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Psicanálise e Clinica Ampliada

Book · January 2014

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2 authors:

Monah Winograd Junia Vilhena


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA:

MULTIVERSOS
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2014 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Elaborado por Sônia Magalhães
Bibliotecária CRB9/1191

Editora e Livraria Appris Ltda.


Rua José Tomasi, 924 - Santa Felicidade
Curitiba/PR - CEP: 82015-630
Tel: (41) 3156-4731 | (41) 3030-4570
http://www.editoraappris.com.br/

Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Monah Winograd
Junia de Vilhena
Org.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA:

MULTIVERSOS

Curitiba - PR
2014
FICHA TÉCNICA

EDITORIAL

ADMINISTRATIVO Selma Maria Fernandes do Valle

COMERCIAL Eliane de Andrade

LIVRARIAS E EVENTOS

DIAGRAMAÇÃO

REVISORES

CAPA

COMITÊ EDITORIAL

Marli Caetano - Análise Editorial

COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO


PSI

DIREÇÃO CIENTÍFICA Junia de Vilhena

CONSULTORES Alexandre Theo de Almeida Cruz (UNAMA)

Ana Cleide Guedes Moreira (UFPA)

Edson Luiz Andre de Souza (UFRGS)

Henrique Figueiredo Carneiro (UFPE)

Maria Helena Zamora (PUC-Rio)

Nadja Pinheiro (UFPR)

Paulo Endo (USP)

Vera Lopes Besset (UFRJ)


INTERNACIONAIS
APRESENTAÇÃO

Este livro é o segundo de uma série derivada de encon-


tros entre pesquisadores integrantes do Grupo de Trabalho
Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada e Sofrimento Psí-
quico da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Psicologia (ANPEPP). Interessados em ampliar o objeto
da clínica psicanalítica e em pensar modos de intervenção
nas manifestações atuais do sofrimento psíquico derivadas
dos processos de subjetivação atualmente em curso, preten-
dem empreender uma revisão crítica dos pressupostos e dos
-
zir outros modos de saber e fazer no campo das práticas psi-
cológicas. Os textos aqui reunidos contribuem, de um lado,
para pensar as políticas e os serviços públicos de saúde men-
tal a partir da inserção da psicanálise nestes espaços e, de
outro lado, para aprofundar as possibilidades de ampliação
da própria clínica psicanalítica.
A ideia de uma clínica ampliada ganhou corpo no Bra-
sil pelas mãos de Gastão Wagner de Sousa Campos. Não por
acaso, Gastão Wagner dedicou a Franco Basaglia seu artigo
de 1997 que se tornaria paradigmático — A clínica do sujeito:
por uma clínica reformulada e ampliada. Médico e psiquia-
tra, Franco Basaglia (1924-1980) fundou o movimento da
Reforma Psiquiátrica na Itália, conhecido desde então como
Psiquiatria Democrática. Em 1961, ao assumir a direção do
Hospital Psiquiátrico de Gorizia, tentou transformá-lo em
comunidade terapêutica, começando por melhorar as con-
dições de hospedagem e o cuidado com os internos. Con-
tudo, ao constatar a miséria humana derivada das condições
gerais do hospital, entendeu que apenas a humanização
modelo de assistência psiquiátrica quanto na relação entre
sociedade e loucura pareceram-lhe urgentíssimas. Era pre-
ciso subverter a atitude tradicional da cultura médica e con-
siderar o indivíduo e seu corpo como mais do que apenas
objetos de intervenção clínica.
Ao mesmo tempo, pareceu-lhe fundamental reformu-
lar radicalmente a psiquiatria clássica e hospitalar, exclu-
dente e repressora por estar centrada no princípio do isola-
mento do louco (a internação como modelo de tratamento).
Após a leitura da obra célebre de Michel Foucault, História
da Loucura, Basaglia formulou sua ideia de “negação da psi-
-
tria, era preciso levar em conta a complexidade da loucura e
os limites da abordagem psiquiátrica. Assim, a partir de 1970,
ao ser nomeado diretor do Hospital Provincial de Trieste,
promoveu a substituição do tratamento hospitalar e mani-
comial por uma rede territorial de atendimento, composta
por serviços de atenção comunitários, emergências psiquiá-
tricas em Hospitais Gerais, cooperativas de trabalho prote-
gido, centros de convivência e moradias assistidas (“grupos-
-apartamento”). Em 1973, a OMS designou o Serviço Psi-
quiátrico de Trieste como principal referência mundial para
a reformulação da assistência em saúde mental e, em 1976,

sendo a assistência em saúde mental exercida totalmente


na rede territorial montada por Basaglia. Finalmente, em
1978, como consequência das ações e dos debates postos
em marcha, a Itália aprovou a chamada Lei 180 ou Lei da
Reforma Psiquiátrica Italiana, conhecida como Lei Basaglia,
a qual garantiu a implementação de diversos serviços e prá-
ticas tais como os Centros de Saúde Mental, as Cooperativas
de Trabalho, as Residências para egressos dos manicômios,
entre outras ações que visavam atender as necessidades de
um sujeito em liberdade.
Inspirado pelo projeto de Basaglia, Gastão Wagner
propôs que o sujeito fosse o conceito-chave de sua elabo-
ração da clínica ampliada
e suspendia as ditas patologias mentais, voltando a aten-
ção para a invenção da saúde e para a reprodução social do
paciente, Wagner entendia ser necessário fazer um clínica
do sujeito, isto é, uma clínica que não apenas colocasse a
doença entre parênteses, mas sobretudo que, após aten-
der às necessidades do doente, se preocupasse novamente
com o sofrimento concreto, real e existente, sem perder de
vista a ampliação necessária do objeto de intervenção. Para
esclarecer o que pretendia dizer com a expressão clínica
ampliada, Wagner desenhou uma tipologia da clínica nas
-

médico tradicional bem praticado e que se pretende porta-


dora de excelência, mesmo deixando em segundo plano os
aspectos sociais e subjetivos envolvidos. A Clínica Degra-
dada seria a que sofre determinação de contextos socioe-
-

potencialidade para resolver os problemas de saúde estaria


diminuída — o adjetivo “degradada” se referiria aos limites
externos impostos à potência da clínica. Finalmente, a Clí-
nica Ampliada ou Clínica do Sujeito seria capaz de inventar
novos dispositivos de ação e de intervenção para além das
atividades psicoterapêuticas stricto sensu -
rar-se-ia como uma clínica de atenção a sujeitos em sofri-
mento psíquico, atenta aos diversos componentes desse
sofrimento, com ações intersetoriais, mas, também com
ações junto a grupos, setores da coletividade, movimentos
sociais e instituições. Para tanto, seria preciso manter sem-

reconhecer os limites dos saberes relativamente às singu-


laridades das produções de subjetividade e, a partir daí,
deixar-se arrebatar pelas diferenças, produzindo projetos
terapêuticos igualmente diferentes e fazendo dos limites
dos saberes suas aberturas para mundos possíveis.
Falecida um ano depois da escrita do artigo de Gastão
Wagner e cinco anos antes de sua publicação na coletânea
de artigos Saúde paidéia (Editora Hucitec, 2003), Nise da Sil-
veira já praticava o que o conceito de clínica ampliada viria
sistematizar. O pioneirismo de Nise da Silveira e as mutações
no campo da saúde mental, de Ademir Pacelli Ferreira & Wal-
ter Melo, abre este livro com a lembrança de que, apesar
de ser considerada importante pesquisadora brasileira pelo
CNPq e de ter produzido mutações na psiquiatria brasileira
— com suas criações no Centro Psiquiátrico Pedro II e na
Casa das Palmeiras (primeiro dispositivo externo de acom-
panhamento terapêutico dos sujeitos psicóticos), além de
importantes pesquisas publicadas em livros e revistas — a
obra de Nise da Silveira é pouco referida nos cânones acadê-
micos. Para realçar a sua importância, os autores propõem
organizar sua obra em dois atos paradigmáticos que se con-

primeiro, após a recusa de aplicar a ECT, a retirada de camas


da enfermaria e a criação de espaço de atividades criativas e
expressivas, e o segundo, com a criação do espaço externo
ao hospício (Casa das Palmeiras) para casos de psicoses gra-
ves. Ressaltam, ainda, a importância do paradigma estético
em seu método terapêutico e em sua análise da clínica da
psicose e entendem que toda a riqueza de sua perspectiva
teórica e metodológica está para além da ideia de reforma e
-
ções exigidas para as superações no campo das mudanças
nas políticas e proposições assistenciais.
A seguir, no Para além da alimentação: um olhar psi-
canalítico sobre as políticas públicas de saúde na primeira
infância, Karla Patrícia Holanda Martins & Junia de Vilhena
se dedicam a discutir o lugar da criança nas políticas públi-
cas de saúde a partir de uma dupla perspectiva de interven-

as relativas ao diagnóstico em saúde mental na primeira

considerar que sobre ambas incide uma relação entre clí-

pela medicalização e pela psicopatologização da infância,


as características da atualidade e os efeitos de tais trans-
formações na vida cotidiana das crianças e de suas famílias.
Desse modo, propõe-se, numa outra direção, pensar as
-
culdades ante o percurso de inserção no campo da saúde.
Se, de um lado as políticas públicas são capazes de produzir
importantes efeitos na direção do reconhecimento social
e do direito, de outro, é necessário atentar para que essas
mesmas práticas não agenciem formas de apagamento do
sujeito em seus modos de pertencimento à cultura.
Já Lilian Miranda & Rosana Onocko Campos, no Contri-
buições da teoria winnicottiana para um posicionamento clí-
nico nos serviços públicos de saúde,
as demandas por cuidado dos pacientes que procuram os
serviços públicos de saúde e sobre certo posicionamento clí-
nico que deve sustentar as diferentes relações terapêuticas.
Embora pautado predominantemente pela teoria winnicot-

trabalham no campo da saúde coletiva, não se destinando

abordagens psicológicas. Para tanto, as autoras discutem as

apontando certos riscos inerentes às práticas prescritivas e


desconectadas da singularidade da demanda dos pacientes,
e ressaltando a necessidade de que estes recebam apoio
para experimentar o próprio adoecimento e participar do
projeto terapêutico que os envolve.
Por sua vez, o capítulo Políticas públicas sobre álcool e
outras drogas no Brasil: avanços, retrocessos e perspectivas,
de Rodrigo Sanches Peres & Waleska Rodrigues Silva, des-
creve de que forma, no Brasil, a questão do álcool e de outras
drogas passou de “caso de polícia” a competência da saúde
pública mediante a implementação de uma série de políticas
públicas, em um movimento que culminou com o advento
da “Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool
e Outras Drogas”, a qual se encontra atualmente em vigên-

como retrocessos. Além disso, procuram delinear sucinta-


mente algumas contribuições atuais da clínica ampliada
como ferramenta de articulação para o trabalho em saúde
no SUS para a efetivação das diretrizes estabelecidas por tal
política pública, assim como sua interface com certos con-
ceitos psicanalíticos, particularmente àqueles concernentes
ao campo transfero-contratransferencial.
No capítulo seguinte, Vinicius Anciães Darriba, em A
-
cia
a orientar progressivamente o campo da saúde associaram-
conjunção é examinada nos termos do que Lacan articula
em sua teoria dos discursos. Interroga ainda de que modo a
-

epistemológica a partir da qual a psicanálise poderia susten-


tar o diálogo com a ciência.
Claudia Amorim Garcia & Cecília Freire Martins, no
capítulo intitulado Sublimação e idealização: destinos da
sexualidade na construção da cultura, discutem os conceitos
de sublimação e idealização no texto freudiano, destacando
as características próprias a cada um deles, como também
aspectos comuns a ambos, e problematizando sua relação
com a cultura. Inicialmente, destacam que a sublimação
se fundamenta na dessexualização da pulsão e, portanto,
numa transformação do caráter sexual estrito que garante
sua função civilizatória. A seguir, sugerem que a idealização,
por sua vez, se apoia em uma inibição da meta pulsional que,
embora preserve o sexual stricto sensu, é responsável pela
manutenção de vínculos duradouros que contribuem para o
laço social. As autoras propõem, então, que também a idea-
lização — em especial, no cenário contemporâneo e, princi-
palmente, no que se relaciona à lógica do consumo e à arte
contemporânea — está envolvida na construção da cultura,
tarefa tradicionalmente atribuída à sublimação.
O capítulo seguinte, Entre o trauma e o traumático: a lesão
cerebral de Pedro e o presente permanente, de Monah Wino-
grad, Perla Klautau & Flávia Sollero-de-Campos, apresentam
um caso de adoecimento neurológico, atendido como parte
das atividades de pesquisa desenvolvida na PUC-Rio, para
fundamentar, apoiar e ilustrar a ideia de que, após um estado
inicial de congelamento e paralisação, certos acontecimentos
traumáticos impactam a organização psíquica de tal modo
que produzem diversos efeitos patológicos. Sem recursos
simbólicos capazes de engendrar um trabalho elaborativo, a
compulsão à repetição surge como atualização incessante do
trauma em um esforço de elaboração fracassado. Nesta lógica
de funcionamento psíquico, instaura-se a temporalidade do
presente permanente, tempo que não passa. Em casos como

da qual seja possível estabelecer uma via de elaboração para


o golpe traumático, permitindo uma historicização capaz de
inaugurar um outro passado e um futuro novo.
Já o capítulo Diálogos entre Freud e Winnicott acerca da
questão psique-somática: deslocamentos teórico e clínico, de
Nadja Nara Barbosa Pinheiro, apresenta os resultados par-
ciais de uma pesquisa acadêmica desenvolvida na UFPR,
cujo objetivo é estudar as relações entre soma e psique nas
obras de Freud e Winnicott, visando o alcance de uma ins-
trumentalização clínica mais adequada aos sofrimentos psí-
quicos que se expressam por meio da corporalidade. Na pre-
sente comunicação, tomando como ponto de apoio o texto
freudiano intitulado Inibições, Sintomas e Angústia, de 1926,
a autora discute a possibilidade de abertura de importantes
diálogos entre Freud e Winnicott e a produção de dois des-
locamentos acerca da questão psicossomática, quais sejam,
um teórico (do adoecimento à saúde) e um clínico (das cons-
truções para o holding).
Por sua vez, Paulo Ritter & Marta Rezende Cardoso, no O
“atual” nas patologias contemporâneas: uma leitura ampliada
das neuroses atuais, exploram alguns elementos que estariam
na base das patologias contemporâneas, particularmente
a questão da dimensão traumática, do excesso pulsional,
em correlação com a dos limites dos processos de ligação
e representação, marca do impacto traumático da pulsão.
Como resultado desse processo, há o incremento de respos-
tas defensivas elementares, com apelo ao registro do corpo
e ao do ato. A partir desta análise, os autores propõem uma
leitura ampliada da contribuição de Freud sobre as neuroses
atuais, redimensionando a ideia de atual, para pensá-las como
estreitamente referidas à dimensão de precariedade dos pro-
cessos de simbolização e ao campo do traumático. Nesta lei-

subjetivas que parecem dominar a clínica contemporânea.


Fechando este livro, o capítulo Luto e identidade em tem-
pos de incerteza no Oriente Médio: uma compreensão a partir
da clínica ampliada, de Maria Virginia Filomena Cremasco &
-
quisa mais amplo desenvolvido na UFPR e tem por objetivo

árabe atual a partir da perspectiva da clínica ampliada e em

referenciais até então dominantes. Pretendem, com isso,


oferecer alguns subsídios, sob o ponto de vista psíquico, para
o debate sobre as atuais manifestações no Brasil, iniciadas
com o Movimento do Passe Livre e que se estenderam pelos
estados brasileiros com uma série de reivindicações que não
se viam desde a década de 80. O ponto que une essas dife-
rentes sociedades é que em ambas os movimentos sociais,
sob diferentes perspectivas, visaram melhorias nas condi-
ções de vida que necessariamente implicam mudanças polí-
ticas e econômicas nesses países.

Rio de Janeiro, abril de 2014


Monah Winograd & Junia de Vilhena
SUMÁRIO

CAPÍTULO 1
O PIONEIRISMO DE NISE DA SILVEIRA E AS MUTAÇÕES
NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL ................................................................................ 17
Ademir Pacelli Ferreira & Walter Melo

CAPÍTULO 2
PARA ALÉM DA ALIMENTAÇÃO: UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NA PRIMEIRA INFÂNCIA ......... 37
Karla Patrícia Holanda Martins & Junia de Vilhena

CAPÍTULO 3
CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA WINNICOTTIANA PARA UM
POSICIONAMENTO CLÍNICO NOS SERVIÇOS
PÚBLICOS DE SAÚDE.......................................................................................................... 57
Lilian Miranda & Rosana Onocko Campos

CAPÍTULO 4
POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS NO
BRASIL: AVANÇOS, RETROCESSOS E PERSPECTIVAS ............................. 87
Rodrigo Sanches Peres & Waleska Rodrigues Silva

CAPÍTULO 5
A PSICANÁLISE E O CAMPO DA SAÚDE:
CIÊNCIA, CAPITALISMO E EFICÁCIA .....................................................................111
Vinicius Anciães Darriba

CAPÍTULO 6
SUBLIMAÇÃO E IDEALIZAÇÃO: DESTINOS DA SEXUALIDADE NA
CONSTRUÇÃO DA CULTURA.......................................................................................131
Claudia Amorim Garcia & Cecília Freire Martins
CAPÍTULO 7
ENTRE O TRAUMA E O TRAUMÁTICO: A LESÃO CEREBRAL DE
PEDRO E O PRESENTE PERMANENTE ................................................................157
Monah Winograd, Perla Klautau & Flávia Sollero-de-Campos

CAPÍTULO 8
DIÁLOGOS ENTRE FREUD E WINNICOTT ACERCA DA QUESTÃO
.........181

Nadja Nara Barbosa Pinheiro

CAPÍTULO 9
O “ATUAL” NAS PATOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS:
UMA LEITURA AMPLIADA DAS NEUROSES ATUAIS ...............................199
Paulo Ritter & Marta Rezende Cardoso

CAPÍTULO 10
LUTO E IDENTIDADE EM TEMPOS DE INCERTEZA NO ORIENTE
MÉDIO: UMA COMPREENSÃO A PARTIR DA
CLÍNICA AMPLIADA............................................................................................................225
Maria Virginia Filomena Cremasco & Mariana Duarte

NOTAS SOBRE OS AUTORES ..........................................................................253


CAPÍTULO 1

O PIONEIRISMO DE NISE DA SILVEIRA


E AS MUTAÇÕES NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL

Ademir Pacelli Ferreira & Walter Melo

Nise da Silveira (Nise) produziu verdadeiras mutações na


psiquiatria brasileira, através da criação da Seção de Terapêutica
Ocupacional e Reabilitação (STOR), com seu Grupo de Estudo
semanal sobre a clínica da psicose; do Museu de Imagens do
Inconsciente (MII) - um projeto vivo de exposição e pesquisa, no
Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), além da Casa das Palmeiras
(primeiro dispositivo externo de acompanhamento terapêutico
dos sujeitos psicóticos). Sua vasta experiência e concepções
teóricas foram publicadas em livros e revistas que nos fornecem
uma síntese das importantes pesquisas que empreendeu. Apesar
de Nise ser considerada, pelo CNPq, como uma das mais impor-
tantes pesquisadoras do Brasil, sua obra é pouco referida nos
cânones acadêmicos. Nas teses e dissertações sobre a chamada
Reforma Psiquiátrica (Reforma) e que abordam os atuais dispo-
sitivos terapêuticos externos – dos quais Nise é referência pri-
meira – a presença de sua obra é rara. No entanto, entendemos
que, para aprofundar e enriquecer as transformações da assis-
tência do chamado Campo da Saúde Mental no Brasil, o trabalho
de Nise é fundamental.
Para realçar a sua importância, propomos enfocar a sua
obra em dois atos paradigmáticos. O primeiro, após a recusa da
utilização de métodos agressivos ou invasivos; tais como o eletro-
choque, o coma insulínico e a lobotomia; retirou camas de uma
17
enfermaria e criou neste lugar o espaço de atividades criativas e
expressivas. O segundo, a criação do espaço externo ao hospício
(Casa das Palmeiras), para casos de psicoses graves. Entendemos
que seus atos se contrapõem tanto ao clinicismo (corrente psi-
quiátrica surgida na Alemanha do início do século XX, que pre-
conizava o tratamento no leito dos pacientes na chamada fase
aguda), quanto à segregação e as práticas asilares. Em todo o
percurso e práxis de Nise, pesquisa e clínica estiveram presentes
de forma indissociável. Ressaltamos, ainda, a importância do
paradigma estético em seu método terapêutico e em sua análise
da clínica da psicose. Seu pioneirismo na criação de espaços tera-
pêuticos livres, com ofertas criativas e respeito às produções dos
chamados psicóticos, é sempre lembrado nos atuais movimentos
de organização e luta contra os preconceitos e discriminações
sociais do louco. Mesmo no dia de seu enterro, onde a presença
de grupos de frequentadores (usuários) da saúde mental era sig-

com dizeres antiasilares e em defesa dos direitos à assistência


digna; no momento em que o caixão foi depositado, se manifes-
taram gritando vivas à Nise e abaixo o hospício.
Entendemos, e defendemos neste pré-texto, que toda a
riqueza de sua perspectiva teórica e metodológica está para além
da ideia de reforma e, em muito, pode contribuir para a prática,
-
ticas e proposições assistenciais em voga. Mesmo sabendo dos
limites de um artigo para analisar o legado da obra de Nise, pro-
curaremos pontuar alguns elementos por nós destacados, obje-
tivando despertar no leitor o interesse em visitar sua obra e des-
cobrir a riqueza de seu método terapêutico, por exemplo, as ins-
tigantes pesquisas clínicas em relação com a produção plástica
nas condições psicóticas, desde a emblemática pesquisa sobre
criatividade versus lobotomia, de grande repercussão interna-

18 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


cional (Silveira, 1981; Melo, 2005), às sistemáticas análises e pes-
quisa da produção dos hóspedes do CPPII/STOR/MII em relação
com seus processos psíquicos, suas vivências subjetivas e pro-
duções do inconsciente. O que se caracterizou como linha de pes-
quisa nomeada de arqueologia da psique, cuja perspectiva partiu
da clínica ou criação de recursos para o tratamento dos internos
(habitantes do CPCII) chamados de esquizofrênicos e adquiriu
uma dimensão profunda do ser humano ao defrontar-se com a
angústia e com a ameaça de esfacelamento de seu eu.

A Obra e o Nome de Nise

Apesar de possuir um nome sacralizado – e talvez por


isso –, é surpreendente que a obra de Nise não tenha galgado
status na academia em nosso país (Carvalho & Amparo, 2006).
Mesmo os seus livros esgotados não foram reeditados. Como
já assinalamos na introdução, seus textos ou livros raramente
aparecem nas citações de teses e dissertações, mesmo quando
estas abordam dados da história da psiquiatria e da chamada
Reforma, onde Basaglia e Laing sempre aparecem. Seguindo os
argumentos anteriores, reiteramos que a obra de Nise apresenta

contribuições para as mutações que vêm ocorrendo na psiquiatria


brasileira. Destes, pode-se destacar a relação que estabeleceu
com a criatividade e as artes, ao enfatizar o valor terapêutico das
atividades expressivas (Silveira, 1981; 1992); a interlocução com
diversos intelectuais e artistas, favorecendo para que as questões
psiquiátricas ultrapassassem os estreitos limites das instituições
asilares e fossem debatidos por toda sociedade – com pintores
concretos (Melo, 2011a), com Rubens Correa (Melo, 2010a), com
Leon Hirszman (Avellar, 2001; 2011; Melo, 2004; 2010b), dentre
outros; as pesquisas que empreendeu, questionando os pressu-
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 19
postos da psiquiatria (Melo, 2009a); e a criação de instituições
como a STOR, o MII, a Casa das Palmeiras e o Grupo de Estudos
C. G. Jung, que primaram pela conexão entre a prática clínica, a
pesquisa e o ensino.
Neste sentido, a obra de Nise ganhou grande relevância para

doente mental na sociedade. Lugar este de negatividade, de


-
ticos que se encontravam reduzidos aos rótulos de cronicidade
demencial, através do acompanhamento terapêutico e oferta
-
cados ressurgiram como seres capazes de produzir, de interagir
e de criar belíssimas obras de arte. Uma prática que contrapôs o
pessimismo da razão biologista. Ao elaborar uma compreensão
dos fenômenos psicóticos em sua relação com as produções do
inconsciente e suas vicissitudes na humanidade, sua obra enfatiza
a positividade destes fenômenos, entendendo-os para além da
-
frontou o universo da psiquiatria e ultrapassou os seus limites,

antropologia e a cultura nacional.


Alguns desses aspectos foram debatidos em setembro de
2010, durante o IV Encontro de Arte & Saúde Mental1, realizado
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que teve
como título e tema O Paradigma Estético na Clínica de Nise da Sil-
veira. Durante o Encontro, foram analisadas as interfaces da obra
de Nise da Silveira com diversos campos de conhecimento. Em
relação à Reforma, foi lembrado o seu pioneirismo, mas também

organizado pelo Espaço Artaud, em parceria com o Instituto de Psicologia da UERJ e com o Núcleo
de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Saúde (NEPIS) da UFSJ, e homenageou a equipe do Museu
de Imagens do Inconsciente.

20 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


ou seja, sua obra nos faz pensar para além da Reforma.
Já foi pontuado neste texto e em outros momentos, uma

reconhecimento de sua obra (Melo, 2004; 2005). Como já assina-


lamos, neste texto o pensamento e as ações de Nise da Silveira
não serão analisados a partir do entrelaçamento entre vida e obra,

Pontuaremos alguns dos atos de criação de sua obra construída


ao longo de várias décadas – obra sempre aberta a reavaliações
e que, aqui, será mantida em seu caráter de abertura e que se
-

A práxis psiquiátrica de Nise apresenta, desde os seus pri-


meiros atos, uma dimensão que chamamos de para além dos uni-
versos ou perspectivas históricas das práticas e concepções da

nos meados da década de quarenta, caracterizou-se como um ato


de rebeldia ao se contrapor à psiquiatria clássica. Através de suas
proposições terapêuticas criativas e de sua defesa intransigente
de respeito e liberdade dos internos, enfatizando sempre a sin-
gularidade de cada um e ao oferecer recursos para que pudessem
transformar seus sofrimentos e avassalamentos subjetivos em ati-
vidades produtivas, ela contrapôs a ótica dominante desta época.
Ela demonstrou a partir daí, que era possível os sujeitos psicóticos
construírem uma linha ou suporte de vida e estabelecerem laços
socioafetivos, compartilhando a vida em comum. Além das con-
cepções sobre a psicose que desenvolveu a partir da psicanálise,

antropologia, Nise trouxe uma transmutação nas concepções e


práticas da psiquiatria referendada nos paradigmas do hospício
e visões organicistas dominantes. Apesar de as práticas atuais

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 21


da clínica orientada por Nise e de se caracterizarem como um
campo criativo e não homogêneo e antiasilar, em termos dos
pressupostos políticos reformistas gerais, que enfatizam a reabi-
litação social com pouca ênfase na clínica e na singularidade dos
processos subjetivos, entendemos que as concepções e a clínica
das psicoses desenvolvidas por Nise, apontam para um mais além
da Reforma. Apontamos aqui o paradigma estético2 como sendo
para além. Esta interlocução
acompanhou todo o percurso de Nise, enriquecendo a sua clínica
com sensibilidade e beleza. Talvez essa relação com as artes tenha

focaremos os dois momentos fundantes de sua práxis, sua recusa


inicial de utilizar métodos agressivos, como o eletrochoque, o
coma insulínico e a lobotomia; e a criação, em 1956, da Casa das
Palmeiras para enfatizar o caráter de ruptura.

Transformadora

Se levarmos em conta publicações nos meios de comuni-


cação, exposições em importantes centros ou museus no Brasil e

Nise, podemos pensar que sua obra é bem conhecida. Mas observa-
-se que há um culto ao seu nome, mas pouco conhecimento e estudo
de sua obra nos cursos de psiquiatria, da psicologia ou na academia de
maneira geral. Portanto, venera-se um nome, mas eclipsa-se a obra.
Basta um levantamento das produções de pós-graduações atuais na
área de saúde mental, e raramente sua obra aparece nas histórias
2
De acordo com Félix Guattari (1991 [1989]), o paradigma estético se caracteriza pela abertura
e desdobramento da obra, diverso do movimento descrito por Thomas Kuhn (2007 [1962]) de
manutenção paradigmática, típico das ciências normais.

22 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


de proposições transformadoras em psiquiatria. Esse processo,
no entanto, não ocorreu por acaso, pois diversas características da
médica alagoana fazem com que sempre seja homenageada, tanto
no âmbito acadêmico quanto na cultura popular, sendo considerada,
entre os cinquenta maiores pesquisadores do Brasil (SBPC, 1998),
como uma das pioneiras da psicologia brasileira (Melo, 2001), lem-

maneira, são criadas formas variadas de reverenciar a memória, exal-


-
cação de uma personalidade carismática.

de seus atributos de santidade, de heroísmo e como exemplo para a


conduta dos outros. O carisma subentende uma qualidade incomum
para uma determinada pessoa que passa a ser saudada por um
grupo de seguidores. Os integrantes do círculo de adeptos passam
a disputar o lugar de maior proximidade, conquistando a posição de
divindade por associação. A manutenção do carisma pede uma orga-
nização das rotinas, a lembrança de acontecimentos marcantes, a

“Em sua forma genuína a dominação carismática é de caráter espe-


extraordinário e fora do cotidiano, representando uma
relação social rigorosamente pessoal, unida à realidade carismática
de qualidades pessoais e à sua corroboração” (Weber, 2004 [1944], p.
197 – grifo no original). O movimento de ampliação da personalidade

não façam parte dos cânones de qualquer religião.


Reverenciar o nome de Nise não implica, no entanto, no
estudo de sua obra. Nesse caso vemos ocorrer um processo inver-

Nise são estudados? Em qual serviço instituído pela Reforma suas


ideias são levadas adiante?

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 23


O mito Nise da Silveira pode ser muito produtivo para a
Reforma, pois o caráter libertário de suas ideias e a extrema
delicadeza de suas proposições a faz uma intelectual altamente
popular. Essa popularidade cria a ideia de que não devemos tratar

de produzir através de atividades de reconhecido valor social. A

ao campo da saúde mental, antes restrito a debates entre espe-


cialistas, para um público mais amplo. Assim, o debate com a
sociedade ganha um forte aliado em seu mito.

Reforma, pois está se criando um forte discurso de reverência de

modelo centrado no hospital psiquiátrico por dispositivos espa-


lhados pelo território de uma cidade, como os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS) e os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT).
Não podemos, entretanto, nos furtar de uma ampla discussão
acerca das ideias de Nise, não para criar cópias de seu modelo
de tratamento, mas simplesmente para lhe prestar uma devida

Nise estipulou parâmetros para estabelecer uma clínica. Ela


-
pêuticos; b) propor meios especiais de cuidados para as condições
subjetivas dos psicóticos; c) investigar o diagnóstico e as expe-
riências das pessoas em tratamento. Temos, assim, uma clínica
aliada ao estudo dos processos psicóticos. Nesse sentido, pro-

24 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


-
nais, recreativos, plásticos, dramáticos e culturais;

2. pesquisa – estudo da produção criativa e artística dos frequenta-

conteúdos inconscientes;

3. ensino – orientações e supervisões clínicas, cursos de atualiza-


ções, organização do Centro de Estudos do MII e do Grupo de
Estudos C. G. Jung, além de sua produção escrita.

No âmbito da clínica, ela entendeu a ruptura psicótica como


um impacto violento que abala o psiquismo, deixando o sujeito em
frangalhos (Silveira, 1981). Nesse sentido, a internação nos hospícios
apresenta-se como um fator que agrava a fragmentação do sujeito
e de sua identidade. Sendo assim, Nise criou uma clínica para os

uma clínica da esquizofrenia, ou melhor, das pessoas fragmentadas


pelo estilhaçamento da psique e do eu, como ela mesma diria.
Para abordar as vivências que alteram a lógica do pensa-
mento, desmembram ou metamorfoseiam os corpos, expandem

temporais, e interpenetram o mundo externo e o mundo interno


(Silveira, 1981; 1992; 2006 [1979]), Nise se valeu do pensamento
de Artaud, para quem o ser tem estados inumeráveis e cada vez
mais perigosos. Dessa maneira, Nise contrapõe, ao poder nor-
mativo e disciplinar apresentado pelas instituições psiquiátricas,
o argumento dos inumeráveis estados do ser como forma de cada
um se apresentar ao mundo (Silveira, 1989).
No entanto, esse tipo de abordagem não pode ocorrer em
qualquer ambiente. Faz-se necessária a criação de condições que
favoreçam a capacidade expressiva e relacional de cada sujeito.
-
lecer o modelo clínico pautado no afeto, na livre expressão e na

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 25


recusar a utilização de métodos agressivos (Silveira, 1992); b) ao
criar a Casa das Palmeiras (Silveira, 1986).

como o eletrochoque, o coma insulínico e a lobotomia, contra os


quais empreendeu intensos embates (Melo, 2009a). Ao se opor
a essas práticas, ela tomou outro caminho, criando uma pro-
posta clínica inovadora (Ferreira, 2010; Mello, 2009b). Através
da criação da STOR, do MII e da Casa das Palmeiras, fundou uma
práxis clínica original e produziu mutações (Silveira, 1992) na psi-
quiatria brasileira.
Em 1946, ao recusar a aplicação do eletrochoque, Nise se
posicionou de maneira diametralmente oposta em relação à psi-
quiatria tradicional. A resposta de enfática negativa também se
deu em relação ao coma insulínico. O posicionamento de recusa
aos métodos agressivos abriu espaço para que pudesse oferecer
recursos ativos, criativos e interativos aos internos do centro psi-
quiátrico, estabelecendo um ato fundador e paradigmático de
sua ruptura com o sistema psiquiátrico da época. As atividades
expressivas serviam, assim, como modo de comunicação para
os que se encontravam com o pensamento dissociado, como
método terapêutico, como diálogo com o campo das artes, como
vasto campo de pesquisa e como princípio ético e político. Neste

tradicional, Nise empreendeu um dos mais vigorosos discursos


contra a prática da lobotomia (Silveira, 1955; 1992). A psiquiatria
compreensiva de Nise se posiciona contra os métodos agressivos,
contra o espaço fechado, possibilitando a criatividade e a acolhida
empática, em ambientes com janelas e portas abertas. Em sua
trajetória de mais de cinquenta anos ela continuou a enfrentar o
medicalismo e o biologicismo da psiquiatria. A recusa em utilizar
os instrumentos terapêuticos da época exigiu que ela lançasse

26 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mão de outras possibilidades, adotando a terapêutica ocupa-

O asilo era um não-lugar, um espaço desvitalizado no qual


o tempo se estagnava, transformando seus habitantes
em não-sujeitos perambulando por um limbo existencial.

emoções, de relações afetivas, de expressão subjetiva, um


lugar de convívio e exploração da singularidade (Bezerra
Jr., 2011, p. 14).

Desde o início ela privilegiou recursos terapêuticos que

eram trabalhados os aspectos afetivos, espaciais e temporais,


por um viés diverso da abordagem da psiquiatria clássica. Seu
enfoque compreensivo privilegiou o acompanhamento diário em
cada setor de atividades, assim como no estudo sistemático das
imagens produzidas, ou seja, o estudo do “discurso em imagens”
(Silveira, 2006 [1979], p. 141). Dessa maneira, a abordagem de
supressão dos sintomas é substituída pelo acompanhamento das
tentativas de cura empreendidas pelo próprio sujeito, através
da expressão das forças autocurativas da psique (Silveira, 1981;
1992; 2006 [1979]).
Em 1952, foi iniciado mais um capítulo da psiquiatria bio-
lógica, através do advento dos psicotrópicos. Nesse mesmo ano,
Nise funda o Museu de Imagens do Inconsciente, a partir da exu-
berante produção da STOR. Trata-se, portanto, de um museu vivo,
acoplado aos ateliês onde, até hoje, são realizados diversos tra-
balhos criativos. A STOR/MII tornou-se um centro pluridisciplinar,
cujo acervo possibilita o estudo dos processos psíquicos, acom-
panhados em sua singularidade através da análise das obras em

Diante do aprofundamento dos estudos sobre os processos


psicóticos e com a revelação da riqueza das produções de sujeitos
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 27
antes considerados deteriorados, embrutecidos e dementes, ela
não se deixou iludir pelo entusiasmo reinante com o advento dos

ela observava e acompanhava os profundos e múltiplos processos


que eram vivenciados pelos sujeitos na psicose.
Portanto, o esvaziamento destas vivências e experiências
pelos psicotrópicos não poderia ser considerado, por ela, uma
cura. Nise observou que, pela sedação e consequente inibição
psíquica, resultante da ação dos neurolépticos, os sintomas eram
apagados e os indivíduos devolvidos à sociedade, geralmente
entorpecidos, apáticos, sem a mínima elaboração e integração de
seus conteúdos psíquicos e sem o apoio de laços socioafetivos.
Era este o estado em que saíam da internação. Logo, se a inter-
nação era mais curta, também o era o intervalo que antecedia a
reinternação. Desde o início de seu trabalho, Nise se preocupou
com as altas taxas de reinternações (Silveira, 1986). A partir
dessas observações, começou a imaginar um espaço que pudesse
funcionar como uma ponte entre o hospital e a vida na sociedade.
Nise (1992; 2006 [1979]) partiu da observação de que o
ambiente hospitalar impede que se criem as condições necessárias

afetivos e expressivos, o ambiente propício ao tratamento deveria se


pautar na liberdade. Nesse sentido, o tratamento teria como meta a
reinserção do sujeito à sociedade. A reinserção do egresso não se faz,
-
provam a falência do sistema psiquiátrico. Essas observações fun-
damentais levaram-na, em 1956, a inventar um espaço terapêutico
3
(Silveira, 1986; 1992).
3
A ressonância das ideias de Nise entre a maioria de seus colegas era mínima e ela recebeu diversas
críticas pelo fato de propor a terapêutica ocupacional como legítimo método de tratamento. Dessa
forma, Nise não poderia esperar a compreensão sobre a importância da criação de um espaço não

e com o apoio da educadora Alzira Lopes Cortes, a ideia foi levada adiante e, no dia 23 de dezembro

28 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Assim, era inaugurada uma prática de tratamento plu-
ridimensional (Melo, 2012) que iluminou e ilustrou durante
muitos anos outra perspectiva de abordar e de oferecer recursos
para os sujeitos ditos psicóticos lidarem com suas vivências e
inquietantes experiências. Trata-se de uma modalidade assis-
tencial que se contrapõe radicalmente à prática dos hospícios
e ao sistema de clausura, proposta que se apresenta na própria
escolha do nome, Casa das Palmeiras, demonstrando os efeitos

loucura como coisa médica, possibilitando a superação da dico-


tomia entre clínica e reabilitação.
A criação de condições propícias ao tratamento nos espaços
por ela criados encontra-se estreitamente vinculada às pesquisas
desenvolvidas no STOR/MII. O setor de encadernação, por exemplo,
foi extremamente importante para comprovar a manutenção
da inteligência e do pragmatismo, mesmo após diversos anos de
internação; e, principalmente, o estudo das imagens produzidas
nos ateliês de pintura e de modelagem foi importante para que

do inconsciente. O estudo sistemático da produção advinda dos


setores de atividades expressivas foi levado adiante no MII, com-
provando a importância da afetividade no tratamento, e na Casa

aliados no processo de reinserção social (Melo, 2009a).


Diversos aspectos constituem um conjunto de elementos
interligados e trabalhados quotidianamente em orientações e
supervisões clínicas, servindo de base para a organização de cursos

familiares, os elementos sociais, os diversos modos de integração


nas atividades, as formas de estruturação dos pensamentos, as
vivências emocionais, as produções imaginárias, os relaciona-

também os conteúdos plasmados nas atividades expressivas.


PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 29
O caráter indissociável entre teoria e prática pode ser per-
cebido desde o início do trabalho desenvolvido por Nise. Inicial-
mente, ela abordou a produção plástica dos frequentadores dos
ateliês pelo ponto de vista freudiano e, posteriormente, pela
teoria junguiana (Silveira, 1968; Melo, 2007). Essa mudança de

de Estudos C. G. Jung e, em 1968, do Grupo de Estudos do MII,


espaços de estudo, formação e transmissão de conhecimento.
Como já dissemos anteriormente, a abordagem de Nise se
contrapõe aos pressupostos da psiquiatria clássica e, desde o seu
ato fundador, rompe com a lógica manicomial. Nesse sentido,
há uma convergência entre a abordagem de Nise e a proposta
da Reforma. No entanto, não podemos encerrar suas propostas
como reformistas.
Desde a década de 1970, várias iniciativas e experiências alter-
-
posta por Nise. No entanto, o projeto nacional da Reforma, gestado

de fechamentos dos hospícios. O sistema de custeio público da


assistência encontrava-se em crise, já que o grande incentivo à con-
tratação de leitos e a promoção da internação em grande escala em
clínicas particulares trouxeram aos cofres públicos um montante
de gastos exorbitante, tornando insustentável a sua manutenção.
Dessa forma, a ideia da diminuição das internações surgiu como
possível solução para o Ministério da Saúde. Havia o movimento

denunciavam o arbítrio e as péssimas condições da assistência psi-


quiátrica. Os movimentos organizados dos trabalhadores da saúde,
além de denúncias, formularam propostas de transformação que
foram assimiladas pelo Ministério.
O modelo italiano trazia um viés centrado na referência psi-
cossocial que rompeu com o asilo e produziu efeitos ao questionar

30 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


as práticas de exclusão (Barros, Nicácio & Amarante, 1997). Por esta
-
mônico do arcabouço discursivo do modelo atual da Reforma. Trata-
-se de um projeto de Estado, nascido do movimento pela transfor-
mação da assistência em psiquiatria e instituído pelo Ministério da
Saúde, sendo aprovado no parlamento. Mas há um movimento
embalado pelo desejo daqueles que se opuseram ao status quo da
psiquiatria tradicional e que iniciaram as práticas transformadoras há
muito tempo. Para estes, a ideia de reforma aponta para perspec-
tivas mais avançadas em termos de conceituação e de práticas assis-
tenciais. Como diz Amarante (apud
seria, poder transformar as relações que a sociedade, os
sujeitos e as instituições estabeleceram com a loucura,
com o louco e com a doença mental, conduzindo tais rela-
ções no sentido da superação do estigma, da segregação,

estabelecer com a loucura uma relação de coexistência,


de troca, de solidariedade, de positividade e de cuidados.

Apesar de pouco referida nos discursos universitários e na


produção técnico-política da Reforma, a clínica de Nise é o que,
historicamente, temos como paradigma para os dispositivos
terapêuticos propostos para a transformação institucional da
psiquiatria brasileira, ou seja, trata-se de uma referência para as
práticas transformadoras em saúde mental. É bom lembrar que
no curto governo de Jânio Quadros, e a pedido deste, Nise apre-
sentou, em 1961, um projeto de transformação dos hospícios bra-
sileiros, onde estava previsto setores para oferta de atividades
terapêuticas para todos os pacientes – projeto este engavetado
com a renúncia do presidente (Silveira, 1979).
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 31
A obra de Nise é composta pela articulação entre a elabo-
ração de uma proposta clínica ou de tratamento para os psicó-
ticos, do desenvolvimento de importantes pesquisas e da orga-
nização de espaços de ensino. Seus textos e sua prática estão
imbuídos pelo sensível e pela criatividade, caracterizando uma
práxis estruturada pelo paradigma estético (Melo & Ferreira,
2011; Melo, 2011b). Além disso, se opôs de maneira ferrenha ao
sistema opressivo do hospício e, em seu ato fundador e em sua
vida de criações consideradas pioneiras, a rebeldia e a recusa de
aceitar o estabelecido estão presentes.
A partir do aprofundamento da relação terapêutica, através
da escuta de determinadas vivências e da produção plástica, Nise
buscou nos estudos psicanalíticos e artísticos, referências teó-

da psicose (Melo & Ferreira, 2011). Ela construiu uma clínica res-
paldada no acompanhamento diário dos internos, nos recursos
terapêuticos ativos e criativos, nas análises intensivas das expe-
riências dos sujeitos; de seus fenômenos e processos psíquicos,
de suas vivências psicóticas e de estilhaçamento do eu, de suas

externo, a Casa das Palmeiras, onde os sujeitos com diagnósticos


de esquizofrenia e das experiências de internações psiquiátricas
puderam criar, estabelecer laços socioafetivos, viver em suas
casas e famílias. O que pode ser caracterizado como possibilidade
de sustentar uma vida em comum e como cidadãos.
As várias discussões surgidas a partir da consciência
de que o asilo psiquiátrico era violento e que a loucura não
poderia ser aí confinada e reduzida ao esquecimento, foram
ganhando espaço e passaram a circular junto com as lutas polí-
ticas contra as injustiças e a opressão em nosso país. Temos,
aí, um ideal político que vai muito além de programas tera-
pêuticos. Quando participamos dos encontros, manifestações,

32 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


comemorações em espaços públicos, com artistas, com vários
grupos de frequentadores da chamada saúde mental, com fami-
liares e com lideranças políticas; quando a TV produz novelas e
reportagens, discutindo a questão da loucura e das várias pos-
sibilidades de lidar com a chamada doença mental, concluímos
que há, aí, os efeitos desta reflexividade (Giddens, 1991) pro-
duzida no bojo da Reforma. E, com frequência, o nome de Nise
é citado, nos discursos, nos poemas, nas expressões plásticas e
nas canções libertárias.
Portanto, entendemos que é de grande valor tomar suas
proposições metodológicas e as elaborações teóricas que
desenvolveu para sustentar a sua práxis, como referência para

-
cípios clássicos da instituição psiquiátrica, ou seja, nunca foi refor-
mista. Ao contrário, rompeu de maneira radical com o modelo
disciplinar, com as propostas biologicistas e com as práticas de
exclusão social. A teoria e a prática de Nise estão, assim, além de
qualquer proposta reformista.

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PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 35


CAPÍTULO 2

PARA ALÉM DA ALIMENTAÇÃO: UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE


AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NA PRIMEIRA INFÂNCIA

Karla Patrícia Holanda Martins & Junia de Vilhena

O presente ensaio tem por objetivo discutir o lugar da criança


nas políticas públicas de saúde a partir de uma dupla perspectiva de

as relativas ao diagnóstico em saúde mental na primeira infância. A

ambas incide uma relação entre clínica e política que coloca em


-
gização da infância, as características da atualidade e os efeitos de
tais transformações na vida cotidiana das crianças e de suas famílias.

A abordagem inicial do tema proposto pode ser feita a partir

as relações históricas entre a família e o controle do Estado às


estratégias de cuidados com a infância em situação de pobreza, em
particular com o lugar conferido às mães, tomadas historicamente
como as mais importantes aliadas no projeto de saúde infantil.
Seguiremos aqui a segunda perspectiva, enfatizando a ênfase dada
ao papel da família nas políticas públicas brasileiras na atualidade,
na perspectiva de uma clínica ampliada (Campos, 2000).

37
Diz-se que, historicamente, medicina e família são antigas
e solidárias companheiras. Mas pensemos às expensas de que
se dá este “companheirismo”. A leitura do trabalho de Freire
(2006) acercar dos discursos médicos sobre a maternidade,
representado nas revistas dos anos 1920, nos mostra como foi
sendo construído o que hoje denominamos de “maternidade

supervisionado por médicos.


Quem lida com uma criança é como quem equilibra um
mimo leve e frágil que, à menor distração, pode cair e
quebrar-se. A estatística, cada vez maior, da mortalidade
infantil apavora como a de uma guerra sangrenta, e tal
calamidade é, principalmente, devida à falta de higiene,
ou seja – de conhecimentos indispensáveis à criação do
infante e tanto ela se manifesta em palácio como em
cabanas – em uns, por excesso, em outros por míngua,
-
nito, que é a morte (Vida Doméstica, n. 118, jan. 1928,
citado por Freire, 2006, p. 123).

Ainda que a ideologia da maternidade como função pri-


mordial das mulheres não tenha sido inventada no século XX, o
maternalismo associou-se, naquela década, à valorização social
da ciência, a qual lhe conferiu novo caráter, fundamentado na
convergência identitária entre saúde, educação e nação.
Os esforços da elite intelectual concentravam-se, sobre-
tudo, em tentativas de eliminação de qualquer resquício
de um passado de “atraso” e tradição e de incorporação
do “novo” como passaporte para a ordem e o progresso.
[...] O debate que se travava desde o século XIX na socie-
dade brasileira sobre o papel da mulher assumiu lugar
central na cena pública, notadamente quanto à função
maternal, adquirindo contornos diferenciados na virada
do século. Ainda que intrinsecamente vinculado à natu-

38 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


reza feminina, ao associar-se ao projeto modernizador
nacionalista, o exercício da maternidade ultrapassava os
limites da esfera doméstica e adquiria um novo caráter, de
missão patriótica e função pública. Tratava-se não mais

(Freire, 2006, p. 57).

A medicina do século XVIII, nas suas práticas normativo-


-pedagógicas, já havia chamado a atenção para o papel importante
da família no cumprimento dos ideais da racionalidade iluminista.
Os temas da educação e da proteção das crianças passavam por
uma responsabilização da família de seus respectivos papéis na
guarda e educação dos pequenos. Os manuais de orientação dos

Rousseau, com o seu Èmille, denuncia a ultrapassagem dos limites


do ato médico e das práticas de especialistas na educação das
crianças, encorajando as mães, por exemplo, à amamentação de

novamente, o seu lugar diante do poder do médico.

E para começar, situaremos as estratégias de saúde da


família no Sistema Único de Saúde (SUS) como um importante
“braço” na efetivação de um campo onde se cruzam os novos
(nem sempre tão novos assim) projetos de intervenção biopolítica
na família contemporânea.
A formalização inicial de um Programa de Saúde da
Família (PSF) dentro de uma Política Nacional de Atenção
Básica no Brasil data de 1994 (ano escolhido pela ONU como
o Ano Internacional da Família) e estabelece como um de seus
objetivos “eleger a família e seu espaço social como núcleo
básico de abordagem no atendimento à saúde” (Ministério da
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 39
Saúde, 1998). Em respeito às diretrizes estabelecidas pelo SUS,
em especial aquelas relativas aos eixos da integralidade e trans-
versalidade, o então PSF representava um importante desloca-
mento em direção a uma prática territorializada, onde o sujeito
era pensado (e interpelado) em solidária relação com suas redes
sociais, sendo a família a primeira delas.
As mudanças ocorridas na sociedade brasileira (e mundial)
ao longo da segunda metade do século XX haviam igualmente
-
buídos nos processos de subjetivação. O lugar da família na
estruturação do espaço social e político parecia de certa forma
correr riscos. O ano emblemático de 1994 recoloca em cena a
centralidade do coletivo-família, inclusive nas políticas e prá-
ticas de intervenção no campo reterritorializado da saúde,
inclusive da saúde mental.
-
centralização administrativa dos serviços de saúde, orientadas
pelas necessidades locais de cada município e região do país.
O pressuposto que fundamenta essa nova direção é o de que,
diante da diversidade cultural brasileira, diferentes modelos de
organização social e familiar precisavam ser considerados. Outro
aspecto importante diz respeito ao lugar conferido aos movi-

inclusão e democratização das decisões a partir da consolidação


de alguns desses movimentos sociais nas favelas e nos bairros
periféricos das metrópoles em franco crescimento.

Agentes Comunitários de Saúde (PACS) a partir do pressuposto


de que os agentes de saúde, mais próximos da comunidade,
poderiam auxiliar as estratégias de saúde das equipes, acompa-
nhando mais de perto os projetos terapêuticos de cada paciente e

40 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


antecipando-se nas possíveis demandas relativas à saúde em seus
respectivos territórios.
Em 2006, com a Portaria n.º 648 GM/2006, o Programa de
Saúde da Família ganha novo fôlego com a revisão de diretrizes

um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual


e coletivo, que abrangem a promoção e a proteção da
saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o trata-
mento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É desen-
volvida por meio do exercício de práticas gerenciais e
sanitárias democráticas e participativas, sob forma de
trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios
bem delimitados, pelas quais assume a responsabilidade
sanitária, considerando a dinâmica existente no território
em que vivem essas populações. É o contato preferen-
cial dos usuários com os sistemas de saúde. Orienta-se
pelos princípios da universalidade, da acessibilidade e da
coordenação do cuidado, do vínculo e continuidade, da
integralidade, da responsabilização, da humanização, da
equidade e da participação social (Brasil, 2006).

Ao deixar de ser um programa, assume o caráter de uma


estratégia de intervenção no coletivo-família. Assim, a família
passa a ser cuidada no ambiente onde vive, e seus processos de
saúde e doença passam a ser entendidos de forma mais ampliada.
A equipe mínima é formada por um enfermeiro, um assistente de
enfermagem, um médico de família e seis agentes comunitários,
todos atuando em atenção básica. Enfatizando, a mudança da
nomenclatura corresponde, em parte, ao deslocamento de um

fatores biopsíquicos, sociais e culturais nos processos de saúde e


doença, ou seja, na concepção de uma clínica ampliada não só em
extensão de suas ações, mas, e principalmente, numa ampliação
da compreensão dos determinantes de tais processos. Como con-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 41


sequências, surgem a proposição de um exercício pleno da cida-
dania e a criação de mecanismos de “empoderamento”, trazendo
uma nova moral de responsabilização do sujeito na sua gerência
de riscos relativos à manutenção de sua saúde.
Mas o que diferencia e o que aproxima a estratégia do SUS
de outras abordagens sanitárias brasileiras? Qual o lugar con-
ferido às crianças?
Costa (1984) destaca, ao retomar os poderes e os efeitos
da ordem médica sobre as famílias, o quanto a consolidação da

atribuição de ignorância ao indivíduo comum e seu grupo familiar.


O saber do especialista reduz (por vezes substitui) o saber da tra-
dição, das transmissões culturais. E, nesse sentido, encontramos
não apenas no contexto da pobreza uma nova colonização das
ações sanitárias e normativas, mas sim em diferentes contextos e
em diversas dimensões da vida contemporânea. Em recente tra-
balho, Vilhena, Bittencourt, Novaes e Zamora (prelo) (2013) discu-
tiram, a propósito da demanda excessiva por atividades de crianças
e agora de bebês, os efeitos dessa medicalização/expertização do

1) O quanto as relações familiares estão sendo substituídas e ter-


-
rentes áreas, tais como médicos, psicólogos, fonoaudiólogos,
recreadores e professores.

2) A psicologização e a medicalização das diferentes fases da vida


estão nos levando à crença de que todas as etapas da vida devem
ser submetidas a estimulações, treinamentos, prescrições e
regras para o bem viver.

3) A angústia gerada por essa maratona da saúde (física ou psíquica)


gera no sujeito (no caso, as mães, mas podem ser outros familiares)
a constante sensação de não estarem desempenhando adequa-

42 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


damente seus papéis nem proporcionando tudo aquilo que seus

atenção e a preocupação com o bem-estar físico e emocional do


bebê e da criança de tenra idade transformaram o “cuidado” em
uma fonte de angústia, frustração e, diríamos nós, de invasão ao

Buscamos, então, mostrar como a crescente colonização da


esfera familiar pelas chamadas expertises transforma a parentalidade
em uma tarefa basicamente da ordem da ação, da falta e da dívida.
Resumidamente, o “cuidado” transformou-se em “cuidado!!!”.
Mas retornemos às políticas do Sistema Único de Saúde e

anteriores. A proposta do SUS seria a de agregar valor ao saber


das comunidades, respeitando a diversidade e a vocação de
um empreendimento de saúde coletiva, onde se abrigariam os
saberes das ciências humanas e sociais nas práticas com o corpo
e os processos de saúde e doença; a saúde coletiva seria diferen-
ciada, assim, da saúde pública, posto que seu objeto de cuidados
não é mais o indivíduo, mas o coletivo, inclusos a dimensão do
sujeito, seus processos singulares e culturais de subjetivação
(Birman, 2005). Outra diferença deveria responder à crítica fou-
caultiana relativa às estratégias de controle do Estado sobre a
saúde e o biopoder. Em outras palavras, com os paradigmas da
saúde coletiva promover-se-ia um deslocamento, na direção já
apontada por outros autores, da política das famílias (Donzelot,
1980) à política com as famílias.
Todavia, o que tem acontecido na prática? Quais os

que modo a infância em sofrimento tem sido incluída na pauta


das agendas políticas?
Segundo a proposta do Ministério, cada equipe de saúde
deveria ser responsável em média por 600 a 1.000 famílias. No
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 43
-
-nascidos (RN) (estes devem ser visitados todos os dias até com-
pletarem um mês de vida), crianças de até 12 meses, gestantes,
hipertensos, diabéticos, pessoas com hanseníase, tuberculose e/
ou que estejam impossibilitadas de se movimentarem. Como se
pode perceber, numa leitura das prioridades elencadas, o RN é
prioridade máxima. Daí derivam-se intervenções no campo da
saúde materno-infantil, sendo a amamentação, ainda, o carro-
-chefe do trabalho desenvolvido. O que se coloca como proble-
mático nesse campo?
A primeira limitação diz respeito à compreensão do
fenômeno alimentar ainda muito restrito à nutrição, a exemplo
das propostas surgidas no bojo do Sistema de Vigilância Alimentar
(Sisvan), implementado em 1990 como parte do programa da
Política Nacional de Alimentação de Nutrição (Pnan). O Sisvan
teria de, entre outras funções, acompanhar as crianças menores
de 5 anos mais suscetíveis aos agravos nutricionais. Reconhece-se
a importância das estratégias surgidas no que se refere à redução
da mortalidade infantil, e dados do Ministério da Saúde indicam
uma tendência em queda desta desde 1990, onde a mortalidade
passou de 47,1% para 19,3%, uma redução efetiva de 59,7%. O
problema da obesidade infantil e seus riscos vêm sendo ampla-
mente divulgados. Já em 2008, os ministérios da Educação e da
Saúde lançaram em parceria o Programa Saúde na Escola, estru-

O primeiro consiste na avaliação das condições de saúde,


envolvendo estado nutricionais, incidência precoce de
hipertensão e diabetes, saúde bucal (controle de cárie),
acuidade visual e auditiva e, ainda, avaliação psicológica
do estudante. O segundo trata da promoção da saúde e
da prevenção, que trabalhará as dimensões da construção
de uma cultura de paz e combate às diferentes expressões

44 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


de violência, consumo de álcool, tabaco e outras drogas.
Também neste bloco há uma abordagem à educação
sexual e reprodutiva, além de estímulo à atividade física
e práticas corporais.

Todavia, o que as propostas não contemplam é uma discussão


crítica sobre as dimensões do inconsciente e do desejo implicadas
nessas situações. No que diz respeito ao programa de amamen-
tação, por exemplo, a psicanálise nos lembra de que o essencial
não é o objeto, seio ou mamadeira, mas a erotização da função oral
no plano do desejo. É pela relação com o desejo da mãe, ordenado
pelo simbólico, que a amamentação no seio ou na mamadeira terá
seu papel estruturante na constituição psíquica (Martins, 2011).
Desse modo, não podemos prefixar um sentido para
o gesto de amamentar, pois estaríamos correndo o risco de
obstaculizar algo fundamental para o desenvolvimento emo-
cional da criança ou ainda de ver o imperativo deste mandato
como fonte de grande sofrimento psíquico para as mães que
conseguem (ou escolhem não) fazê-lo. Atualmente, o papel do
agente de saúde na visita do primeiro mês é, primordialmente,
o de observar se a mãe está cumprindo a regra número um.
Qualquer indício de desobediência, o sinal vermelho é ligado,
os médicos são avisados. E na situação de pobreza das famílias
brasileiras poderia ser diferente?
Como nos lembra Jurandir Freire, o ideal higienista partia
do pressuposto de que os erros dos pais, da mãe em especial,
eram fruto da sua ignorância. Como ler situações em que as mães,
mesmo sabendo da importância de determinadas condutas,
agem como se não soubessem, ou agem conforme o seu desejo
outro. Impasses e escolhas são confundidos com negligência
materna. Colocando-se o campo da alimentação sobreposto ao

julgamento. Um neo-higienismo?

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 45


A naturalização da maternidade em função de seus atri-
butos biológicos não nos é desconhecida, assim como a vincu-
lação entre mulher e fertilidade. Mas vejamos um pouco de suas
representações, já que dissemos acima que havia um projeto

Quando dizemos que o grande, o glorioso destino das


mulheres é serem as educadoras e as dirigentes morais
da sociedade, por intermédio do coração das crianças, e
damos à sua missão na família o mais belo lugar, não que-
remos impor a todas as mulheres o mesmo destino [...] O
dizermos que a mulher deve exercer dentro da sociedade
a sua mais bela função moral como educadora e dirigente,
mantendo nas suas mãos o coração das crianças para lhes
dar toda a porção de idealismo, de imaginação, de liga-
ção às qualidades ancestrais da raça, enraizamento ao
solo sagrado da Pátria, de fé ardente no futuro, de modo
a preparar as gerações de amanhã para um destino melhor,
elevando o nível moral e intelectual da sociedade, não quer

sejam sempre as mães! Às vezes, por felicidade extraordi-


nária, juntam essas duas missões santíssimas, de mães no
sentido sentimental e material da palavra e educadoras no
sentido de diligência intelectual e moral (Revista Feminina,
n. 139, dez. 1925, citado por Freire, 2006, p. 119).

As mulheres são priorizadas nas políticas quando gestantes.


E as demais esferas da vida social e afetiva dessa mulher? A quem
caberá ouvi-la?
Em consulta à página do Ministério da Saúde, pode ser per-
cebido, a partir da Política Nacional de Alimentação e Nutrição,
o quanto suas ações estão pautadas na naturalização de uma
dieta dita saudável, no que devemos comer e como devemos,
ressaltando o papel que a família (em particular da mãe e agora
também da escola) pode ter na adoção de uma dieta saudável.
O termo alimentação vai pouco a pouco sendo substituído pela

46 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


palavra dieta, carregada de sentidos morais. Entre os gregos,
a dietética era um convite à regulação dos excessos, onde se
incluía também a dimensão da sexualidade. Costa (1984, p. 143)
denunciara ainda a expropriação do direito dos pais de educarem

dirigidos a si próprios, sob a orientação dos tecnoburocratas da


sociedade do bem-estar”.
Trabalhos de intervenção com crianças e suas mães em pro-
gramas de desnutrição e obesidade (Figueiredo, 2011; Azeredo,
2010) testemunham que aspectos relativos à dinâmica familiar
devem ser considerados como coadjuvantes no estabelecimento
de possíveis etiologias tanto dos quadros de desnutrição quanto
da obesidade infantil.
A alimentação infantil foi objeto preferencial dos artigos
sobre puericultura, que ressaltavam a diferença entre as práticas

Na acertada alimentação da infância está a chave do futuro


da nação. As mães devem dar a esta questão toda a cuida-
dosa atenção que merece, e sempre, em caso de qualquer
dúvida [...] seja o médico consultado (Revista Feminina, n.
186, nov. 1929, citado por Freire, 2006, p. 133).

Historicamente relacionada à carência alimentar (Castro,


1959), a desnutrição pode inclusive ser pensada como sintoma

indagar sobre o lugar da função paterna nas políticas de saúde


materno-infantil.
O alimento, para além de seu valor nutricional, é um
mediador das relações da criança com seus cuidadores primários,
estando, portanto, relacionado ao campo emocional do indi-
víduo, isto é, aos sentimentos de identidade do eu, ao desamparo

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 47


e às angústias primordiais. Delimita-se aqui um campo sempre
resistente à ordenação lógica da consciência e da moral, de uma
lógica exclusiva da vigilância e da educação. É importante que se
entenda que as práticas educativas não podem ser dissociadas do
avanço de determinadas políticas de assistência social.
Desse modo, os ditos avanços da clínica ampliada na
atenção básica dependem igualmente de estudos que nos ajudem
a entender, entre outros aspectos, os modos de constituição das
famílias em situação de pobreza e as formas pelas quais elas se
caracterizam. Essa importância acentua-se na medida em que
muitos discursos e práticas no campo da saúde (e da assistência
social) não levam em conta essas particularidades e suas cons-
truções históricas. É necessário igualmente superar os marca-
-

relações interfamiliares, levando em consideração aspectos das


relações sociais e culturais.

Ao longo dos últimos anos, a clínica com a infância na


atenção básica tem recebido, em maior número, crianças bem
pequenas com sinais de sofrimento psíquico agudo, em sua
maioria acompanhadas de uma prescrição para uma avaliação
diagnóstica, o que talvez já aponte uma mudança no quadro des-
crito em 2003, quando 62,3% dos atendimentos nos Centros de
Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) eram de crianças com
média de idade em torno dos 11,1 anos. Naquela ocasião, avaliou-

rede de saúde mental já adiantadas em sua constituição psíquica.

48 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Qual(is) o(s) modo(s) como a psicanálise pode formular respostas
a essas demandas e promover uma práxis que agencie o funcio-
namento psíquico da criança, deslocando-a de um lugar tão pre-

A apreciação das demandas de atendimento e avaliação


na atenção básica e as propostas de atendimento dirigidas às
crianças com graves impasses em seu desenvolvimento são

dispositivos clínicos tradicionais e a formulação de uma proposta


de avaliação precoce.
Desse modo, propõe-se, numa outra direção, pensar as con-
tribuições da psicanálise à clínica ampliada
ante o percurso de inserção no campo da saúde. Tendo, portanto,

medicina e outros agentes envolvidos com a infância, articulando


a noção de desenvolvimento e constituição psíquica.
Dados do Ministério da Saúde divulgados em 2005
estimam que entre 10% e 20% das crianças e dos adolescentes
são diagnosticados com transtornos mentais (Monteiro; Ribeiro;
Bastos, 2007), e 3% a 4% dessa população precisaria de trata-
mento intensivo. Ainda segundo o Ministério, o plano de política
pública voltado para essa área não tem conseguido atender toda
a demanda, o que vem resultando em precário atendimento.
Tomemos o caso do Ceará como exemplo, mas a sua condição
repete-se em outros estados brasileiros. Com uma população
de 8.185.286 habitantes (dados do censo de 2010), apenas seis
CAPSis estão em funcionamento em todo o Estado; desses,
apenas dois na cidade de Fortaleza, o último deles criado em
2007. Na situação particular do Estado, a rede de atenção pri-

também não oferece atendimento psicoterápico. No cenário


nacional, a descentralização dos equipamentos não representou
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 49
uma responsabilização do setor público pelo atendimento das
crianças graves; ao contrário, o que assistimos é uma negação
da dimensão psicopatológica em privilégio da dimensão da
inserção social a qualquer custo (Tenório, 2006).
Alguns de seus modelos de atendimento repetem uma
trajetória histórica em que as intervenções no campo da saúde
acompanham a tendência normativa. Portanto, coloca-se uma
ressalva ao trabalho de avaliação na infância e aos ditos indica-
-
dores, não se deve precipitar na generalização ou em produções
de diagnósticos em séries.
Em primeiro lugar, considera-se necessário distinguir os
riscos para o desenvolvimento psíquico, de forma a indagarmos
qual o valor preditivo de uma pesquisa avaliativa (Jeruzalinsky,

dimensão intersubjetiva é fundamental a todos os aspectos do


desenvolvimento. A subjetividade de uma criança será delineada
a partir das relações que estabelece na sua rede social e suas dis-
posições naturais e afetivas.
Como lembra Bernardino (2006, p. 33), o surgimento de um
sujeito psíquico depende necessariamente do encontro de dois

As condições orgânicas potenciais do bebê para relacionar-


-se com o ambiente devem se encontrar com esta estrutura de
-

início concretas e de satisfação de necessidades, que rapida-


mente (pela repetição) ganham uma inserção psíquica e podem
ser antecipadas – criando um funcionamento psíquico particular,

Nas mais diversas perspectivas teóricas há um acordo


quanto aos comprometimentos no laço social em jogo, como, por
50 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
exemplo, nos autismos, expressão do reconhecimento da multifa-
torialidade em causa. Assim, na perspectiva do diagnóstico com-
partilhado, o enfrentamento dessa questão nos conduz à ideia de
desespecialização (Stevens, citado por Elia; Costa; Pinto, 2005, p.
129), abrindo um diálogo da psicanálise, como dito anteriormente,
com os campos da psiquiatria, neurologia, pediatria e educação.
Segue-se aqui a ética dos trabalhos norteados pela aposta
e suposição de um sujeito. Dutra e Bernardino propõem pensar a

Esse é o norte da clínica com bebês ou crianças bem

de transtornos psíquicos. [...] Seu [da criança] lugar é, portanto,

do fantasma da criança (2008, p. 152-153).


Portanto, entende-se que esse princípio pode ser capaz de
instaurar dispositivos que ampliem as possibilidades de com-
preensão do sofrimento da criança e de sua família, estabele-
cendo, principalmente, condições no campo da atenção primária
para uma intervenção a tempo de agenciar novas modalidades
de subjetivação.
A construção de uma rede intersetorial e inclusiva depende em
muito das relações, por exemplo, entre as escolas e a atenção básica,

precoce pode reverter ou mesmo evitar o agravamento. Outra par-


ceria importante se faz com os programas de saúde da família, onde

problemas que não detêm instrumentos de intervenção fazem com


que se mantenha longe das questões relativas ao sofrimento psí-

-
cantes que estruturam o lugar ocupado pela criança em seu território

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 51


Segundo o sociólogo Frank Furedi, da Universidade de Kent,
cada vez mais observamos a responsabilização dos pais pelo baixo
rendimento escolar, baixa autoestima, uso de drogas, obesidade,
delinquência e problemas mentais. Em um livro interessantíssimo,
intitulado Paranoid parenting: why ignoring the experts may be best
for your child,
Pública inglês David Rogers, o paradigma da interferência e da cul-

demais podem ser tão culpados de negligência como aqueles que

com excesso de peso devem estar sujeitas às medidas de proteção.


Para o autor, não é sem razão que programas como “Super
Nanny” fazem tanto sucesso. Contudo, ainda seguindo seu racio-
cínio, é preciso estar atento para esse excessivo monitoramento
das funções parentais (termo nosso), inclusive pelas autoridades

A rotulagem constante de parentalidade como uma espé-

as inúmeras iniciativas úteis projetadas para oferecer


suporte aos pais de nada adiantam para nos tranquilizar –
elas simplesmente incentivam o público a se tornar ainda
mais paranóico sobre parentalidade. [...] A politização da

insegurança e ansiedade sobre praticamente todos os


aspectos da vida das crianças e suas experiências (2008,
p. 93, tradução nossa).

Formas cotidianas de interação social são retratadas, com


maior incidência, como sendo difíceis e complicadas. Frequen-
temente, ouvimos falar sobre as competências parentais, habi-
lidades sociais, habilidades de comunicação e habilidades de
relacionamento... A ideia de que encontros cotidianos requerem
habilidades especiais criou uma oportunidade para o “especia-
lista” colonizar o reino das relações pessoais.
52 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
Na cultura contemporânea, a parentalidade exorta os pais a

todas as áreas da vida social de hoje, especialistas defendem a


importância de se procurar ajuda. Uma das principais caracte-
rísticas dos tempos modernos tem sido o declínio da crença na
habilidade de fazer as coisas (que podemos chamar de tradição),
incentivando a percepção de que os indivíduos não são capazes
de gerir os aspectos importantes de suas vidas sem orientação

sua autoridade assenta-se em pressupostos ultrapassados acerca


do que é necessário para educar. Portanto, estar atento aos con-
selhos – e, mais importante, seguir o roteiro de autoria de espe-
cialistas – é visto como prova de “paternidade responsável”.

Se de um lado as políticas públicas são capazes de produzir


importantes efeitos na direção do reconhecimento social e de
direito de cada cidadão, de outro, é necessário estarmos atentos
para que essas mesmas práticas não agenciem formas de apa-
gamento do sujeito em seus modos de pertencimento à cultura.
Como aponta Santos (2012), no campo das relações afetivas que
se estabelecem nesse contexto, surge um consenso de que ao

doença do corpo. As crianças, tanto quanto os adolescentes, con-


vocam presença, interação afetiva e laço social. Para a autora,
o apego seguro pressupõe a emergência de atos e palavras pre-
sentes na continuidade dos cuidados cotidianos. A esta obser-
vação acrescentaríamos a necessidade de ouvirmos as famílias
em suas histórias, seus modos e suas maneiras de viver.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 53


E no caso particular do exercício da função paterna, a
dimensão simbólica do pai não poderá ser suplantada por ações

colaborarmos para instauração de laços sociais que ignorem


a dimensão alteritária e modulem novas formas de violência.
Ou seja, é necessário fazer uma suposição de saber na família,
acreditando-a capaz de construir suas redes de solidariedade e
de transmissão simbólica. Ao discutir a relação saúde e doença

-
tamos que é somente por meio de outra forma de comunicação,
que respeite e ouça os movimentos familiares, que a saúde que
habita a doença permitirá à criança ser protagonista e agen-

sua própria história. É preciso, portanto, questionar a associação


supostamente necessária entre infância, dependência e proteção,
muitas vezes responsável pelo silêncio do sujeito-criança em sua
condição desejante. Relembremos, aqui, os versos de Manoel

aprende com as crianças”.

Barros, M. Exercícios de ser criança. (1999).


Bernardino, L. M. F. A abordagem psicanalítica do desenvolvimento infantil e suas
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54 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


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Costa, J. F. (1984). A ordem médica e a norma familiar


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Donzelot, J. (1980). A polícia das famílias
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PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 55


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Revista Feminina. São Paulo/Rio de Janeiro. Virgilina de Souza Sales. Dez. 1920 – dez.
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56 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


CAPÍTULO 3

CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA WINNICOTTIANA PARA UM


POSICIONAMENTO CLÍNICO NOS SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE

Lilian Miranda & Rosana Onocko Campos

A temática do sofrimento psíquico é cada vez mais


recorrente nos variados espaços sociais. Travestida por uma
linguagem médica e normativa, ocupa lugar privilegiado na
mídia, empenhada em nomear transtornos, objetivar seus sin-
tomas e indicar caminhos terapêuticos geralmente centrados
na medicação e em técnicas de controle comportamental.
Nesse contexto, apela-se para que toda dor que dificulta o
alto desempenho produtivo seja rapidamente identificada e
extirpada. Inerente ao existir humano, o sofrimento e o mal-
-estar são, hoje, prioritariamente, traduzidos pela linguagem
médica e manejados pelos profissionais de saúde.
Esse cenário induz à medicalização e normatização da
vida, exigindo-nos grande cuidado com o papel a ser desem-
penhado pelos serviços públicos de saúde, já que a população
é levada a procurá-los para resolver todos os seus males. Pes-
quisas demonstram que as unidades de atenção básica à saúde
recebem crescente número de pessoas solicitando tratamento
para o que costumam nomear de “depressão”, “alcoolismo”,
“pânico” ou “nervoso”, de tal modo que a maior parte das
Equipes de Saúde da Família acaba desenvolvendo alguma
ação de saúde mental, ainda que não conte com especia-
lista dessa área (Brasil, 2003; Nunes, Jucá e Valentim, 2007).
Devendo abranger todo o território nacional e garantir o
57
acesso da população, tais equipes têm grande influência sobre
os recursos simbólicos e técnicos que serão utilizados para a
significação e o manejo de tudo aquilo que atrapalha o senti-
mento de fluir da vida.
Diante de tamanho poder concentrado nos serviços
públicos de saúde, parece-nos bastante relevante oferecer a
esses espaços elementos de uma discussão clínica, que coloque
em questão algumas especificidades envolvidas nas demandas
psicossociais. Embora saibamos que os profissionais estão
fazendo algum tipo de clínica quotidianamente, esse cenário
nos exige lembrar de que a estruturação do Sistema Único
de Saúde brasileiro – SUS – se deu, centralmente, com base
na preocupação com o macrossistema e a universalidade da
oferta. Fruto de um amplo movimento social e político – Movi-
mento da Reforma Sanitária –, o SUS fora idealizado por inte-
lectuais e trabalhadores imbuídos do desejo de construir um
sistema de saúde democrático, com ofertas universais e equâ-
nimes, estruturadas a partir da noção de integralidade dos cui-
dados em saúde. Sua proposição, enquanto projeto de Estado,
inspirou-se, em grande parte, no modelo da medicina social
latino-americana, que possui forte influência da teoria sócio-
-histórica (Luz, 2000).
-
nização de trabalho e produção subjetiva de trabalhadores e
usuários foram sendo possíveis ao longo da década de 80, com
a apropriação de outras categorias teóricas, como representação
social, cotidiano e sujeito. Porém, a Saúde Coletiva ainda concebe
um sujeito, predominantemente, determinado por aspectos
macrossociais, o que negligencia suas demais dimensões cons-
titutivas, como a psíquica (Onocko Campos, Massuda, Valles,
Castaño e Pellegrini, 2008). Sem desconsiderar seu mérito,
notamos que mesmo alguns projetos que discutem aspectos

58 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


intersubjetivos das relações de cuidado e trabalho em saúde,
como aqueles desenvolvidos a partir da Política Nacional de
Humanização, ainda reservam pouco espaço para certos aspectos
que são essencialmente humanos, como a ambivalência e a osci-
lação entre alteridade e narcisismos (Sá, 2009).
Nesse cenário, observa-se que a escassez de discussões
acerca da dimensão psíquica ou psicológica do sujeito leva,
muitas vezes, os profissionais de saúde a desconhecerem as
formas singulares com que os pacientes e as comunidades se
organizam para enfrentar a enormidade de condições adversas
que envolvem seu dia a dia (Onocko Campos et al., 2008).
Assim, certos modos de resistência afetiva à miserabilidade e
defesas psíquicas ao sofrimento não são reconhecidas, ou são
preconceituosamente interpretados como desorganização ou
falta de responsabilidade consigo e com a família. Consequen-
temente, os sujeitos tornam-se objetos de intervenções de
educação e controle. São tidos como vítimas, desprovidas de
potência e saber sobre si e a vida.
Uma das consequências dessa forma de conceber a saúde
e os sujeitos é a organização de práticas para os pacientes, sem

propostas, ainda que representem uma ampliação de oferta e


acesso aos serviços. Nesse cenário, é comum acompanharmos,
por exemplo, a implantação de programas de reeducação ali-
mentar nas unidades básicas de saúde, mas, concomitantemente,
percebermos que a população continua se alimentando mal e
contribuindo para o aumento da taxa de obesidade e hipertensão
brasileira. Observamos também o contínuo aumento da quan-
tidade de antidepressivos e ansiolíticos prescritos (Santos, 2009),

de crescer, recheadas de mulheres que não encontram sentido na


vida e de crianças inebriadamente ativas.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 59


Esses são apenas exemplos, imagens típicas, de um cenário
complexo, cujos problemas, além de numerosos, possuem

enfrentamento dessas questões, apresentaremos neste trabalho


algumas contribuições da psicanálise winnicottiana, conside-

coletiva. Focaremos a análise nas dimensões subjetiva e intersub-


jetiva da clínica, esperando contribuir com a elaboração de prá-
ticas de saúde mais permeáveis às singularidades dos atores que

Nosso objetivo não é discutir nenhuma prática clínica

cuidado dos pacientes, de um modo geral, e sobre certo posi-


cionamento clínico que deve sustentar as diferentes relações
terapêuticas. Portanto, embora pautado principalmente pela

-
dicionais abordagens psicológicas. Sem a pretensão de indicar
formas de trabalhar, esperamos apontar elementos que ajudem
na compreensão das necessidades que mobilizam os pacientes
e dos riscos inerentes às tentativas de submetê-los a regras de
bem viver, das quais não se sentem coautores.
Os campos da psicanálise e da saúde coletiva não se
encontram naturalmente associados, uma vez que se cons-
truíram a partir de matizes teóricas e problemas clínicos distintos.
Supomos que um pode enriquecer o outro, na medida em que
o primeiro nos lembra da existência do sujeito no indivíduo que
está no mundo, enquanto que o segundo nos indica as determi-
nações sociais, políticas e ideológicas que envolvem esse mesmo
mundo (Furtado e Onocko Campos, 2005). Entretanto, admitimos
que não é sem esforço que se traçam as aproximações entre tais

60 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


campos, pois a clínica da saúde coletiva se faz no território dos
pacientes, a partir de dispositivos predominantemente coletivos
(Onocko Campos e Gama, 2008), muito diversos do setting ana-
lítico tradicional, baseado em consultas individuais.
Assim, não pretendemos sobrepor psicanálise e saúde
coletiva, negligenciando suas diferenças e contradições, mas
construir um diálogo que suporte a alteridade de tradições teó-
rico-clínicas distintas. Para tanto, apresentamos alguns conceitos
da psicanálise winnicottiana e apontamos certos dilemas da

O diálogo entre psicanálise e saúde coletiva deve iniciar-se pela


consideração que a primeira faz acerca da importância do social na

Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos

muitos sentidos e construiu seu ideal do ego segundo os


modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha
de numerosas mentes grupais — as de sua raça, classe,
credo, nacionalidade etc. (Freud, 1921/1996 ed, p. 139)

Essa partilha, embora estrutural, recompõe-se durante


a vida, impedindo-nos de pensar no homem a partir de uma
essência ou de um modelo normativo. Tal como lembra Bezerra
Jr. (1996), uma vez “descentrada”, habitada pelo inconsciente,
a subjetividade humana constantemente cria cultura e é por ela
recriada, de tal modo que pode reconhecer a si mesma de formas
diferentes ao longo da história.
Para Donald Winnicott essa capacidade humana de
criação tem suas raízes nos estágios iniciais da vida, quando
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 61
não é possível descrever um bebê, sem considerar o seu
ambiente, representado pela mãe ou cuidadora principal
(Winnicott, 1970/1994). Esta, quando possui condições sub-
jetivas de cuidar do filho, organiza-se como uma “mãe sufi-
cientemente boa”, ou “mãe devotada comum”, passando por
um processo momentâneo de regressão e identificação com
o bebê, de modo a desenvolver uma comunicação profunda
e pré-verbal com ele, podendo perceber suas necessidades
vitais e conseguindo satisfazê-las a contento (Winnicott,
1970/1994). O autor denomina esse estado da mãe de “preocu-
pação materna primária”, explicando que durante as primeiras
semanas de vida do bebê, a mãe se encontra adaptada a ele e
parcialmente dissociada do restante do mundo, de modo que
pode lhe garantir a experiência de “simplesmente continuar a
ser”, sem que precise reagir a intrusões do ambiente ou lutar
pela satisfação de suas próprias necessidades fisiológicas.
Vale ressaltar que na perspectiva winnicottiana, a adap-

e também sem fazer em excesso” (Santos, 2010, p. 113). Trata-


-se, portanto, de uma mãe comum cuja devoção não deve ser
entendida como
um apego fervoroso a um objeto de veneração especial
[...] [ou] uma dedicação zelosa e escrupulosa tal como
se pressupõe em certas atitudes sentimentalistas. Por
comum deve-se pensar em uma mãe (ou alguém que
cuida do bebê) que se caracteriza pela simplicidade coti-
diana, não precisando ser excepcional para realizar as
tarefas de maternagem. (Santos, 2010, p.112)

É certo que, nesse período, não há, do ponto de vista do bebê,


uma relação social, pois ele e mãe formam o que Loparic (1997)

62 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


caracteriza como um “dois em um”. Entretanto, na perspectiva do
observador externo à dupla, constata-se a importância que a teoria
winnicottiana atribui ao suporte que o ambiente oferece ao bebê,
um suporte que, sob essa ótica, podemos supor que seja social.
Winnicott (1956/1978) defende que, contando com a adap-

onipotência”. Esta, diferentemente da onipotência como defesa,


lhe permite achar que a realidade é uma criação sua. Aos poucos
-
cando nela os aspectos que constituem o “não-eu” e, mais tarde,
o outro. Mas, se pôde contar com esse processo de adaptação
-
vendo uma relação pessoal com o mundo, de modo que se sente
um pouco criador dele.

Nessa perspectiva, a teoria winnicottiana propõe que


a ideia de saúde está relacionada, necessariamente, à capa-
cidade de o sujeito sentir a vida como algo a ser criado e não
como um cenário que exige constante submissão. Ainda que o
reconhecimento do outro e a interdição à onipotência sejam
parte essencial do desenvolvimento emocional de cada indi-
víduo, sua saúde está relacionada à possibilidade de experi-
mentar a própria existência como algo real e singular. Assim,
saúde se aproxima mais da sensação de que a “vida é digna de
ser vivida” (Winnicott, 1971/1975, p. 95), do que da submissão
a regras de bem viver.
Essa noção de saúde pode se aproximar da discussão acerca
do Normal e o Patológico, desenvolvida por George Canguilhem.
Para o autor, saúde diz respeito à “margem de tolerância” que o

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 63


-
trição nessa margem, entendida como diminuição da capacidade
de produzir normas de vida, provoca-lhe sofrimento, “sentimento
de vida contrariada”, sendo este o estado correspondente à pato-
logia (Canguilhem, 1966/1978, p.158). Note-se que, necessaria-
mente, o reconhecimento da saúde ou da doença envolve um jul-
gamento de valor, o qual, na segunda, é negativo.

objetivos e precisos que diferenciam o normal do patológico,

valoração, pautados na relação do indivíduo com o meio. Assim,

O doente deve sempre ser julgado em relação com a


situação à qual ele reage e com os instrumentos de ação
que o meio próprio lhe oferece. [...] Não há distúrbio pato-
lógico em si, o anormal só pode ser apreciado numa rela-
ção. (Canguilhem, 1966/1978, p. 150)

Na relação com o meio, o sujeito saudável é aquele que


possui recursos necessários para responder às suas exigências
e surpresas, assim como para provocar-lhe transformações. A

indivíduo, de tal modo que ela é entendida como uma “maneira


de abordar a existência com a sensação não apenas de possuidor
ou portador, mas também, se necessário, de criador de valor, de
instaurador de normas vitais.” (Canguilhem, 1966/1978, p.163).
Nesse sentido, Coelho e Almeida Filho (1999) destacam que,
para Canguilhem, saúde implica poder desobedecer, produzir ou
acompanhar uma transformação, adoecer e sair do estado pato-
lógico. Assim, doente é aquele que possui restrição na sua capa-
cidade de produzir novas normas, normas estas que não estão a
serviço da adaptação do sujeito à vida, mas da própria recriação
das condições vividas.
64 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
Vale destacar que Canguilhem (1966/1978) concebe a pato-
logia como uma nova norma de vida, mas uma norma conser-
vadora, que repete a si mesma e não admite novas exigências. Por-
tanto, ela não é entendida como o negativo da saúde, ou como o
hipo/hiperfuncionamento desta, mas como um estado que guarda

da sua produção normativa. Sendo assim, Coelho e Almeida Filho


(1999) destacam que a terapêutica não se dirige à reconstituição do
estado anterior ao adoecimento, mas à instituição de capacidade
normativa diferente da anterior e mais abrangente.
-
cidade normativa com aquilo que Winnicott (1971/1975) entende
por criatividade. Segundo o autor, a criatividade diz respeito a
“um colorido de toda a atitude com relação à realidade” e não à
concretização de criações bem sucedidas ou obras de arte. Para
ele, “é através da apercepção criativa, mais do qualquer outra
coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (Win-
nicott, 1971/1975, p. 95).
Ao apresentar tais ideias, esperamos problematizar prá-
ticas de saúde focadas em doenças ou agravos, desconectados
dos indivíduos que os sofrem e da relação destes com seu meio
social. É comum observarmos serviços que desenvolvem cami-
nhadas para “hipertensos” e “diabéticos”, grupos de “obesidade”
ou “palestras sobre gravidez e gestação” para adolescentes. Com

desenvolver bons hábitos e a organizar melhor a vida, mas têm


poucos recursos teóricos e técnicos para se perguntar sobre
quem são os adolescentes ou obesos e que sentido constroem
para aquilo que lhes é oferecido. A obesidade ou a depressão
são vinculadas como um “mal em si”, não sendo relacionadas
à sociedade em que se produzem e o sujeito que as expressa.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 65


Sob imperativo de ser saudável e, portanto, feliz e produtivo,
-
longado com suas dores e a tentativa de reconhecer nestas os
sinais da terapêutica mais conveniente.
As discussões sobre capacidade normativa e criatividade
podem ajudar esses profissionais a lembrar que a função pri-
meira dos serviços de saúde é acompanhar sujeitos na sua
produção de saúde. Para tanto é preciso considerar que o indi-
víduo doente deve poder se apropriar tanto do seu projeto
terapêutico, quanto de seu próprio adoecimento. A doença
não é um mal a ser erradicado pelo profissional, mas algo a
ser apropriado pelo paciente e transformado em novas e dife-
rentes possibilidades normativas. É preciso que o paciente
também seja criador, autor, do processo de reconhecimento
e tratamento da doença. Isso exige profissionais capazes de
suportar a construção de sentido que ele faz sobre a expe-
riência de adoecer, assim como sobre as informações e estra-
tégias de cuidado que lhe são disponibilizadas. A informação
e a terapêutica são um direito do paciente, mas não podem
ser impostas de modo excessivamente intenso, obstruindo seu
contato com o sofrimento.
Com isso, propomos que as diferentes estratégias tera-
pêuticas sejam moduladas a partir da expectativa da oferta de

sentimentalista, traduzido em listas de bons comportamentos


a serem imitados de ou hipermedicação a ser admitida, nem,
tampouco, descaso e distanciamento afetivo. Assim como o
leite, a medicação ou a informação sobre os sistemas orgâ-
nicos e as propriedades alimentares devem ser dadas, mas
sempre na medida da necessidade do paciente e no ritmo em
que ele pode absorvê-las. Esse tipo de trabalho envolve intensa
delicadeza nos contatos interpessoais e sua dificuldade de

66 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


implementação não deve ser negada. Entretanto, sucumbir ao
desafio apenas contribui para que as pessoas continuem pro-
curando os serviços em busca de remédios e orientações sobre
“bem viver”, ao mesmo tempo em que fazem uso indevido (ou
pessoal) das pílulas que lhes são dadas, queixando-se de que,
novamente, não conseguiram manter a dieta prescrita pela
nutricionista e a caminhada exigida pela cardiologista. As filas
de espera por atendimento se retroalimentam e, imersos em
suas prescrições, os profissionais se queixam da falta de “ade-
rência” dos pacientes ao tratamento.

A teoria winnicottiana pode nos ajudar a operacionalizar

lança luzes sobre a organização de um ambiente favorável à con-


quista do si mesmo e, consequentemente, à (re)conquista do que,
através de Canguilhem (1966/1978), chamamos de capacidade
normativa. Winnicott (1960/2005) aponta que a psicanálise é,

é a relação interpessoal, em todos os seus riscos e complicados


matizes humanos”. (Winnicott, 1960/2005, p. 108). O autor

têm a aprender com a psicanálise, pois, centralmente, o que seus

[sua]
atitude geral”. (Winnicott, 1960/2005, p. 106).

seja, a capacidade para “se colocar no lugar do outro e permitir

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 67


o inverso” (Winnicott, 1960/2005, p. 111). Através dessa vivência,

pessoal para os seus complexos problemas. Assim, o terapeuta


terá apenas facilitado o crescimento, tal como naturalmente os
pais, quando em situações saudáveis, fazem com seus bebês. Em

desejada “cura” seja remetido a sua raiz etimológica, que traz a


noção de “cuidado”. Mediante essa acepção do termo, ele sugere

vivenciamos para nos desenvolver no sentido humano.


-
cimento da criança, vale ainda destacar a leitura que Salem
(2007) faz da teoria winnicottiana. Segundo este autor, depois
-

segurança, na tentativa de provar que prescinde dela e medir


a força de sua independência. Ao fazê-lo, reproduz nos seus
atos aquela segurança, adquirida no seu processo de desen-
volvimento. Nesse momento, em que testa o ambiente, ela
passa a contar com “aquela parte do mundo que sobrevive aos
seus impulsos [agressivos e amorosos] como não-eu.” (Salem,
2007, p. 177).
necessária, já que a criança está dependendo da integridade do
ambiente que deverá fazer frente aos seus ataques e sobreviver,

-
tência que este impõe á sua agressividade, indicando-lhe
os limites de sua onipotência e permitindo uma delimita-
ção mútua, tanto dos objetos quanto do próprio ego do

68 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mundo que lhe é fundamentalmente indistinta [...], mas
naquela parte do mundo que sobrevive aos seus impulsos
persistindo como não-eu, que se lhe impõe como alte-
ridade reenviando-lhe continuamente à percepção do
esforço envolvido na constituição de seus próprios con-
tornos [...] (ibidem, p. 177)

Sem desconsiderar a importância dos protocolos e da


tecnologia em saúde, essas reflexões nos levam a enfatizar a
necessidade de que os serviços se preocupem com a estrutu-
ração de ambientes confiáveis e humanos, capazes de acolher
seus pacientes com todas as contradições, queixas indefinidas,
formas próprias de conceber a vida e produzir normas sobre
ela. É preciso suportar a criança expulsa da escola e o alcoo-
lista que volta a fazer usos de álcool frequentemente, reconhe-
cendo neles mais do que transtornos depressivos ou déficits de
atenção e hiperatividade.
Com isso, não estamos sugerindo que os serviços de saúde,
em suas diferentes modalidades de cuidado, incumbam-se de
estruturar processos psicoterapêuticos pautados nas vivências
transferenciais e no manejo das mesmas, tal como no setting
psicanalítico clássico. Mas, objetivamos ressaltar que é inevi-
tável que os sujeitos carreguem, junto de suas vivências de sofri-

através das quais possam (re)adquirir a esperança de sentir a

paciente a possibilidade de sentir que tal apelo fora reconhecido


e legitimado, bem como de poder contar com um acompanha-

de seu ambiente de produção, mas não negligencia ou nega a


complexidade envolvida no processo de adoecimento.
Para tanto, Campos (1998) sugere o desenvolvimento de
uma espécie de neoartesanato, ou seja, uma forma de proceder
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 69
-
nidade, mas guarda uma tecnologia variável de acordo com a
peculiaridade daquilo com que se está lidando e um conheci-
mento integral e pessoal de cada lida. No mesmo sentido, Oury
(1991) defende que o trabalhador de saúde precisa desenvolver
uma sensibilidade próxima daquela do artesão, de modo que
desenvolva uma atenção treinada para perceber a qualidade
do contexto e a polifonia que o envolve. Assim, será necessário,
por exemplo, escutar também a professora estressada, a mãe
insegura e o bairro esvaziado de suportes socioculturais para as
experiências da meia-idade.
No nosso entendimento, esse tipo de sensibilidade ou essa
capacidade artesanal, profundamente dissonante do imperativo
da produtividade e da fugacidade contemporâneos, nos remete à
discussão que Winnicott (1956/1978) faz acerca da função materna
de espelho e da necessidade do bebê de ser visto para poder ver-se.

Para Winnicott (1956/1978) inicialmente, somos, ou


devemos nossa existência, ao olhar do outro. No entanto, esse
“outro”, constituído pela mãe, se encontra num estado de pro-

pouco do seu ser, para poder ser com o bebê. A mãe pode alcançar
esse estado de “enlouquecimento natural” porque já vivera um
momento em que fora cuidada, em circunstâncias parecidas com
essa. Além disso, ela estivera gestando o bebê durante vários

o que lhe permitiu o desenvolvimento de uma comunicação pro-


funda, ainda que desprovida de palavras. O autor ilustra o pro-
cesso de ser visto para poder ver-se

70 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


“Quando olho, sou visto; logo, existo. Posso agora me permitir
olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a minha apercepção
e também percebo.” (Winnicott, 1956/1978, p.157).
Nesse momento do amadurecimento humano, a temática
da criatividade se faz presente novamente, na medida em que
Winnicott (1956/1978) explica que ao encontrar-se no olhar da
mãe, o bebê pode viver sua ilusão de onipotência, desenvolvendo
sua relação criativa com mundo. Nesta, embora possa perceber
os objetos de modo objetivo, sempre os apercebe, o que possi-
bilita uma relação pessoal com a realidade.
Quando a mãe está muito envolvida com suas próprias
questões (num estado depressivo, por exemplo) e, sucessiva-
mente, devolve ao bebê a opacidade de sua imagem ou a rigidez
de suas defesas, ele desenvolve apenas a capacidade de observá-

casos, a criança se torna incapaz de desenvolver a criatividade,


através da qual pode perceber a si e a vida, sem desconsiderar as
qualidades objetivas que envolvem tal percepção, mas também
sem deixar de imprimir algo de sua subjetividade naquilo que vê
(Winnicott, 1971/1975). Note-se que Winnicott (1956/1978) impõe
uma condição paradoxal às mães nesse momento da relação com
-
namente presentes (com a vivacidade do olhar que consegue

suas questões, tais como suas próprias defesas, não ofusquem a

Ainda que os pacientes que procurem os serviços de saúde


não sejam bebês em constituição, consideramos que em alguns
estados de adoecimento suas necessidades afetivas podem ser
análogas. Assim, entendemos que, embora solicitando tecno-
logias diagnósticas e remédio, ao procurarem o serviço de saúde,
o hipertenso e a mulher “nervosa” estão também buscando reco-
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 71
nhecimento de seu estado de restrição na capacidade de responder
às demandas da vida, reconhecimento de si, como sujeito phático
(Martins, 2005), inexoravelmente constituído pelo mundo social.
-
lecidos e mandamentos de bem viver desconectados da vida con-

como uma mãe depressiva, que apenas devolve ao outro a opa-


cidade e a rigidez que envolvem seu sofrimento. Ao receberem

pacientes têm suas dores caladas, encobertas momentanea-

cada vez mais desapropriados de sua própria doença e enrijecidos


em padrões contemporâneos de sofrimento.
A esse respeito, insistimos que a psicoterapia, o uso da
medicação, a dieta hipocalórica, o exercício físico e mesmo uma
cirurgia precisam ser percebidas de modo pessoal pelo paciente;
precisam, de alguma forma, ser uma criação sua, ou uma “co-
-construção” (compartilhada entre ele e o terapeuta), tal como
propõe Campos (1998).

-
viços de saúde, propomos que estes sejam também lugares para
alguma vivência criativa. Para tanto, faz-se necessário retomar

Embora conceba a criatividade como inata, Winnicott (1971/1975)


defende que sua vivência está atrelada a alguns condicionantes.

vida, ela requer a estruturação de um espaço próprio, peculiar, onde

72 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


entrará em cena. Por isso, o autor reivindica que a vida humana seja
estudada a partir de um “enunciado triplo”, de tal modo que às
realidades interna e externa, seja acrescentada uma terceira área
destinada à “experimentação, para a qual contribuem tanto a rea-
lidade interna quanto a externa.” (Winnicott, 1971/1975, p. 15).
Denominando-o de espaço transicional, Winnicott
(1971/1975) propõe que este seria um “lugar de repouso para o
indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as
realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacio-
nadas.” (p. 15). Seria um lugar paradoxal, em que as realidades
podem coexistir, sem que precisem ser imediatamente distin-
guidas. Uma região onde o indivíduo poderia sentir-se mais livre
para passear pelos vários mundos que compõem sua existência.
Essa vivência contém o que o autor designa por “substância da
“aquilo que é permitido ao bebê e que na vida adulta é
inerente à arte e à religião” (p. 15).
Através dessas formulações, Winnicott (1971/1975) desen-
volve suas ideias acerca da transicionalidade e dos objetos transi-
cionais. Ele explica que, desde muito cedo, as crianças tendem a
desenvolver relações afetivas intensas com objetos ou parte deles
(brinquedos, pontas de travesseiro, fraldas e o próprio dedo) que
são tratados com grande ternura e, ao mesmo tempo, agressi-
vidade ou destrutividade. Esses objetos, chamados de objetos tran-
sicionais, e o próprio brincar – o fenômeno transicional –, situam-se
num domínio intermediário, no qual, como dissemos, coexistem o
mundo interno da criança, marcado por suas fantasias e desejos, e
o mundo empírico, das circunstâncias mais objetivas.
A esse respeito, Dias (2003) esclarece que não se trata de
um trânsito que o bebê faz de um espaço (interno ou externo)
para outro. O que ocorre são passagens entre um e outro “sentido
de realidade” ou de objeto. Segundo a autora, um mesmo objeto
pode ser subjetivo e, depois, transformar-se em transicional, pois
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 73
o que se altera não é o objeto, mas o sentido de realidade do
objeto ou a “natureza” (subjetiva ou transicional) dele.
A função desses objetos é representar formações substi-
tutivas para a mãe, com quem o bebê não pode mais ter uma
relação de indiferenciação. Deste modo, através do brincar, a
criança pode reviver suas fantasias originárias de onipotência,
criando mundos permeáveis ao sonho. Ao mesmo tempo, ela
testa a realidade dos objetos com que brinca através da agressi-
vidade (tenta destruí-los, mas percebe que continuam existindo
e resistindo aos seus empreendimentos de controle onipotente).
Ou seja, os objetos e fenômenos transicionais permitem que
a criança experimente continuamente os processos de fusão e
separação, podendo elaborá-los paulatinamente. Por isso, para
Winnicott (1971/1975), o brincar é universal, “facilita o desenvol-
vimento e, portanto, a saúde”. (p. 63)
É interessante notar que, tal como Mizrahi (2010) enfatiza,
com a ideia de espaço transicional, Winnicott propõe que o pro-
cesso de separação e diferenciação do sujeito em relação à mãe
e ao meio ambiente se dá “em ligação” com aquilo do que se vai
separar. O espaço transicional abarca o paradoxo da coexistência
da união e da separação, do interno e do externo e, é através desse
paradoxo, que o sujeito pode suportar a desadaptação da mãe,
de quem começa a diferenciar-se. A partir dessa observação, a
autora defende que é possível vislumbrar o surgimento de outra
-
tadora do indivíduo em relação ao social não nasceria assim por
oposição à sua ligação com este, mas, ao contrário, a partir de

necessários.” (Mizrahi, 2010, 102).


Outra condição que Winnicott (1962/1983) atribui à expe-
riência de criar, ou a possibilidade de brincar, é o desenvolvimento
do que ele chama de “a capacidade para estar só”. Segundo o autor,

74 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


-

previsibilidade do ambiente em que vivemos. É esse tipo de con-

sem que precisemos nos preocupar em defendermo-nos de perigos


e imprevistos do ambiente. É “simplesmente sendo”, sem preci-
sarmos nos adaptar à realidade ou reagir a ela, que podemos per-
cebê-la de modo criativo, espontâneo, pessoal.
Da capacidade de estar só, depende a capacidade para o
desenvolvimento da imaginação, bem como das relações amo-
rosas e de amizade. Portanto, a capacidade para amar, imaginar,
criar e, consequentemente, se cuidar, está diretamente rela-
cionada à luta pelo reconhecimento do outro e de si como um
ser com vida pessoal própria. É preciso que a mãe suporte que o
bebê possa “simplesmente ser”, é preciso que reconheça a exis-
tência própria dele (ainda que extremamente dependente) para
que ele vá criando seu mundo subjetivo e, aos poucos, se relacio-
nando com a realidade externa. Nesse sentido, a relação entre

“O espaço potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a


família, entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo depende da

para o indivíduo, porque é aí que ele experimenta o viver criativo”


(Winnicott, 1971/1975, p.142).
Mesmo respeitando as diferenças de contexto, não podemos
deixar de apontar que essas formulações lançam luzes para a

seus pacientes como seres de “vida pessoal própria”, respeitando


suas formas de conhecer, organizar e apreender as informações
do mundo. Como vimos, Onocko Campos et al. (2008) apontam

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 75


problemas nesse sentido, observando que, desprovidos de arsenal
teórico e técnico para compreender as formas de organização
subjetiva e comunitária próprias aos grandes bolsões de pobreza,
os trabalhadores de saúde, muitas vezes, tendem a vitimizar ou
hostilizar os pacientes, oferecendo-lhes estratégias de lida com
os problemas dissociadas das questões socioculturais que os
envolvem e privando-lhes da oportunidade de participar da cons-
trução de “saídas” para suas próprias vidas. Novamente, recaem
em prescrições comportamentais ou na adoção de rótulos, nos
quais a população deve enquadrar suas patologias, mantendo-as
cindidas da experiência de sofrimento – ou do seu pathos.

Admitimos que exercer um trabalho favorável ao desenvolvi-

impossível, quando lembramos do grande número de pessoas que


procuram os serviços de saúde diariamente, para não nos reme-
-
sional. Entretanto, embora não caiba nos limites deste trabalho
discutirmos as condições que podem facilitar tal empreitada, vale
ressaltar que alguns autores vêm propondo uma série de arranjos
de gestão da clínica, com a função de criação ou ampliação de
espaços de trocas intersubjetivas, análise da relação que os sujeitos
têm com seu trabalho, democratização das relações e responsabi-
lização para o paciente. Tais arranjos, nomeados como colegiados
gestores, equipes de referência, reuniões de equipe, supervisões
clínico-institucionais, assembleias e apoio matricial devem viabi-
lizar processos de contato com a alteridade e reconhecimento da

76 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mesma, seja ela oriunda dos colegas de trabalho, dos pacientes
e/ou da comunidade em geral (Azevedo, 2010; Campos e Amaral,
2007; Onocko Campos et al., 2008).
Trata-se, assim, de espaços de gestão da clínica que se cons-
tituem “como uma instância, com um lugar e um tempo onde
se pode experimentar a tomada de decisões coletivas e analisar
situações com um grau de implicação maior em relação àquilo que

“lugar e tempo” compartilhados, conformam um setting subjetivo

mas também a compreensão e o manejo dos estados afetivos incons-


cientes, sobre os quais se constroem o próprio trabalho. Espera-se
que, através desses espaços, as questões e sentimentos despertados
pelo trabalho em saúde permaneçam vivas, “podendo ser analisadas
e não recalcadas e não transformarem-se em atuações perversas ou
-
nidades.” (Onocko Campos e Campos, 2006, p. 686). A nosso ver, tais
espaços podem oferecer instrumentalização técnica e suporte sub-
-

Na obra winnicottiana tais zonas são essenciais, pois se


entende que o desenvolvimento emocional não é possível sem que
o indivíduo possa ter uma crença num ambiente que provê as suas
necessidades básicas, de modo regular e contínuo. Inicialmente,
holding e do handling, formas de
cuidado através das quais a criança é segurada e manejada, o que
lhe permite integrar seus processos corporais, desenvolvendo a
sensação de ter um corpo que a contém e, com isso, iniciando a
-
belecida, a criança vai alcançando sua relativa independência da

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 77


Onocko Campos (2001) nos ajuda a vislumbrar essas

equipes, chamadas a auxiliá-las no processo de análise e plane-


-
lisar as instituições de saúde, a autora propõe que a função do
holding no ambiente organizacional diz respeito à capacidade

constituição de um grupo subjetivo (necessário à conformação


da equipe), com todas as questões que o envolvem, tais como
-
gatório, dentre outras.
Essa proposta nos leva a admitir que, assim como o bebê
precisa de uma mãe suficientemente boa e o paciente precisa
do seu analista, também as equipes de saúde requerem uma
figura que lhes ofereça a sustentação necessária para que
possam viver seus conflitos, que se estendem desde as disputas
profissionais, até a necessidade de reconhecimento da singu-
laridade de cada membro, a identificação com os pacientes
de que tratam e as dificuldades em lidar com a agressividade.
Ou seja, o desenvolvimento da confiabilidade entre os profis-
sionais e desses com seus pacientes não nasce através de uma
espécie de geração espontânea. Ela exige a disponibilidade de
recursos para que os grupos de trabalhadores sejam cuidados
e suportados no seu processo de trabalho.
Outro recurso facilitador da criação de espaços de con-

ser a construção conjunta de projetos, sejam eles voltados para


a organização da assistência, a terapêutica de um paciente espe-

para sonhar, para descansar das exigências da realidade, sem,

78 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


contudo, deixar de transitar por ela, já que é no limite do real
que serão ancoradas suas criações. O momento da elaboração
do projeto abarca o paradoxo da convivência entre presente,
passado e futuro, da aproximação entre os possíveis e o impos-
sível, da concomitância da atividade e do repouso. Assim,
O projeto é possível num espaço transicional, de expe-
riência, que nunca será objetivo, que não está dentro
nem fora. Por isso é impossível recortá-lo objetiva-
mente. Todo “querer-fazer” está e estará sempre nessa
região intermediária, marcado, ineludivelmente pela
percepção de mundo, pelo posicionamento subjetivo,
pelas formas que a relação entre os sujeitos assume
naquele lugar e tempo e pelos entraves do real concreto.
(Onocko Campos, 2001, p. 165-166.)

No mesmo sentido, Azevedo (2010) enfatiza que “parti-


cipar de um projeto, de um futuro comum, implica sonhá-lo,
supõe abrir espaço para a ilusão, possibilitando recriar vínculos.”
(Azevedo, 2010, p. 980). Dessa forma, espera-se ser possível criar
estratégias, elaborar as situações vividas no trabalho, e não mais
(ou, não tanto!) recorrer apenas ao ato (Sá e Azevedo, 2010), ou
ao constante “apagamento de incêndios”, como costumam dizer

Esse vislumbre das possibilidades para o viver criativo no


ambiente institucional, entretanto, exige-nos a consideração
de algumas ressalvas. É preciso admitir que, embora Winnicott
(1971/1975) caracterize o brincar como universal, seus condicio-
nantes nos indicam que nem todo indivíduo será capaz de desen-
volvê-lo, tampouco todas as organizações de saúde. Para estas

(2010) lembramos, correspondem a “uma realidade viva, na qual

não somente o jogo do poder, mas também o do desejo, apresen-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 79


tando-se como um cenário para manifestações das paixões presi-
didas pelo amor e também pela violência.” (p. 299).
Onocko Campos (2005) aponta as produções incons-
cientes verificadas nas instituições, defendendo que a rea-
lidade de trabalho em saúde, caracterizada, essencialmente,
pelo contato com a dor (física e psíquica) e a morte, produz
sintomas. Estes se expressam nas narrativas dos trabalhadores
através de alusão a estados passionais, ideologização, soma-
tização e burocratização, aos quais acrescentaríamos ainda
as sensações de onipotência e impotência, bem como a per-
secutoriedade (Miranda e Onocko Campos, 2010). Consequen-
temente, observamos ações pautadas, muitas vezes, por uma
espécie de passagem ao ato, o que implica na impossibilidade
de elaboração de estratégias de cuidado e no risco de negação
do sofrimento do outro (Sá e Azevedo, 2010). É evidente que,
sob o domínio dessa produção sintomática, as equipes de
saúde não poderão habitar espaços potenciais e desenvolver
um trabalho criativo. Aqui reside um limite às nossas pro-
postas. Limite importante de ser reconhecido e destacado,
uma vez que se configura também como uma espécie de apelo
ao reconhecimento da necessidade de que os grupos de pro-
fissionais recebam algum tipo de suporte emocional especia-
lizado, como seriam os apoiadores ou supervisores.
Considerando tais ressalvas e limites, ainda defendemos
que os espaços terapêuticos, sejam eles consultas individua-
lizadas, grupos, oficinas, visitas domiciliares, dentre outros,
requerem uma estruturação permeável ao trânsito pelos dife-
rentes sentidos de realidade. É preciso que o serviço seja con-
fiável e flexível para que o paciente identifique nele a possibi-
lidade de comunicação entre seu mundo subjetivo, recheado de
necessidades, ilusões, desejos, potencialidades e sofrimento,
e os instrumentos terapêuticos objetivos que lhe são ofere-

80 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


cidos (remédios, procedimentos, modos de cuidado, inter-
venções variadas...). Ou seja, propomos que pacientes e tera-
peutas possam brincar juntos, possam experimentar formas
de comunicação subjetiva. Para tanto, cabe aos terapeutas
reconhecerem a singularidade dos sujeitos, permitindo-lhes
criar um processo próprio de cuidado, com soluções pessoais,
numa temporalidade também pessoal. No mesmo sentido, é
imperioso que os terapeutas tenham seus espaços de super-
visão e apoio institucional, de modo que se sintam reconhe-
cidos e suportados, com todas as angústias que experimentam
na prática profissional.

Supomos que essa hercúlea tarefa de manter um trânsito


vivo entre nossos conhecimentos aprendidos/desenvolvidos e as
vivências subjetivas de cada paciente pode ser facilitada através
do apelo a alguns balizamentos éticos. Assim, recordamos as

paciente e a sua honestidade para com os próprios desejos e


impulsos. Conforme comenta Figueiredo (2008) essas regras, em
última instância, interditam as pretensões onipotentes do tera-
peuta que deseja tudo escutar, entender, saber e, poderíamos
acrescentar, prescrever.

me manter bem; me manter desperto. Objetivo ser eu mesmo


e me portar bem. Uma vez iniciada a análise espero continuar
com ela, sobreviver a ela e terminá-la” (Winnicott, 1962/1983,

procura se comunicar com o paciente a partir da posição em que

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 81


este o coloca, segundo seus movimentos transferenciais. Conse-
quentemente, permite-se ser um objeto subjetivo do paciente,
sem, no entanto, deixar de representar o princípio da realidade
e manter-se atento a esta. Parece-nos que com essas formu-
lações, Winnicott (1962/1983) evidencia o caráter paradoxal do

ausentar-se, permitindo ser alocado para o campo subjetivo do

saúde não são psicanalistas de seus pacientes, mas nos parece


que as recomendações freudianas e o posicionamento winni-
cottiano podem valer para qualquer clínico, na medida em que
o remetem à experiência daquele que vive o sofrimento ou a
doença, obrigando-o a construir junto deste as estratégias de
tratamento, ou de criação de novas condições normativas, con-
forme nos sugere as associações entre o trabalho de George
Canguilhem e a obra winnicottiana.
Esperamos que as considerações aqui desenvolvidas con-
tribuam para a construção de uma postura clínica no trabalho em
saúde, postura esta que, tal como adverte Bezerra Jr. (1996), não
admita adoção de um modelo normativo de sujeito, carregado

ou correto. Trata-se de uma clínica que além da “interioridade

a alteridade impõe ao sujeito, visando não a sua adaptação a

capacidade [...] de ordenar suas práticas psíquicas, suas práticas


sociais, de modo mais criativo.” (Bezerra Jr. 1996, p. 142). Uma
clínica que, seja na posição de terapeuta ou de paciente, possa
ser apropriada de modo pessoal e sentida como um movimento
digno de ser vivido.

82 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


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84 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


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Médicas. (Trabalho original publicado em 1962).

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 85


CAPÍTULO 4

POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS NO


BRASIL: AVANÇOS, RETROCESSOS E PERSPECTIVAS

Rodrigo Sanches Peres & Waleska Rodrigues Silva

O uso de álcool e outras drogas somente pode ser com-


preendido à luz de valores e simbolismos específicos, aliados
a condições de acesso e consumo, determinados social e cul-
turalmente (Silva, 2000). Ocorre que tais substâncias fazem
parte da história da humanidade e remontam, segundo
Araújo e Moreira (2006), às civilizações ancestrais. Ao longo
dos tempos, nas mais diferentes culturas, as pessoas as utili-
zaram com as motivações mais diversas, como purificação em
rituais religiosos e místicos, exaltação em cerimônias profanas
e pagãs, celebração do prazer ou mera recreação, para citar
apenas algumas (Nunes & Jólluskin, 2007).
Sabe-se, por exemplo, que hominídeos consumiam prepa-
rados à base de tabaco para suportar a fome e a fadiga. Refe-
rências ao uso de plantas com propriedades psicoativas como
a papoula e o cânhamo foram encontrados em artefatos e
registros de 4.000 a 3.000 a.C. provenientes da China. Segundo
Silva (2000), o álcool era bastante difundido e constava da for-
mulação de alguns medicamentos no Egito Antigo, uma vez que
o processo de fermentação já era conhecido. São notórias as
inúmeras alusões ao vinho presentes no Antigo Testamento. Há
indícios ainda do uso de substâncias alucinógenas oriundas do
cacau e da coca em civilizações pré-colombianas e amazônicas,
como bem observou Carneiro (2009).
87
Não obstante, conforme Araújo e Moreira (2006), no
mundo ocidental do século XIX, o uso do álcool e outras drogas
se distanciou dos contextos dos rituais, tornando-se, como con-
sequência, um produto de consumo desprovido de lastro cul-
tural. Tal fato se torna patente levando-se em consideração que,
como bem observou Escohotado (2004), os princípios ativos
de diversas plantas eram vendidos livremente em farmácias da
América e Europa e divulgados de modo intensivo por meio de
propagandas. Surgiram, assim, novos padrões de uso, os quais
implicaram na exacerbação de complicações físicas, psicoló-
gicas e sociais decorrentes da utilização de dosagens superiores
à capacidade metabólica humana.
Nas últimas décadas, a produção e a distribuição de drogas
ilícitas são feitas em larga escala, impulsionadas pelo baixo custo
de parte delas. Mas esse fato não pode ser considerado o único
responsável pelo aumento no consumo destas substâncias.

do uso de álcool e outras drogas na atualidade em muitos países


do Ocidente. Para o autor, isso ocorre porque nas sociedades oci-
dentais predomina, nos dias de hoje, uma cultura que se pauta
na evitação da dor e do sofrimento psíquico. Sob a égide desta
cultura, o álcool e outras drogas se traduzem em resposta rápida,

ou os diversos medicamentos produzidos pela indústria farma-


cêutica, legitimados pela prática médica, e as bebidas alcoólicas,
comercializadas licitamente.
Nesse cenário, o consumo abusivo de álcool e outras
drogas é potencializado, o que representa um problema de
saúde pública em função dos agravos, em diversas esferas, que
decorrem desse fato. Logo, torna-se particularmente relevante
a implementação de políticas públicas voltadas a tal questão.

88 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


diretrizes e referenciais ético-legais estabelecidos pelo Estado
para o enfrentamento de um problema que a sociedade lhe
apresenta (Acúrcio, 2007). Porém, como alerta Elias (2004), a
regulação estatal da saúde é permeada por contradições, deter-
minadas, sobretudo, pelos compromissos do Estado com os
interesses do capital, inclusive das indústrias farmacêuticas, de
bebidas alcoólicas e de insumos médicos.
Considerando a complexidade do tema, neste capítulo
nos propusemos a contemplar um duplo objetivo. Em primeiro
lugar, apresentaremos um breve histórico das políticas públicas
sobre álcool e outras drogas no Brasil, pontuando avanços,
mas também retrocessos. Em segundo lugar, serão delineadas
algumas perspectivas a respeito dessas políticas, destacando-se,

ampliada à efetivação das diretrizes estabelecidas pela “Política


para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas” e
sua interface com certos conceitos psicanalíticos.

Conforme Duarte (2010), a primeira tentativa de ela-


boração de uma política pública sobre álcool e outras drogas
aconteceu no Brasil em 1998, com a transformação do Depar-
tamento Nacional de Entorpecentes (DNE) na Secretaria
Nacional Antidrogas (SENAD). Entretanto, tal movimento
resultou, para a referida autora, na consolidação de uma estra-
tégia de controle que preconizava uma verdadeira “guerra
contra as drogas” e desconsiderava que as mesmas fazem parte
da realidade social. Garcia, Leal e Abreu (2008) esclarecem que
a SENAD foi criada em função da pressão exercida pela Organi-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 89


zação dos Estados Americanos (OEA) para que o governo bra-
sileiro assumisse o combate às drogas como uma prioridade.
Desse modo, houve uma mera reafirmação do modelo hege-
mônico vigente até então, uma vez que o país já incorporava
em seu ordenamento jurídico alguns termos oriundos da Orga-
nização das Nações Unidas (ONU), os quais também adotavam
premissas repressivo-moralistas.
Karam (2009) aponta que o proibicionismo se revelou infru-
tífero até mesmo na tentativa de diminuir a circulação do álcool e
outras drogas. Além disso, a referida autora elenca outras razões
pelas quais as políticas fundamentadas em tal ideologia podem
ser consideradas inapropriadas. Nesse sentido, destaca que o
engajamento em uma “guerra contra as drogas” implica em uma
autorização, ainda que informal, à prática da violência por parte
4
.

direitos estabelecidos em constituições democráticas. Souza e


Kantorski (2007), nessa mesma linha de raciocínio, sustentam que
a proteção paternalista do Estado não é capaz, por si só, de evitar
o consumo de álcool e outras drogas.
Somente em 2002 a SENAD formulou a chamada “Política
Nacional Antidrogas”, instituída por meio do Decreto n.º
4.345/2002, da Presidência da República. Estabelecendo como
um de seus eixos a repressão, tal política assumiu o pressuposto
básico de “buscar, incessantemente, atingir o ideal de cons-
trução de uma sociedade livre do uso de drogas ilícitas e do uso
indevido de drogas lícitas” (Brasil, 2002, p. 10). Porém, nos anos
seguintes foram realizados diversos seminários e fóruns pelo
4
Considerou-se a possibilidade de utilizar a expressão “pessoas que fazem uso de álcool e
outras drogas” ao longo deste capítulo. No entanto, a opção pela expressão “usuários de
álcool e outras drogas” se deve ao fato de esta ser adotada nas políticas públicas e ter se
consagrado pelo uso. De qualquer forma, uma ressalva a tal expressão se impõe, já que coloca
em segundo plano a existência de uma relação entre a pessoa que utiliza uma determinada
substância e a substância em si.

90 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Brasil, inclusive com a participação de representantes de outros
países, com o intuito de promover uma ampla discussão sobre a
questão das drogas. Como resultado desse processo, foi criada,
por meio da Resolução n.º 3/2005, do Conselho Nacional Anti-
drogas, a chamada “Política Nacional sobre Drogas”.
-
venção; 2) tratamento, recuperação e reinserção social; 3) redução
dos danos sociais e à saúde; 4) redução da oferta e 5) estudos,
pesquisas e avaliações. Ou seja, em contraste com a “Política
Nacional Antidrogas”, não elencou, ao menos explicitamente,
a repressão entre seus eixos. Paradoxalmente, contudo, ambas
compartilharam do mesmo pressuposto básico já citado, o qual
consta, com redação idêntica, tanto de uma quanto da outra. De
qualquer forma, Duarte (2010) entende que, para além de uma
mudança de foco – suposta, poderíamos acrescentar – traduzida
pela alteração do nome da “Política Nacional sobre Drogas” em
-
mentação de conselhos de caráter deliberativo, articulador, nor-
mativo e consultivo, de composição paritária.
Ressalte-se que o fato de a “Política Nacional sobre Drogas”
preconizar a redução dos danos e da oferta entre seus eixos sem
deixar de enfatizar a redução da demanda pode ser considerado algo
problemático. Ocorre que, para Souza e Kantorski, a possibilidade de
conciliar essas três frentes é questionável, tendo-se em vista que
a redução da demanda e a redução da oferta se pautam
principalmente em abordagens repressivas, enquanto as
estratégias na perspectiva de redução de danos se pau-
tam na liberdade de escolha do indivíduo e no não-julga-
mento moral do mesmo (2007, p. 8).

Por outro lado, a redução da demanda pode ser pensada


para além do vértice repressivo enfatizado pela “Política
Nacional sobre Drogas”, pois a garantia de direitos – educação
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 91
e lazer, dentre outros – tende a amenizar a demanda. É nesse
sentido que a redução de danos é capaz de se articular com a
redução da demanda.
A propósito, tanto a “Política Nacional Antidrogas”
quanto a “Política Nacional sobre Drogas” adotaram a dis-
tinção entre usuários e traficantes de drogas, sem, contudo,
os descriminalizar. Essa distinção foi consolidada com a apro-
vação da Lei 11.343/2006, conhecida como “Lei das Drogas”,
a qual estabelece a extinção da pena de prisão para usuários
a partir do recurso a juizados especiais. Outro avanço impor-
tante promovido por sua implementação é o fim dos trata-
mentos compulsórios. Entretanto, Verona (2010) observa que
a mesma deixou a desejar na medida em que não contemplou
o aumento da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) de forma
a viabilizar o desenvolvimento de intervenções diferenciadas
em função dos diversos tipos de relação que podem ser estabe-
lecidos com as drogas. É importante ressaltar que nem mesmo
os serviços existentes foram orientados e preparados para
acolher os usuários de álcool e outras drogas na perspectiva da
atenção integral à saúde ou contemplando aspectos das estra-
tégias de redução de danos.
Vale mencionar que o país conta também com legislação

como “Lei Seca”, procurou inibir a utilização de bebidas alcoólicas


por condutores de veículos a partir da imposição de penalidades
severas a esse comportamento. Apesar de considerada uma das
mais rígidas do mundo, a Lei 11.705/2008, ao contrário do que
sugere o nome forjado pela imprensa para fazer-lhe referência,
não tem caráter repressivo-moralista, uma vez que não interfere
na decisão sobre o uso de álcool e outras drogas em si. Duarte
(2010) entende, inclusive, que esse é um de seus méritos, pois
implica em um distanciamento da ideologia proibicionista.

92 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


do século XX e o início do século XXI foram marcados por suces-

e outras drogas no país, as quais, todavia, se revestiram de certas


-
cultou a ocorrência de avanços mais expressivos. Mas Delgado
(2010) chama a atenção para a mudança de paradigma que vem
ocorrendo gradativamente neste processo, por meio da qual a
repressão às drogas continua existindo, porém, não mais preva-
lecendo em relação à prevenção e ao tratamento. A valorização
de estratégias de redução de danos em detrimento de medidas
voltadas à redução da oferta certamente é um desdobramento
desse novo paradigma.
A redução de danos, deve-se esclarecer, compreende
qualquer ação que vise a minimizar os riscos e danos causados
pelo uso de álcool e outras drogas à saúde de um indivíduo e, em
um sentido mais amplo, à sociedade. Assim, está voltada não
apenas para a promoção da saúde, mas também à valorização da
cidadania e à garantia dos direitos humanos (Ministério da Saúde,
2001). Para tanto, Santos e Malheiro (2010) ressaltam que os ser-

de danos devem valorizar o saber da população com a qual tra-


balham em prol da construção conjunta de ações de saúde. Dessa
maneira, os referidos autores consideram que os usuários de
álcool e outras drogas devem desempenhar um papel ativo na
construção de seus projetos de saúde e de vida.
Muitas críticas, no entanto, ainda são dirigidas à redução
de danos. Marques e Zaleski (2011), por exemplo, entendem que
as estratégias que se agrupam sob esta rubrica apresentam evi-

doenças infectocontagiosas, mas não poderiam ser direcionadas


ao tratamento da dependência do álcool e outras drogas, pois

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 93


este deveria privilegiar, para os referidos autores, o caminho
para a abstinência. É preciso enfatizar, contudo, que a redução
de danos não exclui a abstinência do álcool e outras drogas como
objetivo a ser atingido. Entretanto, por possuir um caráter mais

que qualquer indivíduo tenha acesso ao sistema de saúde.


Essa compreensão torna a redução de danos uma ferra-
menta proveitosa quando se pensa em ampliar o acesso à saúde
por parte dos usuários de álcool e outras drogas, considerando
que os mesmos, obviamente, precisam se prevenir contra doenças
infectocontagiosas e reduzir os danos relacionados a outras pato-
logias, sendo que, para tanto, devem ser acolhidos pelo sistema
de saúde. A redução de danos ainda compreende que muitos
prejuízos sofridos pelos usuários de álcool e outras drogas não
advêm necessariamente do consumo das mesmas, mas, sim, do
processo de estigmatização dele decorrente. Por esse motivo,
Santos e Malheiro (2010) lembram que a redução de danos pre-
coniza estratégias capazes de minimizar essa estigmatização.
Para além dos marcos legais acerca do tema “álcool e outras
drogas” mencionados até aqui, é preciso salientar que o mesmo
passou a ser incluído de forma efetiva na agenda de debates da
saúde pública quando, em 2003, o Ministério da Saúde lançou a
“Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras
Drogas”. Tal política reconhece que
os principais limites observados pela não priorização, por
parte do Ministério da Saúde, de uma política de saúde
integral dirigida ao consumidor de álcool e outras drogas,
podem ser percebidos a partir do impacto econômico e
social que tem recaído para o SUS (Ministério da Saúde,
2003, p. 7).

1) intersetorialidade; 2) atenção integral; 3) prevenção e 4) pro-


moção e proteção da saúde.

94 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Deve-se esclarecer que, no contexto histórico da saúde
no Brasil, é somente com o SUS – instituído com a Constituição
de 1988 e regulamentado pela Lei 8080/90 – que o país passa
a dispor de um sistema de saúde pública universal, entendido
a partir de então como direito do cidadão e dever do Estado
na tentativa de se estabelecer um novo padrão de cidadania.

do movimento sanitário brasileiro, ressalta a garantia de acesso


a todos, independentemente da renda, assim como preconiza
a integralidade da atenção à saúde de forma regionalizada e
hierarquizada e determina a equanimidade na distribuição de
recursos (Cohn & Elias, 2003).
Desde a criação do SUS, muitos foram os desafios a
serem transpostos no sentido de torná-lo viável, sobretudo
face às contradições inerentes ao projeto de desenvolvimento
do capitalismo. Dentre esses desafios, pode-se citar a implan-
tação da Reforma Psiquiátrica, por meio da promulgação da
Lei 10.216/2001, após 12 anos de tramitação no Congresso
Nacional. A mesma garante a atenção integral à saúde aos
usuários de serviços de saúde mental, incluindo aqueles que
sofrem de transtornos decorrentes do consumo de álcool ou
outras drogas, preconizando a estruturação de serviços de
base comunitária que devem ser configurados em redes assis-
tenciais capazes de observarem a equidade no atendimento
e promover a reinserção social para que, gradativamente,
possam substituir o aparato asilar.
No entanto, ações mais efetivas em prol de uma atenção
integral a usuários de álcool e outras drogas no Brasil surgiram
alguns meses após a promulgação da referida Lei, quando da
divulgação do Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 95


na construção da política de saúde mental é fundamental
-
cas de atenção aos usuários de álcool e outras drogas que
deverão ser baseadas [...] nos princípios e diretrizes do SUS
e da Reforma Psiquiátrica e [...] que o SUS se responsabilize
pelo atendimento (Ministério da Saúde, 2002, p. 60).

A “Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e


Outras Drogas” leva em consideração as deliberações da III Con-
-

a oferta de cuidados a pessoas que apresentem proble-


mas decorrentes do uso de álcool e outras drogas deve
ser baseada em dispositivos extra-hospitalares de aten-
ção psicossocial especializada, devidamente articulados à
rede assistencial em saúde mental e ao restante da rede
de saúde (Ministério da Saúde, 2003, p. 6).

Delgado (2010) resume a importância da “Política para a


Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas” ao
salientar que, antes de sua elaboração, a questão das drogas não
era, em última instância, assumida como competência da saúde
pública no Brasil. Souza e Kantorski (2007) inclusive destacam
que, até então, a implementação das políticas públicas refe-
rentes às drogas era coordenada essencialmente pelo Gabinete
de Segurança Institucional da Presidência da República, sem
participação expressiva do Ministério da Saúde. Desse modo,
a questão das drogas era vista, segundo as autoras, apenas
como “caso de polícia”. A “Política para a Atenção Integral aos
Usuários de Álcool e Outras Drogas” tem contribuído para a
reversão desse cenário, sobretudo por enfatizar que os disposi-
tivos extra-hospitalares referidos

território e rede, bem como da lógica ampliada da redu-

96 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


ção de danos, realizando uma procura ativa e sistemática
das necessidades a serem atendidas, de forma integrada
ao meio cultural e à comunidade em que estão inseridos
(Ministério da Saúde, 2003, p. 6).

Ainda que a “Política para a Atenção Integral aos Usuários


de Álcool e Outras Drogas” faça menção explícita à necessidade
de articulação do cuidado dentro da rede de atenção básica à
saúde e à necessidade de capacitação para seus profissionais,
na prática essas ações não foram incorporadas ao trabalho da
grande maioria das unidades de saúde. Inclusive a “Política
Nacional de Atenção Básica”, lançada por meio da Portaria n.º
648/2006, do Ministério da Saúde, enfatiza os cuidados com
a eliminação da hanseníase, o controle da tuberculose, da
hipertensão arterial, da diabetes, a eliminação da desnutrição
infantil, a saúde da criança, da mulher e do idoso, a saúde bucal
e a promoção da saúde. Mas nenhuma menção é feita à saúde
mental ou à atenção aos usuários de álcool e outras drogas,
sugerindo uma possível dificuldade na integração de ações no
âmbito do próprio Ministério da Saúde.
A reformulação da “Política Nacional de Atenção Básica”,
operacionalizada com a Portaria n.º 2.488/2011, do Ministério
da Saúde, por sua vez, não faz recomendações sobre áreas de
cuidado. A mesma preconiza a implementação de ações de
acordo com as necessidades de saúde da população, com prio-
ridade para grupos vulneráveis ou expostos a fatores de riscos,
sejam eles clínicos, comportamentais ou ambientais. Entretanto,

e outras drogas. Uma rápida referência a essa população é feita


apenas na passagem da reformulação de tal política dedicada ao
Programa Saúde na Escola, uma vez que estabelece como um de
seus objetivos a prevenção ao uso de álcool e outras drogas junto
a crianças e adolescentes em instituições educacionais.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 97


O cuidado aos usuários de álcool e outras drogas na atenção
básica em saúde é descrito de forma mais clara somente na Por-
taria n.º 3.088/2011, do Ministério da Saúde, que instituiu a “Rede
de Atenção Psicossocial”. Com tal portaria, as ações em saúde
mental ganharam um novo patamar, alcançando a condição de
rede de ações e serviços articulada a outras redes dentro do SUS. A
atenção básica em saúde, inclusive, é mencionada na referida por-
taria, pois tanto as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) tradicionais
quanto aquelas que abrigam as equipes da Estratégia de Saúde da
Família (ESF) passaram, então, a ser consideradas explicitamente
como pontos de atenção da “Rede de Atenção Psicossocial”.
É importante ressaltar que a “Rede de Atenção Psicossocial”
também inaugura novos dispositivos, como as unidades de aco-
lhimento, que, conforme a Portaria n.º 121/2012, do Ministério da
Saúde, são pontos de atenção com funcionamento 24 horas, em
ambiente residencial, destinados a pessoas com necessidades
decorrentes do uso do álcool e outras drogas que apresentem acen-
tuada vulnerabilidade social e/ou familiar. Porém, o ano de 2011, em
que foi publicada a Portaria n.º 3.088/2011, foi marcado também

Ocorre que a Secretaria Municipal de Assistência Social da cidade


do Rio de Janeiro, por meio da Resolução n.º 20/2011, autorizou
o recolhimento e abrigamento compulsório de crianças e adoles-
centes sob uso de álcool e outras drogas, ou que estivessem em
situação de rua em período noturno. Embasando manifestações
tanto contrárias quanto favoráveis em relação a essa deliberação, a
necessidade de ações mais efetivas no combate ao crack e no trata-
mento dos dependentes foi a tônica dos debates.
Em dezembro de 2011, o Governo Federal alterou o “Plano
Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas”, que fora
instituído por meio do Decreto n.º 7.179/2010, da Presidência da
República, e o Ministério da Saúde foi contemplado com recursos

98 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


para a consolidação de estratégias e implantação de novas ações.
Ainda assim, nos primeiros dias de janeiro de 2012, outra iniciativa

Centro Legal”. Coordenada pela Polícia Militar na chamada Cra-


colândia, região do centro da cidade de São Paulo; tal operação
se pautou na repressão e internação compulsória dos usuários
e foi amplamente divulgada pela mídia. Desse modo, à mesma
seguiram-se denúncias de violação de direitos humanos, reve-
lando, como consequência, desarticulação em relação às ações
de outros agentes, sejam de saúde ou de assistência social.

Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas” trouxe avanços


importantes na medida em que preconiza a transformação das prá-
ticas de saúde voltadas a tal população ao adotar como parâmetro
básico a lógica da redução de danos em seu sentido mais amplo, isto
é, valorizando a diminuição de riscos e agravos à saúde em todas
as suas nuanças. Desse modo, não assume um caráter prescritivo e
admite que uma proteção paternalista por parte do Estado, como
salientam Souza e Kantorski (2007), não representa a melhor estra-
tégia frente à questão do álcool e outras drogas. Contudo, retro-
cessos como aqueles observados no Rio de Janeiro e em São Paulo
também podem ser observados, revelando, em maior ou menor
grau, as contradições inerentes à regulação estatal da saúde.

Drogas”

A “Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e


Outras Drogas” faz uma menção pontual à clínica ampliada enquanto
perspectiva que deve orientar as ações voltadas à redução de danos.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 99


Não obstante, o Ministério da Saúde, em uma publicação posterior
à implementação da referida política, propõe a clínica ampliada
não apenas como uma perspectiva, mas, sim, como ferramenta de
articulação para o trabalho em saúde no SUS (Ministério da Saúde,
2009). Entendemos que, concebida dessa forma, a clínica ampliada
é capaz de contribuir para a efetivação das diretrizes estabelecidas
pela “Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras
Drogas”, como será detalhado adiante.
A clínica ampliada, segundo o Ministério da Saúde (2009),

ampliada do processo saúde-doença; 2) construção comparti-


lhada de diagnósticos e terapêuticas; 3) ampliação do “objeto de
trabalho”; 4) transformação dos “meios” ou instrumentos de tra-

se coaduna perfeitamente com a lógica da redução de danos,


uma vez que a mesma preconiza que a oferta de cuidados em
saúde deve levar em conta a singularidade dos usuários de álcool
e outras drogas em termos de seus projetos de saúde e de vida,
sempre respeitando as diferentes possibilidades e escolhas.
O segundo eixo da clínica ampliada se articula com a
“Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras
-
sionais de saúde adotam uma postura pouco produtiva frente
aos usuários em função de preconceitos que reforçam a exclusão
dos mesmos. Ocorre que a construção compartilhada dos diag-
nósticos e terapêuticas viabiliza a superação dos limites das abor-
dagens individuais, inclusive no sentido de estimular o protago-
nismo dos usuários (Ministério da Saúde, 2009). Tal fenômeno
pode ser reforçado pelo terceiro eixo da clínica ampliada, o qual
estabelece que o “objeto de trabalho” em saúde deve ser cons-
tituído por pessoas, e não por doenças. E a lógica de redução de
danos corrobora essa premissa ao enfatizar não apenas a rein-

100 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


serção dos usuários de álcool e outras drogas, mas também ao
incentivar a mobilização social dos mesmos.
O quarto eixo da clínica ampliada estabelece que a comu-
nicação transversal nas equipes de saúde – e também entre as
equipes – representa a principal estratégia para que condutas
automatizadas sejam evitadas. Trata-se de uma assertiva de
grande relevância para a efetivação das diretrizes estabele-
cidas pela “Política para a Atenção Integral aos Usuários de
Álcool e Outras Drogas”, uma vez que a mesma postula que a
rede de saúde deve ser configurada como local de conexão e
inserção, criando pontos de referência para viabilizar o acesso
dos usuários aos serviços de saúde. Além disso, reconhecendo
a complexidade inerente ao consumo de álcool e outras drogas,
enfatiza a importância da intersetorialidade, por meio do envol-
vimento da sociedade civil e de organizações comunitárias, por
exemplo, para a extensão da cobertura das ações voltadas a tal
questão. Outros setores da sociedade, nesse sentido, podem
fornecer suporte para os profissionais de saúde, o que é com-
patível com o quinto eixo da clínica ampliada estabelecido pelo
Ministério da Saúde.
Vale destacar ainda que, como ilustra Campos (2012), a
clínica ampliada estabelece interface com certos conceitos psica-
nalíticos. A autora sustenta essa linha de raciocínio ao esclarecer
que a psicanálise, quer seja adotada como referencial para prá-
ticas desenvolvidas dentro ou fora do contexto clássico do consul-
tório particular, não se presta à regulação da ordem social. Espe-

isso pode ser evidenciado com facilidade levando-se em consi-


deração que, de acordo com Lancetti (2012), a difusão da psica-
nálise desempenhou um papel determinante no movimento de
oposição ao proibicionismo nos Estados Unidos da América ao
apontar e questionar seu caráter moralizante.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 101


Ademais, a obra freudiana já reconhecia a imbricação entre
o individual e o social, e destacava o papel da civilização nos pro-

manifestações do sofrimento psíquico. Freud (1930/1996) deixou


isso claro ao colocar em relevo a existência de um antagonismo
irreconciliável entre as restrições determinadas pela sociedade
e as exigências pessoais de satisfação. Este pressuposto teórico
alinha a psicanálise a cada um dos eixos da clínica ampliada tal
como já delimitados, na medida em que torna patente a neces-
sidade de se pensar o ser humano no seio de uma realidade com-
partilhada, determinada por sua inserção sociocultural.
Campos (2012) acrescenta que, na prática, a psicanálise
enriquece a clínica ampliada por fomentar a escuta do indivíduo
e seu sofrimento em sua singularidade, o que tende a não ocorrer
-
-
cimento de “diagnósticos” que representam verdadeiros invó-
lucros, impedindo o indivíduo de se posicionar ativamente em
relação à própria vida. O argumento da referida autora adquire
ainda maior consistência tendo-se em vista que o Ministério da
Saúde (2009) salienta a centralidade da escuta nas ações da clínica
ampliada. Considerando-se que usuários de álcool e outras drogas
frequentemente recebem esse tipo de “diagnóstico”, nos parece
oportuno propor que a clínica ampliada, quando orientada por
conceitos psicanalíticos, pode contribuir ainda mais para “Política
para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas”.
Costa-Rosa, também endossando a relevância da escuta,

ou do usuário de álcool e outras drogas, como poderíamos espe-

como “o indivíduo somado ao sentido inconsciente de sua exis-


tência” (2011, p. 77). Para o referido autor, é dessa forma que a

102 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


psicanálise oferece abertura à subjetividade, sendo que isso via-
biliza o reconhecimento da existência de um corpo vivo para além
do organismo e, assim, possibilita a superação do reducionismo
biomédico e do paradigma manicomial. E vale reforçar que a psi-
canálise o faz sem desconsiderar o quadro sociocultural em que
o sujeito se insere, até mesmo porque a sociedade de consumo

E cumpre assinalar que, adotando uma linha de raciocínio


semelhante àquela desenvolvida por Campos (2012), Cunha (2004)

de clínica ampliada do autor não corresponda exatamente àquela


adotada aqui. Em primeiro lugar, porque simplesmente admitir
a existência de fenômenos transferenciais favorece o reconheci-
mento da singularidade e do protagonismo dos sujeitos. A com-
preensão da transferência, em segundo lugar, tende a revelar
padrões de relacionamentos do indivíduo cujo mapeamento sub-

atuantes sobre o sujeito dentre diversos atravessamentos e a

Cunha (2004) enfatiza que a obra freudiana não limitou a


existência da transferência ao setting psicanalítico, uma vez que
a entendia como um fenômeno comum às relações humanas.
Os sentimentos deslocados em direção ao psicanalista, assim, já
existem em estado germinal no paciente, e simplesmente vêm
à tona como uma espécie de pré-programação afetiva. Freud

setting psicanalítico não cria a transferência, e sim apenas a revela.


Justamente por esse motivo o reconhecimento dos fenômenos
transferenciais pode, na clínica ampliada, viabilizar a superação

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 103


das ações de saúde desenvolvidas unidirecionalmente ou, até
mesmo, apesar do sujeito, como ocorre nos casos de internação
compulsória de usuários de álcool e outras drogas.
Consideramos oportuno acrescentar que tal propo-
sição parece aplicável também à contratransferência. Ocorre
que Silva (2012), em um estudo realizado recentemente com
médicos, psicólogos e enfermeiros, aponta que a assistência
oferecida a usuários de álcool e outras drogas na atenção básica
-

operador conceitual psicanalítico pós-freudiano, proposto ori-


ginalmente por Käes (1991) no contexto clínico para designar
uma aliança inconsciente que se estabelece entre os membros
de uma família, criando uma espécie de zona de silêncio que
impossibilita a elaboração de questões problemáticas. Logo, o

do estudo com os usuários foi interpretado como resultante de


um conluio que implica em uma espécie de renúncia dos pri-
meiros em relação aos segundos.
Cabe aqui ainda mencionar que, na atenção básica, a
saúde mental tem sido operacionalizada recentemente a partir
de uma proposta integradora baseada no apoio matricial. Trata-
-se, em essência, de um recurso da clínica ampliada norteado
por “um novo modo de produzir saúde, em que duas ou mais
equipes, num processo de construção compartilhada, criam
uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica” (Minis-
tério da Saúde, 2011, p. 13). Para o êxito do apoio matricial, a
compreensão dos fenômenos transferenciais/contratransferen-
ciais pode ser considerada imprescindível, em termos tanto da
construção do projeto terapêutico a ser desenvolvido quanto
da construção de relações horizontalizadas entre as equipes de

104 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Com o intuito de conferir maior clareza à nossa argumen-
tação em defesa das contribuições da clínica ampliada orientada
pela psicanálise em prol da efetivação das diretrizes estabelecidas
pela “Política para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e
Outras Drogas”, é válido enfatizar que de forma alguma estamos
propondo a transposição do modelo clínico de atuação privada para
o contexto da saúde pública. Os problemas decorrentes desse tipo
de situação, motivada por aquilo que Dimenstein (2000) chama de
ideário individualista, já são conhecidos. O que estamos propondo
é, em última instância, uma atuação centrada no fortalecimento
das experiências coletivas e comprometida com a valorização da
cidadania, a ser operacionalizada mediante o trabalho em equipes
multidisciplinares. E, em nosso entendimento, a psicanálise, até
mesmo em função do papel político que tem desempenhado criati-
vamente desde sua inserção na saúde pública, é capaz de fornecer
elementos proveitosos para esse tipo de atuação.

Neste capítulo buscamos ilustrar de que forma, no Brasil,


a questão do álcool e outras drogas passou de “caso de polícia”
a competência da saúde pública mediante a implementação
de uma série de políticas públicas, em um movimento que cul-
minou com o advento da “Política para a Atenção Integral aos
Usuários de Álcool e Outras Drogas”, a qual se encontra atual-
mente em vigência, porém, ameaçada por certas iniciativas que

sucintamente algumas contribuições atuais da clínica ampliada


como ferramenta de articulação para o trabalho em saúde
no SUS para a efetivação das diretrizes estabelecidas por tal
política pública, assim como sua interface com certos conceitos
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 105
psicanalíticos, particularmente aqueles concernentes ao campo
transferencial-contratransferencial.
Tendo em vista este duplo objetivo, dois esclarecimentos se
fazem necessários. Em primeiro lugar, é válido reforçar que ado-
tamos aqui a noção de clínica ampliada proposta pelo Ministério
-
mente não a única. Portanto, a clínica ampliada, se entendida de

pode oferecer outros elementos para a efetivação das diretrizes


estabelecidas pela “Política para a Atenção Integral aos Usuários
de Álcool e Outras Drogas” além daqueles demarcados aqui.
Em segundo lugar, a clínica ampliada admite a incorporação de
saberes oriundos de diferentes áreas e escolas teóricas. Optou-
-se, neste capítulo, por enfatizar sua interface com certos con-
ceitos psicanalíticos, mas certamente é possível fazê-lo mediante
o recurso a outras contribuições conceituais.
-
cando na abordagem da questão das drogas as ações vinculadas
ao programa “Crack, é possível vencer”, lançado pelo Governo
Federal em 2010 e que, em 2013, foi estendido de algumas capitais
para municípios com mais de 200.000 habitantes. O referido pro-
grama não estabelece parâmetros claros para as relações entre
a rede de assistência à saúde, com seus dispositivos territoriais
e comunitários regidos pela lógica da redução de danos, e as
comunidades terapêuticas. Ocorre que estas não necessitam de
alinhamento conceitual com os princípios que regem a “Política
de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas” para

implicações dessa situação foge ao escopo deste capítulo, mas


consideramos relevante salientar que a mesma também pode ser
-
dições inerentes à regulação estatal da saúde já mencionadas.

106 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Ministério da Saúde. Subsecretaria de Assuntos Administrativos (Org.). Programa
MultiplicaSUS – curso básico sobre o SUS: (re)descobrindo o SUS que temos para
construirmos o SUS que queremos.
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Moreira (Orgs.). Panorama atual de drogas e dependências
Brasil. Presidência da República. Secretaria Nacional Antidrogas (2002). Política
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Birman, J. (2009). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação

M. Winograd & M. Souza (Orgs.). Processos de subjetivação, clínica ampliada e sofrimento


psíquico
Carneiro, H. S. (2002). As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no
século XX. Outubro, 6, 115-128.
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mestrado. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, SP.

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Subjetividade do consumo de álcool e outras drogas e as políticas públicas brasileiras (p.

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PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 107


Escohotado, A. (2004). História elementar das drogas (J. C. Barreiros, trad.) (2. ed.).

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Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. 21, p.

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Kaës, J. Bleger, E. Enriquez, F. Fornari, R. Roussilon & Vidal J. P. (Orgs.). A instituição e as


instituições: estudos psicanalíticos
Karam, M. L. (2009). Um olhar sobre a política proibicionista. Psicologia: Ciência e
39-41.

Drogas e cidadania: em
debate

Dependência química: prevenção, tratamento e políticas públicas (p. 340-345). Porto

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Autor.
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Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde (2009). Clínica ampliada e
compartilhada

Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 4, 230-237.

Módulo para

Estudos e Terapia do Abuso de Drogas.

108 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Silva, I. R. (2000). Alcoolismo e abuso de substâncias psicoativas
Silva, W. R. (2012). A (des)atenção aos usuários de álcool e outras drogas na Estratégia
da Saúde da Família: concepções de enfermeiros, médicos e psicólogos. Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia, MG.
Souza, J. & Kantorski, L. P. (2007). Embasamento político das concepções e práticas
referentes às drogas no Brasil. Revista Eletrônica Saúde Mental: Álcool e Drogas,
3

Subjetividade do consumo de álcool e outras drogas e as políticas públicas brasileiras (p.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 109


CAPÍTULO 5

A PSICANÁLISE E O CAMPO DA SAÚDE: CIÊNCIA, CAPITALISMO E


EFICÁCIA

Vinicius Anciães Darriba

empírica e estatística orientam cada vez mais o campo da saúde.


Discutir o lugar da psicanálise em tal campo implica, necessaria-
mente, interrogar os fundamentos do estabelecimento e da disse-
minação de tais parâmetros. Eles são apresentados em conexão
ao interesse público, o mesmo associado a uma relação de custo-
-benefício mensurada por instrumentos de avaliação já por eles
orientados. Não se trata, portanto, de a psicanálise, face à deli-

apenas assumir outro lugar de enunciação, outra relação com o


saber; mas de se ver, assim, sob a suspeita de contrariar o inte-
resse público. A partir de uma determinada apropriação do cien-
na qual se apoiam razões políticas e econômicas, pretende-
-se conferir objetividade ao que seria melhor para todos.
Em escrito anterior (Darriba, 2012), contrapomos a este

corte representado por Freud no âmbito da clínica. Declarávamos,


então, não ter a pretensão ainda de interrogar tal referencial de
-
deriam por sua primazia. É em torno deste ponto que propomos

que termos se delineiam, na atualidade, as contendas que se apre-


sentam à psicanálise desde o campo ampliado da saúde. O que
111
importa investigar são os efeitos concernentes a uma delimitação
do que deriva da gradativa substituição do debate epis-
temológico pelo discurso da autoridade. Trata-se de uma investi-
gação cara à psicanálise na medida em que, independentemente
da constatação de um esforço de redução do a avalista
de um discurso dominante, a ela compete, eticamente, continuar
a sustentar seus laços com a ciência, laços que lhe são inaugurais.

evidências empíricas suporta o primado da racionalidade técnica.


Tudo passa a ser validado pela plausibilidade em referência a
determinado aparato racional. Tal promoção do saber, revestida
de objetividade, faz supor a universalização a seu acesso, no que
se faria tomar por algo que zela por um princípio democrático.
Na atualidade, a pretensa objetividade a que o saber visaria
encontra-se representada pelo gene e pelo neurônio. Sem entrar
no mérito dos efetivos adventos associados à genética mole-
cular e às neurociências, o que importa a nós é a imposição de
tal objetividade. Enxergar aí apenas a promoção de um saber
racional que universaliza seu acesso, fazendo de todos seus bene-

de autoridade e submissão. Tal discurso, no qual o saber opera no


lugar de agente de maneira dessubjetivada, é o que Lacan (1969-
1970/1992) formalizou, em sua teoria dos discursos, como o dis-
curso universitário.
Por um lado, ele o toma como aquele “que mostra onde o
discurso da ciência se alicerça” (p. 97). Por outro lado, associa

opera entre o discurso do senhor antigo e o do senhor moderno,

112 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


ciência e capitalismo, encaminhada inicialmente na via do que
o autor trata por um discurso universitário, que nossa discussão
pretende se centrar. Neste sentido, ela incluirá o posterior
acréscimo por Lacan de um matema próprio ao discurso capi-
talista, não redutível ao que formalizara com o discurso uni-
versitário. Antes de nos pautarmos na teoria dos discursos, no
entanto, acompanharemos o que Lacan (1966/2001) debate,
poucos anos antes, acerca do lugar da psicanálise na medicina,
o que perpassa a questão deste artigo. Ali já pode ser entrevista
a associação da ciência ao capitalismo que produz determinada

Trata-se de uma conferência, acompanhada de debate, no


Collège de Médecine de La Salpetrière, a qual se iniciou com a for-
mulação, por algumas autoridades médicas do local, de questões
endereçadas à psicanálise, no caso a Lacan. Vale registrar, quanto
ao que vimos discutindo aqui, que, em pelo menos uma dessas
-
nálise buscasse se aproximar de um modo de ensino universitário,

debater tais demandas, não deixando de retorquir, quanto àquela


que preconizava democratizar o ensino da psicanálise, que o

que se designa por democracia, visto ela poder ser concebível


de diferentes maneiras. Esta ressalva de Lacan dá o tom de sua
enunciação, tanto na conferência em particular, quanto no con-
junto de sua obra, marcada pela pretensão de se orientar estri-
tamente pela experiência analítica. Tal orientação desdobrou-se
aqui no questionamento de a que responde aquele que demanda
da psicanálise, o que, na sequência de seu ensino (Lacan, 1969-
1970/1992), veio a consistir na interrogação do mestre que, na
mutação ao discurso universitário, não é dado a ver.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 113


Lacan propôs tratar do lugar da psicanálise na medicina,
distinguindo, de saída, certa aceleração na ampliação do espaço
que a ciência ocupa na vida comum, o qual implicou uma rápida
mudança no que chama de função do médico. Esta, segundo o
que mostra a história da medicina, assentava-se tradicionalmente

fazia-se acompanhar por doutrinas. Lacan (1960-1961/1992) já


havia abordado, em seu seminário, a presença de um elemento
doutrinário na prática médica, em particular no que se refere à
noção central de saúde.
Quanto a esta, tomando por referência o trabalho de Can-
guilhem (1982), indicou tratar-se de uma ideia problemática, que
acaba por carrear postulados pouco acessíveis à demonstração.

medicina tem a ver com a ciência” (Lacan, 1960-1961/1992, p. 75).


De modo equivalente, esta observação foi retomada por Lacan
(1966/2001) na conferência que vimos examinando, ao pontuar a
não evidência, mesmo que “durante um tempo bastante curto, no

servido apenas para mascarar o que anteriormente se tomaria por

É preciso, portanto, interrogar a que se deve a sobrepo-


sição não previsível da medicina e da ciência, sintetizada no

em que adveio ao mundo a exigência do condicionamento à


ciência. Se, por um lado, Koyré é uma referência incontornável
à ideia de que a ciência moderna, mais do que conhecer a rea-
lidade, opera a introdução nela de uma estrutura adequada a
uma ciência matemática (Koyré, 1991), o que se seguiu na con-

114 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


no pensamento de Lacan. Isto por ter ele sublinhado que, no
caso do médico, este trabalho de reduzir o corpo a montagens
-
cionado por créditos sem limites. É, portanto, do exterior de sua
função, diz Lacan (1966/2001), “que lhe são fornecidos os meios,
ao mesmo tempo que as questões, para introduzir as medidas
-
tísticos através dos quais se estabelecem, indo até uma escala
microscópica, as constantes biológicas” (p. 9).
Paradoxalmente, o autor indicou que o incremento no
poder de pesquisa e investigação retirou do médico o que havia
-
leirado junto aos demais peritos que se põem a reduzir os fatos

. A evi-
dência encontra-se alienada em uma medida externa, pois só
conta quando mediada por um instrumento ao qual se associa a
da avaliação.

ocupar da parte da operação que concerne ao organismo humano,


Lacan (1966/2001) observou que o médico também passou a

termos de agentes terapêuticos novos, químicos ou biológicos”


(p. 10). Ao localizar a requisição ao médico de que se converta em

a ênfase no condicionamento à ciência passou a ser fomentada


segundo a lógica da produção e do consumo própria do capita-
lismo, o que virá a ser, como veremos, examinado em sua obra.
A referência à lógica do capitalismo parece incontornável para o
entendimento do que Lacan tomou por uma aceleração quanto

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 115


ao lugar da ciência, cujos efeitos já se faziam perceptíveis com
relação à função do médico.
Cabe ainda acrescentar, concomitante a esta mudança requi-
sitada na função do médico, o que Lacan (1966/2001) assim deli-

em primeiro plano este novo direito do homem à saúde, que existe


e se motiva já em uma organização mundial” (p. 10). Ou seja, é na
própria dimensão da demanda do doente que se veicula, como um
-
-se, assim, o lugar do médico desde a perspectiva daqueles que a
ele se endereçam. Trata-se de um deslizamento que se associa a
“esta espécie de poder generalizado que é o poder da ciência”, o
qual “dá a todos a possibilidade de virem pedir ao médico seu ticket

excluído, no entanto, nisto que Lacan denominou relação epis-


temo-somática. É o registro do gozo, que aqui delimita o que é irre-

-
fício terapêutico, algo que se mantém constante” (p. 10), portanto
não mensurável, não passível de constituir uma escala.
A dimensão ética – Lacan (1966/2001) reiterou aqui o que
pauta sua obra – “é aquela que se estende em direção ao gozo”
(p. 12). O gozo do corpo e a falha existente entre a demanda e o

quais a psicanálise dispõe uma orientação ética para o médico.


O fundo do que se trata na demanda do doente, diz Lacan
(1966/2001), nada tem a ver com uma prática investigativa
“em que as respostas são determinadas em função de certas
questões, elas próprias registradas em um plano utilitário” (p.
12). Tais considerações do autor comparecem como divisas, no
que concerne ao modo como deverá o médico responder às exi-

116 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


de uma organização mundial. Exigências que convergirão, con-
forme ele vaticina, para as exigências da produtividade. Conclui,

imperativos que fariam dele empregado desta empresa uni-


versal da produtividade?” (p. 14).

O modo de presença da ciência no mundo não é apreciado


por Lacan, portanto, sem referência à lógica do capitalismo.

na função do médico. Assim como posteriormente, conforme

designou por discurso universitário. Se este último veio a ser


introduzido em conjunto com outros três discursos – do mestre,
da histérica e do analista, segundo a formalização que Lacan
(1969-1970/1992) propôs em seu Seminário de 1969-70 –, no ano
anterior (Lacan, 1968-1969/2008) o autor já se detivera sobre a
mudança no lugar do saber que é própria a este discurso, na qual

“que a realidade capitalista não tem relações muito ruins com


a ciência. Não se dá nada mal com ela. E tudo indica que isso
pode continuar a funcionar assim, pelo menos por algum tempo”
(Lacan, 1968-1969/2008, p. 38). Ainda com respeito à época em
que vivemos, observou “que as relações entre o saber e o gozo,
consideradas na escala da comunidade, não são as mesmas, por
exemplo, dos tempos antigos”, o que associa “à entrada em vigor
do que chamamos capitalismo” (p. 321).
Lacan (1968-1969/2008) concluiu que o saber se mostra,
“há algum tempo, igualmente cúmplice no campo da forma de

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 117


como dissemos, ele veio a articular esta mudança no lugar do
saber através da formalização de um discurso universitário. Neste
cotejamento dos dois seminários consecutivos, cabe acrescentar
ainda que, já no Seminário que antecede a proposição dos quatro
discursos, Lacan examinou em que consistiria a incidência do
discurso analítico. Em pleno período de agitação que se seguiu a
maio de 1968, ao apontar para a serventia da ideia de revolução

que o analista
não tenha algo a dizer aos que, no campo do saber, pas-
saram a se insurgir a partir de uma certa variante desse
saber, tanto em relação ao que pode limitá-los e desviá-
-los quanto em relação à maneira correta de articular o
que se passa com o saber, a única propícia a permitir que
o saber saia novamente do campo em que faz sua explo-
ração (Lacan, 1968-69/2008, p. 342).

Na interrogação da saída que se poderia esboçar desde o


discurso analítico, ele pontuou que “a única solução é entrar no

do saber” (Lacan, 1968-1969/2008, p. 381). Neste sentido, Lacan


depositara aos analistas os votos de que “ao menos eles tenham
um discurso que esteja a par do que eles efetivamente manejam”
(p. 273), o que não deixa de evocar sua interpelação aos médicos,

Os analistas precisariam estar à altura do que a experiência com

Eu não sei concernente ao gozo do Outro”, o que ofereceria a evi-


dência “de que não há nada estruturável que seja propriamente o
ato sexual” (p. 269).
Tal evidência posta pela experiência analítica leva o autor a

118 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


do desejo. Quanto a esta última, a neurose apontaria para uma
-
-
dagem da conjunção sexual, e a face que lhe é correlata, que é

(Lacan, 1968-1969/2008, p. 323). É justamente em torno desse


ponto de impossibilidade que Lacan propôs a articulação dos dis-
cursos, reiterando que “toda impossibilidade, seja ela qual for, dos
termos que aqui colocamos em jogo, articula-se sempre com isto
– se ela nos deixa em suspense quanto à sua verdade, é porque
algo a protege, algo que chamaremos impotência” (Lacan, 1969-
1970/1992, p. 166).
No caso do discurso universitário, nos termos em que Lacan
o formula, a impotência associa-se à não realização da promessa
contida no trabalho que se condiciona ao saber como agente.
Tomando-o por um novo discurso do senhor, a ocupação do lugar
dominante pelo saber, S2, implica outra estrutura com relação ao
modo como este discurso previamente se propunha como um dis-
curso do mestre. Nas palavras do autor, o “S2 tem aí o lugar domi-
nante na medida em que foi no lugar da ordem, do mandamento,
no lugar primeiramente ocupado pelo mestre que surgiu o saber”
(Lacan, 1969-1970/1992, p. 97). Trata-se do mandamento de con-
-

daquilo a que a ordem visaria. Lacan (1969-1970/1992) se referia


aí a uma “tirania do saber” (p. 30).

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 119


S1 →
S2
$ a

S2 →
a
S1 $
Se, no esquema lacaniano, o quarto de volta relativo à
passagem do discurso do mestre ao discurso universitário situa,
por um lado, a instauração do saber, S2, no lugar de agente; por
outro lado, faz com que se encontre, no nível da verdade, o sig-

autor inclui, na articulação do discurso universitário, a referência


ao capitalista. Em suma, ele indica, retomando a citação acima
incluída, que “o que se opera entre o discurso do senhor antigo
e o do senhor moderno, que se chama capitalista, é uma modi-

modo, o que encontramos no ensino de Lacan, neste momento,


é a designação, através da formalização do discurso universitário,
120 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
do capitalista no lugar do senhor moderno.
Posteriormente, a referência ao capitalismo não se deterá
mais na associação a um discurso universitário. Como anuncia no

dos diversos problemas que se proporão a nós não está em nos


colocarmos no nível do efeito da articulação capitalista” (Lacan,

então, apenas fornecido a raiz dessa articulação no discurso do


mestre. De fato, ele já havia antecipado, um ano antes, que não
foi preciso esperar “que o discurso do mestre tivesse se desen-
volvido plenamente para mostrar sua clave no discurso do capi-
talista” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 102). Tem-se aí, no entanto,
algo que permanecia velado, na medida em que, nas palavras do
autor, “o fato de que o tudo-saber tenha passado para o lugar do
senhor, eis o que, longe de esclarecer, torna um pouco mais opaco
o que está em questão – isto é, a verdade” (p. 30). Na passagem
em que designa o discurso do capitalista como desdobramento
do discurso do mestre, ele se refere à “sua curiosa copulação com
a ciência” (p. 102), indicando que esta última nos faz renunciar à
verdade, dando-nos somente o imperativo de continuar a saber.
Vê-se assim que a mudança no lugar do saber entre o dis-
curso do mestre e o discurso universitário implica não se tratar
mais do mesmo saber. Lacan (1969-1970/1992) retoricamente
pergunta, considerando “o próprio ideal de uma formalização
onde tudo é conta”, se “não estará aqui o deslizamento, o
quarto de giro?” (p. 76). Não é o mesmo saber “ao colocar S2, no
discurso do senhor, no lugar do escravo, e em seguida colocá-
-lo, no discurso do senhor modernizado, no lugar do senhor”
(p. 33). Com relação a um saber que se dava no nível do escravo
no discurso do mestre, Lacan diz ter surgido, com um giro de
um quarto de volta, um saber desnaturado de sua localização

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 121


escravo, que originalmente respondia pelo saber, promovendo
um saber de senhor. Deste modo, no discurso universitário,
teria se constituído um puro saber de senhor, no qual a ciência
se alicerça, consistindo ela justamente em tal transmutação da
função do saber. Nas palavras de Lacan, “foi por esta via que se
operou o deslocamento que faz com que, atualmente, nosso

Se, por um lado, constata ter surgido, “no lugar do senhor,


uma articulação eminentemente nova do saber, completamente
redutível formalmente” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 140), por
outro lado Lacan se interroga pelo que surge no lugar do escravo,
entendendo não se tratar de algo passível de se inserir na ordem
-
dência de que o discurso do mestre manteve sua denominação
pelo fato de que os trabalhadores continuaram a trabalhar, de que
jamais se honrou tanto o trabalho. Para isso, Lacan destaca, “foi
preciso que ele ultrapassasse certos limites”, no que se refere à
mutação que conferiu a tal discurso “seu estilo capitalista”, a qual
o autor situa no momento a partir de quando “o mais-de-gozar
se conta, se contabiliza, se totaliza. Aí começa o que se chama de
acumulação de capital” (p. 76).
Foi justamente desta mais-valia, conceituada por Marx, que
Lacan (1968-1969/2008) partira um ano antes. No que concerne
aos produtos da Universidade, retomou a noção da mais-valia
associando-a aos próprios estudantes, àqueles que se põe a tra-
balho sob o imperativo do saber, tornando-se equivalentes a cré-
ditos, a unidades de valor. Por sua vez, ao se referir à sociedade
de consumidores, Lacan (1969-1970/1992) se reportou ao con-

equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é


o produto de nossa indústria, um mais-de-gozar – para dizer de

122 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


uma vez – forjado” (p. 76). A articulação entre a ciência e o capita-
lismo se mostra, portanto, para além do estabelecimento de um

presença no mundo do que o autor associa não ao “pensamento


da ciência”, mas à “ciência de algum modo objetivada” (p. 140). A
nova articulação do saber conjuga-se, assim, com a produção de
tais objetos técnicos.
Lacan se refere, então, a algo que é inteiramente forjado
pela ciência; o que, na conferência que comentamos, já pode ser
localizado nos meios que o autor diz ter o médico que passar a
empregar para reduzir o corpo a montagens a que se concede

direção de tomar essas fabricações da ciência como objetos feitos


para causar o desejo, “na medida em que”, ele declara, “agora é a
ciência que o governa” (Lacan, 1969-1970/1992, p. 153). Mais uma
vez, a perspectiva desde a qual a incidência da ciência é visada por

nos termos do discurso capitalista, a industrialização do desejo

Neste sentido, como Lacan (1968-1969/2008, p. 233) já ante-


cipava, “o capitalismo reina porque está estreitamente ligado à
ascensão da função da ciência”. Diante disso, não se cogita frear a
ciência, dirá Lacan (1969-70/1992b). Não se pode “sonhar sequer
por um instante em deter o movimento de articulação do discurso
da ciência” (p. 153). Trata-se antes, na via do discurso analítico,
como vimos, de estar a par do que se maneja, o que permite a

quer dizer, factícia, não pode desconhecer o que lhe aparece


como artefato, é verdade. Só que lhe é vedado, justamente por
ser ciência do mestre, colocar-se a questão do artesão, e isto fará
o feito ainda mais fato” (p. 85).

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 123


S S 2

S 1 a
O feito se faz fato; o que, no discurso universitário, traduz-
-se pela pretensão de que se trate de um discurso de puro saber.
Também no discurso capitalista, tal como Lacan veio a formalizá-
-lo, isso se traduz em o sujeito se tomar por agente ali onde opera a

em o sujeito não se dar conta de tal posição, tornando-se consu-


midor ou usuário de um produto ali onde supõe exercer seu querer.

ciência, mais precisamente pelos objetos que esta produz sob a


égide do capital. Tal relação com o objeto, relação de consumo, sus-
tenta-se naquilo que distingue o discurso do capitalismo segundo o
Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do
simbólico, com as consequências de que já falei – rejeição de quê?
Da castração” (Lacan, 1971-1972/2011, p. 88).
As setas, na fórmula do discurso capitalista, denotam um
movimento circular, do qual não se sai, não sendo possível situar
nele, diferente dos quatro discursos que Lacan formalizara, uma
barreira do impossível. Tem-se, então, algo que pode operar
sem cessar, exceto pela inevitabilidade de que venha a se con-
sumar, marchando de modo acelerado, na direção da morte, do
esgotamento, da destruição. Em relação a este discurso, Lacan
(1971-1972/2011) aposta no discurso analítico como saída, na

124 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


sua entrada irruptiva” (p. 88). Na conferência que comentamos
acima, o vimos se esforçar em transmitir, desde as implicações do
discurso analítico, uma posição da qual se poderia responder – no
caso, o médico – de modo a não estar inteiramente subsumido ao

capitalista com o discurso da ciência.


Trata-se, no entanto, de um esforço de transmissão pouco
promissor, pois aquele que se sustenta no discurso universitário
aferra-se a uma neutralidade que se ancoraria na objetividade
do saber. É o que, por exemplo, garantiria ao pesquisador uma
-
quisas por parte dos laboratórios. Autonomia também vislum-
brada pela suposição de que se tratou, no giro do discurso, de um
ganho de liberdade por relação ao componente autoritário do dis-
curso do mestre. Ignora-se aí que o que se produz no âmbito do
que se designa como encontra-se cada vez mais sob o

é permanentemente coagido a produzir objetos que renovem a


vitalidade de um mercado consumidor.

Quando pensamos no campo da saúde, conforme visado


neste escrito, há outro efeito de discurso que acaba por convergir

das autoridades de saúde, das agências governamentais, a saúde

zelar pela governança da promoção e do acesso às boas práticas

detrimento de um debate ético e epistemológico menos reducio-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 125


nista. Discurso de autoridade que, como temos visto, se valida na
primazia do discurso universitário. Neste contexto, vale notar que
a medicina, cuja relação com a ciência Lacan mostrou duvidosa,

É com respeito a como responder às diferentes exigências

esboçou algumas indicações. A orientação ética que poderia daí


advir depende, no entanto, de que a relação do médico com a
demanda não esteja subsumida nem por uma relação pautada no
direito à saúde, às boas práticas em saúde, na direção da norma-
tização imposta pelas autoridades do setor, nem por uma relação
de consumo, na qual se poria a trabalho para o capital. Tanto em
uma quanto em outra, tanto no que valida uma prática ou um

valor. Valor que, ao se pretender tornar absoluto, tem seus con-


dicionantes mascarados. Ao mesmo tempo, como vimos desde

o que, com a psicanálise, constituiria o horizonte de uma ética.

a dimensão ética pode ver-se comprometida, por outro lado, o


que é pior, pode-se chegar à restrição do que é ético ao que se

Na busca de ainda avançar no desvelamento dos condicio-

com Jacques-Alain Miller (2004), ao tematizar precisamente a


imposição de processos de avaliação na atualidade. O autor propõe
que tomemos o paradigma da avaliação em associação a outro
paradigma decisivo na determinação do moderno que ele nomeia
como paradigma problema-solução (p. 14). Neste, parte-se de
que há um problema, supostamente uma queixa, uma demanda
no âmbito da sociedade, e que cabe ao político encontrar uma
solução. Teríamos aí, segundo o autor, o paradigma das relações
entre o universo político e a sociedade no contexto moderno, não
126 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
sendo inusitado que tal paradigma tenha vindo a se conjugar com
o paradigma da avaliação, visto ambos derivarem da matemática,
tanto a forma problema-solução quanto a medida, o calculável.
Com relação ao primeiro paradigma, é próprio da boa

algo que faça com que o problema não esteja mais lá. O para-
digma da avaliação, por sua vez, implica justamente, segundo
o autor, uma substituição, substituição da coisa que veio a ser
avaliada pela avaliação. A avaliação já encarnaria, assim, a
própria solução. Ele dá o exemplo de um psicólogo que esteja
sendo avaliado. Entre o psicólogo ainda não avaliado e o psi-
cólogo avaliado não há diferença aparente. No entanto, ele foi
incluído no conjunto dos seres e objetos avaliados. Um valor é
acrescido a sua condição humana. Há aí uma desconsideração
às grandes doutrinas materialistas, para as quais, diz Milner, há
sempre um a-mais não substituível, portanto não passível de ser
avaliado, nem mesmo absorvido na forma problema-solução.
Este elemento insubstituível apresenta-se de modo radical na
psicanálise, pelo menos nos termos do ensino de Lacan, em que
se buscou construir sua forma lógica.
Ao consentir com o impasse relativo à solução, à substi-
tuição, à avaliação, a psicanálise toma a falha por não contingente.
Como vimos, Lacan situa aí o que é irredutível à demanda produ-

em que se trata do ponto no qual a dimensão ética é convocada.

psicanálise. Com isto, o sucesso não invalida, para o analista, o


impossível como princípio de sua ética. Tomando o impossível por
divisa, caberia ao analista interrogar a prevalência da avaliação, a
-
sentando-se como pretensa ciência da avaliação. Interrogá-la na

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 127


-
vamente? A comparação remete à equivalência, fundamento da
ordem capitalista na medida em que a moeda seria um equiva-
lente universal, que responderia por uma equivalência cifrável à

O contrato fundamenta-se justamente em que as partes


tenham algo equivalente a trocar, a avaliação tendo lugar na veri-
a posteriori de que este fundamento foi respeitado. Mas
a priori, no que se designa por
acreditação, através da qual são dadas as garantias acerca do que
oferecem as partes. A referência de Milner à lógica do contrato,
e seu vínculo com a avaliação, procura aproximar a problemática
que examinamos da dimensão política que lhe seria subjacente.
Neste sentido, no que concerne à democracia, ele indica que pas-
samos, em suas palavras (p. 20), da imagem de lugar geométrico
da lei para a de lugar geométrico do contrato. Enquanto o âmbito
da lei se liga ao limitado, inclusive preservando a liberdade face
àquilo que ela não prevê, a força do contrato está no ilimitado da
possibilidade de ele tudo prever. Na medida em que a ideologia
do contrato, segundo o autor, avança no domínio da política, pas-
samos da democracia política clássica, que, por estar ligada à lei
e à desigualdade das partes, comporta uma limitação, para uma
democracia ilimitada.
Esta intervenção do Estado no terreno tradicionalmente
privado do contrato inclui a regulamentação ilimitada, a impo-
sição ilimitada de procedimentos de avaliação. No lugar da lei
como garantidora dos direitos, erige-se a autoridade de quem
fabrica as regulamentações, a esfera administrativa do Estado,

assumindo a mediação entre o domínio legislativo e o domínio


contratual. Com isso, abre-se caminho a que diferentes lobbies se
enderecem ao Estado em nome da ciência, requerendo o mono-

128 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


pólio em determinados domínios da prática clínica, vedando
inclusive o consagrado direito de escolha no acesso ao campo da
saúde. Também quanto a isso, quanto às injunções que se cons-
tatam aferentes à esfera do público, a psicanálise teria o que ofe-
recer enquanto dispositivo crítico. É no que a discussão que aqui
interrompemos poderia vir a se desdobrar posteriormente.

Canguilhem, G. (1982). O normal e o patológico

Souza, M. Processos de subjetivação, clínica ampliada e sofrimento psíquico (p. 87-102).

Koyré, A. (1991).
Universitária.
Lacan, J. (1991). O Seminário, Livro 7
(Lições originalmente pronunciadas em 1959-1960).
Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro 8
(Lições originalmente pronunciadas em 1960-1961).
Lacan, J. (1992). O Seminário, Livro 17
Zahar. (Lições originalmente pronunciadas em 1969-1970).
Opção Lacaniana, 32, 8- 14.
(Conferência originalmente pronunciada em 16/02/1966).
Lacan, J. (2008). O Seminário, Livro 16:
Zahar. (Lições originalmente pronunciadas em 1968-1969).
Lacan, J. (2009). O Seminário, Livro 18

Lacan, J. (2011). Estou falando com as paredes

Miller, J. A. & Milner, J. C. (2004). Voulez-vous être évalué?: entretiens sur une machine

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 129


CAPÍTULO 6

SUBLIMAÇÃO E IDEALIZAÇÃO:
DESTINOS DA SEXUALIDADE NA CONSTRUÇÃO DA CULTURA

Claudia Amorim Garcia & Cecília Freire Martins

Na obra freudiana, os conceitos de sublimação e idealização


foram elaborados de forma independente, no bojo de discussões
bastante distintas, havendo um único momento, no texto sobre o
narcisismo (Freud, 1914/1969f) em que ambas são contrapostas
e pensadas simultaneamente. Apesar disso, os desdobramentos
teóricos destes dois conceitos psicanalíticos demonstram que se,

processos fundamentalmente distintos, por outro possuem


traços em comum que inclusive contribuem para que operem de
forma articulada no processo de constituição subjetiva e também
na constituição da cultura.
O conceito de sublimação é utilizado para designar o pro-
cesso psíquico que resulta em atividades humanas que, aparente-
mente, não estão relacionadas à sexualidade, mas cuja gênese só
é possível a partir da pulsão sexual. Neste sentido, a sublimação
estaria referida a uma mudança nos objetivos desta pulsão, que
abandonaria suas metas originais, de ordem sexual, para se ligar
a outras não sexuais e socialmente valorizadas (Laplanche, 1980).
Em Freud, o tema da sublimação se faz presente em textos que
vão desde a correspondência com Fliess, ainda no século XIX, até
1938, em Esboço de psicanálise (Freud, 1940/1969n). Contudo, não
há um trabalho metapsicológico conhecido que aborde exclusiva-
mente um estudo sobre a sublimação, o que frequentemente é
131
apontado como o principal empecilho à sua sintetização em psi-
canálise (Garcia, 1998).
A idealização, por sua vez, é comumente associada à super-
valorização do objeto em curso na situação amorosa e crucial no
processo de formação da instância ideal. Além disto, quando em
1921 a idealização é discutida no contexto da organização dos
grupos, parece possível supor que possui também um importante
papel na construção da cultura. No entanto, apesar destas rele-
vantes injunções teóricas seus fundamentos metapsicológicos
também permanecem pouco nítidos no texto freudiano.
No trabalho de 1914 consta uma discussão comparativa
entre a sublimação e a idealização na qual lhes são atribuídos
diferentes campos de atuação. Enquanto a sublimação seria um
dos destinos da pulsão sexual que levaria a um afastamento do
sexual estrito, a idealização, por sua vez, atuaria sobre o objeto.
Considerando, no entanto, avanços teóricos posteriores, consta-
tamos que a idealização passa também a ser associada a um dis-
tanciamento com relação aos objetivos sexuais da pulsão (Freud,
1921/1969g). Se, por um lado, esta característica sugere que com-
partilham algo em comum, por outro, este aparente afastamento
com relação à esfera sexual, associado tanto à sublimação quanto
à idealização, adquire aspectos singulares em cada um destes
processos, o que acarreta, consequentemente em implicações
também distintas, tanto do ponto de vista psíquico individual
quanto do ponto de vista cultural.

Apesar da fragmentação que marca a construção do con-


ceito de sublimação na obra freudiana, determinadas caracte-

132 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


foram preservadas. Há, portanto, aspectos aos quais a sublimação
foi associada desde suas primeiras utilizações em psicanálise, e

aparentemente assexual, sua vinculação ao campo da cultura e


a proteção que oferece aos sujeitos frente à intensidade própria

traços distintivos deste conceito (Garcia, 1998).

primeira utilização do termo sublimação por Freud, em 1897, na


correspondência com Fliess. Nesta ocasião, a referência à subli-
mação aparece na descrição de fantasias histéricas que seriam
“estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamento
deles” (Freud, 1950/1969o, p. 341), cujo objetivo seria mascarar
o conteúdo sexual de cenas de sedução. Assim, mesmo que
ainda não designasse um conceito psicanalítico propriamente
dito, naquele momento a atividade sublimatória foi associada a
um afastamento com relação à esfera da sexualidade, caracte-
rística esta que se revelou como um dos pilares do conceito de

em Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna (Freud,


1908/1969c) corrobora a natureza sexual atípica da sublimação
ao descrevê-la como processo através do qual a pulsão troca
“seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas psi-
quicamente relacionado com o primeiro” (Freud, 1908/1969c, p.
193). A sublimação, assim, abriria a possibilidade de deslocar o
vigor e a intensidade originais da pulsão para atividades inte-
ressantes à civilização. Ainda em 1908 e em 1914 encontramos

sexualidade” (Freud, 1908/1969b, p. 165; 1914/1969f, p. 111) e,

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 133


com uma “dessexualização da libido” (Freud, 1923/1969i, p. 44),

Parece, portanto, que esta relação atípica com o sexual,


de fato, é distintiva da atividade sublimatória, e pode ser melhor
compreendida se considerarmos que a troca de meta da pulsão
em curso na sublimação consiste num afastamento apenas da
sexualidade stricto sensu. Assim, Pinheiro (1999) propõe que ao se
descrever a atividade sublimatória como um processo que implica
um distanciamento com relação à satisfação sexual, toma-se a
sexualidade como “algo que diz respeito a uma materialidade cor-
poral, a um prazer de corpo e de fato observável no campo desta
superfície corporal” (p. 13).
Então, a sublimação afastar-se-ia do sexual orgástico,
mas permaneceria compreendida no campo da sexualidade
lato sensu. Parece que é também a esta característica que
Freud se refere quando, no trabalho sobre o narcisismo (Freud,
1914/1969f), em um comentário crítico à posição de Jung sobre
a teoria da libido, faz uma breve menção à sublimação, na qual
esta é entendida como resultado de um afastamento do inte-
resse sexual por seres humanos – “mas só no sentido popular
da palavra ‘sexual’” (Freud, 1914/1969f, p. 97). Este entendi-
mento parece fundamentar ainda sua observação bem pos-
terior de que a sublimação se revela muito tênue se comparada
à satisfação sexual direta, já que “ela não convulsiona o nosso
ser físico” (Freud, 1930/1969l, p. 98).

como uma marca de origem da atividade sublimatória seria sua


articulação com a esfera cultural. Apresentada pela primeira
vez nos Três Ensaios como um destino dado à pulsão sexual,
alternativo ao recalque e à descarga sexual direta (Freud,
1905/1969a, p. 222-224), a sublimação seria a mais interessante
alternativa disponível aos sujeitos frente à exigência civilizatória

134 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


de supressão das pulsões (Freud, 1908/1969c). Assim, o pro-
cesso de sublimação pulsional seria capaz de colocar “à dispo-
sição da atividade civilizada uma extraordinária quantidade de
energia” (Freud, 1908/1969c, p. 193), consolidando-se como a
via principal de constituição da cultura, desde que garantido seu
afastamento do sexual stricto sensu.
Um terceiro traço distintivo da sublimação seria sua
função protetora, própria, aliás, dos destinos pulsionais de um
modo geral (Freud, 1915/2004). Neste sentido, Garcia (1998)
assinala que, já na Carta 61, Freud chama atenção para o caráter
protetor das fantasias histéricas, então consideradas subli-
mações capazes de “protege[r] a histérica contra o traumatismo
das cenas de sedução” (Garcia, 1998, p. 77). Tal característica
também estaria diretamente relacionada ao caráter suposta-
mente assexual da sublimação, uma vez que representaria, em
última análise, uma alternativa protetora à intensidade própria
da esfera da sexualidade. Mais tarde, em 1930, a atividade subli-
matória tem sua função protetora atrelada ao afastamento do
sexual estrito que a caracteriza e sustenta sua vinculação com
-
cientes formas de alcance da felicidade. Além disso, enquanto
processo fundamental para as realizações culturais, seria ainda
protetora na medida em que representaria uma resposta sin-
gular frente à condição de desamparo, limite último com o qual
o sujeito se depara (Garcia, 1998).
Então o afastamento do caráter sexual estrito serve de
base tanto para a função protetora da sublimação quanto para
sua relação com a cultura, constituindo-se, portanto, no eixo
nuclear do conceito. Esta questão começa a ser discutida mais
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(Freud, 1905/1969a) e em Leonardo Da Vinci e uma lembrança de
sua infância (Freud, 1910/1969d), trabalhos importantes para a

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 135


compreensão da maneira como a sublimação foi inicialmente
concebida no contexto da primeira tópica e à luz da primeira
teoria pulsional (Pereira, 2000).
Em 1905, logo no primeiro ensaio – dedicado à questão das
aberrações sexuais – a sublimação é associada a alvos sexuais

no ensaio que investiga a sexualidade infantil que sua relevância

não cessa, sendo necessário que a energia pulsional ganhe novos


destinos. Neste momento, a sublimação é descrita como um
desvio total ou parcial da pulsão sexual para novas metas que con-
tribuiriam para realizações culturais (Freud, 1905/1969a, p. 166) e,
ao lado dos diques psíquicos (asco, vergonha, moral), colaboraria
na contenção da livre satisfação da sexualidade infantil. Aqui, por-
tanto, já há uma primeira explicitação clara da transformação do
sexual presente na sublimação.
Ainda no âmbito da primeira tópica, é consenso con-
siderar o trabalho publicado por Freud em 1910, sobre Leo-
nardo Da Vinci, uma peça fundamental no percurso de cons-
trução do conceito. Nele a sublimação é apresentada como
um dos três destinos possíveis para a curiosidade infantil, ao
lado da inibição neurótica e da erotização do pensamento com
a produção de sintomas obsessivos (Freud, 1910/1969d, p.
73-74). As considerações a respeito da atividade sublimatória

pulsão de saber – passível de ser decomposta em pulsão de


dominação e pulsão de ver (Freud, 1905/1969a) – e a investi-
gação sexual infantil. No caso de Leonardo, uma intensa exci-
tação das pulsões de ver e de saber experimentada pelo artista
em sua infância teria contribuído para uma intensificação da
atividade de pesquisa sexual infantil, provocando excitação
(Freud, 1910/1969d, p. 119). Com a emergência da puberdade,

136 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


no entanto, parte destas exacerbações da infância teria sido
recalcada, enquanto que o restante teria escapado do recalque
e sido sublimado graças a configurações de sua sexualidade
infantil. Como resultado das transformações, Leonardo teria
experimentado um “afastamento de toda atividade sexual
grosseira” (Freud, 1910/1969d, p. 120).
Entretanto, ao longo da vida do artista, as atividades que
supostamente seriam realizadas graças à sublimação enfren-
taram percalços impostos por vicissitudes da pulsão sexual. Em

rápidas e uma tendência à indecisão e à protelação teriam preju-


dicado sua produção técnica, impedindo a execução e a conclusão
de algumas obras, além de, por vezes, terem levado Leonardo a
se afastar por longos períodos de sua arte ou de suas pesquisas.
Para Freud (1910/1969d), em Leonardo poderiam ser observadas
duas modalidades sublimatórias ocorridas em momentos dis-

e outra estabelecida no início da puberdade, que o fez artista.


Cada uma destas modalidades de sublimação teria prevalecido
durante determinados períodos da vida de Leonardo, o que jus-

preponderância de ora uma, ora outra, representaria, em última


instância, uma tentativa de defesa contra o sexual stricto sensu
(Pereira, 2000). Tudo indica, portanto, que o trabalho da subli-
-
nardo, que continuou em busca de outras formas de obter satis-
fação, interferindo, inclusive, na realização da própria atividade

do trabalho do artista parecem, então, apontar para entraves na


articulação entre sublimação e a esfera do sexual, questão que
não chegou a ser problematizada por Freud.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 137


1910 foi apresentada em 1914, no texto sobre o narcisismo, quando
novas hipóteses começaram a ser propostas, inclusive aquela refe-
rente à diferença entre sublimação e idealização. No que se refere
à sublimação, Freud enfatiza que esta se dá em relação ao plano
pulsional e envolve exclusivamente a libido objetal, consistindo,
em última análise, na troca de meta da pulsão que passa, então,
a buscar sua satisfação através de objetivos afastados da esfera
sexual estrita. Acrescenta, então, que “nesse processo, a tônica

demonstra, portanto, que na sua primeira descrição metapsico-


lógica, a atividade sublimatória já é descrita como um processo no
qual a meta original da pulsão é trocada por outra. Entretanto não

forma, a sublimação apenas permaneceu aproximada da ideia de


um afastamento dos objetivos sexuais diretos, sem maiores espe-

da sexualidade” (Freud, 1914/1969f, p. 111).


Em 1923, entretanto, com a publicação de O ego e o id
(Freud, 1923/1969i), texto no qual o conceito de sublimação
ganhou novos contornos teóricos a partir da emergência da
segunda tópica, ampliou-se a compreensão acerca da perda do
caráter sexual estrito que se observa nas pulsões sublimadas.
-

processo sublimatório. Nesta reviravolta conceitual, o papel da

sobre o isso colocando-se no lugar do objeto desejado através de

o que, por sua vez, promove uma dessexualização.


Quando o ego assume as características do objeto [pela

138 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


como um objeto de amor e tentando compensar a perda

semelhante ao objeto”. A transformação da libido do


objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obvia-
mente implica um abandono de objetivos sexuais, uma
dessexualização – uma espécie de sublimação, portanto.
Freud, 1923/1969i, p. 44)

Então, a partir do momento em que a libido toma o próprio

dá-se a transformação dos objetivos da pulsão em alvos não


sexuais, uma renúncia das metas sexuais diretas ou, em outras
palavras, uma dessexualização – aqui considerada como uma
sublimação (Freud, 1923/1969i). Surge, então, a questão de saber
se esta via pela qual se dá a mudança do alvo pulsional, que passa
de libido objetal a libido narcísica graças à ação do eu no processo

(Freud, 1923/1969i, p. 44). Ao mesmo tempo, Freud também


alerta para a possibilidade de esta mudança realizada pela ins-
tância egoica “ocasionar uma desfusão dos diversos instintos que
se acham fundidos” (Freud, 1923/1969i, p. 45), isto é, sugere haver
uma associação entre dessexualização e desfusão pulsional.
Mellor-Picaut, em seu artigo Idéalisation et sublimation (1983),

partir da década de 1920 torna-se evidente que o processo que leva


à sublimação requer uma transformação da libido objetal em libido

para a relevância da desfusão como explicitado por Freud quando

dessexualização ou mesmo de uma sublimação. Parece então que,


quando uma transformação desse tipo se efetua, ocorre ao mesmo
tempo uma desfusão instintual” (Freud, 1923/1969i, p. 71).
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 139
desta forma, passam a ser elementos de um mesmo conjunto
conceitual orquestrado pelo eu. A ação do eu e do mecanismo

sublimação implique numa desfusão pulsional, visto que, após


ser sublimado, o componente erótico da pulsão perde em inten-
sidade e acaba se desatrelando do componente agressivo, pro-
cesso no qual a atuação do eu é central.
A perda do caráter sexual estrito foi associada à sublimação
desde suas primeiras utilizações em psicanálise, constituindo-se em
sua marca de origem. No entanto, foi apenas em 1923, no contexto
de emergência da segunda tópica, e através da articulação entre
-

sublimação e dessexualização que assinala inequivocamente uma


mudança na meta pulsional em curso na atividade sublimatória.

Já no que tange à idealização, esta, de fato, foi discutida


por Freud apenas em segundo plano, isto é, através da compa-
ração com relação a outros mecanismos psíquicos – a sublimação

sua concepção metapsicológica a idealização é descrita exclusi-


vamente como um processo no qual as qualidades do objeto são
exaltadas, sem que haja qualquer discussão a respeito de sua
origem ou de sua compreensão a partir dos pontos de vista eco-
nômico, tópico ou dinâmico.

vez apenas em 1914, seu funcionamento já havia sido anterior-

140 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mente apresentado, em trabalhos que abordavam a questão
da superestimação sexual (Laplanche & Pontalis, 2001/1982).
Assim, em Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do
amor – Contribuições à psicologia do amor II (Freud, 1912/1969e),
a supervalorização do objeto sexual, enquanto “a mais alta valo-
rização psíquica do objeto” (p. 165), foi apresentada como um
traço comum do estado de apaixonamento, em especial no caso
dos homens, que poderia ou não coincidir com as características
da paixão sensual. Tal fenômeno seria, então, uma manifestação
da corrente afetiva da libido, ou seja, um derivado da afeição
que se ligava aos objetos mais primitivos. Já o interesse erótico
experimentado com relação ao objeto sexual teria sua origem
na corrente sensual da libido, isto é, na atração incestuosa des-
tinada também aos primeiros objetos. A supervalorização do
objeto amoroso voltou a ser mencionada em 1914, texto no qual
é considerada como uma expressão própria da idealização, con-

Ainda no texto sobre o narcisismo, a discussão a respeito


da idealização vai além a partir de sua vinculação ao processo
de constituição das instâncias ideais. Neste sentido, a formação
de um ideal, associada ao mecanismo de idealização, poderia
se dar tanto na esfera da libido objetal quanto da libido do eu,
mas sua ação, diferentemente do que ocorre com a sublimação,
incide sobre o objeto, e não sobre a pulsão. A idealização, assim,
refere-se à exaltação e à valorização psíquica do objeto, sem, no
entanto, resultar em uma transformação de fato em sua natureza
(Freud, 1914/1969f, p. 111).
O papel da idealização na situação amorosa ganhou des-
taque também em Psicologia de grupo e análise do ego (Freud,
1921/1969g) quando foi mais uma vez relacionada à supervalori-
zação dos atributos do objeto amado e, pela primeira vez, asso-
ciada à inibição dos objetivos sexuais. Uma relação amorosa com-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 141


portaria, então, uma síntese de pulsões desinibidas e inibidas em
seus objetivos. Se, por um lado, as forças desinibidas tenderiam a
ser extintas após obterem satisfação, por outro, sua mescla com
pulsões inibidas em seus objetivos garantiriam a continuidade do
vínculo com o objeto (Freud, 1921/1969g, p. 146). Neste contexto,
a fascinação por características do objeto, mesmo envolvendo
elementos inteiramente afastados da esfera da sexualidade, seria
despertada graças ao seu “encanto sensual” (Freud, 1921/1969g,

Se a supervalorização sexual e o estar amando aumentam


ainda mais, a interpretação do quadro se torna ainda mais
inequívoca. Os impulsos cuja inclinação se dirige para a
satisfação diretamente sexual podem agora ser empur-
rados inteiramente para segundo plano, como por exem-
plo acontece regularmente com a paixão sentimental de
um jovem; o ego se torna cada vez mais despretensioso
e modesto e o objeto cada vez mais sublime e precioso,

cujo auto-sacrifício decorre, assim, como conseqüência


natural (Freud, 1921/1969g, p. 143).

E seriam os impulsos que não alcançam sua efetiva satis-


fação sexual, mas que, pelo contrário, são “empurrados inteira-
mente para segundo plano” (Freud, 1921/1969g, p. 143), isto é, são
inibidos em sua meta, que contribuiriam para a supervalorização
-
quívoca entre os dois processos na qual a inibição quanto à meta
fundamenta o fenômeno da idealização. Esta hipótese permite
uma descrição da idealização que, ultrapassando o caráter mera-
mente descritivo, possibilita uma compreensão metapsicológica
deste mecanismo psíquico.
Embora a ideia de uma inibição já tivesse sido abordada
por Freud desde os Três ensaios (Freud, 1905/1969a, p. 166), foi
apenas em Psicologia de grupo e análise do ego, de 1921 que a
142 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
ideia de inibição foi pensada em relação ao objetivo pulsional e
apresentada como sendo um destino no qual a pulsão “renuncia
à maior parte de seus objetivos sexuais” (Freud, 1921/1969g, p.
141). Frente aos obstáculos encontrados na busca de satisfação,
as pulsões encontram diferentes saídas, dentre elas a inibição de
seus objetivos originais de caráter sexual. Neste caso, o caráter
sexual stricto sensu da pulsão é abrandado, apresentando-se
apenas como sentimentos ternos e afetuosos (Freud, 1921/1969g)
já que, impedidas de atingir seus objetivos iniciais, as pulsões
inibidas se contentam com “certas aproximações à satisfação”
(Freud, 1923/1969h, p. 311).
A inibição da meta pulsional, no sentido aqui empregado,
diferencia-se claramente da inibição enquanto sintoma que
comumente encontramos em outros trabalhos de Freud nos quais
aparece como uma inibição do funcionamento egoico em geral
(Freud, 1926/1969k), ligada à função sexual, alimentação, loco-

2009). Inibição, sintoma e angústia (Freud, 1926/1969k) é, sem


dúvida, o trabalho em que a noção de inibição é discutida de forma
mais consistente, embora ela apareça no texto freudiano desde
Projeto, de 1895. Assim, segundo Kamieniak e Kaswin-Bonnefond
(2009), em 1926, a inibição é pensada como processo psíquico e
também como sintoma, o que é, inclusive, mais evidente clinica-
mente. Esta duplicidade de registros aponta para o fato de que a
inibição participa igualmente do processo de constituição do eu
e da formação de sintomas. Entretanto, a pulsão inibida quanto
à meta, no sentido em que vem sendo aqui empregado, designa
exclusivamente um destino da pulsão que implica num abranda-
mento do sexual estrito que, por sua vez, garante a manutenção
dos vínculos de ternura e amizade.
É com relação à origem dos sentimentos sociais que as
pulsões inibidas quanto à meta ganham destaque nos textos

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 143


de Freud, já que sustentariam os vínculos de amizade, alicerces
das relações sociais, além dos laços de ternura que envolvem

origem inegavelmente sexual que, frente às restrições culturais,


tem seus objetivos primordiais inibidos, o que transforma os vín-
culos objetais e garante a emergência de relações duradouras,
como também acontece na situação de se estar amando (Freud,
1921/1969g). Neste sentido, as pulsões inibidas quanto à meta
estariam associadas às inibições sexuais da latência, descritas
já nos Três ensaios (Freud, 1905/1969a, p. 166), e, consequente-

As tendências libidinais pertencentes ao complexo de


Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas (coisa
que provavelmente acontece com toda transformação

objetivo e transformadas em impulsos de afeição. (Freud,


1924/1969j, p. 221).

Esta citação contém referência à dessexualização e também


à inibição que estariam presentes na saída do Édipo, tema a cuja
discussão Freud se dedicou principalmente na década de 20.
De fato, a noção de pulsões inibidas em seus objetivos é
contemporânea à ideia de dessexualização na obra de Freud, uma
vez que ambas são propostas no início da década de 1920. Ini-
cialmente, dessexualização e inibição quanto à meta aparentam
ter em comum o fato de designarem processos em que a pulsão
sexual é levada a abandonar seus objetivos iniciais. No entanto,
ao longo do texto freudiano, as diferenças vão se evidenciando.
Assim, ainda em 1921, comentando a respeito das pulsões ini-
bidas quando à meta, Freud se refere ao caráter sexual da inibição
-

144 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Ademais, esses instintos inibidos em seus objetivos con-
servam alguns de seus objetivos sexuais originais; […]. Se

um início da sublimação dos instintos sexuais ou, por outro

ponto mais distante (Freud, 1921/1969g, p. 74).

Ainda que, neste momento, não sejam explicitadas as dife-


renças entre elas a sublimação pode aqui ser associada a um “a
mais”, indo além da inibição dos objetivos pulsionais. Em um
verbete escrito para uma enciclopédia em 1922, esta diferença é,

Impulsos sexuais inibidos quanto ao objetivo – Os ins-


tintos sociais pertencem a uma classe de impulsos instin-
tuais que prescindem serem descritos como sublimados,
embora estejam estreitamente relacionados com estes.
Não abandonaram seus objetivos diretamente sexuais, mas
são impedidos, por resistências internas, de alcançá-los;
contentam-se com certas aproximações à satisfação e,
por essa própria razão, conduzem a ligações especial-

(Freud, 1923/1969h, p. 311. Itálicos meus).

Assim, a inibição quanto à meta não implica uma efetiva


mudança dos objetivos sexuais da pulsão, mas apenas um desvio

sustentado por forças inibidas, ainda que se manifeste apenas


através de sentimentos ternos e afetuosos, afastados de qualquer
evidência de sua origem no campo da sexualidade stricto sensu,
pode, de fato, conservar traços que demonstram que seu caráter
sexual não foi realmente abandonado, permanecendo apenas
inibido. Retomando, então, a hipótese de que a idealização
estaria fundamentada em pulsões de meta inibida, sugerimos
que a manutenção dos objetivos sexuais da pulsão está em curso
no processo de idealização e pode ser determinante na superesti-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 145


mação do objeto inerente ao mecanismo da idealização, diferen-
temente do que ocorre com a sublimação – processo em que se dá
a dessexualização da pulsão.
Segundo Mellor-Picaut (1983, p. 136), seria a preservação do
caráter de admiração narcísica próprio das primeiras relações de
objeto que levaria à superestimação do objeto, própria da ideali-
zação. É possível, então, supor que as relações com os primeiros
objetos envolvem uma inibição das metas da pulsão que não
apenas assegura a preservação de seu caráter sexual, mas também
transforma o objeto em idealizado, fascinante, enganador.
A associação entre idealização e a inibição quanto à meta
pulsional é proposta também por Jean-Louis Baldacci (2009) que,
a partir das observações sobre a situação amorosa apresentadas
-
-se no objeto superestimado graças à inibição quanto à meta pul-
sional e ao contra-investimento” (Baldacci, 2009, p. 1409).
Também para Baldacci (2009), então, as pulsões inibidas
quanto à meta são acompanhadas de uma superestimação do
objeto, conservando o caráter sexual da pulsão e se opondo,
desta forma, à dessexualização da pulsão. Assim, a estreita arti-
culação entre idealização e pulsões inibidas quanto à meta con-
tribui de maneira determinante para a compreensão do meca-
nismo da idealização.

A formulação de uma articulação entre sublimação e des-


sexualização é, de fato, inquestionável no argumento freudiano,
ainda que não conte com um robusto desenvolvimento con-
ceitual. Entretanto, a associação entre idealização e inibição da
-
nição conceitual.

146 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


A sublimação implica num processo de dessexualização da
libido, que, por sua vez, supõe uma efetiva transformação dos obje-

inclusive, novas formas de obtenção de satisfação da pulsão (Freud,


1923/1969i; 1930/1969l). A atividade sublimatória compreende não
apenas um abandono dos objetivos, mas também de seus objetos
primitivos (Freud, 1933/1969m), o que implica uma verdadeira
transformação pulsional (Mellor-Picaut, 1983). Já no caso da idea-
lização, considerando a hipótese de sua articulação com as pulsões
inibidas quanto à meta, observa-se uma conservação dos objetivos
originais da pulsão, que não são transformados, mas inibidos. Tais
forças pulsionais insistem em se manter próximas de seus objetos
originais, agora idealizados, para “prolongar a ilusão da plenitude
narcísica” (Baldacci, 2009, p. 1409).
Idéali-
sation et sublimation (1983), Mellor-Picaut mostra sinteticamente
de que maneira se diferenciam a idealização e a sublimação,

A idealização seria uma perpetuação, sob uma outra forma, de


questões libidinais primitivas e se opõe, desta forma, à subli-
mação, que envolve um processo de metabolização da pulsão
(Mellor-Picaut, 1983, p. 137).
Partindo, do texto de 1914, convém agora remarcar as
diferenças e semelhanças entre estes dois processos que foram
se delineando ao longo da construção freudiana. Naquele
momento, o que se conhecia a respeito de cada um deles possi-
bilitou apenas a conclusão de que “a sublimação descreve algo
que ocorre com a pulsão, e a idealização, algo que ocorre com
o objeto” (Freud, 1914/1969f, p. 113). Esta observação foi pos-
teriormente problematizada em especial a partir das noções
de dessexualização (Freud, 1923/1969i) e de inibição quanto à
meta pulsional (Freud, 1921/1969g), que tornaram mais consis-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 147


tentes as diferenças entre sublimação e idealização. Por outro
lado, sublimação e idealização foram também aproximadas no
que tange a seus atributos principais. Neste sentido, o processo
sublimatório, que em 1914 havia sido atribuído a uma transfor-
mação pulsional, passou a envolver também uma mudança com
relação ao objeto da pulsão (Freud, 1933/1969m), o que ante-
riormente era exclusivo da idealização. Já a idealização, inicial-
mente caracterizada apenas pela supervalorização do objeto, de
forma semelhante à sublimação, passou também a ser associada

meta (Freud, 1921/1969g; Baldacci, 2009).


No que tange às diferenças entre sublimação e idealização,
Mellor-Picaut (1983) sugere que o trabalho sobre Leonardo Da
Vinci (Freud, 1910/1969d) já anunciava esta questão. Comen-

curiosidade presente na sexualidade infantil poderia ter três des-


tinos distintos, a saber, uma inibição neurótica, uma erotização
do pensamento ou a sublimação propriamente dita, a autora
sugere que Leonardo não seria um caso de “sublimação ‘pura’”
(Mellor-Picaut, 1983, p. 127). Suas atividades como artista e como
cientista evidenciariam também aspectos referentes ao segundo
destino possível para a pesquisa infantil, isto é, a erotização do
pensamento, que consiste na associação entre sexualidade e ati-

uma preocupação pesquisadora compulsiva, natural-


-
cientemente forte para sexualizar o próprio pensamento
e colorir as operações intelectuais, com o prazer e a ansie-
dade características dos processos sexuais. Neste caso,
a pesquisa torna-se uma atividade sexual, muitas vezes
única, e o sentimento que advém da intelectualização e
explicação das coisas substitui a satisfação sexual; mas
o caráter interminável das pesquisas infantis é também

148 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


repetido no fato de que tal preocupação nunca termina
e que o sentimento intelectual, tão desejado, de alcan-
çar uma solução torna-se cada vez mais distante (Freud,
1910/1969d, p. 74).

Segundo Mellor-Picaut (1983), estas características


poderiam ser observadas no trabalho realizado por Leonardo,
em especial na execução da estátua equestre de Francesco
Sforza, bem como em outras obras que o artista nunca deu por
terminadas. Este aspecto da produção artística de Leonardo
dever-se-ia, por sua vez, às “ambições enormes, difíceis de satis-
fazer” (Freud, 1910/1969d, p. 63), o que envolveria “a ação sub-
jacente da idealização, […] entendida como o processo psíquico
pelo qual o valor do objeto é elevado à perfeição” (Mellor-Picaut,
1983, p. 127). No caso de Leonardo, seria a própria obra do artista
que estaria sendo supervalorizada, mantendo-se próxima a um
ideal elevado. A idealização, assim, contribuiria para a aproxi-
mação com ideais de completude e perfeição, de modo a sus-
citar uma “imobilização fascinada” (Mellor-Picaut, 1983, p. 128).
No caso de Leonardo, então, a idealização se imiscuiria com o
processo de sublimação, interferindo no seu caráter de “subli-

Acrescentando, então, à hipótese de Mellor-Picaut (1983),


sugerimos que a idealização de Leonardo se sustenta numa ini-
bição da meta pulsional, que, de fato, a diferencia radicalmente de
uma atividade sublimatória, na medida em que preserva o caráter
sexual da satisfação parcial obtida. Isto poderia explicar “o caráter
interminável das pesquisas infantis”, que permanece conservado
em Leonardo e que se manifesta através de uma “preocupação
[que] nunca termina”, mas que possibilita alguma aproximação
à satisfação de caráter sexual. Com isso, ainda que a atividade
de artista ou pesquisador se desenvolva em um campo aparen-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 149


temente distante da esfera da sexualidade estrita, as forças res-
ponsáveis por sua realização conservam, em certa medida, seu
caráter sexual sob a forma de inibição, evidenciando traços de
“prazer e ansiedade características dos processos sexuais” (Freud,
1910/1969d, p. 74).
Mellor-Picaut (1983) ainda destaca que esta insistência em

-
bém não pode ser confundido com a ruminação obses-
siva que, assim como é mostrado no caso do Homem dos
Lobos, se limita a uma reiteração estéril da mesma ques-
tão sob formas diferentes, sem que nenhuma resposta,
mesmo que parcial, possa ser trazida e marque, assim,
seu assujeitamento ao passado infantil (Mellor-Picaut,
1983, p. 129. Minha tradução).

Diferentemente, em Leonardo, mesmo suas obras incom-

o que as diferencia de produtos de uma ruminação obsessiva.


De fato, a “preocupação pesquisadora compulsiva”, “o caráter
interminável das pesquisas”, “o prazer e a ansiedade” (Freud,
1910/1969d, p. 74) que marcam a erotização do pensamento
parecem enfatizar a existência de uma tensão permanente na
realização do trabalho, indicativa da preservação do caráter
sexual da pulsão, tal como ocorre na neurose obsessiva, mas sua
produção não se dá de forma estéril, como ocorre nos quadros
neuróticos. Em Leonardo, então, o esforço inextinguível de
investigação tem suas raízes na fascinação pelo objeto própria
da idealização, que, por sua vez, se apoia em pulsões de meta
inibida, que mantém seu caráter sexual original.
Esta leitura a respeito da ação da idealização no processo
de produção artística de Leonardo sugere que, tal como a subli-

150 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mação, também a idealização está implicada no processo de
produção de cultura. A rigor, esta característica já fora ressaltada
por Freud em Psicologia de grupo e a análise do ego (Freud,

líder, sua colocação no lugar de ideal, quanto a inibição quanto à


meta, em jogo na formação dos laços entre os demais membros,
foram assinaladas como elementos fundamentais à constituição
dos grupos humanos e de fenômenos sociais, como as religiões.
Então, não apenas a sublimação, mas também a idealização par-
ticipa da produção civilizatória, sustentada não mais apenas pela
dessexualização, própria da sublimação, mas, neste caso, pela ini-
bição da meta pulsional.
É em O mal-estar na civilização (Freud, 1930/1969l) que a
hipótese de que ambas, sublimação e idealização, participam da
construção da cultura se apresenta de forma mais evidente. Uma
vez que a necessidade de proteção tornou fundamental a orga-
-

A vida comunitária dos seres humanos teve, portanto,

criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que


fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a
mulher – e a mulher, em privar-se daquela parte de si pró-

p. 121).

O trabalho aponta para o papel essencial da sublimação


e da dessexualização na composição civilizatória, ligado, neste
contexto, à tarefa de produção de cultura e de transformação da
natureza. Por sua vez, o amor, cuja constituição envolve as pulsões

1921, assume também uma função fundamental na organização


das sociedades, participando não apenas da composição de

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 151


famílias, mas também na formação de grupos sociais maiores que
contribuem para realização de uma tarefa de interesse comum.
Trabalho e amor, sublimação e idealização, dessexualização e ini-
bição quanto à meta pulsional, assim, combinam-se entre si, na
tessitura e na manutenção da civilização humana.
Já que as vicissitudes da pulsão apresentam “uma natureza
história, isto é, essencialmente aberta a mudanças no espaço

dos desdobramentos da pulsão na atualidade. Então, considerando


as observações apresentadas, sugerimos, tentativamente, que con-
sequências subjetivas, resultantes de mudanças sócio-históricas
ocorridas nas últimas décadas, apontam para um incremento sig-

na produção da cultura. Assim parece ser, quando consideramos o


predomínio inquestionável da lógica do consumo na experiência do
sujeito ocidental contemporâneo, na qual a dinâmica da sedução e
fascínio pelos objetos de consumo são inquestionáveis (Baudrillard,
1970/1995), o que nos parece apontar para um processo de ideali-
zação em curso. Neste sentido o que ocorre no campo da arte con-
temporânea, especialmente no que se refere às artes plásticas e ao

estas manifestações artísticas “consumidas com voracidade pela


sociedade e comercializadas com êxito, ao contrário das produções
da anterior modernidade” (Jameson, 1985, p. 25). Produções artís-
ticas, principalmente quando anteriormente consideradas per-
turbadoras e chocantes, passam por um processo de idealização,
tornando-se objetos privilegiados de consumo cultural. Exercem
fascínio e são consumidas rápida e acriticamente, submetidas que
são à lógica do consumo dominante na atualidade das sociedades
ocidentais, o que parece afastar a esfera artística de sua posição
classicamente crítica e inovadora, para melhor se adequar à lógica
do consumo (Jameson, 1985).

152 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Aventamos, então, a hipótese de que algumas produções
contemporâneas apresentam na sua composição o predomínio da
idealização e, portanto, da inibição da meta pulsional, afastando-
-se, assim, da sublimação e, portanto, da dessexualização. Com
isso, talvez seja possível supor que a produção de cultura não se dá
exclusivamente a partir de um afastamento radical com relação à
esfera sexual stricto sensu, mas também pode envolver a inibição
da meta pulsional que garante a preservação do caráter sexual
da pulsão. Este processo, cujas consequências culturais e subje-
tivas apenas se esboçam, certamente vai se constituir em mais um

Baldacci, (2009). ‘Dès les debut’... la sublimation?. Revue Française de Psychanalyse,


LXIX(5), 1405-1474.
Baudrillard, J. (1995). A sociedade de consumo.
publicado em 1970).
Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. VII
Imago. (Trabalho original publicado em 1905).
Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. IX (p. 161-172).

Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. IX (p. 185-210). Rio de

Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XI (53-124). Rio de

Freud S. (1912/1969e). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor –


Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, v. XI
publicado em 1912).

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 153


Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIV
(Trabalho original publicado em 1914).
Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVIII
Imago. (Trabalho original publicado em 1921).
Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XVIII
1969. (Trabalho original publicado em 1923).
Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, v. XIX
original publicado em 1923).
Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIX
Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1924).
Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XX
(Trabalho originalmente publicado em 1926).
Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXI
(Trabalho originalmente publicado em 1930).
Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXII (p.13-222).

Edição standard brasileira das obras


psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXIII
(Trabalho original publicado em 1940).
Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud, v. I
1950).
Freud S. Escritos sobre a psicologia do
inconsciente, v. I
em 1915).

Infância e adolescência na cultura do consumo


Garcia-Roza, (1995). Introdução à metapsicologia freudiana
Jameson, F. (1985). Pós-modernidade e sociedade de consumo. Novos estudos, 12. 16-
26.

154 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Revue Française de
Psychanalyse, LXIX (5), 325-330.
Laplanche, J. (1980). Problemáticas III
Laplanche, J., Pontalis, J. B. (2001) Vocabulário de psicanálise
(Trabalho original publicado em 1982).
Mellor-Picaut, S. (1983). Idéalisation et sublimation . Nouvelle Revue de Psychanalyse,
XXVII, 124-140.
Pereira, S. W. (2000). Uma nova visada sobre o tema da sublimação. Pulsional, XIII(137),
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Pinheiro, T. (1999). Sublimação e idealização na obra de Freud. Cadernos de psicanálise
da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro, v. 15(18), 11-23.

pulsionais na contemporaneidade. Psyché, v. II, VII(11), 29-38.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 155


CAPÍTULO 7

ENTRE O TRAUMA E O TRAUMÁTICO:


A LESÃO CEREBRAL DE PEDRO E O PRESENTE PERMANENTE

Monah Winograd, Perla Klautau & Flávia Sollero-de-Campos

É consenso que, após um estado inicial de congelamento


e paralisação, certos acontecimentos traumáticos impactam a
organização psíquica de tal modo que produzem diversos efeitos
patológicos. Sem recursos simbólicos capazes de engendrar
um trabalho elaborativo, a compulsão à repetição surge como
atualização incessante do trauma em um esforço de elaboração
fracassado. Nesta lógica de funcionamento psíquico, vemos ins-
taurar-se a temporalidade do presente permanente, tempo que

uma narratividade a partir da qual seja possível estabelecer uma


via de elaboração para o golpe traumático, permitindo uma his-
toricização capaz de inaugurar um outro passado e um futuro
novo. Para fundamentar, apoiar e ilustrar o desenvolvimento
teórico, apresentamos um caso de adoecimento neurológico
atendido no âmbito das pesquisas Do cérebro à palavra: a clínica
com pacientes neurológicos e Aspectos subjetivos do adoecimento
neurológico, ambas realizadas na PUC-Rio e com o apoio da
FAPERJ (Prêmio Jovem Cientista do Nosso Estado/2010 e Apoio
a Pós-Doutorado (CAPES/FAPERJ)/2011) e do CNPq (Bolsa de
Produtividade 2)5.

5
Apoios da FAPERJ (processos n. E-26/101.498/2010 e E-26/102.784/2011) e do CNPq (processo n.
305175/2012-2).

157
Em dois artigos já célebres, Thierry Bokanowski (2002 e 2005)
examinou o conceito de trauma na obra freudiana e dividiu sua for-
mulação em três momentos. Deixando de lado a discussão sobre

algeriano, é certo que, devido aos remanejamentos conceituais


efetuados por Freud, o conceito de trauma conheceu ao menos
três acepções, as quais podem ser aproximadas dos seguintes

narcísicos-identitários. A primeira foi a de traumatismo — termo


que nomearia o período da elaboração freudiana de 1895 a 1920.
Englobando a Teoria da Sedução e a lógica do trauma em dois
tempos, este primeiro período pode ser subdivido em dois. No pri-
meiro momento deste primeiro período, o modelo de trauma foi
pensado em função dos efeitos psicopatológicos derivados de uma
violência externa e teve no famoso caso Emma (Freud, 1950 [1895])
seu exemplo paradigmático. Para explicar a compulsão fóbica de
sua paciente, Freud propôs uma reconstrução dos tempos do trau-

na puberdade e a outra (cena II), por volta dos oito anos de idade.
Na primeira cena relatada, ao entrar numa loja e ver dois vende-
dores rindo juntos, Emma foi tomada por uma espécie de susto
e saiu correndo, julgando estarem rindo de suas roupas. A Freud
confessou que um deles a havia agradado sexualmente. A segunda
cena remontava à ocasião em que estivera desacompanhada em
uma confeitaria, tendo o proprietário agarrado suas partes genitais
por cima da roupa (apesar disto, contou ter voltado à mesma con-
feitaria mais uma vez). Entre as duas, segundo a própria Emma, o
riso fazia o laço associativo.
o riso dos vendedores a fez lembrar-se do sorriso com que
o proprietário da confeitaria acompanhou sua investida.

158 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


A marcha dos acontecimentos agora pode ser recons-
tituída. Na loja, os dois vendedores estavam rindo; esse
riso evocou (inconscientemente) a lembrança do proprie-
tário. De fato, a segunda situação tinha ainda outra seme-

em uma loja. Juntamente com o dono da confeitaria,


lembrou-se de que ele a agarrara por cima da roupa; de
que desde então ela alcançara a puberdade. A lembrança
despertou o que ela certamente não era capaz na ocasião,
uma liberação sexual, que se transformou em angústia.
Devido a essa angústia, ela temeu que os vendedores da
loja pudessem repetir o atentado e saiu correndo (Freud,
1950 [1895], p. 476).

Vê-se, nesta passagem, o desenho da lógica da expressão

trauma em dois tempos. As consequências do acontecimento


traumático só se estabeleceriam a posteriori, ou seja, o trauma-
tismo não se instalaria no instante ou imediatamente depois
do primeiro acontecimento traumático (cena II). Somente em
um segundo tempo (só depois), outra cena (cena I), associada à
anterior por traços, conferiria sentido e valor traumático à pri-
meira. Mas, se esta lógica em dois tempos permaneceu válida

sua Teoria da Sedução. Este primeiro período — de 1895 a 1920

como o abandono da neurótica -


lidade dos fatos deu lugar às fantasias como fator princeps na
etiologia das neuroses e, com isso, as situações traumáticas para-
digmáticas passaram a ser relativas às fantasias originárias de
sedução, castração, cena primitiva, complexo de Édipo, etc. e às
suas angústias aferentes. Agora, o traumatismo era concebido
como sendo expressão direta da força das pulsões sexuais em sua
luta com o Eu e vice-versa — eis o segundo momento deste pri-
meiro período.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 159


Traumático
período das elaborações freudianas sobre a problemática do
trauma, compreendendo os anos de 1920 a 1939 (Bokanowski,
2002 e 2005). Nesta acepção, o trauma era pensado como resul-
tante da incapacidade de reação psíquica ao impacto de uma
intensidade excessiva e seu modelo teórico era composto pelas
ideias de rompimento da para-excitação e de desamparo (Freud,
1920a e 1926, respectivamente6). Em ambas, o fator econômico

à tolerância do sujeito e à sua possibilidade de dominá-lo e ela-


borá-lo provocaria a efração ou ruptura da para-excitação. Nas

Descrevemos como “traumáticas” quaisquer excitações

para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o con-


ceito de trauma implica necessariamente numa conexão
desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros

como um trauma externo está destinado a provocar um


distúrbio em grande escala no funcionamento da energia
do organismo e a colocar em movimento todas as medi-
das defensivas possíveis. Ao mesmo tempo o princípio do
prazer é posto momentaneamente fora de ação. Não há
mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja
inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez
disso, outro problema surge, o problema de dominar as
quantidades de estímulos que irromperam, e de vinculá-

desvencilhar (Freud, 1920a, p. 45).

-
mento de situações nas quais teria existido um perigo real, tendo

6
Esta divisão pode ser alvo de críticas ao englobar os remanejamentos de 1920 e 1926. Poder-se-ia
objetar ser necessário separar a virada de 1920 e a segunda teoria da angústia. Um aprofundamento
desta problemática requereria um estudo minucioso que foge ao escopo deste trabalho.

160 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


levado o Eu a temer a morte, este quadro foi traduzido clinica-
mente pela neurose traumática e é classicamente descrito como
apresentando sintomas nos quais o traumatismo toma parte
determinante (ruminação do acontecimento traumatizante,
pesadelos recorrentes, perturbação do sono, inibição mais ou
menos generalizada das atividades do sujeito, etc.). Porque a
excitação não pode ser tramitada psiquicamente, dissolvendo
a lógica de funcionamento segundo o Princípio do Prazer, o
dispositivo de compulsão à repetição teria se ativado em um
esforço simultâneo de descarga e de domínio da excitação não
metabolizada. Nestes casos, as marcas do trauma sofreriam

retranscrições e sua articulação em uma rede representacional.

libidinal, pois, se a última expressaria classicamente uma ade-


rência da libido a determinados objetos, modos de obtenção de
satisfação e/ou fases do desenvolvimento, a primeira revelaria
um movimento regressivo desorganizador em consequência da

pulsão de morte mais além do Princípio do Prazer. Daí o enten-


dimento de que os sonhos traumáticos repetitivos não seriam
expressão da realização alucinatória dos desejos.
Seis anos depois, Freud continuava traduzindo o traumático
pela ideia de efração do para-excitação, porém, acrescentava um

origem externa ao aparato psíquico quanto de origem interna. E

dos quadros de neurose traumática e o medo da castração. Nas


suas palavras, era preciso
aderir ao ponto de vista de que o medo da morte deve
ser considerado como análogo ao medo de castração
e de que a situação à qual o ego está reagindo é de ser

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 161


abandonado pelo superego protetor – os poderes do des-
tino – , de modo que ele não dispõe mais de qualquer sal-
vaguarda contra todos os perigos que o cercam (Freud,
1926, p. 153).

Ou seja, a hipótese era de que o Eu reagiria da mesma


maneira tanto diante de um real perigo de morte quanto da
ameaça de abandono pelo superego protetor ou de perda do
objeto. Ora, sabemos que em psicanálise, o conceito de castração
deve ser entendido de forma distinta do sentido habitual de
mutilação do órgão sexual masculino. Bem mais amplo, ele pode
também designar experiências psíquicas (conscientes ou incons-
cientes) nas quais intervém um elemento de perda ou de sepa-
ração de um objeto, tais como a perda do seio no ritmo da ama-
mentação e do desmame do bebê. Em 1926, estas experiências
de perda ou de separação — estado de desamparo — tornaram-se
o paradigma da angústia por transbordamento em função de seus
efeitos de aumento progressivo da tensão até o ponto de o sujeito
sentir-se submergir em excitações que ele é incapaz de dominar.
Nota-se um recuo da teorização freudiana em direção às expe-
riências traumáticas na estruturação do psiquismo.
Tais remanejamentos teóricos sobre o trauma culminaram
no terceiro período das elaborações freudianas sobre esta proble-
mática, cuja coroação aconteceria em 1939 (Bokanowski, 2002 e
trauma, este último momento enfati-
zaria a problemática dos traumas precoces da primeira infância
(até aproximadamente o quinto ano de idade) também no desen-

“Denominamos traumas aquelas impressões, cedo experimen-


tadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande
importância na etiologia das neuroses” (Freud, 1939, p. 91). Mais

sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias,

162 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


principalmente algo visto ou ouvido, isto é, experiências ou
impressões” (Freud, 1939, p. 93). Reunindo os elementos das duas
breves passagens transcritas, é possível perceber que o trauma
estaria relacionado ao que, por sua intensidade, foi vivido sem a
possibilidade de ser digerido psiquicamente, ou seja, foi experi-
mentado corporal ou sensorialmente e resultou em marcas, ves-
tígios ou impressões os quais, por sua inscrição anterior à aqui-
sição da linguagem, só puderam ser minimamente processados
através de defesas primárias e ainda rudimentares.
Nos primeiros anos de vida e após sua organização mínima,
o Eu infantil, regido exclusivamente pelo Princípio de Prazer,
teria a tarefa — que perduraria por toda a vida — de mediar as
exigências do Isso relativamente ao mundo externo, além de
proteger o aparato psíquico em formação dos perigos do mundo
externo. Tais operações ocorrem através do engendramento de
processos defensivos, não só relativamente aos perigos externos,
mas também em relação às exigências corporais e do Isso (perigos
internos). Não importa de onde vem o perigo, os processos defen-
sivos são os mesmos, sendo um deles a alteração de si mesmo

-
pondem a cicatrizes que se formaram quando um processo com-
pletou o seu curso” (p. 152).
Nestas hipóteses tardias, a literatura psicanalítica pós-
-freudiana (por exemplo, Winnicott, 1954a e 1954b, Balint, 1952 e
1967, Bion, 1957, Green, 1986, e Roussillon, 1991) acreditou reco-
nhecer indicações de como entender o funcionamento das pato-
logias narcísico-identitárias, as quais trazem como marca patente

-
-ia dizer, um Estado dentro de um Estado, um partido inacessível,

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 163


com o qual a cooperação é impossível, mas que pode alcançar
êxito em dominar o que é conhecido como partido normal e
forçá-lo a seu serviço” (Freud, 1939, p. 95), como uma espécie de
um estado permanente de traumatismo. Assim como na neurose
traumática, também nestes quadros vê-se a compulsão à repe-
tição dominar a cena psíquica na tentativa de elaborar o que per-
maneceu somente como marca ou traço e de descarregar a inten-
sidade que não pode ser tramitada psiquicamente. Presente ao
longo da vida como fundo, o estado de desamparo tornar-se-ia
-
cocemente experimentadas.

A partir das pesquisas Do cérebro à palavra: a clínica com


pacientes neurológicos e Aspectos subjetivos do adoecimento
neurológico, formulamos a hipótese de que, em muitos casos,
o quadro psicopatológico que se instala após a percepção e a
experiência das sequelas de adoecimentos neurológicos (parti-
cularmente TCEs e AVEs, mas também nas síndromes degene-
rativas) estaria em algum ponto entre a neurose traumática e
as patologias narcísico-identitárias. Ora, certas lesões cerebrais
podem provocar sequelas motoras e disfunções cognitivas irre-

sentimento de individualidade e na apreensão de si ao longo do


tempo, o que obstaculizaria o reconhecimento de si no plano
imaginário e especular. Entre um passado, no qual o corpo e as
funções cognitivas estavam em perfeito funcionamento, e um
futuro inaceitável porque limitado e empobrecido relativamente
à vida anterior, estes sujeitos paralisam-se frente à sensação
de perda de uma parte de si mesmos. Se considerarmos parti-
cularmente as alterações em certas capacidades perceptivas e
164 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
representacionais — para as quais o funcionamento das funções
cognitivas em geral é condição necessária —, entenderemos

entre um antes e um depois e rouba os recursos para a sua ela-

integradas, inscrevendo marcas e traços siderantes, atualizando

de processamento e descarga.
O início do atendimento psicanalítico a pacientes porta-
dores de lesões cerebrais geralmente é marcado por pedidos de
restauração e de reconstrução do que foi perdido. Por trás desta
demanda, há a crença de que é preciso recuperar as funções cogni-
tivas para retomar os lugares ocupados nas relações sociais, fami-
liares e de trabalho. Devido às limitações impostas pelas lesões,
é evidente que o analista não pode se pautar pela (re)construção

patologias narcísico-identitárias, o material disponível para o tra-


balho analítico pertence muito pouco ao registro da representação.
Ao evocar o passado sem conseguir transformá-lo em lembranças
elaboráveis, estes pacientes experimentam sentimentos intensos
e expressivos da uma memória afetiva. Acreditando ser somente
através dos afetos que uma via de (re)construção e de elaboração
subjetiva podem ser instauradas, entendemos que a função do ana-
lista consistiria em estabelecer, com o paciente, um campo trans-
fero-contratransferencial que privilegie os afetos como ferramenta
clínica. Quando possível, este trabalho permitiria algum manejo
psíquico das rupturas vividas e a atualização de questões anteriores
ao adoecimento, permitindo assim que sejam elaboradas e, conse-
quentemente, tragam consigo novas outras a serem investigadas.
Foi mais ou menos o que aconteceu na análise de Pedro.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 165


Homem de meia idade, Pedro sofreu dois AVEs isquê-
micos com um intervalo de aproximadamente 15 meses entre
cada um. O primeiro ocorreu quando capinava o terreno de sua
casa de veraneio. Após este episódio, apresentou problemas na

poucos meses. Depois de alguns meses de sua volta ao trabalho,


durante uma discussão na qual relata ter sido ameaçado de
-
mente licenciado e expressou, já nos primeiros atendimentos, a
vontade de ser aposentado por invalidez devido ao fato de não
ter condições de executar as tarefas exigidas pela posição de
auxiliar escolar que ocupava.
Contudo, a constatação deste limite era experimentada por
ele como um sentimento de menos valia. Quando questionado se
não poderia desempenhar outras tarefas, a resposta era sempre

trabalhar. Mas, eu sou teimoso, vou voltar a fazer tudo que fazia.
Sempre aguentei tudo, não é agora que vou desistir. Você vai ver”
— fala repetida sempre que Pedro se deparava com situações que
expunham as sequelas graves dos AVEs sofridos, como ilustra sua
reação diante de um sintoma que ele chamava de risada frouxa.
Em verdade, esta risada é uma das manifestações clínicas da sín-
drome pseudobulbar (paralisia dos músculos de inervação bulbar
causada por um comprometimento supranuclear), nas quais
o quadro clínico é dominado por perturbações da fonação e da
deglutição, relacionadas com um do comando da língua,
do véu palatino, da faringe e da laringe. Aos , associam-
-se a espasticidade e os fenômenos de liberação da mímica auto-

apresentava nas sessões quando entrava em contato com algo que


mobilizava seus afetos, um misto de engasgo, choro engolido e

166 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


risada. Durante o tratamento, a manifestação clínica da síndrome
pseudobulbar ou, nos termos de Pedro, a risada frouxa, passou
a funcionar como uma bússola, fornecendo, para a analista, um
indicativo da gradação de suas emoções e de suas angústias e,
para ele, possíveis sinais de melhora ou de piora. Sua lógica era

inverso era sinal de que ele precisava aguentar mais, “estar pronto
para o que desse e viesse”.
Profundamente ligados ao sentimento de perda provocado
pelas lesões cerebrais, os afetos despertados pela manifestação
desta espécie de ato expressivo e comunicativo deixavam-no
mobilizado. Se as palavras escapavam-lhe nos momentos em
que tentava exprimir seus pensamentos, a função da analista
era construir, junto com ele, um campo transfero-contratrans-
ferencial que privilegiasse a expressão e a comunicação afetiva
como ferramenta clínica. Quando a risada frouxa foi articulada
aos afetos que ela manifestava, o processo comunicativo e,
sobretudo, expressivo ampliou-se, comportando e destacando
a presença sensível da analista na sessão. Os processos per-
ceptuais e cognitivos da analista foram usados como suporte
para facilitar a compreensão dos afetos expressos de forma não

o trabalho era nomear e criar legendas para os sentimentos que

se engasga, tem alguma coisa que está difícil de sair, de dizer,


de colocar em palavras”. Ao que Pedro respondia com muita

duravam não mais que 30 minutos, sendo metade ocupada pela


risada, aos poucos ela foi se retirando e Pedro conseguia per-

aberto a possibilidade de um canal narrativo.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 167


Após alguns meses, relatou ter sentido uma melhora con-

As perdas e os limites decorrentes do AVE eram encarados


como sinal de incapacidade e suas conquistas como sinais de
que voltava a ser como era antes. Demonstrava satisfação
enorme quando vinha ao atendimento desacompanhado, exi-
bindo este seu feito como uma medalha de honra ao mérito. O
mesmo acontecia quando passava uma sessão sem apresentar
a risada frouxa que ele considerava sinal de descontrole — o

não pode se descontrolar? Por que não pode se emocionar?”.


Pedro contou ter passado por dificuldades durante a infância
e que, talvez por isso, tenha sido criado escutando que tinha

irmãos, era difícil ter o carinho de mãe. Ela nunca deixou faltar
nada, sempre cuidou de tudo. Fez questão que os filhos homens
tivessem estudo. Nossa roupa era passada e engomada, quem
voltava com uniforme sujo sabia que ia apanhar”. Pedro, então,
descreveu seu pai como um homem muito inteligente, mas que
sempre lamentou o fato de nunca ter tido a oportunidade de

orgulho para meu pai. Eu fui o único dos filhos que se formou.
Eu sou o único que tem um diploma”.
Depois de alguns meses de tratamento, Pedro e sua família
mudaram de casa e iniciaram uma reforma. Estes dois aconte-
cimentos tornaram-se assuntos constantes das sessões, pois a

os limites impostos pelo adoecimento neurológico — experiência


que conduziu sua análise aos vestígios de traumas precoces. A

sessões, não suportando o atendimento por mais de 30 minutos,

168 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


e metade das sessões voltou a ser ocupada por sua risada frouxa.
Quando criança, Pedro não podia falhar. Além de si, precisava
cuidar dos irmãos mais novos e ajudar o pai a garantir o sustento

Ia cedo com meu pai para a lavoura e quando chegava tinha que

e limpava a sujeira. Só soube o que era brincar quando mudamos


para o Rio e fui para a escola”. Durante seus relatos, demonstrava
tristeza ao acessar lembranças que o faziam acreditar ter cometido

para comer era o que a gente plantava, as galinhas e o leite que


as duas vacas davam. Meu pai comprou um cavalo que servia para
ele ir mais longe, vender o que sobrava. Lembro que ele me deixou
tomando conta do cavalo e eu me distraí vendo uns meninos
jogarem bolar de gude e perdi o cavalo. Corri, mas não consegui
alcançar. Nunca vou me esquecer disso. Por minha causa, o cavalo
fugiu. Nunca mais meu pai conseguiu comprar outro”. Neste

e se responsabilizar pelo bem mais valioso da família eram tarefas


muito grandes para um menino tão pequeno, assim como o é, hoje
em dia, ajudar os pedreiros na reforma de sua casa”. Parecia que
o desamparo experimentado na infância se atualizava como trau-

apresentava-se a ideia defensiva de ser preciso aguentar, de não


poder falhar, ser forte e não desistir nunca — ideia que, atualizada,
instaurava um estado permanente de traumatismo.
Quando criança, Pedro foi impingido a se responsabilizar

Em 1923, a partir de sonhos relatados por seus pacientes, Ferenczi


(1923) cunhou o termo “bebê sábio” para denominar a criança que
assume a posição de cuidador, invertendo o papel do ambiente no

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 169


Não é raro ouvir pacientes contarem sonhos em que recém-
-nascidos, bebês de cueiros ou crianças muito pequenas,
são capazes de falar ou escrever com perfeita desenvol-
tura, brindar seu meio com falas profundas ou sustentar
conversas de erudito, proferir discursos, dar explicações

Dez anos depois, Ferenczi (1933) propôs que se pensasse o


trauma como uma falha ambiental que resultaria no abandono
da criança durante o processo de elaboração e produção de
sentido — processo que não pode ser realizado sem a susten-
tação de um adulto. Na esteira de Ferenczi (e de Winnicott), Khan
(1963) desenhou o conceito de trauma cumulativo para designar
os efeitos de falhas repetidas da mãe em sua função de atender
às necessidades euoicas do bebê. Para sustentar sua argumen-
tação, Khan (1963/1984) propôs uma aproximação com a famosa

Proponho-me aqui a examinar a função da mãe no seu


papel de escudo protetor. Esse papel de escudo protetor
constitui “o ambiente normal que se pode esperar” (Hart-
mann, 1939) para as necessidades anaclíticas do bebê.
Meu argumento é que o trauma cumulativo resulta das
fendas observadas no papel da mãe como escudo prote-
tor durante todo o curso do desenvolvimento da criança,
desde a infância até a adolescência – isto é, em todas as
áreas de experiência onde a criança precisa da mãe como
Eu auxiliar para sustentar suas funções de Eu, ainda ima-
turas e instáveis (Kahn, 1963/1984, p. 62).

Estas fendas não seriam traumáticas no momento em que


se instalam, só adquirindo valor de trauma cumulativa e retros-
pectivamente, ou seja, o caráter traumático não derivaria dos
acontecimentos no momento de sua ocorrência, no instante

pelo acúmulo de pequenos sulcos, silenciosa e invisivelmente.

170 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Noutras palavras, constituído pelo somatório das fendas acu-
muladas no Eu ao longo do tempo, o fator traumático só seria
percebido como tal após a instalação dos efeitos patogênicos
das rachaduras acumuladas. Não é difícil perceber a articulação
deste conceito com a falta de sustentação que Pedro obteve do
ambiente durante os primeiros anos de sua vida. Até os dez anos
de idade, Pedro se adaptou ao ambiente da mesma forma que

estar sendo provido. Mas, foi somente a partir da experiência de


adoecimento neurológico que seu desamparo se atualizou e, o

o colocaram diante da impossibilidade de, durante a reforma


de sua casa, trabalhar junto com os pedreiros e realizar tarefas
antes consideradas simples e rotineiras.
Assim, no início da reforma, sua esposa notou mudanças em

a esposa, mas, enquanto a mulher falava, Pedro apresentava sua

algumas sessões subsequentes, Pedro se deteve na constatação

fazer mais o que eu fazia antes, não sai, não me lembro das coisas,
mas quero fazer, não consigo esperar, quero que essa obra acabe
logo, quero dar para a minha mulher o conforto que ela merece,
tenho medo que ela morra e essa obra não acabe”. A analista

mãe. Disse que seu pai não aguentou, chorou muito e repetia que
tinha falhado, que não conseguiu dar para a sua mãe tudo que ele

aguentar, que não podia falhar. E olha o que está acontecendo


comigo”. Pedro interpretava as limitações impostas pelo adoeci-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 171


mento neurológico como o fracasso de seu projeto de ter êxito
onde ele, na função de “bebê sábio”, e seu pai, no desempenho de
papel de provedor, não tiveram. Suas perdas cognitivas, aliadas
ao mecanismo da compulsão à repetição, o punham diante da
exigência supereuoica de aguentar tudo, atualizando seu sen-
timento de menos valia frente ao insucesso no desempenho de
tarefas imposto por suas limitações.
Vê-se como, no caso de Pedro, o mecanismo de compulsão
à repetição aparecia expresso em atos que giravam em torno da
ideia de voltar a ser como antes e, por conta disto, ultrapassar
sempre seus limites. No início do tratamento, enquanto tentava
se adaptar à aposentadoria, insistia em desempenhar tarefas
domésticas impossíveis de serem realizadas – dada a sua con-
dição –, tais como subir em escadas para trocar lâmpadas, pen-
durar balões em festas, subir na laje para consertar o telhado,
etc. Preso no passado, não entendia o que lhe era possível
agora, dizendo que estava treinando e que, um dia, conseguiria
fazer e ser como antes de adoecer. Quando confrontado com os

“você vai ver, eu sou teimoso, não desisto, vou conseguir”.


Mas, o período da reforma foi decisivo e permitiu observar um
deslocamento no conteúdo da repetição, pois, diante dos obs-
táculos encontrados durante o trabalho dos pedreiros, Pedro
constatou que não tinha condições de embolsar paredes e nem

da casa, etc. Foi quando passou a se interessar por caminhadas


feitas com um grupo do antigo trabalho. Mas, muito engajado
nesta nova atividade, só participava de caminhadas que exigiam

atrás do professor, vou guiando o grupo com ele. Mas não sei o
que está acontecendo, não consigo mais ir na frente do grupo,

Em
última instância e no limite, Pedro fracassava e, frente a este fra-

172 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


casso, encontrava-se preso à ideia de que “se não dá para ser

Ao longo dos atendimentos a hipótese de um início de


demência vascular foi co -
liação neuropsicológica realizada um ano após o início do trata-
mento. Durante as sessões de fonoaudiologia e na avaliação neu-
ropsicológica, foi detectado um desempenho cognitivo global-
mente prejudicado, com destaque para um comprometimento
-

para a solução de problemas, o que participava tragicamente de


seu funcionamento psíquico já profundamente afetado e imobi-
lizado pelo trauma.

Neste caso brevemente relatado, dentre os efeitos psíquicos


(para além das sequelas cognitivas) das lesões cerebrais, em con-
sequência dos AVEs sofridos, observam-se ao mesmo tempo
traços de uma neurose traumática e a atualização de traumas
infantis na experiência subjetiva de adoecimento neurológico. Ao
se deparar com as limitações derivadas das sequelas dos AVEs,
Pedro se agarrou à ideia de que “se não dá para ser como antes,

(e desejo) de presente permanente, derivada da impossibilidade


de atravessar a ruptura operada pelo adoecimento. Ao mesmo
tempo, este desígnio atualizava a exigência de ser forte e perfeito,
despertando o sentimento de menos valia a partir do insucesso
em desempenhar certas tarefas. Reagindo deste modo, Pedro

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 173


seu esforço de superação, sua compulsão à repetição atualizava
incessantemente o desamparo infantil.
Pela hipótese freudiana de 1920 (Freud, 1920a), uma expe-
riência é traumática quando rompe o escudo protetor do aparato
psíquico e provoca uma inundação de excitações desligadas, dis-
parando todas as medidas defensivas possíveis. Para ilustrar esta
ideia, Freud lançou mão da famosa metáfora segundo a qual o apa-
relho psíquico originário comportar-se-ia como uma vesícula viva

estímulos provenientes do exterior. Funcionando como anteparo,


este escudo protetor permitiria a passagem de apenas uma parte
reduzida da intensidade das excitações ao sistema percepção-
-consciência. Qualquer excitação que rompesse esta barreira ou

fracassasse, disparando a operação de mecanismos de defesa pri-


mários.
Nove anos depois da formulação desta hipótese, Ferenczi
(1929) propôs que se deslocasse a função de escudo protetor do
aparelho psíquico para o ambiente, fazendo da relação entre a
criança e seu entorno constitutiva da subjetividade e atribuindo à
família (particularmente aos pais) a função de amparar os recém-
-chegados ao mundo. Sua hipótese era que desde muito cedo as
crianças seriam capazes de registrar sinais conscientes e incons-
cientes de desamparo, os quais continuarão presentes no psi-
quismo da criança mesmo não sendo ainda nomeados como tais
(Ferenczi, 1931). Por isso mesmo, por não serem representados no
psiquismo, embora sejam inscrições da falta (ou do excesso) de res-
posta do objeto, foram conceituados como traumáticos e tiveram

As crianças sentem-se física e moralmente sem defesa,


sua personalidade é ainda frágil demais para poder pro-
testar, mesmo que em pensamento, contra a força e a

174 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


autoridade esmagadora dos adultos que as emudecem,
podendo até fazê-las perder a consciência. Mas esse medo,
quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-
-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o
menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mes-
(Ferenczi,
1933, p. 117).

No modelo proposto por Ferenczi (1933), o medo da criança

o agressor desaparecesse da realidade externa e passasse a existir


no registro intrapsíquico. Instalar-se-ia no psiquismo infantil

apresenta-se agora como um ato merecedor de punição” (p. 117).


Justamente neste momento, estabelecer-se-ia a confusão de
línguas, pois a criança se sentiria, ao mesmo tempo, inocente e
-
munho de seus sentidos. Adiciona-se a isto a falta de sustentação

De um modo geral, as relações com uma segunda pessoa

uma ajuda junto dela; algumas tênues tentativas nesse


sentido são repelidas pela mãe como tolices. A criança de
quem se abusou converte-se num ser que obedece meca-

não pode mais explicar as razões desta atitude (p.117-8).

O desmentido seria experimentado como violação, dispa-


rando o dispositivo da clivagem a partir da qual se observaria,

estaria preservada, na medida em que tudo sabe, mas nada sente,


ao passo que a outra parte encontrar-se-ia destruída, destituída
-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 175


quência, a criança obedeceria mecanicamente ao sentimento de
-
diência descrita por Ferenczi (1933) como uma espécie de transe
traumático movido pela compulsão à repetição. Em transe, ao
mesmo tempo paralisado e em busca de situações que impunham
a constatação da impossibilidade de se responsabilizar por algo
-
sente permanente era o de sua infância, mais do que o dos AVEs.
Em 1920, no Congresso de Haia, Freud (1920b) fez uma
comunicação na qual descreveu um tipo de sonhos que escapariam

dos chamados sonhos ‘traumáticos’, que ocorrem em pacientes


que sofreram acidentes, mas que aparecem também durante a
psicanálise de neuróticos, trazendo-lhes de volta traumas esque-
cidos da infância” (Freud, 1920a, p. 15). A ideia, explicada meses
depois (Freud, 1920a), era que, neste outro tipo de sonhos, os
sujeitos seriam direcionados constantemente de volta ao evento
traumático na tentativa de dominar, pela repetição, o excesso de
estímulo e, com isso, ligar a energia livre.

os sonhos que estivemos debatendo, e que ocorrem nas


neuroses traumáticas, ou sonhos tidos durante as psica-
nálises, os quais trazem à lembrança os traumas psíquicos
da infância. Eles surgem antes em obediência à compul-
são à repetição, embora seja verdade que, na análise, essa
compulsão é apoiada pelo desejo (incentivado pela suges-
tão) de conjurar o que foi esquecido e reprimido. Dessa
maneira, pareceria que a função dos sonhos, que consiste
em afastar quaisquer motivos que possam interromper
o sono, através da realização dos desejos dos impulsos
perturbadores, não é a sua função original. Não lhes seria
possível desempenhar essa função até que a totalidade da
vida mental houvesse aceito a dominância do princípio de
prazer. Se existe um “além do princípio de prazer”, é coe-

176 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


rente conceber que houve também uma época anterior
em que o intuito dos sonhos foi a realização dos desejos
(Freud, 1920a, p. 49).

Em um artigo póstumo (Ferenczi, 1934) realizou uma


revisão do A interpretação do sonhos (Freud, 1900) e propôs uma
função anterior à transformação dos restos diurnos em reali-

repetições de traumas, tal como no mecanismo de compulsão à

resíduos de vida no material onírico ter sido por ele considerada


como uma tentativa de conduzir o trauma a uma resolução que
não teria sido efetuada durante o atravessamento do aconteci-
mento originário. Ferenczi (1934) generalizava a hipótese freu-

como uma tentativa de elaboração de acontecimentos traumá-


ticos, mais do que apenas como realização de desejo. Sob a ótica
ferencziana, a elaboração do trauma requereria condições espe-
cializadas que dependeriam de certa maturidade euoica e a ação
psíquica do trauma conduziria à aniquilação do sentimento de si,
levando o sujeito a ter que compreender, nomear, traduzir e ligar
o que se passa — operações psíquicas das quais o eu da criança,
dependendo da intensidade do que lhe acontece e do exercício
de anteparo realizado pelo ambiente, ainda não é capaz. Daí
sua hipótese de que os sonhos visariam fundamentalmente ao

frente à angústia, a atividade onírica funcionaria como tentativa


de encontrar sentido e, assim, traduzir o inominável e integrá-lo
ao ego. Noutras palavras, os sonhos teriam uma função trauma-
tolítica. No caso de Pedro, a experiência subjetiva das sequelas
dos AVEs desempenhavam papel semelhante à função trauma-
tolítica do sonho, pois permitiam acesso direto a impressões sen-
síveis não integradas ao funcionamento psíquico, em um movi-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 177


mento regressivo que convocava o analista a participar da cena
traumática, tornando-o um vetor do que não pode ser expresso
verbalmente através da rememoração.
Em 1928, Ferenczi propôs a noção de tato psicológico como
norteadora da ação do analista. Tratava-se da capacidade de o
analista perceber “quando e como se comunica alguma coisa ao
analisando” (Ferenczi, 1928, p. 27) e de estabelecer um contato
empático com o paciente, cuja função seria possibilitar a com-
preensão emocional de “quando se deve calar e aguardar outras
associações e em que momento o silêncio é uma tortura inútil para

cede “às tendências do paciente, mas sem abandonar a tração”


(Ferenczi, 1928, p. 31-2) — que permita ao analista participar da
sessão com seus próprios processos psíquicos em sintonia com seu
paciente, ou seja, tornando-se parte do processo de simbolização
com sua presença sensível. Noutras palavras, setting terapêutico e
pessoa do analista seriam equivalentes, ou melhor, o setting seria
parte integrante da personalidade do analista (Winnicott, 1954a e
1954b). De tal modo que, para esta linhagem de autores psicana-
líticos, somente o oferecimento de um espaço analítico sensível e
-
riência traumática, inserindo-a em uma rede de sentidos e signi-

saída para o congelamento psíquico instaurado pela compulsão à


repetição. No caso de Pedro, falar sobre si e situar a experiência
de sofrimento no tempo impôs a tarefa de elaborar traumas pre-
coces atualizados pelo aparecimento de lesões cerebrais, como
-
belecia uma continuidade entre os momentos iniciais do desen-
volvimento infantil e a experiência de adoecimento atualizava.

178 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


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180 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


CAPÍTULO 8

DIÁLOGOS ENTRE FREUD E WINNICOTT ACERCA DA QUESTÃO

Nadja Nara Barbosa Pinheiro

Nosso interesse sobre o campo da psicossomática teve seu


início marcado pelo trabalho desenvolvido em um hospital geral
no qual era muito comum recebermos pacientes que portavam
um tipo de adoecimento que se expressava por meio do corpo
sem, no entanto, confundirem-se com os fenômenos histéricos
caracterizados pelo expressivo recurso ao registro simbólico. Ao
contrário, os pacientes que tratávamos no hospital portavam sin-
tomas extremamente rígidos e opacos para os quais a proposta
de metaforização introduzida pelo trabalho analítico não surtia
quase nenhum efeito. Essa resistência exacerbada à transfor-
mação, acrescida de uma pobreza simbólica e de um pequeno
enredamento do adoecimento na trama histórica das vivências
subjetivas dos pacientes, fez-nos suspeitar que estávamos lidando
com o que se convencionou denominar, na psicanálise, por fenô-
menos psicossomáticos.

pesquisa acadêmica vem sendo desenvolvida, no âmbito do


Laboratório de Psicanálise da Universidade Federal do Paraná,
visando alcançar uma compreensão conceitual mais apro-
fundada que reverta a modos adequados de instrumentalização
clínica as situações psique-somáticas. Nela, partimos do prin-
cípio que o texto freudiano constitui o fundamento a partir do
qual os autores da psicanálise alicerçam suas contribuições, o
181
que torna o seu estudo imprescindível para a compreensão dos
autores subsequentes. Entre esses, Winnicott é o autor que pri-
vilegiamos em nossos estudos por acreditarmos que ele traga
uma contribuição original e extremamente rica, não exclusiva-
mente para o campo da psicossomática, mas para a teoria e a
clínica psicanalíticas em geral.
Em nossa pesquisa, visando entender como ambos os
autores concebem as relações perpetradas entre os registros
somático e psíquico, elencamos o conceito de angústia como
via de acesso ao entendimento de nossa questão. Tal decisão se
alicerça na percepção de que, em ambos os autores, a angústia
se apresenta como afeto primordial que se relaciona com os pri-
mórdios da constituição subjetiva, e, em consequência, com as
possíveis relações estabelecidas entre soma e psique. Em termos
metodológicos, procedemos a leituras críticas e analíticas sobre
textos de Freud e de Winnicott que tratam do tema de nosso

que perpassam as concepções dos dois autores. Nossa intenção


-
tinção radical entre os dois, mas a de percebermos os pontos em
que ambos dialogam e a partir dos quais constroem suas tramas
conceituais originais.
Pelo conhecimento prévio que possuíamos sobre as obras
dos dois autores, iniciamos nossa pesquisa com uma expec-
tativa de que encontraríamos uma distância acentuada entre
as perspectivas de Freud e Winnicott acerca do tema proposto.
Porém, pela leitura concomitante do textos dos dois, perce-
bemos a existências de pontes, entre as perspectivas de ambos,
extremamente ricas de serem percorridas. Nosso objetivo, na
atual comunicação, será o de apresentar algumas dessas pontes
que nos foram sendo abertas ao longo de nossos estudos e o
modo pelo qual as percorremos. Para tal, nos utilizaremos, hoje,

182 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


da releitura que empreendemos sobre o famoso texto freu-
diano de 1926, intitulado Inibições, sintomas e angústia (Freud,
1926/1974a). Por meio dela, destacaremos algumas ideias e
noções apresentadas por Freud que nos parecem endereçar a
algumas concepções posteriormente desenvolvidas por Win-
nicott. Nessa empreitada, três eixos de argumentação serão pri-

com o campo somático e a importância da função materna para


o processo de organização das vivências primitivas e para o
desenvolvimento emocional.
Salientamos que não temos aqui o intuito de reduzirmos
um autor pelo outro – por exemplo, construirmos um Freud win-
nicottiano ou um Winnicott freudiano –, mas o de, mantendo
a originalidade e o rigor de cada um, enriquecermo-nos com
a abertura de possíveis diálogos entre ambos no que tange à
questão psique-somática.

No âmbito da psicanálise é bastante conhecido o fato de


que o texto Inibições, Sintomas e Angústia seja o momento em
que Freud (1926/1974a) propõe um novo entendimento sobre a
questão da angústia, inaugurando, para muitos autores, aquilo
-
ceito (Laplanche & Pontalis, 1986). Nesse texto, Freud declara
que inicialmente suas concepções sobre o afeto de angústia se
sustentavam em seus estudos sobre as neuroses atuais, os quais
indicavam que um resíduo não utilizável de energia sexual, no
aparelho psíquico, poderia se transformar, diretamente, em
angústia. Transpondo essa hipótese sobre a ocorrência direta de
uma transformação do excedente de libido em angústia para o

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 183


campo das psiconeuroses (histeria, neurose obsessiva e fobia),
o autor indicara, que, nestas afecções, a libido liberada pelo
mecanismo de recalque, e que, portanto, permanecia sem vin-
culação no aparelho psíquico, igualmente, transforma-se, dire-

que sustentou sua decisão em forjar, no caso do pequeno Hans,


o conceito de histeria de angústia (Freud, 1909/1974b), pato-

erótica e agressiva são recalcados e a libido liberada, por esse


mecanismo, é transformada em angústia. Como bem ressalta o
autor, nessa sua perspectiva, a angústia era concebida como um
estado afetivo relativo a um momento posterior ao mecanismo
de recalque ter sido efetuado.
Porém, o próprio Freud observa a fragilidade dessa pro-
posição e no texto de 1926 apresenta os pontos sobre os quais
ele sustenta a necessidade de reformulá-la. Dessa reformu-
lação, contudo, o que ocorre é, na verdade, uma inversão nos

um afeto cuja função seria a de emitir um sinal de perigo para


que o ego, então, acione o recalque como medida de proteção
contra um perigo que se mostra como iminente. Nesse caso, a
angústia se apresenta não como algo que sucede, mas como
algo que antecede o mecanismo de recalque, colocando-o,
inclusive, em movimento.
Para chegar a essas novas postulações, a via privilegiada
tomada por Freud para o estudo da angústia, em suas relações
com os processos inerentes à etiologia das psiconeuroses,
parece-nos ter sido facilitada por uma particularidade da língua
alemã. Nesta, a palavra angst possui uma relação estreita com a
sensação de medo, relação esta inexistente no português. Acre-
ditamos que o fato de angústia e medo estarem tão próximos

184 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


em termos semânticos, na língua alemã, permitiu que Freud se
utilizasse da fobia como via de acesso para o seu estudo sobre a
angústia. Razão pela qual, a análise das fobias presentes em Hans
e no Homem dos Lobos (Freud, 1918/1974c), tenha permitido a
Freud avançar no estudo sobre a angústia. O que podemos per-
ceber é que, em ambos os casos, Freud entende a fobia como uma
-
grada pós-recalcamento das representações pulsionais proibidas
que caso encontrassem a satisfação trariam desprazer para o ego,
a despeito do prazer inconsciente alcançado. Particularmente,
nos casos de fobia, a libido liberada pelo recalque, transformada
em angústia, seria endereçada a um objeto externo que se torna
temido e evitado. A ideia aqui é que o ego passe a controlar a
situação, pois enquanto o objeto fóbico permanecer afastado do
ego, este último encontra-se livre do perigo e, em consequência,

Porém, no texto de 1926, Freud retoma ambos os casos e,


relacionando-os ao complexo edipiano de uma forma mais minu-
ciosa, percebe que a única força que se mostra capaz de colocar
-
sentado pelo Édipo é a ameaça de castração introduzida por meio
da presença paterna. Diante do perigo, sentido como real, de
perder uma parte de seu próprio corpo na qual o prazer se con-
centra (o pênis), o ego defende-se recalcando os representantes

propulsor do recalcamento. Freud apresenta, então, sua proposta


de entendimento da angústia como um afeto que sinaliza ao ego
a existência de um perigo iminente a ser enfrentado. Um enfren-
tamento que se dá pela via de uma defesa, que preserva o sujeito
-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 185


Nosso interesse aqui se desdobra. Pois, é no modo como

do perigo aí tematizados que encontramos, particularmente,


o que nos parece extremamente importante para nossos pro-
pósitos no sentido de situarmos os elementos a partir dos quais
um diálogo entre Freud e Winnicott se sustenta. Pois ao tratar da

a passagem pelo complexo edípico, Freud é encaminhado às


fronteiras do primitivo da subjetividade relacionando-o, parado-
xalmente, às necessidades vitais (somáticas) e ao exercício das
funções maternas.

perigo relacionados à angústia, Freud (1926/1974a) produz


uma observação que nos parece capital. Ele nos assevera que,
embora tomando o Édipo como central no entendimento dos
casos do pequeno Hans e do Homem dos Lobos, as ameaças cir-
cunscritas nos dois casos não são homólogas uma vez que ser
mordido (por um cavalo) não é similar a ser devorado (por um
lobo). As ameaças não são da mesma ordem e não colocam em
jogo a mesma questão. Segundo Freud, ser mordido refere-se à
perda de uma parte do próprio corpo. O que denota a existência
de uma organização egoica e de um esquema corporal que con-

uma diferenciação entre o Eu e seus objetos externos. Ao passo


que o medo de ser devorado indica a existência de uma ameaça
sobre a própria vida, uma ameaça de aniquilamento, portanto.
Ao observar que no caso do Homem dos Lobos, via regressão
na organização libidinal, efetuada como mecanismo de defesa,

186 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


indica que a ameaça de devoramento se refere a um momento
de construção subjetiva, relativo à fase oral/canibalesca, em que
não existe uma diferenciação nítida entre o Eu e o não Eu. Razão

questão de vida ou morte. Nesse sentido, Freud percebe, então,


que a questão colocada pela fobia do Homem dos Lobos se refere
a um tempo da constituição subjetiva anterior ao advento do
Édipo, sendo, portanto, bastante primitiva.

O interessante, nos parece, é que ao avançar em suas con-


siderações, Freud (1926/1974a) perceba, igualmente, que há uma
relação entre os dois tipos de situação, ou seja, se temer ser mordido
não é homólogo a temer ser devorado, há, no entanto, algo que
une essas duas possibilidades. E esse algo é visualizável por meio

aos órgãos somáticos da respiração e do coração. Nesse sentido, o


autor observa que há um caminho histórico, alguns trilhamentos que
são reatualizados cada vez que uma ameaça, ao ego, se apresenta
e demanda deste (o ego) a ativação de um mecanismo de defesa.
Instigado por essa característica afetivo/corporal da angústia e pela
percepção de sua relação como o primitivo da subjetividade, Freud
assinala que o ato de nascimento pode ser tomado como protótipo
para todas as situações em que a angústia emerge. Nele, no nas-
cimento, o coração e o pulmão são convocados de forma intensa
para a manutenção da vida. Nesse momento capital há uma função
vital sendo exercida, posto que encher os pulmões de ar garante a
vida, assim como acelerar os batimentos cardíacos torna mais fácil

portanto, são respostas adequadas à tensão que aí se apresenta

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 187


Porém, se questiona Freud (e aqui nos parece que o diálogo
com Winnicott começa a ser delineado) o que (e por quais meios) é
registrado nesse momento primitivo da vida? Por sua condição sub-
jetiva insipiente, o bebê não poderia ainda reter algo desse evento,
e em consequência, algo recordar posteriormente. O que se leva,
então, do momento do nascimento e que permite a ligação entre
a emergência da angústia automática (relativa ao nascimento) e a
angústia emitida como sinal pré-recalcamento (relativa ao Édipo)?
Em resposta, Freud (1926/1974a) sugere que o que torna essa

(respiratória e cardíaca), ou seja, há aqui a marcação de “trilha-


mentos” históricos, inicialmente, somáticos que vão se tornando,
gradualmente, psíquicos. Lembramos que, nesse mesmo sentido,
para Winnicott (1949/2000a), nesse momento inicial da vida, o psí-
quico é somático não havendo separação entre os dois na medida
em que as únicas necessidades aí presentes são as necessidades
vitais que permitem a continuação da manutenção da vida bio-
lógica iniciada intrauterinamente. Ressaltamos, no entanto, que
para Winnicott tal perspectiva não reduz o psíquico ao somático,
mas informa a paulatina construção de uma trama intrínseca entre
os dois registros que se estende por toda vida e que se torna cada
vez mais complexa, indicando que, no campo humano, doravante
não há como pensarmos em necessidades que não sejam marcadas
pela organicidade instintual/pulsional. Delimitação de um campo
denominado pelo autor de psique-soma, no qual o hífen pode ser
entendido como designando tanto a união quanto a separação
entre esses dois registros. Acreditamos que seja nesse sentido que
podemos entender a angústia como um afeto que denuncia a fra-
gilidade da conquista dessa parceria psique-soma, pois, sendo da
ordem de uma conquista, o perigo de ser desconstruída se apre-
senta permanentemente, como descreveremos mais adiante em
nossas argumentações.

188 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Para sustentar a relação histórica entre o ato de nascimento
e a emergência da angústia ao longo da vida, Freud (1926/1974a)
utiliza-se, como metáfora, da observação da reação de angústia
apresentada por uma criança pequena quando separada de sua
mãe. O autor percebe, nesse movimento, que ambos os traços

emissão de um sinal de perigo que se avizinha. Que perigo seria


esse? O perigo sentido pela criança de não ser capaz de, por si
mesma, dar conta de suas necessidades e das tensões delas sub-
sequentes, posto ser a mãe a pessoa que vem se incumbindo
dessas tarefas ao longo do tempo. Afastar-se da mãe prenuncia a
possibilidade de abrir-se à desorganização imposta pelo acúmulo
-
mento uma vez que caberia à mãe a tarefa de satisfazer as neces-
sidades de seu bebê e de desfazer, com seu gesto, as tensões sen-
tidas como desorganizadoras.
Em nossa leitura, Freud (1926/1974a) insere aqui a possi-
bilidade de pensarmos as funções maternas como um “escudo
protetor” que assegura a organização do mundo para seu bebê
enquanto ele ainda não é capaz de fazê-lo por si mesmo. Des-
tacamos com isso, que há aqui o anúncio de uma função não
apenas protetora, mas, sobretudo, organizadora e humani-
zadora em oferecer condições para que a vida psíquica e emo-
cional vá se tornando possível em sua relação mais estreita com
as funções somáticas. Freud destaca, aqui, a construção de tri-
lhamentos somato-psíquicos que unem de forma incontestável
soma e psique e que se estendem ao longo da vida, e que se
tornam possíveis pela ação paradoxal e concomitante da orga-
nicidade e da maternidade.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 189


No seio dessas formulações, o autor infere que haja uma
continuidade entre a vida intrauterina e a pós-nascimento. Essa
noção de continuidade entre os dois estados (fetal e recém-nato)
permite a Freud descartar a possibilidade de considerarmos que
o nascimento seja em si um evento traumático. Segundo o autor,
a mãe que já satisfazia, em completude/parcial, as necessidades
biológicas de seu bebê ao longo de sua vida intrauterina, con-
tinua a fazê-lo depois do parto, quase completamente. Segundo
o autor, a repetição dessas experiências de satisfação/frustração,
decorrentes do exercício da função materna no atendimento das
necessidades vitais, permitirá que as trilhas psíquicas rudimen-

nossa hipótese sobre a abertura de um diálogo com as con-


cepções posteriormente alicerçadas por Winnicott (1971/1990)
em sua teorização sobre a conquista empreendida por todo ser
humano de um “psique-soma
o alojamento da psique no corpo, isto é, como a possibilidade
de que cada ser humano possa sentir que habita um corpo e que
este corpo possui limites e contornos. Uma conquista que se
processa levando–se em conta o exercício das funções maternas
as quais, sustenta, integra, contorna, humaniza o bebê que, ao
nascer, apresenta toda uma sorte de necessidades biológicas/
emocionais a serem satisfeitas.
E Freud (1926/1974a) avança mais um pouco. Ele percebe
que a passagem da angústia automática e funcional que emerge,
no momento do nascimento, para a emissão da angústia como
sinal não mais automaticamente, mas intencionalmente, na
situação de separação entre a criança e sua mãe, apresenta-se
como uma prova inquestionável de um amadurecimento do ego.
Ou seja, pode ser considerada como um ganho no desenvolvi-
mento psíquico da criança, pois ao emitir, intencionalmente,
um sinal, a criança endereça a um semelhante um pedido de

190 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


ajuda e se coloca não mais na posição passiva de ser assolada
pela angústia. Mas, ativamente, tenta lidar com a situação, em
potencial, desorganizadora. O que o autor assinala, aqui, é a
transição de uma situação biológica de desamparo (sem objetos)
para uma situação de dependência em relação a um objeto

um momento da subjetividade em que não há nem um Eu e nem


objetos. E mais, que ambos precisariam ainda ser “criados”. E
como esse processo criativo ocorre? Na perspectiva freudiana,
no seio da emergência de uma relação mãe/bebê. Vemos aqui,
novamente, Freud tocando em pontos importantíssimos que
serão retomados e desenvolvidos por Winnicott (1971/1990) no
que diz respeito à importância da criatividade primária para a
instauração da realização do desenvolvimento emocional a
partir do potencial herdado por cada bebê e as condições ofere-
cidas pelo ambiente/mãe para tal. Na perspectiva de Winnicott,
a mãe, ao apresentar os objetos do mundo a seu bebê, permite
que este crie a ilusão de que foi por sua ação mágica e onipotente
que estes objetos surgiram em seu campo de apercepção. A
constituição dos objetos subjetivos depende, em primeiríssima
instância, da repetida e constante apresentação de objetos pela
mãe tornando possível que o bebê realize seu potencial a criar o
mundo a partir da conquista de uma trama emocional cada vez
mais complexa. Salientamos, contudo, que, na hipótese de Win-
nicott, a paulatina conquista de uma complexidade emocional
não reduz sua fragilidade ao longo da vida.
Por esse motivo, nos parece que seja extremamente interes-
sante o fato de Freud (1926/1971a) observar que essa passagem,
que essa transição do desamparo à dependência, pauta-se em
uma não linearidade e que está sujeita a várias intercorrências.
Sendo possível, inclusive, que o ego produza reações inade-
quadas diante das ameaças que lhe são apresentadas ao longo da

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 191


vida. Motivo pelo qual o autor perceba como sendo um modo de
adoecimento o fato de o ego responder a uma situação de perigo
de forma exacerbada e não compatível com o momento de seu
amadurecimento. O que o faz supor, inclusive, que possam existir
inúmeros tipos de defesas primitivas, relativas a esse momento
de constituição subjetiva primário, distintas do recalque (consi-
derando este como uma defesa adequada ao momento edípico).
Embora Freud não avance na tematização dessas defesas,
ele infere uma relação delas com o primitivo e com a sensação
de aniquilamento, como vimos acima em relação ao medo de
ser devorado apresentado pelo Homem dos Lobos. Em nossa
perspectiva, tais concepções se assemelham ao que Winnicott
(1963/2007) tematizará em relação ao primitivo e ao medo ao
colapso referente à emergência de uma angústia impensável (ou
agonia primitiva) como sendo um medo relativo a algo que já foi
experienciado um dia.

Freud (1926/1974a) propõe, então, como tarefa do ana-


lista trazer à baila o que está em jogo para que o ego, em con-
dições favoráveis (ofertadas pelo setting analítico), possa tratar
a situação em sua atualidade e responder a ela de forma mais
adequada. Tal posicionamento clínico nos parece bastante inte-
ressante se o compararmos com o que propõe, posteriormente,
Winnicott (1954/2000b). Segundo esse autor, via regressão na
transferência, o analista é encaminhado pelo paciente para o
momento do desenvolvimento emocional no qual tenha ocorrido
uma paralisação, um congelamento da situação traumática a
partir da qual a capacidade de movimento e de transicionalidade
foi perdida. Cabe ao analista, ao exercer sua função, manejar a
situação de forma a criar condições para que, no espaço clínico,
192 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
o trauma seja integrado às vivências subjetivas e possa, com isso,

com alguns elementos que nos parecem remeter, novamente, a


Winnicott. Ao trabalhar as relações entre angústia, dor e luto, ele
descreve uma situação que entendemos como exemplar do que
estamos querendo demonstrar. Pela riqueza de sua descrição,

nosso ponto de partida será novamente a única situação


que acreditamos compreender – a situação da criancinha
quando se lhe apresenta um estranho em vez de sua mãe.
A primeira exibirá a ansiedade que atribuímos ao perigo
de perda do objeto. Mas sua ansiedade é indubitavel-
mente mais complicada do que isso e merece um exame
mais completo. Que ela tem ansiedade não resta a menor
dúvida, mas a expressão de seu rosto e sua reação de
chorar indicam que ela está também sentindo dor. Nela
parecem estar reunidos certas coisas que depois serão
separadas. Ela não pode ainda distinguir entre a ausência
temporária e a perda permanente. Logo que perde a mãe
de vista comporta-se como nunca mais fosse vê-la nova-
mente e repetidas experiências consoladoras, ao contrá-
rio, são necessárias antes que ela aprenda que o desapa-
recimento da mãe, é em geral, seguido pelo seu re-apare-
cimento. A mãe encoraja esse conhecimento que é vital
para a criança, fazendo aquela brincadeira tão conhecida
de esconder dela o rosto com as mãos e depois, para sua
alegria, de descobri-lo de novo. Nessas circunstâncias a
criança pode, por assim dizer, sentir anseio desacompa-
nhado de desespero. (Freud, 1926/1974a, p. 195)

Acreditamos que, nessa passagem, Freud condensa inú-


meros temas que serão, posteriormente, tomados por Winnicott
como pontos fundamentais de seu pensamento sobre o desen-
volvimento emocional, entre os quais destacamos alguns que nos
parecem lapidares. Na situação descrita por Freud encontramos
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 193
o destaque à função materna e ao brincar, como fundamentos
para o processo de amadurecimento emocional da criança e para
a inserção da possibilidade à transicionalidade, entendendo esta
como o processo por meio do qual as passagens entre os modos de
organização libidinal e suas correlativas relações com os objetos
se tornam possíveis. Percebemos que Freud, nessa citação, res-
salta que o exercício das funções maternas independe de um
saber técnico, mas se inscreve em uma sensibilidade afetiva que
lhe permite perceber que o brincar é importante por si mesmo,
pois o brincar abre um espaço de comunicação, um espaço de
relação no qual o amadurecimento emocional se processa. Um
espaço que Winnicott (1951/1975a) denominará de transicional
na medida em que abre caminhos, propõe mudanças, permite
idas e vindas, conexões entre os mundos interno e externo. Nesse
espaço transicional, como o descreve Freud, os objetos vão assu-
-
senta-se como objeto subjetivo, ilusoriamente sob o controle oni-
potente de seu bebê, reaparecendo por que ele assim o deseja;
porém, a mãe se torna igualmente um objeto transicional, na
-
recendo, inscrevendo-se em uma espacialidade e temporalidade

apresenta como objeto externo, objetivamente percebido, na


medida em que insere um índice de exterioridade na relação, ao

a existência de uma alteridade, um índice de exterioridade que lhe


fornece coordenadas na assunção de que há algo que se posiciona
para além de seu controle mágico e onipotente. Ressaltamos,
ainda, que Freud ao assinalar que por meio desse brincar é for-
necida à criança a possibilidade de sentir anseio sem ser invadida
pelo desespero, ele infere aquilo que Winnicott (1967/1975b) nos
introduzirá como essencial para o processo de amadurecimento

194 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


e nos objetos do mundo que se instaura em um momento prévio

essa movimentação se processa em concomitância a expressões


corporais, as quais participam ativamente na circulação do excita-
mento, tensão, alegria, tristeza, frustração e júbilo apresentados
pela “dupla” mãe/bebê. Tal como infere Winnicott (1990), uma
psique que encontra, no corpo, sua morada.

Iniciamos nossa comunicação indicando que nosso interesse


em torno das questões psicossomáticas emergiu a partir de nosso
trabalho clínico com pacientes que traziam adoecimentos graves
que se expressavam por meio da corporalidade. Ao voltarmos as
nossas atenções a essas questões e ao modo como poderíamos
entendê-las em termos teóricos que nos sustentasse em nossa con-
dução clínica, nos deparamos com a necessidade de promovermos
alguns deslocamentos. Ao lermos de uma forma mais atenta os
textos de Freud e Winnicott que nos parecem importantes para a
compreensão de nosso objeto de investigação, percebemos que
podíamos abrir ricos diálogos entre os autores. Como desdobra-
mento desses diálogos, fomos nos deslocando de uma perspectiva
que indicava uma estreita relação entre psicossomática e adoeci-
mento para uma possibilidade de entendermos a psicossomática
como um campo que abarca a saúde, na medida em que enten-
damos que a construção da subjetividade se assenta radicalmente
em um plano orgânico e na conquista de um psique-soma.
Desse deslocamento teórico, como decorrência, fomos
levados a promover um deslocamento no nosso posicionamento
clínico. Em nossa experiência clínica temos observado que não

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 195


apenas nos casos graves, como os que trabalhávamos no hospital,
a parceria psique-soma estará presente. Igualmente, em todos os
casos que atendemos, a organização psique-soma se manifesta
e nos fornece informações preciosas sobre o desenvolvimento
emocional de nossos pacientes. Notamos que, em alguns casos,
essa parceria quase passa despercebida. O que nos parece ser um
indicativo de que tudo vai bem, para usarmos uma expressão de
Winnicott. Em outros casos, ela se sobressai, ganha espaço, se
apresenta, demanda por nossa compreensão quer seja por meio
de uma série de sintomas e adoecimentos nos quais algo do corpo
é convocado, ou por meio de uma série de angústias e sensações
de despedaçamento, aniquilamento, destruição, morte ou vazio.
Nesses casos, por entendermos que estamos lidando com algo
da ordem do primitivo, fomos nos deslocando de uma alternativa
clínica que tomava como central as construções em análise para
um posicionamento clínico que indica que a condução do trata-
mento deva passar pela sustentação (holds) de uma espacialidade
e uma temporalidade possibilitada pelo manejo do setting. Em
nossa trajetória, esse deslocamento indica um deslizamento,
incessante, entre Freud e Winnicott (Pinheiro & Maia, 2011). Pois,
inicialmente, tomávamos como rumo o posicionamento clínico
adotado por Freud no caso do Homem dos Lobos para lidar com
os conteúdos primitivos deste. Isto é, vemos que Freud, nesse
caso, ao lidar com o primitivo de seu paciente, toma como alter-
nativa clínica a construção de uma cena primária a partir da qual
novas cadeias discursivas se tornam possíveis. Tal alternativa nos
parece ser um franco privilégio à linguagem, dado por Freud na
condução da clínica. Ou seja, diante do indizível de seu paciente,
o autor “constrói” com seu paciente, uma cena, institui um campo
representacional, inserindo palavras ao que não fora dito. Em con-
trapartida, acreditamos que Winnicott, ao lidar com o que há de
primitivo em seus pacientes, procura tomá-lo pela primitividade

196 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


e pela indizibilidade que lhe são próprias. Isto é, sua alternativa
clínica não se apoia no recurso à linguagem, mas na sustentação
(holds) do espaço do indizível e do não representacional. Ou seja,
sua aposta clínica é a de sustentar um “espaço” que constitui o
solo e a argamassa para que a representatividade da linguagem
possa ascender. É nesse sentido que, na perspectiva winnicot-
tiana, o que mais importa clinicamente para lidar com os estados
primitivos de nossos pacientes é que possamos oferecer nossa
presença sensível (como indica Kupermann, 2008) para que suas
palavras possam tocar em um lugar dos pacientes no qual não
há inteligibilidade para compreendê-las, mas, com a certeza de
que isso fará alguma diferença. Um posicionamento que remete
à possibilidade de refundar, no espaço clínico, algo relativo ao
exercício das funções maternas, na medida em que seu exercício
demanda uma certeza que ultrapassa os limites da racionalidade
e da lógica do Inconsciente e se inscreve no solo da afetividade e

Aliás, alguém já se perguntou por que as mães falam com


seus bebês mesmo enquanto eles ainda estão em suas barrigas?

Edição Standard Brasileira das


Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XX.
original publicado em 1926).
Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. X
Imago. (texto original publicado em 1909).
Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII.
original publicado em 1918).
Kupermann, D. (2008). Presença sensível

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 197


Laplanche, J. & Pontalis, J. (1986). Vocabulário de Psicanálise
Pinheiro, N. & Maia, M.V. (2011). Fenômeno histérico ou psicossomático? Re-lendo o
Homem dos Lobos com Winnicott. Fractal Revista de Psicologia, 23(3),1984-0292.
O brincar e a realidade.

O brincar e a realidade.

Winnicott, D. W. (1990). Natureza humana


publicado em 1971).
Da pediatria à
psicanálise
1949).
Winnicott, D. W. (2000b). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no
Da pediatria à psicanálise
Imago (texto originalmente publicado em 1954).
Winnicot, D. W. (2000c). Memória do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade.
Da pediatria à psicanálise
publicado em 1949).
Winnicott, D. W. (2007). O medo do colapso (breakdown
Explorações psicanalíticas

198 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


CAPÍTULO 9

O “ATUAL” NAS PATOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS: UMA LEITURA


AMPLIADA DAS NEUROSES ATUAIS7

Paulo Ritter & Marta Rezende Cardoso

A expressão “patologias atuais” há muitos anos conso-


lidou-se nos debates psicanalíticos, fato que seguramente

últimas décadas. A mudança em questão diz respeito à demanda


que hoje chega aos consultórios de psicanálise, composta
muitas vezes por quadros que não se pautam mais pelos funcio-

“cura-tipo” nos primórdios da psicanálise – tratamento segundo


o método tradicional baseado na associação livre e na atenção

mais ser tão frequente.


Evidentemente o campo da analisibilidade – o que era
considerado analisável pela psicanálise e o que não o era – foi
ampliado ao longo da história e da prática psicanalíticas. Freud,
muito cedo em seu percurso, com a separação do campo das neu-
roses em neuroses atuais e psiconeuroses de defesa, já apontava
para essa rigorosa demarcação. Enquanto as psiconeuroses de
defesa podiam ser tratadas pelo método psicanalítico – já que

do paciente, acessíveis, portanto, à investigação psíquica –, as


neuroses atuais não ofereciam “à psicanálise qualquer ponto de

7
Apoio CNPq. Agradecemos a Pedro Henrique B. Rondon pela atenta revisão.

199
ataque” (Freud, 1917/1976a, p. 453), pois seus sintomas estavam
relacionados estritamente à vida sexual daquele momento do
paciente, não havendo então o que investigar no passado. Como
veremos adiante, mais tarde Freud passou a abordar esta questão
de forma mais complexa, abrindo espaço para traçarmos novas
considerações a respeito.
Apesar da reserva de Freud quanto às indicações de análise
em determinadas situações, a ampliação do campo do analisável

1940 e início dos anos 1950, a análise de crianças e psicóticos,


por exemplo, passou a ser prática legítima da psicanálise, assim
como a análise de pacientes psicossomáticos nos anos 1960. Nas
últimas décadas, a partir dos anos 1970, assistimos à proliferação

como borderline e estados-limites, capítulo atual desse processo


de expansão da teoria e da clínica psicanalíticas. Isto mostra
ter havido, quanto às indicações clínicas, inegável processo de
abertura na psicanálise, oriundo de inovações teóricas de dis-
tintas tradições (Birman, 2002).
Além dos termos borderline e estados-limites, percebemos
indubitavelmente hoje o incremento de expressões que evi-
denciam algo novo no ar, como “novas patologias” e “novos sin-
tomas”, ou de expressões que indicam que no mínimo haveria

como “subjetividades contemporâneas” e “mal-estar da atua-


lidade”. Entre essas, a expressão “patologias atuais” nos parece
revestir-se de particular importância.

atuais, convém nos perguntarmos o que seriam exatamente sub-


jetividades organizadas em torno de um funcionamento neu-

patologias da atualidade.

200 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


De modo bastante esquemático, seriam aquelas subjetivi-
dades que têm um psiquismo cujos limites internos e externos
estão constituídos de forma satisfatória, e no qual as intensidades
pulsionais estão ligadas a um campo de representações e a objetos
de satisfação. Na subjetividade neurótica, a adequada delimi-
tação entre as diferentes instâncias psíquicas permite a passagem
dos conteúdos psíquicos de uma instância a outra, bem como a
diferenciação entre o mundo interno e o externo e entre o eu e o
outro. O recalque, como operação de defesa básica da neurose,
possibilita a ligação das forças pulsionais com as representações
e o advento da simbolização como operação constituinte do psi-
quismo, de modo que o Édipo é simbolizado e, quando elaborado,
pode instituir a inscrição da diferença sexual e geracional.
É essa organização psíquica que cede lugar na atualidade
-
císicas frágeis e experiências traumáticas severas, nas quais
as balizas neuróticas que servem de suporte à subjetividade
encontram-se precariamente construídas. É nesse contexto que
a proposição de Green (2002) de dividir o campo psicopatológico
contemporâneo em neuroses e não neuroses é bastante eluci-

diferentes tradições, a sua proposta de separar as neuroses de


transferência, cada vez mais raras como formas puras, das con-
-
zação do campo nosológico do ponto de vista metapsicológico,
como também oferecer instrumentos técnicos para o enfrenta-
mento clínico desses quadros.
Há muito tempo esse autor utilizava o termo “estados-limites”

funcionamento neurótico, mas em seus últimos trabalhos (Green,


2002) ele preferiu a denominação “estruturas não neuróticas”.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 201


como elemento comum graves falhas na constituição narcísica e
que englobam, além dos estados limites, as psicoses brancas, as
patologias do vazio e do ato, os distúrbios narcísico-identitários, as
toxicomanias, os distúrbios alimentares, as somatizações, etc.

forma maciça o que Green (1988/2010) chama em outro trabalho


de “saídas extrarrepresentativas” – “passagem ao ato, conduta
perversa, toxicomania, baque depressivo, momento delirante,
crise psicossomática, etc.” (p. 298) –, que não permitem, ou per-
mitem pouco, o ingresso das representações nesse circuito.
Julia Kristeva (2002), em seu livro As novas doenças da alma,
lança a provocante pergunta de “quem, hoje em dia, ainda tem
alma?” (p. 13). Provavelmente inspirada na noção de “aparelho
anímico” (Seelischeapparat) ou de “atividade da alma” (Seelen-
leben) de que fala Freud em Além do princípio de prazer (1920/1976),
a autora equipara o aparelho psíquico à alma na formulação de
sua questão. Mas em que contexto o faz? Que provocação parece
se esconder por trás de sua pergunta?
-
dermos o mal-estar contemporâneo, devemos conceber o apa-
relho psíquico como uma construção que, apesar de irredutível ao
-
mentado na biologia pela pulsão, esse aparelho depende também
de lógicas autônomas – relativas ao campo representacional –
que não se reduzem ao corpo biológico, o que lhe torna possível
produzir sintomas tanto psíquicos como somáticos, sem que um
registro possa ser reduzido ao outro. Esse modelo de dupla ins-
crição funciona a partir de “séries de representações” psíquicas,
irredutíveis aos substratos biológicos, mas fundamentais para a
constituição de uma vida psíquica que permita o acesso ao próprio
corpo e aos demais sujeitos.
A vida psíquica está inserida em uma trama de sentido
que se instala antes mesmo da significação linguística e é per-
202 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
meada pela palavra erotizada. É só nesse contexto que se pode
falar em “alma”, em “vida psíquica”, a partir de um sistema de
representações que insere o sujeito em um mundo habitado
por outros sujeitos.
É essa concepção de aparelho psíquico – ou aparelho

que “a experiência cotidiana parece demonstrar uma espetacular


redução da vida interior” (Kristeva, 2002, p. 13), uma drástica

representar seria então o denominador comum que une as dife-


-
tomatologias. “Essa carência da representação psíquica entrava
a vida sensorial, sexual, intelectual e pode prejudicar o próprio
funcionamento biológico” (Kristeva, 2002, p. 15-16), seja por uma
espécie de mutismo psíquico que se impõe aos sujeitos, seja pela

Muitas das patologias atuais apresentam de fato um curto-


-circuito no processo de elaboração psíquica, com consequências
diretas sobre o psiquismo e seus mecanismos de defesa, e tal
paralisia está diretamente relacionada ao modo como as repre-

quando são fenômenos transitórios.

Se a representação é a maneira pela qual a pulsão se faz


presente no psiquismo, além de servir à captura e à elaboração
das excitações, a precariedade do registro representacional
expõe o psiquismo ao impacto contínuo da força pulsional, sem
elementos de mediação. É o que está implícito na ideia da pulsão
como força constante, da qual a fuga não é possível, e que exige
trabalho contínuo para ser ligada.
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 203
fundamento do mal-estar contemporâneo pode nos ajudar a
avançar no entendimento dessa questão. Segundo o autor, em
contraste com as tradicionais modalidades de sofrimento orga-

impulsos e as interdições morais, as “subjetividades contempo-


râneas” têm o excesso pulsional como marca distintiva – excesso
que se expressa atualmente de forma privilegiada nos registros
do corpo, da ação e do sentimento.
Assim, a incidência dos quadros psicossomáticos, da síndrome
da fadiga crônica e da síndrome do pânico é citada pelo autor para
evidenciar como o corpo passou a ser o registro mais eminente em
que se enuncia o mal-estar contemporâneo. Seja pelos sintomas
corporais dos quadros psicossomáticos, pelo cansaço absoluto da
fadiga crônica ou pela angústia paralisante das situações de pânico,
-
sional que transborda pelo corpo devido à ausência da interme-
diação das formas psíquicas de simbolização.
Da mesma maneira, as perturbações que incidem no
registro da ação mostram a outra via pela qual o mal-estar se
expressa, pois se o corpo não serve como via de escoamento da
tensão, o ato é outra via possível – mas, neste caso, como des-
carga. O registro do sentimento, continua Birman (2006), é a
terceira modalidade pela qual se expressa o mal-estar contem-
porâneo, e o excesso aparece aqui como a irrupção de algo que
escapa à regulação do psiquismo, impondo-se a ele, seja como
exaltação maníaca, seja como depreciação depressiva. Não à
toa, as depressões são um dos maiores males da atualidade, mas
não aquelas caracterizadas pelas ruminações da culpa, e sim as
marcadas inapelavelmente pelo sentimento de vazio, pois se as
depressões de hoje conservam algumas características daquelas
apresentadas no passado, outras são inequivocamente novas.

204 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Sem a mediação exercida pelas formas psíquicas de sim-
bolização, o aparelho psíquico é inundado pelo excesso pul-

intermediário entre o corpo e o mundo. Se não é elaborada, a


força das pulsões é descarregada ou internamente pela via cor-
poral ou externamente pela via do ato.
É precisamente a essas duas alternativas que Green (1974)
se refere quando escreve sobre dois mecanismos que denomina
“mecanismos de curto-circuito psíquico”. O autor lembra que em
meados dos anos 70 o campo psicanalítico oscilava, do ponto de

estavam aqueles casos cujo funcionamento psíquico apresentava


graves falhas na capacidade de estabelecer relações objetais, apesar
de aparentarem um funcionamento neurótico comum – descritos
soberbamente por McDougall (1983) como os “anti-analisandos”; do
outro lado, estavam os casos que tinham como característica comum
a tendência para a regressão fusional e a dependência do objeto.
Entre esses dois extremos – relações objetais quase
-
tência de vários mecanismos de defesa que podiam ser agru-

pelo ato, clivagem e desinvestimento.


Não à toa percebemos em algumas das patologias atuais
que a presença maciça da dimensão do organismo, enquanto
o registro do corpo, como instância libidinalmente investida, é
relegado a segundo plano. Por conta dessa imposição brutal,

somáticas em uma rede de sentido que possa dar contornos sim-


bólicos mínimos aos sintomas de que se queixam.
Mayer (2001) defende a posição de que, embora perdurem
as grandes estruturas clínicas (neuroses, perversões e psicoses),
não é conveniente fechar os olhos ao fato de que nos últimos anos
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 205
houve uma explosão de casos que não podem ser enquadrados
nessa tríade. Se não são quadros inteiramente novos, apre-
sentam-se na atualidade de maneira maciça, crescente e com
notável intensidade.
O autor cita como exemplo as adições, as doenças psicosso-
máticas e os distúrbios na alimentação para salientar que, nesses
quadros, “ocupa lugar de destaque uma forma de atuação na qual
parece funcionar uma espécie de curto-circuito entre o impulso
e a ação, pulando-se o processamento psíquico” (Mayer, 2001,

costumam ser agrupadas sob o nome comum de “patologias


atuais”. Ele destaca que essa denominação tem a vantagem de
condensar o sentido de contemporaneidade com o de patologias
-

e que têm como uma de suas características principais os meca-


nismos de passagens ao ato.
Essa ambiguidade do termo “atual” não passou desper-
cebida para Laplanche (1980/1998), mas em outro contexto. Ana-
lisando os textos iniciais de Freud, sobretudo no que concerne
às neuroses atuais do ponto de vista etiológico, ele já apontara
para o duplo sentido desse termo ao dizer que a causa das neu-
roses atuais é atual no duplo sentido de presente no tempo e
de presente em ato. Se, como veremos, nas neuroses atuais a
ambiguidade remetia para essas dimensões articuladas sempre à
etiologia, nas patologias atuais a polissemia é maior, pois remete
às ideias de presente, ato e atualidade, articuladas à noção mais
ampla de constituição subjetiva.

206 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Atualidade das neuroses atuais

O termo “atual”, em relação às neuroses atuais, indicava


para Freud, nos primórdios de sua obra, que sua causa provinha
do momento atual da vida do paciente, mais precisamente do
regime atual de sua vida sexual. Da mesma maneira, os sintomas
apresentados não permitiam uma explicação que remontasse
ao passado, já que seu sentido esgotava-se no presente. Na
concepção freudiana, as neuroses atuais nada mais eram que a
expressão somática da libido não utilizada.
Mas desejamos destacar como a problemática do excesso,
articulada às construções teóricas na base das neuroses atuais,
constituía interesse fundamental de Freud. Isto nos permite
propor uma visão ampliada e renovada da questão das neuroses
atuais na obra freudiana, visão que vem abrir interessante via de
-
relação com a precariedade dos meios de elaboração psíquica.
Em nosso entender, esta problemática, que estará nas bases do
tournant dos anos 20, emerge, em esboço, na teorização que
Freud apresentara muito antes sobre as neuroses atuais, levando-
-se em conta, inclusive, algumas das oscilações e contradições em
seu pensamento a respeito desse tema. É esta mesma questão,
diretamente vinculada à dimensão do traumático e dos limites da
representação, que constitui o foco central das chamadas pato-
logias atuais.
-
tacional, é o próprio processo de elaboração psíquica que se

por parte do ego para realizar a “exigência de trabalho” que as


pulsões impõem ao psiquismo. Em última instância, esta proble-
mática diz respeito, de modo central, à capacidade de ligação no
psiquismo, precisamente sua tarefa principal.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 207


Nos textos dos anos 1890, Freud (1894/1986a; 1895/1986c;
1895 [1950]/1986; 1896/1986) havia investigado quadros psicopa-

as excitações corporais para o psiquismo, de modo que seus sin-


tomas se expressavam, sobretudo, no registro corporal. Esses
quadros foram designados, na época, como neuroses atuais,
quadros nos quais Freud encontrou verdadeiros impasses para a
realização dessa transposição de excitações; não à toa defendeu
na quase totalidade de sua obra a inacessibilidade dessas neu-
roses ao tratamento psicanalítico, já que estimava que seus sin-
tomas não possuíam expressão psíquica.
A categoria de neurose atual esteve indissoluvelmente
vinculada ao intenso trabalho que Freud realizou visando a dar

não somente meticulosa construção de novas categorias – por


exemplo, a de neurose de angústia –, mas também rearranjos
conceituais de outras categorias já bastante difundidas no meio
médico de então, como a neurastenia. Ao mesmo tempo, tinha
início, nesse período, a constituição de um novo campo teórico-
-conceitual no interior do qual categorias clínicas emergentes
adquiriam sentido e inteligibilidade e a sexualidade passava a
desempenhar papel fundamental.
Em Freud, a compreensão da dimensão de sexualidade
esteve inicialmente restrita à concretude da vida sexual, e é
exatamente assim que ela surge como fator etiológico fun-
damental nas neuroses atuais. Porém, como sabemos, com
a introdução das psiconeuroses de defesa ela deixará de ser
meramente identificada ao registro do ato sexual e adquirirá
crescente importância no edifício conceitual psicanalítico. No
que concerne a essa profunda transformação que virá a ser
operada na teoria da sexualidade, o estudo da neurastenia e da
neurose de angústia foi, entretanto, de essencial relevância.

208 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Através delas, Freud pôde já colocar em evidência, mesmo
que de modo rudimentar, embora bastante direto, o peso
que a sexualidade possui na vida subjetiva e principalmente a
hipótese de uma origem sexual das neuroses.
A separação entre neuroses atuais e psiconeuroses de defesa
é o primeiro grande contraste que toma forma quando Freud
começa a delinear os quadros clínicos que darão origem à noso-

etiológicos encontram-se nas práticas sexuais dos pacientes e são


de seu conhecimento; de outro lado, as psiconeuroses cuja etio-
logia pertence “a uma época da vida há muito passada, que é, por
assim dizer, pré-histórica – a época da primeira infância” (Freud,
1898/1986, p. 240), sobre a qual os pacientes nada sabem.
Outra contribuição freudiana dessa época é a subdivisão
estabelecida das neuroses atuais em dois quadros distintos – neu-
rastenia e neurose de angústia –, cada um deles com sintomato-
-
cerem juntos. Os sintomas neurastênicos estariam, normalmente,
relacionados à dimensão corporal – “pressão intracraniana, pro-
pensão à fadiga, dispepsia, constipação, irritação espinhal, etc.”
(Freud, 1898/1986, p. 240) –, enquanto na neurose de angústia
todos os sintomas apresentariam relação com o sintoma prin-
cipal, a angústia – ansiedade, inquietação, expectativa angus-
tiada, ataques de angústia, agorafobia, insônia, etc.
Vale pontuar que Freud já começa a indicar aqui a dimensão
do excesso como sendo o fundamento das neuroses atuais. Na neu-
rastenia, esta dimensão aparece articulada ao esgotamento por
masturbação excessiva ou por “emissões frequentes”, aspecto que
não permite que essas práticas sexuais sejam ligadas aos fatores
psíquicos; na neurose de angústia, o excesso seria excesso de exci-
tação sexual que, em função do coito interrompido ou da conti-
nência, também não chegaria a ser vinculado ao registro psíquico.
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 209
Pensamos que a concepção que Freud nos apresenta nesse
momento a respeito dessas duas neuroses traz uma ideia parti-
cularmente interessante a qual, como apontamos acima, será
retomada muito mais tarde, na obra freudiana, de forma dis-

(Freud, 1920/1976). Trata-se da noção de excesso, que nesse pri-


meiro momento já aparece estreitamente articulada com a ideia
de impossibilidade de tramitação psíquica.
Instigado pelo material reunido em determinados casos,
Freud concentra sua atenção naquilo que supõe constituir acumu-
lação da tensão endógena, cuja fonte estaria no interior do corpo,
-

psíquica, que
entra em contato com grupos de idéias que, com isso, passam a
buscar soluções.” (Freud, 1950 [1894]/1986d, p. 273).
É exatamente a importância do fator psíquico no modelo
teórico freudiano da neurose de angústia que é ressaltada por

Insistamos em que a teoria da neurose de angústia não é


-
plesmente, não encontra um coito adequado, uma descarga
adequada; é, isso sim, a excitação somática que não encon-
-
duz-se pelo fato de o coito não ser adequado), e é ao nível de
uma ausência de elaboração que se produz a derivação sob a
forma de angústia (Laplanche, 1980/1998, p. 27).

Laplanche introduz nessa passagem – na qual procura ler

“ausência de elaboração” que a produz, a ausência de elaboração


da excitação somática.

210 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Além da noção de elaboração, um elemento merece ser des-

a conexão psíquica é para ligar a tensão física, que falta


algo nos fatores psíquicos para realizar tal tarefa, Freud procura
salientar que nas neuroses de angústia o aparelho psíquico não
é capaz de efetuar a ligação entre o registro do corpo e o do psi-
quismo. Podemos acrescentar que, apesar de Freud não utilizar
essa terminologia na época, na neurose de angústia haveria insu-

das intensidades pulsionais para o campo das representações.


Interessante notar que Freud termina o artigo, como
também o fez no Rascunho E (Freud, 1950 [1894]/1986d), com-

ambas, em relação à sintomatologia, possuem muitos traços em


comum, o que até então não havia sido levado em consideração.
O acúmulo de excitação, devido à ausência de elaboração, seria
a base comum às duas neuroses. No entanto, se na neurose de
angústia a excitação parece ser puramente somática e permanece
nesse registro, sem nunca ter sido elaborada psiquicamente, na
histeria a excitação é psíquica e é convertida ao registro somático.
Podemos inferir, então, que no caso da histeria a exci-
tação já sofre algum tipo de elaboração, mas esse processo vê-se

da excitação no corpo pela conversão. A ausência de elaboração,


-
-
mente, o equivalente somático da histeria” (Freud, 1895/1986c,
p. 111). É uma ideia que reaparecerá em outros trabalhos, às
vezes com nomes distintos como “equivalência”, “complacência”
-

equivalente somático da histeria?

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 211


A nosso ver, nessa ideia está, de certo modo, indicado que
na neurose de angústia estariam em ação mecanismos psíquicos
mais arcaicos do que aqueles atuantes na histeria. O sentido aqui
desse aspecto arcaico aparece ainda de modo restrito, como
temos mostrado. Porém, é nosso objetivo pontuar essa dimensão
por considerar que nesses primórdios do percurso freudiano,
através dessas ideias, já se fazem presentes algumas sementes
de uma visão que germinará bem depois na obra.
Não haveria na neurose de angústia a ação de mecanismos
defensivos menos organizados e mais elementares, como a
somatização e a presença da própria angústia – o afeto menos
elaborado e mais próximo da descarga energética pura, como
lembrou Laplanche (1980/1998, p. 32)? Freud utilizou duas vezes
a metáfora do grão de areia no centro da pérola quando se referia
às neuroses atuais, para ilustrar sua concepção de que o núcleo
do sintoma psiconeurótico – sintoma psíquico – era formado por
um sintoma somático. A ideia subjacente a essa concepção é que
o sintoma psíquico seria uma espécie de revestimento de um
material excitatório localizado no corpo, como a pérola é consti-
tuída por camadas de madrepérola ao redor do grão de areia.
-
nicamente de forma isolada, de modo que na base de uma psico-
neurose normalmente havia uma neurose atual. Na Conferência
XXVI – A teoria da libido e o narcisismo (1917/1976b), a respeito da
relação entre as neuroses de transferência e as neuroses narcí-

longe; no fundo, o campo de fenômenos é o mesmo” (p. 492).


-
roses atuais e psiconeuroses.
Em La perle et le grain de sable (1999), Press utiliza uma
palavra usada por Freud em relação aos sonhos – umbigo – para
nomear uma zona incognoscível na qual o psíquico teria sua fonte.

212 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Nesse lugar, força e sentido seriam um elemento só e apenas o
fator econômico se manifestaria. Seria uma espécie de “ponto
alpha” do psiquismo, um lugar virtual a partir do qual este poderia
advir sob o impacto da descontinuidade dos cuidados maternos.
Seria então um local semelhante ao “umbigo do sonho” do qual

e obscuro, constituído por uma trama particularmente cerrada da


qual brota o desejo que o anima (Freud, 1900/1986).
Esse ponto alpha constituiria, em toda etapa de desenvol-
vimento do psiquismo, uma espécie de “núcleo quantitativo”,
sempre pronto a atualizar-se, por exemplo, nas desorganizações
psicossomáticas, o que faria do trauma um elemento integrante
do funcionamento psíquico, e não um evento que se imporia a

em toda excitação intolerável há um “fundo traumático” – um grão


de areia – que constitui essa zona incognoscível do psiquismo, que
poderá ou não ser revestido pelas camadas de sentido.
Desejamos pontuar que o fator econômico esteve presente
desde os primeiros escritos de Freud, por meio de vários termos,
tanto em relação às neuroses atuais como às psiconeuroses. Mas
aparece de forma mais radical nas neuroses atuais, pois nestas
dizia respeito a uma tensão que não havia ingressado ainda no
registro psíquico, que permanecia no registro somático como um
excesso bruto, sem qualquer trabalho.
Como se dá a passagem do físico ao psíquico, do corpo ao
psiquismo, das excitações às representações? Eram essas as inda-
gações principais de Freud na época em que realizava seu percurso
teórico da passagem das concepções neurológicas às concepções
psicológicas ou psicanalíticas. As neuroses atuais correspondiam jus-
tamente às situações em que a transposição do registro físico para
o psíquico não era possível, de modo que o excesso não elaborado
psiquicamente produzia debilitamento, angústia e sintomas físicos.
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 213
Em relação às neuroses atuais, Freud seguiu por duas linhas
paralelas de investigação. Uma continha sua hipótese etiológica
– jamais alterada – de que essas neuroses eram causadas por
uma vida sexual inadequada; outra continha suas ideias sobre os
mecanismos psíquicos que de fato estavam em jogo nas neuroses

neuroses, mais complexidade do que supunha de início.


Como as neuroses atuais e as psiconeuroses de defesa
constituíam dois grupos distintos, essa dimensão econômica
mais radical foi, de certa forma, deixada de lado quando o inte-
resse teórico de Freud voltou-se para o campo das psiconeu-
roses. Entendemos que a dimensão “atual” das neuroses atuais
as excluiu do avanço teórico propiciado pelas novas descobertas
freudianas, sobretudo quando aplicada à etiologia, já que, como
é sabido, Freud relativizou posteriormente alguns de seus pontos
de vista sobre os mecanismos implicados em tais neuroses.
Mas o fator econômico mais radical, que não ingressava no
psiquismo, após ser excluído juntamente com as neuroses atuais,

de 1920. Foi esse ressurgimento que nos permitiu propor uma


releitura do excesso de tensão física como excesso pulsional,
como um excesso que pode ou não ligar-se às representações. A
dimensão do excesso abre caminhos para pensarmos também o
registro temporal que está em questão nas neuroses atuais e nas
patologias contemporâneas.

Segundo Cardoso (2011), a questão do trauma, na obra de


Freud, se desdobra em duas grandes vertentes, com pontos de
convergência e divergência. A primeira vertente é a teoria trau-

214 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mática da neurose, que constituiu a base das psiconeuroses, cuja
etiologia era pensada em termos essencialmente traumáticos;
a outra, construída bem mais tarde, foi a teoria da neurose trau-
mática, neurose com sintomas e fundamentos que se contrapõem
aos das neuroses propriamente ditas.
-
gridade egoica, concepção presente no entendimento das psico-
neuroses de defesa e que constitui a teoria traumática da neurose,
-
cativo que retorna com força total em 1920. Nessa época, Freud
estava interessado nas “patologias marcadas pela ação, no mundo
interno, de um pulsional disruptivo, sinalizado pelas defesas de tipo
radical e elementar acionadas pela compulsão a repetir, destrutiva-
mente, o mesmo” (Cardoso, 2011, p. 71-72). O traumático em 1920
diz respeito ao além do princípio de prazer, à pulsão de morte.

de desdobramento de algumas ideias apresentadas anterior-


mente sobre a neurose de angústia. Nesta, sua etiologia é o
acúmulo de excitação sexual que se transforma em angústia pela

de elaboração psíquica?” (Cardoso, 2011, p. 73).

neurose de angústia, como acúmulo de excitação difícil de ser


suportado pelo psiquismo. Há então uma espécie de retranscrição
do que fora enunciado antes, com a diferença de que o excesso
de energia resulta do fenômeno da efração, que diz respeito à
ampliação de uma brecha pelo excesso de energia.
Para a autora, a dimensão da atualidade, no caso da neurose
de angústia, aparece na forma como Freud insiste no caráter per-
manente e insistente da angústia que aí se apresenta, semelhante
em muitos aspectos à ação daquilo que aparecerá mais tarde
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 215
como compulsão à repetição. “A compulsão à repetição, como
destino do traumático, destino aquém da representação, não cor-
responderia, igualmente, a uma retomada, na teoria freudiana,
do registro do atual?” (Cardoso, 2011, p. 74), com o sentido adi-

Assim, renovada com a noção de compulsão à repetição,


a dimensão de atual, antes atrelada de modo restrito à questão
apenas da etiologia das neuroses atuais, adquire notável den-
sidade. Quando é situada no cerne da compulsão à repetição, a
questão do “atual” diz respeito às impressões e elementos que
não conseguem se tornar passado, diz respeito à impossibilidade
de historicização, o que ocasiona respostas pela via do ato, “res-
-

A memória traumática tem caráter literal – repete o


mesmo – e é imemorável, já que nela o passado é pre-
sente. É o avesso de uma memória representacional, pois

traumático, não passível de representação.

Não podemos comparar essa memória traumática, que só


repete o mesmo, alheia ao registro da história, com as neuroses
atuais, em que os sintomas não se constituíam dentro de um
quadro de referência histórico, em que não possuíam ligação com
o passado de cada sujeito?
A esse respeito, Knobloch, em instigante trabalho intitulado
O tempo do traumático

as patologias atuais, diferentemente das histéricas tratadas por


Freud, sofreriam da ausência de reminiscências, “daquilo que não

“tempo do traumático” e sua relação com as patologias contem-


216 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
O presente vulgar, também chamado de presente banal, é

do agora e do depois. É o tempo da história, a partir do qual os


outros tempos podem se demarcar. É ainda o tempo que pode ser
apreendido, pois é possível encaixá-lo numa série, manipulá-lo,
representá-lo numa história.

não se inclina para o passado nem se projeta no futuro. “Esse pre-


sente congelado, assim eternizado, provoca dores, dores de uma
antiperda que produz uma vida que não pode ser vivida.” (p. 118).

“mostração”, que não pode ser apreendido numa representação.


É o tempo que não é apreensível, que apenas apresenta. Nesse
registro do presente, o sujeito não se representa, apresenta; não

mais além do inconsciente.


É fácil perceber qual modalidade de presente a autora rela-
ciona ao tempo do traumático, este que “não se temporaliza
numa série, é um tempo onde o fascínio é o da ausência de tempo”
(Knobloch, 1998, p. 123). Apoiada na noção de traumático como
o que diz respeito ao irrepresentável e questionando a ideia de
que o trabalho psíquico passa, essencialmente, pela possibilidade
de representar, a autora investiga aquelas situações que rompem

crise”. Estas, que rompem com os sistemas de representação,


não poderiam ser inscritas em outros sistemas que permitissem
outras formas de elaboração que não dependessem exclusiva-
mente do registro das representações?

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 217


da lembrança da ordem da representação, cadenciada pelos
registros do passado, do presente e do futuro, justamente porque
se pautam por outra temporalidade, da ordem do irrepresentável.
É essa a proposta de Uchitel (2011), para quem “o indiscu-
tível, depois do impacto traumático, não é a presença da neurose
traumática, mas a de um estado traumático, no qual se apresentam
as características atribuídas à neurose traumática” (Uchitel, 2011,
p. 201). Tal estado depende, em última instância, “do momento
do desenvolvimento do sujeito em que este acontece e da relação
entre impacto e defesa” (Uchitel, 2011, p. 201), e é esta relação
que pode originar diferentes quadros. A saída propriamente
neurótica consegue integrar no psiquismo o trauma por meio
de cadeias de sentido, fantasias, sintomas simbólicos e defesas
como o recalque. Já o estado traumático mostraria o “verdadeiro”

aos demais conteúdos psíquicos, de modo que seu impacto insu-


portável paralisa o ego, isolando o acontecimento e impedindo

qualquer psiquismo, estarão presentes aspectos traumáticos


irrepresentáveis (que são motor da compulsão à repetição) que
também exigem um trabalho” (Uchitel, 2011, p. 202).

Freud não conseguiu incluir sem reservas a neurose traumática


no campo das neuroses, mas também não a descartou, o que

freudiana, quase em oposição às neuroses clássicas. É nesse con-


texto que ela sugere cuidado para não estabelecer uma dicotomia
entre uma “clínica do trauma” – “do irrepresentável” ou “da dis-
sociação” – e uma “clínica da representação” ou “do recalque”,
“apesar de cada patologia mostrar sua dinâmica própria e seus
mecanismos representáveis e aspectos inscritos que conseguiram
uma representação” (Uchitel, 2011, p. 203).
218 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
-
dermos o que acontece ao psiquismo no estado traumático. A

um modo de funcionamento que mantém a repetição despra-

-
-se de uma verdadeira inscrição (Niederschrift) de traços em séries
de sistemas mnésicos, traços que podem ser ‘traduzidos’ de um
sistema para outro” (Laplanche & Pontalis, 1982/1992, p. 192).
Nesse contexto, o estado traumático é o que impede as
transcrições, de modo que “a liquidação das excitações não
acontece, produzindo-se uma sobrevaloração do aconteci-
mento pelo acúmulo das excitações da vivência” (Uchitel, 2011,

associando-se quase por inteiro à cena traumática. Como não

investimentos.
É dessa maneira que podemos entender o “atual” em
questão nas neuroses atuais e nas patologias da atualidade.
Ambas dizem respeito a um fundo traumático que resiste à his-
toricização, à entrada nas cadeias de sentido, ao ingresso no uni-
verso das representações, como se instaurassem um regime de
tempo paradoxal cuja característica é a não passagem do tempo.
Em ambas também encontramos atuando mecanismos
psíquicos mais elementares, próximos do registro corporal e da
ação, o que mostra a precariedade dos seus mecanismos de ela-
boração psíquica. É claro que há vários níveis de elaboração, mas
é indiscutível que a elaboração que passa pelo registro das repre-
sentações está seriamente prejudicada nesses quadros.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 219


Fortes (2008) considera que um ponto fundamental no mal-
-estar contemporâneo é a presença do excesso na constituição
sintomática dos sujeitos, dimensão que estava presente justa-
mente nas neuroses atuais. Sobre esse ponto, a autora invoca
uma questão levantada por Pontalis – “por que uma das poucas
vezes em que Freud utilizou a palavra mal-estar, anteriormente ao
texto O mal-estar na civilização, de 1930, foi justamente quando
descrevia a categoria das neuroses atuais?” (Fortes, 2008, p. 69)
Esse autor considera precioso esse fato, pois pode ajudar na com-

mal-estar], excetuando-se, é claro, o ensaio aqui abordado [O


mal-estar na civilização], em duas ou três ocasiões. E o faz a pro-
pósito de uma forma de neurose que inclui na categoria das ‘neu-
roses atuais’” (Pontalis, 1991, p. 23).
Isabel Fortes (2008) observa uma alteração no modo de subje-
tivação da contemporaneidade que aparece no incremento da pro-

um modo de adoecimento psíquico que difere da psiconeurose, cuja


organização se dá pela culpabilidade e pelo recalque” (p. 69).
Essa diferença em relação às psiconeuroses indica que não
há apenas um destino pulsional, assim como não há apenas uma,
mas inúmeras formas de padecimento psíquico. Assim, valorizar a
neurose atual tem o intuito de apresentar na obra freudiana uma
sintomatologia mais ligada à descarga, que se atualiza no corpo,
afastada das operações de elaboração psíquica.
É nesse sentido que entendemos sua proposta de um tra-
balho que não seja concebido como simbolização, já que nem
toda ligação é da ordem da simbolização. Uma sintomatologia
mais ligada à dimensão corporal, à descarga, implicaria um tra-

220 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


balho de “dispêndio de energia” que não passaria necessaria-
mente pela representação. Se a representação é uma espécie de
suspensão da descarga motora, haveria então graus diferentes de
descarga que se desdobrariam em destinos psíquicos distintos.
O dispêndio de energia que não diz respeito ao registro das
representações seria o trabalho de mobilização energética dos sis-
temas afetados pelo trauma, entendido como excesso pulsional,
e constituiria o primeiro nível do trabalho psíquico. “Esta primeira
ligação [...] já pode ser considerada um trabalho psíquico que cor-
responderá a um determinado processo de subjetivação” (Fortes,
2012, p. 116). Assim, a exigência de trabalho que a pulsão faz ao
psiquismo não precisa ser entendida exclusivamente como elabo-
ração psíquica, de modo que a noção de “trabalho psíquico pode
se abrir para um campo maior de possibilidades, a partir dos níveis
de dispêndio energético do circuito pulsional” (Fortes, 2012, p. 117).
Pontalis (1974), em um pequeno comentário a um texto de
Fairbairn sobre a esquizoidia, alude ao fato de que Freud construiu
duas metáforas, nunca completamente integradas, para pen-
sarmos o aparelho psíquico. A primeira – encontrada mais expli-
citamente em (Freud, 1895
[1950]/1986) e em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1986)
– é dominante e propõe um aparelho constituído como uma de
rede de neurônios ou de representações, na qual a energia e os
afetos circulam pelas cadeias associativas sem extrapolar os
limites da rede. A segunda metáfora é apresentada em Além do
princípio de prazer (Freud, 1920/1976) e propõe a célebre imagem

desligadas, que se protege criando uma crosta endurecida amor-


tecedora dos impactos. O modelo da vesícula seria a metáfora de
um psiquismo em vias de constituição, que poderia ou não ori-
ginar o modelo da rede, no qual o princípio de prazer pode regular

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 221


As psiconeuroses de defesa, as neuroses de transferência,
as neuroses clássicas diriam respeito à primeira metáfora, pois
são quadros em que o aparelho psíquico já está constituído, ope-
rando no registro das representações e revestindo o corpo com
cadeias de sentido. As neuroses atuais, as neuroses traumáticas,
as patologias da atualidade corresponderiam à segunda, pois
representam quadros em que o trabalho de ligação das exci-
tações, em determinado nível, está prejudicado.
Em 1974, Green escreveu que seria plausível pensar que os
estados-limites desempenham na clínica moderna o papel que
as neuroses atuais desempenharam na teoria freudiana, justa-
mente por representarem um limite à analisibilidade. A nosso ver,
as neuroses atuais e as patologias contemporâneas representam

teoria, o limite do campo psicanalítico, o limite da clínica.


Assim, as neuroses atuais e as patologias da atualidade, em
diferentes épocas, representam os impasses que se impõem aos
sujeitos no trabalho de elaboração do excesso que os constitui,
tarefa que se coloca para todos, mas com especial radicalidade
para esses modos de subjetivação.
A clínica contemporânea, no que tange às patologias atuais,

irrepresentável”, ou ainda como “clínica do pulsional”. Na base dessas

clínico de hoje leva em consideração aspectos que não eram consi-


derados na técnica analítica clássica – na “clínica do representável”.
Podemos tomar a ideia de Freud de que nas neuroses atuais
havia um excesso de tensão física não ligada psiquicamente como
uma metáfora dessa base traumática, assim como sua concepção
do trauma como efração dos limites do ego. É a mesma base trau-
mática que está em questão nas patologias atuais.

222 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


O
futuro da psicanálise
Arquivos do mal-estar e da
resistência. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006.

Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 70-82,


março 2011.
Fortes, I. Dor psíquica.
Fortes, I. A dimensão do excesso no sofrimento contemporâneo. Pulsional, ano 21, n. 3,
setembro/2008, p. 63-74.
Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
Imago, Vol. XVI, p. 441-456 (Trabalho original publicado em 1917).
Edição
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Edição Standard Brasileira das Obras


Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
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Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
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Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
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Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),

Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.), Rio de
Janeiro
Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
III, p. 236-253 (Trabalho original publicado em 1898).

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Freud, S. (1986). A interpretação dos sonhos Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
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Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
original escrito em 1894 e publicado em 1950).
Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (E.S.B.),
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224 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


CAPÍTULO 10

LUTO E IDENTIDADE EM TEMPOS DE INCERTEZA NO ORIENTE


MÉDIO: UMA COMPREENSÃO A PARTIR DA CLÍNICA AMPLIADA

Maria Virginia Filomena Cremasco & Mariana Duarte

Este trabalho é fruto de reflexões de um projeto de pes-


quisa mais amplo intitulado Luto e Trauma: apontamentos
clínicos que teve o apoio do Fundo de Desenvolvimento Aca-
dêmico (FDA) da UFPR em 2012. Parte deste trabalho foi apre-
sentada em mesa redonda no evento Diálogos Brasil-Líbano
organizado pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental
da UFPR em parceria com a Universidade Saint-Esprit de
Kaslik, Líbano, em agosto de 2012 na UFPR. Este trabalho tem
por objetivo refletir sobre o sofrimento psíquico do sujeito
na sociedade árabe atual a partir da perspectiva da clínica
ampliada e em relação ao que se configura como um trabalho
de luto dos referenciais até então dominantes. Como nos diz

necessário para aceitar a realidade da perda e enfrentá-la, isto


é, aceitar as modificações que essa perda nos induz”.
Pretendemos com isso oferecer também alguns subsídios,
sob o ponto de vista psíquico, para iniciarmos um debate das
atuais manifestações públicas no Brasil que se iniciaram com o
Movimento do Passe Livre pelo transporte público gratuito e se
estenderam em todos os estados brasileiros para uma série de
reivindicações que não se viam em nosso país, desde a década de
80. O ponto que une essas diferentes sociedades é que em ambas
os movimentos sociais, sob diferentes perspectivas, visaram
225
melhorias nas condições de vida que necessariamente implicam
mudanças políticas e econômicas nesses países.
Retornando ao Oriente Médio, veremos como, a partir
da Primavera Árabe, uma onda de instabilidade e incerteza se
propaga, sobretudo após dezembro de 2010. Nos atuais tempos
de incerteza do Oriente Médio, a questão do luto se faz presente
na identidade dos grandes grupos bem como das minorias,
como uma vivência de perda dos antigos referenciais autocratas
e religiosos fundamentalistas – referenciais que vêm se plurali-
zando diante do que inicialmente foi nomeado como “revolução
democrática árabe”.
Este conceito de trabalho de luto que aqui assumimos vai
ao encontro do que admitimos como clínica ampliada, segundo
Campos e Amaral (2007), ou seja, esta clínica visa à formação
de subjetividades por meio do fomento da autonomia e do
empoderamento dos sujeitos por intermédio de seus disposi-
tivos e métodos de análise. Além disso, considera-se essencial

curativos, preventivos, de reabilitação ou com cuidados paliativos


–, a clínica poderá também contribuir para a ampliação do grau

Autonomia entendida aqui como um conceito relativo, não como


a ausência de qualquer tipo de dependência, mas como uma
ampliação da capacidade do usuário de lidar com sua própria rede
ou sistema de dependências.
Desta forma, a clínica ampliada pode ser focalizada como um
conceito que está na interface das políticas públicas, considerando
a história coletiva e os diversos fatores que interagem na produção
de subjetividades, bem como na intervenção psicológica.
Referindo-se à história coletiva ou ao “espaço” que aqui
propomos abordar, o mundo árabe e suas mudanças, assim nos
226 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
esclarece Hicham Ben Abdallah El Alaoui do Laboratório de Expe-
rimentação e Pesquisa de Narrativas da Mídia (LAN) do Depar-
tamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa da Pós-

algumas décadas, a antiga forma de religiosidade islâmica vem se


chocando com um nacionalismo árabe triunfante. Hoje em dia,
mesmo as vozes “seculares” moderadas hesitam em contestá-la
abertamente. Presas na armadilha identitária, elas temem passar
por conservadoras aos olhos do regime, e, como inimigos da
autenticidade árabe, pela população. Ele cita um exemplo mar-
cante que foi o grupo de jovens marroquinos que, no verão de
2009, quis romper o jejum do Ramadã e fez um piquenique em
um jardim público. Além da previsível indignação dos religiosos, a
iniciativa desencadeou a ira da União Socialista das Forças Popu-
lares (USFP), principal formação social-democrata do país, que
pediu sanções contra aqueles que não respeitaram o jejum. Essa
“religiosidade” de esquerda expressava-se em uma linguagem
emprestada do nacionalismo, e o piquenique foi considerado um
insulto para a cultura marroquina, além de perigoso para o con-
senso identitário. Como as autoridades decidiram acusar os jovens
de “perturbar a ordem pública’’, um motivo raramente invocado,
a lei secular serviu aqui de abrigo para um apelo à ordem religiosa.
Segundo El Alaoui a classe política, como um todo, não podia
admitir o menor desrespeito aos preceitos corânicos.
Numa visão ampliada dos sofrimentos que decorrem desse
choque entre religiosidade islâmica e nacionalismo árabe no qual

apontamos para o trabalho de luto, enquanto o que possibili-


taria o enfrentamento das pequenas diferenças. Este fenômeno,
observado e descrito por Freud (1930/1996d) como o narcisismo
das pequenas diferenças, faz com que o que não corresponde à

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 227


No grupo, parece existir pouca tolerância às diferenças
e uma não aceitação daquilo que coloca em risco os elementos

a ele, como veremos adiante na identidade de grandes grupos.


No enfoque da clínica ampliada, em muitas situações, o adoe-
cimento é causado ou agravado por situações de dominação e
injustiça social, condições que ainda mais acirram o narcisismo
das pequenas diferenças.
Naturalmente, quando há a desvalorização dos elementos
que não pertencem ao grupo, a identidade deste torna-se exa-
cerbada, rechaçando toda e qualquer diferença interna. Quando
pensamos no trabalho do luto, como aceitação de uma perda e pos-
sibilidade de abertura a novos laços, falamos então de um afrouxa-
mento do narcisismo das pequenas diferenças. Freud (1915/1996b)
ao falar sobre a transitoriedade com o poeta Ranier Maria Rilke,
discorre sobre a importância do trabalho de luto que, por mais

trabalho de luto haveria a possibilidade da renúncia a tudo que foi


perdido, deixando nossa libido mais uma vez livre para substituir os
objetos perdidos por novos igualmente – ou ainda mais preciosos.
Mas, será possível pensarmos o trabalho de luto, ou seja,
a vivência e a aceitação da perda de um ideal como uma possibi-
lidade terapêutica ampliada para as subjetividades árabes inseridas

as identidades são volatilizadas pelo luto de referenciais.


A Primavera Árabe, como o evento se tornou conhecido,
apesar de várias nações afetadas não serem parte do “Mundo
Árabe” que compreende 22 países membros da Liga Árabe (Egito,
Iraque, Líbano, Arábia Saudita, Síria, Jordânia, Yemen, Líbia,
Sudão, Marrocos, Tunísia, Kuwait, Algeria, Bahrein, Qatar, Emi-
rados Árabes, Oman, Mauritânia, Somália, Djibouti, Comores,

228 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Palestina), foi provocada pelos primeiros protestos que ocorreram
na Tunísia em 18 de dezembro de 2010, após a autoimolação de
Mohamed Bouazizi em uma forma protesto contra a corrupção
policial e maus tratos.
O termo Primavera Árabe faz uma alusão à Primavera de
Praga, período de liberalização política da Checoslováquia da
dominação da União Soviética após a Segunda Guerra Mundial. As
reformas foram uma tentativa do líder reformista, aliado aos inte-
lectuais, de conceder direitos adicionais aos cidadãos num ato de
descentralização parcial da economia e de democratização, além
de conceder uma maior liberdade de expressão. Os protestos ini-
ciados na Tunísia provocaram uma sucessão de manifestações e
derrubada de líderes em outros países da região.
Situações diferentes em diferentes momentos históricos, mas
com a semelhança de um protesto por melhor qualidade de vida do
povo, assim também temos visto as atuais mobilizações e passeatas
nas ruas do Brasil que, apesar da pluralidade de reivindicações,
buscam ser ouvidas pelos seus governantes. Poderíamos falar do
renascimento no Brasil agora democrático, das grandes reivindi-
cações públicas por melhores condições de vida e por uma represen-
tação política que realmente atenda os interesses populares.
Para Coline Arbouet do site 1jour1actu num artigo intitulado
Pourquoi parle-t-on d’un printemps arabe?, a primavera é uma

animais que hibernavam saem de suas tocas. A imagem “primavera

tiveram lugar atualmente no mundo árabe. É justamente porque


essas revoluções têm por objetivo um renascimento, que é com-
parada à primavera. Os manifestantes tunisianos, egípcios e líbios
desejam uma mudança, uma renovação. Durante este período de
instabilidade regional, vários líderes anunciaram sua intenção de

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 229


Segundo a Wikipédia francesa, a revolução democrática
árabe é considerada a primeira grande onda de protestos laicistas
e democráticos do mundo árabe no século XXI. Os protestos, de
índole social, e no caso da Tunísia apoiada pelo exército, foram

duras promovidas pelo desemprego, ao que se aderem os regimes


corruptos e autoritários revelados pelo vazamento de telegramas
diplomáticos dos Estados Unidos divulgados pelo Wikileaks. Estes
regimes, nascidos dos nacionalismos árabes dentre as décadas
de 1950 e 1970, foram se convertendo em governos repressores
que impediam a oposição política credível que deu lugar a um
vazio preenchido por movimentos islamistas de diversas índoles.
Outras causas das más condições de vida, além do desemprego
e da injustiça política e social de seus governos, estão na falta de
liberdade, na alta militarização dos países e na falta de infraestru-
-

Na página da BBC de 4 de agosto de 2011, diretamente de

seis meses após seu início, a ‘Primavera Árabe’, onda de levantes


populares que começou na Tunísia e se espalhou por vários países
da região, se encontra em um impasse de violência, mortes, frus-
trações e dúvidas quanto a mudanças práticas”.
No início de 2011 os protestos eram vistos internacional-

democracia e destituição de governos no poder havia décadas.


No entanto, a Líbia passa por uma guerra civil e as manifestações
em outros países são reprimidas com extrema violência. Vemos
também a reação rebelde fundamentalista, que quer a ruptura
imediata com os antigos governos, cada vez mais se igualar à vio-
lência dos governos ditadores, como Hoda Nehmé da Université
du Saint-Esprit de Kaslik, Líbano, esclareceu-nos em sua palestra

230 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


na Universidade Federal do Paraná no evento Diálogos Brasil-
-
nados diante dessa invasão sem igual de ideias fundamentalistas
que povoam os espíritos e que ganham o poder sob pretexto de
uma primavera árabe fabricada num banho de sangue sem prece-
dente” (comunicação pessoal).
A volatilidade dos protestos e suas implicações geopolíticas
têm chamado a atenção global. Com a rápida propagação das
informações por intermédio dos meios de comunicação e um maior
estreitamento das relações políticas se introduz uma nova forma
de sociedade. Essa sociedade, segundo Castells (2010), é carac-
terizada pela globalização das atividades econômicas decisivas
do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em
-
nização social, dentro de sua globalidade abrange todos os níveis
da sociedade, transformando instituições, culturas e sociedades.
Juntamente com a revolução tecnológica, transformação do capi-
talismo e derrocada do estatismo, vivenciamos no último quarto
do século o avanço de expressões poderosas de identidade coletiva

Segundo Hall (2003), estudioso das identidades culturais contem-


porâneas, os problemas pendentes de desenvolvimento social têm
se somado ao ressurgimento de traços antigos de nacionalismos
étnicos e religiosos mal resolvidos, fazendo com que as tensões
nessas sociedades ressurjam sob a forma multicultural.
A globalização favorece um tipo de homogeneização da
cultura, entretanto, concomitantemente, há a proliferação de
“diferenças”. No contexto global, a luta entre interesses locais e
globais não está concluída. Não se trata da forma binária de dife-
rença entre o que é absolutamente o mesmo e o que é o “outro”.
Tradicionalismo e modernidade se misturam. Não podem se
conservar intactas as formas antigas e tradicionais de vida e

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 231


tampouco uma assimilação global homogênea. Surgem então o

surge dentro do global. Surgem assim núcleos potenciais de resis-


tência e manutenção do tradicionalismo.
Para uma mais ampla conceituação é importante abranger
o nível psíquico (individual) e as dimensões simbólicas e sociais
(coletivo). E a pesquisa clínica seja vista exatamente como
sinônimo deste olhar mais amplo sobre as questões que envolvem
o paciente como foco, com seu sistema de relações e produção de
adoecimento e de recuperação da saúde, vistos com o interesse
de indagações e respostas neste espaço em que ele estará intera-
gindo (Marzochi, 2012). Todos esses elementos contribuem para
explicar como as identidades são forjadas e mantidas. Ao examinar
sistemas de representação é necessário analisar os sistemas simbó-

Segundo Castells (2010), entende-se por identidade coletiva a


-

conjunto de atributos culturais inter-relacionados. No entanto, essa


pluralidade é fonte de tensão e contradição tanto na autorrepresen-
tação quanto na ação social. Identidade coletiva segundo a sociologia

instituições, memória coletiva, fantasias pessoais, aparatos de poder


e revelações de cunho religioso. Sua construção é tanto simbólica

grupo, tem causas e consequências materiais.


Para situarmos melhor as subjetividades e a violência dos
grandes grupos no mundo árabe devemos nesse momento intro-
duzir um conceito de fundamental importância. Volkan (2006)
faz uma descrição da identidade de grandes grupos e de como
eles regridem ao ver ameaçada a sua identidade. A regressão de
grandes grupos pode resultar em atos destrutivos que matam

232 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


muitas pessoas e criam graves problemas de saúde pública. O autor
trabalha com o conceito de identidade de grandes grupos que pode

no mundo árabe para além dos parâmetros conceituais e ocidentais

de grandes grupos (isto é, identidade étnica) alude a um perma-

Debrucemo-nos sobre o que Volkan (2006) descreve sobre


os grandes grupos para focalizarmos melhor essa violenta seme-
lhança entre grupos inimigos, como são governo e rebeldes que

ameaçada, o grande grupo agredido automaticamente começa a


ferir a identidade do grande grupo agressor; desse modo, o grupo
atacado passa a mostrar similitudes com o atacante. Em segundo
lugar, ambos os grupos utilizam mecanismos mentais comuns,
tais como introjeção, projeção, negação, dissociação, isolamento,
racionalização e intelectualização em sua propaganda política
consciente ou inconscientemente motivada. Isso provém de sua
liderança e/ou é desejada e apoiada pela sociedade. Em terceiro
lugar, humilhar, ferir e matar pessoas em nome da identidade de
grandes grupos torna-se aceitável para ambos os lados.
A psicologia se interessa em explorar os impulsos, os

O interessante ainda é que independentemente dos indivíduos


que compõem um determinado grupo, por diferentes ou seme-

como sendo um grupo, como nos apresentou Volkan (2006)


acima, coloca-os de posse de uma espécie de mente coletiva que
os fazem sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela
que o fariam individualmente.
Com relação à atuação dessa “espécie de mente coletiva”,
podemos citar uma outra realidade como assistimos neste ano
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 233
em 18 de junho aqui no Brasil, diferente da sociedade árabe

houve um jovem de 20 anos, estudante de arquitetura, que foi


preso por depredar a Prefeitura de São Paulo. Ao sair do Depar-
tamento de Investigações sobre Crime Organizado (Deic) onde
foi detido e liberado, segundo o Jornal Estadão de 19 de junho,
ele pede desculpas a todos os outros manifestantes, assumindo
seus atos e dizendo que responderia por eles, pedindo às outras
pessoas que participaram da depredação que também se entre-
gassem. Podemos ainda ilustrar com uma fala de um paciente
que participou em Curitiba dessas manifestações de junho, que se
estenderam por todo Brasil, e se viu impulsivamente derrubando

gente é”. É a isso que nos referimos anteriormente como o que,


no grande grupo, pode se tornar aceitável para ambos lados,
agredido e agressor, mesmo que individualmente os envolvidos
não se reconheçam em seus atos “coletivos”.
Para Pichon-Rivière (1998) nossas concepções pré-formadas
sobre o indivíduo e individualidade nos impedem de representar
adequadamente a realidade de um grupo. O grupo é uma realidade
na qual os processos grupais se evidenciam. A análise individual não
nos permite ler com clareza os fenômenos grupais. É apenas nos
grupos que as formações próprias do grupo emergem. Tememos
tudo aquilo que subjetivamente seja percebido como perder o con-
torno de quem somos. Há uma enorme barreira de afeto que nos
impede de explorar qualquer coisa que borre os limites da nossa
identidade, daquela fronteira que nos distingue dos demais.
Em outros trabalhos, Volkan (1997, 2006) ilustra como o
cerne da identidade pessoal de cada membro é entrelaçada com a
identidade de seu grande grupo, acrescentando ainda que esta é
diferente das demais, ou seja, a psicodinâmica de grandes grupos
étnicos, nacionais, religiosos ou ideológicos é diferente da psicodi-

234 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


nâmica de “pequenos grupos”, “grandes grupos” (compostos de
30 ou 150 indivíduos) ou “multidões” (Volkan, 2006).
Ele aponta para a identidade do grande grupo como sendo
uma “segunda pele” que reveste nossa identidade pessoal e é essa
a impressão que temos ao ouvir o depoimento do jovem estu-
dante de arquitetura na manifestação aqui no Brasil. Chega-se à
conclusão de que a psicodinâmica essencial dos grandes grupos
concentra-se na manutenção da integridade de sua identidade, e
as interações dos seguidores dos líderes constituem apenas um ele-
mento desse esforço. Ele dá um exemplo de milhares ou milhões
de pessoas vivendo sob essa imensa tenda. Elas podem formar sub-
grupos – seja de pobres ou ricos, mulheres ou homens, integrantes

eles se encontram sob a mesma imensa tenda. O mastro da tenda


é a liderança política. Para o autor, do ponto de vista da psicologia
individual, o mastro pode representar o pai edipiano; do ponto de
vista da psicologia de grandes grupos, a tarefa do mastro é con-
servar a lona ereta (manter e proteger a identidade dos grandes
grupos). Todos sob a lona da tenda trajam uma veste individual
(identidade pessoal); todavia, todos sob a tenda também partilham
a lona da tenda como segunda veste. Assim, se a lona dessa imensa
-
cados com sua segunda veste, e a identidade individual se torna
secundária. A preocupação passa a ser com a identidade do grande
grupo, e as pessoas podem fazer de tudo para estabilizá-la, repará-
-la, mantê-la e protegê-la; e, nesse intento, estarem dispostas a
tolerar sadismo ou masoquismo extremos, se julgarem que sua
ação irá ajudar a manter e proteger a identidade do grande grupo.

de saúde pública (Volkan, 2006).

é colocado sob condições que lhe permitem arrojar de si as

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 235


repressões de seus impulsos instintuais inconscientes. As carac-
terísticas aparentemente novas, que então apresenta, são na rea-
lidade as manifestações desse inconsciente, no qual tudo o que
é mau na mente humana e que é reprimido está contido como
-
resse coletivo, muitas vezes assumindo características contrárias
às apresentadas quando isolado, como parece ter sido o caso do
estudante de arquitetura e do manifestante de Curitiba.
O indivíduo pode ser colocado numa condição em que,
havendo perdido sua personalidade consciente, obedece a todas
as sugestões do operador que o privou dela e comete atos com
completa contradição com seu caráter e hábitos; a vontade e o
discernimento se perderam. Isolado, pode ser um indivíduo culto;
numa multidão, pode ser um bárbaro, agindo pelo instinto.
A “violência” em Freud (1930/1996d) pode ser vista como uma
das expressões do “instinto de destrutividade” dirigido ao mundo

os homens são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar


em conta uma poderosa quota de agressividade. Seria em conse-
quência da hostilidade primária dos seres humanos, como uma das
expressões da agressividade, que a sociedade civilizada ver-se-ia
permanentemente ameaçada de desintegração.
Esse instinto agressivo, para Freud (1930/1996d), é o derivado
e o principal representante do instinto de morte, que lado a lado de
Eros, com este divide o domínio do mundo – que lança o sujeito ao
pathos como paixão e sofrimento a serem experienciados e enfren-
tados. Para Freud (1930/1996d) não era fácil, contudo, demonstrar
as atividades desse suposto instinto de morte. As manifestações de
Eros eram visíveis e bastante ruidosas.
Poder-se-ia presumir que a pulsão de morte operava silen-
ciosamente dentro do organismo, no sentido de sua destruição,
mas isso, naturalmente, não constituía uma prova. Uma ideia mais
236 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no sentido
do mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade
e destrutividade. Dessa maneira, o próprio instinto podia ser com-
pelido para o serviço de Eros, no caso de o organismo destruir
alguma outra coisa, inanimada ou animada, em vez de destruir o seu
próprio eu. Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade
dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição.
O instinto de destruição, moderado e domado, e, por assim

objetos, proporcionar ao ego a satisfação de suas necessidades


vitais e o controle sobre a natureza.
Para Freud (1930/1996d) a civilização tem de utilizar

agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle


por formações psíquicas reativas, como por exemplo, a repressão
da agressividade.
Na carta de Einstein a Freud, publicada em 1933 com o
título Por que a Guerra?, Einstein inicialmente indaga como é
possível uma minoria com o poder dobrar a vontade da maioria,
que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra,
a serviço da ambição de poucos, e ele responde que a minoria,
a classe dominante atual, possui as escolas, a imprensa e, geral-
mente, também a Igreja, sob seu poderio. Isto possibilita orga-
nizar e dominar as emoções das massas e torná-las instrumento
da mesma minoria. Ainda assim, nem sequer essa resposta pro-
porciona uma solução completa.

conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo

associa a violência das massas em situação de guerra à agressi-


vidade instintiva, como uma satisfação dos desejos destrutivos

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 237


de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em
estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é,
contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de
psicose coletiva como vemos, por exemplo, na situação de guerra.
Na resposta de Freud a Einstein, a violência nesse contexto

instrumento inicialmente, numa pequena horda humana, como


se refere Freud, era a dominação por parte de qualquer um que
tivesse poder maior — a dominação pela violência bruta ou pela
violência apoiada no intelecto. Contudo, esse regime foi modi-

estendia da violência ao direito ou à lei. Freud (1933/1996e) se


refere que este caminho levava ao reconhecimento do fato de que,
à força superior de um único indivíduo, podia-se contrapor a união
de diversos indivíduos fracos. A violência podia ser derrotada pela
união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a
lei, em contraposição à violência do indivíduo só. O direito e a lei
surgem então como instrumentos comunitários que estabelecem
regulamentos a serem respeitados. Para Freud (1933/1996e) a lei
é a força de uma comunidade. Ainda é violência, pronta a se voltar
contra qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos
mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única dife-
rença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a
violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade.
Essas autoridades são constituídas por identidade de inte-
resses que leva a vínculos emocionais entre os membros de um
grupo, sentimentos comuns, que são a verdadeira fonte de sua

coercitiva da violência e os vínculos emocionais, frutos das identi-

é possível que a comunidade se mantenha ainda pelo outro fator


(Freud, 1913/1996a; 1921/1996c).
238 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA
Freud (1921/1996c) pontua que um grupo é impulsivo e ins-
tável, levado quase que exclusivamente por seus impulsos. Não
tolera demora entre seu desejo e a realização do que deseja,
tem sentimento de onipotência e é tão intolerante quanto obe-
diente à autoridade, a este outro detentor do suposto saber, o que
podemos chamar de ”Um”. Qualquer ameaça à noção de unidade
e identidade do coletivo pode gerar sentimento de raiva e ódio,
pois, ao se reunirem em grupo, as inibições individuais caem e os
instintos cruéis e destrutivos são despertados.
Quando o culto do Um arrasta tudo em sua passagem,
o sujeito despoja-se do que constitui sua subjetividade-alte-
ridade, para fundir-se com deleite na multidão. Então, segundo
Hassoun (1998), busca-se desesperadamente um “estrangeiro”,
um estranho, para circunscrevê-lo, nomeá-lo e destruí-lo. Nesse
instante domina a paixão narcísica prometida pelo reino do “eu-
-ideal”, ou seja, uma duplicidade narcísica do eu na qual a alte-

Em Psicologia das massas e análise do ego, Freud


(1921/1996c), a partir da pergunta sobre o modo como um

das pessoas, descreve a pulsão pela via do “amor” como a que

libido retorna ao eu para investir secundariamente nos objetos de


forma narcísica. O grupo se forma então a partir da afetuosidade

A articulação do individual com o coletivo se dá a partir


da noção de um ideal de eu, ou seja, a partir de um modelo da
imagem de perfeição e unicidade perdidas dos pais que o eu, na
relação com os outros, busca reviver. Esse ideal se constitui como
um aspecto de valorização para o supereu, instância que colocará
o eu em constante busca pelos seus ideais. Assim, os primitivos
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 239
outros que passam a ser reguladas, segundo o supereu, pelas leis
sociais. O supereu assim é o portador de um ideal do eu.
Em Totem e tabu (1913/1996a), quando Freud explicou a
origem da civilização pela morte do pai, o chamado mito primevo,

havia sido ainda construída a noção de supereu, introduzida dez


anos depois no texto O ego e o id, de 1923. Entretanto, nesse
mito com o qual busca abordar o laço social a partir das desco-
bertas psicanalíticas, podemos reconhecer retrospectivamente o
Urvater8 como o supereu originário (Rudge, 1999).
Se na horda primitiva, o pai, detentor de todas as mulheres,
é morto e incorporado, gerando o tabu e as proibições, é sobre

do supereu, está na origem. O pai morto instaura uma lei que pos-

incorporação do pai, elevado ao lugar de ideal, é o que permite a


coesão do grupo, mesmo que à custa de um mal-estar que tem

a forma original de laço emocional com o objeto, e isso se torna


possível porque o sujeito substitui seu ideal do eu pelo ideal do

do grupo ser tão importante.


Todo encontro com o outro é cheio de obstáculos. O
laço social se apresenta como um laço trágico, obriga-nos a
entender que os outros existem não como objetos possíveis de
nossa satisfação, mas como sujeitos de seus próprios desejos
e de seus atos. São também suscetíveis a nos rejeitar e odiar,
como também de amar, de apresentar perigo ao nosso narci-
sismo. No encontro com o outro descobrimos a nossa própria
estranheza. Reconhecer a própria estranheza é encontrar a si
8

240 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mesmo. Quando esta procura é evitada, a alteridade torna-se
um problema e a estranheza uma coisa a se rejeitar.
-
geiro em nós se juntam. Rejeitando o estrangeiro, o diferente,
está-se seguro de não ser contaminado por ele; está-se seguro
igualmente de sua própria coerência e identidade. Assim, o
estrangeiro, o reformista, o revolucionário, coloca em questão
a fantasia da unidade, o ideal de eu. O estrangeiro resiste ao
englobamento da unidade-identidade do Estado, quando a
população não se sente mais representada pelos seus gover-
nantes, como parece ser o caso das manifestações brasileiras,
tornando-se assim estrangeira ao Estado. É capaz de notar as
faltas e, assim, é aquela por quem o escândalo aparece. Nos sites
de notícia estrangeiros sobre as manifestações no Brasil havia
referências de que o público nas ruas desvelava que o Brasil não
estava tão bem assim como parecia e que os cidadãos estavam

em resposta à população propõe uma reforma da Constituição


Brasileira (Le Monde, 2013).
Retornando ao nosso tema, a violência crescente no Oriente

sacralizada dos grandes grupos armados em prol da proteção das


supostas “tradições” islâmicas, uma resistência para que se man-

Quando pensamos nesta “primavera” sangrenta dos


rebeldes, bem como no “horror ao Ocidente” ou aos cristãos
árabes proclamado pelos fundamentalistas islâmicos e auto-
cratas do Oriente Médio, não se trata de uma cultura árabe que
aceita e engloba a diversidade, o estrangeiro, a alteridade. É
ainda El Alaoui que nos ajuda a compreender como os governos
totalitários transformaram a cultura árabe da diversidade em um

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 241


Com o surgimento dos movimentos fundamentalistas, um
-
rência à visão estreita da ortodoxia religiosa sobre a qual
ele se baseia. O fato de se tratar de uma ideologia implí-
cita, pois raramente é prescrita por lei ou pelo Estado, não
diminui em nada seu poder. Muito pelo contrário, esse
padrão obtém sua autoridade não de um poder público,
mas da posição central que atualmente ocupa a versão
-
tência à ocidentalização e ao neocolonialismo.9

A destruição da Librarie Institut Ahmed Baba em 29 de


janeiro de 2013 em Tombouctou, Marli, por grupos armados isla-

600 anos. Eles disseram que era contra a religião” (TV5 Monde).

na crescente diversidade de comportamentos que o mundo árabe


incorporou ao longo dos anos que ele passa a ser “atacado” por
aqueles que querem mantê-lo refém política e religiosamente da
tradição, levando a maior parte da população a sofrer violentas
consequências. No Boletim A Voz do Islã o Dr. Abdul Wahab Al-

A identidade árabe-islâmica é um conjunto de caracte-


rísticas humanas que pode caracterizar diferentes gru-
pos humanos; mas, (no caso da identidade árabe) elas
se encontram numa ordem harmônica e numa forma
excepcional, dando a ela uma singularidade particular. No
estado islâmico, por exemplo, existiram identidades dife-

si. A pessoa pode vir de Khurasan para o Egito, e é bem


recepcionado, assim como os Marroquinos que encontra-
ram no Egito um país sem qualquer problema.

242 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Segundo Al-Massiri, o Islã aceita a diversidade dentro do
quadro geral da unidade, que não é física, mas moral, ética e cul-
tural, sendo isto o que permitiu aos grupos étnicos e religiosos
diferentes, como os curdos, os cristãos e judeus árabes, terem

Louvre, Artes do Islã, aberta ao público em setembro de 2012, é


dedicada a essa diversidade caracterizada por diferentes grupos,
absorvendo as grandes e pequenas diferenças.
Uma autêntica “primavera”, como se refere Hoda Nehmé

de luto, recompor a capacidade da identidade árabe de “absorver

A grandeza do Islã reside precisamente em sua capaci-


dade em absorver uma miríade de influências culturais.
O mundo muçulmano protegia, estudava e desenvolvia
as grandes tradições da literatura e da filosofia clás-
sicas. Em vez de queimar livros, construía bibliotecas
para preservá-los. Foi, por muito tempo, um santuário
para os documentos fundadores do que mais tarde se
chamaria Ocidente. O Islã havia compreendido que
essa herança representava o patrimônio intelectual de
toda a humanidade.

Para Henry Laurens (comunicação pessoal, seminários


Collège de France, 2012), contudo, a “primavera” não se trata
de uma revolução islamista. Para ele emprega-se erradamente
o termo “reislamização”. Antes, a maior parte da população
muçulmana era analfabeta e seu Islã era feito de tradições e supers-
tições. Com a crescente escolarização e acesso à alfabetização,
o Islã popular se transforma no Islã lido – com as pessoas tendo
adquirido a capacidade de lerem o Alcorão por si mesmas e com
isso terem argumentos novos, por exemplo. A maioria dos protes-
tantes são jovens (não em vão, os protestos no Egito receberam
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 243
o nome “Revolução da Juventude”), com acesso à Internet e, ao
contrário das gerações antecessoras, possuem estudos básicos e,

religião se produzem. As consequências são imensas a seu ver. A


-

mesmos nem a percepção de mundo.


No Brasil também os jovens do Movimento Passe Livre que
iniciaram as manifestações de protestos em São Paulo, e que
depois se expandiram em todos os estados com várias demandas
– como contra a corrupção, maiores investimentos na saúde e
na educação –, utilizaram as redes sociais na Internet para con-
vocar os manifestantes. Nunca antes se viu tamanha mobili-
zação pública via virtualidade. O levantamento do IBOPE revela
que 78% das pessoas que estavam nas passeatas se organizaram
pelas redes sociais e 75% disseram que usaram as redes sociais
para convidar amigos para as manifestações. Além disso, 75%
da população no Brasil se mostram favoráveis às manifestações,
sobretudo os mais jovens e de mais alta escolaridade, ante 22%
que são contra. Vemos também que a taxa de adesão aos pro-
testos é maior entre os mais escolarizados, sendo que 16% dos
respondentes com ensino superior dizem ter ido às ruas.
No Brasil, após a queda da ditadura nos anos 80 e com a
abertura democrática, novos parâmetros surgiram, inclusive com
a escolha direta pelo povo de seus governantes. Com a ascensão
na última década de um governo popular e a implementação de
políticas de distribuição de renda, passamos por um período prati-

presidente como um pai provedor elevou a aceitação popular ao


governo a índices nunca antes vistos. Agora, após três anos de
novo governo e diante da iminência de nova crise econômica com

244 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


à notória corrupção política, a população brasileira vai às ruas em
busca de condições mais ideais. Questiona-se a distribuição de
renda sem melhores condições e qualidade de vida.
Ocorre uma ruptura no Brasil, senão geracional, como no
mundo árabe, uma ruptura com relação à aceitação passiva das
políticas públicas, sobretudo da população com mais escolaridade
e/ou com acesso à Internet. No Oriente podemos falar de um luto de
referenciais, daí os fenômenos serem complexos. As pessoas cons-
troem, sobretudo, sua própria visão de mundo ao invés de obedecer
às autoridades externas. Fala-se de processos de individuação, de
uma esquema mental emergente, segundo Laurens (comunicação
pessoal, 2012), que se aproxima do indivíduo europeu.
Nas últimas décadas temos visto focos de manifestações no
mundo árabe contra líderes radicais e políticas abusivas do poder.
Na década de 30 e 40 um grupo conhecido como Irmãos Muçul-
manos ou Irmandade Muçulmana, propunha um movimento social
que criasse base de liberdade, não desejavam a ocidentalização, e
sim a autenticidade cultural islâmica. Com uma abordagem moder-
nista do papel do Islã na sociedade, este movimento atraiu jovens
e intelectuais, os líderes foram perseguidos, torturados e assassi-
nados, levando a Irmandade a um ciclo de radicalização. Assim
como a luta da Primavera Árabe, que se inicia com uma proposta
de abertura e durante o seu percurso se torna violenta. É necessário

em questão o funcionamento da “tenda coletiva”?


Vemos então o Oriente Médio mergulhado em uma onda
de dúvidas e suspeitas. É neste cenário que lançamos a questão
sobre a construção da identidade do sujeito árabe a partir de um
trabalho de luto na perspectiva de uma clínica ampliada que o
focaliza em suas várias dimensões. Para Cunha (2005) entende-
-se que através do reconhecimento destas dimensões é possível
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 245
reconhecer tanto os determinantes universais quanto particulares
no sujeito singular. Não se trata de uma negação da patologia ou
das condições sociais, mas a composição de ferramentas para um
olhar que não priorize nenhum elemento a priori.
Dentre estas ferramentas destaca-se o pressuposto da
clínica ampliada. No âmbito das ações ministeriais tal conceito
surge a partir das discussões da Política Nacional de Humanização

busca construir sínteses singulares tencionando os limites de cada


matriz disciplinar” (Brasil, 2009, p. 14).
Visamos, sobretudo, um trabalho clínico que, segundo o
Ministério da Saúde (Brasil, 2009) sobre a clínica ampliada, visa ao
sujeito e à doença, à família e ao contexto, tendo como objetivo

sujeito, da família e da comunidade. A clínica ampliada propõe

pessoas, não só a combater as doenças, mas a transformar-se, de


forma que a doença, mesmo sendo um limite, não a impeça de
viver outras coisas na sua vida de modo prazeroso.
Nosso posicionamento psicanalítico parte, sobretudo, da
singularidade do sujeito dentro de suas condições sociais, como
-
ridade do sujeito que funda a universalidade da experiência”.
Para Freud (1915/1996b) a essência de um trabalho “normal”
de luto é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma
abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a
liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante.
A realidade obriga então o desinvestimento do objeto
perdido. Um trabalho que demanda tempo, que deve se efetuar
pouco a pouco, progressivamente. A cada vez que sofremos, a
libido desinveste o objeto, liberando-se. No curso desse movi-

246 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mento central se efetuam os dois processos essenciais do tra-

sentimentos inconscientes de culpabilidade.


Para Hanus (1994) que acompanha Freud em suas consi-
derações, o profundo movimento regressivo do luto e a neces-
sidade de conservar por um tempo a sobrevida psíquica ao objeto

grande diversidade e a sua compreensão permite apreender a


natureza do desenvolvimento do trabalho em curso e os laços que
uniam o enlutado a seu objeto que é o elemento mais determi-
nante no processo de desinvestimento.
Quando focalizamos os valores aqui situados, pode ocorrer,
nesse movimento regressivo, um acirramento ou apego excessivo
às antigas referências como uma tentativa de fazê-las sobreviver.
Podemos aqui citar as insígnias muçulmânicas do véu, da burca,
da barba, do evitamento de contatos intergêneros, etc.
-
mentos inconscientes de culpabilidade são uma fonte de dor mais
profunda e durável. No inconsciente nós nos sentimos sempre
culpados pela desaparição do objeto, no caso que focalizamos,
dos ideais. A dor comporta uma dimensão expiatória, pois os
sentimentos de culpabilidade se atenuam nesse sofrimento e
indo-nos de viver, de
-
riamente do destino do objeto.

quando um grande grupo sofre regressão, os valores tradicionais


da família podem ser substituídos por ideologia, como aconteceu
na Alemanha nazista. Em alguns grandes grupos no estado de
regressão, o papel da mulher se restringe a proporcionar prazer a

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 247


homem (sexo), prover alimento (leite simbólico para a sociedade

grande grupo. Determinados processos sociais começam a lembrar


a todos sobre a permanente existência da lona (identidade dos
grandes grupos). Os costumes culturais são como desenhos na
lona que ilustram a singularidade da identidade daquele grande
grupo em particular. O grupo deseja “repintar” os desenhos na lona
para aliviar a ansiedade comum e para mostrar que sua identidade
ainda sobrevive. Contudo, na realidade, ele se sente desamparado,
raivoso, humilhado, submetido a um complexo processo de luto.
No caso dos países citados, foi necessário colocar a tenda
em questão. Matar o pai-ideal do eu-ditador. Porém a tenda, a

o pai simbólico, destituir a lei, como colocado anteriormente


é essencial para que exista possibilidade de investir em novos
objetos na elaboração do luto. No caso do grupo, poderia ser uma
oportunidade de reinvestimento. Mas o grupo estaria preparado
para novas possibilidades ou os anos de alienação provocariam
sentimento de insegurança e o retorno à posição objetal anterior?
No caso da Primavera Árabe, existe a possibilidade de
a Irmandade Muçulmana se estabelecer no poder em alguns
países como Tunísia e Egito. A expectativa é de fundamenta-
listas estarem favoráveis a compartilhar o poder com partidos
menos conservadores para uma reformulação política. Porém,
em outros locais, a queda de um regime ditatorial muitas vezes
é retomada por facções também radicais. A possibilidade de
elaboração do luto pode se perder quando um novo governo
se estabelece com características de opressão parecidas com a
anterior. Ao matar o pai, estaria o grupo pronto para novos inves-
timentos? O fato de se alienarem por muitos anos nesta “tenda”
coletiva não lhes permitiu desenvolver ferramentas para que

248 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


o suposto “salvador” e retomando a posição objetal anterior,
sofrida, porém confortável, na alienação coletiva.
A Psicologia teria um papel fundamental no auxílio desta
elaboração do luto para que o novo possa ser assimilado e
aceito. Acolhendo, permite-se fazer e refazer. Trabalhar a auto-
nomia além da cura se faz essencial neste caso, para que exista

sujeito ao se reconhecer e ser capaz de avaliar os motivos que o


fazem estar no grupo, ou seja, sair da posição objetal e da alie-
nação, citada anteriormente, pode vir a ser capaz de se repensar
e refazer suas escolhas. Kristeva (1987) fala sobre a relação direta
no trabalho de luto entre a perda do objeto primitivo e o surgi-

e da disposição a substituí-lo. Ou seja, a substituição implica em

como preconizado na clínica ampliada.


A crescente escolarização do mundo árabe, assim como no

sujeitos em questão. As políticas públicas que visem à aceitação


da diversidade, por intermédio de leis e projetos que favoreçam
novos laços sociais implementam dispositivos de enfrentamento
subjetivo às pequenas e grandes diferenças narcísicas potencial-
mente, possibilitando que o sujeito amplie sua visão dos limites
de si mesmo e do outro. Esta talvez seja uma saída ao impasse do
governo brasileiro diante das demandas de sua população.
Visamos assim atitudes que não caiam nas repetições comuns
do caso das derrocadas dos líderes e do lugar do Pai, pois o grupo
sem esta referência, alienado, pode acabar por seguir outro líder
com as mesmas características, ao invés de desenvolver um novo

o luto simbólico do pai ideal. O trabalho desta clínica ampliada,


segundo Cunha (2005), reside na possibilidade da construção de
pactos, negociações e diálogos. Enfoca-se a dialética entre sujeitos/
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 249
perspectiva singular/coletividade. Daí a importância da ampliação
da escuta e das formas de trabalhar com as demandas.
Como situarmos então a possibilidade de “um tecido social
plural” em tempos de incerteza? Haveria desde sempre, ao lado
da regressão e culpabilização pela perda do objeto, um movi-
mento melancólico de defesa e recusa em aceitar o novo? Como
algo novo poderá surgir sem ser simplesmente um transplante
das ideias ocidentais de liberdade que são externas aos preceitos

Se apenas existir essa possibilidade defensiva para os árabes


diante do que se apresenta como novo e questionador da antiga
ordem, o que poderemos ver seria um triunfo do fundamenta-
lismo violento, principal “mastro” da grande tenda detentora da
“segunda pele” muçulmânica? Apenas uma satisfação dos ins-
tintos destrutivos humanos, como nos ensinou Freud?

grande onda de protestos que ao mesmo tempo em que pro-


clamam mudanças, impedem-nas de se pronunciarem. No Brasil,
as possibilidades de a população se fazer ouvir apontam, sendo
otimista, para possíveis mudanças.
Se o trabalho de luto necessário para a admissão das perdas
e facilitador da implantação do novo puder ser realizado, a iden-
tidade árabe, amadurecida pelos ensinamentos das perdas, de
novo surgirá ampliada, como berço de diálogo das pluralidades
que secularmente nela convivem.

Al-Massiri, A. W. A Voz do Islã


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Wikipédia. Printemps arabe

252 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


NOTAS SOBRE OS AUTORES

Ademir Pacelli Ferreira


Professor Adjunto, procientista e atual diretor do Instituto de
Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IP/UERJ).
Desenvolve atividades junto à Pós-graduação em Psicanálise, gra-
duação e residência de psicologia em enfermaria de Psiquiatria e
CAPS. Membro do GT Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada
e Sofrimento Psíquico da ANPEPP, membro da Associação Univer-
sitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF) e
do NIEM, autor do livro O migrante na rede do outro e coorgani-
zador dos livros Cruzando fronteiras disciplinares e Deslocamento e
reconstrução da experiência migrante, além de vários capítulos de
livros e artigos em periódicos da área.

Cecília Freire Martins


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
membro associado da Sociedade de Psicanálise da Cidade do
Rio de Janeiro (SPCRJ) e membro associado do Instituto Cultural
Freud.

Claudia Amorim Garcia


Professora Associada do Departamento de Psicologia da Ponti-
fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), psicana-
lista, membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ),

253
membro do GT Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada e
Sofrimento Psíquico da ANPEPP, coautora do livro Entre eu e o
outro: espaços fronteiriços e organizadora da coletânea Limites da
Clínica. Clínica dos Limites.

Flávia Sollero-de-Campos
Psicóloga clínica, Professora Assistente do Departamento de Psi-
cologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
supervisora clínica no Serviço de Psicologia Aplicada da PUC-Rio e
membro do GT Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada e Sofri-
mento Psíquico da ANPEPP

Junia de Vilhena
Psicanalista, membro efetivo do CPRJ, professora do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), coordenadora do Laboratório
Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS) da PUC-Rio,
membro do GT Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada e Sofri-
mento Psíquico da ANPEPP, pesquisadora da Associação Universi-
tária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF), pes-
quisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse
et Médecine (CRPM-Pandora, Université Denis-Diderot, Paris VII) e
investigadora e colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva

organizadora dos livros As cidades e as formas de viver I e II e Corpo


para que quero? Usos, abusos e desusos, dentre outros.

254 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Karla Patrícia Holanda Martins
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Uni-
versidade Federal do Ceará (UFC), membro do GT Processos de
Subjetivação, Clínica Ampliada e Sofrimento Psíquico da ANPEPP,
organizadora do livro Profetas da Chuva e autora de artigos cientí-

os efeitos subjetivos da privação do alimento na infância.

Lilian Miranda
Professora Adjunta do Departamento de Psicologia do Instituto
de Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ) e membro do GT Processos de Subjetivação, Clínica
Ampliada e Sofrimento Psíquico da ANPEPP.

Maria Virginia Filomena Cremasco


Professora do Departamento e do Mestrado em Psicologia e
diretora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Uni-
versidade Federal do Paraná (UFPR), autora do livro Psicopato-
logia e Disfunção Erétil: a clínica psicanalítica do impotente, orga-
nizadora do livro O Sofrimento Humano em Perspectiva e membro
do GT Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada e Sofrimento
Psíquico da ANPEPP.

Mariana Duarte
Psicóloga clínica, atua na Casa Latino-americana (CASLA) ofere-
cendo apoio psicológico a migrantes e refugiados, participa de
PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 255
cursos interculturais no exterior, viagens de conhecimento de
projetos, coleta de dados e apoio psicológico a expatriados em
países da Europa, África e Oriente Médio e do grupo de estudos
na Universidade Federal do Paraná (UFPR) com a temática A Con-
dição do Estrangeiro.

Marta Rezende Cardoso


Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora do CNPq, membro do GT
Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada e Sofrimento Psíquico
da ANPEPP e membro efetivo da Associação Universitária de Pes-
quisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF).

Monah Winograd
Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),

Genealogia do sujeito freudiano e Freud e a fábrica da alma, organi-


zadora do livro Processos de subjetivação, Clínica ampliada e sofri-
mento psíquico e coordenadora do GT Processos de Subjetivação,
Clínica Ampliada e Sofrimento Psíquico da ANPEPP.

Nadja Nara Barbosa Pinheiro


Professora Adjunta no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
e vice-coordenadora do Laboratório de Psicanálise no Departa-

256 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


mento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
líder do grupo de pesquisa do CNPQ Psicanálise: Teoria da Clínica,
membro da Comissão Editorial da Revista Interação em Psicologia,
pesquisadora associada ao Laboratório Interdisciplinar de Pes-
quisa e Intervenção Social (LIPIS) da PUCRJ, autora de inúmeros
Contribuições de Freud à
Arte e à Cultura e membro do GT Processos de Subjetivação, Clínica
Ampliada e Sofrimento Psíquico da ANPEPP.

Paulo Ritter
Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-graduação
em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e psicanalista associado ao Espaço Brasileiro de Estudos
Psicanalíticos (EBEP/RJ).

Perla Klautau
Psicanalista, membro Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de
Janeiro (CPRJ), pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação
em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio

Encontros e desencontros entre Winnicott e Lacan e organizadora


do livro Dimensões da intersubjetividade.

Rodrigo Sanches Peres


Professor do programa de Pós-graduação em Psicologia e do Pro-

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 257


Federal de Uberlândia (UFU), membro do GT Processos de Subje-
tivação, Clínica Ampliada e Sofrimento Psíquico da ANPEPP, pes-
quisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da
Saúde da Universidade de São Paulo (USP), editor associado da
revista Paidéia, membro da Comissão Executiva da Gerais: Revista
Interinstitucional de Psicologia, autor dos livros Psicossomática psi-
canalítica: interseções entre teoria, pesquisa e clínica e A exclusão
do afeto e a alienação do corpo.

Rosana Onocko Campos


Professora e coordenadora do Programa de Pós-graduação em
Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), supervisora dos Programas de
Aprimoramento em Saúde Mental e em Planejamento e Adminis-
tração de Serviços de Saúde desde 1998, coordenadora do grupo
de pesquisa Saúde Coletiva e saúde mental: interfaces e do projeto
Alliance de Recherche Université et Communauté (ARUC) no Brasil.
É pesquisadora do CNPq.

Vinicius Anciães Darriba


Professor Adjunto do Instituto de Psicologia e da Pós-Graduação
em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
membro do GT Processos de Subjetivação, Clínica Ampliada e Sofri-
mento Psíquico

258 MONAH WINOGRAD E JUNIA DE VILHENA


Waleska Rodrigues Silva
Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Uber-
lândia (UFU).

Walter Melo
Professor Adjunto da Universidade Federal de São João Del-Rei
(UFSJ), coordenador do Núcleo de Estudo, Pesquisa e Intervenção
em Saúde (NEPIS), vinculado ao Laboratório de Pesquisa e Inter-
venção Psicossocial (LAPIP) do Departamento de Psicologia da
UFSJ, autor dos livros Nise da Silveira, O terapeuta como compa-
nheiro mítico: ensaios de psicologia analítica e A psicologia e o tra-
balho no CRAS, organizador dos livros Dialética dos movimentos
sociais no Brasil: por que a reforma psiquiátrica?, Quando acabar o
maluco sou eu, A sabedoria que a gente não sabe e Que País É Este?.

PSICANÁLISE E CLÍNICA AMPLIADA: MULTIVERSOS 259


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