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Este livro é para todas as pessoas confusas que já magoaram pessoas

incríveis.

E para o amor, que insiste em salvar-nos de nossas vidas medíocres.


POEMA INTRODUTÓRIO

ACASO

– Eu mereço ser amado


Me esforcei muito pra isso.

– Mas o amor não se merece


Ele é, ou não é.

– E o que eu posso fazer pra ele ser?

– Nada.
1
O Jantar

– Eu não escondi nada de você, Henrique! É um jantar


com o pessoal do trabalho – Maya tentava controlar a própria
voz para não falar alto ao telefone, pois ainda estava descendo o
elevador do prédio da Ivory.

– Não estou pedindo que me leve com você, Maya,


apenas não entendo por que você não me falou sobre isso antes
– A voz ao telefone respondeu.

Maya esperou a porta do elevador abrir e as três


pessoas que estavam com ela saírem. Andando devagar para se
afastar dos demais que se apressavam em retornar para suas
casas ao fim do expediente, respirou fundo antes de continuar:

– Preciso ir, estou atrasada. Depois nos falamos, amor –


E desligou, sem dar-lhe chance de resposta.

Maya e Henrique se conheceram na faculdade, oito


anos atrás. Os dois eram os únicos bolsistas do curso de
engenharia mecânica e não demorou muito para que se
aproximassem. Desde o princípio Maya fora galanteada por
Henrique que não escondia seu interesse amoroso na moça. Mas
ela estava focada. Num curso onde prevalecia o domínio
masculino ela precisava ser a melhor da turma. Então o
romance ficou para depois.
Somente ao terminar os cinco anos do curso Maya
cedeu aos encantos de Henrique, que não deixou de cortejá-la.

Henrique era um homem apaixonado, isso era


indiscutível. Mas para Maya era diferente. O relacionamento,
para ela, não se tratava de paixão. Ela sequer acreditava nesse
sentimento já que, no auge dos seus 27 anos, nunca havia se
apaixonado por alguém. Isso era irônico, já que costumava
fantasiar com os relacionamentos dos amigos e guardar dentro
de si um sonho vívido de amor verdadeiro. Mas a essa altura já
tinha desistido. Tinha se conformado com a ideia de que o amor
era isso: duas pessoas construindo uma vida juntas, sem nada de
romântico envolvido.

Começara a pensar nisso na adolescência, quando


passou a ver suas amigas desesperarem-se por amores não
correspondidos e términos trágicos. Ela nunca passara por nada
disso. Havia tido namorados, claro, e conseguira aproveitar bem
o tempo que viveu ao lado deles, mas nunca sentiu um terço do
que as amigas costumavam relatar: palpitações, nervosismo,
uma vontade incontrolável de estar na presença do outro. Aos
poucos, convenceu-se de que essa tal de paixão simplesmente
não aconteceria com ela.

Mas seria mentira dizer que ela planejara passar o resto


da vida sozinha, sem viva alma para acompanhá-la no findar
dos anos. Por isso, assim que terminou seus estudos e se viu
menos preocupada com sua vida profissional, deu uma chance
para o homem que a cortejava e que também despertava sua
admiração.

Dizer que Maya não gostava de Henrique também era


uma mentira. Ela o apreciava muitíssimo. Ele era inteligente,
bonito, educado e a tratava com respeito e carinho. Muitas
pessoas pelo mundo afora não têm nada disso em um parceiro,
então ela se sentia sortuda. Mas, apesar de dizer para si mesma
que estava satisfeita, insistia em evitar a companhia do
namorado no máximo de compromissos que podia. Por isso não
o convidara para aquele jantar, mesmo sabendo que devia. Ela
gostava da companhia dele, esse não era o problema. O
problema era que Henrique gostava de manifestar seu apreço
por ela tratando-a como um membro da realeza. Ela até sabia
lidar com isso em particular, mas em público era constrangedor,
pois não fazia ideia de como retribuir de forma convincente.

Maya sabia que estava agindo mal, pois percebia


desapontamento em Henrique toda vez que ela inventava algo
para não sair com ele. Mais tarde pensaria em uma maneira de
se redimir, mas precisava se apressar. Decidida a não perder
mais tempo, dirigiu até sua casa para que pudesse se arrumar e
assim que ficou pronta chamou um carro por aplicativo. Não foi
dirigindo porque planejava beber o quanto conseguisse, na
expectativa de esquecer que teriam uma longa discussão pela
frente quando se reencontrassem.

Vestida de um elegante vestido branco com decote


profundo e seu único par de Louboutin – que guardava para
ocasiões especiais – adentrou as portar do Barontine Restaurant.

Maya era uma mulher bonita. Tinha a pele branca como


leite, cabelos negros e compridos e um adorável par de olhos
castanhos. Não era do tipo que chamava a atenção à primeira
vista, mas que encantava aos que se devam a esforço de pousar
os olhos nela.

Ao ser direcionada à mesa reservada, encontrou quatro


das sete pessoas esperadas: Sabrina, Jorge, Igor e sua esposa.
Sabrina, sua colega de trabalho e amiga íntima, não fora
selecionada para o mais novo projeto da Ivory, como a maioria
ali, mas fizera questão de prestigiar os amigos e colegas. Maya
era grata por isso, já que a presença graciosa da ruiva tornava
qualquer ambiente mais leve.

Igor, por outro lado, era soberbo e arrogante. Maya,


Sabrina e muitos outros funcionários da Ivory o detestavam.
Sua presença só parecia ser apreciada por Jorge, seu melhor
amigo, que era muito mais agradável e gentil.

– Os outros ainda não chegaram? – Maya perguntou ao


sentar-se ao lado de Sabrina.

– Já estão chegando – Respondeu a amiga.

– Não trouxe seu namorado, Maya? – Atalhou Igor.

Maya, pega de surpresa, piscou algumas vezes,


boquiaberta. Já devia ter se acostumado com a falta de
delicadeza do colega de trabalho, mas simplesmente não
conseguia pensar numa resposta apropriada.

– Ah, olha só, o chefe chegou – Anunciou Sabrina,


quebrando o silêncio constrangedor.

Monteiro, o supervisor geral, chegara acompanhado de


Victor, o membro faltante da equipe.

Monteiro era um senhor muito elegante, divertido e


amável. Dotado de uma aparência privilegiada que ainda era
muito perceptível, apesar de já ter sido beijada pelo tempo. O
homem despertava atenção por onde passava. Geralmente,
qualquer um que ousasse caminhar ao seu lado era totalmente
ofuscado pelo charme do homem, mas nem mesmo a beleza de
Monteiro ofuscava o jovem que caminhava ao seu lado. Victor,
rapaz para o qual Monteiro havia escolhido ser uma espécie de
padrinho dentro da Ivory, era de longe o homem mais bonito do
restaurante.

Aproveitando o momento de distração, reação muito


comum em um grupo de pessoas quando Monteiro ou Victor se
aproximavam, Sabrina cutucou o braço de Maya. Se não
estivessem rodeados de outras pessoas, certamente ela também
diria "não olha agora, amiga, mas um deus grego está vindo em
nossa direção". Sabrina sempre fazia essa brincadeira. Em
resposta, Maya apenas revirou os olhos.

Sabrina costumava chamá-los de trindade divina – Igor,


Victor e Jorge. Jorge era o deus da gentileza, ela dizia, Victor o
deus da beleza e Igor o deus dos babacas. Em parte, Maya
concordava.

– Minhas queridas! – Monteiro as cumprimentou,


fazendo uma pequena reverência – Rapazes – Cumprimentou os
outros.

Aquela era uma noite de comemoração, e quando as


bebidas começaram a chegar não demorou para que se
soltassem e se divertissem.

Recentemente, a Ivory vendeu uma inovação para a Sea


Stars Cruzeiros. Tratava-se de um equipamento ultratecnológico
que implantado junto ao motor dos navios prometia reduzir de 8
a 12% o combustível usado em longas viagens. O equipamento
ainda não tinha sido patenteado, mas era informalmente
chamado de TechMarine.

Depois de meses de análise, o TechMarine foi instalado


em um dos cruzeiros, a título de teste. Se tudo ocorresse bem as
empresas fechariam um contrato multimilionário. Para garantir
o sucesso da operação, a Ivory enviaria quatro dos seus
melhores engenheiros para a primeira viagem feita com o
protótipo. Uma viagem de 60 dias à bordo do Pollux Stars, onde
partiriam do Rio de Janeiro, dariam a volta pela América do
Sul, cruzando o Canal do Panamá, e desembarcariam em
Savona, Itália, depois de dezenas de paradas.

Para Monteiro, aquela seria apenas mais uma viagem de


trabalho, mas para os outros seriam os melhores dias de
trabalho de suas vidas, onde poderiam experimentar uma
amostra de férias luxuosas que não tinham a menor
possibilidade de pagar.
– Então, Henrique não vem? – Perguntou Sabrina,
quando a conversa da mesa tornou-se alta o suficiente para
esconder seu sussurro.

Maya respondeu balançando a cabeça negativamente.

Sabrina bufou.

– Meio estranho ele não querer vir ao seu último jantar


antes de partir.

– Na verdade, eu não o chamei.

– O quê? Por quê? – Sabrina não tentou esconder a


confusão em que se encontrava – Eu não entendo...

Maya permaneceu calada, e quando ela pensou em


perguntar uma última vez se algo havia acontecido, o garçom
trouxe as entradas. Logo a mesa inteira começou a participar de
uma só conversa, em meio às taças de vinho bourbon, e Sabrina
desistiu de perguntar. Alguns minutos de conversa depois,
Monteiro pediu para dizer algumas palavras.

– Eu mesmo fiz questão de presentear todos vocês com


esse jantar para que tivessem uma oportunidade de aproveitar a
noite antes da viagem. Espero que estejam se divertindo. Se
estão aqui é porque são os melhores, tenho orgulho de tê-los na
minha equipe e eu tenho certeza de que no fim desses 60 dias,
trarão boas notícias para a Ivory.

Todos levantaram suas taças para brindar e voltaram a


beber.

– E você, minha querida, só não vai com eles porque a


Ivory colapsaria sem você – Completou o velho, voltando-se
para Sabrina.
– Que os deuses me defendam! – A moça ergueu uma
das mãos para o teto – Eu prefiro ser enterrada viva a passar 60
dias em alto-mar. Vocês já leram Moby Dick?!

– Não diga uma coisa dessas – Monteiro gargalhava.

– Estou falando sério, eu tenho medo até de ir à praia.

Maya adorava observar as interações de Monteiro e


Sabrina. Ele era realmente um homem digno e respeitoso, e
costumava tratá-la com um afeto quase paternal.

Enquanto pensava sobre isso, Maya passeava os olhos


pelos colegas do outro lado da mesa. Jorge, fazendo jus ao seu
título, ajudava Évila com o guardanapo que a mesma havia
deixado cair no chão. O rapaz era o mais velho entre os três,
tinha uma pele dourada e olhos castanhos. Sua feição
transpareceria a gentileza da sua alma. Évila compartilhava uma
beleza parecida com a do marido. Ambos tinham a pele negra
retinta e rostos perfeitamente simétricos. Poderiam ser modelos,
Maya pensou. Pena que a falta de noção e arrogância de Igor
tornava-o muito menos atraente para qualquer um que se
dispusesse a conversar com ele por mais de dez minutos.

Victor, por outro lado, era belo não só na aparência


física – e que aparência física! –, ele era alto, moreno e dotado
do par de olhos azuis e queixo quadrado mais sexys que Maya
já havia visto. Além disso sua paixão por esportes lhe fornecia
músculos nos lugares certos. Ele também era educado e gentil,
mas seu principal traço de personalidade era a descontração. Ele
era divertido e tinha uma facilidade absurda em fazer as pessoas
rirem com suas piadas dúbias. Mas tudo isso, claro,
acompanhava uma fama de libertino – era o que diziam as más
línguas.

Apesar de reconhecer a beleza de seus colegas de


trabalho, Maya sentia apenas empatia – ou nojo, no caso de
Igor – por eles. Não havia para ela nenhuma razão para se
aproximar pessoalmente dos colegas homens da Ivory. Igor era
prepotente e arrogante, Jorge era doce, porém entediante, e no
fundo julgava Victor um tanto quanto superficial. Passar o
expediente ao lado deles podia ser divertido, mas qualquer coisa
mais que isso seria um pesadelo.

Algumas garrafas de vinho depois, as pessoas


começaram a se retirar. Sabrina voltou para casa com Jorge,
para a total surpresa de Maya, que anotou em seu bloquinho de
notas mental que deveria perguntar a ela sobre isso depois. E
antes que ela solicitasse um carro para ir embora, foi interpelada
por Victor que se aproximou dela sem que ela percebesse.

– Você vai demorar um pouco para achar um carro


disponível a essa hora, posso te levar em casa – Convidou-a.

– Não foi você quem secou a última garrafa?

– Não sei para onde você estava olhando, mas eu não


bebi uma gota de álcool.

Maya tentou lembrar-se se o que Victor dizia era


verdade, mas deu-se conta de que não havia prestado atenção
em qual bebida o colega havia tomado. Sem pensar muito,
aceitou.

– Mal consigo acreditar que a exatamente quarenta e


oito horas estaremos em alto-mar – Victor disse. Ele não
parecia só querer quebrar o silêncio, parecia apreensivo.

– Eu também não acredito. Parece tão...

– Irreal – Concluíram juntos.

– É, isso – Maya concordou, sorrindo.


– Esse é provavelmente o momento mais importante da
minha carreira e eu só consigo pensar em como deve ser olhar
para todas as direções e só ver o mar.

Maya havia estado muito nervosa com a viagem, mas


não pelo motivo citado por Victor. Sua preocupação era com o
namorado perfeito que insistiria em mandar mensagem todos os
dias e com a sensação sufocante que seu relacionamento
começara a lhe despertar. Ouvir o comentário de Victor a fez
desligar-se por alguns segundos e imaginar a vista do mar.

– Deve ser lindo – Concluiu.

– E assustador – Completou ele.

– Você está dando muita atenção para as histórias de


Sabrina – Disse rindo.

– Gosto das histórias dela. Ela não tem vergonha de


expor seus medos e faz isso de maneira cômica.

Estavam passando por uma rua estreita que estava


bastante escura. Maya virou-se para Victor, detectando uma
expressão pensativa que a surpreendeu. Victor não costumava
ser o cara que refletia sobre as coisas, ele era o cara que fazia
piada sobre elas. E naquele momento ele parecia estar
processando pensamentos tão barulhentos que ela quase podia
ouvi-los.

No milésimo de segundo em que ela percebeu que


talvez estivesse o constrangendo ao fitá-lo daquela maneira, o
telefone dele tocou.

Ele apertou um botão no painel do carro, atendendo a


ligação em viva-voz para não soltar o volante.

– Onde está você, Victor? Preciso entregar o material


para o comprador e você sumiu! – Disse uma voz impaciente
que mal podia ser ouvida pois um barulho de pessoas
conversando e música alta se misturavam à sua voz.

– Puta, merda! Eu estou indo, chego aí em dez minutos.


Enrola ele.

– Está bem, mas não demora, cara.

Enquanto apertava novamente o botão, terminando a


ligação, pediu para passarem em um lugar antes de deixá-la em
sua casa.

– Preciso entregar um pen-drive para um amigo, você


se importaria se eu passasse lá antes de te deixar em casa? Juro
que não vai demorar.

– Tudo bem, não tem problema.

Cerca de sete minutos depois, pararam diante de uma


das maiores boates da cidade. Maya nunca havia estado ali
antes, mas já tinha ouvido falar do lugar.

– Vem comigo, eu só preciso encontrar ele. Vou te


levar até o bar para que não precise esperar dentro do carro.
Não sei se é seguro.

Victor e Maya nunca saíram sem os outros funcionários


da Ivory presentes. Apesar de ser frequente os encontros em
grupo, jamais tinham ficado a sós. Ela o seguiu boate adentro e
ficou ao lado do bar, onde ele pediu para ela esperá-lo, depois
de dizer algo para o barman que parecia conhecê-lo.

Cerca de dez minutos depois, decidiu verificar se


Sabrina tinha chegado bem e, quem sabe, aproveitar para
perguntar o que estava acontecendo entre ela e Jorge já que ela
sempre voltava de carona com Monteiro. Mas, ao invés disso,
se deparou com três ligações perdidas e algumas mensagens de
Henrique. A última podia ser lida, escrita em caixa alta "ONDE
ESTÁ VOCÊ, MAYA???".

Abriu as mensagens que diziam o quanto ele estava


preocupado por não ter conseguido falar com ela e avisando que
iria comemorar o aniversário do amigo Daniel. Maya sentiu um
arrepio na coluna ao lembrar-se de Henrique falando com ela
sobre esse aniversário e convidando-a. Ela negou, claro, pois
teria o jantar. E ela havia negado com a desculpa de que não
gosta de boates, o que era verdade. E que, mais precisamente,
não gostava daquela boate. Estava muito enrascada.

Enquanto analisava a multidão dançante, não se


surpreendeu ao ver os rostos conhecidos de Henrique e Daniel,
depois de alguns minutos de procura. Aquilo não podia estar
acontecendo. Se Henrique a visse ali, não haveria desculpa que
pudesse dar para acalmá-lo, principalmente depois de não tê-lo
convidado para o jantar. Precisava sair dali antes que fosse vista
ou estaria perdida.

Ao virar-se de costas para voltar para o carro esbarrou


na parede musculosa que era o peito de Victor.

– Calma, o que tá rolando? Viu um fantasma? –


Perguntou o rapaz ao deparar-se com a palidez de Maya.

O ambiente estava barulhento e agitado. Maya precisou


gritar para ser ouvida.

– Eu preciso sair daqui!

– Precisa fazer xixi?

– Não! – Ela gritou mais alto, tentando disfarçadamente


encontrar Henrique – Vem, vem, vem! – Agarrou o braço de
Victor e tentou arrastá-lo para longe quando viu que Henrique e
Daniel estavam indo em direção ao bar. Estavam na companhia
de mais pessoas, algumas já conhecidas por Maya por serem
amigas de Henrique, e todas estavam indo pegar mais bebidas.

Maya tentou desesperadamente achar espaço no meio


das pessoas para sair dali, mas haviam muitas pessoas e mesas
ao redor do bar. Além de que ela tinha um homem com três
vezes seu tamanho a acompanhando. Foi ao pensar nisso que
sua mente se iluminou.

– Vou te pedir uma coisa estranha, por favor não me


pede pra explicar agora – Ela disse, dando a volta ao redor de
Victor, ficando atrás dele.

– Mas o que você...

Antes de Victor terminar sua pergunta, Maya envolveu


seus braços nos ombros dele, escondendo o rosto no pescoço do
rapaz.

– Finge que está me beijando.

Victor demorou para responder qualquer coisa, ficando


totalmente imóvel. Então Maya pegou uma das mãos dele e
enlaçou sua própria cintura.

– Por favor, só finge.

Mesmo sem entender o que estava acontecendo, Victor


obedeceu. O homem que geralmente é confiante e brincalhão
estava claramente constrangido. Ele sabia que Maya namorava,
a moça deixara mais que claro para todo mundo. Mas ali estava
ela, pendurada em seu pescoço.

O contato íntimo e inadequado entre ambos fez Maya


sentir-se nervosa. De onde estava, podia até mesmo sentir o
perfume fresco que ele usava e que ela nunca havia notado. E
embora também se sentisse envergonhada, precisava continuar.
– Você pode me explicar o que está acontecendo? –
Victor ousou perguntar depois de alguns segundos,
aproximando sua boca do ouvido de Maya para que ela
conseguisse ouvi-lo em meio ao som alto.

– Ele está aqui – Foi a resposta dela.

– Ele quem?

Ela não respondeu, ao passo que ele discretamente olhou à sua


volta.

– Está bem, vem comigo.

Victor a guiou em direção ao lado de fora na boate,


servindo como proteção entre o alcance visual de Henrique.
Depois de um tempo considerável, conseguiram chegar à saída.

– Era o seu namorado? – Ele perguntou, mesmo


sabendo a resposta, quando já estavam dentro do carro. Maya
não respondeu – Vocês terminaram? – Tentou perguntar
novamente, na expectativa de entender o que tinha acontecido e
satisfazer a própria curiosidade.

– Não! – Ela irrompeu – Quer dizer, não – Disse mais


calma.

– Desculpe-me, estou sendo invasivo.

– Não precisa se desculpar. É só que, é uma situação


complicada e não quero falar sobre isso.

– Como quiser. Posso muito bem fingir que nada


aconteceu, até porque espero que as coisas não fiquem
estranhas entre nós já que você terá de ver minha cara pelos
próximos dois meses – Tentou fazê-la rir, o que quase
funcionou.
– Não se preocupe com isso.

Passaram o restante da viagem em silêncio. Maya


questionava-se se Henrique a havia visto e Victor tentava
entender o que tinha se passado na boate.

– Vai passar a noite sozinha? – Victor a perguntou,


assim que estacionou em frente à casa dela. Maya, ao ouvir a
pergunta peculiar, não conseguiu esconder a expressão
confusa – Ah, não, eu não quis dizer que... não estou
sugerindo... – Ele pigarreou – Só estou preocupado com você.

Maya acabou gargalhando do constrangimento de


Victor. Suas bochechas ficavam vermelhas como pimenta
quando ele estava envergonhado.

– Eu vou ficar bem. Boa noite, Victor. E, obrigada pela


carona – E despediu-se dele com um beijo na bochecha, como
sempre fazia com os amigos. Mas, desta vez, o beijo lhe
pareceu um tanto quanto inadequado.

– Boa noite.

Maya se jogou na cama, sentindo-se o pior ser humano


da terra. Parte dela pensava em terminar seu namoro quase
todos os dias. Seu amigo, Thomás, vivia lhe dizendo que não
fazia sentido estar num relacionamento sem amor. Acontece
que Maya achava que aquilo era amor. Estavam bem,
compartilhavam planos para o futuro, apreciavam a presença
um do outro e ela não tinha a menor intenção de conhecer outra
pessoa. Mas outra parte dela dizia que Henrique merecia
alguém que conseguisse amá-lo com toda a intensidade que ele
a amava, e que ela também merecia sentir isso por alguém.

Mas Maya costumava ignorar esses pensamentos, pelo


menos até muito recentemente. Ela estava feliz, e quando
envelhecesse ao lado de Henrique não se sentiria arrependida de
sua escolha. Mas, nas últimas semanas, estava pensando cada
vez mais em um término. Talvez porque quanto mais ela
percebia que Henrique era um homem incrível, mais achava que
estava estragando a vida dele.

Antes de dormir, ligou para seu melhor amigo.

– Como é que é? Você não o chamou para o jantar? –


Thomás perguntou logo após o questionamento sobre a
noite – Gata, esse relacionamento já passou da data de validade
e se você não perceber isso logo vai acabar com uma
intoxicação alimentar.

Maya não conseguiu segurar a risada, embora não


quisesse concordar com o amigo.

– Essa nem é a pior parte. Tive que me esconder dele.

– Como assim?

– Voltei de carona com o Victor e ele passou na boate


Queen para entregar algo para um amigo. Henrique estava lá
com o Daniel. Eu tinha esquecido completamente.

– Ah, mon chérie, você não consegue enxergar o


problema disso, não é? Você está tão perdida, estrelinha...

Maya não respondeu; era exatamente assim que se


sentia.

– Não ficarei com você esta noite porque estou com o


João, mas amanhã nós passaremos o dia juntinhos, está bem?

– Vou aceitar como uma promessa.

Maya pensou que teria dificuldade para dormir, mas o


álcool a ajudou nisso.
2
Pollux Stars

Como prometido, Thomás bateu à porta da casa de


Maya nas primeiras horas da manhã.

– Tenho apenas um aviso para essa despedida, mon


cherie: não me faça chorar – Disse Thomás, quase chorando.

– Não há motivos para isso – Maya emendou, rindo da


reação do amigo, ao ver suas malas jogadas pela sala – A não
ser que seja de alegria por sua amiga estar prestes a partir numa
viagem tão cara que, se tivesse que pagar, teria que vender três
rins.

– Três? Mas você só tem dois e eles nem funcionam


direito.

– Exatamente – Gargalharam juntos.

– Você está nervosa, estrelinha?

– Um pouco – Assumiu, sentando-se no sofá – Eu


estudei duro para entrar na Ivory, você sabe.

– Claro que sei. Você conseguiu o impossível.

– Exatamente. E esse projeto é muito importante. Ter


sido selecionada para acompanhar o processo de implantação
foi uma oportunidade única. Se tudo der certo, estarei
garantindo minha permanência na Ivory por mais muitos anos e
reafirmando minha qualificação.

– Mas?

– Mas se der errado, há uma probabilidade enorme de


eu ser demitida.

– Você acha que isso pode acontecer?

– Claro. Se esse projeto dar errado os sócios irão querer


que alguém seja punido. Entre eu e mais três homens, quem
você acha que será taxado como incompetente?

– Ah, mon cherie – Thomás segurou sua mão – Vamos


tentar não pensar nisso. Sei que você fará o seu trabalho melhor
do que qualquer um lá, porque é o que você faz. Você se
destaca!

Maya se permitiu rir das gracinhas de Thomás. Por


mais que a possibilidade do fracasso a assombrasse, queria
mesmo focar nos pontos positivos. E, apesar de toda a
responsabilidade que a viagem carregava, seria incrível passar
60 dias em um cruzeiro de luxo.

– Bom, vamos organizar essa bagunça – Thomás tomou


a frente em recolher algumas peças de roupa que caíam para
fora das malas – Até porque você vai pegar o avião hoje à noite.

Maya estava grata. E com a ajuda de Thomás descobriu


que estava levando muita coisa inútil e deixando de lado coisas
essenciais – como a própria escova de dentes.

– Se você esquecesse teria como comprar lá, não é?

– Teria, sim. Mas provavelmente custaria um quarto


rim.
No meio da conversa em que ambos tentavam adivinhar
o possível preço das peças de roupa e acessórios que eram
vendidos nas lojas do cruzeiro, a campainha da casa de Maya
tocou. Antes que ela levantasse para abrir, Henrique adentrou a
sala.

– Graças a Deus você está bem – Disse, voltando-se


para Maya – Posso conversar com você um instante?

Maya trocou um último olhar com Thomás antes de ir


atrás do namorado na varanda. O olhar de Thomás dizia "por
favor, acaba logo com isso".

– Me desculpe por ontem, eu...

– Não precisa inventar nenhuma desculpa, Maya –


Henrique a interrompeu – Que horas você chegou ontem?

– Pouco depois da meia-noite – Ela respondeu com a


voz baixa.

– Viu que eu te enviei mensagens e liguei?

Maya pensou em mentir, dizer que chegara bêbada e


acabou não notando, mas soube que seu olhar a denunciou
quando Henrique balançou a cabeça negativamente e deu um
passo para traz.

– O que está acontecendo, Maya?

Henrique estava sendo o mais calmo que conseguia, ela


sabia. Maya sentiu-se imediatamente culpada por ser a razão da
frustração dele. Mas mais que culpada estava triste, por
perceber que não saberia responder sua pergunta e que talvez
não conseguisse fazer isso nem para ela mesma.

– Nada – Foi o que saiu de seus lábios.


– Você está saindo com outra pessoa? – Perguntou
abruptamente.

– Não! Por Deus, não!

– Então você tem vergonha de mim?

– Também não! De onde você tirou isso?

Ao longe, Thomás começava a ouvir as vozes se


exaltando.

– Eu não sei, Maya! Me diz você! – A voz dele era


desesperada, porém ainda carinhosa. Henrique era incapaz de
ser grosseiro com ela, mesmo com o coração partido – Você
não gosta de sair comigo, recusa meus convites e sempre que
vai sair faz questão de esconder de mim. Eu só quero entender o
que está acontecendo – Ele se aproximou dela, tocando seu
braço.

– Eu não escondi de você – Disse Maya, tentando


amenizar toda a situação.

Henrique lentamente retirou sua mão de sobre o braço


dela e, com o olhar temeroso transformando-se em um olhar
decepcionado, respondeu:

– Você está mentindo. De novo.

Maya não soube o que responder novamente, sentia-se


encurralada.

Henrique esperou alguns segundos, no que Maya sabia


ser uma chance, mas quando percebeu que Maya não diria nada,
continuou:

– Você quer terminar?


– Não! Não, Henrique! Não é nada disso!

– Então o que é? – O rapaz estava à beira de derramar


as primeiras lágrimas – Eu amo você, Maya. E eu quero me
casar com você e construir uma família. Mas preciso saber se é
o que você quer também.

As palavras dele acertaram ela como um soco no


estômago. Ela precisou de meio minuto para responder, pois um
choro amargurado formara-se em sua garganta, a impedindo de
pronunciar qualquer som.

– Eu também quero – Disse em meio às lágrimas, ao


passo que foi imediatamente abraçada por Henrique.

Era verdade. Maya queria. Ela queria se casar com


Henrique e dar à luz aos filhos dele. Ela queria sair para jantar
com ele aos finais de semana e segurar sua mão na formatura
das crianças. E também era verdade que ela o amava. Mas,
céus, como poderia explicar que o amava, mas não era
apaixonada por ele? Ela o amava por ser um homem bom, por
seu caráter inquestionável, por sua gentileza e delicadeza. E ela
queria casar-se com ele por causa disso. Porque era certo.
Porque era bom. Porque era conveniente. Mas nenhum tipo de
sentimento incontrolável tomava posse dela ao estar na
presença dele, ao ouvir sua voz, sentir o toque dos seus lábios
ou de sua mão atrevida.

E ela passou tanto tempo achando que isso era


suficiente, que não podia desistir de tudo agora. Ela havia
iniciado o relacionamento sabendo exatamente qual sobrenome
estaria em sua lápide quando morresse. Se satisfez com a ideia
de um sentimento calmo e morno, que jamais chegasse a pegar
fogo, mas também não a deixasse passar frio. Mas o que a
torturava era saber que para ele era diferente. Que sua pupila
dilatava ao vê-la, que ele não podia resistir em tocá-la quando a
via, que seu corpo e mente sentiam abstinência com a distância.
E ela queria retribuir. Ela queria mesmo.
Henrique continuou a abraçando, enquanto as lágrimas
de Maya tornavam-se um soluço. Ela estava tão confusa e
perdida, não podia abrir mão daquela sensação de segurança.
Não podia abrir mão dele.

– Querida – Ele começou, enquanto acariciava a cabeça


dela – Não quero que se preocupe antes da viagem. Sei o quanto
é importante. Vá, faça o seu melhor e divirta-se tanto quanto
possível. Quando você voltar, nós resolvemos

Ela limitou-se a secar as lágrimas e concordar com a


cabeça.

Quando ela voltou, com o nariz vermelho e olhos


inchados, Thomás soube que nada havia mudado. Parte dele
sempre achou que quando terminassem, quando ela finalmente
entendesse que não estava feliz, não iria chorar.

Henrique passou o dia com os dois, ajudou Maya com


os preparativos para a viagem e preparou filé wellington para
almoçarem. Ele era um ótimo cozinheiro. Maya se acalmou e
antes da hora de viajar sentia-se menos angustiada. Sentiu a
falta de Sabrina, mas enquanto ela estava folgando para
preparar-se para a viagem, a amiga estava trabalhando, então
conversaram apenas por mensagens.

Henrique levou Maya e suas malas para o aeroporto.


Thomás os acompanhou. Lá ela encontrou Igor, Jorge, Victor e
Monteiro. A esposa de Igor também estava lá, chorosa pela
partida do marido.

– Igor, não esqueça de ligar toda noite antes de dormir


– Ela o advertiu. Igor ficou envergonhado e respondeu algo tão
baixo que ninguém além dela conseguiu ouvir.

– Não quero saber se seus amigos estão aqui – Ela


respondeu, dessa vez sendo ouvida por todos.
Enquanto Maya segurava a risada, ouviu Victor
comentar:

– Aposto que ela tem que ter mais cuidado com ele do
que com o filho deles.

Desta vez, ela não conseguiu segurar a risada, e teve


que tossir para disfarçar. Jorge perguntou se ela precisava de
um lencinho.

– Não, eu estou bem, obrigada.

Não demorou até chegar a hora de embarcarem. Maya


despediu-se de Thomás que secou algumas lágrimas enquanto a
culpava por "estar fazendo isso".

– Sentirei sua falta – Henrique sussurrou em seu


ouvido, quando a abraçou.

Maya olhou em seus olhos e, sem dizer palavra, beijou-


o.

Henrique a enlaçou da maneira menos vulgar que


conseguiu, pois Maya sabia que a vontade dele era de levá-la
até o banheiro do aeroporto e despedir-se de uma maneira mais
privada. Mas eles estavam em público, então ele manteve o
pudor. Ela podia sentir o desejo dele a atingindo através do
calor do corpo dele ao encostar no seu. E ela amava seu beijo,
mas seu corpo mantinha a temperatura normal.

– Eu amo você – Ele disse, quando ela se soltou de seu


abraço e pegou sua mala de mão.

– Eu também amo você.

A viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro seria curta,


então ninguém planejava cair no sono. Jorge e Igor sentaram
lado à lado, enquanto Maya e Victor sentaram juntos e
Monteiro atrás deles, ao lado de uma mulher com bebê de colo.

Ninguém estava conversando, mas em algum momento


o bebê atrás de Maya começou a chorar. A mãe tentava acalmá-
lo, mas a maioria dos esforços era em vão. Maya ficou
paralisada, com medo de se mexer e parecer impaciente ou
desconfortável, deixando a mãe ainda mais constrangida.
Apesar da paciência e esforço da mãe, o bebê não parou de
chorar. O avião inteiro podia ouvir.

– Era só dar logo um remédio para dormir e acabar com


esse inferno – Comentou Igor, para si mesmo, mas
suficientemente alto para ser ouvido por Maya e Victor e
possivelmente pela mãe do bebê.

Jorge olhara para Igor tão indignado que Maya pôde


reparar nas veias em suas têmporas, mas antes que ele dissesse
algo, Victor perguntou:

– É o que você faz com seu filho quando ele chora à


noite?

– Meu filho não faria um escândalo desse – Atalhou


Igor, ao passo que Jorge superou sua surpresa e o repreendeu.

– Igor menos, por favor.

– Ele deve ter desistido de esperar ajuda do pai – Victor


acrescentou desafiadoramente.

Maya nunca havia visto Victor ou Jorge rebaterem as


falas estúpidas de Igor, mas aquilo lhe trouxe uma satisfação
imensa.

– Vocês poderiam se comportar como adultos? –


Monteiro perguntou, aproximando o rosto da poltrona de
Victor.
Todos olharam para Igor, querendo saber se ele
obedeceria a Monteiro ou daria mais uma resposta afiada à
Victor. Quando Igor colocou seus fones de ouvido, Victor e
Maya deram um risinho, quase ao mesmo tempo.

– Serão longos dois meses – Comentou Victor, para


apenas Maya ouvir.

– Já estou com medo – Ela riu.

O resto da viagem seguiu tranquilamente, já que em


algum momento o bebê se acalmou e adormeceu aos cuidados
da mãe. Além de que a trindade divina parou de trocar farpas
entre si.

Chegando no Rio, todos foram juntos para o hotel em


que ficariam hospedados até entrarem no Pollux Stars para
partir às 17:00h. Maya se permitiu dormir profundamente por
mais tempo que o de costume. Não desfez suas malas, tirou
apenas o necessário para passar a noite e foi junto com os
outros para o jantar no hotel. Igor não disse nenhuma bobagem,
para a felicidade de todos, pois estava de boca cheia quase todo
o tempo.

Almoçaram juntos no dia seguinte também. Maya se


sentia confortável na presença deles, apesar de ter de segurar o
ímpeto de socar o rosto bonito de Igor diversas vezes. Percebeu
logo que esse desejo era compartilhado pelos outros. Sentia a
falta de Thomás e de Sabrina sempre que estava sozinha e toda
vez que pensava em Henrique sentia um aperto no peito. Tinha
a esperança de, talvez, com a distância proporcionada pela
viagem, ser surpreendida com uma saudade absurda, de derreter
os ossos, e de repente flagrar-se queimando de paixão. Mas
ainda era muito cedo para isso.

Finalmente chegou o momento de embarcarem no


cruzeiro. O Pollux Stars era muito maior do que Maya poderia
ter imaginado. Era uma cidade flutuante, pensou.
– Uau! – Soltou ela.

– Eu poderia facilmente lamber o casco desse navio de


tanto tesão que estou sentindo por ele agora – Comentou Victor.

Maya, pega de surpresa por aquilo, gargalhou alto.

– Obrigada por isso, agora a imagem não vai sair da


minha cabeça.

Victor dirigiu a ela um de seus sorrisos tortos, típicos


de quando ele faz alguma gracinha.

– Se quiser se juntar a nós, aceitamos um ménage à


trois – Piscou pra ela e seguiu os outros que se encaminhavam
para suas cabines.

Suas malas foram recolhidas por funcionários do Pollux


e os passageiros puderam observar o cruzeiro zarpar. Foi um
pouco mais demorado do que Maya esperava que fosse.

Logo em seguida, os passageiros foram levados a


participar da reunião de segurança, onde informações
importantes sobre a estadia no Cruzeiro foram passadas e foram
convidados para o primeiro jantar à bordo do cruzeiro.
Sentaram-se na mesma mesa, no Restaurante Samsara. Maya
não estava com muita fome, pois havia comido bastante no
almoço e comido alguns biscoitos enquanto esperava a hora de
zarpar, para amenizar a ansiedade. No entanto, seu apetite abriu
imediatamente assim que chegou o primeiro prato. O cheiro, as
cores, texturas e sabores faziam amor na boca dela, que se viu
pensando que nunca havia comido algo tão bom em toda sua
vida. E olha que ela tinha Henrique como namorado, e ele sabia
fazer um show na cozinha.

No meio do jantar, Monteiro recebeu uma ligação e se


afastou para atender. Em seguida chamou um dos funcionários
de canto e desatou a conversar.
– É agora que a gente descobre que a Ivory não pagou
por nossas passagens e teremos de voltar nadando – Soltou
Victor.

– Eu não sei nadar – Emendou Jorge, com expressão


séria, o que fez os outros caírem na gargalhada.

– Como você pode ter a idade que tem e não saber


nadar? – Perguntou Igor.

– Como pode ter a idade que tem e não saber que é um


idiota? – Maya sussurrou. Achou que ninguém tinha ouvido,
mas Victor encostou o joelho no dela e, num sussurro que
arrepiou os pelos de seu pescoço, disse:

– Eu ouvi isso.

– Hei, o que vocês estão fofocando? – Interviu Igor.

– Estávamos dizendo que podemos usar Jorge para


distrair os tubarões enquanto voltamos.

– Eu não disse isso! – Maya soltou, temerosa de


ofender Jorge de alguma maneira.

– Relaxa, eu sei que você jamais diria algo assim. Por


outro lado... – Olhou desafiadoramente para Victor que
respondeu com um sorriso de menino.

– Mas, sério, tem alguma coisa errada nisso – Igor


insistiu, apontando com um movimento de cabeça para
Monteiro, que estava conversando com três funcionários agora.

– Foi bom enquanto durou – Victor beijou os talheres


como se estivesse se despedindo deles.

Enquanto todos riam, Monteiro retornou. A face do


homem denunciava que algo ruim tinha acontecido.
– Então, o que houve? – Perguntou Jorge, após
esperarem por alguns segundos e Monteiro manter-se calado.

– Nada demais. Reservaram os quartos errados.

– Como é?! – Os quatro estavam confusos.

– Deveriam ter reservado uma cabine externa para mim,


uma cabine interna com três lugares para vocês e uma cabine
interna para Maya.

– E o que reservaram? – Maya perguntou, realmente


nervosa.

– Duas cabines de dois lugares – Propositalmente ou


não, Monteiro esperou um tempo antes de continuar, tempo
suficiente para fazer os quatro se entreolharem
desconfortáveis – Mas não tem problema – Ele apoiou a mão
esquerda no ombro de Victor – Victor fica na cabine externa
comigo. Terá espaço lá.

– Por dois meses?! – Victor quase engasgou.

– Algum problema? – Inqueriu Monteiro.

– Nenhum – Respondeu prontamente, sem passar nem


um pouco de confiança.

Igor e Jorge começaram a rir baixinho, ao passo que


Monteiro perguntou se um deles gostaria de trocar de lugar com
Victor.

– Não, senhor – Responderam quase em uníssono.


Desta vez foi Maya quem teve de segurar a risada.
3
Noite em Claro

Esclarecidas as circunstâncias constrangedoras que


envolviam a preocupação de Monteiro, os jovens terminaram a
refeição e foram levados às suas cabines.

– Você terá de buscar suas malas na cabine de Maya –


Monteiro informou Victor.

– Sem problemas – Foi sua única resposta.

As cabines dos rapazes e de Maya ficavam próximas,


todas no mesmo corredor, mas a de Monteiro ficava num andar
diferente do Cruzeiro. Maya ficou absorta em cada centímetro
do Cruzeiro enquanto caminhava. Tudo era muito bonito,
haviam luzes e móveis customizados por todo lado. E como era
noite, tudo estava brilhando.

– Não acredito que reservaram uma cabine errada –


Soltou Maya, assim que ela e Victor entraram no recinto. O
lugar era pequeno, mas os móveis estavam dispostos de uma
maneira a deixar o ambiente espaçoso. Havia uma cama de
casal, uma estante e um armário com espaços para guardarem
seus pertences e um pequeno banheiro. Tudo estava
perfeitamente decorado.
– Nem me fale – Bufou Victor, claramente chateado
com a situação – O que é isso?

Maya se aproximou do que ele havia apontado. Era um


panfleto explicando todas as programações que haveriam no
Cruzeiro no dia seguinte, com os horários e locais informados.
O panfleto acompanhava os cartões com o nome dos dois que
informavam seus nomes, em qual cabine estavam e qual era o
horário em que ambos deveriam comparecer ao restaurante.
Também haviam instruções de como usar o cofre da cabine e
como seriam realizadas as paradas.

– Olha só isso – Maya começou – Aula de zumba, tuor


pelo spa, seminários, jogos e ginástica. Ser rico é tão bom.

– Qual dessas programações você vai escolher fazer


amanhã?

– Do que está falando? Nós vamos trabalhar.

– Nós vamos, sim, mas o equipamento de supervisão do


TechMarine só será implantado amanhã pela tarde, o que quer
dizer que não ficará pronto antes do anoitecer – O equipamento
de supervisão era nada além de um sistema operacional onde
poderiam acompanhar em tempo real se o motor do cruzeiro
acoplado ao protótipo, estava ou não economizando
combustível, além de informar precisamente a quantidade
economizada.

– Como sabe disso?

– Monteiro me disse.

Maya não conseguiu evitar revirar os olhos. Monteiro


era muito próximo de Victor, às vezes quase o tratando como
um pupilo, mas não acreditava que uma informação como
aquela fosse passada apenas para ele. Ela sabia que havia muito
trabalho pela frente, mas também gostaria de aproveitar o
máximo que conseguisse em seu horário livre. Gostou de saber
antecipadamente que poderia se preparar para um dia de pura
diversão.

– Vocês são bastante próximos – Ela comentou.

– Pode-se dizer que sim – Victor estava lendo o folheto


com as programações.

– Mas você não pareceu muito animado ao saber que


ficará na cabine dele.

Victor a olhou e respirou profundamente antes de


responder de uma só vez:

– Não me pergunte como sei disso, mas Monteiro ronca


como um motor velho de serralheria.

Maya não podia imaginar isso. Monteiro roncando?


Isso definitivamente deveria contrariar pelo menos três leis da
física. O homem era um lorde!

Ela encarou Victor, que perdeu a expressão brincalhona


imediatamente.

– Não ouse! – Ele a ameaçou.

– Como você sabe que ele ronca? – Maya perguntou,


ignorando suas advertências, rindo desdenhosamente.

– Isso não tem graça – Victor parecia envergonhado, e


para Maya era incrível que tenha o visto assim duas vezes em
tão curto período de tempo.

– Eu sou obrigada a discordar. Bom, não precisa dizer


se não quiser. Se trouxerem algo para a cabine que deveria ser
seu, eu te entrego.
– Muito obrigado – Maya não saberia dizer se ele
estava agradecendo por ela se comprometer a entregar seus
pertences ou por ela ter parado de insistir em extrair a
informação de como ele sabia sobre os hábitos noturnos de
Monteiro.

– Espero que tenha uma boa noite – Desejou ela, com


um sorriso no canto dos lábios.

– Pode apostar que terei – Victor respondeu com cara


de desgosto, antes de se retirar.

Maya definitivamente não desistiria de saber daquela


história, mas estava cansada. Apesar de ter acordado tarde e não
ter feito nada de exaustivo durante o dia, sentia-se sonolenta.
Ela pensou se poderia fazer algo antes de dormir, mas deixou de
lado a ideia, se conformando apenas em tomar um banho no
banheiro minúsculo e se jogar na cama.

O lugar era extremamente confortável. Apesar de


pequeno, os móveis e decoração tornavam o ambiente agradável
e – percebeu com muito prazer – a cama era macia. Deu
novamente uma olhada no panfleto. Era coisa demais. Aquele
lugar era definitivamente uma cidade completa. No Pollux
havia um shopping, cinco restaurantes, doze bares, sete piscinas
e hidromassagens, teatro, academia, espaço para esportes,
cassino, biblioteca, spa... Era tanta coisa que Maya ficou em
dúvida de o que fazer no dia seguinte. Ela poderia seguir uma
das programações ou conhecer qualquer outra parte de que
sentisse interesse.

Maya riscou da lista de possibilidades o shopping, pois


estar num cruzeiro de luxo não queria dizer que ela tinha
dinheiro para gastar nele, e ela não tinha. Ao menos não o
suficiente para fazer compras – em dólar – no shopping do
Cruzeiro. O spa era interessante, mas ela queria algo mais
animado, e pela mesma razão também riscou a biblioteca. Não
tinha a menor intenção de ir ao cassino e o teatro só funcionaria
à noite, então decidiu que poderia gastar algumas horas de sua
manhã em uma das piscinas do lugar. Pensou em escolher uma
de antemão, mas se permitiu o privilégio da dúvida, assim seria
obrigaria a caminhar pelo cruzeiro atrás da piscina ideal. Seria
bom se familiarizar com o lugar.

Maya não se deu conta de quando, mas acabou


adormecendo. Acordou com o celular despertando e tomou um
susto tão grande que quase caiu da cama.

Seus músculos estavam doloridos por ter dormido


desconfortavelmente, mas isso não a impediria de aproveitar
aquele dia. Assim que deu uma conferida em seu celular,
percebeu algumas mensagens de Monteiro no grupo da viagem.
Realmente teriam aquele dia livre, e depois trabalhariam em
escala. Dois deles supervisionariam o TechMarine e o gasto de
combustível na parte de baixo do Cruzeiro – lugar quente e sem
graça onde somente funcionários da parte técnica podiam
entrar –, enquanto os outros dois trabalhariam em qualquer
lugar que quisessem traduzindo as informações do sistema para
a base de dados da Ivory. As duplas trocariam de lugar todos os
dias.

– Igor não, por favor, Igor não – Maya se flagrou


rezando para qualquer divindade que pudesse ouvi-la e se
compadecer dela.

Antes de qualquer coisa, Maya foi tomar café. As


principais refeições do dia eram feitas no restaurante principal e
como a Ivory paga a estadia deles, não precisavam se preocupar
com comida ou bebida. Ia tudo para a conta da empresa. No
café, encontrou os outros quatro.

– Passaram a noite bem? – Perguntou Monteiro,


animado como uma debutante.

– Muito bem – Respondeu Igor, ao passo que Jorge


concordou.
– Acho que não me acostumei com o travesseiro –
Respondeu Maya, passando a mão na lateral do pescoço que
ainda doía.

Victor não parecia ter a intenção de responder, mas


como os outros o encararam por um tempo, ele disse:

– Eu tive uma noite maravilhosa – A entonação da sua


voz foi quase convincente, não fosse pelas olheiras perceptíveis.

– Bom, eu vou conferir que tudo esteja preparado para a


instalação do equipamento de supervisão. Aproveitem o dia, por
enquanto. Quando chegar a hora mandarei uma mensagem para
todos. Fiquem atentos.

– Então, decidiu o que vai fazer? – Victor perguntou a


Maya, quando se levantaram para voltar às suas respectivas
cabines.

– Eu pretendia ir à uma das piscinas, mas meu torcicolo


está tentando me convencer a ir para o spa. E você?

– Então, sobre isso – Ele parecia um pouco reticente, e


quando curvaram à direita em um dos corredores, ele segurou
seu braço, forçando-a a olhar para ele – por favor, deixe-me
dormir no seu quarto enquanto estiver fora. Eu não consegui
pregar o olho!

Maya, que havia se assustado com o movimento brusco


dele, desatou a gargalhar.

– Desculpe, desculpe por isso – Mas não conseguia


parar de rir – Você pode, pode sim – E continuou rindo.

– Você acha engraçado, não é? Eu coloquei fones de


ouvido e dava para ouvi-lo mesmo assim!
– Você pode ficar na minha cabine, sem problemas. Eu
não devo voltar até próximo do horário de almoço.

– Obrigado – Sua voz traduzia puro alívio.

– A propósito, sua cara está horrível – Ela comentou


assim que entraram na cabine – Vou deixar alguns cremes para
a área dos olhos na pia do banheiro, sinta-se à vontade para
usar.

Victor tentou disfarçar, mas Maya percebeu quando ele


tocou a pele do rosto com certa preocupação.

Maya retirou alguns produtos de sua skin care e pôs no


banheiro, lembrando-se de que precisava desfazer as malas
antes de dormir naquele dia. Pegou biquíni, protetor solar e
mais algumas peças de roupa que poderia usar naquela manhã,
pôs em sua bolsa e saiu, deixando Victor sentado na cama. O
homem parecia se esforçar para não cair no sono
instantaneamente.

O Pollux Stars era belíssimo. A cada novo espaço


descoberto por Maya, ela ficava extasiada. Era tudo tão bonito e
luxuoso que ela quase se sentia desconfortável, mas no fundo
estava amando. Apesar de ter nascido em Santa Catarina e ter se
mudado para estudar – e depois para trabalhar –, nunca havia
feito uma viagem de fato. Não uma viagem com intenção de se
divertir e aproveitar a paisagem a as belezas de um novo lugar.
Aquela também não era uma viagem por diversão, ela sabia,
mas parte dela queria acreditar que conseguiria achar um tempo
para esquecer de tudo e perder-se na vista do horizonte que,
assim como Victor havia previsto, era apenas o mar. Não dava
para ver nenhum firmamento de terra, nem mesmo uma
ilhazinha ao longe. Era só o mar. E aquela vista tranquilizou
seus nervosos acostumados a estarem preocupados.

No meio do passeio que certamente já durava horas,


Maya optou por ir à Piscina Azzurro Blu, onde havia o solário.
Como o esperado, ela estava lotada. Pessoas de todas as cores,
idades, gêneros e etnias se encontravam ali, desfrutando dos
prazeres de uma piscina imensa e de um sol generoso. Se Maya
fora triste algum dia, não conseguia se lembrar. Ela conseguiu
achar uma espreguiçadeira depois de algum esforço e, já vestida
de seu biquíni, permitiu-se tomar um banho de sol.

Em algum momento, viu Jorge e Igor se aproximarem


da piscina e até tomarem um banho rápido nela, mas torceu para
que nenhum deles a notasse e pareceu funcionar. Ela não queria
companhia, não queria conversar com ninguém. Queria as
vozes das pessoas acalmando seu próprio pensamento. Desde a
viagem ela evitou ao máximo pensar sobre sua vida pessoal.
Falara com Henrique poucas vezes desde então, apenas
avisando que havia chegado e que estava tudo bem. Seu
namorado também estava no modo poucas palavras. Ela não
perguntou por quê. Ambos precisavam daquele tempo. E
embora ela temesse o fim do relacionamento, estava apreciando
essa pequena distância. Na verdade, não tão pequena assim.

Minutos antes de o sol começar a queimar sua pele,


Maya permitiu-se um mergulho. A água gelada despertara seus
nervos e ela desejou profundamente nunca mais sair dali. Seu
pescoço ainda estava dolorido, o que a fez pensar em ir para o
spa, mas quando deu-se conta já era quase 13:00h, então ela
decidiu voltar para almoçar.

Ao entrar em sua cabine, deparou-se com a cena mais


cômica que poderia ver fora dos palcos de um teatro: Victor,
dormindo feito um bebê, usando suas máscaras de pepino e de
hidratação de pele. Ela não conseguiu segurar o riso, mas o
abafou para não acordá-lo. O homem respirava pesadamente e
ela pôde perceber o quanto o colega realmente estava cansado.
Pensou em acordá-lo para comer, mas ficou compadecida.
Como todos teriam até as 17:00h para fazerem suas refeições,
decidiu deixá-lo dormir mais um pouco. Trocou de roupa e
assim que estendeu a mão para abrir a maçaneta da porta, sentiu
ela sendo aberta e quase batendo nela.
– Hei! – Ela gritou, segurando a porta para não bater
em seu rosto.

– Ah, você está aí. Sabe onde Victor está? – Detectou a


voz de Igor que tentou enfiar a cabeça pela porta, mas foi detido
por Maya.

Não havia nada de errado acontecendo ali, claro. Victor


precisava de um lugar para dormir e não podia fazê-lo no seu
quarto temporário. Mas Maya instintivamente soube que se Igor
o visse dormindo na cama dela, faria da sua vida um verdadeiro
inferno.

– Não. Por quê?

– Não conseguimos achá-lo em lugar algum, e já vamos


almoçar – O colega continuou.

– Se ele não apareceu ainda, não deve estar com fome.

– É, pode ser – Pareceu convencer-se – Mas espero que


ele apareça antes de Monteiro nos chamar. Ou ele acha que está
num cruzeiro de luxo para beber vinho caro e flertar com
mulheres? Porque com certeza é o que ele está fazendo.

Maya fechou a porta atrás de si, garantindo que o


colega não visse nada por detrás dela, e começou a descer o
corredor.

– Não me importa o que ele está fazendo, mas nunca


mais tente entrar na minha cabine – Igor só havia conseguido
abrir a porta porque ela tinha acabado de destrancá-la, mas
ainda assim Maya se sentiu invadida.

– Pois devia se importar – emendou ele, ignorando


totalmente a advertência dela – Porque ele será sua dupla. Só
posso te desejar sorte, pois vai precisar – E apressou o passo,
caminhando na frente dela.
– Deseje sorte para Jorge também, por mim – Ela disse
em voz alta. Ele não respondeu.

Maya comeu bastante no almoço, enquanto os outros


dois conversavam. Por algum motivo, ela achou que Monteiro
também se juntaria a eles, mas estava errada. Precisou de muito
suco de laranja para engolir o arrependimento de ter se juntado
aos membros menos queridos da trindade divina.

– Ele é um idiota, isso sim, se acha porque Monteiro


gosta dele. Ele nem seria chamado se não fosse por isso – Igor
disse em determinado momento, logo depois de Jorge
demonstrar preocupação pelo colega desaparecido.

– Isso não é verdade – Maya respondeu sem pensar. A


última coisa que planejara para seu dia era entrar em uma
discussão com Igor, mas lá estava ela.

– Ah, não?

– Não. Ele é ótimo no que faz, você sabe disso. Na


verdade, nenhum de nós estaria aqui se não fosse.

– Ela está certa – Concordou Jorge.

– Ela também não deveria estar aqui – Completou Igor,


claramente irritado por ter sido contrariado.

– Por que eu não deveria? Vai dizer que sou a


queridinha de Monteiro também? – Desafiou Maya.– Não por
isso. Mas por ser mulher.

Jorge, que estava prestando atenção na discussão sem


pretender se envolver, se engasgou com o pedaço de cenoura
cozida que estava comendo.

– É o quê? Isso nem faz sentido – Interviu ele.


– Claro que faz. Se ela não fosse uma mulher, por
exemplo, não haveria problema com a disposição das camas nas
cabines. Além de que num empreendimento importante como
esse a Ivory deveria se preocupar com a imagem passada para
os sócios, e isso não inclui funcionárias que estão focadas em
exibir seus biquínis.

Maya piscou algumas vezes, boquiaberta, até entender


o que ele estava falando.

– Você também estava na piscina!

– Eu estava vestido de maneira apropriada.

Maya mal conseguia acreditar no que acabara de ouvir.


Mesmo sabendo que não devia considerar o que ele disse, se
flagrou lembrando cada detalhe do seu traje de banho atrás de
algo impróprio. Não havia nada além de um biquíni comum e
um corpo igualmente comum dentro dele. Limpou seus lábios
com o guardanapo, devolveu o talher para a mesa e se levantou
num rompante.

– Se a Ivory se preocupasse com a imagem que passa


para os sócios, teria exigido que você usasse uma fita adesiva
na boca – E se retirou.

Igor era um babaca sem limites, mas ela ficava chocada


com o fato de ele não perceber o quanto era preconceituoso e
arrogante. Ou talvez ele percebesse, pensou, só não se
importasse. Ficou grata por Monteiro não estar na mesa para
ouvir aquilo, ao passo que se perguntava se Igor teria dito na
presença do chefe. De qualquer maneira, sentia-se assediada por
toda a situação e com raiva por ter de passar por aquilo.

Voltando para o quarto, encontrou Victor acordado.


Sem máscara de pepino.

– Conseguiu descansar?
– Eu estava precisando tanto disso.

– Droga, Monteiro quer nos encontrar em uma hora –


Maya lhe disse ao conferir a última mensagem recebida em seu
celular – Foi bom enquanto durou minhas seis horas de riqueza.
É bom você ir almoçar rápido – Avisou.

– É, eu vou sim. Obrigada por isso – Ele apontou para a


cama com a cabeça.

– Ah, falando nisso, não conta para ninguém, tá? Se


Igor descobrir que você dormiu aqui não será nada agradável
para mim.

– Não se preocupe com isso, será nosso segredo.

Victor calçou seus sapatos enquanto observava Maya,


que procurava alguma peça específica de roupa em uma de suas
malas.

– Seu pescoço ainda está doendo? – Ele perguntou,


notando que ela mexia os ombros constantemente.

– Sim. Eu pensei em ir para o spa, mas não terei mais


tempo – Maya sequer percebeu que estava massageando o
próprio ombro. Não saberia dizer se era pela dor do local ou
para se auto-estabilizar. A conversa com Igor a deixara muito
nervosa, mas não queria trazer o assunto a Victor.

– Vem, senta aqui – Victor puxou uma cadeira que


estava encaixada numa mesinha e trouxe para o centro do
espaço vazio do quarto.

– O que vai fazer?

– Senta – Ele insistiu.


Ela sentou. Achou que ele iria ajudá-la a alongar, mas
ao invés disso ele começou a massagear os ombros dela.

O toque dele era delicado, mas preciso o suficiente para


que Maya sentisse um desconforto quando ele passava os dedos
sobre um ponto específico.

– É aqui que está doendo?

– Sim – Ela respondeu, quase gemendo.

Victor continuou por alguns minutos. No começo,


estava tão bom que ela não conseguia pensar em nada. Por um
momento não havia Igor, Henrique ou carreira com o que se
preocupar, mas depois flagrou-se pensando naquele exato
momento. Nunca fora muito próxima de Victor, e parecia que
uma sucessão de acontecimentos tornara-os uma espécie de
cúmplices. Surpreendeu-se ao notar que a massagem dele estava
despertando em sua pele mais sensações do que seria
apropriado. Seu corpo seguia o ritmo dos movimentos dele e
quando um arrepio subiu por sua espinha, levantou-se da
cadeira.

– Já está bom – Foi o que conseguiu dizer.

– Está bem, se precisar de ajuda de novo, pode me


falar – Ele colocou a cadeira de volta no lugar sem demonstrar
o menor sinal de ter entendido o que havia acontecido – Eu vou
almoçar e encontro vocês logo.

Maya tentou não pensar muito naquilo. Trocou de


roupa – escolhendo o conjunto de roupas que deixava menos
pele à mostra – e foi ao encontro de Monteiro na biblioteca. Ele
havia decidido que poderiam se encontrar ali quando
precisassem de uma reunião, já que era um lugar calmo e pouco
movimentado.

Assim que Maya chegou e sentou-se, Jorge perguntou:


– Devemos esperar por Victor?

– Como assim? A reunião estava marcada para começar


em vinte minutos – Maya não entendeu muito bem o
questionamento dele, já que teoricamente Victor não estava
atrasado.

– Mas eu duvido que ele chegue a tempo, deve estar na


cabine de alguma loira por aí – Completou Igor.

– Igor, menos – Advertiu Monteiro – A reunião


começará na hora marcada.

No tempo em que ficaram esperando, Maya aproveitou


para responder as muitas mensagens de Thomás que
perguntara-lhe tudo sobre o Cruzeiro e também a Sabrina, que
perguntava sobre como os meninos estavam se comportando
mas enrolava para responder toda vez que Maya lhe perguntava
sobre Jorge.

"Aconteceu, está bem? Era o que queria saber?" –


Sabrina lhe digitou.

"VOCÊ ESTÁ BRINCANDO?!?! Como foi??"

"Foi bem melhor do que eu poderia ter imaginado. Mas


foi só uma noite, tá? Nem estamos conversando mais"

"Pode esquecer se acha que essa descrição me basta, eu


preciso de DETALHES"

Enquanto Maya esperava Sabrina escrever o que


parecia um livro, mandou também uma mensagem para
Henrique.

"Você está bem?" – Ela começou.


"Estou com saudade. Não acredito que passaremos dois
meses longe"

"Também não acredito"

"Nós poderíamos trocar umas fotos ou, quem sabe,


fazer uma ligação de vídeo. Estou morrendo de vontade de ter
você, você sabe"

Assim que leu a mensagem, Maya ruborizou tanto que


conseguiu sentir as bochechas ficarem quentes, mas antes de
pensar em algo para responder Victor sentou-se a mesa e
Monteiro começou a falar.

"A reunião começou, depois conversamos" – Enviou


rapidamente antes de desligar o celular.

– Como vocês sabem, o sistema foi implantado hoje e o


TechMarine já está funcionando. A partir desse momento,
esqueçam que estão num cruzeiro. Vocês estão trabalhando e
tudo precisa ocorrer bem. Estejam alertas e se mantenham
preparados para qualquer imprevisto. Victor e Maya – Ele
olhou na direção deles – Vocês começam supervisionando o
funcionamento do equipamento. Jorge e Igor – Voltou-se para
os outros – Comecem a traduzir as informações. Quero
eficiência, por isso vocês estão aqui.

Igor e Jorge poderiam fazer seu trabalho em qualquer


lugar do cruzeiro em que pudesse colocar seus notebooks em
uma mesa. Maya e Victor foram encaminhados para o Porão, o
interior do casco do Cruzeiro.
4
Édipo Rei

Animada com o início do trabalho, Maya se levantou e


se deixou ser conduzida por alguns funcionários do navio para a
área onde ficam os motores do cruzeiro, o local onde passaria
boa parte da viagem. Victor, por outro lado, parecia bastante
desanimado.

O porão era quente, barulhento e não abrigava muitos


cômodos. Havia uma espécie de hall onde alguns funcionários
se sentavam em poltronas acolchoadas e comiam sanduíches, a
sala de controle do cruzeiro e um cubículo escondido atrás de
uma porta estreita. Era lá que trabalhariam, na sala de
observação.

– Dormir não foi o suficiente para melhorar sua cara –


Maya comentou, fazendo-lhe uma careta de desaprovação.

– Ah, deixa disso. Vai dizer que não gostaria de estar lá


em cima trabalhando na beira da piscina?

– Sim, eu gostaria – Não tinha como negar – Mas estou


feliz por poder fazer meu trabalho, também.

– E amanhã será nossa vez – Completaram juntos.


Maya, levemente assustada com a coincidência, o encarou antes
de rir.

– Bom, mãos à obra – Victor disse ao entrarem na sala.


O ambiente não poderia ser pior. Da paisagem
belíssima do cruzeiro e do mar sobraram apenas tubos, fios e os
motores. Tudo era prata ou cobre e parecia o interior de uma
fábrica.

– Nossa – Maya soltou, assim que o funcionário se


retirou e ela e Victor começaram a conectar os notebooks num
dos painéis – Eu não esperava por esse calor.

– Mas estou feliz por fazer meu trabalho – Victor


imitou a voz dela, revirando os olhos.

Levemente frustrados e suados, começaram a trabalhar.


O sistema operacional que estavam usando era novo, e era a
primeira vez que trabalhavam com essa base de dados. Apesar
de terem treinado, tiveram algumas dúvidas no começo e se
sentiram mais animados ao passo que solucionavam os
problemas juntos. Algumas horas depois já estavam dominando
o processo e os dados estavam chegando em tempo real aos
notebooks de Igor e Jorge que traduziam as informações para o
sistema da Ivory, onde podiam manter o controle e observar a
quantidade exata de combustível economizado.

– É isso, está funcionando – Anunciou Victor ao


verificar que a economia em tempo real daquele exato momento
era de 9%.

– Ainda precisamos verificar como ele funciona em


velocidade reduzida, na partida, na parada e em quantas horas
ele alcança o resultado. Depois temos que calcular as
interferências e margem de erro para nos assegurarmos de que
estamos cumprindo com o esperado.

– Calma, senhorita Monteiro, uma coisa de cada vez.

Victor estava certo. Maya estava muito nervosa e


ansiava por nada menos que perfeição, mas por hora não havia
mais nada que pudessem fazer além de continuar analisando a
transmissão de dados e a performance das velas.

– Então agora é só derreter aqui enquanto olhamos para


a tela do computador. Nem consigo pensar no que Jorge e Igor
estão fazendo sem sentir inveja – Lamentou Victor, jogando a
cabeça para trás.

– Talvez te anime pensar onde gostaria de trabalhar


amanhã.

– Que parte do Cruzeiro conheceu hoje? – Perguntou,


virando-se para ela.

– A piscina do solário.

– Estava cheia?

– Lotada!

– Imaginei. Gostaria de ter ido, também. Mas juro para


você que não havia nada que eu quisesse fazer mais que dormir.

Maya riu da confissão óbvia de Victor enquanto se


lembrava dele usando sua máscara de pepino para tratamento de
olheiras. Maya não era uma pessoa carrancuda, mas também
não costumava ter um riso fácil, a menos que algum
engraçadinho lhe arrancasse risadas pelos motivos mais
estúpidos. Ela sabia que esse era o dom de Victor, na verdade a
Ivory inteira sabia. Ele não precisava se esforçar muito, sua
personalidade jovial e divertida fazia com que a mera presença
dele num ambiente o tornasse menos maçante.

– Fico feliz que tenha conseguido descansar.

Depois de alguns minutos onde o silêncio era quebrado


apenas pelo som do teclado e das estaladas ocasionais que
algum equipamento da sala disparava, Victor soltou:
– Posso fazer uma pergunta inconveniente?

Maya o encarou, curiosa.

– Pode.

– Por que se escondeu do seu namorado aquele dia?

– Eu não ando sendo a melhor namorada do mundo –


Confessou, depois de meio segundo decidindo se falaria sobre
aquilo ou não – Um amigo nosso, ou melhor dizendo, um amigo
dele estava comemorando o aniversário na boate aquela noite.
Ele havia me convidado e eu disse que não iria.

– Por isso ele não foi para o jantar – Constatou.

Maya respirou profundamente para não dizer "Não, ele


não foi porque eu não o convidei" e disse apenas:

– Não pensei direito, só sabia que não teria como


explicar para ele porque eu disse que não iria com ele, mas
estava lá com outra pessoa.

– Entendo – Foi a única resposta de Victor. Apesar da


circunstância, Maya não se sentia constrangida por explicar-se
para ele. Parecia, de certa maneira, até adequado.

– Por que não foi dormir no quarto dos meninos? –


Vendo a oportunidade, Maya devolveu – Quero dizer, não me
importo que tenha ido. Mas por que não foi para a cabine de
Jorge e Igor?

– Você por acaso já precisou pedir algum favor para


Igor em sua vida?

Maya fez um esforço real para se lembrar.

– Acho que não.


– Acha? Então nunca pediu. Porque ele faria você
lembrar disso para sempre, mesmo que tivesse apenas pedido
uma caneta.

– Eu poderia dizer que você está exagerando, mas


estamos falando do Igor.

– Exatamente. Eu poderia ir, mas sei exatamente o que


teria acontecido: ele diria não, inicialmente, então Jorge ia dizer
alguma bobagem altruísta que o faria mudar de ideia, mas ele ia
acabar falando sobre isso na frente de Monteiro e depois ia
fingir que foi um acidente.

Maya conseguia imaginar a cena acontecendo. Talvez


fosse no jantar daquela noite, enquanto todos comiam juntos, ou
então em meio a uma reunião com mais pessoas da gerência
presente. Igor escolheria sadicamente o momento menos
oportuno para falar que Victor precisou dormir em outra cabine
por não conseguir fazê-lo ao lado de Monteiro. Deixaria que o
motivo disso se tornasse uma incógnita na cabeça de todos, tão
difícil de esquecer quanto sua feição ingênua ao dedurar o
colega "acidentalmente".

– Desculpe-me se incomodei – Ele completou, quando


se fez algum tempo sem que Maya dissesse algo.

– Ah, não, não! Não foi um incômodo. Pode ir quando


precisar.

– Eu gostaria de dizer que não acontecerá de novo, mas


vai sim – Seu sorriso torto lembrava a Maya o sorriso de uma
criança quando é pega fazendo travessuras. O lado direito do
seu lábio se levantava um pouco mais que o esquerdo,
mostrando os dentes brancos e as covinhas que se formavam em
suas bochechas.

Em meio ao trabalho e às conversas pessoais, não


perceberam que havia passado e muito das 18:00.
– O que estão fazendo aqui ainda? – Foram
surpreendidos pela voz de Monteiro.

– Ah, droga! – Victor assustou-se – Por um momento


pensei que além de quente e barulhento esse lugar ainda fosse
assombrado!

– Se acham que a Ivory pretende pagar horas-extras,


estão enganados. Já basta o custo que foi trazer todos vocês
para cá. Vamos, saiam desse lugar – E foi a primeira vez que
Maya viu Monteiro perder a postura ao afrouxar a gravata,
devido ao calor.

Maya e Victor deixaram para trás a plataforma de


transmissão de dados funcionando e saíram do pequeno inferno
particular dos dois.

– Por Deus, vá se trocar – Monteiro disse chocado ao


deparar-se com todas as poças de suor visíveis na roupa de
Victor – Você está derretendo! – E então virou-se para Maya,
como se conseguisse sentir o constrangimento dela – Apenas
ele, querida, você continua graciosa como sempre.

Maya sabia que era mentira, mas sentiu-se menos


envergonhada.

– Espero os dois para o jantar em quarenta minutos –


Monteiro anunciou antes de retirar-se da presença dos dois
jovens cujo estado lastimável de aparência retirava-lhes
qualquer dignidade – E Victor, seja rápido pois preciso da sua
ajuda com algo.

– Papai está chamando – Maya disse assim que


Monteiro alcançou uma distância segura – Não ouse demorar.

Victor a fuzilou com os olhos, o que a encheu de


satisfação.
– Até o jantar – Maya despediu-se, antes de entrar no
elevador. Apesar de poder acompanhá-la até certo ponto, Victor
não entrou. Não daria o braço a torcer para a mulher que estava
invertendo os papéis e fazendo dele o motivo da piada.

Maya demorou mais que o habitual no banho, pois a


água gelada era a única coisa que podia dar um pouco de prazer
à sua pele depois de horas dentro de um forno. Ao sair do
banho, não soube muito bem o que vestir. Apesar de não estar
mais em horário de trabalho, ia jantar com os colegas. E Igor
estaria lá. E não que ela se importasse, mas, talvez, se
importasse. Não com a opinião dele, mas com o
constrangimento que se espalhava em seu estômago com gosto
azedo toda vez que lembrava das palavras dele a respeito do seu
biquíni. Ela não queria lhe dar nenhum motivo para ofendê-la.
Não queria lhe dar nenhum motivo para que dirigisse a palavra
a ela, na verdade.

Lembrou-se do panfleto com as programações do dia e


decidiu que depois do jantar gostaria de ir ao teatro, então
vestiu-se modestamente e desceu.

Quando sentou-se à mesa, todos já estavam à sua


espera.

– Senhorita – Monteiro a cumprimentou quando


levantou-se para puxar sua cadeira.

Um cavalheiro. Um verdadeiro cavalheiro. Como esse


homem pode roncar ao ponto de não deixar alguém dormir? –
Pensou.

Maya sentou-se bem a tempo de ver Igor revirando os


olhos.

– Posso comer agora? – Igor perguntou impaciente. E


só então Maya percebeu que havia um único prato na mesa,
intocado.
– Não seja indelicado – Advertiu Monteiro.

– Não estou sendo. Você me pediu para esperar ela


chegar. Ela chegou.

– Maya, querida, não se constranja com a falta de


educação de alguns membros da equipe. Claramente ninguém
passou fome ao esperá-la – Disse a última frase quase
entredentes, tentando manter uma tonalidade gentil.

– Claro, claro. Eu espero enquanto ela passa


maquiagem e escolhe os sapatos – Maya ouviu ele murmurar.
Não teve certeza se os outros ouviram, mas foi mais
conveniente fingir que ninguém tinha entendido.

Pediram o jantar. E como podiam se servir de quantas


entradas, pratos principais e sobremesas quisessem, acabaram
passando um longo tempo no restaurante. Para todos, além de
Monteiro, aquela era uma rara chance de experimentar alta
gastronomia sem precisar pagar por nada.

Aos poucos, a conversa na mesa se dividiu e enquanto


Jorge e Igor conversavam algo à parte, Victor e Monteiro
mantinham outro assunto. Maya, que estava exatamente no
meio dos dois grupos e não tinha interesse algum em participar
da conversa de Igor, permitiu-se participar da conversa do
colega e do chefe enquanto comiam.

– O TechMarine está funcionando como o previsto? –


Perguntou Monteiro.

– Exatamente como previmos – Respondeu Maya.

– E os dados, estão conseguindo acompanhar?

– Acompanhamos em tempo real e Jorge e Igor


traduziram para o nosso sistema, onde foram salvos. Não há
com o que se preocupar – Victor completou.
– Claro que não – A voz de Monteiro era de puro
orgulho, como um pai elogiando um filho – Confio no trabalho
de ambos. Amanhã quero que invertam os lugares com Jorge e
Igor para que se certifiquem de que a segunda etapa está, de
fato, funcionando bem – Disse em voz baixa, aproveitando-se
da distração de Jorge e Igor para que apenas Maya e Victor
ouvissem.

– Sim, senhor – Victor respondeu.

Maya não escondeu um sorriso divertido. Toda vez que


a relação de Monteiro e Victor se assemelhava com a de pai e
filho ela divertia-se muito. Soube que Victor notou sua diversão
pois a afrontou com o olhar.

Enquanto terminava sua sobremesa, Maya lembrou-se


do jantar de despedida e de quando Victor disse que não havia
bebido álcool. Instintivamente, observou sua bebida e
surpreendeu-se ao perceber que ele não bebia vinho como os
outros. Não podia dizer exatamente o que era, mas podia de fato
ser uma bebida não alcoólica.

O jantar logo acabou e todos se retiraram. Monteiro


subiu para a cabine, dizendo que precisava falar com sua esposa
e filhas. Jorge e Igor sumiram assim que Monteiro virou as
costas.

– O que vai fazer esta noite? – Victor a perguntou.

– Vou ao teatro. Esta noite exibirão a peça Édipo Rei. E


você?

– Os meninos vão para o cassino, estou tentado a ir


também, já que nunca fui em um.

– Boa sorte – Maya bufou – Espero que seja de fato


uma programação divertida, pois não poderá contar com a
companhia.
– Eu não sabia que você era tão má – Victor a encarou.
Maya nunca entendeu porque ninguém falava abertamente
sobre Igor ser um babaca. Ela mesma só costumava falar sobre
isso com Sabrina.

– Você sabe muito pouco sobre mim – Ela ergueu uma


das sobrancelhas.

– Eu usaria a palavra ainda no meio dessa frase – A voz


de Victor soou um tanto misteriosa, aveludada. Falou mais
pausadamente do que era de seu costume. Surpreendida com
um pequeno arrepio em sua nuca causada pela resposta dele
acompanhada da permanência de seu olhar fixo sobre ela, Maya
se despediu:

– Até amanhã – E caminhou sem olhar para trás,


mesmo sem fazer ideia se estava indo para a direção correta,
pois aquele lugar era grande demais e ela mal havia aprendido o
caminho de sua cabine até o restaurante.

Maya sentou-se em uma das cadeiras e esperou a peça


começar. Ela nunca havia assistido uma peça de teatro de
verdade. Tudo o que se aproximara disso foram as peças
improvisadas de quando estava no colégio e assistira seus
colegas interpretar livros de Jorge Amado, Machado de Assis e
Guimarães Rosa. Logo, estava tão animada que mal podia
manter os pés quietos.

Enquanto os atos se sucediam, Maya mantinha-se


focada em cada ator, em cada fala. Ela sabia a história há muito
tempo, mas vê-la sendo interpretada tão bem lhe concedia o
singular prazer característico de quem admira uma arte de
qualidade.

Em determinado momento, pouco antes do fim da peça,


se flagrou pensando no miserável relacionamento de Édipo e
Jocasta, com quem o protagonista casara-se sem saber que era
sua mãe. Lembrou-se de um antigo amigo que lhe dissera que
Édipo e Jocasta eram atraídos um pelo outro de uma maneira
quase insuportável, irresistível. Apesar de toda a complexidade
que a história traz ao redor do trágico relacionamento, se
perguntou como deveria se sentir assim em relação a alguém.
Sentir tanto desejo ao ponto de ser incapaz de resistir. Ceder
não porque é o certo, ou porque foi algo que ela pensou muito
antes de decidir fazer, mas sim porque não conseguiria deixar
de fazer.

Deveria haver uma certa magia entre os amantes, que se


escolhem entre tantas outras pessoas no mundo. Algo que
fizesse com que o desejo de ambos só fosse saciado com o
outro. Algo íntimo, indefinido, inominável. Algo que
justificasse qualquer falha, qualquer pecado, algo que pudesse
ser explicado para qualquer outro humano e ser perfeitamente
compreendido. Algo que ela, certamente, nunca havia
experimentado.

Sentiu um aperto no peito ao deparar-se com a certeza


de que o que sentia por Henrique não era, nem de perto,
parecido com isso. Ela não queria separar-se dele, mas sabia
que se quisesse nada mais a impediria. Não há nada nele que a
impeça de ir embora. Seus desejos e sentimentos eram
entregues a ele porque ela escolheu fazê-lo, não porque ele
tomou dela e a tornou sua refém. Pensar assim tornava as coisas
mais fáceis e a paixão algo muito perigoso, mas não conseguia
parar de pensar em como deveria ser. Como deveria ser não ter
que entregar-se para alguém, pois esse alguém já a tem. Qual
deve ser a sensação de ter seu corpo e coração desejando
alguém sem que seu cérebro possa fazer algo a respeito?

Antes que a última cena fosse interpretada, sentiu


alguém sentar-se ao seu lado.

– O que está fazendo aqui? – Maya sussurrou, ao


perceber que era Victor.

– Não posso ficar lá – Dignou-se a responder.


– O que houve? – Sussurrou novamente.

Victor não respondeu. Meio a contragosto, pois não


queria perder nem uma parte da peça, Maya virou-se para ele,
encontrando uma expressão confusa e quase deprimida.

– Victor? – Dessa vez não falou tão baixo, ao passo que


foi advertida por alguém na plateia.

– Desculpa, não quero atrapalhar – E saiu, abaixando-se


na tentativa de diminuir as vozes que cochichavam xingamentos
para o intruso que atrapalhava suas experiências.

Faltava muito pouco para a peça acabar quando Maya


decidiu ir atrás dele, praguejando a si mesma.

Quando ela saiu do teatro, não fazia ideia de para onde


ir. Ele poderia estar em qualquer lugar! E se por acaso tivesse
ido para a cabine de Monteiro, não teria como ir até ele.

Maya decidiu ir para o cassino, verificar se Victor


voltara para a presença dos colegas. Ela estava preocupada,
talvez por isso tenha demorado alguns segundos para entender a
cena que estava diante de seus olhos: Igor estava aos beijos com
uma mulher loira enquanto várias pessoas no ambiente gritavam
em comemoração.

Sem pensar muito, deu alguns passos para trás. Por


sorte, acreditava não ter sido vista por Igor ou por Jorge.

Igor era casado. Igor tem um filho. Ela conhece a


esposa dele, já a vira diversas vezes em eventos da Ivory e em
saideiras com os colegas. Que porra estava acontecendo?

Não havia humor para voltar ao teatro. De qualquer


maneira, a peça já devia ter acabado. E ela não tinha sequer
vontade de continuar procurando por Victor. Com o estômago
embrulhado, subiu para sua cabine, na esperança de adormecer
e esquecer o que havia visto.
5
Pista de Patinação

Maya acordou com o celular despertando. Dormira


rapidamente e não se lembrava de ter sonhado com nada, mas
ainda se sentia cansada. Trocou-se e desceu para tomar café
antes de encontrar Victor. Felizmente, não encontrou um único
rosto conhecido no café da manhã. Gostava de fazer suas
refeições na presença de Monteiro, mas se sentiu aliviada de
não ter sido chamada por ele naquele dia.

Quando finalmente encontrou Victor, descobriu que ele


ainda carregava a expressão desanimada de quando esteve no
teatro. Só não sabia dizer se ainda era pelo motivo misterioso da
noite anterior ou por mais uma noite em claro ao som da
sinfonia de Monteiro.

– Vamos trabalhar no solário hoje? – Ela perguntou, na


tentativa de animá-lo.

– Claro.

Maya não sabia ao certo o que havia acontecido para


deixá-lo naquele estado. Era perceptível que ele não estava
bem. Nunca foi do seu feitio assumir uma personalidade
misteriosa e séria. Mas ela temia perguntar o que tinha
acontecido. Teria ele visto o mesmo que ela? Se sim, não tinha
certeza se queria ouvir da boca dele. Tornaria tudo aquilo real e
ela não poderia continuar com o plano de fingir não ter visto
nada.
Ela não queria fazer parte daquilo. Primeiramente, tudo
o que sabia sobre a vida pessoal de Igor era contra sua vontade.
E nada daquilo era da conta dela, ela sabia, mas mesmo assim
não deixava de incomodá-la. A mera presença dele era
desagradável para ela, e agora ela sentia que foi levada a ser
cúmplice de um dos pecados nojentos dele sem que pudesse
fazer nada a respeito.

Para além de preocupar-se com Victor, também haviam


as mensagens de Henrique que ela não abriu ao acordar por ter
que se apressar para tomar café.

Chegaram ao solário e logo encontraram uma mesa que


fosse próxima o suficiente da piscina para que pudessem se
beneficiar dos risinhos alegres dos que a usufruíam, mas não
ficasse debaixo do sol.

Sentaram-se, dispuseram os notebooks na mesa e


começaram a trabalhar. Apesar do barulho que os cercava, o
silêncio entre ambos deixou Maya desconfortável. Ela tentou
focar-se no trabalho, mas não conseguiu por muito tempo.

– O que aconteceu ontem?

Victor não olhou para ela, mas ela sabia que ele a tinha
ouvido. Suas sobrancelhas franzidas mostravam que ele se
esforçava para parecer estar focado, mas não estava.

– Eu só queria saber se você está bem.

– Eu não posso falar sobre isso – Ele a interrompeu.

– Eu o vi também – Maya soltou, na expectativa de


analisar a expressão dele. Quando Victor finalmente a encarou,
soube que de fato era sobre Igor – Fui atrás de você quando saiu
do teatro – Maya continuou – o encontrei no cassino.
– Eu fui ao chá de bebê dele! – Victor soltou, como se
tivesse com a frase entalada em sua garganta – Eu vi a mulher
dele grávida! Isso, isso não pode estar acontecendo. Quer dizer,
está acontecendo. Mas eu não queria saber. Agora eu não
consigo parar de pensar na esposa dele e...

– Eu sei – Maya disse ao colocar uma de suas mãos


sobre a mão de Victor que tamborilava nervosamente a mesa.
Quando ele parou de agitar os dedos, ela o soltou.

Maya não havia ido ao chá de bebê, mas lembrava-se


da ocasião. Sentia-se aliviada por saber o motivo do mau humor
de Victor, mas não sabia dizer como se sentia em conversar
sobre um assunto delicado como esse com ele. A esposa de Igor
era muito presente na vida deles porque praticamente todas as
festividades da Ivory contavam com sua presença. E,
consequentemente, todos acompanharam a sua gravidez e
nascimento do primeiro filho. Era uma esposa dedicada e
amorosa, ao menos para os olhos dos observadores.

– Eles te viram? – Ela perguntou, depois de ficarem em


silêncio por um tempo.

– Não sei. Acho que não. Eu tinha ido ao banheiro,


então quando voltei...

– Então você pode fingir que não sabe.

Victor a fitou com decepção, o que a fez se sentir como


uma criança repreendida pelos pais.

– Não tem como fingir – Ele continuou.

– Tem razão, desculpe-me. Você não tem como fingir,


são seus amigos. Mas eu vou fazer isso com certeza.

– Não são meus amigos – Victor esclareceu, chocado.


– Não? Vocês andam juntos para todos os lugares e
saem juntos o tempo inteiro. Você foi ao chá de bebê do filho
dele! – Ela observou.

– Eu trabalho com eles. E todas as vezes que me


encontrei com eles fora do trabalho você também estava – Ele
sacodiu a cabeça confuso – Todas as vezes menos o chá de bebê
porque você inventou uma desculpa para não ir!

– Como você pode ter certeza de que inventei algo?

Victor apenas a encarou.

– Tá, mas e daí? Eu não queria vê-lo na minha tarde de


domingo.

– Ninguém queria vê-lo – Victor a encarou – Não é essa


a questão.

– Então por que não consegue fingir? Esse não deve ser
o primeiro caso de adultério que tem conhecimento na vida.

– Não, infelizmente não é. Quer saber, esquece o que eu


disse – E levantou-se da mesa, carregando consigo o seu
notebook.

– Victor! Aonde você está indo?!

Parte de Maya pensou em correr atrás dele. Seria uma


atitude relativamente apropriada já que ela precisava dele para
continuar trabalhando. Mas o olhar curioso das pessoas à sua
volta a impediu de perseguir o moreno alto de beleza
exuberante que a deixou para trás.

Decidida a dar um tempo para o colega se acalmar,


Maya tratou de responder as mensagens de Henrique.
Henrique era galante mesmo quando estava
decepcionado. Maya sabia que por trás das mensagens delicadas
e saudosas o namorado escondia o desapontamento por ter sido
deixado de lado durante os últimos três dias.

O engraçado, ela observou, era que ela não queria que


ele se sentisse assim, mas também não queria fazer nada a
respeito. Qualquer diálogo profundo com Henrique lhe custava
muito, falar sobre sentimentos era como caminhar num campo
minado para ela. E ele não merecia isso. O único erro que
Henrique já cometera foi ser completamente amável. Que tipo
de criatura miserável ela era por não recompensá-lo com todo
amor que cabe em seu peito? O amor fica no peito? Maya
achava que sim.

O namorado pedia por um pouco mais de sua atenção


nas horas vagas, Maya concordou. Quando ele perguntou se
poderia ligar para ela durante a noite, tratou de desconversar e
dizer que estava sendo chamada.

Antes que guardasse o celular e fosse atrás de Victor,


recebeu uma chamada de Thomás.

– Mon chérie, eu ainda existo, sabia? Mas posso te


perdoar por ter esquecido disso diante das belezas desse
Cruzeiro.

– Eu não te esqueci – Ela fingiu ressentimento – Só


estava muito atarefada. Até Henrique me repreendeu por não ter
mandado mensagens.

Thomás não respondeu de imediato, o que fez Maya


arrepender-se de ter tocado no nome do namorado. Seu melhor
amigo não costumava poupar palavras ao falar sobre seu
relacionamento. E ouvir alguém dizendo que ela devia terminar
não era exatamente o que ela precisava naquele momento.

– Como vocês estão? – Thomás perguntou, por fim.


– Estamos bem.

– Maya... – Instigo-a a dizer a verdade.

– Estou falando sério. Quer dizer, teremos uma


conversa definitiva quando eu retornar, mas ainda somos dois
pombinhos apaixonados – Arrependeu-se imediatamente pela
péssima escolha de palavras.

– Se é o que você diz, não vou discutir. Mas então,


diga-me, quais lugares você já conheceu? Como é aí dentro?

– Não fizemos nenhuma parada ainda. A primeira será


em dois dias, em Buenos Aires. Honestamente, não estou muito
animada para essa. E aqui dentro é uma coisa de outro mundo,
queria tanto que estivesse aqui comigo!

– Ah, estrelinha, quem sabe um dia! Por hora quero que


você aproveite bastante cada centímetro desse lugar. E não se
esqueça de aproveitar as paradas também.

– Pode deixar.

– Sei que você não deve estar tendo muito tempo por
conta do trabalho, mas deixe para se sentir cansada quando
retornar!

– Pode deixar – Ela repetiu, rindo.

– Falando nisso, estou atrapalhando ligando a essa


hora? É que João acabou de sair daqui.

– Na verdade, não. Tecnicamente eu nem estou


trabalhando.

– Como assim?
– É uma longa história, mas você me fez lembrar que
preciso ir atrás do meu companheiro fujão. Posso te ligar mais
tarde?

– Claro, estrelinha. Estarei esperando.

Maya desligou e se certificou de não ter esquecido nada


na mesa antes de começar sua missão de encontrar Victor. Era
só o que lhe faltava: ser babá de um homem adulto.

Sem saber por onde começar, tentou procurar nos


lugares que já conhecia, por mais improváveis que eles
parecessem. Procurou no restaurante, no teatro, no cassino e em
sua própria cabine, mas acabou por encontrá-lo em um corredor
qualquer. A esta altura, estava levemente perdida, pois não
saberia dizer para que lado do corredor deveria seguir para
voltar ao solário.

Maya sentou-se ao lado de Victor que estava com a


cabeça apoiada no banco do corredor e os olhos fechados, como
se tirasse um cochilo. Esperou que ele percebesse sua presença,
mas quando julgou demorada demais sua reação, ousou encará-
lo mais de perto. Victor dormia com a tranquilidade de um bebê
recém-nascido no colo da mãe. Sua respiração era curta, lenta e
pausada, os músculos de sua face estavam completamente
relaxados. Era adorável.

Maya sabia que precisava acordá-lo, mas não teve


forças para fazê-lo. Victor parecia um anjo dormindo. E
certamente aquele era seu primeiro momento de descanso após
a noite com Monteiro.

– Desde quando está aqui? – A voz de Victor despertou


Maya de seus devaneios, pois no impasse entre acordá-lo ou
não perdeu-se em pensamentos sentada ao lado dele.

– Há um tempo.
– Meu Deus, que vergonha – Esfregou os olhos e
lambeu os lábios.

– Não tem com o que se envergonhar – Disse enquanto


esperava ele despertar totalmente, mas ao perceber que Victor
piscava cada vez mais lentamente, o deu uma leve cotovelada –
Anda, vamos voltar.

Sem dizer mais palavras, voltaram para o solário,


sentaram-se em outra mesa e retomaram o trabalho. Maya não
estava esperando que ele falasse algo quando ele soltou:

– Eu já fui noivo.

Maya parou de digitar e o encarou, silenciosa, com as


sobrancelhas contraídas num grande sinal de interrogação.

– Foi antes de eu trabalhar na Ivory. O relacionamento


durou três anos, no total. Ela me traiu.

O que ele dizia esclarecia sua reação a respeito do


adultério de Igor, mas Maya não fazia ideia do que lhe
responder.

– Existem várias questões nessa história, mas nossos


amigos sabiam. Eram pessoas que faziam parte do meu
cotidiano e ninguém se importou em me dizer o que estava
acontecendo.

– Sinto muito.

– Tudo bem.

– Por que me contou isso? – Maya perguntou, surpresa


com a intimidade do assunto.

Victor levantou os ombros.


– Porque somos amigos – e a surpreendeu com seu
clássico sorriso torto. Tão de repente quando podia cair no
sono, desfez sua expressão perturbada.

A concordância de Maya se fez com um riso curto.

É isso. Não havia o que ela pudesse dizer para


discordar.

Almoçaram juntos e conseguiram evitar Igor e Jorge. A


tarde passou apressadamente e quando Maya saiu de sua cabine
para jantar, Victor a estava esperando do lado de fora.

– Quer dormir enquanto jantamos? – Ela perguntou


fechando a porta.

Victor lançou um olhar desejoso para o interior da


cabine de Maya antes de voltar-se para ela:

– Você sabe patinar?

– Está vendo isso? – Ela ergueu a cabeça enquanto lhe


mostrava uma pequena cicatriz na parte de baixo do seu queixo
– Isso é um não.

– Ah, vamos! Vai ser legal.

– Está falando sério?

– Estou – Ele respondeu cautelosamente, como se


estivesse se perguntando o que havia demais nisso.

– Mas eu não sei.

– Eu também não, vamos aprender.

Estavam próximos de encontrar Monteiro e os outros


no restaurante para jantar.
– Se quer evitar a companhia deles, existem milhares de
opções aqui.

– Não é isso – Foi a resposta corrida dele enquanto


sentavam-se à mesa.

– Eu odeio ter de falar sobre trabalho no jantar –


Monteiro começou a dizer assim que ambos se sentaram – Mas
quero todos os detalhes.

– Tudo está ocorrendo perfeitamente bem – Maya


respondeu – Precisamos apenas observar como o equipamento
funciona nas paradas. A próxima será em dois dias então
teremos tempo.

– Ótimo, ótimo.

– Por que precisamos trabalhar ao lado do motor? –


Igor perguntou, sem o menor esforço para esconder o desgosto
– É tão quente que se jogassem cenouras em mim eu viraria
uma sopa. Isso sem falar do barulho.

Maya tentou não rir da aparência desesperada de Igor,


porque no fundo concordava com ele nessa questão. Os outros
riram, mas Victor manteve-se plácido.

– Deve ser porque o TechMarine fica instalado no


motor do Cruzeiro – Monteiro respondeu e desta vez a risada de
Jorge soou alta pelo restaurante – Além de que vocês são
engenheiros e estão aqui a trabalho, não curtindo férias.

Igor revirou os olhos.

– Ao menos podemos revezar – Jorge encerrou o


assunto. Realmente, não seria nada justo que uma das duplas
tivesse de se afundar no porão enquanto a outra se deliciasse
tomando sol e ouvindo zumba.
O jantar prosseguiu sem muitos intrometimentos. Jorge
e Igor passaram boa parte do tempo conversando entre si, como
sempre. Conversavam sobre alguma série de TV. Monteiro
estava muito mais silencioso que o de costume, mas trocou
algumas palavras com ela e com Victor. Foram os únicos
momentos em que Victor agira normalmente, pois era
perceptível que ele estava evitando os dois colegas à sua direita.

O jantar acabou, Monteiro foi para sua cabine e Jorge e


Igor foram novamente para o cassino. Maya ouviu quando
convidaram Victor para acompanhá-los, mas receberam uma
recusa.

Maya começou a caminhar na direção do cinema, pois


havia escolhido passar a noite assistindo um filme em 4D, até
que Victor a interpelou.

– Para onde está indo? A pista de patinação fica para lá


– Victor disse apontando para a esquerda de Maya.

– Nós não vamos patinar, Victor! – Disse sem se dar


conta do tom grosseiro.

Maya viu os olhos de Victor se arregalarem levemente


e ele engolir em seco. Quando pensou em desculpar-se pelo
tom, seu celular tocou.

– Só um minuto – E virou-se de costas para atender,


dando alguns passos à frente.

Era Henrique.

– Amor? Como você está?

– Eu estou bem – Maya respondeu meio sem jeito,


envergonhada por estar sendo ouvida por Victor – E você, como
está? – Perguntou rapidamente ao perceber que havia se
esquecido de devolver a pergunta.
Henrique, dando-se conta da distração da namorada, riu
antes de continuar:

– Estou com saudade. Sei que está sendo difícil para


você achar um tempo para nós, mas se não estiver com o
pessoal do trabalho gostaria de, quem sabe, terminar a conversa
de mais cedo – A proposta e o tom sugestivo de Henrique
deixava mais do que claro para Maya o que ele esperava
daquela noite. Ela engoliu em seco e em uma fração de
segundo, antes que se desse conta do que estava dizendo,
respondeu:

– Estou ocupada agora, passarei as próximas horas com


um dos meninos resolvendo algumas pendências.

– Ah, tudo bem – Henrique respondeu desanimado –


Não quero atrapalhar você. Quando puder, me liga.

– Está bem.

– Te amo, Maya.

– Também te amo.

Maya desligou o celular e respirou fundo antes de virar-


se de costas novamente. Torcia para que Victor tivesse se
afastado, que não tivesse ouvido nada daquele diálogo
desastroso, mas lá estava ele. Dois passos atrás dela. Com cara
de quem diz "eu não vou dizer nada, mas você sabe o que quero
dizer".

– Não me olhe com essa cara, vamos patinar – Maya


cuspiu as palavras e virou-se na direção da pista de patinação,
sem esperar Victor a acompanhar. Passos depois ele a alcançou.

Durante todo o percurso Victor tagarelou sobre como


sempre quis saber patinar e quando finalmente chegaram ele
parecia tão animado que Maya quase acreditou que poderia se
divertir. Calçaram os determinados patins e entraram na pista.
Receberam algumas orientações da instrutora, mas logo se
arriscaram a patinar sem supervisão. De fato, nos primeiros
trinta minutos Maya divertiu-se mais do que imaginava. A
adrenalina despertou seu senso de perigo e ela sentia-se uma
criança num parque de diversões. Para além disso, permitiu-se
gargalhar quando Victor desequilibrava-se e precisava agitar os
braços para manter o equilíbrio. Ela riu até sua barriga doer.
Ficaram patinando um ao redor do outro por um tempo até que,
como se estivesse apenas continuando o diálogo de minutos
atrás, Victor a perguntou:

– Então estamos resolvendo pendências? – Soltou um


risinho – Não imaginei que fosse gostar tanto de trabalhar.

– Podemos apenas não falar sobre isso? – Maya, que


havia se desequilibrado um pouco, segurou o ombro de Victor
para se manter em pé e aproveitou para apertá-lo com força,
numa atitude que sequer saberia explicar direito, mas estava tão
frustrada por ele tocar no assunto que queria puni-lo de alguma
forma.

– Claro – Victor respondeu enquanto a ajudava a se


equilibrar, apoiando uma de suas mãos em sua cintura – Posso
fingir que não sei o que tá acontecendo assim como posso fingir
não saber que Igor trai a esposa.

– Mas não é isso o que está acontecendo comigo! –


Maya respondeu, insultada. Ela soltou repentinamente o ombro
dele, e tentou se afastar, mas desequilibrou-se novamente e
precisou fazer um esforço ridículo para se manter de pé justo
quando queria resguardar um mínimo de dignidade.

– Eu não disse isso! – Victor atalhou assim que


entendeu o que suas palavras deixaram a entender. Ao ver que
Maya estava a um passo de cair, aproximou-se novamente dela
e tentou segurá-la, mas aparentemente suas palavras a haviam
atingido como uma flecha, porque por mais que repetisse que
apenas se expressou mal, toda o corpo de Maya transparecia
desconforto e ela evitava seus toques mesmo quando ele era a
única coisa que a impedia de cair de bunda no chão.

– Para de se mexer, você vai cair! Só estou tentando te


manter de pé!

– Eu não preciso da sua ajuda! – Maya vociferou e,


num movimento de agarrar a mão de Victor que a sustentava e
afastá-la de si, cambaleou uma última vez antes de cair. No
entanto, por mais que estivesse com raiva e querendo
instintivamente se manter afastada dele, seus instintos foram
mais rápidos que seus pensamentos e ela não largou a mão dele,
puxando-o junto com ela.

– Mas o que... – As palavras de Victor ficaram no ar e


ele caiu sobre Maya.

A queda foi rápida e as rodinhas sob os pés de ambos


reduziram a zero qualquer possibilidade de resistir. Maya caiu
primeiro, batendo a bunda com força no chão e em seguida a
cabeça. Victor estava logo na frente dela. Primeiro bateu os
joelhos – o esquerdo entre as pernas de Maya e o direito em sua
lateral. Tentou amenizar o impacto de seu corpo sobre o de
Maya, mas num movimento mal calculado acabou batendo o
nariz na testa dela.

– AHH!

– Victor? Ah meu Deus! – Maya estava com a mão na


testa, encarando sem reação o nariz de Victor verter sangue.

Victor não respondeu nada, apenas cobriu o nariz com


as duas mãos e tentou se levantar. Mas ainda estava usando
patins, quase caiu novamente.

Antes que Maya pudesse pensar no que fazer, a


instrutora aproximou-se deles e tentou acalmá-los. Em poucos
instantes estavam na enfermaria. Maya estava sentada com um
saco de gelo na cabeça e Victor estava com o nariz coberto de
curativo. Maya queria dizer algo, mas sentia-se envergonhada.
Sabia que Victor não quisera sugerir que ela era infiel ao
namorado, mas seu relacionamento com Henrique era um
assunto tão sensível para ela que a fez se sentir culpada de algo
que ela não fez. Não conseguira controlar suas próprias
emoções e isso resultou em uma concussão e em um nariz
quebrado.

– Pelo menos conseguiram colocar no lugar – Victor


disse, tocando suavemente o próprio nariz. Ele estava na maca
ao lado da dela. Também havia esticado o silêncio o máximo
que pôde, mas deu o braço a torcer. Era a deixa que Maya
precisava.

– Desculpe-me por isso – Ela disse.

– Desculpe-me também. Eu não quis dizer que... eu juro


que não quis.

– Tudo bem. Eu acredito em você.

– Maya – Victor a chamou, fazendo-a encará-lo, mas


não disse palavra alguma. Parecia ter esquecido o que ia dizer,
ou talvez tivesse apenas perdido a coragem. Mas, de alguma
maneira estranha, Maya sentia que ele estava lhe dizendo o que
queria. Como se as palavras dele estivessem suspensas no ar e a
cada vez que ela inspirasse conseguisse absorvê-las. Não sentiu
estranheza ao fitá-lo por vários segundos, os olhares fixos um
no outro. Maya sentia-se próxima dele, íntima, como se fossem
amigos há muitos anos. As palavras não ditas dele eram doces,
pois ele não seria capaz de tratá-la de outra maneira. Eram
palavras confidentes, amigáveis, capazes de apagar incêndios e
perdoar ofensas, eram um carinho na alma.
Interrompendo o momento que poderia muito bem ter
durado um segundo ou horas, a enfermeira retornou e os liberou
com alguns analgésicos e uma advertência.

Victor acompanhou Maya até sua cabine. Despediram-


se com um aceno de cabeça e Maya não conseguiu fazer
nenhuma outra coisa além de jogar-se na cama e ser embalada
pelo movimento do navio até adormecer.
6
Buenos Aires

Naquele dia fariam a primeira parada da viagem, em


Buenos Aires, e como o Cruzeiro ficaria ancorado das até as
19h, Maya teria a chance de aproveitar um pouco da cidade fora
do seu horário de trabalho. Estava entusiasmada e inquieta, pois
aquela seria a primeira vez que pisaria os pés em solo
estrangeiro.

No dia anterior Maya mal aproveitou o Cruzeiro.


Trabalhou no porão e sua única diversão foi conversar com
Victor sobre assuntos aleatórios até a hora do jantar, onde mal
puderam comer direito respondendo às perguntas de como
Victor quebrara o nariz.

À noite, conversara com Henrique.

– Então tem tudo aí dentro? E é tudo gratuito? – Ele


perguntou, curioso.

– Não, nem tudo. Existem vários serviços que são


inclusos no pacote da viagem, mas você sempre tem como
gastar dinheiro comprando algo. Por exemplo, as principais
refeições do dia são gratuitas, se quisermos comer ou beber algo
a mais, já sabe.

– Entendi. Espero que esteja se divertindo, querida.


– Estou, na verdade. Tenho muito trabalho a fazer, mas
tento aproveitar sempre que possível.

– Está em sua cabine agora, certo?

– Sim – Maya esperou uma resposta de Henrique e só


percebeu que ele havia encerrado a ligação quando recebeu uma
outra; desta vez, uma videochamada.

– Queria ver você – Disse com um sorriso largo – E


olha só, você ainda é a coisa mais linda que já vi nesta vida.

A conversa desenrolou sem que Maya pudesse ditar o


ritmo. Seu namorado estava carente e ousado, mas a proposta
de sexo virtual a assustou muitíssimo. O problema não era ela
nunca ter feito isso antes ou a possibilidade de mostrar os peitos
para a câmera, mas sim ela não estar com a menor vontade de
começar. Seria mentira dizer que Maya era frígida e que não
gostava de sexo, ela adorava, tanto que se surpreendeu com a
falta de libido desde que começou a viagem. Mas como ela diria
para o namorado que ao contrário dele não sentira a menor falta
de interação carnal? Depois de algumas tentativas, Henrique
percebeu que ela não estava tão animada quanto ele e desistiu.
Ela, envergonhada, sentiu-se aliviada.

Fora as questões do seu relacionamento, havia mais


uma coisa que a perturbava. Conversara com Sabrina e a amiga
lhe confidenciou que continuava trocando mensagens com
Jorge e que estava, de certa maneira, aproximando-se dele. Isso
perturbava Maya, pois ela sabia que Jorge tinha visto Igor trair
a esposa no meio do cassino e ele ter agido normalmente nos
dias seguintes levantava em Maya uma dúvida sobre seu
caráter. Não queria que sua amiga se envolvesse com alguém
que futuramente não respeitaria seus sentimentos e seus
compromissos. Então tratou de observar mais cuidadosamente
as atitudes de Jorge, pois parte dela estava convencida de que
sua personalidade gentil poderia esconder uma falha de caráter
gravíssima.
– Tenho uma ideia para hoje à noite – Maya e Victor
estavam sentados no chão da academia, pois tentavam trabalhar
em todas as áreas públicas que conseguissem, puramente ideia
de Victor.

– Dormir na minha cabine?

– Boa, mas não – O humor de Victor, assim como suas


olheiras, melhorou consideravelmente desde que o rapaz
começou a ter mais tempo para dormir longe de Monteiro –
Teremos muito pouco tempo para aproveitar Buenos Aires,
então pensei que poderíamos apenas caminhar pelas ruas e
tomar sorvete. Programei uma rota curta que garantirá que
estaremos de volta antes do Cruzeiro zarpar.

Apesar de animada com a parada, Maya não tinha


pensado muito bem no que faria ao descer do Cruzeiro.
Inicialmente, ela e Victor pensaram em trabalhar de algum
lugar da cidade naquele dia, já que Igor e Jorge estavam no
porão e eles tinham a flexibilidade geográfica necessária para
isso. Desistiram da ideia depois de pensar que se acontecesse
qualquer imprevisto e não estivessem disponíveis
imediatamente seria a última coisa que fariam em nome da
Ivory. Então teriam apenas uma hora para passeios.

Algo em Victor fazia com que Maya se sentisse muito


confortável. Era como se ele sempre estivesse no lugar certo, na
hora certa, com a as palavras certas na ponta da língua. Ela
gostava de confiar nele, de topar participar de seus planos
idiotas como patinar ou trabalhar no chão de uma academia,
apreciando a vista de alguns homens e mulheres de meia idade
fingindo fazer exercícios. Era quase como se ele fosse uma
criança descobrindo o mundo e, pouco a pouco, contagiava ela.
A essa altura, a simples ideia de passear pelas ruas de Buenos
Aires e tomar sorvete aproveitando a companhia dele parecia
uma ideia incrível.
– Eu vou querer sorvete de morango – Ela respondeu –
É o meu favorito – Ele abriu seu sorriso torto e gigante que
mostrava todos os dentes e deixava seus olhos quase fechados.
O tipo de sorriso que passara a fazer algo na altura do estômago
de Maya estremecer.

O dia passou tão rapidamente que Maya mal pôde ficar


ansiosa. Assim que o relógio marcou 18h ela correu para a
cabine, a fim de se preparar para o curto passeio da noite.
Banhou-se, se vestiu e soltou os cabelos. Estava usando um
vestido vermelho drapeado que ia até a metade de suas coxas,
com babados e decote coração. Também usava saltos baixos,
batom rosado e um par de brincos de pérolas falsas. Na bolsa,
levava apenas os próprios documentos.

Victor a estava esperando do lado de fora da cabine


assim que ela saiu.

– Santo Deus! – Maya assustou-se ao se deparar com o


par de olhos azuis em sua direção. Às vezes, a depender da luz,
os olhos de Victor pareciam faróis acesos, de tão azuis.

– Você está linda – Victor disse, sorrindo suavemente.


Ele estendeu o braço como um cavalheiro e, sem perguntar o
porquê daquilo, Maya aceitou.

O Cruzeiro estava menos movimentado que nos dias


anteriores, visto que boa parte dos passageiros desembarcaram
na cidade para expandir a experiência da viagem. Maya se
perguntou quantos ali também estavam tendo a primeira viagem
internacional, ou a primeira viagem marítima; se ali haviam
famílias, pessoas solitárias, casais em lua de mel; se era tudo
novo para mais alguém. Tudo no Cruzeiro era pensado para
tornar a viagem mágica, quase surreal, como se fosse feito para
ficar na lembrança daquelas pessoas como uma espécie de
devaneio. Mas essa sensação continuou a acompanhando
quando desembarcou no cais, diante da cidade iluminada e
colorida.
– Buenos Aires, aqui estamos nós – Victor foi o
primeiro a falar.

– Nossa, aqui é lindo!

– É uma bela noite, de fato.

Depois de alguns minutos admirando a paisagem


urbana à sua volta, Maya foi guiada por Victor pelo trajeto que
ele havia programado. Passaram por algumas ruas mais
movimentadas, repleta de turistas. Maya pôde identificar quatro
idiomas diferentes sendo falados num mesmo lugar, por pessoas
não muito distantes uma das outras. Maya tinha poucas certezas
na vida, mas sabia que nunca se esqueceria daquela viagem, que
nunca se esqueceria das ruas agitadas e de como as luzes faziam
seus olhos lacrimejarem, de como o vento arrepiava sua pele e
de como a risada de Victor era gostosa.

Maya não sabia por onde estavam indo, tampouco quis


perguntar. A sensação de surpresa a cada esquina que dobravam
era deliciosa.

Chegaram finalmente à sorveteria e assim que entraram


Victor explicou que não poderiam permanecer no ambiente por
muito tempo, deviam tomar o sorvete enquanto retornavam ao
Cruzeiro – por um caminho diferente, garantiu.

– É uma pena não podermos aproveitar mais, gostaria


de perambular por horas – Maya disse, enquanto estavam sendo
atendidos.

– Quem sabe numa outra oportunidade.

Maya realmente escolheu sorvete de morango. Mas a


ocasião pedia por novas experiências, então saiu da sorveteria
com um copinho de papel contendo sorvete de frutilla con
naranja e dulce con brownie. Victor escolheu o de sambayón.
– Não parece que estamos sonhando? – Victor
perguntou, quase retoricamente, quando já estavam a duas ruas
de distância da sorveteria – Quero dizer, nós estamos
trabalhando, para a Ivory, no tipo de trabalho que realizamos há
anos. Mas olha isso – Apontou à sua volta – Não parece ser
verdade. Como meu corpo pode estar aqui? Como eu posso
estar aqui? Devo estar sonhando.

– Pode apostar, eu o entendo completamente.

– Eu sinto uma coisa estranha – Victor continuou.


Maya apenas virou-se para olhá-lo, enquanto continuavam
caminhando – Como se algo fosse acontecer, não sei explicar.
Como se depois dessa viagem tudo fosse mudar. Não me olha
com essa cara – Soltou revirando os olhos quando Maya
prendeu os lábios entre os dentes para não gargalhar.

– Não é culpa minha se você está falando igualzinho a


uma protagonista de filme adolescente.

– Ah, esquece – Victor desistiu, mas não parecia


chateado.

– Olha, se eu fosse sua psicóloga diria que você está


apenas ansioso. Mas eu entendo, acho que me sinto um pouco
assim também. O que quer dizer que também estou ansiosa. E
que devíamos nos tratar.

– Mas é uma ansiedade boa – Victor riu, o estômago de


Maya estremeceu, e ela concordou que era uma ansiedade boa.

– Posso perguntar uma coisa meio esquisita? Se não


quiser falar, tudo bem – Maya soltou.

– Se eu disser não, você vai perguntar do mesmo jeito.

– Bom, sim, mas você pode se recusar a responder.


– Está bem. O que quer saber?

– Você a amava?

– O quê? – Victor se engasgou e tossiu algumas vezes


antes de olhar confuso para Maya – O quê?

– Você disse que era noivo.

– Ah, isso. Eu poderia questionar o porquê da pergunta


estranha, mas você bem que avisou – Maya emitiu um som
afirmativo e ele continuou – Claro que a amava. Muito, na
verdade.

– E, bem, quando você ficava longe dela, você,


digamos, morria de saudade?

– Espera, essa é a pergunta?

– A outra também era. Era uma introdução.

– Você está trapaceando – Num movimento rápido,


Victor segurou a mão de Maya, que estava a meio caminho de
levar mais sorvete para sua boca, e roubou o conteúdo vermelho
e gelado da colher – Mas tudo bem, eu aceito o pagamento para
satisfazer sua curiosidade – Completou com a boca cheia.

– Hei!

– Nunca é bom ficar longe de quem a gente ama –


Victor continuou – Uma vez ela precisou viajar para a casa da
mãe e ficamos duas semanas separados, eu me senti um
drogado em abstinência – Ele riu – Eu lembro que eu pensava
tanto nela que às vezes sentia seu cheiro, do nada, como se ela
estivesse ali na minha frente. Mas não estava, é claro. E tinha
aquela sensação estranha no peito, e como eu ficava aliviado
quando ela ligava ou me mandava uma mensagem. Eu até
passei em frente à casa dela algumas vezes, mesmo sabendo que
não tinha ninguém lá. E eu nem sei por que estou te contando
isso, até porque você deve saber muito bem como é se sentir
assim. Sente falta do seu namorado?

Maya não havia se dado conta de que o sorvete estava


derretendo em sua colher sem que ela terminasse de o levar à
boca. Assim que Victor terminou de falar o suco de morango
com laranja, já que definitivamente não era mais sorvete,
escorreu por sobre a pele descoberta do seu decote, fazendo-a
retesar pelo repentino toque gelado.

– Ah, droga.

– Calma, eu te ajudo – Victor estendeu uma das mãos


até muito próximo do seio de Maya, que por sua vez estava
levemente confusa. Com o copo de sorvete em uma das mãos e
a colher na outra, ela apenas ficou olhando o líquido vermelho
escorrendo até alcançar o vestido. Só conseguiu se mover
quando percebeu a presença de Victor perto demais, e deu um
passo para trás, sobressaltada.

– Está tudo bem – Ela conseguiu dizer – É só sorvete.

Victor ergueu os ombros num gesto que Maya não


soube muito bem o que queria dizer, mas ela percebeu que ele
estava levemente trêmulo quando trouxe a própria mão para
perto de si e a fechou, fazendo força o suficiente para que ela
pudesse ver as veias que saltavam sob sua pele.

Maya se limpou e continuaram caminhando.

– Faltam doze minutos para o Cruzeiro zarpar – Victor


quebrou o silêncio que se seguiu quando chegaram de volta ao
cais.

– Eu não quero entrar agora – Maya respondeu,


resistindo em deixar para trás a cidade de Buenos Aires e sua
curta e estranha experiência nela.
– Vem, aqui – Victor a chamou e sentou-se no cais.
Estavam a uma distância curta da embarcação. Podiam ouvir o
barulho das pessoas que se apressavam para entrar e até
algumas conversas soltas dos funcionários que começavam os
preparativos para fechar a entrada e anunciar a partida.

Maya sentou-se ao lado de Victor. Haviam mais alguns


barcos e iates no porto, embora o Pollux Stars fosse o maior de
todos.

– A lua está enorme – Notou Maya, pela primeira vez


na noite.

– Parece um biscoito gigante – Emendou Victor.

Maya o olhou confusa antes de cair na gargalhada. Não


fazia ideia de onde ele havia tirado isso, mas, parando para
pensar, parecia mesmo. Ele também riu, mas dela, que não
conseguia parar de gargalhar.

Maya precisou de um tempo para se acalmar. Por fim,


apoiou as mãos no cais, ao lado do quadril, e estendeu o rosto
um pouco mais para frente para sentir o vento, com os olhos
fechados. Os cabelos soltos dançavam e acariciavam seu rosto.

– O que está fazendo? – Victor perguntou.

– Silêncio, o vento está me beijando – O vento gelado


tocava o rosto dela com delicadeza, causando-lhe uma leve
cócega.

Maya ainda estava com os olhos fechados, tentando se


concentrar na sensação gélida e no som do vento, ignorando os
passos apressados não muito distantes dela. Mas pôde perceber
que Victor também apoiou as mãos ao redor de si e se
perguntou se ele também estava com o rosto projetado para a
frente do corpo como ela. O pensamento a fez sorrir em
silêncio. Estava feliz por estar ali. Vivendo precisamente aquele
momento. Sem passado, sem futuro, só o vento gelado, a lua
sob suas cabeças e o cheiro de perfume fresco que emanava de
Victor.

Por um instante, sentiu que ele estava mais perto do que


ela podia imaginar, que estava com sua mão há centímetros da
dela. Podia abrir os olhos e ver, podia perguntar, podia fazer
nada. Mas diante de todas as possibilidades, começou a arrastar
seu dedo mindinho mais que lentamente em direção a ele. Ela
sentia a aspereza da madeira sob ela, mas continuava. Tão
devagar que parecia não estar se movendo. Mas seu coração
estava disparado como se ela se movesse em alta velocidade.

Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, e que


fora preenchido por uma agonizante sensação que lembrava
vontade de vomitar, seu dedo tocou algo. Só então ela percebeu
que havia prendido a respiração. Foi rápido, mas seu corpo
explodiu em adrenalina e de repente nem o vento era capaz de
esfriar suas bochechas.

Ela abriu os olhos e virou-se. Não para Victor, mas para


a própria mão. E lá estava, as duas mãos se tocando
timidamente, ambas com o mindinho longe demais dos outros
dedos. Quando levantou os olhos para encontrar os de Victor,
que a encaravam profundamente, sentiu todo o corpo
paralisado. Não conseguia respirar, ou falar algo, ou afastar-se
dele, ou deixar de olhar para ele. Por alguns segundos, foi
surpreendida pela total incapacidade de pensar lucidamente em
qualquer coisa. Estava enfeitiçada, ou doente, ou talvez fosse
mesmo vomitar. Quando a sensação estranha e perturbadora
subiu-lhe as costas como um arrepio quente, o cruzeiro emitiu o
que pareceu ser o som mais alto que Maya ouvira na vida. Era
uma buzina, o Cruzeiro ia zarpar.

Eles se levantaram assustados e entraram no Cruzeiro.


Haviam se despedido antes de cada um seguir para uma direção
diferente, mas Maya mal se lembrava de quais palavras
exatamente foram ditas. Adentrou a própria cabine convicta de
que estava enferma, passando mal, e de que talvez devesse ir à
enfermaria. Ou que uma noite de sono pudesse ajudar.

Enquanto decidia se ia dormir, se tomava algum


remédio ou se tomava um banho frio, ouviu o celular tocar. Era
Thomás.

– Estrelinha? Você morreu ou só esqueceu que os


amigos pobres existem?

– Eu esqueci que vocês existem.

– Estou vendo – E riu sarcasticamente – Como você


está?

– Na verdade, acho que não estou muito bem.

– O que está sentindo? O que houve?

– Eu não sei muito bem. Estou meio enjoada, eu acho.

– Não é por conta do movimento do mar? Sempre ouvi


que as pessoas ficam enjoadas em viagens marítimas.

– Faria sentido se fosse o primeiro dia. Algumas


pessoas realmente passaram mal, mas eu não tive muita
dificuldade. E na verdade eu nem estava no Cruzeiro quando
começou.

– Não estava no Cruzeiro?

– Fizemos nossa primeira parada hoje. Estamos em


Buenos Aires. Fui dar um passeio rápido pela cidade antes de
voltar a bordo.

– Mon cherie, fico tão preocupado de você estar


perambulando sozinha por cidades que não conhece. Tem
certeza que é seguro?
– Ah, eu não estava sozinha.

– Não?

– Victor foi comigo.

– O cara da boate?

– Sim, ele.

– Hum, entendo. Maya, meu bem, você não acha que


faria bom um pouco de descanso? Talvez esteja só estressada
com a pressão dos últimos dias.

– Eu acredito que seja isso, também. Vou tomar um


banho e dormir.

– Isso, faça isso. Se continuar se sentindo mal procure


ajuda médica, está bem?

– Sim, senhor.

– Jura?

– De mindinho – Esse era o juramento deles desde


sempre, mas as palavras saíram da sua boca sem que ela
pudesse pensar e quando pensou, sentiu mais uma ânsia
violenta. As lembranças de minutos atrás a invadiram como
uma inundação e ela precisava emergir e respirar um pouco –
Eu acho melhor ir agora.

– Boa noite, estrelinha. Não esqueça de me ligar ou dar


notícias de vida. Amo você.

– Eu também amo você – E desligou.

Ao olhar para a tela do celular, viu duas chamadas


perdidas de Henrique. Não havia levado o celular para o passeio
porque seria rápido e ela teve medo de ser assaltada. Olhou para
a tela novamente, o nome do namorado, as palavras "chamada
perdida", o fundo vermelho trazendo o senso de urgência para a
notificação. Jogou o celular na cama, respirou fundo e foi para o
banheiro. O banho acalmou seus nervos e de fato melhorou a
sensação nauseante que a afligia. Ao sair, viu o aparelho jogado
na cama e apenas tomou o cuidado de não se deitar sobre ele.
Adormeceu.
7
Ervas e Limão

Depois da noite em Buenos Aires, Maya passou a


procurar por tranquilidade. Não estava acostumada a ser
atormentada por tão inquietantes sensações e decidiu que
deveria colocar a própria vida nos trilhos, pois definitivamente
estava descarrilhando. Ela mal sabia explicar para si mesma o
que havia acontecido e por que as lembranças daquela noite
faziam com que ela sentisse estar descendo uma montanha-
russa em alta velocidade. Mas ela estava, e se não parasse iria
morrer. Parte dessa tranquilidade envolvia manter uma distância
segura de Victor, pois aproximar-se demais dele fazia ela sentir
a coisa estranha no estômago.

Policiou-se para manter um contato mais frequente e


afetuoso com o namorado e sempre que pensamentos intrusivos
a faziam pensar na descarga de adrenalina que lhe assaltou
quando sua mão tocou a de Victor naquela noite, tentava focar
em seu trabalho. Nem sempre funcionava, mas estava se
tornando boa nisso.

Victor continuava usando a cabine de Maya para


dormir no intervalo do almoço e às vezes também durante o
jantar. Para além disso decidiram que conheceriam o máximo
de cidades que conseguissem, e assim foi feito. Juntos,
passearam por Montevideu, Porto Madryn, Ushuaia e Punta
Arenas. Mas não tiveram a oportunidade de conhecer
Chacabuco, porque Monteiro solicitou uma reunião no curto
período que teriam para descer do Cruzeiro. Em algumas
paradas eles podiam desembarcar durante a noite, depois do
expediente, outras eram mais curtas e coincidiam com o horário
de trabalho deles, então saíam no horário de almoço.

Estavam há 18 dias em alto-mar e Maya sentia que


fazia uma eternidade. Havia acontecido mais coisas nesse curto
intervalo de tempo que nos últimos meses de sua vida antes da
viagem. Às nove horas daquele dia o Pollux Stars ancorou em
Puerto Montt e Maya e Victor pretendiam conhecer a catedral
da cidade, um dos principais pontos turísticos da região.

Pela manhã, a primeira coisa que Maya fez foi ligar


para Henrique.

– Bom dia, querida – Ele a cumprimentou, com voz de


quem acabou de acordar.

– Bom dia, amor.

– Estou morrendo de saudade. Mal consegui dormir


pensando em você.

Maya soltou um risinho – Também estou com saudade


– Respondeu.

– Não vejo a hora dessa viagem acabar e eu ter você de


volta.

Maya não esperava tão ansiosamente por este


momento. Pensar no fim da viagem não costumava despertar
nela boas sensações. Mas respondeu afetuosamente sobre como
gostaria de revê-lo.

– Hoje você trabalha no porão? – Ele questionou.

– Sim. Infelizmente. Você não faz ideia do quanto é


quente. E barulhento.
– Só me resta imaginar. Mas amanhã você poderá
trabalhar da piscina, da biblioteca ou de um dos restaurantes –
Desde que decidira se comunicar mais efetivamente com o
namorado, Maya passou a contar-lhe sobre os lugares inusitados
em que trabalhava quando estava livre para escolher. Parte dela
acreditava firmemente que se compartilhasse mais do seu dia-a-
dia com ele, coisa que não costumava fazer, iria passar a sentir-
se mais conectada. Ela ainda não havia percebido mudança, mas
era paciente.

– Ainda não pensei onde ficarei amanhã – Riu – Você


está animado para o almoço com os investidores?

– Me sinto preparado, mas não sei se animado é a


palavra certa. É sempre muita burocracia, entediante. Apesar
disso é uma reunião importante.

– Você vai se sair muito bem. Preciso ir agora, meu


bem. Nos falamos mais tarde?

– Espero você ligar.

– Tenha um bom dia.

– Você também, querida.

Estava chovendo há dois dias sem parar. O mar estava


agitado e a experiência de estar num cruzeiro no meio do
Pacífico sem nenhum firmamento de terra à vista não era
reconfortante. A tempestade a fez pensar em naufrágios e
depois no Titanic e em seguida em Sabrina, pois esse era seu
filme favorito. Sabrina morria de medo do mar.

Entre todos os assuntos que afligiam o coração de


Maya, Sabrina tornara-se um dos mais preocupantes. Em
conversas recentes com a amiga descobriu que ela não parara de
conversar com Jorge e que, na verdade, a relação deles estava se
tornando algo mais consistente que apenas dois colegas de
trabalho que ficaram depois de uma festa. Sabrina estava
ansiosa pelo retorno dele e parecia que não somente
considerava um possível relacionamento mais sério como
começava a nutrir sentimentos pelo rapaz. E Maya temia muito
que a amiga estivesse apostando seus sentimentos em alguém
não confiável.

– Você acha que nossos amigos refletem nosso caráter?


– Maya perguntou a Victor depois de algumas horas
trabalhando ao seu lado.

– Como é?

– Por exemplo – Ela soltou as mãos do notebook e


virou-se para ele – Hipoteticamente, eu tenho uma amiga que
está se relacionando com um cara.

– Hipoteticamente?

– Isso.

– Certo.

– Mas acontece que ele tem uma espécie de melhor


amigo e por mais que o cara em questão pareça ser uma boa
pessoa, seu amigo é um ser humano detestável. Intragável.
Você acha que, no fundo, isso quer dizer que o namorado da
minha amiga também seja assim?

– Faz parte da sua personalidade esses dilemas morais,


não é? – Victor ironizou. Maya revirou os olhos – Mas eu acho
que sim. Quer dizer, talvez ele não seja tão horrível como esse
amigo de quem fala. Mas definitivamente os amigos que
escolhemos ter ao longo da vida são um reflexo de nós mesmos.

Maya virou-se lentamente de volta para o computador,


as sobrancelhas juntas e os pensamentos fluindo tão
rapidamente que Victor quase podia ouvir as engrenagens de
seu cérebro girando.

– Por que está perguntando isso?

– Não posso explicar agora.

– Você pensa diferente?

– Não, eu concordo com você. O que é péssimo pra


situação.

– Já tive péssimas amizades, mas só soube depois.


Geralmente busco me aproximar de pessoas que eu admiro. Não
faz sentido ser próximo de alguém com ideais e princípios tão
diferentes dos seus. Deve ser por isso que não tenho mais
amigos.

– Hei. Você disse que sou sua amiga – Maya protestou,


ofendida.

– Ah é, verdade – Victor emendou teatralmente,


deixando Maya perceber que havia dito não ter amigos apenas
para irritá-la – Mas não seria seu amigo se você fosse, como
disse mesmo? Intragável? Felizmente você é o exato oposto
disso.

– O que seria o exato oposto de intragável?

Victor parou de mexer em seu notebook e a analisou


por meio segundo antes de responder pausadamente, enquanto
pensava nas palavras apropriadas:

– Seria uma pessoa extraordinária.

Victor voltara para o que estava fazendo, sem o menor


sinal de perturbação, como se dizer algo assim fosse
perfeitamente normal. Mas Maya sentia arrepios pelo corpo
como se as palavras dele lhe fizessem cócegas.

– Você acha que eu devia falar a ela? – Maya


perguntou.

– Alguma chance de você me explicar quais coisas


horríveis esse cara fez?

– Digamos que ele trai a companheira dele. E o


namorado da minha amiga sabe e aceita, ou acha normal, ou
não vê problema nisso, sei lá.

– Bem, eu gostaria que tivessem me contado quando


aconteceu comigo – Victor fez um sinal de chifre com a mão e
ergueu até a parte de trás da sua cabeça – Você sabe.

Maya não conseguiu evitar o riso.

– Não seja bobo – Continuou rindo – E ela não está


sendo traída.

– Tem como você saber? Afinal de contas ele aceita,


acha normal ou não vê problema nisso – A maneira como
Victor constantemente a imitava deixava Maya irritada, mas de
certa maneira ela também achava engraçado. – E você não
devia pedir minha opinião nesse assunto. Sou totalmente
parcial, líder de torcida do time de quem odeia traidores.

– Você é uma líder de torcida? – Maya ria enquanto


imaginava Victor usando uma mini saia e pompons.

– Claro que sou. A mais popular do colégio.

Fosse uma situação normal, Maya não teria dúvida


quanto a ser sincera com a amiga e a alertar sobre a possível
situação de perigo. Mas a verdade era que, apesar de muito
amigas, as relações íntimas de ambas não eram um assunto
muito discutido entre elas. Maya tinha suas próprias razões para
evitar falar de Henrique, e ela só sabia que Sabrina estava
solteira, era adepta dos romances casuais e não costumava se
envolver com colegas de trabalho. Até mesmo porque era
contra a política da empresa. Inclusive estava sendo muito
difícil conseguir informações sobre o avanço da relação dos
dois, pois Sabrina era muito reservada. Ela não sabia se a amiga
aceitaria muito bem um palpite que não pediu sobre um assunto
que não gostava de conversar. Mas Victor estava certo, era o
certo falar.

Pouco tempo depois, estavam dentro da catedral feita


de madeira, com ilustrações entalhadas e uma enorme torre
central onde era ostentado um crucifixo.

– Posso ser sincero? – Victor perguntou sussurrando,


pois além dos dois haviam mais algumas pessoas sentadas nos
bancos admirando a decoração ou rezando – Eu esperava mais –
Continuou, sem esperar Maya responder.

– Eu também – Admitiu – Podíamos ter ido a qualquer


outro lugar. O que acha de um restaurante e um pouco de vinho
chileno?

– Você sabe que eu não bebo – Victor deu-lhe uma leve


cotovelada.

Apesar da menção de ir embora, ambos permaneceram


sentados por mais algum tempo, olhando a imagem de Jesus
crucificado acima do altar.

– Você é religiosa? – Victor quebrou o silêncio outra


vez.

– Nem um pouco.

– Sério? Pensei que fosse.


– Por que?

– Já ouvi você e Sabrina repetindo algo sobre trindade


divina algumas vezes.

Maya o olhou incrédula. Suas bochechas ficaram


vermelhas instantaneamente.

– O que você me ouviu falar? – Ela ousou perguntar.

– Algo como amém, aleluia e abençoado seja.

Apesar de envergonhada, Maya teve de segurar a risada


para não assustar os fiéis – ou turistas curiosos como eles; se
sentia uma criança flagrada fazendo travessuras.

– Estávamos falando de você – Ela admitiu. Victor a


encarou confuso e ela continuou – Sabrina dizia que vocês três
eram uma espécie de trindade divina. Você, Jorge e Igor.

– Como assim?

– Ela dizia que Jorge era o deus da gentileza, Igor o


deus dos babacas e você – Ela fez uma pausa, sentindo prazer
ao perceber que ele estava ansioso por saber – o deus da beleza.

– O quê? – Victor riu alto o suficiente para que algumas


pessoas nos bancos sentadas à frente deles os olhassem de cara
feia – Acho melhor sairmos daqui – Ele disse levantando e
estendendo a mão para Maya.

Já do lado de fora, caminhando de volta para o


Cruzeiro, Victor insistiu em saber mais sobre a curiosa religião
daquelas mulheres.

A chuva tinha diminuído, mas algumas gotas ainda


lambiam o cabelo de ambos.
– De onde vocês tiraram isso?

– Sabrina começou. Os apelidos acabaram pegando.

– Eu não sei se acho isso uma bobagem tremenda ou a


coisa mais engraçada que ouvi nos últimos dias.

– Você tem que admitir que faz um pouco de sentido.

– Então você concorda com isso?

– Em parte. Jorge é realmente a personificação da


gentileza. Isso quando ele não é a personificação da
complacência, devo acrescentar. Igor, por outro lado, na minha
opinião, não merece o título de deus. Nem mesmo para ser o
deus dos babacas. Quanto a você – Maya ergueu uma
sobrancelha, fingindo analisá-lo – É realmente um homem
muito bonito.

– Isso é o que você diz ou só está repetindo a opinião de


Sabrina?

– Todos dizem isso. As pessoas falam muito de você.

Victor não escondia estar se divertindo com tudo o que


Maya lhe contava.

– Estou curioso para saber mais.

– Dizem que você é um bonitão libertino que não poupa


esforços para conquistar as novatas da empresa. Se não me
engano, a última fofoca que chegou até mim foi que você estava
saindo com a Sandra da recepção.

– Mas que mentira! – Victor de repente pareceu


realmente ofendido – Você sabe que isso é mentira, não é?

– Como vou saber?


– Eu não saio com alguém desde que... – Victor abriu a
boca para falar algumas vezes, mas acabou desistindo. Parecia
irritado quando disse que deviam se apressar para não perderem
o Cruzeiro.

A tarde passou de maneira agradável. Maya contou a


Victor todo tipo de coisa que havia ouvido falar sobre ele.
Victor negou algumas, concordou com outras. Maya também
descobriu que falavam sobre ela. A fofoca era definitivamente
um setor ativo na Ivory. Falaram que ela tinha terminado seu
relacionamento, que ela e Sabrina eram amantes e que ela
estava grávida.

– Santo Deus! Não se pode acreditar em nada do que é


dito na Ivory – Maya gargalhava.

– Não mesmo. Mas eu sabia que era tudo mentira sobre


você.

– Como? Por acaso você é uma espécie de ser humano


evoluído?

– Eu sabia que você não tinha terminado o namoro


porque ainda usava a aliança – Apontou para a mão direita de
Maya, onde ela usava sua fina aliança de prata – E sabia que
não estava grávida porque o boato surgiu na mesma semana em
que chegou saltitando no escritório dizendo para Sabrina que
tinha uma notícia maravilhosa para dar a ela. Mas eu ouvi
quando disse que a notícia era que você conseguiu comprar os
ingressos para o show de Imagine Dragons que tanto queria ir.
Imaginei que alguém tinha tirado sua fala de contexto e
presumido que a boa notícia era um baby Maya.

– Nossa, você observa tudo isso?

– E eu sei que não é amante de Sabrina – Ele ignorou o


comentário dela – porque você não olha para ela daquele jeito.
– Que jeito?

– O jeito que pessoas genuinamente atraídas uma pela


outra se olham.

Maya ficou alguns minutos tentando imaginar como era


esse olhar e se ela já olhou assim para alguém. Será que alguém
que a visse ao lado de Henrique diria que ela está apaixonada?
Ou, melhor, genuinamente atraída? Interrompendo seus
pensamentos, Victor virou-se para ela:

– Maya, se quiser saber algo sobre mim, qualquer coisa,


pode me perguntar. Por mais que suas perguntas sejam
estranhas, juro responder sinceramente.

Maya concordou com um sorriso contido, Victor sorriu


de volta, satisfeito.

Mais tarde, no jantar, Maya sentou-se na mesa ao lado


de Monteiro tentando ao máximo ignorar as presenças de Jorge
e Igor. Nem sempre Monteiro solicitava a presença de todos,
mas quando ele queria atualizações – ou estava solitário –
enviava-lhes uma mensagem com o horário que deveriam
comparecer ao restaurante. Victor não estava lá. Como haviam
saído no horário de almoço, o pobre não teve como dormir.
Maya não tentou convencê-lo a acompanhá-la, mesmo sabendo
que tê-lo ali tornaria a ceia mais fácil, porque ultimamente ele
estava apresentando cada vez mais sinais de privação de sono.

– Você está linda, Maya – Monteiro a cumprimentou


assim que ela chegou. Igor, do outro lado da mesa, ergueu os
olhos e a examinou de cima a baixo com uma de careta de
desaprovação. Se Maya pudesse envazar e vender a raiva que
sentia por aquele homem, não precisaria trabalhar nunca mais
em sua vida.

– Ela sempre está – Jorge concordou e sorriu. Ela sorriu


de volta, ainda que não tivesse se decidido sobre o que pensar
sobre ele. Como alguém tão gentil pode ser amigo de Igor por
vontade própria?

– A alta gerência da Ivory está muito satisfeita com o


desempenho do protótipo. As reuniões para decidir um nome
oficial já estão acontecendo – Monteiro anunciou assim que
terminaram a entrada – Assim que retornarmos vocês terão
muito trabalho pela frente, mas também muito prestígio. Estou
orgulhoso.

– Está dizendo que participaremos dessas reuniões? –


Igor perguntou. Maya também estava interessada, esse seria um
avanço incrível em sua carreira. Ela sabia como funcionava
essas reuniões. Haveriam investidores, gestores e donos de
grandes empresas parceiras. Seria a chance de ser vista como
uma grande engenheira dentro e fora da Ivory.

– Pode apostar que sim – Os olhos de Monteiro


brilhavam.

– Mas nós quatro? – Insistiu Igor – E quando digo


quatro estou falando também de Victor que nunca mais deu as
caras no jantar, mas deve estar fazendo algo importante por aí –
A malícia na voz de Igor fez os pelos dos braços de Maya
eriçarem.

– Claro que sim. Vocês trabalharam juntos no projeto


desde quando não passava de rabiscos num papel.

– Eu entendo, claro, mas acho que para merecer uma


apresentação entre os grandes devíamos todos nos esforçar. Não
acha, Monteiro?

– Acho que todos vocês estão se esforçando – E


chamou o garçom para solicitar uma outra taça de vinho.

Maya sabia onde Igor queria chegar com aquela


conversa, mas escolheu se abster de qualquer comentário e
aproveitar a noite da melhor maneira que conseguisse. Parte
desse plano exigia que ela não dirigisse a palavra a Igor. Para
além disso, confiava que Monteiro não se influenciaria tão
facilmente sobre seu pupilo.

Apesar das frequentes alfinetadas de Igor, Maya


conseguiu se alimentar bem e despedir-se de Monteiro sem
grandes problemas. Estava animada com as notícias e queria
poder partilhá-las com Victor quando se encontrassem na
manhã seguinte.

No caminho de volta, digitou uma longa mensagem


contando a Sabrina tudo o que achava que ela merecia saber. A
amiga não estava online, mas ela havia feito sua parte. Logo em
seguida ligou para Henrique, como prometido.

– Essa é uma ótima notícia, Maya! Vocês serão


recompensados, afinal. Reconhecidos.

– Estou tão animada!

– Fico feliz por isso, querida. Quando você voltar,


tenho uma surpresa.

– Ah, não faz isso! Você sabe que eu fico ansiosa.

– Não adianta insistir, desta vez não vou ceder aos seus
encantos – Maya choramingou – Você vai gostar, eu espero.

– Vindo de você eu tenho certeza que AHH! – Maya


soltou um grito estridente.

– Maya? O que houve? Você está bem?

– Sim, estou. Acho que foi só um inseto. Amor, posso


te ligar pela manhã? Estou um pouco cansada.
– Você me assustou. Claro, querida. Tenha uma boa
noite.

– Você também.

A surpresa de Maya tinha quase dois metros de altura,


cabelos negros como a noite e o par de olhos azuis mais bonitos
que ela já vira. E estava sobre sua cama, agarrado ao seu
travesseiro, num sono profundo.

Nas noites anteriores, Victor já havia saído de sua


cabine quando ela retornava do jantar. Dizia que um cochilo de
pouco mais de uma hora era o suficiente para ele. Ela insistira
para ele ficar por mais tempo algumas vezes, alegando que iria
para alguma programação noturna do Cruzeiro e voltaria tarde,
mas nunca o encontrou ao retornar. E agora lá estava ele. Maya
se aproximou, um tanto curiosa. Os cabelos de Victor
emolduravam seu rosto e ele respirava pesadamente pela boca
entreaberta. Parecia tão cansado que ela sentiu pena.

Maya sabia que devia acordá-lo, e até tentou fazê-lo,


mas falhou miseravelmente. Primeiro pensou em chamar seu
nome, mas não conseguiu emitir mais que curtos sussurros.
Depois pensou em tocá-lo ou sacodir seu braço, mas não teve
coragem. Por fim, depois de desesperar-se por alguns minutos
sem saber o que fazer, decidiu deixá-lo dormir. Ela se banhou,
arrumou-se para dormir e apanhou alguns lençóis que estavam
no armário e deitou-se no chão.

Quarenta minutos depois ela já estava amaldiçoando


todos os ossos do próprio corpo. Tudo nela doía.

Ela queria deitar na cama. Só porque era muito mais


confortável, claro. Não havia nenhum outro motivo. Não tinha
nada a ver com a possibilidade de dormir tão próxima de Victor
e muito menos com o prazer de sentir o cheiro fresco que
emanava dele. Era um cheiro de banho tomado com ervas e
limão e mais alguma coisa que sua total falta de conhecimento
em notas olfativas a impedia de descrever. Mas era uma delícia.

Maya ponderou sobre essa possibilidade e quanto mais


pensava, mais parecia tentador. Victor estava num sono tão
profundo que era improvável que ele acordasse. Seria
inapropriado, óbvio, mas uma consequência de algo além do
controle dela. Ela não tinha culpa de Victor não conseguir
dormir com Monteiro, não tinha culpa de ele ter entrado em
coma em sua cama. E ela também precisava dormir.

– Diabos – Praguejou enquanto se rendia e, lentamente,


deitava-se ao lado de Victor.

Victor pareceria uma estátua, não fosse os movimentos


causados pela respiração. Uma estátua de um deus grego pagão.
Mulheres e homens se ajoelhariam em frente a ele para fazer
suas preces e Maya podia se imaginar fazendo algo assim.
Certas religiões valiam a pena.

Havia uma distância entre os corpos dos dois. Romper


essa distância estava muito além do que Maya tinha coragem de
fazer. Mas em seus pensamentos... Céus, o que ela estava
pensando? Isso já era demais. No momento em que abriu os
olhos decidida a levantar-se da cama, foi surpreendida pelo
abraço de Victor que, depois de se mexer, estendeu o braço
sobre ela da maneira que fizera com o travesseiro.

O peso dele sobre ela a paralisou. O calor que emanava


dele a fez se sentir confortável. O cheiro dele a estava
enlouquecendo. Todas as terminações nervosas de seu corpo
estavam em alerta, implorando por mais contato. Ela desejou,
desesperadamente, por mais. Mais contato, mais calor, mais da
sensação sufocante no estômago, mais dele. Maya virou a
cabeça para conseguir enxergá-lo, e percebeu que ele ainda
dormia profundamente. Agradeceu a todos os deuses que
conseguiu se lembrar por isso. Afinal, estava a salvo. Ao menos
por mais uma noite.
8
Falha no Motor

Ela não demorou para adormecer. Depois de se acalmar


e passar a respirar normalmente, permitiu-se dormir no conforto
do abraço de Victor. Ela não queria se mover, não queria
acordá-lo. E parte dela só queria permanecer ali. Em seus
sonhos, quando olhara para trás à procura do rosto dele,
encontrara olhos azuis profundos em sua direção, fitando-a
profundamente enquanto a mantinha perto de si. Ele a olhava
como na noite do cais, em Buenos Aires, e então Maya
entendeu o que ele quis dizer com o olhar entre dois amantes.
Foi um sonho vívido, quente e que tornaria a ser lembrado por
ela nos dias seguintes.

Maya acordou pouco antes do seu despertador, como se


pressentisse o findar da noite mais incomum da sua vida. Ela
estava na mesma posição em que dormiu, mas seu corpo inteiro
tocava o de Victor, que continuava a abraçando por trás; não
saberia dizer quem se aproximou ainda mais durante a noite. O
braço direito dele a entrelaçava por debaixo do dela e a mão
dele repousava em seu pescoço. Ele estava tão perto que as
costas de Maya estavam aquecidas pelo calor do corpo dele, ela
podia sentir a respiração dele em sua nuca.

Ficara ali, apenas apreciando aquela sensação, até que


pôde sentir Victor se mover, lentamente. Ele a abraçou mais
forte enquanto afundava o rosto no cabelo dela, inspirando
repetidas vezes. Ela podia sentir a ponta do seu nariz
percorrendo pequenos círculos. Até que, de repente, parou de se
mexer.
– Maya? – Victor sussurrou em seu ouvido.

Ouvir a voz de Victor e ter certeza de que ele não


estava mais dormindo fez com que o coração dela disparasse.
Estivera achando que ele ainda estava dormindo e com a
surpresa levantou-se rapidamente da cama. No processo, bateu
com o cotovelo no nariz do rapaz.

– Hei! Quer quebrar meu nariz de novo? – Ele


perguntou, sentando na cama e cobrindo o nariz com as mãos.

– Me desculpe! – Maya se apressou em dizer – Eu sinto


muito, não quis te machucar.

Ao invés de responder, Victor olhou à sua volta, dando-


se conta de onde estava. Depois olhou para Maya, que usava
uma camisola curta de cetim azul marinho.

– O que aconteceu aqui?

– Nada! – A voz de Maya saiu esganiçada – Nada, não


aconteceu nada – Disse mais suavemente – Quando eu voltei do
jantar você estava dormindo feito uma pedra. Fiquei com pena
de te acordar.

– Ah, Deus – Ele mexeu no próprio nariz como a


verificar se está tudo bem e em seguida massageou as têmporas
com os dedos indicadores – Eu estava com uma dor de cabeça
horrível. Devo ter caído no sono de novo, me desculpe por isso
–Tirou as mãos das têmporas puxou um dos lençóis sobre si,
cobrindo-se até a cintura.

– Tudo bem. Não precisa se desculpar. Você não dorme


bem há dias.

Quando Victor ergueu os olhos novamente, Maya


sentiu a pele queimar conforme ele passeava os olhos sobre ela
que só então se deu conta de que ainda estava usando roupas de
dormir. As bochechas de Victor ficaram avermelhadas. Com o
mesmo tom que ficaram quando suas mãos se tocaram no cais.
Era delicado e convidativo, mas também ardente.

– Eu ia dormir no chão – Disse em sua defesa, enquanto


tentava inutilmente puxar o tecido da camisola para que
cobrisse mais uma porção das pernas expostas.

– Não – Victor balançou a cabeça negativamente – Eu


ficaria extremamente irritado de saber que você dormiu no chão
porque eu roubei a sua cama – Ele falava, mas não olhava nos
olhos dela, ainda estava preso nas pernas brancas e desnudas de
Maya – Isso não voltará a acontecer, prometo.

Victor fez menção de levantar, mas desistiu no meio da


cama e virou-se outra vez para Maya:

– Você pode olhar para lá?

– Por que? Você está vestido.

– Por favor, Maya.

Ela obedeceu. Pôde ouvi-lo sair da cama, calçar os


sapatos e despedir-se com pressa, fechando a porta da cabine
com força quando saiu e deixando Maya completamente
absorta. A única coisa capaz de trazer-lhe de volta à realidade
foi o som do despertador que, sem aviso prévio, anunciou o
começo de um novo dia.

Maya demorou mais que o habitual no banho aquela


manhã. Sentia necessidade de refrescar-se, uma vez que sua
pele ardia de calor. Talvez fosse porque passaram pela
tempestade dos últimos dias e agora o sol brilhava majestoso no
céu.

Quando saiu para trabalhar, e felizmente não ficaria no


porão, foi direto para a biblioteca. Não tinha combinado com
Victor o lugar de onde trabalhariam naquele dia e tampouco
sentia-se à vontade em mandar-lhe uma mensagem. Então
colocou seus materiais de trabalho sobre uma das mesas e
começou.

Sabrina finalmente havia respondido suas mensagens.


Maya estivera preocupada com a demora da amiga, pensando
que a havia ofendido com sua intromissão. Embora, em
concordância com Victor, gostaria de saber se fosse ela. Sabrina
odiava Igor, mais que qualquer outra pessoa viva, mas se
mesmo assim estava tão determinada a envolver-se com Jorge,
seu melhor amigo, o sentimento envolvido não devia ser fraco.
Sabrina agradeceu a informação e perguntou-lhe mais detalhes
sobre a viagem, no que pareceu a Maya uma tentativa de mudar
de assunto.

– Procurei você em todo lugar – Victor disse ao sentar-


se ao lado dela, cerca de uma hora depois.

– Monteiro te falou sobre a reunião? – Maya puxou


outro assunto.

– Não. Não o vejo desde ontem. Que reunião?

– Ele disse que o projeto está sendo um sucesso. Que


quando retornarmos poderemos participar de algumas reuniões
com investidores.

– Nós? Os engenheiros? – Victor estava incrédulo –


Alguma coisa deve ter dado muito certo.

– Pensei a mesma coisa.

– Será uma ótima oportunidade.

– Sim, para todos nós. Só precisamos garantir que tudo


permaneça na mais perfeita ordem.
– Já estamos fazendo isso – Victor apontou para o
próprio computador.

Minutos depois o telefone de Maya tocou. Era


Henrique. O celular dela estava em cima da mesa e quando o
nome "Amor" apareceu na tela, Victor fingiu não ter visto.

– Me dê um minuto, eu já volto – Maya disse a Victor


enquanto se retirava da biblioteca para atender.

– Querida?

– Oi, amor, bom dia.

– Você não ligou de manhã e não respondeu minhas


mensagens, fiquei preocupado. Está tudo bem?

– Está sim, eu só acordei um pouco atrasada.

– Estou atrapalhando?

– Consegui sair rapidinho para te atender. Mas não


posso demorar.

– Tudo bem, só queria me certificar de que o inseto de


ontem a noite não te matou.

– Que inseto? Ah, sim, o inseto. Eu consegui espantá-


lo.

– Que mocinha corajosa – Ele brincou.

– Maya, tem algo de errado acontecendo – Victor


gritou.

– Preciso ir, amor, te ligo depois – Respondeu ao


telefone e desligou, caminhando apressada de volta à biblioteca.
Nos minutos em que ela manteve os olhos longe da tela
do computador, os gráficos mudaram radicalmente. Antes eles
registravam a marca de 11% de economia de combustível em
tempo real. Agora estava marcando apenas 5%. Não era nada
normal já que os maiores índices de economia eram registrados
quando estavam em velocidade constante, e já estavam em alto-
mar desde o final da tarde de ontem.

– Que porra é essa? – Maya questionou.

– Acabou de acontecer. Despencou em questão de


segundos.

– Pode ser um erro no gráfico?

– Eu não sei.

Sem precisarem dizer mais palavra, Maya e Victor


recolheram suas coisas e foram mais que depressa ao encontro
de Igor e Jorge no porão do cruzeiro.

Quando Maya e Victor adentraram o cubículo onde


Jorge e Igor deveriam estar trabalhando e se certificando de que
o motor do protótipo está em perfeito funcionamento, os
encontraram distraídos. Jorge estava calmamente mexendo no
próprio celular e Victor atirava amendoins japoneses para cima
e tentava apanhá-los com a boca.

– O que vocês estão fazendo? – Victor vociferou.

Igor deixou alguns amendoins caírem no chão com o


susto, Jorge apenas ergueu os olhos para encará-los.

Victor foi direto para os computadores de ambos e


verificou que, de fato, algo estava errado. Perigosamente
errado. O TechMarine havia diminuído drasticamente seu
desempenho.
Maya, que estava atrás de Victor, viu quando Jorge e
Igor se aproximaram do rapaz para verificar o que ele estava
olhando.

– Como podem não ter visto isso? – Victor estava


alterado.

– Hei, vai com calma – Igor interpelou.

– Olha isso! – As vozes de ambos estavam ficando


alteradas e somado isto a estarem num lugar minúsculo, quente
e barulhento, o ambiente rapidamente tornou-se pesado.

– Não grita comigo, cara, tá achando que é meu chefe?

– Não sou, mas o que será que seu chefe pensaria


disso?

– E o que você vai fazer? Vai correr e contar pro papai?


– Igor se posicionou de forma ameaçadora diante de Victor,
quase como se o convidasse para uma briga.

– Cala a boca.

– Cala você! – E neste ponto Igor perdeu todo o


controle, passando a empurrar Victor com a ponta do dedo
enquanto apontava para o peito dele.

– Já chega, já chega! – Maya gritou, sem ousar se meter


no meio dos dois.

– Igor, para – Felizmente Jorge levantou-se e segurou o


amigo, o afastando de Victor – O que você está fazendo, cara?

A raiva nas faces de Igor e de Victor era tão tangível


que beirava o assustador. Ambos eram altos e fortes, embora
Victor fosse um pouco maior. Mas Igor tinha músculos mais
compactos, o que fazia do resultado de um possível embate uma
incógnita total.

Maya caminhou até Victor assim que Jorge e Igor


estavam distantes o bastante.

– Não faz nenhuma besteira – Ela sussurrou e segurou


seu antebraço. Não como uma forma de controle, mas como um
conforto. O que pareceu funcionar, pois Victor aos poucos foi
se acalmando.

– Temos que descobrir o que está acontecendo, e logo –


Jorge disse.

– Temos mesmo, nós dois – Igor disse, enquanto se


soltava dos braços de Jorge que ainda tentavam mantê-lo
afastado de Victor – Porque os dois pombinhos não podem
ajudar com nada – E se apressou em pegar o notebook e sair do
porão. Jorge fez o mesmo e o seguiu, como se não houvesse
mais ninguém no recinto.

– O que vamos fazer agora? – Maya perguntou.

– Verificar cada peça desse maldito motor – Ele


arregaçou as mangas – E pode dizer adeus às reuniões com os
investidores.

Maya e Victor passaram duas horas inspecionando o


motor, procurando por qualquer sinal de desgaste, quebra ou
mau funcionamento, mas não encontraram nada. Não fosse o
gráfico mostrando-lhes que o o protótipo não estava
funcionando com a potência que deveria, parecia que não havia
problema algum. Igor e Jorge não retornaram, mas eles não
perderam tempo pensando no que a dupla caótica estava
fazendo.

Assim que terminaram a inspeção, Monteiro adentrou o


porão acompanhado dos dois funcionários restantes da Ivory.
Monteiro estava transtornado. Maya nunca o havia
visto daquela forma. Suas bochechas estavam vermelhas e o
homem parecia a ponto de soltar fumaça pelo nariz.

– Faz quase três horas que estamos abaixo da margem!


O que estão fazendo que não resolveram isso ainda? – Maya e
Victor estavam suados e sujos e graxa. Jorge e Igor não
paravam de atualizar os gráficos.

– Estamos verificando todas as possibilidades – Igor


respondeu.

– Resolvam isso em uma hora. Ou não precisam mais


resolver – Monteiro disse, numa tentativa frustrada de mostrar
autocontrole.

– Vem comigo – Victor chamou Maya que, atordoada,


o seguiu. Só percebeu que estava de volta à sua cabine quando
adentraram pela porta.

– Aqueles dois não vão ajudar, precisamos descobrir o


que está acontecendo sozinhos.

– O que os dados mostram? – Maya perguntou


retoricamente, espalhando os materiais de trabalho sobre a cama
e sentando, ignorando a sujeira que estavam fazendo.

– Não é normal uma queda tão brusca. E muito menos


com o Cruzeiro em velocidade alta e constante.

– Mas o motor está funcionando normalmente, você


viu, não há uma única indicação de falha – Os dois pensavam
em voz alta para organizarem os pensamentos.

– Isso não faz o menor sentido.


– E se o problema for no gráfico? – Maya disse, por fim
– E se não for um problema real? – Insistiu, chamando a
atenção de Victor.

– O que quer dizer com isso?

– Nós já verificamos que não há um problema


mecânico. E se for um problema na leitura dos dados?

Uma ideia começou a se formar na cabeça de Maya,


inicialmente apenas dispersa e inconclusiva, mas então ela
iluminou-se como uma lâmpada. Era isso.

– Maya.

– Acho que sei o que pode ter acontecido – Maya o


interrompeu – Quem tem permissão para fazer alterações nos
parâmetros dos gráficos?

– Maya – Victor a chamou novamente – Voltamos à


normalidade – Disse enquanto olhava para a tela que mostrava,
novamente, uma margem de 11% de economia.

– Agora? Do nada?

– Sim. Mas não pode ser – Victor olhou por um bom


tempo para a tela, completamente focado, até virar-se
bruscamente para Maya – O que disse sobre os parâmetros?

Maya e Victor voltaram para o porão, despertando


olhares de desprezo pelo caminho. Eles destoavam no meio dos
passageiros bem vestidos. Pareciam uma dupla de mendigos.

Chegando lá, encontraram Jorge Igor sentados diante de


seus notebooks com toda a naturalidade do mundo e Monteiro
de braços cruzados, encarando-os com severidade.

– O que aconteceu? – Victor perguntou.


Igor abriu um novo pacote de amendoim japonês.

– Descobrimos onde estava a falha, consertamos. Você


sabe, nosso trabalho – E virou-se novamente para o
computador.

– E onde estava? Qual era o problema?

– As velas estavam com defeito – Igor respondeu


secamente, sem virar-se novamente.

– Não estavam, não. Eu e Maya inspecionamos todas


elas.

Monteiro, que até aquele momento estava apenas


observando a interação de Igor e Victor, caminhou até ficar
diante de Victor, ainda com os braços cruzados.

– Estavam, sim. O problema foi resolvido, afinal. Eu


esperava mais de você – Disse com um olhar decepcionado para
Victor – De vocês dois – E saiu do porão.

Victor permaneceu imóvel por alguns segundos, como


se não conseguisse processar as informações. Maya teve que
apertar sua mão para que ele se movesse. Antes de irem
embora, Igor virou-se uma última vez.

– É sempre uma grande decepção para um pai perceber


que o filho é um incompetente.

Maya puxou Victor para fora antes que ele tivesse


tempo de responder. Victor parecia tão absorto que era quase
impossível saber se ele havia ouvido Igor. Melhor assim.

Maya também estava tendo dificuldade em entender


tudo o que estava acontecendo. Ela e Victor passaram horas
verificando que não havia um problema mecânico no motor, e
agora Igor simplesmente diz que o problema estava lá o tempo
todo e eles não viram? Mas que absurdo era esse? Eles
trabalharam nesse equipamento por dois anos antes de ele ser
implantado no Cruzeiro para teste, ela sabia exatamente onde
procurar pelo problema, saberia identificar um mau
funcionamento apenas pelo som do motor, é impossível que não
tenha percebido um defeito tão comum.

– Nós verificamos as velas – Victor comentou. Estavam


sentados na biblioteca, nos mesmos lugares em que estavam
sentados antes.

– Verificamos.

– Não tinha nenhum problema.

Maya fitou Victor por alguns segundos, para certificar-


se de que ele estava prestando atenção no que ela dizia.

– Victor, quem tem permissão para alterar os


parâmetros dos gráficos? – Perguntou novamente.

Demorou alguns minutos para Victor sair do estado de


choque e autopunição que ouvir as palavras de Monteiro o
havia colocado. Mas assim que recobrou toda a sua consciência,
deu ouvidos ao que Maya dizia e logo as peças do quebra-
cabeça começaram a se encaixar.

Maya estava certa de que o problema estava no gráfico,


não no motor. Victor concordava com ela, já que fizeram juntos
a inspeção. Só havia uma pessoa naquele Cruzeiro com acesso
às informações de que precisavam: Monteiro.

– Não tem a menor chance de ele nos ajudar. Monteiro


pensa que fomos incompetentes, só isso. E ele jamais
compartilharia informações confidenciais – Victor pontuou.

– Não precisamos dele.


– Como não?

– Só do notebook dele.

Os olhos de Victor brilharam, seu sorriso torto e largo


tomou todo seu rosto e então ele soube exatamente o que
deveriam fazer.

Naquela noite, não foram convidados a se juntarem a


Monteiro para o jantar, tampouco viram Jorge e Igor em
qualquer lugar. Poderiam aproveitar a oportunidade, mas não
tinham como saber quando Monteiro retornaria.

Traçaram um plano. Se fossem pegos fazendo aquilo


seriam demitidos imediatamente. Mas Maya não tinha muita
certeza de que já não seria demitida depois de, supostamente,
cometer um erro tão bobo numa operação tão importante. Era o
emprego dela que estava em jogo, sua carreira. Ela precisava
fazer aquilo, e Victor também.

– Precisamos esperar ele dormir – Victor disse – Às


onze horas da noite, com toda a certeza, ele estará no mais
profundo sono. Ele dorme muito cedo.

– Ok. Então vamos esperar. A propósito, pode dormir


até lá, se quiser.

Victor aceitou o convite de bom grado e não sentiu


vergonha ao se deitar e dormir na cama de Maya, enquanto a
mesma estava sentada ao lado. Maya estava nervosa demais e
usou as horas de espera para conversar com Thomás e contar-
lhe tudo sobre os últimos dias.

– Mon chérie, eu acho que preciso de um tempo para


pensar em tudo o que acabou de me dizer.

– Eu imagino – Maya soltou um riso cansado – Nem eu


sei o que pensar.
– Tem certeza que vai fazer essa loucura?

– Tenho que fazer.

– Eu tentaria te convencer do contrário, mas sei que não


vai adiantar. Além do mais, talvez não haja outra alternativa já
que você será acusada de um erro que não cometeu.

– Exatamente.

– E quanto à Sabrina? Acha que ela se ofendeu?

– Talvez, não sei. Ela mudou de assunto imediatamente


e não quis compartilhar nada sobre seu relacionamento com
Jorge. Me preocupo com ela.

– Sua parte você fez. Não se culpe, como amiga, você


deveria alertá-la. Mas ela é uma mulher adulta, então fará com
essa informação o que quiser.

– Você tem razão. Bom eu preciso desligar, tenho que


acordar Victor para nos prepararmos.

– Acordá-lo? Mas ele não fica na cabine com o seu


chefe?

– Sim, e não. Ele fica, mas... bom, eu preciso mesmo


desligar.

– Tudo bem. Tome cuidado, estrelinha. Me atualize


assim que possível, quero saber se esse plano deu certo.

– Pode deixar.

Victor definitivamente parecia um anjo dormindo.


Maya não se cansava de olhar. Meio a contragosto, sacodiu seu
ombro levemente.
– Acorda, Victor, chegou a hora.
9
O Pequeno Armário

O plano era simples, porém arriscado. Às onze horas e


quinze minutos daquela noite, Victor e Maya adentraram a
cabine de Monteiro, onde ele se encontrava num sono profundo.

– Santo Deus! – Maya estava chocada – Você disse que


ele roncava, mas eu nunca imaginei que fosse tão...

– Tão insuportável? – Victor sugeriu – Eu sei. Mal dá


para pensar aqui.

– Ele precisa de ajuda médica.

– Precisa, mas não procura.

– Por que?

–Mal de amor, longa história.

O som alto dos roncos de Monteiros era tamanho que


Maya e Victor mal precisavam tomar cuidado para não fazer
barulho.

– Agora é só achar o notebook dele – Disse Maya.

Victor foi direto para a maleta de Monteiro, mas


sinalizou que o notebook não estava ali. Procuraram dentro de
algumas gavetas e entre as roupas dele, mas nada foi
encontrado.

– Onde esse velho escondeu, ein? – Victor apoiou as


mãos na cintura e varreu a cabine com os olhos, à procura de
algum lugar onde não tivessem procurado ainda.

– Alguma possibilidade de ele ter escondido no cofre? –


Maya perguntou.

– O cofre! – Os olhos de Victor brilharam.

Em cada cabine do Cruzeiro havia um cofre pequeno


onde os tripulantes podiam guardar seus bens valiosos. Na
cabine de Maya também havia um, embora não tivesse
colocado nada nele.

Victor abriu uma porta específica do armário e


encontrou o cofre às escondidas no fundo de um espaço para
guardar roupas de cama.

– Você sabe a senha? – Maya perguntou.

– Não. Nunca o vi abrindo o cofre. São quantos dígitos?

Na primeira noite que Maya passou no Cruzeiro, foi


bombardeada com todo tipo de instruções no folheto de boas-
vindas. Uma delas era sobre o cofre e como configurar uma
nova senha. Ela nunca chegou a fazê-lo, mas lembrava-se que
no panfleto era mostrado um exemplo com seis dígitos.

– Acredito que seis.

– Acredita? Não lembra a senha do seu?

– Eu nunca usei.

– Por que não? – Victor virou-se para ela.


– Porque não havia necessidade. E não temos tempo
para conversas agora. Tente seis dígitos.

Victor voltou-se para o cofre.

– Vejamos... Se fosse uma senha de quatro dígitos eu


teria certeza, ele sempre usa a mesma para tudo. É vergonhoso.

– Também uso a mesma senha para tudo – Maya


ofendeu-se com o comentário dele.

– Deixe-me adivinhar, contém a mesma sequência


numérica da senha do seu cartão de crédito, não é? Tão
suscetível a um golpe.

Maya enrubesceu.

– Adianta logo com isso.

Victor pensou por mais alguns segundos, tempo que


pareceu uma eternidade para Maya. Mas quando tentou,
conseguiu de primeira.

– Isso!

– Fácil assim? – Maya estava incrédula.

– O que ninguém sabe sobre Monteiro é que, na maior


parte do tempo, ele é muito previsível.

– O que eu acho é que você está inventando desculpa


para não admitir que o conhece muito bem. Mas não vou fazer
piada com isso agora, eu juro! – E beijou os dedos entrelaçados
como forma de selar o juramento. Victor revirou os olhos.

O notebook estava lá, como o imaginado, juntamente


com sua carteira, seus documentos, um relógio que aparentava
ser caríssimo e alguns papéis que certamente eram contratos.
– Você devia guardar seus documentos no cofre
também – Victor observou.

Victor não esperou ela responder, imediatamente abriu


o notebook e mostrou que também sabia a senha para acessar o
usuário de Monteiro. Maya precisou apertar os lábios para
conseguir cumprir seu juramento e não tecer os comentários
maldosos que se formavam em sua mente. Ela apenas observou
Victor acessar o sistema operacional da Ivory e vasculhar as
informações que eles não tinham acesso.

– Aqui está. Você estava certa – Victor apontou para a


tela – Houve uma alteração nas configurações do gráfico. A
tradução dos dados foi adulterada para mostrar seis pontos
percentuais a menos.

– Então quando o gráfico registrou 5% de economia, na


verdade eram 11%?

– Isso. Você estava certa quando disse não haver um


problema real.

– Mas quem faria isso? Pode ter sido uma falha na área
de T.I.? Um problema no sistema, talvez? E por que
acreditaram que se tratavam de uma vela com defeito?

– Vamos ver – Victor teve um pouco de dificuldade em


achar o nome do usuário que fez a alteração. Como era algo que
ele não tinha permissão para fazer usando a própria conta, não
sabia por qual caminho prosseguir.

– Acho que tem algum erro aqui – Ele sussurrou, tão


baixo que Maya não conseguiu ouvi-lo direito, em meio aos
roncos de Monteiro.

Maya se aproximou da tela.

– Monteiro? Ele alterou as configurações?


– Não, não pode ser.

– Mas esse é o usuário dele – Maya estava confusa,


seus pensamentos fluíam tão rapidamente que ela não conseguia
se prender a nenhum.

– Monteiro jamais faria algo assim.

– Como você sabe?

– Porque eu o conheço, Maya! – A voz de Victor soou


um pouco mais ríspida do que ele planejara – Monteiro não fez
isso – Continuou, com a voz mais contida.

– Mas, Victor, está aí na sua frente – Ela apontou para o


notebook.

– Já chega, vamos sair daqui.

– Por que ele faria isso? – Maya insistiu.

– Ele não fez!

Estavam tão absortos na própria discussão que não


perceberam o som dos roncos diminuindo. Olharam ao mesmo
tempo na direção da cama, Monteiro ainda parecia estar
dormindo, mas havia parado de ressonar.

Maya se assustou quando Victor a puxou para dentro do


pequeno armário da cabine, mas não resistiu.

O lugar era estreito, apertado, mal cabia os dois, mas


era perfeito para a necessidade. Não demorou para que
Monteiro se sentasse na cama. Ele levantou sonolento e foi ao
banheiro. Maya podia observá-lo através das brechas da porta
do armário.
Victor estava atrás de Maya, os dois de pé. Não havia
muito espaço para manter uma distância entre os corpos que,
sem alternativa, se tocavam inteiramente.

Monteiro demorou ao banheiro, mas nenhum dos dois


ousou sequer sussurrar. Se fossem pegos, seria o fim. Victor
também queria observar o que acontecia no quarto e
delicadamente retirou o cabelo do ombro dela, que estava
atrapalhando sua visão. O movimento pareceu pegar Maya de
surpresa, pois ele sentiu quando ela se arrepiou, embora tenha
tentado esconder. Estavam perto o suficiente para que ele
sentisse o cheiro do perfume que ela usou pela manhã, mas que
ainda era perceptível em sua nuca. Era doce e floral. Capturava
bem a personalidade dela.

Enquanto observavam em silêncio através da porta,


Victor permitiu-se continuar cheirando os resquícios de
perfume em Maya. Não sabia dizer exatamente porque estava
fazendo aquilo, mas lhe parecia um tanto quanto irresistível. Era
o mesmo cheiro que se lembrava de ter sentido quando acordou
ao lado dela. Mas não era a hora de pensar nisso, essa
lembrança sempre despertava nele um calor insuportável. E ele
pensava nela com frequência. Podia lembrar-se vividamente da
sensação de tê-la nos braços. Tão perto, tão quente. O
pensamento que o amedrontava e o fazia afundar-se em desejo
ao mesmo tempo. Ela o fazia desejar fazer tudo o que disse para
si mesmo que nunca faria. E ele queria fazer de várias maneiras,
incontáveis vezes; incansáveis vezes.

E Maya estava ali, agora. Por mais que tentasse evitar,


ela sempre estava perto. Ele tentava mesmo evitar? Talvez só
estivesse mentindo para si mesmo. Talvez estivesse até
procurando por ela.

Em algum momento, Victor percebeu que o ar que


espirava despertava nela pequenos tremores ao tocar quente na
pele do seu ombro. Ele devia parar com aquilo, mas não parou.
Ele não conseguiu. Victor mal conseguia se reconhecer. Sentir
ela controlando os próprios tremores fazia com ele sentisse
poder sobre ela, um poder tão inebriante que o consumia e o
obrigava a continuar. Era como se, dentro daquele armário
minúsculo, ela fosse dele.

O armário parecia ainda menor, o calor o fazia suar e


ainda assim ele não queria sair dali de dentro. Victor só se deu
conta do que estava fazendo quando a ponta de seu nariz tocou
o pescoço de Maya, fazendo-a arfar. Todos os músculos do seu
corpo queriam beijá-la ali mesmo. Não os lábios, mas o
pescoço. Sentir o gosto da pele salgada e deliciar-se ao sentir a
inquietação que o corpo dela demonstrava. Espantado com o
próprio pensamento, percebeu-se completamente excitado e
recuou um pouco. O que estava fazendo? Ela já o havia deixado
naquele estado antes, mas nunca em uma situação em que ele
não conseguisse esconder. Precisava respirar, precisava se
acalmar. Mas o armário só tinha o cheiro dela e ela estava tão,
tão perto.

Victor podia ouvir a respiração entrecortada de Maya, o


que não o ajudava em nada. Na fração de segundo em que ele
tentava se lembrar de todos os momentos vergonhosos que já
passara na vida, a fim de livrar-se de sua excitação, Monteiro
voltou para o quarto. O velho abaixou a temperatura no ar-
condicionado e retirou o pijama, ficando apenas de cueca, antes
de deitar-se novamente. Perplexa e surpresa com a imagem,
Maya deu um passo para trás e soltou um pequeno arquejo de
surpresa, forçando Victor a cobrir a boca dela com sua mão. No
meio desta confusão, Maya acabou aproximando-se novamente
dele. Um corpo colado ao outro. Não havia dúvidas de que ela
havia sentido sua rigidez a tocando. A curva arredondada e
macia da bunda dela destruindo qualquer possibilidade de
Victor se reestabelecer. Ele estava perdido.

– Shh – Ele sussurrou em seu ouvido.

Victor tentou ficar imóvel nos minutos que se seguiram,


não queria avançar nenhum sinal vermelho. Ele esperou por
uma reação exacerbada de Maya, mas ela não se afastou dele,
mesmo quando sua ereção era mais que perceptível atrás dela.
Maya ficou quieta por um tempo, mas logo Victor percebeu que
sutilmente seus movimentos a aproximavam ainda mais dele,
diminuindo a quase nula distância entre ambos. Victor afrouxou
lentamente a mão que cobria a boca de Maya e deslizou a ponta
dos seus dedos pela extensão do braço dela, até encontrar sua
mão. Maya deixou. Victor aproximou-se ainda mais do pescoço
dela, de onde vinha o seu perfume, e cedendo a um impulso
desesperado, beijou-a bem ali. Um beijo lento, delicado e
quente.

Maya estava gostando, ele podia sentir. Sentia através


da respiração ofegante dela, do coração acelerado e da bunda
dela, que permanecia pressionada contra a sua rigidez. Estava
acontecendo tão depressa que ele quase esqueceu de onde
estavam. Victor queria continuar, daria a vida para continuar,
mas não sabia se havia muito o que ser feito dentro daquele
armário, com Monteiro do outro lado da porta. Ele precisava de
mais. Victor precisava beijá-la de verdade, precisava tocá-la em
todos os lugares, sentir seu cheiro e seu gosto. Não se importava
mais com as circunstâncias que os envolviam, ele só queria ser
dela.

Victor segurou-a pela cintura, cravando as mãos na


carne macia de Maya e a aproximando ainda mais, desesperado
por atrito, fazendo-a sentir o tamanho de sua ereção. Maya
jogou o pescoço para trás, apoiando a cabeça no peito dele. Ele
voltou a beijar o pescoço e ombro dela, até que ela virou o rosto
de lado, ficando com os lábios próximos dos dele. O desejo dele
era tão intenso que o fazia arder em agonia.

Ficaram por um tempo com os lábios a poucos


centímetros de distância, respirando o fôlego um do outro,
namorando a possibilidade de dar o próximo passo. O que
mudaria tudo, o que tornaria aquele pequeno sonho em
realidade.
– Maya... – Victor sussurrou. Um pedido de aprovação.

– Victor, eu – Ela arfou – Eu acho que Monteiro


dormiu.

Victor não estava preparado para o corte do clima que


havia se formado. Mas as palavras dela o fizeram retornar à
realidade. Ela era comprometida, ele havia prometido para si
mesmo nunca fazer com alguém o que fizeram com ele. No que
ele estava pensando? Ao menos ele estava pensando?

Maya abriu a porta lentamente e mais lentamente ainda


se afastou de Victor. Sentiu como se fosse doloroso descolar-se
dele. Sua mente estava confusa, mas seu corpo sabia muito bem
o que queria. Saiu de dentro do armário na ponta dos pés. Se
sua vida dependesse de dizer qualquer palavra ou olhar nos
olhos de Victor, estaria velada e enterrada. Victor percebeu seu
estado atordoado e não forçou a barra. Saíram da cabine depois
de darem uma leve vasculhada para certificarem-se de não ter
esquecido nada comprometedor na cena do crime. Haviam
esquecido o notebook sobre a mesinha, mas aparentemente
Monteiro não o notou. Victor o guardou novamente e trancou o
cofre antes de saírem.

Já no corredor, Victor quebrou o silêncio.

– Maya, eu...

– Boa noite, Victor – Maya o interrompeu, ainda sem


olhá-lo nos olhos, e saiu em direção à sua própria cabine. Ela
não fazia ideia de como encará-lo depois do que acabara de
acontecer.

No caminho de volta para a sua cabine, Maya mal


conseguia respirar. Seus sentidos ainda estavam alterados e
mais de uma vez ela pensou poder sentir a respiração de Victor
em seu ouvido. Não sabia o que estava acontecendo com ela.
Simplesmente não conseguiu resistir.
Ela não sabia como agir diante do que havia acontecido
e sabia que apesar da excitação de Victor ter sido a única
perceptível, a umidade no centro de suas pernas não a tornava
inocente. Ela queria, queria muito, e pensar nisso a fazia ter
taquicardia, respirar ofegante e apertar as pernas uma contra a
outra. Em todos os anos de relacionamento com Henrique,
ainda que não tivessem um relacionamento perfeito, ela nunca
desejou outro homem. Bom, ela já viu galãs em filmes e
fotografias e fantasiou com eles, mas nunca, nunca, algo
parecido com aquilo. Na verdade, não se lembrava de ter
sentido algo assim nem mesmo por Henrique. Era como se seu
corpo tivesse vontade própria e não houvesse nada que ela
pudesse fazer a respeito.

Não conseguia se lembrar da última vez em que esteve


tão excitada. Não achava que conseguiria dormir daquele jeito e
quando um pensamento atrevido lhe fez querer ir atrás de
Victor, ela acelerou os passos. Ela não devia, ela não podia, ela
não faria isso. Ou faria?

As mãos de Maya estavam tremendo ao tentar encaixar


a chave na maçaneta.

– Ora, ora. Que surpresa agradável! Nem preciso


perguntar com quem estava até uma hora dessa, não é? –
Alguém a assustou.

– Igor? O que está fazendo aqui?

– Esperando por você, é claro –Igor, que estava a


alguns passos de distância dela, no corredor, se aproximou até
ficar perto o suficiente para incomodá-la, invadindo seu espaço.

– O que você quer?

– Garantir que você saiba de uma coisa – A voz de Igor


era calma e pragmática, mas algo nela fez Maya arrepiar-se
inteira – Vou dizer uma única vez, mas espero que você
entenda, para o seu próprio bem – E continuou se aproximando
dela, até praticamente pressioná-la contra a porta da cabine que
ela não teve tempo de abrir.

– Igor, dá licença – Maya fez menção de empurrá-lo,


afastando-o de si, mas Igor agarrou seus braços com força,
aproximando o rosto do dela. Sua expressão só transparecia
ódio. Puro e líquido, como uma pequena dose de veneno.

– Acho bom você parar de se meter na minha vida,


Maya, ou eu juro por Deus que você vai se arrepender muito
por isso.

Maya estava tão perdida que não conseguiu entender do


que ele estava falando, então ele continuou:

– Se você contar para mais alguém do que viu no


cassino, eu vou contar para todo mundo quem passa as noites
com você aqui no Cruzeiro. Ou você acha mesmo que eu não
sei o que está acontecendo? Talvez seu namorado queira saber,
também. Talvez todos da Ivory queiram. E aí você vai poder
contar pra todo mundo quem anda te comendo, sua vadia.

Igor estava apertando os braços de Maya com muita


força, tanto que ela quase não conseguiu se concentrar no que
ele dizia, tamanha era a dor. Mas ela ouviu. As palavras dele
foram uma facada em seu estômago. Aquilo não podia estar
acontecendo.

– Me solta – Ela tentou ser firme, mas ouviu a própria


voz choramingando. Maya nunca fora covarde, mas ter um
homem forte como Igor a machucando e ameaçando drenara
toda a força que ela tinha. Ela tinha sido pega desprevenida e
estava apavorada.

– E você ainda se acha superior a mim, não é? Tão


cheia de moral. Ah, se todos soubessem que você anda dando
pro colega de trabalho. A perfeita Maya, que nunca faz nada de
errado – A voz dele era maliciosa, ameaçadora, seus olhos a
encaravam feito olhos de serpente – E é bom você não contar
nada pro seu novo namoradinho, porque se ele tentar fazer
alguma coisa ou se vier atrás de mim, já sabe, todo mundo vai
saber sobre vocês. E aí você vai poder dar adeus ao namorado
corno e ao emprego que não valoriza.

– Tira as mãos de mim – Ela tentou, novamente,


parecer forte. Mas sua fala soou como um pedido, não uma
ordem. Ele conseguiu abordá-la no momento mais vulnerável.

Igor a soltou, fazendo uma onda de dor percorrer pelos


braços dela.

– Tenha uma boa noite, Maya – Igor disse – Torça para


não ter pesadelos – E sumiu no meio dos corredores.

Quando Maya finalmente conseguiu entrar na cabine,


estava chorando como uma criança. Seu braço doía, sua cabeça
latejava e um aperto no peito não a deixava respirar. Ela mal
podia acreditar no que acabara de acontecer. Estava à mercê de
Igor. Chantageada, humilhada e machucada, sem sequer
conseguir se defender! E o que ela poderia fazer? Negar?
Gritar? Pedir ajuda? De fato, tanto o seu emprego como o seu
relacionamento estavam nas mãos de Igor, porque ele poderia
usar a informação que tinha da maneira que quisesse.

Ela nunca tinha transado com Victor, sequer o tinha


beijado, as quem acreditaria nisso?

Deitada em posição fetal, chorou até adormecer. Não


respondeu as mensagens de Henrique e nem as de Thomás.
Maya só queria estar nos braços de Victor novamente, como na
noite anterior, confortável e segura.
10
Novo Acordo

Maya dormiu muito mal aquela noite. Acordou diversas


vezes no meio de sonhos irrequietos e por volta das quatro
horas da manhã, desistiu de tentar dormir. Tinha muito no que
pensar, muito o que fazer.

Ela não queria ceder às chantagens de Igor. Sabia que


se ele sentisse que tem poder sobre ela, seria um pesadelo. Mas
muita coisa estava em jogo. Maya pensara muito em Henrique
desde que despertara, e sabia que tinha que fazer algo a respeito
do seu relacionamento. Nunca pensou que trairia alguém na
vida, mas aconteceu. Mesmo que não tivesse beijado Victor, ou
se deitado com ele, ela sabia que a linha já havia sido cruzada.
Ela traiu Henrique. Ela desejou ardentemente outro homem e
quando esse homem a tocou ela permitiu e quis mais.

Ainda que estivesse pensando em uma maneira de


resolver suas pendências com Henrique, não queria de maneira
nenhuma o expor. Ele não merecia isso. Além do mais, se Igor
compartilhasse com algumas pessoas específicas, dentro da
Ivory, que ela e Victor estavam juntos, também seria um
problema. Além de ser contra a política da empresa, sabia que
as más línguas nunca a deixariam em paz e que passaria a ser
rotulada como uma vadia dentro da empresa. Ela também temia
pelo que podia acontecer a Victor, e se sua carreira também
seria afetada. Não podia permitir que nenhuma dessas coisas
acontecessem.
Maya queria muito conversar com Victor, queria usá-lo
como uma parede feito na noite em que encontraram Henrique
na balada. Mas, desta vez, para esconder-se de Igor. Mas ela
sabia, no seu íntimo, que Victor agiria por impulso. E se Igor
não gostasse da reação dele, era certo de que os dois seriam
jogados na fogueira. Ela não tinha saída.

Com o cérebro fritando à procura de uma solução e


uma enorme dor de cabeça, decidiu buscar conforto na única
pessoa que ainda podia recorrer: Thomás.

– Thomás? – Ela começou, quase sem conseguir


segurar as lágrimas.

– Maya? Você está chorando? O que está acontecendo?

Sem parar para pensar nas próprias palavra, Maya


derramou aos pés de Thomás todas as aflições pelas quais
estava passando. Falou de Victor, dos problemas profissionais
recentes e de Igor. Falou também de Sabrina, e de como
acreditava que ela havia traído sua amizade. Despejou tudo sem
medo de ser julgada.

– Talvez eu mereça isso – Choramingou – Pagar uma


traição sofrendo outra.

– Hei, mon chérie, calma. Não é bem assim – Thomás


tentava acalmá-la – Você cometeu um erro, Sabrina também,
mas nada disso justifica o que Igor fez a você.

– Eu não sei o que fazer. Não sei mesmo o que fazer,


Thomás.

– Ainda acho que o melhor seria falar com o seu chefe.

– Não posso arriscar que eu ou Victor sejamos


dispensados da operação. Depois da nossa suposta negligência,
o clima está péssimo.
– Mas que situação você foi se meter! Estou
preocupado com você, Maya – O tom de voz de Thomás era
mais sério do que Maya se lembrava de poder ser possível – Se
tivesse como, eu iria agora mesmo te buscar. Mesmo que
tivesse que ir remando.

Maya se sentia melhor por ter compartilhado suas dores


com o amigo e aos poucos passava a enxergar as coisas com
mais clareza.

– Vou trabalhar – Ela anunciou, já sem resquícios de


choro na voz – Vou manter uma distância segura de Victor,
para o bem de nós dois. E evitarei encontrar-me com Igor a
qualquer custo. Quando desembarcarmos, e tudo tiver dado
certo, eu faço algo a respeito desse chantagista desgraçado.

– Tem certeza que você não corre perigo aí dentro,


Maya? Talvez não seja a ideia mais inteligente se afastar da
única pessoa que pode te proteger.

– Igor nunca me faria mal aqui dentro. Ele não pode ser
tão burro.

– Está bem. Parece que já se decidiu. Mas Maya, eu te


ordeno que me mande mensagem a cada hora que se passar
nesse Cruzeiro, entendeu? E se passar duas horas sem responder
eu ligo para a polícia!

Maya riu, pela primeira vez desde a noite anterior.

– E o que a polícia vai fazer? Subir na sua canoa e te


ajudara remar?

– Não ri, não, estou falando sério – Thomás suspirou


profundamente – Ah e, Estrelinha, posso te pedir uma coisa?

– Claro.
– Não estraga um cara legal. Eu sei que estou te
incentivando há tempos para romper com Henrique, mas é
porque eu percebo que não sente por ele o que ele sente por
você. E eu estou certo. Mas ele é um cara incrível, você sabe. E
as coisas aconteceram rápido demais com você e esse tal deus
da beleza, mas ainda há tempo de fazer a coisa certa.

– Eu sei – Maya admitiu – Estou criando coragem para


falar com ele.

– Você vai conseguir.

– Obrigada.

– A propósito, também quero saber exatamente o que


aconteceu entre você e Victor. Vocês transaram?

– Não. Sequer nos beijamos, se quer saber.

– Eu não entendo. Então por que tanto desespero?

– Porque eu o quero, Thomás. E eu não me orgulho de


dizer isso, mas é a verdade.

Maya apressou-se a se banhar e se vestir. Tentou


esconder as olheiras com maquiagem, mas não sabia se tinha
feito um bom trabalho. Seus braços estavam marcados com os
dedos de Igor, e olhar para a própria pele avermelhada em
decorrência daquela agressão a fazia sentir raiva. Mas também a
fazia sentir medo. Usou uma segunda pele de mangas
compridas para esconder as marcas e convenceu-se de que
conseguiria seguir seu plano.

– Victor?! – Assim que Maya abriu a porta da cabine


deparou-se com Victor. Ele estava tão arrasado quanto ela,
claramente não havia dormido na noite anterior e não pôde
contar com a ajuda de um corretivo e uma base.
– Eu precisava falar com você – Victor a olhou de cima
a baixo com cara de preocupação – Você está péssima!

– Veio aqui para me dizer isso? – Maya ergueu uma


única sobrancelha.

– Não, claro que não – Ele pigarreou – Eu vim pra, pra


pedir... Eu só precisava...

Maya achava que não podia sentir mais dor do que já


estava sentindo, mas estava enganada. Ver aquele homem tão
grande parecer tão pequeno diante dela e a um passo de pedir
desculpas por algo que ela também quis, com os olhos azuis
cobrindo-a de ternura, fez seu coração rachar. Ela queria
abraçá-lo, chorar em seu peito, onde sabia que estaria protegida.
Queria dizer-lhe que não era culpa dele, que ele não fez nada de
errado. Queria dizer-lhe o quanto ele havia se tornado
importante para ela em tão pouco tempo.

– Você não pode mais vir aqui – Foi o que Maya


conseguiu dizer.

– Aqui aonde?

– Na minha cabine. Por favor, Victor, eu quero facilitar


as coisas.

– Por conta de ontem? Maya deixe-me explicar, eu


nunca quis ofender você ou invadir o seu espaço. Eu não sei o
que deu em mim.

– Não vamos falar sobre ontem – Ela o interrompeu.

Victor engoliu em seco, mas assentiu em silêncio. Não


estava embaraçado, Maya percebeu, apenas triste. E notar isso
foi mais um golpe em seu peito.
– Vamos ao trabalho? – Maya perguntou, trancando a
porta atrás de si. Victor apenas a seguiu.

Nos dias que se seguiram, Maya deu seu máximo para


manter-se afastada de Victor. Ainda tinha que trabalhar com ele
todos os dias, mas não participavam das mesmas programações
depois do expediente e também não saíram juntos para conhecer
as cidades em que o Pollux Stars fazia parada. Foram dias
terríveis.

Victor continuava sendo gentil com ela, mas


perceptivelmente mais distante. Maya sabia que ele queria
conversar, esclarecer as coisas; podia ouvir o som abafado das
palavras entaladas na garganta dele. Mas ela se manteve firme,
limitando-se a fincar as unhas nas mãos toda vez que a vontade
de abraçá-lo era forte demais.

Houve apenas uma vez em que Victor tentou pedir


desculpas a Maya novamente. Ele acidentalmente a acertou com
o cotovelo enquanto tentava abrir a garrafa estranha de uma das
poucas bebidas não alcoólicas oferecidas em um dos bares do
cruzeiro. Pediu desculpas apressadamente, mas logo em seguida
desculpou-se de uma maneira mais solene, como se
aproveitasse a oportunidade para expressar parte do que sentia.
Maya disse-lhe que se ele pedisse desculpas novamente ela
quebraria o copo com suco de laranja em sua cabeça. Foi a
primeira vez que Maya viu o sorriso torto dele depois do ataque
de Igor. Aos poucos, sentia que podia superar essa fase. Ela só
precisaria esperar a viagem terminar.

Maya havia conseguido se manter longe de Igor. Em


parte, porque o próprio Igor não a queria por perto. Mas ela
ainda o via de relance pelo Cruzeiro, que de repente tornara-se
pequeno demais. Assim que o via, dava um jeito de sair do seu
caminho, mas algumas vezes não conseguia fazê-lo antes de
receber o olhar gélido e malicioso do colega de trabalho. Maya
sabia que ele estava tramando alguma coisa, mas pensava que
talvez, se ela apenas sumisse do seu campo de visão, ele a
deixaria em paz.

Henrique não aceitara um término por telefone. Ficou


confuso e perguntou o porquê de uma decisão tão definitiva,
sendo que dias antes estavam bem. Maya não soube explicar.
Queria ser sincera com ele, mas as palavras certas lhe fugiam.
Às vezes pensava que não havia dito as palavras certas nem
para si mesma. Depois de horas de uma conversa difícil, Maya
aceitou o tempo que Henrique pediu, pois ele insistia em
conversar pessoalmente quando ela retornasse.

– Não sei o que está acontecendo, mas sei que podemos


resolver – Henrique disse – Por favor, Maya, espera só até
podermos nos encontrar pessoalmente.

– Se você prefere assim, tudo bem – Maya demorou


três dias para dizer a Henrique que queria terminar a relação,
porque não podia acreditar que cometeria o disparate de romper
três anos de relação por telefone. Mas não conseguia olhar-se
no espelho do banheiro sem se sentir completamente
desprezível.

– Eu amo você, Maya – Ele sussurrou.

– Henrique...

– Não precisa responder. Não precisa nem mesmo


aceitar, Maya, só quero que saiba disso. Porque é verdade.

Maya abriu a boca para dizer que também o amava,


mas não disse. Ela o amava, de certa maneira. Mas estava certa
de que o enganaria se correspondesse naquele momento. Ela
era, definitivamente, a pior pessoa da face da terra – ou do
Oceano Pacífico.

O único conforto de Maya era Thomás, que seguia


sendo seu porto seguro. Sabrina lhe mandou uma mensagem,
perguntando como estava a viagem. Maya não respondeu. Não
sabia como confrontar a amiga depois do que aconteceu. Pensar
nela a fazia se sentir ainda mais solitária, traída. E pensar que
também estava fazendo alguém se sentir assim a destruía.

Assim se passou quinze dias desde a noite do pequeno


armário. Maya acordava, se banhava, fazia o seu trabalho e
retornava para a cabine, onde conversava com Thomás e
voltava a dormir. Não sentia mais um pingo de diversão na
viagem, só queria estar em casa, longe de todo aquele caos. Mas
os dias se arrastavam preguiçosamente, recusando-se a
terminar.

Naquela noite Monteiro havia solicitado a presença de


todos no jantar, para o total desprazer de Maya. Chegara um
pouco atrasada, para não correr o risco de chegar à mesa antes
de Monteiro ou Victor. Todos já estavam lá. Sentou-se entre
Victor e Jorge, pois era o único lugar vago.

– Felizmente, não houve nenhum outro problema na


operação – Monteiro anunciou – Fico imensamente mais
tranquilo.

– Então está tudo certo com as reuniões? – Igor


perguntou.

– Quanto a isso – Monteiro pigarreou – Creio ter me


precipitado. Informarei a vocês qualquer novidade, assim que
for possível.

– Mas isso não é justo – Igor protestou – Somos quatro


e você nos fará pagar pela incompetência de dois?

– Igor, já chega – Monteiro o advertiu – Vocês são uma


equipe. Se algo não aconteceu como deveria a culpa é de todos.

Igor bufou.
– Que grande bobagem – Continuou em tom mais
baixo.

O jantar durou pouco mais de uma hora e durante todo


o tempo Igor demonstrou insatisfação com Victor e Maya
enquanto Monteiro tentava repetidas vezes mudar de assunto.
Maya, Victor e Jorge não disseram muitas palavras. Apenas
"Obrigada", "Dispenso a sobremesa" e "Pode me trazer um
novo garfo?" para o garçom que os atendia.

Quando finalmente acabou, Maya seguiu aliviada na


direção da sua cabine, para recomeçar o ciclo de ligar para
Thomás, dormir, trabalhar, ligar para Thomás. Quando o
elevador que a levaria para o andar de corredores infinitos e
portas brancas estava prestes a fechar as portas, Igor entrou.

– Por que tanta pressa? – Ele perguntou, quando só


estava os dois subindo para o andar das cabines.

Maya não respondeu.

– Não seja mal criada comigo – Ele disse, como se


estivesse brincando com uma criança – Eu queria te contar uma
coisa – Continuou.

Maya não o respondeu novamente, limitou-se a cerrar


os dentes e fitá-lo com indignação.

– Quando eu falar, você me responde! – A voz de Igor


alterou-se para um quase grito, mas logo a porta do elevador
abriu – Entendeu? – Insistiu, com a voz mais contida.

– Me deixa em paz, Igor – Maya respondeu antes de


sair do elevador. Por alguma razão, ela pensara que ele não a
seguiria. Mas logo percebeu a presença dele atrás de si e sua
espinha gelou.
– Quero refazer as regras do nosso acordo – Igor disse
ao se aproximar dela novamente.

– Do que está falando?

– Eu sei que nosso trato é: eu não conto se você não


contar, mas talvez possamos melhorar isso.

– Nós não fizemos um trato. Você me chantageou, é


diferente. Agora me dê licença – E acelerou os passos.

– Para onde pensa que está indo? – Igor a interceptou,


fazendo todo o corpo de Maya entrar em modo alerta – Estive
pensando – Disse enquanto encurralava Maya entre ele e uma
das infinitas portas do corredor – E se de repente eu quiser
dormir na sua cabine também?

– O quê? – Maya havia passado os últimos dias se


preparando para um possível confronto com Igor, prometendo-
se nunca mais deixar que ele a machucasse, mas as palavras
dele a deixaram totalmente sem reação.

– Já tem um tempo que seu coleguinha não te visita,


não é? Talvez você esteja se sentindo sozinha. Eu posso te
ajudar com isso, e em troca você guarda meu segredinho. Mas
não se preocupe, vou guardar o seu também.

Maya mal esperou ele terminar de falar e o empurrou.


O corpo dele era pesado e seus músculos eram duros, mas ele
não esperava por isso, então desequilibrou-se e Maya conseguiu
escapar. Ela estava pronta para correr na direção da sua cabine
quando sentiu alguém puxá-la pelo braço.

Sem pensar duas vezes e colocando toda força que


podia deu um soco no rosto de Igor. Deve ter machucado, pois
sua mão estava latejando quando acabou e quando Igor ergueu
o rosto para encará-la, viu que seu nariz estava sangrando.
– Você vai se arrepender por isso! – Maya viu quando
Igor estendeu as duas mãos para agarrá-la. Sabia que não
haveria tempo de correr novamente, então só conseguiu erguer
os braços para proteger o próprio rosto e preparou-se para gritar
até seus pulmões explodirem.

Mas Igor não a tocou. Ao invés disso Maya ouviu o


som de briga, com socos e grunhidos. Quando abriu os olhos,
Victor estava segurando Igor pelo colarinho e desferindo soco
atrás de sono no rosto já ensanguentado dele. Igor estava no
chão, tentando livrar-se dos golpes de Victor para se levantar,
mas Victor não parava.

Maya estava em choque quando Victor passou a bater


com a cabeça de Igor no chão, com tanta força que o som fazia
um eco no corredor. A esta altura Igor quase não reagia. Victor
parecia um animal selvagem e Igor parecia uma criança
indefesa.

– Victor, para! – Maya gritou – Assim você vai matá-


lo!

Mas Victor não parou e Maya sabia que ele sequer


devia tê-la ouvido. Então fez a única coisa que lhe passou pela
cabeça: atirou-se no meio dos dois. Temia que acabasse
recebendo algum golpe no processo, mas o medo não a
paralisou.

– Victor, por favor! Já chega! Olha pra mim, Victor


olha pra mim!

Victor parou. Ele ainda segurava a gola da camisa de


Igor quando Maya segurou sua outra mão que estava com o
punho cerrado. Os olhos azuis de Victor estavam frios como
gelo, com tanta fúria que pareciam brilhar. Victor nem parecia
ter percebido que era ela ali diante dele, e Maya pôde ver sua
expressão suavizando conforme ele a encarava.
– Solta ele, por favor – Maya tentava chamar a atenção
dele para si – Por favor, Victor.

Victor olhou para Maya por mais alguns segundos e só


então pareceu recobrar toda a sua consciência. Soltou Igor no
chão como se soltasse um saco de lixo e deu alguns passos para
trás, perplexo com o estado do adversário.

Igor estava irreconhecível. Havia sangue por todo seu


rosto e estava escorrendo para a camisa. Também havia sangue
no chão e na mão de Victor, mas em menor quantidade. Apesar
disso, Igor estava vivo. Ele rastejou até encontrar uma parede
atrás de si para apoiar-se, limpando o sangue dos olhos.

– Qual é o seu problema? – Igor perguntou, com a voz


baixa.

Maya sabia que se Victor permanecesse ali uma nova


discussão começaria, então ela o puxou pelo braço.

– Deixe-o aí, ele sabe o caminho de volta – E guiou


Victor para sua cabine, seguindo pelo corredor à direita; o
caminho que ele já conhecia muito bem. Antes de saírem, Maya
notou que algumas portas com curiosos haviam sido abertas.
Apressou-se em sumir da vista deles.
11
O Gosto do Desejo

Quando Maya trancou a porta da cabine atrás de si, foi


como se as vozes de um milhão de pessoas cessassem em
uníssono. Estava a salvo.

Sua respiração estava ofegante, seu coração palpitava e


por alguns segundos esquecera-se até mesmo da presença de
Victor ali em sua frente, que a observava com os braços
cruzados.

– O que estava acontecendo? – Victor perguntou.

– Você está perguntando isso a mim? Eu que deveria


perguntar, o que deu em você? Poderia tê-lo matado!

– Ele ia bater em você! – Disse, enraivecido – O que


mais eu poderia fazer além de fendê-la? Olha pra isso! – E
apontou para o braço dela, onde era perceptível a marca do
puxão que Igor lhe deu.

Maya olhou para a pele avermelhada com


desapontamento, como se tivesse falhado em cuidar de si
mesma. Ela havia jurado nunca mais passar por aquilo, e lá
estava ela de novo.

– Você não vai me responder?


– Obrigada – Maya sussurrou, cabisbaixa – Por me
salvar.

Victor inspirou e expirou lentamente, aproximando-se


dela.

– E farei isso outras mil vezes, se for preciso. Mas eu


preciso que confie em mim, Maya, preciso que me conte o que
está acontecendo.

Victor a abraçou e Maya descansou a cabeça no peito


dele. Estava a um passo de chorar de puro alívio por estar ali,
mas manteve-se serena.

– Como sabia que eu precisava de ajuda? – Maya


perguntou. Em parte, tentando despistá-lo.

– Vi Igor subindo no mesmo elevador que você.


Estranhei. Vim conferir se estava tudo bem e quando cheguei ao
corredor vi você o empurrando e correndo. Soube ali que algo
estava errado, mas então ele te puxou pelo braço e você o
socou. Eu estava correndo em sua direção quando ele levantou a
mão para você. Depois disso eu mal lembro de alguma coisa –
Victor estava suado, com as bochechas vermelhas feito
pimenta. Sua mão e sua roupa ainda estavam sujas de sangue,
mas ele sequer notou. Ele acariciou o cabelo de Maya,
mantendo-a em seu abraço.

– Ah, meu Deus – Maya ergueu a cabeça – Estamos


muito, muito encrencados.

– Me diz o que está havendo, Maya.

Mesmo em meio a todos os sentimentos turbulentos que


assaltavam Maya, Victor ainda era a coisa mais bonita que ela
já viu. O contraste da pele branca com os cabelos pretos; os
olhos azuis brilhantes. Os músculos que serviam para muito
mais que serem admirado, agora ela sabia. Que bom que ele
estava ali.

– Eu não te contei porque temia que você agisse por


impulso. Eu sabia que agiria, como acabou de fazer – Maya
sentou-se na cama e fez um sinal com as mãos para que ele se
sentasse ao lado dela.

– Não me contou o quê?

– Ele sabe de nós dois.

Victor fez uma expressão confusa.

– Sabe que você dormiu na minha cabine aquela noite –


Maya explicou.

– Droga – Victor praguejou – Mas isso não me diz por


que ele estava agarrando você no corredor.

Maya suspirou, o peso do mundo nas costas.

– Lembra de quando conversamos sobre uma amiga


que estava saindo com um cara, mas o melhor amigo dele tinha
um caráter questionável?

Victor franziu a testa.

– Sim?

– Era Sabrina – Maya continuou – Ela dormiu com o


Jorge na noite do jantar, antes de viajarmos. E aparentemente a
relação deles evoluiu bastante desde esse dia. Eu falei com ela
sobre Igor ter traído a esposa, Jorge ter visto e não ter se
importado. Queria alertá-la, entende? Ela tinha o direito de
saber onde estava se metendo.

– E? – Victor a instigou.
– E Igor soube do que eu disse a ela. Acredito que ela
tenha contado para Jorge e Jorge, por sua vez, contou a ele.

– Então ele foi atrás de você?

– Na noite em que fomos para a cabine de Monteiro ele


me esperou no corredor. Ameaçou contar para todos da Ivory
sobre nossa "relação" – Disse a última palavra fazendo aspas
com as mãos – caso eu me metesse em seu caminho de novo ou
contasse para mais alguém do que vi no Cassino.

– Igor está te chantageando, é isso?

Victor a fitava com angústia. Seus punhos estavam


fechados com força e seus dentes cerrados mostravam a Maya a
raiva que ele tentava conter.

– Pois então eu devia tê-lo matado – Sua voz era calma,


mas sombria – E isso foi há quinze dias! Como pôde não ter me
contado, Maya? Eu não fazia ideia de que estava em perigo! Ele
vem te perseguindo desde aquela noite?

– Não, não. Consegui evitá-lo na maior parte do tempo.


Apenas hoje ele veio atrás de mim.

– Por que hoje? – Victor inqueriu.

Maya engoliu em seco.

– Por que, Maya? – Victor insistiu, com veias saltando


de suas têmporas.

– Não importa, você já o puniu.

Victor, segurou as mãos de Maya e aproximou seu


rosto do dela, a poucos centímetros de distância
– Por que ele estava atrás de você, Maya? – Perguntou
pausadamente.

– Ele – Maya calculou as palavras, com medo do que


Victor poderia fazer assim que as ouvisse – Queria dormir
comigo. Em troca de silêncio.

A face de Victor parecia ter congelado. Nenhum


músculo se movia. Ele sequer piscou.

Maya tentava encontrar qualquer tipo de emoção nele,


mas Victor olhava através dela.

– Cadê a chave?

– Não, Victor – Maya sentiu uma onda de medo


percorrer seu corpo. Se Victor saísse dali naquele momento, não
conseguiria pará-lo.

– Maya, por favor. Eu preciso resolver isso.

– Não, não, Victor! Não é o momento!

– Mas do que você está falando? – Victor a fitou,


alterado – Ele estava ameaçando você! Ele te machucou e te
assediou! E todo esse tempo você não me contou, não pediu
ajuda! Por que, Maya? Por que? – Victor estava quase gritando.
Raivoso, incrédulo, magoado. Só então Maya percebeu que não
era mais sobre Igor, era sobre eles.

– Eu só quis fazer a coisa certa, nos manter longe de


problemas até a viagem acabar.

– Manter quem longe de problemas? – O tom da voz de


Victor continuava subindo.
– Eu, você! – Maya também gritou – Você sabe como
um boato maldoso assim poderia impactar a nossa carreira, os
nossos empregos, a nossa permanência nessa maldita operação!

– Mas você deveria ter me contado! Eu deveria ter


protegido você! Ou você não confia em mim? – Victor estava
desarmado diante dela, mostrando uma fraqueza que ela nunca
havia visto antes.

– Não é isso – Ela choramingou.

– E é o quê, Maya? – Maya não sabia como reagir


diante do olhar magoado dele. Era um animal ferido, amuado,
preso a uma armadilha da qual não conseguia se soltar – Eu, eu
sinto muito! Eu não devia ter me permitido, naquela noite, não
tinha o direito! Me desculpe.

Maya não conseguiu responder. A confusão de


sentimentos que a invadiu obstruiu suas cordas vocais. A dor
nos olhos de Victor doía nela, e era uma dor solitária, soturna e
cheia de culpa.

– Você não precisa pedir desculpas.

– Claro que preciso. Tudo isso foi culpa minha! Eu pedi


pra ficar aqui, eu caí no sono, eu não estive lá quando você
precisou porque você perdeu a confiança em mim. E é culpa
minha!

– Mas você estava lá! Você acabou de evitar que ele me


machucasse ainda mais.

– Ainda mais! – Victor irrompeu – Ele não tinha o


direito de tocar em um fio de cabelo seu!

Victor passou as mãos pelos cabelos negros, derrotado.


Ele olhava para Maya com um movimento negativo de cabeça,
mas não disse mais nada. Parecia que não dormia há dias, e isso
bem que podia ser verdade.

– Eu confio em você – Maya quebrou o silêncio, dando


alguns passos na direção dele.

– Está mentindo.

– Não estou – Maya estava bem perto – Eu achei que


estava contendo os danos, mas não foi fácil. Foi horrível me
manter afastada de você – Victor suavizou a expressão
deprimida do seu rosto – Houve dias em que eu só queria estar
passeando pelas ruas de uma cidade desconhecida na sua
companhia, longe de tudo isso – Maya soltou um riso triste –
Mas eu sabia que você tentaria me defender a todo custo, se
soubesse, se colocando em risco se necessário.

– Claro que defenderia.

– Eu sei! Por isso não pude te contar!

Victor assentiu, tentando acalmar-se. Ele ergue uma das


mãos para tocar o rosto de Maya, e só então viu que ainda havia
sangue ali.

– Droga. Preciso limpar isso, não quero sujar você –


Foi em direção ao banheiro e lavou as mãos.

Quando Victor retornou, estava consideravelmente


mais equilibrado. Pensativo, mas menos triste e raivoso.

– Vamos resolver isso juntos, certo? Eu prometo que


Igor nunca mais vai encostar em você. Mas você não pode me
esconder as coisas, Maya. Sou seu amigo, seu aliado.

– Está bem.
Maya estava aliviada, apesar de tudo. Sentia que tendo
Victor ao seu lado conseguiria passar ilesa por toda a situação.
Sentia-se protegida, acolhida, e amada, mesmo não assumindo a
última parte. Tinham muito no que pensar. Maya não fazia ideia
de como Monteiro reagiria ao saber que Victor cometera uma
tentativa de assassinato. Ela tinha um emprego para salvar, um
pervertido para e livrar e nem queria pensar na própria vida
amorosa! Mas dariam um jeito, juntos. Ela estava começando a
se arrepender de não ter contado tudo desde o início quando
percebeu que apesar de estar com as mãos limpas, ainda haviam
respingos de sangue no pescoço e gola da camisa de Victor.

– Ainda tem sangue em você – Ela comentou.


Caminhou até o banheiro e retornou com a tolha de rosto
umedecida – Deixe-me ajudá-lo.

Victor deixou. Maya começou limpando a pele do


pescoço dele, com delicadeza e precisão. Mas haviam respingos
na camisa e ela temia que tivesse passado para a pele dele.
Maya abriu os dois primeiros botões e percebeu que estava
certa. Havia sangue no peito dele.

Ela continuou limpando, até encontrar os pelos escuros


que preenchiam o peito de Victor. Ela nunca tinha-os visto
antes. A visão dos pelos espalhados pelo peito musculoso
despertou nela uma sensação já conhecida, mas que não a
invadia há muitos dias. Ela chegou a pensar que poderia superar
esse desejo intenso que se formava dentro dela, mas acabara de
convencer-se do contrário. Ainda era do mesmo jeito. Ainda a
fazia perder a capacidade de pensar e querer fazer coisas
inomináveis com aquele homem que não deveria ser nada além
de um colega de trabalho. Ainda era quente e insuportável.

Maya abriu mais alguns botões, fingindo procurar por


manchas a serem limpas. Estava completamente hipnotizada
pela maneira sutil que os pelos desciam em direção ao umbigo
dele. Ela deixou a toalha cair, sem um pingo de preocupação no
que Victor pensaria, e cedeu ao impulso de tocá-lo com as
mãos. Naquele momento não havia Henrique, Igor, ameaças ou
chantagens, só a pele quente de Victor em contato com a sua.
Maya usou a ponta dos dedos para percorrer a pele branca de
Victor do pescoço ao peito, e continuou a descer. Lentamente.
Tão devagar que que Victor arrepiou-se inteiro.

Ela não parou, até que sua mão tocou o cós da calça de
Victor, e ele apressou-se em segurar a mão boba dela. Só então
Maya desviou o olhar do tórax quase desnudo de Victor e o
olhou nos olhos. Olhos azuis em chamas.

– Não faz isso – Ele pediu – Não vou conseguir parar.

– Eu não quero que pare.

– Maya – Ele sussurrou. Maya soube, pela respiração


irregular dele, que já não havia volta. E ela gostou disso.

Victor fitou os lábios de Maya por alguns segundos


antes de tomá-los com os seus. Um beijo que começou lento,
tímido. Eles só ficaram com os lábios colados respirando o
fôlego um do outro, enquanto Victor a trazia para mais perto.
Maya nunca havia sentido aquilo antes, era agonia pura. Victor
já havia sentido, mas era diferente agora. Era Maya.

Não demorou para que o beijo se tornasse rápido,


ousado, violento. Victor não tirava os lábios dela, bocas abertas
e úmidas, a língua dele percorrendo todo o espaço, possuindo-a
por completo. Foi um beijo desesperado, faminto, obsceno.
Victor mal podia se controlar, ele a beijava e a apalpava por
todos os lados. Agarrou-a pela cintura, pela nuca, pela bunda.
Quando suas mãos se encaixaram na bunda arredondada de
Maya, ele a ergueu e ela o entrelaçou com as pernas. Estavam
entregues um ao outro.

– Isso, isso – Victor soltava gemidos curtos, Maya mal


conseguia respirar.
– Victor, ah! – Ela gemeu quando ele soltou os lábios
dela e lambeu seu pescoço e clavícula. Ela estava agarrada nele,
com as pernas ao redor da sua cintura, e quando Victor deu
alguns passos para apoiá-la contra a parede, pôde sentir a ereção
dele entre suas pernas. Mal havia começado e ela estava
encharcada.

– Você é tão, meu Deus! – Victor gemia. Voltou a


beijá-la pressionando seu corpo no dela, causando arrepios de
prazer em Maya e uma onda irresistível de necessidade nele.
Ele precisava dela.

Maya usava uma saia branca que era presa apenas por
um laço feito com ela mesma e uma blusa preta tomara-que-
caia. Victor puxou a blusa para baixo sem cerimônia e
abocanhou um dos seios de Maya. Ele queria fazer isso a mais
tempo do que gostaria de admitir. Eram grandes, mas não tão
grandes. Redondos e empinados. Os mamilos quase da cor da
pele. Ele gemia enquanto a chupava e lambia. Era delicioso.

– Ah, ah! – Maya estava arfando, arqueando as costas


para que ele tivesse melhor acesso.

Quando Victor soltou um dos mamilos para lamber e


mordiscar o outro, deixou um rastro úmido que fez com que
Maya apertasse ainda mais as pernas, a fim de senti-lo melhor.

– Você é muito mais do que eu imaginei – Ele


sussurrou, retornando para os lábios dela.

– Andou imaginando?

– Muitas e muitas vezes – Victor abriu o zíper da parte


de trás da blusa de Maya enquanto chupava seu pescoço,
deixando os seios dela totalmente à mostra; apertados contra o
peito dele que a pressionava com urgência. Ela era a coisa mais
bonita que ele já viu. E ele não sabia se aguentaria por muito
tempo.
Maya terminou de tirar a camisa de Victor. Não teve
muito trabalho, os botões estavam abertos. Ela queria, acima de
tudo, o volume da excitação dele dentro dela. Queria
desesperadamente, com uma urgência que doía sobre a pele
sensível.

Victor a agarrou pela parte de baixo da bunda,


desfazendo o nó da saia e deixando-a só de calcinha. Era preta,
fina, e se perdia no meio da bunda. Logo livrou-se dela
também. Ele a beijava e a movimentava contra seu próprio
corpo, até ficar insuportável.

– Preciso comer você – Ele a colocou na cama e se


afastou dela apenas para tirar a própria calça. Maya olhou
admirada o caminho natural dos pelos dele, que agora ela podia
ver até onde iam. Victor era perfeito, ela pensou. Tamanho
perfeito, formato perfeito. Um verdadeiro deus. E ele a olhava
como se fosse um lobo faminto e ela fosse sua presa.

Victor deitou-se sobre ela, cobrindo-a de beijos.

– Pode ser rápido – Ele disse – Faz muito tempo desde


a última vez.

– Não tem problema – Maya erguia o quadril,


descontrolada para encontrá-lo.

Maya sentiu Victor brincando com ela, deslizando o


pênis por seu clitóris, quente e úmido, levando-a à loucura. Ela
sentia que podia chegar ao orgasmo apenas com aquele atrito,
mas queria mais. Queria senti-lo dentro dela. Ela tentou tocar o
pênis dele, mas Victor a impediu e segurou as mãos dela acima
da cabeça.

– Eu acho o caminho até você – Sussurrou em seu


ouvido. E encaixou-se na entrada dela, deliciando-se com o
desespero de Maya abaixo de si. Ela estava pronta.
Victor entrou com calma. Não queria machucá-la, e
queria acima de tudo lembrar-se daquela sensação para sempre.

Maya cravou as unhas nas costas dele assim que ele


libertou suas mãos. Victor grunhiu alto. Ela era apertada e
quente, e quando Victor conseguiu entrar por inteiro, Maya
começou a mover o quadril ao redor do seu pênis.

– Eu faço isso também – Victor advertiu, e começou a


mover-se ritmicamente dentro dela.

Maya permaneceu agarrada às costas dele, enquanto ele


estocava com firmeza. Já havia feito sexo muitas outras vezes
antes, mas nunca fora como aquilo. Seus olhos lacrimejaram e
ela implorava por mais. O peito musculoso de Victor à sua
frente, as pernas torneadas dele mantendo as suas abertas e o
delicioso atrito do seu pênis com seu sexo. Os olhos dele
assumiram uma tonalidade azul escuro e tudo no olhar dele era
obsceno.

Victor havia encontrado algum ponto dentro dela que a


fazia se sentir caindo de um precipício.

– Victor – Maya arqueou as costas – Assim eu vou...

Victor gemia, a respiração acelerada.

– Isso, assim – Maya o guiava.

Victor deu tudo de si, tentando se controlar para não


terminar antes dela, mas não conseguiu. Ele estocou com força
uma última vez e Maya sentiu no seu íntimo o líquido quente
que ele derramara dentro dela.

– Porra! Você...? – Victor perguntou.

– Não, quase.
Victor saiu de dentro dela, Maya não gostou da
sensação; ela ainda queria senti-lo. Mas ela não teve muito
tempo para lamentar, porque rapidamente Victor a abocanhou
bem ali, onde estava inchada e sensível. Ela gemeu alto quando
Victor começou a mover lentamente a língua sobre seu clitóris.
Ela não estava preparada para aquilo. A língua dele era mole e a
massageava da maneira certa. Intensidade e velocidade
perfeitas, sem parar. Ele a lambia e a chupava como se dela
saísse o manjar dos deuses. Era uma forma de devoção. Uma
blasfêmia, uma heresia.

Maya não precisou de muito tempo, já estava no limite


quando ele começou a chupá-la e quando ela chegou ao
orgasmo, Victor a lambeu e a penetrou com a língua, sentindo
as contrações dos músculos dela.

– Eu quero fazer isso pra sempre – Ele disse, voltando à


altura dela na cama.

Maya mal havia se recomposto quando Victor segurou


seu queixo com firmeza e a beijou novamente, enfiando a
língua em sua boca.

– Esse é o seu gosto – Ele disse, beijando-a novamente.


Aquele beijo que invadia todo o espaço da boca de Maya –
Você vai sentir outras vezes – Ele anunciou, com a voz rouca –
E eu também.

Victor voltou a abrir espaço entre as pernas dela.

– O que está fazendo? – Maya perguntou.

– Recomeçando – Victor a olhou com tanto desejo que


quase a assustou. Ela achou que tinha acabado, mas longe disso.
As mãos dele percorriam sua cintura, seus seios e sua bunda,
sem pausa, sem descanso – Você gozou na minha boca, agora
vai gozar no meu pau.
12
Consequências

Maya entendeu o significado da expressão "a noite é


uma criança". Victor parecia uma criança num parque
diversões, pegando a fila do seu brinquedo favorito repetidas
vezes. E ela adorou cada minuto; cada vez que subiam no topo
da montanha russa e despencavam de mãos dadas. Victor era
intenso, o sexo deles não parecia uma performance, como
costuma-se ver em filmes, ou o roteiro pragmático ao qual
estava acostumada. Era uma novidade, uma descoberta. E não
importava quais eram as consequências que a levaram até ali,
ela não se arrependia.

Adormeceu nos braços dele, pele com pele se tocando,


membros entrelaçados como numa dança. Não pensava que
conseguiria dormir tão bem depois do incidente com Igor, mas
dormiu. Victor também apagou, e ambos descansaram num
sono tranquilo. Às seis horas manhã, acordaram com o telefone
de Maya tocando.

– Que horas são? – Victor resmungou, sonolento.

Maya estendeu a mão para pegar o celular que estava


na mesa de cabeceira.

– Seis e dois.

– Desliga isso, volta pra cama – E a abraçou mais


fortemente, voltando a cochilar.
– Victor – Maya deu tapinhas nas costas dele – É
Monteiro. Ele quer nos ver, agora mesmo.

– O quê? – Victor arregalou os olhos – Ah, droga.

Maya foi a primeira a se levantar, correu para o


banheiro e tomou uma ducha rápida. Quando saiu, quinze
minutos depois, estava pronta. Blusa, saia, roupas de baixo e
cabelo penteado. Victor ainda estava sentado na cama, com a
cabeça baixa. Ainda estava completamente despido, cobrindo-
se apenas com o lençol.

– Vamos, Victor, você nem se vestiu ainda.

– E se eu não for? – Ele perguntou, em tom de


zombaria.

– Olha, eu suspeito fortemente que você seja o tema da


reunião de emergência, então seria bastante irresponsável da sua
parte.

Maya se aproximou dele, a fim de o sacodir e despertar


o sono que o fazia pestanejar.

Victor aproveitou a proximidade dela e a segurou pelo


braço, puxando-a na sua direção. Maya quase caiu, mas ele a
guiou para que sentasse sobre ele.

– Victor – Maya o advertiu – Não podemos fazer isso


agora.

– Por que não? – Ele enfiou a mão por baixo da saia de


Maya, massageando o clitóris dela por cima da calcinha.

– Nós precisamos ir – Ela disse, mas sua voz era pouco


mais que um sussurro.

– Nós vamos.
Victor a instigou até sentir a umidade no meio das
pernas dela. Maya parara de tentar resistir. Quando viu que ela
estava pronta, puxou a calcinha dela para o lado e tirou o lençol
de algodão que estava entre os dois.

– Pensei que depois de ontem você estaria cansado –


Maya sussurrou no ouvido de Victor.

– Cansado de você? – Victor segurou-a pela bunda e a


guiou até que se encaixasse na ponta do seu membro ereto –
Nunca.

Maya sentou, soltando um gemido abafado. Victor


envolveu a cintura dela com os braços e a pressionou para
baixo. Maya se movia lentamente: para cima, para baixo, para
frente e para trás. Victor deixou-a livre para fazer como
quisesse, mas não a soltou em nenhum momento. Ele foi mais
paciente que na noite anterior, não estava desesperado para
possuí-la, estava apenas aproveitando da intimidade.

Victor retirou a blusa de cetim de Maya e usou a ponta


dos dedos para percorrer a pele das costas dela, que se movia
acompanhando o ritmo do quadril. Maya afundou o rosto no
pescoço de Victor, sugando o cheiro de ervas e limão enquanto
gemia baixo no pé do ouvido dele. O controle era dela e ela
sabia por quais caminhos percorrer. Quando Maya chegou ao
orgasmo e seus músculos se contraíram ao redor de Victor, ele
usou uma das mãos que a envolvia e levou até os lábios dela,
tocando-a suavemente antes de lhe dar um beijo calmo.

Maya estava em êxtase.

– Vamos nos atrasar – Disse ofegante.

– Mas valeu a pena – Victor respondeu, com um dos


seus sorrisos tortos. Ele tirou uma mecha de cabelo que caía
sobre a testa de Maya – Você é linda.
Victor ainda estava dentro dela. Maya sentiu um frio na
barriga, um misto de surpresa e genuína felicidade. Não soube
como responder.

– Vamos, melhor encarar de uma vez o que nos espera


– Victor disse.

– Mas você ainda não terminou.

– Isso não foi pra mim – Sorriu maliciosamente –


Queria me certificar de que começasse bem o dia.

Victor tomou banho com a porta aberta, deixando que


Maya o observasse à vontade. E ela o fez sem sentir vergonha.
Ele era mesmo um deus. O corpo esculpido, o rosto
esplendoroso. Até o cabelo dele era divinamente atraente. Mas
nada, nada, se comparava à intensidade dos olhos azuis.

– Talvez não devêssemos chegar juntos – Maya


ponderou.

– Não vou deixar você andando sozinha pelo Cruzeiro,


não me importo com o que vão pensar.

E assim foi decidido. Quando Maya e Victor entraram


na biblioteca, todos já estavam. Monteiro parecia exausto. Não
o tipo de exaustão física de quem trabalhou braçalmente por
horas seguidas, mas uma exaustão mental de quem daria
qualquer coisa para deixar de ser quem é por alguns minutos.
Jorge e Igor estavam sentados de costas para a entrada, e Maya
tomou o cuidado de se sentar o mais longe possível deles.
Victor sentou entre ela e os dois anjos do inferno.

Maya não olhou para o rosto de Igor, mas pela visão


periférica podia ter uma ideia do estado lastimável em que ele
se encontrava. Seu rosto parecia uma massa de modelar depois
de misturar todas as cores em uma e se tornar uma confusão
amorfa e amarronzada. Ela e Victor não cumprimentaram os
rapazes, apenas Monteiro, e esperaram ele dizer algo. Mas
Monteiro os fitou por um longo tempo até finalmente abrir a
boca:

– Na madrugada de ontem fui procurado pela segurança


do Cruzeiro para ser informado sobre a uma briga feia entre os
membros da minha equipe. Impossível, eu disse a eles – E fixou
os olhos em Igor – Então eu decido tirar a história a limpo e é
assim que você aparece.

Igor não respondeu. Maya aproveitou a deixa para olhar


diretamente para ele. Ele parecia envergonhado, com uma
indiferença fingida que a fez sentir ainda mais nojo. O rosto
dele estava mesmo destruído. Seu olho esquerdo, o que mais
levara soco, estava tão inchado que quase não abria. O outro
estava menos inchado, mas onde devia haver a cor branca no
globo ocular, havia vermelho. Parecia realmente o olhar de um
demônio, Maya pensou. Além disso o supercílio esquerdo
também estava cortado, coberto por um band-aid. O sangue
devia ter saído dali. Mas seu nariz já estava sangrando antes de
Victor aparecer, Maya lembrou, e por falar em nariz o dele
estava inchado e torto. Talvez quebrado.

– Quem fez isso com você? – Monteiro perguntou,


incisivo.

Ninguém sequer respirou.

– Vou fingir que não sei a resposta e perguntar mais


uma vez: quem bateu em Igor? – Monteiro varreu os olhos por
todos na mesa.

– Fui eu – Victor admitiu, assim que Monteiro virou-se


para ele.

Monteiro o fuzilou com os olhos. Uma mistura de raiva


e decepção que fez até mesmo Maya vacilar.
– Amanhã às oito horas da manhã o Cruzeiro fará uma
parada em Roatán – Monteiro informou, seco como o deserto –
Um táxi pegará você no porto e te levará ao aeroporto.
Considere-se demitido – Virou-se para Igor e Jorge – Vocês
dois podem ir.

Victor esperou Jorge e Igor saírem do recinto para


perguntar:

– Você está falando sério?

– O que você acha?

– Monteiro, eu estava defendendo Maya!

– Não quero saber sobre essa coisa entre vocês – Ele


fez um gesto estranho na direção de ambos.

– Ele ia bater nela!

Maya gostaria de dizer alguma coisa, mas sentiu uma


súbita vontade de chorar e precisou controlar as próprias
emoções primeiro.

– Não foi o que eu soube.

– E o que você soube? Que eu deliberadamente soquei


a cara dele?

– Socar? Você quase o matou, Victor! – Monteiro


estava esbravejando. Maya nunca, nunquinha, tinha-o visto
nesse estado – Ele teve uma concussão, quebrou o nariz e
rachou a porra do crânio! Que diabos estava passando pela sua
cabeça?

Victor ficou em silêncio por um tempo.

– Ele ia bater nela – Repetiu num sussurro.


– Você não sabe onde se meteu, filho – Monteiro de
repente estava menos irritado e mais preocupado – Eu disse
para não se aproximar dele.

Maya estava tão confusa que os motivos pelos quais


continuava sem dizer nada mudaram. Ela sabia que Monteiro
não era pai de Victor – não de verdade –, mas a intensidade na
voz de Monteiro foi muito convincente. Ou eles eram muito
mais íntimos do que ela imaginava.

– Não foi culpa minha – Victor insistiu – Eu só tentei


protegê-la.

Monteiro levantou-se da cadeira, derrotado.

– Não dificulte as coisas. Enviarei um e-mail com o que


precisa para a viagem de volta – Deu a volta na mesa para ir
embora, mas parou quando passava pela cadeira em que Victor
estava sentado. Pôs a mão no ombro de Victor e balançou a
cabeça negativamente antes de se retirar em silêncio.

– Victor – Maya segurou a mão dele. Victor estava


olhando para algum ponto insignificante da mesa, sem esboçar
qualquer reação – Vamos dar um jeito nisso.

– Não tem jeito.

– Tem que ter. Você estava me defendendo, ele foi o


agressor!

– Não foi o que Monteiro disse.

– Foda-se Monteiro! – Maya estava exasperada – Até


onde sabemos ele pode ter tentado sabotar você desde o começo
com aquela história ridícula de velas defeituosas!

Victor tirou os olhos da mesa e voltou-se para ela.


– Você está dizendo que, não, não pode ser.

– Acho que tudo pode ser. E acho também que não vou
ficar de braços cruzados esperando você ser demitido porque
me defendeu de um babaca.

– Eu já fui demitido – Victor a corrigiu.

– Enquanto você estiver nesse Cruzeiro, temos uma


chance de reverter isso.

Desesperança era o sobrenome de Victor naquele


momento, mas a mente de Maya estava agitada pensando em
mil maneiras de fazer algo para mudar a situação em que se
encontravam.

– No que você está pensando? – Victor perguntou ao


ver o rosto de Maya iluminar-se.

– As câmeras – Ela respondeu – Eu achei que ele nunca


tentaria me machucar de novo, já que há câmeras por toda a
parte aqui.

– O que você quis dizer com de novo?

Maya congelou.

– O que mais ele fez? – Victor rangeu os dentes.

– Ele apertou meus braços na noite em que me ameaçou


pela primeira vez – Ela podia ver a raiva preenchendo o rosto
de Victor e continuou, a fim de dissipar as emoções dele – Eu
achei que ele estava confiante de que eu não falaria nada por
não querer que ele falasse sobre nós. No fim, estava certo. Mas
não achei que faria novamente, deixar provas contra si dessa
maneira me pareceu muita burrice. Mas talvez ele seja mesmo
burro. Só precisamos da gravação da câmera de segurança do
corredor. Você vai ter como provar que estava me defendendo!
– Primeiramente – Victor estava claramente zangado –
Me conte tudo que eu preciso saber sobre Igor, tudo que ele te
fez. E não ouse me esconder nenhum detalhe!

– Foi a única coisa que não contei – Admitiu – Você


estava querendo ir atrás dele de novo, não sabia o que podia ser
um gatilho para que você realmente fizesse isso.

Victor respirou fundo.

– Para quem pedimos a gravação da câmera de


segurança?

– Não faço ideia.

Victor e Maya pediram informações para sete


funcionários do Cruzeiro até encontrarem Assis, o chefe de
segurança do Pollux Stars.

– As imagens das câmeras de segurança são privadas e


não temos a permissão de compartilhá-las – Disse o homem
moreno, de meia-idade, que vestia um traje de marinheiro – Foi
o que eu disse ontem, e a resposta permanece a mesma.

– Como assim foi o que disse ontem? – Victor se


apressou em perguntar.

– Um de vocês me procurou pedindo a mesma coisa –


Informou – O mais velho, acho que o chefe. Que confusão
vocês estão causando aqui dentro!

Maya e Victor se entreolharam.

– Muito obrigada – Maya disse a Assis – Não


voltaremos a incomodar – E se retiraram.

Maya e Victor caminharam até a entrada da sala de


controle do cruzeiro, já no porão, onde precisariam atravessar
para entrar na salinha separada para eles desde o começo. A que
era minúscula, parecia um forno e Maya nunca se dignou a
chamar de escritório ou "sala de observação", como Monteiro
falara algumas vezes. Ela só chamava de cubículo ou porão.

Victor não podia mais entrar lá, ordens de Monteiro.


Era o ponto onde teriam que se despedir, porque Maya – ainda
– tinha um emprego.

– Por que Monteiro pediria a gravação? – Victor quis


saber a opinião de Maya.

– Para te incriminar, te inocentar, não sei. Mas vamos


descobrir logo. Só precisamos dar um jeito de conseguir as
filmagens.

– Quanto a isso, pode deixar comigo.

– Você tem um plano? – Ela perguntou.

– Melhor, tenho um amigo – O sorriso torto de Victor


trouxe um pouco de esperança a Maya – Ah, mais uma coisa,
posso ficar na sua cabine?

Maya revirou os olhos.

– Pensei que fosse preferir dormir de conchinha com


Monteiro.

Victor fez uma careta.

– Você é impossível, sabia? – Ele se despediu – Fique


online, talvez precise da sua ajuda.

– Está bem.

Maya entrou no cubículo sozinha. Ela estava tão


nervosa que sentia que não conseguiria trabalhar, mas abriu o
notebook e fez o melhor que conseguiu. Victor realmente
entrou em contato, mandando algumas mensagens durante o
dia.

"Em qual rede wi-fi seu celular se conecta aí em


baixo?"

"Pollux Stars Controle. Por que?"

"Isso é bom. Consegue me dizer a marca da câmera de


segurança daí?"

Maya olhou em volta.

"Não tem câmera aqui"

"Deve ser porque montaram esta sala de última hora


para a nossa operação"

"Pode ser"

"Consegue fazer isso na câmera da sala de controle?"

"Só um minuto"

Maya saiu do cubículo e foi em direção a uma área


reservada onde tinha um bebedouro e os funcionários que
ficavam no porão costumavam ir. Tentou não chamar atenção
ao olhar demoradamente para as duas câmeras da sala de
controle. Lá sempre tinha pelo menos três funcionários com
macacões azuis, o oficial de engenharia naval e outros dois
engenheiros. Eles nunca falaram muito com Maya ou com
Victor, estavam sempre com os rostos colados às telas do
computador. Ela passou despercebida.

"São da marca VTWRX"


"Perfeito. Alguém vai tentar acessar seu computador
pela área remota. Pode aceitar"

"Ok"

Maya se garantia nos conhecimentos intermediários de


tecnologia, mas não estava pronta para hackear um sistema de
segurança, o que acabou por descobrir que era o que Victor
queria fazer.

Ele explicou que o amigo que ele foi encontrar para


entregar um pen-drive no dia do jantar, quando foram à balada,
trabalhava vendendo diversos tipos de informações heckeadas.
Um trabalho fora da lei, ela sabia, mas que calhava a ser útil
naquele momento. E ele os estava ajudando.

Pouco antes do almoço, Victor parou de responder as


mensagens dela. Ele tinha pedido para que ela o esperasse na
entrada da sala de controle para que ele a acompanhasse no
almoço. Maya sabia que ele só não queria deixá-la só.

Ela esperou por mais minutos do que achou que


esperaria. Estava ficando impaciente quando recebeu uma
mensagem dele.

Era o vídeo completo da cena no corredor. Igor indo


atrás dela, ela fugindo, ele a agarrando, Victor correndo na
direção deles, Maya socando o rosto de Igor, Igor partindo para
a agredir e Victor surgindo numa velocidade impressionante
para o impedir. O vídeo também mostrava parte da agressão de
Victor para com Igor, mas parava antes de Victor começar a
bater a cabeça do colega no chão. Maya sentiu uma onda de
alívio. Quando desviou o olhar do celular, Victor a esperava a
certa distância, sorrindo.

– O que fazemos agora? – Maya perguntou.

– Vou mostrar a Monteiro.


– Deixe-me fazer isso – Ela pediu – Eu preciso explicar
a ele, desde o início. E você está nessa por minha causa, me
deixe fazer alguma coisa para ajudar.

– Estou nessa por causa de Igor, não por culpa sua.


Você não fez nada de errado. Bom, talvez ter guardado segredo
– Ele forçou um olhar de raiva – Mas acho mesmo que pode ser
mais apropriado você mostrar o vídeo. Afinal você foi a vítima
Monteiro está me evitando, mas ele não recusará conversar com
você.

Assim que decidiram os próximos passos e comerem,


Maya bateu à porta da cabine de Monteiro – uma cabine maior,
que tinha vista para o mar.

– Maya? O que está fazendo aqui? – Monteiro


surpreendeu-se ao vê-la.

– Preciso te mostrar uma coisa.

– Bem, eu não acho que seja apropriado conversarmos


na minha cabine. Venha – E a guiou para o lugar de todas as
reuniões: a biblioteca. Maya tinha que concordar, era o lugar
menos movimentado do Cruzeiro.

Assim que se sentaram, Maya estendeu o celular para


Monteiro, pedindo para que ele olhasse.

Monteiro assistiu o vídeo totalmente concentrado e o


repetiu três vezes.

– Como conseguiu isso? Eu tentei e não me permitiram


o acesso.

– Fui um pouco mais convincente – Ela mentiu.

– Ele bateu em você?


– Não. Mas o teria feito se não fosse por Victor.

– Por que não reportou isso, Maya?

Maya mordeu o lábio. Eis a pergunta que ela estava


tentando evitar.

– Maya? – Monteiro não estava irritado, mas


genuinamente preocupado.

– Eu preciso te contar toda a história – Ela começou – E


talvez você não goste nada dela, mas foi assim que tudo
aconteceu e preciso explicar para que você entenda que Victor
não pode ser demitido.

– Estou ouvindo.

– Nos primeiros dias da viagem Victor estava tendo


dificuldades para dormir na sua cabine. Ele me pediu pra dormir
na minha nos horários que eu não estaria, que era basicamente
durante o almoço e o jantar.

– Por isso ele não se juntava a nós no jantar?

– Sim – Maya respondeu cautelosa. Monteiro ruborizou


– Continuando, tentamos manter segredo, para evitar o tipo de
fofoca que poderia interferir negativamente nas nossas vidas
pessoais e profissionais. O senhor sabe – Monteiro confirmou –
E eu vi Igor beijando uma mulher no cassino numa noite. Isso
não é da minha conta, é claro, mas uma amiga está se
envolvendo com Jorge e...

– Que amiga? – Monteiro a interrompeu.

– Não sei se devo colocar o nome de mais pessoas


nessa conversa – Maya estava receosa. Sabia que precisava
explicar para Monteiro a razão de Victor ter batido em Igor e
como estava sendo chantageada, mas ainda não tinha certeza se
podia confiar nele tão cegamente quando Victor confiava.

– Sabrina? – Monteiro arriscou-se. Maya não deve ter


escondido muito bem sua surpresa, porque Monteiro continuou
certo de que seu palpite estava certo – Não, não, Maya! Isso não
pode acontecer. Mantenha Sabrina longe desses dois!

– Foi o que eu tentei fazer! – Maya nem tentou mentir –


Eu disse que não confiava no caráter de Jorge porque apesar de
parecer uma boa pessoa, ele é o animalzinho de estimação do
Igor, que é uma pessoa terrível!

– Ela te ouviu?

– Não. E no dia seguinte Igor me emboscou na porta da


minha cabine e me chantageou. Disse que se eu contasse para
mais alguém ele diria a todos que eu e Victor estávamos
dormindo juntos – Maya ruborizou. Deu-se conta de que no
momento da ameaça ela era inocente nas acusações de Igor,
mas agora não mais.

Monteiro parecia ter certa dificuldade em absorver


todas as informações, mas Maya continuou:

– Achei que seria mais prudente manter distância dele,


e de Victor, enquanto estivéssemos aqui. Não queria arriscar
meu lugar na operação, nem o de Victor! Mas então Igor veio
atrás de mim, de novo. Ontem. Ele foi – Maya mal conseguia
pronunciar as palavras – Nojento. Ele me assediou e me
ameaçou. Eu tentei fugir, ele me puxou e o resto o senhor viu
no vídeo. Victor me defendeu, só isso. Não era a primeira vez
que Igor agia de maneira agressiva e perigosa. Você não pode
punir Victor por isso.

Monteiro concordava silenciosamente, Maya deu tempo


para ele pensar.
– Como Victor está? – A pergunta pegou Maya de
surpresa.

– Arrasado.

Ele balançou a cabeça compreensivamente.

– Você pode me encaminhar esse vídeo? Talvez ainda


dê tempo de minimizar os estragos.

– Claro.

– Eu sinto muito que você tenha passado por isso,


Maya. E mais ainda por ter sentido que não podia contar
comigo. Não fazia ideia de que algo assim podia estar
acontecendo, senão teria intervindo antes de se tornar essa
grande bola de neve.

Maya abaixou a cabeça, verdadeiramente


envergonhada. Estava cada vez mais convencida de que tomou
a decisão errada ao manter em sigilo as chantagens que sofrera.

– Eu só tentei evitar problemas.

– Talvez você tenha conseguido evitar um – Apontou


para o celular – Mantenha-se longe de Igor. Tomarei as
providências necessárias para que esteja segura.

Maya concordou com a cabeça.

Victor não desgrudara do seu pé aquele dia, salve


quando ela estava trabalhando. Tudo parecia estar se alinhando
e Maya se sentia segura.
13
Sabotagem

Maya estava deitada na cama, angustiada, quando


recebeu a ligação de Sabrina. Ela não sabia o que seria do
futuro de Victor dentro da Ivory e sentia que o vídeo podia não
ser o suficiente para salvaguardar a carreira dele. Sentia que os
acontecimentos recentes a estavam atropelando, feito quando se
vai à praia e é tombado por uma onda, apenas para erguer-se e
ser tombado novamente. Ela mal conseguia resolver um
problema e estava presa em outro.

Victor deixara sua cabine há pouco mais de uma hora,


disse-lhe que tentaria falar com Monteiro outra vez. Então,
quando o nome da amiga brilhou na tela do seu celular, restou-
lhe apenas entrar em pânico sozinha. Pensou muito se deveria
atender, mas acabou por fazê-lo.

– Maya? Por Deus, amiga, por que não responde


minhas mensagens? Estou tentando entrar em contato há dias!

– O que você quer?

Sabrina emudeceu por um instante.

– Está tudo bem com você?


Maya não conversara com Sabrina desde o dia em que
Igor a atacou pela primeira vez. Sabia que a amiga fora
responsável por isso, e sentia-se traída.

– Qual é o seu problema, Sabrina? Está zombando de


mim, por acaso?

– Mas do que você está falando? – Perguntou confusa –


O que está acontecendo?

Maya tinha dúvidas sobre ser do conhecimento de


Sabrina ou não as consequências da informação que ela passou
a Jorge. Talvez a amiga não soubesse das ameaças, da
chantagem, nem mesmo do embate entre Victor e Igor. Mas
uma coisa era certa para ela: Sabrina foi quem a expôs.

– Você não sabe mesmo o que aconteceu? – Maya


perguntou – Ou isto também é fingimento?

Maya e Sabrina nunca haviam brigado antes, e a reação


chocada de Sabrina fez Maya acreditar que ela ainda não fazia
ideia do que tinha acontecido.

– Eu confiei em você, te contei sobre Igor para que


pudesse fazer uma escolha consciente ao se relacionar com
Jorge. Mas você contou a ele!

– Você está falando de Igor ter traído a esposa?

– Claro que estou!

– Mas eu não contei a ele, você sabe que eu nem falo


com o Igor. Dá pra me explicar o que está acontecendo?

– Não estou dizendo que contou a Igor. Você contou ao


Jorge! – Maya esperou Sabrina responder, mas a amiga não o
fez. Era a prova de que precisava – E é claro que Jorge disse
tudo o que soube ao amiguinho dele. Como pôde fazer isso
comigo, Sabrina? Você não faz ideia do que isso causou! Do
que Igor fez!

– Eu não entendo. Jorge não faria...

– É claro que ele faria! Em que mundo você vive,


afinal? – Maya já não conseguia filtrar as palavras que
escorriam feito avalanche de sua boca – Aqueles dois são
praticamente a mesma pessoa! Não há nada que possa fazer a
um que não seja do conhecimento do outro. Como você pôde
ser tão estúpida? Igor soube de tudo o que eu te contei! Ele me
chantageou, me machucou e ameaçou destruir minha carreira na
Ivory se eu contasse a mais alguém o que eu sabia. Victor pode
ser demitido por ter tentado me defender dele!

Do outro lado da linha, Sabrina não conseguia fazer


algo mais que chorar. Um choro baixo e ressentido. Maya
respirou fundo, estava esgotada. Arrependia-se tanto de ter
alertado a amiga e, a esta altura, nem sabia mais se eram
amigas.

– Ele ameaçou você? – A voz de Sabrina era fraca,


abafada pelo choro que não cessara.

– Ameaçou. Ele tentou me coagir a fazer coisas, tentou


me agredir! – Maya estava exasperada e também sentia vontade
de chorar. Sabrina era sua única amiga, e sentia-se
extremamente magoada pela traição que sofrera – Quando for
dar com a língua nos dentes para o seu namoradinho, lembre-se
de dizer que se eles me importunarem novamente, vamos
resolver isso com a polícia – E desligou o telefone.

Quando Victor entrou na cabine, meia hora depois,


Maya estava encolhida na cama, segurando o celular contra o
peito e tentando não chorar. Victor deitou-se ao lado dela e a
aninhou em seu peito.

– Quer conversar? – Perguntou.


– Sabrina ligou – Ela resumiu.

Victor concordou em silêncio.

– Foi ela?

Maya fez que sim com a cabeça.

– Vocês se acertaram?

Maya fez que não.

– Amizade é algo complexo. Tão ou mais que


relacionamentos amorosos. Espero que a de vocês resista a isso.

Maya não respondeu.

Victor e Maya ficaram abraçados e em silêncio por um


longo tempo. Cada um refletindo sobre seus próprios
problemas. Maya pensara em Henrique. Sentia-se culpada,
desonrada e egoísta. Queria resolver as coisas, mas estavam
sem se falar desde que Henrique pediu um tempo e ela não
sabia exatamente o que isso queria dizer. Estavam namorando,
ainda? Ela o estava traindo? Tinha que juntar coragem para ser
sincera quando o encontrasse pessoalmente. Sabia que ele
merecia a verdade mais que qualquer pessoa, mesmo que a
verdade seja sua infidelidade. Pensar nisso lhe causava uma
tremenda angústia.

Havia também Sabrina, Igor e Jorge, que juntos eram


responsáveis por metade de sua dor de cabeça. Ela sentia falta
da amiga, mesmo que não quisesse admitir. E gostaria de poder
esquecer da existência dos outros dois. Estava aliviada por nada
de grave ter lhe acontecido no confronto com Igor, mas também
temerosa. Temia pelas consequências dos atos de Victor ao
protegê-la e por uma possível retaliação de Igor. Uma vozinha
em sua cabeça insistia em repetir que Igor não desistiria tão
fácil.
Ela já havia conhecido alguém como ele. Cláudio, era
seu nome. Ela trabalhara com ele por pouquíssimo tempo,
felizmente, mas foi o suficiente para lembrar-se com muito
desgosto. Ele foi seu chefe na Ivory nos seus primeiros cinco
meses na empresa. Era um homem comum, aparentemente, e
era querido por muitas pessoas. Especialmente por outros
homens. Mas quando Maya começou a sofrer uma verdadeira
perseguição, descobriu que ele era um degenerado. Ele ligava
para ela tarde da noite, insistia em oferecer caronas e não perdia
a oportunidade de estar a sós com ela pelo prédio, além de
inventar desculpas para tocar nela o tempo inteiro. Era um
inferno. Maya estava decida a denunciá-lo, mas foi quando
conheceu Sabrina.

Sabrina já trabalhava na Ivory, mas em um setor


diferente. Só começaram a trabalhar juntas depois de um tempo,
e imediatamente se tornaram amigas. Sabrina explicou que esse
chefe assediara muitas funcionárias. Poucas tiveram a coragem
de reportar ao RH, mas as que fizeram acabaram sendo
demitidas mais cedo ou mais tarde. Nenhuma tinha provas, e ele
acabou inocentado perante os olhos da gestão em todas as
vezes. Era ridículo, mas simplesmente não havia muito o que
ela pudesse fazer sendo uma recém-contratada.

Apesar de ter convivido com Cláudio por pouco tempo,


Maya pôde experimentar o que a junção de mau caráter e
certeza de impunidade fazem com alguém. Sentia que podia
esperar o mesmo de Igor.

Acontece que uma das funcionárias demitidas levou o


caso para a justiça. E teve o apoio de outras mulheres que
passaram pelo mesmo. Nem todas aceitaram colaborar, é claro,
e Maya as entendia. Ela mesma não participou, assim como
outras mulheres que ainda trabalhavam na Ivory, mas o
processo acarretou na demissão dele e uma generosa
indenização para as vítimas. Depois disso a Ivory passou a ser
menos negligente com denúncias de assédio e se tornou um
ambiente mais confortável para as colaboradoras mulheres, que
ainda eram minoria.
Essa foi uma das melhores mudanças dentro da Ivory
para Maya, porque foi assim que Monteiro passou a chefiar o
setor de engenharia mecânica. O mundo corporativo, muitas
vezes, conseguia ser tão visceral quanto a vida pessoal. Podia
ser quase como uma luta pela sobrevivência. E Maya
sobreviveu até aquele momento, galgando os pequenos degraus
em direção ao seu sucesso. Não sabia como tinha sido a jornada
de Victor lá dentro, embora suspeitasse de que tenha sido um
pouco mais fácil, pois além de não ser submetido a assédios
sexuais também tinha o carinho de Monteiro. Mas, de qualquer
maneira, sabia que para ele era tão importante estar ali quanto
era para ela. Com isso, restava-lhe pensar no que mais podia
fazer para evitar que Victor fosse demitido.

– Preciso ir – Victor anunciou, despertando Maya que


só então percebeu que estava adormecendo.

– Ir aonde?

– Para a cabine de Monteiro.

– Pensei que ficaria aqui esta noite – Maya disse,


corando.

– Não seria muito responsável. Eu quero, quero muito –


Victor acariciou o rosto dela – Mas é melhor evitar problemas
com Monteiro.

– Claro – As palavras de Victor fizeram-na despertar.


Ela estava no cruzeiro à trabalho, não podia passar noites com o
colega, principalmente porque era de conhecimento de todos
que ela tem um namorado. Era incrível como Victor a fazia ter
vontade de coisas impróprias e cegá-la para o bom senso.

– Você vai ficar bem? – Ele perguntou.

– Vou sim.
Victor sorriu com os lábios fechados e beijou-a com
delicadeza. Foi rápido, mas ao terminar ele continuou com a
face perto da dela, com a respiração quente tocando a bochecha
de Maya.

– Eu queria poder ficar.

– Eu sei – O corpo inteiro de Maya estava se


ascendendo como se ela fosse um pisca-pisca em volta de uma
árvore de Natal e ela o beijou de volta, dessa com lábios
abertos, línguas se acariciando.

– Não começa – Ele murmurou, mas sem tirar os lábios


dela.

– Não estou fazendo nada – Maya aproximou-se ainda


mais, Victor deixou que ela colasse o corpo no dele. Ela sabia
que ele estava rendido.

O telefone de Maya tocou, forçando-os a parar os beijos


que ficavam cada vez mais quentes.

– Acho que é melhor eu ir – Victor ruborizou – Nos


vemos amanhã. Pode me ligar se precisar de algo.

Victor e Maya se despediram e Maya se apressou para


atender o telefone. Era Thomás.

– Fazem dois dias que você não me liga, está tudo bem?

– Bom, não. Aconteceu muita coisa.

– Tenho até medo de imaginar, mas pode me contar


tudinho.

Maya contou-lhe os acontecimentos dos últimos dois


dias, inclusive sobre a noite que passou com Victor.
– Eu disse que você estaria em perigo com Igor aí.

– Eu o subestimei. Não achei que fosse


deliberadamente deixar provas contra si.

– Victor será mesmo demitido?

– Espero que não. Torço para que o vídeo seja o


suficiente para inocentá-lo, mas talvez não seja. Foi muito
grave.

– Eu imagino. Pelo menos agora você tem alguém para


protegê-la contra esse maluco. Ele tem de ser punido, Maya, o
que ele fez é imperdoável.

– Ele será. Só preciso esperar pelo fim da viagem, me


certificar de que eu e Victor não sejamos vítimas das
manipulações dele.

– Falando no Victor, você já conversou com Henrique?

– Não nos falamos desde que eu falei sobre término.


Estamos dando um tempo, seja lá o que isso quer dizer. Estou
me sentindo tão confusa, tão culpada. Mas eu juro para você
que a única coisa me impedindo de surtar nesse cruzeiro é a
presença de Victor. Eu sei que não faz sentido. É errado.

– Na verdade, estrelinha, faz sentido sim. Eu poderia te


dizer do que se trata, mas deixarei você descobrir sozinha.

Maya respirou profundamente.

– Eu não falei com ele sobre Henrique. E eu sei o que


ele pensa sobre traição, apesar de ainda estar comigo e me
proteger. Ele deve pensar que sou uma hipócrita.
– Você só vai saber se conversar com ele. Mas pelo que
me disse sobre a intensidade da relação de vocês, acredito que
não seja bem por aí.

– Eu sou uma pessoa horrível?

A pergunta saiu sem que Maya pensasse muito nela.


Era apenas um pensamento que a assombrava de vez em
quando e agora ela precisava da opinião de alguém que
soubesse de todas as suas falhas e fraquezas.

– Não, mon chérie, não mesmo. Você só está muito,


muito confusa. Um pouco perdida. Mas logo há de se encontrar.
Seu coração continua generoso como sempre.

As palavras de Thomás aqueceram o coração de Maya,


mesmo que ela não concordasse com elas. Tinha a esperança de
fazer a coisa certa e se livrar de vez da culpa que carregava.

Maya conseguiu dormir mais tranquila depois de


conversar com Thomás. Ao acordar, procurou por informações
de Victor e se Monteiro havia conseguido reverter sua
demissão.

Victor a encontrara na porta da cabine para tomarem o


café da manhã. Dava para ver que ele não tinha conseguido tirar
um único cochilo durante a noite.

– Monteiro está esperando respostas da direção. Disse


que não haviam respondido o e-mail ainda.

– Vai dar certo – Maya tentou confortá-lo.

Quando Maya e Victor tinha acabado de se levantar e


Maya estava se preparando para trabalhar no Solário, pois
decidiu que um pouco de sol lhe traria ânimo, Monteiro os
encontrou. Pela expressão dele, só tinha entrado no restaurante
à procura dos dois.
– E então? – Victor perguntou, pulando os
cumprimentos esperados.

Monteiro balançou a cabeça negativamente.

O chão sob os pés de Maya sumiu.

Victor sentou-se com força de volta à cadeira.

Era isso. Fim da viagem. Acabou.

– Vou pegar minhas malas – Victor anunciou,


quebrando a tensão que se formara. Levantou-se e desviou de
Maya, caminhando em direção à entrada do restaurante – Não
deixe que se aproximem de Maya – Disse para Monteiro, numa
mistura de pedido e ordem.

– Não – Monteiro o segurou pelo braço, impedindo-o


de sair – Darei um jeito.

– Não tem mais como dar um jeito – Victor não estava


irritado, ou triste, ou surpreso. Só desesperançoso. Aceitou o
próprio destino sem relutar.

– Existem questões que você não sabe. Confie em mim,


eu posso reverter isso – Monteiro ainda segurava o braço de
Victor.

Victor parecia tão cansado e decidido que por um


momento Maya pensou que ele recusaria a ajuda de Monteiro.
Mas ele concordou com um aceno.

– O que precisa que eu faça?

– Por ora, não vá. Permaneça no Cruzeiro e se possível


longe da vista dos outros dois. Quando o Cruzeiro voltar para o
alto-mar teremos mais tempo.
– E se não der certo?

– Então você desce na próxima parada e eu compro


novas passagens de volta para o Brasil.

Victor concordou em silêncio.

Maya e Victor voltaram para a cabine. Victor ficaria


escondido lá até o dia seguinte.

Maya teve de insistir muito para que Victor não a


impedisse de ir ao Solário sozinha. Era o dia de Igor e Jorge
trabalharem no porão, então estaria protegida até o horário do
almoço, pelo menos. Victor não podia ir com ela já que tinha
que se manter escondido. Mas ela precisava desesperadamente
de um pouco de sol. Queria sentir a pele ardendo e o conforto
que a absorção de vitamina D lhe traria.

Por volta das nove horas da manhã, um mau


pressentimento fez a espinha de Maya se arrepiar. Lá estava, na
tela do notebook, mostrado através dos gráficos, um outro
desvio. Desta vez o gráfico indicava que o protótipo estava
funcionando com 10% de economia, mas o Cruzeiro estava
parado, logo era impossível. Maya sabia que não era um
problema no motor do TechMarine, e foi direto para a sua
cabine.

– Vem comigo, agora! – Chamou Victor, que a seguiu


sem questionar.

No caminho, Maya explicara brevemente a situação.

– Você confia mesmo em Monteiro, não é? – Ela


perguntou.

– Confio. Por quê?

– Espero que seus instintos estejam certos.


Ao chegarem à porta da cabine de Monteiro, bateram
juntos e incessantemente até ele abrir.

– Mas que balbúrdia é esta? – Monteiro estava


segurando o celular com uma das mãos e usando a outra para
tapar o microfone, para que a pessoa no outro lado da linha não
os ouvissem arrombando a porta.

Victor entrou sem esperar ser convidado, Maya o


seguiu.

– O que você está fazendo? – Victor perguntou.

– Resolvendo o seu problema! – Monteiro apontou para


o celular.

– Preciso que veja uma coisa. É urgente – Maya


intromteu-se.

Monteiro se despediu da pessoa ao telefone, a


contragosto, e virou-se para o casal insolente.

– O que vocês estão fazendo aqui?

– Olha o seu notebook agora, por favor! Abre os


gráficos em tempo real.

Monteiro nem tentou resistir. Limitou-se a revirar os


olhos e bufar enquanto ia até o cofre retirar o notebook de
dentro.

– O que está havendo agora? O motor está ligado? –


Perguntou assim que abriu a tela necessária.

– Não, não está – Maya assegurou.

– E por que aqui mostra que está?


– Olhe as configurações dos parâmetros do gráfico.

Monteiro estava confuso, mas obedeceu. Ficou um


tempo olhando para a tela, absorvendo as informações.

– Tem alguma coisa desconfigurada aqui.

– É, tem sim. E sabe quem fez isso? – Victor


questionou.

– Não me digam que foi Igor – A expressão de


Monteiro era pura confusão – Vocês não têm permissão para
isso!

– Não, não foi Igor.

Monteiro olhava confuso para Victor, esperando a


elucidação do problema.

– Você fez – Victor continuou.

– Eu?

Victor fez um gesto apontando para o notebook de


Monteiro, incentivando-o a verificar por conta própria.

– Alguém pode me explicar o que está acontecendo? –


Perguntou Monteiro, ele clicou algumas vezes até deparar-se
com o próprio usuário – Eu não fiz isso!

– Alguém está nos sabotando – Victor Disse.

– Mas – Monteiro pensou por alguns segundos – Pode


ser um erro.

– Poderia, se fosse a única vez que isso aconteceu.


Alguém está desconfigurando os parâmetros dos gráficos e
usando o seu usuário pra isso! – Maya sentenciou.
– Não é a única vez? E quem faria uma coisa dessas?

– No dia em que houve a queda no gráfico e culparam


eu e Victor por não identificarmos o problema nas velas,
também se tratou de uma desconfiguração dos parâmetros –
Maya explicou – E também foi o seu usuário que fez isso. Não
falamos nada porque não tínhamos certeza se, bem, se poderia
mesmo ter sido você.

– Por que eu faria uma idiotice dessas? Os relatórios


ficarão comprometidos e isso pode implicar numa
renegociação!

– Nós sabemos – Victor concordou – Por isso quando


vimos o mesmo problema se repetir, quer dizer, Maya viu, e
presumiu que se tratava do mesmo problema, viemos falar com
você. Achávamos que alguém poderia estar nos sabotando, mas
talvez estejam fazendo isso com você.

Monteiro absorvia o que Maya e Victor diziam com


acenos de cabeça ao mesmo tempo que confirmava as
informações em seu notebook.

– E como vocês descobriram isso? – Perguntou


confuso.

Maya e Victor se entreolharam.

– Você tem que prometer não nos matar – Disse Maya.

– Ou nos demitir – Pontuou Victor.

Não tiveram pena do coração de Monteiro e despejaram


no peito nele a suspeita que tiveram de que o problema não
fosse no motor e sim nos gráficos, de que suspeitavam de Igor
de alguma forma, de como invadiram a cabine dele enquanto
ele dormia para verificar e de como decidiram não falar sobre,
porque achavam que podia mesmo ser ele. Até aquele
momento.

Monteiro não ficou irritado. Ficou chocado, mas não


irritado. E enquanto ouvia os detalhes da aventura dos dois,
com Victor escondendo totalmente que se esconderam no
armário quando ele acordou, Monteiro vasculhava o próprio
notebook.

– Não tem alguém tentando sabotar você – Monteiro


olhou chocado para Victor – Nem mesmo a mim. Estão
tentando sabotar a operação.
14
Filho Ilegítimo

Tudo passava a se encaixar na cabeça de Maya, que aos


poucos se sentia menos perdida.

Maya, Victor e Monteiro formaram um time, todos


comprometidos a descobrir quem estava sabotando a operação e
porquê. Monteiro descobriu mais desvios no sistema feitos pelo
usuário dele, mas até o momento não tinham identificado
nenhum padrão ou descoberto uma pista de quem estava
fazendo aquilo. Suspeitavam de Igor, mas não havia nada
concreto para acusá-lo, a não ser ele ter tentado culpar Victor
pela última falha. Mas isso poderia muito bem ter sido ele se
aproveitando de uma oportunidade para prejudicar o colega, e
não necessariamente causando a situação.

Era empolgante, apesar de tudo. Maya sentia que estava


numa espécie de missão secreta e começara a sentir prazer na
viagem novamente. Desde o incidente com Victor e Igor, Igor
mantivera-se o mais distante possível dela. Maya não sabia se
ele estava com medo de ser enviado desta para uma melhor se
tentasse algo novamente, ou se só estava se recuperando para
atacar com mais força. Porque definitivamente aquele homem
faria tudo o que tivesse ao alcance dele para destruí-la. No
geral, tentava não pensar muito nisso. Até porque estava segura
ao lado de Victor.
Victor não saiu do Cruzeiro rumo ao aeroporto de
Roatán, como Monteiro havia pedido, e ela estava esperando
para saber se o plano dele havia dado certo.

Quando Maya e Victor chegaram ao restaurante pela


manhã, Monteiro já os esperava. Assim que ele os percebeu de
longe, levantou-se da cadeira e dirigiu-lhes um sorriso radiante.
Maya sentiu um peso enorme saindo de suas costas, sabia que
só podiam ser boas notícias.

– Deus certo – Monteiro anunciou assim que eles se


aproximaram o suficiente – Victor continua na operação.

A reação de Victor foi um longo suspiro de alívio.

– Teremos alguns problemas quando voltarmos, mas


por ora você continua.

– Como você conseguiu? – Victor perguntou.

– Com diplomacia. É um jogo, você vai aprender um


dia. Você só precisa ter algo que eles querem ou o poder de
fazer algo que eles não querem.

– E qual deles você tinha?

Monteiro soltou um sorriso maroto, claramente se


divertindo com a situação já que tinha conseguido livrar Victor
da demissão.

– Um pouquinho dos dois.

– E Igor? – Victor perguntou.

– O que tem ele?

– Ele será punido?


A expressão de Monteiro rapidamente se fechou.

– Não.

– Como não? – Victor indignou-se – Você não mostrou


o vídeo? Lá mostra ele agarrando a Maya, a puxando e tentando
agredir ela!

– Eu sei. Mas eles alegaram que não tinha como saber o


que Igor faria, já que você o interrompeu antes. E que ele
poderia estar falando qualquer coisa a Maya, não
necessariamente a assediando.

– Isso é um absurdo! – Victor disse um pouco alto


demais, atraindo a atenção de alguns outros tripulantes.

– Sim, eu sei que é.

– Não há nada que eu possa fazer para que ele seja


punido pelo que fez? – Maya interpelou.

– Sinto muito, minha querida, mas nem o vídeo foi o


suficiente. Se quer um conselho, espere a viagem acabar.
Quando estivermos de volta à Ivory haverá, sim, algo que
podemos fazer.

– Mas – Maya estava incrédula, chocada – Então vou


simplesmente continuar trabalhando com ele?

Monteiro segurou a mão dela sobre a mesa, a


surpreendendo. Monteiro sempre foi muito educado e gentil,
salve as vezes em que ela o flagrara irritado. Mas nunca tivera
tanta intimidade com ela. Por um momento, sentiu como era
estar na pele de Victor, o preferido.

– Não deixaremos que ele se aproxime de você. E,


como eu disse, quando retornarmos à Ivory, vamos dar um jeito
nele. Então você nunca mais precisará vê-lo na vida.
Maya não sabia muito bem o que pensar, mas decidiu
confiar em Monteiro. De qualquer maneira, se o vídeo que
mostrava Igor sendo agressivo com ela não foi o suficiente para
que a direção da Ivory o punisse, não havia nada que ela
pudesse fazer dali.

– Há algo de muito errado nisso – Victor comentou.

– Bom, hoje é o dia de vocês trabalharem na sala de


observação, se não me engano – Monteiro fez menção de
retirar-se da mesa – Façam o melhor, como sei que já fazem, e
me avisem imediatamente se tiverem algum problema.

Para Maya, pareceu que Monteiro não queria continuar


o assunto, mas deixou que ele se despedisse e fosse embora.

Depois de comerem panquecas e beberem sucos, Victor


e Maya foram para o porão.

– Você percebeu que Monteiro evitou falar sobre Igor?


– Maya perguntou quando se sentaram e dispuseram os
notebooks sobre a mesa.

– Ia perguntar a mesma coisa a você.

– Eu acho que ele está escondendo alguma coisa de nós.

– Também acho. Mas não será um segredo por muito


tempo – Disse com ar aventureiro.

Apesar de estarem submersos em mistérios, Maya e


Victor se sentiram leves pela primeira vez em muitos dias.
Ambos sentiam que as coisas estavam dando certo e Maya viu a
esperança retornar ao olhar de Victor. Isso fez com que ela
mesma passasse a sentir esperança de que conseguiria resolver
os problemas que a afligiam: Sabrina, Henrique, Victor e Igor.
– Não é normal que Igor sempre saia impune das
situações – Victor pensou em voz alta.

– A cultura da empresa não facilita – Maya emendou –


Não se lembra de Cláudio? Ele só foi devidamente punido
quando as acusações de assédio contra ele se tornaram uma luta
judicial.

– Claro que lembro, ele se aproveitava das novatas.

– O que podemos fazer?

– Acho que Monteiro tem razão ao dizer que não


podemos fazer muita coisa agora, enquanto estamos em alto-
mar – Virou-se para Maya – Mas quando retornarmos, eu juro,
ele vai pagar pelo que fez.

A intensidade das palavras de Victor fez Maya sentir


uma onda de calor. Ela não sabia dar um nome a esse
sentimento, mas era bom.

– Me prometa que não vai matá-lo – Ela brincou.

– Só se ele tentar fazer algo com você novamente.

Maya estava apenas brincando, mas Victor a olhou


daquele jeito que fazia o estômago dela tremer. Ela o queria
tanto. E os olhos dele diziam que ele também a queria. Ela
sentiu que não importava por quais tempestades passassem, se
tivessem um ao outro tudo ficaria bem.

Victor inclinou-se para beijá-la. Ele era tão, tão


irresistível. Maya sentiu um frio na barriga. Os lábios dele se
aproximando dela, a mão dele subindo por sua nuca.

– Victor, aqui não – Praguejou a si mesma por tê-lo


interrompido. Ela estava na razão, mas não queria ter parado.
– Por que não? – Os lábios dele ainda estavam a um
centímetro do dela.

– Estamos trabalhando. E as câmeras...

– Não tem câmeras aqui.

– E se alguém aparecer? – Victor agora estava roçando


a ponta do seu nariz no dela.

– E se não aparecer?

A esta altura Maya não conseguia calcular nenhum


perigo, só queria que Victor a tomasse nos braços e a fizesse se
sentir nas nuvens outra vez.

Victor a beijou como se bebesse vinho numa taça.


Segurou-a pela nuca e a beijou com toda a intensidade que o
desejo permitia. Os beijos dele nem pareciam beijo, Maya
pensou, eram como estar possuindo ela. E ela só queria que ele
continuasse.

Victor segurou-a pela cintura e a fez levantar, sentando-


a na mesa, encaixando-se entre as pernas dela. Maya gemia
baixo a cada vez que Victor a pressionava contra ele. Nunca
havia feito algo assim na vida, num lugar impróprio! A
excitação de estar correndo perigo de ser pega aumentava ainda
mais seu desejo. Victor soltou os lábios dela pra beijar-lhe o
pescoço. Ele beijava da mesma maneira que beijava os lábios, o
que fazia Maya pensar que ele a estava devorando. Ele
saboreava a pele dela e quando dava mordidas Maya gemia
mais alto, agarrando as costas dele.

Maya mal se lembrava de onde estava, só desejava por


mais e mais. Ela apertava suas pernas ao redor de Victor,
pressionando a excitação dele contra ela. Victor gemia entre os
beijos que dava. Ele se afastou por um instante, para olhá-la.
Maya estava ruborizada, ofegante. Victor puxou a blusa dela
para baixo, expondo os seios perfeitos. Maya arqueou as costas
com a súbita mudança de temperatura naquela área. Os mamilos
enrijecidos.

– Você é tão – Antes de terminar Victor já estava com a


boca em um dos peitos de Maya. A boca dele era quente,
faminta e ousada. Ele chupava e mordiscava, fazendo Maya
precisar controlar os gemidos. Victor não parou nem por um
instante, era como se esperasse por aquilo a vida inteira e só
soltou o seio dela para abocanhar o outro, fazendo-a gemer
novamente.

Maya mexeu o quadril, roçando no pau de Victor que


estava duro como pedra. Ele gemeu com a boca no mamilo
dela. Maya não aguentava mais, ela precisava dele naquele
exato momento.

Ela fez menção de tirar a calça dele, mas Victor a


impediu.

– Ainda não – Sussurrou.

Ele a desceu da mesa e virou-a de costas. Maya não


esperava por aquilo e não soube o que fazer por um instante.
Victor pressionou-a pouco acima da cintura, fazendo-a se
curvar na mesa, com a bunda empinada para ele. Ele ergueu
saia dela – ela gostava muito de saias – e desceu a calcinha
dela. Maya esperou por uma penetração, mas ao invés disso
Victor ajoelhou-se e beijou o sexo dela bem ali. Ele segurou-a
pela bunda e explorou toda a área que tinha acesso naquela
posição. Maya surpreendeu-se com a língua dele percorrendo os
lugares que ninguém havia percorrido antes. Era obsceno,
escandaloso. Mas era bom. Oh, céus, era muito bom. Ela gemia,
contorcendo-se sob o toque dele.

A sensação que Maya experimentara fora quase


espiritual. Um prazer que ia muito além do físico, muito além
da carne. E Victor tinha fome dela, continuava beijando e
explorando o corpo dela com uma língua atrevida que sabia
muito bem o que fazer para causar prazer. Sua perna tremeu,
suas costas arquearam e ela gozou ali, na boca dele. Outra vez.

Maya precisou tapar a própria boca para não gritar.


Victor levantou-se e tirou a mão de sua boca para beijá-la. O
beijo que a invadia e explorava toda sua boca. O gosto dela na
boca dele. Victor a soltou e beijou-lhe o pescoço, o ombro, até
que ela ouviu o zíper da calça dele abrindo e quando Victor a
penetrou, não foi com delicadeza.

Maya mordeu o lábio, estava a um passo de gritar. Não


de dor, não. De prazer, um prazer que ela quase não podia
explicar. Victor se movia com firmeza, estocando com força
dentro dela. Ele alcançava os lugares certos, como se fosse feito
sob medida. Maya estava apoiada sobre a mesa, com os seios de
fora, enquanto Victor a penetrava e mordia suas costas. Deus,
aquele homem ia arruiná-la. Ela estava entregue, incapaz de
resistir a qualquer coisa que ele lhe pedisse. Victor apertou o
seio dela com uma das mãos e com a outra guiou a mão dela
para o seu clitóris. Não precisou dizer, ela sabia o que fazer.

Quando Maya estava chegando ao orgasmo pela


segunda vez, sentiu Victor acelerando os movimentos e
colocando mais força. A respiração irregular, os gemidos
abafados. Ele a penetrou com força uma última vez. Gozaram
juntos.

Maya sentiu o pau de Victor dentro de si enquanto seus


músculos se contraíam, Victor também sentiu, e gemeu ao
ouvido dela.

Victor esperou os espasmos de Maya cessarem para sair


de dentro dela e fechar o zíper da calça. Ele subiu a calcinha
dela, deu-lhe um beijo na bunda e cobriu-a novamente com a
saia. Depois, ainda por trás dela, ergueu as alças da blusa,
aproveitando para apertar novamente os seus seios. Eles se
encaixavam perfeitamente em sua mão. Ela inteira se encaixava
perfeitamente nele.

Maya poderia ter sentido vergonha, mas não. Quando


olhou para Victor, ele a estava encarando da forma doce de
sempre. Ela mordeu o lábio e sorriu. Estava perdida.

– Talvez queira ir ao banheiro se secar – Victor sugeriu.


Maya estava encharcada e aprova do desejo dos dois escorria
pelas pernas dela.

– Eu definitivamente preciso de um banho – Maya


quase não conseguia falar – E de uns três litros de água.

– Só não demore, ou vou sentir sua falta.

Maya confirmou com a cabeça e saiu do cubículo em


direção ao banheiro. Suas pernas estavam dormentes e ela ainda
sentia um formigamento nas partes íntimas.

O restante do dia passou normalmente, apesar de Maya


ter tido dificuldade em se concentrar no trabalho. Não
conseguia fazer isso com Victor tão próximo.

Depois do jantar, Victor a levou até seu quarto e disse


que não poderia ficar, porque tinha que extrair algumas
informações de Monteiro. Ela concordou, contrariada.

– Você não vai poder dormir aqui nem mais um dia? –


Ela perguntou, emburrada.

Victor deu-lhe um sorriso torto.

– Eu vou dar um jeito, prometo.

Victor teve o ímpeto de despedir-se de Maya com um


beijo, mas subitamente lembrou-se de que estavam no corredor
e que a cabine de Igor e Jorge não ficavam muito distantes.
– Boa noite – Limitou-se a dizer, tocando a mão dela
disfarçadamente.

– Boa noite – Maya sorriu, com as bochechas


avermelhadas.

Já na cabine de Monteiro, Victor se jogou na cama, a


fim de irritar o chefe.

– Você não tem modos, não é? – Monteiro resmungou.

– É o meu jeito.

Monteiro bufou.

– Por que Igor não foi punido? – Perguntou, sem


rodeios.

– E eu que vou saber?

Victor levantou da cama e se aproximou de Monteiro


que estava sentado na cadeira da área externa, onde podiam ver
o mar. Durante a noite era um pouco assustador, mas não
deixava de ser bonito. E tinha um cheiro agradável, além de
emitir um som tranquilizador.

– Não precisa rodear, eu sei que está escondendo


alguma coisa.

– Victor, meu filho, por que você não para de ir atrás de


confusão?

– Eu acho que ela me persegue, não o contrário – E


sentou-se ao lado do velho.

– Tudo o que eu posso dizer é que vocês se meteram


com a pessoa errada.
– Chega de enigmas, Monteiro. Não acha que por eu
estar tão afundado nessa história não mereço saber onde me
meti? O que está havendo? Por que Igor é sempre protegido lá
dentro? Certamente não é porque ele é o engenheiro mais
competente.

– Claro que não é por isso – Monteiro apressou-se em


concordar e acendeu um cigarro. Eis outra coisa que Victor
sabia sobre ele, mas nenhum outro funcionário fazia ideia:
Monteiro costumava fumar quando estava nervoso. Mas ele
escondia isso de todos e escondia muito bem.

– Então porquê?

Monteiro suspirou, derrotado, desistindo de se esquivar.

– Você sabe qual é o nome completo de Igor?

Victor fez uma careta, surpreso com a pergunta.

– Não. Mas o sobrenome é Medeiros, eu acho.

– Isso. O sobrenome da mãe dele. O nome dele é Igor


Medeiros, apenas.

– Sem nome do pai?

– Exato.

– E? Isso deveria responder alguma das minhas


perguntas?

– Deveria. Se, por alguma razão, o pai daquele menino


tivesse tido a honra de registrar o filho, seu nome seria Igor
Medeiros Ivory.
O tempo, por um milésimo de segundo, congelou diante
de Victor. Igor era um Ivory. Um Ivory! Como? Por quê? Tudo
fazia sentido.

– Ele é um bastardo do senhor Ivory? – Perguntou,


apenas porque precisava da resposta exata para acreditar no que
seus ouvidos acabaram de ouvir.

– Sim. Não o único, mas o mais importante deles, pelo


menos.

O atual senhor Ivory herdara a empresa do pai, que por


sua vez herdara do avô. No começo a Ivory apenas revendia
aparelhos tecnológicos ultramodernos, mas com o tempo passou
a fabricar e patentear os próprios, ganhando fama internacional.
O senhor Ivory ia poucas vezes para a área de fabricação, onde
Victor e os outros trabalhavam; Victor só o tinha visto duas
vezes e nunca chegou a falar com ele. O dono da Ivory era
casado e tinha quatro filhos: três meninos e uma menina. Nunca
ouvira uma única conversa sobre filhos bastardos, o que
mostrava que a instituição fofoca não funcionava tão bem
quanto ele pensava.

– Então nada vai acontecer a ele? Ele pode


simplesmente chantagear e assediar as pessoas e a direção
passará a mão na cabeça dele?

– Vai acontecer algo a ele, sim. Porque nós faremos


acontecer. Mas não agora, não aqui.

– Você sabia que ele desprezível?

– Em parte. Sabia que ele tinha um histórico de assédio


que nunca deu em nada, mas nunca ouvi sobre comportamento
violento.

– Por que você o trouxe, então? O escolheu para a sua


equipe na operação!
Monteiro riu, de um jeito autodepreciativo.

– Você acha que eu tenho muito mais poder do que


realmente tenho. Acha mesmo que eu escolheria conviver com
esse cara se pudesse escolher?

Eram muitas informações para calcular. Victor


enxergava os últimos acontecimentos numa perspectiva
completamente nova agora.

– Acha que ele é o sabotador? – Victor perguntou,


depois de Monteiro fumar dois cigarros.

– Não sei. Ele tem motivos. Talvez busque se vingar do


pai, ou conseguir uma posição de poder lá dentro para, quem
sabe, ser visto pelo genitor. Mas não temos nenhuma prova
concreta.

– Vamos descobrir o que está acontecendo.

– Temos que descobrir, ou não saberei como explicar o


meu usuário ligado a todas as falhas recentes. E, Victor, evite se
envolver em problemas com ele. E com aquele amigo dele,
também.

Victor concordou em silêncio. Estava lidando com


emoções demais ultimamente, tinha que pôr a cabeça no lugar e
encontrar uma maneira de resolver as coisas. Livrara-se de uma
demissão, mas não estava a salvo.

– Filho, não queria me intrometer na sua vida –


Monteiro disse, apagando o cigarro num cinzeiro de cerâmica
que imitava a boca de um tubarão – Mas você gosta dela?

Victor engoliu em seco. Ele sabia de quem Monteiro


estava falado e nem tentou esconder. Mas o que ele poderia
responder? Ele gostava de Maya, claro. Mas não era o que
Monteiro estava perguntando. Era um gostar específico, um
eufemismo perante o que ele realmente sentia.

– Vou interpretar o seu silêncio como um sim –


Monteiro continuou – Ela é uma boa garota, mas não é pra
você. Você merece alguém que tenha certeza. E ela está cheia
de dúvidas – Monteiro levantou-se, voltando para o interior da
cabine e carregando consigo a cabeça de tubarão – E não se
esqueça de que não poderei proteger você de mais um
escândalo, caso aconteça.

– Sim, senhor.
15
A Exposição

Os dias se passaram preguiçosamente. O clima no


Cruzeiro estava mais leve e Maya e Victor se permitiram
conhecer mais algumas cidades. Juntos, visitaram Fort
Lauderdale, Brevard County e Rhode Island. Se divertiram
muito.

Monteiro estava atendo a qualquer sinal de sabotagem,


o que aconteceu mais três vezes. E eles fizeram o que podiam:
registraram bem todas as situações. Mas ainda não havia uma
pista, uma mísera indicação de quem estivesse por trás daquilo.

Igor e Jorge andavam distantes dos outros. Os


hematomas de Igor tornaram-se menos perceptíveis, resumindo-
se a manchas arroxeadas, sem sinal de inchaço. Sabrina tentara
se comunicar com Maya diversas vezes, mas Maya não se
sentia pronta para responder. Continuava conversando com
Thomás todos os dias e ainda estava a dar um tempo com
Henrique.

Era o quadragésimo quarto dia da viagem, e naquela


noite estariam em Nova York. Maya e Victor tinham decidido
passar a noite conhecendo uma pequena parte da cidade, e
estavam animados. Como sempre, Victor traçara um roteiro
para o passeio deles e Maya aceitou ser surpreendida por cada
etapa.
A relação deles seguiu o caminho natural e foi
evoluindo. Victor aproveitara algumas oportunidades para
dormir na cabine com Maya e em outros momentos apenas
ficavam juntos, apreciando a companhia um do outro; sem a
necessidade de arrancarem as roupas. Victor era, acima de tudo,
um bom amigo. Era um ótimo amante também, Maya tinha que
admitir, mas a amizade dele era o que ela mais apreciava.
Adorava a sua companhia, rir das suas piadas e, em toda
oportunidade que tinham, fazer amor.

A questão de Henrique ainda a assombrava e ela


gostaria de ter dado um ponto definitivo na situação, mas não
conseguia ser insensível ao ponto de negar ao namorado uma
última conversa. Se fosse agir de acordo com o que acha certo,
não manteria contato algum com Victor até isso. Mas não era o
que estava fazendo.

Maya estava empolgada. O dia passara depressa,


mesmo com toda a ansiedade que sentia, e em menos de duas
horas estaria caminhando pelas ruas iluminadas de New York.
Eles não se afastariam muito do Porto, mas ainda assim seria
uma experiência válida.

– Prefiro que possamos ir andando aos lugares que


escolheu – Maya disse a Victor, enquanto guardava o material
de trabalho.

– Eu sei – Ele riu – Não vamos nos afastar muito, e


poderemos ir andado, com certeza.

Maya vestiu sua melhor roupa, que era a mesma do


jantar que precedeu a viagem. Ela não costumava gastar muito
dinheiro com peças de vestuário, embora Sabrina tenha lhe dito
várias vezes que devia. Não lhe parecia muito útil. Ao look,
adicionou um par de brincos grandes e usou batom vermelho.
Sentia-se bonita, confiante.
Quando saiu do banheiro e deparou-se com a reação
encantada de Victor, soube que fez a escolha certa. Ela teve de
resistir para que ele não a despisse ali mesmo, mas não
poderiam se atrasar. Não aquela anoite.

Maya e Victor saíram do cruzeiro, respirando o ar


salgado da região costeira. Victor a conduziu pelas ruas
iluminadas da cidade e caminharam juntos por pouco mais de
quinze minutos até chegarem ao Lakruwana Restaurant, onde
Victor tinha feito uma reserva com antecedência.

O lugar era muito bonito, tinha um ar místico e


exotérico, com decorações que faziam referência a várias
religiões e culturas espalhadas pelo ambiente. De certo ponto de
vista, parecia até um pouco assustador, Maya adorou.

– Entre os restaurantes próximos do Porto, achei que


gostaria mais desse – Victor informou assim que se sentaram à
mesa.

Maya agradeceu com um sorriso.

Victor passara os últimos dias tentando


desesperadamente silenciar a voz da sua consciência. Ele não
era o tipo de homem que cedia a qualquer encanto feminino,
nunca fora assim. Nunca precisou ser. Ele sabia que era um
homem bonito e ao longo da vida só se envolveu com mulheres
que realmente o interessavam, e isso se tratava de aspectos além
do físico. Fora assim com sua ex-noiva.

E ele também tinha seus princípios, aos quais


permanecera fiel até adentrar o Pollux Stars. O sofrimento que
enfrentou após o término com Amanda – esse era o nome dela –
foi indescritível. Ele a amava, verdadeiramente. E ter sido
traído abriu uma ferida em seu peito que por muito tempo
pensou que jamais iria cicatrizar. Com isso, prometeu a si
mesmo nunca perdoar uma traição, se voltasse a sofrer uma, e
nunca ser o causador dela para outro homem. Mas olhe só para
ele.

Desde que se aproximara de Maya nos primeiros dias


no cruzeiro, sentira algo diferente. Inicialmente não era algo
que ele chamaria de atração, mas uma certa afinidade. Sentia
que podia confiar nela, que era uma amiga, era como se se
conhecessem há muito tempo. Os assuntos fluíam facilmente
nas conversas dos dois, as risadas eram constantes e
naturalmente se aproximara dela mais e mais. Até chegar a um
ponto em que não conseguia retroceder.

Ele passou a sonhar com ela, especialmente durante as


vezes em que dormia em sua cabine. Também pensava nela
enquanto estava acordado, e os pensamentos não eram nem um
pouco inocentes. Percebeu que a desejava. Muito. E tentou se
convencer de que estava evitando alimentar esse sentimento,
mas talvez não estivesse. Precisou mais de uma vez esconder
sua excitação em algum momento inapropriado: quando
tocaram as mãos no cais de Buenos Aires, quando acordou ao
lado dela e até mesmo quando estava na enfermaria com o nariz
quebrado. Definitivamente não foi fácil.

Mas então chegou o dia em que ele não pôde mais


esconder. Dentro daquele pequeno armário, Victor aceitou a sua
ruína. Não conseguia evitar, não tinha para onde ir. Mas
perceber que ela retribuiu foi a pior parte, porque desde então
soube que não conseguiria se manter afastado dela,
independentemente das suas crenças e promessas. Ele a queria.
E ele a teria.

Mas, no dia seguinte, quando tentou falar com ela,


recebeu um grande balde de água fria. Maya não quis falar
sobre o que tinha acontecido e o tratou friamente por dias
seguidos. Victor se convenceu de que tinha ido longe demais, e
de que provavelmente ela estava arrependida do que tinha
acontecido, já que ela tinha um namorado – e Victor odiava
lembrar disso – e que qualquer chance que ele tinha de ficar
com ela estavam destruídas. Saber que não a teria aumentava o
seu desejo insaciado, mas pensar que poderia perder a amizade
que haviam construído era muito pior que não realizar suas
fantasias. Foi uma situação terrível, e ele fez o que estava ao
alcance dele para ao menos manter um mínimo de contato.

Nunca deixou de prestar atenção nela, e foi graças a


isso que percebeu o comportamento estranho de Igor. Raras
vezes ele estava longe de Jorge e Victor estranhou ele entrando
no mesmo elevador que Maya. Ele quis apenas verificar, se
assegurar de que ela estava bem e de que ele não a estava
importunando. Na pior das hipóteses, Victor pensou que ele
pudesse apenas estar sendo grosseiro ou inconveniente, e talvez
por isso não estivesse preparado para vê-lo sendo agressivo.
Victor realmente não lembrava de muita coisa. Correra até eles
e impediu Igor de tocar em Maya com um belo soco, e depois
outro, e outro. Não sabe por quanto tempo ficou repetindo o
movimento, mas lembra-se de Maya o chamando atenção e
quando retomou a consciência, Igor parecia um purê de batatas
em sua mão.

Quando deixou Igor ensanguentado para trás, sabia que


tinha feito uma grande besteira e que as consequências disso
seriam grandes. Mas ele faria outras mil vezes, seja para
protegê-la ou para viver o que veio a seguir. Ele a queria tanto,
a desejava tanto, que quando aconteceu custou a acreditar que
fosse verdade. Tentou resistir, realmente tentou. Mas o desejo
foi mais forte que ele. Saber que ela também o queria reduzira a
zero qualquer possibilidade de ele agir com sensatez. Bastou
um toque dela para que ele se esquecesse de como pensar. E
desse pecado não se arrependia de maneira alguma.

Estava com ela, beijando ela, dentro dela. Nada poderia


lhe trazer mais prazer que isso. Permitiu-se dormir a abraçando,
e nos dias que se seguiram se esforçou ao máximo para fingir
que a história deles envolvia só os dois. Ele podia fingir que
estavam começando algo novo, que estavam se apaixonando,
mas não era bem assim. Havia algo, alguém. Alguém que ainda
podia chamá-la de sua, que ainda tinha o número salvo no
celular dela como "amor" e que ainda dividia o mesmo par de
alianças. Victor detestava pensar no namorado de Maya, mas é
claro que o fazia.

Ele era o amante, ele estava sobrando, mas não sentia


assim. Sabia que era estupidez acreditar nisso, mas tinha fé em
Maya, tinha fé neles. E por mais que não quisesse assumir para
si mesmo, estava apaixonado. Perdidamente apaixonado. E faria
qualquer coisa para continuar ao lado de Maya. Mas essa não
era uma escolha dele, era dela. E ele não fazia ideia do que
esperar, porque desde que se entregaram um para o outro ela
nunca mais falou sobre Henrique. Saber o nome dele, inclusive,
não facilitava as coisas. Para além disso, as palavras de
Monteiro martelavam sua cabeça dia e noite. "Você merece
alguém que tenha certeza. E ela está cheia de dúvidas".
Monteiro estava certo? Será que ao fim da viagem Maya
perceberia que cometeu um grande erro e voltaria correndo para
os braços do companheiro? No fim, ele seria apenas um erro?
Um desvio no caminho? Uma experiência exótica numa viagem
emocionante?

Apesar de ser atormentado por esses pensamentos, lá


estava ele, levando-a para jantar pelo simples prazer de ver os
olhos castanhos dela brilhando. Droga. Estava mesmo
apaixonado. Eles não podiam se expor demais, como Monteiro
já havia alertado, porque depois de ter sido quase demitido por
agressão, sua posição na Ivory estava mais instável que uma
bolha de sabão. Mas nem isso o impedira de convidar Maya
para passar aquela noite fora do Cruzeiro, uma vez que o Pollux
Stars só iria zarpar na manhã seguinte.

– Por que você não bebe álcool? – Maya perguntou,


depois de ter pedido uma taça de vinho e Victor, um copo com
água e gelo.

– Você foi a pessoa que mais demorou para fazer essa


pergunta.
– Não acho que tenha que haver uma explicação. Mas,
se tiver, gostaria de saber.

– Não gosto de como eu fico quando bebo. Sentidos


alterados, dificuldade de concentração. Sei que é divertido pra
muitos, mas não pra mim. Me parece uma tentativa de fugir da
realidade.

– Eu costumo beber quando quero fugir da realidade –


Maya assumiu.

– Está tentando fazer isso agora?

– Não – Ela mordiscou a boca, nervosa – Na verdade,


estou exatamente onde gostaria de estar.

Victor apenas sorriu. Parte dele estava encanto, a outra


achava que ele era um idiota. Ele não sabia o que fazer em
relação aos sentimentos conflitantes, mas sempre dava mais
ouvidos aos que eram completamente rendidos a Maya.

Comeram, beberam e riram – mais alto do que seria


apropriado. Victor e Maya não tinham pretensões de visitar os
pontos turísticos mais frequentados, e por isso evitaram certos
lugares. Depois de terminarem o jantar, Victor a guiou até
o Silver Lake Park.

O lugar era muito bonito, Maya sentiu vontade de vê-lo


à luz do dia. Havia um grande lago e atrações ao redor dele.
Passaram em frente a duas barracas iluminadas onde as pessoas
faziam refeições estilo fast food e ouviam música ao vivo. Ela e
Victor estavam satisfeitos, então fizeram apenas uma pequena
parada para observar os que ali estavam e continuaram.

Caminharam lado a lado por um longo tempo, até que


decidiram se sentar à margem do lago. Estavam numa parte
afastada e discreta, muito mais silencioso que a área onde
haviam as barracas.
– Tem certeza que não seremos assaltados estando tão
distantes dos outros visitantes? – Maya perguntou.

– Não tem como eu ter certeza de uma coisa dessas.

Maya riu, imaginando quão rapidamente aquele


encontro poderia se tornar catastrófico.

– Mas vale a pena – Decidiu. O ar gélido causava leves


arrepios na pele do rosto de Maya; as luzes das barracas a
alguns metros de distância e o lago formavam uma bela visão.

– Eu não sei se concordo com isso – Victor rebateu.

– Vai dizer que não é a noite mais bonita da sua vida? –


Maya instigou, exagerada.

– Está longe de ser.

Maya tentou fingir desapontamento com a resposta de


Victor, mas não conseguiu segurar o riso. Sobre eles, a lua
minguante parecia um sorriso.

– Estou feliz por estar aqui com você – Maya soltou,


deitando-se no chão e olhando para o céu. Ao lado da lua,
algumas estrelas exibiam seu brilho.

– Eu também – Victor deitou-se ao lado dela.

Maya inspirou profundamente, tentando guardar na


memória aquele precioso momento. Interrompendo seus
devaneios, sentiu o a mão de Victor tocar seu dedo mindinho.
Um toque delicado e gentil, que logo se tornou um carinho
tímido. Era como a noite m Buenos Aires, ela pensou, mas
melhor.

– Isso é estranho. – Maya sussurrou.


– Nós?

– Não. É estranho não ser estranho.

Victor soltou um riso curto. Ele a compreendia.

– Victor – Maya chamou sua atenção, depois de


ficarem um tempo em silêncio – Eu queria, eu não queria que
acabasse.

Victor ergue-se, se apoiando nos cotovelos, para vê-la


melhor.

– Não me faz promessas – Sussurrou, sentindo uma


pontada de dor no peito.

– Não é uma promessa. É uma confidência.

Victor não sabia o que ela queria dizer com aquilo.


Estava tentado a acreditar que ela correspondia ao menos um
pouco seus sentimentos, mas não podia arriscar-se a se iludir
tanto assim. Porque se ele acreditasse, por um momento, e
descobrisse estar errado, como iria lidar com aquilo?

Ele acariciou o rosto dela.

– Sabe o que vale a pena? – O rosto de Maya em sua


mão era mais bonito que o céu estrelado, que a lua sorridente,
que o lago ou o som do mar – Você. Não me importa o preço
que terei que pagar depois.

Maya sentiu os olhos lacrimejando.

– Não era pra ser assim – Disse quase para si mesma.

– Eu não me arrependo – Victor sussurrou ainda mais


perto dela, com as testas coladas uma à outra – Não me
arrependo de você.
A última coisa que Maya viu antes de ser beijada foi o
azul intenso e vívido dos olhos de Victor. Ele a beijou com
tanta suavidade que era quase doloroso. Pareceu a Maya um
beijo de despedida, e pensar nisso doía em um lugar profundo e
inexplorado dentro dela. Ela o beijou de volta, acariciando seu
rosto e afundando a mão nos cabelos negros dele.

Ela fez uma oração, a qualquer deus que pudesse ouvi-


la, e pediu para que a noite não acabasse.

Victor temia que a qualquer momento ela dissesse que


precisava retornar, que aquilo fosse só um sonho. E se fosse, ele
não queria acordar. Achara por muito tempo que jamais voltaria
a se sentir assim por alguém, mas se Maya fosse um lugar, ele
queria morar nela; se ela fosse uma cor, ele queria enxergar
apenas ela; e se ela fosse o mar que os cercava, queria encher os
seus pulmões e se afogar.

Victor acariciava a pele de Maya com a ponta dos


dedos e beijava-lhe de maneira suave. Aquela era sua confissão,
e ele torcia para que ela entendesse.

– Maya, eu – Começou a dizer, mas lhe faltou coragem.

– Eu também – Ela respondeu, voltando a beija-lo.

Victor estava a um passo de carregá-la no colo para


qualquer lugar onde pudesse despir seu vestido branco e beijar
toda a extensão da pele dela para provar o que sentia, quando
seu telefone tocou.

Pararam o beijo, mas Victor queria continuar.

– Pode ser Monteiro – Maya resmungou.

Só podia ser ele, Victor a corrigiu mentalmente. A


contragosto, atendeu, afastando-se alguns passos de Maya.
– Descobrimos algo! – Monteiro era pura euforia – Seu
amigo descobriu, na verdade, mas eu preciso te mostrar!

Assim que tiveram certeza de que alguém estava


usando o usuário de Monteiro para alterar os parâmetros, Victor
pediu novamente ajuda ao seu amigo hacker. No entanto ele
dissera que seria mais complicado que hackear o sistema de
segurança, já que precisaria prever o dia e a hora que o
sabotador faria a próxima alteração. Perderam algumas
oportunidades, mas aparentemente haviam conseguido.

– Já sabem quem foi?

– Não exatamente, mas estamos mais pertos que nunca.


Onde você está?

– Em Nova York.

– Ah, claro. Aproveite a noite, então. Quando retornar


ao Cruzeiro me procure.

– Tudo bem. Nos vemos amanhã pela manhã.

– Não perca o horário da partida – Monteiro o alertou.

Victor tinha planos para o resto da noite. Levaria Maya


para verem a estátua da liberdade e depois passariam a noite
num hotel próximo do Porto. Acreditava que tanto ele como ela
apreciariam uma noite fora da embarcação que se tornara quase
uma gaiola nos últimos dias.

– Ah, meu Deus! – Escutou Maya gritar.

– Preciso ir, tchau – Despediu-se de Monteiro


rapidamente.
Quando Victor voltou ao encontro de Maya para
verificar o que havia acontecido, a encontrou em choque,
chorando e tremendo, olhando fixamente para o celular.

– Maya?

Maya tapava a boca com uma mão e apertava o celular


com a outra. As lágrimas escorriam aos montes pelo rosto que
minutos atrás era beijado por ele.

– Maya? O que aconteceu?

Victor ajoelhou-se ao lado dela e tentou acalmá-la, em


vão. Ele insistia em pedir explicações, mas ela não fazia nada
além de chorar. Com as mãos tremendo e a respiração
entrecortada, Maya estendeu o próprio celular para ele.

Victor hesitou antes de olhar, mas nenhum tempo de


mundo poderia tê-lo preparado para aquilo.

A tela estava aberta na conversa com Henrique, e a


última mensagem que ele havia mandado era um vídeo de treze
segundos. Estava escuro, Victor não conseguiu identificar do
que se tratava de imediato. Então, sem pedir permissão e
presumindo que era o que ela queria lhe mostrar, deu play.

Todos os músculos do rosto de Victor relaxaram. Ele


sentiu uma súbita dor de cabeça e pontos pretos surgiram em
sua visão. Precisou piscar os olhos com força para espantar a
sensação de vertigem.

A imagem do vídeo era de baixa qualidade e por conta


da pouca luz era difícil enxergar alguma coisa. Mas ainda nos
primeiros segundos a imagem ficou mais estável e clara. Era
Maya, seminua e parcialmente deitada sobre a mesa da sala de
observação. Logo em seguida ele aparecia, tirando o rosto do
centro das pernas dela e a beijando. Então ele abre o zíper e...
"Acabei de receber isso de um número anônimo", dizia
a mensagem abaixo.
16
Medo e Culpa

Victor não precisou assistir novamente. Não podia. Seu


estômago se embrulhou e sua mente dispersa não conseguia
focar em nada. Ele se sentiu exposto, desprotegido. Alguém os
tinha filmado e saber que a intimidade deles tinha sido violada o
fazia querer vomitar. E Maya era quem mais estava exposta,
com o rosto mais perto da câmera e os seios nus à mostra.
Quem poderia ter feito algo assim?

E a pessoa que os violou ainda enviou o vídeo para


Henrique, humilhando Maya. Humilhando a todos. Ele estava
tão chocado que não sabia o que fazer, o que dizer, como
confortá-la.

– Vamos embora daqui – Victor precisou levantar


Maya do chão, que parecia não ter forças para levantar sozinha.
Seu corpo tremia e as lágrimas continuavam a escorrer, ainda
que seu pranto tivesse se tornado silencioso.

Acabaram indo para um hotel diferente do que ele


planejara, já que entraram no primeiro que Victor avistou,
seguindo o caminho de volta.

O estado de Maya era tão lastimável que funcionários


do hotel foram até ela perguntar se estava tudo bem porque,
aparentemente, suspeitaram de que ela estava ali contra a
vontade.
Uma vez no quarto, Victor precisou de um tempo para
pensar no que fazer. Queria poder socar o culpado, gritar na
janela, proteger Maya de tudo aquilo. Mas não podia. Ele
insistiu para que ela bebesse água e depois a ajudou a tomar um
banho, que foi apenas água corrente escorrendo cabeça abaixo.
Funcionou. Ao fim, ela estava mais calma, não estava
tremendo. Mas Victor percebeu que ela se recusava a olhar para
ele a qualquer custo.

Victor não a pressionou. Ele a deitou na cama, a


agasalhou e ficou sentado ao seu lado. Nenhum dos dois
pronunciara uma única palavra desde que entraram no quarto de
hotel.

A cabeça de Victor latejava, o corpo inteiro


formigando. Precisava conseguir pensar racionalmente: haviam
implantado uma câmera escondida no porão, era óbvio, e as
únicas pessoas a frequentar aquele lugar além dos dois eram
Igor e Jorge. Não tinha dúvidas de que fora Igor. A cartada
final.

Apostava que Igor havia se sentido humilhado por ter


apanhado, e queria se vingar tanto dele quanto de Maya. Não
seria difícil para ele esconder uma câmera ali, e então só
precisou descobrir o número do celular de Henrique. A
vingança perfeita.

Victor sentia-se muito culpado. Ele levara Maya a


aceitar fazer amor no porão. Sentia-se a criatura mais burra da
terra por não ter pensado que algo assim poderia acontecer. Ele
subestimara Igor, e só queria uma outra oportunidade de
esmagar os miolos dele. Céus, o que deveria fazer agora?

Maya parara de chorar, mas parecia estar desconecta da


realidade.
Victor tentou se aproximar dela, na expectativa de lhe
fazer carinho e facilitar que ela caísse no sono, já que dormir
iria ajudá-la.

– Você pode me deixar sozinha, por favor? – Ela ainda


não olhava para ele.

– Eu estarei na poltrona, se precisar de mim.

Parte de Victor gritava dentro dele dizendo que ele não


deveria estar fazendo parte daquela situação. Mas ele fazia. Ele
sabia que Maya era comprometida desde o começo e não podia
arrepender-se agora. E não se arrependia. Sabia que era errado,
mas sua consciência não era mais importante que a segurança
de Maya. E ele jamais soltaria a mão dela quando ela mais
precisava dele.

Maya adormecera no meio de lágrimas silenciosas,


Victor não pregara o olho. Precisava pensar claramente, mas
seus sentimentos o impediam. Sentia-se impotente, incapaz de
protegê-la.

Existiam várias consequências diretas do vazamento do


vídeo íntimo: o relacionamento de Maya, a maneira como
ambos seriam vistos pelas pessoas mais próximas que tivessem
acesso ao material e, claro, o emprego dos dois. Era o tipo de
coisa que destruía a vida de alguém.

Quanto mais pensava nisso, mais Victor tinha certeza


de que Igor havia enviado para o namorado dela e não para toda
a Ivory, para mantê-la refém. Assim ele permaneceria tendo
poder sobre ela e evitaria ser denunciado. Um plano ardiloso e
genial. Mas ele não deixaria que Maya ficasse presa nessa teia
de aranha, esperando o dia que fosse aniquilada de vez.

Ver Maya daquele jeito o destruíra por dentro. Aquilo


não estava certo. Ele não deveria ser o responsável por
nenhuma espécie de sofrimento para ela. Estava lamentando o
dia em que embarcara naquele maldito cruzeiro.

Victor precisou acordar Maya na hora de retornarem,


pois ela havia entrado num sono pesado.

– Me deixa em paz – Ela resmungou e virou-se de


costas para ele na cama.

– O Cruzeiro vai zarpar em meia hora.

– Eu não vou.

– Como não?

Maya virou-se, encarando-o pela primeira vez desde


que recebera o vídeo.

– O que eu vou fazer lá? Esperar para ser atacada de


várias maneiras diferentes? – Maya começou a lacrimejar outra
vez.

– Eu não acho que se você desistir de continuar vai


melhorar as coisas.

– Você está dizendo isso porque não é com você que


está acontecendo – E virou-se de costas novamente.

– Não, não é. Eu preferia que fosse comigo. Nós


precisamos denunciá-lo, Maya.

– E aí ele vai vazar o vídeo para todos no trabalho e


além de ter o namoro arruinado vou perder o meu emprego!

As palavras de Maya o afetaram como flecha, mas ele


decidiu ignorar.
– Acontece que se você não voltar, não vai tirar dele o
poder de fazer isso.

Victor ouviu Maya começando a chorar novamente,


abafando o som com o cobertor.

– Ele está tentando te manter refém – Victor continuou.

– Eu não sei o que fazer! – E o choro se tornou copioso,


aos soluços – Eu não aguento mais isso.

– Eu sei que não – O coração de Victor estava em


pedaços. Ele abriu um espaço na cama e sentou-se ao lado dela,
a abraçando – Precisamos pará-lo.

– Como?! – Maya estava encolhida e com o rosto


afundado no travesseiro de algodão.

– Com a ajuda de Monteiro.

Maya virou-se para Victor, os olhos inchados e


vermelhos.

– Eu queria nunca ter entrado naquele cruzeiro.

Victor a abraçou mais forte, massageando as costas


dela.

– Hoje é você, amanhã será outra pessoa. Temo que


ninguém consiga pará-lo, Maya. Se você não quiser voltar, eu
compreendo. Mas eu o farei pagar. O farei se arrepender até o
último dia da vida inútil dele.

Maya se afastou do abraço, fitando-o.

– Você acabará fazendo uma besteira.


Victor não respondeu. Na verdade, era bem provável
que assim fosse.

– Eu vou – Maya anunciou, secando as lágrimas – Não


tem mais nada que ele possa tirar de mim, mesmo. Quer dizer,
tem a Ivory. Mas que se foda a Ivory.

– Nós precisaremos contar para Monteiro.

– Eu sei. De qualquer maneira, ele vai receber o vídeo


mais cedo ou mais tarde.

– Eu sinto muito – Victor disse, a voz quase uma


súplica – Eu sinto muito mesmo.

– A culpa não é sua.

– Eu fiz aquilo, Maya.

– Nós fizemos. E acredite, eu não teria feito se não


quisesse.

– O seu namorado – Victor tentou formular uma frase,


mas não encontrou as palavras certas.

– Me bloqueou – Maya disse num riso forçado – As


coisas não são simples. Eu quis terminar, mas ele pediu um
tempo e, e então isso! Eu queria fazer a coisa certa! – E então
estava chorando novamente.

Victor balançou a cabeça, concordando. Não sabia se


queria saber sobre a relação deles, mas mesmo que quisesse,
aquele não era o momento.

Quando retornaram ao Cruzeiro, Victor e Maya foram


direto para a cabine da moça. Ela ainda estava instável, apesar
de menos emotiva. Aos poucos a tristeza no olhar dela dava
espaço para uma fúria desconhecida.
O telefone de Maya tocou e um arrepio percorreu o
corpo de Victor que imediatamente olhou para a tela acesa.

– Sabrina? Vocês reataram a amizade?

Maya balançou a cabeça negativamente.

– Ela não para de me ligar– Disse enquanto apertava o


botão vermelho – Não estou com cabeça para isso, agora.

– Tranque a porta, não abra para ninguém que não seja


eu e me ligue se acontecer qualquer coisa – Victor instruiu –
Vou conversar com Monteiro.

Victor não queria demorar. Não tinha pretensão de


deixar Maya sozinha por muito tempo, então assim que
Monteiro abriu a porta da cabine dele, desatou a falar.

– Precisamos fazer alguma coisa com o Igor, e


precisamos fazer já!

– O que aconteceu? – Monteiro estava levemente


surpreso com a inquietude do jovem pupilo.

– Ele escondeu uma câmera na sala de observação. E


mandou um vídeo, digamos, comprometedor, para o namorado
de Maya.

– Um vídeo comprometedor?

– Um vídeo íntimo, Monteiro. Nosso.

O velho arregalou os olhos, deu três passos para trás e


sentou-se com tudo na cama.

– Pelo amor de Deus, Victor, não me diga que vocês...


Na sala de observação?! E Igor tem um registro em vídeo? –
Monteiro ficou pálido como uma folha de papel. Por um
instante Victor temeu que ele fosse desmaiar ou passar mal.

Victor esperou Monteiro se recuperar. Demorou mais


do que ele imaginava.

– Me dê um copo com água, por favor – Monteiro


pediu – E uma aspirina. Está na gaveta do banheiro.

Victor retornou com os pedidos de Monteiro, que


continuava horrorizado.

– Você não tem um pingo de juízo!

– Eu sei.

– Como a Maya está?

– Nada bem.

– Céus, Victor! Como vamos lidar com isso, agora?

– Nós precisamos pará-lo, Monteiro, fazê-lo pagar!

– Você está se escutando? – Monteiro terminou de


beber a água e depositou o copo na mesinha de cabeceira –
Agora qualquer coisa que tentemos fazer contra ele será motivo
de ele espalhar o vídeo para mais pessoas.

– Como se ele não pudesse fazer isso a qualquer


momento!

– Victor, Victor... Preciso pensar, agora. A dor de


cabeça que vocês me arranjaram não foi pequena.

– Preciso ajudá-la – Victor disse, num suspiro.


– Vocês precisam é controlar os hormônios. Não são
adolescentes na puberdade!

– Quanto a isto não acho que você tenha muita moral


para reclamar – Victor o provocou, fazendo Monteiro ficar
corado e irritado.

– Não me provoque, garoto – Disse irritado, mas Victor


sabia que não falava a sério. Victor se deu conta de que
realmente sabia de mais detalhes da vida pessoal de Monteiro
do que conseguiria explicar.

Monteiro levantou-se e acendeu um cigarro. Depois


serviu-se de um pouco de whisky.

– Tenho certeza que se eu falar para o meu psicólogo


sobre isso, ele vai me pedir para eu me afastar de vocês dois.

Victor revirou os olhos. Estava exausto, não dormira a


noite inteira e as noites antes desta também não tinham sido
boas. Sentia que podia desmaiar de exaustão mental a qualquer
momento.

– O que você descobriu? – Victor perguntou – Sobre a


sabotagem.

– Bem, eu não entendo nada dessas coisas, você sabe.


Mas seu amigo disse que conseguiu rastrear alguma coisa e que
na próxima vez que tentarem usar meu usuário ele vai saber
quem fez e de onde está fazendo. Além disso, ele descobriu um
padrão na frequência com que o sabotador faz as alterações.
Sabemos quando será feito a próxima, e me certificarei de estar
perto de Igor.

– Perfeito. Se juntarmos todas as provas, não haverá


como livrarem ele.
– E se ele expor o vídeo de vocês, não haverá como
livrar você e Maya também. Santo Deus, que catastrófico!
Minha operação está afundando no mar.

– O que ele fez foi criminoso, Monteiro, vai muito além


de uma carteira de trabalho assinada.

– Sinto que isso não vai acabar bem, Victor. Por favor,
tome cuidado. Você e Maya. Isto não é mais um jogo de
travessuras. Como acabou de dizer, estamos lindando com
atitudes criminosas.

Enquanto Victor conversava com Monteiro, Maya


ligava para Thomás depois de ter recusado a décima terceira
ligação seguida de Sabrina.

– Maya, você está correndo risco de vida dentro desse


Cruzeiro. O que mais esse homem é capaz de fazer?

– Não sei, e espero não precisar descobrir.

– Volta para casa, pelo amor que tem por mim!

– Ficará tudo bem, Thomás, mas eu vou garantir que


ele não se meta no caminho de mais ninguém.

– Vocês não podem, sei lá, jogá-lo no mar e fingir ser


um acidente?

Thomás esperou uma reação irônica de Maya, uma


risada ou uma advertência, mas recebeu apenas silêncio.

– Eu não estou falando sério.

– Não é uma má ideia.

– Maya!
– Não estou falando sério – Ela o imitou.

– Eu me sentiria muito mais tranquilo sabendo que


posso confiar no seu bom senso. Mas não sei se posso.

– Eu não vou matar ninguém, Thomás – Ela o acalmou.

– Talvez só do coração, não? Porque o pobre do


Henrique deve estar lixando o chifre com uma serra elétrica.

– Thomás!

– O quê? Estou preocupado com ele.

Maya suspirou pesadamente. Ela também estava.


Tentara falar com ele por diversos meios, mas em todos ele a
havia bloqueado. Ainda conseguia fazer ligações, mas ele não a
atendia e ela desistiu.

– Estou com medo, Thomás – Maya admitiu – E me


sentindo tão culpada.

– Quero que esteja com medo, mesmo, assim me


asseguro de que tomará cuidado. Mas não adianta sentir culpa,
estrelinha. Você precisa consertar as coisas. E acredito que com
Henrique você só poderá se resolver quando voltar.

– Também acho que sim.

– Posso perguntar uma coisa?

– Claro.

– Pelo menos valeu a pena esse sexo em cima da mesa


do trabalho?

– Thomás!
Apesar das brincadeiras, e Maya agradecia por qualquer
ajuda que a fizesse enxergar a situação de maneira menos
trágica, sentia-se horrível. Nunca experimentara uma sensação
parecida, e não achava que conseguiria explicar. Era um misto
de vergonha e dor. Sentia-se exposta, sem nenhum controle
sobre a própria privacidade. E, acima de tudo, sentia-se violada.
Vítima de uma violência silenciosa e traiçoeira, mas que
invadiu sua intimidade e a fez refém, tirando dela o direto sobre
o próprio corpo. Ela torcia para um dia superar isso, mas ainda
era uma ferida aberta, uma mácula estampada em sua pele.

Victor Havia conseguido as informações que queria e


informado Monteiro sobre a nova situação deles. Um plano
começava a se formar em sua mente, mas ainda precisava
trabalhar nele. Sentia-se mais calmo e só queria se certificar de
que Maya estava bem para ir ao porão trabalhar. Ele iria
sozinho, já que pedira a Monteiro para que ela trabalhasse de
sua cabine. E uma vez no porão aproveitaria para procurar por
mais equipamentos de espionagens escondidos.

Quando estava passando pelo último corredor que teria


de curvar à direita para encontrar a cabine de Maya, deparou-se
com Igor e Jorge andando lado a lado e rindo de alguma
bobagem qualquer.

Assim que o viu, Igor parou de rir e empalideceu.

Victor parou de caminhar, olhando fixamente para ele.


Todos os músculos do seu corpo queriam moer os ossos de Igor
até que pudessem ser varridos e jogados em uma lixeira. Mas
ele conteve-se, permanecendo imóvel.

Igor parou de caminhar antes de passar por ele.

– Eu não quero problemas – Disse, levantando as mãos.

– Não é o que parece.


– Cara, eu já parei – Disse na defensiva, a voz tremendo
de nervosismo.

– Parou? – Victor tentava controlar a própria raiva – O


que mais pretende fazer com o vídeo?

– O que mais eu poderia fazer? Não demitiram você,


nem a mim.

Victor enrugou a testa, confuso, até entender de qual


vídeo Igor estava falando.

– Não estou falando das câmeras de segurança!

– Então eu não sei do que está falando – E fez menção


de continuar andando.

Victor deu um passo para o lado, ficando à frente dos


dois e impedindo a passagem.

– Mantenha-se longe dela, ou eu juro por Deus que


termino o que comecei!

Igor engoliu em seco.

– Você precisa tratar essa agressividade, Victor – Jorge


foi quem rebateu – Isso o torna uma pessoa perigosa. Vem,
Igor, deixe-o aí.

Jorge seguiu caminho com Igor ao lado, Victor usou


todo seu autocontrole para não correr atrás dos dois e
transformar Igor em um tapete. Não havia nada que pudesse
fazer ali. Respirou profundamente algumas vezes e retomou o
seu caminho.

Aquele seria um longo dia.


17
Pequenos Grandes Erros

Victor passou o dia no porão, saindo apenas para


almoçar. Ele procurou por câmeras e gravadores, mas não
encontrou nada. Claro que Igor havia retirado suas provas da
cena do crime. Mas ele não precisava de provas, só haviam três
pessoas além dele e Maya que frequentavam aquele recinto e
não precisava ser um gênio para saber quem era o culpado.

Em anos de profissão, Victor nunca estivera tão


desgostoso de trabalhar na Ivory. A empresa era uma das mais
cobiçadas por profissionais da engenharia mecânica, elétrica e
da computação, no Brasil. Por se tratar de uma multinacional,
oferecia salários competitivos e inúmeras vantagens, além de
ser um nome de peso no currículo. Victor passara anos
enfurnado numa universidade esperando pelo dia que teria um
pouco de conforto em sua vida e graças à Ivory conseguira,
afinal. Mas a custo de quê?

Trabalhar parecia um desafio insuperável, sua cabeça


estava atolada de pensamentos intrusivos e mais de uma vez
Victor precisou se esforçar para manter a concentração.

A estranha interação entre ele e Igor o perturbava


muitíssimo. Era incrível como Igor conseguia ser dissimulado,
mentiroso, fingindo não saber do que ele estava falando. Sabia
que ele não era uma pessoa confiável desde sempre, mas não
fazia ideia de que ele era capaz de tamanha covardia. Tinha que
evitar vê-lo, pois não confiava na própria reação diante do
agressor de Maya.

Retornara à cabine de Maya no fim o expediente,


levando consigo uma refeição. Não queria que ela se sentisse
aprisionada, mas não sentia confiança de tê-la andando pelo
Cruzeiro. Ela aceitou, agradecida.

– Passou bem o dia? – Victor perguntou.

– Sim, na medida do possível. Conversou com


Monteiro?

– Sim. Ele quase surtou, mas está bem. Falta pouco


para descobrirmos quem anda a sabotar a operação.

– Bom – Foi a resposta seca de Maya.

– Monteiro está preocupado com você.

– Estou bem.

– É óbvio que não está – Victor se aproximou dela.


Maya estava sentada na cama, usando pijama e com grandes
bolsas debaixo dos olhos. Victor sentou-se ao lado dela e
acariciou seu rosto, a pele dela estava febril. Maya afastou-se
do toque dele.

– Eu não sei como – Ela começou, relutante – Lidar


com isso.

– Nós conseguiremos fazê-lo pagar por tudo, Maya.

– Não é sobre Igor, não somente. É a minha vida,


Victor.

– Está falando do seu relacionamento? – Ele ousou


perguntar.
– Também – A expressão de Maya era de puro
desânimo – Eu sabia que não podia, que não devia, mas agora é
como se meus erros estivessem diante de mim. Me observando.

Victor estava diante dela. A observando.

– Você disse que estavam dando um tempo – Victor


insistiu, pisando em ovos.

– Dar um tempo não é terminar. Pelo menos foi isso


que eu descobri. E ele não merecia sofrer dessa maneira por um
erro que eu cometi, não ele. Não consigo me desprender dessa
culpa.

Victor assentiu, pensativo. Mil pensamentos o


invadindo.

– É o que eu sou? – Perguntou.

– O quê?

– Um erro. Eu sou só um erro para você? – As palavras


que estavam engasgadas.

– Não foi isso que eu disse.

– Foi exatamente o que você disso – Victor levantou-se,


subitamente desconfortável.

– Você não entendeu direito.

– É só uma aventura, Maya? Quando essa viagem


acabar você vai voltar para os braços dele e se arrepender de ter
vindo? Vai fingir que não me conhece e isso será só uma
história de verão?
Maya o encarou, exausta. Victor podia ver que ela
estava confusa, perdida e sem forças para aquele diálogo. Mas
ele precisava saber, e já havia começado.

– Não é isso. Só não está sendo fácil para mim.

– Não é fácil para mim, também! Eu te contei a minha


história! Mas passei por cima de tudo.

– Eu sei, Victor, mas isso não muda as coisas.

– Eu acreditei em nós – Ele disse, não com a intenção


de pressioná-la, mas de expor seus sentimentos – Tive fé em
você.

– Eu também! – Maya estava emocionada – Mas


começou errado.

– Eu também sabia que era errado, Maya, mas eu


escolhi você! E eu sei que custou muito caro, que o preço está
sendo muito alto, mas eu estou disposto a continuar, se você
também estiver.

– Não é simples.

– Eu sei que não é! E eu sei que não tenho o direito de


te cobrar nada, porque eu sabia exatamente onde estava me
metendo, mas preciso saber se no fim você vai embora! Preciso
saber se estou sozinho nessa.

– Victor...

– Eu preciso me preparar! Preciso saber se meu coração


será partido porque não há como voltar atrás, pra mim. Eu estou
apaixonado por você, Maya! Perdidamente apaixonado! –
Victor estava alterado. Uma mistura me medo e cansaço. Mas
seus sentimentos eram reais, tão vívidos que não podiam mais
ser negados, e não tinha intenções de esconder isso dela. Se
Maya achava que se envolver com ele fora um erro, ele
precisava saber.

Maya não respondeu. Ela fitava Victor com uma


angústia que o fez temer o que viria a seguir. Maya o olhava
com dor, e aquilo atingiu Victor no seu âmago. Os olhos de
Maya começaram a lacrimejar e quando ela balançou a cabeça
em negativa, escondendo o rosto nas mãos, Victor
compreendeu.

– Eu não sei se consigo – Maya respondeu, com a voz


abafada.

Antes de sair do quarto, atordoado, Victor conseguiu


ver Sabrina ligando para Maya uma outra vez, lembrando-o de
que enfrentavam outros problemas além da instável relação
amorosa.

A conversa, por mais inevitável que fosse, não apanhou


Victor de surpresa. Ele sabia que mais cedo ou mais tarde
chegaria a hora em que a relação se tornaria insustentável. Ele
estava apaixonado, e passou por cima das próprias questões
para estar ao lado dela, mas não sabia até onde Maya estava
disposta a ir. Ele sabia que ela estava passando por emoções
demais, mas teve a resposta de que precisava.

Ele não a julgava. Não sentia-se nesse direto, uma vez


que não fazia ideia do que se passava entre ela o namorado.
Maya falara brevemente sobre um término que acabou se
tornando um tempo e ele não sabia se o único empecilho na
relação deles era ele, ou se havia algo mais. Tinha medo de que
Monteiro estivesse certo, e aparentemente estava. Ele tinha
certeza, mas Maya estava cheia de dúvida. E Victor não sabia
mais até onde podia arriscar envolver-se sem comprometer todo
o seu emocional.

Victor daria qualquer coisa para poder voltar para casa,


deitar na própria cama e se esquecer da confusão que sua vida
se tornara. Caminhou pelo cruzeiro procurando nada em
especial. Viu os tripulantes nas piscinas – que permaneciam
lotadas mesmo durante a noite, viu os restaurantes cheios, o
cassino, o teatro e o cinema oferecendo suas programações.
Ficou por um tempo à margem do cruzeiro, sentindo o vento
que vinha do mar. O céu estava estrelado e a noite estava linda,
contrariando seu próprio estado de espírito.

Victor temia que aquela conversa precedesse o término


de uma relação que nunca teve a chance de começar, mas que já
era mais real que tantas outras que vivera. Houve um tempo em
que Victor tinha tudo: um bom emprego, alguém para amar e
amigos. Mas não demorou para descobrir que estivera amando
sozinho e que seus amigos não eram tão amigos assim. Pensara
que tinha encontrado tudo em Maya, a amiga que tornou-se
amante. Ele fora tão ingênuo.

Victor caminhou sem destino pelo cruzeiro iluminado e


movimentado até deparar-se com uma mesa solitária no
bar Cigar Lounge. O bar estava lotado, como todos os outros
recintos, mas havia uma mesa afastada, levemente escondida
nas sombras, onde ninguém estava sentado. Parecia tão solitária
quanto ele. Quando deu-se conta já estava sentado.

Respirou profundamente algumas vezes e fechou os


olhos, deixando o pensamento se perder no som das risadas e
falas alteradas dos que ali se encontravam, até que foi
surpreendido pelo garçom.

– O que gostaria de pedir, senhor? – Perguntou em um


inglês carregado de sotaque. Os funcionários do cruzeiro eram
todos brasileiros – já que a Sea Stars Cruzeiro é uma empresa
nacional –, apesar de falarem em inglês também, para atender
os turistas.

Victor o encarou. Era um rapaz jovem, devia ter menos


de vinte anos. Tinha uma espinha avermelhada no queixo e a
empolgação de alguém que participa da primeira aventura longe
de casa.

– Uma cerveja, por favor – Respondeu, em português,


arrancando um sorriso aliviado do rapaz.

Minutos depois o menino retornou, com whisky e gelo


num copo de vidro desnecessariamente pesado.

– De onde você é? – Victor perguntou, depois do


terceiro ou quarto copo de cerveja.

– Bahia, senhor.

– Está muito longe de casa.

– Nem tanto.

Victor o encarou, achando graça.

– Casa é onde o coração da gente está – O rapaz


apressou-se em se explicar – E eu não estou longe do mar.

– Está certo – Victor girou o copo na mesa – Sabe, eu


não sei se estou longe de casa, então.

– O senhor não tem o costume de beber, não é? –


Victor, que só havia experimentado cerveja no primeiro ano da
faculdade, havia bebido seis doses de whisky e, no momento, se
esforçava para falar corretamente.

– Não. Mas me disseram que é bom para fugir da


realidade.

– Do que o senhor está fugindo?

Victor pensou um pouco.


– De uma mulher.

O rapaz soltou um risinho.

– Todos estão. Eu não deveria dizer isso, senhor, mas,


se me permite, acho que deveria descansar um pouco.

– Você é um rapazinho muito sábio – Victor comentou,


terminando de beber a cerveja em seu copo – Qual o seu nome?

– Mário, senhor.

– Mário, o que faria se tivesse enfrentando um grande


problema ao qual não sabe como resolver?

O rapaz pegou o copo vazio da mesa de Victor,


colocando-o em sua bandeja. Devia estar acostumado às
perguntas reflexivas que só os bêbados e filósofos fazem. Então
respondeu com naturalidade:

– Acho que eu procuraria ajuda em alguém que eu


pudesse confiar.

Victor ponderou sobre as palavras do garçom. Talvez


estivesse tentando resolver as questões sozinho, sem perceber
os aliados à sua volta.

Victor despediu-se do garoto e pagou a conta mais cara


que já pagara em um bar.

Antes de retornar cambaleando à cabine de Monteiro,


pois definitivamente não poderia ir atrás de Maya, já estava
com o celular na mão. Era pouco mais de onze horas da noite e
não sabia se seria atendido, mas precisava tentar.

– Victor? – Atendeu a voz conhecida do outro lado.

– Sabrina, boa noite.


– Você está bêbado? – Perguntou, intrigada.

– Dá para perceber?

– O que você quer? – Sabrina não deu continuidade ao


assunto – Você por acaso estaria perto da Maya? Preciso falar
com ela.

– É por isso que te liguei.

– Ela está aí?

– Vocês são amigas, não são? – Victor inqueriu.

– Eu espero que ainda sejamos, sim.

– Foi você quem contou para o Jorge?

Sabrina suspirou pesadamente.

– Você já está sabendo. Sim, fui eu. Eu fui uma idiota,


agi sem pensar. Achei que podia confiar nele, achei que... bem,
não importa. Preciso falar com Maya. Diga a ela que eu quero
ajudar, que quero me redimir fazendo qualquer coisa que ela
precisar.

– Tem algo que você pode fazer.

– E por que eu deveria confiar em você?

– Porque eu e Monteiro somos as únicas pessoas que


querem o bem dela aqui dentro.

Confiança nunca foi um assunto muito fácil de abordar,


para Victor. Seja no amor ou na amizade, não passava de um
voto de fé. Você nunca pode ter certeza de que não será traído
ou engano, o único poder que tem é decidir se a pessoa vale o
risco, ou não. Ele tinha motivos para acreditar que Sabrina não
tivera a intenção de fazer mal a Maya e confiar nas boas
intenções dela. Caberia a ela confiar nele, agora.

Sabrina ouviu atentamente as instruções de Victor.


Conversaram por duas horas seguidas, e Victor pôde entender
melhor a versão da ruiva. Ela estava arrependida e queria ajudar
a amiga, mas para o plano dos dois funcionar precisariam
esperar até a manhã da segunda-feira.
18
Lobo em Pele de Cordeiro

Maya não conseguira pregar o olho. Apesar de estar


determinada a dar um fim ao reinado de terror do Igor, sentia-se
vulnerável. Temia que ele estivesse sempre um passo à frente,
pronto para causá-la um dano maior do que ela pudesse
imaginar ou se preparar. Mas não seria uma covarde, não desta
vez. Já passara por um Cláudio em sua vida e tratando-se de
Igor ela não esperaria o destino cuidar da ruína dele sozinho.

Tentara falar com Henrique outras vezes, mas ele ainda


não a atendia. Decidiu que não tentaria novamente até que
pudesse vê-lo pessoalmente. Não importava que quisesse o fim
da relação, precisava fazer isso direito. Já havia estragado as
coisas, e precisava arcar com as consequências, assumindo a
responsabilidade pelas coisas que fez. Ela seria sincera, não
porque era o caminho mais fácil, mas porque Henrique merecia.

Quando Victor saiu da sua cabine na noite anterior,


desatou a chorar. Seus sentimentos eram conflitantes e sua
culpa tentava convencê-la de que ela não o merecia, assim
como não merecia Henrique. Que ela era incapaz de amar
alguém, de fazer o que era certo.

Ouvir Victor dizer que estava apaixonado por ela


esquentou um lugar em seu coração que estava acostumado a
estar gelado. E a sensação nova a assustou. Maya queria que ele
pudesse vê-la, enxergar o quanto ela o queria, o quanto
precisava dele. Mas sentia-se culpada demais para pedir que ele
ficasse. Talvez fosse melhor assim, ela não queria magoar outra
pessoa.

Para completar, havia Sabrina. Não fosse por Thomás,


Maya estaria se sentindo completamente desamparada: sem
amiga, sem namorado, sem Victor. E, muito provavelmente,
sem emprego. Depois de pensar muito, aceitara que era quase
certo de que sua carreira fosse por água abaixo, mas não se
deixou abater. Ela faria a coisa certa, custe o que custar. Não
seria seu fim, ela daria um jeito depois.

O final de semana passou rapidamente; a relação de


Maya e Victor paralisada numa espécie de limbo duvidoso.
Nenhum dos dois ousou falar sobre a última conversa, ou tentar
uma reaproximação, mas também não se afastaram
definitivamente.

Victor bateu em sua porta às oito horas da manhã da


segunda-feira. Mesmo magoado, não a deixou sozinha. Maya
agradeceu, apesar de mais confiante, não queria deparar-se com
Igor estando sozinha. Era o dia deles de trabalharem fora do
porão e Victor perguntou-lhe se ela preferiria continuar no
quarto.

– Não. Eu gostaria de tomar um pouco de sol.

Em decorrência dos últimos acontecimentos, Maya não


dormira e não se alimentara bem. Seguia com a ilusão de que o
sol poderia fazê-la se sentir melhor.

Victor sentara-se ao seu lado e não procurou conversa.


Estava concentrado, ou pelo menos parecia. Os cabelos negros
caindo sobre a testa, os olhos azuis fixos na tela do computador.
Maya lembrou-se dos primeiros dias de trabalho ao lado dele e
de como as conversas dos dois eram divertidas. Sentiu falta
daquilo. Na verdade sentia falta dele em todos os sentidos e
queria dizer isso a ele. Mas não sabia se conseguiria fazer sem
antes ter dado um fim à relação com Henrique. A relação dela e
de Victor havia começado sob essas circunstâncias, mas ela não
queria continuar dessa maneira, sabendo o quanto o afetava.
Para além disso, também sentia-se mais culpada que no início.

Não muito longe dali, Monteiro enviava uma


mensagem a Igor pedindo que ele comparecesse à biblioteca. O
amigo de Victor havia previsto que uma nova alteração seria
feita naquele dia, às nove horas da manhã. Monteiro não achava
que estar perto de Igor no momento impediria a sabotagem,
apenas atrasaria ela. Mas até isso seria uma prova passível de
ser usada contra ele depois, então o convocou com a desculpa
de tratar de assuntos da direção.

Igor entrou na biblioteca, ereto e com o queixo erguido,


como quase sempre fazia, mas os resquícios da agressão que
sofrera não o faziam parecer uma pessoa confiante e
assustadora, e sim um covarde orgulhoso.

Monteiro preferiria não precisar olhar para o rosto


destruído dele nunca mais, mas tinha justiça para fazer.

– Sente-se – Disse educadamente, convidando Igor a


sentar diante dele.

– Sobre o que é essa reunião? – Igor perguntou.

– Não é bem uma reunião – Monteiro tentou parecer


descontraído – Só uns assuntos para tratar.

– E sobre o que é?

– Sobre isso – Monteiro fez um movimento circular


com a mão ao redor do rosto de Igor, que pareceu se irritar
bastante – Como sabe, a briga entre você e Victor foi parar na
direção da Ivory e medidas drásticas foram tomadas.

– Medidas drásticas não foram tomadas – Igor corrigiu.


– Se está se referindo à demissão de Victor, fatores
comprobatórios mudaram isso.

– Eu sei, a filmagem das câmeras de segurança.

– Vejo que alguém já te atualizou – Não se deve


subestimar a velocidade de uma fofoca.

– Alguma coisa vai acontecer? Comigo ou com ele? –


Igor estava impaciente.

– Espero que não – Disse enigmaticamente – Sendo


sincero, Igor, depois das filmagens os dois deveriam ter sido
demitidos – Blefou.

Igor ruborizou, Monteiro torcia para que ele acreditasse


na mentira deslavada que ele contara. Era bastante convincente,
na verdade, já que era o que deveria ter acontecido se Igor não
fosse um bastardo protegido.

– Seremos demitidos? – Igor perguntou, com a voz


levemente esganiçada.

– Existem provas contra os dois. Você pode ser


demitido por assédio e Victor por agressão, mas depois de
longas reuniões com a direção, entendemos que o que
aconteceu entre vocês dois pode ter sido externo à Ivory.

Igor fez uma careta confusa, Monteiro continuou:

– Sendo assim, existe a possibilidade de nenhum dos


dois realizarem queixas formais. Você não será acusado de
assédio e Victor não será acusado de agressão. Os dois poderão
continuar na empresa e, tenho certeza, agirão com mais
civilidade daqui para a frente.
– Então eu não poderei denunciá-lo? – Igor perguntou
no exato momento em que Monteiro olhou para o relógio que
marcava nove horas.

– Você pode, se quiser, mas se o fizer também será


denunciado. O que estamos propondo é um acordo entre os
dois, para que nenhum seja prejudicado.

– Mas isso é ridículo! Ele poderia ter me matado!

– Sim, ele o agrediu. E você assediou Maya.

– Olha, não é bem assim. Ela não é o que todos pensam,


é uma promíscua e fingida!

– Infelizmente as câmeras não mostram isso.

Igor bufou.

– Tanto faz. Ele acabará sendo demitido mais cedo ou


mais tarde.

– Muito bem, acredito que seja a melhor decisão para


ambos.

Igor revirou os olhos.

– Era só isso? Posso ir embora?

Monteiro olhou para o relógio: nove horas e um


minuto.

– Na verdade eu gostaria de saber se há algo que


precisa. Sei que está se tratando na enfermaria, mas se houver
outro cuidado de que precise, basta me comunicar.

– Não preciso de cuidados – Disse secamente.


– Está bem, então é só.

Antes que Igor terminasse de levantar da cadeira,


Victor entrou correndo na biblioteca, escorregando no piso e se
apoiando à mesa para não cair. Maya o seguia, sem fôlego.

Igor, vendo Victor se aproximar tão rapidamente, caiu


de volta na cadeira, branco como papel, com os braços erguidos
em defesa.

– Acabou de acontecer! – Victor anunciou.

– Exatamente quando previsto – Maya completou.

– Perfeito, perfeito – Monteiro murmurou para si


mesmo.

– Mas de que diabos vocês estão falando? – Igor


interrompeu o momento dos três.

Só então Victor deu-se conta de que Igor estava ali,


diante de Monteiro. Não podia ser.

– Por hoje é só, Igor, como eu disse, me procure se tiver


outros problemas – Monteiro se despediu. Igor percebeu a deixa
e não insistiu na pergunta. Queria ir para o mais longe de Victor
que pudesse.

– Ele estive aqui o tempo todo? – Victor começou.

Na noite do domingo, véspera da data prevista pelo


amigo de Victor para a nova sabotagem, os três haviam armado
aquele plano. Eles identificaram que o sabotador aproveitava o
momento em que o usuário de Monteiro entrava em modo de
espera para atuar, e a armadilha estava pronta para ele. Maya e
Victor estiveram esperando alguma alteração no gráfico para
informar a Monteiro, enquanto o mesmo manteria Igor sob a
vista para se assegurarem de que haveria um atraso na
desconfiguração dos parâmetros. Apenas mais uma prova
contra ele, ainda que circunstancial.

– Sim – Monteiro confirmou.

– Isso não faz sentido – Maya estava confusa.

Maya e Victor se entreolharam. Monteiro não sabia o


que pensar e quando pensou em dizer algo, seu telefone tocou.
Era Igor.

– O motor do protótipo parou de funcionar – Monteiro


repetiu o que acabara de ouvir.

Maya abriu o notebook rapidamente e, de fato, os


gráficos estavam parados.

Os três correram para o porão, onde encontraram Jorge


e Igor iniciando a inspeção.

– O que aconteceu aqui? – Monteiro perguntou.

– Estamos verificando. Simplesmente não dá partida –


Igor respondeu.

Maya e Victor arregaçaram as mangas para se juntarem


a Igor e Jorge na manutenção do motor, mas o espaço ali era
muito limitado. Mal cabia os cinco em pé, que dirás agachados
ao redor do motor.

O celular de Victor tocou, misturando-se à confusão de


vozes e cobranças.

– Vem comigo – Victor puxou Maya, saindo do


cubículo.

– Temos que voltar lá – Maya protestou.


– E nós vamos.

Victor atendeu o telefonema. Sabrina.

– Eu fiz o que pediu. Consegui uma cópia da chave do


escritório de Igor, mas não tinha nada lá – A ruiva começou.

– Não pode ser. Tem que haver alguma coisa – Victor


não conseguia compreender.

– Só achei algumas revistas +18 na gaveta da mesa


dele. Mas eu descobri uma coisa – Victor esperou ela continuar,
inquieto – Fui ao escritório de Jorge também, muito mais por
curiosidade – Assumiu – E eu encontrei algo.

– Não é hora para mistério, Sabrina – Victor a apressou.

– Está falando com Sabrina? – Maya guinchou.

– Maya está com você? – Sabrina gritou ao telefone –


Deixe-me falar com ela.

– Deixarei, mas primeiro me diga o que descobriu.

– Por que está falando com ela? – Maya insistiu, Victor


não respondeu.

– Tem uma gaveta trancada na mesa dele e embaixo


dela tem uma espécie de compartimento secreto que...

– Sabrina! – Victor a interrompeu.

– Certo, isso não importa. Bem, havia um contrato lá


dentro, um contrato com a San Marcus Technology. Te enviei
as fotos por e-mail. Ele vendeu a ideia do protótipo, Victor, e
está fechando um acordo trabalhista com a San Marcus.

Jorge.
Jorge. Todo esse tempo, fora o Jorge?

Não podia ser. Mas é claro que podia. Estava diante dos
seus olhos esse tempo todo. Como pôde ser tão cego? Mas por
quê? Qual a motivação? Quem era Jorge, afinal?

– Victor, você ainda está aí? – Sabrina perguntou.

– Sim, estou. Eu preciso de um tempo.

– Você pode passar para Maya, por favor?

Victor estendeu o celular para Maya, que o olhava


completamente confusa.

– Você vai querer falar com ela.

Maya não estava entendendo nada, mas aceitou o


telefone e falou com Sabrina. Ela ouviu a amiga e prometeu
ligar novamente depois, já que não podia ficar muito tempo
conversando naquele momento. Sabrina concordou.

– Jorge? – Maya perguntou para Victor, que ainda


estava embasbacado.

– O problema no motor – Ele disse – Jorge estava


sozinho no porão quando aconteceu. Precisamos resolver isso,
vamos!

Maya e Victor retornaram depressa para o porão e


ajudaram os outros dois a consertar o motor que apresentara
uma falha simples, mas que deveria acontecer em decorrência
do uso de combustível de má qualidade, o que definitivamente
não tinha acontecido.

Mais tarde, naquela noite, Maya e Victor contaram tudo


o que sabiam para Monteiro.
– Isso – Monteiro também precisou de tempo para
absorver a informação – Eu ia dizer que não faz sentido, mas
talvez faça. Mas e quanto à Maya?

– Isso foi o Igor – Victor respondeu.

– Então Jorge e Igor estão tentando sabotar a operação


juntos? – Monteiro questionou – Por quê?

– Sabrina disse que é mais provável que seja o Jorge


sozinho, de acordo com os documentos que ela encontrou.

– E por quê? – Monteiro insistiu na pergunta.

– Não sabemos – Maya concluiu – Dinheiro? Poder?


Vingança?

Monteiro pediu silêncio por alguns minutos, a fim de


pensar com mais clareza. Então concluiu:

– Precisamos garantir que os dois fiquem longe do


protótipo. Victor, você ficará no porão todos os dias a partir de
amanhã. Direi que é uma forma de punição por ter agredido
Igor. Eu já sei o que fazer. Temos as provas, não temos? E
faltam apenas onze dias para esse inferno acabar.

– Mas o Igor também será punido, não será? – Maya


perguntou.

– Claro, minha querida – Monteiro segurou as mãos


dela – Ninguém machuca você e sai ileso.

– Ele não saiu ileso – Victor comentou – Mas não foi o


suficiente.

– Não, não foi.


– E quanto ao vídeo, quem acha que foi o responsável?
– Victor perguntou.

– É mais provável que tenha sido o Igor, já que o


problema dele é direcionado à Maya, mas não temos como ter
certeza. E eles ainda podem estar trabalhando juntos – Monteiro
concluiu.

– Quando eu vi os dois no corredor e perguntei a Igor o


que ele pretendia fazer com o vídeo, ele pareceu confuso com
minha pergunta. Achei que fosse só fingimento, mas talvez não
tenha sido.

– Por que Jorge faria algo direcionado à Maya se o foco


dele é prejudicar a operação? – Monteiro não queria acreditar
nisso.

– Não sei. Talvez quisesse nos tirar da jogada, eu e


Maya. Assim, se ele estiver agindo sozinho, poderia manipular
Igor com mais facilidade.

– Investigarei as fotos dos documentos que me mandou


– Monteiro anunciou – Amanhã terei uma ideia mais concreta
sobre os fatos.

– Certo.

– Como você descobriu sobre Jorge? – Monteiro


perguntou, pois só agora recuperara-se do choque.

– Com a ajuda de Sabrina.

– Ah, minha doce Sabrina! Fico feliz por ela ter se


afastado desses dois crápulas.

– Também fico feliz – Disse Maya, timidamente.


Mais tarde, já em sua cabine, Maya cumpriu a promessa
e ligou para Sabrina, que esperava ansiosa pela oportunidade de
falar com a amiga.

– Eu sinto muito, Maya, muito mesmo!

– Tudo bem, sei que você não fez por mal.

– Não foi por mal, mas foi tolice. Eu confiei nele, mas
não em você!

– Você estava muito envolvida – Maya a consolou.

– Estava. Ouso dizer que estava apaixonada. Agora


consigo ver como ele me manipulou. Acredito que ele queria
uma fonte de informações sobre você e, possivelmente, sobre o
Victor.

– Eu sinto muito que tenha saído ferida dessa história.

– Não faz mal – Sabrina parecia aliviada somente por


ter retomado contato com Maya – Às vezes temos que aprender
umas duras lições.

Maya concordou. Ela também andou aprendendo lições


difíceis.

– De qualquer maneira – Maya emendou – Não


teríamos descoberto sobre as intenções de Jorge se não fosse
por você. Muito obrigada.

– Eu faria muito mais, se necessário!

Maya e Sabrina conversaram sobre algumas


amenidades, permitindo-se rirem das próprias desgraças. Maya
sentira falta dela, e era reconfortante saber que tinha a amiga de
volta. A amizade delas tombou, mas resistiu. E agora estava
ainda mais forte.
– E com você e o Henrique, está tudo bem? – Sabrina
perguntou.

– Não, nada bem.

E a conversa prolongou-se mais bons minutos.


19
Lançar Âncora

Maya estava genuinamente feliz por reatar a amizade


com Sabrina. E pensar que poderia ter sido mais uma coisa que
a dupla Igor e Jorge tiraria dela. Mas não foi o caso, a amizade
resistiu aos ventos fortes e às tempestades, e agora estavam
navegando em calmaria.

Maya também sentia que estavam perto de entender o


que realmente se passava naquele cruzeiro, debaixo do nariz de
todos. E compreender o plano de Igor e Jorge, saber o que cada
um fizera e por quê, lhe traria uma satisfação quase mórbida.
Ela estava disposta a ir a fundo para descobrir o esquema deles
e teria prazer em vê-los pagar por todos os crimes. Porque, a
esta altura, já se tratava de atos criminosos, de fato.

Mas algo ainda não estava resolvido. Maya não podia


negar para si mesma que manter-se afastada de Victor lhe
causava uma dor tão real que era quase física. Sentia falta dele,
muita falta. Ela se flagrara pensando tantas vezes em como a
história deles poderia ter sido diferente se tivesse começado da
maneira correta, se ela tivesse tido a coragem necessária para
romper o ciclo do seu relacionamento anterior.

Maya nunca achou que iria se apaixonar. Chegara a


pensar que esse sentimento não fosse real e tratava-se apenas de
uma desculpa para o desejo irrefreado. Mas ela estava errada.
Convencera-se de que poderia ter uma vida longa e feliz ao lado
de Henrique, compartilhando uma vida morna e sem grandes
emoções. Um dia, ela pensava, se casariam, teriam filhos e
veriam seus filhos construírem suas próprias famílias. A única
coisa que a afligia era pensar no que viria depois, quando os
filhos fossem embora e voltasse a ser apenas ela e Henrique.

A ideia de não ter um plano perfeitamente traçado, com


etapas a serem cumpridas e tarefas a realizar, a atormentava.
Não se imaginava sentada numa cadeira de balanço ao lado de
Henrique apenas aproveitando a companhia dele, esperando que
o tempo passasse mais devagar para não terem que se despedir
um do outro tão rápido. Pensar nisso a fazia perceber que aquilo
não era o suficiente. Que a vida que estava construindo, com os
planos predefinidos e regras levadas tão a sério, não era o
suficiente. Tinha que haver algo mais.

Então Victor apareceu. De mansinho, quase sem ser


percebido – se é que este homem já passou despercebido em
algum lugar. Com ele não havia esforço para a intimidade. Ela
conversava com liberdade, ria com facilidade e nunca, nem por
um minuto, desejava estar longe. Era confortável, era
silencioso, era como lançar âncora no mar. E era como voltar
para casa depois de um dia exaustivo.

Mas, talvez, se seus sentimentos para com Victor se


resumisse nessa tranquilidade pacificadora, ela conseguisse
evitar a aproximação. Não era o caso. Paradoxalmente,
acompanhado desse sentimento de paz, também havia a paixão.
E agora Maya entendia as pessoas que sofriam por amores não
correspondidos, que choravam a distância da pessoa amada, que
faziam loucuras impensáveis para realizar o desejo de estar
perto, muito perto. Ela não se lembrava de ter desejado alguém
assim antes, e se não lembrava certamente nunca tinha
desejado, pois aquilo não era algo fácil de esquecer.
A mera presença de Victor no ambiente em que ela
estava era capaz de desestabilizar todo seu autocontrole.
Absolutamente tudo o que vinha dele era interessante, formoso,
sensual. O jeito que ele andava, falava ou dava risada. A
maneira como ele passava a mão nos cabelos quando estava
preocupado. O sorriso torto de quando ele conseguia o que
queria. A forma como as bochechas dele ficavam avermelhadas
quando ele sentia desejo.

Tudo nele era irresistível. Maya amava a pele dele, o


modo como ela parecia minúscula ao lado dele, os cabelos
negros e os lábios rosados. Ela amava, sobretudo, os olhos
azuis. Tão azuis quando o mar nas primeiras horas do dia,
quando o sol ainda está nascendo. Algo um tanto divino, um
tanto misterioso. Ela queria poder mergulhar nos olhos dele e
não sair de lá nunca mais.

Ela percebera que sentia desejo por ele aos poucos, com
pequenos indícios aqui e ali. No geral, estar perto dele só
parecia o certo a se fazer. E ela fez, mesmo quando sabia que
deveria fazer o oposto. Quando se deu conta, desejava o toque
dele como se ela estivesse enferma e ele fosse a cura. Quando
aconteceu de ela perceber que o sentimento era recíproco,
dentro do pequeno armário, sabia que não havia como voltar
atrás. Estava predestinada a entregar-se a ele.

Maya simplesmente se recusou a pensar no namorado,


na situação complicada em que sua vida amorosa se encontrava.
Ela permitiu-se viver o que tinha vontade e, talvez, tenha sido
mesmo um erro. Mas o erro que salvou sua vida. O beijo de
Victor a salvou de uma vida sem prazer, sem paixão. O toque
dele a mostrou que podia haver sensibilidade e emoção nos
simples atos de dormir, acordar, caminhar por uma rua
desconhecida. Que a vida não podia ser predefinida, colocada
numa caixinha, que ela era cheia de surpresas. E surpresas
maravilhosas! Ela sentia que mesmo que tivesse estragado tudo,
mesmo que sua imprudência tivesse condenado essa relação a
ser abortada antes do nascimento, ela ainda deveria muito a ele.
E ela ainda seria irrevogável e inegavelmente apaixonada por
ele.

Maya sentia vergonha das consequências dos seus atos.


Não queria expor Henrique, não queria magoá-lo. Mas não se
arrependia de absolutamente nada. Porque carregar esse
sentimento novo no peito valia a pena. Ela não sabia como era
sentir-se viva até finalmente se sentir, e não abriria mão disso
por nada.

Maya desejava poder consertar as coisas, resolver-se


com Henrique era a sua prioridade. E ela torcia para não ser
tarde demais para ela e Victor. Torcia para que o começo errado
não tenha fadado a relação a um fim fracassado.

Faltavam poucos dias para a viagem terminar. Logo,


voltariam todos para suas casas e retomariam os hábitos
cotidianos. Mas Maya não teriam para onde voltar. Quando
embarcou no Pollux Stars, ela deixou para trás um trabalho que
amava e um parceiro. Não teria nenhum dos dois a esperando
na volta. Ela esperava que essa fosse a chance de começar uma
vida nova, mas desta vez sabendo o que realmente era
importante.

Maya se viu fazendo uma oração. Pediu para ter


coragem, e pediu uma nova chance ao lado de Victor.

Já havia desligado o telefone há um tempo. Passara


horas conversando com Sabrina e depois de terminarem, não
conseguiu pegar no sono. Maya estava inquieta, ainda que
cansada. Ela sentia uma incontrolável vontade de conversar
com Victor. Queria poder dar um fim diferente à conversa de
três dias antes.

Desde o último ataque de Igor, Maya não se atrevera a


andar sozinha pelo Cruzeiro. Mas ela precisava fazer algo, e
precisava ser corajosa. Uma coceira se espalhava por seu corpo
a instigando a agir, mover-se!
Maya levantou-se da cama, num ímpeto, decidida a
procurar por Victor. Ela iria até a cabine de Monteiro, e se ele
não tivesse lá ela procuraria em cada espaço daquela cidade
flutuante, mas precisava dizer-lhe o que sentia.

Não fazia ideia do que dizer, mas torcia para que as


palavras certas a encontrassem.

Estava descalça e usando camisola, então cobriu-se


com um penhoar e calçou seus chinelos. Assim que Maya abriu
a porta, deparou-se com Victor, com a mão estendida do ar,
pronto para bater, o que a paralisou por um instante.

– Eu precisava falar com você – Victor começou – É


que eu não paro de pensar na nossa última conversa e, acho que
fui injusto.

– Não, Victor, preciso que me escute.

Mas Victor não a deixou falar, atropelando suas


palavras no que parecia um texto previamente elaborado:

– Você disse que estavam passando por problemas, e eu


não faço ideia do que seja! Eu não tinha o direito de pressionar
você daquele jeito porque quando eu te quis, Maya, sabia que
não seria simples. Eu sabia que teria que passar por cima de
muita coisa, que teria que ter paciência e eu terei, Maya, porque
você vale a pena! E eu estou tão, tão apaixonado que...

– Eu não tenho mais dúvidas – Maya o interrompeu,


precisando falar alto para chamar a atenção dele – Eu tenho fé –
Ela continuou, quando percebeu que Victor a estava ouvindo –
Tenho fé em nós.

Victor ficou imóvel, com os olhos arregalados a


encarando.
– Eu estou apaixonada por você, Victor – Maya
completou. Sem medo, sem vergonha, em alto e bom som.

Victor se desarmou em questão de segundos e rompeu a


distância entre eles, beijando-a como se só houvessem os dois
naquele cruzeiro, no meio do oceano. Ele a entrelaçou em seus
braços, num abraço cálido e desesperado.

Victor a beijou com intensidade, o coração batendo


acelerado no peito. Só então lembrou-se de fechar a porta atrás
de si, não dando a mínima para o fato da cabine de Igor e Jorge
serem ali perto. Ele só queria continuar sentindo-a em seus
braços. Maya correspondia, beijando-o de volta e entrelaçando
os braços ao redor do seu pescoço. Se havia paraíso, devia ser
algo parecido com ela.

Victor percorreu as curvas dos lábios dela, explorando


toda a boca, exigindo que a língua dela participasse. Ele não
tinha escrúpulo, não tinha freios. Passou as mãos por baixo da
camisola dela e a despiu com uma velocidade impressionante.

Ele só soltou seus lábios para dizer:

– Não vou te deixar ir embora.

– Eu não vou embora. Espera, você estava bebendo? –


Maya surpreendera-se com o cheiro de álcool no hálito de
Victor.

– Mário não me deixou beber hoje – Victor a apertou


mais forte contra si e deu dois passos para frente, fazendo-a
encostar na parte aberta do armário, adentrando seu corpo entre
as pernas dela, seus lábios percorrendo a pele do pescoço de
Maya – Só um pouco, pra ganhar coragem.

– Quem é Má... – Victor voltou a beijá-la, e Maya


esqueceu o que ia perguntar. Victor a ergueu e sentou-a na
bancada depois de varrer para o chão o que ali estava. Maya
ouviu algo quebrar e outro algo sair rolando pelo chão, mas não
se importou.

Ela era dele, e só isso importava.

Victor sabia onde tocá-la, como tocá-la e com qual


intensidade. Ele descobrira como percorrer os caminhos do
corpo dela e deixá-la extasiada. Era mágico. Maya quis
retribuir. Naquela noite, tomou a iniciativa e viu que Victor
gostou. Ela ficou por cima, ela provou-o com a boca, ela
dominou os movimentos da dança que estava acostumada a ser
conduzida. E toda vez que Victor a beijava, Maya sentia que
aquilo era a coisa certa.

Fizeram amor por quase três horas, permitindo-se


aproveitar cada etapa ao máximo. Maya, novamente, nunca
havia passado por uma experiência assim. Não se tratava apenas
de tempo, mas também de qualidade. Ela nem sabia que era
capaz de tamanha resistência.

Quando terminaram, e Maya estava deitada sobre o


peito de Victor, com a respiração tão ofegante que sua garganta
ficara seca, ela disse:

– Isso não tem como ser um erro.

Victor acariciava o cabelo dela, enquanto também


tentava estabilizar a própria respiração.

– Não, não tem.

Dormiram juntos. Na manhã do dia seguinte, foram


convidados por Monteiro a se juntarem a ele em sua cabine, a
fim de esclarecer o novo plano.

– Eu não quero levantar – Victor murmurou, prendendo


Maya na cama com ele.
Maya se aconchegou no abraço de Victor.

– Eu também não.

– Vamos fingir que não estamos no Cruzeiro e que hoje


é feriado.

Maya riu, ela podia facilmente imaginar-se numa


manhã preguiçosa ao lado de Victor.

Mesmo sabendo que deveriam se apressar, Maya


permitiu-se demorar no abraço quente de Victor, repensando
todas as suas últimas decisões e satisfeita por estar onde queria:
ao lado dele.

– Você me odeia? – Ela perguntou.

Victor franziu o cenho, perplexo com a pergunta.

– Por que eu te odiaria?

– Por fazer você ir contra tudo o que acredita.

Victor entendia o questionamento de Maya. Ele mesmo


se perguntara algumas vezes se estava lúcido ao se apaixonar
por uma mulher comprometida.

Victor deu um beijo na testa dela.

– Não te odeio nem um pouco.

Maya deixou-se ser acariciada por Victor e por suas


palavras, até quase cair no sono novamente.

– Vamos, temos muito o que fazer.


– Tem razão. Temos que destruir a vida de uns canalhas
– Disse em tom de brincadeira, mas Maya sabia que não era de
todo uma brincadeira.

– Eu tenho medo de espalharem o vídeo – Maya


sussurrou, compartilhando com ele um de seus maiores
temores.

– Vai dar tudo certo, estou com você – E a abraçou


ainda mais forte.

Foi difícil levantar da cama, mas os dois acabaram por


fazer. Nem tomaram o café da manhã e foram direto para a
cabine de Monteiro.

– Não há absolutamente nada que ligue Igor à


sabotagem – Monteiro disse, depois de ter explicado sobre
todos os documentos que foram encontrados na mesa do Jorge –
Para mim é muito claro: Jorge vendeu a ideia, mas a San
Marcus está muito atrás de nós na construção do protótipo,
então ele queria sabotar a operação para não fechássemos o
contrato com a Sea Stars Cruzeiros e não patenteássemos antes
deles.

– Há quanto tempo Jorge trabalha para a San Marcus? –


Maya perguntou.

– Não dá para saber, mas pelo menos há sete meses. É


quando o primeiro contrato entre eles foi fechado.

– Então ele tentou sabotar os gráficos, mas quando


percebeu que não causaria grandes efeitos colaterais, tentou
destruir o protótipo – Victor emedou.

– Sim. Acredito que foi o que tentou, mas vocês


conseguiram resolver o problema. Teremos muitos problemas
quando retornarmos, mas ao menos o protótipo estará
funcionando.
– E se ele tentar mais alguma coisa?

– Ele não conseguirá – Monteiro assegurou – Já disse


que ele não se aproximará do porão outra vez. Só você e Maya
entrarão lá, e nós temos a desculpa perfeita.

– E pensar que eu achei que fosse Igor esse tempo todo


– Victor comentou.

– Todos pensamos – Monteiro concordou.

– Mas, parando para pensar, Igor nunca foi muito


inteligente.

Monteiro e Victor viraram-se para Maya, os dois com a


mesma expressão de dúvida, com uma sobrancelha levantada.

– Ele sempre foi muito explícito – Ela explicou –


Nunca se esforçou para esconder de ninguém que é um babaca
arrogante. Quando traiu a esposa, o fez na frente de todos que
quisessem ver, quando me machucou, o fez debaixo das
câmeras de segurança. Ele sempre agiu por impulso. E o
sabotador, por outro lado, era calculista, agindo nas entrelinhas.

– Maya está certa – Monteiro concordou – Estávamos


tão cegos de raiva pelo Igor que não vimos o que estava diante
dos nossos olhos.

– E o Igor também está sendo usado por Jorge, sem


sequer perceber – Victor disse.

– Será que Jorge tem um motivo pessoal para fazer


isso? Desde que descobrimos que ele é o sabotador venho
tentando lembrar o que sei sobre ele – Maya disse – E não sei
nada. Não sei se ele é casado, se tem filhos ou família. Não sei
onde mora, quais são seus hobbies e o que ele costuma fazer
fora do trabalho. Ele é um fantasma.
– Algumas respostas só teremos quando levarmos todas
essas informações para a direção da Ivory – Monteiro disse,
caminhando até a gaveta do armário, tirando de lá um cigarro e
o acendendo para fumar. Maya ficou um tanto quanto chocada,
mas não disse nada – Mas não me surpreenderia se
descobríssemos que ele sempre foi um agente duplo. Essa
fachada de bom moço, passando tão despercebido ao ponto de
ninguém notar sua presença, suas atitudes. Ao ponto de estar
fora de qualquer suspeita.

– O único erro dele foi se aliar a Igor. Teria sido


impossível de descobrir se não fosse por isso – Maya comentou.

– Não concordo. Acho que ter sido amigo de Igor foi


justamente o que fez ninguém olhar para ele por todo esse
tempo. Fez ele parecer inofensivo.

– E quanto ao seu usuário? – Victor perguntou.

– Já troquei a senha. Não o tinha feito antes porque


precisávamos descobrir quem estava usando. O seu amigo
confirmou que o sabotador logou na minha conta daqui do
Cruzeiro, e usou o notebook da empresa. O notebook de Jorge.
Teríamos descoberto mais cedo ou mais tarde, mas claro que a
ajuda de Sabrina elucidou várias questões.

– Se não fosse por ela poderíamos pensar que era Igor


usando o notebook do Jorge – Maya revirou os olhos.

Monteiro soltou uma risada aliviada.

– Sim, com certeza pensaríamos isso! Aquele maldito


nos enganou direitinho.

– E quanto ao vídeo? – Victor perguntou. O assunto que


ninguém queria tocar. Imediatamente Monteiro parou de rir e o
ambiente no local ficou pesado.
– Pensei muito sobre isso – Monteiro assumiu – E acho
que foi o Jorge. Como a Maya disse, Igor não é do tipo que
planeja uma vingança, ele age por impulso. Além do mais, ter
enviado para o namorado de Maya parece ter sido uma tentativa
de fazê-la desistir da operação e, talvez, fazer você desistir
também – Disse olhando para Victor – Foi apenas mais uma
tentativa de sabotagem.

– Precisamos garantir que ele não use a gravação para


outros fins.

– Tomaremos todas as medidas legais.


20
Fim da Viagem

Depois do que pareceu uma eternidade, chegara o dia


cinquenta e nove. Estavam ancorados em Marselha, e Victor e
Maya planejavam fazer um último passeio depois do
expediente. No dia seguinte, às nove horas da manhã,
desembarcariam em Savona, uma comuna italiana da região da
Ligúria. E esse seria o fim.
Depois de descobrirem sobre Jorge, Monteiro assumiu
por completo as rédeas da operação. Não houveram falhas nos
gráficos e nem no motor. Tudo esteve na mais perfeita ordem,
mas não queria dizer que estavam a salvo. Jorge parara de
sabotar por ter perdido as oportunidades, uma vez que não tinha
mais a senha de Monteiro e o acesso ao porão, ou ele já sabia
que fora descoberto. Fosse esse o caso, Maya sequer queria
pensar no que ele poderia fazer.
Como Maya e Victor passaram a trabalhar apenas no
porão, não puderam aproveitar a paisagem da chega do
Cruzeiro à Marselha, mas assim que o relógio marcou dezoito
horas, saíram às pressas para a cabine. Victor passara as últimas
noites ali, e os dois já haviam organizado boa parte das malas
para o desembarque do dia seguinte. Maya usou, pela primeira
vez na viagem, um vestido azul de poá branco. Ele era curto,
solto e era preso na cintura com uma fita do mesmo tecido. Ela
o achava lindo e adorava usá-lo, mas depois de ter sido
envergonhada por usar um biquíni, o esqueceu no fundo da
mala.
Maya também deixou os cabelos soltos. Sentia-se
aliviada por terem chegado à penúltima parada. Já era noite, e
ela e Victor iriam para a Plage des Catalans. Victor estava
lindo como sempre, usava calça, alpargata e camisa de linho.
Quando chegaram à praia tiveram de lutar por um espaço na
areia, já que aparentemente boa parte dos tripulantes do Pollux
Stars tiveram a mesma ideia que eles. Mesmo assim, decidiram
continuar. Conforme a noite caía e ficava mais tarde, as pessoas
foram se dispersando e por volta das onze horas da noite a praia
era quase inteiramente deles, não fosse alguns outros casais
afastados.
Victor e Maya deitaram na areia, um ao lado do outro,
afundando os pés descalços nos grânulos molhados. Eles
podiam ver o céu estrelado sobre eles e ouvir uma banda que
tocava num restaurante à beira mar. Era uma bela noite.
– Sempre quis conhecer a França – Disse Maya.
– Viremos aqui novamente, com mais tempo.
– Só espero que não de cruzeiro, porque eu nunca mais
piso os meus pés em um.
Victor riu da reação exacerbada de Maya.
– Não foi de todo ruim – Disse quase ao pé do ouvido
dela.
– Não, não foi – Ela concordou – Mas prefiro criar
novas lembranças.
– Como quiser. Se desejasse vir andando, assim seria
feito.
Victor a paquerava descaradamente e isso fazia Maya
gargalhar e corar.
Depois de alguns minutos rindo e falando bobagens
apaixonadas, Victor lhe perguntou:
– Qual foi o momento que mais gostou da viagem?
– Não é justo, não posso escolher só um.
– Tente.
Maya virou-se para ele, pensativa.
– Buenos Aires – Ela decidiu.
– Por quê? – Victor perguntou sorrindo, o sorriso torto
e travesso que ela adorava.
– Foi quando eu vi que você também sentia – Maya
corou, envergonhada – alguma coisa.
Victor sorriu novamente e lhe deu um beijo lento,
carinhoso.
– Fico feliz de não ter escolhido o dia em que quebrou
o meu nariz.
Maya gargalhou com a lembrança. Ela também se
machucara no acidente, mas nunca perdia a graça lembrar de
Victor com o nariz atado.
– E o seu? – Ela perguntou.
– Com certeza o dia em que eu me afoguei em seus
peitos.
– Victor!
– Seus olhos! O dia em que eu me afoguei em seus
olhos, quis dizer – Maya o deu uma cotovelada, segurando a
risada, e Victor se aproximou mais dela – O dia em que te beijei
pela primeira vez – Ele se aproximou do ouvido de Maya,
diminuindo a voz para um sussurro rouco – Você não faz ideia
do quanto eu desejei aquilo.
Ela estava corada de novo. Droga.
Victor levantou-se e estendeu a mão para Maya, que
aceitou, pensando ser a deixa para irem embora. Mas Victor
segurou sua mão direta e entrelaçou sua cintura. O vento tocava
suave na pele dos dois e do restaurante ao lado podia-se
ouvir accidentally in love num instrumental mais lento e
melodioso que o original.
Maya nunca foi dada à danças. Mas lá estava ela,
rodopiando sob a luz da lua. Victor a guiava com delicadeza, e
ela deixou que a música, o som do mar e o familiar cheiro de
Victor a invadissem. A dança que começou lenta tornara-se
rodopios espaçados. Maya experimentava uma liberdade
inebriante, algo de mágico no ar. E quando Victor a beijou, foi
uma promessa de compromisso.
Não demoraram muito, já que o cruzeiro iria zarpar nas
primeiras horas do dia para chegar a tempo em Savona.
Dormiram abraçados depois de fazerem amor,
ignorando o restante das roupas e pertences que tinham para
guardar. A manhã do último dia foi uma correria. Maya tentava
fazer as roupas caberem na mala que, milagrosamente, parecia
ter encolhido; Victor tentava achar a chave da sua casa que
dizia ter certeza de ter levado, mas não estava em lugar algum.
Monteiro, Igor, Jorge, Victor e Maya desembarcaram
juntos – por mais que isso fosse um inferno pessoal para todos –
e também foram designados para o mesmo hotel. Pegariam um
voo no fim da noite e depois de longas dezenove horas de
viagem, contando com as paradas, chegariam a São Paulo.
A viagem foi muito desconfortável. No cruzeiro havia
espaço para manter a distância de Igor e Jorge, mas na viagem
de volta Maya precisou fingir que não os odiava, e usou Victor
como escudo em todas as oportunidades que teve.
Quando Maya chegou a São Paulo, quis imediatamente
correr de volta para a sua cama, para a sua casa, e dormir
pesadamente, mas Victor e Monteiro insistiram por uma
pequena parada num pub para comemorar. Ela aceitou. Jorge e
Igor sumiram da vista deles assim que saíram do aeroporto.
– Não sei se posso considerar essa operação um
sucesso, mas estou orgulhoso de vocês dois – Monteiro disse.
Maya estava bebendo uma margarita.
– O que eu posso dizer é que estou feliz por ter
acabado.
Monteiro soltou um riso triste.
– Foi uma aventura e tanto.
– Que eu nunca mais vou aceitar participar – Victor
emendou, bebendo seu terceiro copo de limonada. Monteiro riu.
– Amanhã será um dia cheio – Monteiro disse,
pensativo.
– Não sei se estou preparada – Maya confessou – Além
do seu mistério em relação ao que de fato vai acontecer,
também tem os segredos de Sabrina.
– O que tem Sabrina? – Victor perguntou.
– Ela disse que conseguiu mais provas contra Igor, mas
insiste em não dizer o que é até amanhã.
– Minha garota – Monteiro se referia a Sabrina.
Maya estava ansiosa. Não estava com medo, como
antes, mas não saber exatamente o que aconteceria no dia
seguinte a deixava muito preocupada. Tentou relaxar com as
margaritas, mas nem elas deram conta.
Na saída, Monteiro se despediu e desejou-lhe boa sorte.
Ela agradeceu. Victor a levou em casa. Perguntou se ela queria
que ele ficasse, ela disse que não. Precisava conversar com
Henrique, e teria de fazer isso naquela noite. Victor concordou
e despediram-se com um beijo dentro do carro. Desta vez não
foi um beijo na bochecha.
Maya tentou ligar mais uma vez, mas novamente não
foi atendida. Restou-lhe ir até ao apartamento de Henrique. Ela
temeu que quando desse o seu nome para o porteiro, teria a
entrada barrada, mas Henrique permitiu que ela entrasse.
Maya andou pelos corredores que fizeram parte da sua
rotina por muito tempo. Subiu pelo elevador, caminhou até o
apartamento 218 e bateu.
Henrique não atendeu de imediato, fazendo-a pensar
que ele a deixaria ali plantada, mas quando começara a pensar
se devia bater novamente ou ir embora, ele abriu a porta.
Henrique era o mesmo homem bonito que ela se
lembrava. Ele tinha a pele bronzeada, cabelos levemente
encaracolados e olhos castanhos e doces. Doces como sua
personalidade, porque Henrique era a pessoa mais bondosa que
conhecia.
– Pensei que não fosse abrir.
– Se não pretendesse abrir, não teria permitido que
subisse – Disse, mas não de maneira grosseira.
– Posso entrar?
Henrique abriu espaço para ela e apontou para o interior
do apartamento.
Maya conhecia tudo ali. Passara incontáveis noites lá
dentro e tudo ainda estava como ela se lembrava. Menos o
porta-retrato com a foto dos dois, ela notou. Ele ficava sobre a
estante da sala, dentro de uma moldura avermelhada. Mas não
havia mais nada ali.
– Eu sinto muito – Maya começou. Não tinha planejado
um discurso, e vê-lo com a expressão deprimida reduzira a zero
sua capacidade de pensar em algo melhor.
– Eu não esperava por isso – Ele confessou. Sua voz era
baixa e arrastada. Ele parecia estar esgotado.
Henrique puxou uma cadeira e sentou-se, convidando
Maya a fazer o mesmo. Ela fez, cautelosa.
– Eu sinto muito que tenha visto...
– O problema não foi eu ter visto – Ele a interrompeu.
– Eu sei. Eu pretendia te contar, conversar, dar um
ponto final à nossa história.
– Não conseguiu esperar sessenta dias?
Maya engoliu em seco.
– Não vou tentar me justificar, sei que não há o que eu
possa dizer para isso.
– Eu só não consigo entender – A voz de Henrique de
repente assumiu uma vibração fraca – O que havia de errado,
Maya? Há quanto tempo vocês estão juntos?
– Aconteceu na viagem – Ela se apressou em dizer, ao
entender que Henrique pensava se tratar de um envolvimento
antigo.
– Quer mesmo que eu acredite nisso?
– Mas é a verdade! Antes da viagem eu mal o conhecia.
– Então me traiu com um quase desconhecido. Eu
deveria me sentir mais confortável?
– Não é isso, eu – Maya procurou as palavras certas,
mas não encontrou.
– O que havia de errado? – Henrique insistiu na
pergunta – Com a gente. O que não era bom o suficiente para
você? – Perguntou, com lágrimas nos olhos.
Maya tentou responder, mas as palavras não se
encaixavam em sua mente. O que deveria dizer para o homem
que ela feriu? Que ela nunca fora apaixonada por ele? Que
estava no relacionamento porque era conveniente? Que ela se
enganara ao achar que o relacionamento dos dois pudesse
perdurar?
– Você me amava? – Henrique perguntou. A voz firme,
porém sofrida.
– Amava – Maya sussurrou – Eu admirava você, ainda
admiro. Eu apreciava você e sabia que você seria um bom
marido, um bom pai. Eu tinha um plano, e você fazia parte dele.
– Isso não é amar, Maya.
– Eu acho que – Hesitou – que eu nunca fui apaixonada
– Arrancou o curativo – Mas era confortável continuar com
nossa relação.
Henrique a olhou por um tempo, balançando a cabeça
devagar. Nos olhos, mágoa e uma ferida aberta.
– Eu achei que não tinha problema – Maya continuou –
Achei que não havia algo mais.
– E encontrou algo a mais? Nesse estranho?
– Quando você está alguém, mas não é apaixonado –
Maya tentou formular a frase que havia pensado – Está sempre
sujeito a se apaixonar por outra pessoa.
Henrique balançou a cabeça em afirmativa, novamente.
– Em algum momento você tentou? – Maya o olhou
confusa – Tentou fazer dar certo comigo?
– Por muito tempo – Assumiu.
– Você está feliz, agora?
– Henrique...
– Me diz. Está feliz, Maya?
– Eu não queria te magoar, eu juro.
– Mas magoou. Eu só quero saber se valeu a pena.
Maya não conseguiu responder. Sabia que a conversa
seria difícil, mas deparar-se com o quão devastador foi para
Henrique as ações dela, a desmontou por inteiro. Sentia-se a
pior pessoa da terra.
– Ele que me enviou aquele vídeo?
– Não! – Maya chocou-se com a pergunta – Não foi ele.
Tentaram sabotar a operação e, bem, não importa agora. Mas
foi outra pessoa, que tentou nos prejudicar.
– Tem certeza? Ele não poderia ter feito isso para nos
separar de vez?
Esta ideia sequer tinha passado pela cabeça de Maya,
que olhou para Henrique confusa e enfurecida. Não, não podia
ser Victor. Ela passara os últimos dois meses sendo perseguida,
atacada e trapaceada. Precisava de algo para se firmar, e esse
algo era Victor. Ela não podia conceber o pensamento de ter
sido traída por ele.
– Não foi ele – Disse.
– Parece que confia nele.
– Eu confio.
– Eu espero, Maya, de verdade, que ele nunca faça com
você o que fez comigo.
As palavras a acertaram como facas afiadas. Uma
traição por outra, foi o que sentira quando descobriu que
Sabrina havia contado a Jorge o que ela lhe confidenciou. Mas
não podia imaginar ser traída por Victor assim.
Relacionamentos são votos de fé, ela lembrou. No fim,
ninguém pode ter certeza da fidelidade de ninguém, pode
apenas confiar. E ela escolheu confiar, mesmo tendo ela mesma
sido uma traidora.
– Espero que um dia consiga me perdoar.
– Eu também.
Maya se levantou, sentindo que não havia mais o que
pudesse ser dito. Henrique a acompanhou. Ela ousou lhe dar um
abraço, mesmo temendo que ele a afastasse. Henrique aceitou.
Foi um abraço estranho, com gosto de despedida. Não
estavam acostumados a aquele tipo de interação.
– Eu ainda amo você – Henrique sussurrou, e Maya
soube que ele estava chorando.
– Eu sei – Sussurrou.
O abraço durou alguns minutos. Henrique chorou
silenciosamente em seu ombro e ela permitiu que ele se
despedisse à vontade. Maya não chorou. Ela estava triste com a
maneira como tudo acabou e mais ainda por ter magoado
alguém tão incrível, mas também estava aliviada. Finalmente
tivera coragem de colocar um ponto final no relacionamento
dos dois. Ela estava livre.
Maya voltou para casa com o coração partido. Não
parava de pensar que teve a chance de destruir menos o homem
que já amou, mas que não o fez por pura covardia. Ela insistira
numa relação pela qual ela sabia que não era equilibrada, que os
sentimentos não eram compatíveis. E tudo isso porque era
conveniente, porque coincidia com os planos que traçara para a
vida. Ela foi irresponsável, e fizera Henrique pagar caro por
aquilo.
21
Um Novo Caminho

Dormir não foi fácil. Maya virou-se de um lado para o


outro várias vezes até adormecer, mas quando o fez, dormiu
pesadamente. Estava experimentando uma maravilhosa
sensação de liberdade.

Acordar às 06:15h para tomar banho, se arrumar e


apanhar um transporte até a Ivory a pegara de surpresa. Estava
acostumada a acordar em cima da hora e precisar apenas
caminhar um pouco até a sala de observação ou a qualquer
outro lugar do Cruzeiro. Mas aquela era sua rotina, tudo voltou
ao normal.

Maya tomou um chá de camomila na lanchonete que


ficava a das ruas da Ivory, mesmo sabendo que com isso se
atrasaria alguns minutos. Precisava de algo para se acalmar.

Chegando na Ivory, foi cumprimentada por alguns


rostos conhecidos que lhe perguntaram sobre a viagem, e ela
afirmou que foi um sucesso. Esperava muito não ser desmentida
por Monteiro na reunião que haveria em duas horas para
atualizar a empresa sobre a operação.

Antes de chegar ao escritório, Sabrina a avistou.

Maya não a tinha visto, então quase caiu quando


Sabrina pulou sobre ela, a abraçando com toda a força.
– Santo Deus, Sabrina!

– De qual deles você está falando? Porque eu me recuso


a continuar chamando-os assim, fique sabendo.

Maya estava tão feliz em vê-la. Ela abraçou a amiga de


volta, permitindo-se demorar. Alguns funcionários ao redor
soltaram frases como "que fofas!", "Maya já voltou?" e "O
trabalho não é lugar para isso", mas não se importaram. Sabrina
a acompanhou até seu escritório e ficaram lá dentro até a
reunião de Monteiro começar.

– Você está bem? – Sabrina perguntou.

– Estou feliz pela viagem ter acabado. Mas ontem eu


conversei com Henrique, então bem não é a palavra mais
apropriada.

– Eu sinto muito por isso. Ele reagiu bem?

– Para alguém que foi traído e recebeu um vídeo íntimo


comprovando isso? Sim, reagiu muito bem. Ele é um
cavalheiro.

– Ele é, mesmo.

Maya respirou profundamente. Definitivamente falar


sobre Henrique mexia com ela.

– Mas ele ficará bem, Maya. Não vai demorar até achar
alguém que o faça feliz, não pense nisso agora.

Maya queria acreditar nisso. Sabia que sair do caminho


de Henrique foi o melhor para os dois e que Henrique merecia
ser muito feliz com alguém que pudesse retribuir toda a
intensidade dos sentimentos dele.
– Mas e você? Imagino que não tenha sido fácil
descobrir a verdadeira natureza do Jorge.

Sabrina a olhou de uma maneira que, por um milésimo


de segundo, fez Maya pensar que ela cairia no choro. Dava para
perceber o quanto a amiga estava ferida.

– Não foi fácil.

Maya estendeu a mão sobre a mesa do seu escritório e


segurou a mão de Sabrina, oferecendo um mínimo de conforto à
amiga.

– Foi tão intenso, tão natural. Nunca tinha me


acontecido algo assim – Sabrina continuou – Eu achei que fosse
de verdade.

– Eu sinto muito, Sab.

– Tudo bem. Eu vou ficar bem.

– Vocês conversaram, depois de tudo o que aconteceu?

– Não. Eu não consegui. Estava me sentindo tão usada.

– Eu compreendo. Você não merece nada do que te


aconteceu.

– Mas, agora que já me acalmei um pouco e consigo


falar sobre isso sem chorar, gostaria de ter uma conversa
definitiva. É uma idiotice?

– Claro que não! Você se envolveu intimamente com


ele, Sabrina, é perfeitamente compreensível que queira dar um
ponto final às coisas. Eu bem sei como esse é um passo
importante para seguir em frente. Só tenha cuidado.
Sabrina sorriu docemente em resposta. Era bom ser
compreendida, fazia com que ela se sentisse menos solitária.

– Mas já chega de falar sobre isso, por favor! – Sabrina


disse, afastando-se um pouco da mesa.

– Quais provas você disse que havia conseguido contra


Igor? – Maya questionou, mudando de assunto.

– Deixe-me te mostrar. Encaminhei para Monteiro e ele


já incluiu no dossiê que preparou contra os dois diabos da
Ivory.

Maya não conseguiu evitar a risada.

– É o novo apelido deles?

– Estou pensando em algo melhor.

Sabrina estendeu o celular para Maya, mostrando-lhe


um vídeo com pouco mais de doze minutos de duração.

– Se quer me mostrar um filme, pelo menos paga o


ingresso do cinema.

– Você quer ver isso, pode acreditar.

Maya começou a assistir e, vinte e oito segundos


depois, acreditou em Sabrina. A amiga havia conseguido gravar
o depoimento de nove funcionárias da Ivory detalhando os
assédios que sofrera de Igor. Ela não sabia como Sabrina havia
conseguido convencê-las, já que esse era um assunto delicado
para todas, desde Cláudio. Mas ali estava. Definitivamente não
havia como ignorar aquilo.

– É certo que depois dessa ele vai ser demitido, mesmo


sob aquelas circunstâncias parentais de que me falou. Não
coloquei aqui o vídeo da câmera de segurança do cruzeiro,
porque não sabia se você iria querer participar e despertar ainda
mais a ira dele já que ele está em posse do seu vídeo íntimo.
Mas, se quiser, posso acrescentá-lo aos outros facilmente.

– Pode acrescentar. Ele não está com meu vídeo.

– Como não?

– Jorge está.

– Ah – A voz de Sabrina foi pouco mais que um soluço


– Foi ele também?

– Acreditamos que sim – Maya respondeu


cautelosamente.

– E o que você vai fazer?

– Nada. Monteiro disse que eu podia cofiar nele e que o


vídeo não será enviado para mais ninguém, mas eu estou
tentando me acostumar com a ideia de que isso pode acontecer.

– Não pode!

– Pode, sim. O vídeo existe e está em posso de alguém


que tem motivos para me prejudicar. Estou tentando não surtar
por antecedência, mas se acontecer, só se, então tomarei
medidas legais contra ele.

– Ah, Maya. Queria poder fazer algo a respeito disso.

– Tudo bem – Maya tentou sorrir – Estou tentando ser


corajosa, então não estraga meu momento – Brincou, pois
começara a ficar emotiva.

Maya e Sabrina conversaram – e isso é um eufemismo


para fofocaram – até Monteiro bater à porta do escritório
chamando-as para a sala de reuniões.
Maya era puro nervosismo. Quando chegaram à sala,
Igor estava sentado em uma das cadeiras da frente, mas não
havia sinal de Jorge.

– Calma, amiga – Sabrina tentou acalmá-la.

Maya estava suando frio. Victor chegou logo em


seguida e se sentou atrás dela e de Sabrina. Ele apoiou a mão no
ombro das duas para informar silenciosamente que estava ali.
Maya se sentiu mais calma.

Monteiro tinha uma oratória impecável. Ele encantou a


todos com os gráficos e fotos obtidos na operação. Começou
falando sobre o sucesso que foram os primeiros dias.

– Onde está Jorge? – Maya sussurrou, para apenas


Sabrina e Victor ouvirem.

– Ele não vem – Victor respondeu secamente.

Maya não estava entendendo nada, mas controlou-se


para não encher Victor de perguntas, já que outras pessoas
estavam sentadas próximas a eles.

– Nossa operação estava seguindo constante e dentro


dos padrões até um problema ser diagnosticado – Monteiro
explicava e mostrava as fotos dos gráficos no telão – Os
parâmetros dos gráficos foram desconfigurados, fazendo
parecer que o protótipo não estava funcionando corretamente,
quando estava.

Ouviram alguns burburinhos dos funcionários.

– Um problema estranho, eu sei, mas mais estranho foi


quando o erro se repetiu. Várias vezes, ao longo da viagem.
Ficou claro que alguém estava sabotando a operação e uma boa
investigação confirmou isso.
Igor, que estava sentado na primeira fileira, começou a
olhar de um lado para o outro, confuso.

– Sabotagem? – Maya o ouviu repetir Monteiro.

– Mas essa não é uma notícia de todo ruim, meus


queridos. Conseguimos identificar e registrar todas as
alterações, garantindo que os relatórios pudessem ser
finalizados da maneira correta. Dito isto, informo que a
operação foi, apesar dos percalços, um sucesso!

Igor levantou-se, inquieto. Ele virou-se de costas


olhando para todos.

– Onde está o Jorge?

Monteiro continuou:

– Identificamos o sabotador, que não está mais entre


nós, e venho por meio desta reunião parabenizar Maya e Victor
por seus esforços em salvar a operação.

Houve uma salva de palmas acompanhada de


burburinhos curiosos. Maya não soube como reagir, mas seguiu
os movimentos de Victor, que se levantou, sorriu para os
colegas e sentou novamente.

– Onde está o Jorge? – Igor repetiu, falando com


ninguém em específico.

– O que fizeram com o Jorge? – Maya perguntou para


Victor, aproveitando-se da agitação da sala para não ser ouvida
por todos.

– Depois eu te explico.
Maya viu quando Igor desistiu de esperar respostas e
abriu espaço entre as cadeiras para sair da sala, mas quando
estava a poucos passos da porta, Monteiro o chamou.

– Igor, preciso que compareça à minha sala em quinze


minutos.

Monteiro saiu, deixando um vídeo com detalhes da


viagem entretendo as pessoas. A maioria, no entanto, estava
muito mais preocupada com a história do sabotador misterioso.

– Vamos ao seu escritório – Victor solicitou. Maya o


seguiu, puxando Sabrina consigo.

– Cadê o Jorge? – Maya preguntou eufórica, fechando a


porta atrás de si.

– Ele já foi desmascarado. Não podíamos fazer isso


publicamente, é claro, por motivos de assédio moral. Mas nós o
confrontamos, ele assumiu tudo.

– E o vídeo?! – A voz de Maya saiu esganiçada.

Sabrina virava a cabeça de um lado para o outro para


acompanhar a conversa dos dois.

– Ele não vai expor, não se preocupe.

– Como você pode ter certeza?!

– Porque eu e Monteiro, bem, nós fizemos coisas para


garantir isso.

– Que tipo de coisas?

O olhar de Victor de repente tornou-se obscuro.

– Eu espero que você nunca precise saber.


– Então ele já foi demitido? – Sabrina falou pela
primeira vez na conversa.

– Já. Deve estar recolhendo os pertences que estão no


escritório.

Maya foi inundada por diversas emoções. Sentia-se


aliviada, ainda que preocupada, mas também sentia que não
tinha acabado. Ela precisava falar com ele, precisava entender
o porquê.

– Vem comigo – Segurou Sabrina pelo punho e arrastou


a amiga pelo corredor principal da Ivory.

– Aonde estão indo? – Victor gritou, exasperado, vendo


as duas se afastarem rapidamente.

Maya não precisou puxar Sabrina por muito tempo,


fosse por ter entendido suas intenções ou por simplesmente se
recusar a ser levada de um lugar para o outro sem fazer ideia do
que estava acontecendo, Sabrina correu atrás de Maya,
seguindo-a pelos corredores brancos e bem iluminados da
Ivory.

Chegaram juntas ao escritório de Jorge. Maya não bateu


antes de entrar, mas deparou-se apenas com uma sala
impecavelmente limpa e uma mesa com nada além de um peso
de papéis em cima.

Ele já havia ido. Droga.

– O que vocês pensam que estão fazendo? – Victor as


alcançou, ofegante.

– Eu preciso saber. Ela precisa saber – Maya


respondeu, enigmaticamente.

– Precisam saber o quê?


Quando Victor perguntou novamente, Maya e Sabrina
já estavam retornando pelo mesmo corredor.

Em determinado momento Maya nem sabia se ainda


estava sendo seguida por Sabrina, mas esperava que sim. Ela
precisava encontrá-lo, precisava confrontá-lo depois de tudo o
que ele fez, e sentia que esse seria o momento oportuno para
que a amiga fizesse o mesmo.

Quando ela chegou ao estacionamento da Ivory, pôde


ver ao longe Jorge guardando uma caixa no porta-malas do seu
Prius. Ele só percebeu a presença das duas quando estavam
perto demais para que ele pudesse escapar.

Jorge bateu a porta do porta-malas devagar, olhando


para as duas. Estava calmo, o que irritou Maya profundamente.

– Seu desgraçado! – Maya gritou. Teve de fingir por


muitos dias que não fazia ideia do que ele estivera tramando,
guardando para si sua raiva. Ela também não tinha certeza se foi
ele o responsável pelo vídeo durante esse período, mas agora
ela sabia – Por quê, Jorge? Por quê?

Maya só percebeu que estava caminhando na direção


dele até ficar perigosamente perto quando uma mão grande e
máscula a segurou pela cintura.

– Maya, não – Victor a impediu de continuar.

Maya olhou atrás de si: Victor mantinha-se imponente e


forte em seus quase dois metros de altura, claramente pronto
para protegê-la em qualquer situação; e Sabrina estava ao seu
lado, beliscando as mãos nervosamente.

– Por quê, Jorge? – Ela repetiu, pausadamente,


voltando-se para ele.

– Não era pra ser pessoal – Ele respondeu.


– Não era pra ser pessoal? – Maya novamente não
conseguiu conter a raiva e sua voz soou mais alta do que previa
– Você nos gravou e enviou o vídeo para o meu namorado!
Como isso não era para ser pessoal?

– Eu sei que estraguei tudo, eu sinto muito.

Maya quase não podia acreditar nas palavras Jorge, e


quando abriu a boca para despejar sobre ele todos os
xingamentos que aprendera na vida, percebeu que ele estava
olhando para Sabrina, não para ela.

– Foi tudo uma mentira? – A voz de Sabrina era fraca e


carregada de emoção.

– Não! Não foi!

– Então por quê? – Foi a vez de ela perguntar.

– Eu tinha um trabalho a fazer – Ele começou – E não


me importava se precisaria jogar sujo. Eu precisava me livrar do
Igor, ou ele iria me atrapalhar. Mas não era pra envolver você.

– E eu fiz parte desse seu plano? – Sabrina cuspiu as


palavras.

– Não, não! Não era pra ser assim.

– Como não?!

– Foi verdade, Sabrina! – Maya percebeu que Jorge se


portava de uma maneira imponente, com a voz firme. Era quase
uma outra pessoa. O que a fez pensar se esse tempo todo
estivera lidando com um personagem –O que aconteceu entre a
gente foi real!

– Então como pôde me trair daquela maneira? E o que


fez à Maya!
– Eu não queria te usar – Ele continuou – Mas você me
deu a oportunidade perfeita. Eu sabia como manipular a
informação e sabia que com o temperamento irracional de Igor
ele iria se prejudicar sozinho.

– Ele a chantageou, Jorge!

– E eu não me importei com isso – Jorge falava de uma


maneira tão audaciosa que Maya definitivamente se convenceu
de que o Jorge bondoso e gentil era mesmo uma personalidade
criada por ele – Tinha muito mais para me preocupar que a
infidelidade os dois. Você me importava, não eles.

– Mas você gravou o vídeo!

Maya sentiu a mão de Victor apertar ainda mais sua


cintura quando Sabrina expôs o delicado assunto.

– Aconteceu que Igor ameaçar Maya não deu em nada.


Ele não foi punido e ainda levou uma surra por isso. Ele é
mesmo um degenerado estúpido – Revirou os olhos – Então eu
precisei fazer algo a mais, algo que fizesse todos pensarem que
foi ele.

– Isso tudo foi para se livrar do Igor? – Maya


intrometeu-se na conversa, depois de um tempo apenas
absorvendo o diálogo dos dois ex-amantes.

– Não. Eu também queria punir você.

Num movimento rápido, Victor se pôs à frente de


Maya.

– Cuidado com o que fala – Disse entredentes.

– Não precisa me ameaçar novamente – Jorge mantinha


a calma mesmo diante da proximidade de Victor – Ela fez você
se afastar de mim – Continuou, olhando para Sabrina.
– Acha mesmo que foi Maya quem fez isso? Acha que
eu poderia continuar com alguém que fez tudo o que você fez?
– Sabrina não estava mais emotiva, estava enfurecida.

– Não era pra ser assim.

– Eu não acredito que me deixei convencer por suas


mentiras!

– Não foi mentira – Ele repetiu – Eu quis você,


Sabrina! Ainda quero – Ele olhou para Maya, que se agarrava
ao braço de Victor – Mas sei que é tarde demais.

Jorge caminhou sem pressa para a porta do motorista.

Ele abriu a porta, de cabeça baixa, mas hesitou por um


instante antes de entrar.

– Eu sinto muito – Disse para Sabrina. Depois


desapareceu por trás dos vidros escuros e dirigiu para fora do
estacionamento.

Maya estava tentando lidar com todas aquelas


informações. Nada havia mudado, significativamente, mas
agora ela sabia os motivos que o levaram a gravá-la. E
finalmente havia se livrado dele. De acordo com Victor ela
podia ficar tranquila quanto ao vídeo, também. Ela pensou em
perguntar novamente o que Victor e Monteiro fizeram a Jorge
para garantir o silêncio dele, mas desistiu. Ela confiava em
Victor, não precisava saber de tudo. Além de que queria dar um
tempo para Sabrina.

– E Igor? – Maya perguntou.

– Deve estar sendo demitido agora mesmo – Victor


respondeu, aliviado por Jorge ter ido embora – E ele vai
responder judicialmente por assédio sexual, também. Graças ao
vídeo da câmera de segurança e o testemunho das outras
funcionárias, ele não teve como escapar.

– Ninguém tentou protegê-lo?

– Não havia mais o que fazer, Maya, não tinham como


protegê-lo sem assumir que a Ivory é concernente com assédios.

– Mas ela é – Maya finalizou.

– Então está tudo resolvido? – Sabrina perguntou,


secando uma lágrima solitária.

– Está, o inferno acabou – Victor concluiu – A


propósito, obrigado pela ajuda.

– Qualquer coisa pela Maya – Os olhos de Sabrina


brilharam. Um cintilante esverdeado no meio da cabeleira ruiva.

Céus, como Maya a amava. Era tão grata por terem


conseguido reatar a amizade e seu coração, apesar de feliz por
isso, sofria com a dor que a amiga devia estar enfrentando.

Maya ouviu Victor concordar com ela e a amiga emitir


uns guinchos animados sobre a relação dos dois, mas a sua
cabeça estava girando. Não conseguia prestar atenção no que
eles diziam, apenas na entonação mais animada das vozes.

Havia acabado. Ela nunca mais veria Igor em sua vida,


nunca mais veria Jorge. Ninguém a machucaria outra vez, ou a
ameaçaria. Ela não seria chantageada. Seu vídeo não seria
exposto. Ela podia acreditar nisso? Se Victor tinha garantido,
ela podia. E ela também havia colocado fim à relação com
Henrique e sabia que só o tempo curaria o resto. Sua amizade
com Sabrina havia se reestabelecido e nada a impedia de
construir uma história com Victor. Então por que ela estava
sentindo aquilo?
Uma espécie de aperto no peito, que a impedia de
respirar direito. Era inquietante e enfadonho. Ainda não acabou,
pensou.

– Onde está Monteiro? – Maya perguntou.

– No escritório dele, por quê?

– Me deem licença – Maya desviou de Victor e da


amiga e seguiu cegamente pelo caminho que já conhecia.

– Onde ela vai agora? – Ouviu a voz de Sabrina.

– Não sei. Essa mulher ainda vai me deixar maluco.

Maya viu Igor pisando forte no chão quando saiu do


escritório de Monteiro. Ele protestou quando ela passou quase o
atropelando, mas não lhe disse mais nada. E pensar que ele era
tão desagradável que até seu amigo queria distância dele. Não
sentia pene, nem um pouco. Igor merecia todo o desprezo que
recebia. Ela passou por ele sem se dignar a olhá-lo nos olhos e
quando se deu conta estava sentada diante de Monteiro.

– Maya, está tudo bem? – Monteiro levantou-se –


Victor te explicou o que aconteceu? Não há mais com o que se
preocupar, minha querida, nenhum dos dois importunará você
ou qualquer outra funcionária desta empresa novamente.

– Não, não vai mesmo.

– Quanto ao assunto mais delicado – Monteiro evitou


falar diretamente sobre o vídeo – Não precisa se preocupar,
também. Te dou a garantia que sua intimidade será mantida
privada.

– Eu quero me demitir.

– O quê?
– Eu quero me demitir – Maya repetiu, assustando-se
com as próprias palavras.

– Maya, aconteceu mais alguma coisa? Nós podemos


resolver! Sei que passou por muitas dificuldades nos últimos
dias, mas está resolvido agora. Não há com o que se preocupar,
eu garanto!

– Não é que algo a mais tenha acontecido, eu só não


acredito mais.

– Não acredita que está segura?

– Não acredito na Ivory.

Monteiro não soube como responder.

– Você é uma profissional brilhante, Maya! Foi


selecionada para trabalhar aqui porque você é competente e
comprovou isso diversas vezes, inclusive nessa viagem! Não
deixe que eles tirem mais de você do que já tiraram.

– Está decidido.

Maya não sabia de onde tinha vindo o desejo de sair da


Ivory, mas depois que as palavras saíram de sua boca, percebeu
que esse sentimento amadurecia dentro dela há muito tempo. A
viagem foi a gota d'água. Ela não podia continuar servindo a
uma empresa que não tinha mais credibilidade para ela. Ou,
como Victor diria, uma empresa pela qual ela não tem mais fé.

– Tem certeza? – Monteiro perguntou.

– Sim.
22
Felizes por Enquanto

9 meses depois; 19 de abril.

A vida como Maya conhecia deixara de existir.

Ela lembrava-se vividamente do seu último dia na


Ivory, depois de testemunhar Jorge e Igor sendo devidamente
punidos. Ela não saberia explicar o que a levou a caminhar até a
sala de Monteiro e, determinada, encerrar sua jornada na
empresa que almejara fazer parte por tantos anos. Mas naquele
momento estava certa de que foi a melhor decisão que tomou.

Nos meses que se seguiram à demissão, Maya aprendeu


muito sobre a vida, sobre o amor e sobre ela mesma. Entendera
que não se deve dedicar a vida à realização de um trabalho a
menos que acredite naquilo. Ela não acreditava mais que a
Ivory era seu lugar, então despediu-se e foi embora, pois
mesmo que tenha se esquecido disso por um tempo, era uma
mulher livre. E cabia a ela todas as decisões de sua vida, até
mesmo a decisão de desistir.

Descobrira que quase tudo o que pensava sobre o amor


estava errado. Ela havia se convencido de que o amor era como
encaixar uma peça de quebra-cabeças no espaço vazio que lhe
faltava. Que bobagem. O amor era muito mais parecido com
misturar suas peças com a de outra pessoa e formar uma
imagem totalmente nova. Ninguém se resume a uma única peça.
Ninguém existe para completar os espaços vazios de outro. E
ela nunca quisera Henrique por completo, só um pedaço.
Percebia isso agora.

Falara com Henrique poucas vezes depois do término.


Maya gostaria de manter uma amizade com ele, mas sabia que
para o ex-namorado era inviável. Ele tinha um sentimento para
guardar, e escolhera fazer isso sem a interferência do tempo.
Guardaria as lembranças do que viveu com ela sem precisar se
lembrar dela sendo feliz ao lado de outro. Maya compreendia.

Ela desejava que ele encontrasse alguém que pudesse


retribuir o amor que ele tinha para o oferecer, que era muito.
Soube que ele estava conhecendo alguém, uma mulher que
conhecera nas férias, quando fora visitar os pais no interior, mas
seus conhecimentos sobre a atual vida amorosa de Henrique
acabavam por aí.

Depois de ficar dois meses desempregada, Maya


começou a trabalhar num instituto de geotecnia. Ela chefiava as
construções das obras hídricas e barragens em cidades
interioranas. Era muito diferente do trabalho com tecnologia de
ponta ao qual estava acostumada na Ivory, e não era tão bem
paga, mas a verdade era que estava muito mais feliz. Sentia que
seu trabalho tinha um impacto direto na vida das pessoas e das
comunidades que conhecia, e não a única função de engordar os
bolsos de alguém que já os têm cheios. Victor a apoiara em
tudo, e sempre fazia questão de ouvi-la falar sobre os novos
lugares que ela visitava.

Na Anacor, o instituto de geotecnia, Maya também


fizera novos amigos, e os esperava em algumas horas, para a
comemoração do seu aniversário. Ela não queria fazer festejos,
mas Victor insistira e ele estava tão animado que Maya cedeu.
Acabou por empolgar-se também.

– O que você está fazendo com esse tomate? – Thomás


perguntou a Victor. Estavam todos na cozinha, que era pequena
demais para cinco pessoas.
– Cortando em fatias finas – Victor explicou – Não tem
que ser assim?

– Isso está quase da grossura de um dedo! – Thomás


tomou a frente, fazendo menção de tomar a faca da mão de
Victor, que não deixou.

– Eu posso fazer sozinho.

– Desse jeito não vamos comer ratatouille e sim uma


salada! Maya, fique sabendo que você fez uma péssima escolha,
porque Henrique cozinhava muito melhor! – A voz de Thomás
era pura provocação.

– Ah é? – Victor balançou a faca, ameaçadoramente,


mas segurando o riso – Eu posso não saber cozinhar, mas sei
comer muito bem!

– Victor! – Maya foi obrigada a intervir.

Quando Maya e Victor oficializaram a relação, ele já


conhecia sua amiga íntima, que era Sabrina, mas Maya ainda
precisava apresentá-lo a Thomás. Ela temia que a relação deles
se assemelhasse a de Thomás com Henrique, que nunca passou
da fase de cumprimentos cordiais. Mas, ao contrário disso, os
dois passavam todo o tempo que podiam tirando a paciência um
do outro. E de todos que estivessem no ambiente.

– Esses dois não calam a boca! – Sabrina gritou –


Preciso me concentrar para escrever os parabéns no bolo, ou
vou estragar toda a cobertura.

– Eu nem tento mais me intrometer – Interviu João, o


namorado de Thomás – Quer ajuda, minha querida? – E foi
ajudar Sabrina com os toques finais no bolo que ela insistira em
fazer e decorar sozinha ao invés de comprar um pronto.
– Quando seus amigos vão chegar, estrelinha? –
Thomás perguntou, enquanto partia ao meio as rodelas de
tomate que Victor já havia cortado.

– Estarão aqui em duas horas, eu acho.

– Ah, droga! Não vai dar tempo! – Sabrina praguejou,


apreensiva.

– Mas o bolo já está quase pronto, Sabrina – João


observou – Como não vai dar tempo?

– Ainda preciso enrolar os brigadeiros!

– Você não tinha feito isso ontem? – Maya questionou.

– Tinha, mas o seu namorado os comeu!

– Victor!

Maya questionava-se se, quando tivessem filhos, ele


ainda seria a pessoa que ela mais tinha que advertir. Não que se
incomodasse com isso.

– Agora entendi o que quis dizer com saber comer bem


– Thomás o provocou.

– Eu vou agora mesmo comprar brigadeiros na


confeitaria – Disse Victor, tirado o avental que ficava pequeno
demais em seu corpo alto e musculoso, desistindo de vez de
cortar os tomates.

– Aproveita e traz beijinhos – João pediu – E quindim!

– Certo, certo. Brigadeiro, beijinho, quindim,


brigadeiro, beijinho, quindim – Victor saiu da cozinha repetindo
a lista de exigências.
– Amor – Maya o alcançou na sala, antes que ele saísse
– Traz uma garrafa de vinho, por favor?

Victor a olhou dos pés até a cabeça, deixando-a


envergonhada. Maya nunca se acostumava com a intensidade
do olhar dele sobre ela.

– Sinto muito, mas não terei como trazer.

– Por quê? – Maya fez beicinho.

– É muito caro, amor.

– Não é, não – Maya retrucou, teimosa. Victor nunca


deixava de fazer suas vontades, então Maya sabia que era algum
tipo de brincadeira que, certamente, a deixaria corada como
uma cereja.

– Custa a promessa de que vai me deixar fazer o que


quiser com você esta noite – Ele deu-lhe um de seus sorrisos e
aproximou-se do ouvido dela – Se tiver disposta a pagar, eu
trago o vinhedo inteiro.

Maya ruborizou e Victor deu-lhe um beijo rápido nos


lábios.

– Vou aceitar seu silêncio como um sim – Informou.


Logo em seguida saiu apressado, voltando a repetir a lista de
doces.

Maya simplesmente não resistia aos galanteios de


Victor, e desistira de tentar não ficar envergonhada. Quando
voltou para a cozinha, deparou-se com o bolo pronto em cima
da mesa. Era redondo e estava coberto de chantilly branco. Nas
laterais haviam confetes coloridos e em cima as palavras
"Parabéns, Maya!" com chantilly rosa. Maya o havia visto
incompleto minutos antes, mas deparar-se com todo aquele
carinho a fez suspirar.
– Está tão lindo! – Disse, emocionada – Obrigada,
amiga – E abraçou Sabrina, com toda a força que conseguira.

– Nada de choros agora – Thomás as interrompeu –


Precisamos adiantar com os preparativos.

Os preparativos para o aniversário de Maya seguiam


duas vertentes diferentes. Inicialmente, haviam programado um
jantar com massas, ratatouille e outras receitas italianas. Depois,
Sabrina insistiu que deveriam fazer um bolo e doces porque, de
acordo com ela, não se comemora um aniversário sem isso.
Assim, Maya torcia que seu sistema digestivo conseguisse lidar
com a estranha mistura de pratos que a esperava.

João levou o bolo até a mesa que haviam preparado na


varanda. Sobre ela, uma toalha branca; na parede, um arco de
bexigas rosas, azuis, amarelas e brancas. Sabrina gosta de
tradicionalismo.

Maya passara a adorar aquela bagunça de vozes e


pessoas. Não costumava receber visitas, mas Victor era do tipo
que não perdia uma oportunidade de festejar, e logo sua casa se
tornou um ponto de encontro para os amigos beberem vinho –
ou limonada, no caso de Victor – e fofocarem sobre qualquer
amenidade do trabalho ou da família.

Victor continuava trabalhando na Ivory, assim como


Monteiro e Sabrina. Todos tentando tornar o ambiente mais
humano e receptivo para velhos e novos funcionários. Eles se
adaptaram rapidamente a Antônio e Camila, os novos
integrantes do grupo e colegas de trabalho de Maya. E Maya
finalmente conheceu o amigo misterioso de Victor, o vendedor
de informações ilegais ou, como ela costumava dizer,
fofoqueiro profissional. Yuri era seu nome, mas não iria se
juntar a eles naquela noite porque estava em outra cidade. O
homem vivia cercado de mistérios.

– Mon chérie? – Maya ouviu Thomás a chamando.


– Sim?

Estavam só os dois na varanda, Sabrina e João tinham


entrado para trazer mais algum prato com comida.

– Queria te dar uma coisa.

– Thomás – Maya hesitou – Não precisa.

– Eu sei, mas eu quero. Toma – E estendeu-lhe uma


caixinha branca, que podia muito bem conter uma garrafa de
vinho, amarrada com uma fita rosa e um laço.

Sem questionar, abriu.

Os olhos de Maya se encheram de lágrimas. O presente


se tratava de um objeto de vidro em formato de paralelepípedo
com uma miniatura de cruzeiro dentro. A embarcação boiava
sobre um líquido azulado e não importava o quanto o objeto
fosse agitado, o cruzeiro permanecia sobre o mar.

– Essa é uma lembrança da embarcação que levou uma


Maya embora e trouxe uma diferente de volta.

Maya sorriu, admirando os detalhes do mine cruzeiro.

– Foi uma experiência e tanto! – Ela concordou.

– Bastante agridoce, eu diria. Mas quase tudo na vida é


assim. Espero que com isso lembre-se que a magia está no
caminho, não no destino. É onde a vida acontece.

– E onde tudo muda – Maya constatou, sendo abraçada


por Thomás.

– E que bom que mudou para melhor!


Não demorou para que Victor retornasse com uma
quantidade exorbitante de brigadeiros, beijinhos e quindins.

– Você pretende alimentar um batalhão, Victor? –


Thomás perguntou, roubando um brigadeiro.

– Melhor sobrar do que faltar – Respondeu a voz da


sabedoria.

– Não que eu esteja de dieta, mas, se estivesse, esse


seria o fim – João pegou três quindins e os comeu ao mesmo
tempo.

– Me ajudem a espalhar os doces na mesa, ao redor do


bolo – Sabrina pediu – E parem de comer tudo!

Thomás e João ajudaram Sabrina com o restante da


decoração. Victor decidiu gastar o tempo de espera até os
convidados chegarem abraçando e beijando Maya sem se
importar com quem olhava. O que fazia Maya ficar corada e rir
de nervosismo; Victor adorava.

– Vocês podem se amar pra lá? – Thomás brincou –


Estão me desconcentrando.

– Eu acho que você só está com inveja – Victor


respondeu.

Thomas revirou os olhos.

– Tem alguém no portão – Sabrina informou – Vou


atender.

Às vezes, e isso não era tão raro, Maya precisava fechar


os olhos e inspirar profundamente para não se perder no meio
das vozes que se sobressaíam umas às outras todas as vezes que
o grupo se encontrava.
Monteiro invadiu o espaço com um sorriso largo e uma
sacola de presente na mão.

– Onde está minha ex-funcionária favorita?

Maya abraçou Monteiro e agradeceu pelo presente. Sua


relação com o velho avançara muito com o passar dos meses.
Ela foi levada a participar da vida pessoal do antigo chefe e não
se cansava de deleitar-se com a sensação de fazer parte dos
favoritos.

– Maya, Camila e Antônio chegaram! – João gritou.

– Feliz aniversário! – Camila e Antônio disseram em


uníssono, estavam sorridentes e empolgados. Antônio era um
jovem que nasceu e cresceu no interior. Carregava consigo uma
ingenuidade nata que combinava perfeitamente com seu sorriso
largo e olhos redondos. Camila era a mais velha do grupo, tinha
uma certa tendência a comportar-se como mãe de todos e seu
rosto doce emoldurado em caracóis loiros chamara muito a
atenção de Monteiro. Ele tentava disfarçar, mas não conseguia
enganar Maya e Victor. Quando estavam a sós, passavam horas
elaborando planos de aproximar os dois.

Maya pediu que todos se sentissem à vontade, mas por


pura formalidade. Todos já se sentiam. Beberam vinho tinto e
limonada. Comeram macarronada e o ratatouille que Victor
insistira em fazer depois de discutir com Thomás, que o irritou
dizendo que ele não conseguiria. No fim, estava uma delícia.

Quando se reuniram ao redor da mesa do bolo, metade


dos docinhos já haviam sumido.

Cantaram os parabéns, ascenderam a vela que Sabrina


encaixou no topo do bolo e, na hora de fazer o pedido, Maya
fechou os olhos e assoprou.
Maya não era supersticiosa, mas sempre fizera pedidos
nos seus aniversários. Acreditava que os deuses a ouviriam
nessa data especial. No entanto, no auge dos seus vinte e oito
anos, não fez pedido algum. Não havia mais nada que pudesse
desejar além do que já tinha.

Os amigos se demoraram. Eles riram, fofocaram e


contaram todo tipo de história. Maya riu tanto que sentiu dor na
barriga. Por volta das onze horas da noite, começaram a se
despedir.

– Nos vemos no trabalho, Maya – Antônio disse –


Esqueci seu presente lá, a propósito. É um pé de tangerina.

Maya não teve tempo de perguntar se ouvira direito,


pois a gargalhada de todos confirmou-lhe que sim. Não fazia
ideia do que fazer com um pé de tangerina, mas achou
simplesmente encantador.

– Obrigada pelo dia maravilhoso, minha querida –


Camila aproximou-se, a abraçando – Depois eu te ensino a
plantar – Sussurrou em seu ouvido.

– Bom, é minha hora de ir também – Monteiro


anunciou – Alguém precisa de carona?

– Eu adoraria – Sabrina aceitou.

– Também vou aceitar – Disse Camila – Não moro


muito longe da Sabrina, de qualquer modo.

– Pensando bem – Sabrina guinchou – Tenho que


passar na casa de João primeiro, e ele vai me levar em casa
depois.

– Eu vou?

Sabrina lhe deu uma cotovelada.


– Claro que vai!

Não demorou para que Camila entrasse no carro de Monteiro e


partissem, deixando todos animados feito adolescentes. Antônio
também se apressou em ir embora, já que morava em um bairro
distante.

– Devo admitir que a comida estava ótima, Maya,


apesar de tudo – Thomás provocou Victor outra vez.

– Sério que achou isso? – Victor respondeu – Então


você não deve ter sentido o gosto do veneno.

Todos riram e João precisou puxar Thomás pelo braço


para que ele fosse embora e Sabrina os acompanhou. Era isto,
Maya pensou, essa era sua nova vida. Mas de todas as
despedidas, a mais difícil era a de Victor.

– Você vai dormir aqui hoje, não vai? – Maya


perguntou.

Maya e Victor faziam o possível para dormirem juntos


no meio da semana, mas raramente o faziam nas noites de
domingo, já que na segunda-feira Maya precisava ir mais cedo
para a Anacor. Às vezes passavam dias seguidos numa rotina a
dois que Maya aprendera a amar, mas sempre precisavam se
separar no final da semana.

– Pensei que não ia me convidar – Victor disse


sorrindo, os olhos azuis brilhando.

Céus, como ele era lindo.

Ele a beijou, apaixonadamente. Como sempre fazia.


Como se beijar fosse um ato de devoção. Como se Maya fosse o
deus que ele adorava.
– Precisamos guardar essas coisas – Maya
choramingou, sabendo que se continuassem iriam parar no
quarto e depois iriam dormir, deixando toda a bagunça do lado
de fora. Victor concordou.

Juntos, guardaram e lavaram tudo e comeram a última


fatia de bolo que haviam guardado.

Maya levantou-se da mesa de jantar, onde Victor


devorava os últimos quindins, para levar a taça de vinho até a
pia. Diante da pia havia uma janela de vidro que deveria
presenteá-la com a visão de um belo jardim, mas Maya não
tinha jardim. Bom, teria um pé de tangerina em breve. Apesar
da triste visão da sua garagem cinzenta, havia um pequeno
espaço por onde podia ver o céu e a lua estava linda e redonda,
iluminando-a com sua luz prateada. Maya fechou os olhos,
agradecendo silenciosamente pelo dia, pelos amigos, por
Victor. Por estar completa; feliz.

Ela sentiu Victor a abraçando por trás e beijado seu


ombro.

– Eu pensei em algo sobre nossas noites de domingo –


Ele sussurrou.

– Vai parar de reclamar da minha chuva de


despertador?

Victor ponderou.

– Não, eu vou reclamar disso para sempre, pode ter


certeza.

– O que você pensou, então? – Maya ergueu o rosto,


beijando o queixo dele e esperando ser beijada de volta. Victor
era muito alto, ela se sentia completamente minúscula dentro
dos braços dele.
– Que poderíamos nos mudar para uma casa mais
próxima do seu trabalho.

– Nós? Juntos? – Maya já havia pensado nisso antes.


Um milhão de vezes. Quisera se juntar a Victor desde quando
retornaram do Pollux Stars, mas ela precisou de um tempo sem
planos predefinidos. Para além disso, havia aprendido a ter
calma, a esperar o tempo certo das coisas. A aproveitar o
caminho.

– Nós. Juntos. Isso se, claro, você quiser – Victor tirou


detrás de si uma caixinha de veludo azul tiffany. Dentro dela, o
anel mais bonito que Maya vira na vida.

– Eu não acredito que está fazendo isso – Maya disse, a


voz tão baixa e trêmula quanto um sussurro.

Victor lentamente virou Maya para que ficasse de


frente para ele e, como o apaixonado declarado que era,
ajoelhou-se diante de sua amada.

– Quer se casar comigo?

Maya estivera prendendo a respiração desde quando


vira o anel e só então lembrou-se de respirar.

– Sim, sim! Sim!

Victor a ergueu nos braços, girando no ar, com o


sorriso rasgando o rosto. Maya gargalhou, sem nem saber por
que estava fazendo aquilo.

Alguns rodopios depois Victor a colocara de volta no


chão, segurando firmemente o rosto dela no seu; testas coladas,
hálitos se misturando.

– Eu amo você – Ele disse. Não fora a primeira vez que


lhe dissera aquilo, mas Maya sorriu como se fosse.
– Eu amo você – E desta vez, com Victor, era mesmo
verdade.

FIM.

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