo-Europeia e os
Indo-Europeus; Par e Ímpar – sobre os hemisférios cerebrais e suas implicações linguísticas.
74

É interessante lembrar a relação e conexão que Ivanov faz de seus estudos realizados na União
Soviética sobre a possibilidade de existir algum tipo de parentesco entre línguas indígenas do
continente americano e outras línguas páleo-asiáticas – mito da origem de fogo, onde Ivanov
sempre aponta a relação que os indígenas americanos haviam trazido para cá em sua migração
a partir da Ásia. Aliás, essa é uma ideia defendida por Lévi-Strauss. Outro ponto abordado
pelo teórico russo foi sobre o quanto é importante ouvir a voz do outro, porque é por meio
deste contato e conexão entre as diversas línguas com diversas populações que tenham outras
línguas maternas, que acontece o desenvolvimento cultural.
Moacyr dos Anjos - pesquisador e curador de arte contemporânea, da Fundação
Joaquim Nabuco, no Recife - descreve como as transformações provocadas pela nova ordem
mundial alteram as formas de representação visual de diferentes culturas. A ideia é que a arte
não é apenas uma representação subjetiva, mas também uma representação cultural, onde o
artista está inserido em uma determinada cultura.
Para isso, lida com os conceitos de colonização, globalização, centro, periferia,
transculturação, mestiçagem, tradução, sincretismo, antropofagia, crioulização, diáspora e
hibridismo, que se configuram, de uma forma muito peculiar, no processo de articulação
social das diferenças locais, estabelecido no contexto de interconexão ampliada, que a
globalização promove.
Segundo o autor, os sentidos mais imediatos e visíveis da globalização são entendidos
meramente como um sistema de trocas (físicas e simbólicas) feitas em velocidade crescente e
abarcando lugares cada vez mais distantes. Desse modo, provocando a interdependência entre
cantos distintos do mundo.
O pesquisador refere-se à generalização de deslocamentos populacionais, aos
renovados conflitos étnicos que se seguiram ao fim da Guerra Fria ou à busca contínua por
postos de trabalho sempre insuficientes; e, finalmente, a revolução da tecnologia de
transmissão por meios eletrônicos, da qual se destaca a constituição e popularização da
internet.
Com isso, começa a refletir sobre a interconexão progressiva entre localidades
diversas, provocando a corrosão gradual das fronteiras simbólicas que as apartam e,
consequentemente, as limitam, forçando cada comunidade a refazer, contínua e criticamente,
seus laços imaginados de pertencimento.
Costuma-se dizer que a cultura popular é uma espécie de “ciência do povo”. Ora, a
ciência, em princípio, sempre foi uma tentativa, feita a partir da organização de certo
conhecimento, de compreender e dominar as forças da natureza com intuito de melhorar as
75

condições de vida do homem. Em geral, quando se emprega o termo “ciência”, a referência é


feita a um universo composto pela palavra escrita, pesquisas, estatísticas e teorias, por
modelos e sistemas objetivos, pelo ensino organizado, em suma, pelo pensamento racional e
analítico.
Acontece que a cultura popular, ou o folclore é, como queria Varagnac, “ um conjunto
de crenças coletivas sem doutrinas e de práticas coletivas sem teoria”.
Essa “ciência” popular busca também interpretar e domar as forças da natureza, mas o
faz a partir, principalmente, da visão analógica e intuitiva, da aproximação afetiva, corporal e
subjetiva da realidade.
Para exemplificar certa “metodologia primitiva”, Lévi-Strauss, em O pensamento
selvagem, menciona um procedimento chamado bricolage.
Ao contrário do engenheiro que trabalha com um projeto, esquemas, simetrias e
módulos, o bricoleur atinge seu objetivo operando sem um plano previamente definido e a
partir de materiais improvisados, escolhidos intuitivamente. As favelas são ótimos exemplos
desse método.
Também o pensamento que gera as manifestações populares funcionaria como uma
espécie de bricolage intelectual: constrói-se por meio de crenças, da memória, do improviso,
das associações inusitadas e arbitrárias, recorre ao “olhômetro”, ao pensamento analógico, usa
e abusa da intuição e da aproximação afetiva e simpática.
É relevante notar que isso não significa falar em irracionalismo. Tal procedimento é
também lógico, observa, classifica e sistematiza, só que por intermédio de pressupostos
estranhos ao pensamento considerado científico. Para Celso, médico e cientista medieval –
época, como se sabe, profundamente enraizada nas tradições arcaicas – acreditava que a
natureza havia feito a “erva hepática” e a “erva renal” com a mesma forma das partes do
corpo que podiam curar. Perguntava ele: “As folhas do cardo não picam como agulhas?
Graças a esse sinal, a arte da magia descobriu que não há melhor erva contra as pontadas da
dor”.
Uma coisa é certa: nem o cidadão mais cético e “civilizado” ousaria tomar um veneno
indígena cuja toxidade certeira foi obtida por outros caminhos, mas, sem dúvida, por meio do
raciocínio, observação, comparação, lógica, sistematização e muita experimentação.
O assunto é imenso. Mesmo assim, vale a pena levantar certos pontos comuns,
vestígios das mais antigas tradições, que costumam impregnar muitas das manifestações
culturais inventadas pelo povo: 1) a crença na existência de forças divinas e transumanas. Por
esse ponto de vista, a vida, o homem e a natureza teriam surgido por intermédio de seres
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superiores que continuariam atuando e interferindo no mundo. Isto abre a possibilidade de se


explicar e justificar certos fatos por meio da atuação de forças transcendentais e metafísicas;
2) o princípio de que homens, animais, vegetais, minerais, o universo, enfim, fariam parte de
um único todo, o Cosmo. Consequentemente, haveria uma prevalência dos valores coletivos
em relação aos valores individuais, afinal, por esse viés, o homem seria apenas parte de uma
imensa engrenagem. Daí, também, ideias como as que imaginam que o homem possa falar
com os animais e as imagens de animismo e personificação. Afinal, tudo no mundo faria parte
da mesma família; 3) a visão da vida e do mundo baseada em crenças como a da existência de
um constante e inevitável movimento cíclico, o eterno retorno, concepção inspirada nos ciclos
da natureza e que se concretiza na ideia de regeneração periódica do mundo. A fertilidade, a
fecundação, a semeadura, a floração, a maturação, a degeneração, a morte e a regeneração (ou
renascimento), seriam vetores naturais em permanente diálogo, condição mesmo da existência
humana; 4) falar em tradições populares significa, ainda, remeter a algo transmitido
oralmente, ou seja, significa, em princípio, falar em culturas sem escrita. Não é possível
encontrar nos substratos populares algo como um “original”, modelos iniciais únicos, a partir
dos quais teriam surgido histórias e crenças. Contos, crenças e costumes sofrem alterações e
atualizações por intermédio da boca e da memória de seus transmissores, recebendo
influências contextuais e até mesmo pessoais, afinal, todo contador deixa sua marca
individual na história que conta.
Tais aspectos constituem certo “espírito popular”, estudado por Mikhail Bakhtin, entre
outros, e resultam em noções, como: a) a utopia (se tudo se renova, nada é definitivo e tudo
renasce, há, portanto, sempre uma esperança de mudança e regeneração); b) a noção da
inseparabilidade essencial de vida e morte; bem (tudo o que favorece a felicidade e a vida) e
mal (tudo o que traz a infelicidade e a morte); sagrado e profano; c) ideias como a da
metamorfose (como nada é fixo e tudo faz parte de tudo, uma coisa pode perfeitamente
transformar-se em outra); d) a crença na existência de cidades e lugares utópicos, o paraíso e a
fonte da juventude; e) o final feliz (tudo, cedo ou tarde, vai retornar às origens, à pureza
original, ao paraíso.)
Aos elementos citados acima, poderiam ser acrescentadas certas características típicas
do discurso oral. Referência, por exemplo, à forma como são utilizados, nas culturas sem
escrita: os chamados índices de oralidade. A seguir, os principais, elencados aqui a partir das
ideias, principalmente, de Paul Zumthor 1) a tendência a sempre procurar adaptar- se à plateia
através do vocabulário familiar e cotidiano, as fórmulas verbais, lugares comuns e clichês; 2)
a sedução da plateia através de recursos teatrais como o tom exagerado, o uso de
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redundâncias, o tom de confidência, ditados, trocadilhos, aliterações, rimas e refrões; 3) a


concisão, evitando-se os períodos longos, os conceitos e imagens abstratas, orações
subordinadas e a voz passiva.
Sintética e resumida – podem ser encontrados em narrativas míticas assim como em
contos maravilhosos, e também, em trabalhos já com os autores definidos, mas tidos como
“populares” ou que se pretendem “populares”. Nesse caso, o pensamento é direcionado às
obras da literatura de cordel; em obras da Literatura, principalmente quando esta não se
pretende erudita ou culta; e ainda na chamada literatura infantil, sobre a qual o enfoque será
maior.
A ideia defendida aqui é que a literatura para crianças é muito mais uma literatura
“popular” do que propriamente “infantil”.
Primeiramente, é preciso dizer que, ao contrário de hoje, tempo em que as crianças,
pelo menos as das classes abastadas, são separadas por faixas etárias, catalogadas como
integrantes de um improvável, redutivo e ideológico “universo infantil” e, em suma, apartadas
8
da vida, (como se tal fato fosse coisa natural e indiscutível ); nas tradições populares,
crianças e adultos sempre compartilharam o mesmo universo. Sabidamente, as classes
populares medievais dividiam com suas crianças os fabliaux (narrativas breves, alegres,
anônimas, em geral abordando pequenos casos da vida cotidiana - adultérios, espertezas, etc.)
e os contos maravilhosos (de fadas ou de encantamento, num tempo em que se acreditava em
9
nessas narrativas). Neste período, segundo Denise Escarpit , falar em “popular” era
equivalente a dizer “bom para as crianças”.
Adultos e crianças, tanto no período medieval como hoje, nas zonas rurais, favelas e
em outros bolsões populares, sempre estiveram próximos, compartilhando dúvidas e
perplexidades, dividindo crenças e mitos, enfrentando juntos, em importante parceria, as
inúmeras dificuldades da luta pela sobrevivência.
O que acontece, em todo o caso, quando uma criança entra em contato com um conto
popular? Qual a diferença entre um conto de fadas, plurissignificativo, repleto de
ambiguidades (príncipes que são monstros, por exemplo,) e outros temas complexos, como a
seguir, e um texto paradidático de ficção, com mensagem monológica, unívoca e higiênica, do
1
tipo ensinar o leitor a não ter vergonha de usar óculos?
Acredito, e é isso o que quero deixar claro aqui, que a raiz da chamada literatura
infantil esteja exatamente no riquíssimo conjunto de tradições e manifestações populares, e
não em utilitários livros didáticos, paradidáticos ou outra coisa.
78

Levando-se em conta tal premissa, vale a pena tentar levantar alguns pontos que, em
minha visão, parecem aproximar as narrativas populares da literatura para crianças.
No plano da expressão (da forma, do discurso), as formas populares, como
apresentadas, tendem a recorrer ao discurso conciso, ao vocabulário familiar e à teatralidade
para atingir sua plateia.
Encontrar-se-á situação análoga na maioria absoluta das obras destinadas ao público
infantil: textos concisos, marcados pela oralidade, utilizando vocabulário familiar, construídos
sempre com a intenção de prender a atenção e entrar em contato com o leitor.
Da mesma forma, no plano do conteúdo (dos motivos e temas; da história), muitos
pontos de contato unem os contos populares à literatura infantil. Seguem, apenas alguns deles:
1) a recorrência do elemento cômico. O riso, a alegria e o escárnio como revide aos paradoxos
contrapostos pela existência; 2) o uso singularmente livre da fantasia e da ficção, muitas vezes
como forma de verificação ou experimentação da verdade. Esses dois primeiros itens, para
,
Mikhail Bakhtin entre outros estudiosos, são traços das mais arcaicas tradições populares.
Ora, humor e a fantasia são presenças constantes, quase índices, dos textos para crianças; 3)
personagens movidos muito mais por seus próprios interesses, pelo livre arbítrio, pela
aproximação afetiva (a moral ingênua referida por André Jolles) do que por uma ética de
princípios, pré-estabelecida, abstrata, desinteressada, imparcial e impessoal, que pretende
determinar, a priori, o certo e o errado. Na literatura infantil, tal moral ingênua aparece
regendo personagens que vão de Emília, de Lobato, e Raquel, de A bolsa amarela, de Lygia
Bojunga, ao Menino maluquinho, de Ziraldo, parentes, sem dúvida, dos também
transgressores Juca e Chico, Pinóquio, Alice e Peter Pan; 4) certos temas e enredos
tradicionais remanescentes, ao que tudo indica, de imemoriais narrativas míticas, tais como “a
busca do autoconhecimento ou da identidade” (é recorrente em numerosos contos de fadas).
Na literatura infantil, surge em obras que vão de Pinóquio (de C. Collodi) e As aventuras de
Alice no País das Maravilhas (de Lewis Carroll) à A bolsa amarela e Tampinha (de Ângela
Lago); a “luta do velho contra o novo” (basta lembrar a luta da madastra contra a heroína ou
da bruxa contra os heróis em contos como A Branca de Neve e João e Maria ou de obras
como Peter Pan [que recusa-se a ser adulto] e, por que não, As aventuras de Alice no País das
Maravilhas [luta contra a lógica e o conservadorismo do conhecimento oficial], A bolsa
amarela [crítica ao mundo adulto] entre tantas outras); 5) o uso livre de personificações,
antropoformizações e metamorfoses; 6) histórias apresentando um caráter iniciático, nas quais
o herói parte, enfrenta desafios (é engolido por um peixe, perde a memória, vê-se
79

transformado num monstro, etc.) e retorna modificado e amadurecido; 7) o final feliz. Esse
recurso, considerado por muitos um índice de alienação é, na verdade, utópico por natureza e
parece, como se vê, estar enraizado em certas concepções arcaicas como as que preconizam a
renovação periódica do mundo. “Se não deu certo”, diz o ditado popular, “é porque ainda não
chegou ao fim!”
Eisenstein é um teórico que fala sobre as traquinagens relevantes para o
enriquecimento cultural. E para entender a conexão de Eisenstein com o folclore russo e o
conto, vale a observação de que era conhecido por suas travessuras. Inovou e desafiou tudo o
que a geração anterior havia estabelecido como sagrado ou tabu. Ressalto que ambos são
assuntos de meu interesse porque desenvolvo uma pesquisa baseada no teórico russo -
Vladimir Propp.
A pesquisa que realizo atualmente busca responder às seguintes questões: é possível
classificar os filmes do diretor Tim Burton como, de algum modo, continuadores do gênero
maravilhoso na sua ordem discursiva, tal como Propp o entende? Se sim, em que medida a
teoria narratológica de Propp sobre o conto maravilhoso pode reinterpretar este tipo de
cinema?
Nestor Canclini é um pesquisador em cultura híbrida e diz que por intermédio dessa
pluralidade de meios tecnológicos, redes de internet, culturas, línguas e as relações entre
culturas, e através de um movimento ou multiplicidade universal consegue-se compreender de
que maneira acontece o processo construtivo de uma língua, cultura e sua hibridação. Outro
ponto abordado durante o semestre diz respeito a cada um dos procedimentos poéticos das
várias mídias, evidenciando o uso dos códigos ou sistemas, os modos pelos quais as
dimensões ético-estéticas estão presentes nos arranjos de linguagens. A exploração das
traduções intersemióticas permite focalizar os cânones estéticos e as quebras de paradigmas,
contemplando a inovação tecnológica e de linguagens na construção das poéticas.
O processo de hibridação, mais os conceitos de mestiçagem, transculturação,
globalização, colonização, em algum momento contribuem para embasar, por meio de um
hibridismo social, uma questão na qual Propp aborda em sua teoria. Foi através de sua obra:
raízes históricas do conto maravilhoso - 1946, que foram apontados gêneses dos contos
maravilhosos e narrativas que esclarecem e estão diretamentes ligadas aos antigos rituais de
iniciação, ou quase sempre associadas ao culto dos antepassados, por se tratar de um
pesquisador de gêneros culturais populares, tendo como objetivo identificar e analisar a matriz
morfológica do conto.
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CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DESCRITIVA DO FILME A NOIVA CADÁVER, DE TIM


BURTON

3.1 Descrição do filme A Noiva Cadáver de Tim Burton

O filme A Noiva Cadáver (Tim Burton, 2005), Victor Van Dort é um jovem, filho de
novos ricos comerciantes de peixe, destinado a casar-se com Victoria Everglot, filha de
aristocratas falidos, numa pequena aldeia europeia. Esse casamento é desejado pelos pais de
ambos, pois fará com que os pais de Victor subam na sociedade, e os de Victoria não percam
o que lhes resta, pois como estão pobres, poderão restituir a glória da família com o dote do
casamento.
Com o nervosismo, Victor acaba por arruinar o ensaio de casamento, o que o leva a ir
tentar repetir os votos, sozinho, na floresta. Sem sucesso, repete os votos uma última vez, que
saem na perfeição. Acabando de repeti-los, coloca a aliança no que parece ser um velho galho
em forma de mão, que na verdade, é o braço esquelético da noiva cadáver. Esta, convencida
que Victor lhe acabara de pedir em casamento, leva-o para o mundo dos mortos, onde este
tenta escapar, sem sucesso. Entretanto, na terra dos vivos, Victoria casa com o Lorde Barkis,
um estranho enriquecido por ter matado Emily, a noiva cadáver quando viva, ficando então
com o seu dinheiro.
Ao saber de isto, Victor acaba cedendo e resolve casar com Emily, tendo que repetir
os votos no mundo dos vivos, e em seguida morrer bebendo veneno. Durante a cerimônia,
encontra-se de novo com Victoria, acabando por ficar com esta. E Lorde Barkis quando
descoberto, morre bebendo o veneno destinado a Victor, confundindo-o com vinho. Emily
aceita que Victor fique com Victoria e regressa ao mundo dos mortos.
A beleza e a narrativa de A Noiva Cadáver capturam a essência da frase acima, dói um
pouco ver o filme, não só porque toca fundo, mas também porque o próprio médium está nos
chamando do mundo perdido. O tipo de animação em massa plástica que Burton usa no filme
foi praticamente descartado nos filmes em geral, graças ao CGI. Então, enquanto a história
que vai sendo contada, um romance gótico vitoriano, adaptado de um conto folclórico russo.
Pode-se dizer que não é um filme que se vê todos os dias está em contato com o mundo real e
ao mesmo tempo em descompasso. Isso é que é fazer um filme diretamente da terra dos
mortos-vivos.
A Noiva Cadáver começa com um casamento que dá errado. Os magnatas dos peixes
enlatados, Nell e William Dort (Tracey Ullman e Paul Whitehouse), têm dinheiro, mas não
81

têm classe. Maudeline e Finis Everglot (Joanna Lumley e Albert Finney) possuem raízes
aristocráticas, mas estão falidos. As famílias decidem se juntar arranjando o casamento de
seus filhos, Victor (Jonny Depp) e Victoria (Emily Watson), respectivamente, que, até a noite
anterior ao casamento, nunca tinham se visto. É claro que se apaixonam à primeira vista. Mas,
por uma série de eventos curiosos, Victor, acidentalmente, conhece Emily, a noiva cadáver
(Helena Bonham Carter), que foi morta por seu noivo no dia do seu casamento. Seu coração,
ela afirma, é capaz de ser partido mesmo tendo parado de bater, e quer desesperadamente que
Vitor seja seu marido, mesmo estando comprometido com outra pessoa.
Então, Emily transporta Victor para a Terra dos Mortos, um mundo subterrâneo feito
nas cores vivas das balas de goma, algo bem-diferente do cinzento mundo vitoriano
conhecido por Victor, mas é sua casa e é para onde quer voltar.
O filme foi escrito por Jon August, Caroline Thompson e Pamela Pettler, e, como
narrativa, não deixa nada a desejar aos roteiros de filmes com gente de verdade. A história
funciona muito bem, e tem seus melhores momentos nos sentimentos dos personagens. Victor
a abandonou por causa de outra pessoa. E a mais emotiva de todos, a frágil, mas vital, Emily,
vê em Victor sua última chance de felicidade diante da opção de encarar a eternidade sozinha.
O mundo de A Noiva cadáver é tão vívido que é difícil acreditar que se fala apenas de
bonecos. Vitor, com seus olhos arregalados e topete com brilhantina, parece mais com Johnny
Depp do que o próprio Depp, em A fantástica fábrica de chocolate. E Emily, equilibrada em
pernas magras de bailarina (em uma delas a carne apodreceu e se vê a carne e o osso expostos,
um visual erótico e desconcertante), é o espectro do amor trágico embrulhado em um vestido
de noiva rasgado. Seu nariz é um ousado “V”ao contrário, seus lábios carnudos e sensuais
sugerem que nem a morte pode destruir completamente o erotismo humano.
O mundo de Emily é povoado por esqueletos cantores e dançantes (eles cantam várias
músicas compostas pelo colaborador de longa data de Burton, Danny Elfman); por seres que
foram soldados, garçons ou banqueiros que morreram (algumas dessas habilidades são bem-
vindas quando chega a hora de fazer o bolo de casamento do casal, uma torre enfeitada de
crânios e fêmures); pequenas crianças esqueletos travessas (elas aparecem no filme todo,
rindo em seus vestidos vitorianos ou roupinhas de marinheiro). Tem um verme verde falante
que soa como Peter Lorre (embora a voz seja Enn Reitel) e um cão chamado Scraps, o amado
cão de estimação de Victor, que morreu quando ele era criança (Emily o dá a Victor como
presente de casamento). Ele agora é um amontoado de ossos, mas seu espírito de cão e melhor
amigo continuam intacto.
82

As cores da Terra dos Vivos, entretanto, são mais bonitas nos detalhes; há infinitas
variações de cinza, e Burton (e sua equipe técnica, que claramente trabalhou muito) usa a
paleta inteira, tingindo a cor supostamente opaca com rosa, azul e violeta. A delicadeza desses
tons cremosos combina com a natureza apaixonante, ainda que suave, da história, e sua beleza
mundana se encaixa bem com o tema romanticamente realista do filme: o amor não tem dono,
e não serve para nada se não for oferecido gratuitamente.
Quando Victor se senta ao piano, é possível ver um prato de metal com
“Harryhausen,” escrito em letras grandes, um tributo ao gênio dos efeitos especiais Ray
Harryhausen, cujo trabalho é ali reverenciado. Ele tem 85 anos hoje e, apesar de as crianças
talvez não o conhecerem, muitas das de ontem sabem quem ele é, graças aos seus filmes
passados sábado à tarde. Com a Noiva cadáver, Burton e Johnson fazem um tributo às pessoas
e técnicas que os inspiraram. Seu filme é uma bela e viva carta de amor, não uma lembrança
vazia.
A inspiração para A Noiva Cadáver (Corpse Bride - 2005) veio de uma fonte muito
mais antiga. Sua origem está planteada em um conto do leste europeu do séc. XIX, contado a
Burton por seu amigo Joe Ranft, que havia sido diretor e supervisor da história do filme O
Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas - 1993).
A Noiva Cadáver (Corpse Bride - 2005) é um filme de animação em Stop- Motion
produzido e realizado por Tim Burton e Mike Johnson. A produção é um clássico da
animação, por sua linguagem visual inovadora.
As ambiências underground, soberbamente montadas, adensam o clima romântico e
de horror gótico que se quer criar. De fato, o filme A Noiva Cadáver (Corpse Bride - 2005)
continua a tradição dos clássicos negros, românticos, horror gótico e comédia negra,
característica do diretor Tim Burton.
A história se desenvolve em torno de um homem preso a duas mulheres, uma viva e
outra morta, também participando suas famílias. Todos vivem em um pequeno vilarejo no
leste europeu, no séc. XIX. As famílias de Victor (voz de Johnny Depp) e Victoria (voz de
Helena Bonham-Carter), respectivamente, são bem-distintas uma da outra.
A rivalidade de classes é espelhada nos interesses de uma família aristocrata falida
que, por meio do casamento da filha, tenta aproveitar-se de outra família burguesa com uma
boa condição financeira. De um lado, a classe e as maneiras, o bom nome e condição social;
do outro, o poder do dinheiro, apesar do comportamento pouco educado e mesmo grosseiro
dos novos ricos.
A família de Victor é mais simples, pois se constitui de comerciantes em uma boa fase
83

econômica. Seus pais pretendem casar Victor (voz de Johnny Depp), seu único herdeiro, com
Victoria (voz de Helena Bonham-Carter), uma moça de família tradicional e bastante
reconhecida na sociedade.
A família de Victoria, embora seja tradicional, encontra-se em péssima situação
financeira. Esse motivo justificava seu interesse em realizar o casamento da filha com um
homem que pudesse estabilizar suas finanças.
Victor é um jovem atrapalhado e está de casamento marcado com Victoria, mas só
conhece a noiva no dia do ensaio da cerimônia. Mesmo sendo um casamento arranjado,
ambos simpatizam (como acontece na imagem abaixo). No entanto, esse jovem casal não
conta com a grande confusão e mistério atrapalhando seu enlace matrimonial.
Na floresta vizinha ao vilarejo onde Victor mora existe um local sombrio, escuro e
assustador, criado para representar uma cena de horror e ao mesmo tempo suspense: uns dos
cenários que Burton costuma usar em suas produções.
Victor treina seus votos após ter errado tudo durante o ensaio cerimonial com Victoria
e suas respectivas famílias presentes, mais a presença de um golpista, chamado Lord Barkis
Bitern, que passava pela cidade e aproveita a oportunidade e finge ser um convidado da
família de Victoria, assim, fica hospedado na casa da noiva.
No entanto, voltando à parte em que o rapaz realizava o ensaio dos votos na floresta,
ao colocar a aliança num galho seco e proclamar corretamente os votos de casamento,
acontece algo inesperado: umas das cenas de maior suspense e susto do filme.
O que ele não imaginava é que o galho seco era um dedo de verdade, pertencente a
uma jovem assassinada (voz de Helena Bonham-Carter), que volta do mundo dos mortos e
surge de uma cova, assustando tanto o rapaz quanto os telespectadores do filme.
A noiva cadáver (Emily – voz de Emily Watson), que surge da cova e insiste, não só
em ser esposa de Victor, mas também em aceitar os votos ditos por ele naquele momento, é a
principal personagem dessa história cheia de suspense, horror gótico, humor negro e romance.
Na cena seguinte, acontece uma perseguição da noiva cadáver sobre Victor, já que
este, assustado com aquela situação, corre em busca de ajuda e se debate com as árvores e
galhos secos da floresta. O rapaz corre até perder o ar e chega numa pequena ponte que liga a
floresta à cidade. Achando que já está livre daquela possível assombração, por um momento,
detém-se para se recompor. Então, em mais uma cena de susto, a noiva cadáver surge atrás
dele e fala que ele pode beijá- la e, em seguida, leva-o para o mundo dos mortos, como mostra
a imagem seguinte.
84

Ao despertar no mundo dos mortos, que mais parece o mundo dos vivos, pois há
muitas cores vibrantes, música, animação das pessoas que ali vivem, Victor acha que está
sonhando e tenta acordar daquele possível sonho que mais parece um pesadelo, pois vê
cadáveres, cabeças falantes, larvas saindo dos olhos de esqueletos, imagens assustadoras de
órgãos internos de seres humanos.
Ao perceber que não se trata de um sonho, começa a fazer perguntas, estas são
respondidas por meio de um musical realizado pelos esqueletos pertencentes ao mundo dos
mortos. Vale lembrar que Burton em seus filmes usa muito musical durante o desenrolar das
histórias, e, no filme a Noiva Cadáver (Corpse Bride 2005), não é diferente.
As pessoas do mundo dos mortos gostam de celebrar tudo com uma boa música,
bebidas e muito humor, causando uma sensação de prazer e aceitação por parte dos
telespectadores. Chega a ser cômica a maneira como Tim Burton consegue transformar uma
possível cena de horror, terror e susto em algo alegre, divertido e cômico. A imagem a seguir
mostra o mundo dos mortos, suas cores vibrantes e a alegria dos personagens que ali moram.
Em contrapartida, no mundo dos vivos, as suas cores são frias, cinzas, escuras, dando
um ar de depressão e tristeza; as pessoas que pertencem ao mundo dos vivos são muitas e dão
a impressão de serem infelizes. Na imagem a seguir – imagem do mundo dos vivos - Burton
tenta mostrar este contraste entre os mundos de uma maneira divertida, além de revelar, de
certa forma, que a morte não é tão assustadora como as pessoas imaginam.
Na casa dos Everglot, todos aguardam pela volta de Victor para dar continuação ao
ensaio, pois Victoria e seus familiares nada sabiam a respeito do que acontecia com o rapaz.
Na cena seguinte, o sr. Barkis Bittern entra na sala na qual os pais do noivo estão
reunidos e dá a notícia de que Victor havia sido visto com uma outra mulher, a noiva cadáver,
causando espanto na família do rapaz, que afirma que seu filho não conhecia nenhuma outra
mulher. Após essa notícia, os pais de Victor saem em busca de seu filho pela cidade.
Voltando ao mundo dos mortos, Victor tenta arrumar uma saída para toda aquela
situação e fugir daquele local e da vista de sua mais nova esposa, a noiva cadáver, que está à
sua procura por todas as partes, no mundo dos mortos. Quando a noiva cadáver o encontra, os
dois sentam e conversam. Antes disso, porém, ela lhe dá um presente: seu cão, que havia
morrido e se chama Scraps, o que deixou Victor contente ao reencontrar seu antigo amigo.
Em seguida, Victor tem a ideia de voltar ao mundo dos vivos e levar a sua esposa para
ser apresentada aos seus pais. No entanto, a noiva cadáver constata a impossiblidade de
realizar tal feito, pois não pertencem mais àquele mundo. Mas como em todo conto há algum
mágico ou espécie de mago, neste conto não é diferente: o mágico ou senhor da magia se
85

chama Elder Gutknecht.


Imagem do mágico Elder Gutknecht, retirada do livro Corpse Bride.
O casal pede ajuda ao mágico para retornar ao mundo dos vivos e visitar os pais de
Victor. Depois de muita insistência de ambos, o tal mago concede o pedido, levando-os até o
mundo dos vivos. Antes, porém, explica-lhes que deve ser mencionada a palavra mágica,
amarelinha, para que possam retornar ao mundo dos mortos.
Ao retornar ao mundo dos vivos, Victor mais uma vez tenta enganar a noiva cadáver
dizendo que teria que ir ao encontro dos seus pais sozinho para contar-lhes tudo o que havia
acontecido, para só depois apresentar-lhes sua esposa. A noiva cadáver (Emily), apesar de não
querer ficar sozinha, aceita a proposta de Victor.
O rapaz corre para casa de Victoria, certo de que havia conseguido fugir da noiva
cadáver. Todavia, ao chegar à casa de sua pretendente, (Victoria), o moço escuta o pai da
noiva ameaçando-o de morte e, como é muito trapalhão e medroso, fica com receio de que o
pai da noiva estivesse falando a verdade.
Enquanto isso, a noiva cadáver, cansada de tanto esperar por Victor, vai à sua procura
e encontra-o no quarto de Victoria onde, ele, alguns momentos antes, havia se declarado e
dito que não via a hora de se casar com ela. Victor, contudo, não teve tempo suficiente para
lhe contar o que havia acontecido no período que estava desaparecido, pois a noiva cadáver,
sentindo-se traida e humilhada, cita a palavra mágica amarelinha e levou-o de volta para o
mundo dos mortos, deixando Victoria sem nada entender.
Ao chegar ao mundo dos mortos, a noiva cadáver começa a tirar satisfações com o
pobre rapaz, que não sabe o que fazer de sua vida, ou como solucionar aquele problema em
que se metera. Victor, então, tenta explicar para a noiva cadáver que tudo não passou de um
engano e que ela está morta, mas ele não. Assim, deixando Emily (a noiva cadáver) arrasada.
Essa cena chega a causar uma sensação de pena por parte dos telespectadores em relação à
situação vivida pela noiva cadáver, que amarga profundo ciúme de Victor, pois este gosta de
outra mulher.
No mundo dos vivos, Victoria tentar pedir ajuda à sua mãe e explicar que seu noivo
(Victor) estava casado com uma mulher morta. Sua mãe acha que a filha está louca e a tranca
em seu quarto. Desesperada, Victoria não vê alternativa a não ser fugir pela janela de seu
quarto.
A moça vai até a igreja para buscar ajuda do padre, mas este não acredita no que a
moça lhe conta e a leva de volta para casa, deixando seus pais extremamente aborrecidos.
Os pais da noiva começam a entrar em desespero por conta dos comentários a respeito
86

da anulação do casamento. Lord Barkis Bitern escuta tudo atrás da porta e chega na sala
propondo ser marido de Victoria no lugar de Victor, já que imaginava que a família Everglot
encontrava-se em boas condições financeiras e pagaria um bom dote pelo casamento dele com
a moça. Os pais de Victoria gostam da ideia, pois resolveriam o problema de não passar
vergonha diante da sociedade, e por pensarem que o sr. Barkis Bitern era um homem de boa
condição financeira.
Enquanto isso, no mundo dos mortos, Victor encontra a noiva cadáver sozinha e triste
a tocar piano. O rapaz, então, aproxima-se e pede-lhe desculpas por tudo que havia dito. Pela
primeira vez, em um momento de afeto, ambos começam juntos, a tocar piano.
De repente, ouve-se uma sirene informando a chegada de uma pessoa morta: tratava-se
do caseiro e motorista da família de Victor, que estava muito doente. Então, o motorista
informa a Victor que sua amada Victoria iria se casar com outro homem, o que deixou Victor
desapontado.
Paralelamente, no mundo dos vivos, Victoria se prepara para o casamento com o Sr
Barkis Bitern, com o desânimo de quem está indo para um enterro. Em seguida, o casamento
de Victoria com o bandido Sr. Barkis Bitern se realiza.
No mundo dos mortos, Victor se entristece por ter perdido sua amada para outro
homem. Em seguida, ouve, por trás da porta, uma conversa entre a noiva cadáver e o mágico
Elder Gutknecht, em que o mago a informa de que existe uma complicação em seu casamento
com Victor, já que ela está morta e ele vivo. Ou seja, não estão casados legalmente, pois
existe uma diferença de mundos e de situação entre eles, já que a morte os separa.
A única forma de o casamento se oficializar seria Victor morrer, ou seja, este teria que
tomar veneno e fazer parte do mundo dos mortos. No entanto, a noiva cadáver, num ato de
amor, diz que jamais pediria isso a ele. Contudo, Victor, desapontado com o casamento de
sua amada e na tentativa de reconstruir sua vida ao lado de outra pessoa, concorda em tomar o
veneno e se casar com a noiva cadáver, deixando-a, portanto, muito feliz e criando um clima
de festa entre todos, no mundo dos mortos. Começam, então, os preparativos para o
casamento que se realizará no mundo dos vivos.
No mesmo momento em que Victor e a Noiva Cadáver anunciam o casamento, no
mundo dos vivos, o Lord Barkis Bitern e Victoria festejam seu casamento, que mais parece
um velório, de tão desanimador o clima.
De repente os mortos começam a invadir o mundo dos vivos para assistir ao
casamento da Noiva Cadáver com Victor, causando pânico e medo a todos, em uma das cenas
mais engraçadas do filme, pois mais parece mais uma comédia que uma cena de terror.
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Aquela situação causa medo e susto a todos no mundo dos vivos, transforma-se e
passa a ser uma cena emocionante e digna de finais felizes, pois os vivos começaram a
reconhecer seus parentes mortos e com eles comemoram o reencontro: encarnados e
desencarnados.
Em seguida, Lord, ao saber que sua mais nova esposa e sua família estavam falidos,
revolta-se, pois julgava ter aplicado um grande golpe.
Victoria sai e percebe que todos se dirigem para a igreja e vai até lá para ver o que
ocorre. Percebe, então, que se trata do casamento de seu amado com outra mulher e fica
escondida observando tudo.
A noiva cadáver, ao se dar conta da presença de Victoria na igreja, resolve desistir de
Victor para que este seja feliz com sua amada. Porém, antes disso acontecer, ocorre um
grande conflito entre héroi (Victor) e vilão (Lord Barkis Bitern), ficando claro, então, que o
grande vilão da história é o Lord Barkis Bitern, pretendente da noiva cadáver no passado, e
que a matou após o casamento para ficar com seu dote: o mesmo que pretendia fazer com
Victoria.
Héroi e vilão começam a travar uma luta na igreja, até que Lord Barkis Bitern
consegue desarmar Victor. Mas Lord não contava com a surpresa que estava por vir. Antes de
matar Victor, Lord Barkis resolve brindar a morte do rapaz com o vinho envenenado, usando,
sem que soubesse, a mesma taça que deveria ser usada por Victor para morrer e concretizar
seu casamento com a noiva Cadáver.
O vilão agoniza e morre, deixando a alma da noiva cadáver vingada e com a sensação
de liberdade.
Na cena final do filme, a noiva cadáver se transforma em várias borboletas que saem
voando. Victor e Victoria se casam e têm um final feliz. (Imagem final do filme logo acima).
O filme A Noiva Cadáver, (Tim Burton, 2005), é quase uma continuação de seu filme
em animação de 1993, O estranho mundo de Jack, que tenta reviver as animações em stop-
motion de sua juventude. Apesar de não ter sido um enorme sucesso comercial, na época,
Jack se tornou um filme cultuado por crianças e adultos. Buton se envolveu mais neste novo
filme, codirigindo o processo de animação, além de colocar seu nome no título. A comédia
familiar macabra também é um musical, deu-lhe a chance de continuar sendo um dos
cineastas mais ecléticos e um dos diretores mais reclusos, enquanto conta a história de um
jovem tímido, chamado Victor, que tem a voz de Johnny Depp, e, acidentalmente acaba se
casando com uma mulher assassinada na noite de seu casamento. A própria esposa de Burton,
Helena Bonham Carter, faz a voz da “noiva cadáver”, enquanto outros membros da trupe do
88

diretor também emprestam suas vozes, como Christopher Lee e Albert Finney.
Quando o ComingSoon.net falou com Burton, da última vez, ele estava na Bahamas.
Para A noiva cadáver, os jornalistas viajaram para Toronto, onde ele deu a entrevista coletiva
a seguir. Como sempre, a conhecida atração do diretor pelo sombrio e o macabro, exatamente
como em seus filmes, é contrabalançada por um humor distorcido e comentários interessantes
a respeito do elenco e de sua carreira.
A pesquisa busca responder às seguintes questões: podemos classificar os filmes do
diretor Tim Burton como, de algum modo, continuadores do gênero maravilhoso, tal como
Propp o entende? Se sim, em que medida a teoria narratológica de Propp sobre o conto
maravilhoso pode ser reinterpretada a esse tipo de cinema?
Segundo Propp:

Vladimir Propp nos abre uma pista valiosa ao dizer-nos que este conto, em suas
versões, foi de fato muito difundido na Rússia, por via livresca, sendo muito popular
no Oriente e na Europa Oriental. E nota que as variantes orais encontradas
conservaram vestígios da elaboração literária e que ele chega a aparecer numa
coletânea do século XVIII, tendendo para o “folclorístico”, com argumento
elaborado literariamente. Ele também nos observa que seu espírito chega a
distanciar-se bastante do universo popular, enveredando por um outro tipo de
racionalidade. (PROPP, 2006, p. 22)

Quando Burton mostrou este projeto aos estúdios Warner, com os quais trabalhou em
Batman, consideraram-no pouco comercial. Foram os estúdios da Twentieth Century Fox que
o receberam, e não viriam a arrepender-se, pois o filme continua a ser um dos favoritos do
público. Como referido anteriormente, Burton escolhe apenas os projetos atraentes à sua
sensibilidade, selecionando os temas com os quais se identifica, além dos atores que o
compreendem e, rodeando-se de pessoas que entendem o seu mundo. Tendo encomendado o
guião à jovem romancista, Caroline Thompson, cujo primeiro romance First Born (1983)
tinha adorado, Burton ficou feliz por se terem compreendido, sem serem obrigados a explicar,
um ao outro, o alcance simbólico da narrativa.
O mesmo aconteceu com Johnny Depp, actor que oferece uma prestação digna do
cinema mudo: frequentemente reduzido à imobilidade – cada gesto malcalculado podia ter
consequências desastrosas – a sua expressividade passa pelo olhar. Charlot encontra
Nosferatu, segundo Ferenczi, Peter Pan encontra Frankenstein ou James Dean encontra
Freddy Krueger, segundo outros.
Ao desenvolver este trabalho de investigação, escolhendo Tim Burton como objeto de
análise, o fato de ter cruzado a obra do cineasta com o universo dos contos de fadas,
verificou-se proveitoso. Desde o início da sua carreira como realizador, Burton assumiu o
89

interesse por esse tipo de narrativa e concebeu muitos dos seus filmes, estruturando as
respectivas molduras, segundo o ponto de vista de um contador de histórias, ou baseando-as
nos próprios contos: Edward Scissorhands, Big Fish, Charlie and the Chocolate Factory e
Alice in Wonderland são exemplos.
A tendência para os contrastes ou para as dicotomias e o poder simbólico dos contos
terão sido (e continuam a ser) as razões principais da sua predileção por esse tipo de literatura,
como o próprio reconhece. Para poder cruzar os dois mundos – do cinema de Burton e dos
contos de fadas, foi essencial realizar uma análise, ainda que breve, sobre os contos
tradicionais, de fadas ou maravilhosos, de modo a obter um fundo teórico que possibilitasse
um estudo comparativo entre os dois universos. No entanto, ao longo da investigação pôde
observar-se que os contos de fadas (ainda que de superior importância) são apenas uma das
influências de Edward Scissorhands e da restante obra de Burton. Outro ascendente que
marca a sua filmografia, tanto ou mais que os contos de fadas, é o cinema de terror, gênero
pelo qual Burton nutre grande admiração, e que está impresso na sua cinematografia, por
meio dos recursos as atmosferas sombrias e a personagens estranhas, próprias do universo
gótico. Tornou-se, assim, indispensável incluir o gótico nos conceitos a serem trabalhados
nesta tese.
Verifica-se que a ação realizada pelo herói do filme de Burton é cheia de curvas, logo,
nota-se a possibilidade de uma interconexão ou hibridismo entre o herói burtoniano com o
herói proppiano. Ambos são provedores de todo o desenrolar da trama na qual estão inseridos,
no caso, o herói propriano é o principal personagem responsável pelo pontapé inicial da trama
do qual o mesmo recebe uma tarefa que deve ser executada com sucesso, e não é diferente em
relação ao herói proppiano, já que este recebe como tarefa salvar a princesa, e, por fim, recebe
o prêmio de se casar com a moça e assumir o trono do Rei. Em ambos os casos, os heróis de
cada trama possuem conexões semelhantes no papel e execução de suas tarefas.

Em sua Arte Poética, Aristóteles, a rigor o primeiro teórico conhecido a tentar


responder ao enigma dos seres ficcionais, chama nossa atenção para a estreita seme-
lhança existente entre a personagem e a pessoa humana ao afirmar que [...] “a poesia
é uma arte de imitação ou representação” e “o objeto dessa imitação é constituído de
homens que fazem ou experimentam alguma coisa”, ou seja, de “homens em ação”.
(SEGOLIN, 1978, p. 13)

O linguista Roland Barthes classificou as ações narrativas em duas categorias:


nucleares e catalíticas. As ações nucleares têm caráter de- terminante, movimentam a história
e aparecem nas narrativas — tradicionais e mitológicas — como se fossem pedras de um
jogo. As ações catalíticas são secundárias, servem para criar um clima, preencher o espaço e
90

fun-cionam como pontos de ligação entre os acontecimentos substanciais. As 31 funções


classificadas por Propp são nucleares, e quando essas ações aparecem na história, há um
avanço para o desenrolar da intriga.
Afirma Segolin:

A partir das 31 funções que descobriu nos contos anali- sados, Propp chega a
distinguir, como constantes, sete personagens ou papéis, definidas, cada uma, por
um conjunto de ações que lhe seriam próprias: 1- Esfera de Ação do Agressor ou
Malfeitor [...] 2- Esfera de Ação do Doador ou Provedor [...] 3- Esfera de Ação do
Auxiliar [...] 4- Esfera de Ação da Pessoa Procurada e de seu Pai [...] 5- Esfera de
Ação do Mandante ou Remetente [...] 6- Esfera de Ação do Herói [...] 7- A Esfera de
Ação do Falso Herói. (SEGOLIN, 1978, p. 38-9)

Segolin (1978, p. 43-4) observa ainda que, “fundamentando-se nas lições de Propp
[...], Greimas procurou definir três categorias actanciais: 1- Sujeito X Objeto 2- Re- metente
X Destinatário 3- Auxiliar X Oponente.”
As personagens míticas são comandadas e dominadas pelo narrador, o qual decide
suas ações, seus destinos, e sua preocupação é mostrar o que elas são para o mundo. Essas
personagens pertencem a uma narrativa denomina- da como monológica, ou seja, não têm voz
altiva ou mundo interior, não fazem profundos questionamentos e só podem ser avaliadas pelo
caráter externo. Não há um texto dominante ou literariedade nas narrativas míticas, os
diálogos são superficiais, o narrador não interfere na trama, não contesta nem discute as ações
dessas personagens, enquanto o leitor acompanha a linearidade (começo, meio, fim), sem
aberturas para questionamentos.
Conforme Lévi-Strauss, “o princípio fundamental é que a noção de estrutura social
não se liga à realidade empírica, mas aos modelos construídos a partir desta”. Ademais, parte-
se do pressuposto de que a formação e a estrutura se formam, por meio de alguns elementos,
como a floresta e o mar, dessa forma, sendo partes construtivas de uma estrutura elementar,
que, para os estruturalistas que possuem ou outro olhar, esses dois fenômenos surgem e
demonstram uma nova estrutura abstrata, um determinado produto de uma elaboração que se
interconecta com o estático e dinâmico.
Conforme Todorov:

O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o


fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O
fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais,
faze a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 2014, p. 31)

Há um fenômeno estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas
do tipo natural ou sobrenatural. É notório que o herói percebe certa divergência e contradição
91

entre os dois mundos, o do real e o do fantástico, e ele próprio fica perplexo diante dos fatos
fantásticos que o cercam. A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito do
fantástico que, de acordo com Todorov, o conceito de fantástico se define, pois com relação
ao real e imaginário: e estes últimos merecem mais do que uma simples menção.
Existem algumas definições do fantástico que se encontram na França em escritos
recentes, se não são idênticas à nossa, tampouco a contradizem. Sem mais delongas, dar-se-ão
alguns exemplos extraídos dos textos “canônicos”. Ademais, algumas destas definições:

Para Castex, em Le Conte fantastiques en France: “O fantástico ... se caracteriza ...


por uma intromissãoo brutal do mistério no quadro da vida real (p.8). Louis Vax, em
L’Art et la Littérature fantastiques: “A narrativa fantástica ... gosta de nos
apresentar, habitando o mundo real em que nos achamos, homens como nós,
colocados subitamente em presença do inexplicável” (p. 5). Roger Caillois em Au
Coeur du fantastique: “Todo o fantástico é ruptura da ordem estabelecida, irrupção
do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana” (p.161). Vemos que
estas três definições são, intencionalmente ou não, paráfrases uma da outra: há de
cada vez o “mistério”, o “inexplicável”, o “inadmissível”, que se introduz na “vida
real”, ou no “mundo real”, ou ainda na “inalterável legalidade cotidiana”
(TODOROV, 2014, p. 32)

Segundo Marcel Schneider “La Littérature fantastique en France: “O fantástico


explora o espaço interior: tem uma estreita relação com a imaginação, a angústia de viver e a
esperança de salvação”. (p. 148-149)

Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao do conto de fadas; de fato, o


conto de fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso e os
acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de
cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas (para citar apenas
alguns elementos dos contos de Perrault). O que distingue o conto de fadas é uma
certa escritura, não o estatuto do sobrenatural. Os contos de Hoffmann ilustram
perfeitamente esta diferença: “Quebra-nozes e o Rei dos camundongos”, A Criança
estrangeira”, “A Noiva do rei” pertencem, por características de escritura, ao conto
de fadas. Também seria necessário caracterizar As Mil e uma noites antes como
contos maravilhosos do que como contos de fadas (esta questão exigiria um estudo
particular). (TODOROV, 2014, p. 60)

É possível identificar e delimitar o maravilhoso puro. Assim, convém dele distanciar


os diversos tipos de narrativas, na qual o sobrenatural é justificado. Dessa forma, ao se falar
do maravilhoso hiperbólico, os fenômenos são aqui sobrenaturais a não ser por intermédio de
suas dimensões, assim, sendo superiores às que são familiares. Todorov também aponta que
mais próximo deste primeiro tipo de mavarilhoso está o maravilhoso exótico no qual o mesmo
narra acontecimentos sobrenaturais sem apresentá-los como tais, tendo como suposição de
que o espectador implícito nos contos não conheça as regiões onde desenrolam os
acontecimentos, assim, não tendo base para colocá-los em questionamento.
92

E por fim, há um terceiro tipo de maravilhoso apresentado podendo ser chamado de o


maravilhoso instrumental. O autor comenta sobre possíveis pequenos gadgets que nada mais
são que uma palavra americana, significa artigo engenhoso, ou seja, aperfeiçoamentos
técnicos irrealizáveis na época descrita, mas no final das contas perfeitamente possíveis. O
maravilhoso instrumental conduziu-nos para próximo do que foi definido no séc. XIX, na
França, como o maravilhoso científico, e que se chama hoje science-fiction. Aqui, o
sobrenatural é explicado de uma maneira racional, mas a partir de leis que a ciência
contemporânea não reconhece.
Todorov cita:

Na “História do Príncipe Ahmed” das Mil e uma noites, por exemplo, esses
instrumentos maravilhosos são, no início: um tapete voador, uma maçã que cura, um
“tubo” de longa visão; em nossos dias, o helicóptero, os antibióticos ou o binóculo,
dotados das mesmas qualidades, não são absolutamente do domínio ao maravilhoso;
o mesmo acontece com o cavalo voador em “A História do cavalo encantado”. (...) É
preciso distinguir esses objetos, produtos do engenho humano, de certos
instrumentos frequentemente semelhantes na aparência, mas cuja origem é mágica e
que servem de comunicação com outros mundos: assim a lâmpada e o anel de
Aladim, ou o cavalo na “História do terceiro calândar”, pertencem a um maravilhoso
diferente. (TODOROV, 2014, p. 62)

Ainda sobre a discussão envolvendo o fantástico e o maravilhoso, sabe-se que o


fantástico coloca-nos diante de um dilema de que o maravilhoso realiza esta união impossível,
propondo ao leitor e ao espectador um sentimento que os leva a acreditar em algo sem ter a
certeza de que seja verdadeiro, ou seja, de que o espectador não possui veracidade para
discernir que o acabou de ver seja real ou imaginário. A seguir, a própria definição do
fantástico, a primeira pessoa “que narra” é a que conduz o leitor e o espectador a identificar a
conexão entre os mesmos com a personagem. Essa identificação se realiza por meio de um
jogo psicológico individual e uma base estrutural.
Afinal, a história fantástica caracteriza-se ou não por tal composição, por tal “estilo”,
mas sem “acontecimentos estranhos”, o fantástico não pode nem mesmo aparecer. O
fantástico não consiste, certamente, nesses acontecimentos, mas estes são para o fantástico
uma condição necessária. Levanta- se aqui a seguinte questão:
Será possível delimitar o problema de outro modo, partindo das funções de que o
fantástico, nas obras audiovisuais burtonianas, existe dentro da obra, assim, como o
maravilhoso apontado, nas funções propprianas do conto maravilhoso. Dessa forma, haverá
uma conexão que permite apontar elementos semelhantes, ou que poderão ser reinterpretados
em ambas circunstâncias apresentadas nos mundos burthoniano e proppiano?
O que se pode notar é que, apesar da teoria proppiana apresentar falhas, serviu de base
93

para o estudo e o desenvolvimento de outro modelos de análise de contos maravilhosos.


(SILVA, 2004, p. 32).
O teórico Haroldo de Campos deu início à sua pesquisa em torno da prosa moderna
brasileira, tendo como base Oswaldo de Andrade, este escreveu vários artigos sobre sua obra
em questão (prosa, poeta, crítico e teatrólogo). Em seguida, realizou ainda estudos específicos
sobre as Memórias Sentimentais de João Miramar, anunciados no jornal O Estado de São
Paulo, em 1963, numa série de artigos, cuja primeira parte intitulava-se, justamente, Miramar
e Macunaíma. Também desenvolveu a comparação em dois artigos de 1965 – Miramar
Revém -, escritos como resposta ao crítico Wilson Martins, que se recusava a aceitar os
estudos e influências conta a evidência e com desconhecimento do estudo de Mário sobre o
Miramar, publicado em 1924, n 105 da Revista do Brasil.
Para Campos (2008), “A lógica semiológica da narrativa, humoristicamente acentuada
inclusive para efeitos de sátira e paródia, fornece o material ready-made para o projeto
andradiano do “herói descaracterizado”, sem “lógica psicológica”, como no corpo deste
trabalho se verá melhor.
O teórico Haroldo de Campos teve como objetivo desenvolver um estudo para analisar
a estrutura, morfológica-linguística e semiótica da prosa e poesia. Em 1967, a partir deste
período, já era possível perceber todo um movimento em volta de estudos com o intuito de
melhor entender a parte estrutural e sintagmática da prosa, já que a mesma teoria haroldiana
tem o mesmo próposito estrutural narrativo, no caso, sitagmático conforme o método
proppriano reinterpreta no conto maravilhoso.
Um ponto abodardo por Haroldo, em seu livro, é referente ao homem estrutural em
que este está imerso na metalinguagem, nada mais é do que a operação de tipo analítico-
crítico, com vistas a um discurso metodológico, quer da manipulação textual voltada para o
texto-síntese. De acordo com Campos (2008), “O caráter esquemático e recorrente dos
padrões linguísticos encontra sua explicação, antes de mais nada, no fato de que a língua é
uma típica propriedade coletiva”.
Um paralelo é desenvolvido entre os métodos haroldiano e proppiano em períodos. No
caso, em 1928, Vladimir Propp, integrante do chamado formalismo russo, publica em
Lenigrado uma obra intitulada Morfologia da fábula. Em 1928, por significativa coincidência,
Mário de Andrade lança o Macunaíma, classificado, pelo próprio autor, como rapsódia.
94

3.2 Contexto Histórico, Estético-Técnico e Narrativo - O Hibridismo do Cinema de


Animação

Neste tópico, o foco será o processo histórico, estético e narrativo do cinema de


animação, sem deixar de definir e colaborar com mais dados bibliográficos sobre o assunto
pouco explorado no Brasil. É interessante citar que poucas são as produções bibliográficas
nacionais, e, desse modo, a ideia é criar um hibridismo das diversas técnicas de animação com
o todo relacionado ao gênero do cinema animado, ou seja, relacionar, por meio de um bom
resumo, o início do cinema animado mais primitivo da década de 30 até o cinema de
animação digital atual.
O tópico também tem o interesse de definir para o leitor uma reflexão sobre as
técnicas, estéticas e narrativas do cinema de animação, porque é, por meio do traçado sobre as
as técnicas de animação que se criam conexões com as questões envolvendo os percursos
realizados pelo cinema animado. Dessa forma, serão definidos os principais componentes
estéticos e narrativos do cinema animado.
De acordo com Lucena:

O cinema começa a experimentar uma verdadeira revolução; as artes plásticas cada


vez mais fazem uso de recursos digitais em produções tradicionais, da mesma forma
que procuram desenvolver novas aplicações; e ambos, artistas plásticos ainda
indefinidos das mídias interativas, com suas possibilidades fantásticas para
tretenimento e educação. (LUCENA, 2002, p. 19)

Pode-se dizer que há uma grande discussão em torno da arte, isto é, se esta tem
embasamento à técnica? O processo se consolida por meio de uma seção operacional e uma
seção expressiva, de tal forma que se interconectam a partir de um hibridismo em que a arte é
enriquecida por meio da exploração técnica.
Nos anos 20 e 30, a animação passava a contar como uma linguagem. Tratava-se o
cinema de animação como um tipo ou modalidade de cinema voltado para um único público,
o infantil, geralmente, utilizando-se das diversas técnicas de animação: desenho animado ou
animação tradicional, stop-motion, ou massa plástica e animação digital (2D, 3D e 4D).
Porém, muito se tem discutido acerca do público-alvo com interesse pelo cinema de
animação, que ganha a cada dia mais apreciadores desse gênero. É necessário definir o
cinema de animação, o uso das técnicas animadas e os efeitos especiais aplicados a alguns
filmes, a exemplo do que faz o cineasta Tim Burton, foco desta pesquisa. O cinema de
animação cada vez mais utiliza e experimenta novos recursos digitais, multiplicando seus
95

efeitos especiais e fazendo da sétima arte aquela que mais acusa a influência das inovações
tecnológicas.
É possível observar um interesse e crescimento considerável do público infantil e
adulto nestes filmes animados, no mercado cinematográfico, assim reforçando a importância
de se realizar mais estudos sobre efeitos especiais no cinema de animação. Alguns exemplos
de filmes de animação são: Branca de Neve e os Sete Anões (1937 – Walt Disney), Bambi
(1942 – David Hand), A Bela e a Fera (1991 – Gary Trousdale), Aladdin (1992 – Ron
Clements), O Rei Leão (1994 – Roger Allers), Toy Story (1995 – John Lasseter), A Fuga das
Galinhas (2000 – Peter Lord), Shrek (2001 – Andrew Adamson), A Era do Gelo (2002 –
Chris Wedge), Wallace e Gromit: A Batalha dos Vegetais (2005 – Nick Park), Persepolis
(2007 – Vicent Paronnaud), Ratatouille (2008 – Brad Bird), Persepolis (2008 – Vincent
Paronnaud; Marjane Satrapi), Up (2010 – Pete Docter), Coraline (2010 – Henry Selick), The
Secret of Kells (2010 – Tomm Moore; Nora Twomey), Toy Story 3 (2011 – Lee Unkrich), How
to Train Your Dragon (2011 – Dean DeBlois; Chris Sanders), The IIIusionist (2011 – Sylvain
Chomet), Rango (2012 – Gore Verbinski, Kung Fu Panda 2 (2012 – Jennifer Yuh Nelson),
Brave (2013 – Mark Andrews; Brenda Chapman), Chris Renaud), Ernest & Celestine (2014 –
Didier Brunner; Benjamin Renner); The Wind Rises (2014 – Hayao Miyazaki).
Como a animação sofreu a revitalização de que necessitava para auxiliar nas
produções de filmes animados, os profissionais desse recurso visual se beneficiaram da
aplicação de efeitos visuais nos filmes. A partir daí, o prestígio do gênero cresceu
sensivelmente. Difundiu-se um tipo de animação dirigido para o público adulto. Assim, torna-
se necessário ver o cinema de animação e o cinema fantástico de Tim Burton com um olhar
mais apurado e considerá-los um gênero, ou seja, o efeito nonsense sendo como uma arte
peculiar em suas películas. Também é notável que o fantástico e o maravilhoso são conexões
relevantes no objeto desta pesquisa.
De acordo com Todorov:

Estudar a literatura fantástica implica saber o que é um “gênero literário”.


Considerações gerais sobre os gêneros. – Uma teoria contemporânea dos gêneros: a
de North Frye. – Sua teoria da literatura. – Suas classificações em gêneros. – Crítica
e Frye. – Frye e os princípios estruturalistas. – Balanço dos resultados positivos. –
Nota final melancólica. (TODOROV, 2014, p. 7)

Entretanto, vale ressaltar que o tópico almeja embasar a hibridez entre os elementos
técnicos e estéticos, bases elementares para formação do cinema de animação. Essa discussão
em volta do assunto, arte técnica/estética, já acontece há um tempo.
96

É notório o quanto a computação gráfica se tornou fundamental e facilitadora no


âmbito artístico e tecnológico que representa o cinema de animação. Desde o surgimento de
ferramentas grandiosas, que dão suporte para toda execução do processo, até o interesse de
fundamentar teoricamente a interconexão estética e computacional a partir do ponto de vista
do animador. Ademais, a origem de todos esses recursos tecnológicos tem o objetivo de
situar, seja por meio da imagem fixa ou imagem móvel, o quão importante são esses
elementos para construção e evolução dos meios audiovisuais animados. Eis a seguinte
questão: até que ponto essa mutação tecnológica existente, por intermédio de novos
dispositivos, programas e elementos de imagens com alto índice de mensagens semióticas, é
relevante em obra de arte cinematográfica animada?
De acordo com Lucena,

O autor reafirma o que foi citado por Alexandre Alexeieff (inventor de uma original
técnica tridimensional para animação analógica, conhecida como tela de pinos) já
havia dito, 1973, que: “o repertório do cinema baseado em fotografia é limitado e
encontra-se próximo da exaustão. Temos evidências mais do que suficientes para
conjecturar que pertence, portanto, ao universo da animaçãoo, o privilégio de vir a
propor os novos paradigmas da representação para a imagem em movimento.
(LUCENA. 2012, p.2)

O pesquisador Alberto Lucena Barbosa Júnior começou sua relação com o universo
artístico ainda criança, quando já demonstrava habilidade com o desenho. Aos dez anos de
idade entrou no curso de extensão em artes plásticas, da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB).
Na década de 1970, publicou a história em quadrinhos do super-herói O Imortal, de
sua autoria, no suplemento O Pirralho, do jornal A União. Naquele mesmo período, produziu
três filmes de animação em câmera Super 8. Em 1978, lançou “Uma História de Amor”,
animação 3D com massa de modelar. No ano de 1979, foi a vez de “Amor Ecológico”, no
mesmo formato do anterior, e “Festa de Despedida”, um desenho que não foi concluído.
Nos anos de 1980, atuou como artista plástico e animador nos mercados da pintura e
no publicitário. Em 1992, organizou o I Festival Nacional de Cinema de Animação e o
Seminário Nacional Cultura e Tecnologia da Imagem, em 1995. Na mesma época, publicou o
livro “Surrealismo na Arquitetura”.
Em 1993, passou a integrar o quadro de professor-pesquisador do Departamento de
Artes Visuais da UFPB. Entre os anos de 1996 e 1999, durante o mestrado, fez animações
para demonstrações técnicas e estéticas, chegando a se envolver na pré-produção de um
longa-metragem computadorizado chamado “Galileu”, que seria uma continuação do filme
“Cassiopeia”, do diretor paulista Clóvis Vieira.
97

Em 2005, lançou o livro “Arte da Animação: Técnica e Estética Através da História”.


A obra percorre do passado da animação até os anos futuros, onde a área será altamente
promissora e potencializada pelas tecnologias da computação gráfica.
Alberto Lucena Júnior coordena a produção das ilustrações de um atlas de anatomia
humana. Além disso, está em fase de estudos de temas para a produção de filmes
documentários sobre a Paraíba. É responsável pela elaboração do projeto de criação do
Bacharelado em Belas Artes da UFPB, com habilitações em artes 2D, artes 3D, cinema de
animação e multimídia.
É relevante citar que a animação é a atividade de atração visual mais intensa
relacionada à atenção, resultado de um longo processo perceptivo e de estudos das imagens,
pinturas e fotografias. Segundo Lucena (2002), a palavra “animação”, e outras a ela
relacionada, deriva do verbo latino animare (“dar vida a”), e só veio a ser utilizada para
descrever imagens em movimento, no século XX “, emergindo, dessa forma, uma nova
linguagem audiovisual cinematográfica.
A linguagem do cinema de animação cada vez mais utiliza novos recursos digitais e
efeitos especiais nos filmes. Tais recursos influenciam de diferentes maneiras audiovisuais,
sobretudo o cinema, um dos meios de comunicação que mais sofre transformações diante de
tantas invenções tecnológicas.
Ainda segundo Lucena (2002, p. 28), “A história da animação é particularmente
significativa na demonstração de como a relação entre técnica e estética na produção visual da
arte é indissolúvel e vital – simplesmente uma não existe sem a outra”.
A arte surgiu na Pré-História e, depois, no Egito antigo. Exemplos posteriores são as
pinturas de Leonardo Da Vinci com o seu desenho Proporções do corpo humano, que
representa um homem exibindo o dobro de seus membros. Marcel Duchamp, com sua pintura
Nu descendo uma escada, é outro pintor famoso, usa movimento em sua obra para representar
várias sequências de posições de um personagem, num único quadro.
Conforme diz Martin (2003, p. 13) “Noventa anos após a descoberta dos irmãos
Lumière, autores importantes na evolução do cinema, ninguém mais contesta seriamente que
o cinema seja uma arte”.
Os termos animação e animar originaram-se da ideia de dar alma ou vida a alguma
coisa. Embora aceitos universalmente, contêm uma imprecisão implícita, pois nem tudo que
tem vida se move (como a maioria dos vegetais), e nem tudo que se move tem vida própria
(como os planetas e corpos sólidos em queda livre). Desde já, cabe apontar a diferença entre
três conceitos, muitas vezes usados impropriamente como sinônimos: animação (arte de
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animar objetos e figuras estáticas, ou seja, desprovidas de movimento próprio); cinema de


animação (a tecnologia cinematográfica empregada como suporte para a animação) e desenho
animado (apenas uma, embora a mais conhecida, entre as inúmeras técnicas do cinema de
animação).
A animação também apresenta subdivisões, que são capazes de estabelecer métodos,
conceitos, sistemas, formas e linguagem dentro dessa nova tecnologia, despertando para o
mundo uma possibilidade de execução de um produto com uma riqueza técnica, estética e
animada, nos filmes.
Os filmes em geral podem ser classificados em gêneros ou categorias, como, por
exemplo, o cinema de animação. Dentro desses gêneros ou categorias, a animação pode ser
classificada em subtipos ou subgrupos, como: animação por recortes, animação tradicional -
desenhos animados, animação digital - computação gráfica, tinta sobre o papel, massa plástica
(Stop-Motion), objetos e/ou bonecos, tinta sobre vidro, sombras, substituição e deslocamento
(quadro a quadro), por areia, fotografias e tantos outros, ao sabor da imaginação dos
animadores.

3.3 Animação Tradicional ou Desenho Animado

A animação tradicional, por vezes, também chamada de animação por célula ou


animação desenhada a mão, é a mais velha e historicamente a mais popular forma de
animação. Nesta técnica de animação, cada quadro é desenhado à mão, sendo que, para a
realização de um desenho animado, é necessário preparar 24 fotogramas (ou frames, segundo
a terminologia mais atual).
Nas palavras de Lucena (2002, p. 41):
Caberá a um artista plástico inglês, o ilustrador James Stuart Blackton (que migrou
para os Estados Unidos aos 10 anos), a glória de ter realizado o primeiro desenho animado,
Humorous Phases of Funny Faces, em 1906. Antes, porém, esse mesmo artista (da mesma
forma que outros, como, Walter Booth, Segundo de Chomón, Edwin Porter, Anatole
Thiberville, Emile Cohl) teve de aperfeiçoar a técnica da substituição por parada de ação.
O desenho animado surge posteriormente ao nascimento das histórias em quadrinhos,
e, consequentemente, depois do cinema. Vários são os desenhos animados que têm
correspondência com as HQ, como, por exemplo, os desenhos da Walt Disney: Gato Félix,
Mickey, Tom e Jerry, Pernalonga, Pica-Pau, Zé Colmeia, Os Flinstons, entre outros.
HQ é uma sigla que representa histórias em quadrinhos e trata-se de uma forma de
99

arte que conjuga texto e imagens, com o objetivo de narrar histórias dos mais variados
gêneros e estilos. São, em geral, publicadas no formato de revistas, livros ou em tiras
publicadas em revistas e jornais.
De acordo com Didier (1994), “Os vínculos entre HQ e DA são até mais antigos, já
que alguns célebres desenhistas (Mc Cay, Cohl, Rabier) haviam trabalhado em desenho
animado e numerosos autores de HQ atuais vêm dos meios de animação”.
As histórias em quadrinhos, os desenhos animados e os filmes de animação em geral
são realizados segundo processos semelhantes, como é o caso dos desenhos no papel, que são
utilizados nas HQ e nos DA.
Em animação utilizam-se, basicamente, duas maneiras de trabalhar, a saber: a técnica
de animação, por deslocamento e animação por substituição.
No primeiro destes dois métodos, a animação por deslocamento, um objeto qualquer
(um recorte de cartolina, um boneco de massa plástica ou mesmo um punhado de tinta) é
deslocado quadro a quadro, seguindo uma trajetória bem-determinada ou outro critério
qualquer, definido pelo animador. O outro método é a animação por substituição, no qual as
fases sucessivas do movimento (desenhos em papel ou celuloide) são preparadas a priori na
prancheta do animador e substituídas, uma por uma, diante das lentes da câmera quadro a
quadro.

3.4 Animação Stop-Motion ou Massa Plástica

A animação por Stop-Motion é uma técnica inventada nos primórdios da história do


cinema e utilizada pela primeira vez, no clássico “The Humpty Dumpty Circus”, de Albert E.
Smith, realizado em 1898, em que um circo de bonecos ganhava vida diante da tela. A técnica
de animação Stop-Motion faz com que o animador trabalhe fotografando objetos, fotograma
por fotograma, ou seja, quadro a quadro. Entre um fotograma e outro, o animador muda um
pouco a posição dos objetos. Assim, quando o filme é projetado a 24 fotogramas por segundo,
tem-se a ilusão de que os objetos estão se movimentando. Esta é, portanto, uma típica técnica
de animação por deslocamento.
Esta ilusão de movimento se dá devido à persistência da retina, pois quando a retina
dos olhos está excitada pela luz, envia impulsos para o cérebro que, por sua vez, interpreta-os
como imagem. A partir dessa ilusão, foram criadas diversas técnicas para se fazer um filme de
animação. Deve ser notado que esse princípio aplica-se também ao cinema de ação ao vivo.
A animação Stop-Motion possibilita dar vida a variados objetos, como recortes,
100

bonecos, massa plástica, arames e mesmo atores vivos. Observem-se alguns exemplos de
animação em massa plástica - Stop-Motion:
Na animação por recortes, os personagens ou bonecos são criados, desenhados,
recortados e montados para que se possa movimentá-los.
Essa técnica não permite reproduzir os movimentos com perfeita verossimilhança, por
isso, na maioria das vezes, é necessária a utilização de recursos de estilização do movimento.
Uma das características da animação por recortes é a dos movimentos rápidos, com
grandes pausas. Isso acontece porque os personagens são desenhados em papel, em película,
pintados e recortados, em uma quantidade menor do que a necessária, para se deixar os
movimentos com a aparência real. Assim, para que a animação tenha movimentos
verossimilhantes, é necessário criar 24 desenhos ou fases distintas para um único segundo de
movimento.
Na filmagem de uma animação de recortes, utiliza-se uma mesa especial, chamada
truca, para que o material seja fotografado quadro a quadro, minuciosamente. Toda a
animação será construída ali, diretamente na mesa, com o auxílio de diversos dispositivos, os
quais podem ser utilizados para separar as diversas camadas da animação, assim como os
personagens, o cenário e os recortes.
Já na animação em massa plástica ou Stop-Motion, ou seja, com bonecos e arames -
objetos dotados de volume - os mesmos são dispostos em estúdio e envolvidos por cenários
construídos na mesma escala. A disposição da câmera e das luzes segue princípios
semelhantes aos empregados em filmes de ação ao vivo, como, por exemplo, os filmes de
animação com massa plástica: “A Noiva Cadáver (2005 - Tim Burton) e no curta-metragem
Dossiê Rê Bordosa (2008 - Cesar Cabral)”. No segundo capítulo desta pesquisa, ficarão mais
claras todas as etapas de desenvolvimento e execução de filmes segundo esta técnica de
animação.

3.5 Animação Digital

A animação digital, também conhecida como animação por computação gráfica, é


entendida hoje como uma das principais e a mais moderna técnica de animação. Trata-se da
construção de imagens em movimento por meio de computadores, segundo suas diferentes
6
modalidades: 2D e 3D . Esta última (3D) poderá futuramente vir a ser a sucessora digital da
animação por Stop-Motion, ameaçando a animação em massa plástica tradicional, já que a
101

animação por computador torna a construção dos movimentos mais prática, econômica e com
possibilidade de maior verossimilhança.
A técnica da computação gráfica envolve várias etapas nas quais as ferramentas de
trabalho deixam de ser o papel, o lápis e a tinta. Como nas outras técnicas, sucessivas imagens
são criadas, finalizadas e transferidas para um filme. Até se chegar à etapa de transferência
para um filme, passa-se pela modelagem (o processo de construção dos personagens), cenário
e objeto, no computador. Passada a etapa de modelagem, têm-se as etapas de rendering e a
animação.
O processo de modelagem desenvolve-se de várias formas, sendo o principal recurso a
utilizar o de polígonos (na maioria, triângulos e retângulos). Por meio da reunião desses
polígonos, montam-se espécies de grades, que serão a base estrutural do personagem, cenário
ou objeto essencial para o desenvolvimento da narrativa.
Após a modelagem, a superfície do personagem é virtualmente revestida com o
material adequado, durante a etapa de rendering. Nesta etapa, os programas podem simular
diversos materiais e aplicar-lhes as texturas necessárias, como se pode observar nos exemplos
a seguir:
O processo de rendering corresponde à composição de uma imagem, o que inclui a
iluminação, as sombras, as texturas, etc. O rendering pode ser entendido como o processo
digital que, por meios de programas, cria uma imagem, tornando- se, assim, o recurso que
transforma os tantos pixeis em uma imagem completa.
Em seguida, é feita a animação propriamente dita. O computador torna o processo de
animação mais fácil e rápido, pois, em muitos casos, o animador posiciona o personagem nos
pontos-chave do movimento, e o programa cria as posições intermediárias. Assim, o animador
beneficia-se dos programas de Pixeis, que são de elementos de imagem, sendo pix a
abreviatura em inglês para Picture. É o menor elemento num dispositivo de exibição (como,
por exemplo, um monitor), ao qual é possivel atribuir-se uma cor. De uma forma mais
simples, um pixel é o menor ponto que forma uma imagem digital, sendo que o conjunto de
milhares de pixels forma a imagem inteira.
Vale mencionar que uma das próximas evoluções esperadas da animação digital será a
da produção em alta qualidade de resolução dos movimentos, o que possibilita o
desenvolvimento do movimento sintético o mais próximo possível da realidade dos
movimentos reais dos humanos.
Os filmes de animação podem se classificar por seus enredos, como na literatura
romântica, que possui várias classificações, como o conto maravilhoso, infantil, de horror,
102

romântico e dramático. E entre essas classificações, a pesquisa terá como base o conto
maravilhoso proppiano, verificando se é possível aplicar a mesma teoria narrativa dos contos
maravilhosos de Propp aos filmes de Tim Burton. Segundo Lucena (2002, p.28), “A história
da animação é particularmente significativa na demonstração de como a relação entre técnica
e estética na produção visual da arte é indissolúvel e vital – simplesmente uma não existe sem
a outra”.
O cinema nasceu de várias inovações, que vão desde o domínio fotográfico até a
síntese do movimento, utilizando a persistência da retina, já empregada nos primitivos
brinquedos ópticos.
Conforme Machado,

A natureza exata do fenômeno ótico e/ou psicológico que permite ao cérebro


sintetizar o movimento a partir dos estímulos que atingem a visão é discutida por
alguns autores: “Mas o fenômeno da persistência da retina nada tem a ver com a
sintetização do movimento: ele constitui, aliás, um obstáculo à formação das
imagens animadas, pois tende a superpô-las na retina, misturando-as entre si. O que
salvou o cinema como aparato técnico foi a existência de um intervalo negro entre a
projeção de um fotograma e outro, intervalo esse que permitia atenuar a imagem
persistente que ficava retida pelos olhos. O fenômeno da persistência da retina
explica apenas uma coisa no cinema, que é o fato justamente de não vermos esse
intervalo negro. A síntese do movimento se explica por um fenômeno psíquico (e
não óptico ou fisiólogico) descoberto em 1912 por Wertheimer e ao qual ele deu o
nome de fenômeno phi: se dois estímulos são expostos aos olhos em diferentes
posições, um após o outro e com pequenos intervalos de tempo, os observadores
percebem um único estímulo que se move da posição primeira à segunda.
(MACHADO, 1997, p. 20).

Sabendo-se das potencialidades que tem a aplicação dos brinquedos ópticos no cinema
de animação, convém também levá-las em consideração. Dessa forma, da construção desses
brinquedos ópticos, passando pelas histórias em quadrinhos, pelos desenhos no papel, e
primitivas técnicas de animações, chega-se aos pequenos filmes animados.
O exame de atividades diversificadas, como a construção de aparelhos ópticos,
marionetes, desenhos sobre papel, desenhos para sequências de movimentos, pinturas e
demais objetos, permite criar uma visão de conjunto do desenvolvimento construtivo e
estético da animação. Assim, por intermédio da pesquisa com estes objetos (brinquedos
ópticos e desenhos), chega-se a uma visão mais clara sobre o surgimento do cinema animado.
Alguns exemplos de brinquedos ópticos inventados serão colocados, no decorrer da pesquisa,
para melhor expressar o seu processo de desenvolvimento e realização, destacando-se, assim,
sua importância para o cinema de animação.
O taumatroscópio inventado, entre 1820 e 1825, por William Fitton – é um disco com
uma imagem na frente e outra no verso, e um cordel em duas extremidades, cujo objetivo é
103

sobrepor as imagens como se fosse só uma, por meio da rotação do disco. Para isso, enrolam-
se os cordéis e a seguir puxam-se. Enquanto o disco roda, as imagens fundem-se, criando a
ilusão de ser apenas um desenho.
O fenaquistoscópio, inventado em 1928, por Joseph-Antoine Ferdinand Plateau, era
feito de dois discos: um com sequência de imagens pintadas em torno do eixo, outro com
espaços na mesma disposição. Estes se prendem um ao outro por meio de uma haste, através
de orifícios no meio dos discos. Quando os discos são girados, o observador vê as imagens em
movimento através dos espaços, o que permite a interrupção requerida pelo olho para
combiná-las corretamente.
O zootroscópio, inventado em 1834, por William George Horner, conhecido como
roda viva, era um brinquedo no qual os desenhos eram feitos em tiras de papel e montados
num tambor giratório, e por meio dos seus espaços se observava o movimento, seguindo o
mesmo princípio de montagem dos brinquedos anteriores.
O flipbook foi inventado em 1968 e ficou conhecido como livro mágico em português,
construído por intermédio de imagens ou fotografias montadas em ordem de movimento,
como num pequeno livro de histórias em quadrinhos. Quando as páginas são viradas
rapidamente, cria-se a ilusão de movimento dos desenhos. De acordo com Lucena (2002),

Pela sua praticidade e eficiência, ainda hoje se usa esse recurso ao se produzirem
filmes baseados em animação com desenhos – os animadores pioneiros foram
categóricos em apontá-lo como o brinquedo óptico que mais os inspirou. (LUCENA,
2002, p. 35)

O praxinoscópio foi um aparelho inventado, em 1877, por Émile Reynaud, o qual


introduziu muitos aperfeiçoamentos, por isso passaria a chamar-se Teatro Óptico. Mais tarde,
com a aplicação da lanterna mágica ao praxinoscópio, Émile Reynaud conseguiu projetar
perfeitamente a distância, desenhos animados ainda mais elaborados. As histórias contadas
eram muito simples, com uma duração entre 8 e 15 minutos. Os desenhos eram "incrustados"
numa forte tira de tela, para lhes dar mais consistência e flexibilidade, com perfurações para
facilitar o arrasto através de uma série de carretos.
A fita corria no sentido horizontal no projetor, um lampascópio (variante da lanterna
mágica), e era acionada manualmente a uma determinada velocidade. As imagens eram
projetadas a distância sobre uma pantalha enquadrada por décors fixos, com boa nitidez e sem
grande trepidação.
De acordo com Ceram:
104

Para projetar as imagens animadas sobre a tela, ele utilizava um “lampascópio” que
criava o fundo e uma lanterna mágica suplementar para projetar as fases do
movimento sobre a tela. A partir de 1892 ele pintava as imagens sobre tiras
transparentes e perfuradas de celuloide e as projetava por trás da tela, ocultando
assim, obviamente, o aparelho (CERAM, 1966, p. 207)

Estes brinquedos ópticos vieram a colaborar na descoberta e desenvolvimento da


técnica do registro do movimento e, consequentemente, com o cinema de animação. No caso,
o diretor, Tim Burton, sempre usa de diversas técnicas de animação e efeitos nonsense em
seus filmes, já são caraterísticas marcantes de seus filmes fantásticos. Assim, despertando o
interesse em investigar se a estrutura dos contos maravilhosos e sua aplicação aos filmes do
diretor Burton.
105

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada buscou responder às seguintes questões: podemos classificar os


filmes do diretor Tim Burton, como, de algum modo, continuadores do gênero maravilhoso,
na sua ordem discursiva, tal como Propp o entende? Se sim, em que medida a teoria
narratológica de Propp sobre o conto maravilhoso pode reinterpretar este tipo de cinema?
Tal estudo foi dividido da seguinte maneira: o estudo consiste em uma pesquisa
bibliográfica, que busca ambientar o leitor no que se refere à relação entre a teoria de Propp
com os filmes de Burton, apontando-lhe suas principais conexões, elementos, características e
relações existentes entre ambos.
A presente tese divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo busca apresentar o
diretor Tim Burton e o filme A Noiva Cadáver, o capítulo está destinado às questões que
envolvem a formação do diretor e uma apresentação biográfica deste. O principal
personagem, nos contos fantásticos, permanecendo sempre diferente em suas aparências,
idade, sexo, gênero de preocupação, estado civil e outros traços atributivos, durante o curso da
ação. Tem como objetivo criar uma interconexão entre a função do herói maravilhoso de
Propp com o herói fantástico de Burton.
O segundo capítulo da pesquisa tem como foco o teórico Vladimir Propp e a sua
teoria sobre o conto maravilhoso, formulados por Propp, destacando sua matriz linguística, o
contexto histórico em que foram elaborados, bem como os diálogos estabelecidos por teóricos
e críticos literários ligados aos conceitos proppianos aplicados, por conseguinte, à
compreensão de Tim Burton, à luz de Propp, na busca por uma interconexão entre a teoria
apontada por Propp e as obras audiovisuais apresentadas pelo diretor Tim Burton.
Conforme cita Propp, “No estudo do conto maravilhoso o que realmente importa é
saber o que fazem os personagens, Quem faz algo e como isso é feito já são perguntas para um
estudo complementar.” (PROPP, 2006, p. 21)
Até aí tudo bem. Mas afinal, o que essas obras apontadas no corpus da pesquisa têm
de relação e em comum com a teorioa de Propp? Em primeiro lugar, a aparência dos
protagonistas, bem como suas personalidades, são bem-semelhantes nas três obras. Em
Frankenweenie e A noiva cadáver, a semelhança fica ainda mais evidente, já que além de
serem fisicamente iguais, os dois se chamam Victor. Levanta-se uma hipótese de uma teoria
de que Jack seria Victor depois da morte. Em segundo lugar, o cachorro. Na primeira
animação, ou seja, no filme Frankenwiniee, o cachorro morre e é ressuscitado. Na segunda, no
filme A Noiva Cadáver, ao ir até o mundo dos mortos, Victor encontra seu cão que morreu. Já
106

em o Estranho mundo de Jack, o personagem vive cercado pelo seu cachorro. Além disso, os
animais possuem a mesma estrutura física. Assim, existindo uma interconexão entre alguns
dos personagens de ambas as obras do diretor Tim Burton.
Apesar de tantas especulações, cada filme se passa em uma época diferente, e isso é
perceptível pelos costumes e ações desenvolvidas dos personagens. Não faria muito sentido
todos formarem uma só história, a não ser que cada um aconteça em uma dimensão diferente,
ou seja, Victor existiria em três locais e épocas distintas, levando uma vida diferente em cada
uma. Ou até mesmo apresentando uma passagem de tempo invertida.
Essa hipótese é mais que uma teoria, mas pode ser que a semelhança entre os
protagonistas se dê por Burton sempre apresentar seu alter-ego em cada um de seus
personagens, afinal, essa é sua marca. Todos peculiares, com olheiras profundas, sempre
curiosos, incompreendidos, mas de boas intenções. E isso acontece também em alguns filmes,
como Edward mãos de tesoura.
Ademais, no segundo capítulo, tem o interesse de definir para o leitor o sentido de
refletir sobre a concepção do personagem, porque é por meio do traçado do caminho sobre as
perspectivas teóricas sobre a questão da personagem que se definirá o principal componente
da narrativa, no caso, o herói.
No terceiro capítulo, pretende-se descrever qual o processo narratológico do filme de
Tim Burton – A Noiva Cadáver (2005), e de que maneira possue alguma conexão com o
mundo maravilhoso de Propp. Também, pretende-se aprontar elementos e/ou ações dos
personagens burtoniano à luz dos personagens maravilhosos proppiano. Dessa forma, será
possível realizar uma conexão ou hibridismo entre o mundo de fantástico, de Tim Burton, e o
mundo maravilhoso, de Vladimir Propp.
O estudo de Propp é de uma importância e inovação na área, para o período em que
foi publicado, mas não deixa de ser uma pesquisa complexa, pois aborda uma quantidade
significativa de trinta e uma funções do texto. No entanto, este estudo se aplica apenas aos
contos maravilhosos. Assim, havendo uma necessidade de estudos mais aprofundados sobre o
conto na sua totalidade.
A pesquisa realizada foi apenas um passo para melhor conhecimento da interconexão
entre o mundo maravilhoso proppiano e as obras audiovisuais do diretor Tim Burton, que se
benefecia do uso do nonsense em seus filmes. Ademais, aponta-se um hibridismo técnico,
cultural, de elementos, caractesrísticas e gênero, no qual, tanto Vladimir Propp e Tim Burton,
utilizam dessas características como suporte para narrar e criar seus mundos reais e
imaginários. Assim, pode-se concluir que ambos possuem semelhanças significativas entre si.
107

Vale lembrar que é necessária a aplicação de novas pesquisas, com intuito de melhor
entender o desenvolvimento e o avanço do cinema de animação, efeito nonsense e dos contos
maravilhosos, no cinema como um todo.
108

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