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Pe. Leonel Franca Com que direito Lutero pretendia “reformar” a Igreja?

Lutero negou a
autoridade, negou a Tradição, negou o Magistério, negou a Igreja orgânica, visível e
hierárquica. Mas com que direito? Quais as credenciais desta sua embaixada extraordinária?
Lutero começou por negar. Negou a autoridade, negou a tradição, negou o magistério
eclesiástico, negou a Igreja orgânica, visível, hierárquica. Com que direito? Com que títulos?
Não existia havia 15 séculos o cristianismo? Não ascendiam os seus pastores, os seus bispos, os
seus papas, por uma sucessão ininterrupta até aos apóstolos, até ao próprio Cristo? — Mas a
Igreja Católica havia perdido o espírito primitivo, havia adulterado os ensinamentos do
Evangelho, havia-o sobrecarregado com uma farragem de superstições humanas, havia-o
prostituído com a idolatria de Babilônia. — E como o sabe ele? Como o prova? Não havia Cristo
prometido a sua assistência infalível à Igreja? Não lhe havia assegurado que com ela estaria
todos os dias até à consumação dos séculos? Não importa. Lutero entrincheira-se na Bíblia. —
Mas a Bíblia, quem a interpreta? Não a possuía, não a possui porventura a Igreja Católica? Não
a liam todos os Santos Padres e Doutores? Não a conheciam todos os concílios? Não a
vulgarizavam todos os santos reformadores? E por que a nenhum ocorreu a ideia de começar
uma reforma destruindo a Igreja em nome da Escritura, de embandeirar a Bíblia em pendão de
revolta contra a autoridade constituída por Cristo? Falar à consciência religiosa, ensinando
verdades a crer e preceitos a praticar, sem autorização divina, é embuste, impostura e
charlatanismo. Lutero, porém, possui um segredo especial de exegese desconhecido de toda a
antiguidade eclesiástica. Ele, o frade despeitado, guinda-se às alturas proféticas de novo
evangelista, recebe diretamente ilustrações do Espírito Santo, comunica com o santuário da
Trindade [1] e dos seus recessos inacessíveis traz ao mundo o dom de uma hermenêutica
sacra, de cujo bojo sai um cristianismo todo novo. Destarte, de consequência em
consequência, Frei Martinho é obrigado a arvorar-se uma missão divina, a atribuir-se uma
legação religiosa especial. Ora, onde estão as credenciais desta embaixada extraordinária?
Nenhum homem pode levantar-se no meio dos seus semelhantes e afirmar, sem provas cabais,
que é um enviado do Altíssimo. Nenhum homem pode guindar-se à trípode dos oráculos e daí
legislar religião para a humanidade sem antes demonstrar apoditicamente a autenticidade de
sua missão plenipotenciária. Religião, só Deus a pode impor ao homem. Falar à consciência
religiosa, ensinando verdades a crer e preceitos a praticar, sem títulos divinos, sem autorização
divina, sem sanção divina, é embuste, é impostura, é charlatanismo. Nossa dignidade de seres
racionais revolta-se contra semelhantes exploradores da credulidade pública. — Profeta de
Wittenberg, onde estão as cartas de crença de tua missão divina? A garantia que temos da
origem celeste de uma doutrina reside na autoridade recebida do alto por aquele que no-la
propõe. Ora os sinais com que Deus chancela a autoridade dos seus enviados são os milagres:
milagres que se manifestam na ordem física, milagres que resplendem na santidade
irrepreensível do divino enviado. Só o milagre, intervenção extraordinária da divina
onipotência, pode autenticar as missões do céu. Que milagres fizeram os primeiros
reformadores para atestar o caráter divino de sua missão? Com milagres provou Jesus a sua
messianidade (cf. Jo 5, 36; 10, 37-38; 15, 22; Mt 12, 39-40); com milagres sigilou Deus a
embaixada dos seus apóstolos (cf. 2Pd 1, 18; 2Cor 12, 12; Mc 16, 20); no milagre reconheceu
sempre a apologética cristã, firmada nos princípios da razão e nos ensinamentos dos livros
inspirados, a assinatura inimitável do divino Autor nas suas manifestações extraordinárias à
humanidade. O próprio Lutero reconheceu a necessidade desta autenticação celeste.
Querendo impedir a pregação de Tomás Müntzer em Mulhouse, escreve em 1524 aos
magistrados desta cidade que, se o turbulento inovador não puder provar com obras
extraordinárias a sua missão, não o recebam. “Se ele disser que Deus e o seu espírito o enviam
como aos apóstolos, que o prove com prodígios e milagres; do contrário, proibi-lhe a pregação”
[2]. Quando Carlostadt, apelando para ilustrações divinas, o contradisse, Lutero intimou-o a
demonstrar com milagres a sua vocação: “É necessário que Deus manifeste com obras
milagrosas que revoga os seus antigos preceitos” [3]. E alhures: Quem quer pôr em campo
alguma novidade ou ensinar doutrinas diversas deve ser chamado por Deus e comprovar a sua
vocação com verdadeiras ações prodigiosas. Quem não a puder demonstrar deste modo, abra
mão da empresa et in malam rem abeat. [4] Julgando-o por esta craveira, que milagres fez
Lutero? Que milagres fizeram os primeiros reformadores para atestar o caráter divino de sua
missão? De todos os protestantes escreveu, gracejando, Erasmo, que até então não haviam
endireitado a perna a um cavalo coxo. Lutero acabou por perceber esta lacuna na sua missão,
mas, por um destes truques de sofista em que era useiro e vezeiro, virou de bordo e proclamou
o milagre uma inutilidade… Depois, triunfando exclama: “Não hão de ver milagres feitos por
nós”, porque, se os fizéramos, o mundo os havia de atribuir ao diabo [5]! E profecias? — Há
uma que ocorre frequentemente nos escritos dos primeiros inovadores: a iminente ruína do
Papado. Lutero gostava muito do verso Pestis eram vivens, moriens tua mors erro, papa, isto é,
“Em vida eu era a tua peste, morrendo, serei a tua morte, ó Papa!” Inseriu-o numa carta em
1527; mais tarde, com um pedaço de giz, escreveu-o nas paredes do quarto onde, poucas
horas depois, o salteou de improviso a morte. — Depois de quatro séculos podemos dizer que
a esmagadora realidade histórica não abonou os títulos proféticos do vate saxônio. Não é meu
intuito humilhar aqui os protestantes. Quisera tão somente iluminá-los. Verdades que
amargam são muitas vezes verdades que salvam. Além dos prodígios físicos, que são
extrínsecos ao taumaturgo, há outro milagre de ordem moral, que, por assim dizer, se
consubstancia com a sua própria pessoa: é a santidade da vida. Um homem que pode atirar
aos seus adversários a luva, dizendo-lhes: Quis ex vobis arguet me de peccato?, “Quem de vós
me pode acusar de pecado?” (Jo 8, 46). Um homem, em cuja veracidade não pode caber a
mínima suspeita de impostura, merece lhe prestemos fé. Nesta grandeza moral, superior à
fragilidade humana temos uma fiança de que Deus está com ele. Salvas as proporções
necessárias, o que se diz de Cristo vale de um puro homem que se apresenta na história com
uma missão divina. Ora, deram os primeiros reformadores este espectáculo edificante de
santidade? Oh, se o protestantismo pudera passar uma esponja sobre as nódoas que
enxovalham as origens vergonhosas! Mas a história não se apaga e a verdade beneficia sempre
de suas lições indeléveis. Pouco a pouco, a despeito de dificuldades inauditas, rasgou-se o véu
que cobria ao mundo as torpezas e incoerências destas vidas vergonhosas e a posteridade
pregou os patriarcas do protestantismo no pelourinho da ignomínia e da execração pública.
Não é meu intuito humilhar aqui os protestantes. Quisera tão somente iluminá-los. Verdades
que amargam são muitas vezes verdades que salvam.Em 1519, dois anos depois de haver
iniciado publicamente a pregação da Reforma, defendendo-se dos adversários, ensina o culto
dos santos, a existência do purgatório, a oração pelos defuntos, a prática do jejum, etc [17].
Alguns anos depois rejeita tudo isto como idolatria, superstição e fanatismo. Em 1541, jura por
Cristo que, ao iniciar a sua pregação contra o dominicano Tetzel não sabia nem o que
significava a palavra indulgência! [18] E pensar que as indulgências foram o primeiro cavalo de
batalha contra Roma, o especioso pretexto com que o monge agostiniano saiu a público para
divulgar os seus erros e pregar a revolta! Quanto à origem e legitimidade de sua missão, em
pouco mais de 15 anos, Lutero mudou pelo menos 14 vezes de parecer [19]. O oportunismo
decidia da escolha.

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