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Ca dernos E spi nosa nos

estudos sobre o século xvii


n. 48 jan-jun 2023 issn 1413-6651
Ca dernos E spi nosa nos
Ca dernos E spi nosa nos
estudos sobre o século xvii
n. 48 jan-jun 2023 issn 1413-6651
publicação do grupo de estudos espinosanos
e de estudos sobre o século xvii
universidade de são paulo
reitor Prof. Carlos Gilberto Carlotti Jr
Vice-Reitor Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda
fflch - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretor Prof. Dr. Paulo Martins
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departamento de filosofia
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vice-chefe Alex de Campos Moura
coord. do prog. de pós-graduação Edélcio Gonçalves de Souza
endereço para correspondência
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a/c Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – usp
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05508-900 – São Paulo-sp – Brasil
telefone 0 xx 11 3091-3761 – Fax 0 xx 11 3031-2431
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editores responsáveis Tessa Moura Lacerda
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comissão editorial Paula Bettani Mendes de Jesus, José Marcelo Siviero,
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Mendes, Gabriel Frizzarin, Benito Maeso, Sacha Zilber Kontic
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Diego Tatián (conicet), Diogo PiresAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin
Leopoldo e Silva (usp), Homero Santiago (usp), Jacqueline Lagrée (Univ. de
Rennes), Maria das Graças de Souza (usp), Mariana de Gainza (conicet), Ol-
gária Chain Féres Matos (usp), Pierre-François Moreau (École Normale Su-
périeure de Lyon), Chantal Jaquet (Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne),
Vittorio Morfino (Universitá degli studi di Milano - Bicocca), Sebastian Torres
(Universidad Nacional de Cordoba-unc)
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David Calderoni, Edmilson Menezes, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino
José de Macedo Orione, Fabio Cristiano de Moraes, Felipe Jardim, Fernando
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mos, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Isadora Bernardo Prévide,
Luciana Zaterka, Marcos Ferreira de Paula, Mariana Rubiano, Mônica Loyola
Stival, Patrícia Aranovich, Pedro Galé, Roberto Bolzani Filho, Rodrigo Haya-
si Pinto, Sérgio Xavier Gomes de Araújo, Maria Jimena Solé, Alfredo Gatto,
Sílvio Carneiro, Fernando Bonadia, Mariana de Gainza, Alexandre Carrasco,
Giorgio Gonçalves Ferreira, Fran Alavina, Taimara Passero, Clovis Bronzani,
Érico Andrade, Lucas Machado, Eneias Júnior Forlin, João Cortese, Ulysses
Pinheiro, Luiz Carlos Montans Braga, Flavio Fontenelle Loque, Ethel Rocha,
Carmel Ramos, Rafael Teruel, Rafael dos Santos Monteiro, Paulo Vieira Neto
design Henrique Piccinato Xavier
SUMÁRIO

apresentação 11

artigos

a individuação das meras enteléquias em leibniz 15


Edgar Marques

essência e existência: 41
duas ordens de causalidade, dedução
dos modos finitos e a liberdade em espinosa
Giorgio Ferreira

o cogito como o encontro entre pensar e ser 75


Marcos Alexandre Borges

o estado entre a história e a eternidade 99


Albano Pina

comparação da noção de morte entre 127


spinoza e filósofos judeus
Nei Ricardo de Souza

ceticismo acadêmico nas 157


règles pour la direction de l’esprit
(i, ii, iii, viii e xii), de descartes
Marcelo Fonseca de Oliveira

espinosismo da física de schelling 181


Mariana Alkimin Rincon

uma leitura espinosana de a náusea: 209


a melancolia de roquentin
Ágatha Cavallari
235 a derradeira proposição da ética
Paulo Vieira Neto

259 o conceito de beatitude em fichte e


espinosa: implicações morais e políticas
do idealismo e do dogmatismo
Lucas Damián Scarfia

299 investigação política: uma questão de método


Matheus Romero de Morais

tradução

325 excerto de uma carta escrita da batávia nas índias


orientais, de 27 de novembro de 1684, extraído de
uma carta do sr. fontenelle recebida em roterdã
pelo sr. basnage.
Flavio Fontenelle Loque

resenhas

337 resenha do livro de cera à carne, de josé marcelo


ramos siviero
Silvana de Souza Ramos

341 uma resenha de pieter bruegel: le tableau ou la sphère


infinie – pour une réforme théologico-politique
de l’entendement, de laurent bove
Bernardo Bianchi

351 notícias
APRESENTAÇÃO

O novo número dos Cadernos Espinosanos traz três trabalhos apresenta-


dos na Jornada Espinosana ocorrida na Universidade de São Paulo, em Junho
de 2022: uma reflexão sobre o significado da última proposição da Ética, um
ensaio sobre o método no Tratado Político e uma discussão sobre as implica-
ções políticas e morais das metafísicas de Fichte e Espinosa.
Ainda sobre o filósofo que dá nome a nossa publicação, o número traz
um artigo sobre as complexas relações entre essência e existência, um ensaio
sobre as condições de possibilidade da continuação indefinida de um Estado
e uma comparação da concepção espinosana de morte com a tradição judaica.
Sobre os desdobramentos posteriores da filosofia espinosana, temos um belo
trabalho sobre a filosofia da natureza de Schelling, comparada por este a um
“espinosismo da física”, além de um surpreendente ensaio sobre os elementos
espinosanos de A Náusea, de Sartre.
Além dos trabalhos sobre Espinosa, temos uma densa discussão sobre a
individuação das enteléquias em Leibniz, a retomada do debate sobre o tipo
de conhecimento implicado no cogito de Descartes e, ainda sobre este filósofo,
um artigo que levanta os elementos típicos do ceticismo acadêmico nas Regras
para a Direção do Espírito.
Boa leitura.

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imagem estudo em argila para uma escultura de Spinoza (1860-1880)
de Eugène Lacomblé (1828-1905), escultor residente da cidade de Delf, Países Baixos.
A INDIVIDUAÇÃO DAS MERAS ENTELÉQUIAS EM LEIBNIZ1

Edgar Marques2
Professor, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
edgarm@terra.com.br

resumo: Analiso e critico neste artigo a solução apresentada por Robert Bran-
dom para o problema por ele formulado acerca do critério de distintividade
das percepções presentes nas meras enteléquias. Brandom considera ser pro-
blemática a vinculação entre distinção e consciência feita por vários intérpretes
de Leibniz com o propósito de dar conta dos diferentes graus de distinção das
percepções, pois tal vinculação somente pode ser válida para almas e espíritos,
não se aplicando às enteléquias, as quais não são dotadas de nenhum tipo de
senciência ou de reflexão. Em função disso, Brandom propõe uma interpre-
tação que não apresentaria essa dificuldade. Segundo essa proposta, uma per-
cepção será tão mais distinta quanto maior for seu domínio expressivo, isto
é, seu grau de distinção será determinado pela quantidade de inferências que
se deixam realizar a partir dela. Torna-se possível, assim, de acordo com ele a
comparação de diferentes percepções e a ordenação delas em uma série que
vai das menos distintas às mais distintas tomando como base seus respectivos
domínios expressivos. Mostro neste artigo que tanto esse – a meu ver, aparente
– problema levantado por Brandom quanto a solução por ele proposta decor-
rem de uma compreensão parcial e equivocada da teoria leibniziana das môna-
das, de tal forma que estaríamos aqui diante de uma solução equivocada para
um problema inexistente.
palavras-chave: Leibniz; mônada; percepção; apercepção; distinção.

1 Agradeço a Karla Chediak pelas discussões da versão anterior deste artigo, que muito
contribuíram para que ele chegasse a este formato final. Agradeço também à parecerista
(ao parecerista) dos Cadernos Espinosanos pela leitura atenta e pelas sugestões de alteração.
2 Pesquisador uerj/cnpq.

Edgar Marques p. 15 - 40 15
Leibniz vocaliza no parágrafo 14 da Monadologia uma de suas mais agudas
discordâncias com a filosofia cartesiana. Lá ele critica os cartesianos por terem
identificado percepção com apercepção ou consciência, o que os teria levado
a recusar, por um lado, a existência de percepções das quais não nos apercebe-
mos, bem como, por outro, que haja almas que não sejam autoconscientes. A
teoria leibniziana da mente irá se caracterizar, em contraposição à concepção
cartesiana, precisamente pela afirmação da existência tanto de estados men-
tais inconscientes quanto de almas que não são dotadas de consciência ou de
racionalidade. Essa disjunção é aqui importante, pois, como esclareceremos
um pouco melhor mais adiante, a doutrina de Leibniz irá afirmar a existência
de três tipos diversos de alma, desempenhando a consciência e a racionalidade
papéis distintos nessa diferenciação.
Na arquitetônica conceitual da Monadologia o parágrafo 14 deve ser com-
preendido em função de uma importante inflexão começada no parágrafo 8
e que culmina nos parágrafos 14 e 15 com a introdução das noções de percep-
ção e de apetição, respectivamente. No referido parágrafo 8 Leibniz se defron-
ta com uma consequência indesejada que parece se seguir dos 7 parágrafos
iniciais do texto, qual seja, a de que as mônadas, por serem metafisicamente
simples, não poderem ser dotadas de qualidades. Essa presumida implicação
aparentemente resulta da tese, sustentada naqueles sete primeiros parágrafos,
de que as mônadas têm de ser simples, uma vez que inegavelmente a posse de
diferentes propriedades configura, sim, um certo tipo de complexidade, o que
convida a considerar a afirmação de tal posse como sendo incompatível com a
tese da simplicidade das mônadas. Não é por outra razão que Leibniz começa
o parágrafo 8 com a conjunção adversativa “entretanto” (cependant) seguida
da afirmação de que é preciso que as mônadas possuam algumas qualidades.3
A presença dessa conjunção adversativa imediatamente antes dessa afirmação
indica que Leibniz pretende afastar uma consequência que ele julga que alguns
de seus leitores poderiam ter extraído da ideia da simplicidade das mônadas,

3 “Entretanto, é preciso que as mônadas tenham algumas qualidades” (leibniz, 2004, p.


132).

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nomeadamente, a de que elas não comportariam nenhuma forma de comple-
xidade, o que afastaria a ideia de elas possuírem qualidades. Os parágrafos 8 e 9
da Monadologia têm por objetivo exatamente o de argumentar contra essa, aos
olhos de Leibniz, incorreta implicação.
O ponto pivotal reside aqui, a meu ver, em uma certa equivocidade da
noção de simplicidade. Na linguagem cotidiana “simples” significa tanto o que
é desprovido de qualquer tipo de complexidade quanto o que é desprovido de
partes, isto é, o que não é composto. As mônadas são, de acordo com Leibniz,
simples no segundo sentido, mas não o são no primeiro. Por um lado, elas são,
e têm de ser, unas e simples, mas, por outro, elas possuem, e têm de possuir,
uma certa complexidade qualitativa, isto é, elas têm de possuir diferentes qua-
lidades.
São várias as razões que Leibniz elenca em favor dessa tese. Em primeiro
lugar, ele afirma que as mônadas nem sequer seriam seres caso fossem absoluta-
mente desprovidas de qualidades.4 A ideia subjacente aqui é a de que é incon-
cebível que algo possa ser ou existir sem possuir absolutamente nenhuma qua-
lidade, quer dizer, que algo possa simplesmente ser sem que haja nenhuma
determinação de um modo particular de ser que lhe seja própria. Não é acei-
tável, então, que acerca de um ente qualquer possamos dizer que ele é sem ao
mesmo tempo poder caracterizar de alguma maneira seu modo de ser. Não
existe ente que simplesmente seja sem que ele seja de algum modo. É o nada
que é desprovido de qualidades, e não os entes. Por essa razão, mônadas têm de
possuir qualidades, decorrendo disso a sua complexidade no que diz respeito à
posse dessas qualidades.
Em segundo lugar, de acordo com a metafísica leibniziana, somente pode
haver múltiplas mônadas caso elas sejam distintas umas das outras. Entretan-
to, não é possível que haja, de acordo com Leibniz, uma diferença numérica
lá onde não subsiste nenhuma diferença qualitativa. Pelo contrário, como o é

4 Ele escreve no parágrafo 8 da Monadologia: “Entretanto, é preciso que as mônadas


tenham algumas qualidades, caso contrário nem sequer seriam seres” (leibniz, 2004, p.
132).

Edgar Marques p. 15 - 40 17
sobejamente sabido, Leibniz sustenta que dois entes somente podem ser dife-
renciados um do outro caso um deles possua ao menos uma propriedade que o
outro não possui.5 Dessa maneira, se o mundo fosse constituído por mônadas
completamente destituídas de qualidades, elas não seriam diferentes mônadas,
mas, sim, seriam uma mesma e única mônada, já que não haveria como elas se
diferenciarem umas das outras.
Leibniz afirma não apenas que as mônadas possuem múltiplas qualidades,
mas considera também que as mônadas sofrem mudanças qualitativas, isto é,
que elas perdem certas qualidades e adquirem outras ao longo do tempo. Isso
porque, segundo ele, não poderia haver qualquer mudança na esfera fenome-
nal dos corpos caso não houvesse mudanças qualitativas nas mônadas, uma vez
que tudo o que se encontra nos compostos está fundado no que está presente
nos simples que eles pressupõem. Essas mudanças, por sua vez, consistem em
modificações qualitativas nessas mônadas, isto é, em transições de determina-
das propriedades para outras. Mas é claro que isso somente faz sentido caso as
mônadas sejam concebidas como sendo qualitativamente complexas e mutá-
veis. Dado que o que está nos compostos tem de provir unicamente dos sim-
ples de cuja agregação eles resultam, então somente pode haver mudanças no
mundo físico caso haja mudanças qualitativas das mônadas. Como facilmente
constatamos que o mundo que nos cerca encontra-se em um estado de per-
manente mudança, basta essa constatação para que possamos afirmar que as
mônadas são dotadas de qualidades e que elas sofrem alterações ao ganharem
ou perderem algumas qualidades.
Estabelecido que as mônadas (a) devem possuir qualidades e (b) que elas se
modificam contínua e constantemente, Leibniz se volta para a caracterização
da natureza da mônada no que diz respeito à posse dessas qualidades mutáveis.
Ele diferencia, no interior das mônadas, o princípio da mudança daquilo que,

5 Trata-se do Princípio de Identidade dos Indiscerníveis, que Leibniz formula no


parágrafo 9 da Monadologia do seguinte modo: “nunca há na natureza dois seres que sejam
perfeitamente iguais um ao outro e nos quais não seja possível encontrar uma diferença
interna ou fundada em uma denominação intrínseca” (leibniz, 2004, p. 132).

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em virtude da vigência deste princípio, muda. Esse princípio tem de ser interno
à própria mônada, pois, conforme o que é ensinado no parágrafo 7 da Mona-
dologia, não sendo as mônadas compostas por partes nenhuma mudança nelas
pode ser produzida por nenhum agente externo. A metáfora de que mônadas
são desprovidas de portas e janelas tem por objetivo sublinhar a tese de que a
única relação real que as mônadas entretêm com algo delas distinto consiste na
sua criação por Deus. Tudo o que a elas ocorre posteriormente se resume a um
desdobramento da sua própria essência, nada devendo a outros entes ou subs-
tâncias. Sendo assim, esse princípio somente pode ser interno à própria môna-
da, expressando, em última instância, uma espécie de lei ou ordem da série de
suas modificações, uma vez que deve haver sempre uma razão para a ocorrência
de uma determinada mudança, devendo, no caso das mudanças monádicas,
essa razão residir na mônada mesma.
Além desse princípio de mudança deve haver, contudo, também alguma
coisa que muda e que deve consistir em um outro tipo de estado interno. A
característica principal desses estados internos às mônadas é serem eles de
natureza eminentemente representacional, isto é, consistirem em expressarem
o mundo exterior à mônada. É esse o sentido da afirmação com que Leibniz
principia o parágrafo 14 da Monadologia. Lá ele diz que chamará de percepção
o estado passageiro que envolve e representa uma multiplicidade na substân-
cia simples que consiste em uma unidade. Uma percepção é, assim, como uma
expressão do mundo na mônada. No parágrafo 2 dos Princípios da Natureza e
da Graça ele é ainda mais claro e afirma consistirem as percepções em represen-
tações do que é composto ou do que é externo.
Nesse ponto é possível e é esclarecedor estabelecer um primeiro contraste
com o pensamento cartesiano no que respeita à teoria da mente. Para Descar-
tes o pensamento consiste no atributo essencial do cogito, de tal forma que
este acaba por se descobrir como sendo uma substância pensante. Nas defini-
ções do pensamento presentes tanto na demonstração geométrica ao final das
Respostas às Segundas Objeções quanto na proposição 9 da parte 1 dos Princípios
de Filosofia, Descartes caracteriza o pensamento como sendo tudo aquilo que
ocorre em nós e do qual somos imediatamente conscientes simplesmente pela

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sua ocorrência. Desse modo, em todo ato de pensamento temos acesso imedia-
to ao seu conteúdo intencional e nos tornamos dele cientes. Mas não apenas
isso. Todo ato de pensamento é por nós percebido como consistindo em um
ato de pensamento, o que faz com que, ao pensarmos, tornemo-nos conscien-
tes não somente do que pensamos, mas também de que pensamos, isto é, de
que somos nós o sujeito do ato de pensamento a cujo conteúdo acedemos dire-
ta e imediatamente simplesmente ao entreter esse estado interno. Com isso,
em Descartes, todo ato de pensamento envolve tanto consciência do conteúdo
do ato quanto consciência de si mesmo.
É precisamente esse vínculo interno entre pensamento (percepção, no
vocabulário de Leibniz), consciência e consciência de si (apercepção, nos ter-
mos leibnizianos) que Leibniz julga ser equivocado no cartesianismo. Para ele
as percepções não precisam ser necessariamente acompanhadas da consciência
de seu conteúdo ou da autoconsciência, podendo, ao contrário, haver percep-
ções desprovidas desses dois tipos de consciência. Leibniz considera que a afir-
mação de Descartes de que unicamente os seres humanos, por serem dotados
de razão e autoconsciência, possuem almas, tem por base exatamente esse nexo
intrínseco estabelecido por ele entre as percepções e a consciência do mundo
e a consciência de si.
A recusa a considerar haver tal nexo permite a Leibniz distinguir três
tipos de estados mentais ou representações: (a) as meras percepções, que são
estados passageiros que envolvem e representam o composto no simples; (b)
as sensações, que se formam quando certas impressões são mais distintas e
ganham relevo, destacando-se das demais impressões e passando, em função
disso, a ser acompanhadas pela memória; (c) as apercepções, que envolvem
um ato reflexivo por meio do qual o sujeito se volta sobre si mesmo e ganha
consciência de seus próprios estados internos enquanto seus. A tipologização
das mônadas tem por base a posse desses três tipos de representação. Elas se
dividem em: enteléquias, que possuem unicamente meras percepções e
apetites; almas, que, além de percepções e apetites, possuem também sensa-
ções; e, finalmente, mentes ou espíritos, que, além de percepções, apetites
e sensações, possuem também apercepções, isto é, possuem uma consciência

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reflexiva acerca das próprias percepções, apetites e sensações. A reflexividade
característica dos espíritos é que possibilita que esses realizem a operação cog-
nitiva da abstração e que conheçam as verdades necessárias.
Assim, enquanto para Descartes tudo o que pertence ao mental possui o
traço da autoconsciência, para Leibniz a qualidade que faz com que um esta-
do seja mental é sua natureza representacional, não sendo necessário que um
estado interno envolva a autoconsciência para que ele seja uma representação.
Esse desacordo com Descartes possibilita a Leibniz afirmar a existência tanto
de estados mentais inconscientes quanto de almas desprovidas de consciência,
o que seria inadmissível no interior da metafísica cartesiana.
Não é, contudo, a concepção de que há percepções e mônadas inconscien-
tes a tese mais própria e característica da metafísica leibniziana no que respeita
ao estatuto e natureza das mentes. Essa consiste, a meu ver, na afirmação de que
cada mônada expressa através de suas percepções tudo o que ocorre no univer-
so como um todo. De acordo com Leibniz, cada mônada está sempre ligada a
um corpo, o qual ela expressa e representa por meio de suas percepções. Uma
vez que, no plano físico, em função da plenitude do mundo, tudo está liga-
do entre si, cada corpo expressa em suas modificações todas as modificações
de todos os corpos que compõem o universo. Desse modo, cada mônada, ao
expressar o corpo ao qual está ligada, expressa a totalidade do universo. Nas
palavras de Leibniz:

ela [cada mônada criada] representa com maior distinção o corpo que
lhe é particularmente afetado e cuja enteléquia constitui; e como esse
corpo expressa todo o universo pela conexão de toda a matéria no pleno,
a alma representa também todo o universo ao representar este corpo de
maneira particular (leibniz, 2004, p. 143).

Segue-se dessa afirmação que todas as mônadas possuem, em última ins-


tância, o mesmo conteúdo representacional, pois todas as mônadas são como

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que espelhos vivos6, que refletem o universo em sua totalidade. Mas essa conse-
quência é embaraçosa para Leibniz, uma vez que, por serem imateriais e incor-
póreas as mônadas não possuem massa nem ocupam uma posição no espaço,
somente podendo se diferenciar umas das outras pelos seus estados internos.
Dado que tais estados consistem, como vimos, em estados representacionais e
como a identidade de representações é normalmente fornecida pelo conteúdo
que elas veiculam, então torna-se um problema fundamentar a possibilidade
de individuação das mônadas, pois a tese de que todas elas representam exata-
mente o mesmo – a saber, o universo com um todo – parece implicar que não
é possível diferenciá-las umas das outras, havendo assim uma única mônada
criada, e não infinitas mônadas.
Leibniz encontra uma saída extremamente astuta para essa dificuldade: ele
afirma que todas as mônadas representam o mesmo, mas não do mesmo modo.
As mônadas podem ser individuadas e distinguidas umas das outras em fun-
ção de possuírem percepções que apresentam diferentes graus de distinção/
confusão. Dessa maneira, ainda que todas as mônadas expressem igualmente o
mundo em seu todo, as mônadas se deixam individuar e se distinguir umas das
outras por possuírem percepções diversamente distintas ou diversamente con-
fusas. Essa ligação aos seus respectivos corpos próprios, que é o que possibilita
que as mônadas expressem o mundo, é também a fonte dos graus diversos de
distinção e confusão de suas percepções. Isso se dá porque todo corpo tem de
necessariamente assumir uma posição na extensão, o que implica que todos os
outros corpos estejam situados a diferentes distâncias em uma malha espaço-
-temporal que se distende a partir do ponto ocupado por esse corpo. Assim,
obrigatoriamente alguns corpos estarão mais próximos desse corpo, enquanto
outros estarão mais distantes. Leibniz considera que as modificações presentes
nos corpos expressam ou registram de maneira mais nítida o que ocorre nas
suas imediações e de maneira menos nítida e mais confusa aquilo que ocorre
mais distante deles. Uma mônada, ao expressar o corpo ao qual ela está liga-

6 Essa imagem é utilizada por Leibniz em diversos textos, dentre os quais podemos
destacar os Princípios da Natureza e da Graça (§3) e o Discurso de Metafísica (§9).

22 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


da, formará, dessa maneira, percepções mais distintas daquilo que se encontra
nas cercanias desse corpo e percepções mais confusas do que se encontra dele
distante.
A estratégia leibniziana deve ser reconstruída, então, de acordo com
minha interpretação, como consistindo simplesmente na atribuição às môna-
das de uma certa posição na extensão com o fim de, por um lado, garantir que
elas representem, por meio de suas modificações internas, tudo o que existe no
universo e, por outro, assegurar que essas representações sejam necessariamen-
te parciais por expressarem uma perspectiva específica, que, como tal, ilumina
alguns aspectos das coisas às quais faz referência enquanto forçosamente obs-
curece outros.
Na medida em que todas as mônadas criadas expressam a totalidade de um
mesmo universo, podemos considerar que, tomados em conjunto, os estados
internos de uma determinada mônada possuem o mesmo conteúdo intencio-
nal ou representacional que aquele presente em cada uma das outras infinitas
mônadas. Sendo assim, não haveria como diferenciar as mônadas umas das
outras em função do conteúdo de suas percepções. O único modo de preser-
var essa identidade referencial – todas as mônadas expressam a totalidade dos
fenômenos do universo – salvaguardando, contudo, a individualidade de cada
mônada consiste em considerar que a diferenciação entre elas – e, consequen-
temente, a individuação de cada uma delas – terá sua origem precisamente na
diversidade dos pontos de vista assumidos. Isso significa que é a ligação a um
corpo determinado, isto é, a um corpo que ocupa uma determinada posição no
sistema extenso-temporal, que garante a discernibilidade das mônadas umas
das outras com base na diversidade de suas representações internas, apesar des-
sas representações expressarem todas elas o universo em sua totalidade. Dessa
maneira, sem a ligação aos corpos as mônadas não poderiam ser diferenciadas
umas das outras nem individuadas.7

7 Leibniz expressa essa concepção com clareza no parágrafo 60 da Monadologia: “Deus,


ao regular o todo, considerou cada parte e particularmente cada mônada; cuja natureza
sendo representativa não poderia ser limitada por coisa alguma a representar só uma parte

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As noções de distinção/confusão desempenham, assim, um papel central
não apenas na epistemologia leibniziana, mas igualmente em sua metafísica,
pois é apenas através do apelo aos diferentes graus de distinção/confusão pre-
sentes nas diversas percepções das mônadas que se torna possível que as môna-
das criadas possam ser individuadas e diferenciadas umas das outras. Desse
modo, dizer que as diversas mônadas constituem diferentes perspectivas ou
pontos de vista acerca do mundo não significa, na filosofia de Leibniz, nada
além do que afirmar que as percepções das diferentes mônadas são distintas/
confusas de modos dessemelhantes, quer dizer, que elas apresentam graus desi-
guais de distinção/confusão. É imprescindível, então, que se determine de
maneira precisa quais são as bases sobre as quais se apoia a distribuição das
percepções em um gradiente de percepções mais ou menos distintas.
Na literatura mais recente acerca do pensamento de Leibniz há uma viva
discussão acerca desse tópico. No que segue vou reconstruir em traços largos
essa discussão, mostrando em seguida por que considero que ela se apoia em
uma compreensão algo equivocada da doutrina leibniziana.
A interpretação mais natural da concepção leibniziana de distinção repou-
sa sobre o estabelecimento de um vínculo interno entre essa noção e a de cons-
ciência. Dessa forma, o esclarecimento da subsistência de graus diversos de dis-
tinção estaria associado à aceitação de que há diferentes graus em que as môna-
das podem ser conscientes de suas percepções, variando desde as situações em
que elas não registram de nenhuma forma seus estados internos até aquelas em
que os conteúdos desses estados são a elas totalmente presentes. Seríamos leva-
dos, assim, a chamar as percepções conscientes de distintas e as inconscientes
de confusas, elucidando, portanto, a noção de distinção através do apelo às
noções de consciência e de registro.

das coisas, ainda que seja verdade que essa representação seja confusa quanto ao detalhe de
todo o universo e distinta em apenas uma pequena parte das coisas (...) Não é no objeto,
mas na modificação do objeto do conhecimento que as mônadas são limitadas. Todas elas
tendem confusamente ao infinito, ao todo; mas são limitadas e distinguem-se pelos graus
das percepções distintas” (leibniz, 2004, p. 142).

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Furth é um bom exemplo dessa interpretação, chegando mesmo a identi-
ficar distinção e grau de consciência: “parece que a diversidade numérica de
mônadas harmônicas somente pode residir em diferenças na clareza ou grau
de consciência com as quais elas experienciam porções variadas de seu(s) uni-
verso(s); se o discurso de Leibniz acerca da perspectiva chega a algo, é a isso
que ele chega” (furth, 1972, p. 129).
Parkinson parece compartilhar dessa interpretação quando ele afirma que

cada substância expressa todo o universo ao percebê-lo (…) mas é óbvio


que em qualquer tempo dado uma tal alma não se dá conta de tudo o
que ocorre no universo. Leibniz coloca isso ao dizer que embora a alma
humana perceba todo o universo, as percepções que ela (e, efetivamente,
toda substância criada) possui são confusas (parkinson, 1982, p. 6).

Dessa maneira, segundo Parkinson, a atribuição de confusão a certas per-


cepções corresponde à afirmação de que as mônadas das quais essas percepções
são estados internos não possuem consciência do conteúdo representacional
expresso por esses estados, logo quanto mais diminuta for a consciência acer-
ca do conteúdo que uma percepção nela presente expressa tanto mais confusa
será essa percepção. Sendo assim, os conceitos de confusão e de distinção não
dizem respeito a traços característicos próprios às percepções tomadas em si
mesmas, sendo, ao contrário, relativos ao modo como as mônadas às quais elas
inerem registram o conteúdo representacional por elas veiculado.
McRae é mais um intérprete que julga ser essa a interpretação adequada do
pensamento de Leibniz. Ele afirma:

a diferença entre percepções distintas e confusas corresponde exata-


mente àquela entre percepções das quais somos conscientes ou das quais
nos apercebemos e aquelas das quais não somos conscientes ou que não
são aperceptíveis. Ela corresponde àquela entre percepções sensíveis e
insensíveis (mcrae, 1976, p. 36).

Edgar Marques p. 15 - 40 25
Para ele, o grau de distinção/confusão das percepções está, portanto, inter-
namente associado a quão sensíveis ou insensíveis as mônadas são às infor-
mações acerca do universo que essas percepções veiculam. O ponto central
na determinação do grau de distinção de uma percepção diz respeito, então,
a quanto do conteúdo representacional que essa percepção porta é, por assim
dizer, acessado pela mônada na qual essa percepção se encontra. 8
Apesar dessa interpretação ser prima facie plausível, ela apresenta, contu-
do, uma dificuldade concernente à individuação das enteléquias. Essa dificul-
dade foi levantada inicialmente por Robert Brandom (1981), em seu artigo
sobre graus de percepção em Leibniz. O ponto de Brandom é que essa vincula-
ção entre distinção e consciência somente pode ser válida em relação às almas e
aos espíritos, que são dotados, respectivamente, de sensações e de apercepções,
e não apenas de meras percepções, não se aplicando às enteléquias, as quais
não são dotadas de nenhum tipo de senciência ou de reflexão. Dessa maneira,
na medida em que as enteléquias não possuem, em função da baixa complexi-
dade estrutural dos corpos aos quais elas estão ligadas, capacidade de acessar
ou registrar o conteúdo representacional constitutivo de suas percepções, não
parece ser razoável que se busque explicar os diferentes graus de distinção ou
de obscuridade de suas meras percepções através do recurso à diversidade dos
graus de consciência desses conteúdos.
A dificuldade levantada por Brandom relativa à vinculação entre distinção
e consciência diz respeito, assim, ao fato dessa interpretação de Leibniz apelar
a diferentes graus de consciência para esclarecer a gradação de distinção/obs-
curidade no interior do conjunto das percepções que inerem às enteléquias,
ainda que essas sejam caracterizadas como mônadas desprovidas de qualquer
tipo de consciência. O problema é que, não sendo as enteléquias sencientes,

8 Retomo nos parágrafos que se seguem, com algumas pequenas modificações, minha
apresentação das concepções de Robert Brandom e Margaret Wilson presentes em meu
artigo (marques, 2019, pp. 41-62). Gostaria de ressaltar, entretanto, que minha posição
acerca desse tópico sofreu fortes alterações desde então, o que pode ser constatado com a
leitura do presente artigo.

26 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


esse recurso à noção de senciência ou de registro interno para diferenciar os
graus de distinção/obscuridade das percepções parece totalmente inaplicável e
fora de lugar. Além disso, dessa dificuldade se seguiria uma ainda maior. Dado
que as mônadas se diferenciam umas das outras e se individualizam em fun-
ção dos diferentes graus de distinção e de obscuridade de seus estados internos
representacionais, a adoção da tese da vinculação entre distinção e consciência
teria como indesejada e inaceitável consequência a impossibilidade de indivi-
duação das enteléquias.
É exatamente por divisar essa dificuldade e para evitá-la que Brandom pro-
põe em seu artigo uma abordagem completamente distinta desse tema. Bran-
dom sugere que tomemos a natureza representativa da percepção em Leibniz
como consistindo em um tipo de potencial de inferências. De acordo com ele,
o que caracteriza uma percepção é que da sua ocorrência em uma dada mônada
pode ser inferida a ocorrência de determinados modos ou acidentes relativos à
própria mônada ou a outras mônadas. A amplitude do conjunto de inferências
que se deixam extrair de uma certa percepção constitui, na terminologia de
Brandom, o domínio expressivo – expressive range – próprio dessa percepção.
Nos diferentes momentos do tempo as mônadas se encontram, segundo
Brandom, em estados perceptivos constituídos por múltiplas percepções. E é
nessa ideia de que várias percepções compõem um estado perceptivo que se
encontra a chave para a elucidação que ele fornece tanto da natureza da distin-
ção/confusão quanto dos princípios de individuação das mônadas.
De acordo com essa concepção, uma percepção será tão mais distinta quan-
to maior for seu domínio expressivo, isto é, seu grau de distinção será deter-
minado pela quantidade de inferências que se deixam realizar a partir dela.
Torna-se possível, assim, a comparação de diferentes percepções e a ordena-
ção delas em uma série que vai das menos distintas às mais distintas, tomando
como base seus respectivos domínios expressivos.
Brandom pede que consideremos, por exemplo, três diferentes percepções
– p1, p2 e p3 – de um mesmo objeto físico. p1 o representa como vermelho, p2
como cúbico e p3 como sendo vermelho e cúbico. Uma vez que de p3 pode-se
inferir que o objeto em questão é vermelho e que é cúbico, p3 é, de acordo com

Edgar Marques p. 15 - 40 27
esse critério, mais distinto e menos confuso do que p1 e p2, as quais possibili-
tam que se infira apenas, respectivamente, que o objeto é vermelho e que ele é
cúbico. Partindo unicamente de p1 não seria possível distinguir esse objeto de
uma esfera vermelha. Da mesma forma, a partir de p2 não se poderia diferen-
ciá-lo de um cubo azul. Unicamente p3 possibilitaria que, com base nas per-
cepções dessas mônadas, fossem discernidos uns dos outros o cubo vermelho, a
esfera vermelha e o cubo azul. Por essa razão p3 seria mais distinto que p2 e p1.
Os estados perceptivos em que as mônadas se encontram a cada momento
expressam, de acordo com uma das mais características teses da metafísica lei-
bniziana, a totalidade do universo, vale dizer, eles expressam todas as modifi-
cações de todas as mônadas. Essa interexpressividade mútua tem como base a
harmonia preestabelecida entre todas as mônadas que compõem o mundo, e é
isso que possibilita identificar os conteúdos de seus estados internos com seu
poder de inferência. Nas palavras de Brandom:

uma percepção provê sua mônada de informação acerca do resto do


mundo apenas na medida em que a harmonia preestabelecida fornece
princípios (leis da natureza) que permitem inferências da ocorrência des-
sa percepção particular, em vez de alguma outra possível, a conclusões
acerca de fatos exteriores à mônada (brandom, 1981, p. 462).

Uma vez que as mônadas não se deixam diferenciar umas das outras em
função daquilo que elas representam, a saber, o universo como um todo, elas
se individuam em função do modo como o conteúdo intencional relativo ao
todo do universo se distribui entre as diversas percepções que constituem seus
estados perceptivos. Assim, retomando o exemplo acima, uma mônada a com
a percepção p3 seria diferente de uma mônada b com as percepções p1 e p2, ain-
da que os conteúdos de p1 e p2 associados correspondam ao conteúdo de p3.
Com isso, torna-se possível individuar as mônadas a e b ainda que o conteúdo
expressivo total delas coincida. A diferença entre elas, e que possibilita que elas
sejam indivíduos distintos um do outro, está relacionada, então, ao fato de elas

28 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


possuírem percepções com diferentes domínios expressivos. No caso em tela, a
mônada a possui a percepção p3, que é a mais distinta das três por possuir um
maior poder inferencial, enquanto a mônada b possui as percepções compara-
tivamente mais confusas p1 e p2. Desse modo, tomando como base unicamen-
te essas três percepções, podemos diferenciar as mônadas a e b uma da outra e
considerar a mônada a como sendo mais perfeita que a b, pois ela possui uma
percepção mais distinta do que aquelas presentes nessa última.
Margaret Wilson (1999) identifica, a meu ver acertadamente, duas noções
como sendo centrais nessa interpretação de Brandom: as de dedutibilidade
externa, por um lado, e a de acessibilidade interna ao conteúdo ou intenciona-
lidade interna, por outro. A seguinte passagem ilustra bem o compromisso de
Brandom com essas duas noções:

para a mônada, seu mundo é um mundo de atributos físicos, per-


ceptíveis. O fenomenalismo de Leibniz acarreta que as relações deduti-
vas entre percepções implicadas pela harmonia preestabelecida são refle-
tidas pelas relações dedutivas entre essas percepções e propriedades das
coisas fenomenais que aparecem para a mônada perceptiva como seus
objetos (brandom, 1981, p. 462).

O que Brandom parece sustentar é que, uma vez que as percepções são
representações, seu conteúdo deve ser acessível ao sujeito ao qual esse estado
representacional inere, sendo individuado pelos seus diferenciados domínios
expressivos próprios a cada uma delas. É a pressuposição tácita dessa acessibili-
dade interna que possibilita a Brandom dizer, por exemplo, que as percepções
fornecem às mônadas que as possuem informações acerca do mundo ou que
essas mônadas experienciam o mundo por meio de suas percepções. Contu-
do, a adoção da ideia de acessibilidade interna padece de um problema capital
no que diz respeito à questão que ora discutimos: ela não pode ser aplicada
sem mais às puras enteléquias, isto é, às mônadas que possuem unicamente
meras percepções e que não são, portanto, nem sencientes nem racionais. As
enteléquias caracterizam-se exatamente por não registrarem o conteúdo das

Edgar Marques p. 15 - 40 29
próprias percepções, não possuindo, assim, esses conteúdos nenhuma dimen-
são fenomenal, quer dizer, esses conteúdos não são vivenciados de nenhuma
maneira pela mônada que os porta. Não há nas puras enteléquias, por assim
dizer, nenhum acesso interno aos conteúdos de suas percepções, não sendo
razoável, portanto, que se apele à noção de acessibilidade interna para dar con-
ta dos critérios de distinção que sejam válidos para os três tipos de percepções
monádicas.
Eu gostaria de pontuar aqui que a adoção da parte de Brandom da ideia
de acessibilidade interna ao conteúdo é, para dizer o mínimo, inusitada, uma
vez que foi precisamente levando em conta a natureza própria das enteléquias
que ele recusou o vínculo interno entre distinção e consciência proposto por
intérpretes clássicos como Furth, Parkinson e McRae. A impressão que fica é a
de que ele deixou entrar pela janela o demônio que havia expulsado pela porta.
No entanto, seria, a meu ver, equivocado rejeitar a interpretação de Bran-
dom simplesmente em função de seu compromisso com a tese de uma acessi-
bilidade interna aos conteúdos das percepções, uma vez que a segunda noção,
a saber, a de dedutibilidade externa parece independer conceitualmente da pri-
meira. Assim, a rejeição da primeira tese não acarreta a recusa da segunda.
Mas essa segunda tese se defronta com suas próprias dificuldades.
Em primeiro lugar, como bem o sublinha Margaret Wilson (1999, p. 340),
ela depende da consideração de que um estado perceptivo em que uma môna-
da se encontra seja constituído por diversas percepções coocorrentes. Uma
questão que se coloca aqui é a de como seria possível a individuação de per-
cepções coocorrentes em meras enteléquias, isto é, em mônadas totalmente
desprovidas quer de consciência fenomenal ou senciente quer de consciência
reflexiva. Em mônadas conscientes podemos apelar para suas vivências senso-
riais ou para os modos pelos quais elas se apercebem reflexivamente de suas
percepções para diferenciar, no interior de um estado perceptivo, umas das
outras as diversas percepções que o compõem. O problema aqui é o de esta-
belecer como essas percepções podem ser individuadas nas meras enteléquias,
uma vez que as percepções, por um lado, não são estados físicos e, por outro,
não se deixam acessar internamente pela mônada à qual elas inerem. Podemos

30 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


formular essa dificuldade através da seguinte questão: o que justifica a introdu-
ção da ideia de percepções coocorrentes em meras enteléquias, na medida em
que essa ideia exige um critério não fornecido de individuação das percepções?
Sem um tal critério, o que nos dá o direito de afirmar que há diversas percep-
ções coocorrentes com conteúdos distintos e não apenas uma única percepção
que engloba em si todos esses conteúdos?
O problema é que no caso dessa segunda alternativa não teríamos mais
como diferenciar as meras enteléquias umas das outras. Resolveríamos a ques-
tão da individuação das enteléquias às custas da criação do enigma da indivi-
duação das meras percepções.
Outra – e ainda mais grave – dificuldade está relacionada à ideia mesma
de se tomar o potencial inferencial das percepções como critério para determi-
nação de seus respectivos graus de distinção/confusão e, consequentemente,
como princípio de individuação dessas mônadas desprovidas de consciência
fenomenal e reflexiva. O ponto duvidoso aqui está ligado ao fato de as meras
enteléquias não possuírem, como vimos, nenhuma capacidade de registrar,
dar-se conta ou acessar os conteúdos de suas próprias percepções, o que faz
com que seja absurdo considerar que caiba a elas a determinação das inferên-
cias que se seguem dos conteúdos de suas percepções. É preciso, então, que
recorramos à noção de uma mente externa a essas mônadas e que possa deduzir
dessas percepções estados de outras mônadas. O candidato natural a desempe-
nhar esse papel no sistema leibniziano é obviamente o entendimento divino.
Isso significa que a individuação das meras enteléquias repousaria de alguma
maneira sobre a cognição divina, sendo, assim, de alguma forma, a individua-
ção de cada enteléquia dependente do modo como ela é pensada por essa men-
te externa, e não do modo como ela é nela mesma e por si mesma.
A grande dificuldade aqui é que, na metafísica leibniziana, a contraposi-
ção entre entes reais e fenômenos repousa exatamente no fato de esses últimos
não serem unos por si, consistindo sua unidade – e, portanto, sua realidade
– em um certo modo de serem percebidos ou concebidos. Assim, um arco-í-
ris, por exemplo, não é uno em si mesmo, uma vez que ele consiste, em última
instância, em múltiplas gotas d’água sendo atravessadas por raios de luz, deri-

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vando-se sua unidade do fato de essa multiplicidade ser percebida por uma
mente como constituindo uma unidade. Fenômenos não podem ser, assim, de
acordo com Leibniz, entes reais ou substanciais, pois além de dependerem de
Deus para existir eles também têm sua unidade dependente do modo de ser
pensado por uma mente externa. Ser um fenômeno é, então, um modo de ser
derivado, e não um modo de ser fundamental, uma vez que um fenômeno é
unicamente na medida em que ele é pensado por uma mente dele distinta. O
incontornável apelo a uma mente externa – ainda que seja a mente divina – no
caso da determinação do domínio expressivo das percepções das puras ente-
léquias traz, então, consigo o espinhoso problema de fenomenalização dessas
enteléquias, as quais, entretanto, como dito expressamente por Leibniz, são
substâncias.
As duas noções basilares que constituem a concepção de Brandom – a
saber, dedutibilidade externa e acessibilidade interna – são, assim, usando uma
linguagem suave, dificilmente aplicáveis às meras percepções presentes nas
enteléquias, não consistindo a interpretação de Brandom, portanto, em uma
resposta viável para a questão da determinação do critério de distintividade das
puras percepções presentes nas meras enteléquias.
Não julgo, contudo, que o fracasso de Brandom seja de alguma maneira
catastrófico, pois suspeito que, no final das contas, ele apenas fornece uma res-
posta equivocada para um problema inexistente. Vamos agora ao meu ponto.
Brandom critica, como vimos acima, a concepção compartilhada,
dentre outros, por Furth, Parkinson e McRae, segundo a qual os graus diversos
de distinção das percepções estão vinculados aos diferentes graus de consciên-
cia que as mônadas possuem dessas percepções, contemplando um gradiente
que vai desde um estado de ausência de registro do conteúdo dessas percepções
até o estado do pleno acesso a tais conteúdos. Brandom argumenta que, sendo
as enteléquias exatamente caracterizadas pela completa falta de consciência,
não seria possível fundamentar a diferença dos graus de distinção de suas per-
cepções através do apelo à noção de consciência.
Creio que Brandom vê aqui uma dificuldade inexistente em função de
uma compreensão da parte dele por demais simplificadora e algo equivocada

32 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


da doutrina leibniziana das mônadas. Brandom, assim como a imensa maioria
dos intérpretes da filosofia de Leibniz, não retira, a meu ver, todas as implica-
ções relativas ao modo como Leibniz caracteriza os três tipos de mônadas que
ele afirma haver.
A classificação das mônadas em enteléquias, almas e espíritos repousa
sobre as diferentes capacidades a elas atribuídas em função dos tipos de esta-
dos internos nelas presentes. Como vimos, as enteléquias, apesar de possuírem
estados internos de natureza representacional, são incapazes de acessar e regis-
trar o conteúdo desses estados. Já as almas possuem percepções de cujos conte-
údos elas podem se dar conta, preservando-os de alguma maneira na memória,
o que – tal como Leibniz o afirma no parágrafo 26 da Monadologia – as torna
capazes de consecução, uma espécie de proto-raciocínio que consiste na cone-
xão entre ideias com base na experiência. Os espíritos, por sua vez, são dotados
da capacidade de refletirem sobre si mesmos, o que os habilita a pensar no eu,
na substância, no simples, no composto, no imaterial e a conhecer as verdades
necessárias.
Essa divisão tripartite dos tipos de mônadas não se deixa capturar de
maneira apropriada através da mera contraposição entre consciência de um
lado e inconsciência do outro, pois a caracterização das almas e dos espíritos
envolve a atribuição a esses dois tipos de mônadas de duas formas diferentes
de consciência, respectivamente. Enquanto as almas possuem uma consciência
que envolve o acesso ao conteúdo representacional de suas percepções, poden-
do, por isso, ser batizada de consciência do mundo, dado que, de acordo com
Leibniz, as percepções expressam ou representam o mundo exterior, os espí-
ritos são dotados também de um outro tipo de consciência, a saber, de uma
consciência reflexiva, a qual consiste em um voltar-se sobre si mesmo como
objeto temático de pensamento. Essa consciência própria dos espíritos consis-
te, assim, na autoconsciência, isto é, na capacidade de tomar a si mesmo como
objeto de representação, tornando-se, assim, capaz de pensar a si mesmo.
Possuindo, em Leibniz, a consciência de si e a consciência do mundo obje-
tos distintos, a saber, respectivamente, o eu e o mundo, há entre elas, por esse
motivo, uma diferença de natureza, e não uma diferença de grau. Isso implica

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considerar que a consciência de si não emerge a partir de algum tipo de inten-
sificação da consciência do mundo, não havendo, dessa maneira, nenhum pro-
cesso natural por meio do qual almas tornem-se espíritos.
Uma vez que, de acordo com a doutrina leibniziana, as mônadas existem
sempre ligadas a corpos, formando seres vivos, torna-se uma questão para Lei-
bniz a determinação de quando e como surgem as almas racionais próprias aos
seres humanos. No parágrafo 91 de seus Ensaios de Teodiceia, ele rejeita a ideia
de que as almas racionais sejam criadas por Deus no momento da concepção
ou do nascimento e formula a sua concepção do seguinte modo:

eu acreditaria que as almas que um dia serão almas humanas, assim


como as das outras espécies, estiveram nas sementes e nos ancestrais até
Adão, e existiram, consequentemente, desde o início das coisas, sempre
em uma espécie de corpo organizado. (...) Mas ainda me parece con-
veniente por diversas razões que [essas sementes] não existissem então,
a não ser em almas sensitivas ou animais, dotadas de percepção e de
sensação, mas destituídas de razão; e que elas permaneceram nesse es-
tado até o tempo da geração do homem a quem elas deviam pertencer,
mas que nesse momento elas receberam a razão; quer houvesse um meio
natural de elevar uma alma sensitiva à condição de alma racional (o que
eu tenho dificuldade de conceber), quer Deus tenha dado razão a essa
alma mediante uma operação particular, ou se você quiser, mediante
uma espécie de transcriação. O que é ainda mais fácil de ser admitida
[do] que muitas outras operações imediatas de Deus sobre nossas almas
que a revelação ensina (leibniz, 2013, pp. 190-1).

Leibniz afasta, assim, caracterizando-a como “difícil de se conceber”, a ideia


de que a racionalidade possa emergir em almas sensitivas ou animais por meio
de processos naturais. A emergência da racionalidade deve, de acordo com ele,
ser fruto de uma ação divina através da qual a alma passa a ter uma caracterís-
tica que não possuía antes sem que essa característica decorra de nenhuma das
outras anteriormente possuídas. Trata-se, como Leibniz mesmo o diz, de uma
espécie de transcriação. Isso se dá, a meu ver, porque ele sustenta haver uma
diferença de natureza – e não apenas de grau – entre a alma racional e a alma

34 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


animal, contrariamente ao que ocorre, de acordo com seu sistema, entre a alma
animal e a alma sensitiva.
No parágrafo 35 do Discurso de Metafísica, Leibniz introduz uma metáfo-
ra que talvez nos ajude a esclarecer um pouco melhor esse ponto. O objetivo
do parágrafo 35 é claramente o de sublinhar a radical diferença existente entre
os espíritos, por um lado, e as outras almas ou formas substanciais, por outro.
Escreve Leibniz:

[…] consistindo toda a natureza, fim, virtude e função das substâncias


apenas em exprimir Deus e o universo (...) não cabe duvidar de que as
substâncias que o exprimem, com o conhecimento daquilo que fazem e
que são capazes de conhecer grandes verdades acerca de Deus e do uni-
verso, não o exprimam incomparavelmente melhor do que essas nature-
zas, que são ou brutas e incapazes de conhecer verdades, ou completa-
mente destituídas de sensação e de conhecimento. A diferença entre as
substâncias inteligentes e as que não o são é tão grande como a que há
entre o espelho e aquele que vê (leibniz, 2004, pp. 74-5).

O significado dessa metáfora é transparente: os espíritos, por serem dota-


dos de razão e, portanto, de capacidade reflexiva, são como aquele que vê, isto
é, possuem a aptidão de dar-se conta e de compreender os conteúdos que cons-
tituem suas percepções, enquanto “as outras almas destituídas de sensação e de
conhecimento” são como o espelho, quer dizer, elas possuem percepções que
expressam o universo, mas não se assenhoram de seu conteúdo.
Esse abismo que separa os espíritos das demais mônadas é ainda acentua-
do por Leibniz nos parágrafos de 83 a 86 da Monadologia, onde ele afirma que
enquanto as almas em geral são espelhos vivos do universo das criaturas, os
espíritos, por seu turno, são, além disso, imagens do próprio Deus, sendo capa-
zes de conhecer o sistema do universo e de imitar a Deus através de esboços
arquitetônicos, o que os torna algo como pequenas divindades. Por essa razão,
enquanto Deus tem para com as demais mônadas a mesma relação que um
inventor tem para com suas máquinas, no caso dos espíritos Deus se relaciona

Edgar Marques p. 15 - 40 35
com eles como um príncipe se relaciona com seus súditos ou um pai com seus
filhos, formando com esses uma sociedade moral, um mundo moral no inte-
rior do mundo natural.
Sendo assim, contrariamente ao que poderia sugerir o princípio leibnizia-
no da continuidade, para Leibniz a razão não se encontra presente em graus
menores ou mesmo infinitesimais nas mônadas animais nem nas meras ente-
léquias. Na verdade, segundo a doutrina leibniziana, as mônadas desses dois
tipos não são dotadas de razão em nenhum grau. O que não significa, contu-
do, e esse é o ponto importante para mim aqui, que elas não sejam dotadas de
consciência. Leibniz diferencia em seu sistema – ainda que não nominalmente
– entre uma consciência do mundo e a consciência de si (ou consciência refle-
xiva, ou razão). A consciência de si está presente unicamente nos espíritos,
não se encontrando em nenhum grau nas demais mônadas. Já a consciência do
mundo possui uma natureza gradativa e acompanha, ainda que em graus infi-
nitesimais, todas as percepções.
Que essa é a posição de Leibniz fica claro pelo papel desempenhado pela
noção das pequenas percepções9 em seu sistema. Leibniz, como todos devem
se recordar, introduz essa noção para dar conta do fato de que muitas das sen-
sações que registramos parecem ser o produto da associação de infinitas outras
sensações, as quais, paradoxalmente, não são elas mesmas por nós registradas.
Quando ouvimos, usando o repisado exemplo de Leibniz, o barulho de uma
onda do mar quebrando, esse som ouvido resulta do som produzido pela que-
da de cada uma das milhões de gotas de água que constituem a onda que se
quebra. A sensação auditiva produzida pelo quebrar da onda é, dessa maneira,
fruto da combinação dos quase imperceptíveis sons gerados pela queda par-
ticular de cada uma dessas gotas, podendo se considerar, então, que essa sen-
sação consciente é produto de infinitas percepções das quais não temos clara
consciência, mas que resultam naquela. O acúmulo de pequenas percepções

9 Retomo aqui algumas das considerações que fiz em Marques (2019), mas em sentido
oposto do presente naquele outro texto. Divirjo atualmente de várias das afirmações lá
presentes e que, por motivos óbvios, não são aqui retomadas.

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permite assim que, uma vez ultrapassado um certo limiar, a percepção resul-
tante se destaque e ganhe relevo, chamando a atenção da mônada à qual ela
inere e passando a ter seu conteúdo representacional acessado por esta. Quan-
to maior for o acesso da mônada ao conteúdo das suas percepções, maior será
a consciência que a mônada possui delas e mais distintas elas serão. No senti-
do inverso, quanto menor for o acesso, menor será a consciência que a môna-
da delas tem e mais confusa será a percepção. Há, assim, um contínuo que vai
das pequenas percepções apenas infinitesimalmente conscientes até aquelas
das quais a mônada possui plena consciência, coincidindo essa série com uma
linha que se pode traçar das percepções quase que completamente confusas até
aquelas que são quase que plenamente distintas.
Desse modo, as pequenas percepções possuem a mesma natureza que as
sensações, sendo apenas dotadas de uma força muito menor. Essa identidade
de natureza fica clara se considerarmos que são plenamente concebíveis pro-
cessos naturais ou artificiais de amplificação que poderiam tornar essas peque-
nas percepções registráveis pelo sujeito que as porta. Tanto o sujeito poderia
desenvolver através de técnicas de meditação ou de concentração sua sensibili-
dade auditiva de maneira a passar a poder tomar ciência de sons que cotidiana-
mente lhe são indiferentes, quanto seria possível criar dispositivos que expan-
dam o volume desses sons, tornando-os mais audíveis do que originalmente o
eram. O ponto fundamental aqui é que as pequenas percepções são de mesma
natureza que as sensações, devendo-se a inconsciência delas à sua tibieza, e não
a uma impossibilidade qualquer de essência.
A dificuldade na doutrina leibniziana de fundamentar graus diversos de
distinção e de confusão nas percepções das enteléquias vislumbrada por Bran-
dom, e para a qual ele oferece a problemática solução de apelo ao “potencial de
inferências” do conteúdo dessas percepções, revela-se assim, ao fim e ao cabo,
como sendo expressão de um erro interpretativo cometido por ele. É verdade
que, para Leibniz, a razão e, portanto, a consciência reflexiva ou consciência
de si são características exclusivas dos espíritos, não havendo nenhum traço
dela nem nas almas nem nas enteléquias. Mas isso não vale para o que estou
chamando aqui de consciência do mundo. Essa, pelo contrário, está presen-

Edgar Marques p. 15 - 40 37
te, ainda que em grau infinitesimal, em todas as percepções encontráveis nas
almas animais e nas meras enteléquias, sendo, por esse motivo, plenamente jus-
tificável, no interior do sistema leibniziano, que se fundamente, como o fazem
Furth, McRae e Parkinson, os graus de distinção das percepções inerentes às
meras enteléquias nos graus de consciência que essas possuem de suas percep-
ções, uma vez que, tal como o evidencia a noção de pequenas percepções, todas
as mônadas possuem consciência, ainda que em grau ínfimo e tendente a zero,
de suas percepções.

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THE INDIVIDUATION OF MERE ENTELECHIES IN LEIBNIZ

abstract: In this article, I analyze and criticize the solution presented by


Robert Brandom to the problem formulated by him about the criterion of
distinctiveness of perceptions present in mere entelechies. Brandom consid-
ers the link between distinction and consciousness made by several Leibniz
interpreters to be problematic, with the purpose of accounting for the differ-
ent degrees of distinction of perceptions, since such link can only be valid for
souls and spirits, not applying to entelechies, which are not endowed with
any kind of sentience or reflection. As a result, Brandom proposes an inter-
pretation that would not have this difficulty. According to this proposal, a
perception will be more distinct the greater its expressive domain, that is, its
degree of distinction will be determined by the number of inferences that can
be made from it. Thus, according to him, it becomes possible to compare dif-
ferent perceptions and order them in a series that goes from the least distinct
to the most distinct based on their respective expressive domains. I show in
this article that both this – in my view, apparent – problem raised by Brandom
and the solution proposed by him stem from a partial and mistaken under-
standing of Leibniz’s theory of monads, in such a way that we would be facing
here a false solution addressed to a non-existent problem.
keywords: Leibniz; perception; apperception; distinction.

referências bibliográficas:
brandom, r. (1981). “Leibniz and degrees of perception”, Journal of the His-
tory of Philosophy, vol. 19, n. 4.
furth, m. (1972). “Monadology”. In: Leibniz: a Collection of Critical Essays,
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leibniz, g. w. (2004). Discurso de Metafísica e outros textos. Apresentação e
notas de Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Martins Fontes.
__________. (2013). Ensaios de Teodicéia. Tradução de William de Siqueira
Piauí e Juliana Cecci Silva. São Paulo: Estação Liberdade.

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parkinson, g. (1982), “The ‘Intellectualization of Appearances’: Aspects of
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bniz. Critical and Interpretative Essays. Minneapolis: University of Min-
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wilson, m. (1999). “Confused vs. Distinct Perception in Leibniz: Conscious-
ness, Representation, and God’s Mind”. In: Ideas and Mechanism. Essays
on Early Modern Philosophy, edited by M. Wilson, Princeton: Princeton
University Press.

40 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ESSÊNCIA E EXISTÊNCIA: DUAS ORDENS DE
CAUSALIDADE, DEDUÇÃO DOS MODOS FINITOS
E A LIBERDADE EM ESPINOSA1

Giorgio Ferreira
Professor, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, Brasil
giorgio.ferreira@gmail.com
resumo: O presente artigo tem por meta analisar a possibilidade de concilia-
ção entre a determinação e a liberdade em Espinosa. Dessa maneira, o artigo
iniciará tratando das duas séries causais indicadas por Espinosa no §100 do
tie: a “série das coisas fixas e eternas” e a “série das coisas singulares mutá-
veis”. A abordagem dessas duas séries causais tem por meta compreender o que
as distingue e as implicações dessa distinção para a filosofia de Espinosa. Em
seguida analisar-se-ão as noções de essência objetiva e essência formal eviden-
ciando que o que está em jogo em eiip7 é a adequação entre essas duas essên-
cias, e não uma adequação entre a essência e a existência. Nesse momento tam-
bém será evidenciado que o tipo de causalidade que está em jogo em eiip7 e
eiip8 é uma causalidade imanente, do tipo todo-parte, a qual se faz entre o
conjunto e seus subconjuntos: ser parte é ser um subconjunto de Deus. Feito
isso, mostrar-se-á que no âmbito da existência dos subconjuntos — e não no
âmbito de sua essência — é possível autonomia relativa interpares, desde que
essa autonomia seja concebida como subordinada aos conjuntos anteriores.
Nesse momento também será evidenciado em que medida os modos finitos
podem ser deduzidos da substância infinita sem que isso implique a negação
de sua liberdade.
palavras-chave: Essência; existência; causalidade; determinação; liberdade.

1 Artigo produzido como resultado de pesquisa de pós-doutorado realizada no Programa


de Pós-Graduação em Filosofia da ufg sob supervisão do docente Dr. Cristiano Novaes
de Rezende.

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1. a série das coisas fixas eternas e a série das coisas singulares e
mutáveis: a ordem da essência e a ordem da existência

Nos parágrafos 95-1002 do Tratado da emenda do intelecto3 (g ii 34-36),


Espinosa trata da ordem que se deve seguir para o conhecimento das coisas.
Assim, no §96 Espinosa indica quais os requisitos para uma definição adequa-
da, e, no §97, os requisitos para a definição da coisa incriada, ou Deus. Seguin-
do em sua discussão, Espinosa afirma que a melhor conclusão é aquela retirada
de uma essência afirmativa, motivo pelo qual seria importante conhecer as coi-
sas particulares (tie, §98). A partir de tais considerações, Espinosa afirma que
as percepções devem ser ordenadas e unidas para que se possa conhecer a natu-
reza do ser incriado e, a partir de sua essência objetiva, fazer com que a mente
reproduza a ordem da natureza e possa deduzir as ideias das coisas físicas, isto
é, dos seres reais. Nesse momento Espinosa distingue duas séries: a “série das
coisas fixas e eternas” [seriem rerum fixarum, aeternarumque] e a “série das coi-
sas singulares mutáveis” [seriem rerum singularium mutabilium] (espinosa,
2004, tie, §100, p. 59).
Segundo Espinosa, a ordem correta em que as percepções devem ser agru-
padas é a que é dada pela série das coisas fixas e eternas, ou seja, a ordem das
causas e dos seres reais (tie, §99) pois é essa ordem que nos dá as determina-
ções intrínsecas de uma coisa (tie, §101). Essa é a série na qual as leis estão ins-
critas “como em seus verdadeiros códigos, leis segundo as quais todas as coisas
singulares se fazem e se ordenam” (espinosa, 2004, tie, §101, p. 59). Dessa
maneira, as coisas fixas e eternas, ainda que singulares, são “como que univer-
sais, isto é, como que gênero das definições das coisas singulares mutáveis e
causas próximas de todas as coisas” (espinosa, 2004, tie, §101, pp. 59-60);
ou seja, é essa série que fornece as propriedades intrínsecas ou essência de algo,
e, por isso, ela é o que importa ser conhecido e prepondera sobre a série das coi-
sas singulares mutáveis (tie, §101-102). Por outro lado, a série das coisas singu-

2 Numeração Bruder
3 Doravante referido como tie.

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lares mutáveis é descrita como algo cuja quantidade ultrapassa todo número e
que abrange “infinitas circunstâncias atinentes a uma e mesma coisa, cada uma
das quais pode ser a causa de que a coisa exista ou não exista, uma vez que sua
existência não tem nenhuma conexão com sua essência” (espinosa, 2004,
tie, §101, p. 59). A série das coisas singulares mutáveis fornece apenas denomi-
nações extrínsecas de uma coisa e, por isso, não é o que importa ser compreen-
dido; ademais, a série das coisas singulares mutáveis depende tão intimamente
das coisas fixas e eternas que sem ela não pode nem existir nem ser concebida.
Tem-se, assim, de um lado, a série das coisas fixas e eternas, as verdades eter-
nas, a ordem das essências, das causas e dos seres reais; do outro lado, a série
das coisas singulares mutáveis, que “não é uma verdade eterna [non est aeterna
veritas]” (espinosa, 2004, tie, §100, p. 59), e configura-se meramente como
“a ordem da existência [ordine existendi]” (espinosa, 2004, tie, §101, p. 59),
a qual não oferece as causas das coisas, mas apenas denominações extrínsecas.
Quatro detalhes chamam atenção nessa distinção entre as duas séries. O
primeiro é a própria distinção, indicando a existência de duas séries, e não ape-
nas uma, como era de se esperar, haja vista que Deus produz as coisas de uma
única maneira. O segundo é que a distinção entre as duas séries não coincide
com a distinção entre uma ordem do pensamento e uma ordem da extensão,
haja vista que Espinosa indica que a ordem das causas dos seres físicos e reais
é também a “série das coisas fixas e eternas” e não a “série das coisas singulares
mutáveis” (espinosa, 2004, tie, §100, p. 59). O terceiro é que Espinosa não
concebe essas séries como equivalentes, haja vista que uma deve ser conhecida
e a outra nem pode ser conhecida e nem importa ser conhecida; além disso,
Espinosa indica claramente que a série das coisas fixas e eternas prepondera
sobre a série das coisas singulares mutáveis, e que a segunda depende da pri-
meira (tie, §101). O quarto item é que as leis da natureza estão inscritas “como
em seus verdadeiros códigos” apenas na série das coisas fixas e eternas e não na
série das coisas singulares mutáveis.
Quando se observam todas as diferenças entre essas séries é perceptível que
não se trata de uma mesma ordem exprimindo-se nas ideias e nas coisas, como

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será enunciado em eiip7, mas de duas ordens distintas. Essas duas ordens dife-
rem entre si não enquanto pensamento e extensão, mas enquanto uma exprime
a ordem e concatenação das propriedades intrínsecas de uma coisa, e a outra
exprime a sequência das denominações extrínsecas da mesma coisa. Para escla-
recer ainda mais as diferenças entre essas duas ordens pode-se tomar novamen-
te o exemplo da definição do círculo, oferecido por Espinosa no §96 do tie.
Um círculo pode ser gerado tanto por um segmento de reta girando em torno
de um eixo fixo quanto por um carimbo. Pegue-se, por exemplo, um círculo
vermelho carimbado em um papel. As propriedades desse círculo podem ser
explicadas tanto pela definição genética quanto pelo conjunto de circunstân-
cias que gerou aquele determinado círculo. Isto é, esse círculo vermelho em
um papel pode ser explicado pela série das coisas fixas e eternas, e, nesse caso,
explicar-se-ão suas propriedades intrínsecas, ainda que não tenha sido gerado
por um compasso; por outro lado, esse círculo pode ser explicado pelo con-
junto infinito de circunstâncias que desencadeou o carimbo vermelho de sua
figura no papel, e, nesse caso, ter-se-ão explicado suas denominações extrín-
secas, tais como ser vermelho e estar em um papel, mas não suas proprieda-
des intrínsecas. Nos dois casos tem-se uma cadeia determinada4, mas apenas
a série das coisas fixas e eternas possui força de definição e é capaz de oferecer
uma explicação válida para todos os círculos, ainda que não explique as pro-
priedades extrínsecas que cada círculo possuirá; e, se a série das coisas fixas e

4 Ao longo do artigo os termos “determinação” e “necessidade” não serão considerados


sinônimos, isto porque nem tudo que é determinado é necessário. O fato de um triângulo
ter a soma dos ângulos internos igual a 180º é uma determinação e é uma necessidade, pois
implicaria contradição caso fosse de outra maneira. O fato de um triângulo ser vermelho ou
verde é uma determinação, mas não é uma necessidade, pois poderia ser de outra maneira
sem implicar contradição. O primeiro caso é uma verdade eterna ou de razão; o segundo
é uma determinação contingente, ou verdade de fato. A oposição essencial e acidental não
coincide, pois, com a oposição entre determinado e indeterminado. Por “acidental” não se
compreende algo indeterminado, mas algo que, apesar de determinado por uma causa, não
é essencial. Por acidental compreende-se aquilo que não é necessário para que a coisa exista,
aquilo que não decorre de sua essência ou natureza, cf. eiiip15, eiiip16dem., eiiip17esc.,
eiiip50 e eivd5. Sobre o assunto, cf. também garret, 1991, pp. 201-2.

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eternas prepondera sobre a série das coisas singulares mutáveis é porque são as
denominações extrínsecas que dependem das intrínsecas, e não o inverso. Não
importa como o círculo foi efetivamente gerado, se por um compasso ou um
carimbo, em ambos os casos é a definição genética — ou série das coisas fixas
e eternas — que explicará suas propriedades intrínsecas, restando à série das
coisas singulares mutáveis a explicação de suas determinações extrínsecas, ou,
caso se prefira, das propriedades que, apesar de serem determinadas, são aci-
dentais e não fazem parte da definição ou essência do círculo, daquilo que ele
propriamente é. Como diz o próprio Espinosa, “as essências das coisas singu-
lares mutáveis não são dedutíveis da série destas [da série das coisas singulares
mutáveis], ou seja, de sua ordem de existência” (espinosa, 2004, tie, §101, p.
59; cf. também eip11d.alt.). É porque a série das coisas fixas e eternas exprime
a cadeia causal imanente que Espinosa diz que ela coincide com a ordem dos
seres reais e suas propriedades intrínsecas; e, por isso, prepondera sobre a série
das coisas singulares mutáveis, que explica apenas propriedades extrínsecas, ou
acidentais, de uma coisa.5

2. essência objetiva e essência formal: a adequação e a verdade

Além das duas séries apontadas acima, os parágrafos 33-34 do tie colocam
em jogo uma outra distinção que perpassa todo o tie, e que está em jogo ao
longo de toda a Ética, qual seja, a distinção entre essência objetiva e essência
formal, bem como a relação existente entre elas. Nesse momento, Espinosa
indica que uma essência formal pode ser conteúdo de uma outra ideia, isto
é, pode ser objeto de uma outra ideia: uma essência formal pode estar con-
tida objetivamente em outra ideia. A ideia de Pedro, sua essência objetiva,
contém sua essência formal enquanto objeto. Ao passo que a ideia da ideia de
Pedro conterá objetivamente a essência objetiva de Pedro. Ou, dito de outra

5 A diferença entre a “série das coisas fixas e eternas” e a “série das coisas singulares
mutáveis” é retomada em kv, ii, cap. 5, ao falar das coisas que são eternas por sua natureza,
das que são eternas em razão de sua causa e das que são perecíveis.

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maneira, a ideia da ideia de Pedro contém objetivamente a essência objetiva de
Pedro; e a essência objetiva de Pedro conterá objetivamente a essência formal
de Pedro.6 Ou seja, “para inteligir a essência de Pedro não é preciso inteligir a
própria ideia de Pedro, e muito menos a ideia da ideia de Pedro” (espinosa,
2004, tie, §34, p. 21), basta que se intelija Pedro, isto é, basta que se intelija sua
essência formal. A relação aí estabelecida, entre o ideado e sua ideia, é a mesma
relação estabelecida entre o corpo humano e a mente humana; e é também a
mesma relação entre a ideia e a ideia da ideia, e entre a mente humana e o inte-
lecto de Deus. Trata-se de uma coisa que é objeto de uma ideia, que, por sua
vez, pode ser objeto de outra ideia, que por sua vez pode ser objeto de outra
ideia, uma contida na outra, indefinidamente, até que se alcance o intelecto de
Deus. É por esse motivo que Espinosa afirma, em eip17esc. que “a verdade e
a e a essência formal das coisas [formalis rerum essentia] são o que são porque
elas assim existem, objetivamente, no intelecto de Deus [Dei intellectu existit
obiective]” (espinosa, 2010, p. 41).
Quando Espinosa afirma que a ordem e a conexão das coisas é o mesmo
que a ordem e a conexão das ideias ele está afirmando exatamente a adequação
entre a essência formal de uma coisa e sua essência objetiva, tal qual ela existe
no intelecto de Deus. Essa adequação entre a essência formal e a essência obje-
tiva não é equivalente à adequação entre a ordem da essência (série das coisas
fixas e eternas) e a ordem da existência (série das coisas singulares mutáveis). A
ordem da essência se exprime objetivamente como a ordem da definição ima-
nente, da ideia adequada; e, ao menos a partir da Ética, se exprime formalmen-
te como tudo aquilo que dessa ordem deriva, isto é, como um esforço interno
que a coisa faz, a partir de suas propriedades intrínsecas, para permanecer na
existência. A ordem da existência, por sua vez, refere-se às relações que as coi-

6 É por isso que a certeza obtida no nível da relação entre a essência objetiva e a essência
formal já é suficiente para atestar a veracidade da coisa: a certeza no nível da ideia da ideia
apenas reproduz a primeira certeza no nível da ideia. A relação entre a ideia e a ideia da
ideia também é uma relação entre a essência objetiva e a essência formal. Sobre o assunto,
cf. também gleizer, 1999, pp. 141-248.

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sas, existindo em ato, estabelecem entre si. O que se deve notar é que a diferen-
ça entre as ordens da essência e da existência não se dá entre a essência objetiva
e a essência formal enquanto elas são adequadas entre si, mas entre proprieda-
des que derivam da essência (objetiva e formal) e as propriedades que derivam
da existência; ou, como nomeia Espinosa, uma diferença entre as propriedades
intrínsecas, derivadas da essência (objetiva e formal) e as denominações extrín-
secas, derivadas da interação da essência formal de uma coisa com a essência
formal de outras coisas (eiip29cor.). Isto porque o contato entre a essência
formal de uma coisa e a essência formal de outra coisa gera propriedades que
não derivam unicamente da essência de uma delas, isto é, geram propriedades
inadequadas. Ou ainda, caso se prefira, a diferença entre a ordem da essência e
a ordem da existência não se exprime como uma diferença entre essência obje-
tiva e essência formal enquanto são adequadas entre si, mas se exprime como
uma diferença entre propriedades essenciais e propriedades acidentais. A dife-
rença crucial é que as primeiras se explicam unicamente a partir da essência,
isto é, são propriedades que derivam dela e são adequadas; e as segundas não se
explicam unicamente a partir da essência de algo, são propriedades que deri-
vam da ação de algo externo e são inadequadas (eiip16-18). Nem todas as pro-
priedades presentes na coisa existente em ato estão presentes em sua essência
objetiva. Por exemplo, a cor vermelha do círculo existente em ato não faz parte
de sua essência objetiva, como o nome “Pedro” aplicado a alguém também não
faz parte de sua essência objetiva. A essência objetiva de Pedro contém tudo
aquilo que a essência formal de Pedro contém, com a diferença que a essên-
cia formal de Pedro é afetada por elementos que derivam de sua existência, e
que não decorrem da essência objetiva. A cor vermelha do círculo ou o nome
Pedro não estão contidos em sua essência (objetiva ou formal) e por isso são
denominações extrínsecas, externas à sua essência. A essência objetiva não
é afetada por nada externo; a essência formal, por sua vez, exprime tudo aqui-
lo que está contido na essência objetiva, e, além disso, é afetada por elementos
externos. Esses elementos externos afetam a essência formal gerando proprie-
dades que não lhe são intrínsecas, isto é, propriedades extrínsecas, inadequadas
e acidentais. Dessa maneira, a relação entre a essência formal ou objetiva e as

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denominações extrínsecas é uma relação de inadequação, posto que tais pro-
priedades não se explicam de forma imanente pela essência objetiva da coisa.
Ou, para finalizar, a maneira como a essência formal de Pedro é afetada por
caracteres decorrentes de sua existência não é abarcada por sua essência obje-
tiva (eiip29cor.).
Saindo do tie e indo em direção à Ética, a afirmação de que “a ordem e a
conexão das coisas é o mesmo que a ordem e a conexão das ideias”, em eiip7,
se refere exatamente à relação imanente que se dá entre a essência objetiva e a
essência formal, e não à relação transitiva — extrínseca e inadequada — que se
dá entre a essência formal de uma coisa e as propriedades que decorrem de sua
relação com a essência formal de outras coisas, isto é, da “série das coisas singu-
lares mutáveis”.7 A maior prova disso é que o corolário que se segue à eiip7 afir-
ma que “tudo o que se segue, formalmente [formaliter], da natureza infini-
ta de Deus segue-se, objetivamente [objective], em Deus, na mesma ordem
e segundo a mesma conexão, da ideia de Deus” (espinosa, 2010, p. 87, negri-
tos meus). Esse postulado não pode ser lido ignorando-se a relação entre reali-
dade formal e realidade objetiva, e, mais que isso, ele deve ser lido aplicando-
-se às essências, ou ideias adequadas, posto que se trata das coisas existentes em
Deus, e Deus não possui ideias inadequadas. Trata-se, então, da relação entre a
essência objetiva e a essência formal, e não da relação transitiva entre a essência
formal de um modo e a essência formal de outro modo. As propriedades da
essência formal de um modo finito decorrem de sua essência objetiva, e não da
essência — seja formal ou objetiva — de outro modo.8 Trata-se de saber como

7 Ou, caso se prefira, eiip7 refere-se a uma relação entre essência objetiva e as propriedades
intrínsecas que ela implica na existência da coisa, e não uma relação entre a essência objetiva
e os acidentes, ou denominações extrínsecas. Para continuar no exemplo do círculo, a sua
essência objetiva — que não tem periferia nem centro — implica que o círculo existente
em ato possua periferia, centro e todos os raios do mesmo tamanho, mas não implica que
ele seja vermelho ou verde. A essência objetiva do círculo implica algumas propriedades em
sua essência formal, mas não implica nenhuma propriedade extrínseca, ou acidental, que
decorre de sua interação com outros objetos na existência.
8 “[...] a verdade e a essência formal das coisas são o que são porque elas assim existem,

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a essência de Pedro se deduz do intelecto de Deus, e não de saber como
a existência de Pedro se deduz da existência de João.9 O nexo causal que
importa ser conhecido é o nexo causal das “coisas fixas e eternas”, a ordem da
essência, das definições genéticas. E, justamente por isso, o corolário de eiip7
é retomado em eiip32 para garantir que “todas as ideias, enquanto são referi-
das a Deus, são verdadeiras” (eiip32), ou seja, “estão em perfeita concordância
com seus ideados, e, portanto, são todas verdadeiras” (espinosa, 2010, 125;
eiip32dem., p.125). E se eiip7 garante que aquilo que se dá no corpo também
ocorre na mente é justamente porque garante a adequação entre a ideia e seu
ideado, ou, conforme o exemplo do tie e eip17esc., entre a essência objetiva e
a essência formal. É a garantia da relação entre ideia e ideado que garante, a um
só tempo, a relação entre corpo e mente e entre ideia e ideia da ideia: em todos
esses casos, trata-se da mesma relação entre ideia e ideado ou essência formal e
essência objetiva.10 Não à toa eiip21 enuncia que “a ideia da mente está unida à
mente da mesma maneira que a própria mente está unida ao corpo” (espino-
sa, 2010, p. 115). Ora, e por que deveria haver uma garantia da adequação entre
essência objetiva e essência formal? Porque, como afirma o tie, a ideia verda-
deira (essência objetiva) é diferente de seu ideado (essência formal), a ideia do
círculo não possui periferia nem centro, ao passo que o círculo existente em ato
possui (tie, §33). É justamente porque ideia e ideado encontram-se em planos
distintos (cf. eiid4expl.) que é preciso garantir que a ordem de encadeamento
da essência objetiva seja equivalente à ordem de encadeamento da essência for-
mal, ou, dito de outra maneira, que “a ordem e a conexão das ideias é o mesmo
que a ordem e a conexão das coisas” (espinosa, 2010, eiip7, p. 87).11

objetivamente, no intelecto de Deus. [...] um homem é causa da existência de um


outro homem, mas não de sua essência, pois esta última é uma verdade
eterna.” (espinosa, 2010, eip17esc., p.41)
9 Os personagens João (o pai), Joana (a mãe) e Pedro (o filho) foram criados para fins
ilustrativos e serão utilizados ao longo do artigo.
10 Note-se que eiip7 garante o que se passa entre o corpo e sua ideia, e não o que se passa
entre um corpo e outro corpo que lhe é externo e que requereria uma causalidade transitiva.
11 Sobre as diferenças entre adequação e correspondência e as relações entre ambas no

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3. eiip7 e a causalidade imanente

Uma vez que a causalidade transitiva se configura como causa inadequada,


a questão que se levanta é a de saber como a causalidade imanente se expres-
sa no plano do pensamento e no plano da extensão. Pois bem, o que Espino-
sa estabelece em eiip7 não é uma sequência causal transitiva que passa de um
modo finito para outro modo finito, como se fosse uma bola de bilhar que
se choca em outra e lhe transfere o movimento. O que Espinosa estabelece
em eiip7 é uma sequência causal na qual se passa de Deus para os atributos;
dos atributos para os modos infinitos imediatos; dos modos infinitos imedia-
tos para os modos infinitos mediatos; dos modos infinitos mediatos para os
modos finitos; e dos modos finitos para outros modos que deles dependem na
medida em que são partes desse outro modo finito, ou seja, dos modos finitos
para suas afecções e afetos. E essa ordem se exprime tanto nas ideias quanto
nas coisas. Trata-se de uma passagem que se dá do todo para as partes: o todo
é a causa imanente das partes, que, por sua vez, só se definem em relação a um
todo. Ou, caso se prefira, trata-se de uma relação na qual se passa da essência
objetiva para a essência formal que ela contém. Dessa maneira, eiip7 estabele-
ce uma causalidade que vai de um conjunto maior aos seus subconjuntos. Não
é por acaso que a demonstração de eiip7 se dá recorrendo-se pura e simples-
mente ao axioma da causalidade; o que se ignora é que a causalidade aí pres-
suposta é do tipo imanente, e não transitiva. É justamente porque se trata de
uma causalidade imanente — do tipo todo-parte — que eiip8, bem como seu
corolário e escólio, apoiam-se em eiip7 e em relações de pertinência e conti-
nência.12 Se o homem depende de Deus para ser conhecido é porque o homem
é uma parte, e Deus, o todo; é porque a essência objetiva do homem está conti-

estabelecimento da verdade, cf. gleizer, 1999, pp. 73-140.


12 O que pode ser evidenciado pelo uso de expressões como “devem estar compreendidas
em” [debent comprehendi in]” e estar contido [continentur]. Ademais, ainda que se diga que
não havia uma teoria dos conjuntos desenvolvida na época de Espinosa, é de se destacar
que sua discussão sobre o infinito no exemplo dos círculos não concêntricos, na Carta 12, é
colocada em termos de conjunto (cf. ferreira, 2021).

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da em Deus que seu conhecimento depende do conhecimento do todo.13
O argumento acima é facilmente explicado recorrendo-se às noções de
modo e substância: uma vez que o homem é um modo, o conhecimento de sua
essência depende do conhecimento da substância. Mas pode-se apontar algo
ainda mais detalhado. É que a essência objetiva do corpo do homem é uma
determinada proporção de movimento e repouso (eiip13lema1); e sua essên-
cia formal, ou atual, é o esforço para permanecer na existência, isto é, para
afirmar essa determinada proporção de movimento e repouso. Essa proporção
de movimento e repouso, por sua vez, não pode existir se não estiver inseri-
da, como se fosse uma parte, na quantidade de movimento total do universo.
Dessa maneira, a proporção de movimento e repouso que compõe a essência
do corpo de um homem depende não apenas das leis da física, mas também
de leis menos universais como as da química, da biologia, de leis que regem
o comportamento dos vertebrados, dos mamíferos, etc. São leis mais univer-
sais determinando leis menos universais, conjuntos e subconjuntos, até che-
gar à lei singular que somos com todo o seu sistema simpático e parassimpá-
tico, alergias, pressão arterial, metabolismo, etc.14 Para conhecer a essência de
um corpo humano não é necessário conhecer a sequência de causas transiti-
vas que geraram sua existência; mas, antes, é necessário conhecer a sequência
de leis — “a série das coisas fixas e eternas” — que condicionam sua essência.
Não é necessário conhecer as biografias que concorreram historicamente para
que em um dado momento um indivíduo de nome Pedro pudesse nascer: esse
conjunto de fatos ultrapassa a capacidade humana e nada nos explica a não
ser denominações extrínsecas de Pedro. O que importa para conhecer as pro-
priedades intrínsecas do corpo de Pedro é o conhecimento de sua essência.
E a ordem causal que engendra sua essência não é a ordem da existência, das

13 Sobre o assunto, cf. também a análise de Deleuze sobre as noções de complicatio e


explicatio na Idade Média (deleuze, 1968, pp. 158-69).
14 “A palavra ‘lei’, tomada em sentido absoluto, significa aquilo em conformidade com
o qual cada indivíduo, ou todos, ou alguns de uma mesma espécie, agem de uma certa e
determinada maneira” (espinosa, 2008, g iii 57, p. 66)

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coisas singulares mutáveis, das biografias, mas a ordem das leis de Deus, das
leis da natureza (leis físicas, químicas, biológicas, as alergias, etc.) e como isso
impacta na essência singular que é Pedro.15 Ou seja, a ordem e a conexão das
ideias (essências objetivas contidas no intelecto de Deus) é o mesmo que a
ordem e a conexão das coisas (daquilo que as coisas são, isto é, de suas pro-
priedades intrínsecas, sua essência formal). Aquele que conhece a ordem da
essência (série das coisas fixas e eternas) conhece muito mais de Pedro do que
aquele que conhece apenas a ordem da existência (a série das coisas singulares
mutáveis) que o gerou ou que ele teve ao longo de sua vida. No primeiro caso
se conhecem as propriedades intrínsecas que derivam da essência objetiva de
Pedro e condicionam sua essência formal (eiip7); no segundo caso conhecem-
-se apenas denominações extrínsecas, ideias inadequadas, oriundas do contato
com outros corpos (eiip29cor.).
Um belo exemplo da relação de causalidade imanente entre o todo e as
partes é a Carta 32. Nessa carta Espinosa se propõe a responder à seguinte
questão: “Como conhecemos de que maneira cada uma das partes [pars] da
Natureza concorda com seu todo [toto conveniat] e como se vincula [cohaeret]
às restantes?”(guinsburg, 2014, vol. 2, p. 165; g iv 169-170). Não é à toa que,
na Carta 32, ao explicar a relação de conexão e do vínculo das partes da natu-
reza umas com as outras e com a totalidade, Espinosa remete ao exemplo do
sangue com a linfa e com o quilo, que configura-se exatamente como uma rela-
ção do todo com as partes.16 A relação de determinação entre todas as coisas

15 “Por governo de Deus, entendo a ordem fixa e imutável da natureza [fixum


illum & immutabilem naturae ordinem], ou seja, o encadeamento das coisas naturais. Já
atrás dissemos, e demonstramos algures, que as leis universais da natureza, segundo as quais
todas as coisas são feitas e determinadas, não são outra coisa senão os eternos decretos de
Deus, os quais implicam sempre verdade eterna [aeternam veritatem] e necessidade.
Dizer, portanto, que tudo acontece segundo as leis da natureza é o mesmo que dizer que
tudo é ordenado por decreto e pelo governo de Deus.” (espinosa, 2008, g iii 45-46, p.
52, grifo nosso.
16 O problema explicado na Carta 32 é o mesmo enfrentado pelo tie, qual seja, o de se
obter o “conhecimento da união da mente com a natureza inteira” (tie, §13); e também um

52 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


se dá tendo em vista uma relação todo-parte, e não uma sequência cronológica
de eventos que remeteria a Adão, como ocorre em Leibniz. É exatamente por-
que eiip7 trata desse tipo de causalidade — contido na Carta 32 e exemplifica-
do no parágrafo anterior — que eiip8 se faz evidente a partir de eiip7. É que
eiip8 apoia-se em uma relação de causalidade imanente do tipo todo-parte, a
qual se revela em expressões como “contém” [in Dei attributis continentur] e
“não contém” — ou “está compreendido” [ita debent comprehendi in Dei] e
“não está compreendido” — presentes na proposição, em seu corolário e em
seu escólio. Deus contém os atributos, os quais, por sua vez, contêm as essên-
cias formais das coisas singulares. Da mesma maneira, e por isso mesmo, “as
ideias das coisas singulares não existentes, ou seja, dos modos não existentes,
devem estar compreendidas na ideia infinita de Deus, da mesma maneira que
as essências formais das coisas singulares, ou seja, dos modos, estão contidas
nos atributos de Deus” (espinosa, 2010, eiip8, p. 89).
eiip7 refere-se a uma sequência causal na qual se passa de Deus para os
modos infinitos imediatos; dos modos infinitos imediatos para os modos infi-
nitos mediatos; e desses últimos para os modos finitos; e, nos modos finitos,
passa-se das leis mais gerais para as mais específicas. Das leis da física e da quí-
mica para as da biologia; dessas para a dos vertebrados, até que se chegue à lei
que rege um corpo humano com suas empatias e antipatias, suas alergias, tipo
sanguíneo, etc. Essa é a “ordem das coisas físicas, isto é, dos seres reais”, a “série
das coisas fixas e eternas” que “reproduzirá a ordem da Natureza” (tie, §99-
100), e que importa ser conhecida. Não se compreende a ideia do homem sem
que se compreenda o conjunto causal ao qual ele está subordinado, sem que
se compreenda a série dos seres fixos e eternos, sem que se compreenda aquilo
que compõe sua essência objetiva e formal, e como isso condiciona sua existên-
cia. Não se compreende o homem sem que se compreenda as leis que regulam
as trocas físico-químicas em seu corpo, sem que se compreenda a relação de

dos problemas enfrentados pela Ética, a saber, o caminho para a união da mente com Deus
(cf. eivp28). Nos três casos, a resposta é dada remetendo-se às relações entre conjunto e
subconjuntos, entre aquilo que está contido e aquilo que não está contido.

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 53
seu corpo com as reações termodinâmicas, com a temperatura, com o oxigê-
nio, com os líquidos, com os nutrientes, e “de que maneira cada uma das partes
da Natureza concorda com seu todo e como se vincula às restantes” (guins-
burg, 2014, vol. 2, g iv 169-170, p. 165). É a partir dessas leis e das ideias des-
ses corpos que se compreende propriamente a essência de Pedro, e não a partir
do conjunto das biografias que o gerou em um determinado momento da his-
tória.17 Dessa maneira, compreendem-se as propriedades intrínsecas de Pedro
mediante a compreensão da causalidade que rege o todo na qual se insere a sua
proporção determinada de movimento e repouso, e não a partir da ordem da
existência, da série das coisas singulares mutáveis que gerou sua existência e
suas denominações extrínsecas: é o saber médico, mais do que o historiográfi-
co, que é importante para conhecer a essência de Pedro! No exemplo da Carta
32 passa-se do sangue — concebido enquanto totalidade do universo e cau-
sa imanente de suas partes — para a essência objetiva da linfa e do quilo nele
compreendidas; a partir da essência objetiva compreende-se a essência formal;
e das essências formais passa-se para as afecções dessas essências formais, isto
é, às afecções e afetos do sangue e da linfa. Da mesma maneira, passa-se do
intelecto de Deus para a ideia da ideia de Pedro, e dessa para a ideia de Pedro
(Partes 1 e 2 da Ética); e da ideia de Pedro para o próprio Pedro e sua essência
formal (Parte 3 da Ética); e da essência formal de Pedro para as suas afecções
e afetos (final da Parte 3 e Partes 4 e 5). Em todos os casos se passa de um con-
junto que funciona como causa imanente para um subconjunto menor que
lhe é subordinado. Se a mente do sangue possui a essência objetiva do quilo
e da linfa não é senão porque o seu ideado, o sangue, contém o quilo e a linfa
formalmente. Trata-se, aí, de uma causalidade imanente, e não de uma causa-
lidade transitiva.
O todo não é um aglomerado de coisas, o todo possui uma essência que
o define enquanto tal e que regula as relações das partes entre si e das partes

17 É por não tratar de biografias que essa ordem é dita “sob a perspectiva da eternidade”
[sub aeternitatis specie] (evp30). Essa ordem é um “eterno presente”, e não uma duração.

54 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


consigo. É por isso que ele é causa adequada das partes: é por isso que Deus é
causa adequada dos modos finitos; e é por isso que os modos finitos, por sua
vez, podem ser causa adequada de seus afetos, isto é, podem agir (eiiiDef.1, 2 e
3). E, assim como um afeto pressupõe a essência formal (conatus/desejo) de um
modo finito por ser um subgrupo que lhe é derivado, também a ideia desse afe-
to pressupõe a ideia desse modo finito, isto é, sua essência objetiva (eiiAx.3).
Isso significa dizer que também entre os modos finitos a causalidade imanen-
te, do tipo todo-parte, se faz presente. É porque o todo é causa adequada das
partes que elas se explicam por ele, mas não o inverso. É por isso que os afetos
requerem a ideia de homem (ou outro modo finito) para serem concebidos,
assim como a ideia de homem requer a ideia de Deus: a ordem e a conexão das
ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas.18 Nessa sequência cau-
sal é pelo todo que se definem as partes, mas não o inverso. A ideia do todo se
sobrepõe à das partes e existe independentemente delas; a ideia da parte, por
sua vez, nem se sobrepõe à do todo e nem pode ser concebida sem a ideia do
todo.19 Assim, o tipo de causalidade imbricado em eiip7 não é uma causalida-
de transitiva, como se João causasse Pedro e a ideia de João causasse a ideia de
Pedro, mesmo porque (i) Espinosa não diz que um homem causa um outro
homem, mas que “um homem é causa da existência de um outro homem, mas

18 A questão também é metodológica: a Ética de Espinosa segue o modelo de síntese,


tomado de Euclides, em oposição ao modelo de análise elaborado por Descartes, cf.
deleuze, 1968, pp. 9-18.
19 As partes compõem indivíduos composto e que se relacionam com elementos externos
ao corpo humano. O sangue, por exemplo, se relaciona com o oxigênio, com a temperatura
externa, com os alimentos vindos de fora, com a pressão ambiente, etc. As partes que
compõem o corpo humano não fazem parte de um sistema fechado em relação ao corpo
humano, haja vista que se relacionam com elementos externos. É esse o motivo pelo qual
a mente não compreende adequadamente essas partes. No entanto, caso se tratasse de
um sistema em que as partes não se relacionassem com nada externo, o todo seria causa
adequada das partes, como ocorre, por exemplo, na relação de Deus com os modos finitos.
É esse o motivo pelo qual o exemplo da Carta 32 precisa supor que “não há qualquer
causa exterior ao sangue que comunique novos movimentos às partes”. Essa suposição não
é mero artifício retórico: ela é necessária para que não se caia no caso de eiip24.

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 55
não de sua essência” (espinosa, 2010, eip17esc., p. 41), e isso significa dizer
que João causa a existência de Pedro sem, com isso, gerar sua essência objetiva
ou formal; e (ii) a afirmação de que João causa Pedro e a ideia de João causa a
ideia de Pedro cai em um exemplo de causalidade transitiva e inadequada entre
as coisas e entre as ideias, o que não pode dar-se em Deus.

4. a relação todo-parte e a autonomia relativa das partes

A relação todo-parte acima aludida se faz ainda mais evidente quando


se observa a relação entre a essência objetiva e a essência formal. Em primei-
ro lugar porque, como já foi dito, a essência formal está contida na essência
objetiva: a ideia de Pedro, sua essência objetiva, contém sua essência formal
enquanto objeto. Em segundo lugar porque a essência objetiva de algo é a
ideia daquilo que mantém a sua totalidade, isto é, a ideia de uma determinada
relação, de uma determinada proporção de movimento e repouso. Uma pro-
porção, existindo em ato (formalmente), pressupõe tanto uma multiplicidade
quanto a unidade que mantém essa multiplicidade como um todo coeso. Em
uma proporção é possível haver mudança nas partes sem que haja mudança
no todo (eiip13lemas 4-7). É precisamente por isso que pode haver mudança
nas partes que compõem a essência formal, sem que haja nenhuma alteração
em sua essência objetiva. É esse o motivo pelo qual a mente não precisa conhe-
cer adequadamente as partes que compõem o corpo (eiip24), basta que ela
conheça adequadamente a ideia de sua totalidade, isto é, sua essência objetiva
(eiip24dem.), a ideia da proporção que compõe o corpo.20 Em outras palavras:
para que a mente conheça adequadamente a essência objetiva do corpo basta
que ela conheça adequadamente a si mesma (eiipP13 e eiip23). O mesmo se dá
entre a ideia e o ideado, posto que a relação da mente com o corpo é precisa-
mente uma relação entre ideia e ideado (eiip21): a ideia formalmente existente

20 Se a essência objetiva de um corpo se define como uma determinada proporção de


movimento e repouso, a sua essência atual, por sua vez, se define por seu esforço (conatus)
por manter essas partes conforme a mesma relação.

56 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


é composta de muitas partes (eiip15), mas a ideia da ideia compreende a ideia
da totalidade, e não das partes. E, pelo mesmo motivo, a relação entre a ideia e
a ideia da ideia é também uma relação todo-parte na qual a ideia da ideia (ou
essência objetiva) contém a ideia (essência formal). E assim ao infinito, isto é,
até ideias cada vez mais abrangentes, até chegar em Deus, o conjunto infinito
existente em ato, que abrange — objetivamente — tudo o que existe.21
É por isso que a mente pode ter uma ideia adequada de seu corpo, isto é,
uma ideia da relação que o compõe, uma ideia da totalidade, mas não pode
ter uma ideia adequada das partes que compõem o corpo (eiip24). É por isso,
também, que, nas coisas finitas, há uma relativa autonomia das partes em rela-
ção ao todo: não é necessário que as partes que compõem a unidade sejam inal-
teráveis, basta que a relação permaneça constante. A autonomia relativa que
as partes possuem em relação ao todo é uma autonomia interpares. O quilo e
a linfa, por exemplo, são subordinados à proporção de movimento e repouso
que compõe o sangue, mas isso não impede que eles interajam entre si, desde
que essa interação não altere a proporção de movimento e repouso do sangue.
Ou seja, o quilo e a linfa são livres para se esforçar, para perseverar em seu ser,
para lutar entre si, desde que isso não altere a determinação de movimento
e repouso no sangue. De um lado, quilo e linfa são coagidos pelo todo e um
pelo outro; de outro lado, se não podem alterar o todo, podem alterar aquilo
que se dá entre partes, interpares. Ou, dito ainda de outra maneira, é possível
haver alterações nas partes que não impliquem alteração no todo (eiip13esc.
lemas 4-7). É perfeitamente possível haver alterações nos subconjuntos desde
que não alterem a harmonia do conjunto. O que importa ser mantido é a rela-
ção: a proporção entre as partes. Evidentemente, uma alteração em uma parte
implicará inúmeras outras alterações em outras partes, uma série de acomoda-
ções em toda a cadeia, em toda a ordem e conexão das ideias, na coerência, na
harmonia que estabelecem entre si, mas isso não significará alteração na rela-

21 “a verdade e a essência formal das coisas são o que são porque elas assim existem,
objetivamente, no intelecto de Deus [intellectu existit objective]” (espinosa, 2010,
eip17esc., p. 41) (negrito meu). Cf. também eip30dem e eiip7cor.

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 57
ção ela mesma. Ou, dito ainda de outra maneira, é possível uma alteração nos
modos sem ferir os decretos de Deus, sem ferir sua predeterminação (que se dá
no âmbito da totalidade). Isso posto, é possível haver liberdade no âmbito da
existência dos modos finitos, entre as partes, interpares, e é visando essa liber-
dade possível que Espinosa escreve o tie, o Breve Tratado, a Ética, o Tratado
Teológico-Político e o Tratado-Político. Toda a obra de Espinosa se inscreve nes-
se campo da possibilidade da liberdade interpares, a qual não conflita com os
decretos divinos, que regem a totalidade das coisas.
A ordem da existência [ordine existendi] é oriunda dessa interação interpa-
res. Ela é nomeada série das coisas singulares mutáveis [seriem rerum singula-
rium mutabilium] precisamente porque, nela, as coisas podem se alterar. Por
outro lado, a ordem da essência, ou ordem da natureza [ordinem Naturae],22
é chamada de série das coisas fixas e eternas [seriem rerum fixarum aeterna-
rumque] precisamente porque, apesar das alterações interpares, a essência (a
proporção, a lei que regula, os decretos de Deus, etc.) permanece a mesma. É
acerca dessa duas ordens que versa a Carta 64 ao tratar da “face do universo
inteiro que, embora mude de infinitas maneiras, permanece sempre a mesma
[facies totius Universi, quae quamvis infinitis modis variet, manet tamen semper
eadem]” (guinsburg, 2014, vol. 2, iv 278, p. 255).

22 Ao longo da Ética, Espinosa também recorre às expressões “ordem da natureza” (“natura


ordo” eip33dem.; “naturae ordine” eiia1; “ordine naturae” eiip24dem.) e “ordem comum
da natureza” (“communi naturae ordine” eiip29cor. e esc., eiip30dem.; “communemque
naturae ordinem” eivp4cor.). Essas duas expressões possuem usos distintos e refletem as
duas séries indicadas no tie (“série das coisas fixas e eternas” e “série das coisas singulares
mutáveis”). Espinosa quase sempre usa a expressão “ordem da natureza” para referir-se à
série das coisas fixas e eternas, à ordem da essência, às ideias adequadas que se ordenam
mediante uma causalidade imanente do tipo todo-parte. Por outro lado, ao falar da ordem
comum da natureza, Espinosa quase sempre remete à série das coisas singulares mutáveis,
à ordem da existência e às ideias inadequadas. É a ela que Espinosa se refere quando alude
à fortuna e ao acaso (eiip29esc.; eiip49esc.; eivp47esc.; evp41esc.). Fortuna e acaso não
se referem, pois à ausência de ordem, mas à “ordem comum da natureza” ou à “ordem da
existência”.

58 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


5. a dedução dos modos finitos e as leis de deus

A partir da perspectiva aqui adotada, a criação das coisas no âmbito da


extensão pode ser ilustrada da seguinte maneira. Primeiro, a potência divina
implica atividade, e essa atividade se exprime na extensão como movimento e
repouso, isto é, enquanto modo infinito imediato. Em um segundo momen-
to, têm-se os efeitos dessa atividade, qual seja, o surgimento dos corpos finitos
produzidos em bloco, isto é, o conjunto dos corpos finitos: o modo infinito
mediato. O surgimento do modo infinito mediato coincide, também, com o
surgimento das leis da física, às quais todos os corpos se submetem. Em um
terceiro momento, após o modo infinito mediato, têm-se os corpos singulares,
isto é, os modos finitos considerados enquanto subconjuntos particularizados
desse conjunto maior que representa a totalidade dos corpos. Esses corpos,
todavia, não se definem por uma figura (cf. ferreira, 2018, pp. 150-3). Toda
água contida no mar pode ser considerada como um único corpo; todo o ar
presente no planeta pode ser considerado um único corpo uma vez que man-
tém uma determinada proporção de movimento e repouso, e é isso que defi-
ne um corpo. Da mesma maneira, porções particularizadas da água do mar
ou do ar também podem ser consideradas de maneira singularizada: uma cor-
rente marítima pode ser considerada um corpo, uma corrente de ar pode ser
um corpo. Isso significa dizer que se passa do modo infinito mediato a corpos
maiores, e dos corpos maiores aos menores, que funcionam como subconjun-
tos desse corpo maior. Mas isso também significa dizer que se passa das leis do
movimento e do repouso, das leis da física, às leis mais particularizadas: leis do
comportamento do corpo líquido, das marés, das correntes, leis do comporta-
mento dos gases, dos ventos particulares, leis dos sólidos, etc. Passa-se dos con-
juntos mais universais aos subconjuntos, das leis mais universais às leis menos
universais. Das leis da física às leis da química, e daí para as leis da biologia,
para as leis de um corpo particular (com sua fisiologia própria, alergias, tipo
sanguíneo, etc.). Passa-se de uma proporção de movimento e repouso deter-
minada que rege um corpo para uma proporção determinada mais particu-
larizada; e da ideia dessa proporção determinada para a ideia da proporção

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 59
determinada mais particularizada. A sequência das proporções determinadas
de movimento e repouso (isto é, a sequência das leis) é a mesma sequência das
ideias dessas proporções; a sequência das essências formais é a mesma sequên-
cia das essências objetivas, ou seja, “a ordem e a conexão das ideias é o mesmo
que a ordem e a conexão das coisas” (espinosa, 2010, eiip7, p. 87). Explicita-
-se, assim, e mais uma vez, a identidade entre a ordem e a conexão das ideias e
a ordem a conexão das coisas.
Caso se queira a dedução dos modos finitos a partir do pensamento, pode-
-se proceder da seguinte maneira. Em primeiro lugar, a potência infinita de
Deus implica atividade, e isso se exprime no pensamento como vontade e
intelecto, que são os modos infinitos imediatos (eip32cor.1). Em um segundo
momento têm-se os efeitos dessa atividade, isto é, o conjunto das ideias exis-
tentes no mundo, qual seja, o modo infinito mediato. Esse conjunto de ideias
é a mente do modo infinito mediato da extensão: a mente de Deus. Em um
terceiro momento, o modo infinito mediato, por sua vez, implica ideias dos
corpos sólidos, líquidos e gasosos, ideias dos mares e das marés, dos gases e das
correntes de ar, ideias dos animais, dos homens, e, por fim, uma ideia de João e
de Pedro, e em ideias dos afetos de João e Pedro. Trata-se de uma série em que
cada conjunto se subordina ao anterior, e cujas leis e ideias não podem con-
tradizer as do anterior (eiiip5). Leis (extensão) ou essências objetivas (pen-
samento) mais universais se sobrepondo às menos universais, e leis que deri-
vam de um corpo particular (o conjunto do metabolismo, das alergias, etc.).
Nessa sequência, é possível haver alteração nos subconjuntos, interpares, desde
que isso não altere a quantidade de movimento e repouso do universo inteiro.
Conforme eiip7, a ordem do pensamento é a mesma da extensão: tanto a lógi-
ca quanto a física guiam-se por princípios imanentes, e não transitivos. A João
e a Pedro cabe conhecer a lei que rege seu próprio corpo, suas próprias ideias,
e, nesse âmbito específico, eles são livres para agir e determinar aquilo que a
partir deles se produzirá (eiiid2), isto é, para agir sobre seus afetos (evp2).
Convém notar que aquilo que a ideia de Pedro pressupõe não é a ideia
de João (seu pai), mas a ideia dos corpos que seu corpo pressupõe. O corpo

60 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


de Pedro pressupõe oxigênio, água, nutrientes, e todo um conjunto de coisas
anteriores a ele; da mesma maneira, a ideia de Pedro pressupõe a ideia de todas
essas coisas, todas essas essências objetivas, mas não pressupõe a ideia de João.
É percebendo-se enquanto parte de um todo maior que Pedro segue seu cami-
nho para o encontro consigo e com Deus. É percebendo em que medida seu
corpo está unido com sua mente e com a natureza inteira que Pedro percebe
que a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das
coisas. Nesse caso há uma série infinita de corpos e de ideias que compõem a
ideia de Pedro, mas essa série não é incognoscível,23 haja vista que ela tem seu
término em Deus.24
O processo dedutivo de que trata eiip7 parte de Deus, ou seja, da nature-
za, da totalidade das coisas, e daí chega-se às coisas cada vez mais particulari-
zadas. Parte-se de conjuntos mais abrangentes para seus subconjuntos, como
já fora explicado e exemplificado. Não se trata, como o faz Leibniz, de fazer
essa série remontar a Adão. O conhecimento da natureza não parte de Adão.
O tie não parte de Adão. A Ética não parte de Adão. A Ética parte de Deus
enquanto totalidade (Primeira Parte); de Deus chega-se aos corpos e às men-
tes (Segunda Parte); dos corpos e das mentes chega-se aos afetos que deles
decorrem (Terceira Parte); dos afetos ao seu poder contra a natureza humana
(Quarta Parte); por fim, procede-se da natureza humana ao seu poder contra
os afetos (Quinta Parte). A ordem e a conexão das coisas seguida pela Ética
é exatamente a passagem da totalidade para as coisas mais particulares. Ou,
como diz o tie:

23 Se essa série fosse explicada pela causalidade transitiva entre Pedro e João operada no
âmbito da existência, e não da essência, configurar-se-ia como uma série incognoscível, haja
vista que não teria fim.
24 Sobre infinito em ato e “infinito porque não tem fim” e sobre a noção de conjunto, cf.
ferreira, 2021.

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 61
no que respeita à ordem para que todas as nossas percepções sejam orde-
nadas e unidas, requer-se que, o mais depressa possível — e a razão o
exige — inquiramos se existe algum ser e, ao mesmo tempo, qual é
ele, que seja a causa de todas as coisas e cuja essência objetiva também
seja a causa de todas as nossas ideias; e então nossa mente, como dis-
semos, reproduzirá ao máximo a Natureza, pois possuirá objetivamente
a ordem e a união da mesma. [...] Mas é de notar que, aqui, por série
das causas e dos seres reais não entendo a série das coisas singulares
mutáveis, mas somente a série das coisas fixas e eternas (espinosa, 2004,
tie, §99-100, pp. 58-9).

A série de ideias de que fala Espinosa é atemporal, eterna, sob a perspectiva


da eternidade [sub aeternitatis specie] (evp22) e se dá no intelecto de Deus, ela
não é uma série histórica, e por isso ela não começa em Adão e não trata de bio-
grafias. O que talvez comece em Adão é a série das coisas singulares mutáveis,
a série das coisas na duração, que, segundo Espinosa, não faz diferença alguma
conhecer, pois ela não procede por ideias adequadas, e não nos dá as proprie-
dades intrínsecas de uma coisa. Entendido da maneira acima explicada faz sen-
tido que uma ideia derive da outra que lhe é anterior, assim como os retângu-
los contidos no círculo exemplificados em eiip8esc.; por outro lado, não se vê
como a ideia de Adão gera a ideia de Caim ou de Abel. Aliás, essa possibilida-
de é claramente negada em eip17esc. Dessa maneira é mister considerar que o
encadeamento infinito de ideias do qual Espinosa trata é um encadeamento de
conjuntos e subconjuntos, da relação imanente e causal existente entre o todo
e suas partes, e não de uma relação transitiva e sem nenhuma conexão, como a
existente entre Adão e Abel ou Caim.
Quando Espinosa diz que “Deus age exclusivamente pelas leis de sua natu-
reza e sem ser coagido por ninguém” (espinosa, 2010, eip17, p. 39), ele se
refere à causalidade imanente (eip18) que se reflete, por sua vez, na definição
genética ou, o que dá no mesmo, nas ideias adequadas. É justamente porque as
leis da natureza de Deus são as próprias leis da definição genética que Espinosa
afirma que a série das coisas fixas e eternas é a ordem dos seres reais, é a série

62 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


na qual as leis estão inscritas “como em seus verdadeiros códigos, e segundo as
quais são feitas e ordenadas todas as coisas singulares” (espinosa, 2004, tie,
§101, p. 59). É justamente por isso que, no ttp (espinosa, 2008, g iii 45-46,
p. 52), Espinosa afirma que por governo de Deus entende “a ordem fixa e
imutável da natureza [fixum illum & immutabilem naturae ordinem],
ou seja, o encadeamento das coisas naturais [rerum naturalium con-
catenatio]” e que, nesse governo, “as leis universais da natureza [leges
naturae universales], segundo as quais todas as coisas são feitas e
determinadas [secundum quas omnia fiunt & determinantur], não são outra
coisa senão os eternos decretos de Deus [Dei aeterna decreta], os quais
implicam sempre verdade eterna e necessidade [aeternam veritatem &
necessitatem involvunt]”, e que, portanto, dizer “que tudo acontece segundo as
leis da natureza é o mesmo que dizer que tudo é ordenado por decreto e pelo
governo de Deus”. A passagem do ttp é relevante porque as mesmas expres-
sões usadas pelo tie para designar a série das coisas fixas e eternas (“ordem fixa
e imutável”, “leis universais da natureza”) são, aqui, empregadas para explicar
o que é a lei de Deus e qual relação de verdade e necessidade essa lei implica.
Ou, dito de outra maneira, a passagem do ttp reafirma que a série das coisas
fixas e eternas coincide com a lei de Deus, com a maneira como ele produz o
mundo e a necessidade que ela implica. Assim, se uma tese metafísica tão for-
te é sustentada em eiip7 apoiando-se apenas na ideia de causalidade é porque
(i) as ideias contidas no intelecto de Deus são adequadas, ou seja, descrevem a
gênese da coisa por causa imanente, e não transitiva; e (ii) justamente por isso,
descrevem a maneira como Deus opera (eip17 e eip18). Fazer a leitura de eiip7
como se ela se referisse a uma causalidade transitiva não é senão ignorar o pen-
samento de Espinosa acerca da causalidade e da definição genética.

6. a gênese da causalidade transitiva e da série das coisas


singulares mutáveis, ou, a gênese da existência

As considerações acima lançam luz sobre o necessitarismo de Espinosa,


pois nos permitem ver que essa necessidade que perpassa toda a natureza é

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 63
uma necessidade de ordem imanente, e não transitiva. Ora, mas como explicar
que João é pai de Pedro se a relação de paternidade é, precisamente, uma rela-
ção transitiva? E como explicar o círculo vermelho carimbado em um papel
por um homem em uma manhã de sexta-feira, se a geração desse círculo por
esse homem é, precisamente, uma causalidade transitiva? E como explicar esses
predicados associados ao círculo — vermelho, carimbado, sexta-feira — que
são, precisamente, denominações extrínsecas em relação ao círculo, e, portan-
to, não são gerados diretamente a partir da causalidade imanente?
Ao tratar da “série das coisas fixas e eternas” e da “série das coisas singula-
res e móveis” no tie, Espinosa coloca a segunda como derivada da primeira.
Isso significa dizer que as denominações extrínsecas decorrem das proprieda-
des intrínsecas, e que a causalidade transitiva decorre da causalidade imanente,
e, portanto, Deus só é causa das denominações extrínsecas secundariamente,
ou, o que dá no mesmo, a causalidade transitiva é, antes, uma decorrência do
que uma causa propriamente dita. Nessa medida, a relação de paternidade de
João em relação a Pedro deve ser explicada tendo em vista os afetos de João
que, agindo de dentro pra fora, o lançaram em direção à Joana25, cujos afetos,
também agindo de dentro para fora, a lançaram em direção a João. É dessa
ação combinada entre a causa imanente agindo em João e a causa imanente
agindo em Joana que surge Pedro. Ou, dito de outra maneira, a causalidade
transitiva de João e Joana em relação a Pedro é um efeito da causalidade ima-
nente que age em João e em Joana. É por essa causalidade transitiva — secun-
dária em relação à causalidade imanente — que se explica que Pedro tenha
nascido em uma determinada data e local. Nesse exemplo, Deus é a causa da
essência, e, portanto, causa imanente e causa das propriedades intrínsecas de
Pedro; e Deus também é causa imanente da existência de Pedro, e, portanto,
de suas denominações extrínsecas, na medida em que é causa imanente tanto
de João quanto de Joana e de tantos outros seres que concorreram para que
esse encontro ocorresse. Ou seja, a existência de Pedro não se dá diretamente a

25 Personagem fictícia criada para fazer alusão à esposa de João e mãe de Pedro.

64 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


partir de Deus, mas de maneira secundária, mediada pela existência de outros
modos finitos (eip28). No entanto, quando observado da perspectiva de João,
isoladamente, e ignorando-se aquilo que o determina internamente, pode-se
dizer que João é causa transitiva da existência — e não da essência — de Pedro
(e o mesmo pode ser dito de Joana, ou de João e Joana sem as demais causas
que concorreram para o encontro).
Uma vez no mundo, a compreensão daquilo que Pedro essencialmente é se
dá pela definição genética, e não pela série das coisas singulares mutáveis que
em algum momento concorreram para a sua existência. A essência e a existên-
cia de Pedro são determinadas e produzidas por Deus, mas não são determi-
nadas da mesma maneira, haja vista que há uma prevalência da série das coi-
sas eternas e fixas sobre a série das coisas singulares e móveis; ou, dito ainda
de outra maneira, a relação causal da essência prevalece sobre a relação causal
da existência, a causalidade imanente prevalece sobre a causalidade transitiva,
as propriedades intrínsecas prevalecem sobre as denominações extrínsecas, a
essência sobre a existência, as verdades eternas (de razão) sobre as verdades
de fato (tie, §65). É exatamente nesse sentido que Espinosa diz, no tie, que
a série das coisas singulares mutáveis é secundária em relação à série das coi-
sas fixas e eternas. É nesse sentido, também, que Espinosa destaca, na Carta
12, que a existência dos modos não é necessária e não decorre de sua essência;
ou que, na Ética, afirma que “um homem é causa da existência de um outro
homem, mas não de sua essência, pois esta última é uma verdade eterna [aeter-
na veritas]” e que, portanto, “se a existência de um se extinguir, a do outro não
se extinguirá por isso; mas se a essência de um pudesse ser destruída e tornar-se
falsa, a essência do outro também seria destruída” (espinosa, 2010, eip17esc.,
p. 41). É nesse mesmo sentido que Espinosa indica, no cm, que “a necessidade,
que pela força da causa está nas coisas criadas, é dita ou em relação à essência
delas, ou em relação à existência delas, pois as duas distinguem-se nas coisas
criadas” (espinosa, 2015, g i 241, p. 209); ou, por fim, é nesse sentido que
Espinosa retoma, em eip33esc.1, exatamente aquilo que foi dito no cm, a saber,
que “uma coisa é dita necessária em razão de sua essência ou em razão de sua
causa [res aliqua necessaria dicitur vel ratione suae essentiae, vel ratione causae]”

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 65
(espinosa, 2010, eip33esc.1, p. 57), e que, nas coisas criadas, a causa da exis-
tência não é a causa da essência. É também nesse sentido que Espinosa distin-
gue entre uma ordem e concatenação de ideias que se faz segundo as afecções
do corpo e que geram as ideias inadequadas (denominações extrínsecas), e que
varia de uma pessoa para outra; e uma ordem e concatenação das ideias que se
faz segundo o intelecto, isto é, segundo definições genéticas, segundo as essên-
cias, “e que é a mesma em todos os homens [et qui in omnibus hominibus idem
est]” (espinosa, 2010, eiip18esc., p. 113).
A relação entre essas duas séries (da essência e da existência) não coinci-
de com uma regressão ao infinito justamente por se tratar de duas séries dis-
tintas e acerca das quais não há equivalência. É possível pensar a causalidade
transitiva da existência de Pedro por uma série que regressa ao infinito, mas
não é possível pensar a causalidade imanente de sua essência por regressão ao
infinito justamente porque, nesse caso, a série termina em Deus. A regressão
ao infinito se dá, portanto, quando se está na série das coisas singulares mutá-
veis, na ordem da existência, na sequência das causas transitivas. Mas, deve-se
lembrar, que é justamente por abranger “infinitas circunstâncias atinentes a
uma e mesma coisa”, e por não ter nenhuma conexão com sua essência que a
série das coisas singulares mutáveis, ou “ordem da existência”, não é uma ver-
dade eterna, e, portanto, não importa ser conhecida (tie, §101). Apenas uma
das séries, justamente a que não importa ser conhecida e não é uma verdade
eterna, regride ao infinito; a outra — a que importa ser conhecida e que pro-
move a adequação entre essência objetiva e essência formal (eiip7) — termina
em Deus. Assim, para retomar o exemplo acima mencionado, eiip7 não trata
da relação transitiva existente entre as causas quando concorreram para que
João e Joana gerassem Pedro; mas, antes, de considerá-los agindo cada um por
si, segundo a sua própria essência, de maneira imanente, e não transitiva. É o
conatus, ou essência formal, de João e seu esforço por permanecer na existência
quem o determina a querer gerar filhos e perpetuar a si mesmo e sua espécie; é
o conatus de Joana, seu esforço por permanecer na existência, quem a determi-
na a querer gerar filhos e perpetuar a si mesma e sua espécie. É cada um dessas
essências formais, agindo de maneira imanente, o que determina o encontro e

66 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


a geração de Pedro. Não se trata de conceber João agindo sobre Joana (ou Joa-
na agindo sobre João) e depositando nela sua semente, mas do conatus de João
agindo sobre João — da relação entre sua essência objetiva e formal —, e do
conatus de Joana agindo sobre Joana, resultando no encontro e na geração de
Pedro. É dessa perspectiva que Deus age, e é ela que deve ser o ponto de par-
tida para explicar o necessitarismo e o determinismo de Espinosa, inclusive a
determinação na série das coisas singulares e móveis, isto é, a determinação no
âmbito da existência e da causalidade transitiva.

7. as duas séries, o determinismo e a liberdade

O que se percebe é que as coisas podem ser ditas determinadas em dois sen-
tidos, e não há univocidade entre eles. As coisas são duplamente determinadas.
Em um primeiro sentido, na série das coisas fixas e eternas, as coisas são deter-
minadas desde a eternidade. Trata-se, aí, de verdades eternas. Esse é o âmbito
das essências objetiva e formal, e de sua adequação compondo uma e mesma
ordem imanente (eiip7 e eiip8): trata-se aí de uma determinação intrínseca,
imanente. Em um segundo sentido as coisas são determinadas pelos fatos que
condicionam sua existência. Trata-se, aí, de determinações extrínsecas, con-
tingentes à essência da coisa, de “verdades de fato”, aquelas cujo oposto não
implica contradição. Esse é o âmbito da existência, no qual uma e mesma coisa
tanto pode ser a causa de que a outra exista quanto pode ser a causa de que a
outra não exista, nos diz Espinosa (tie, §100). Da série das coisas fixas e eter-
nas decorrem as essências e as propriedades intrínsecas que lhes são imanentes.
Da série das coisas singulares e mutáveis — ordem da existência — decorre a
localização das coisas no espaço e no tempo, suas propriedades extrínsecas e
o número (eip8esc.2). Nessa medida, a essência formal dos modos finitos é
duplamente determinada. De um lado ela é determinada internamente por
sua essência objetiva e configura-se como um esforço por aderir a ela; de outro
lado ela é determinada pela existência dos outros modos que podem fazer com
que esse esforço cesse, isto é, com que a essência atual cesse de existir e que a
coisa deixe de existir formalmente. Quanto à primeira ordem, é inteiramente

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 67
vedada qualquer alteração por parte dos modos finitos; no entanto, quanto à
ordem da existência, essa alteração é perfeitamente possível. Não é permitido a
um homem alterar a composição de seu corpo, mas é permitido — sem alterar
sua essência objetiva — alterar a sua biografia.
Acerca da relação entre liberdade e determinação, o que se deve considerar
em primeiro lugar é que a admissão de que as coisas singulares podem deter-
minar a si mesmas em alguma medida é clara e óbvia, e sua negação consistiria,
inclusive, na negação de todo o projeto espinosista de uma reforma do inte-
lecto, de uma ética e da libertação do homem. Em segundo lugar, a “série das
coisas singulares mutáveis” não pode ser explicada levando em consideração
única e exclusivamente a determinação extrínseca de uma coisa sobre outra.
Isto porque tal concepção implicaria conceber as coisas como desprovidas de
determinação interna, isto é, como desprovidas de essência objetiva e essên-
cia formal. Somente algo que não possui essência pode ser determinado ape-
nas externamente, por causalidade transitiva; mas algo que não possui essência
não existe. Nessa medida, qualquer tentativa de pensar a ordem da existência e
das determinações extrínsecas deve levar em conta, também, a ordem da essên-
cia. Isso significa dizer que a série das coisas singulares mutáveis deve ser expli-
cada levando em consideração também aquilo que decorre do esforço de cada
ser finito por permanecer na existência, isto é, aquilo que decorre da essência
de cada ser finito, ou, caso se prefira, de sua determinação intrínseca, de sua
liberdade (eid7). Caso se coloque a questão em termos de liberdade huma-
na, pode-se afirmar que o que decorre da lei de Deus e de sua determinação é
a definição de homem (um composto de mente, corpo, conatus, um ser cujas
ideias compõem-se como uma narrativa mental, etc.), isto é, aquilo que, no
homem, é eterno; no entanto, a biografia, o conjunto de determinações extrín-
secas de cada um, aquilo que decorre mais das condições de sua existência do
que de sua essência, isso se dá pela inserção do homem na “série das coisas sin-
gulares mutáveis”. A biografia já não depende apenas da definição (eip8esc2),
mas de Deus mediado pelas coisas singulares (eiip9); e as coisas singulares,
por sua vez, possuem sua própria determinação interna e a possibilidade de,
em alguma medida, agirem determinadas internamente, caso contrário, não

68 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


exprimiriam a potência de Deus (espinosa, 2008, g iii 58, p. 67). Isso signifi-
ca dizer que, embora não possa alterar sua própria definição, e, por assim dizer,
as leis que o ultrapassam, o ser humano pode alterar sua biografia, que depen-
de, em alguma medida, do seu esforço por permanecer na existência. Ou, caso
se prefira, o ser humano pode agir, isto é, produzir coisas das quais ele é a causa
adequada (eiiidef.2). Dessa maneira, a completa atualização da potência de
Deus não poderia ocorrer sem, em alguma medida, conferir algum grau de
potência aos modos finitos; e isso implica que os modos finitos podem alterar
sua biografia na sucessão temporal (evp2). Melhor dizendo, não se trata de
uma alteração da biografia, mas de sua construção; e, note-se, alterar a biogra-
fia não significa alterar aquilo que são as propriedades intrínsecas, imanentes,
mas uma alteração daquilo que decorre da interação da essência formal de uma
coisa com a essência formal de outra (tie, §1-13).
A alteração/construção da biografia pode se dar tanto indo em direção às
propriedades intrínsecas e fazendo com que a coisa seja determinada cada vez
mais internamente, como pode se dar indo em direção às propriedades extrín-
secas, fazendo com que algo seja determinado cada vez mais externamente. É
nesse sentido que o homem, sem negar o determinismo, mas incluindo-se nele
como algo vivo e possuidor de determinação interna — e não como um ser
desprovido de essência —, pode caminhar em direção à sua liberdade ou à sua
escravidão. É nesse sentido que se explicam, por exemplo, o início do tie e a
prescrição de afastar-se das riquezas, concupiscência, e tudo o mais que se con-
figura como determinação externa, como propriedade extrínseca; é nesse sen-
tido, também, que se explicam as partes iv e v da Ética, que tratam da servidão
e da liberdade; é nesse sentido que se explica a proposta de alcançar a liberdade
caminhando em direção às propriedades intrínsecas, imanentes, seja no âmbi-
to das paixões, da correção do intelecto, ou, o que dá no mesmo, do alcance da
beatitude. É do conjunto dos modos finitos, cada um em seu esforço por perma-
necer na existência, que resultará o futuro: o futuro é extrínseco à eternidade.
Acerca desse assunto, poder-se-ia argumentar que a inserção da essência
formal, ou atual, dos modos finitos como um elemento a ser levado em consi-

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 69
deração na “série das coisas singulares mutáveis” destrói as leis da natureza e a
possibilidade de se fazer ciência, uma vez que inseriria alguma contingência no
mundo. Todavia, não é necessário que a ordem da existência seja uma verdade
eterna para se salvaguardar a ciência em Espinosa. Primeiro, porque o próprio
Espinosa descarta essa série e a qualifica como algo que não importa ser conhe-
cido (tie, §100-101). Segundo, porque o conhecimento das ideias adequadas
é o conhecimento que se faz por definições genéticas, ou essências objetivas, e
isso aplica-se apenas à série das coisas eternas e fixas, e exclui a ordem da exis-
tência. Terceiro, porque o conhecimento intelectual nos mostra as coisas sob
a perspectiva da eternidade, e isso, novamente, aplica-se apenas à ordem das
essências, à série das coisas eternas e fixas e não à ordem da existência, que se dá
na duração (evp29esc.). Quarto, porque Deus age por causalidade imanente,
e não transitiva; e, assim, conhecer como Deus age é conhecer pela via intelec-
tual, das definições genéticas, e não pela via da causalidade transitiva. Dessa
maneira, a afirmação de que na ordem da existência o futuro não está estabele-
cido, e que ele depende em alguma medida do nosso esforço por perseverar na
existência, não conflita com a possibilidade de ciência na filosofia de Espinosa:
a ciência espinosana é da ordem da essência, e não da existência!
É justamente indicando que a ordem que importa ser conhecida é a da cau-
salidade imanente que se salva não apenas a ciência e a proposta de uma refor-
ma do intelecto, mas também a ética, a liberdade, o encontro com Deus, a bea-
titude e o pensamento que se dá sob a perspectiva da eternidade em Espinosa.
Jogar tudo isso fora e fazer a existência ser guiada unicamente por um deter-
minismo mecânico, transitivo e totalmente predeterminado é ignorar tanto a
concepção de ciência de Espinosa quanto o fato de que os modos finitos são
providos de conatus que os determinam internamente.26 Ciência é conhecer

26 Ora, se não é possível determinar-se internamente e fazer valer sua lei intrínseca contra
a determinação extrínseca, ao que Espinosa estaria se referindo quando, na Ética, fala em
“obedecer ao acaso e não a si mesmo” (evp41esc.)? E por que Espinosa fala de alguém que
está sujeito ao acaso como sendo alguém que não está sob seu próprio comando (eivPref.)?
E em que sentido fala que devemos nos conduzir frente às coisas da fortuna (eiip49esc.)?

70 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


pelas causas, e conhecer pelas causas é, para Espinosa, conhecer pelas causas
imanentes (e não pelas transitivas), ou, o que dá no mesmo, pela definição
genética.27 Não há ciência dos fatos, há ciência das verdades eternas, das leis de
Deus, isto é, há ciência da série das coisas eternas e fixas, que são as que importa
conhecer. Jogar fora toda a proposta ética, política e epistemológica de Espi-
nosa em nome de uma ciência que ele jamais defendeu — e que, inclusive, cri-
ticava — é ignorar sua proposta filosófica.

8. considerações finais

Respondendo às questões colocadas no resumo: em que medida tudo é


determinado? Tudo é determinado em dois sentidos. Em um primeiro senti-
do, na ordem das essências as coisas não podem ser alteradas, opera-se, aí, com
verdades eternas (ou de razão) cujo oposto implica contradição: essa é a série
das coisas fixas e eternas. Nesse âmbito, o que está em jogo é a causalidade ima-
nente, que, nos modos, revela-se como uma causalidade do tipo todo-parte.
Na ordem da essência tudo é determinado e necessário. Em um segundo sen-
tido, tudo é determinado também na ordem da existência, mas, nesse segundo
caso, já não se trata mais de verdades de razão, mas apenas de verdades de fato,
cujo oposto não implica contradição, posto que o que se altera são apenas as
denominações extrínsecas de uma coisa, suas propriedades não essenciais. Na
ordem da existência, as coisas são determinadas, mas não são necessárias. Esse
é o âmbito das inadequações, que se dá apenas nos modos, interpares, e que
não ocorre em Deus enquanto Natureza naturante. A ordem da existência não
existe previamente à existência e nem às essências formais que fazem com que
as coisas se esforcem por perseverar na existência.28 Pensar essa ordem como
se ela fosse inteiramente mecânica e ignorando esse esforço das coisas é igno-

27 Sobre o assunto e sua relação com as definições genéticas em Espinosa, cf. rezende,
2012.
28 É nesse sentido que Espinosa indica que é um fatalista, mas que não submete Deus aos
fatos (g iv 311).

Giorgio Ferreira p. 41 - 74 71
rar a própria ordem da existência. Nesse âmbito é possível ao homem alterar o
curso das coisas desde que isso não altere a proporção existente no todo, desde
que não altere a proporção total de movimento e repouso existente no univer-
so. Por fim, o homem alcança sua liberdade fazendo com que sua existência se
guie cada vez mais norteada por sua essência, ampliando, assim, sua potência
de agir.
Por fim, uma leitura do determinismo que ignore as duas ordens de cau-
salidade e resuma uma à outra é uma leitura que, ou (i) reduz toda relação de
causalidade à causalidade imanente e à série das coisas fixas e eternas, e, nesse
caso, perder-se-á o desenrolar da existência no tempo bem como as denomina-
ções extrínsecas que às coisas se ligam ao longo de sua existência; ou, (ii) o que
é ainda pior, reduz toda relação de causalidade à causalidade transitiva, e, nesse
caso, perder-se-á a maneira como Deus produz, ou seja, perder-se-á a ordem
dada pela essência das coisas, pela sua definição genética, pelas ideias adequa-
das.29 Essas questões devem ser listadas porque uma leitura do determinismo
que as ignore é uma leitura condenada a considerar o determinismo ignorando
tanto a diferença entre as duas ordens de causalidade (haja vista que conside-
rará apenas uma delas), quanto as diferenças entre propriedades intrínsecas e
denominações extrínsecas, isto é, não distinguirá entre o que importa e o que
não importa ser conhecido.

29 O debate sem fim entre Garret e Curley não parece ter outra fonte senão o fato de que
ambos ignoram os pontos elencados no parágrafo anterior e terminam por reduzir uma
série à outra. Cf. garret, 1991; curley, 1999.

72 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ESSENCE AND EXISTENCE: TWO ORDERS OF CAUSALITY,
DEDUCTION OF FINITE MODES AND FREEDOM
IN SPINOZA’S PHILOSOPHY

abstract: This article aims to analyze the possibility of conciliation between


determination and freedom in Spinoza. Thus, the article will begin by dealing
with the two causal series indicated by Spinoza in §100 of the tie: the “series
of fixed and eternal things” and the “series of mutable particular things”. The
approach of these two causal series allows to understand what distinguish-
es them and the implications of this distinction for Spinoza’s philosophy. In
sequence, the notions of objective essence and formal essence will be analyzed,
showing that eiip7 deals with the adequacy between these two essences, and
not an adequacy between essence and existence. At this point, it will also be
shown that the type of causality that is at stake in eiip7 and eiip8 is an imma-
nent causality, of the whole-part type, which takes place between the set and
its subsets: to be a part is to be a subset of God. Next, it will be shown that
within the scope of the existence of the subsets — and not within the scope of
their essence — it is possible to occur relative autonomy between peers, pro-
vided that this autonomy is conceived as subordinate to the previous sets. At
this point, it will also be shown to what extent finite modes can be deduced
from the infinite substance without this implying the denial of its freedom.
keywords: Essence; Existence; Causality; Determination; Freedom.

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74 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


O COGITO COMO O ENCONTRO ENTRE PENSAR E SER

Marcos Alexandre Borges


Professor, Universidade Estadual de Roraima, Boa Vista, Brasil
marcos.borges@uerr.edu.br

resumo: O presente artigo visa investigar se a afirmação eu sou, eu existo, pre-


sente no quarto parágrafo da Segunda Meditação, expressa única e exclusiva-
mente uma existência, ou se é a expressão, também, do conhecimento sobre o
que é o Eu que se descobre existente. Para tanto, além dos textos cartesianos,
serão abordadas algumas linhas interpretativas que se ocupam desta questão,
sobretudo as teses de Alquié, Frankfurt e Marion. A partir da discussão reali-
zada, pretende-se defender que o eu sou, eu existo expressa, concomitantemen-
te, o conhecimento da existência do Eu e o conhecimento de que o Eu existe
como ser pensante.
palavras-chave: Descartes; Meditações; Metafísica; Cogito; Conhecimen-
to; Existência.

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 75


1. configuração do problema

A proposição “Eu sou, eu existo”, a que chamaremos aqui livremente de


cogito, aparece no parágrafo quarto da Meditação Segunda, é a primeira pro-
posição que sobrevive à dúvida e, assim, pode servir como uma prova de que
é possível alcançar verdades indubitáveis, conhecimentos firmes e constantes
(descartes, 1996, at vii, p. 17; ix, p. 13).1 Esta pode ser a razão pela qual o
filósofo escreve, no Discurso do Método, que o cogito é o “[...] primeiro princí-
pio da filosofia que [ele] procurava” (descartes, 1996, at vi, p. 32). O cogito
é o primeiro princípio e a primeira verdade do sistema cartesiano, é a verdade
sobre a existência do Eu que, nesta meditação, se descobre como um ser pen-
sante. O cogito encerra uma etapa do caminho dubitativo, e a partir dele o Eu
se encontra em uma nova situação: no lugar de duvidar, o que predomina ao
longo da Meditação Primeira, o Eu pode considerar algo como verdadeiro, a
sua própria existência. Como o conhecimento da existência do Eu é o único
que pode ser admitido com a descoberta do cogito, é sobre esse conhecimento
que o sujeito meditante irá se debruçar.

Mas não conheço, ainda, bastante claramente o que sou, eu que estou
certo de que sou; de sorte que, doravante, é preciso que eu atente com
todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por
mim, e assim para não me equivocar neste conhecimento que afirmo
ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora (des-
cartes, 1996, at vii, p. 25; ix, pp. 19-20).

1 No parágrafo que inaugura a Meditação Primeira Descartes anuncia a necessidade


de se desfazer de todas as antigas opiniões como uma condição para a refundação do
conhecimento e o estabelecimento de algo “firme e constante nas ciências”. Sendo indubitável
a proposição “eu sou, eu existo”, temos com ela a prova de que é possível a descoberta de
algo firme e constante nas ciências. As citações das obras de Descartes serão segundo a
edição de Charles Adam e Paul Tannery, OEuvres de Descartes, indicada pelas iniciais at,
número do volume em numerais romanos e número de páginas em numerais arábicos. As
traduções para o português das Meditações, e Objeções e Respostas foram retiradas da edição
descartes (2010). Quanto aos demais textos que não foram traduzidos para o português,
fizemos nossa própria tradução.

76 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Essa passagem, o parágrafo quinto da Meditação Segunda, é o que se segue
imediatamente da afirmação do cogito, é o que provoca o principal questiona-
mento que move o presente artigo. Para os propósitos deste texto, destacamos
dois pontos deste parágrafo: em primeiro lugar, ele expressa a limitação do
conhecimento adquirido pela primeira verdade que acaba de ser descoberta:
“Mas não conheço ainda bastante claramente o que sou”; em segundo lugar,
também enfatiza aquilo que através do cogito é conhecido: “eu que estou certo
de que sou”. Esta passagem indica que o cogito, como aparece no quarto pará-
grafo da Meditação Segunda, contém a verdade sobre a existência do Eu. O
que traz à tona uma pergunta: ao afirmar “Eu sou, eu existo”, na Meditação
Segunda, o conhecimento da existência do Eu ocorre independentemente do
pensamento? O cogito das Meditações seria tão somente a afirmação da exis-
tência do Eu, sem qualquer relação com o pensamento? Seria essa passagem o
anúncio de que o parágrafo anterior continha exclusivamente a descoberta de
uma existência, e que a partir de então será necessário buscar o conhecimento
sobre o que é este que se descobre existente?
Ferdinand Alquié, Harry G. Frankfurt e Jean-Luc Marion responderiam
essas questões de maneira afirmativa. Em termos gerais, estes comentadores
defendem haver uma diferença entre o sentido do cogito do Discurso e o sen-
tido do cogito das Meditações.2 Com isso, entendem que nesta obra, por ser

2 O que Descartes apresenta no Discurso do Método e nos Princípios da Filosofia como


“penso, logo existo” (descartes, 1996, at vi, p. 32; e at ix, p. 27) é apresentado de forma
diferente nas Meditações: “eu sou, eu existo”. E tanto a formulação constante no Discurso
e nos Princípios quanto a constante nas Meditações são tradicionalmente sintetizadas pelo
termo cogito, o que será seguido neste artigo. Não pretendemos explorar amplamente o
problema da diferença entre a formulação do cogito do Discurso e dos Princípios e a das
Meditações, mas não deixaremos de pontuar que entendemos que ambas as formulações
da primeira verdade da filosofia de Descartes têm o mesmo sentido em ambas as obras. O
próprio Descartes, nas Respostas às Segundas Objeções, ao responder a uma objeção sobre
o que chamamos aqui de “cogito das Meditações”, se refere à proposição que expressa sua
primeira verdade na forma como esta aparece no Discurso: “Penso, logo sou, ou existo”
(descartes, 1996, at ix, pp. 110-1). Sobre as distintas interpretações a respeito da

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 77


expresso através da proposição “Eu sou, eu existo”, há somente a expressão da
existência do Eu, de forma independente do pensamento, visto tratar-se exclu-
sivamente da afirmação de uma existência, a existência de um ser, não de algo a
respeito do que já se pode saber alguma coisa.

Alquié, por exemplo, entende que o Discurso tem um viés científico e, por
isso, nele o cogito exerce uma “função” que está de acordo com as pretensões
da obra, é um modelo de verdade a ser seguido. Este comentador alerta que
nas Meditações não é o cogito que conduz ao sum, afirmado primeiramente,
pois nessa obra a expressão empregada é: Ego sum, ego existo. Como se trata da
afirmação de um Ser, uma existência, segundo este comentador, o cogito, nas
Meditações, não traz a existência de algo compreendido. No “Eu sou, eu existo”
não há a compreensão sobre o Eu que se constata como existente e, assim, este
Eu é conduzido a uma incompreensibilidade sobre o que ele é. Como conse-
quência, Alquié conclui que no “Eu sou, eu existo” das Meditações há a consta-
tação da existência de algo indeterminado (alquié, 1950, p. 183).

Não muito diferente é a interpretação de Frankfurt, ao defender a tese


segundo a qual o “penso, logo existo” do Discurso não equivale ao “Eu sou, eu
existo” das Meditações. O primeiro, de acordo com este comentador, consiste
em um enunciado de implicação lógica elementar, pois simplesmente liga a
existência ao pensamento; enquanto o segundo é tão somente uma afirmação
de existência (frankfurt, 1989, p. 135). Ao comentar o cogito das Meditações,
Frankfurt afirma que, ao afirmar “Eu existo”, Descartes não sabe ainda o sig-
nificado do termo “Eu”, mesmo com a prova da certeza do sum. Deste modo,
temos novamente a tese de que a afirmação do sum da Meditação Segunda, a
afirmação “Eu existo”, não é uma afirmação sobre a existência de algo a respeito
do que se tenha algum conhecimento. O Eu afirmado, nas palavras de Frank-
furt, não é muito mais que “alguma coisa”. Ou seja, segundo esta interpretação
o cogito das Meditações é a consciência de uma existência sobre a qual pouco se

diferença entre tais formulações do cogito, ver alquié (2005. pp. 129-58) e forlin (2004).

78 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


sabe; o que leva Frankfurt a uma conclusão que parece acompanhar aquela de
Alquié: o “Eu sou, eu existo” é a consciência da existência de uma coisa inde-
terminada.

Jean-Luc Marion, de certa maneira, também segue esta linha interpretati-


va, e entende que nas Meditações a existência do Eu não é constatada a partir
de sua relação com o pensamento. Em Questions cartésiennes ii, Marion argu-
menta que, enquanto o “penso, logo existo” é a formulação privilegiada pelos
comentadores, a formulação privilegiada por Descartes é “Eu sou, eu existo”,
aquela que se encontra presente nas Meditações. Ele afirma que há uma tendên-
cia, a seu ver equivocada, em assimilar o sentido da proposição que expressa
a existência do Eu no Discurso e nos Princípios ao sentido da proposição pre-
sente nas Meditações. Segundo Marion, nesta obra, a existência do Eu não é
a conclusão de um silogismo, não é uma performance autônoma, nem uma
autoafecção, e tampouco uma intuição. Deste modo, não se trataria da existên-
cia que decorre de um pensamento, ou do pensamento em si. De acordo com
Marion, a existência do Eu se dá de modo originário, consiste no que o comen-
tador chama de uma facticidade, que traz à tona a existência de um Eu ainda
indeterminado (marion, 2002, p. 29).

O que pretendemos discutir no presente artigo é a tese segundo a qual a


descoberta do cogito, no parágrafo quarto das Meditações, se dá de forma inde-
pendente do pensamento; se o cogito é única e exclusivamente a expressão de
uma existência. E, então, perguntamos: Seria o quinto parágrafo da Medita-
ção Segunda a confirmação da tese que esses importantes intérpretes do pen-
samento cartesiano parecem comungar? Ao afirmar “[...] não conheço ainda
bastante claramente o que sou, eu que estou certo de que sou” (descartes,
1996, at vii, p. 25; ix, pp. 19-20), estaria Descartes confirmando que a certe-
za sobre a existência do Eu é, nas Meditações, inteiramente independente do
pensar? Seria o “Eu sou, eu existo” das Meditações uma verdade tão puramente
existencial e, consequentemente, desprovida de qualquer relação com o pen-
samento?

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 79


2. a descoberta do cogito

No mesmo parágrafo que contém o cogito, logo antes da afirmação eu sou,


eu existo, propriamente, Descartes escreve o seguinte:

Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso
que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois,
dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane,
não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser
alguma coisa (descartes, 1996, at vii, p. 25; ix, p. 19).

Esta passagem expressa bem a importância da terceira etapa da dúvida


como o último passo da caminhada empreendida na Meditação Primeira.
Aqui é expressa a situação do sujeito após este percurso: “há algum, não sei
qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso”, que pode ser um Deus engana-
dor ou um gênio maligno, tanto um quanto o outro mantêm o sujeito medi-
tante na mesma situação: nada pode ser admitido como verdadeiro. Porém,
ainda que tudo seja dubitável, ainda que o sujeito meditante esteja inserido em
uma situação na qual ele só se engana, ele diz: “Não há, pois, dúvida alguma de
que sou”. Se o sujeito lança mão da dúvida para encontrar algo verdadeiro; se só
será considerado verdadeiro o que sobreviver a toda e qualquer dúvida; e se o
sujeito afirma que não há dúvida alguma sobre algo, significa que foi encontra-
do o que se buscava: algo sobre o que não haja nenhuma dúvida, algo indubi-
tável. O que é este algo que aparece como indubitável? Esta passagem é muito
clara: não há dúvida alguma de que sou, afirma o sujeito meditante.
Mesmo na situação em que o sujeito está imerso na dúvida mais radical,
universal e metafísica; mesmo que tudo seja dubitável, incerto, enganoso, o
sujeito meditante encontra algo sobre o que não pode duvidar: não lhe é per-
mitido duvidar de seu próprio ser, de sua existência. Até aqui, parece que pode-
mos dar razão aos comentadores que comungam da tese segundo a qual o eu
sou, eu existo, no parágrafo quatro da Meditação Segunda, expressa exclusiva-
mente uma existência.

80 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Mas é preciso perguntar: o que impede o sujeito meditante de duvidar de
seu ser, de sua existência? Por mais que se engane, por mais que um Deus enga-
nador, um gênio maligno, ou a ausência de um ser como garantia de verdade,
faça com que o sujeito meditante tenha que duvidar de tudo, “Não há, pois,
dúvida alguma de que sou, se ele me engana”. Os termos “se ele me engana”
servem para tornar presente a situação hipotética criada pela terceira etapa da
dúvida. Qual é essa situação? É a hipótese de que o criador de todas as coisas é
um Deus enganador ou um Gênio maligno. Nesta situação, o engano é colo-
cado como a condição para a indubitabilidade da afirmação “Eu sou”. O que é
se enganar senão pensar que as coisas são de um modo diferente de como elas
são? Por mais que o sujeito meditante pense que as coisas são de um modo, e
na realidade sejam de outro; por mais que o sujeito meditante pense que exis-
tam coisas e elas sequer existam; é indubitável que o sujeito meditante é, se ele
pensa alguma coisa. Ainda que seu pensamento seja um engano, não há enga-
no de que o sujeito se engana, é indubitável que o sujeito se engana. E como
enganar-se é pensar que as coisas são de um modo diferente de como elas são, o
sujeito não pode duvidar de sua existência se ele pensar ser algo.
O fim da passagem acima citada deixa isso ainda mais claro: “e, por mais
que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu
pensar ser alguma coisa”. Mas este pensar ser alguma coisa não pode também ser
um engano? O sujeito meditante não pode estar se enganando, inclusive, ao
pensar ser algo? Nem mesmo a dúvida mais universal, metafísica e radical per-
mite que o Eu se engane ao afirmar sua própria existência. Pois ao pensar que
se engana, mesmo sobre seu próprio ser, o Eu confirma a verdade de sua exis-
tência, confirma a verdade da proposição “Eu sou”, uma vez que para pensar é
necessário que o sujeito meditante seja, exista (descartes, 1996, at vi, p. 33).
A proposição que consolida a chegada do sujeito meditante à primeira ver-
dade vem na sequência da passagem acima citada:

De sorte que, após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuida-
dosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante
que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 81


as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito (descartes,
1996, at vii, p. 25; ix, p. 19).

Eis a passagem que contém aquilo que é celebrado como a primeira verda-
de do sistema cartesiano. A primeira verdade, por ser a afirmação que sobrevi-
ve à dúvida mais radical e abrangente possível, é expressa, nas Meditações, pela
proposição “Eu sou, eu existo”. O cogito é a constatação indubitável da exis-
tência do Eu, é o conhecimento sobre uma existência: a existência do próprio
sujeito da dúvida.
Mas que tipo de conhecimento é o cogito? Como o Eu chega à constatação
indubitável de sua própria existência? Como a passagem analisada anterior-
mente deixa claro, é por pensar que o sujeito meditante chega à constatação:
“Eu sou, eu existo”. Se é o pensar a condição do conhecimento da existência do
sujeito meditante, ou seja, se é por pensar que o sujeito se dá conta de que é,
ou existe, poder-se-ia dizer que a proposição “Eu sou, eu existo” é a consequên-
cia de um raciocínio do tipo: “Se duvido, penso; se penso, sou ou existo; pen-
so; logo, eu sou, eu existo”? O cogito é expresso pelo enunciado “Penso, logo
existo” no Discurso do Método e nos Princípios da Filosofia. Considerando que
assumimos aqui que nas Meditações o cogito tem o mesmo sentido daquele das
obras mencionadas, apesar de ser expresso de forma diferente3, podemos con-
cluir que o conhecimento da existência do Eu é obtido através de um raciocí-
nio, do qual este conhecimento é conclusão?

Martial Gueroult explica que o cogito não é um raciocínio por ser uma afir-
mação particular, independente de alguma premissa que a anteceda. Para Gue-
roult, o cogito é a expressão proposicional imediata de um dado, de um fato, a
saber, a consciência de si. Como é um fato que ocorre durante a reflexão que
o Eu faz sobre seus pensamentos, é uma constatação, a constatação da existên-

3 Ver nota anterior.

82 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


cia do Eu. E acrescentamos: é uma constatação necessária, e essa necessidade é
confirmada pelo ato de pensar: por pensar, por isso é impossível ao Eu não ser.
Ao duvidar de todas as coisas, e mesmo da própria existência, o sujeito medi-
tante pensa e, se pensa, é, necessariamente, como confirma a passagem: “[...]
esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas
as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito” (descartes, at
vii, p. 25; ix, p. 19, negrito nosso).

Embora a dúvida elimine as condições de existência de algo, o sujeito


meditante não pode deixar de estar certo de sua própria existência, ao menos
enquanto pensa e, assim, o cogito se constitui como a primeira coisa que resiste
à dúvida. Por aparecer ao serem eliminadas todas as condições de existência, o
cogito é a constatação primeira e, por ser assim, é manifesto sem qualquer ante-
cedente. Nesse sentido, é a primeira verdade e o ponto de partida da filosofia
de Descartes.

Outro fator importante para que o cogito não seja considerado um racio-
cínio é que a terceira etapa da dúvida atinge o funcionamento da razão e, com
isso, o próprio raciocínio passa a ser considerado dubitável.4 Ou seja, o cogito

4 O argumento do Deus enganador torna o raciocínio dubitável pelo caráter hiperbólico


da dúvida, e determina o seguinte: “[...] uma vez que a razão já me persuade de que não devo
menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas
e indubitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo
de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas”
(descartes, at vii, p. 18; ix, pp. 13-14, negrito nosso). Esse critério pode ser identificado
na Meditação Primeira, nos três argumentos da dúvida: o primeiro argumento torna os
sentidos dubitáveis a partir de alguns casos, ou ao menos um, em que houve engano ao
utilizar os sentidos; o segundo argumento torna a existência dos corpos dubitável a partir
de alguns casos, ou ao menos um, em que houve engano em diferenciar o sono da vigília;
da mesma maneira, no terceiro argumento há essa generalização, se existe a possibilidade
de, em algum caso, haver engano ao fazer uma operação racional, e se a figura do Deus
enganador torna essa possibilidade existente, não se deve confiar em nenhuma operação
dessa natureza, pois, se há ao menos um motivo para considerar dubitável a operação
racional 2+3=5, toda e qualquer operação racional deve ser considerada dubitável, pois

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 83


é a constatação de uma existência, e não um raciocínio, pois, a partir da ins-
tauração da terceira etapa da dúvida, o raciocínio não pode ser considerado
como uma operação pela qual o sujeito obtém conhecimentos confiáveis. Se o
raciocínio não é uma fonte segura de conhecimento, nada que o tenha como
base pode ser considerado verdadeiro. Portanto, se o cogito aparece como uma
verdade, não pode se fundar em uma operação desta natureza, deve ser inde-
pendente de uma operação que foi fragilizada pela dúvida.

Além dos fatores acima mencionados, há uma passagem das Segundas Res-
postas em que Descartes afirma expressamente ser um erro considerar o cogito
como a conclusão de um silogismo, o que, segundo entendemos, corrobora a
tese de que o cogito não é um raciocínio:

[...] quando alguém diz: Penso, logo sou, ou existo, ele não conclui sua
existência de seu pensamento como pela força de um silogismo, mas
como uma coisa conhecida por si; ele a vê por simples inspeção do
espírito. Como se evidencia do fato de que, se a deduzisse por meio do
silogismo, deveria antes conhecer essa premissa maior: Tudo o que pen-
sa é ou existe. Mas, ao contrário, esta lhe é ensinada por ele sentir em si
próprio que não pode se dar que ele pense, caso não exista (descartes,
1996, at vii, p. 140; ix, pp. 110-111).

O cogito é uma descoberta, uma constatação, ele é “visto”, percebido pelo


sujeito meditante. Uma percepção imediata, sem precedentes, até porque a
dúvida eliminou todos os precedentes possíveis para que algo pudesse ser leva-
do em conta. O cogito aparece como uma primeira verdade, e assim é percebido
através de uma “inspeção do espírito”. Jean Laporte adverte que

“o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas”.

84 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


A tradução francesa das Respostas às Objeções usa da expressão inspection
de l’esprit5 para designar a consciência imediata que o espírito tem dele
mesmo no Cogito, e que o texto original latino usa os termos simplex
mentis intuitus (laporte, 1945, p. 65).

Em seguida, esse comentador conclui que a inspeção do espírito equivale à


intuitus mentis. Ou seja, o cogito não é o resultado de um raciocínio, tampouco
a conclusão de um silogismo, mas uma intuição do espírito. Na terceira de suas
Regras para a direção do espírito Descartes define a intuição como

[...] o conceito que a inteligência pura e atenta forma com tanta faci-
lidade e clareza que não fica absolutamente nenhuma dúvida sobre o
que compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito que
a inteligência pura e atenta forma, sem dúvida possível, conceito que
nasce apenas da luz da razão e cuja certeza é maior, por causa de sua
maior simplicidade (descartes, 1996, at x, p. 368).

Esta definição destaca o caráter indubitável da intuição, operação mental


pela qual o sujeito forma conceitos com clareza e distinção, condições neces-
sárias para que algo seja considerado verdadeiro.6 Não pretendemos aqui
aprofundar a discussão sobre a noção cartesiana de verdade, mas destacar a

5 “Simples intuição do espírito”.


6 No segundo parágrafo da Meditação Terceira, Descartes escreve que a clareza e a
distinção são os conceitos que constituem o critério de verdade (descartes, 1996, at
vii, p. 35; ix, p. 27). No artigo 45 da Primeira parte dos Princípios da Filosofia, Descartes
define clareza e distinção nos seguintes termos: “Clara chamo àquela [percepção] que está
manifestamente presente a uma mente atenta, assim como dizemos que são claramente
vistas por nós as [coisas] que, presentes a um olho que enxerga, movem-no de maneira
suficientemente forte e manifesta. Distinta, porém, é aquela que, além de ser clara, é tão
precisamente separada das outras que absolutamente nada mais contém em si além do que
é claro” (descartes, 1996, ix, p. 44).

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 85


relação do cogito com o conceito cartesiano de intuição. Se o cogito é o que
aparece como verdadeiro exatamente no momento em que a dúvida exer-
ce a sua maior força e abrangência, é porque se trata de uma intuição a res-
peito da qual “não fica absolutamente nenhuma dúvida sobre o que compre-
endemos”; se o cogito aparece como verdadeiro e indubitável exatamente no
momento em que está instaurada a dúvida universal, ou seja, no momento
em que é possível duvidar de tudo, é porque se trata de um “conceito que a
inteligência pura e atenta forma, sem dúvida possível”. A sequência do texto
das Regras, ao distinguir dedução de intuição, deixa ainda mais claro o sig-
nificado desta, assim como corrobora a compreensão do cogito como uma
intuição:

[...] distinguimos a intuição intelectual da dedução certa pelo fato de


que, nesta, concebe-se uma espécie de movimento ou de sucessão, ao
passo que naquela não se dá o mesmo; ademais, a dedução não requer,
como a intuição, uma evidência atual, mas, ao contrário, extrai de certa
maneira sua certeza da memória (descartes, 1996, at x, p. 370).

Ou seja, a intuição intelectual não é uma operação que envolve um encade-


amento de ideias, de noções, para construir um conceito, mas um dar-se conta
imediato, uma percepção, uma “evidência atual” que, por ser assim, ocorre no
momento do contato do sujeito com a coisa percebida.

O cogito não é a conclusão de um raciocínio dedutivo, não é a consequên-


cia de um movimento sucessivo, mas possui uma evidência atual, na medida
em que o sujeito está certo de sua verdade enquanto pensa, e o ato de pensar, a
manifestação do pensamento, é o que garante a indubitabilidade do cogito e a
sua afirmação. “Eu sou, eu existo” é intuído pelo sujeito meditante através de
uma inspeção do espírito, através de uma intuição intelectual, que traz à tona a
verdade sobre a existência do pensamento como sujeito de tal intuição. E esta
verdade é a própria expressão deste sujeito, é a própria manifestação atual de
um ser, o ser pensante. Nas palavras de Laporte: “Ela [o cogito] é uma noção

86 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


primeira e absoluta, porque é percebida independentemente de tudo o que
não é ela [...] e não pressupõe nada de outro antes dela” (1945, p, 17). Nada
pode ser pressuposto por conta da ação da dúvida. Nesse sentido, o cogito é
uma noção primeira, uma primeira verdade, adquirida pela percepção imedia-
ta de algo indubitável.

O sujeito meditante não se dá conta de seu próprio ser por uma dedução
ou por um silogismo, mas pela percepção imediata de sua existência, percep-
ção realizada pelo próprio ato de pensar, que torna o sujeito meditante ime-
diatamente consciente de que existe. Deste modo, de acordo com nossa inter-
pretação, o cogito não é a constatação da existência do Eu, ou de um Eu sobre
o qual nada se sabe, mas de um Eu que se descobre existente enquanto pensa;
que se descobre existente pensando; a constatação da existência do Eu ocorre
concomitantemente à constatação de seu pensamento. Deste modo, no cogito,
pensar e ser são o mesmo.

3. voltando ao parágrafo quinto

A afirmação da existência do Eu, no quarto parágrafo da Meditação Segun-


da, expressa uma relação necessária entre pensar e ser. Seria o parágrafo quinto
uma prova contrária dessa interpretação e uma confirmação da tese comparti-
lhada por Alquié, Frankfurt e Marion?

Em La Philosophie Première de Descartes, Jean-Marie Beyssade apresen-


ta elementos que parecem corroborar a compreensão segundo a qual o cogito
não consiste na expressão da existência de algo independente do pensamento.
Ao fazer seu comentário sobre o juízo “Eu sou”, Beyssade afirma: “Se a pri-
meira verdade, em metafísica, é constituída por uma afirmação de existência,
ela envolve já uma determinação de essência e não concerne a uma existência
nua” (beyssade, 1979, pp. 225-6). Parece-nos que este comentador está dizen-
do que o “Eu sou, eu existo” não enuncia a existência de uma coisa sobre a
qual não há qualquer conhecimento a respeito do que é essa coisa, ou seja, não

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 87


se trata de um existente desprovido de qualquer atributo. Segundo Beyssade,
para Descartes

[...] a afirmação de que eu sou envolve desde o início a afirmação de que


eu sou uma coisa que pensa, desde que existir e ser uma coisa são aqui
termos sinônimos, e desde que eu notei que pensava no momento mes-
mo em que afirmei minha existência (beyssade, 1979, p. 227).

Esses termos corroboram a posição aqui defendida: o pensar é afirmado


tal como o existir no parágrafo quarto da Meditação Segunda; o que não nos
permite concordar com a tese de que, no cogito, o que temos é a expressão de
uma existência a respeito da qual nada se sabe. Concordamos com Beyssade
quando este escreve que não se trata da afirmação de uma coisa indeterminada
ou incompreensível, mas da existência do Eu como ser pensante. Na linha do
que parece escrever Martial Gueroult, segundo o qual o cogito é constituído
por uma coincidência pontual entre o pensamento do sujeito e a sua existên-
cia. Nas palavras do comentador:

Por esta coincidência pontual entre meu pensamento e a existência –


reduzida a esta do sujeito –, é adquirido um conhecimento de validade
inabalável, ao mesmo tempo existencial, porque ele se remete imediata-
mente a uma existência dada, e intelectual, porque ele envolve imediata-
mente a atualização da relação necessária: ‘Para pensar, é preciso ser’,
que funda a indissolubilidade da ligação entre a existência e o pensam-
ento (gueroult, 1953, pp. 50-1).

Mas, vejamos novamente o que diz o quinto parágrafo da Meditação


Segunda:

Mas não conheço, ainda, bastante claramente o que sou, eu que estou cer-
to de que sou; de sorte que, doravante, é preciso que eu atente com todo
cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim, e
assim para não me equivocar neste conhecimento que afirmo ser mais cer-

88 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


to e mais evidente do que todos os que tive até agora (descartes, 1996,
at vii, p. 25; ix, pp. 19-20).

Como podemos conferir, nessa passagem não se afirma algo como “não
conheço absolutamente o que eu sou”, mas “[...] não conheço, ainda,
bastante claramente o que sou [...]” (descartes, 1996, at vii, p. 25;
ix, pp. 19-20, negritos nossos). O Eu está certo de sua existência na medida
em que pensa (e somente na medida em que pensa), mas ainda não sabe “bas-
tante claramente” se nada mais faz parte de seu ser além do pensamento. E é
isso o que torna necessária uma análise cuidadosa sobre o que é este Eu cons-
tatado como existente. Não há dúvidas de que o “Eu sou, eu existo” é uma
verdade existencial, que traz à tona fundamentalmente o conhecimento da
existência do Eu. Por isso, no parágrafo quinto, é dito: “[...] eu que estou cer-
to de que sou [...]” (descartes, 1996, at vii, p. 25; ix, pp. 19-20, negri-
to nosso); e não por acaso a formulação do cogito nas Meditações é: “Eu sou,
eu existo”. No entanto, entendemos que isso não faz com que o cogito expres-
se uma existência desprovida de qualquer conteúdo, uma existência vazia.
Se no cogito o Eu é afirmado como um Ser, se o “Eu sou, eu existo” é uma
afirmação que expressa uma existência, não é uma existência absolutamente
nua, para usar os termos de Beyssade, e sobre a qual não se sabe absolutamen-
te nada; não é a existência de “alguma coisa”, de algo indeterminado, mas de
algo que existe pensando e, claro, pensa existindo: trata-se da existência de um
pensamento.
O que Descartes anuncia no parágrafo quinto da Meditação Segun-
da é a necessidade de obter mais clareza sobre o conhecimento deste Eu
que acaba de ser constatado como existente. Uma vez que “não sei bas-
tante claramente o que sou”, faz-se necessário obter mais clareza sobre este
conhecimento, para “[...] não tomar imprudentemente alguma outra coi-
sa por mim, [...] para não me equivocar neste conhecimento que afirmo ser
mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora” (descar-
tes, 1996, at vii, p. 25; ix, pp. 19-20). Descartes não afirma desconhe-
cer absolutamente o Eu constatado como existente, mas que o conhecimen-
to sobre esse ente precisa ser esclarecido, ou seja, é preciso ater-se para não

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 89


atribuir à natureza do Eu alguma propriedade que ainda não lhe possa ser
atribuída.

Eis por que considerarei de novo o que acreditava ser, antes de me empen-
har nestes últimos pensamentos; e de minhas antigas opiniões suprimirei
tudo o que pode ser combatido pelas razões que aleguei há pouco, de sorte
que permaneça apenas precisamente o que é de todo indubitável (des-
cartes, 1996, at vii, p. 25; ix, p. 20).

Esta passagem, que dá início ao parágrafo sexto da Meditação Segunda,


indica que o parágrafo anterior desta Meditação, além de alertar para que não
se atribua à natureza do Eu algo que não lhe possa ser atribuído, contém a pre-
tensão de anunciar a necessidade de trazer mais luz sobre o que é a sua natu-
reza, e não de expressar o completo desconhecimento a esse respeito. A estra-
tégia de reconsiderar o que o sujeito acreditava ser antes da crítica do conhe-
cimento, feita pela dúvida, serve muito mais para trazer à tona o que antes
era conhecido sobre o Eu de modo impreciso, e esclarecer o que se pode dele
conhecer com precisão, indubitavelmente.7 Os parágrafos sexto e sétimo, ao
que nos parece, mostram isso.
As “antigas opiniões”, reconsideradas por Descartes no parágrafo seis da
Meditação Segunda, trazem a tradicional definição de homem como animal
racional. De acordo com o filósofo, esta definição não pode ainda ser levada
em conta, pois para que o pudesse

[...] seria necessário em seguida pesquisar o que é animal e o que é racion-


al e assim, de uma só questão, cairíamos insensivelmente numa infinidade

7 Lembrando que a dúvida continua em cena, o que permite ao sujeito meditante “suprimir
tudo o que pode ser combatido pelas razões alegadas há pouco” – as razões de duvidar – de
tal modo que somente o que não for atingido por essas razões poderá ser considerado, ou
seja, somente não será suprimido o que se mostrar indubitável.

90 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


de outras mais difíceis e embaraçosas [...] (descartes, 1996, at vii , p. 25;
ix, p. 20).

Em seguida, Descartes menciona características relacionadas ao corpo:


primeiro os membros “Considerava-me, inicialmente, como provido de ros-
to, mãos, [...]”; depois as capacidades: “Considerava, além disso, que me ali-
mentava, que caminhava, que sentia e que pensava e relacionava todas essas
ações à alma” (descartes, 1996, at vii, p. 26; ix, p. 20). Destacamos que
Descartes não menciona somente as características que serão suprimidas do
que pode ser considerado como pertencente ao Eu, pois o pensar é colocado
como uma das capacidades que fazem parte das chamadas “antigas opiniões”.
No entanto, qualquer propriedade que tenha alguma relação com o corpo
não pode ser mantida, mesmo o que tradicionalmente é relacionado à alma,
pois tampouco se sabe claramente, ainda, o que é a alma.

Mas eu, o que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extrema-
mente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas
as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me? (descartes, 1996, at
vii, p. 26; ix, p. 21).

Esta passagem, que inicia o parágrafo sete da Meditação Segunda, alerta


que o Deus Enganador continua em cena e, portanto, aquilo que o Eu disser de
qualquer pretenso conhecimento, para ser considerado verdadeiro, deve escapar
a tal argumento de dúvida. Além disso, mais uma vez é expressa a pergunta que
dá continuidade ao que é colocado no parágrafo quinto da Meditação Segun-
da. Se o Eu não conhece com bastante clareza o que é, faz-se necessário pergun-
tar-se a respeito disso. É nesse sétimo parágrafo que Descartes explicita ser o
pensar a natureza do Eu. Mas como isto é feito? Tendo já mencionado as “anti-
gas opiniões” que contêm respostas a tal questão, o filósofo reafirma a impossi-

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 91


bilidade de levar em conta tudo aquilo que diz respeito à natureza corpórea8, e
continua:

Passemos, pois, aos atributos da alma e vejamos se há alguns que exis-


tam em mim. Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é
verdade que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso
nem caminhar nem me alimentar. Um outro é sentir; mas não se pode
também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas
coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido
efetivamente (descartes, 1996, at vii, p. 27; ix, p. 21).

Como já afirmamos acima, Descartes recorre às antigas opiniões na aná-


lise que desenvolve sobre o Eu descoberto no cogito. Entre elas, estão atribu-
tos corporais, descartados imediatamente; mas também constam atributos
relacionados à alma. Vale ressaltar que alma, aqui, não tem ainda um sentido
cartesiano, mas aquele presente nas “antigas opiniões”, que têm uma origem
principalmente escolástica, de inspiração aristotélica. No De Anima Aristó-
teles define a alma como a

[...] forma do corpo natural que em potência tem vida. [...] é a primei-
ra atualidade do corpo natural orgânico. [...] é a substância segundo a
determinação, ou seja, o que é, para um corpo de tal tipo, ser o que é
(aristóteles, 2006, pp. 71-2).

Nesta perspectiva, a alma é a forma do corpo vivo, é aquilo que faz um


certo tipo de corpo ser de tal modo, por isso é a atualidade do corpo orgâni-

8 “Posso estar certo de possuir a menor de todas as coisas que atribuí há pouco à natureza
corpórea? Detenho-me em pensar nisto com atenção, passo e repasso todas essas coisas em
meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que exista em mim” (descartes,
1996, at vi, p. 26; ix, p. 21).

92 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


co; por isso é a substância segundo a determinação.9 Os atributos menciona-
dos por Descartes: alimentar-se, caminhar e sentir, não podem ser considera-
dos como pertencentes à natureza do Eu, tendo em vista que a dúvida ainda
está em cena e, com isso, a existência dos corpos é descartada.

Na sequência da análise dos atributos da alma, Descartes afirma: “Um


outro é pensar; e verifico aqui que o pensamento é um atributo que me per-
tence; só ele não pode ser separado de mim” (descartes, 1996, at vi, p. 27;
ix, p. 21). A pergunta que dá início ao parágrafo sete da Meditação Segunda
começa aqui a encontrar sua resposta. A busca de esclarecimento sobre o que
é o Eu que se constata como existente no cogito encontra o pensar como o
atributo que não pode ser descartado, que necessariamente faz parte da natu-
reza deste Eu.

Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o
tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse
de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito
agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando
precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um enten-
dimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteri-
ormente desconhecida (descartes, 1996, at vii, p. 27; ix, p. 21).

O início desta passagem se remete ao fim do parágrafo quarto da Medi-


tação Segunda no qual Descartes afirma: “[...] esta proposição, Eu sou, eu
existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a

9 No início do Livro ii de De Anima, Aristóteles explica que substância é um dos gêneros


dos seres, e possui três sentidos: “[...] primeiro, no sentido de matéria – que por si mesma
não é algo determinado –, e ainda no sentido de figura e forma – em virtude do que já se diz
que é algo determinado – e, por fim, no sentido do composto de ambas. A matéria, por sua
vez, é potência, ao passo que a forma é atualidade” (aristóteles, 2006, p. 70). A alma é
substância, para Aristóteles, no segundo sentido mencionado, enquanto forma, em virtude
daquilo que determina a realidade de algo.

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 93


concebo em meu espírito” (descartes, 1996, at vi, p. 25; ix, p. 19). Pare-
ce que aqui temos mais um elemento que corrobora a posição de que já no
parágrafo quatro da Meditação Segunda a existência do Eu é constatada na
sua relação com o pensar. Tal como mostra o parágrafo seis, e mesmo o iní-
cio do sete, não há qualquer outro atributo que possa ser considerado como
pertencente ao Eu, pois a dúvida, ao continuar em cena, não permite a admis-
são de quaisquer dos outros atributos mencionados nessas passagens. Embo-
ra ainda esteja exercendo sua força sobre o sujeito meditante, a dúvida não
pode impedi-lo de considerar o pensar como um atributo que lhe pertence;
o pensar não é atingido pela dúvida, o que já ocorre na afirmação primeira do
cogito.
Com isso temos o seguinte: a mesma condição que no parágrafo quarto
da Meditação Segunda faz com que o Eu conheça indubitavelmente sua exis-
tência é a condição a partir da qual o Eu conhece, indubitavelmente, no pará-
grafo sétimo desta Meditação, sua única natureza. O pensar é a condição do
conhecimento da existência do Eu, bem como a condição do conhecimento
de que o Eu é um ser cuja natureza consiste somente em pensar. Considerar o
Eu como uma coisa que pensa não é considerá-lo como uma coisa que, entre
outras propriedades, possui o pensar, mas que esse Eu é tão somente pensa-
mento; o ser do Eu afirmado no cogito é pensamento.

O Eu se constata como ser pensante no parágrafo quatro da Meditação


Segunda, mas ainda não sabe “bastante claramente” se não há algum outro
atributo que faça parte de seu ser. Os parágrafos seguintes têm a função de
analisar o que pode e o que não pode ser atribuído ao ser pensante, ou seja,
os parágrafos subsequentes ao parágrafo do cogito visam trazer mais clareza
sobre o conhecimento a respeito do ser pensante constatado no cogito. Após
esta análise, é possível “falar precisamente” que o Eu constatado como exis-
tente no cogito não é mais que uma “coisa que pensa”. O pensamento já é
conhecido como pertencente ao Eu no cogito, no parágrafo quatro da Medi-
tação Segunda, mas só é conhecido como o único atributo que pode ser
considerado como pertencente à natureza do Eu no sétimo parágrafo desta

94 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Meditação (beyssade, 1979, p. 227), em que aparece a definição do Eu como
coisa que pensa.
Diante dessa análise, consideramos que ao ser enunciado no parágrafo
quarto da Meditação Segunda o cogito expressa não somente uma existên-
cia vazia, nua, indeterminada. Entendemos que não se trata da descoberta de
uma existência, “somente”, mas da existência de algo que se descobre existente
enquanto pensa. E assim o é pelo fato de o pensar ser a própria condição da
descoberta da existência envolvida no cogito. Apesar de o cogito das Medita-
ções ser enunciado como eu sou, eu existo, não se segue que ele expresse única e
exclusivamente uma existência, mas a existência do Eu que se descobre pensan-
do. O cogito é o encontro entre pensar e ser.

Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 95


THE COGITO AS THE LINK BETWEEN THINKING AND BEING

abstract: This paper aims to investigate whether the statement “I am, I


exist”, present in the fourth paragraph of the Second Meditation, expresses only
and exclusively an existence, or whether it is also an expression of knowledge
about what is the Self that discovers its own existence. For this purpose, in
addition to Cartesian texts, some lines of interpretation dealing with this issue
are herein addressed, especially the standpoints of Alquié, Frankfurt and Mar-
ion. As a result of the discussion carried out, the intention in this paper is to
defend that the I am, I exist expresses, at the same time, the knowledge of the
existence of the Self, and the knowledge that the Self exists as a thinking being.
keywords: Descartes; Meditations; Metaphysics; Cogito; Knowledge; Exis-
tence.

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Marcos Alexandre Borges p. 75 - 97 97


O ESTADO ENTRE A HISTÓRIA E A ETERNIDADE

Albano Pina
Doutor, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal
afalcaopina@gmail.com

resumo: A dissolução (ou morte) estatal é uma preocupação comum a todos


os autores contratualistas. Na sua maioria, eles consideram o estado um corpo
mortal que, bem ou mal constituído, está inevitavelmente condenando a dis-
solver-se. E quanto a Espinosa? Acaso pensa o autor que o corpo político, tal
como o corpo humano, tem uma morte certa, inevitável; ou julga, pelo con-
trário, que o estado pode ser eterno? Esta é a questão a que aqui se procura res-
ponder, analisando, para isso, várias passagens dispersas do Tratado Teológico-
-Político e do Tratado Político em que o assunto é (direta ou indiretamente) tra-
tado. Da interpretação que apresentamos, deverá resultar claro que o problema
da morte estatal não tem apenas um interesse teórico, mas está relacionada
com aqueles que são, para Espinosa, os limites práticos da ciência política.
palavras-chave: Espinosa; eternidade; morte; indivíduo; revolução; reno-
vação.

Albano Pina p. 99 - 125 99


a insolubilidade da civitas

A problemática da dissolução (ou morte) estatal aflora amiúde no tra-


tado teológico-político e no tratado político1, recebendo aí um tra-
tamento que, embora disperso e indireto, é de sumo interesse para entender
o alcance da ciência política espinosana. Espinosa, diga-se, não foi o único a
abordar o referido problema. Trata-se duma preocupação comum a todos os
autores contratualistas, os quais, na sua maioria, consideram o estado um cor-
po mortal que, bem ou mal constituído, está inevitavelmente condenado à dis-
solução.2 E quanto a Espinosa? Acaso pensa o filósofo que o corpo político, tal
como o corpo humano, tem uma morte certa, inevitável; ou julga, pelo con-
trário, que o estado pode ser eterno? A resposta, como se procurará eviden-
ciar, depende do que entendermos, a rigor, por “estado”. Se com este termo nos
referirmos à sociedade politicamente organizada, é lícito afirmar que o estado,
para Espinosa, nunca “morre”. A confirmá-lo estão os dois primeiros parágra-
fos de tp, vi:

[...] os homens desejam por natureza o estado civil, não podendo aconte-
cer que eles alguma vez o dissolvam por completo (espinosa, 2012, tp, vi,
1, p.115, it. nosso).

Das discórdias e revoltas que muitas vezes são provocadas na cidade


[Civitate], nunca resulta, portanto, que os cidadãos a dissolvam (como nas
restantes sociedades acontece muitas vezes); mudam-lhe, sim, a forma
por uma outra [ejusdem formam in aliam mutent], se as contendas não
puderem ser acalmadas mantendo a face da cidade [Civitatis facie] (espi-
nosa, 2012, tp, vi, 2, p. 115, it. nosso).

1 Doravante referidos, respectivamente, como ttp e tp.


2 Vide hobbes (1996, xxix); locke (2007, xix); rousseau (2010, iii, 11).

100 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Temos, pois, de um lado, a Civitas, que é o nome que Espinosa dá à socie-
dade política; do outro, a facies civitatis, que consiste na forma particular que
essa sociedade assume. Enquanto a Civitas é produto da tendência natural dos
homens para a associação, apresentando-se, por isso, como um fato constante
e indestrutível, a facies civitatis é produto da contingência histórica, podendo
mudar ao longo do tempo. Ora, se a Civitas tem uma consistência própria,
independente da forma específica que reveste em dado período, então a queda
do estado, ao contrário do que pensavam Hobbes e Locke, não conduz neces-
sariamente à anarquia. Para os referidos autores, lembremos, as sociedades cor-
riam o permanente risco de se dissolver ou desagregar numa multidão de indi-
víduos isolados. Ou seja, no seu entender, o regresso ao estado de natureza era
uma possibilidade real que devia a todo o custo evitar-se. Ora, no contexto da
filosofia espinosana, onde o homem é inconcebível fora da rede de relações
que o constitui, e onde a existência social é cooriginária à existência individu-
al3, tal hipótese não faz qualquer sentido. Mesmo em alturas de grande confli-
tualidade, os indivíduos, segundo Espinosa, permanecem indissoluvelmente
unidos por um fundo comum. Falamos, claro está, dos jura communia4, que

3 Espinosa atribui ao conceito de indivíduo um sentido muito específico, diferente


daquele que assumia no quadro do chamado “individualismo possessivo” (macpherson,
1962). Para filósofos como Hobbes e Locke, os indivíduos eram os átomos indivisíveis
de cujo congraçamento nascia a sociedade. Antes de essas partículas firmarem acordos
entre si, não havia nenhum gênero de vínculo a uni-las. Espinosa, por seu lado, concebe o
individuum como um composto de partes (espinosa, 2020, e ii p 13 Def, p. 163) que se
integra, ele próprio, noutros individua mais complexos (espinosa, 2020, e ii p 13 Lem
vii Sch, p. 165). Ou seja, na perspectiva espinosana, o indivíduo é um “ser singular plural”
– na formulação de J-L. Nancy (1996) –, que já se encontra sempre, à partida, envolvido
em relações complexas com outros indivíduos, pelo que reduzi-lo a mero “corpúsculo
de sobrevivência” – ou “de interesse” – redundaria em esvaziá-lo da sua consistência
ontológica.
4 “[...] o direito natural do homem, enquanto é determinado pela potência de cada um e
é de cada um, é nulo e consiste mais numa opinião que numa realidade, porquanto não há
nenhuma garantia de o manter. [...] o direito de natureza, que é próprio do género humano,
dificilmente pode conceber-se a não ser onde os homens têm direitos comuns [ubi homines
jura habent communia] e podem, juntos, reivindicar para si terras que possam habitar e

Albano Pina p. 99 - 125 101


existem onde quer que existam dois ou mais homens, e que são como que o
substrato inalterável das mudanças formais da Civitas.
Nesta permanência através da mudança, o corpo político assemelha-se ao
corpo humano:

Não ouso, de fato, negar que o corpo humano, mantendo embora a cir-
culação sanguínea e outras coisas em virtude das quais se considera que
o corpo vive, possa, não obstante, transformar-se numa outra natureza
totalmente diferente da sua [in aliam naturam a sua prorsus diversam
mutari]. Nenhuma razão, com efeito, me obriga a sustentar que o corpo
não morre a não ser que se converta em cadáver [...] (espinosa, 2020, e
iv p39 esc, p. 298, it. nosso).

Ou seja, no parecer de Espinosa, a “morte” corporal pode dar-se pela sim-


ples transformação, sem que haja, forçosamente, decomposição cadavérica
(para ilustrar este ponto, o autor cita o conhecido exemplo do poeta amnési-
co5). Do mesmo modo, um estado pode “morrer”, isto é, “transformar-se nou-
tra natureza”, sem que isso implique a sua dissolução ou queda na anarquia.6
Inspirado pela teoria clássica da anacyclosis, Espinosa chega mesmo a defender
que os estados são, por essência, mutáveis, passando sucessivamente da demo-

cultivar, fortificar-se, repelir toda a força e viver segundo o parecer comum de todos eles”
(espinosa, 2012, tp, ii, 15, p. 86).
5 “Na verdade, acontece às vezes um homem sofrer tais transformações, que não é
fácil dizer que ainda é o mesmo, conforme eu ouvi contar de um certo poeta espanhol,
o qual tinha sido atingido por uma doença e, embora tivesse recuperado, ficou contudo
tão esquecido da sua vida passada, que não acreditava serem seus os contos e as tragédias
que havia escrito e poderia, sem dúvida, ser tido por uma criança adulta se também tivesse
esquecido a língua materna” (espinosa, 2020, e iv p39 esc, pp.298-299).
6 Foi Zourabichvili quem primeiro notou este paralelismo entre a transformação corporal
e a transformação política. Cf. zourabichvili, 2002, passim.

102 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


cracia à aristocracia, e da aristocracia à monarquia (tp, viii, 12, pp. 163-4). O
fato, porém, de tal evolução ser concebida como um “declínio” – do regime
“mais absoluto” (democracia) para o regime “menos absoluto” (monarquia)
– denota, da parte do autor, uma visão negativa quanto à mudança política.
Visão essa que, conforme veremos, está especialmente patente no final de ttp,
xviii, em que se examina a fundo o tópico da revolução.

o problema da revolução

É conhecido o choque produzido em Espinosa pelo linchamento dos


irmãos De Witt.7 Mas houve outro acontecimento sangrento que sobremanei-
ra o impressionou, e que, ao contrário do primeiro, aparece explicitamente tra-
tado na sua obra, a saber: a decapitação de Carlos i de Inglaterra, em 1649. Será
este evento que levará Espinosa, um republicano convicto, a criticar o regicídio
e toda a sorte de golpes revolucionários em geral. Tal crítica, notemo-lo desde
já, não tem cariz moral nem jurídico: do ponto de vista da lex naturae, as revo-
luções (ainda quando violentas) apresentam-se sempre “justas” ou “legítimas”,
quer dizer, apresentam-se sempre como expressão da dinâmica auto-afirmativa
dos conatus individuais. Se o filósofo toma uma posição “anti-revolucionária”,
é na verdade porque as revoluções, de regra, fracassam, acabando inadvertida-
mente por reproduzir, sob outro aspeto, os próprios males contra que se desen-
cadeiam. Eis como Espinosa põe o problema:

Aqui, porém, não posso deixar de frisar que [...] não é menos perigoso
afastar um monarca, ainda quando seja absolutamente evidente que ele
é um tirano. Porque um povo acostumado à autoridade do rei e só por ela
refreado desprezará e porá a ridículo uma autoridade inferior. Por isso,
se afasta um, ser-lhe-á necessário [...] eleger outro em lugar do anteri-
or, e este, mesmo que o não queira, será necessariamente um tirano. Com

7 Vide nadler, 2018, pp. 355-6.

Albano Pina p. 99 - 125 103


efeito, como é que ele pode olhar para as mãos de cidadãos manchadas
de sangue pelo assassínio de um rei, cidadãos que se vangloriam de um
parricídio como de uma boa ação que praticaram unicamente para que
lhe servisse a ele de exemplo? É evidente que, se quer ser rei e não recon-
hecer o povo como juiz dos reis e seu senhor, se não quer reinar precar-
iamente, tem de vingar a morte do seu antecessor e dar por sua vez um
exemplo, de modo a que o povo não ouse cometer de novo tal façanha.
Ser-lhe-á, porém, difícil vingar a morte do tirano com o assassínio de
cidadãos se, ao mesmo tempo, não fizer sua a causa daquele a quem
sucede, não aprovar os seus atos e não seguir, por conseguinte, todas
as suas pisadas. Daí que o povo tenha mudado tantas vezes de tirano, sem
nunca abolir a tirania nem substituir o Estado monárquico por um outro de
forma diferente [imperium monarchicum in aliud alterius formæ mutare].
(espinosa, 2004, ttp, xviii, pp. 368-9, it. nosso).

Dois são os fatores, segundo Espinosa, que determinam o fracasso do


tiranicídio, ambos de ordem psicológica ou afetiva: 1) o apego popular à
forma habitual de autoridade e 2) o terror inspirado pela morte do tirano.
Do primeiro resulta que um povo pode derrubar certo monarca despóti-
co, mas não a própria monarquia – à qual continua sempre ligado pela força
do hábito. Do segundo resulta que o sucessor do tirano, para evitar o desti-
no do último, vê-se obrigado, ainda que contra vontade, a seguir-lhe as pisa-
das, assassinando súditos, fazendo-se temer pela violência, e convertendo-
-se assim, ele mesmo, num novo déspota. Quer dizer: longe de pôr termo à
tirania, o tiranicídio, no final de contas, põe apenas termo à vida do tirano,
sem afetar minimamente as condições que possibilitaram a sua emergên-
cia. Para comprová-lo, basta percorrer o Antigo Testamento, onde se rela-
ta como os hebreus, apesar das suas sucessivas revoltas, nunca conquista-
ram uma verdadeira liberdade, “pois embora eliminassem o tirano, as causas
da tirania ficavam: a única coisa que faziam era comprar, a preço de muito
sangue de cidadãos, um novo tirano” (espinosa, 2004, ttp, xvii, p.114,

104 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


it. nosso)8. Contudo, nem só a história bíblica demonstra a inviabilidade do
tiranicídio:

O povo inglês deu, a este respeito, um exemplo fatal. Primeiro, procu-


rou motivos para, sob a capa do direito, liquidar o monarca; uma vez
eliminado este, o mínimo que pôde fazer foi mudar a forma do Estado;
porém, depois de muito sangue derramado, acabou por saudar um novo
monarca sob outro nome (como se toda a questão fosse apenas de nome),
o qual não poderia manter-se de outro modo senão destruindo radi-
calmente a estirpe régia, matando os amigos do rei ou simples suspei-
tos de o serem e perturbando, através da guerra, o lazer da paz, sempre
propício aos boatos, a fim de que a plebe, distraída e virada para coisas
novas, afastasse a ideia de um outro regicídio. Só já tarde é que o povo
se apercebeu de que, pela salvação da pátria, a única coisa que tinha fei-
to fora violar o direito do rei legítimo e mudar tudo para pior. Decidiu,
por isso, voltar atrás assim que pôde, e não descansou enquanto não viu
tudo reposto no seu estado anterior (espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 369, it.
nosso).

Espinosa refere-se aqui, evidentemente, à efêmera república inglesa, e mais


em particular ao Protetorado de Oliver Cromwell (1653-1659). Protetorado
esse que, segundo Espinosa, foi uma monarquia em tudo menos no nome, por-
quanto o estado ficou sob absoluto domínio do ditador. Na tentativa de se
libertarem do despotismo, os ingleses acabaram, pois, por fazer subir ao poder
outro déspota, aliás mais brutal e violento que o anterior (Carlos i). Como
explicar semelhante desfecho? Como explicar que da revolução republicana
tenha saído uma tirania? Para Espinosa, consoante vimos atrás, a resposta é

8 É notória a coincidência entre este inciso e o conteúdo de tp, v, 7, onde Espinosa,


referindo-se ao “agudíssimo Maquiavel” (acutissimus Machiavellus), escreve assim: “Se […]
ele teve um fim bom, como é de crer num homem sábio, parece ter sido mostrar quão
imprudentemente muitos se esforçam por remover o tirano, quando as causas pelas quais
o príncipe é tirano não podem ser removidas” (espinosa, 2012, tp, v, 7, p.114, it. nosso).

Albano Pina p. 99 - 125 105


simples: os ingleses estavam acostumados à autoridade unipessoal do rei – ou,
o que vai dar ao mesmo, não estavam acostumados a ser governados por vários
indivíduos –, de maneira que preferiram um Lord Protector a uma soberania
parlamentar, sem adivinharem as consequências futuras desta escolha.
Ora, tal como o tiranicídio e os golpes republicanos, também as revoluções
monárquicas (processos de transição de república para monarquia) encerram
riscos consideráveis:

Vemos, enfim, como é fatal para um povo que não está habituado a viver
sob reis e que já tem leis instituídas eleger um monarca. Porque, nem este
conseguirá manter um tão grande poder, nem a autoridade régia poderá
suportar leis e direitos do povo instituídos por alguém com autoridade
inferior à sua e, muito menos ainda, ser levada a defendê-las, sobretudo
porque no momento da sua instituição não pôde ser tido minimamente
em conta o rei, mas apenas o povo ou o Conselho, que julgava deter o
reino. Assim, se o rei defendesse os antigos direitos do povo, pareceria
mais seu escravo do que seu senhor. O novo monarca tentará, por isso,
introduzir a todo o custo leis novas, reformar em seu proveito os dire-
itos do Estado e reduzir o povo a uma condição tal que este não possa
retirar a dignidade aos reis tão facilmente como lha dá (espinosa, 2004,
ttp, p. 368, it. nosso).

Como por aqui se percebe, o conservadorismo espinosano é um “conser-


vadorismo de princípio”, avesso às mudanças políticas em geral (e não apenas
às mudanças republicanas). Na base desse conservadorismo encontra-se a con-
vicção de que as revoluções, por implicarem uma modificação abrupta das leis
e dos costumes populares, só podem ter dois desfechos: ou a tirania (isto é, a
imposição violenta da nova autoridade) ou, após breve período de “pseudo-
transformação” revolucionária, o regresso ao regime antes vigente. Estamos,
note-se, perante uma perspectiva muito próxima da que Maquiavel expõe em
Discorsi, i, 16:

106 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Que é difícil um povo habituado a viver sob um príncipe preservar, pos-
teriormente, a liberdade, acaso a adquira – como aconteceu com Roma
depois da expulsão dos Tarquínios –, demonstram-no infinitos exem-
plos que lemos nas memórias da história antiga. Esta dificuldade é com-
preensível porque esse povo comporta-se como um animal bruto que,
embora de natureza feroz e selvagem, foi criado em cativeiro e servidão,
e que, vendo-se mais tarde abandonado à sua sorte num campo aber-
to, [...] torna-se presa do primeiro que procura encarcerá-lo de novo
(maquiavel, 2015, i, 16, p. 103, trad. nossa, it. nosso).

À semelhança, pois, de Espinosa, Maquiavel mostra-se cético quanto às


possibilidades de êxito das revoluções – sejam elas de sentido republicano ou
monárquico: “[...] é tão difícil e perigoso pretender libertar um povo que quer
viver servo como pretender fazer servo um povo que quer viver livre” (maquia-
vel, 2015, iii, 8, p. 494, trad. nossa, it. nosso). Mas enquanto para Maquiavel
a implantação da república romana representa um caso excepcional de revolu-
ção bem-sucedida, para Espinosa esse evento só em aparência foi uma revolu-
ção:

Objetar-se-á, talvez, com base no exemplo dos Romanos, que um povo


pode facilmente afastar um tirano; julgo, no entanto, que tal exemplo
vem confirmar em absoluto a nossa tese. É verdade que o povo roma-
no podia afastar mais facilmente um tirano e mudar a forma de Estado,
visto que o direito de eleger o rei e o seu sucessor estava nas mãos do
próprio povo e este não se tinha ainda habituado, de tal maneira estava
cheio de agitadores e revoltosos, a obedecer aos reis. Tanto que, dos seis
que tinha tido, assassinara três. E, todavia, a única coisa que ele fez foi ele-
ger, em vez de um, vários tiranos que o mantiveram miseravelmente, com
guerras externas e internas, sempre em conflito, até que, por fim, o Esta-
do caiu de novo nas mãos de um monarca, mudando apenas de nome, tal
como em Inglaterra (espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 369, it. nosso).

Albano Pina p. 99 - 125 107


Espinosa distingue, portanto, três grandes períodos na evolução da histó-
ria romana: um primeiro período de monarquia precária, marcado por vários
regicídios (metade dos reis morreram assassinados) e pela constante eferves-
cência do povo, que não estava ainda acostumado à autoridade real; um segun-
do período de domínio oligárquico sob vestes republicanas; e um terceiro perí-
odo de regresso à monarquia, com a concentração de fato do poder na pessoa
do princeps (Augusto). Ou seja: a despeito das múltiplas mudanças por que
passou ao longo da sua existência, Roma permaneceu sempre, essencialmente,
uma tirania (limitada a princípio, plural depois, e, por fim, absoluta).9 Neste
aspecto, diz-nos Espinosa, o estado romano é comparável ao estado inglês – e,
acrescentaríamos nós, ao estado hebreu (ttp, xvii, pp. 360-2) –, que mudou
de nome e de tirano, sem nunca verdadeiramente mudar de essência. Caso
oposto é o dos holandeses, os quais, após se terem libertado do jugo espanhol,
conseguiram em definitivo extinguir as condições da tirania:

No que respeita, porém, aos Estados da Holanda, nunca eles tiveram,


que eu saiba, reis, mas sim condes, para os quais em momento algum
foi transferido o direito estatal. Conforme os próprios Estados Sobera-
nos da Holanda fazem saber, por determinação publicada no tempo do
conde Leicester, eles sempre reservaram para si a autoridade de adver-
tir os condes da sua obrigação e conservaram o poder necessário para
defender esta sua prerrogativa e a liberdade dos cidadãos, para se vin-
garem deles, caso degenerassem em tiranos, e para os limitarem de modo
a que lhes fosse impossível fazer fosse o que fosse sem autorização e
aprovação dos Estados (espinosa, 2004, ttp, xviii, pp.369-70, it. nos-
so).

O sucesso extraordinário da revolução holandesa deveu-se, pois, ao estabe-


lecimento de mecanismos que impossibilitavam (ou tornavam extremamente

9 Cf. zourabichvili, 2002, p. 253, nota 2.

108 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


difícil) eventuais subversões monárquicas do novo regime – a que se aliava o
fato de o povo não estar habituado a viver sob reis. Como prova da solidez das
instituições republicanas, Espinosa lembra o putsch falhado de Guilherme ii
de Orange (1650): “Donde se conclui que esteve sempre nas mãos dos Estados
o direito de soberania, que o último dos condes tentou usurpar, muito longe,
portanto, de se terem desfeito dele quando restauraram o seu primitivo poder,
que já haviam quase perdido” (espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 370, it. nosso).
Sem dúvida, os acontecimentos em breve mostrariam – de maneira trágica –
que os monarquistas, apesar do fracasso de 1650, não se davam por definitiva-
mente vencidos. Mas em 1670 Espinosa ainda julga bastarem as lições da histó-
ria (antiga e recente) para dissuadi-los dos seus intentos: “Confirma-se, assim,
por estes exemplos, aquilo que dissemos: o regime próprio de cada Estado deve
manter-se e não pode sequer ser alterado sem se correr o risco de total ruína do
mesmo” (espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 370).

a facies civitatis como sistema de relações

No precedente capítulo, expuseram-se os motivos por que Espinosa consi-


dera as revoluções, de regra, indesejáveis. Mas, perguntamos, acredita ele que
uma Civitas pode evitar em absoluto as mudanças de regime, mantendo eter-
namente a mesma facies (ou forma)? É de crer que sim. Pelo menos, afirma-o,
ou sugere-o, em relação aos modelos políticos que apresenta na “segunda par-
te” do tp: a monarquia constitucional e a aristocracia policêntrica.10 Trata-se,
em ambos os casos, de estados sem falhas estruturais, capazes, portanto, de se
regularem a si mesmos, espontânea e continuamente, pelo mero funcionamen-
to das suas regras, procedimentos e instituições. Para aclarar em que consiste
essa homeostasia, parece-nos útil conceber os referidos estados como indivi-

10 Cf. tp, vii, 1 e 30; tp, viii, 9 e 10. Além dos modelos apresentados no tp, há ainda
o exemplo histórico da teocracia hebraica, a qual “podia ter durado indefinidamente”
(espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 363) se tivesse conservado a sua constituição original.

Albano Pina p. 99 - 125 109


dua, na acepção espinosana do termo.11 De acordo com a definição de Espino-
sa, lembremos, os individua são complexos cujos componentes “comunicam
uns aos outros os seus movimentos segundo uma certa proporção [certa qua-
dam ratione]” (espinosa, 2020, e ii p13 Def, p.163, it. nosso). Tais individua,
adianta ainda o autor, podem sofrer diversas modificações – renovação dos
componentes (espinosa, 2020, e ii p13 Lem iv, p. 164), variação de dimen-
sões dos componentes (espinosa, 2020, e ii p13 Lem v, p. 164), etc. – sem
perder a identidade formal, contanto que se conserve sempre a mesma “ratio”
de movimento e repouso entre as partes que os compõem. Ora, algo de seme-
lhante acontece com os regimes do tp: também eles podem, sem se dissolve-
rem, experimentar mudanças composicionais, desde que as suas “proporções”
(rationes) constitutivas se mantenham sempre inalteradas.
Referimo-nos, nomeadamente, à proporcionalidade representativa (de
famílias, classes e regiões) no conselho da monarquia ideal (espinosa, 2012,
tp, vii, 4 e 18). Mas referimo-nos também à proporção de forças entre Opti-
mates e plebeus na aristocracia ideal:

A primeira lei deste estado deve ser a que determina a proporção [ratio]
do número de patrícios relativamente à multidão. Deve, efetivamente
[...], haver entre esta e aqueles uma proporção tal que aumente, com o
crescimento da multidão, o número de patrícios. E esta proporção [...]

11 Sobre a extensão do conceito de “indivíduo” ao estado, há duas teses opostas: (1) uma
tese “naturalista”, que é a que Matheron preconiza, e que considera que o estado, como
todos os seres naturais, é um individuum com mens e conatus próprios; (2) uma tese
“artificialista”, que é a que Den Uyl e Rice defendem, e que considera que o estado constitui,
essencialmente, um artefacto (não uma entidade física), pelo que só em sentido metafórico
se lhe pode chamar “indivíduo”. Não nos deteremos aqui longamente nesta discussão. Basta-
nos dizer que, em termos de análise interpretativa, é lícito e frutuoso pensar o estado como
individuum, independentemente de saber se se trata dum indivíduo físico ou metafórico.
Cf. matheron (1988, pp.346-8; 2020, pp.179-200); den uyl, 1983, pp.70-80; rice,
1990. Vide, ainda a este respeito, guillemeau, 2008, pp. 121-40; rubio, 2014, pp. 33-57.

110 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


deve ser aproximadamente de um para cinquenta (espinosa, 2012, tp,
viii, 13, p. 164, it. nosso).

Além das leis mencionadas, que são leis respeitantes à relação governantes-
-governados, Espinosa propõe ainda uma série de regras respeitantes às rela-
ções intra e interinstitucionais. Falamos, por exemplo, da regra que determina
que o Concilio monárquico seja composto igualmente por “veteranos” e “nova-
tos” (espinosa, 2012, tp, vi, 16, p. 121)12, ou da regra que determina que o
número de síndicos esteja para o número de patrícios como o número de patrí-
cios para o dos plebeus (espinosa, 2012, tp, viii, 22, p. 168).
Qual a função destas leis proporcionais? Em primeiro lugar, corrigir os dese-
quilíbrios específicos de cada regime, como a tendência geral das monarquias
para se transformarem em aristocracias dissimuladas — isto é, monarquias nas
quais o rei governa de acordo com os interesses do pequeno grupo que sobre
ele tem ascendência, e não de acordo com o “interesse da maior parte dos súb-
ditos” (espinosa, 2012, tp, vii, 4, p. 134) –, ou a tendência geral das aristo-
cracias para se transformarem em oligarquias impotentes – isto é, aristocracias
nas quais o número e a força dos plebeus excede em muito a dos Optimates
(espinosa, 2012, tp, viii, 1-2, pp. 155-7). Depois, prevenir certas patologias
comuns a todos os regimes, como o nepotismo, o clientelismo, a perpetuação
nos cargos, etc. Em terceiro lugar, assegurar que os diferentes órgãos (legislati-
vo, executivo, fiscalizador, judicial) funcionem de maneira harmoniosa, traba-
lhando em conjunto para a salvaguarda do estado. Finalmente, garantir que tal
harmonia não é afetada por eventuais contrações ou expansões populacionais,
quer dizer, garantir que as partes que compõem o estado se relacionam sempre
“segundo uma certa proporção”.

12 “A razão por que é necessário escolher, todos os anos, um conselheiro por família é
evitar que o conselho seja composto ora por novatos inexperientes, ora por veteranos e
especialistas nos assuntos, o que aconteceria necessariamente se todos saíssem ao mesmo
tempo e fossem substituídos por novos” (espinosa, 2012, tp, vi, 6, p. 121).

Albano Pina p. 99 - 125 111


Este último aspecto afigura-se especialmente importante se considerarmos
que o crescimento do corpo cívico é, ou deve ser, um dos imperativos do esta-
do. É algo que Espinosa salienta no capítulo vi do tp, ao discutir a possibilida-
de de os estrangeiros se tornarem súditos de pleno direito da coroa:

[...] àqueles que nasceram de pais estrangeiros e foram educados no


estado será lícito adquirirem aos quiliarcas de uma família, por um
preço estabelecido, o direito de cidadania e inscreverem-se no rol dessa
família. Mesmo se os quiliarcas, por causa do lucro, admitirem algum
estrangeiro no número dos seus cidadãos por um preço abaixo do esta-
belecido, nenhum prejuízo daí pode surgir para o estado; pelo contrário,
devem descobrir-se meios através dos quais se possa mais facilmente aumen-
tar o número de cidadãos e se dê uma grande afluência de homens (espino-
sa, 2012, tp, vi, 32, p. 127, it. nosso)13.

Por quê? Porque, como Espinosa argumenta mais à frente, a potência, ou


direito, de um estado será tanto maior quanto maior for o número dos seus
cidadãos (espinosa, 2012, tp, vii, 18, p. 143). Claro está, porém, embora Espi-
nosa o não diga explicitamente, que tal relação só se verificará se estivermos
perante estados suscetíveis de, graças às suas leis proporcionais, crescerem sem
se deformarem. De outra maneira, o aumento do corpo cívico não apenas não
incrementaria, como até reduziria a potentia sive jus estatal.

13 Tal como a constituição monárquica, também a constituição aristocrática prevê a


possibilidade de os estrangeiros adquirirem o Jus civis. A única diferença é que no estado
monárquico a cidadania seria adquirida pelo pagamento de uma taxa fixa, ao passo que no
estado aristocrático seria como que “conquistada” pela acumulação de riqueza. Cf. tp, viii,
14 e tp, x, 7.

112 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


o conceito de “retorno aos princípios” revisitado

Ora, se, como ainda agora vimos, uma das condições indispensáveis à esta-
bilidade do estado é que as suas instituições se relacionem segundo uma ratio
invariável, a outra condição é que essas instituições convenham ao “engenho”
(ingenium) popular. De nada serve, com efeito, conceber um sistema institu-
cional proporcionalmente equilibrado se depois, na prática, ele for incompatí-
vel com os costumes e fisionomia própria do povo a que se destina. O que não
significa, bem entendido, que as instituições não tenham qualquer influência
sobre o ingenium. Na verdade, este é, até certo ponto, determinado por aque-
las; mas há muitos outros fatores – entre os quais a língua, o ambiente físico ou
as experiências políticas passadas – que intervêm na sua formação, e que esca-
pam completamente à ação jurídico-institucional.14 Para que as instituições,
além de coerentes, sejam eficazes, há pois que organizá-las tendo em conta tal
limitação.
Foi assim que procedeu Moisés, elaborando uma lex “sobretudo adaptada
à maneira de ser e à conservação” (maxime ad ingenium & singularem con-
servationem [...] accommodata fuerit) (espinosa, 2004, ttp, iv, p. 183) dos
hebreus; mas foi igualmente assim que procederam os aragoneses, os quais,
uma vez livres do domínio mouro, não elegeram um rei “sem primeiro insti-
tuírem procedimentos justos e consentâneos com o engenho da nação [inge-
nio gentis consentaneis]” (espinosa, 2012, tp, vii, 30, p. 151). Donde o caráter
exemplar das constituições em causa (mosaica e aragonesa). Exemplaridade
que não reside apenas no seu equilíbrio formal, senão também, como agora
se compreende, na sua “conveniência sociológica”, isto é, na sua conformida-
de com os costumes e temperamento singular dos povos por elas regidos. O
que quer dizer que o que torna as aludidas constituições exemplares é simul-
taneamente o que as torna irrepetíveis – consoante Espinosa frisa, de maneira
expressa, em relação à constituição de Moisés.15 Na realidade, visto que não

14 Cf. matheron, 1988, p. 352.


15 “Embora o Estado hebreu, tal como o concebemos [...], pudesse ter durado

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há dois povos iguais, nenhuma constituição, por bem-sucedida que tenha
sido, por meritórios que sejam alguns dos seus aspectos, pode tomar-se como
modelo absoluto: ao contrário, cada povo tem de descobrir, ele mesmo, a for-
ma constitucional apropriada ao seu ingenium particular.
Este nexo entre ingenium e constituição está praticamente ausente da refle-
xão política moderna. Para um autor como Hobbes, por exemplo, a “conve-
niência” (convenience) de um governo mede-se apenas pela sua capacidade de
garantir a paz e a segurança (hobbes, 1996, xix, p. 158). E como a monarquia
lhe parece a forma de governo mais capaz de cumprir tais fins, Hobbes conclui
que ela é a que melhor convém a todos os povos, independentemente dos seus
costumes, da sua história ou dos seus traços temperamentais. Opinião dife-
rente tem Espinosa, que considera que os ingenia ditam, em grande medida,
as condições dentro das quais os estados se formam16, e que, portanto, não
há uma única constituição ideal, mas tantas quantos os ingenia particulares
existentes. Só que, apesar disso, apesar de entender que há uma constituição
adequada a cada povo, Espinosa reconhece que tal conveniência é sempre pro-
visória, pois, dado que o ingenium, longe de permanecer sempre igual, muda
com as gerações, não existe ordenamento constitucional tão conveniente, tão
adaptado à maneira de ser do povo, que não acabe, cedo ou tarde, por desatu-
alizar-se.
Acentue-se: ao dizermos que os ingenia são mutáveis, não queremos dizer
que mudem por completo ao longo do tempo. Decerto, cada povo apresenta
caraterísticas mais ou menos fixas (a insubmissão dos hebreus17, o facciosis-

indefinidamente, ninguém, contudo, pode hoje em dia imitá-lo nem seria aconselhável”
(espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 363).
16 Cf. moreau 1994, p. 428.
17 “Deste modo, através desta virtude que o distinguia, ele [Moisés] instituiu o direito
divino e prescreveu-o ao povo, tendo, no entanto, o maior cuidado a fim de que este
cumprisse a sua obrigação, não tanto por medo, mas de livre vontade. Foram sobretudo
duas as razões que o obrigaram a agir assim: o caráter insubmisso do povo [...] e a ameaça de
guerra [...]” (espinosa, 2004, e, ttp, v, p. 197, it. nosso).

114 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


mo violento dos romanos18, a lealdade monárquica dos aragoneses19, etc.), que,
no seu conjunto, constituem uma espécie de fundo temperamental constante.
Mas com o passar das gerações, e por efeito do jogo afetivo, verificam-se, sobre
esse fundo permanente, diversas variações culturais, ou comportamentais, cuja
alternância descreve em geral um movimento cíclico de ascensão e decadência:

Os homens, com efeito, uma vez em paz e abandonado o medo, de bár-


baros ferozes fazem-se a pouco e pouco cidadãos, ou seja, humanos, e
de humanos fazem-se moles e inertes, não procurando distinguir-se uns
dos outros pela virtude mas pelo fausto e o luxo. A partir daí, começam
a aborrecer-se com os costumes pátrios e a adorar os alheios, ou seja, a
ser servos (espinosa, 2012, tp, x, 4, p. 202).

Tal como Maquiavel antes dele, Espinosa acredita, portanto, que todas as
sociedades, após um período inicial de desenvolvimento cívico, tendem natu-
ralmente a degenerar. E, à semelhança do “agudíssimo florentino”, também
Espinosa julga possível conter esta degenerescência mediante atempadas e
periódicas reconduções do corpo político ao seu princípio:

A primeira causa por que se dissolvem os estados deste género [estados


aristocráticos] é aquela que o agudíssimo florentino observa nos Dis-
cursos sobre Tito Lívio, iii, 1, a saber, que ao estado, tal como ao cor-

18 “Prova disto é a república romana, invencível face aos inimigos e tantas vezes vencida
e miseravelmente oprimida pelos seus cidadãos, em particular na guerra civil de Vespasiano
contra Vitélio)” (espinosa, 2004, ttp, xvii, p. 342, it. nosso).
19 “Há só um exemplo que não quero passar em silêncio, porque me parece digno de ser
recordado: é o estado dos aragoneses, que, possuídos de uma lealdade singular para com os
seus reis e de igual constância, conservaram invioladas as instituições do reino” (espinosa,
2012, tp, vii, 30, p.151, it. nosso).

Albano Pina p. 99 - 125 115


po humano, todos os dias se agrega alguma coisa que, de vez em quando,
necessita de cura. Daí que seja necessário, diz ele, que de vez em quando
aconteça alguma coisa através da qual o estado seja reconduzido ao seu
princípio, onde começou a estabilizar-se [imperium ad suum principium,
quo stabiliri incepit, redigatur]. Se tal não acontecer em devido tempo,
os vícios crescem a um ponto que já não podem extirpar-se sem extirpar
com eles o próprio estado. E isto, acrescenta, tanto pode ocorrer por aca-
so, como pela ponderação e prudência das leis ou de um homem de exímia
virtude [vel casu contingere potest, vel consilio, & prudentia legum, aut viri
eximiæ virtutis]. E não pudemos duvidar que seja uma coisa da maior
importância e que, onde não se atalhar a esse inconveniente, o estado
não poderá sobreviver por virtude sua, mas só pela fortuna. Pelo con-
trário, onde for aplicado remédio adequado a este mal, ele não poderá
cair por vício seu mas somente por algum fado inevitável [...] (espinosa,
2012, tp, x, 1, p. 199, it. nosso).

Espinosa retoma aqui a conhecida teoria do retorno aos princípios, à qual


Maquiavel dedica um inteiro capítulo do seu comentário a Lívio, e que pode
resumir-se assim: visto que os princípios dos estados, como os princípios de
todos os corpos mistos, têm em si uma certa virtude (abbiano in sé qualche
bontà) e vitalidade (augumento) que, com a passagem do tempo, vai gradual-
mente diminuindo, os estados só duram se amiúde se “renovarem”, quer dizer,
se amiúde retornarem, ou forem reconduzidos, à sua origem. Ora, conquanto
Espinosa descreva este “retorno” quase nos mesmos termos usados nos Discorsi
(maquiavel, 2015, iii, 1, pp. 461-5), o entendimento que dele faz é diferen-
te do de Maquiavel. No âmbito do pensamento maquiaveliano, “retornar aos
princípios” significava não a restauração da forma originária do estado, mas
sim a repetição do gesto fundador por cujo impulso o estado nasceu.20 Já em

20 “É inegável que todas as coisas do mundo têm um termo de vida. Mas, em geral, aquelas
que não desordenam o seu corpo e o mantêm ordenado de maneira que não se alteram [...],
seguem o percurso que lhes foi traçado pelo céu. E dado que me refiro a corpos mistos, como
as repúblicas e as seitas, digo que são salutares aquelas alterações que os reconduzem aos
seus princípios. Estão, pois, melhor instituídas, e têm vida mais longa, aquelas que podem

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Espinosa, ao contrário, “retornar aos princípios” significa justamente “restabe-
lecer a forma estatal primitiva”, ou, para sermos mais exatos, significa restabe-
lecer a ratio de movimento e repouso que o estado adquiriu quando “começou
a estabilizar-se”.
É à luz deste entendimento que deve interpretar-se a metáfora médica
acima empregada: da mesma maneira que um remédio combate as alterações
patológicas da ratio constitutiva do corpo humano, assim também o “retor-
no” combate as alterações patológicas da ratio constitutiva do corpo políti-
co.21 Quais os modos por que tal retorno se processa? Como nos diz Espinosa,
seguindo Maquiavel, o retorno pode dar-se de três modos: por “acaso”, pelo
exemplo de um “homem de exímia virtude” ou pela “ponderação e prudência
das leis”. Contudo, Espinosa deixa de lado as duas primeiras modalidades (pro-
vavelmente por considerá-las dependentes de fatores acidentais e aleatórios)
para se concentrar na última:

O primeiro remédio que me ocorreu para este mal foi nomear-se, a cada
cinco anos, um ditador supremo por um ou dois meses, com direito de
investigar, julgar e estatuir sobre o que fazem os senadores e cada um
dos funcionários e, consequentemente, restituir o estado ao seu princípio.
Mas quem procura evitar inconvenientes ao estado deve aplicar remédi-
os que convenham à natureza deste e que possam deduzir-se dos seus
fundamentos; caso contrário, desejando evitar Caríbdis, encalha em
Cila. É efetivamente verdade que todos, tanto os que governam como
os que são governados, devem ser contidos pelo medo do suplício ou
dano, para que não seja lícito pecar impunemente ou com lucro. Mas,
em contrapartida, também é certo que se este medo for comum aos homens

amiúde renovar-se [...]. E é coisa mais do que óbvia que, não se renovando, estes corpos
não duram. O modo de os renovar é [...] reconduzi-los aos seus princípios, porque todos
os princípios das seitas, repúblicas e reinos devem ter em si alguma bondade, mediante a
qual retomam o seu primeiro prestígio [riputazione] e o seu primeiro ardor [augumento]”
(maquiavel, 2015, Discorsi, iii, 1, p. 461, trad. nossa, it. nosso).
21 Cf. morfino, 2008, p. 64.

Albano Pina p. 99 - 125 117


bons e aos maus, o estado encontrar-se-á, habitual e necessariamente, em
extremo perigo. Ora, como o poder ditatorial [Dictatoria potestas] é abso-
luto, não pode não ser temível para todos, principalmente se o ditador
for nomeado, como se requer, em data predeterminada [...]. Quiçá por
este motivo, os romanos costumavam nomear um ditador, não numa
data estabelecida, mas quando coagidos por alguma necessidade fortui-
ta. E, não obstante, o rumor do ditador, para citar as palavras de Cícero,
foi desagradável para os homens bons. Sem dúvida este poder ditatorial,
na medida em que é absolutamente régio, pode um dia transformar-se,
não sem grande perigo para a república, numa monarquia, mesmo que tal
aconteça só por um tempo tão breve quanto se queira (espinosa, 2012, tp,
x, 1, p.200, it. nosso).

Como exemplo de instituição capaz de “restituir o estado ao seu princípio”,


Espinosa cita aqui a figura jurídica do dictator, referência que, escusado será
dizer, não é casual, pois trata-se precisamente de uma das ordini que Maquia-
vel mais elogia na antiga constituição romana. Segundo o autor dos Discorsi,
recordemos, a dictatura foi o expediente engenhoso que os romanos encon-
traram para enfrentar situações de emergência. Ao ditador, uma vez investido
no cargo, cabia o poder excepcional de tomar, sozinho, sem necessidade de
consulta prévia, decisões que habitualmente pressupunham um demorado e
complexo processo deliberativo. Outrossim, cabia-lhe ainda o poder de inves-
tigar e punir quem quer que fosse, incluindo senadores, cônsules, tribunos ou
qualquer outro magistrado que representasse uma ameaça pública (maquia-
vel, 2015, i, 34, p. 135). No entanto, realçava Maquiavel, o ditador encontra-
va-se sujeito a várias restrições: estava proibido de decretar ou ab-rogar leis,
não podia refazer a constituição, não podia interferir na atividade dos órgãos
políticos (senado, cônsules, tribunato), e, sobretudo, não podia permanecer
em funções por mais de seis meses (maquiavel, 2015, i, 34, p. 135). Ora, sem
negar, de maneira nenhuma, a utilidade e até a necessidade duma Dictatoria
potestas, Espinosa – contrariamente ao secretário – critica a configuração par-
ticular que esta instituição assumiu em Roma. Primeiro, porque as prerrogati-
vas judiciais do dictator inspiravam um temor paralisante à sociedade em geral,

118 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


e não apenas aos potenciais delinquentes; depois, porque, apesar das restrições
impostas ao ditador, havia sempre o risco de ele se tornar num autocrata (con-
forme de fato sucedeu com Sila e César); finalmente, porque, como não exis-
tiam datas fixas para a eleição de ditadores, não existia nenhuma proporciona-
lidade entre os intervalos que mediavam os mandatos ditatoriais.22
Perante tais problemas, Espinosa propõe (em alternativa à dictatura roma-
na) a seguinte solução:

Em contrapartida, não há qualquer dúvida [...] de que se fosse possív-


el o gládio do ditador [Dictatoris gladius], mantendo a forma do estado,
ser perpétuo e temível somente para os maus, nunca os vícios poderiam
desenvolver-se a tal ponto que já não se pudesse extirpá-los nem cor-
rigi-los. Por isso, para obtermos todas estas condições, dissemos que
o conselho dos síndicos deve estar subordinado ao conselho supremo,
de modo a que o gládio ditatorial perpétuo estivesse nas mãos, não de
uma pessoa natural, mas civil, cujos membros fossem tantos que não
pudessem dividir entre si o estado [...] ou conluiar-se nalgum crime. [...]
Deste modo, não virá deles nenhum perigo para o estado e podem, con-
sequentemente, ser temíveis, não para os bons, mas só para os maus, e
sê-lo-ão realmente. Com efeito, quanto mais fracos para praticar crimes,
mais potentes eles são para reprimir a malícia. Porque, além de poder-
em impedi-la logo de início (posto que o conselho é eterno), são também
em número suficientemente grande para ousarem, sem receio de inveja,
acusar e condenar um ou outro potente, sobretudo porque as votações
são por bolas e a sentença é pronunciada em nome de todo o conselho
(espinosa, 2012, tp, x, 2, p. 201, it. nosso).

22 “Acresce que, se não é marcada uma data certa para nomear o ditador, não haverá
nenhuma proporcionalidade no tempo que medeia entre um e outro, proporcionalidade
que dissemos ser maximamente de observar, e a coisa seria de tal modo vaga que facilmente
se negligenciaria” (espinosa, 2012, tp, x, 1, pp. 200-1).

Albano Pina p. 99 - 125 119


À ditadura romana, Espinosa contrapõe, portanto, como modelo mais
perfeito, o conselho dos síndicos. Instituição esta que, sob o ponto de vista
das suas atribuições, se assemelha bastante à instituição ditatorial. De fato, tal
como os ditadores romanos, os síndicos, na proposta teórica espinosana, têm
o poder de chamar a julgamento e condenar qualquer funcionário do estado
que viole os direitos respeitantes à sua função (espinosa, 2012, tp, viii, 20,
pp. 167-8). A diferença é que, em Roma, tal poder – a que Espinosa chama
“Dictatoris gladius” – estava nas mãos de uma pessoa natural, ao passo que
agora estará nas mãos de uma pessoa civil (onde, por pessoa civil, se entende a
vontade unitária do Syndicorum Concilium23), composta de múltiplos indiví-
duos. E isto, segundo Espinosa, teria uma dupla vantagem: por um lado, impe-
diria que o detentor do “gládio ditatorial” (no caso, o conselho dos síndicos)
se apoderasse do estado; e por outro, preveniria a prática de pressões, ameaças
e retaliações sobre aquele (visto que os síndicos se pronunciariam a uma só
voz, e não individualmente). Mas há outra diferença assinalável: em Roma, só
esporadicamente – quando a sobrevivência da república estava ameaçada –, e
por um período de tempo limitado, se nomeavam ditadores; já o Syndicorum
Concilium, na visão de Espinosa, seria um órgão “perpétuo”, em permanente
e contínuo exercício dos seus poderes. O que, além de resolver o problema da
desproporcionalidade entre os intervalos que mediavam os mandatos ditato-
riais, permitiria estancar à nascença a corrupção do corpo político.

23 Espinosa usa aqui as categorias hobbesianas de persona naturalis e persona civilis,


introduzidas respetivamente no capítulo xvi do Leviathan e no capítulo v do De Cive.
Eis as definições que delas dá Hobbes: “Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são
consideradas quer como as suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro
homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja verdade ou por ficção. Quando
elas são consideradas como as suas próprias ele chama-se uma pessoa natural. Quando são
consideradas como representando as palavras e ações de um outro, chama-se-lhe uma
pessoa fictícia ou artificial” (hobbes, 1996, Leviatã, xvi, p. 137); “A união assim feita diz-
se uma cidade, ou uma sociedade civil, ou ainda uma pessoa civil: pois, quando de todos os
homens há uma só vontade, esta deve ser considerada como uma pessoa” (hobbes, 1998,
Do Cidadão, v, 9, p. 97).

120 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Ora, em face das características destacadas, e tendo em conta que as fun-
ções dos síndicos passam, nomeadamente, por reprimir os excessos dos patrí-
cios (espinosa, 2012, tp, viii, 19, p. 167) e receber apelações dos plebeus
(espinosa, 2012, tp, viii, 41, p. 183), ocorre perguntar se não faria porventu-
ra sentido assemelhar o Syndicorum Concilium à ordine romana do tribunato.
Ao que o próprio Espinosa responde pela negativa, rejeitando a comparação:

Em Roma, os tribunos da plebe também eram perpétuos, e a verdade é


que foram incapazes de suster a potência de um Cipião. Tinham, além
disso, de deferir para o próprio senado o que consideravam ser salutar,
senado esse que também os ludibriava muitas vezes, fazendo com que
a plebe favorecesse mais aquele a quem os senadores temiam menos. A
isto acresce que a autoridade dos tribunos face aos patrícios era sustenta-
da pelo favor da plebe e, de cada vez que eles chamavam pela plebe, mais
pareciam promover uma revolta que convocar um conselho. Inconven-
ientes destes não têm certamente lugar no estado que descrevemos nos
dois capítulos anteriores” (espinosa, 2012, tp, x, 3, p. 202).

Ou seja, a despeito das afinidades funcionais entre tribunato e Syndico-


rum Concilium, a despeito do seu comum estatuto de guardião constitucio-
nal, a despeito de ambos serem órgãos permanentes (ou “perpétuos”), o último
difere do primeiro em três aspetos essenciais: (1) trata-se dum corpo unitá-
rio (não dum conjunto de magistrados autónomos); (2) não está subordinado
a nenhum outro poder – são os outros poderes que lhe estão subordinados
(espinosa, 2012, tp, viii, 20, pp. 167-8); (3) não deriva a força da “tumultuo-
sidade” plebeia, antes, sim, da sua eficiência – garantida pelos vários incentivos
pecuniários ao desempenho dos síndicos (espinosa, 2012, tp, viii, 24-25, pp.
168-71). Particularidades que, aos olhos de Espinosa, o superiorizam nitida-
mente à instituição tribunícia.
No fato de Espinosa criticar as duas mencionadas ordini romanas não
deve, todavia, ver-se qualquer distanciamento implícito em relação a Maquia-

Albano Pina p. 99 - 125 121


vel. Na verdade, se atentarmos bem, perceberemos que tais críticas, longe de
denotarem um corte com a perspetiva maquiaveliana, exprimem uma sua radi-
calização, levando até o fim as consequências dos princípios realistas em que
está assente, os quais ditam que as instituições devem ser organizadas de modo
que não dependam (para funcionar) da integridade dos funcionários24, nem
fiquem expostas a manipulações ou interferências externas. Exigências que,
segundo Espinosa, a dictatura e os tribuni não preenchiam (ou só em parte).
Veio esta longa exposição a propósito do problema da “eternidade estatal”.
Pelo que ficou dito, concluir-se-á que, em teoria, nada impede um estado de
durar indefinidamente, contanto que conserve a mesma ratio motus e quietis,
contanto que convenha ao ingenium popular, contanto, enfim, que logre rea-
gir às mudanças qualitativas da sociedade sobre a qual opera. Por melhor cons-
tituído, porém, que determinado estado se apresente, ele está sempre sujeito a
contingências suscetíveis de o dissolver (“onde for aplicado remédio adequa-
do [...], não poderá cair por vício seu mas somente por algum fado inevitá-
vel”). Ora, se a história mostra à saciedade que todos os estados, cedo ou tarde,
acabam por sucumbir aos assaltos imprevisíveis da fortuna, e que, portanto,
a “eternidade estatal” não passa dum projeto dificilmente realizável, também
mostra que os estados são tanto mais duradouros, tanto mais seguros e tanto
menos vulneráveis às variações da fortuna quanto mais “virtuoso” for quem
os governa.25 Para lá da atividade mecânica das instituições, há, pois, uma lar-
ga margem de aleatoriedade onde apenas contam a audácia, intuição e poder
inventivo dos governantes. É aí que finda aquele conhecimento empírico-de-
monstrativo de que Espinosa nos fala no capítulo i do tp, e se torna necessá-

24 “[...] é necessário a quem edifica uma república e institui as suas leis pressupor que todos
os homens são propensos ao mal, e que todos estão predispostos a usar a sua malignidade
logo que se lhes ofereça ocasião” (maquiavel, 2015, Discorsi, i, 3, p. 69, trad. nossa).
25 É justamente isto que Espinosa afirma em ttp, iii, numa passagem de manifesta
influência maquiaveliana: “[...] a sociedade é tanto mais segura, mais estável e menos sujeita
aos azares da fortuna quanto mais sensato e vigilante for quem a funda e quem a governa;
pelo contrário, quanto mais ela é formada por homens rudes, mais ela está à mercê da
fortuna e menos ela é estável” (espinosa, 2004, ttp, iii, p.168).

122 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


rio improvisar, ao sabor do momento, soluções inéditas (ou seja, soluções não
dedutíveis da experiência) para desafios conjunturais inéditos. Numa palavra:
é aí que termina a ciência e (re)começa a prática política.

Albano Pina p. 99 - 125 123


THE STATE BETWEEN HISTORY AND ETERNITY

abstract: The dissolution (or death) of the State is a common concern of


all contractualist authors. Most of them consider that the State is a mortal
body which, whether good or badly constituted, is unavoidably condemned
to dissolve itself. And what about Spinoza? Does he think that the political
body, like the human body, is bound to certain, unavoidable, death; or does
he think, on the contrary, that the State may last forever? This is the ques-
tion I pose here, and, to answer it, I analyze several dispersed passages from
Theological-Political Treatise and Political Treatise where the topic is (directly
or indirectly) addressed. It should emerge clearly from the reading I advance
that the problem of State’s death has not only a theoretical interest, but is also
related to what are, in Spinoza’s understanding, the practical limits of political
science.
keywords: Spinoza; eternity; death; individual; revolution; renovation.

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Albano Pina p. 99 - 125 125


COMPARAÇÃO DA NOÇÃO DE MORTE
ENTRE SPINOZA E FILÓSOFOS JUDEUS

Nei Ricardo de Souza1


Professor, Universidade Positivo (up), Curitiba, Brasil,
nei@up.edu.br.

resumo: As influências da filosofia judaica na obra de Spinoza têm sido


recorrentemente pesquisadas, mas nenhum trabalho abordou especificamente
o tema da morte. O objetivo deste artigo, portanto, é descrever as concepções
de morte nos filósofos judeus lidos por Spinoza e compará-las com a noção
de morte concebida por ele. O método utilizado foi a revisão bibliográfica
das principais obras dos autores aqui considerados, como Maimônides, Ger-
sonides, Hasdai Crescas, Ibn Ezra e Ibn Gabirol, seguida da comparação com
Spinoza. Concluímos que Spinoza realizou uma análise crítica das ideias des-
ses autores fundamentada na lógica de suas proposições e apresentou a noção
de morte depurada de referências aristotélicas que ainda estavam presentes na
filosofia judaica.
palavras-chave: Spinoza; vida; morte; conatus; filósofos judeus; destruição.

1 Psicólogo (CRP 08/6699), psicanalista e doutor em filosofia (puc-pr).

Nei Ricardo de Souza p. 127 -156 127


1. introdução

A relação de Spinoza com o judaísmo é complexa porque, embora tenha


iniciado sua formação intelectual no seio desta tradição, o banimento da
comunidade judaica de Amsterdã foi responsável por seu afastamento deste
contexto social2. A filosofia de Spinoza é um sistema inédito de pensamen-
to, mas é possível reconhecer nela contribuições de diferentes escolas, dentre
elas, algumas linhas da filosofia judaica. As influências de filósofos judeus na
obra spinoziana têm sido recorrentemente pesquisadas (por exemplo, wol-
fson, 1934; ravven/goodman, 2002; nadler, 2009; rudavski, 2011;
beltrán, 2016), mas nenhum trabalho abordou especificamente o tema da
morte. Sua concepção de morte se estrutura a partir da lógica desenvolvida em
suas proposições. Ela se estabeleceu em contraste com outras concepções, den-
tre elas, antigas ideias de base aristotélica presentes no judaísmo. Na medida
em que desenvolve as próprias concepções, Spinoza critica e retifica as noções
de seus antecessores. É com esse movimento de ideias que iremos nos ocupar.
De início, caracterizaremos brevemente a concepção de Spinoza sobre a
morte, que decorre de como ele concebe a vida. Sua definição de vida foi esta-
belecida na obra Pensamentos Metafísicos (pm), publicado em 1663: a vida é “a
força pela qual as coisas perseveram em seu ser” (spinoza, 2014a, pm, Cap.
6, p. 296). Ou seja, o que está vivo esforça-se para se manter vivo. Esta é a teo-
ria do conatus presente no pensamento spinoziano e desenvolvida em diversos
pontos de sua obra. A proveniência dessa força é compreendida da seguin-
te maneira: “A potência pela qual as coisas singulares, e consequentemente o
homem, conservam seu ser, é a própria potência de Deus ou da natureza” (spi-
noza, 2014d, eiv, p4, dem., p. 277). Desta forma, perseverar no ser e conser-
var a vida não são do domínio exclusivo da individualidade humana, embora
sejam realizadas pelo indivíduo. Sustentam-se porque o homem faz parte de

2 Artigo elaborado a partir da tese de doutorado: A morte: Spinoza e Freud diante da


dissolução da vida – reflexões a partir do judaísmo. Programa de Pós-graduação em Filosofia,
puc-pr, defendida em fevereiro de 2021.

128 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


um todo mais amplo, a própria Natureza, ou Deus, e tem com ela uma relação
de imanência.
A partir desse ponto podemos examinar como cessa a vida, ou seja, como
sobrevém a morte. Consideremos o corpo humano: ele possui forma, que é
constituída porque suas partes transmitem entre si os seus movimentos segun-
do uma proporção definida, por meio da força da vida. Spinoza propõe que
o que altera as proporções desses movimentos e faz com que o corpo huma-
no assuma outra forma é responsável por sua destruição, ou seja, “é destruir
uma coisa que a resolve em partes, das quais nenhuma manifesta a natureza
do todo” (spinoza, 2014b, Carta 36, p. 178). Assim, para Spinoza, a morte do
corpo humano “se produz quando suas partes estão dispostas de tal modo que
há entre elas outra relação de movimento e repouso” (spinoza, 2014d, eiv,
p39, esc., p. 309).
A questão agora é compreender como ocorre a modificação ou a desagre-
gação das partes. O que é inerente ao ser é sua conservação, logo, a destruição
não lhe ocorre internamente. Spinoza enfatiza esse ponto, que está presente
desde seus escritos iniciais (no Breve tratado, de 1660): “Pois é evidente que
nada pode, por sua própria natureza, tender ao aniquilamento de si mesmo...”
(spinoza, 2014a, bt, Cap. 5, p. 74). E, posteriormente, na Ética, “coisas no
mesmo sujeito, quer dizer, a ponto de serem de natureza contrária, não podem
ali estar, na medida em que uma coisa pode destruir uma outra.” (spinoza,
2014d, eiii, p5, p. 205). “E nenhuma coisa possui em si algo pelo qual possa
ser destruída, quer dizer, que subtraia sua existência” (spinoza, 2014d, eiii,
p6, dem., p. 205). Seguindo esse raciocínio, para Spinoza, a destruição do cor-
po humano seria somente externa: “Nada pode ser destruído senão por causa
exterior” (spinoza, 2014d, eiii, p4, p. 205), ou seja, se alguém deixa de con-
servar seu ser, não é por uma necessidade da natureza, mas pela ação de causas
externas (cf. spinoza, 2014d, eiv, p20, esc., p. 291).
No conjunto da obra, Spinoza dispensou menor atenção ao tema da mor-
te, comparado a outros temas. Além disso, uma de suas proposições afirma que
“um homem livre não pensa em nada menos do que na morte e sua sapiên-

Nei Ricardo de Souza p. 127 -156 129


cia é uma meditação não de morte, mas de vida” (spinoza, 2014d, eiv, p67,
p. 331). Disso resultaram comentários de que a noção de morte na filosofia
spinoziana seria problemática (matson, 1977; cohen, 2001). Todavia, des-
prezar a importância desse tema e deixar de abordá-lo pode resultar de uma
posição dogmática, conforme mencionado por Chantal Jaquet: “Dizer que o
sábio não pensa em nada menos do que a morte não significa dizer que ele não
pensa nela, em absoluto. Dada essa condição, caberia interrogar por que essa
reflexão deveria ser mínima” (jaquet, 2005, p. 275). Seria em função de uma
tentativa de fuga ou denegação de um tema árduo? Certamente não. Ocorre
que o homem livre busca o que é bom, busca agir e viver, em concordância
com o esforço de autopreservação, portanto, procura pensar mais na vida do
que na morte; a sabedoria é vista como uma meditação de vida. A partir dis-
so, “compreendemos por que se evita pensar na morte, pois ela é justamente
o que reduz a nada a potência do corpo e que exclui sua existência” (jaquet,
2005, p. 278). Não significa que é melhor permanecer iludido de que a morte
não sobrevirá, mas que a meditação de vida é preferível àquela da morte, que
acentua nossa tristeza, evidenciando o fim de nossos dias. A morte é um obstá-
culo para gozar da beatitude de uma vida virtuosa (cf. jaquet, 2005, p. 279).
Contudo, isso não impede de tomar o tema da morte para análise, seguindo o
exemplo do próprio Spinoza.
A relação que Spinoza fez entre não pensar na morte e a liberdade foi nota-
da de forma destacada por Yitzak Melamed e Oded Schechter (2015, pp. 1-3),
ao observarem que o final da parte iv da Ética, dedicada à servidão humana,
apresenta sete proposições sobre qual seria a concepção spinoziana de homem
livre, iniciando justamente pela proposição 67, citada acima, como se não pen-
sar na morte fosse sua primeira característica. Estes autores defendem essa
ideia, percorrendo as proposições da Ética, para restituir o argumento de Spi-
noza de que se preocupar com a morte, e consequentemente temê-la, é resul-
tado de o homem permanecer ligado ao primeiro tipo de conhecimento, a
imaginação, que somente consegue penetrar nas coisas singulares finitas. Se o
homem passar a se guiar pela razão, rompe com a limitação de sua imaginação
e orienta sua vida segundo fundamentos eternos.

130 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Todavia, como ressaltou Pascal Sévérac (2017), ao meditar sobre a morte,
não deixamos de almejar a liberdade de pensamento e de ação. Ele afirma em
tom provocativo e irônico que quem medita sobre a morte “corre o risco de ser
um ‘mau spinozista’, que, por ser escravo de sua imaginação e de suas paixões,
fica muito afastado da sabedoria” (cf. sévérac, 2017, p. 59). Assim, Jaquet,
Melamed, Schechter e Sévérac alinham-se em defesa da legitimidade da mor-
te como tema de investigação dentro dos referenciais teóricos da filosofia de
Spinoza, e é a essa perspectiva que aderimos aqui buscando contribuir para
elucidar algumas bases para seu pensamento. O objetivo deste artigo, portan-
to, é descrever as concepções de morte nos filósofos judeus lidos por Spinoza
e compará-las com a noção de morte concebida por ele. O método utilizado
foi a revisão bibliográfica das principais obras dos autores aqui considerados,
seguida da discussão sobre como a morte é por eles concebida. Em seguida,
especificaremos quais filósofos judeus são analisados e qual critério adotamos
para selecioná-los.

2. a interlocução de spinoza com filósofos judeus

As referências judaicas que Spinoza utiliza podem ser localizadas ao lon-


go de sua obra, conforme segue. No Tratado teológico-político (ttp), a análi-
se que Spinoza realizou se estende em quase sua totalidade aos relatos bíbli-
cos do povo judeu, mas nosso foco recai especificamente sobre quais foram
os autores judeus utilizados por ele e em que medida podem ter influenciado
a constituição de seu pensamento. Não nos ocuparemos, portanto, do conte-
údo do ttp, mas das referências feitas nele. Nesse sentido, localizamos alguns
nomes de destaque. Maimônides é citado com referências que transparecem
mais a rejeição por parte de Spinoza do que a aceitação de suas ideias (como
de resto, os demais autores aqui tratados). Por exemplo, com relação à arti-
culação entre a filosofia e a leitura das Escrituras, Maimônides e outros “não
tiveram outra preocupação senão alterar a Escritura para dela tirar as boba-
gens de Aristóteles e de suas próprias ficções” (spinoza, 2014c, ttp, Cap. i,
par. 14, p. 60). Spinoza também criticou o método de interpretação bíblica

Nei Ricardo de Souza p. 127 -156 131


proposto por Maimônides: “O primeiro que entre os fariseus pretendeu ser
necessário dobrar a Escritura à razão foi Maimônides” (spinoza, 2014c, ttp,
Cap. xv, par. 2, p. 268), mas “rejeitamos, portanto, a maneira de ver de Mai-
mônides como danosa, inútil e absurda” (spinoza, 2014c, ttp, Cap. vii, par.
21, p. 179). Outro autor, Levi ben Gerson (Gersonides), de quem Spinoza dis-
corda quanto a certas interpretações bíblicas, goza de certa admiração por ser
“em outros aspectos, um homem de grande conhecimento” (spinoza, 2014c,
ttp, apêndice, p. 363). Também foi mencionado Abn (Ibn) Ezra, como sen-
do um “homem de espírito bastante livre e de uma erudição não medíocre...”
(spinoza, 2014c, ttp, Cap. viii, par.3, p. 184), mas que não ousou explicitar
seu pensamento, que supostamente colocava em questão a autoria de Moisés
dos livros do Pentateuco. Além desses, Spinoza faz comentários gerais sobre os
cabalistas, de caráter pejorativo, no que se refere a interpretações e considera-
ções sobre as Escrituras e o alfabeto hebraico, que resultam sempre na atribui-
ção de mistérios que não são compreendidos: “Li também alguns cabalistas e
tomei conhecimento de suas bobagens e fiquei confuso com sua demência”
(spinoza, 2014c, ttp, Cap. ix, par. 13, p. 205)3.
Nos Pensamentos Metafísicos, Spinoza discorre sobre o que é a vida e o que
ela é em Deus. A vida é a força pela qual as coisas perseveram em seu ser e,
no caso de Deus, essa força não é outra coisa senão sua essência. Argumenta
então que Deus é a própria vida e que este pensamento não seria estranho aos
hebreus: “Não faltam teólogos que compreendem que é por essa razão [...] que
os judeus, quando juram, dizem por Deus vivo, e não: pela vida de Deus [...]”
(spinoza, 2014a, pm, Cap. 6, p. 296, itálico no original).

3 Esses nomes citados no ttp são aqueles que nos parecem ter mais impacto sobre o
aspecto filosófico da obra de Spinoza. Os trabalhos que consultamos também confirmam
isso. Além desses, também são citados: Jonathan ben Uziel, Flávio Josefo, David Kimchi,
Fílon Judeu, Rabi Solomon bem Isaac de Troyes (Rashi), Abraham ben David, Jehuda
Alpakar e Rabi Joseph ben Shem Tov, porém as referências que Spinoza faz a eles têm
sobretudo caráter teológico, ou seja, abordam aspectos bíblicos e históricos, portanto não
serão abordados nesse artigo.

132 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Outras menções foram feitas nas correspondências de Spinoza. Na Car-
ta 12, de 20 de abril de 1663, ao discutir sobre o infinito e a existência de uma
causa necessária, Spinoza comenta que encontra essa ideia “em um certo autor
judeu chamado Rab Hasdai [Hasdai Crescas]” (spinoza, 2014b, Carta 12, p.
84). Na Carta 73, do final de 1675, Spinoza faz uma declaração mais ampla,
envolvendo alguns personagens:

Afirmo, digo eu, com Paulo, e talvez com todos os filósofos antigos, ain-
da que de outra maneira, que todas as coisas estão e se movem em Deus,
ouso mesmo acrescentar que tal foi o pensamento de todos os anti-
gos hebreus, na medida em que se pode conjecturá-lo segundo algumas
tradições, malgrado as alterações que sofreram (spinoza, 2014b, Carta
73, pp. 277-8).

Na Ética, segunda parte, na importante proposição 7, que versa sobre a


ordem e conexão das ideias ser a mesma que a das coisas, Spinoza aponta que
é “o que alguns hebreus viram como que através de uma névoa, pois que admi-
tem que Deus, o entendimento de Deus e as coisas de que forma ideia são uma
e mesma coisa” (spinoza, 2014d, eii, p7, p. 140).
Com base nesse levantamento inicial, podemos assegurar que o diálogo de
Spinoza com autores judeus foi bastante presente. A partir dessas asserções é
que estruturamos o presente artigo, buscando examinar as aproximações e os
afastamentos entre eles e Spinoza. Alguns nomes estão explicitamente men-
cionados, mas outros são apenas referidos de modo geral, tais como cabalistas e
antigos hebreus, mas procuramos mesmo assim estabelecer algumas possibili-
dades de quem seriam eles e verificar a existência de relações teóricas plausíveis.

3. comparação da noção de morte entre spinoza e os filósofos judeus

Nei Ricardo de Souza p. 127 -156 133


Para começar a caracterizar como a morte é concebida na filosofia judaica,
podemos analisar uma afirmação de Maimônides: “Todos os seres transitó-
rios têm origem nesses elementos [terra, água, fogo e ar], nos quais eles nova-
mente se resolvem quando sua existência chega ao fim” (maimônides, 2002,
p. 114, tradução nossa). Por seres transitórios, Maimônides entende os seres
perecíveis, ou sujeitos à corrupção, que são todos aqueles do mundo sublunar,
incluindo o ser humano. Quando uma força externa aos elementos age sobre
eles, a criação dos seres transitórios sobrevém e, uma vez cessada a força, esses
seres deixam de existir, sobrando apenas os elementos dos quais se originaram.
Em última instância, essa força provém de Deus a chega no mundo sublunar
através do Intelecto Ativo. Entretanto, não é somente uma força externa que
cria e conserva os seres, mas as capacidades desenvolvidas pela própria matéria
prima e, de maneira análoga, essas capacidades cumprem também um papel
na sua destruição: “as mesmas forças que operam no nascimento e na existên-
cia temporal do ser humano operam também em sua destruição e morte. Essa
verdade se sustenta bem com respeito a todo esse mundo transitório. As cau-
sas da produção são ao mesmo tempo as causas da destruição” (maimônides,
2002, pp. 116-7, tradução nossa). Isso pode ser explicado da seguinte forma:
quando essas forças operam inteligentemente, mantendo-se dentro do neces-
sário e agindo no tempo e nos limites adequados, o homem se isenta de sofri-
mentos e doenças. Quando não é esse caso e as forças operam sem inteligência
e sem consciência de suas ações, elas causam doenças e dor, apesar de estarem
na origem da vida e de sua existência. Por exemplo, se a força de atração absor-
ve o que é útil ao homem, ele permanece preservado, mas se absorve humores
inadequados, seja em quantidade ou qualidade, muito frios ou muito quentes,
coloca as veias em estado de choque, compromete a saúde e acarreta o adoeci-
mento, levando mesmo à destruição dos órgãos. De forma semelhante, as for-
ças que criam a existência das coisas também causam calamidades, tempesta-
des, raios, trovões e terremotos, devastando lugares e mesmo países.
A questão da morte e da destruição é retomada por Maimônides no capí-
tulo x da parte iii do Guia dos Perplexos, quando aborda o problema do mal e
argumenta que Deus não cria o mal, pois o mal não é algo de positivo, sendo

134 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


definido a partir da ausência de alguma propriedade considerada boa. Nesse
sentido, a proposição mais geral pode ser expressa como “todos os males são
negações” (maimônides, 2002, p. 266, tradução nossa). É justamente o caso
de se pensar na saúde, que implica a ideia de equilíbrio em geral, e na sua ausên-
cia, que corresponde à doença. É também o caso de pensar na ausência da vida
como sendo a morte. No caso do homem, a morte é não-existência, logo, é
mal. Mas Deus não cria nem a doença, nem a morte, em um sentido positivo.
Ocorre que o processo de criação em geral cria o corpo a partir dos elementos
e estes sim comportam a possibilidade de destruição, em função dos processos
que lhe são inerentes, conforme comentado acima. Os elementos comportam
negações que levam à doença, à destruição e à morte. No caso de qualquer ani-
mal, a destruição é a morte, no caso das demais coisas, é a ausência de formas.
Deus, ao contrário, somente produz a existência e a existência é boa, conforme
consta no próprio texto bíblico: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era mui-
to bom” (gn 1, 31). Com base nessa frase da Escritura, Maimônides coloca o
problema do mal e da destruição em uma perspectiva dinâmica: “Mesmo a
existência deste elemento corpóreo, inferior como é na realidade, porque é a
fonte da morte e de todos os males, é igualmente boa para a permanência do
Universo e a continuidade da ordem das coisas, de modo que uma coisa perece
e outra a sucede” (maimônides, 2002, p. 267, tradução nossa).
A concepção de morte, em Maimônides, pressupõe que a fonte da vida,
Deus, por meio do Intelecto, não tem nada a ver com o perecimento das coisas,
ou do ser humano propriamente. O perecimento e a morte ocorrem devido
a uma dinâmica presente na matéria. Deus não causa a morte, nem o mal, de
modo geral. O raciocínio que ele desenvolve é possível porque se fundamenta
no afastamento de Deus do mundo material, ou seja, ele cria e preserva, mas
não de modo direto; é mediado e permanece externo ao mundo. A concep-
ção de que a destruição tem origem nos próprios elementos é aristotélica, mas
Maimônides não a incorporou na totalidade, visto que ele nem cogitou as con-
tradições inerentes aos elementos, revelando certa resistência em aceitar essa
perspectiva. Ele próprio declara sua posição: “todos os filósofos consideram
que é impossível para um substrato ter ao mesmo tempo duas propriedades

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contrárias” (maimônides, 2002, p. 279, tradução nossa). Veremos que, se for
examinada em detalhe, a perspectiva aristotélica difere dessa premissa, quando
analisarmos as concepções de Gersonides, a seguir. Para Maimônides, são for-
ças operando inadequadamente que levam à morte, mas não são forças mortí-
feras especificamente, ao contrário, são as mesmas forças que criam a mantém
a vida. Por isso a ideia de que o mal, ou a morte, não é algo de positivo.
Em Spinoza, temos Deus não mais como causa externa, porém como cau-
sa interior ou imanente (cf. spinoza, 2014a, bt, ii, 26, pp. 139-43) e também
como causa da essência de todas as coisas (cf. spinoza, 2014d, ei, p25, p. 113),
então já não é admissível que ele seja um agente atuando de fora dos elementos.
Ao contrário, atuando de dentro, Deus afirma a essência de uma coisa e não a
nega e quando temos a essência presente temos a própria coisa (cf. spinoza,
2014d, eii, def. 2, p. 133), não sua ausência, ou aniquilação. Disso decorre que
nada pode ser destruído senão por causa exterior (cf. spinoza, 2014d, eiii, p4,
p. 205) e que a morte deve ser causada externamente. Observemos que tanto
para Maimônides quanto para Spinoza, Deus é a fonte de vida, mas para o pri-
meiro, é uma fonte exterior, para o segundo, interior. De qualquer forma, nem
um nem outro afirmam que Deus seria a origem da destruição ou da morte.
Podemos verificar certa inspiração de Spinoza em Maimônides, fornecen-
do o primeiro, contudo, um acabamento de ideias que lhe é próprio. Tomemos
o exemplo de Maimônides de que as forças criativas são a origem das tempes-
tades, trovões e terremotos. No Tratado político, Spinoza também concebe o
calor, o frio, os trovões e tempestades como propriedades da natureza (cf. spi-
noza, 2014a, tp, Cap. i, par. 4, p. 371) e não lhes imputa nenhum mal ine-
rente, embora eles possam ser a causa da destruição de terceiros. Nesse caso, é
plenamente válido reconhecer que a morte é uma causa externa. Uma tempes-
tade, cuja origem em primeira instância é Deus, não é criada com o intuito de
matar pessoas (à moda do dilúvio, segundo a Bíblia). Se existe esse pensamen-
to, é porque está contaminado pela imaginação e pela superstição, conforme
explicado no Apêndice da primeira parte da Ética. Também é possível argu-
mentar que alguém se exporia voluntária ou involuntariamente à tempestade,

136 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


visando a própria morte, mas nesse caso seria porque a pessoa estaria afetada
de tal forma que teria adquirido outra natureza que acabou atentando contra si
e não devido a algo essencial inerente a ela. Outro exemplo: se a força de atra-
ção atrai um humor frio demais, o que adviria de consumir alimento gelado,
por exemplo, levaria ao adoecimento e, subsequentemente, à morte. A causa
seria o humor excessivamente frio, e não a força de atração em si. Se ela atuou
desregradamente em um indivíduo, é porque ele foi afetado por alguma pai-
xão, caso contrário, não seria causa de mal algum. Spinoza pensa em diferentes
afecções que submetem as coisas e no efeito que exercem sobre elas, poden-
do levá-las à própria destruição e, nesse sentido, propõe uma destruição que
é sempre externa. Maimônides, e os aristotélicos, atribuem um grau de auto-
nomia aos elementos e à matéria em geral, pois estes possuem forças próprias
independentes do Intelecto Ativo, a ponto de se sobreporem a ele.
Maimônides também frisa que, apesar da destruição, a criação foi consi-
derada por Deus como muito boa, o que permite deduzir que a destruição e
a morte não fugiram à regra. Para ele, os elementos permitem que uma coisa
pereça e outra suceda, contribuindo para a manutenção do universo. Também
é em sentido semelhante que Spinoza propõe que “é destruir uma coisa que a
resolve em partes, das quais nenhuma manifesta a natureza do todo” (spino-
za, 2014b, Carta 36, p. 178). Certamente, Spinoza não coaduna com a classifi-
cação dos quatro elementos e em tudo o que isso implica e provavelmente ele
incluiria essas concepções nas “bobagens de Aristóteles”, mas as coisas singu-
lares, ou finitas, são compostas de partes e, uma vez destruídas, desagregam-
-se. Sua visão, contudo, é mais ampla, pois não se dedica a esmiuçar forças
internas em elementos específicos, ao contrário, procura conceber a natureza
como um único indivíduo. Reconhece, entretanto, que cada parte da natureza
se liga com as demais e se acorda com o todo, embora chegue a isso pela razão,
não por ter ciência de todas as partes. Considera, então, que todos os corpos
da natureza “estão cercados por outros corpos que atuam sobre eles e sobre
os quais eles atuam todos, de sorte que, por essa reciprocidade de ação, um
modo determinado de existência e de ação lhes seja imposto a todos” (spino-
za, 2014b, Carta 32, p. 166).

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Agora, se Maimônides procura sustentar uma posição que se esquiva dos
contrários inerentes aos elementos e às coisas, Gersonides assume esses con-
trários ao expor suas concepções sobre a destruição. Para ele, é a providência
divina que confere a preservação das coisas. Com efeito, a providência é cau-
sa da conservação dos seres no mundo sublunar: “Os elementos sublunares
são contrários, e desde que é a natureza dos contrários destruírem-se mutua-
mente, assim resultando na destruição do composto derivado deles, é necessá-
rio que existam causas que os criem e preservem aquilo que é gerado a partir
deles” (gersonides, 1987, p. 169, tradução nossa). A destruição natural resul-
ta então da própria matéria e quando ocorre é o efeito da predominância das
forças passivas sobre as ativas nas coisas que têm elementos contrários e são
compostas deles4. Mas não é efeito da forma, que tenta preservá-los na exis-
tência que lhe corresponde tanto quanto possível. Assim, não é da natureza
da forma ser causa da destruição. Pode acontecer que a forma resulte de uma
mudança qualitativa que passa de um contrário a outro e assim prepara a maté-
ria para outras mudanças. Esse tipo de geração é também a destruição daquilo
de onde o gerado emerge. Portanto, a matéria deve mudar de tal maneira que
a primeira forma desapareça e esteja preparada para receber a segunda forma.
Mas a destruição não aniquila a matéria, apenas a transforma. Os compostos
são decompostos e, eventualmente, recompostos, embora existam restrições,
por exemplo, uma semente decomposta não se recompõe como semente, nem
um organismo, como um organismo (cf. gersonides, 1999). Entende-se que
esse processo faz parte da natureza e a própria destruição é necessária para a
natureza. O exemplo bíblico que Gersonides utiliza para ilustrar a destruição
é referente ao confronto de Moisés e Aarão com o Faraó. A vara de Aarão foi
transformada em uma serpente e os magos do Egito fizeram o mesmo, mas a
vara de Aarão devorou as varas deles (ex. 7, 8-13). Então não houve destruição
até a não-existência (destruction into nothingness) das serpentes egípcias, pois
estas viraram comida para a serpente vencedora.

4 A explicação dessa dinâmica é encontrada em diversos pontos das obras de Aristóteles


(2017, 14a10, p. 97; 2009, 331a15, p. 133; 2009, 334b31, p. 151; 1952, p. 295).

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Das concepções apresentadas por Gersonides podemos fazer duas consi-
derações principais quanto aos contrários inerentes aos elementos e quanto
à destruição que é transformação. Esta última, parece que foi assimilada por
Spinoza. Lemos nos pm:

Por mudança entendemos, nesta passagem, toda variação que pode se pro-
duzir em um objeto [sujet] qualquer, ainda que a própria essência do obje-
to guarde sua integridade; embora se tome comumente a palavra também
em um sentido mais largo para significar a corrupção das coisas, não uma
corrupção absoluta, mas uma corrupção que envolve ao mesmo tempo
uma geração subsequente; [...] mas os filósofos usam para essa designação
outra palavra ainda, a saber, transformação (spinoza, 2014a, pm, Cap. 4,
p. 290).

Essa asserção se relaciona com a concepção da natureza tomada como um


único indivíduo, pois as infinitas afetações recíprocas acarretam como efei-
to infinitas transformações também, logo, corrupção e geração se alternam. A
referência que Spinoza faz dirige-se provavelmente a Gersonides.
A destruição até a aniquilação, que no caso do homem seria a morte, tam-
bém se verifica, mas Gersonides alerta que não se trata de uma aniquilação até
o nada ou até a não existência, como no exemplo das varas dos egípcios. Em
outros termos, por mais que a destruição seja a resolução em partes, para Spi-
noza, o que deixa de existir, no caso de um morto, é o todo formado pelas par-
tes, mas as partes não desaparecem. Na quarta parte da Ética, Spinoza explica
como entende a morte: “a morte do corpo [...] se produz quando suas partes
estão dispostas de tal modo que há entre elas outra relação de movimento e
repouso” (spinoza, 2014d, eiv, p39, esc., p. 309). Então a desconfiguração do
todo se dá pela mudança na relação entre as partes, e elas persistem dentro das
possibilidades que a natureza oferece.

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A outra consideração, sobre os contrários, é descartada na perspectiva spi-
noziana. Uma vez que a essência de uma coisa esteja presente, temos a coisa e
não sua negação nem sua aniquilação. E Deus, sendo causa imanente da coi-
sa, da sua essência e existência, é o que permite a coisa vir a ser, logo, não será
o que a aniquila. Vejamos que em Maimônides essa ideia já se apresenta, pois
Deus é a origem da vida. Em Gersonides também, porque Deus seria a origem
de todas as formas e a forma não causa a destruição.
A destruição decorre de as forças da matéria serem inadequadas, segun-
do Maimônides, ou das contrariedades inerentes aos elementos, segundo Ger-
sonides. O que ocorre com Spinoza é que, ao se considerar que as coisas em
primeira instância devem sua essência a Deus, elas não podem ter consigo
contrariedades porque Deus, ou a própria substância, não as tem. Mas isso
se aplica no nível da natureza das coisas, o que não significa que elas não pos-
sam comportar afecções contrárias. O que chama a atenção em Maimônides e
Gersonides é que eles concebem forças inadequadas ou tendências contrárias
justamente no nível da natureza dos elementos e que são capazes de causar o
perecimento das coisas por eles formadas. Pelo que analisamos, em Spinoza,
essa concepção não se sustenta, pois “coisas no mesmo sujeito, quer dizer, a
ponto de serem de natureza contrária, não podem ali estar, na medida em que
uma pode destruir a outra” (spinoza, 2014d, eiii, p5, p. 205), e essa afirmação
parece ser dirigida aos peripatéticos.
Agora, se a presença dos contrários se sustenta em Maimônides e Gerso-
nides devido à coerência com a concepção de Aristóteles, no caso de Hasdai
Crescas uma questão pode ser levantada no que tange a essa concepção. Em
primeiro lugar, Crescas adota uma posição crítica em relação ao aristotelismo
de Maimônides e Gersonides; então seria de supor que abandonaria a maior
parte das noções destes para articular suas próprias concepções dentro de refe-
rências mais estreitas no judaísmo ortodoxo, ou seja, que segue a lei mosaica,
prioritariamente. Tal foi, com efeito, sua posição, que pode ser constatada no
livro Luz do senhor. Todavia, é na concepção de destruição e morte que identi-
ficamos uma inconsistência.

140 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Crescas aborda o problema do perecimento das coisas em dois pontos na
Luz do Senhor. Primeiro, é quando se refere e defende a imortalidade da alma,
cuja “eternidade lhe é necessária em virtude de sua natureza, na medida que é
desprovida de materialidade, a qual é a causa do perecimento – quando as for-
ças passivas não cedem mais às forças ativas, como estabelecido em seu lugar”
(crescas, 2018, p. 219, tradução nossa). Segundo, ele resgata esse confron-
to de forças ativas e passivas na matéria para estabelecer uma analogia com o
perecimento da própria alma, postulando agora a existência da faculdade ativa
da alma, a intelecção, e a faculdade passiva da alma, sentir prazer: “a causa do
perecimento das coisas é precisamente a falha das faculdades passivas cederem
às faculdades ativas” (crescas, 2018, p. 292, tradução nossa). Com isso, quer
afirmar que a alma, ela mesma, pode vir a perecer se abandonar uma vida guia-
da pela razão.
Em que pese o tema central ser a alma, questão na qual não nos deteremos
aqui, o que fica evidente é que Crescas adota a concepção aristotélica do pere-
cimento das coisas, que se explica pela existência das características antagôni-
cas dos elementos. Esse aspecto é digno de nota porque é aí que localizamos
uma inconsistência em seu pensamento. Se entre os peripatéticos os contrários
inerentes à matéria são concebíveis, é porque essa matéria está muito distan-
ciada de Deus, uma vez que ela vai se tornando cada vez mais grosseira, por
assim dizer, na medida que cada esfera dá origem à esfera posterior, até chegar
na esfera sublunar, que é a esfera dos elementos propriamente dita. Mas na
perspectiva de Crescas não há diferença entre a matéria dos corpos celestes e
do mundo sublunar, então seria razoável pensar que as contradições dos ele-
mentos não poderiam ser aplicadas. Porém, nesse caso, o que seria responsá-
vel pelo perecimento? O próprio Crescas não avança nesse ponto, não ousou
modificar uma compreensão já estabelecida. Contudo, por que questionar a
concepção de criação nas perspectivas de Maimônides e Gersonides? Para ficar
conforme o cânone judaico, certamente é a resposta. E por que não questio-
nar as contradições dos elementos? Porque elas não são, de todo, incompatí-
veis com o cânone judaico, como veremos a seguir ao examinarmos a visão de
Ibn Ezra. Mas não era esse o compromisso de Spinoza, logo não lhe repugnava

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questionar qualquer conhecimento tradicional, desde que pudesse demons-
trar logicamente, o que acreditamos ter ocorrido, para romper definitivamente
com o modelo aristotélico, ainda que este fosse aceito pelos filósofos judeus.
A maneira pela qual Spinoza concebeu a destruição e a morte permite pen-
sar como a matéria, cuja origem é divina, pode perecer, sem precisar imaginar
que ela carrega consigo as sementes da própria ruína. Pode ser considerada um
avanço ao pensamento de Crescas, partindo das bases que ele próprio teria
lançado.
Ibn Ezra, por sua vez, expõe suas concepções sobre a geração e a destrui-
ção das coisas no comentário ao livro de Eclesiastes5 (Coélet). Na introdução,
aborda a perenidade das ações humanas, sujeitas a formas transitórias pelas
quais são construídas e destruídas. Somente aquele que não é criado, no caso,
Deus, foi capaz de produzir a substância e não meros acidentes. O homem
nada consegue fazer a não ser acidentes:

Todas as coisas que um ser criado faz não duram. Todos os seres criados
ficarão exaustos [se tentarem] criar a substância, que é a base de [todas as
coisas], ou se tentarem destruir a substância e fazê-la desaparecer. Todos
os trabalhos do homem consistem em formas, imagens e acidentes. Seres
humanos podem separar o que está unido ou unir o que está separado.
Eles podem mover o que está em repouso ou colocar em repouso o que
se move. Portanto, todos os trabalhos do homem são desperdício e vazio
(ibn ezra, 2017, p. 21, tradução nossa).

5 Eclesiastes, ou Coélet, significa ‘homem da assembleia’, mas refere, no início do texto, a


‘filho de Davi, rei de Jerusalém’, ou seja, Salomão. Spinoza dirige certa atenção a Salomão
no ttp: “Penso em Salomão cujos livros sagrados celebram não os dons proféticos e da
piedade, mas os da prudência e da sabedoria” (spinoza, 2014c, ttp, Cap. iv, par. 12, p.
118). O Eclesiastes é citado diversas vezes nessa mesma obra. Considerando também o
diálogo com Ibn Ezra, é altamente provável o conhecimento de Spinoza sobre o referido
comentário de Ezra.

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Em relação às coisas criadas, há uma dinâmica entre os elementos que Ezra
explica fazendo referência ao texto bíblico:

Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O sol
se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é lá que ele
se levanta. O vento sopra em direção ao sul, gira para o norte, e girando
e girando vai o vento em suas voltas. Todos os rios correm para o mar e,
contudo, o mar nunca se enche: embora chegando ao fim do seu percur-
so, os rios continuam a correr (ecl. 1,4-7).

Segundo Ibn Ezra, esse trecho revela alguns aspectos sobre a criação das
coisas. É aí que ele localiza os quatro elementos: terra, fogo (sol), ar (vento) e
água (rios) e afirma que Coélet mencionou os quatro elementos porque tudo
o que se encontra sob o sol é criado a partir desses quatro elementos e deve
retornar a eles. Observamos, com efeito, que os elementos são descritos com
movimentos cíclicos. Inicialmente, o comentário feito envolve a terra: “Coélet
começa com a terra, pois a terra é como uma mulher que dá à luz [...] todas as
coisas criadas da terra deverão retornar a ela. Isso é semelhante a pois tu és pó a
ao pó tornarás (gn. 3,19)”6 (ibn ezra, 2017, pp. 29-30, tradução nossa). Sobre
isso, é no comentário do Gênesis que Ibn Ezra apresenta sua interpretação:

Sabemos que o homem é criado a partir dos quatro elementos. O que,


então, a Escritura quer dizer por pois dele (solo) foste tirado? A resposta
é que a armação do esqueleto do homem é criada a partir da terra (solo).
Assim, os ossos são pesados e sem sensação. A armação do esqueleto é a
base para o corpo (ibn ezra, 1988, p. 74, tradução nossa.).

6 O versículo inteiro é assim: “Com o suor do teu rosto comerá teu pão até que retornes
ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás”.

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Nessa passagem, a ideia é que os ossos permanecem, pois são a única coisa
que resta do corpo, conforme Ibn Ezra esclarece no comentário ao trecho ecl.
12,7 (2017, p. 281), mas mesmo assim, tornam-se pó, ou seja, terra.
Quanto ao movimento de retorno dos elementos em geral, Ezra afirma
que:

A razão pela qual Coélet menciona esses quatro objetos; isto é, o sol, que é
o lugar do fogo, e o vento, a água e a terra é porque todas as coisas sob o sol
(plantas, animais, pessoas, aves e os peixes do mar) são produzidas por ess-
es objetos. Agora, se a natureza do sol, do vento, da água e da terra (que são
a origem das plantas, animais, pessoas, aves e os peixes) é retornar ao lugar
de onde partiram, como sua descendência poderia continuar para sempre?
Se sua descendência começa como vaidade, vai terminar como vaidade. Se
o homem é vaidade, então seu trabalho é vaidade certamente, pois é um
acidente quando relacionado ao próprio homem. O mesmo é ainda mais
verdadeiro sobre os pensamentos do homem, que são como um acidente
produzido por um acidente (ibn ezra, 2017, p. 34, tradução nossa).

Em que pese a atmosfera geral do livro de Eclesiastes, isto é, uma reflexão


sobre a vã condição humana, parece-nos evidente que o autor desse livro não
teve como objetivo abordar propriamente a geração das coisas baseada nos qua-
tro elementos. Isso fica por conta de Ibn Ezra, que fez uma ponte entre as escri-
turas e a teoria filosófica da geração a partir dos quatro elementos. Não obs-
tante isso, a atenção que Ibn Ezra dispensou à criação e à corrupção das coisas
é digna de nota, pois reflete suas concepções sobre o tema. Embora reconheça
que as coisas são criadas a partir dos quatro elementos, propôs um movimento
de destruição delas baseado em uma tendência ao retorno, sem a referência aos
contrários aristotélicos, mas ainda assim de caráter cíclico: “O que foi será, o
que se fez, se tornará a fazer: nada há de novo debaixo do sol!” (ecl. 1,9). Nesse
ponto, Ezra antecipou Maimônides, embora Maimônides não tenha feito uma
ligação da tendência de retorno dos elementos ao texto do Eclesiastes.

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É provável que Spinoza tivesse classificado essa ligação entre as “bobagens
de Aristóteles”, mas o que pode ser retirado dessa discussão é um reforço à ideia
de que se as coisas forem destruídas, resolvem-se em suas partes, e que as coisas
criadas estão submetidas à duração. Na perspectiva spinoziana, a destruição
das coisas singulares não vai depender da tendência ao retorno dos elementos,
tampouco serão consideradas acidentes, mas dependem da ordem comum da
natureza (cf. spinoza, 2014d, eii, p30, dem., p. 167) e são determinadas a exis-
tir e agir por outra coisa singular e assim sucessivamente (cf. spinoza, 2014d,
eii, p31, dem. p. 168). Coélet transmite a ideia de que os negócios do mundo
são “vaidade das vaidades” (ecl. 1,2) e com isso acentua seu caráter transitó-
rio. Ibn Ezra dobra a aposta, por assim dizer, e evidencia que o que o homem
produz são acidentes, mas Spinoza rompe com essa apreciação que é carrega-
da de juízos de valor e procura compreender a realidade das coisas criadas em
sentido orgânico, ou seja, um todo com suas partes articuladas, que por sua
vez também formam um todo composto de partes e assim por diante. Talvez o
exemplo mais marcante que ilustre essa relação todo-parte e permita entrever
seu caráter orgânico seja derivado do próprio corpo:

Na medida em que os movimentos das partículas da linfa, do quilo etc.,


se ajustem uns aos outros, de tal forma que haja entre essas partículas
acordo e que elas formem um mesmo líquido que é o sangue, a linfa, o
quilo etc., serão consideradas como parte do sangue. Mas, na medida
em que concebamos as partículas da linfa como não se ajustando, ten-
do em conta sua figura e seu movimento, às partículas do quilo, nós
as consideramos como um todo e não como uma parte. Porém, há um
grande número de outras causas na dependência das quais se encontra
a natureza do sangue, e que por sua vez dependem do sangue, de onde
segue que outros movimentos e outras variações se produzem, as quais
não têm por origem única as relações que sustentam os movimentos de
suas partes, mas também as relações do movimento do sangue com as
causas exteriores e reciprocamente. O sangue cessa então de ser um todo
e torna-se uma parte (spinoza, 2014b, Carta 32, pp.165-6).

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Observemos, então, que antes das coisas existentes serem vaidade, na ver-
dade, são parte de um todo, e suas disposições dependem de inúmeros fatores.
E antes das coisas serem destruídas devido às propriedades dos elementos que
as constituem, são destruídas porque “todas as coisas são contingentes7 e cor-
ruptíveis” (spinoza, 2014d, eii, p31, cor., p. 168), de acordo com o raciocínio
de Spinoza.
Em apoio a essa nossa análise ressaltamos que Spinoza articula essa ideia
no ttp, com base no texto do Eclesiastes: “Mesmo Salomão, num tempo de
prosperidade para os judeus, duvida que tudo aconteça por acaso (ver Eclesias-
tes 3, 19-21; e 9, 2-3)” (spinoza, 2014c, ttp, Cap. vi, par. 10, p. 145). Esses tre-
chos indicados são significativos:

Pois a sorte do homem e a do animal é idêntica: como morre um, assim


morre o outro, e ambos têm o mesmo alento; o homem não leva van-
tagem sobre o animal, porque tudo é vaidade. Tudo caminha para um
mesmo lugar: tudo vem do pó e tudo volta ao pó. Quem sabe se o alento
do homem sobe para o alto e se o alento do animal desce para baixo,
para a terra? (ecl. 3, 19-21).

Tudo é o mesmo para todos: uma sorte única, para o justo e o ímpio,
para o bom e o mau, para o puro e o impuro, para quem sacrifica como
o que não sacrifica; para o bom e o pecador, para quem jura e quem evi-
ta o juramento. Este é o mal que existe em tudo o que se faz debaixo do
sol: o mesmo destino cabe a todos. O coração dos homens está cheio de
maldade; enquanto vivem, seu coração está cheio de tolice, e seu fim é
junto aos mortos (ecl. 9, 2-3).

7 Definição de Spinoza sobre o que ele entende por coisa contingente: “As coisas
singulares eu as denomino contingentes, na medida em que, atentando somente à sua
essência, nós não encontramos nada que coloque necessariamente sua existência ou a
exclua necessariamente” (spinoza, 2014d, eiv, def. 3, p. 273). Isso implica justamente que
sua existência ou não existência vai depender do todo, ou da ordem comum da natureza.

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Dessas citações, o que Spinoza destaca é o fato de que tudo se passa em
conformidade com as leis comuns da natureza, ou seja, há uma ordem comum
que não discrimina e abrange o animal e o homem, e qualquer tipo de homem,
pois todos são igualmente parte da natureza. Outro aspecto que nos parece
digno de nota é que Spinoza sequer comentou a passagem referente ao “retor-
no ao pó”. Será que ele não prestou atenção? Resolveu ignorar? Já não teria
lido a respeito em Ibn Ezra e ficado contente com o tratamento dado à ques-
tão? É difícil precisar uma resposta. Se ele tivesse concordado com Ibn Ezra
sua argumentação teria seguido determinada direção, o que obviamente não
aconteceu. Sendo assim, podemos supor que essa asserção não causou espé-
cie em Spinoza, dado que ele já tinha em mente que nem a ideia do pó, nem a
ideia dos quatro elementos, poderia fornecer uma explicação consistente para
a questão da morte.
Mas a ideia do retorno não foi evidenciada apenas por Ibn Ezra e Mai-
mônides. Podemos verificar uma afirmação de Ibn Gabirol que comporta esse
mesmo sentido: “Matéria [prima] universal, a qual os suporta e é o substra-
to deles. É em virtude dela que os sensíveis subsistem; nela eles são encon-
trados, nela eles se movem, com ela se relacionam, dela se originam e para ela
eles retornam” (ibn gabirol, 2005, p. 38, tradução nossa). Ele não mencio-
na diretamente os quatro elementos, mas podemos concluir que se trata disso
porque essa matéria à qual se refere é a matéria sublunar, sujeita à geração e à
corrupção. A referência que Gabirol faz é por contraste, porque ele comenta
sobre a matéria celeste, contrastando com a matéria composta pelos elemen-
tos: “a massa celeste não recebe as qualidades dos quatro elementos, não está
envolvida em geração e corrupção” (ibn gabirol, 2005, p. 38, tradução nos-
sa), logo, o que se deduz é que a matéria sublunar é que tem a característica de
se corromper.
A maneira como Gabirol expressa essas ideias permite reconhecer em sua
obra concepções aristotélicas, além das neoplatônicas. Quando ele aborda a
existência da matéria universal, emanando da Vontade, adota um referencial
neoplatônico. Quando postula uma diferenciação da matéria universal e da

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matéria prima que comporta as nove categorias, ou seja, composta pelos qua-
tro elementos, combina a influência aristotélica. Reconhece, portanto, que no
nível sublunar existe uma matéria sujeita à geração e corrupção, ou, em outros
termos, há um nível inferior no qual as coisas perecem, ou morrem, e retornam
a um estado anterior, antes de terem recebido uma forma que as constituísse
como coisas sensíveis. O que nos chama a atenção nisso é que estamos falando
da matéria sob duas perspectivas diferentes, ou ainda podemos dizer sob dois
modos diferentes e esse é um ponto relevante porque talvez a noção de modo
estivesse presente na filosofia judaica desde Gabirol e ele fosse uma das inspira-
ções de Spinoza nesse sentido. O seguinte fragmento de diálogo caracteriza as
concepções de Gabirol referentes à matéria:

discípulo: Eu conheci os quatro tipos de matéria e os quatro de forma.

mestre: Quais são?

discípulo: Matéria artificial particular, matéria natural particular,


matéria natural universal sujeita à geração e matéria celestial. E por outro
lado, no caso de cada uma destas matérias, sua forma sustentada por ela.

mestre: Bem entendido! Mas agora em adendo você deve compreender


que esses quatro tipos de matérias e formas, embora díspares, ainda
compartilham o conceito da matéria e da forma (ibn gabirol, 2005, p.
24, tradução nossa).

Todavia, se observarmos o mesmo diálogo no original em latim podemos


perceber um detalhe importante:

“D. Percipi quatuor modos materiae et quatuor formae.

[...]

M. Bene intellexisiti, sed adhuc intellige quod hi quatuor modi mate-

148 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


riarum et formarum etsi sint diversi, tamen conveniunt in intellectu
materiae et formae” (ibn gabirol, 1895, p. 21, negritos nossos).

Há um ponto digno de nota porque a palavra que foi traduzida por tipos
(kind, em inglês) é modos/modi, em latim, e é essa mesma palavra que aparece
no latim de Spinoza e que é traduzida como ‘modo’. Ou seja, Ibn Gabirol já
havia considerado a noção de modo, justamente no sentido de identificar as
diferentes apresentações da matéria e da forma. Há vários estudos que procu-
ram esclarecer a noção de modo em Spinoza (wolfson, 1934; gueroult,
1968; carvalho, 1983; melamed, 2018) e há a tendência de pensar que
essa noção teria sido incorporada por Spinoza a partir de Descartes, mas em
nenhum deles apareceu a possibilidade da noção de modo ter sido antecipada
por Ibn Gabirol e a partir daí ter feito parte do arcabouço teórico spinoziano.
Voltando à morte, na obra de Gabirol, Fonte da Vida, são escassas as
referências a ela. De fato, essa obra enfoca a criação e o surgimento da vida des-
de sua origem e percorre seus diferentes graus de emanação. Não há nenhuma
análise mais aprofundada sobre a corrupção e a morte, apenas o que comen-
tamos acima. A mensagem final da obra é obter um conhecimento elevado e
escapar da morte, unindo-se à fonte da vida. Não nos ocuparemos com esse
aspecto em detalhe, porém não é possível deixar de correlacionar essa perspec-
tiva de Ibn Gabirol com a própria perspectiva de Spinoza, conforme exposta
na quinta parte da Ética e sintetizada na seguinte proposição: “Nossa mente,
na medida em que se conhece a si mesma e conhece o corpo do ponto de vista
da eternidade, tem necessariamente o conhecimento de Deus, e sabe que ela
está em Deus e por ele é concebida” (spinoza, 2014d, ev, p30, p. 369).
Por fim, na cabala, a morte está associada com outras imperfeições como
a destruição, o pecado e a limitação e ocorre devido ao próprio processo de
emanação que em determinados graus perde a pureza da luz original. Isso ocor-

Nei Ricardo de Souza p. 127 -156 149


re porque a luz emanada de En Sof 8 vai se comunicando sucessivamente às
demais sefirot, e a partir da quarta, hesed, as sefirot já não conseguem mais con-
servá-la ou retê-la. Em linguagem cabalística, as sefirot são como vasos (kelim)
e a partir de hesed em diante são consideradas vasos pequenos e frágeis que se
romperam por não suportarem a intensidade da luz que se comunicava a eles.
Assim,

não podendo as sete sefirot inferiores e instrumentais sofrer o ímpeto da


luz soberana exuberante, voltaram-lhe as costas, e deixando-a, como sen-
do incapazes de contê-la, permaneceram sóbrias e escuras, privadas da vida
superior e como mortas, caindo daquele grau nobre e ilustre a outro infe-
rior, obscuro e baixo, e de fato, de seu mundo sublime aos inferiores e
seguintes (herrera, 2016, p. 407, tradução nossa).

É dessa forma que os cabalistas explicam a presença das imperfeições no


mundo e de tudo aquilo que as segue, como também a morte. Há coisas fada-
das a perecer e outras, mais elevadas, que guardam sua pureza original. Essa
distinção pode ser descrita de outra maneira semelhante. O primeiro efeito de
En Sof também é chamado Adão Cadmon e é visto como se o universo inteiro
fosse representado pela figura humana. O mundo inferior (Asiah) é simboli-
zado pelos órgãos geradores do homem e por suas duas pernas. A perna direi-
ta está ligada à sefira nezah e significa eternidade e vitória, e também ao céu,
seus orbes e estrelas incorruptíveis, formadas pela quintessência que excede os
elementos inferiores e seus compostos, expulsando para baixo toda corrupção

8 A origem de tudo se estabelece a partir do En Sof (ou Ayn Sof, Ein Sof), cuja tradução
pode ser sem limite, sem fim, ou mesmo infinito. É o termo usualmente utilizado para
designar Deus, na teoria cabalística. A partir dele surgem dez emanações, denominadas
sefirot (plural de sefira) que são: kether (coroa), hochmah (sabedoria), binah (inteligência),
hesed (bondade), geburah (rigor), tiferet (beleza), nezah (vitória), hod (glória), yesod
(fundamento) e malkut (reino) (cf. sefer yetzirah, 1997).

150 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


e morte. A perna esquerda corresponde à sefira geburah (ou din), que signifi-
ca rigor, e é o reino dos elementos e do que é formado deles, sendo, portan-
to, sujeito à corrupção e à morte. Assim, ficam representadas duas ordens de
coisas, as incorruptíveis e as sujeitas à corrupção, que não são propriamente
novidade na filosofia judaica, mas aqui aparecem segundo o simbolismo da
cabala.
Evidentemente, o pensamento de Spinoza é avesso a todas essas alegorias
e seguramente as consideraria seres de imaginação, mais ainda do que seres
de razão. Mas a perspectiva de haver um domínio incorruptível e outro sujei-
to à corrupção está bem alinhada com o spinozismo, se removermos as ale-
gorias imaginárias. Trata-se da distinção entre substância e modo. Aquela,
imperecível, este, fadado à destruição. Dessa forma é possível afirmar com
Spinoza que: “A divisão, portanto, ou o sofrer, só se produz no modo; assim,
quando dizemos que o homem perece ou é aniquilado, isso se entende do
homem enquanto é uma combinação determinada e certo modo da substân-
cia, e não da própria substância da qual depende” (spinoza, 2014a, bt, i, 2,
p. 61).
Complementando a tradição cabalística, Herrera incorporou elementos
da filosofia, o que permite reconhecer certa influência aristotélica em sua obra.
Por várias vezes faz menção aos termos geração e corrupção e chegou mesmo
a citar o texto de Aristóteles, Sobre a Geração e a Corrupção, na Porta do Céu,
para explicar a variação de coisas criadas que ocorre devido à variação do quen-
te, do frio, do úmido e do seco. E também a partir das alterações e aparências
que deles resultam, da geração e corrupção dos elementos e seus compostos,
vivos e sensíveis. Assim, Herrera integra uma visão ampla do porquê a morte
ocupa lugar nesse mundo, de acordo com a cabala como comentado acima, e
uma visão mais restrita que segue referências aristotélicas, quanto à dinâmica
entre os elementos, conforme já examinamos e comparamos com aquelas de
Spinoza.

Nei Ricardo de Souza p. 127 -156 151


4. conclusão

Após percorrer as ideias aqui analisadas, compreendemos que, para Spi-


noza, a morte também faz parte da natureza, é o destino comum das coisas
singulares, mas é resultado de fatores externos que agem sobre elas. A mor-
te não tem essência, decorrendo de um processo de afecção, que culmina na
destruição do que é afetado. Tampouco há qualquer tendência inerente para
a morte, ou para o retorno aos elementos e, nesse sentido, Spinoza promove a
crítica da filosofia judaica, com base na lógica de suas demonstrações. O que
há é a resolução de um todo em suas partes, o que aplicado ao corpo humano é
entendido como desagregação de órgãos e tecidos, todavia, nem se cogita que a
resolução se dê em termos de fogo, ar, terra e água. Outro ponto que se destaca
da comparação entre Spinoza e os filósofos judeus é uma perspectiva inverti-
da na relação entre Deus, o mundo e a morte. Na filosofia judaica, Deus criou
o mundo, mas permanece externo a ele. Já a morte, é inerente aos elementos.
Spinoza propôs o contrário: Deus é interno, ou imanente, e é a morte que deve
ser concebida como externa. Diante dessa constatação, faz ainda mais sentido
a máxima spinoziana de que a filosofia é uma meditação de vida, não de morte,
pois é a vida que habita o homem, é o que lhe é inerente e essencial, logo, o que
é digno de ser pensado. A morte é uma paixão, no sentido de ser uma afecção
passiva, e portanto externa, à qual nos submetemos inexoravelmente – aliás, a
afecção derradeira, ao menos na perspectiva do corpo, segundo o pensamento
spinoziano.

152 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


COMPARISON OF SPINOZA’S AND JEWISH
PHILOSOPHER’S NOTION OF DEATH

abstract: The influences of the Jewish philosophy on Spinoza’s work have


been recurrently researched, but no work has specifically addressed the issue
of death. The aim of this article, therefore, is to describe the conceptions of
death in the Jewish philosophers read by Spinoza and to compare them with
his notion of death. The method used consists of a bibliographic review of the
main works of the authors considered here, Maimonides, Gersonides, Hasdai
Crescas, Ibn Ezra and Ibn Gabirol, followed by a comparison with Spinoza.
We conclude that Spinoza carried out a critical analysis of the ideas of these
authors based on the logic of his propositions and presented a notion of death
that is purified from Aristotelian references that were still present in Jewish
philosophy.
keywords: Spinoza; death; conatus; Jewish philosophers; destruction.

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156 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


CETICISMO ACADÊMICO NAS
RÈGLES POUR LA DIRECTION DE L’ESPRIT
(I, II, III, VIII E XII), DE DESCARTES

Marcelo Fonseca de Oliveira


Doutorando, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil
marcelofonsecardeoliveira@gmail.com

resumo: o ceticismo acadêmico se encontra utilizado na formulação dos


preceitos epistêmicos para a reformulação da ciência, nas Règles Pour La
Direction De L’Esprit (1701, Amsterdam, texto póstumo e inacabado). O
probabilismo de Carnéades, compreendido como o principal vetor do
ceticismo acadêmico na modernidade, fundamenta a certeza. Outras teses
para a correção epistêmica do espírito parecem advir da tradição acadêmica,
como a definição de science como sagesse, por exemplo (Règle i). Desse modo,
a busca da verdade (coordenada principal das Règles, como nos evidencia a
Règle iv) não abdica do ceticismo. Tratar-se-á, neste artigo, de compreender
que o probabilismo acadêmico aparece no projeto de busca da verdade das
Règles de modo negativo, pois Descartes ataca a modalidade do provável.
Outros tópicos acadêmicos aparecem em questão, como a busca de sabedoria,
a mitigação da dúvida, a disciplina do assentimento pela recusa do provável e a
verdade do fideísmo. Estes tópicos se resumem ao método acadêmico, definido
pela recursividade epistêmica.
palavras-chave: Conhecimento; Sabedoria; Assentimento; Verossímil;
Dúvida.

Marcelo Fonseca de Oliveira p. 157 - 179 157


A escrita das Règles Pour La Direction De L’Esprit parece datar, aproximada-
mente, de 1628.1 Descartes mesmo indica que começou a escrever este tratado
após se desligar (délié) da universidade.2 Neste tratado encontram-se os dois
critérios para o conhecimento da verdade, a saber, a certeza e a distinção do
juízo. Trata-se, portanto, de um primeiro rascunho para o alcance da verdade,
através da ordenação metodológica e que envolve a matemática como ferra-
menta.3
A conjectura deste artigo mitiga a interpretação de Popkin (2003, p. 149)
de que as Règles são o resultado da primeira fase intelectual de Descartes,
quando este se dedicava às matemáticas. Mitigando parte das interpretações
que compreendem que este tratado é uma resposta aos desafios céticos que cir-

1 Segundo popkin (2003, p. 145), a filosofia cartesiana se desenvolve, a partir de 1628,


em função da crise pyrrhonienne: “that around 1628-29 he was struck by the full force of the
sceptical onslaught and the need for a new and stronger answer to it”. Desde já, discorda-
se de Popkin a respeito da preponderância do pirronismo no ceticismo de Descartes. Há
indícios de que o ceticismo acadêmico, de Cícero e de S. Agostinho, tenha influenciado
igualmente, ou mais, o ceticismo de Descartes (ver, por exemplo, a resposta a Mersenne,
na Resposta às Segundas Objeções). Ainda há a via que liga o ceticismo acadêmico, tal qual
recebido nos Ensaios, em especial na Apologie de Raimond Sebond, às obras cartesianas.
Paganini (2008, nota 1, p. 271) afirma que as Règles Pour La Direction De L’Esprit foram
redigidas em fases, ao longo dos anos 1619 e 1628: “De toute manière, il semble certain
que la composition de l’ouvrage s’est étalée sur plusieurs années: elle fut commencée en 1619 et
achevée très probablement en 1628”.
2 “Mais maintenant que nous voici déliés de cette obligation qui nous enchaînait aux paroles
du maître, et qu’étant enfin d’un âge assez mûr nous avons soustrait notre main à la férule”
(1953, Regra ii, p.40).
3 O primeiro trecho, no diálogo Academica, em que o ceticismo acadêmico, através do
elogio de Cícero a Luculo, afirma a busca da verdade, é o seguinte: “A minha causa agora é
fácil, já que não pretendo mais do que procurar a verdade com todo o interesse e esforço”
(cicero, 2012, Acad. i, iii.8, p. 99). Deste trecho, segue-se a primeira ocorrência da
tese falibilista: “A obtenção do conhecimento é sempre dificultada por toda a espécie de
obstáculos, uma mesma insuficiência decorre tanto da obscuridade das próprias matérias
como da debilidade de nossa capacidade de julgar, pelo que não é sem razão, que os mais
antigos e cultos filósofos duvidaram da possibilidade de encontrar o que procuravam”. A
referência de Cícero aos ‘mais antigos’ é, provavelmente, aos pirrônicos Pirro e Timon.

158 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


culavam no contexto da segunda década do século xvii4, busco apontar que
o contraceticismo acadêmico formula-se desde este texto, sem que, no entan-
to, duvide-se do intuicionismo matemático. Mesmo que não haja justificação
metafísica do conhecimento e da razão, e que a dúvida hiperbólica não seja
afirmada, ainda assim há um uso do ceticismo acadêmico, majoritariamente
metodológico e que antecipa, em alguns termos, o ceticismo de 1637 e 41.5
A abordagem historiográfica na interpretação das obras cartesianas expli-
ca-se pelo próprio argumento de Descartes, o qual, mesmo em constante posi-
cionamento contra a tradição, apresenta indícios de marcadores renascentis-
tas e escolásticos.6 No princípio da Regra iii, por exemplo, há um argumen-
to a favor do conhecimento da tradição, ou seja, da erudição7. Mesmo que o

4 Para alguns exegetas que defendem a interpretação das Regulae como um texto contra o
ceticismo, ver: paganini (2008, nota 1, p.271).
5 O livro de Paganini (2008, pp. 270-88) é uma das poucas pesquisas contemporâneas
que compreende haver ceticismo no sistema cartesiano, desde as Règles. Paganini começa
discordando da interpretação de Popkin do ceticismo cartesiano, inspirada em filósofos e
teólogos de fins da primeira metade do século xvii, da não superação do ceticismo pela
falsidade das idéias. No entanto, concorda com Scribano, que diz que Descartes contribui
para a retomada e modificação do ceticismo, nos moldes, portanto, da interpretação de
Popkin (a tradição cética como inimiga e aliada do ceticismo cartesiano).
6 “les machines de guerre des syllogismes probables de la scolastique” (descartes, 1953,
Regra ii, p.40). Neste contexto, Descartes modera a validade do método escolástico. De
acordo com Paganini (2008, p. 270): “En effet, il est bien connu que la seconde Règle donne
une description de la difficulté de savoir qui est assez proche des formules adoptées dans
la partie initiale du Discours (...) (rejet du probable, recherche de connaissances à propos
desquelles ‘le doute est impossible’, dénonciation du dogmatisme et du pédantisme comme
autant de faux-semblants élaborés pour éviter une franche profession d’ignorance, etc.)”. A
modalização probabilista do método da disputatio, através dos silogismos, provavelmente
remete à influência das obras de Cícero no período da escolástica tardia.
7 “Il faut lire les ouvrages des Anciens, parce qu’il y a pour nous un immense avantage
à pouvoir utiliser les travaux de tant d’hommes, aussi bien pour connaître ce qui jadis a
été découvert de bon, que pour savoir aussi ce qui reste ensuite à trouver dans toutes les
sciences” (descartes, 1953, p. 42). A referência implícita às obras da tradição cética
pressupõe o uso das ferramentas do ceticismo, buscando reformular as ciências.

Marcelo Fonseca de Oliveira p. 157 - 179 159


bojo do argumento cartesiano nas Règles seja contra o conhecimento históri-
co8, ainda assim o próprio período das primeiras décadas do século xvii não
permitia a Descartes desenvolver uma argumentação estritamente analítica, ao
modo do contexto pós-kantiano.
Dito isso, o ceticismo é uma tradição formativa da filosofia moderna ini-
cial. Alguns exegetas e hermeneutas dedicaram-se a esclarecer a presença do
pirronismo ou do ceticismo acadêmico nas obras de Descartes.9 A ocorrên-
cia de termos associados ao termo scepticisme ao longo das obras cartesianas é
notável.10 Parece indubitável, assim, que haja um ceticismo cartesiano nas ori-
gens da filosofia moderna, a partir de um posicionamento contra o ceticismo.
A questão é a de datar o contato de Descartes com a tradição cética e definir
os textos nos quais Descartes baseou-se para as formulações de um nouveau
scepticisme.
Na carta de 1646, ao Marquês de New Castle, encontram-se menções dire-

8 Ver : descartes, 1953, Regra ii.


9 Dentre eles, os principais são: Gilson (1913), Gouhier (1962), Popkin (2003), Paganini
(2008), Curley (1978), Williams (1983). Para o mapeamento do ceticismo acadêmico no
século xvi, ver: Schmitt (1972). De acordo com este estudo: “The Academica, however, has
a particular interest, for it is one of the major sources for ancient sceptical doctrine, which
played a specific and, by now, well-documented role in the development of Renaissance
and seventeenth-century thought” (schmitt, 1972, p. 2). Schmitt compreende que
a superação do ceticismo acadêmico pelo cristianismo de S.Agostinho encontrou uma
retomada com Descartes (ibidem, pp. 31-2), mesmo que o método da dúvida diferencie
Descartes de Agostinho.
10 Paganini (2008, p. 231, nota 4) menciona o artigo de Meschini (2004), que levanta
duas ocorrências do termo académicien, quatro do termo Pyrrhonien e cinqüenta e três
de sceptique ou scepticisme ao longo da obra cartesiana. Mesmo que haja somente duas
ocorrências do termo ‘acadêmicos’, a presença do ceticismo de Cícero e de S.Agostinho
ocorre também por tópicos e outros termos fulcrais para esta tradição cética. Junto a isso,
o próprio fato de Descartes mencionar ‘pirrônicos’ e ‘acadêmicos’ menos vezes do que
‘céticos’ ou ‘ceticismo’, requer uma distinção no escopo destas referências, pois, ao se referir
aos ‘céticos’, Descartes pode estar se referindo aos acadêmicos.

160 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


tas a Montaigne e a Charron no contexto de questões antropológicas11 que,
por sua vez, embasam querelas teológicas. Estes são os dois principais nomes
da influência da tradição cética na modernidade. Já nas Respostas às Segun-
das Objeções, recolhidas pelo Pe. M. Mersenne, Descartes (1953, p. 367) afirma
que, há bastante tempo, conhecera textos pirrônicos e acadêmicos. Referindo-
-se, aproximadamente, a um intervalo de uma década ou mais, conjectura-se
o contato de Descartes com textos da tradição cética antiga e renascentista
durante sua juventude e maturidade.12
Para alguns, houve uma crise cética no homem Descartes entre 1616 e 1628.
Curley (1978, p. 38) conjectura, com acerto, que o contato com o ceticismo
ocorrera um pouco antes da escrita das Règles, ou seja, aproximadamente entre
1619 e 1628. Mas afirma, erroneamente, por um lado, que o dogmatismo deste
tratado buscava a superação do pirronismo, sem investigar a presença de Cíce-
ro e do ceticismo acadêmico.
Assim, o problema é definir o contato de Descartes com textos de Cíce-
ro. Mesmo havendo uma relativa preponderância do ceticismo renascentista
de Montaigne e de Charron nos textos cartesianos, há muita proximidade de
tópicos e de versões de argumentos com o ceticismo acadêmico. O conheci-
mento da tradição acadêmica, então, é muito provável, pois é Descartes mes-

11 Os tópicos sobre os quais trata esta carta são: diferenças entre os homens entre si e
entre os animais, inteligência e sensibilidade dos animais.
12 “Esse debruçar sobre si mesmo não passa de uma reflexão espontânea sobre o que ele
encontra nesse ‘grande livro’, o que o leva a ‘viajar’ durante toda a sua juventude. Montaigne
desejava que ‘esse grande mundo […] seja o livro de seu estudante’. Terá Descartes percorrido
os Ensaios no colégio ou no seio da família?” (rodis-lewis,1995, p. 34). E, de acordo com
Popkin (2003, p. 144): “When and how Descartes came into contact with sceptical views
is hard to tell. But he seems to have been well aware not only of the Pyrrhonian classics
but also of the sceptical current of his time, and its ever-increasing danger to the cause of
both science and religion”. Esta pertinente questão situa o contato com o ceticismo dos
Ensaios entre os anos finais em La Flèche (1614 ou 1615) até 1620 (ano em que se desalista
e começa a viajar). O contato com o De la Sagesse (1601), de Charron, acontece por volta
de 1619. Ver: rodis-lewis, 1995, p.61.

Marcelo Fonseca de Oliveira p. 157 - 179 161


mo quem afirma ter tido contato com estes textos.
A Regra iv é clara quanto à necessidade do método para o conhecimento
da verdade. A questão, no entanto, parece não se simplificar, contrariamen-
te aos princípios do próprio método cartesiano, quando se problematiza o
tratado sob viés do ceticismo. Para alguns, há ceticismo nas obras cartesianas
somente a partir de 1637, ou seja, ano de publicação do Discours De La Métho-
de. Ao mostrarmos que o ceticismo acadêmico, sobretudo pelo dispositivo
do vraisemblable (verossímil, probabilia)13, está presente desde as Règles, não
somente a interpretação do ceticismo de Descartes se reforça, mas o sistema
cartesiano atrela-se à própria biografia intelectual de Descartes.
Como a Regra i nos indica, o método reforça o juízo em todos os conhe-
cimentos, aí incluída a moral. Este parece o segundo patamar da presença do
ceticismo acadêmico nas Règles, a saber, um nível moral que busca embasar a
sagesse. Aliás, a redução das ciências à sagesse é declarada pelo próprio Descar-
tes: “Car, étant donné que toutes les sciences ne sont rien d’autre que la sagesse
humaine” (descartes, 1953, Regra i, p. 37).14

13 A primeira ocorrência do probabilismo, no diálogo Academica, encontra-se no


contexto do elogio de Cícero a Luculo: “entre mim e os que julgam saber alguma coisa
a única diferença é que estes não hesitam em declarar verdadeira a tese que defendem,
enquanto para mim muitas ideias são meras probabilidades, que podemos aceitar com
facilidade, mas não podemos garantir serem verdade” (cicero, 2012, Acad.i, iii.8, p. 100).
A distinção entre acadêmico e dogmático se instaura pela presunção de certeza, por parte
do dogmático, que defende como verdade o que apenas é provável. Daí, então, a distinção
entre verdade e provável. Em outro momento, lê-se: “Mas o cúmulo do absurdo é dizerdes
que aceitais a verossimilhança desde que para tal não haja qualquer impedimento. (...)”
(cicero, 2012, Acad.i, xviii.59, p. 136). Trata-se da continuação da crítica estoica à
epistemologia acadêmica, através de Luculo. Esta tradução sobrepõe o original em latim
(coisas verossímeis) pelo substantivo abstrato (verossimilhança), que traduz o termo
probabilia.
14 No contexto do discurso do estoico Luculo contra os acadêmicos, lê-se: “Acima de
tudo é a teoria da virtude que confirma ser possível percebermos e compreendermos muita
coisa. Segundo penso, é nela apenas que consiste a sabedoria, a qual, em minha opinião,
não é uma mera compreensão das coisas, mas uma compreensão que entendo ser estável e

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As relações entre sabedoria (sagesse) e ciência (science) na tradição cética,
apesar da separação analítica destes âmbitos, parece confluir para um tipo de
teleologia na qual a epistemologia resulta na moral. Descartes busca refun-
damentar as ciências (e, então, o ceticismo lhe serve no ataque às ciências, na
demolição dos falsos saberes, no embasamento da verdade através da recusa do
provável), buscando ferramentas para a vida (responder a objeção, aos céticos,
de apraxia). Nestes dois frontes o ceticismo apresenta-lhe dispositivos para o
alcance de seus objetivos. Ora, ao reduzir as ciências à sabedoria, Descartes
busca embasar a sabedoria ao modo de uma ‘ciência da vida’. O trecho acima
nos fala da prioridade da vida, não em detrimento, mas através do auxílio das
ciências, mesmo que estas devam ser reconstruídas. Ao priorizar a vida atra-
vés do ataque às ciências, Descartes, por um lado, adere ao tópico acadêmico
do eulogon (o razoável, de Arcesilau), empenhando ferramentas acadêmicas
na tarefa. O ceticismo acadêmico, então, instrumentaliza-se no pensamento
cartesiano. Quase nenhum resquício de pirronismo encontra-se nas Règles.15
Considerando o ataque de Sexto Empírico à aritmética16, o ceticismo de Des-

imutável” (cicero, 2012, Acad.i, viii.23, p. 113). Na inflexão entre moral e epistemologia,
a virtude supõe conhecimento. O termo em latim que se refere à ‘sabedoria’ é scientia, que,
por sua vez, corresponde ao termo grego sofia. Em grego, a distinção entre sofia e epistéme
esclarece a ambivalência do trecho acima, ambivalência que perpassa a obra cartesiana. O
próprio trecho original do Academica é ambíguo no uso do termo, pois, em seguida, Cícero
usa o termo sapientia (cicero, 2012, Acad.i, viii.24, p. 113).
15 Na regra xii encontra-se o quarto tropo para a suspensão do juízo (h. p, i.14), ou
seja, o conhecimento é relativo à percepção do sujeito: “(...) que celui qui est malade d’une
jaunisse juge que tout est jaune, parce qu’il a les yeux colorés en jaune (...)” (descartes,
1953, p.84). Sexto menciona este mesmo exemplo. Para Descartes, o conhecimento das
naturezas compostas pode oscilar em relação ao sujeito cognoscente, já que o sujeito
apresenta a capacidade de compor estas naturezas, ou segundo a experiência ou segundo as
próprias capacidades (impulso, conjectura ou dedução). Segundo Paganini (2008, p.233),
Descartes não conhecia as obras de Sexto Empírico, o que parece improvável, dado o
contexto intelectual na França das primeiras décadas do século xvii.
16 Sexto ataca a possibilidade mesma da aritmética através de um ataque aos números,
contra Pitágoras. Ver: sextus empiricus (1949, iv.1-34). Este é o quarto livro do
Adversus Mathematicos.

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cartes é dogmático, visto que ele usa as matemáticas no embasamento meto-
dológico.
A sabedoria é uma questão de bom senso (bona mens). Assim, a busca da
verdade (la connaissance solide de la vérité) define-se pela sabedoria e este pare-
ce um signo de ceticismo. Parece haver um pano de fundo nesta busca, visto
que não se abdica da sua utilidade para a teologia, ou seja, o conhecimento
da verdade, que embasara as ciências, ocorre através da lumière naturelle17 da
razão. Esta capacidade epistêmica compôs um dos tópicos da querela contrar-
reformista.
Desse modo, a Regra ii nos oferece os dois critérios que definirão o méto-
do cartesiano: a certeza e a indubitabilidade. O segundo critério, que estabe-
lece que toda e qualquer dúvida prejudica o conhecimento certo e evidente,
pressupõe o contato com o ceticismo. Assim, Descartes menciona, indireta-
mente, os que estendem a dúvida ao irrazoável: “et celui qui doute de beau-
coup de choses n’est pas plus savant que celui qui n’y a jamais pensé” (descar-
tes, 1953, Regra ii, p. 39).18

17 A lumière naturelle, aparentemente, aproxima-se do critério calvinista da ‘luz interior’


para a iluminação e eleição dos cristãos. Esta capacidade epistêmica, oriunda de S.Agostinho,
parece também advir de uma definição que encontra-se no dialogo Academica, quando
Luculo define a razão como: “(...) quando ela é por assim dizer a luz que nos ilumina a vida
(...)” (cicero, 2012, Acad.i, viii.26, p.114). Em outros trechos, Luculo refere-se à razão
de modo similar, como a ‘luz da verdade’ (Acad.i, x.31).
18 Podemos dizer que neste trecho encontra-se, em germe, a fórmula da superação da
dúvida cética, tal qual anunciada por Descartes ao Pe. Bourdin em direção à certeza.
Ver: Popkin (2003, p.143). A primeira ocorrência da definição negativa dos acadêmicos,
como dogmáticos negativos (que negam a possibilidade do conhecimento), encontra-se
no contexto do discurso de Luculo contra os acadêmicos e a favor do estoicismo. Ver:
cicero, 2012, Acad.i, vi.17, p. 108). Em outros trechos do mesmo Livro, a definição
persiste (ix.28, p. 116). Ao definir o cético acadêmico, Luculo rejeita que este seja sábio,
pois: “Ter dúvidas a este respeito, e nem sequer acreditar que essas dúvidas possam vir a ser
removidas, é atitude o mais contrária possível à sabedoria”, (Acad.i, ix.29, p. 116). Trata-se
da não aceitação de Carnéades de que haja um tipo de conhecimento a partir da conclusão
de que nada pode ser conhecido. Se Carnéades não compreende que haja conhecimento

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Aparentemente, este trecho não trata mais da sabedoria, mas de ciência.
Paradoxalmente, Descartes recusa a dúvida hiperbólica cética, ou seja, duvi-
dar de tudo não define melhor um homem de saber do que um ignorante que
jamais pensou em assuntos científicos. Esta conclusão parcial, assim, coaduna-
-se à prioridade da vida, da sabedoria, e não da ciência. A estratégia desta fór-
mula é a de aproximar savants (cientistas, eruditos) ao ignorante, para anular
as pretensões da ciência através da sabedoria acadêmica (ignorância).
Neste contexto, o cético desconhece mais que o homem comum, que não
tem ideia alguma ou só concebe ideias falsas. Esta recusa de uma primeira
versão da hiperbolização da dúvida explica-se por contextos nos quais, sen-
do incapaz de distinguir o verdadeiro do falso, o espírito admite certo o que
é duvidoso. Este é um erro que Descartes não admite, sobretudo na configu-
ração do conhecimento. É pela oposição a este erro que o método se embasa.
Há, portanto, uma inserção negativa do ceticismo acadêmico, desde a
Regra ii, que testemunha a recusa do probabilismo, em prol da certeza: “nous
rejetons toutes les connaissances qui ne sont que probables, et nous décidons
qu’il ne faut donner son assentiment qu’à celles qui sont parfaitement connues
et dont on ne peut douter”(descartes, 1953, Regra ii, p. 39).19
A recusa do probabilismo (acadêmico) e a manutenção do assentimento20

nesta conclusão, a origem do Cogito parece mais próxima à posição do estoicismo.


19 A querela sobre o probabilismo foi o cerne da discussão entre Descartes e Chandoux,
na ocasião do encontro ocorrido no chatêau do Núncio Papal, o cardeal Bagni (popkin,
2003, pp.145-6). Sobre a resposta de Descartes ao probabilismo de Chandoux, afirmo que
Descartes parece ter se utilizado do método do in utramque partem disserere, ao modo
do discurso de Carnéades sobre a justiça, em Roma: “Descartes rose to show them the
enormous consequences, to give them a living lesson of scepticism. If only probabilities
served as the basis for views, then one would never discover the truth, because one could
not distinguish truth from falsehood any longer. The criterion, the rule of truth, was gone”
(popkin, 2003, p. 146). Ainda segundo Popkin, este encontro teria ocorrido por volta de
1628.
20 Ao apresentar o ceticismo acadêmico em resposta às objeções de Luculo, lê-se:
“Segundo Carnéades há dois gêneros de representações sensoriais. (...) por um lado as

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são dois signos da influência de Cícero na formação do ceticismo cartesiano.21
O contexto de origem desta influência remete à querela contra os estoicos sobre
a probabilidade de representações falsas participarem do conhecimento.22 A
dúvida se corrobora pela existência de falsas representações. Se há probabili-
dade de representações falsas confundirem-se com representações verdadeiras,
é preciso uma técnica de análise das representações que envolva o assentimen-
to. Já que do escopo do provável se deduz a dúvida, ou seja, o conhecimento
provável não é conhecimento certo, trata-se da recusa da dúvida acadêmica.23
A questão reside no fato de que os dogmáticos (les doctes) não admitem
que o conhecimento deles possa incorrer, apenas, em verossimilhança (vrai-
semblances), aferrando-se a falsas razões. Assim, o corolário cético da recusa do

representações verossímeis, por outro as inverossímeis. (...) Por conseguinte, no entender


de Carnéades não existe nenhuma representação sensorial que possa traduzir-se em
conhecimento, mas há muitas de que decorrem opiniões verossímeis. Seria, de facto,
contrário à natureza que nada existisse de verossímil, pois isso redundaria na destruição da
vida humana” (cicero, 2012, Acad.i, xxi.99, p.168). Em trecho anterior, argumentando
contra Luculo, a épochè é tratada associando-se ao assentimento que, por sua vez, resulta
no problema da opinião. Carnéades concedia assentimento e, então, opinava. No entanto,
sob uma perspectiva estoica e acadêmica, recusa-se assentimento ao verossímil (probabilia),
pois nele há probabilidade de falsidade e se, portanto, o sábio não opina, o corolário é a
suspensão total do juízo (Acad.i, xxi.67-68, pp.143-4).
21 O probabilismo é um tipo de ceticismo acadêmico mitigado. A primeira ocorrência
sobre o probabilismo, no Academica, ocorre no contexto do discurso de Luculo, que recusa
dialogar com os dogmáticos negativos. O probabilismo, então, é apresentado como outra
versão do ceticismo acadêmico: “Ora os primeiros (...) entendem que existe a categoria do
provável, que têm, por assim dizer, a aparência do verdadeiro, e pode constituir um critério
não só para a vida prática, mas também para as investigações e dissertações de ordem
teórica” (cicero, 2012, Acad.i, x.32, p. 119). O problema do assentimento é tratado em
seguida, ver: (Acad.i, xii.37-xiv.44, pp. 122-126). Luculo reconstrói alguns argumentos
probabilistas, relativos ao assentimento em condições adversas, como a alucinação, o sonho
e a embriaguez (Acad.i, xv.48-xvii.54, pp. 128-133).
22 Luculo recusa o conhecimento do falso, pela recusa do duvidoso. Ver: (cicero, 2012,
Acad.i, viii.26, p. 115).
23 Nas Respostas às Segundas Objeções, Descartes afirma que o conhecimento duvidoso
não constitui ciência, substituindo o provável pelo duvidoso.

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ceticismo acadêmico é o de recusar falsos dogmáticos. A diaphonia24 decorre
dos falsos dogmatismos. Assim, a conclusão parcial do ajuste metodológico
contra-acadêmico incorre, paradoxalmente, em um resultado acadêmico: “En
vérité, si nous observons bien cette règle, il y aura fort peu de choses, dont
nous pourrons entreprendre l’étude” (descartes, 1953, Regra ii, p. 40).25
Paradoxalmente, o ceticismo acadêmico permite a Descartes a formulação de
um dogmatismo veraz.
A constatação de que parte do cabedal teórico resume-se à probabilidade,
à verossimilhança e não à certeza e à indubitabilidade, conduz o argumento da
Regra ii a uma versão negativa de dogmatismo, o acadêmico. Todas ou boa par-
te das ciências anteriores a Descartes estão fadadas à conclusão de invalidade,
pois não atendem à Regra ii, formulada com dispositivos acadêmicos, a saber,
de que é preciso rejeitar todo conhecimento provável, assentindo somente ao
conhecimento certo e indubitável.

24 « (…) en effet, il n’y a peut-être pas une question, sur laquelle les savants n’aient été
souvent en désaccord. (…) » (descartes, 1953, Regra ii, p. 40). A diaphonia apresenta
um papel fulcral ao longo da primeira metade da filosofia moderna (até o século xviii).
Descartes menciona a diaphonia no contexto do comentário sobre o conhecimento
(filosofia, teologia e ciência): “car il n’existe à peu près rien qui n’ait été dit par l’un et
dont le contraire n’ait été affirmé par l’autre” (Regra iii, p. 43). Descartes está sopesando o
argumento de autoridade, dizendo que não há indubitabilidade nos escritos antigos.
25 No contexto do discurso de Luculo, são os estoicos que exigem que o método de
distinção das representações seja empregado no conhecimento da verdade: “Entendem esses
filósofos não ser necessário definir o que seja conhecimento ou percepção, ou, se quisermos
uma versão literal do grego, a compreensão, para traduzir o que eles chamam de katalepsis.
Os que pretendem persuadir os outros de que existe algo que pode ser compreendido ou
apercebido não procedem cientificamente, dizem os críticos, uma vez que nada existe de
mais claro que a própria clareza (...). Se estais de acordo poderei dizer perspicuidade ou
evidência” (cicero, 2012, Acad.i, vi.17, p. 108). O método cartesiano de definição do
escopo da razão, então, inspira-se no Academica, mas parte de uma exigência estoica. Notar
que a crítica de Arcesilau a Zenão é a de que o método estoico não é científico, o que
corrobora a influência acadêmica no desenvolvimento posterior do sistema cartesiano.
Notar ainda que os dois critérios epistêmicos, celebrados na história da filosofia moderna
por Descartes, ou seja, a clareza e a evidência, são oriundos do estoicismo.

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No entanto, Descartes parece vislumbrar outro nível de conhecimento, no
qual as opiniões prováveis (opinions probables) que fundamentam parte das
ciências não têm lugar. A Regra ii, portanto, acorda-se com a conclusão aca-
dêmica de que não há conhecimento certo, não há certezas válidas, que toda
ciência, sob análise, torna-se uma falsa ciência. Esta constatação acadêmica,
contudo, serve de instrumento ao pensamento cartesiano.
A extensão do escopo do conhecimento implica outra vertente do ceticis-
mo. Se o argumento de autoridade não fosse sopesável, isto não implicaria que
a adesão da maioria se constitua em critério. A sabedoria ensina que, em ques-
tões difíceis, a verdade é um conhecimento raro (descartes, 1953, Regra iii,
p. 43). Esta tese revela o catolicismo velado de Descartes. O ceticismo que lhe
subjaz é função da distância da verdade, do falibilismo natural e de um fideís-
mo subjacente, pois somente a Revelação permite o conhecimento da verda-
de. Assim, a constatação acadêmica, a partir da Regra ii, valida o fideísmo, ou
seja, a constatação de que a teologia é inescrutável, mas não de modo similar
ao desconhecimento crônico das ciências (que não obedecem à Regra ii), pois,
depois da reconstrução delas, o conhecimento será certo.
Se há um fideísmo cartesiano nas Règles, este define-se, paradoxalmente,
pela rejeição de toda e qualquer especulação teológica ao longo da investiga-
ção. A conjectura obscurece os juízos sobre a verdade. A certeza e a evidência
prejudicam-se pelas conjecturas. Esta higiene epistêmica, que estabelece limi-
tes ao juízo, é mais um signo do ceticismo acadêmico que, no entanto, pode
corroborar a separação analítica que embasa o fideísmo.
No entanto, o probabilismo parece o grande aliado da conjectura (des con-
jectures probables). Rejeitando a experiência como conhecimento válido ou
como meio para o conhecimento da verdade, Descartes estabelece a intuição
(lumière de la raison) e a dedução (succession) como método no conhecimento
da verdade.
Não se compreende o fideísmo sem a distinção entre o que as capacidades
epistêmicas podem conhecer, o falibilismo, e o reconhecimento ou admissão
de uma esfera metafísica que não pode ser conhecida. Aos limites naturais do

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conhecimento, a intuição e a dedução, a Revelação instaura outra instância
de conhecimento: “Cela n’empêche pas cependant que pour ce qui a été révé-
lé par Dieu, nous y croyons comme à une connaissance plus certaine encore”
(descartes, 1953, Regra iii, p. 45).26
O que impede que a Revelação instaure-se como conhecimento certo e
distinto?! Descartes separa o âmbito das ciências do fideísmo, ou seja, o escopo
da Regra ii não invalida o fideísmo. Mas não se trata de um fideísmo místico.
A fé, por participar mais da vontade do que do entendimento, volta-se para o
que é obscuro (um dos níveis dos adèla) sem, no entanto, afirmar conhecê-lo.
Mas se a fé participa do entendimento, então a fé poderá ser conhecida ou
pela intuição ou pela dedução. A questão é que, ao fim da Regra iii, a fé não
se reduz ao entendimento, o que probabiliza seu desconhecimento enquanto
capacidade epistêmica.
Na verdade, algumas ferramentas acadêmicas, ao serem utilizadas, auxi-
liam na demonstração da obscuridade de teologias que empregam a luz natu-
ral. Trata-se, assim, de método inspirado, paradoxalmente, no ceticismo aca-
dêmico, pois a simplicidade e facilidade das regras (Regra iv) é inversamente
proporcional à potencial complexidade dos resultados probabilísticos que, por
sua vez, baseiam-se na verossimilhança, ou seja, na aproximação. A invalidade
do verossímil respalda-se por potencializar a inferência sobre o falso, supon-
do-o verdadeiro. Descartes insiste em contra-argumentar contra este erro, ou
seja, jamais aderir a um juízo em que haja a mínima probabilidade de falsidade.

26 A certeza da Revelação é uma função do falibilismo cético e do fideísmo, pelos quais


as verdades reveladas são uma dádiva da Graça. Pelas ideias inatas, a intervenção divina
atua no homem e somente Deus garante a não falibilidade. Discorda-se, então, de Paganini
(2008, p. 236), que diz que o ceticismo de Descartes não se coaduna ao projeto apologético
católico. O ceticismo acadêmico cartesiano não foi formulado com objetivo apologético,
mas o mesmo é compatível com um tipo de apologética católica. O fideísmo encontra-se
em vários trechos da Apologie de Raimond Sebond: “Or n’y peut-il avoir des principes aux
hommes, si la divinité ne les leur a revelez: de tout le demeurant, et le commencement, et le
milieu, et la fin, ce n’est que songe et fumée. (…)” (montaigne, 2004, i.12, p. 540).

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A fé não é objeto de análise das Règles. O falibilismo envolve mais a ima-
ginação e mesmo os sentidos, mas não necessariamente o entendimento. Os
limites na investigação correspondem ao falibilismo, fator que resulta tanto
dos erros oriundos dos sentidos e da imaginação, como também do método
que limita as direções do conhecimento da verdade.27
Um dos princípios da sabedoria, que se coaduna com as bases do método, é
o de não insistir quando a intuição não fornece ao entendimento proposições
suficientemente claras e distintas. A Regra viii, portanto, pressupõe a adesão a
um tipo de falibilismo epistêmico, o qual jamais deve ser perscrutado, sob risco
de superfluidade da investigação. Este limite é signo do ceticismo acadêmico,
que se associa ao bom senso como virtude epistêmica e moral (desde a crítica
ao vício da curiosidade, na Regra iv).
Esta certeza conquistada pelo método, resultado da ordenação a partir
da enumeração das naturezas simples28, trata-se de uma certeza cética, pois
corolário do estabelecimento de fronteiras epistêmicas. A razão, desse modo,
define-se pela capacidade do bom senso em reconhecer os limites da inteligên-
cia humana, embasando a certeza.
Através da análise das representações, método acadêmico de origem pirrô-
nica (peritrope), mas que embasa a recursividade enquanto dispositivo meto-
dológico da filosofia moderna, a certeza do conhecimento pode assegurar-se:
“Or, il n’est rien plus utile ici que de chercher ce qu’est la connaissance humai-
ne et jusqu’où elle s’étend” (descartes, 1953, Regra viii, p. 65).29

27 “Et quoique bien des choses souvent poussent lui être proposées, dont la recherche sera
interdite par cette règle, il ne se croira pas cependant plus ignorant pour avoir clairement
compris qu’elles dépassent les bornes de l’intelligence humaine; et cette certitude même,
que nul ne peut rien savoir de la question cherchée, satisfera largement sa curiosité s’il
est raisonnable” (descartes, 1953, Regra viii, p. 64). A certeza dos limites da razão
configura uma ignorância natural que, quando conhecida, torna-se razoável.
28 Figura, extensão, movimento, largura, etc., são naturezas simples porque são indivisíveis
e conhecíveis de modo claro e distinto.
29 Para a interpretação deste preceito como um antídoto contra o ceticismo que, no

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Na verdade, esta é a primeira premissa das Règles, pois este tratado moti-
va-se pela triagem das capacidades epistêmicas, constatando a invalidade das
ciências pelo embasamento de regras do conhecimento certo e veraz. A uti-
lidade do método valida-se pela definição do conhecimento, que define seu
escopo. O método recursivo parece inspirar-se no ceticismo acadêmico, na
análise das representações.
A recursividade de alguns argumentos céticos permite ao sábio moderno o
conhecimento da certeza, na busca pelo conhecimento da verdade através da
formulação de critérios eficazes. O falibilismo da razão, portanto, é salutar ao
fideísmo, pois reconhece a congênita ignorância da natureza humana e, por
conseguinte, de toda e qualquer ciência:“Au contraire, rien ne me semble plus
absurde que de discuter hardiment sur les mystères de la nature (…) comme
font beaucoup de gens, et n’avoir cependant jamais cherché si la raison humai-
ne est capable de découvrir ces choses” (descartes, 1953, Regra viii, p. 65).30
Neste trecho, o bom senso, ou moderação na investigação, corrobora o
fideísmo, se compreendermos que Deus rege a natureza, o que não significa
afirmar que a teologia é soberana em relação às ciências, tese da qual Descartes
parece querer desvencilhar-se. Ora, se os mistérios da natureza fossem inson-
dáveis, o próprio projeto cartesiano de reconstruir as ciências, através do méto-
do, soçobraria. Assim, Descartes parece referir-se à tese de que o conhecimen-

entanto, corrobora um tipo de ceticismo, ver: paganini, 2008, pp.271-3. Este método é
próximo ao estoicismo de Epiteto (ver, por exemplo, a parte iv do Manual, onde o uso das
representações é o tópico que define o estoicismo). No contexto da resposta acadêmica às
objeções de Luculo, lê-se: “A natureza não nos deu o conhecimento dos limites [do próprio
conhecimento], em nenhuma matéria podemos fixar até onde é possível ir” (cicero, 2012,
Acad.i, xxix.93, p. 162). Trata-se do ceticismo sobre a razão através do ataque à dialética,
exemplificado pela regressio ad infinitum como resultado do argumento do sorites.
30 O trecho é bastante similar ao seguinte trecho do diálogo Academica, no qual Cícero
critica os dogmáticos pela precipitação do assentimento: “não entendo porquê, mas é um
facto que a maioria dos homens prefere cair no erro e defender com todas as forças a teoria
por que sentiu alguma simpatia do que, sem obstinação, investigar qual a doutrina que
oferece maior coerência” (2012, Acad.i, iii.9, p. 101).

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to da natureza leve ao conhecimento de Deus (rejeitando um tipo de panteís-
mo naturalista).31 De todo modo, a constatação dos limites das discussões (que
parecem envolver tanto os ditos sábios, teólogos, quanto cientistas) explica-se,
pois se deparou com o desconhecimento (os mistérios da natureza). Esta cons-
tatação demonstra a necessidade do método, ou seja, da definição da razão em
suas capacidades.
Descartes coloca-se também contra a superstição que envolve diversos
pseudo-saberes. O ataque ao charlatanismo32 configurava uma das pautas
dos libertinos eruditos, que não poupavam filósofos, pseudocientistas (falsos
médicos) e mesmo teólogos medíocres. Descartes, enquanto cientista, justifica
seu método pela presença de falsos saberes, prejudiciais ao conhecimento da
verdade. O posicionar-se contra o dogmatismo, ou seja, contra os que deba-
tem, convictamente, sobre o que desconhecem, no entanto, possibilita o refor-
ço do fideísmo. A distinção entre razão e fé, assim, é uma distinção de razão: a
razão limita-se ao escopo do entendimento. A fé, mesmo que não probabilize
o conhecimento de Deus, justifica-se pelos próprios termos da razão.33 A aná-

31 Notar na modalização ‘discutir com veemência’, que pressupõe a diaphonia entre


dogmáticos. Ou seja, há um limite para as discussões. Podemos até conhecer a natureza em
seu funcionamento, leis causais, produtos e mesmo a história natural. No entanto, quando
se depara com questões abstrusas, mesmo o savant deve deter-se. A questão aqui envolve
não somente a crítica cristã ao vício da curiosidade, mas envolve igualmente a rejeição à
disputatio escolástica. O dogmatismo nas discussões é signo das querelas teológicas, em
contexto das guerras de religião que opuseram católicos e huguenotes.
32 Para o contato de Descartes com obras de ciência (aritmética, geometria, astronomia,
física, química) e de pseudo-ciências, que lhe muniram no uso do ceticismo, ver: rodis-
lewis, 1995, p. 27.
33 Mesmo que o tema seja os ‘mistérios’ da natureza, em um argumento moderno inicial
em que ecos do Renascimento estão presentes, parece haver uma camada teológica no
argumento de Descartes. A fé parece definir-se pelo tipo de demonstração dos limites da
inteligência humana, ou seja, sempre que se quiser conhecer a fé, o resultado mais útil
será o da demonstração do limite da própria razão. Esta ignorância mitigada, que não é a
ignorância socrática, pois a ignorância cética conhece, mas com limites; é o principal vetor
do ceticismo acadêmico de Cícero.

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lise da razão define o escopo do conhecimento. Sem a aplicação deste método
cético, prévio a qualquer conhecimento, a razão arrisca-se a incorrer em vani-
dade ou erro.
Descartes emprega o probabilismo, de modo mais positivo, por assim
dizer, na explicação da gênese e do conhecimento das naturezas compostas
(descartes, 1953, Regra xii, p. 85). O conhecimento de naturezas compos-
tas é somente conjectural, pois oriundo de juízo provável. Este conhecimento
resulta não na verdade, mas em prováveis naturezas compostas. Aderindo-se a
esta observação, evita-se o engano. No entanto, ao constatar a verossimilhan-
ça das naturezas compostas, o ceticismo sobre o mundo exterior conhece um
primeiro esboço.
***
Para concluir, concorda-se com Paganini (2008, p. 233), sobre a presen-
ça do ceticismo acadêmico no ceticismo cartesiano: “en effet, Cicéron et
Saint Augustin sont cités plusieurs fois dans les textes de Descartes, mais leur
influence et les thèmes traités dans leurs œuvres s’étendent bien au-delà de la
seule topique du doute”.
Paganini, ao dizer que Cícero e S. Agostinho são citados ‘muitas vezes’
nos textos cartesianos, não se equivoca, pois se refere aos tópicos e termos que
remetem ao ceticismo acadêmico. O argumento, então, que refuta a influên-
cia cética no ceticismo de Descartes, baseado nas poucas referências aos céti-
cos, sobretudo acadêmicos, é falho. A compreensão do ceticismo cartesiano
ocorre pelo jogo de referências implícitas aos céticos antigos e modernos e na
própria ambivalência em relação à validade da tradição filosófica e teológica.
Esta ambivalência é natural, tratando-se das décadas de formação da filosofia
moderna, na qual a necessidade de se desvencilhar dos tópicos e argumentos
do Renascimento se efetiva de modo parcial, com um retorno à escolástica tar-
dia. Sobretudo no âmbito das Règles Pour La Direction De L’Esprit, tratado
inacabado, os trechos mesmos que indicam presença do ceticismo, pelo pró-
prio formato do texto, exalam um teor fragmentário.

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A redução da ciência à sabedoria remete ao cristianismo acadêmico de S.
Agostinho que, por sua vez, origina-se, de certo modo, na querela entre estoi-
cos e acadêmicos. De certo modo, o ceticismo influencia a redução da ciência à
sabedoria, pois corrobora a constatação falibilista a qual, por sua vez, constata
que não há conhecimento. O contexto do debate trata da questão do assen-
timento, de se o sábio pode emitir opiniões e, por conseguinte, dos tipos de
épochè. Para os estoicos, ao opinar, o sábio submete-se ao erro. Os acadêmicos,
então, aderem a certo tipo de probabilidade das opiniões, o que implica a igno-
rância. Esta, quando usada de modo cético, implica sabedoria (sagesse).
Por outro lado, o ceticismo cartesiano é ambivalente em relação a este tópi-
co, pois busca uma sabedoria para o momento em que reformula as bases do
conhecimento para, em seguida, fundamentar a ciência. Descartes não men-
ciona a suspensão do juízo nas Règles. Assim, o ceticismo cartesiano, neste tra-
tado, é um ceticismo acadêmico ephético, pois mitiga a dúvida, buscando um
método que defina um critério de certeza às representações e ao conhecimen-
to. É por isso que o ceticismo cartesiano não é pirrônico, pois não busca uma
vida sem dogmas, mas busca reconstruir os dogmas com base em uma episte-
mologia da certeza que será útil à vida.
A dúvida participa na constituição da sabedoria e como propedêutica à
reformulação do conhecimento. No entanto, Descartes parece recusar a dúvi-
da dos céticos acadêmicos, que duvidam de tudo e recusam a possibilidade
do conhecimento da verdade.34 Não acho que o trecho em que Descartes
rejeita uma versão da dúvida hiperbólica faça referência exclusiva ao ceticis-
mo moderno e/ou renascentista. O contraponto à rejeição é o de comparar o
cético dubitativo ao ignorante, em provável alusão ao ceticismo acadêmico. O
cético, que de tudo duvida, não sabe mais que um ignorante que jamais teve

34 O título da Regra ii, na qual encontra-se o uso do ceticismo acadêmico, sugere um


ceticismo sobre os próprios critérios do conhecimento: “É preciso se ocupar somente dos
objetos sobre os quais nosso espírito parece capaz de adquirir um conhecimento certo e
indubitável” (“Il ne faut s’occuper que des objets dont notre esprit paraît capable d’acquérir
une connaissance certaine et indubitable”) (descartes, 1953, Règle ii, p. 39).

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ideia sobre a dúvida ou que possui ideias confusas sobre o conhecimento de
algo. No entanto, note-se que a dúvida está em função da certeza, ou seja, Des-
cartes usa a dúvida na busca do conhecimento, pois aquele que duvida de tudo
não conhece mais (n’est pas plus savant) do que o estulto. Assim, não há uma
recusa peremptória de toda e qualquer dúvida, mas uma moderação no uso da
dúvida, o que configura um ceticismo acadêmico urbano e ephético.
Paradoxalmente, no entanto, a rejeição do provável - pois a probabilidade
contém brechas que podem resultar no falso - parece concordar com o cético
acadêmico (o dogmático negativo), que coloca em dúvida até as evidências
mais ordinárias. Ora, se todo ou quase todo conhecimento é provável, por-
tanto duvidoso, explica-se o esboço da dúvida hiperbólica, acadêmica. Mas o
critério de certeza não permite que mesmo o critério acadêmico do probabile
seja aceito como parâmetro do juízo na busca do conhecimento da verdade. O
corolário desta rejeição do provável é o exercício do assentimento, visto que o
provável é duvidoso, pois não é certo e evidente. O critério para o conhecimen-
to da verdade, nas Règles Pour La Direction De L’Esprit, portanto, apresenta
uma versão da dúvida hiperbólica, pois rejeita até mesmo o probabilismo de
Carnéades, ou seja, rejeita a mitigação do ceticismo, recurso encontrado por
Carnéades para validar a vida cética.
O conhecimento implica perfeição, ou seja, a exclusão de todo e qualquer
traço duvidoso. A menção ao cético que duvida de muitas coisas refere-se à ver-
são dogmática negativa dos acadêmicos, pois estes duvidariam até mesmo dos
novos critérios estabelecidos pelo ceticismo cartesiano, a certeza e a evidência,
na busca de perfeição epistêmica.35
Assim, sob este critério, o escopo do conhecimento se reduz. A higiene

35 Na Regra ii, o alvo são os doutos (doctes), que se identificam aos céticos acadêmicos do
contexto parisiense da primeira metade do século xvii, ou seja, aqueles que não distinguem
o verdadeiro do falso e admitem por certo o duvidoso (descartes, 1953, Règle ii, p. 39).
A definição do douto alude ao cético acadêmico pela querela sobre as ideias verdadeiras,
versão moderna da querela entre estoicos e acadêmicos sobre as representações catalépticas.

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epistêmica realiza-se através da exclusão do probabilismo, pois este corrobora
a dúvida. Superar a dúvida pela certeza e perfeição do conhecimento implica a
redução mesma do escopo epistêmico. Neste caminho, o fideísmo favorece-se,
pois a fé permanece intacta, ou seja, a análise epistêmica não explica a fé, e o
objeto da fé, o Deus católico, permanece incógnito. As verdades de fé não são
prováveis ou verossímeis, mas são ainda mais certas e evidentes. A Revelação,
instância suprema advinda de Deus, configura-se como o conhecimento mais
certo e mais evidente, visto que alguns homens são dotados de luz natural. O
falibilismo não atinge a luz natural, mas esta capacidade epistêmica é acionada
somente pela fé, que instaura a Graça.
Por conseguinte, o falibilismo da razão justifica a recursividade do méto-
do. Esta recursividade advém da tradição cética, do pirronismo (peritrope) e do
ceticismo acadêmico (indistinção entre representação cataléptica e acatalépti-
ca).36 Ao constatar o falibilismo natural, o escopo das ciências se reduz quase
ao mínimo. O conhecimento não deve imiscuir-se em searas que desconhece
ou que são difíceis. Antes mesmo que se instaure a diaphonia, é preciso exami-
nar a razão em suas capacidades, reivindicações e escopo.37 Sobre os adèlon (o
conteúdo obscuro do conhecimento natural, que é incerto) não haverá jamais
isosthenia (equipolência), pois sobre o que se desconhece não há plausibilidade

36 A recursividade é o método necessário à análise das representações. Luculo assim


descreve o método acadêmico: “Como vistes na conversa de ontem acerca das sensações,
eles procedem assim com tudo: dividem cada tópico em partes cada vez mais pequenas,
com o propósito de mostrar que em todas as impressões verdadeiras estão misturadas
outras falsas, que em nada se distinguem das verdadeiras: dadas estas circunstâncias, nunca
será possível obter-se a compreensão de coisa alguma” (cicero, 2012, Acad.i, xiii.42,
p. 125). Ao substituir-se o termo “representação” por “ideia”, explica-se a epistemologia
cartesiana a partir do método analítico acadêmico. No entanto, há ainda probabilidade de
que a epistemologia moderna, que começa com Descartes, seja uma mistura entre ceticismo
e estoicismo (sobretudo de Epiteto).
37 “L’importance décernée à cette tache critique (dans le sens propre du mot critique, car
elle permet de tracer les limites où la connaissance humaine est possible et fructueuse) est
parfaitement compatible soit avec le thème sceptique, du même coup qu’elle s’achemine
vers le dépassement du scepticisme” (paganini, 2008, p. 273).

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de opiniões. Sem se deixar convencer facilmente, desde o assentimento exer-
citado, o cético permanece constante, mantendo autonomia do juízo contra a
diversidade de opiniões. Assim, o saber sobre a extensão do conhecimento é
um requisito para a busca da verdade, configurando a moderação epistêmica
necessária à sabedoria.

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ACADEMIC SCEPTICISM IN DESCARTES’ RÈGLES POUR LA
DIRECTION DE L’ESPRIT (I, II, III, VIII AND XII)

abstract: It seems that some tools from academic scepticism are included
on the epistemic precepts in the Règles pour la direction de l’esprit (Amster-
dam, 1701). At the second Rule, for example, Carneades’ probabilism can be
found as one of the most leading tracks of academic scepticism in the early
modern philosophy. There are another topics from this tradition that were
used by Descartes on the formulation of his own modern scepticism, such
as the definition of science as wisdom (first Rule). In this way, academic scep-
ticism is, paradoxically, one of the allies of the search for Truth (as the fourth
Rule shows us). The scope of this paper, hence, is to comprehend how aca-
demic scepticism appears on the Règles’ epistemic project, through topics like
the search for wisdom, the doubt’s alleviation, the exercice of assentiment by
refusing probabilism and the truth of fideism. The academic method’s scope
includes these topics, defined by epistemic analysis or recursiviness.
keyword : Knowledge; Probability; Assentiment; Wisdom; Doubt.

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Marcelo Fonseca de Oliveira p. 157 - 179 179


ESPINOSISMO DA FÍSICA DE SCHELLING

Mariana Alkimin Rincon


Mestranda, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
mariana.rincon@usp.br

resumo: O seguinte texto analisa uma passagem da Introdução ao esboço


do sistema da filosofia da natureza de 1799 escrito por Schelling, em que este
equipara o projeto de sua filosofia da natureza à realização de um “espinosismo
da física”. A compreensão de tal designação passa por pelo menos dois
momentos. O primeiro se refere à sistematicidade pressuposta da forma de
sua filosofia, que, por sua vez, se propõe rigorosamente científica. O segundo
apresenta sua oposição à compreensão materialista e mecanicista da natureza,
com a descrição desta a partir do primado do orgânico em relação ao inorgânico.
palavras-chave: Schelling; Espinosismo; filosofia-da-natureza; imanência;
organismo.

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Em 1835, Heinrich Heine escreve em seu livro Contribuições à História da reli-
gião e filosofia na Alemanha o seguinte comentário:

a Alemanha é o solo mais fértil para o panteísmo: é a religião de nos-


sos maiores pensadores, de nossos melhores artistas, e lá o deísmo já há
muito tempo ruiu na teoria, conforme relatarei mais tarde. Como mui-
tas outras coisas, ainda se conserva, sem nenhuma justificação racion-
al, apenas na massa irrefletida. Ninguém diz, mas todo mundo sabe: o
panteísmo é o segredo público na Alemanha. Na verdade, já estamos
muito crescidos para o deísmo. Somos livres e não queremos um tirano
tonitruante. Somos emancipados e não precisamos de cuidados pater-
nais. Também não somos a obra malfeita de um grande mecânico. O
deísmo é uma religião para servos, para crianças, para genebrinos, para
relojoeiros. (heine, 1991, p. 68)

Algumas páginas depois, a filosofia da natureza de Schelling é menciona-


da:

No fundo, a ideia de filosofia da natureza não é outra coisa senão a ideia


de Espinosa, o panteísmo.

A doutrina de Espinosa e a filosofia da natureza, como Schelling a expôs


em seu melhor período, são essencialmente uma e mesma coisa. (heine,
1991, p. 120)

Em seu tom habitualmente irônico, H. Heine indica uma caracterís-


tica particular entre os alemães do fim do xviii e começo do xix, uma certa
tendência ao panteísmo. Schelling, que é designado sempre como “o senhor
Schelling”, não teria se esquivado dela. Sua filosofia da natureza é apresentada,
particularmente, como uma fiel expressão do espinosismo na Alemanha. Essa

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qualidade, contudo, não revelaria um motivo para alguma generosidade com o
autor. Relegado à sombra de seu contemporâneo, Hegel, “o senhor Schelling”
teria, para Heine, se arrastado “como um verme pelas antessalas de um Abso-
lutismo prático e teórico” e sua filosofia da natureza, como uma reação ao Ide-
alismo transcendental de inspiração fichteana, ganhava discípulos que, “como
garotos de escola, livres depois de penar o dia todo, em apertadas salas de aula”,
saíam de tropel para a natureza, “para o ensolarado e fragrante real” (heine,
1991, p. 120).
Com efeito, a relação entre a filosofia da natureza de Schelling com
a filosofia de Espinosa é declarada explícita e intencionalmente pelo próprio
autor. Na Introdução ao primeiro esboço de um sistema da filosofia da natureza,
publicada em 1799, vemos Schelling designar seu próprio projeto como um
“espinosismo da física”. Ele afirma:

A Filosofia da natureza, como o oposto da filosofia transcendental, é


distinta desta principalmente pelo fato de que ela põe a Natureza como
autônoma (Selbständige) (não, contudo, na medida em que ela é produ-
to, mas na medida em que ela é ao mesmo tempo produtiva e produto);
por isso ela pode de modo mais conciso ser designada por espinosismo da
física (schelling, 1958, iii, p. 273, tradução nossa).

O objetivo do presente artigo é, pois, examinar esta passagem e apre-


sentar o que pode ser compreendido por tal espinosismo.

1. filosofia da natureza, oposta à filosofia transcendental

Um ano depois de publicado o Primeiro esboço de um sistema da filosofia


da natureza, Schelling apresenta no prefácio do Sistema do Idealismo Trans-
cendental o paralelo necessário e que não pode ser ignorado entre a filosofia da
natureza e a filosofia transcendental:

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O que impulsionou o autor, sobretudo, a conferir um empenho parti-
cular na apresentação dessa conexão, que é, na verdade, uma sequência
gradual de intuições, através da qual o Eu se eleva para a consciência
na mais alta potência, foi o paralelismo da natureza com a inteligência,
ao qual o autor foi há muito conduzido, e no qual não é possível re-
presentar completamente nem a filosofia transcendental nem a filosofia
da natureza, mas apenas ambas as ciências, e que precisamente por isso
devem ser eternamente opostas, e nunca podem vir a ser uma. A prova
convincente da completa igualdade da realidade de ambas as ciências,
do ponto de vista teórico, que o autor até então apenas afirmou, deve
ser buscado, então, na filosofia transcendental e particularmente nessa
apresentação que o presente trabalho contém, que é, portanto, conside-
rado como um complemento necessário ao seu escrito sobre a filosofia
da natureza (schelling, 1958, iii, pp. 331-332, tradução nossa).

São duas filosofias às quais nosso autor se refere, sendo a filosofia da natu-
reza uma delas. A outra, a filosofia transcendental, que teve seu sistema desen-
volvido no prosseguimento do texto citado, é referida como oposta àquela.
São duas ciências de validade teórica equivalente e complementar e que, con-
tudo, “nunca podem a vir a ser uma”. Ambas se encarregam de um mesmo pro-
blema, a concordância (Übereinstimmung) entre a natureza e o Eu, o objeto e
o sujeito, o real e o ideal, mas se distinguem quanto ao percurso de resolução.
A filosofia da natureza parte, em seu princípio, do real, da natureza, em direção
ao ideal; enquanto o idealismo transcendental tem o Eu como ponto de par-
tida, o ideal, e se dirige, assim, ao real. Se este último é equivalente à filosofia
fichteana, como nosso próprio autor admite em diversas passagens, Schelling
parece demarcar uma de suas originalidades dentro do Idealismo pós-kantiano
ao dispor a filosofia da natureza necessariamente ao lado dele.
A intenção científica pressuposta, que é ao mesmo tempo sistemática,
aparece no conjunto inteiro da obra schellinguiana, desde seus primeiros escri-
tos. Por detrás da posição de que existem duas ciências de valor teórico equi-
valente, tem-se em vista como tarefa da filosofia a construção de uma ciência
autofundante. Em seu primeiro escrito, Sobre a possibilidade de uma forma da
filosofia em geral, vemos nosso autor desenvolver a definição hipotética de sua
atividade:

184 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


A própria filosofia não deve ser condicionada por nenhuma outra ciên-
cia; por consequência, o conteúdo de sua proposição fundamental
(Grundsatz) não deve ser tomado de nenhuma outra ciência, dado que
ele deve ser condição de todo o conteúdo da ciência mesma, ele deve ser
um conteúdo disponível simplesmente (schlechthin) incondicionado. Tão
somente por isso, é afirmado ao mesmo tempo que o conteúdo da filo-
sofia funda todo conteúdo da ciência em geral. (schelling, 1958, i, p.
91, tradução nossa).

De modo semelhante à Doutrina-da-Ciência, Schelling expõe o proble-


ma da cientificidade da filosofia nos termos de “forma” (Form) e “conteúdo”
(Inhalt). Como comenta Rubens Torres em O espírito e a letra,1 essa é a melhor
maneira de compreender a imbricação entre o aspecto de “totalidade” e “uni-
dade” que a filosofia envolveria em sua definição. A forma sistemática garante
referência estendida à totalidade do saber e, portanto, a todas as ciências em
conjunto. Ela encontra (zusammentrifft), na filosofia, seu conteúdo incondi-
cionado correspondente, na medida em que tem como proposição fundamen-
tal um enunciado cuja verdade não é condicionada senão por si mesma e que
encerra em si a verdade de todos os demais enunciados. Como mostram Fran-
ck Fischbach e Emmanuel Renault:

A vontade de autofundação própria a todo percurso científico não pode


ser totalmente satisfeita senão por um saber tão englobante quanto a
filosofia. Nesse primeiro sentido, a filosofia deve ser sistemática porque
o sistema é a modalidade de uma autofundação última do saber. Além
disso, essa tese implica que essa autofundação última deve igualmente
ser uma autofundação total, i.e., que a filosofia deve dar conta em seu
seio da integralidade do saber não filosófico. Nesse segundo sentido, a
filosofia deve ser sistemática porque o sistema é a modalidade de esgot-
amento do saber (fischbach & renault, 2001, p. 36, tradução nossa).

1 O comentário se refere à filosofia de Fichte, mas corresponde à questão levantada.

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A forma sistemática que visa o esgotamento e totalidade do saber requer
um conteúdo correspondente que seja capaz de fundar por si mesmo todo
enunciado e conhecimento necessário. Uma vez que forma e conteúdo devem
ser inseparáveis e idênticos na proposição fundamental, o exame sobre a pos-
sibilidade da filosofia é também aquele sobre a possibilidade dessa unificação.
Sem entrar nos detalhes argumentativos do ensaio em questão, obser-
va-se que Schelling acrescenta uma outra qualidade necessária ao princípio da
ciência a qual já estaria compreendida em sua própria concepção. Ela não é
senão a própria forma originária do saber que se pretende esgotar e seu conteú-
do, que, então, é identificado ao saber humano. A terceira nota do texto expri-
me essa consideração de maneira sintética ao se questionar sobre a necessidade
de que o princípio da filosofia seja único:

A partir de onde eu posso demonstrar isso? Perguntar-se-á – Da forma


originária (Urform) do saber humano! – Na verdade, eu não chego a isso
senão pressupondo uma tal unidade absoluta no meu saber (logo essa
própria forma originária). Isso é um círculo. – Mas um tal círculo só
poderia verdadeiramente ser evitável se não houvesse verdadeiramente
nada de absoluto no saber humano. O absoluto não pode ser dado senão
através do absoluto. Há um absoluto pela simples razão de que há um
absoluto (a=a) (schelling, 1958, i, p. 92, tradução nossa).

O conteúdo absoluto da proposição fundamental da filosofia e sua for-


ma sistemática corresponde para Schelling, neste ensaio, à própria natureza do
saber humano, de modo que uma realização da ideia de filosofia corresponda,
de modo geral, a uma exposição da própria razão humana. Nesse sentido, ao
pensar as condições da ciência e a capacidade de estabelecê-la de modo abso-
luto, notamos que sua forma e seu fundamento não podem ser demonstrados
por algum artifício externo. As bases da ciência são expostas pura e simples-
mente e sua efetividade é provada por essa exposição. Do mesmo modo, pode-
mos dizer que qualquer unificação promovida pela unidade do sistema total

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do saber não é senão um retorno à unidade originária deste próprio saber ou
uma recolocação dele.
Um ano depois, Schelling publica as Cartas filosóficas sobre dogmatismo e
criticismo, em que, contudo, considera que o critério de sistematicidade e incon-
dicionalidade da filosofia não implica necessariamente em que o saber huma-
no, ou melhor, o Eu, seja estabelecido como princípio para a realização de um
sistema legítimo. Se há uma forma e um método único para a filosofia, disso
não se segue que ela se realizará materialmente de um só modo possível. Nesse
contexto, nosso autor se refere propriamente à Crítica da Razão Pura como
o método, ou o cânone, de todo sistema filosófico. Vemos na Quinta Carta:

Nada me parece mais evidente, para provar quão pouco a maioria captou
até agora o espírito da Crítica da Razão Pura, do que aquela crença quase uni-
versal de que a Crítica da Razão Pura pertence apenas a um único sistema,
quando, entretanto, o caráter próprio de uma crítica da razão tem de consis-
tir exatamente em não favorecer a nenhum sistema como exclusividade, mas
antes, em estabelecer efetivamente o cânon para todos eles, ou, pelo menos,
prepará-lo. [...] mas nada de mais triste pode acontecer a uma tal obra do que
ver o método que estabelece para todos os sistemas ser tomado pelo próprio
sistema. (schelling, 1973, p. 188)

É possível observar não apenas um, mas ao menos dois sistemas filosóficos
já presentes na história que lograram em sua tarefa, aqueles do dogmatismo e
do criticismo. O primeiro ensaio de Schelling, Sobre a possibilidade da filosofia
em geral, assim como a filosofia de Fichte, na medida em que apresenta o Eu
como princípio de toda ciência, se aproximou deste último, mas sem notar que
ao seu lado se mantinha consistentemente um outro sistema, com um princí-
pio oposto ao seu, que corresponde ao dogmatismo.
Na Terceira Carta, o método universal da Crítica se traduz pelo problema
com o qual ela teria se iniciado “Como chegamos, em geral, a julgar sintetica-

Mariana Alkimin Rincon p. 181 - 207 187


mente?”. Por mais que na atividade filosófica esteja envolvida a apreensão do
fundamento absoluto de todo saber, o procedimento que interessa ao nosso
autor segue a ordem sintética. A pergunta que o direciona é a de como do fun-
damento chega-se ao saber mesmo, como do incondicionado segue-se ao con-
dicionado. Schelling já não especifica o caráter apriorístico de seu objeto (os
juízos sintéticos a priori), pois o que lhe interessa não é uma parte do saber já
constituído, mas ele em geral.2 A concepção de síntese justamente expõe o pro-
blema da passagem da unidade à multiplicidade que o sistema filosófico envol-
ve. Em um juízo sintético, vemos operar uma unificação de certa multiplici-
dade dada. Mas esta própria multiplicidade deve pressupor uma unidade que
a antecede, pois, caso contrário, uma unificação posterior não seria possível e
cada elemento se manteria em sua singularidade pura e simplesmente. Desse
modo, é de um conflito anterior, entre a multiplicidade e a unidade, que a sín-
tese nasce. Na medida em que a questão sobre a possibilidade da síntese traduz
a do conhecer em geral, a unidade que ela pressupõe é a unidade primordial
absoluta. Se não houvesse um princípio único, a unidade do saber e a própria
possibilidade da síntese em geral estaria ameaçada. Afinal, se a operação sin-
tética que pressupõe uma multiplicidade e uma unidade sempre recorresse a
uma unidade anterior, de tal forma que surgisse uma nova oposição em rela-
ção à multiplicidade e à unidade, cairíamos inevitavelmente em uma regressão
infinita. Diríamos, pois, que a unidade pressuposta é ela mesma uma síntese, a
qual pressupõe, por sua vez, uma outra unidade e uma outra multiplicidade, e
assim por diante. Mas a afirmação de uma unidade pura e simples como prin-
cípio do saber também não é desprovida de dificuldades. Se a multiplicidade
deve, em última instância, pressupor esta unidade, perguntamos então: como é
que de uma unidade pura e simples poderíamos ter chegado à multiplicidade?
Estamos, assim, diante do problema do exílio do Absoluto, da passagem de um
princípio ao que dele se deriva de modo condicionado.

2 Há, nesse aspecto, uma proximidade à filosofia fichteana, segundo a leitura de Rubens
Torres. (torres, 1975, pp. 34-36)

188 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Nesses termos, ainda em uma discussão formal a respeito da unidade abso-
luta e sua passagem à oposição, Schelling descreve, posteriormente, no diálogo
Bruno, algumas exigências presentes nas noções envolvidas que podem auxi-
liar na compreensão do alcance da questão:

Bruno: Somente uma coisa, ó excelente, parece ter-te passado desperce-


bida: a saber, como fazemos da unidade de todas as oposições o primei-
ro, mas a própria unidade, juntamente com aquilo que denominamos
oposição, forma, por sua vez, uma oposição, e aliás a suprema, nós,
para fazer daquela unidade a suprema, temos de pensar também essa
oposição, juntamente com a unidade que se contrapõe a ela, como com-
preendida naquela, e determinar aquela unidade como a unidade em
que a unidade e a oposição, o igual a si mesmo e o desigual, são um.
(schelling, 1973, p. 249)

Apesar de se tratar se um texto posterior às Cartas, o argumento que des-


creve a unidade primordial como condição da síntese é equivalente ao que é
apresentado neste diálogo. A unidade absoluta não forma uma nova oposição
em relação à diferença. Ela mesma deve ser a unidade da unidade e da dife-
rença. Com efeito, ela não poderia ser uma unidade turvada pelo seu oposto,
pois desse modo ainda seria necessário assumir uma unidade superior que fos-
se a condição de possibilidade da síntese que se sucede. Portanto, a unidade
primordial não é ela mesma diferente da oposição, muito menos da unidade
derivada. A questão do exílio do Absoluto nos leva à conclusão, pois, de que,
na verdade, não há qualquer exílio. Antecipamos, com isso, o resultado que
surge na Sétima Carta, o qual indica que não é possível haver passagem entre
Absoluto e o seu oposto, não por serem domínios inconciliáveis, mas porque
essa própria oposição é contraditória na análise das condições da síntese e da
unidade primordial. Se, com efeito, há uma distinção entre aquilo que é por
si mesmo, de modo incondicionado, e aquilo que é em e por outro, de modo
condicionado, ela se estabelece de maneira espinosista, não como uma distin-

Mariana Alkimin Rincon p. 181 - 207 189


ção real entre substâncias, mas reconduzindo à unidade absoluta que deve ser
imanente a todo produto.
É a Ética, justamente, o sistema que é considerado nas Cartas como o
exemplo mais bem acabado do dogmatismo. O que o difere do criticismo não
estaria na ordem do método. Contudo, a sistematicidade da filosofia não anu-
laria certo caráter aporético. São dois sistemas que são possíveis e sua diferença
se baseia na interpretação do seu princípio. O sistema dogmático, ao invés de
considerar o Eu, o sujeito, como o seu princípio, considera o objeto, a natureza
ou Deus. Essa diferença de princípio, que marca a oposição entre os sistemas,
é equivalente à oposição entre a filosofia da natureza e o idealismo transcen-
dental. Como comenta Xavier Tilliette a respeito da Introdução ao primeiro
Esboço:

O antagonismo schellinguiano da Natureza e do Eu não é um con-


fronto, ele empresta suas características à distinção da filosofia transcen-
dental e da filosofia da Natureza. A Introdução ao Esboço [...] toma a
tarefa de esclarecer a relação. A oposição entre as duas filosofias é uma
oposição de direções; mas que implicam uma convergência, do mesmo
modo que o dogmatismo e o criticismo tinham um ponto de encontro
assimptótico e divergiam apenas pelo modo do seu Streben (esforço)
(tilliette, 1970, p. 176, tradução nossa).

De um lado, no idealismo transcendental, parte-se do Eu, e por ele mesmo


se constrói a totalidade do saber que nele se esgota. De outro lado, nisso que
seria a ciência realista, parte-se da totalidade da natureza e por ela mesma se
constrói todo o conhecimento a respeito de seus produtos. Ambos os sistemas
convergem em seu fim, o acordo entre o ideal e o real, mas se opõem quanto ao
sentido do percurso.
Nas Cartas filosóficas, Schelling apresentava que se dois sistemas filo-
sóficos são possíveis e devem permanecer lado a lado, a razão para tanto estava

190 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


em um certo colapso da teoria e na sua submissão ao terreno prático. O projeto
científico da filosofia requer um princípio único incondicionado do qual todo
saber deve ser derivado. Um tal princípio, contudo, não pode ter sua verda-
de demonstrada teoricamente. Como nos mostra Rubens Torres Filho, o fun-
damento (Grund) é, ele mesmo, um abismo sem-fundo (grundlos Abgrund)
(torres, 2004, p. 169). Sua natureza não pode ser meramente teórica como
ocorre no caso de um teorema ou de um axioma. Ele possui, por sua vez, a for-
ma de um postulado prático3 e é garantido pelo pressuposto de uma liberdade
e causalidade absoluta do próprio sujeito. Os sistemas filosóficos, reconduzi-
dos a uma origem prática, não são concebidos como resultados de um saber
teórico. Eles se aproximam do que poderíamos chamar de sistemas de ação,
em que cada um segue um imperativo próprio. O criticismo se direciona a afir-
mar a própria liberdade do sujeito pressuposta, enquanto o dogmatismo a ela
renuncia.
Keith Peterson comenta que haveria uma mesma ocorrência do método
do postulado prático na construção da filosofia da natureza, primeiro porque
o paralelo entre esta e o idealismo transcendental seria da mesma natureza que
aquele entre dogmatismo e criticismo das Cartas, segundo, porque nosso autor
se utilizaria de um procedimento de formulação de hipóteses, o qual seria vali-
dado pelo pressuposto de um primado prático (schelling, 2004, p. xiii -
xxi). Contudo, Schelling, no Esboço ao sistema e em sua Introdução, não pare-
ce se referir a um estado em que o Eu, ao postular a natureza como princípio
incondicionado, abdicaria de sua liberdade em favor de uma causalidade abso-
luta exterior a si mesmo. Quanto aos enunciados mais gerais e primeiros de sua
ciência, vemos nosso autor se referir, com efeito, à formulação de hipóteses,
mas isso parece, por sua vez, se adequar, nesse contexto, ao caráter condicio-
nado para o qual a razão é conduzida frente à totalidade absoluta da natureza.
Vemos na Introdução ao Esboço:

3 Sobre esse assunto, ver artigo Schelling e a Questão dos Postulados Práticos em ‘Cartas
filosóficas sobre dogmatismo e criticismo’ (pacheco, 2018).

Mariana Alkimin Rincon p. 181 - 207 191


Isso que inserimos na natureza não tem outro valor senão o de uma pres-
suposição (hipótese) e a ciência fundada sobre uma tal pressuposição
deve ser então tão hipotética quanto o princípio mesmo. Só podemos
remediar isso, a saber, se não houvesse nada de arbitrário nessa pres-
suposição e se ela fosse tão necessária quanto a natureza mesma (schell-
ing, 1958, iii, p. 277, tradução nossa).

A construção da filosofia da natureza como uma ciência deve ser capaz


de compreender todo conhecimento dos fenômenos naturais a partir
de um princípio único, mas nem por isso seu método de realização é
inteiramente analítico. Ela deve ser, por excelência, a priori. Entretanto,
isso não significa que o modo adequado de conhecer a natureza seja,
ele mesmo, independente de toda experiência. O caráter apriorístico
da filosofia da natureza não diz respeito à fonte pela qual conhecemos
os fenômenos, se é empírica, analítica etc. Mas se refere à qualidade de
que ela deve ser necessária e imutável. A experiência, por sua vez, nos dá
ocasião do reconhecimento de uma tal ciência incondicionada, i.e., do
reconhecimento da própria natureza. Schelling chega a afirmar que “nós
não apenas sabemos isto e aquilo através da experiência; muito mais que
isso, nós não sabemos primitivamente senão graças à experiência, e nessa
medida o conjunto de nosso saber não consiste senão em proposições
empíricas.” Se os enunciados da filosofia da natureza têm algum caráter
hipotético, o que fica claro, por exemplo, logo no título do primeiro
tratado sobre filosofia da natureza de Schelling, de 1798, que é intitula-
do “A alma do mundo, uma hipótese da física superior para a explicação do
organismo geral”, ou mesmo no nosso presente objeto de estudo, que é,
ademais, um “esboço”, nosso autor destaca a compreensão de que o con-
hecimento sobre a natureza é uma reconstrução desta, a qual, por sua
vez, se constrói por si mesma. Sendo a natureza, nesse contexto, sujeito,
ativa, princípio incondicionado, o Eu que conhece e reflete é, agora,
relegado a um produto seu. Vemos nosso autor afirmar ainda no início
da Introdução ao Esboço: “o que nós chamamos de razão é um mero jogo
de forças naturais superiores e necessariamente desconhecidas” (schell-
ing, 1958, iii, pp. 273-4, tradução nossa).

O pressuposto primeiro da filosofia da natureza é, assim, uma produtivi-


dade inconsciente (unbewusst), desconhecida por nós, que gera espontane-
amente estruturas regulares em seus produtos, tal como no idealismo trans-
cendental o pressuposto primeiro é a atividade do Eu que produz a totalida-

192 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


de do saber, sendo neste caso uma produção acompanhada de consciência. A
experiência, por si mesma, não é suficiente para que o sistema da natureza seja
apreendido por nós. Ela fornece apenas uma coleção de fatos. Sua articulação
necessária apenas pode ser fornecida propriamente pela ciência, pela especu-
lação. A filosofia da natureza não pode ser, assim, uma mera ciência empírica,
ainda que não prescinda da experiência. Ela é uma física especulativa, na medi-
da em que sua investigação visa o que há de unificador e primordial em todos
os fenômenos possíveis.
Vejamos, assim, como nosso autor desenvolve mais positivamente o modo
pelo qual se organiza essa, então, física especulativa e como a concepção de um
“espinosismo da física” a ela se equivale.

2. física especulativa e evolução dinâmica

Vemos na Introdução o fundamento da organização interna do sistema da


filosofia da natureza, a partir do qual se pode notar certa proximidade com a
filosofia de Espinosa:

Na medida em que consideramos a totalidade dos objetos não apenas


como um produto, mas ao mesmo tempo necessariamente como produ-
tiva, ela se eleva à natureza para nós, e nada mais do que essa identidade
do produto com a produtividade está implicado na ideia de natureza, mes-
mo no uso ordinário da linguagem.

A natureza como um mero produto (natura naturata) chamamos na-


tureza como objeto (é com esta que o empirismo lida), a natureza como
produtividade (natura naturans) chamamos de natureza como sujeito (é
com esta apenas que toda a teoria lida) (schelling, 1958, iii, p. 284,
tradução nossa).

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De modo equivalente às Cartas filosóficas, o texto em questão também
recorre à filosofia espinosana como modelo para se pensar a totalidade da
natureza, seu princípio e a articulação entres os objetos particulares, finitos.
A natureza, assim como o Eu no idealismo, deve primordialmente ser pensada
como atividade, como produtividade, à qual Schelling aproxima a concepção
espinosana de natura naturans, e, ao mesmo tempo, ela deve ser identificada
aos seus produtos, enquanto natura naturata. A natureza deve ser, nesse sen-
tido, unidade da produtividade e de seus produtos, na própria produtividade,
a qual, assim, deve ser imanente e não transitiva a estes. Esta deve ser o princí-
pio de ação do qual e no qual se produz tudo o que é. Assim, a distinção entre
as duas formas de “natura” não é, com efeito, substancial e se refere, podemos
dizer, à qualidade de sua causa ser interna ou externa, similar a como se obser-
va, por exemplo, a partir da proposição 16 da Ética i, em que a causalidade de
todas as coisas não é atribuída a elas próprias, mas a Deus, como princípio e
causa primeira.4 Desse modo, Schelling denomina “produtos” tudo aquilo que
não existe por si mesmo e é causado por um outro, e “produtividade” a ativida-
de primordial da qual todos os produtos são efeitos.
A referência à filosofia de Espinosa para a elaboração de uma ciência
natural não é exclusiva da filosofia da natureza de Schelling no século xvii.
Pode-se notar uma ocorrência similar em outros autores. O verbete “espinosis-
ta” da Enciclopédia escrito por Diderot é um caso dela:

Espinosista: sectário da filosofia de Espinosa, não se pode confundir os


espinosistas antigos com os espinosistas modernos. O princípio geral
destes é que a matéria é sensível, o que eles demonstram pelo desen-
volvimento do ovo, corpo inerte, que pelo único instrumento do calor
graduado passa ao estado de ser senciente e vivente, e pelo crescimento

4 ei, proposição 16, corolário 1: “Deus é causa eficiente de todas as coisas que podem cair
sob o intelecto divino”; corolário 2: “Deus é causa por si, e não por acidente”; corolário 3.:
“Deus é absolutamente causa primeira”. (espinosa, 2015, p.75-7)

194 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


de todo animal que em seu princípio não é senão um ponto e que por
assimilação nutritiva se torna um grande corpo que sente e vive em um
grande espaço. Disso se conclui que não há senão matéria e que ela bas-
ta para tudo explicar; de resto ele segue o antigo espinosismo em todas
suas consequências (diderot & d’alembert, 1751-1765, vol. xv, p. 474,
tradução nossa).

Para os sectários modernos da filosofia de Espinosa, deve-se considerar


que: “não há senão matéria, e ela basta para tudo explicar”. Os enciclopedis-
tas franceses não foram os únicos a associar o espinosismo a um materialismo.
Após mais de um século, vemos em comentadores como Vidal Peña e André
Tosel também o esforço para uma tal associação5. Schelling, por sua vez, não se
pretende materialista tanto quanto espinosista. Com efeito, o exemplo de um
ser orgânico, de um animal, que no início é um ponto, mas que se desenvolve
e passa a ocupar um grande espaço, vivendo e sentindo, não é estranho à com-
preensão da totalidade da natureza e da articulação de todas as coisas a partir
de um princípio único. Contudo este não é concedido à matéria simplesmen-
te. Se dermos atenção à qualidade da matéria como “sensível”, é possível que
ocorra uma ampliação do conceito em direção a certo dinamismo, o qual, por
sua vez, se aproxima mais do que o nosso autor propõe. A natureza conside-
rada como princípio de ação e de produtividade pura na filosofia da natureza
de Schelling é ao mesmo tempo pura potência dinâmica, ainda que nela esteja
compreendida certa oposição com seus produtos, sendo estes uma potência
antidinâmica, limitante. A Introdução apresenta uma imagem que ilustra isso
que denominamos “dinamismo” da natureza:

O produto não é primitivamente senão um mero ponto, um mero lim-


ite, e é somente quando a natureza luta contra esse ponto que ela se
eleva a uma esfera mais ampla (Suponhamos, para ilustrar, um córrego,

5 Ver El materalismo de Spinoza (1974) de Vidal Peña e Du matérialisme de Spinoza


(1994) de André Tosel.

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um fluxo de água, o qual é pura identidade. Quando ele encontra uma
resistência, se forma um turbilhão, esse turbilhão não é nada de fixo,
mas ele desaparece a cada instante e surge de novo a cada instante. – Na
natureza não há primitivamente nada a se distinguir; todos os produ-
tos estão igualmente dissolvidos e invisíveis na produtividade geral. É
somente quando são dados os pontos de entrave que os produtos são
progressivamente constituídos e saem daquela identidade geral (schell-
ing, 1958, iii, p. 289, tradução nossa).

Como no verbete da Enciclopédia, os produtos da natureza são reduzidos


primordialmente a um simples ponto, mas é preciso que lhe seja atribuída, des-
de o princípio, uma certa potência de movimento. A imagem do córrego nos
ilustra que a natureza primordialmente deve compreender alguma mobilidade
ou atividade. Os produtos considerados como opostos à produtividade são,
por sua vez, os inibidores antidinâmicos e geram “resistência” e “turbilhão” de
instante a instante. Eles sozinhos não são, portanto, toda composição da natu-
reza, assim como a matéria considerada isoladamente também não é. Como
potência negativa em relação à atividade originária, os produtos são responsá-
veis pela diferenciação e se manifestam, mais propriamente, em uma contínua
alternância das formas ou ainda no que ele chama de metamorfose infinita.
Nosso autor se pergunta na Introdução:

(A questão que se pode levantar é como uma transição de forma (Gestalt)


para forma é possível aqui quando nenhuma forma é fixa. Mas, que
chegamos a formas momentâneas lá onde seguramente, a cada instante, a
forma é uma forma determinada, é tornado possível pelo fato de que a
evolução (Evolution) não pode ocorrer em velocidade infinita.)

O produto aparecerá como sendo tomado em uma metamorfose infini-


ta.” (schelling, 1958, iii, p. 300, tradução nossa).

Os editores da edição francesa, Franck Fischbach e Emmanuel Renault,


comentam que o termo “metamorfose” foi retirado do ensaio de Goethe A

196 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


metamorfose das plantas (schelling, 2001, p.114). Robert Richard em seu
livro The romantic conception of life: Science and philosophy in the age of Goethe
nos relembra que a Introdução do Esboço foi revisada por Goethe antes de ser
publicada. Com efeito, Schelling escreve uma carta a Goethe dois anos após a
publicação do Esboço revelando sua fonte. Ele diz:

A metamorfose das plantas, de acordo com sua teoria, se provou indis-


pensável para mim como o esquema fundamental para a origem de todo
ser orgânico. Pelo seu trabalho, eu fui levado bem perto à identidade
de todos os seres organizados entre eles e com a terra, que é a sua fon-
te comum. Que a terra pôde se tornar plantas e animais já estava nela
através do estabelecimento da organização dinâmica básica, e então o
orgânico nunca de fato surge, uma vez que ele já estava lá. No futuro
estaremos aptos a mostrar que a primeira origem das mais organizadas
plantas e mais organizados animais está na mera terra dinamicamente
organizada, do mesmo modo que o senhor foi capaz de mostrar como
as mais organizadas flores e partes sexuais das plantas podiam surgir
das inicialmente pouco organizadas gêmulas através da transformação.6
(apud richards, 2002, p. 306, tradução nossa)

Se os produtos da natureza são tomados por uma metamorfose infinita,


nesta carta Schelling se restringe à metamorfose quanto aos seres orgânicos. A
terra, como uma organização dinâmica básica, seria a fonte comum das plantas
mais organizadas até os animais. A Introdução ao Esboço não ignora a questão
sobre a origem dos seres organizados. Na verdade, nela, nosso autor chega a
afirmar de modo veemente que o problema mais universal da filosofia da natu-
reza pode ser expresso em: como reduzir a construção dos produtos orgânicos
e inorgânicos a uma expressão comum (schelling, 1958, iii, p. 306). Da alma
do mundo, escrito um ano antes do Primeiro Esboço, se ocupou, tal como este

6 Schelling to Goethe (26 January 1801), in f. w. j. Schelling, Briefe und Dokumente, ed.
Horst Fuhrmans, 3 vols. to date (Bonn: Bouvier Verlag, 1962– 1:243).

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último, em mais de um terço das páginas com as condições, causas e funciona-
mento do processo vital. A afirmação de um princípio dinâmico da natureza
não contempla apenas o dinamismo dos movimentos físicos dos corpos restri-
tamente, como se poderia supor, mas igualmente visa aquele dos movimentos
concernentes aos seres orgânicos, o seu desenvolvimento, perecimento e trans-
formações em geral.
A atenção particular aos seres organizados ganha ainda mais intensidade
quando se observa que nosso autor promove uma inversão da resposta mate-
rialista à questão da origem dos seres vivos. Se dissermos que o ponto de vista
materialista em geral pressupõe a subordinação de todo ser orgânico a causas
inorgânicas, seja por reações químicas seja por alguma forma de interação físi-
ca, a filosofia da natureza de Schelling não lhe é adepta. Essa carta a Goethe,
assim como a Introdução, apresenta que todos os seres orgânicos particulares,
mesmo os mais complexos, têm uma causa comum simples, mas esta causa pos-
sui, ela mesma, uma potência orgânica, de modo que se afirme que “o orgânico
nunca de fato surge”, mas estava sempre presente de algum modo.
A relação entre essas duas categorias, orgânico e inorgânico, reflete, por
sua vez, a relação entre o infinito e finito, incondicionado e condicionado tal
como apareceram nas Cartas filosóficas sobre dogmatismo e criticismo, como
mencionamos. Se o criticismo tinha como principal problema explicar a pas-
sagem entre o Eu ao não-Eu, a filosofia da natureza, no contexto da Introdução,
se pergunta, de modo inverso aos materialistas, como ocorre a passagem do
orgânico ao inorgânico.7 O modelo imanentista permanece a forma pela qual
o problema se soluciona.

7 A anterioridade do orgânico em relação ao inorgânico não foi algo defendido apenas


por Schelling, mas pode-se observar a mesma colocação posteriormente em 1809 na
Philosophie zoologique de Lamarck, como Stéphane Tirard mostra no ensaio Générations
spontanées (tirard, 2006, p. 100). “Todas as matérias minerais compostas, tais como as
terras e as pedras, as substâncias metálicas, sulfurosas, betuminosas, salinas, etc., proveem
de resíduos de corpos viventes.” – tradução nossa (lamarck, 1809, p. 111)

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O pressuposto é a compreensão da própria natureza, em sua totalidade,
como um organismo. Ao considerá-la como sujeito, ela é “absolutamente
orgânica”, nos mostra o final da Introdução.8 Quando a consideramos como
objeto, contudo, surge a diferença entre suas partes e representações momen-
tâneas de um dinamismo constante. Disso pode-se concluir um afastamen-
to da filosofia da natureza em relação ao mecanicismo, até mais do que em
relação ao materialismo. A física mecânica, ao tratar todos os objetos a par-
tir do registro do inorgânico, reduz todos os movimentos da natureza a
poucas leis universais sem levar em consideração a particularidade de algu-
mas e principalmente daquelas que causam a variedade das formas. A ante-
rioridade do orgânico e a compreensão da própria natureza como um todo
orgânico permite justamente pensar todos os movimentos de modo articu-
lado e segundo uma produtividade, que não desconsidera e anula a diversi-
dade e singularidade nas formações. Como Schelling escreve em Da alma do
mundo:

A vida não é uma propriedade nem um produto da matéria animal, mas,


pelo contrário, a matéria é um produto da vida. O organismo não é a pro-
priedade de objetos naturais particulares, mas os objetos naturais particulares
é que são limitações ou modos de intuição particulares do organismo geral.
“Eu não conheço nada de mais falso que fazer da vida uma propriedade
(Beschaffenheit) das coisas, porque ao contrário as coisas não são senão
propriedades da vida, não são senão expressões diferentes (verschiedene Aus-
drücke) da vida; visto que a diversidade não pode transcender e se tornar
una senão no ser vivente”9As coisas não são, portanto, princípios do organ-
ismo, mas o inverso, o organismo é o princípio (Principium) das coisas.

8 “É preciso que uma nova síntese mais elevada seja dada na natureza, a qual não pode ser
buscada na natureza, sem dúvida, senão enquanto ela não for considerada, como um todo,
absolutamente orgânica”, que segue com a nota “Que é, então, a mesma natureza que produz
com as mesmas forças os fenômenos naturais gerais, isso ocorre apenas na medida em que
essas forças se encontram em um estado mais elevado na natureza orgânica.” (schelling,
1958, iii, p. 326, tradução nossa).
9 Schelling faz a referência nesta passagem ao texto de Jacobi a respeito de David Hume.

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A essência de todas as coisas (que não são simples fenômenos, mas se
aproximam da individualidade em uma sucessão infinita de graus) é a
vida; o tipo (Art) de vida não é senão o acidental, e mesmo isso que está
morto na natureza não está morto em si, ele não é senão vida desligada.
(schelling, 1958, ii, p. 500, tradução nossa).

A anterioridade da vida em relação à matéria não apresenta uma comple-


ta disparidade à filosofia de Espinosa. Se tomarmos, por exemplo, o texto dos
Pensamentos metafísicos, temos precisamente na Parte ii, cap. vi, uma defini-
ção de Deus não distinta disso que seria a “vida”:

Entendemos, pois, por vida a força pela qual as coisas perseveram em


seu ser, e, como essa força é distinta das próprias coisas, dizemos propri-
amente que as coisas têm vida. Mas como a força pela qual Deus perse-
vera em seu ser nada mais é do que sua essência, falam bem aqueles que
dizem que Deus é a vida. (espinosa, 1983, p. 24)

Sem me deter na análise dessa passagem e de sua articulação com o con-


junto da obra de Espinosa, é nítido que sua formulação não é oposta ao que
Schelling parece propor em seu tratado. Se todas as coisas são em Deus e por
Deus, a vida, definida como sua essência, é, deste modo, anterior lógica e onto-
logicamente a todas elas. A natureza, para o nosso autor, é pensada como um
organismo do qual todas as coisas particulares não são senão modificações; é,
nesse mesmo sentido, vida. Esta não é mais uma propriedade de certos produ-
tos específicos, mas é um princípio do qual nada escapa.
Stéphane Schmitt associa a posição de Schelling a um pensamento “cos-
mobiológico” que, ao inserir todos os produtos em um todo orgânico, suge-
riria uma articulação completa entre eles como se estivessem em um único
ser vivo. Essa visão organicista não anula todo mecanicismo, como poderiam
supor. Pelo contrário, Schelling afirma que, por “organização”, ele não com-
preende nada senão o curso contínuo de causas e efeitos de um tal modo que

200 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


não seja preciso recorrer a nenhum princípio transcendente à natureza para
explicá-lo. A natureza organiza a si mesma e é esse, mais uma vez, o sentido de
considerá-la como sujeito, como natura naturans. Se o espinosismo da física
de Schelling não rejeita, assim, todo mecanicismo, ele retira a natureza de um
mecanismo morto e a anima em um mecanismo livre, como afirma Schelling
ainda no início do Primeiro Esboço (schelling, 1958, iii, p. 13).
O afastamento da filosofia da natureza em relação ao mecanicismo não
implica uma aproximação a alguma espécie de finalismo. A ideia de que a ori-
gem de todo produto natural estaria, assim, no que ele chama na carta a Goe-
the de “terra dinamicamente organizada”, e que na Introdução ao Esboço pode
ser equiparada de um modo abstrato à produtividade em geral da natureza,
não depende necessariamente de uma compreensão teleológica da totalida-
de da natureza.10 Seu acento está na compreensão da natureza como algo em
movimento, em desenvolvimento, ou ainda, como ele descreverá, em “evolu-
ção” (Evolution). Ele afirma:

Nós consideramos nisso que chamamos de Natureza (i.e., nessa coleção


de objetos singulares) não o produto originário (Urprodukt) mesmo,
mas sua evolução (Evolution) (da qual o ponto de entrave não pode per-
manecer único) (schelling, 1958, iii, p. 290, tradução nossa).

10 Schelling comenta que a ideia de organização pode suscitar ideias de conformidade a


fins, ainda que não seja dependente delas. Ele afirma em Da alma do mundo: “a origem de
todas as organizações é contingente, como deve ser segundo o conceito de organização:
visto que a natureza não a deve produzir necessariamente; lá onde ela aparece, ela deve
agir livremente; e não é senão na medida em que a organização é um produto da natureza
na liberdade, que ela pode suscitar ideias de conformidade a um fim, e não é senão na
medida em que ela suscita essas ideias que ela é organização.” (schelling, 1958, ii, p. 567,
tradução nossa).

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A natureza é uma produtividade que envolve seus efeitos, nos quais atua
de forma evolutiva. “Evolução” neste contexto aparece como oposta à “invo-
lução” e não deve, por isso, ser confundida com alguma forma de “progresso”,
“complexificação” etc. O significado é similar àquele de metamorfose e pode
ser aproximado ao de pré-formação, em que o arquétipo do organismo existe
idealmente no embrião, no estágio inicial de formação, mas requer um desen-
volvimento empírico para sua realização. Em Da alma do mundo fica clara a
analogia entre os seres orgânicos particulares e o desenvolvimento do organis-
mo total da natureza:

O fato de nossa experiência não nos ter feito conhecer nenhuma trans-
formação na natureza, nenhuma passagem de uma forma (Form) ou
de uma espécie (Art) à outra (ainda que possamos ao menos mencion-
ar, como fenômenos análogos, as metamorfoses de certos insetos, assim
como as das plantas, se cada botão for um novo indivíduo) não con-
stitui uma prova contra essa possibilidade, visto que um adepto dessa
ideia poderia responder que as mudanças às quais a natureza orgânica e
inorgânica estão submetidas podem ocorrem em períodos muito mais
longos que os nossos curtos períodos, os quais não nos dão a medida e
que são tão pequenos que, até agora, não chegamos a viver a data limite
de uma delas [...]. (schelling, 1958, ii, pp. 348-349, tradução nossa).

O desenvolvimento da natureza equivale à transformação das formas de


seus produtos. A falta de uma constatação empírica durante a história (do
homem) de um transformismo entre formas inorgânicas e orgânicas, como
mencionado no trecho acima, não é um argumento com tanta força contra
essa hipótese, uma vez que não se trata nesse contexto de uma ciência empírica,
por mais que ela pretenda encerrar toda a experiência possível em si mesma.11

11 A hipótese da transformação dos produtos da natureza não foi formulada pelo próprio
Schelling no interior de sua filosofia da natureza, ainda que ela tenha sido pensada em
paralelo com a filosofia transcendental no que diz respeito a uma história da autoconsciência

202 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Robert Richards, quando comenta sobre a filosofia da natureza e a evolução
dinâmica que ela supõe, insere nosso autor entre os predecessores da teoria
evolucionista darwinista, ainda que sua formulação e condições difiram do
que será elaborado posteriormente na biologia. “Schelling, de fato, estava pro-
pondo uma real evolução ocorrendo na natureza e parece ter sido o primeiro
pensador a aplicar o termo à alteração de espécies” (richards, 2002, p.145).
No trecho acima não vemos ser empregado o termo Gattung para designar as
espécies que estariam em transformação, o qual é comumente utilizado para
se referir à categoria taxonômica destacada na teoria evolucionista dos seres
vivos. Os termos Form e Art permitem uma ampliação da referência e do signi-
ficado do transformismo proposto. A filosofia da natureza de Schelling postula
uma evolução e desenvolvimento constantes na natureza de modo indiferente
em relação à natureza do objeto particular. Ela é válida, portanto, para aque-
les de natureza orgânica e tanto quanto de natureza inorgânica. Se é possível
pensar a partir dela algum transformismo entre as espécies, devemos lembrar
que a analogia opera em relação às teorias embriológicas nascentes. Trata-se de
uma evolução dinâmica, que visa, antes de tudo, o movimento interno único e
primordial do todo da natureza e encerra em si mesmo todos os movimentos,
tanto aqueles que podemos chamar de biológicos quanto os físicos, seja em
grande ou em pequena escala. A filosofia da natureza não é, nesse sentido, um
tratado sobre uma particularidade superficial de alguns fenômenos naturais.
Ao realizar uma ciência do inorgânico à luz do orgânico, dos produtos à luz
de sua produtividade, ela satisfaz o esforço autofundante e unificado de todo
saber a respeito dos fenômenos naturais, ainda que ela fracasse na quantidade
de enunciados hipotéticos, que, com efeito, têm a experiência como sua aliada.

do Eu, como mostramos acima. Ela coincide com um argumento que aparece na História
Natural de Buffon, em especial coincide com o verbete “asno”, como indica Stéphane
Schmitt em uma nota de sua cuidadosa edição crítica da tradução de Da alma do mundo
para o francês (schelling, 2007, p.196). Schelling menciona algumas vezes o trabalho de
Buffon, por exemplo em ii, 487, em que ele faz uma citação das Époques de la nature.

Mariana Alkimin Rincon p. 181 - 207 203


Schelling não desconsidera as descobertas das ciências positivas que foram
feitas até o momento de sua escrita. Estão presentes em sua investigação os
resultados da teoria do calor, a descrição de alguns elementos químicos nos
processos orgânicos, a teoria de um eletromagnetismo nascente, além de uma
teoria da sensibilidade e irritabilidade dos corpos orgânicos inspirada por
Albrecht von Haller, Georg Stahl, Franz Baader, Johann Schaeffer, Christoph
Pfaff, John Brown, Erasmus Darwin, entre outros.12 Essa capacidade de articu-
lação de enunciados e conhecimentos das ciências naturais em um todo uni-
ficado é, no mínimo, engenhosa, e nos remete à tarefa da filosofia que nosso
autor propõe, de não meramente acompanhar e salvaguardar as demais ciên-
cias que estão em curso, mas de fornecer um nexo entre elas e reconduzi-las a
uma origem comum.
Muitos criticaram a filosofia da natureza e as tentativas de se fazer ciên-
cia no período do romantismo, como se elas não tivessem fornecido nada de
positivo ao progresso do conhecimento. Remetida à irracionalidade de uma
Schwärmerei filosófica, com imagens poéticas gratuitas, comentadores como
Snelders, Walter Wetzel e Ernst Mayr13 não puderam notar a antecipação de
algumas descobertas científicas que estariam presentes nos textos desse perí-
odo, como a do comportamento de certos fenômenos do eletromagnetismo
por Oersted14.
Se a física especulativa é culpada de algo, poderíamos dizer que é por sua
pretensão em alguns momentos de substituir as demais ciências naturais, como
comentam Fischbach e Renault. Mas ela tem o mérito de não querer interpre-

12 Mencionados em diversas passagens dos textos de filosofia da natureza por Schelling.


Ver em especial o capítulo ii da segunda parte em Da alma do mundo. (schelling, 1958,
ii, p. 496)
13 Ver Romanticism and Naturphilosophie (1970) de h.a.m. Snelders, Aspects of Natural
Science in German Romanticism (1971) de Walter Werzels, e Growth of Biological Thought
(1982) de Ernst Mayr. (richards, 2002, p.115)
14 Ver Spekulation and Experiment in the Backgraund of Oersted Discovery of
Electromagnetism (1957) de r. s. Stauffer. (fischbach & renault, 2001, p.62)

204 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


tá-las exteriormente, pelo contrário, ela incorpora com entusiasmo as desco-
bertas e procedimentos empíricos de seu passado recente. Se algumas de suas
propostas no que diz respeito à descrição de certos fenômenos naturais não
foram incorporadas pelas ciências naturais que seguiram no tempo, seu valor
reflexivo e hermenêutico permanece em aberto, para não dizer que permane-
cerá sempre.15 Como interpretam os comentadores mencionados:

Em um texto como o Esboço, Schelling busca sistematizar as ciências


em um quadro conceitual homogêneo em seus enunciados. Não se tra-
ta de formular teses gerais para unificar as ciências e a visão da natureza
que elas implicam em uma metafísica geral ou uma ontologia, mas de
as unificar de modo imanente, iluminando mutuamente seus princípios
e apagando tanto quanto possível as fronteiras disciplinares. Talvez um
tal procedimento seja pouco legítimo nos períodos em que as diferentes
disciplinas científicas são guiadas por programas de pesquisa independ-
entes, solidamente constituídos e largamente aceitos. Mas esses períodos
não são tão numerosos e eles cedem periodicamente o lugar aos perío-
dos de crise e de perturbação do conjunto do saber científico. Em tais
períodos, filósofos e cientistas podem buscar contribuir para o redesen-
ho de saberes, desarranjando as divisões disciplinares e retificando os
princípios de certas disciplinas à luz das perturbações que afetam outras.
Filósofos e cientistas buscam, assim, antecipar o desenvolvimento das
ciências, sem medo de entrar em contradição com saberes ainda recon-
hecidos como válidos, sem medo de que suas propostas não possam ter
outro estatuto senão de simples hipótese (fischbach & renault, 2001,
pp. 61-2, tradução nossa).

15 Como menciona Robert Richards, ainda que um texto filosófico não tenha fornecido
um ganho positivo para as demais ciências até o momento atual, podemos recordar o que
Foucault propunha na História da sexualidade: “o trabalho de pensar sua própria história
pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar
diferente.” (richards, 2002, p. 511)

Mariana Alkimin Rincon p. 181 - 207 205


THE SPINOZISM IN SCHELLING’S PHYSICS

abstract: The following text discusses a passage from the Introduction to the
outline of the system of the philosophy of nature written by Schelling in 1799, in
which he equates the project of his philosophy of nature with the realization
of a “Spinozism of physics”. The understanding of such a designation entails
at least two moments. The first refers to the presupposed systematicity of the
form of his philosophy, which he claims to be rigorously scientific. The second
presents his opposition to the materialist and mechanistic understanding of
nature, with its description based on the primacy of the organic over the inor-
ganic.
keywords: Schelling; Spinozism; philosophy of nature; immanence; organ-
ism.

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Mariana Alkimin Rincon p. 181 - 207 207


UMA LEITURA ESPINOSANA DE “A NÁUSEA”:
A MELANCOLIA DE ROQUENTIN1

Ágatha Cavallari
Mestranda, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil,
agatha.cavallari@usp.br

resumo: Este artigo pretende analisar a noção de melancolia tal como


apresentada na caracterização de Roquentin, protagonista do romance
sartriano A náusea, à luz da análise espinosana sobre os afetos, nas partes iii e
iv da Ética. No livro de Sartre, podemos observar sugestões constantes sobre
a peculiar tristeza do personagem, baseadas em sua relação com a descoberta
da contingência. Por outro lado, de acordo com a necessidade ontológica, as
considerações de Espinosa sobre os afetos afirmam a impotência do melancólico
e apontam a servidão daquele que crê ser conduzido pela fortuna. Portanto,
nesta dinâmica, indicaremos Roquentin como o exemplo do homem que não
é senhor de si, nos termos espinosanos.
palavras-chave: Espinosa; Jean-Paul Sartre; Melancolia; Contingência;
Conatus; Ética.

1 Processo n° 2021/10914-6, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo


(fapesp).

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 209


introdução

Logo de início, podemos dizer que propor uma leitura de Sartre à luz das
concepções espinosanas não é uma tarefa fácil, tampouco intuitiva. Ao con-
siderarmos o contraste enfático existente entre tais formulações teóricas, tor-
na-se patente a impossibilidade de traçarmos elementos consonantes entre,
por um lado, a filosofia sartriana alicerçada na contingência, e por outro lado,
a “ontologia do necessário” (chaui, 2016, p. 94), constituída no caminho
demonstrativo da Ética. Embora não tenhamos a mera intenção de contrapor
os elementos divergentes entre as respectivas teorias filosóficas, visto que tal
empreitada, além de bastante extensiva, demandaria capacidades que nos esca-
pam, a nosso ver não seria possível intentar caminhar por rotas tão díspares
sem que o tom contrastante viesse à tona.
Mas como explicar a escolha por este peculiar ponto de partida? Tendo
em vista nossas análises sobre A náusea, oriundas dos resultados de nossa pes-
quisa recente, enxergamos a possibilidade de trazer aspectos pertinentes do
romance de Sartre ao campo espinosano de compreensão dos afetos. Nesse
sentido, gostaríamos de destacar o conflito aflitivo de Roquentin - protagonis-
ta da novela sartriana -, em relação à contingência, como um caso ilustrativo
da formulação de Espinosa sobre o sentido de servidão humana, expresso na
Ética iv. De modo mais específico, concentraremos nossos esforços em deline-
ar a questão sobre a melancolia de acordo com as peculiaridades descritas por
Roquentin, porém, com vistas a traçar a explicação propriamente espinosana
dessa paixão.
De acordo com a discussão sobre os afetos, se, em sentido inverso ao
homem virtuoso, aquele que está dominado pela paixão mergulha no oceano
turbulento do sentimento de contingência, também é certo, a título de “lei
necessária da Natureza”, que “a alegria aumenta a potência de agir da mente e
do corpo e que a tristeza as diminui” (chaui, 2016, p. 340). No entanto, ainda
que a tristeza remeta à questão originária de nossa empreitada, as especificida-
des tocantes à definição de melancolia é o que nos caberá examinar. Portanto,
acreditamos que os elementos presentes em A náusea são passíveis de serem

210 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


explorados à maneira de Espinosa e, sob tal leitura, de nos fornecerem uma
perspectiva singular sobre a condição em que Roquentin se encontra.
A fim de trabalharmos o problema proposto, seguiremos os seguintes pas-
sos: 1) apresentaremos as características basilares de A náusea; 2) faremos a
exposição do modo pelo qual a melancolia é inserida na conceituação de Espi-
nosa sobre os afetos; e 3) trabalharemos a questão dentro da análise sobre a
servidão humana.

1. a náusea: enquadramento da tristeza de roquentin

Como se sabe, A náusea é o romance inaugural do filósofo Jean-Paul Sar-


tre . Mas, de acordo com as memórias de Beauvoir (1984), o processo de escri-
2

ta do livro perdurou durante anos, de modo que diferentes versões da obra


foram escritas até a aprovação da versão vinda ao público em 1938. A pensado-
ra comenta como o formato e o título da obra sofreram mudanças significati-
vas antes da consumação de A náusea, tal como a conhecemos: de início, Sartre
teria batizado o livro como Factum sobre a contingência. No entanto, ao con-
ferir à história de Antoine Roquentin o teor narrativo próprio aos romances
policiais, o livro passou a ser chamado de Melancholia. Por fim, é em decorrên-
cia da sugestão de Gaston Gallimard (beauvoir, 1984, p. 299) que a primeira
obra ficcional de Sartre é publicada sob o título A náusea.
No que concerne à constituição do livro, o romance abarca as experiências
registradas pelo historiador Antoine Roquentin em seu diário, durante um
intrigante momento de sua vida. Como consta na “nota dos editores” (sar-
tre, 2019, p. 13), após ter retornado de uma temporada de viagens através
da Europa Ocidental, da África do Norte e do Extremo Oriente, Roquentin

2 Cumpre notar que é característico da filosofia sartriana alinhar a produção ficcional


às formulações expressas nas obras propriamente filosóficas. Contudo, neste artigo, nos
limitaremos a apresentar o problema proposto em A náusea, sem realizar a comunicação
direta com os textos teóricos.

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 211


encontra-se instalado, há três anos, em Bouville. O principal motivo da perma-
nência do protagonista na pequena cidade francesa se deve aos estágios finais
para a realização de seu livro sobre o marquês de Rollebon.
Mas Roquentin não vai bem. Desde o início das vivências relatadas em
seu diário, o personagem assume a presença de uma inquietação de origem
ainda desconhecida. Algo cujos sinais primários se deram como um desagra-
dável “enjoo adocicado” (sartre, 2019, p. 26), atrelado ao sentimento de que
houve uma mudança em sua relação com os objetos. O incômodo de Antoine
evolui para a impossibilidade de negar que alguma coisa, de fato, aconteceu:
“Isso veio como uma doença, não como uma certeza comum, não como uma
evidência. Instalou-se pouco a pouco, sorrateiramente [...] E eis que agora a
coisa se expande” (sartre, 2019, p. 19); trata-se da náusea. Assim, nas variadas
situações cotidianas, que antes aparentavam ser inofensivas, Roquentin passa a
ser tomado pelo mal-estar. Seus refúgios se dissipam, já não há mais lugar imu-
ne. Até os cafés de Bouville, que antes lhe traziam algum conforto, deixam de
ser ambientes impenetráveis. Com isso, o personagem vê-se submetido, cada
vez mais, à sorte das crises de náusea: “Então fui acometido pela Náusea, me
deixei cair no banco, já nem sabia onde estava; via as cores girando lentamente
em torno de mim, sentia vontade de vomitar. E é isso: a partir daí a Náusea não
me deixou, se apossou de mim” (sartre, 2019, p. 35).
Além disso, Roquentin é um homem jovem, porém fortemente entediado
com a vida: “De quando em quando, bocejo com tanta força que as lágrimas
me escorrem pelo rosto. É um tédio profundo, profundo, o coração profun-
do da existência, a própria matéria de que sou feito” (sartre, 2019, p. 179).
Encontra-se num momento em que é capaz de olhar o seu reflexo e não ver
sentido algum na imagem de seu próprio rosto. O espelho, para Roquentin,
constitui-se como uma armadilha (sartre, 2019, p. 32), uma vez que ele traz
à tona a inconsistência e a vagueza tediosa de sua face: “Meu olhar desce len-
tamente, com tédio, para essa testa, para essas faces: não encontra nada de fir-
me, encalha” (sartre, 2019, p. 32). Não consegue decidir se pode ser consi-
derado bonito ou feio, ou se há alguma compreensão que possa ser extraída

212 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


da “coisa cinzenta” que lhe aparece refletida (sartre, 2019, p. 32). Sequer é
capaz de reconhecer expressões humanas nas partes que compõem o seu rosto
(sartre, 2019, p. 32). Contudo, nota que esse não aparenta ser um problema
enfrentado por aqueles que não vivem sozinhos:

Talvez seja impossível compreender o próprio rosto. Ou talvez seja


porque sou um homem sozinho? As pessoas que vivem em sociedade
aprenderam a se ver nos espelhos tal como aparecem a seus amigos. Não
tenho amigos: será por isso que minha carne é tão nua? Dir-se-ia - sim,
dir-se-ia a natureza sem os homens (sartre, 2019, p. 34).

No que concerne ao andamento de seu trabalho como historiador, as pes-


quisas de Roquentin pouco a pouco deixam de fazer sentido. Após constatar
as aparições da náusea, Antoine não tarda a expressar que já não sente mais o
mesmo entusiasmo de outrora ao escrever sobre Rollebon (sartre, 2019, p.
30). Páginas à frente, o protagonista da novela sartriana, enfim, abandona a sua
pesquisa, pois reconhece que já não pode mais continuá-la (sartre, 2019, p.
114). Para Roquentin, era o vínculo com o marquês que ainda permitia algu-
ma proteção contra a desordem que se instalara. Não é, portanto, sem um peso
dramático, que o protagonista exprime sua perplexidade com as incertezas que
o invadem: “Que vou fazer de minha vida?” (sartre, 2019, p. 114).
Além disso, no romance sartriano, nota-se a recorrência de uma certa músi-
ca ao longo dos momentos que compõem a trama. Especificamente, há ênfase
no usual gosto do protagonista pelo tema de jazz Some of these days, tocado
no café que costumava frequentar. É possível observarmos como Roquentin
aprecia o efeito que a música lhe causa, mesmo quando começa a ouvir apenas
o início da canção:

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 213


Começo a me reanimar, a me sentir feliz. Ainda não é nada de extraor-
dinário, é uma pequena felicidade de Náusea: ela se espalha no fundo da
poça viscosa, no fundo de nosso tempo [...] é feita de instantes amplos e
frouxos, que se alastram pelas bordas como uma mancha de azeite. Mal
nasceu e já parece velha, tenho a impressão de conhecê-la há vinte anos
(sartre, 2019, p. 37, grifo do autor).

Ao ouvir a melodia entoada pela cantora, o personagem consegue entrar


em contato com a sensação de felicidade. Mas isso não é tudo, posto que a
música se constitui como o único meio capaz de livrar Roquentin das crises
de náusea. Podemos ver como o movimento é repentino: “Extinguiu-se o últi-
mo acorde. No breve silêncio que segue, sinto imensamente que houve algo,
que alguma coisa aconteceu” (sartre, 2019, p. 38, grifo do autor). A sequên-
cia do acontecimento marca o início da melodia: “Some of these days, you will
miss me, honey! O que acaba de ocorrer é que a Náusea desapareceu” (sartre,
2019, p. 38). A náusea aflige Roquentin de forma súbita, porém destaca-se que
o mero contato com a música é capaz de dissipar, de maneira momentânea, o
desconforto nauseante. Portanto, com precisão, Moutinho salienta que o jazz
mencionado assume, no interior do romance, uma espécie de “função tera-
pêutica” (moutinho, 1995, p. 63) para com o sofrimento do personagem; o
que caracteriza a peculiar relação que Sartre delineia entre Roquentin e essa
arte.
Mas, afinal, o que significa o enjoo inquietante sentido por Roquentin?
Trata-se da contingência. Assim, podemos dizer que “a descoberta da contin-
gência é um percurso pontuado pelas manifestações da náusea” (silva, 2004,
p. 81). Em outros termos, tal afirmação remete ao vínculo direto que há entre
o processo paulatino de desvelamento da existência como calcada na falta de
encadeamento necessário e a náusea sintomática que assola os dias de Roquen-
tin. O mundo que nos circunda não comporta a ordem dada num encade-
amento rigoroso. Tanto os homens quanto os objetos participam da mesma
gratuidade de existir; todos relegados à completa aleatoriedade. Como o per-
sonagem constata, “[...] a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se

214 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita” (sartre,
2019, p. 151).
Ademais, no que diz respeito ao processo de descoberta da operação do
real, a existência que desponta é constatada por Roquentin a partir de seu pró-
prio corpo: “[...] tenho perpetuamente na boca uma pequena poça esbranqui-
çada - discreta - que roça em minha língua. E essa poça também sou eu. E a lín-
gua também, e a garganta, sou eu [...] Vejo minha mão que desabrocha sobre
a mesa. Ela vive - sou eu” (sartre, 2019, p. 118). Ora, ao contrário do proce-
dimento realizado por Descartes, em suas primeiras Meditações, o desvelar da
existência não se dá através do pensamento puro3. Antes, como pontua Luiz
Damon Moutinho, “[...] o corpo é aqui realidade insuprimível” (moutinho,
1995, p. 56). Isso significa que não está em jogo, para Roquentin, recusar de
forma deliberada aquilo que é testemunhado pelos sentidos; por mais confu-
sas e pouco claras que sejam as alegações sensíveis. Além de acontecer de modo
involuntário, a revelação sobre a verdade da existência é capitaneada pela via
tátil e se estende aos demais sentidos. Logo, ao invés de partir de uma decisão
metodicamente guiada, a existência é algo que vem ao encontro de Roquentin,
que o invade.
Mas o encontro do personagem sartriano com a própria existência não se
encerra no aspecto corporal. No nível do pensamento, o sujeito também se
perceberá existindo:

[...] Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque
penso…e não posso me impedir de pensar. Nesse exato momento - é
terrível - se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me
extraio do nada a que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras

3 Como Moutinho (1995, p. 59) salienta, a contraposição com Descartes não é gratuita.
O próprio Sartre parece nos oferecer fortes indícios do tom anticartesiano presente no
romance, desde o início das primeiras experiências nauseantes de Roquentin. Para um
esmiuçamento desta questão cf. moutinho, l. d. s. (1995).

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 215


tantas maneiras de me fazer existir, de me embrenhar na existência [...]
(sartre, 2019, p. 119, grifo do autor).

Roquentin reconhece a impossibilidade de cessar de pensar, uma vez que os


pensamentos são inseparáveis de seu existir. No entanto, o Cogito não é enun-
ciado dentro de um percurso demonstrativo. Tampouco se trata da descoberta
de uma substância cujo atributo essencial é pensar. Neste momento, podemos
dizer que “[...] o sujeito se impõe a si mesmo por via do fato incontornável da
existência” (silva, 2004, p. 55). Assim, é a consciência, em sua pura esponta-
neidade, que é atestada como instância irremediável. A questão, contudo, não
se encerra aí. Conforme o trecho em destaque, salta aos olhos que a narrati-
va de Roquentin se mostra impregnada pelo horror e pela repulsa em existir.
Como Franklin Leopoldo e Silva ressalta, “a reflexão está totalmente penetra-
da por afetos contraditórios de um sujeito que se constitui dolorosamente”
(silva, 2004, p. 55). Nada há aqui de uma calmaria reflexiva. Reconhecer-se
como existente implica, neste caso, experimentar a agonia de uma vida que
transcorre em um curso instável, do qual o sujeito desejaria não participar.
Além disso, ao compreender a inexorabilidade da contingência, o prota-
gonista sartriano afirma o aspecto insosso de sua carne e de seus pensamentos:
“[...] se pelo menos pudesse parar de pensar, já seria melhor. Os pensamentos
são o que há de mais insípido. Mais insípido ainda do que a carne [...] Minha
saliva está açucarada, meu corpo está morno; sinto-me insípido” (sartre,
2019, pp. 118-9). A carne tediosa que já havia sido confrontada, agora, junto
aos pensamentos, aparece como plena insipidez. É, portanto, sob os aconteci-
mentos em torno da irrupção nauseante, que o dissabor de Roquentin em rela-
ção a si mesmo é delineado no interior de sua narrativa diarística.
Vemos que a compreensão sobre a contingência não acarreta o conten-
tamento, pelo contrário. Roquentin admite seu completo incômodo com a
intensidade e falta de ordenamento das coisas e de si mesmo. Deixara que sua
existência fosse regida sob a chave da necessidade, tal como uma melodia, em

216 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


que todas as notas estão fatalmente ordenadas; e até os sofrimentos são dados
em compasso (sartre, 2019, p. 196).
Ainda que apresentados de modo breve, os elementos de A náusea suge-
rem o estado melancólico de Roquentin, em meio ao solo contingente da filo-
sofia sartriana. Agora, buscaremos abordar o problema nos termos próprios da
Ética de Espinosa.

2. dedução da melancolia na ética iii

De início, cumpre destacar o modo pelo qual Espinosa insere a questão


sobre as afecções no interior de série demonstrativa da Ética. Nesse sentido,
o prefácio à parte iii se mostra fundamental para compreendermos o estatu-
to dos afetos na formulação espinosana. Ao contrário da tradição filosófica,
o pensador holandês não proclama a censura dos afetos; mas, sim, tratá-los-á
como elementos que compõem a natureza humana: “Quase todos que escre-
veram sobre os Afetos e a maneira de viver dos homens parecem tratar não de
coisas naturais, que seguem leis comuns da natureza, mas de coisas que estão
fora da natureza” (espinosa, 2021, p. 233). Do ponto de vista espinosano, tan-
to aqueles que se empenham em vituperar os afetos quanto os homens emi-
nentes que conseguiram tratar do assunto com maior prudência não foram
capazes de fornecer uma explicação sobre a força dos afetos e a potência da
mente humana na moderação dos mesmos (chaui, 2016, p. 291); o que será
uma empreitada própria aos esforços do pensador holandês.
Assim, Espinosa pretende realizar a demonstração racional daquilo que,
até então, fora atrelado à profunda irracionalidade (chaui, 2016, p. 293). Isso
significa que os afetos, considerados em si mesmos, são parte da Natureza, de
modo que compartilham da mesma necessidade que abarca todas as coisas
singulares. Logo, é possível que conheçamos as “[...] causas certas pelas quais
são entendidos [...]” (espinosa, 2021, p. 235), e que sejam explicados através
das mesmas regras que regem o entendimento e a explicação das demais coisas
naturais (cf. chaui, 2016, p. 294). Contudo, neste artigo, não teremos condi-

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 217


ções de analisar os pormenores do extensivo caminho traçado por Espinosa.
Em decorrência disso, destacaremos tão somente algumas das que acreditamos
serem as principais noções que conduzem à explicação sobre a melancolia.
O ponto de partida da ciência dos afetos será, portanto, a “[...] determi-
nação da causalidade afetiva [...]” (chaui, 2016, p. 295). Assim, na definição
1, da parte iii, Espinosa distingue a causa adequada, isto é, “[...] aquela cujo
efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma”, da causa ina-
dequada, ou seja, “[...] aquela cujo efeito não pode só por ela ser entendido”
(espinosa, 2021, p. 237), posto que é apenas sua causa parcial. Em decorrên-
cia disso, o autor nos apresenta, na definição 2, a diferenciação elementar entre
ação e paixão: a primeira está intimamente ligada a sermos causa adequada de
algo que ocorre fora ou dentro de nós, ao passo que padecemos quando somos
apenas causa parcial daquilo que nos ocorre, ou que se segue de nossa nature-
za (espinosa, 2021, p. 237). Por fim, a definição 3 nos apresenta o sentido de
afeto: “Por Afeto entendo as afecções do Corpo pelas quais a potência de agir
do próprio Corpo é aumentada ou diminuída [...] e simultaneamente as ideias
destas afecções” (espinosa, 2021, p. 237).
Cabe ressaltar que a definição de paixão nos é apresentada apenas na expli-
cação à definição 3, sendo oriunda da diferenciação entre os afetos passivos e
os afetos ativos. Dessa forma, a paixão “[...] não coincide com a totalidade da
vida afetiva, mas apenas com os efeitos da causalidade inadequada” (chaui,
2016, p. 296). Como será apresentado no corolário à proposição 1, quanto
mais ideias inadequadas a mente tiver, maior será sua submissão às paixões. De
modo inverso, a atividade da mente será proporcional à quantidade de ideias
adequadas que possuir (cf. espinosa, 2021, p. 241). Ora, estar submetido ao
poderio da paixão requer que compreendamos o seu sentido enquanto uma
dominação violenta que vence nossa potência interna (cf. chaui, 2016, p.
298). Nesta situação, somos arrastados por um poder externo e, com isso, há a
diminuição de nossa própria potência. O mesmo não ocorre em relação à cau-
salidade adequada, uma vez que a ação equivale ao aumento de nossa potência
interna e à abertura para o mundo.

218 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Se um afeto é o aumento ou diminuição de potência de agir, como fica
patente pela proposição 2, a qual exclui a viabilidade tanto do corpo deter-
minar a mente a pensar quanto da mente ser capaz de determinar o corpo ao
movimento, tal atividade ou passividade será dada de modo simultâneo na
mente e no corpo. Portanto, com base na proposição 11 da Ética iii, a saber,
“O que quer que aumente ou diminua, favoreça ou coíba a potência de agir de
nosso Corpo, a ideia desta mesma coisa aumenta ou diminui, favorece ou coí-
be a potência de pensar de nossa Mente” (espinosa, 2021, p. 255), o autor nos
mostra que o afeto diz respeito ao aumento ou a diminuição de agir do corpo
e da mente, sem que seja possível desconsiderar a concomitância de seu efei-
to em ambos os atributos. Além disso, cumpre notar o caráter indeterminado
daquilo que aumenta ou diminui a potência de agir do corpo e a potência de
pensar da mente. Mas não devemos concluir de forma apressada que a falta de
especificação por parte de Espinosa implique uma leviandade no tratamento
da questão. Antes, de acordo com Chaui (2016, p. 325), a inespecificidade con-
fere ao enunciado da proposição o aspecto universal a tudo aquilo que possa
favorecer ou coibir nossa potência de agir e de pensar. Não se trata, portanto,
de categorizar a variedade das coisas que possam interferir na amplificação ou
na redução do conatus, mas, sim, de expor o vínculo entre a gênese afetiva e as
mutações nos estados de maior ou menor perfeição que mente e corpo sofrem.
É apenas no escólio da proposição supracitada que Espinosa fornece as
definições dos afetos dos quais todos os outros serão derivados. Assim, em con-
junto com o Desejo4, definido como “[...] a própria essência do homem [...]”
(espinosa, 2021, p. 339), Alegria e Tristeza são designadas como os afetos pri-
mários. No que concerne à alegria, o filósofo a compreende “[...] a paixão pela

4 Ainda que Espinosa insira o desejo na categoria dos afetos dos quais todos os outros
serão derivados, destaca-se que esse é mais amplo do que a alegria e a tristeza. Como
explica Marilena Chauí: “Embora haja três afetos primários, podemos observar que há uma
distinção entre o desejo, de um lado, e a alegria e a tristeza, de outro, pois as duas últimas se
referem ao aumento ou diminuição da potência do conatus singular, enquanto o primeiro é
idêntico ao próprio conatus [...] (chaui, 2016, p. 330).

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qual a Mente humana passa a uma maior perfeição”. Por outro lado, por tristeza
entende-se “[...] a paixão pela qual ela [a mente] passa a uma perfeição menor”
(espinosa, 2021, p. 257, itálicos do autor). Dessa forma, é possível afirmar que
a alegria corresponde ao aumento de potência da mente e, em contrapartida,
que a tristeza corresponde à sua diminuição.
Como salienta Chaui (2016, p. 326), em primeiro lugar, é pertinente
observar que, com base na caracterização do afeto como aumento ou diminui-
ção da potência singular, o filósofo holandês indica a contrariedade inerente
às paixões. Isso significa que, tal como alegria e tristeza, todos os afetos subse-
quentes serão pares de opostos: amor e ódio, medo e esperança, gozo e remor-
so, etc. Em segundo lugar, ao apresentar as “Definições dos Afetos”, no final
da Ética iii, Espinosa lança luz à noção de “passagem”, no âmbito de “passar”
a uma perfeição maior ou menor. Ora, é preciso atentar para não cairmos no
erro de entender a alegria como a perfeição maior da mente e a tristeza como o
que seria a própria perfeição menor. Em verdade, trata-se do “[..] quantum do
aumento ou da diminuição da perfeição, isto é, são estados pelos quais passa
a essência da mente com a variação da intensidade de sua potência” (chaui,
2016, p. 326).
Tendo estabelecido os afetos dos quais todos os outros serão derivados,
podemos prever que a melancolia se insere nessa dinâmica. Mas terá a sua defi-
nição alguma especificidade? É o que a continuação do escólio desvenda:

[...] o afeto de Alegria simultaneamente relacionado ao corpo e à mente,


chamo Carícia ou Hilaridade; o de Tristeza, por sua vez, Dor ou Mel-
ancolia. Contudo, cumpre notar que a Carícia e a dor são referidas ao
homem quando uma das partes dele é afetada mais do que as outras; já
a hilaridade e a melancolia, quando todas as partes são igualmente afe-
tadas (espinosa, 2021, p. 257, itálicos do autor).

220 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Como já fora anteriormente mencionado, o afeto ocorre de forma simul-
tânea na mente e no corpo. No entanto, ao introduzir a distinção entre, por
um lado, a carícia e dor, e, por outro lado, a hilaridade e a melancolia, podemos
dizer que o cerne de tal diferença está na “amplitude da afecção” (chaui, 2016,
p. 327). Isso significa que aquelas se caracterizam por afetarem apenas de modo
parcial a mente e as partes do corpo, ao passo que estas últimas implicam que a
mente e o corpo sejam inteiramente afetados. Portanto, na concepção espino-
sana dos afetos, a melancolia é a derivação da tristeza em seu grau mais agudo,
posto que o melancólico é aquele cujo corpo e mente “[...] estão mergulhados
na mais profunda tristeza e a potência do conatus ruma para a completa impo-
tência” (chaui, 2016, p. 360).
Com efeito, não é possível falar de uma aproximação clara entre a expli-
cação de Espinosa acerca da constituição dos afetos e a novela de Sartre. No
entanto, quando recuperamos a exposição de A náusea, salta aos olhos que,
desde o início de suas descrições diarísticas, Roquentin torna expresso o desa-
grado fastidioso que sente em relação a si mesmo e ao seu entorno, mas, sobre-
tudo, é destacável a afirmação do protagonista acerca da insipidez de seus pen-
samentos e de sua carne. Como vimos, sob a irrupção da náusea, Roquentin
expõe o caráter insosso e repulsivo tanto de seu corpo quanto de seus pensa-
mentos, no momento da assunção da existência como fato incontornável. Nes-
se sentido, o personagem de Sartre se mostra inteiramente afetado pela desco-
berta indesejada da realidade contingente5. Em confluência com Silva (2004,
p. 82), podemos dizer que a imprevisibilidade despida do véu que antes a dissi-
mulava, provoca modificações significativas na qualidade de vida de Roquen-
tin. Porém é importante frisar que, se em a A náusea o protagonista constata

5 Cumpre destacar que, ao analisar a interação entre a obra sartriana de 1938 e a psicologia
clínica, Schneider (2006, p. 55) bem aponta que a náusea sentida por Roquentin é uma
experiência de ordem psicofísica. No entanto, é preciso verificar com cautela se é possível
afirmar que há uma superação efetiva da náusea por parte da personagem, tal como a autora
propõe (schneider, 2006, p. 59), posto que, mesmo ao final do romance, Roquentin
ainda constata a presença do mal-estar (sartre, 2019, p. 196).

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 221


a aflitiva e integral “desnecessidade” das coisas e si mesmo, por outro lado,
Espinosa não exclui nem os afetos da mesma ordem necessária da Natureza6.
Tal fato nos deixa atentos para a demarcação das diferenças teóricas entre os
autores.
Até o presente momento, ainda que de modo bastante breve, buscamos
trazer à luz a dedução de Espinosa sobre a melancolia no seio da terceira parte
da Ética. A fim de concluirmos o caminho argumentativo proposto, é perti-
nente passarmos ao campo da servidão humana, o qual concerne à Ética iv.

3. a presença da melancolia no interior da discussão sobre o


homem servil: roquentin não é senhor de si

De maneira análoga ao percurso que traçamos no âmbito da terceira parte


da obra espinosana em questão, acreditamos que o prefácio à Ética iv, consti-
tui, de forma mais enfática, uma peça-chave para a nossa empreitada. Comece-
mos pela própria definição do filósofo holandês sobre o homem servil:

Chamo Servidão à impotência humana para moderar e coibir os afetos;


com efeito, o homem submetido aos afetos não é senhor de si, mas a
senhora dele é a fortuna, em cujo poder ele está de tal maneira que fre-
quentemente é coagido, embora vejo o melhor para si, a seguir o pior
(espinosa, 2021, p. 371).

6 Segundo a explicação de Marilena Chaui: “De fato, ao apresentar os afetos como coisas
singulares, Espinosa os apresenta ontologicamente como efeitos necessários de causas
naturais determinadas e eles próprios como causas de efeitos determinados e os insere na
ordem e rede necessária de conexões causais da Natureza” (chaui, 2016, p. 294).

222 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Em primeiro lugar, destaca-se a relação direta que Espinosa estipula entre
a servidão humana e a impotência, de modo que a condição servil implica a
nossa impotência de moderar e refrear os afetos. Ora, uma vez que se trata do
caso humano, a impotência abarca o corpo e a mente em simultâneo. Domi-
nado pelo impetuoso poderio externo advindo da contingência ou fortuna, a
situação do homem não poderia ser outra senão a de ver e aprovar o melhor,
mas acabar por seguir aquilo que é pior; patente pela célebre frase de Ovídio
(chaui, 2016, p. 383). Portanto, aquele que se torna refém dos afetos que não
fora capaz de refrear, jamais pode ser considerado “senhor de si”.
Contudo, tal como exposto no prefácio à Ética iii, Espinosa não desconsi-
dera em momento algum a naturalidade dos afetos. Em verdade, almejar a cen-
sura total dos mesmos, ao invés de elevada, seria uma tarefa cuja insensatez se
faria presente. Ademais, dado que, no interior da discussão afetiva, de um lado,
há os afetos designados como paixões e, de outro lado, há os afetos propria-
mente ativos, interessa agora ao filósofo holandês demonstrar o que os afetos
possuem de mau e de bom (espinosa, 2021, p. 371). Assim, após elucidar que
perfeição e imperfeição não são mais do que meros modos de pensar, oriundos
de comparações pela via imaginativa (chaui, 2016, p. 394), o autor prossegue:

Quanto ao bem e o mal, também não indicam nada de positivo nas


coisas consideradas em si mesmas, e não são nada outro além de modos
de pensar ou noções que formamos por compararmos as coisas entre si.
Pois uma e a mesma coisa pode ser ao mesmo tempo boa e má e também
indiferente. Por exemplo, a Música é boa para o Melancólico, má para o
lastimoso; no entanto, nem boa nem má para o surdo (espinosa, 2021.
p. 377).

De acordo com o trecho destacado, assim como no caso da perfeição e da


imperfeição, Espinosa não postula que há coisas estaticamente boas, más ou
indiferentes. Antes, trata-se de conceber que tais qualificações não são depen-

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dentes da própria coisa, mas sim “[...] das disposições do corpo e da mente de
alguém, que determinam como são afetados por ela” (chaui, 2016, p. 395).
Nesse sentido, bom e mau são modos de pensar advindos da dinâmica compa-
rativa entre as coisas e as diferentes formas pelas quais as mesmas podem nos
afetar.
Mas isso não é tudo. Tendo em vista nosso enquadramento sobre a melan-
colia e a situação de Roquentin, a afirmação de Espinosa sobre a música ser
“boa para o melancólico”, não poderia passar despercebida. Ainda que o autor
da Ética não nos apresente um desdobramento específico sobre esta questão,
não poderíamos dizer que, em termos espinosanos, o protagonista de A náu-
sea aprecia a canção de jazz, de modo que ela lhe é boa, em decorrência de seu
estado melancólico? Sustentamos, como hipótese, a pertinência de tal justifi-
cativa. Ademais, se retomarmos o fundamento do conatus, na Ética iii, saltam
aos olhos três proposições que oferecem indícios para a nossa conjectura.
Primeiro, de acordo com o enunciado da proposição 12, “A Mente, o quan-
to pode, esforça-se para imaginar coisas que aumentam ou favorecem a potên-
cia de agir do Corpo” (espinosa, 2021, p. 259). Em segundo lugar, a proposi-
ção 13 acrescenta: “Quando a Mente imagina coisas que diminuem ou coíbem
a potência de agir do Corpo, esforça-se, o quanto pode, para recordar coisas
que excluem a existência daquelas” (espinosa, 2021, p. 259, grifo do autor).
Isso posto, o filósofo holandês explica nossa relação com as coisas externas, a
partir da associação do esforço da mente para imaginar aquilo que aumenta
sua potência e a potência do corpo com o esforço para eliminar o que as dimi-
nui. Por fim, a proposição 28 afirma que “Esforçamos-nos para fazer que acon-
teça tudo o que imaginamos conduzir à Alegria; ao passo que nos esforçamos
para afastar ou destruir o que imaginamos opor-se a isso, ou seja, conduzir à
Tristeza” (espinosa, 2021, p. 281, grifo do autor). Ao demonstrar essa propo-
sição, cabe mencionar que Espinosa aponta nosso esforço absoluto para ima-
ginar ou contemplar como presente tudo o que possa nos conduzir à alegria
e para afastar tudo aquilo que possa nos impelir à tristeza. Em outros termos,
nos esforçamos para fazer com que isso aconteça “incondicionalmente e sem-

224 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


pre” (chaui, 2016, p. 347). Portanto, tais proposições tanto confluem com o
desejo de Roquentin de ouvir a música de jazz nos momentos em que a náusea
o assola quanto ajudam a sustentar a alegria sentida pelo personagem ao apre-
ciar a canção.
Na sequência do Prefácio à Ética iv, a fim de conservar os vocábulos, mas
não a sua significação tradicional, Espinosa estabelece o sentido de perfeição
e de imperfeição em relação ao “modelo da natureza humana”. Por sua vez, tal
associação deverá estar “[...] em conformidade com o aumento da potência de
existir e agir de uma natura que comporta aumento ou o mais (o bom) e dimi-
nuição ou o menos (o mau), dependendo de suas relações com outras potên-
cias” (chaui, 2016, p. 396). Assim, se Espinosa opera a transformação do sen-
tido dos vocábulos que conserva, não seria absurdo esperar que o mesmo pro-
cedimento ocorresse com as noções de “contingência” e de “possível”. Donde
segue-se que, pela definição 3, o autor chama “[...] contingentes as coisas singu-
lares, enquanto, ao prestarmos atenção à só essência delas, nada encontramos
que ponha necessariamente sua existência ou que necessariamente a exclua”. E,
pela definição 4, chama “[...] possíveis as mesmas coisas singulares, enquanto,
ao prestarmos atenção às causas a partir das quais devem ser produzidas, não
sabemos se estas são determinadas a produzi-las” (espinosa, 2021, p. 379).
Ora, rejeitados por completo nas partes i e ii da Ética, agora Espinosa
distingue de maneira focada cada termo, posto que a contingência se refere à
essência das coisas singulares, e o possível, às causas das mesmas. De toda for-
ma, ambos conceitos dizem respeito à ignorância, seja como no primeiro caso,
acerca da necessidade da existência de uma essência, ou tal como no segun-
do, sobre a sua causa (chaui, 2016, p. 402). Mas ainda não seria pertinen-
te indagar como a filosofia espinosana, alicerçada na necessidade inexorável,
pode abarcar em si o possível e o contingente? Haveria, assim, um ponto de
conciliação entre o desvelamento da contingência por parte de Roquentin e o
sistema de Espinosa?
A fim de respondermos a tais questões, é preciso compreender que a Ética
iv é o terreno da ordem comum da Natureza, de modo que “[...] a imaginação e

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a paixão vivenciam o embate afetivo no desconhecimento da ordem e conexão
necessárias dos acontecimentos e das coisas singulares e, sob a imagem do tem-
po, são naturalmente levadas à crença no possível e na fortuna” (chaui, 2016,
p. 403). Em outros termos, aparece aqui o homem que vive rodeado por forças
maiores que a sua, mas, sem se dar conta, imagina que as domina; enquanto,
na verdade, é tragado de ponta a ponta por elas. Disso se segue que, na filoso-
fia espinosana, o possível e o contingente não escapam à necessidade (chaui,
2016, p. 403). Necessidade essa que advém da experiência de nossa própria
finitude, uma vez que não é possível que conheçamos a integralidade do cur-
so das coisas singulares, em termos da ordem completa dos acontecimentos e
da conexão total das causas naturais. Nesse sentido, ao invés de atestar alguma
assimilação, Roquentin se mostra como o homem que é arrastado pela insta-
bilidade afetiva e, em decorrência da confusão temporal7, é levado a incertezas
sobre o curso das coisas singulares.
Como ficou patente pelo percurso da Ética iii, apesar das paixões serem
capazes de “[...] mergulhar a mente na experiência da contingência e da con-
trariedade afetiva, entretanto é uma lei necessária da Natureza que a alegria
aumenta a potência de agir da mente e do corpo e que a tristeza as diminui”
(chaui, 2016, p. 340). Além disso, se a tarefa deste momento da Ética é trazer
a medida, isto é, a moderação, com vistas a conter ou mesmo afastar a desmedi-
da, há dois critérios que podem ser elencados nesse processo: de um lado, faz-
-se a distinção entre alegria e tristeza, a partir da aptidão do corpo para afetar
e ser afetado de múltiplas maneiras; por outro lado, avalia-se a qualidade dos
afetos à luz da razão. Portanto, é no contexto da avaliação dos afetos, em con-

7 No primeiro corolário da prop. 44 da parte ii, Espinosa enuncia que: “Daí segue depender
só da imaginação que contemplemos as coisas, tanto a respeito do passado quanto do
futuro, como contingentes” (espinosa, 2021, p. 207). Em outras palavras, é a imaginação
que introduz a temporalidade e permite a afirmação sobre uma coisa ser passada, presente
ou futura; jamais a razão. Tal procedimento é realizado devido à associação dos eventos
com determinados movimentos corporais, considerados como pontos referenciais (oliva,
2014, p. 15).

226 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


sonância com as estipulações do prefácio à parte iv, que Espinosa nos apresen-
tará as outras nuances da melancolia.
A empreitada espinosana sobre a mensuração afetiva possui dois movi-
mentos centrais. De acordo com Oliva (2014, p. 16), podemos elencar que a
intensidade dos afetos é examinada nas proposições 9 a 13, ao passo que, nas
proposições 38 a 40, avaliam-se os afetos bons e os afetos maus. Para nossos
fins presentes, consideramos suficiente nos atermos ao segundo momento des-
sa divisão, uma vez que, nele, os critérios de utilidade afetiva são apresentados.
Assim, destacamos tão somente o enunciado da proposição 38, na qual Espino-
sa explicita o sentido daquilo que considera nos ser útil:

É útil ao homem o que dispõe o Corpo humano tal que possa ser afe-
tado de múltiplas maneiras ou o que o torna apto a afetar os Corpos
externos de múltiplas maneiras; e tanto mais útil quanto torna o Corpo
mais apto a ser afetado e afetar os outros corpos de múltiplas maneiras;
e, inversamente, é nocivo o que torna o Corpo menos apto a isto (espi-
nosa, 2021, p. 439).

A partir do referido critério, que estipula a utilidade daquilo que favore-


ce corpo e mente para afetar e ser afetados de múltiplas maneiras simultâneas,
possuímos recursos para compreender os resultados espinosanos da avaliação
afetiva. No que concerne à presença da melancolia, no interior da Ética iv,
gostaríamos de destacar a proposição 42. Mas, antes, cabe acompanharmos
o caminho traçado pela proposição imediatamente anterior, uma vez que os
afetos originários de alegria e de tristeza são examinados à luz da compreensão
sobre aquilo que nos é útil. Com isso, Espinosa afirma na proposição 41 que
“A Alegria não é diretamente má, mas boa; a Tristeza, ao contrário, é diretamen-
te má” (espinosa, 2021, p. 443, grifo do autor). Ora, em conformidade com
o critério da proposição 38, dado que o aumento da aptidão para afetar e ser
afetado de várias formas implica o aumento de nossa potência, a alegria é útil

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e boa. Mas o mesmo não pode ser dito em relação à tristeza, pois enquanto a
alegria é, por si mesma, boa e útil a nós, a tristeza, por si mesma, é danosa e má
(oliva, 2014, p. 16).
Mas a questão não se encerra aí. Sob a perspectiva da razão, a medida
levou, em primeiro lugar, à avaliação qualitativa dos afetos. Em segundo lugar,
com base na distinção entre os afetos ativos e passivos, será preciso distinguir
entre os afetos que tendem ao excesso e aqueles que jamais são excessivos; e,
por fim, estabelecer o contraste entre o homem submetido à paixão e o homem
virtuoso (chaui, 2016, pp. 454-5). Portanto, é no interior da discussão sobre
os afetos excessivos que o filósofo holandês afirma, na proposição 42, que “A
hilaridade não pode ter excesso, sendo sempre boa, e a Melancolia, ao con-
trário, é sempre má” (espinosa, 2021, p. 443). Se a hilaridade não pode ser
considerada excessiva, isso ocorre porque ela é um afeto que traz benefícios
homogêneos ao corpo todo, de modo a favorecer o aumento de potência de
agir sem deturpar a proporção de movimento e de repouso de suas partes. No
entanto, como um puro excesso, a melancolia é tida como o oposto completo à
moderação pretendida. Além disso, uma vez que é derivada do afeto de tristeza
em seu grau mais elevado, e que se dirige à integralidade das partes do corpo,
a melancolia consiste na diminuição plena do conatus. Ela nos torna incapazes
de afecções múltiplas e simultâneas, pois ruma para a impotência completa, o
que não admite outra consideração senão a de ser absolutamente má.
Na Ética iii, foi possível acompanharmos a gênese da melancolia; agora
vemos essa paixão no seio da impotência humana. Tal como exposto no prefá-
cio da Ética iv, a servidão é definida pela impotência para a moderação afetiva
e o homem servil não é senhor de si. Dessa forma, Espinosa estabelece o con-
traste entre o homem que é tomado pelas paixões e o homem virtuoso, uma
vez que um homem não pode ser dito virtuoso enquanto é determinado por
ideias inadequadas (espinosa, 2021, p. 411). Como já fora mencionado, a ina-
dequação das ideias e a submissão às paixões possuem uma relação intrínseca.
Em contrapartida, fundamentada no conatus, a virtude é atividade, tal como
enunciado na proposição 24: “Agir absolutamente por virtude nada outro é

228 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


em nós que agir, viver e conservar o seu ser (os três significam o mesmo) sob
a condução da razão, e isso pelo fundamento de buscar o próprio útil” (espi-
nosa, 2021, p. 413). Afastada de imperativos normativos, a virtude espinosana
significa atividade, ser apto a múltiplas afecções simultâneas e ideias (chaui,
2016, p. 406). O melancólico, portanto, vencido por causas externas, é aquele
que padece. No que se refere a A náusea, acreditamos que, com base na for-
mulação de Espinosa sobre os afetos, Roquentin pode ser apresentado como
um exemplo do homem servil, arrastado por forças que não as suas, incapaz de
moderá-las.
No entanto, ainda resta um aspecto da melancolia de Roquentin a ser
analisado à luz das concepções espinosanas, a saber, a solidão. Ora, não parece
razoável supor que a renúncia ao mundo e a escolha pelo isolamento seriam
condições favoráveis à virtude e ao consequente triunfo sobre a impotência?
Não nos termos de Espinosa. Em conformidade com os “ditames da razão”
apresentados no escólio da proposição 18, o filósofo holandês já havia afirma-
do que “Nada, pois, mais útil ao homem do que o homem” (espinosa, 2021,
p. 407). Isso significa que, a partir da associação entre, por um lado, aquilo que
nos é útil e, por outro lado, aquilo que é concordante do ponto de vista das
partes humanas da Natureza, nada é mais benéfico à mente e ao corpo do que a
relação com outros indivíduos (chaui, 2016, p. 425). Apesar de o autor consi-
derar as dificuldades da sociabilidade, posto que os homens, majoritariamente,
são conduzidos pelas paixões, as vantagens trazidas pela vida em comum estão
em consonância tanto com a razão quanto com a experiência. Donde segue-se
a ponderação feita no escólio da proposição 35:

Contudo é raro que os homens vivam sob a condução da razão, estando


de tal maneira dispostos que, na sua maioria, são invejosos e molestos
uns com os outros. Por outro lado, dificilmente podem passar a vida na
solidão, de modo que a quase todos agrada bastante aquela definição de
que o homem é um animal social; e de fato a coisa se dá de tal maneira
que da sociedade comum dos homens se originam mais comodidades do
que danos. Portanto, que os Satíricos ridicularizem o quanto quiserem

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 229


as coisas humanas, que os Teólogos as amaldiçoem e que os Melancóli-
cos louvem os animais; ainda assim experimentarão que os homens, com
auxílio mútuo, podem prover-se mais facilmente das coisas que precis-
am, e só com as forças reunidas podem evitar os perigos que em toda
parte os ameaçam [...] (espinosa, 2021, p. 429, itálico nosso).

Com base no que foi dito, podemos observar que a oposição melancólica
à fruição social se mostra absurda na Ética espinosana. A impossibilidade de se
levar uma vida humana solitária e plena ressoa nos danos ao desenvolvimento
das aptidões mentais e corporais e na consequente incapacidade para a plura-
lidade de afecções e ideias simultâneas. Como explica Chaui: “[...] a sociabi-
lidade é o útil por excelência, pois a condição humana de modo finito e parte
da Natureza não apenas impossibilita a autossuficiência do indivíduo isola-
do, mas também introduz a sociabilidade como natural e necessária” (chaui,
2016, p. 425). Dessa forma, é preciso reter que a virtude não enclausura nem
nos encerra em nós mesmos. Antes, abre-nos para o mundo, posto que na exte-
rioridade existem coisas que são favoráveis ao incremento de nossa potência.
Em contrapartida, aquele que se encontra tomado pelas paixões, ao navegar
no oceano tempestuoso das incertezas, acreditará no proveito de sua própria
impotência.

4. considerações finais

Ao contrário do que ocorre em relação a Descartes, Sartre não traça de


forma clara ou com enfática força sugestiva o contraponto com Espinosa na
constituição da trama de Roquentin. No entanto, a interpretação circunscrita
que buscamos delinear entre a formulação filosófica de Espinosa e a experiên-
cia ficcional de A náusea nos mostra que a teoria espinosana incide, ainda que
à maneira de lampejos, na obra de Sartre.
Em suma, cientes da impossibilidade de esgotar todos os aspectos que per-
fazem a análise proposta, acreditamos que foi possível esboçar o que poderia

230 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ser uma leitura espinosana sobre a melancolia, tal como exposta no roman-
ce sartriano. Embora Espinosa erga sua Ética em um terreno de tamanha dis-
paridade com a constatação da realidade contingente de A náusea, o aspecto
ontológico da necessidade e as consequências disso na elaboração de sua teoria
afetiva nos permitem criar um contraponto produtivo à interpretação do sofri-
mento de Antoine Roquentin.
De toda forma, se é realmente cabível afirmar o estado melancólico de
Roquentin, Espinosa nos mostra a gênese da melancolia como uma paixão
oriunda da tristeza, na qual a mente e todas as partes do corpo são afetadas
pela profunda diminuição de potência. Por outro lado, considera-se também
a importância da música no interior desta dinâmica. A alegria oriunda da can-
ção de jazz converge tanto para o reforço teórico do estado melancólico da
personagem quanto para atestar nosso esforço incondicional por aquilo que
favorece o incremento do conatus. No entanto, Roquentin mais padece do que
se mostra capaz de agir. Dessa forma, intimamente relacionado com o sen-
timento de contingência, o personagem de Sartre bem expressa a condição
humana servil, uma vez que é arrastado pelo poderio da Fortuna, na contra-
mão da virtude.

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 231


A SPINOZIST READING OF NAUSEA: ROQUENTIN’S ME-
LANCHOLY

abstract: This article aims to analyze the notion of melancholy as present-


ed in the characterization of Roquentin, the protagonist of the Sartre’s novel
“Nausea”, in the light of Spinoza’s analysis of the affections, in parts III and IV
of “Ethics”. In Sartre’s book, we can observe constant suggestions about the
character’s peculiar sorrow, based on his relationship with the discovery of
contingency. On the other hand, according to the ontological necessity, Spi-
noza’s considerations about the affections affirm the impotence of the melan-
cholic person and point out the servitude of the one who believes to be led by
fortune. Therefore, in this dynamic, we will indicate Roquentin as the exam-
ple of the man who is not his own master, in Spinoza’s terms.
keywords: Spinoza; Jean-Paul Sartre; Melancholy; Contingency; Conatus;
Ethics.

referências bibliográficas
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Nova Fronteira.
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232 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


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silva, f. l. (2004). Ética e literatura em Sartre: Ensaios introdutórios. São
Paulo: Unesp.

Ágatha Cavallari p. 209 - 233 233


A DERRADEIRA PROPOSIÇÃO DA ÉTICA

Paulo Vieira Neto


Professor, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil
vieiranetopaulinho@gmail.com

resumo: A última proposição da Ética exige, para sua compreensão, a


anamnese de todas as partes anteriores da Ética, de uma forma tal que o leitor
possa compreender a convergência entre os conceitos de ação, de felicidade
e de virtude. Para tanto é necessária uma análise pontual da Proposição 42
da Quinta Parte da Ética e de seu corolário, especificando a diferença entre o
sábio e o ignorante a partir do conatus e do poder de ação inerente a cada um.

palavras-chave: Virtude; Felicidade; Ação; Liberdade.

Paulo Vieira Neto 235 - 258 235


i
A última proposição da Ética, entre outras coisas, aponta a propriedade distin-
tiva da verdadeira fruição da beatitude nos seguintes termos: “[…] não goza-
mos dela porque coibimos a Lascívia, mas, ao contrário, é porque gozamos
dela que podemos (possumus) coibir a Lascívia” (espinosa, 2015, ev p42,
p. 577). E o faz de forma ainda mais clara na Demonstração da mesma pro-
posição: “[…] porque a Mente goza deste Amor divino ou felicidade, ela tem
o poder (potestas) de coibir a lascívia”. (espinosa, 2015, ev p42, D., p. 579).

Para Espinosa, então, julgar que o poder sobre as paixões, a virtude da For-
taleza, dá origem à felicidade consiste em tomar o efeito pela causa ou o condi-
cionado pelo condicionante — trata-se primeiro de efetivamente fruir da feli-
cidade para então manifestar a Fortaleza, como emblema dessa felicidade. O
início mesmo da proposição 42 sugere o motivo para essa inversão de papéis. A
felicidade não resulta como um prêmio da virtude, mas coincide completamente
com a própria virtude, de tal forma que se seguem três consequências imedia-
tas sobre a forma como se relacionam felicidade (beatitude) e virtude. A saber:
1) a virtude não causa, propriamente falando, a beatitude, 2) não cabe pensar a
beatitude como o prêmio de uma virtude efetiva, logo, a relação com ela não se
resume imediatamente na de merecimento porque 3) felicidade e virtude mani-
festam-se como o mesmo sem mediação. Por consequência, dentro do ambien-
te da Ética, uma ética da virtude equivale completamente a uma ética da felici-
dade, e de fato o fazem, pelo menos no que concerne ao enunciado da proposi-
ção 42. Não se trata, portanto, de praticar a virtude e depois fruir da felicidade,
mas de fazer as duas coisas em um único ato. Daí que o poder de coibir a Lascí-
via ocupe o posto de consequência nesse processo. O homem feliz espinosano,
por natureza, compreende e critica suas paixões, dispondo delas segundo sua
natureza, em sua felicidade e com ela. Não se trata de coibir as paixões para ser
feliz, mas de vê-las sem força porque se é feliz1. O que muda também a hipótese

1 A interpretação sobre as paixões neste texto acompanha a delineada por chaui, 2011,

236 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


de que é pela força que se obtém a felicidade, entenda-se desde logo: a Lascívia
é ausência de felicidade. Assim como não há um caminho da fortaleza à felici-
dade, seu contrário — isto é, partir da felicidade para recair sob o domínio das
paixões — equivaleria a realmente dispor da liberdade e operar pela servidão,
operação que, em si mesma, envolveria um contrassenso.

É uma solução econômica no que diz respeito à alternativa entre uma ética
da virtude e uma da felicidade. Extingue-se a diferença. Entretanto, essa descri-
ção da beatitude e de seu encontro final com a virtude não deixa de criar pro-
blemas para o leitor da Ética. Por dois motivos fundamentais. Primeiro: o poder
(potestas) de refrear as paixões pode sugerir que a felicidade, tomada como cau-
sa, permita uma escolha do homem feliz, isto é, permita que ele recuse ou aceite
sua submissão à Lascívia. Mas a Ética não deixava margem a nenhum funda-
mento objetivo ou subjetivo para uma tal escolha. Isso porque, objetivamente,
um acontecimento vem determinado por suas causas numa ordem de necessi-
dade inquebrável, a paixão ela mesma é um acontecimento que tem como cau-
sas o objeto apaixonante e a natureza do apaixonável que efetivamente sofreu
a paixão, e então tal apaixonado não poderia deixar de sê-lo sem contrariar sua
própria natureza (o que envolveria uma contradição insustentável consigo mes-
mo) ou a força do objeto apaixonante (o que exigiria dele um excesso de força
que tornaria a paixão impossível, ao invés de opcional). Não há, consequente-
mente, condições objetivas para a escolha entre sofrer ou não a paixão. Tam-
bém não se alcançam condições subjetivas para tanto, porque toda paixão, sub-
jetivamente, exprime um desejo, e este último em momento algum vem inde-
terminado o suficiente para permitir um estado que envolva com indiferença a
afirmação e a negação de seu objeto. Ao desejo resta apenas a uma das partes de
uma disjunção, e desejar significa, antes de tudo, afirmar o vínculo com o objeto,
ou negá-lo apenas. Claro que pode haver dois desejos contrários sem contra-
dição, mas então teremos uma oscilação do ânimo mais que uma indiferença.

passim.

Paulo Vieira Neto 235 - 258 237


O segundo motivo de estranheza advém do velho hábito de entender a
felicidade como efeito. Porque a própria felicidade parece objeto de uma esco-
lha, ou pelo menos parece envolver uma conversão e um esforço pessoal em
conquistá-la que, em algum momento, exige a passagem da infelicidade à bea-
titude. Ora, quando pensamos assim, talvez em função de um hábito que não
seja o de Espinosa, a explicação da passagem da infelicidade à felicidade, no
ambiente da Ética, não alcança clareza imediata.

Isso porque a infelicidade também não acontece de forma fortuita, e a for-


ça suficiente para conquistar a felicidade parece tornar a infelicidade mesma
um estado desnecessário, de tal forma que o homem feliz não poderia retornar
à infelicidade; de fato, mas o infeliz, por motivos semelhantes, não alcançaria
a felicidade sem adquirir uma força que aparentemente não podia possuir. A
força do homem feliz torna a infelicidade impossível, mas então a fraqueza do
homem infeliz não tornaria a felicidade impossível? A própria passagem da
infelicidade à felicidade não parece envolver nenhum momento no qual seja
possível optar pela permanência na infelicidade, porque, compreendida a feli-
cidade e manifesta a força para possuí-la, não há por que voltar atrás no proces-
so sem contradição, seja com o que se compreendeu, seja com a força suficiente
para conquistar, finalmente, o estado de beatitude.

Assim, seja quanto às causas da felicidade, seja quanto a seus efeitos, o


poder de possuí-la parece implicar a necessidade de possuí-la, e, simetricamen-
te, a infelicidade parece um estado do qual não há saída, na exata medida em
que o infeliz não tem poder para alcançar a felicidade. Aparência problemá-
tica, sobretudo em função da tarefa própria a uma ética. Se fosse assim, nem
o homem feliz precisaria se preocupar com a natureza e com as causas de seu
estado, nem o infeliz procurar uma solução para ele. Mais ainda, o próprio
conceito de beatitude pareceria contradizer o sintoma que, no entanto, a últi-
ma proposição da Ética aponta como constituindo sua característica defini-
tiva. Ora, a explicação do que seja a beatitude descrita na última proposição
da Ética é algo que exige o esclarecimento prévio dessas questões. Todo nos-

238 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


so esforço, logo adiante, consistirá em compreender melhor e tentar esboçar
uma solução desses dois problemas terminais da Ética de Espinosa: 1) o que é
o poder (potestas) de refrear as paixões e, em função disso, 2) qual a passagem
da infelicidade à felicidade, para compreendermos melhor a consequência e
os antecedentes da beatitude como ela nos vem apresentada em sua proposi-
ção derradeira. Para tanto, o primeiro passo consiste em mostrar que ambos
os problemas se originam simultaneamente, em raízes comuns fincadas sobre
a maneira pela qual a Ética constrói o conceito de felicidade. É natural, então,
que investiguemos primeiro alguns detalhes a respeito da construção deste
conceito e sobretudo os que culminam na demonstração da última proposição
da Quinta Parte.

ii

A demonstração que a Ética oferece à proposição 42 da Quinta Parte retoma


quase que todo itinerário mesmo do capítulo — e talvez de toda obra. Mas
a demonstração, ela mesma, se completa em duas partes. Sua primeira parte
segue o seguinte enredo: 1) a felicidade identifica-se com o amor intelectual a
Deus, isto é, com o gozo do pertencimento à ordem total da natureza (à ordem
do real) como sugere a Parte i, gozo que se manifesta como conhecimento,
como sugere a Parte ii; 2) a gênese desse gozo ocorre com a do terceiro gênero
de conhecimento, isto é, a partir do exercício concreto do intelecto finito; 3) o
intelecto finito, por sua vez, coincide com uma pura ação da mente, e refere-se
apenas à natureza da mente que assim entende (isto é, o intelecto tem autono-
mia quanto ao seu exercício), logo 4) o exercício do intelecto coincide com a
virtude, que é ação.

Claro que a justificativa deste percurso exige que se traga à luz algo da lon-
ga história que culminou na proposição 42 da Quinta Parte. Ora, a cláusula
que inicia a demonstração (fundada na proposição 36 da mesma Parte e em seu

Paulo Vieira Neto 235 - 258 239


escólio) pode ser explicada por todo o desenvolvimento da primeira Parte da
Ética, se o entendermos como construção do modelo pelo qual podemos com-
preender a relação entre Natureza Naturante e Naturada, isto é, como desen-
volvimento da relação entre a substância e seus modos, formando a totalidade
da ordem do real2.

O amor intelectual, por sua vez, é a contrapartida, na mente, da estrutu-


ra mesma do real compreendida pelo intelecto, contrapartida que implica a
afirmação do real na mente como ato autônomo. Então, a gênese dessa afir-
mação do real coincide com a do próprio intelecto finito e, como afirma a
segunda cláusula, encontrará seu fundamento no corolário à proposição 32
da Quinta Parte embora já esteja fundamentada implicitamente, na Segun-
da Parte da Ética. Todavia, o intelecto era construído como ação referi-
da apenas à natureza da própria mente que entende, já a partir da Segunda
Parte (eii p40, esc.), de onde, se compreendemos a teoria dos afetos conti-
da na Parte iii da Ética — teoria que deposita a matriz da virtude na ação
da mente quando referida apenas a sua natureza — constatamos também que
a felicidade é amor intelectual, logo compreensão intelectual e por isso mes-
mo tem a natureza das virtudes. Resta, no entanto, explicar algo da força da
afirmação da terceira cláusula, que não indica apenas que o amor e a compre-
ensão intelectual sejam uma virtude, mas que eles coincidem com a própria
virtude.

É que a mente está inteira em todas as suas ações, e cada ação coincide não
só com uma virtude, mas também exprime a força para agir que, em si mesma,
oferece o estofo concreto de toda virtude. Logo, a primeira parte da demons-
tração termina por fazer confluir em um único ato três manifestações: 1) da
felicidade, 2) do amor intelectual e 3) da compreensão intelectual — e ain-

2 Tal postulado é desenvolvido de forma muito mais aprofundada por chaui (1999) no
primeiro volume de A Nervura do Real.

240 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


da qualifica esse ato de manifestação, como um todo, de “virtude” entendida
como força de ação em seu exercício concreto.

Ora, a segunda parte da demonstração opera sobre essa confluência,


expressa no gozar do amor divino, mostrando duas proporcionalidades diretas
e uma inversa, particularmente interessantes para nossa investigação:

Em seguida, quanto mais a Mente goza deste amor divino ou felicidade,


(1) tanto mais entende (pela proposição 32 desta parte), isto é (pelo
corolário da proposição 3 desta parte), (2) tanto maior potência tem
sobre os afetos (pela proposição 38 desta parte) e (3) tanto menos padece
dos afetos que são maus. E assim, porque a Mente goza deste Amor divi-
no ou felicidade, ela tem poder de coibir a Lascívia”(espinosa, 2015, ev
p42, d, p. 579, numeração nossa)3.

“… quanto mais … tanto mais … tanto maior … tanto menos …”, a saber, o
amor intelectual, a compreensão intelectual, a felicidade e a virtude mostram-
-se passíveis de graduação, sujeitas ao mais e ao menos, ao maior e o menor.
Há, na gênese da felicidade, todo um movimento de ida à maior virtude, à
maximização da virtude, que leva também a otimizar o poder de refrear as pai-
xões ou ainda, o que é equivalente, a reduzir os efeitos das más afecções até seu
mínimo.

3 Vale a pena transcrever o texto original da demonstração nessa passagem, na qual


grifamos o estabelecimento das proporções diretas e inversas, mas também uma nova pista
a respeito do que seja o poder envolvido no ato de podermos refrear as paixões:“Deinde
quo Mens hoc Amore divino, seu beatitudine magis gaudet, eo plus intelligit (per Prop.
32. hujus), hoc est (per Coroll. p. 3. hujus), eo majorem in affectus habet potentiam,
& (per Prop. 38. hujus) eo minus ab affectibus, qui mali sunt, patitur; atque adeo ex
eo, quod Mens hoc Amore divino, seu beatitudine gaudet, potestatem habet libidines
coercendi; & quia humana potentia ad coercendos affectus in solo intellectu consistit, ergo
nemo beatitudine gaudet, quia affectus coercuit; sed contra potestas libidines coercendi ex
ipsa beatitudine oritur. Q. E. D.”. (espinosa, 2015, ev P42, esc., p. 578) Negritos nossos.

Paulo Vieira Neto 235 - 258 241


No entanto, como se graduam essas coisas? Como efetuar este cálculo de
máximos e mínimos? Veremos adiante. O escólio à proposição 42 talvez nos
forneça a pista precisa para decifrarmos isso, quando repõe a questão em ter-
mos dos atos ‘de jamais deixar de ser’ e de ‘deixar de ser4’ próprios, respectiva-
mente, do sábio e do ignorante. Cabe reter até aqui, apenas, como o próprio
movimento em direção ao máximo da virtude, da felicidade, da compreensão
e do amor intelectual desencadeado na ação do intelecto aparece relaciona-
do com o poder de refrear as paixões. Toda a chave para a compreensão des-
se poder pode se encontrar, portanto, na leitura correta da maneira pela qual
Espinosa gradua a compreensão intelectual ela mesma (ou seja, em saber o que
significa compreender mais ou menos).

Antes de seguirmos essa pista, o que faremos logo adiante, cabe ainda
observarmos mais um pouco o escólio à proposição 42 em um ponto funda-
mental. A descrição dramática da posição do ignorante que o escólio oferece
— e a contrapartida elevada que cabe ao sábio — repetem com algumas novi-
dades a confluência de atos que a demonstração secamente enunciava na série
‘amor intelectual = felicidade = compreensão intelectual = virtude = supe-
ração das más afecções’ (matriz da proporção direta ‘mais amor intelectual =
mais felicidade = mais compreensão intelectual = mais virtude = maior poder
de superar as afecções más”). Mas a série agora é explicitada com outras pala-
vras:

4 Na bela e sugestiva expressão original: “nunquam esse desinit” e “esse desinit”


(espinosa, 2015, Ev P42, esc., p. 578), o segundo significando uma espécie de declinação
do esse (ato de ser) paralela ao não exercício da virtude. Daqui para frente, substituiremos
a expressão ‘deixar de ser’ por ‘declinar do esse’, não porque não haja clareza suficiente na
primeira, mas apenas para enfatizar uma certa forma de compreender os compromissos
ontológicos envolvidos no ‘deixar de ser’ próprio ao escólio da proposição 42. ‘Desinit’ será
vertido por ‘declinar’, declínio, etc., e manteremos o quanto possível o infinitivo ‘esse’ (ser)
no original, pretendendo com isso dar relevo a uma leitura na qual esse designa o ato de ser
em sua efetividade crua.

242 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Donde fica claro o quanto o sábio prepondera e é mais potente que o
ignorante, que é movido só pela Lascívia. Com efeito, o ignorante, além
de ser agitado pelas causas externas de muitas maneiras, e de nunca pos-
suir o verdadeiro contentamento do ânimo, vive quase inconsciente de
si, de Deus e das coisas; e logo que deixa de padecer, simultaneamente
deixa também de ser. Por outro lado o Sábio, enquanto considerado
como tal, dificilmente tem o ânimo comovido; mas, cônscio de si, de
Deus e das coisas por alguma necessidade eterna, nunca deixa de ser, e
sempre possui o verdadeiro contentamento do ânimo” (espinosa, 2015,
ev p42, esc., p. 579. Grifos nossos)5.

Esta segunda série se completa com expressões mais decisivas. Vejamos


seus estágios, no que diz respeito às duas possibilidades contrapostas por Espi-
nosa, a) a do ignorante e b) a do sábio. Para o ignorante (a): 1) ser movido
por causas externas, implica 2) falta da verdadeira aquiescência de ânimo, 3)
insciência de si de Deus e das coisas, 4) declínio do esse; para o sábio (b): 1) ser

5 Algumas traduções dessa proposição podem esconder o que está em jogo, do ponto de
vista da proporção entre os fatores que estamos investigando. Para tanto, por exemplo é
preciso alterar a tradução de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio
Simões em “Os Pensadores” no que concerne ao uso de termos como ‘consciência’,
‘íntimo’, ‘contentamento’ e ao desaparecimento da remissão aos estados de ânimo, e à
força do ânimo que parecem ser compreendidos na tradução como ‘estados interiores’.
Um exemplo é a tradução de Antônio Simões à Ev P42, onde se lê “O ignorante, com
efeito, além de ser agitado de muitas maneiras pelas causas externas e de nunca gozar
do verdadeiro contentamento íntimo, vive, ainda, quase sem consciência de si
mesmo...” (espinosa, 1979, Ev P42, esc., p. 300, negritos nossos), o que é muito diferente
de inconsciente de si. Há toda uma psicologia por trás desses termos que pode não caber
dentro dos limites da filosofia da Ética e o uso dos termos pode infiltrar uma certa confusão.
Para conferência do leitor dispomos do original abaixo. Ei-lo:“Ex quibus apparet, quantum
Sapiens polleat, potiorque sit ignaro, qui solâ libidine agitur. Ignarus enim, praeterquam quod
a causis externis, multis modis agitatur, nec unquam vera animi acquiescentia potitur, vivit
praeterea sui, & Dei, & rerum quasi inscius, & simulac pati desinit, simul etiam esse desinit.
Cum contra sapiens, quatenus ut talis consideratur, vix animo movetur; sed sui, & Dei, &
rerum aeterna quadam necessitate conscius, nunquam esse desinit; sed semper vera animi
acquiescentia potitur.” (espinosa, 2015, Ev P42, esc., p. 578)

Paulo Vieira Neto 235 - 258 243


movido por sua força de ânimo, resulta em 2) ser ciente de uma certa necessi-
dade de si, de Deus e das coisas, 3) nunca declinar do esse, 4) fruir sempre da
verdadeira aquiescência de ânimo.

Ora, a equivalência entre a série (b) — que diz respeito ao sábio — e a


descrição do homem feliz que se apresenta na primeira e segunda metades
da demonstração da proposição 42 se faz a partir de uma versão do percurso
exposto em cada série. Assim, o amor intelectual e a compreensão intelectual
traduzem-se na ciência de uma certa necessidade de si, de Deus e das coisas; a
felicidade na verdadeira aquiescência de ânimo, e por fim, a virtude na força do
ânimo como matriz de seu próprio movimento. O termo faltante — presente
apenas no escólio — consiste em não declinar do esse (o não deixar de existir)
próprio do sábio. Ele, justamente, será a chave para compreendermos não só a
proporção sugerida ao se demonstrar a proposição 42, como também o senti-
do em que todos esses termos permitem um maior e um menor, um menos e
um mais. Isso porque, talvez, o declínio ou o não declínio do esse possam resu-
mir em si a confluência entre o amor, a compreensão intelectual, a virtude, a
felicidade e o poder de refrear as paixões que estavam presentes na demonstra-
ção e no escólio.

Examinemos agora essa graduação da virtude e suas relações simultâneas


com a perseverança no esse e com a ação do intelecto.

iii

A proposição 6 da Terceira Parte da Ética enunciava o princípio posto em jogo


na passagem da ignorância à sabedoria, pelo menos no que diz respeito ao ato
de deixar ou não de ser que as caracterizava: “Cada coisa, o quanto está em suas

244 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


forças, esforça-se para perseverar em seu ser (esse)” (espinosa, 2015, eiii p6,
p. 251).

A cláusula restritiva “o quanto está em suas forças” parece antecipar algo de


importante sobre a posição do sábio no escólio à proposição 42, não nos dis-
pensando de algumas mediações para compreendermos isso melhor.

Em primeiro lugar, a proposição 6 afirma o esforço de qualquer coisa por


perseverar em seu esse, enquanto é em si. Com efeito, a expressão ‘o quanto é
em si’ (“quantum in se est”) literalmente presente na proposição 6, é bem mais
problemática, e bem mais reveladora, do que parece à primeira vista. O sim-
ples costume poderia nos aconselhar a ler essa expressão como se dissesse para
considerarmos cada coisa apenas levando em conta o que ela é, sem referência
a nada mais — prescindido o todo restante. Mas se retornamos às definições ini-
ciais da Ética, sobretudo às definições 3, 4 e 5 da Primeira Parte, perceberemos
apenas a substância como uma coisa digna de ser em si neste sentido absoluto,
fundamentalmente porque o modo não pode ser nem ser concebido sem refe-
rência a outra coisa (ei d5). Por força disso, ou o termo quanto (“quantum”)
envolve qualquer coisa permanecendo em seu esse, na medida em que assume
relativamente seu ‘ser em si’, ou a proposição 6 se refere apenas à substância —
tornando vão o ‘cada’ da expressão “cada coisa” (“unaquaeque res”) que princi-
pia seu enunciado. Esta última leitura já é inviável apenas por força da demons-
tração que segue a proposição 6, o que veremos adiante. Mas, por motivos que
nos interessam de perto, ela também é extravagante se levarmos em conta a
proposição seguinte (a sétima da Terceira Parte): “O esforço pelo qual toda
coisa tende a perseverar no seu ser (esse) não é nada além da essência atual da
própria coisa” (espinosa, 2015, eiii p7, p. 251).

Ora, haver apenas um sentido absoluto do ‘ser em si’ implica a exclusão dos
modos da posse de uma essência atual, porque não precisaríamos aceitar a per-
severança no esse para um modo enquanto um modo não é em si e não cumpre

Paulo Vieira Neto 235 - 258 245


a cláusula restritiva da proposição 6 — e, sem essa ‘perseverança’, não se cons-
tituiria com necessidade o que a proposição 7 identifica precisamente como a
essência atual deste modo.

A flagrante impertinência de uma interpretação que fizesse Espinosa per-


mitir algum modo efetivo que pudesse não ter essência atual dispensa comen-
tários posteriores. Rejeite-se então o sentido absoluto da expressão o “quanto é
em si”; ela só pode querer dizer ‘o quanto podemos considerara algo (além da
substância) como sendo em si’. Daí duas consequências inevitáveis. Para não
entrarmos em franca contradição com o que define o modo, isto é, justamente
o ‘ser em outro’, resta admitir 1) que os modos podem também ser em si, mas
apenas em ‘sentido relativo’ … e cabe ainda assumir que 2) qualquer coisa pode
ser alcançada em si, pelo menos em ‘sentido relativo’. Lendo assim a proposição
6, poderíamos expandir seu enunciado dessa forma: qualquer coisa se esforça
por perseverar em seu ser, ou sendo em si em sentido absoluto ou enquanto se
considera sendo em si em sentido relativo no ato de ser em si (possui essência
em ato) e se esforça por perseverar em seu esse.

Mas há um problema importante por trás disso tudo. Retomemos mais


uma vez nosso esforço anterior para explicar a amplitude de aplicação da pro-
posição 6. Se o modo está sendo alcançado o quanto é em si, esse ‘o quanto’ só
faz sentido porque o ser em si a que ele se refere exige circunstâncias e condi-
ções determinadas para ser alcançado. De fato, dissemos que o modo é em si
num sentido relativo. Todavia, cabe esclarecer com precisão o que significa ser
em si em sentido relativo. Relembremos o percurso que nos forçou a aceitar tal
expediente: como essa relativização deve ser empregada para explicar em que
medida a proposição 6 inclui os modos entre seus objetos, para formular o
significado deste ‘sentido relativo’ de forma mais precisa, teremos de partir da
definição de modo, segundo a qual cada modo 1) é em outro e 2) concebido a
partir do conceito desse outro — o que cria a grave dificuldade em dar conta
de um sentido claro para tal qualificação. E a dificuldade criada pela definição
de modo se tornará mais aguda se percebermos que o Axioma 1 da Primeira

246 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Parte da Ética garante, de forma incontestável, que não há meio termo entre o
ser em si e o ser em outro.

Apenas o recurso à ontologia da Primeira Parte da Ética pode iluminar


essas dificuldades. E isso acontece, sobretudo, no momento em que a Primeira
Parte estabelecia a relação entre a substância, os modos e a ordem total do real
— a relação entre as partes e o todo que posiciona corretamente a substância
e os modos na ordem do real. Segundo esse recurso de interpretação, o modo
“o quanto é em si”, como tivemos de entendê-lo tacitamente na proposição 6,
deve significar apenas que o modo assim considerado está situado no interior
do processo de causalidade imanente6 que o gerou. Isto é, os modos envolvi-
dos na proposição 6 são compreendidos a partir do processo de gênese que os
vincula a parte ante com a substância como causa primeira, a parte post com a
ordem total da natureza. Embora a postulação desses vínculos seja lícita para
qualquer modo, como demonstra a Primeira Parte da Ética em seu todo (e a
Segunda quando trata do conhecimento intelectual), temos de lembrar ainda
que a Segunda Parte da Ética esclarece que nem sempre fazemos isso.

Considere-se então o modo fora da ordem total da natureza. Por exemplo,


imaginemos um modo — não o estamos levando em conta “o quanto é em si”.
Todavia, não ver o modo o quanto é em si não exige necessariamente, nesse
caso, ter que despojá-lo de sua essência atual, implica apenas não estarmos per-
cebendo tal modo imaginado a partir de sua essência atual (o conhecimento
intelectual faz isso com exclusividade).

6 A causalidade imanente significa, de acordo com a interpretação da Proposição 18 da


Primeira parte da Ética, a extensão da “imanência de Deus aos seus efeitos, ou seja, faz deles
(a saber, da totalidade das coisas) afecções dos atributos divinos”. (oliva, 2015, p. 261)

Paulo Vieira Neto 235 - 258 247


Agora, o ‘quanto’ de “quanto é em si” enuncia a posição de uma entre duas
perspectivas. Na perspectiva assumida pela proposição 6 percebemos a subs-
tância e os modos, e devemos percebê-los em sua conexão com a ordem total
da natureza, em chave ontológica. Observe-se que, neste caso, o modo não é
em si com sentido absoluto, já a partir de sua definição; mas de sua pertinência
à Natureza Naturada (a ordem as essências), e a vinculação necessária desta à
Natureza Naturante (a ordem das primeiras causas) faz com que vejamos cada
modo efetivo como necessário, resgatando na própria necessidade de cada um
desses modos uma consistência ontológica ao menos análoga à da substância,
uma autonomia herdada de sua posição necessária na ordem do real.

Eis, então, o significado último da expressão ‘ser em si’ (in se est) entendida
em sentido relativo: carregar a necessidade legada por sua pertinência à ordem
do real. As concepções de modo não excluem outras formas de alcançá-los que
não digam respeito a essa necessidade, entretanto, dessa última perspectiva, os
modos não compreendidos em sua necessidade não são mais objeto da propo-
sição 6.

Com isso, talvez, possamos entender que a seleção contida no ‘quanto’ da


proposição 6 exclui apenas os modos imaginados como coisas isoladas de todas
as outras, mas não os modos efetivos, alcançados pelo intelecto e, portanto, vis-
tos em sua vinculação com a ordem do real como um todo. Aceito esse senti-
do, quando não consideramos um modo “enquanto é em si”, isso não se deve
ao fato de tomar os modos como algo sendo em outro, mas, por exemplo, de
imaginarmos algum modo como algo que poderia não ser, isso é, independente
por completo da ordem do real que, segundo Espinosa o produziria necessaria-
mente. Eis, por fim, o significado de considerar um modo ‘o quanto é em si’:
não o isolar da ordem que o produziu e roubar a necessidade que esta ordem
lhe empresta.

Passando a limpo: as proposições 6 e 7 da Terceira Parte concernem às

248 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


coisas (todas elas), e, em particular, aos modos entendidos em sua necessida-
de ou em sua conexão com a ordem total da natureza. Tais proposições não
implicam formas de consideração de cada modo que o percebam como algo
independente da ordem total da natureza, ou como algo contingente. Nesse
último caso, não se percebe o modo ‘enquanto é em si’ segundo um sentido
muito particular — sentido que não contradiz nem a definição de modo nem
o primeiro axioma da Ética — e é essa alternativa que era descartada desde
logo pela proposição 6.

Voltemos agora ao ponto. Se alcançamos o modo em sua constituição


ontológica, nós o compreendemos como algo que não pode independer da
ordem total da natureza. Desse ponto de vista podemos ver, através da neces-
sidade de sua produção, uma perseverança em seu esse (na proposição 6) que
constitui sua essência atual (na proposição 7). Esse é o segredo que faz Espino-
sa dizer que o ignorante declina do esse e o sábio não o faz, na proposição 42 e
em seu escólio, na Quinta Parte da Ética.

Agora estamos a um passo de compreender a relação entre isso e o papel


que Espinosa atribuía ao sábio e ao ignorante. Para chegarmos a isso cumpre
ainda considerar a demonstração da proposição 6, iluminada pelo que estabe-
lecemos acima.

iv

A demonstração da proposição 6 da Terceira Parte diz:

As coisas singulares são modos pelos quais os atributos de Deus se expri-


mem de maneira certa e determinada (pelo Corol. da Prop. 25 da parte i),

Paulo Vieira Neto 235 - 258 249


isto é, (pela Prop. 34 da parte i), coisas que exprimem de maneira certa e
determinada a potência de Deus, pela qual Deus é e age; e nenhuma coisa
tem algo em si (aliquid in se habet) pelo qual possa ser destruída, ou seja,
que lhe tire a existência (pela Prop. 4 desta parte); ao contrário, opõe-se
(pela Prop preced.) a tudo que pode tirar-lhe a existência, e por isso, quan-
to pode e está em suas forças (quantum potest, & in se est), esforça-se para
perseverar em seu ser (esse)”. q.e.d.” (espinosa, 2015, eiii p6 d, p. 251.
Negritos nossos).

O que nos interessa imediatamente é o recurso às proposições 4 e 5 da


Terceira Parte, e a seu vocabulário — sobretudo o recurso ao termo “exter-
nas”, para caracterizar um certo tipo de causas. De fato, a proposição 4 possui
quase o estatuto de um axioma, não sendo demonstrada a partir de nenhuma
outra. Ela estabelece que a destruição de uma coisa só pode ser levada a cabo
por causas externas, premissa que permite a redução ao absurdo, na propo-
sição seguinte, da convivência no mesmo sujeito de causas que possam fazer
manifestar e destruir sua essência atual. A proposição 5 deixa aberto apenas um
ramo da alternativa: na essência atual de uma coisa só cabem as causas que con-
tribuem para a afirmação dessa coisa em seu esse, em seu ato de ser. As demais
causas são “externas” e devem advir de outros sujeitos (outras coisas reais).

Isso significa que a destruição de um modo vem necessariamente de fora:


é “externa”, mas, na medida em que os modos são coisas nas quais “os atributos
de Deus se exprimem de uma maneira certa e determinada” e “exprimem de uma
maneira certa e determinada a potência de Deus em virtude da qual ele existe e
age”, a exclusão das causas externas não significa que o modo possa ser tomado
em si em sentido absoluto, como vimos acima. A formulação de sua essência
exige a referência tanto aos atributos de Deus quanto aos demais modos que
constituem o que há de positivo nessa essência, o que, por sua vez, exatamen-
te, faz tal essência passar ao esse e à manifestação. Mas ainda há a causalidade
das coisas externas, que podem destruir o modo, suprimindo-o na ordem das
existências. Em verdade, as qualificações externa e interna não têm vínculo com
“ser em si” ou “ser em outro”, “ser concebido por si” e “ser concebido por outro”,

250 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ou ainda, poder ser considerado ‘prescindido de qualquer outra coisa’ ou ‘sem
precisão de sua relação com outras coisas’, por dois motivos: 1) todo modo, por
definição é em outro e concebido por outro, não permitindo jamais a hipótese
de seu isolamento ontológico completo e 2) as causas internas (extrapolando
a compreensão desse termo, em Espinosa, por oposição ao que ele chama de
causas externas) podem pertencer à essência da coisa sem contradição.

O percurso das proposições 4 a 6 da Terceira Parte ensina a discriminar


quais causas podem ser ditas internas e quais devem ser julgadas apenas exter-
nas. As primeiras são todas as que contribuem para a afirmação da essência no
esse, as últimas são as que a suprimiriam da existência. Todavia, o surgimento
do vocabulário ‘interna’ e ‘externa’, como vimos, não permite que se postule
uma camada interior das coisas, caracterizada pela precisão de toda e qualquer
referência a outro, um ‘em si’ entendido imediatamente como separação do
todo. Assim o interno forma algo como um ser em si, no interior de um ser em
outro, e um ser a partir de si a partir de um ser a partir de outro: um ser em si
em sentido relativo.

Com efeito, a noção de externo e interno permite apenas circunstanciar


a compreensão do que vem a ser a autonomia do modo em seu ato de ser e em
sua ação. Assim, os modos não podem ser pensados como partes completa-
mente autônomas do real, no sentido em que essa autonomia queira implicar
um ponto de vista no qual o modo pareceria uma cidadela isolada, um indi-
víduo plenamente separado, dentro do território do real. Sua autonomia está
toda no poder afirmativo de sua essência, que compreende o poder afirmativo
da essência e de suas causas internas, num regresso que tem seu ponto de par-
tida na cadeia causal que o produziu desde a substância como primeira causa.
Daí o importante recurso, na demonstração da Proposição 6 da Terceira Par-
te, à proposição 34 da Primeira, que identifica a potência e a essência de Deus
— isto é, todas as coisas são e agem exprimindo essa potência, a mesma que a
demonstração da Proposição 6 invoca como ingrediente da essência da coisa

Paulo Vieira Neto 235 - 258 251


singular7. Todas as causas internas da coisa, todos os elos da cadeia causal efi-
ciente imanente que a produziu, são cúmplices da expressão da potência de
Deus e da coisa produzida, todas elas constituem o ser e o agir dessa essência e
constituem, por consequência disso, sua autonomia.

A demonstração da Proposição tira proveito e insinua o verdadeiro cará-


ter da autonomia possível para um modo. Essa autonomia não envolve 1) iso-
lamento com relação a outras coisas, nem 2) alguma forma de interioridade
como referência absoluta a si apenas, nem, enfim 3) a possibilidade de prescin-
dir da essência e da ação de outras coisas para a compreensão da ação autôno-
ma da essência de um modo qualquer. Em contrapartida, as proposições 4 a
6 da Terceira Parte excluem da essência de uma coisa determinada tudo o que
suprime seu ato de ser, e nesse sentido aparecem as coisas externas, única região
a partir da qual pode ser pensada a origem da destruição e da heteronomia de
uma coisa qualquer. As coisas podem ser postas então nos seguintes termos: a
substância é definida como algo em si e demonstrada como sendo causa sui;
os modos são definidos como sendo em outro e claramente ocupam a posi-
ção de efeitos posteriores da ação da substância. Portanto modos e substância
são coisas em sentido diverso. Mas há nos modos uma analogia com o em si da
substância, na medida em que se leve em consideração, estritamente, o conjun-
to de causas que o gerou, ou o conjunto de causas que afirmam o conjunto de
causas que o gerou. E, ainda mais, há uma analogia com a causa sui se levarmos
em consideração a ação das causas internas que o geraram, a saber, a ação das
causas internas envolve a afirmação do esse do modo; elas, sem exceção, afir-
mam sua existência tanto quanto a essência da causa sui envolvia sua existência.
Todavia, diferentemente do que acontece com a substância, há no modo espa-
ço para pensarmos sua heteronomia. Isso porque pode haver causas externas
que suprimem sua existência, o que, em absoluto não pode ser o caso com rela-

7 O conceito de essência da coisa singular pode ser empregado para “assinalar a relação
interna entre uma essência e sua existência” (chaui, 2016, p.32).

252 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ção à substância. Algumas coisas externas, portanto, têm o poder de suprimir
a existência de algum modo e, nesse sentido exprimem a heteronomia desse
modo. Mas essa heteronomia não tem origem na alteridade da coisa externa,
tem a ver com sua potência para suprimir o ato de ser ou coagir o modo como
alguma coisa determinada8 — potência que, como vimos, fundava sua exterio-
ridade.

Voltemos agora às posições do sábio e do ignorante, e vejamos os ecos des-


sa noção de autonomia e heteronomia na proposição 42 da Quinta Parte

O ignorante do escólio da Proposição 42 veste o hábito da heteronomia, na


medida em que é “agitado pelas causas externas” — expressão que agora com-
preendemos melhor. E, como somente as causas externas podem ser origem da
supressão de seu ato de ser, compreendemos também por que “logo que deixa
de padecer, simultaneamente deixa também de ser”. Todavia há uma série de
circunstâncias intermediárias que ainda precisam ser explicadas. Em primeiro
lugar, o ignorante percebe e vive sua ignorância sem conhecê-la intelectual-
mente. Daí que nunca possa possuir “o verdadeiro contentamento do ânimo”
permanecendo “quase inconsciente de si, de Deus e das coisas”. Precisamos então
explicar melhor como se sobrepõe o ato de perceber, de viver e de conhecer
intelectualmente a ignorância, para entendermos tudo o que diz respeito à
caracterização do ignorante, segundo o escólio.

8 Seguimos aqui, deliberadamente, o vocabulário da definição 7 da Primeira Parte da


Ética, que define o livre em termos que passam bem perto da forma em que devemos
compreender o objeto da proposição 6 da Terceira Parte.

Paulo Vieira Neto 235 - 258 253


O plano mais amplo da percepção da ignorância se dá no próprio movi-
mento do ânimo agitado pelas causas externas. O ânimo é expressão da intera-
ção entre o modo que o manifesta e o meio circundante, interação que opera
dentro da rede de relações externas que Espinosa descreve como ordo existen-
tiae, ordem das existências. O estado do ânimo nesse caso não é expressão do
estado das coisas que o afetam, mas somente do estado daquele que foi afeta-
do. Tanto o afeto feliz (que é sentido como aumento do poder de ação) quanto
o infeliz não vêm acompanhados da garantia de um verdadeiro aumento do
poder de ação. Ao contrário, como se trata de coisas externas, podemos supor
que aquele que foi por elas afetado passa da ação à coação, conforme as enten-
dia a definição 7 da Primeira Parte da Ética:

É dita livre aquela coisa que existe a partir da só necessidade da sua


natureza e determina-se por si só a agir. Porém, necessária, ou antes
coagida, aquela que é determinada por outro a existir e a operar de
maneira certa e determinada (espinosa 2015, ei d7, p. 47).

Isso significa que, realmente, em alguns desses afetos trata-se de uma dimi-
nuição no poder de agir porque a coação externa interfere nas ações próprias
do modo. Todavia é necessário levar em conta que, se é verdade que toda
diminuição do poder de agir vem de causas exteriores não deixa de ser verda-
de também que algumas causas exteriores permanecem podendo aumentar o
poder de ação, porque o princípio inverso não foi demonstrado por Espino-
sa em lugar algum, e não se segue imediatamente. Isso é: tudo o que discorda
da essência atual e tende a suprimir sua passagem ao ato de ser vem de causas
externas a essa essência, mas nem tudo o que é externo discorda, por isso mes-
mo, de uma essência atual. Dois seres humanos, por exemplo, são tão próximos
em sua essência que é possível pensar um aumento do poder de ação de ambos
dada uma aliança entre eles. Algumas causas externas diminuem o poder de
ação, outras não, e os maus afetos (o adjetivo mau, aqui, significando apenas
a discordância pontual com relação à essência atual em questão) originam-se
apenas das primeiras. Assim, a submissão às paixões, quando estas exprimem

254 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


maus afetos, vem acompanhada de uma diminuição proporcional no poder de
ação. Essa será a experiência do ato de ser coagido, cuja vivência se exprime, em
caso extremo, na completa submissão à fortuna — designação da sequência de
acontecimentos impostos na ordem da existência. A submissão à fortuna não
implica o sentimento de diminuição do poder de ação, porque a fortuna pode
ser generosa. Todavia, há sempre o risco de que ela seja severa …

Lembremo-nos que a ordem da existência pode ser imaginada como uma


série causal aberta, na qual cada termo da série permite a associação da ima-
gem da contingência, porque, como esclarece o Tratado da Emenda, a série da
existência é indeterminada em seus extremos para trás e para frente. Como a
série de causas que compõe essa ordem é indeterminada a parte ante e a parte
post, o sentido último da fortuna, se ela é boa ou má, não se determina jamais,
ele apenas se extingue junto com a própria existência externamente considerada.
Mas isso só acontece quando a relação com a existência ela mesma é externa,
isso é, quando o ânimo é movido pela força das coisas externas, no sentido em
que compreendemos as causas externas no parágrafo anterior, isto é, as que
não condizem com a essência do modo em questão. Ora, não há uma causa
primeira ou última do processo, o enredo dessa existência fica em aberto e não
pode haver também conhecimento desse processo pela causa ou pela essência
atual seja 1) porque as causas externas, consideradas como tais, não mostram
sua pertinência à essência atual do modo, e por meio delas um tal modo não
poderia conhecer sua própria essência atual, ou 2) porque as causas externas,
enquanto tais, não mostram sua própria essência na medida em que o ânimo
não se refere a seu estado atual (tais imagens das coisas externas referem-se
apenas à imagem mais fundamental de nosso estado diante da operação da coi-
sa externa). Como resultado disso, o ignorante, partindo do princípio de que
ele irá perceber as coisas apenas pela perspectiva externa oferecida pela ordem
das existências, vive “quase inconsciente de si, de Deus e das coisas”. (espinosa,
2015, ev p42, esc., p. 579)

Paulo Vieira Neto 235 - 258 255


A experiência da sabedoria se desenvolve em outra chave. O ânimo é movi-
do por suas causas internas, isso é, por sua própria força, porque a afirma-
ção de uma causa interna não é diferente da afirmação da essência atual do
modo ela mesma. E, porque as causas internas constituem o modo e o âni-
mo, o ânimo assim disposto é expressão necessária da essência atual do modo
segundo sua própria natureza. A rigor, agora se trata de agir, no sentido em
que a noção de liberdade contida na definição 7 da Primeira Parte permitia
que se concebesse a ação para um modo. Assim, ao mesmo tempo, tais cau-
sas internas permitem a transparência da manifestação da essência do agen-
te e das coisas, o que surge como percepção da necessidade do acontecimento
— tal visão pela essência e tal reconhecimento da necessidade caracterizam
o conhecimento intelectual de Deus, das coisas e de si mesmo. Ora, como as
causas internas não podem suprimir o esse do agente, por definição, as condi-
ções impostas pela Proposição 7 da Terceira Parte, que analisávamos acima,
verificam-se, e tal agente é visto perseverando em seu esse e “cônscio de si, de
Deus e das coisas por alguma necessidade eterna, nunca deixa de ser, e sempre
possui o verdadeiro contentamento do ânimo” (espinosa, 2015, ev p42, esc.,
p. 579).

Observe-se agora o desnível que Espinosa está propondo entre o sábio


e o ignorante (ou entre o homem feliz, o virtuoso e o vulgo submetido ao
domínio dos maus afetos, expressões até aqui perfeitamente coincidentes).
Trata-se de uma mudança de perspectiva, expressa por uma mudança de
gênero de conhecimento, acompanhada de uma série de diferenças no pró-
prio sábio, assim como no mundo com o qual ele interage. Isto é: o mun-
do do homem feliz é diferente, porque integrado na ordem total da natu-
reza e carregado de uma necessidade que confirma a existência e a essên-
cia do sábio, assim como a do próprio mundo no qual ele vive. A tristeza e
a ignorância, por outro lado, são necessariamente idiossincrasias, e, para
si mesmas, aparecem como um campo de contingência acompanhado de
um conjunto de reações do ânimo que não permitem a ciência de si e das
coisas.

256 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Agora então cabe repor nossas questões centrais, sob os seguintes termos:
é lícito supor um mesmo sujeito ora na sabedoria, ora na ignorância? A respos-
ta correta parece ser não.

Com efeito, o ignorante, além de ser agitado pelas causas externas de


muitas maneiras, e de nunca possuir o verdadeiro contentamento do
ânimo, vive quase inconsciente de si, de Deus e das coisas; e logo que
deixa de padecer, simultaneamente deixa também de ser. Por outro lado,
o sábio, enquanto considerado como tal, dificilmente tem o ânimo
comovido; mas, cônscio de si, de Deus e das coisas por alguma necessi-
dade eterna, nunca deixa de ser, e sempre possui o verdadeiro contenta-
mento do ânimo (espinosa, 2015, ev p42, esc., p.579).

Não, pelo menos, no seguinte sentido: o sábio é pela sua ação, sua atitu-
de e sua posição no mundo confirmam sua ação de tal forma que o sábio “é”,
e o ignorante, baixo-relevo disso, falta em ser porque opera sem ação, e nele
também sua atitude, sua posição no mundo e sua trajetória existencial negam
seu esse. Mas então o segredo final da Ética seria no final de todas as contas,
no epílogo de todas as demonstrações, justamente a costura que foi tramada
entre uma ontologia da ação como esse e uma ética que faz coincidir virtude e
da felicidade? O grande segredo seria o da convergência entre ação, felicidade
e virtude, substituindo uma ética da deliberação e do merecimento? Parece ser
esse o sentido da derradeira proposição da Ética.

Paulo Vieira Neto 235 - 258 257


THE LAST PROPOSITION OF SPINOZA’S ETHICS

abstract: The last proposition of Spinoza’s Ethics implies the comprehen-


sion of all previous moments of the book, in such a way that we could deter-
mine the convergence of the concepts of action, happiness and virtue, as they
were established by Spinoza. So, we must exhaustively analyze the proposi-
tion 42 of Ethics v, its demonstration and scholium, showing the differences
between the situation of the sage and the ignorant as related to their conatus
and their respective action capabilities.
keywords: Action; virtue; happiness; freedom.

referências bibliográficas
chaui, m. (1999). A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa (Vol.
1: Imanência). São Paulo: Companhia das Letras.
______. (2016). A nervura do real ii. Imanência e liberdade em Espinosa (Vol.
2 - Liberdade). São Paulo: Companhia das Letras
______. (2011). Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Com-
panhia das Letras.
espinosa, b. (1979). Ética. Coleção Os Pensadores. Tradução Marilena de
Souza Chaui, Carlos Lopes de Mattos, Joaquim de Carvalho, Joaquim
Ferreira Gomes, Antônio Simões e Manuel de Castro. São Paulo: Abril
Cultural
______. (2015). Ética. Tradução Grupo de Estudos Espinosanos. São Paulo:
edusp
oliva, l. c. g. (2015). Causalidade e necessidade na ontologia de Espinosa. Dis-
curso, nº 45/2, pp. 249-72.

258 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


O CONCEITO DE BEATITUDE EM FICHTE E ESPINOSA:
IMPLICAÇÕES MORAIS E POLÍTICAS DO IDEALISMO
E DO DOGMATISMO

Lucas Damián Scarfia1


Pós-doutorando, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
lucasdamianscarfia@gmail.com

resumo: Neste artigo procuro expor a forma pela qual aparece o conceito de
beatitude (Seligkeit-beatitudo) no pensamento de Fichte e de Espinosa. Tendo
isso em vista, ressalto a importância de considerar os fundamentos metafísicos
dos seus sistemas filosóficos para poder compreender suas implicações práticas
– em particular as morais e políticas – a respeito do sentido que aquele conceito
adota. Assim, pretendo analisar a metafísica fichteana do ansiar (Sehnen) como
base da sua concepção da beatitude em um sentido moral, ao mesmo tempo que
buscarei, em um sentido filosófico-histórico, confrontar essa perspectiva com
a ideia espinosana de uma beatitudo, que, deixando de lado a moralidade, uma
vez que para ele a política assume um papel primário na existência humana,
de um ponto de vista fichteano só poderia ser considerada como irracional
e dogmática. O confronto entre ambos os pensadores pretende favorecer
a compreensão tanto de suas posições sobre o tema como dos seus sistemas
filosóficos per se.
palavras-chave: Fichte; Espinosa; beatitude; idealismo; dogmatismo.

1 Bolsista Fapesp (processo 2022/03084-0)

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 259


introdução

Este trabalho combina os aspectos metafísicos, morais e políticos do pensa-


mento de Espinosa e de Fichte. Trata-se de estudá-los segundo a forma como
concebem o conceito de beatitude (beatitudo-Seligkeit). A base será a filosofia
fichteana, como exibida em Apellation an das Publikum (ap) (1799) e na Grun-
dlage der gesamten Wissenschaftslehre (gwl) (1794-1795)2, para daí realizarmos
uma leitura que contraste tal posição com relação ao que Espinosa expõe na
Ética demonstrada em ordem geométrica (e) (1661-1674), e com relação ao seu
pensamento político no Tractatus Theologico-Politicus (ttp) (1670) e no Trac-
tatus Politicus (tp) (1675-1677). Embora Fichte não se refira explicitamente a
Espinosa3 nos textos analisados, a exegese que contrasta os filósofos favorece
a compreensão das ideias de cada um deles acerca do conceito mencionado e,
de maneira geral, explicita a crítica fichteana ao pensamento espinosano como
dogmático e contrário ao idealismo.
Fichte escreve e publica ap no cenário da acusação de ateísmo que sofreu
por parte das autoridades do Principado da Saxônia. Espinosa sofreu uma
denúncia semelhante. Porém, um dos objetivos do trabalho é mostrar que as
denúncias se referem a bases e escopos filosóficos diferentes. No caso de Espi-
nosa, ele é denunciado a partir de sua crítica ao deus teísta. Quanto a Fichte,
suas ideias têm maior radicalidade, já que questionam a estrutura transcenden-
te do princípio divino – seja Deus, a substância ou a natureza. Esta considera-

2 Também levaremos em conta: Beitrag zur Berichtigung der Urtheile des Publikums
über die französische Revolution (bb) (1793); Einige Vorlesungen über die Bestimmung des
Gelehrten (bg) (1794); Über die Würde des Menschen (wm); Erste und Zweite Einleitung
in der Wissenschaftslehre (ee-ze) (1796-1797); Grundlage des Naturrechts (gnr) (1796-
1797); Verantwortungsschriften gegen die Anklage des Atheismus (vs) (1799). Quanto às
edições em português utilizadas nas citações e referências para as obras de Fichte e de
Espinosa, eu coloco a paginação depois de uma barra (/). Quando não há edição em língua
portuguesa, a tradução é minha.
3 Eu, não-eu, e sua mútua relação, são os princípios do seu sistema filosófico. Cf. fichte,
1965, i/2, pp. 255-82; 2021, pp. 37-67.

260 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ção metafísica tem consequências práticas que levam a uma forma determina-
da de compreender a existência humana e o que é a beatitude. Tratar-se-ia de
uma forma idealista, no caso de Fichte, e de uma forma dogmática no caso de
Espinosa - segundo a consideração do próprio Fichte (cf. fichte, 1965, i/2,
pp. 262-3; 2021, p.46, p.280, pp.64-5, p.392, p.193; 1970, i/4, p. 264).4
Ora, para entender o que Fichte exibe naquele escrito, é preciso descobrir
a metafísica que fundamenta suas ideias morais e políticas. Então o trabalho
esboça a seguinte hipótese: essas ideias têm por fundamento a metafísica do
ansiar (Sehnen) segundo descrita na gwl. Portanto, propomos que a caracte-
rização fichteana da beatitude implica considerar o sentido prático-moral do
seu idealismo filosófico. A partir disso se justifica sua consideração acerca da
preeminência da prática sobre a teoria; o elogio da vida racional sobre a vida
sensorial; a primazia da moral sobre a política como forma de vida da humani-
dade; e a importância de levar adiante uma existência idealista e não dogmáti-
ca para atingir a beatitude.
A segunda aresta da hipótese é que semelhante apresentação se opõe -
por sua fundamentação metafísica e por suas implicações práticas – ao modo
como Espinosa concebe a noção de beatitudo (o que não é de estranhar a partir
da crítica fichteana ao sistema espinosista como dogmático). Assim se expressa
a distinção entre o sentido transcendente da filosofia de Espinosa e o sentido
transcendental da filosofia de Fichte. Na sequência apontamos esquematica-
mente os pontos de confronto: i) implicação moral: para Fichte, a moral é o
fundamento da existência subjetiva e intersubjetiva; pelo contrário, Espinosa
negligencia o lugar da moral na vida humana; ii) implicação política: para
Fichte, a moral se ergue por cima da política como forma própria – desde que
racional – de convivência intersubjetiva e a instituição Estado desaparece do
centro da organização das relações humanas; pelo contrário, desde o realismo
político espinosista, são as relações políticas a base da intersubjetividade e o

4 Por sua parte, Zöller realça que também em ssl Fichte adota essa ideia (Cf. zöller,
2018, p. 282).

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 261


Estado ocupa o núcleo da vida dos homens – o que, do ponto de vista de Fich-
te, impossibilita o aperfeiçoamento humano na consecução da beatitude.
A partir disso demarcamos os itens do trabalho: (1.) Vamos expor a meta-
física do Sehnen na gwl e sua aparição em ap, como fundamento do conceito
de beatitude, ao mesmo tempo que antecipamos sua oposição a respeito da
filosofia espinosana. (2.) Vamos exibir a compreensão espinosista da beatitudo
com base em sua metafísica, também para determinar suas implicações práti-
cas – e reforçar o sentido contrário ao idealismo fichteano. Por último, uma
Conclusão que visa enfatizar a importância de uma compreensão idealista da
subjetividade e da intersubjetividade em prol de uma existência humana beata.

1. a beatitude fichteana

Podemos começar evidenciando a conexão entre ap e gwl a partir de uma


passagem daquela. Escreve Fichte:

[m]uitas vezes, no meio dos negócios [...] da vida, a todo homem que
não seja [...] ignóbil, não pode mais que apertar seu peito e sair dele um
gemido de que não é possível que essa vida seja seu verdadeiro desti-
no [...]. Este ansiar por algo superior [...] assiste inextinguivelmente na
alma do homem. E de forma igualmente inextinguível ressoa nele a voz
de que algo é um dever (Pflicht) (fichte 1977, i/5, p. 424).

Fichte estabelece assim um vínculo inextricável entre sua metafísica e sua


filosofia prática-moral – já que aqui se trata do dever como motto da existên-
cia. Na gwl ele sustenta, num nível metafísico, que o ansiar é a atividade do
Eu como princípio filosófico para pensar a existência do sujeito e o define
como: “um impulso para algo completamente desconhecido, que se manifesta
meramente por [...] um vazio que busca satisfação e não indica onde” (fichte
1965, i/2, p. 431; 2021, p.237). Assim, para Fichte, a dinâmica do anseio implica
um movimento de constante retorno. Ele escreve no final da gwl: “[a] harmo-
nia existe, e surge um sentimento de [...] contentamento (Zufriedenheit) [...]

262 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


(que, no entanto, dura só um momento, devido ao anseio que necessariamente
retorna)” (fichte, 1965, i/2, pp. 450-1; 2021, p. 261). Daqui se deduz o inaca-
bamento da ação moral que procura o cumprimento do dever, e sua implicação
com respeito ao que é a beatitude para Fichte e qual é o caminho a seguir na
sua consecução.
Mas antes de analisá-lo, cabe-nos descrever essa metafísica do ansiar: Fich-
te a apresenta no sétimo teorema (#10) da gwl. Porém, para sua adequada
compreensão, é necessário explicar a noção de tendência ou esforço (Streben) e
o conceito de impulso (Trieb) como explicitados no segundo e no quarto teo-
rema (#5) e (#7). Fichte chama tendência ou esforço ao caráter da subjetivida-
de como princípio absoluto – o Eu absoluto. Segundo ele, o sujeito não pode
deixar de tender à superação do travo (Anstoβ) que a realidade lhe impõe por
estar situado no mundo da finitude. Isto implica a procura de si próprio como
unidade que engloba toda oposição – não-eu.5 Entretanto, como a tendência
só pode tender, ela não pode realizar-se totalmente. Assim, a tendência subje-
tiva para o infinito não pode produzir a realidade apenas a partir de si. Porém,
por ser um movimento contínuo na busca desse telos, pode superá-la como
impulso para sua constante modificação:

[o] esforço visa à causalidade [...], esta causalidade não pode ser posta
como se dirigindo ao não-eu; porque então seria posta uma atividade

5 A questão da relação entre idealista e dogmático permanece irresoluta no pensamento


de Fichte. Às vezes, parece que não tem vínculo possível e outras - incluso em AP (cf.
fichte, 1977, i/5, p.431) –, parece que pensa que o idealista pode exortar e acordar no
outro a moralidade. Em ocasiões isto se apresenta através da forma em que Fichte entende
a educação e a cultura (cf. fichte, 1966, i/3, p.33; pp. 40-1 / 2017, p. 28; p. 40 e cf.
fichte, 1966, i/3, p. 381; 2012, p. 99). Ora, quando nas BB explicita o sentido da cultura
no processo de moralização, sustenta que se trata de um exercício do sujeito para si, não
de uma comunicação educativa externa (cf. fichte, 1964, i/1, p. 44). Por sua vez, critica
o sentido de uma cultura transmitida politicamente desde o Estado (fichte, 1964, i/1,
p. 282 e ss.). Entretanto, também nesse texto Fichte sustenta que o sujeito moral tem que
ajudar o egoísta na procura da racionalidade (cf. fichte, 1964, i/1, p. 223).

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real efetivamente, e não um esforço. Ela só poderia, então, regressar a
si própria. Mas um esforço que se produz a si próprio [...] denomina-se
um impulso (Trieb) [...]. O impulso que se dirige para fora [...] torna-se
[...] um impulso para «modificar» [...] a realidade já dada (fichte, 1965,
i/2, p.417, p. 434; 2021, p. 222, p. 241).

No cenário de um idealismo do finito6 no qual não há lugar para uma sín-


tese final entre idealidade e realidade, Fichte mostra como esta última impõe
um limite constante à projeção ideal do Eu como atividade que tende a pre-
encher o infinito. Assim, ele explica que é a partir do impulso que o Eu pode
determinar a si a produção de uma realidade fora de si. Mas para não cair numa
contradição ao afirmar que o Eu pode se desenvolver de forma absoluta sobre
o mundo, assinala que essa atividade do Eu não pode realizar um objeto deter-
minado. Esta atividade é o “ansiar”: “‘esta’ determinação pelo impulso é o que
é sentido como um ‘anseio’. O anseio não se dirige [...] à produção da matéria,
mas à modificação da mesma” (cf. fichte, 1965, i/2, p. 434; 2021, p. 241).
Então, Fichte expressa a oscilação deste Eu entre a projeção de um objeto
ideal e a realidade que se mostra diferente. Ora, na medida em que o objeto
ansiado é algo diferente da realidade, ambos - idealidade e realidade; objeto
do ansiar e objeto real - são conciliados, o quanto possível, em sua reciprocida-
de (Wechselbestimmung) através do anseio. Mas surge a pergunta: que tipo de
sentimento o sujeito experimenta a partir dessa síntese? Fichte nomeia de sen-
timento de satisfação (Befriedigung) aquele ao qual o ansiar deve conduzir (cf.
fichte, 1965, i/2, p.447; 2021, p.257). De fato, o impulso tornado ação que se
dirige para a realidade, uma vez satisfeito, dá origem a um sentimento de apro-
vação (Beifall), mas que implica a desaprovação (Misfallen) de algo outro, que
foi objeto de um ansiar anterior. Assim, a respeito da posição real do objeto,
que é projetado de modo ideal no ansiar, dá-se uma determinação perene para
o infinito. O sujeito experimenta uma aprovação e desaprovação constante e

6 Fichte liga os pares dogmatismo-eudaimonismo e idealismo transcendental-moralismo


(cf. fichte, 1977, I/5, p.435; cf. fichte, 1979, II/5, p.103).

264 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


simultânea. No entanto, a falta de satisfação absoluta não implica que o movi-
mento do ansiar seja um movimento apenas de perda. Em cada ação o sujeito
ganha e perde-se a si próprio e ao mundo. Nisto reside o verdadeiro e único
progresso possível para ele. Daí que podemos considerar o idealismo fichtea-
no como um idealismo prático-moral. Com efeito, ele sublinha: “[o] ansiar é
o veículo de todas as leis práticas” (fichte, 1965, i/2, p.432 / 2021, p.238). E
também:

[...] toda a lei «teorética» se funda sobre uma “prática”, e dado que bem
pode haver uma só lei prática, sobre uma e a mesma lei [...]. Resulta
daí a liberdade absoluta da reflexão e da abstração, também no aspec-
to teorético, e a possibilidade de dirigir a atenção “segundo a obrigação
(pflichtmäßig)”, sobre algo, e desviá-la de outra coisa, possibilidade sem
a qual nenhuma moral é possível. O fatalismo, que se funda em que o
nosso agir e querer é dependente do sistema das nossas representações, é
destruído no seu fundamento, ao ser aqui mostrado que é o sistema das
nossas representações que por sua vez depende do nosso impulso (Trieb)
(fichte, 1965, i/2, p.424; 2021, p.229).7

Agora trata-se de compreender este sentido prático-moral de sua filosofia


segundo sua configuração em ap, em particular com relação à beatitude, que
define como: “absoluta autossuficiência da razão [e] total libertação de toda
dependência” (fichte, 1977, i/5, p. 426). Para Fichte – já aqui estabelecendo
um contraste com o sistema espinosista – não é possível alcançar este princí-
pio mediante um conhecimento especulativo. Por sua vez, esse princípio não
tem um estatuto ontológico constitutivo, mas prático e regulatório. A razão,
no seu sentido teórico, pode especular sem limite. No entanto, ele apresenta

7 Vale ressaltar que fatalismo = dogmatismo. Ele escreve – referindo-se a Espinosa –:


“todo dogmático consequente é necessariamente fatalista” (fichte, 1970, i/4, p.192). E
cf. fichte, 1978, iv/2, pp.20-1; cf. fichte, 1965, i/2, p.424; 2021, p.229.

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 265


um princípio prático que não apenas favorece o desenvolvimento do pensa-
mento, como também regula a ação do sujeito – em outras palavras, sua forma
de existir – de modo beato. Este princípio é a consciência moral (Gewissen) ou
o dever (Pflicht). Então, o dever é outra forma de falar acerca do ansiar como
motor da vida humana racional. Diz em ap:

o fim de toda nossa existência e de toda nossa ação, um fim que não
poderá alcançar-se [...], que o ser racional se torne [...] livre [...] de tudo
o que não seja a razão [...]. [E]ste destino é o qual se nos anuncia por
meio daquele ansiar que nenhum bem finito pode satisfazer. Esse fim é
o que temos [...] o dever de nos propor (fichte, 1977, i/5, p.426).

Ora, mesmo quando essa descrição do próprio do humano como ser racio-
nal pareça sumir para o sujeito em um estágio de total insatisfação, Fichte
sublinha que é esse ansiar, esse dever, que se ergue como o caminho para uma
existência beata. Ainda mais: esse roteiro é já a beatitude. Ela não é um gozo
sensível. De fato, não há objeto finito que satisfaça o ansiar ou que seja o foco
de uma ação pelo dever. A ação à qual o dever convoca é a ação pelo dever
mesmo: “[e]u quero minha «beatitude» não como um estado de gozo [...],
mas porque [...] é o que um ser racional há de merecer [...]. Como meio úni-
co e infalível da «beatitude», minha consciência moral mostra-me o cumpri-
mento do dever” (fichte, 1977, i/5, pp. 426-7).8 Por sua vez, é importante

8 Fichte demonstra isto a partir da dialética de Wechselbestimmung. Também em ee


encontra-se esta argumentação a partir do exercício abstrato da consciência que só encontra
o Eu como fundamento da realidade e de si mesma. Este proceder argumentativo refuta
a possibilidade de referir-se à coisa-em-si – a substância espinosana – como fundamento
do sujeito e da natureza (cf. fichte, 1970, i/4, pp.36-8). Em ap refere-se à explicação
da ee: “eu disse que eles não conseguem explicar o que tentam explicar e que [...] o que
fazem é formular palavras vazias e incompreensíveis [...]. Mas demonstrar-lhes isto é
bastante difícil porque a essa altura da especulação, na qual é claro que o que dizem não tem
sentido, a maior parte deles já não entende nada” (fichte, 1977, i/5, p.445). Na gwl –
referindo-se explicitamente ao sistema de Espinosa –, afirma: “[s]eu sistema é inteiramente
consequente, e irrefutável, porque ele se situa no seu campo, no qual a razão não mais
o pode seguir; mas o seu sistema é infundado” (fichte, 1965, I/2, p.263; 2021, p.46).

266 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


salientar que a moral fichteana não é um pensamento formal sem conteúdo.
De fato, em ap Fichte ressalta que não há querer que não esteja dirigido para
um fim concreto (cf. fichte, 1977, i/5, p. 429) e assevera que o que existe para
o sujeito apenas existe a partir do anseio moral (cf. fichte, 1977, i/5, p. 435).
O dever não implica a dissolução da existência real do sujeito. Ao contrário, o
sujeito que age conforme ao dever é consciente de sua finitude e da concretude
de todas suas ações, só que ele não fica perdido na sensibilidade: num processo
de constante avanço, supera a realidade mundana e se aperfeiçoa na procura
de um mundo suprassensível (cf. fichte, 1977, i/5, p. 425). Essa existência,
embora nunca acabada, é já a existência beata.
Nesse contexto aparece a pergunta: que ação implica o cumprimento do
dever em cada caso? Fichte responde com seu idealismo moral-transcenden-
tal. Ao contrário do dogmatismo espinosista, segundo o qual o sujeito age por
necessidade de natureza – hipostasiando o princípio da subjetividade segundo
uma lógica transcendente oposta ao imanentismo fichteano (cf. ivaldo, 1992,
pp. 67-8) –, ele afirma que só “a voz imperativa [...] de nossa consciência moral
[...] em cada situação da vida [...] nos responde qual é o nosso dever” (fichte,
1977, i/5, p. 426). Para Fichte o caso particular é sempre universal. A realidade
é sempre idealidade. Apenas para a consciência comum (gemeinen Bewußt-
sein) há um “mundo tal como é” que determina a ação do homem no seu “ser
como ele é”.
O outro lado da questão a respeito da consciência do sujeito, de qual é

Acerca do tema, Solé sublinha que para Fichte, na confrontação com Espinosa, o Eu como
princípio sistemático é deduzido transcendentalmente, à diferença do sentido arbitrário
– transcendente – da afirmação da substância como princípio do sistema espinosano
(cf. solé, 2017, p. 159 e também cf. janke, 1970, p. 145. Por outro lado, vale apontar o
artigo de Solé como confronto com o nosso, já que ele pretende ligar Fichte e Espinosa (cf.
solé, 2017, pp. 159-163). Por sua vez, Rivera de Rosales sublinha a diferença entre Fichte
e Espinosa explicitando as qualificações de idealista e dogmático ao mesmo tempo que
aponta a diferença entre um pensamento transcendental e um transcendente (cf. rivera
de rosales, 2008, p. 139. Nota 13 e p.144. Nota 42). Por último, cf. serrano, 2011, p. 9.

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 267


a ação conforme ao dever em prol da sua beatitude, tem a ver com a cons-
ciência daquele mundo suprassensível da moralidade. Fichte argumenta que
semelhante compreensão se dá por si mesma. Ele escreve: “eu sei imediatamen-
te [...], [s]e me impõe com uma fé (Glauben) inamovível [...] que existe uma
ordem imutável, conforme à qual necessariamente a forma moral de querer e
pensar leva à ‘beatitude’” (fichte, 1977, i/5, p. 427). Mas aqui surge a per-
gunta: o que acontece com aquele sujeito que não sente essa fé? Qual é a rela-
ção intersubjetiva que se pode estabelecer entre quem age conforme ao dever e
quem não? Ou, nos termos de ee e ze, que tipo de vínculo se estabelece entre
idealista e dogmático - tanto em um sentido moral como político? Mais uma
vez Fichte pretende resolver o problema por princípio, quando argumenta que
ainda que o sujeito não aja segundo sua inextricável moralidade, o dever não
deixa de exortá-lo à ação nesse sentido. Ele diz: “ainda quando eu não fosse
consciente desse alto destino e ainda menos trabalhasse para alcançá-lo, con-
tinuaria em pé a exigência de reconhecê-lo e é essa exigência que continua me
dando vida” (fichte, 1977, i/5, p.430). Para além da atitude do dogmático, o
idealista continuaria agindo de forma moral em prol da beatitude própria que,
em um nível fundamental, implica também a beatitude do outro.9
Podemos agora colocar a questão da beatitude desde a perspectiva políti-
ca no pensamento fichteano. Em uma passagem de ap, pensando no idealista,
escreve:

há apenas um desejo (Wunsch) que eleve seu peito e coloque entusiasmo


na sua vida, a “beatitude” de todos os seres racionais [...]. A sua intenção
se dirige sempre «ao eterno», que nunca aparece, mas que, conforme à
infalível confirmação do seu interior [...], se alcançará [...]. [E] assim se
difunde uma alegria inamovível sobre toda a existência (fichte, 1977,
i/5, p.431).

9 Diz na wm: “[m]esmo sem conhecer meu sistema é impossível considerá[-lo] como
espinosista [...]. A unidade do espírito puro é para mim um «ideal inatingível»; fim último
que jamais se realiza” (fichte, 1965, i/2, p.89; 1999b, p.149).

268 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Então: quais são as consequências políticas do idealismo fichteano em
seu caráter moral, como procura da beatitude de todos os seres racionais? É a
ordem política que tem que organizar essa busca? Ou ela se subsume à moral?
Pode-se ainda falar da relação política entre os homens?
A beatitude como “absoluta autosuficiência da razão [e] total liberação de
toda dependência” se deduz da metafísica fichteana, na qual os termos do Eu e
do não-eu - ou natureza -, se relacionam a partir de sua determinação recípro-
ca. Ora, embora trate-se de um movimento bidirecional, o sentido metafísico
e o valor prático da realidade apenas se dão mediante a racionalização e mora-
lização subjetiva dela. Em outras palavras, a beatitude implica a consciência
de que o sensível apenas é um meio para o aperfeiçoamento do sujeito e não o
objeto do seu ansiar. O ansiar – caso seja um sujeito racional, idealista –, é só
o ansiar da liberdade absoluta com respeito à sensibilidade, melhor dizendo, é
um anseio que só tem a ver com o cumprimento do dever pelo dever. Um pre-
tenso anseio do sensível é irracional, é só capricho e egoísmo. Ele diz:

Ao cumprir com o dever porque é o nosso dever, elevamo-nos acima


de todos os [...] fins sensíveis [...]. Mediante [tal] disposição [...] abre-
se a nós um mundo novo. Sem ela [...] aquilo que anseie não pode
endereçar-se senão ao gozo sensível [e ao] capricho de cada qual [...].
Mediante essa disposição [...] cobramos uma existência superior que é
independente da natureza e que está fundada apenas em nós” (fichte,
1977, i/5, p.425).

Desta maneira Fichte liga natureza – realidade ou mundo –, gozo sensí-


vel e egoísmo. Ou seja, a racionalidade-moralidade implica a consideração da
humanidade inteira em cada ação que o sujeito leva adiante no mundo. Ain-
da mais: implica a procura da beatitude de todos os seres racionais. Vemos
aqui, de forma antecipada, o contraste com relação ao pensamento espinosa-
no sobre a beatitudo em um sentido duplo. Por um lado, para Fichte trata-se
de uma beatitude universal fundamentada de maneira apriorística. Não é que,
como um efeito, resulta de maior conveniência para o homem procurar a bea-

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 269


titude de outro homem. Não se trata de reproduzir a existência natural de cada
um a partir do comércio intersubjetivo baseado no temor – ou de que o medo
de que a própria vida material e as propriedades objetivas sejam ofendidas leva-
ria à união em uma comunidade política que abriria o espaço para a felicidade
de todos. Por outro lado, a beatitude tampouco é atingir um conhecimento
metafísico que implique que o sujeito se saiba a si mesmo conformando uma
totalidade com a natureza (da qual só poderia dar conta, em um sentido teó-
rico como prático, como exterioridade).10 A beatitude fichteana é a superação
racional-moral – e, portanto, não apenas subjetiva mas intersubjetiva – do sen-
sível. Intersubjetiva, de fato, por abarcar universalmente a humanidade. Afir-
ma Fichte:

eu quero minha beatitude não como um estado de gozo [...] mas porque
[...] é aquilo que um ser racional merece [...]. Como [seu] meio [...],
minha consciência moral mostra o cumprimento do dever [...]. Impõe-
se a mim [...] que existe uma [...] ordem [...] que conta com a morali-
dade de todos e que mediante essa moralidade se dirige à beatitude de
todos (fichte, 1977, i/5, pp. 426-7).

Assim, no seu sistema, a moralidade é um fator de igualação das relações


humanas. Minha felicidade implica a felicidade de todos e a felicidade de todos
implica a minha. Nenhum sujeito – nem instituição – pode governar sobre a
beatitude do outro. Trata-se apenas de um governo sobre si próprio. Mas a par-
tir desta auto-fundamentação de caráter racional-moral é que se desenvolve, de
maneira imediata, uma ação que leva em conta a existência do outro sujeito –
ao contrário do egoísmo. Este panorama leva à necessidade de repensar o lugar
da política na vida intersubjetiva, pois aquela seria acessória e contraprodu-
cente ao desenvolvimento moral da humanidade se for apenas o dever-anseio
o que dirige a ação.

10 Na e, os termos salvação e beatitudo são homólogos. Cf. espinosa, 2021, e v p36, esc.,
p. 569. Para uma leitura que assinala o local da afetividade mais do que da intelectualidade
como concebida por Espinosa nesse contexto, cf. chaui, 2011, pp. 94-6.

270 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Para aprofundarmo-nos na perspectiva fichteana nos textos analisados
podemos não só mostrar sua discordância com relação a Espinosa, mas tam-
bém realçar uma contradição interna aos textos, contrastando-os com gnr –
na qual Fichte sustenta que o direito fundamenta a moral, e a comunidade
política é o contexto próprio para o desenvolvimento da existência humana
(cf. james, 2011, p. 14; cf. heimsoeth, 1931, p. 227; cf. lópez domínguez,
1995, p. 143). Embora este artigo não seja a ocasião para explicitar in extenso a
questão, vale dizer que é possível conectar a posição filosófico-política de AP
com seu pensamento nas bb – obra que Fichte coloca em disputa com gnr
(cf. fichte, 1981, i/6, pp.73-4). O que vale enfatizar é que tanto nas BB (cf.
fichte, 1964, i/1, p.221, p. 237) como em ap, ele pensa que a moralidade,
como fundamento originário da existência subjetiva, não só se ergue acima da
política como modo de pensar a vida humana (cf. calvet de magalhães,
2017, p. 85), mas que implica a necessidade de colocar constantemente o Esta-
do em xeque e até mesmo buscar sua extinção - tal como já havia apontado
em bg: “[o] Estado [...] visa a sua própria aniquilação: o fim de todo governo
é tornar supérfluo o governo” (fichte, 1966, i/3, p.37; 1999, p. 36). Pergun-
ta Fichte em bb: “acaso a imutabilidade de qualquer constituição não entra
de alguma maneira em conflito com o destino da humanidade estabelecido
pela lei moral?” (fichte, 1964, i/1, p.240). Por sua vez, aqui - como em ap -
sublinha que o mundo sensível não tem como fundamentar a projeção ideal
subjetiva nem o desenvolvimento prático de sua existência. Escreve: “‘quem
diz para vocês procurarem nossas ideias no mundo real?’ Têm que ver tudo?”
(fichte, 1964, i/1, p.237). Então, ele mesmo seria contrário a esta lei moral
da constante transformação e aperfeiçoamento do sujeito e nos seus laços com
os outros, visto que a natureza do Estado é resolver disputas sensíveis baseadas
no medo entre os membros da comunidade política a respeito da violação de
sua propriedade objetual – segundo Fichte argumenta em gnr (cf. fichte,
1966, i/3, pp. 416-8; 2012, pp.152-6) –, ou seja, reproduzir o status quo sem que
as relações intersubjetivas mudem sobremaneira (cf. fichte, 1964, i/1, p.228).
A partir do demonstrado, resulta evidente que, segundo Fichte, a beatitu-
de não é uma questão teórica – não tem a ver com o conhecimento do sujeito

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 271


do sensível nem de outra instância; e não é uma questão política – já que as
relações políticas são relações dogmáticas baseadas na sensibilidade e não na
racionalidade. A beatitude é uma tarefa apenas moral. É uma projeção regu-
latória e não uma dedução a partir de um princípio ontológico constitutivo –
o qual garantiria a possibilidade da beatitude ser alcançada. Embora inalcan-
çável, ou melhor, pelo fato de não poder ser alcançada, é que o sujeito pode,
a cada momento que age moralmente, atingi-la na medida de seu constante
afastamento. É só neste sentido que a ação pelo dever tem garantida sua vitó-
ria. Fichte diz: “no mundo sensível [...] o resultado depende de ‘que’ é o que
sucede, e no [mundo moral] de ‘com que atitude e intenção sucede’” (fichte,
1977, i/5, p.427). O que ganha sentido se considerarmos, em acordo com sua
metafísica, que o mundo não tem sentido nem valor para o sujeito além daque-
le que ele põe. Por esse motivo: “ele [o sujeito moral] não ama o mundo, mas o
honra por causa da sua consciência moral” (fichte, 1977, i/5, p.431). E: “por
pouco valor que a vida tenha por si, é santa pelo dever” (fichte, 1977, i/5,
p.425). Assim, a garantia no resultado da ação moral é a consciência de estar
sempre ganhando e perdendo ao mesmo tempo. Essa é a única e maior beati-
tude à qual o sujeito acessa.

2. a beatitudo espinosana

Visando delimitar esta seção do trabalho e considerando que se trata de


expor as diretrizes da metafísica e da filosofia prática – particularmente polí-
tica – de Espinosa, como contraponto ao pensamento moral fichteano –
enquanto segundo aspecto da nossa hipótese –, vale lembrar o especificado na
Introdução como itens relevantes da filosofia de Fichte a respeito da beatitude.
Estes são: a) a preeminência da prática sobre a teoria; b) o elogio da vida racio-
nal sobre a vida sensorial; c) a primazia da moral sobre a política como forma
de vida humana; e, como conclusão, d) a importância de uma existência idea-
lista e não dogmática em prol da beatitude da humanidade toda.
Com relação ao item a) se Fichte assinala a centralidade da atividade prá-

272 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


tica-moral com vistas ao desenvolvimento de uma existência beata, Espinosa
se refere a uma ação, se assim podemos chamá-la, de tipo teórico-cognoscitiva.
Trata-se do terceiro gênero de conhecimento que descreve na quinta parte da
e como via de acesso à beatitudo.11 Alguns comentaristas pretendem ressal-
tar que esta questão teórica implica uma atitude prática a respeito da vida do
homem. No entanto, aqui coincidimos com Peña, que ressalta que, para Espi-
nosa: “a salvação se obtém, em definitivo, pelo conhecimento” (peña, 2004,
p. 285. Nota)12 – o que não é de estranhar se considerarmos que, num nível
ontológico, Espinosa concebe que a potência e a essência da mente humana
se definem pelo conhecimento (cf. espinosa, 2021, e v p20, esc., p. 549, e v
p36, esc., p. 569).
No Apêndice da quarta parte da e, ele antecipou o tópico que desenvolve
a partir da proposição 25 da parte seguinte – na qual descreve o terceiro gêne-
ro de conhecimento como virtude suprema –, quando diz: “a beatitudo não é
outra coisa senão o contentamento do ânimo que se origina do conhecimen-
to intuitivo de deus” (espinosa, 2021, e iv, Ap., cap. iv, p. 495). Já na última
parte, sustenta: “[q]uanto mais cada um prepondera neste gênero [o terceiro]
de conhecimento [...], tanto mais é feliz (beatior)” (espinosa, 2021, e v p31,
esc., p. 563). Por sua vez, também incorpora o conceito de amor como termo
que se concatena nesta ligação entre conhecimento e beatitudo e escreve: “do
terceiro gênero de conhecimento origina-se necessariamente o Amor intelec-
tual de Deus (Amor Dei intellectualis)” (espinosa, 2021, e v p32, cor., p. 563).
E mais à frente: “entendemos em que consiste nossa (beatitudo) [...]: no Amor
constante e eterno a Deus, ou seja, no Amor de Deus aos homens” (espinosa,
2021, e v p36, esc., p. 569). Finalmente, na última proposição, exibe a ligação
causal entre os termos segundo a qual o conhecimento do terceiro gênero leva
ao amor dei intellectualis, que leva à beatitudo: “[a] beatitudo consiste no Amor

11 Para uma visão de conjunto sobre esta dedução, cf. paula, 2009, pp. 275 e ss.
12 Ver nota 9. Neste sentido diz na ee: “[n]enhum desses sistemas pode refutar
diretamente ao oposto, já que a discussão entre eles é uma discussão sobre o primeiro
princípio” (fichte, 1970, i/4, 191).

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 273


a Deus [...] que se origina do terceiro gênero de conhecimento” (espinosa,
2021, e v p42, dem., p. 577).13 Assim, conhecimento-amor-beatitudo consti-
tuem uma cadeia conceitual no que tem a ver com a existência humana como
compreendida por Espinosa.
Não iremos nos deter na dedução sistemática desse terceiro tipo de conhe-
cimento.14 O que vale assinalar é seu sentido fundamental, a partir do qual sur-
ge o amor a Deus15 e, por sua vez, a beatitudo. Segundo o sistema espinosista
não há amor a Deus nem beatitudo sem conhecimento - de Deus. Para além de
seus intentos de ressaltar o sentido do agir humano como caminho para atin-
gi-la, a preeminência do sentido gnosiológico de seu sistema é aquilo que, na
perspectiva fichteana, leva ao caráter dogmático de suas ideias e, com isso, ao
contrário do que Espinosa pretende mostrar como consequência do roteiro
filosófico por ele proposto, a saber: se não à passividade, ao impedimento de
uma atividade espontaneamente humana; ao fatalismo16 e não à liberdade – tal
como auspiciado no título da quinta parte da E – e, se não à tristeza, ao impe-
dimento da consecução da beatitudo.
Ao longo dessa última parte e particularmente a partir das proposições 40

13 E na gwl: “Espinosa põe o fundamento da unidade da consciência numa substância [...].


[D]everia ter-se de ficar pela unidade que lhe é dada na consciência, e não teria precisado
inventar uma ainda superior, para a qual nada o move” (fichte, 1965, i/2, p.281; 2021,
p.65). De forma mais resumida: “[o]lhe para si mesmo. Desvie o olhar de tudo o que está
ao seu redor e dirija-o para seu interior. Esta é a primeira petição que a filosofia faz para seu
aprendiz. Não falar de nada que esteja fora de você, mas exclusivamente de você mesmo”
(fichte, 1970, i/4, p.186).
14 Ao contrário do aqui demonstrado, com relação à substância como princípio do
sistema, Peña sustenta que a exposição metafísica espinosana é crítica e não dogmática (cf.
peña, 2004, pp. 28-9).
15 Ver nota 6.
16 Por outro lado, Fichte sublinha que, embora Espinosa pretenda mostrar essa
infinitude como imanente ao homem, ela é colocada em seu sistema dogmático de maneira
transcendente, por fora dele, sem explicar a unidade entre a substância e o homem (cf.
fichte, 1965, i/2, p.392; 2021, p.193).

274 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


e 42, Espinosa pretende mostrar a importância do agir humano na procura da
beatitudo.17 lima ribeiro (2013, p. 182); sabater (2018, p. 69 e pp. 75-6) e
solé (2019) referem-se a esta questão. Mas o ponto de interrogação, conside-
rando a crítica idealista de Fichte a Espinosa, é: trata-se do agir de quem? É o
agir do homem? Ou, antecipando a resposta, o agir de quê? A resposta a partir
da E é que se trata da determinação divina - natural - para o agir necessário do
homem (cf. espinosa, 2021, e i p26, p. 91).18 Então, é um agir num sentido
teórico, e é um agir cuja causa, cujo fundamento, não reside no homem.19 Isto
implica, do ponto de vista de Fichte, em dogmatismo. Neste ponto não pode-
mos encontrar um contra-argumento tendo o sistema de Espinosa como base,
porque ante a pergunta fichteana acerca de como este sistema pode dar conta
de Deus – coisa em si –, o argumento espinosano não oferece outra resposta
além de sua definição axiomática como começo do sistema da e.20
É verdade que também na gwl o Eu como princípio sistemático é inde-
monstrável, mas a diferença entre o Deus espinosano e o Eu fichteano reside

17 Isto se deduz da primazia da teoria. Gaudio aponta: “para Fichte, Espinosa não
reconhece a primazia da prática. Em consequência, ao colocar um fundamento anterior
ao eu, [seu] sistema [...] se unifica num princípio transcendente [...]. [A] excisão do eu
a respeito da instância soberana o conduz para um dogmatismo inaceitável para Fichte
[…]. Na medida em que o eu [...] é posto por algo superior, o sistema admite uma causa
extrínseca que afoga a autolegitimação” (gaudio, 2015, p. 133). Por sua parte, Bos liga a
Espinosa e Fichte, já que: “nos dois o problema central não é o conhecer mas o viver” (bos,
2017, p. 413, trad. nossa); e lima amorim & gacki, 2011, p. 8, pretendem mostrar que o
Deus espinosano não é um princípio transcendente.
18 Também, cf. ttp, xvi, pp. 234-235. Com relação à identificação entre Deus e natureza,
cf. e iv, pref., p. 373. Por sua parte, Nadler sublinha a conexão entre a e e o ttp acerca dessa
noção, cf. nadler, 2011, p. 86.
19 Peña aponta para isso quando escreve: “esse ‘amor a Deus’ não pode ser outra coisa
senão o conhecimento da necessidade e a crítica de nossa subjetividade, reconhecendo que
esta subjetividade não é a ‘realidade definitiva’, pois se resolve numa ordem verdadeira e
eterna que nos transborda, e quando nos transborda [...] nós a ‘amamos’” (peña, 2004, p.
305, trad. nossa).
20 Também, cf. espinosa, 2009, tp ii, 8, p. 15; cf. espinosa, 2003, ttp xvi, p. 235.

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no caráter constitutivo do primeiro e regulatório do segundo21 que, tal como
Fichte sustenta, implica a impossibilidade de que Espinosa acreditasse no seu
sistema. Melhor dizendo, é a impossibilidade de, a partir da própria subjetivi-
dade, afirmar uma coisa extrínseca como constituinte da existência. Fichte diz:

entre o objeto do «idealismo» e do ‘dogmatismo’ há [...] uma notável


diferença [...]. Eu posso me determinar com liberdade para pensar esta
ou aquela coisa, por exemplo, a coisa em si do dogmático. Ora, se eu
abstraio do pensado e olho simplesmente para mim mesmo, venho a
ser para mim mesmo nisto que eu tenho frente a mim, o objeto de uma
representação determinada. Que eu apareça para mim mesmo [assim]
determinado [...] deve depender [...] da minha autodeterminação [...].
O objeto do dogmatismo, ao contrário [...], a coisa em si, é uma mera
invenção e não tem nenhuma realidade [...]. O dogmático quer [...]
assegurar à coisa em si realidade, é dizer, a necessidade de ser pensada
como fundamento de toda experiência, e chegaria a isso se mostrasse
que a experiência pode-se explicar realmente através dela; mas justa-
mente esta é a questão, e não é lícito supor o que tem que ser demon-
strado. Assim, o objeto do idealismo tem sobre o [objeto] do dogmatis-
mo a vantagem de que pode ser mostrado na consciência, ao contrário,
o [objeto] do dogmatismo não pode valer por nada a mais do que por
uma mera invenção que espera sua realização unicamente do sucesso do
sistema (fichte, 1970, i/4, pp. 36-8).22

21 Entre colchetes colocamos o termo Estado - ao qual nos inclinamos -, segundo a edição
do texto consultada em espanhol. É interessante sublinhar que Espinosa não reconhece
diferença entre os termos Sociedade (Societas) e Estado (cf. espinosa, 2021, e iv p37, esc.
ii, p. 437; cf. espinosa, 2003, ttp iv, pp. 73-4; cf. espinosa, 2009, tp iii, 1, p. 99). Cf.
domínguez, 1986, p. 28. Ao contrário, Fichte traça uma distinção entre os termos (cf.
fichte, 1964, i/1, p.276 e cf. lópez domínguez, 1993, p. 148).
22 Como se, por outro lado, o idealismo não tivesse uma visão realista da existência
humana. Escreve Fichte: “[a] Doutrina da ciência [...] se poderia denominar um real-
idealismo ou um ideal-realismo” (fichte, 1965, i/2, p.412; 2021, p.216). Também, cf.
fichte, 1965, i/2, p.355; 2021, p.150. Fichte sabe que o ideal de uma vida puramente
racional e beata é impossível, mas é por sua impossibilidade que tem que ser procurado,
visto que essa procura perfeccionista é já seu alcance no seu constante ser produzido.

276 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


A partir deste argumento, em ze lemos: “Espinosa não podia estar con-
vencido. Apenas podia «pensar» sua filosofia, não podia ‘acreditar’ nela [...].
Refletir no pensar sobre seu próprio pensar, não se lhe ocorreu [...], e por causa
disso colocou sua especulação em contradição com sua vida” (fichte, 1970,
i/4, p.264). Dizer que Deus conhece através do homem, que se ama através do
homem e que age através do homem, e que o maior contentamento – a beati-
tudo – que o homem pode alcançar é conhecer, amar e agir desta forma leva a
ultrapassar os limites da racionalidade – onde, segundo Fichte, já não se pode
continuar filosofando.23
Por sua vez, também é dogmática – do ponto de vista de Fichte – a afirma-
ção espinosana acerca da eternidade do conhecimento humano como conheci-
mento intuitivo e uma existência prática em consonância com isso, por oposi-
ção a uma eternidade concebida como telos prático regulatório. De mãos dadas
com a concepção ontológica do homem como modo de Deus (cf. espinosa,
2021, e i p15, dem., pp. 67-8; e i p25, cor., p. 91), apareceria em Espinosa a ideia
de que o próprio homem é eterno (cf. espinosa, 2021, e v p23, esc., p. 553 e
p. 555; e v p29, p. 559; e v p30, p. 561; e v p31, p. 561).24 Neste ponto, o maior
problema que, segundo Fichte, pode-se sublinhar é um problema prático. Esta
questão atenta contra o propósito da e como percurso para a beatitudo. A ideia

Com efeito, tal como expõe em ap, não importa o resultado do agir humano na procura
da beatitude como fim absoluto enquanto dever, mas a intenção na sua consecução.
Exatamente o inverso do que apresenta Espinosa quando diz: “[n]em importa, para a
segurança do Estado, com que ânimo os homens são induzidos a administrar corretamente
as coisas, contanto que as coisas sejam corretamente administradas” (espinosa, 2009, tp
i, 6, p. 9). Por outro lado, Tatián sustenta que o Estado espinosano, não sendo o governo
da virtude, tampouco é apenas um dispositivo de ordenamento e impedimento de conflito
(cf. tatián, 2013, p. 87).
23 Analisando o ttp, Domínguez explica esta questão que aparece no tp: “[o] Estado
de Espinosa não é utópico, para homens que forem só razão. É um Estado realista, para
homens submetidos a [...] paixões e interesses” (domínguez, 1986, p. 32, trad. nossa).
24 No ttp: “[o] nosso supremo bem e a nossa beatitudo resumem-se no conhecimento e
amor de Deus ” (espinosa, 2003, ttp iv, p. 69).

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de uma infinitude constitutiva do homem leva a questionar qual é o espaço
para uma ação que avance em prol dela.25 É dizer: se a eternidade e a beatitu-
do estão inscritas ontologicamente no homem, qual é o espaço – metafísico
e político – para seu aperfeiçoamento, tal como solicitado por Espinosa?26 A
eternidade e a beatitudo desde sempre ganhas impedem seu ganho e restrin-
gem a possibilidade do agir para sua consecução.
Ora, alguns autores chegam ao ponto contrário ao demonstrado (cf. saba-
ter, 2018, pp. 82-3; paula, 2009, pp. 242-4; p.250 e pp.284-5). Acreditamos
que é consequência de enfatizar um aspecto do pensamento espinosano que
não tem o escopo necessário para erguer-se como fundamento de uma filo-
sofia que tenha condições de captar o sentido da beatitudo humana. Trata-se
de sua crítica ao teísmo que concebe um Deus pessoal (cf. espinosa, 2021, e
i p15, esc., p. 69), inserida num contexto de análise maior com relação ao tipo
de sistema filosófico, a saber: se é um sistema imanentista ou transcendente.27
O que propomos assinalar é que a rejeição da ideia de uma finalidade teísta na
procura da beatitudo28 não leva à sua dedução de forma imanente em relação à
existência humana - e tampouco implica poder caracterizar seu sistema como
imanentista. Por sua parte, Sabater escreve:

uma noção de destino na filosofia de Espinosa pode ser construída


enquanto se invalidam os prejuízos finalistas [...] e se rebate a ideia [de
uma] vocação divina [...]. Falar de um destino no marco deste sistema
implicará concebê-lo como algo imanente [...]. Não supõe [um] “dirigir-

25 Cf. espinosa, 2009, tp vi, 3, p. 48.


26 Esta questão se estende também ao pensamento político de Espinosa.
27 E também: “[o] realismo de Espinosa, ou seja, o poder do Estado e seus limites, funda-
se no determinismo que leva esta lei fundamental do esforço para a própria utilidade.
Na verdade, essa lei não é senão a expressão do esforço de todo ser para a sua própria
conservação” (domínguez, 1986, p. 337. Nota. Tradução nossa).
28 E cf. espinosa, 2021, e iv p40, p. 443; cf. e iv p37, dem., p. 431; cf. e iv p73 e dem.,
pp. 489-90; cf. espinosa, 2003, ttp xvi, pp. 236-7.

278 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


se para” mas implica um “a partir de”, funciona como algo constituti-
vo e primeiro. O desfrute da beatitude [...] não será o resultado de um
processo mas origem e fundamento (sabater, 2018, p. 70, trad. nossa).

Agora, para além da crítica ao teísmo, o pensamento de Espinosa mantém


uma carga de transcendência ao supor uma instância superior à subjetividade
– Deus-substância – da qual o homem é só um modo, e da qual não pode dar
conta num sentido racional nem teórico nem prático – daí seu dogmatismo,
de acordo com Fichte. De mãos dadas com a compreensão do sujeito como
modo da substância, para não considerar o caminho para a existência beata
como um roteiro que tenha o deus teísta como causa e ponto de chegada exte-
rior, Sabater ressalta que Espinosa apresenta a beatitudo como ponto constitu-
tivo original da existência humana. Mas é precisamente esta concepção (como
origem constitutiva da existência) aquilo que a impede de dar lugar ao seu agir
prático, o qual a procuraria. Sabater afirma, a partir de Espinosa: “[o] alcan-
çar o sumo bem [a beatitudo] representará o sumo aperfeiçoamento [...], terá
a ver com a maximização da potência de operar e, por causa disso, estará em
relação direta com o nosso esforço por perseverar no ser” (sabater, 2018, p.
70). Porém, mais uma vez, a pergunta que surge é como conceber um aperfei-
çoamento, uma maximização e um operar em prol da beatitudo, quando num
nível fundamental o sujeito é já, de forma constitutiva, beato. Valendo-nos da
referência de Sabater a respeito da relação que Espinosa estabelece entre a bea-
titudo e sua concepção do agir humano – e, na verdade, de toda coisa – como
esforço por perseverar no ser, cabe a análise do segundo e do terceiro dos itens
antecipados, a saber: b) a concepção espinosana da relação entre vida racional
e vida sensível e c) a primazia da política sobre a moralidade como marco da
existência humana – confrontando-se com Fichte.
Na quinta parte da e, Espinosa escreve: “os homens, como o resto [das
coisas], agem pela necessidade da natureza” (espinosa, 2021, e v p10, esc.,
p. 539). Assim, o próprio do homem – sua essência atual, como de toda coisa
(cf. espinosa, 2021, e iii p7, p. 251) – não é, à la Fichte, o esforço (Streben)

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por identificar-se consigo mesmo (cf. fichte, 1965, i/2, p.400; 2021, p.202)
em sua racionalidade e moralidade absoluta em um movimento de constante
autoaperfeiçoamento, mas o esforço (conatus) por perseverar no ser num sen-
tido natural-sensível. Também na e se diz: “[c]ada coisa, o quanto está em suas
forças, esforça-se para perseverar em seu ser” (espinosa, 2021, e iii p6, p. 251).
E no tp: “[n]inguém [...] pode negar que o homem, tal como os restantes indi-
víduos, se esforce, tanto quanto está em si, por conservar o seu ser” (espinosa,
2009, tp ii, 7, p. 14).29 A partir desta base, Espinosa pode falar, tanto num sen-
tido metafísico como no contexto de sua filosofia política, de uma “natureza
humana” (cf. espinosa, 2021, e iii, pref., p. 233 e p. 235; e iii p32, esc., p. 289; e
iii p57, esc., p. 333; cf. espinosa, 2003, ttp xx, p. 306 e p.308; cf. espinosa,
2009, tp i, 1, p. 5; tp i, 4, p. 7; tp ii, 7, p. 15; tp iii, 18, pp. 110-1).30
Quanto à consideração do homem como coisa e como um modo entre
outros, pode-se retornar num sentido dedutivo até o começo do sistema, onde
Espinosa aponta que “tudo o que é, ou é em si ou em outro” (espinosa, 2021,
e i, Ax. 1, p. 47) e, sendo que só pode haver uma substância (cf. espinosa,
2021, e i p14 e cor. i, p. 67) – como aquilo que é em si (cf. espinosa, 2021, e
i, def. 3, p. 45) –, o homem - como toda outra coisa -, é na substância-Deus (cf.
espinosa, 2021, e i p15, p. 67). Assim se percebe que, para Espinosa, tudo o
que existe é coisa - incluindo a substância. Quer dizer, o homem não tem um
estatuto ontológico diferente com relação a nada outro que faz parte da natu-
reza – imperium in imperio (espinosa, 2021, e iii, pref., p. 233; cf. e iv p4, p.
385).31 Por sua vez, não sendo o homem nada diferente das outras coisas, tam-

29 Tradução levemente modificada.


30 Já na parte quarta da e havia operado a ligação entre agir-esforço de conservação-
virtude (cf. espinosa, 2021, e iv p24, p. 413; e iv p18, esc., p. 405; cf. e iv p22, e cor.,
p. 411). Mas também já aqui, o conhecimento – de Deus – aparece como foco central
a respeito do agir como atividade humana (cf. espinosa, 2021, e iv p 28, p. 417). Por
sua vez, a ligação entre virtude e beatitudo é mostrada na última proposição do texto (cf.
espinosa, 2021, e v p42, p. 577).
31 Espinosa define a paixão como um afeto de causa inadequada, ou seja, enquanto efeito
que não é entendido clara e distintamente a partir de um raciocínio de causalidade (cf.

280 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


pouco a causa do seu agir é outra que sua necessidade natural (cf. espinosa,
2021, e v p10, esc., p. 539). Mesmo assim, esse agir não é outro que o esforço
por perseverar no ser (cf. espinosa, 2021, e iii p6, dem., p. 251). A partir dessa
fundamentação metafísica Espinosa assinala o lugar determinante da afetivi-
dade na existência do homem. Isso se apresenta de mãos dadas com uma con-
ceituação da razão humana que não implica considerá-la de maneira privilegia-
da sobre a sensibilidade.
Entretanto, também é certo que ele sustenta que é através da razão que
o homem pode reger e reprimir os afetos (cf. espinosa, 2021, e v, pref., p.
517). Essa tensão, exibida em suas considerações metafísicas, desenvolve-se em
suas considerações políticas - sendo que Espinosa afirma que é o âmbito políti-
co aquele que favorece num sentido fundamental a conservação da existência
humana, já que os homens não se regem sempre de forma racional, mas agem
movidos pelos afetos e, em particular, pelo esforço de perseverar no ser. Diz no
tp: “não está em poder de cada homem usar sempre da razão e estar no nível
supremo da liberdade humana. E, contudo, cada um esforça-se sempre, tanto
quanto está em si, por conservar o seu ser” (espinosa, 2009, tp ii, 8, p. 15). E:
“[d]ado que os homens se conduzem mais pelo afeto que pela razão, segue-se
que não é por condução da razão, mas por algum afeto comum que uma mul-
tidão se põe naturalmente de acordo e quer ser conduzida como que por uma
só mente” (espinosa, 2009, tp vi, 1, p. 47).32 Então, para Espinosa, a polí-
tica não é o campo da razão – e da moralidade –, mas dos afetos. Em outras
palavras, é o âmbito da organização da vida humana como ela é e não como
alguns – em particular os filósofos, diferentemente dos políticos (cf. espino-
sa, 2009, tp i, 2, pp. 6-7) – gostariam que os homens fossem (cf. espinosa,
2009, tp i, 1, p. 5). Encontramos aqui o fundamento do denominado realismo
político espinosano (cf. tatián, 2012, p. 59). Por sua vez, não é só como remé-

espinosa, 2021, e iii, def., p. 237).


32 Essa identidade implica unicidade (cf. espinosa, 2009, tp, ii, 21, p. 22; tp iii, 2, p.
25; tp iii, 5, p. 27; tp iii, 7, p. 29; cf. tp viii, 6, p. 91; tp viii, 19, p. 98). Também, cf.
espinosa, 2021, e iv 18, esc., p. 407.

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dio ante a falta de racionalidade-moralidade no agir humano que se faz neces-
sária a instauração de um tipo de relação política entre os homens; ao contrá-
rio, Espinosa sustenta num sentido positivo que é por sua natureza afetiva que
eles tendem a entrar em contato uns com os outros. Escreve: “nada mais útil
ao homem do que o homem” (espinosa, 2021, e iv p18, esc., p. 407).33 E: “[a]
s coisas que conduzem à Sociedade comum dos homens, ou seja, que fazem
com que os homens vivam em concórdia, são úteis; e más, ao contrário, as que
introduzem discórdia na Cidade [Estado] (Civitas)” (espinosa, 2021, e iv
p40, p. 443).34 Porém, em paralelo com essas afirmações, afirma que é através
da razão que eles tendem à vida social. Quando eles são dirigidos pela razão,
sabem que é através da concórdia que o conatus é preservado e aumentado (cf.
espinosa, 2009, tp v, 5, p. 45; cf. chaui, 2000, p. 124). Posto isso, pareceria
haver uma tensão no que tem a ver com a concepção espinosana da razão e dos
afetos. Como Espinosa remedeia esta questão? Ou não se trata de uma proble-
mática filosófica?
Espinosa escreve na e: “a razão nada postula contra a natureza” (espino-
sa, 2021, e iv p18, p. 405. Também cf. espinosa, 2009, tp iii, 6, p. 27). Essa
posição filosófica ganha sentido enquanto a razão humana, como concebida
por ele, é uma razão utilitarista (cf. espinosa, 2003, ttp xvi, p. 236). Quer
dizer, trata-se de uma razão a serviço da conservação da existência humana
natural. Diz no tp: “[as] leis da razão humana [...] não se destinam senão à ver-
dadeira utilidade e à conservação dos homens” (espinosa, 2009, tp ii, 8, p.

33 Também cf. espinosa, 2009, TP ii, 21, p. 22.


34 Essa dificuldade também se apresenta quando Espinosa exibe o conceito de autonomia
que, embora associado num sentido positivo à razão e à potência humana (cf. tp v, 1, p.
43), acaba ligado ao medo como fator determinante (cf. espinosa, 2009, tp ii, 10, p. 17;
tp iii, 8, p. 30; tp iii, 9, pp. 30-31; tp iv, 4, p. 39), com uma lógica segundo a qual quanto
maior é a autonomia do homem, menor é o temor que ele sente – e maior o perigo para
a conservação do Estado –, e vice-versa. Até afirma que os indivíduos não são autônomos
como cidadãos (cf. espinosa, 2009, tp iii, 5, p. 27). O termo autonomia aparece na
edição em espanhol do tp, sendo que na edição portuguesa aparece “sob jurisdição de si
própria/o”. Com relação àquele termo em Espinosa, cf. den uyl, 2003, pp. 30-69.

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16). Então, quanto à relação entre razão e afetividade, não há contradição no
pensamento espinosano porque para Espinosa a razão está ligada à afetividade
e, em particular, ao objetivo de mostrar o caminho para que o homem consiga
perseverar no seu ser. Assim, não se trata de uma razão que projeta o autoaper-
feiçoamento do homem e do mundo, mas sua reprodução.35 Ora, para além
de que não se contradiz nesse ponto, Espinosa mantém uma separação radical
entre vida moral – baseada numa razão prática como concebida por Fichte – e
vida real, política – baseada numa racionalidade realista-política. Para analisar
esta posição – com a intenção de elucidar seus efeitos a respeito do conceito
de beatitudo e sua contestação a partir do idealismo fichteano – é preciso con-
siderar a aparição concatenada dos conceitos espinosanos de natureza huma-
na, conatus, conservação, utilidade, medo, esperança e segurança. Como dito,
Espinosa escreve:

[o]s filósofos [– consideremos aqui Fichte –], concebem os homens não


como são, mas como gostariam que eles fossem. De onde resulta que
[...] nunca tenham concebido política que possa ser posta em aplicação
[...] ou que só poderia instituir-se na utopia ou naquele século de ouro
dos poetas, onde não seria necessária (espinosa, 2009, tp i, 5, pp. 5-6).36

E adiciona: “a razão pode [...] reprimir e moderar os afetos, mas [...] o


caminho que [...] ensina é extremamente árduo; de tal modo que aqueles que
se persuadem de poder induzir [...] a viver unicamente segundo o que a razão
prescreve, sonham com o século dourado dos poetas” (espinosa, 2009, tp i,
5, p. 9). Por sua vez, no ttp escreve:

35 Cf. espinosa, 2021, e iv, def., p. 347. Quanto ao conceito de segurança no seu
pensamento político, sustenta que ela é “a virtude do Estado” (espinosa, 2009, tp i, 6, p.
9). Também no ttp é central (cf. espinosa, 2003, ttp iv, p. 66; ttp xx, p. 300 e p302).
36 Por outro lado, no ttp encontramos passagens que permitem pensar a possibilidade
de uma leitura da filosofia política espinosana na qual a fundamentação da politicidade e
do Estado não se baseia no medo (cf. espinosa, 2003, ttp iv, p. 76; ttp v, p. 86; ttp
xx, p. 302).

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se os homens fossem por natureza constituídos de modo que não dese-
jassem senão o que ensina a reta razão, a sociedade não necessitaria de
nenhuma lei, bastando fornecer aos homens os verdadeiros ensinamen-
tos morais para que, espontaneamente [...] fizessem aquilo que verda-
deiramente interessa. [Porém], todos procuram o que lhes é útil, mas
[...] desejam as coisas e consideram-nas úteis unicamente [...] por paix-
ão [...]. Daí que nenhuma sociedade possa subsistir sem [...] leis que
moderem e coíbam o desejo [...] dos homens (espinosa, 2003, ttp v,
pp. 85-6).37

Além da rejeição de Espinosa da razão num sentido moral para organi-


zar as relações humanas, vale ressaltar que nas passagens referidas opera como
pano de fundo de suas ideias a lógica do mal menor, segundo a qual: “é uma
lei da razão que de dois males se escolha o menor” (espinosa, 2009, tp iii,
6, p. 28).38 Surge, então, a seguinte questão: por que, pelo fato do homem ver-
-se atravessado por paixões,39 teria que, em sua vida particular e intersubjetiva,
depender de um contexto jurídico – que como se exibe na sequência, é um
âmbito político fundado no Estado – que as organize de maneira reproduti-

37 No entanto, é importante ressaltar que Fichte dedicou-se à leitura de Espinosa apenas


um ano antes de escrever gwl. Cf. lauth, 1978, p. 29.
38 No tp Espinosa escreve justificando a vida política: “[o]s políticos [...] procura[m]
precaver-se da malícia humana, por meio daquelas artes que [...] os homens, conduzidos
mais pelo medo que pela razão, costumam usar” (espinosa, 2009, tp i, 2, p. 6). Aqui
podemos levantar a leitura de Domínguez que, embora pretenda realçar que a última
palavra de Espinosa a respeito da fundamentação do Estado é a liberdade, aponta a sua
incompletude. Diz: “é a ameaça, ou seja, o poder coercitivo e, portanto, o temor, suficiente
para constituir a sociedade sobre bases firmes? [...]. Espinosa flutua [...] entre a hipótese do
homem sábio [...] e do homem passional, que só é movido por ameaças. Seu raciocínio fica
[...] incompleto” (domínguez, 1986, p. 22). Ao contrário, Tatián afirma que Espinosa
consegue ligar ordem e liberdade (Cf. tatián, 2013, p. 88). Também ceballos (2018, p.
89) se insere nessa linha de pensamento e sustenta que a obediência no interior do Estado
espinosano não implica medo.
39 Também, cf. espinosa, 2003, ttp xvii, p. 253; cf. espinosa, 2009, tp vi, 1, p. 47;
tp vi, 3, p. 48.

284 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


va, ou seja, sem a perspectiva de uma mudança radical delas, na consecução de
uma existência beata? Acaso Espinosa, embora diga que “tudo o que notável é
tão difícil quanto raro” (espinosa, 2021, e v, esc., p. 579), não convoca para
sua realização como para o aperfeiçoamento humano? (cf. espinosa, 2021, e
iv, Ap. cap. iv, p. 495; cf. espinosa, 2203, ttp v, p. 85). Que aperfeiçoamento
é aquele inscrito na concepção “realista” da existência humana?40 É possível o
aperfeiçoamento no realismo político?
Por sua vez, o conceito de mal menor tem em sua base o conceito de uti-
lidade como ponto fundamental do pensamento filosófico-político. Vamos
analisar a problemática que a argumentação espinosista traz a partir da liga-
ção entre utilidade-mal menor-Estado político, para confrontar com a posi-
ção filosófica moral expressada por Fichte - visando a elucidação do papel da
beatitude em seus sistemas. Tal como assinala Domínguez com relação à fun-
damentação do marco político e do Estado espinosano como âmbito da vida
humana: “[a] última palavra é a utilidade, já que só ela faz possível esse com-
promisso pessoal [o pacto político], e só ela faz tolerável a coação” (domín-
guez, 1986, p. 27, trad. nossa)41. Ora, a pergunta que se impõe é a seguinte:
utilidade para quê? A resposta já se mostrou antes como lei fundamental do
sistema espinosano: trata-se da utilidade – agora comum – para a conservação
do homem no seu ser.
Na E escreveu: “[q]uando cada homem busca ao máximo o seu próprio
útil, então os homens são ao máximo úteis uns aos outros” (espinosa, 2021, e
iv p35, cor. ii, p. 427).42 Por sua vez, no tp: “os homens, sem o auxílio mútuo,

40 Esta ideia aparece também como “viver o melhor possível” (cf. espinosa, 2003, ttp
xvi, p. 237; cf. tp v, 1, p. 43).
41 Também, cf. espinosa, 2021, e iv p35, cor., p. 427; e iv, ap., cap. xii e xiv, pp. 499
e 501.
42 Esta contradição é aquela que refuta o intento de Espinosa de justificar o Estado como
âmbito da liberdade e da beatitudo - segundo a associação entre os termos (cf. espinosa,
2021, e v p36, esc., p. 569) -, como o propósito de pensar os homens como seres racionais
e não como bestas ou autômatos (cf. espinosa, 2003, ttp xx, p. 302).

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 285


dificilmente podem sustentar a vida e cultivar a mente [...]. [O] homem [é] um
animal social” (espinosa, 2009, tp ii, 15, p. 19). E no ttp: “[s]e tivermos [...]
em conta que os homens, quando não se entreajudam, vivem miseravelmente e
sem poder cultivar à razão [...], veremos com toda a clareza que, para viver em
segurança e o melhor possível, eles tiveram forçosamente de unir-se” (espino-
sa, 2003, ttp xvi, p. 237).43 Estas passagens abrangeriam a fundamentação da
união humana na utilidade que ela reporta. Entretanto, até aqui não se acha
uma dedução da necessidade da união num sentido político-estatal. Ora, já na
proposição 73 da e iv (espinosa, 2021, e iv p73, p. 489), encontramos uma
argumentação que pretende fundamentar a existência do Estado e, vale ressal-
tar, uma demonstração por via positiva. Melhor dizendo, aqui Espinosa procu-
ra mostrar que é em si – racionalmente – e não para evitar um estado de coisas
pior segundo a lógica do mal menor – com base no medo entre os homens –,
que o Estado encontra sua fundamentação. Ele escreve:

[o] homem que é conduzido pela razão não é conduzido a obedecer pelo
Medo (pela Prop. 63 desta parte); mas, enquanto se esforça para con-
servar seu ser pelo ditame da razão [...], deseja observar a regra da vida
e da utilidade comuns (pela Prop. 37 desta parte), e consequentemente
(como mostramos no Esc. 2 da Prop. 37 desta parte) viver pelo decre-
to comum da cidade [Estado] (espinosa, 2021, e iv p73, dem., p. 491).

Porém, ao ler o proceder dedutivo de proposição em proposição, encontra-


mos que na proposição 37 é o temor o ponto de apoio da fundamentação do
Estado - reproduzindo a lógica mencionada.44 Isso não resulta surpreendente,

43 Cf. lópez domínguez, 1996, p. 125; cf. cruz, 1975, pp. x-xi; cf. breazale, 1999,
p. 101; cf. rockmore, 2014, p. 9.
44 Para uma análise do ateísmo espinosano no qual aparece a dualidade imanência/
transcendência, cf. chaui, 2009, pp. 322-334. Também hernández pedrero (2012,
p. 70) apoia-se na crítica de Espinosa ao Deus teísta e afirma que sua ideia de Deus e seu
sistema é imanentista. A questão da transcendência aparece também quanto ao pensamento
político. De forma antecipada, podemos contrastar aqui com a leitura de garcía ruzo,
2015, p. 70, acerca do caráter transcendente do Estado como apresentado por Espinosa.

286 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


enquanto a razão humana concebida por Espinosa está a serviço da utilidade
para a conservação do homem no ser. Ele diz:

[c]ada um existe por sumo direito de natureza e [...] cuida do que lhe
tem utilidade [...]. E se os homens vivessem sob a condução da razão,
cada um possuiria este direito sem nenhum dano para outro. Porém,
como estão submetidos aos afetos [...], são contrários uns aos outros
quando precisam de auxílio mútuo. Portanto, para que possam viver em
concórdia [...], é necessário que cedam seu direito natural e tornem uns
aos outros seguros de que nada haverão de fazer que possa causar dano a
outro. Mas de que maneira pode ocorrer [?] A saber, nenhum afeto pode
ser coibido a não ser por um afeto mais forte e contrário [...], e cada um
abstém-se de causar dano por temor de um dano maior. É, portanto, por
esta lei que a Sociedade poderá firmar-se, desde que [...] tenha o poder
de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e firmá-las não pela
razão [...] mas por ameaças. E esta Sociedade [...], é denominada Cidade
[Estado] (espinosa, 2021, e iv p37, esc. ii, pp. 435 e 437).45

Por outro lado, também no ttp e no tp, o fator medo e o mal menor46 apa-
recem como determinantes a respeito do procedimento dedutivo do Estado –
assim como de sua reprodução –, enquanto pretensa necessidade dos homens
serem dirigidos por uma instância única que gere temor e aja coativamente em
prol de sua conservação. Escreve no ttp:

não há ninguém que não deseje viver, tanto quanto possível, ao abrigo
do medo, coisa que não poderá verificar-se enquanto cada um for livre
de fazer tudo quanto quiser [...]. Por isso, tiveram de estatuir e acordar

45 A crítica ao finalismo é uma das bases do sistema da E. Cf. espinosa, 2021, e i, Ap.,
pp. 111-121.
46 Cf. teixeira, 2001, p. 13.

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 287


entre si que tudo seria regido apenas pelos ditames da razão, à qual nin-
guém ousa opor-se abertamente [...]. De que modo, porém, deve esse
pacto ser estipulado, para que seja ratificado e duradouro? Manda a lei
universal da natureza humana que [...] entre dois bens, escolhe-se aque-
le que se julga ser o maior, e entre dois males, o que pareça menor [...].
Dela resulta [...] que só por medo de um mal maior ou na esperança
de um maior bem alguém cumprirá tais promessas [...]. [C]onclui-se
que um pacto não pode ter nenhuma força a não ser em função da sua
utilidade [...]. Isso é de importância capital na fundação de um Estado
(espinosa, 2003, ttp xvi, pp. 237-238).47

No caso do tp, essa ideia aparece sob a noção do Estado como “uma só
mente”: “no estado civil todos temem as mesmas coisas e é idêntica para todos
a causa de segurança e a regra de vida” (espinosa, 2009, tp iii, 3, pp. 26-7).48
E: “o corpo do Estado deve ser conduzido como que por uma só mente” (espi-
nosa, 2009, tp iii, 5, p. 27).49 A ideia de uma só mente que organize a vida
social aparece no tp na maneira pela qual Espinosa concebe a relação entre
direito natural e direito civil. A análise particular deste tema exigiria um arti-
go separado, mas o que vale apontar é que tanto no estado de natureza como
no estado civil os homens, segundo Espinosa, agem conduzidos pelas mesmas
causas, a saber, esperança e medo (cf. espinosa, 2009, tp iii, 3, p. 26), sendo
que o fato de serem conduzidos como por uma só mente à qual temem não
tem outra fundamentação que o fato de ser mais vantajoso - menos mau - que
ter que resguardar-se de todos e cada um dos homens. Mais uma vez vemos que
a lógica do mal menor aparece como a fundamentação do Estado, com base
nos conceitos de segurança, medo e esperança50 à vista daquilo que resulta útil

47 Referimo-nos neste ponto ao artigo de rocha fragoso, 2011, pp. 93 e ss.


48 Sobre esse conceito e suas implicações políticas em Espinosa, cf. tatián, 2014, p. 99.
49 Sobre esse conceito, cf. persch, 2002, pp. 347-348.
50 Cf. domínguez, 1979, p. 136; tatián, 2013, p. 89; cf. sabater, 2020, Nota, p. 163.
Estes comentadores sublinham que a construção da política é, para Espinosa, sempre um
processo sem pontos fixos.

288 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


para a conservação no ser. No ttp, Espinosa escreve:

se queremos viver em segurança e evitar os ataques de outros homens


[...], a orientação e a vigilância por parte do homem podem ser de
grande utilidade [...]. [N]ão há processo mais seguro para atingir tais
fins do que fundar uma sociedade com leis fixas, [...], e congregar as
forças de todos para formar como que um só corpo [...]. [O] fim de
qualquer sociedade ou Estado [...] é viver em segurança e em comodi-
dade (espinosa, 2003, ttp iii, pp. 53 e 55).

De fato, Espinosa sustenta que o homem que não age movido pelo medo
e/ou pela esperança não tem lugar no Estado e, ainda mais, é seu inimigo,
podendo ser coibido e coagido a obedecer às ordens ensinadas pela legisla-
ção política (cf. espinosa, 2009, tp ii, p. 20; tp iii, 8, p. 30). Precisamente,
a questão para pensar é o que acontece quando não se trata da conservação de
si mesmo, mas do autoaperfeiçoamento – como exibido no idealismo moral
fichteano – e da procura da máxima perfeição – como o que Espinosa chama
de beatitudo (cf. espinosa, 2021, e v p33, esc., p. 565). O desenvolvimento da
lógica do mal menor fundamentada nos conceitos de utilidade e conatus, cuja
ressonância prática é o realismo político que encontra no Estado sua institui-
ção fundamental e na geração de medo e ameaças seu modus operandi em prol
dessa conservação material dos homens, acaso não contraria a consecução da
beatitudo? Acaso não é contraditória a lógica segundo a qual para o homem
deixar de ter medo, tem que ter medo?51 Por sua vez, pode-se colocar como
pergunta: acaso o sistema espinosano, tanto em termos metafísicos como prá-
ticos, não implica irracionalidade? Espinosa observa esse problema quando,
havendo defendido que os homens têm que agir segundo a legislação impos-
ta pelo direito civil para além de sua consideração como justa ou injusta (cf.
espinosa, 2009, tp iii, 5, p. 27), escreve: “pode-se objetar se não será contra
o ditame da razão sujeitar-se totalmente ao juízo de outrem, e por conseguinte
se o estado civil [político] não repugnará à razão, de onde se seguiria que era

51 Podemos contrastar com a leitura que Bagley faz. Cf. bagley, 2008, pp. 148 e ss.

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irracional” (espinosa, 2009, tp iii, 6, p. 27). Ora, sua resposta aqui expõe
mais uma vez a ideia segundo a qual a razão humana está a serviço do conhe-
cimento da natureza humana (cf. espinosa, 2009, tp ii, 7, pp. 14-5; tp ii, 11,
pp. 17-8) e da moderação dos afetos naturais do homem, sendo que, por defi-
nição, os homens sempre são afetados por paixões, então “racionalmente” não
se pode projetar sua autonomia – melhor dizendo, a possibilidade de não esta-
rem submetidos à totalidade dos desígnios do Estado (cf. espinosa, 2009, tp
iii, 6, pp. 27-8). Até a razão, como razão que procura o mal menor com vistas
à conservação, chama a cumprir todas essas ordens, por absurdas que sejam, e
mesmo que não considere que as seguir seja o bem (cf. espinosa, 2003, ttp
xvi, p. 240; ttp xx, p. 303).
Em outras palavras, na verdade estes problemas levantados nem se apre-
sentam para Espinosa, por causa do fundamento do seu sistema filosófico. Se
a essência humana é o esforço pela conservação e o medo é um afeto insu-
perável, sendo que o Estado não tem outro fundamento a não ser assegurar
a conservação – através da geração de temor –, e que enquanto ao seu pro-
ceder apenas é preciso mexer com as paixões humanas para além da possibi-
lidade da superação de tal estado de coisas – ao mesmo tempo que a manu-
tenção do Estado depende da fidelidade dos súditos (cf. espinosa, 2003,
ttp xvii, p. 253; cf. espinosa, 2009, tp vii, 25, p. 78) –, então a questão
do aperfeiçoamento do homem e do Estado nem pode erguer-se. De fato, tal
como já referido, Fichte sustenta que o sistema de Espinosa é consequente e
irrefutável (cf. fichte, 1965, i/2, p.263; 2021, pp.46-7), mas apenas pelo fato
de, enquanto dogmático, desenvolver-se para além da razão e só axiomatica-
mente. Posto isto chegamos ao ponto conclusivo d) a importância de levar
uma existência idealista e não dogmática para a beatitude da humanidade
toda.

290 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


conclusão

A relação entre idealismo e dogmatismo é tal que se trata de uma exclusão


mútua irreversível. Isso não causa surpresa se considerarmos, tal como aponta
Fichte, que: “[a] classe de filosofia que se escolhe depende da classe de homem
que se é” (fichte, 1970, i/4, p.195). Ou seja, se o homem se considera deter-
minado ao agir a partir de si mesmo ou a partir de uma causa que haveria de
fundamentá-lo em seu ser. Se este seu ser é um constante autoaperfeiçoamento
conduzido por um ideal imanente à própria subjetividade ou é um conservar-
-se mecânico dirigido por uma coisa transcendente à própria subjetividade.
Se as relações que ele estabelece com os outros se fundamentam numa razão
que procura o bem – como dever moral que compromete toda a humanidade
em sua racionalidade – pelo bem mesmo, ou numa razão que procura o mal
menor para si próprio – sendo que a utilidade comum pode deduzir-se da pro-
cura dessa utilidade, só se pode considerar que o homem é parte de algo a mais
que o transcende e que permanece indemonstrável para a razão. Caso seja um
homem que age sem temor e sem esperança de alcançar bens materiais porque
sabe que é na intenção e não no resultado, é no suprassensível e não no sensível,
que se define o sentido do agir, ou caso seja um homem que age por medo aos
castigos de uma instância externa cujo fundamento se revela vicioso segundo a
lógica da conservação e do mal menor.
Posto isto, podemos concluir, por um lado, que a concepção de Fichte da
beatitude em sentido prático – em particular, moral – se deduz da metafísica
do anseio como exposta na primeira versão de seu sistema filosófico. De mãos
dadas com esse desenvolvimento, podemos sublinhar seu contraste com res-
peito à concepção de Espinosa da beatitude, também segundo sua base metafí-
sica e a partir de suas implicações práticas – neste caso, políticas. Assim, repas-
samos que a) não há beatitude sem racionalidade em um sentido prático-mo-
ral; (b) não há beatitude sem a intenção moral de constantemente, em que
pese a sua impossibilidade total, superar as travas da sensibilidade; (c) não há
beatitude no contexto das relações humanas políticas que reproduzem o esta-
do imperfeito e imperfectível da vida intersubjetiva; (d) em síntese, para além

Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 291


da evidente intenção de construir um sistema metafísico que leve à beatitude
individual e coletiva, esta não pode apresentar-se no dogmatismo espinosano
como sistema transcendente, mas apenas no idealismo fichteano em seu senti-
do transcendental e imanentista, o qual, na consciência – teórico-prática – do
seu impossível atingir último, cria-a de forma constante a partir de desejá-la
pelo dever humano racional-moral para consigo e para com os outros. E isto
até porque: “o homem ‘pode’ o que ele ‘deve’; e quando ele diz: não ‘posso’,
então ele não ‘quer’” (fichte, 1964, i/1, p.230).

292 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


THE CONCEPTION OF BEATITUDE IN THE PHILOSOPHIES
OF FICHTE AND SPINOZA: MORAL AND POLITICAL
IMPLICATIONS OF IDEALISM AND DOGMATISM

abstract: In this paper I try to expose the way in which the concept of beat-
itude (Seligkeit-beatitudo) appears in the thought of Fichte and Spinoza. To
this end, I emphasize the importance of considering the metaphysical foun-
dations of their philosophical systems, in order to be able to understand their
practical implications - in particular moral and political - regarding the mean-
ing that this concept adopts. Thus, I intend to give an account of the Fichte-
an metaphysics of the longing (Sehnen) as the basis of his conception of the
beatitude in a moral sense. At the same time I aim to compare, in a philosoph-
ical-historical sense, this perspective with the Spinozist idea of a beatitude that
- leaving morality aside, since politics adopts a primary role in human exis-
tence -, from Fichte’s point of view, could only be considered as irrational and
dogmatic. The confrontation between the two thinkers intends to favor the
understanding of their opposing positions as well as their philosophical sys-
tems per se.
keywords: Fichte; Spinoza; beatitude; idealism; dogmatism.

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Lucas Damián Scarfia p. 259 - 297 297


INVESTIGAÇÃO POLÍTICA: UMA QUESTÃO DE MÉTODO

Matheus Romero de Morais1


Doutorando, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
matheus.r.morais@gmail.com

resumo: O presente artigo visa discutir a função introdutória do


capítulo i do Tratado Político de Espinosa. Para tanto, ressaltaremos
alguns aspectos fundamentais presentes no movimento argumentativo
do texto, como a centralidade dos afetos para o raciocínio político e a
necessidade de um método investigativo que articule experiência e razão.

palavras-chave: Afetos; Método; Experiência; Razão; Política; Espinosa.

1 Atualmente bolsista de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São


Paulo (fapesp), n° do processo 2022/00807-0.

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 299


Affectus, quibus conflictamur, concipiunt Philosophi veluti
vitia, in quae homines suâ culpâ labuntur; quos propterea redere,
flere, carpere, vel (qui sanctiores videri volunt) detestari solent.
Sic ergo se rem divinam facere, et sapientiae culmen attingere cre-
dunt, quando humanam naturam, quae nullibi est, multis modis
laudare, & eam, quae reverâ est, dictis lacessere nôrunt. Homines
namque, non ut sunt, sed, ut eosdem esse vellent, concipiunt : unde
factum est, ut plerumque pro Ethicâ Satyram scripserint, & ut,
nunquam Politicam conceperint, quae possit ad usum revocari,
sed quae pro Chimaerâ haberetur, vel quae in Utopiâ, vel in illo
Poëtarum aureo saeculo, ubi scilicet minimè necesse erat, institui
potuisset. Cum igitur omnium scientiarum, quae usum habent,
tum maximè Politices Theoria ab ipsius Praxi discrepare creditur,
& regendae Reipublicae nulli minùs idonei aestimantur, quàm
Theoretici seu Philosophi.2 (espinosa, 1972, p. 273)

Uma das primeiras coisas que aprendemos ao estudar latim é que a ordem
das palavras na construção de uma frase difere muito daquela a que estamos
acostumados. Em português, assim como na maioria das línguas românicas
modernas, a posição de cada palavra é bastante rígida e qualquer inversão sim-
ples pode acarretar inversão do sentido da frase. Isso acontece porque em por-
tuguês o que determina a função de uma palavra na frase é sua posição. Em
latim, por outro lado, o que nos revela o sujeito e o objeto de uma oração é o
caso em que cada vocábulo se encontra, não o lugar que ocupa na frase. Por
conseguinte, a ordem das palavras em uma sentença é consideravelmente mais
livre em latim do que em português. Todavia, dizer que a escrita latina é mais
flexível não significa dizer que o lugar que cada palavra ocupa na frase não tem

2 Com exceção dessa primeira citação, retirada da Opera (1972), utilizaremos a tradução
do Tratado Político para o português feita pela wmf Martins Fontes (2009).

300 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


importância alguma. Há uma ordem corriqueira de disposição dos vocábulos
nas sentenças em latim e a alteração dessa ordem acarreta, por vezes, diferentes
efeitos discursivos. Por exemplo, um efeito que se pode atingir com a altera-
ção da ordem usual do latim é o de enfatizar um ou outro elemento da oração.3
A citação em latim do parágrafo inaugural do Tratado Político4 não é sem
propósito. Compreender a língua na qual o texto foi originalmente escrito nos
capacita a entender sutilezas que ocasionalmente se perdem nas traduções. Em
português, a obra se inicia da seguinte maneira: “Os filósofos concebem os
afetos com que nos debatemos como vícios em que os homens incorrem por
culpa própria” (espinosa, 2009, p. 5). A tradução é correta, mas por ques-
tões que dizem respeito à sintaxe da nossa língua a frase começa pelo sujeito
‘filósofos’, em vez do objeto ‘afetos’. Ora, também em latim o sujeito costuma
preceder o objeto – ou o adjunto – na disposição comum das palavras em uma
sentença. Quando há inversão desses dois elementos o resultado é um efeito de
ênfase. É, portanto, significativo que Espinosa opte pela contraversão e inicie o
texto do tp com o substantivo “affectus” – pois, como veremos, a afetividade é
central tanto na elaboração da crítica espinosana presente no primeiro capítu-
lo do tp, quanto na delimitação do escopo da obra como um todo.

***

3 Por exemplo, na frase “Caesar in Galliam contendit” (César marchou para a Gália)
temos uma amostra da disposição comum das palavras em uma sentença latina: o sujeito
da frase se encontra na primeira posição; o adjunto de lugar na segunda posição; e o verbo
por último. Todavia, se invertermos a ordem e colocarmos o adjunto antecedendo o sujeito
da frase – in Galliam Caesar contendit – temos o que se pode chamar de uma disposição
enfática. Ao posicionar “in Galliam” no início da oração o que se busca é destacar o local
para onde César marchou (como se estivéssemos respondendo à pergunta “para onde César
marchou?”). Este não é o único efeito discursivo que pode ser obtido através do rearranjo
das palavras na oração latina, porém é o único que interessa a este texto, pois é a partir dele
que começaremos nossa análise. Cf. jones e sidwell, 2012 p. 606.
4 Doravante usaremos a abreviação ‘tp’ para nos referirmos ao Tratado Político.

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 301


O tratado se abre com uma tomada de posição: Espinosa opõe-se aos filósofos.
A argumentação utilizada é análoga à presente no início do prefácio da Éti-
ca iii, de tal maneira que podemos sobrepor os dois textos a fim de reforçar
a mesma questão. É certo que essa oposição não se dirige a todos os filósofos,
mas àqueles que pertencem a tradições de pensamento que ignoram ou con-
denam uma dimensão fundamental da existência humana, a saber, a dimensão
afetiva. Com efeito, Espinosa se opõe a quem considera os afetos “com que nos
debatemos como vícios em que os homens incorrem por culpa própria” e con-
fronta quem encara a afetividade como um desvio a ser ridicularizado, lamen-
tado, censurado ou detestado (espinosa, 2009, p. 5). Tais posturas parecem
decorrer de um mesmo equívoco, explicitado no prefácio Ética iii: a concep-
ção de que os afetos se seguem não de leis comuns da natureza, “mas de coisas
que estão fora da natureza” e que o homem poderia ter potência absoluta sobre
si mesmo, não sendo determinado por nada que lhe seja externo. Os filósofos
que prosseguem dessa maneira, isto é, atribuindo a causa da impotência huma-
na a um vício de sua própria natureza, regozijam-se ao espezinhar os afetos e se
consideram tão mais divinos quanto mais habilmente são capazes de repreen-
der a vida afetiva. Em termos espinosanos, esse é um raciocínio que enxerga o
homem como “um império num império”, ou seja, como um ser dotado de um
arbítrio absoluto e que mais perturba do que segue a ordem da natureza (espi-
nosa, 2015a, p. 233). Segundo tal raciocínio, haveria uma espécie de ordem
natural externa ao ser humano, bem como um modelo de perfeição com o qual
o homem é comparado e a partir do qual ele é julgado e condenado devido à
sua natureza afetiva, i.e., viciosa.
Descrita a situação, o texto do tp prossegue com a crítica. Ora, quem pen-
sa de tal maneira não concebe o homem tal qual ele efetivamente é, mas sim
como gostaria que ele fosse. Desnaturalizar os afetos não é tanto uma atitude
sábia quanto algo sem lastro no real, e pensar o homem a partir de um ide-
al ascético tem duas consequências imediatas, segundo o autor holandês. A
primeira é a impossibilidade de se escrever uma ética, pois toda tentativa que
tenha como alicerce um tipo de homem que não existe está fadada a se tornar
sátira. Ou, como diz Chaui em termos mais precisos, a condenação da afeti-

302 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


vidade e a consideração da natureza humana como viciosa reduz a ética a uma
“moralidade imperativa”, i.e., a “regras imperativas de virtudes impraticáveis
para seres humanos reais” (chaui, 2003, p. 208). A segunda é a impossibilida-
de de se conceber um pensamento político aplicável, pois toda tentativa que
desconsidere a afetividade só pode produzir uma “política que é tida por qui-
mera ou que só poderia instituir-se na utopia ou naquele século de ouro dos
poetas” (espinosa, 2009, p. 5). A figura do animal mitológico híbrido mos-
tra a irrealidade, e mesmo a impossibilidade, de se conceber uma política que
prescinde dos afetos e que só poderia ser aplicada na ilha modelar de Thomas
More ou no contexto do século de ouro dos poetas, ambos lugares onde ela
não seria necessária.

Já o prefácio da Ética iii procede de forma um pouco distinta, uma vez


que seu principal objeto não é a política. Após o diagnóstico de que a maior
parte dos que escreveram sobre os afetos o fizeram de maneira condenatória,
como se a vida afetiva fosse uma perturbação da ordem da natureza, Espinosa
reconhece a existência de “homens eminentíssimos” que escreveram coisas bri-
lhantes “acerca da reta maneira de viver”. Contudo, segue o filósofo holandês,
ninguém “determinou a natureza e as forças dos Afetos e o que, de sua par-
te, pode a Mente para moderá-los” (espinosa, 2015a, p. 233). Há duas cama-
das na argumentação espinosana nesse ponto do texto, uma explícita e outra
implícita. Ao expor essa lacuna do pensamento filosófico o autor está, ao mes-
mo tempo, declarando sua intenção de preenchê-la. Todavia, ainda que nin-
guém tenha conseguido até então atingir esse objetivo de maneira satisfatória,
isso não significa que ninguém o tenha tentado. Nessa altura da argumentação
menciona-se o nome de Descartes. A menção é breve, mas com uma dupla
função fundamental para o raciocínio. Em primeiro lugar, Espinosa aponta
para um acerto da teoria cartesiana que deve ser aproveitado: a explicação dos
afetos humanos a partir de suas primeiras causas. Em segundo lugar, ele aponta
para um erro cartesiano que deve ser posto de lado para que se possa prosseguir
a investigação de maneira adequada. A saber, deve-se recusar a concepção de
que a mente possui potência absoluta sobre os afetos.

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 303


A brevidade da menção a Descartes se justifica na medida em que ele não
faz parte do grupo de filósofos com o qual Espinosa quer rivalizar nessa altura
do texto.5 O filósofo francês é a exceção, ele não está entre aqueles que “prefe-
rem amaldiçoar ou ridicularizar os Afetos e ações humanos em vez de entendê-
-los”. É fundamental, portanto, voltar a tratar do grupo de filósofos que rejei-
ta a afetividade, pois isso permite que Espinosa exponha, através de um forte
contraste, o método com o qual prosseguirá em seus estudos. Aos que perten-
cem a esse grupo parecerá particularmente estranha a proposta espinosana de
tratar geometricamente das ações e apetites humanos, ou seja, como se estas
fossem “questão de linhas, planos ou corpos” (espinosa, 2015a, p. 235). A jus-
tificativa para esse procedimento é dada nos seguintes termos:

Nada acontece na natureza que possa ser atribuído a um vício dela; pois
a natureza é sempre a mesma, e uma só e a mesma em toda parte é sua
virtude e potência de agir, isto é, as leis e regras da natureza, segundo as
quais todas as coisas acontecem e mudam de uma forma em outra, são
em toda parte e sempre as mesmas, e portanto uma só e mesma deve ser
também a maneira de entender a natureza de qualquer coisa, a saber, por
meio das leis e regras universais da natureza (espinosa, 2015a, p. 235).

A afetividade será tratada com o mesmo método pelo qual foram trata-
dos Deus, na Ética i, o corpo e a mente, na Ética ii. A justificativa espinosa-
na, inclusive, nos faz recordar o que está escrito no apêndice do De Deo. Lá
o filósofo demonstra que a gênese dos preconceitos sobre “bem e mal, méri-
to e pecado, louvor e vitupério, ordem e confusão, beleza e feiura, e outros
desse gênero”, está na aplicação do raciocínio finalista à natureza (espinosa,
2015a, p. 111). Por pensar que as coisas naturais são produzidas a partir de cau-

5 O embate contra a posição de Descartes ocorrerá, de maneira mais incisiva, no prefácio


da Ética v.

304 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


sas finais, o homem considera que há coisas que sejam boas e coisas que sejam
ruins por si mesmas, quando o único índice de produção da natureza é a neces-
sidade absoluta de produção e autoprodução de Deus. Sendo assim, nenhuma
coisa natural é produzida com vistas a um fim, mas a única causalidade que
rege essa produção é a causalidade eficiente e, por conseguinte, não há nada
que seja em si mesmo bom ou ruim. Tais qualificações só podem ser utilizadas
enquanto explicações acerca do que é útil ou nocivo ao homem.

O prefácio da Ética iii também trabalha com essa necessidade causal da


natureza à qual não pode ser atribuído nenhum vício. A natureza, suas leis
e sua potência de agir são sempre uma só e a mesma. Por isso a existência de
afetos como o ódio, a ira, a inveja etc. decorre da mesma necessidade da qual
decorrem o amor, a benevolência e a misericórdia. Todos os afetos admitem
causas e propriedades certas pelas quais podem ser entendidos e que são tão
dignas de nosso conhecimento quanto qualquer outra coisa natural. Sendo
assim, concordamos com Chaui quando a autora evidencia que há uma cama-
da de continuidade entre a Ética e o Tratado Político. Tal continuidade não diz
respeito apenas a certa coerência conceitual, mas é também, em alguma medi-
da, uma continuidade de método. Partindo da distinção, proposta por Des-
cartes nas Respostas às segundas objeções, entre as duas maneiras de demonstrar
matemáticas – análise e síntese – Chaui mostra que a concepção de conheci-
mento que guia o TP é a mesma que guiou a Ética: conhecer é conhecer pela
causa.6 Ora, vemos que a ordem geométrica é invocada por Espinosa ao longo

6 “Espinosa pode demonstrar sinteticamente a partir da causa de si porque em sua


filosofia, diversamente do que acontece em Descartes (e nos filósofos judeus e cristãos),
não há descontinuidade ou salto entre a causa primeira e seus efeitos porque a causa de si,
isto é, Deus, não cria o mundo por um ato contingente de sua vontade. Em outras palavras,
para uma metafísica que aceita a ideia de criação do mundo a partir do nada pela ação de
uma vontade onipotente, há um abismo separando a causa e o efeito, e não se pode partir
dela para construir uma ordem contínua e ininterrupta de coisas e ideias, em contrapartida,
para uma ontologia da imanência, que demonstra o caráter imaginário da criação ex nihilo
e afirma que a Natureza é um efeito imanente da ação da causa de si, a síntese geométrica
é perfeitamente adequada e mantém firmemente o adágio ‘conhecer é conhecer pela

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 305


de todo o capítulo i do Tratado Político, posto que o filósofo afirma que pre-
tende deduzir a política a partir da natureza humana.7

Em termos gerais, porém, não podemos afirmar que o método utilizado


na exposição da Ética coincide integralmente com a maneira de demonstrar
o presente no texto político. Com isso em vista, ao comparar a estrutura das
duas obras, Chaui destaca uma aparente diferença entre elas. A argumentação
no tp, diz a autora, parece se apoiar mais em recursos retóricos do que geomé-
tricos – “aparentemente, a matemática seria invocada apenas por ser dotada de
uma forma dedutiva impessoal e não valorativa.”

Vimos, porém, que a referência à matemática tem como alvo assegurar


a apodicidade do discurso fundado no estudo da natureza humana e,
como logo a seguir será dito por Espinosa, que a política não seja deduz-
ida dos “ensinamentos da razão”, mas de um único fundamento, qual
seja “a condição natural dos homens” (chaui, 2003, p. 217).

A exposição do tp, portanto, pode não prosseguir da mesma maneira que


a da Ética. Todavia, existem argumentos suficientemente fortes para defender
a tese de que a ideia de conhecimento que guia as duas obras é a mesma e que
a demonstração do tp possui um fundamento geométrico, uma vez que ela

causa’. É exatamente essa concepção do conhecimento que guia o Tratado Político. Neste,
a matemática é invocada desde o início em termos que lembram o prefácio da Parte iii da
Ética, pois aqui, como lá, trata-se de deduzir a causa das relações entre os homens a partir
do ‘estudo da natureza humana’.” (chaui, 2003, p. 208).
7 “A ordem consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem ser conhecidas
sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam
demonstradas só pelas coisas que as precedem.” (descartes, 1973, p. 176)

306 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


segue da causa ao efeito.8 Sendo assim, podemos então voltar à abertura do
Tratado Político e levantar a hipótese de que a escolha de Espinosa em sub-
verter a ordem comum das sentenças latinas reforça a importância dos afetos
na chamada ‘condição natural dos homens’. Além disso, a articulação entre o
texto do tp e a parte iii da Ética demonstra que, para Espinosa, não há como
sustentar reflexões sobre política e ética renunciando a uma investigação séria
sobre a dinâmica afetiva. Consequentemente, o veredito do primeiro parágra-
fo do tp é taxativo: o discurso do filósofo é o que há de mais alheio a uma polí-
tica real e aplicável.

Assim sendo, Espinosa passa para outra polêmica no segundo parágrafo.


Dessa vez seus olhos se voltam para a figura do político que, ao contrário do
filósofo, teoriza a política a partir da experiência. Essa maneira de proceder faz
com que eles sejam considerados mais habilidosos do que propriamente sábios.
“A experiência, na verdade, ensinou-lhes que, enquanto houver homens, have-
rá vícios”; o que por sua vez levou-os a se precaver da malícia humana mais
pela astúcia do que pela piedade que é tão cara aos teólogos (espinosa, 2009,
p. 6). Espinosa admite, entretanto, que por terem a experiência como mestra
os políticos inquestionavelmente escreveram sobre as questões da política de
maneira muito mais feliz do que os filósofos, visto que não se afastaram nunca
da prática em direção à irrealidade utópica.
Essas polêmicas metodológicas9 estabelecidas nos dois primeiros parágra-
fos possuem alvos históricos concretos. Os historiadores da filosofia do sécu-
lo xvii parecem concordar que a figura dos chamados ‘filósofos’ representa
sobretudo a tradição escolástica. Sobretudo, mas não somente. O primeiro
parágrafo do tp, afirma Chaui, se destina diretamente à crítica da tradição
escolástica de pensar a política enquanto “ciência prática articulada às virtudes
principescas do ‘bom governante’” (chaui, 2003, p. 210), mas também con-
densa uma crítica ao senso comum, à metafísica e à teologia que “se colocam

8 Cf. chaui, 2003, p. 208.


9 Cf. negri, 2018, p. 322.

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 307


de pleno acordo para a condenação dos afetos” (chaui, 2003, p. 208). Anto-
nio Negri concorda que a polêmica se dirige de maneira direta aos escolásticos,
mas afirma para além disso que ela se coloca contra a filosofia de modo geral,
“contra a ciência dos transcendentais, contra todos os que não consideram as
paixões como a única realidade efetiva a partir da qual se faça uma análise do
concreto” (negri, 2018, p. 322), ou ainda, “contra toda filosofia que não con-
sidere o tecido das paixões humanas como a única realidade efetiva a partir da
qual a análise política pode movimentar-se” (negri, 2017, p. 31). Já para Étien-
ne Balibar, o pensamento denunciado por Espinosa como utópico diz respeito
aos filósofos platônicos “que buscam deduzir a constituição ideal da cidade a
partir da ideia do Bem e da hipótese de uma natureza humana racional colo-
cando as falhas das constituições reais na conta dos seus vícios ou perversões”
(balibar, 1985, p. 67). As análises dos três intérpretes contemporâneos con-
vergem não apenas por demonstrarem a importância de contextualizar histo-
ricamente a quem se endereça a crítica espinosana, mas também na medida
em que indicam a impossibilidade de reduzir tal crítica a um único adversário.

A figura do político surge em oposição à do filósofo. Ela é caracterizada por


um realismo baseado na experiência que o qualifica como alguém mais capaz
de produzir um pensamento político. Ora, se por filósofo devemos entender
sobretudo os pensadores escolásticos, o político, por sua vez, faz referência a
uma certa imagem do príncipe maquiavélico.10 Os adjetivos descrevem alguém
com habilidade prática e a comparação entre as imagens do filósofo e do polí-
tico demonstram que para Espinosa há uma superioridade analítica clara de
quem trabalha a partir da experiência sobre quem teoriza com base em mode-
los prévios. De fato, a sátira e a política utópica produzidas pelos filósofos têm
em comum “a suposição de que existe um saber normativo anterior e exterior
à prática, fundado numa certa imagem da natureza humana virtuosa tal que

10 Balibar sugere que a figura do político é baseada em Maquiavel (balibar, 1985, p. 67),
no entanto nos parece mais preciso dizer, como o faz Chaui, que ela se baseia em uma certa
imagem, fundada na teologia, do príncipe maquiavélico enquanto aquele que age para a
perdição dos demais (chaui, 2003, p. 156 e 210).

308 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


a liberdade se confunde com obediência a preceitos que antecedem e deter-
minam a ação” (chaui, 2003, p. 210). Por outro lado, o realismo do político
se fundamenta em manifestações terrenas, na prática cotidiana, em atitudes e
hábitos correntes. De maneira resumida, a oposição que se estabelece entre o
filósofo e o político ocorre no registro do contraste entre o que deve ser e o que
efetivamente é.

As duas polêmicas iniciais abrem caminho para a exposição do projeto


espinosano propriamente dito. Ao evidenciar a superioridade dos políticos
por terem a experiência como mestra, ao passo que os filósofos não pensam os
homens como são, mas como eles gostariam que fossem, o filósofo holandês
deixa claro qual via pretende seguir. Espinosa não planeja trazer à baila nenhu-
ma novidade, nem sugerir um modelo ideal de conduta humana e comuni-
dade política que seja racionalmente pré-concebido. A experiência é mestra
e já mostrou todos os gêneros de cidades possíveis, bem como os meios de se
dirigir a multidão, ou contê-la dentro de certos limites. Não há nada que a
pura especulação possa trazer de novo no que diz respeito a esses tópicos. Tam-
bém acerca do direito comum e dos assuntos públicos, afirma Espinosa, não é
provável que haja algo de inédito a se conceber. Homens agudíssimos, sejam
eles astutos ou hábeis, já trataram anteriormente desses temas, de tal maneira
que é difícil crer que “a ocasião ou o acaso” não tenham ainda mostrado a tais
homens tudo o que se tenha a saber acerca desses assuntos.

De início pode parecer que Espinosa se alinha à figura do político ao dizer


que não há nada que a experiência não tenha ainda mostrado. Mas a própria
descrição espinosana, em conjunto com seus escritos anteriores, indica que o
leitor deve se precaver de fazer uma associação tão imediata. O fato do político
ser qualificado como hábil e astuto, jamais como sábio, bem como a perspecti-
va de que seu aprendizado veio através da ocasião e do acaso acendem uma luz
amarela de atenção. Torna-se necessário, portanto, fazer uma pergunta antes
de prosseguir: “Pode a experiência dos políticos ser um guia seguro?” (chaui,
2003, p. 210). É evidente que não se questiona aqui a segurança da experiência
em termos cartesianos – não há dúvida de que o corpo exista tal como o senti-

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 309


mos.11 Todavia, demonstra Espinosa em sua Ética, a experiência pode compor-
tar problemas para o conhecimento humano.

Ao explicar como se originam as noções chamadas de Universais –


Homem, Cavalo, Cão etc. – Espinosa deixa evidente em que medida podemos
desconfiar do conhecimento baseado unicamente na experiência. Uma noção
universal surge porque o corpo humano é limitado e, portanto, capaz de for-
mar em si apenas uma quantidade finita de imagens que representam os corpos
externos.12 Uma vez que esse limite é ultrapassado, as imagens passam a se mis-
turar cada vez mais, até o ponto em que “todas se confundirão por completo
entre si.” Ora, na medida em que um homem se depara com uma quantidade
grande de outros homens, seu corpo acaba por formar uma quantidade de ima-
gens que supera sua própria força de imaginar. A mente, por conseguinte, não
é mais capaz de representar pequenas diferenças singulares entre os homens
“e ela imagina distintamente apenas aquilo em que todos convêm enquanto o
corpo é por eles afetado.” O que o corpo percebe convir em todos os singula-
res que o afetam é aquilo que o afeta com mais frequência e intensidade; e é a
isso, que a mente predica de todos os corpos humanos singulares, que damos o
nome de Homem. O problema, mostra Espinosa, é que essas noções universais
abstratas são formadas por cada um de uma maneira. Elas variam conforme
varia o que mais frequentemente afetou o corpo de um determinado indiví-
duo. Isto é, alguém pode entender por Homem um “animal de postura ereta”,
outro pode concebê-lo como “animal racional”, um terceiro como “animal sem
penas” e assim por diante. É possível dizer, portanto, que uma noção univer-
sal abstrata retrata o universo de representações de um único indivíduo, não
sendo compartilhada por todos da mesma maneira. “Por isso não é de admirar
que, entre os Filósofos que quiseram explicar as coisas naturais só pelas ima-

11 Cf. espinosa, 2015a, p. 149.


12 “Ademais, para empregarmos as palavras usuais, chamaremos imagens das coisas as
afecções do Corpo humano cujas ideias representam os Corpos externos como que presentes
a nós. Ainda que não reproduzam as figuras das coisas. E quando a Mente contempla os
corpos desta maneira, diremos que imagina.” (espinosa, 2015a, p. 169).

310 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


gens das coisas, tenham nascido tantas controvérsias” (espinosa, 2015a, p.
199).

De tudo que foi dito acima transparece claramente que percebemos


muitas coisas e formamos noções universais: iº a partir de singulares,
que nos são representados pelos sentidos de maneira mutilada, confu-
sa e sem ordem para o intelecto (ver Corol. da Prop. 29 desta parte),
por esse motivo costumei chamar essas percepções de conhecimento por
experiência vaga. iiº A partir de signos, por exemplo, de que, ouvidas
ou lidas certas palavras, nos recordamos das coisas e delas formamos
ideias semelhantes àquelas pelas quais imaginamos as coisas (ver Esc. da
Prop. 18 desta parte). Chamarei daqui por diante uma e outra maneira
de contemplar as coisas de conhecimento do primeiro gênero, opinião
ou imaginação. iiiº Finalmente, porque temos noções comuns e ideias
adequadas das propriedades das coisas (ver Corol. da Prop. 38 e Prop. 39
com seu Corol. e Prop. 40 desta parte); e a isto chamarei de razão e conhe-
cimento do segundo gênero. (espinosa, 2015a, p. 201).

Ao analisar esse escólio, Pierre Macherey sublinha que a primeira manei-


ra que temos de abordar a realidade é através da percepção sensível. Contudo,
como demonstra o corolário da Ética ii, p29, as ideias que a mente produz a
partir da percepção das coisas na “ordem comum da natureza” não podem ser
adequadas. 13 Conhecer por experiência vaga é ter ideias mutiladas e confusas,
ideias desordenadas e em estado bruto, é a maneira de representar a realida-
de praticada espontaneamente pelos homens, “sem sequer pensar” (mache-
rey, 1997, p. 312-3). Já a segunda maneira de formar noções universais insere
um elemento intermediário entre a realidade e o homem. O signo introduz
uma nova camada entre mente e mundo, uma vez que a palavra ouvida já é

13 Espinosa distingue duas ordens de conhecimento, a ordem comum da natureza


e a ordem necessária da natureza, que é concebida pelo intelecto. Para um estudo mais
detalhado sobre as duas ordens cf. rodrigues, 2020.

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 311


uma interpretação do real. Sendo assim, o dado bruto oferecido de maneira
desordenada pela experiência vaga parece, segundo Macherey, receber algum
tipo de ordenação através do hábito e da tradição. A cadeia de transmissão de
informações se torna mais longa e complexa com o acréscimo dos signos e das
palavras como mediadores. Sendo assim, poderíamos pensar inicialmente que
esse é um conhecimento mais sofisticado do que aquele por experiência vaga,
mas essa aparência não se sustenta por muito tempo. Recorrendo ao escólio da
proposição 18 da Ética ii, Macherey demonstra que não há nenhuma diferença
fundamental entre essas duas maneiras de formar universais:

Mas o escólio da proposição 18, que explicou como se estabelece esse dis-
positivo imaginário com o qual as ideias, em vez de se darem em uma
sucessão de instantes independentes uns dos outros, se desenvolvem em
um cenário de repetição ao longo de séries temporais contínuas onde elas
parecem interligadas, mostrou também que esses conhecimentos, mui-
to mais elaborados e sofisticados do que aqueles que são fornecidos pela
experiência bruta, e que dependem de um aprendizado longo e complexo,
entretanto não diferem no fundo daqueles que nos são dados de imediato
sem passar por esses retransmissores interpretativos, pois os dispositivos
que os produzem trabalham sobre as representações imaginárias, materi-
ais brutos elaborados pela percepção, sem lhes retirar seu caráter acidental
próprio às ideias inadequadas. A observação foi feita quando se comentou
o escólio da proposição 18: para a percepção e suas representações imag-
inárias não há nada além dos signos e dos signos de signos, sem que nada
venha interromper essa cadeia de significações, de maneira a fixá-la dis-
tintamente sobre uma só coisa precisamente determinada pelas condições
de sua própria natureza; no mundo da imaginação há lugar somente para
as interpretações mais ou menos trabalhadas e elaboradas. Isto quer diz-
er que, não mais que no caso precedente, nós não lidamos com as rep-
resentações obedecendo a uma ordem indo no sentido do intelecto.
(macherey, 1997, p. 313)

Esse substrato de representações imaginárias e inadequadas que é compar-

312 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


tilhado pela experiência vaga e pelos signos faz com que Espinosa classifique
ambos como conhecimentos do primeiro gênero, i.e., opinião ou imaginação.
Mas ainda que esse gênero seja o único que dá origem à falsidade, não há como
excluí-lo da realidade humana.14 Os homens são seres sensíveis e, portanto,
vão sempre necessariamente produzir imagens das coisas. Há, contudo, dois
outros gêneros de conhecimento que permitem distinguir o verdadeiro do fal-
so. O primeiro dentre eles, e o único que nos interessa neste momento, é for-
mado a partir de “noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coi-
sas” e é chamado por Espinosa de razão, ou conhecimento do segundo gênero.

No conhecimento imaginativo, adverte Chaui, a mente percebe a si mes-


ma e ao corpo como entidades isoladas das demais coisas – como um império
num império. Essa percepção inadequada do corpo e da mente impede que se
veja a ordem e conexão necessária entre as coisas – algo que fora demonstra-
do ao longo da Ética i.15 O conhecimento imaginativo é o conhecimento da
ordem comum da natureza, ou seja, é um conhecimento fragmentado e des-
contínuo, um conhecimento das concatenações fortuitas, um conhecimento
que introduz o contingente na ordem da natureza. “Assim, a primeira tare-
fa da dedução da adequação consistirá em encontrar vínculos pelos quais o
corpo e a mente possam ser percebidos como partes de um todo em simultâ-
neo com outras partes” (chaui, 2016, p. 234). Somente dessa maneira, através
do conhecimento das propriedades comuns, é possível se afastar da abstração
imaginativa e ir em direção à compreensão da ordem necessária da natureza.
Quem executa essa tarefa é a razão, visto que ela é o conhecimento adequado
do que há em comum entre as partes e o todo, ou, nas palavras de Chaui, ela
é o conhecimento adequado do universal fundado ontologicamente nas pro-
priedades comuns às coisas.16

14 Para melhor compreender o que Espinosa quer dizer com falsidade cf. espinosa,
2015a, pp. 165-169 e pp. 189-91.
15 “Por nenhum outro motivo uma coisa é dita contingente senão com relação a um
defeito de nosso conhecimento.” (espinosa, 2015a, p. 103)
16 “Dessa maneira, podemos determinar a diferença entre a percepção da parte pela

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 313


Tanto o conhecimento de primeiro quanto o de segundo gênero seguem
necessariamente da natureza do homem. Todavia, imaginação e razão são fun-
damentalmente diferentes. Sob certa perspectiva acerca da formação de uni-
versais, é possível afirmar, como faz Chaui, que tal diferença não é de obje-
to, uma vez que os universais abstratos formados pela imaginação e as noções
comuns inteligidas pela razão têm por objeto as relações entre as afecções cor-
porais.17 Nesse sentido, a diferença entre um conhecimento e outro diz respei-
to à gênese de cada um:

Enquanto os universais abstratos se originam necessariamente da mente


externamente determinada, submetida passivamente à multiplicidade
confusa das ideias das afecções corporais, as noções comuns necessar-
iamente dependem de que ela esteja internamente disposta, e, por sua
atividade interna, conheça a causa das concordâncias e diferenças entre
as coisas (chaui, 2016, p. 240).

Essa pequena digressão pela Ética ii nos permite voltar à reflexão polí-
tica e abordar a pergunta que fizemos anteriormente com mais subsídios
conceituais. Pois bem, pode a experiência dos políticos ser um guia segu-
ro? A resposta de Espinosa é negativa. Ainda que tenham escrito sobre polí-
tica de maneira mais feliz que os filósofos, é notável que na descrição espi-
nosana o conhecimento dos políticos provém da ocasião e do acaso, dan-
do a entender que ele seria um conhecimento do primeiro gênero, não do

imaginação e pela razão: a primeira a percebe como independente e separada de outras,


tomando-a abstratamente como pars partialis, isolada das demais, e busca unificá-las em
imagens universais; a razão apanha a parte como conexão necessária com outras de mesmas
propriedades ou como pars communis” (chaui, 2016, pp. 237-8).
17 Sob outra perspectiva, no entanto, é possível, sim, falar em uma diferença de objeto,
visto que o conhecimento do primeiro gênero se funda, ainda que inadequadamente, em
ideias de singulares, enquanto a razão é o conhecimento adequado das noções comuns.

314 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


segundo. Os políticos são descritos como produtores de um conhecimen-
to passivo, externamente determinado, que parte de ideias confusas, muti-
ladas e desordenadas. A experiência é sem dúvida condição necessária para
a reflexão política. Porém, como aponta Negri, a observação e descrição
da práxis humana não é suficiente, ela deve vir acompanhada de um méto-
do “certo e incontestável”; só assim a investigação filosófica poderá prosse-
guir com segurança (negri, 2017, pp. 31-32). Tal método, como já sabemos,
é semelhante ao que fora utilizado por Espinosa na Ética, isto é, o método da
geometria:

Quando, por conseguinte, apliquei o ânimo à política, não pretendi


demonstrar com razões certas e indubitáveis, ou deduzir da própria
condição da natureza humana, algo que seja novo ou jamais ouvido,
mas só aquilo que mais de acordo está com a prática. E para investigar
aquilo que respeita a esta ciência com a mesma liberdade de ânimo que
é costume nas coisas matemáticas, procurei escrupulosamente não rir,
não chorar, nem detestar as ações humanas, mas entendê-las (espinosa,
2009, pp. 7-8).

A experiência serve de baliza e não se deve buscar nada que não esteja de
acordo com ela – eis o erro dos filósofos, produzir um modelo humano ide-
al que não encontra lastro algum na experiência real. Mas, considerada em
si mesma, a experiência é o reino do acaso, da fortuna, da contingência e do
acúmulo desordenado de imagens. Por conseguinte, o conhecimento basea-
do na só experiência é um conhecimento que erra, em ambos os sentidos que
a palavra sugere. Erra porque é passível de conter falsidade, uma vez que é um
conhecimento que se funda em ideias inadequadas; mas também erra porque
não enxerga o nexo causal necessário entre as coisas da natureza e, portan-
to, vaga indiscriminadamente de uma ideia para outra, ao acaso e sem cami-
nho certo, estabelecendo vínculos imaginários entre as ideias produzidas na
mente.

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 315


Entretanto, temos de fazer uma ressalva antes de prosseguir. Como
demonstra Chaui, nem toda experiência é errante na obra de Espinosa. Há
também a experiência que ensina – denominada pela autora como experientia
docens, em contraposição à experientia vaga. A diferença entre as duas tam-
bém não é de objeto, afirma a comentadora, mas de modus operandi. Enquan-
to a experiência vaga constrói universais abstratos de forma errática para se
livrar das singularidades, a experientia docens “suscita a necessidade de alcan-
çar certas essências das coisas a partir das existências de certas coisas singu-
lares.” Os exemplos utilizados para explicar esse segundo tipo de experiência
são dois: 1) a percepção do sol como sendo menor do que a terra, bem como
a da alteração de tamanho das coisas quando são vistas de longe ou de per-
to, suscitam na mente a busca da essência da visão; 2) a percepção da exis-
tência de cidades e das diferentes formas de repúblicas nos levanta questio-
namentos acerca de suas causas. Assim sendo, podemos compreender melhor
“qual o lugar, a função e o limite da experiência” no percurso argumentativo
do tp.18

O que o Tratado Político explicita logo de início, em conjunto com o que


fora escrito na Ética, é que para produzir um conhecimento e um discurso
seguros a respeito da política é necessário articular, metodicamente, experiên-
cia e razão. Dessa forma, ainda que Espinosa rejeite diversas vezes a intenção
de deduzir algo inédito sobre a condição humana, é possível sugerir, como faz
Chaui, que seu discurso é completamente novo (chaui, 2003, p. 161). Não
porque desvela algo jamais visto acerca da natureza do homem, mas porque

18 “Lugar: conhecimento de singularidades mutáveis existentes na duração cuja essência


não envolve existência necessária ou dedutível de sua simples definição, uma vez que
para aquelas coisas cuja essência envolve existência o intelecto é suficiente para sozinho
conhecê-las. Função: incitar o intelecto a investigar algo determinado cujas causas é preciso
buscar. Limite: não é capaz de oferecer provas do verdadeiro nem do falso e não pode
convencer o intelecto de que é falso aquilo que ele conhece clara e distintamente. Essas
determinações da experiência são exatamente as que encontramos no decorrer do Tratado
Político” (chaui, 2003, p. 221).

316 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


introduz ordem na experiência sensível através da articulação entre os conhe-
cimentos do primeiro e segundo gêneros.

Há ainda outro fator da maneira espinosana de abordar a política que vale


ser mencionado. Como nós mostramos no início deste texto através do exem-
plo da inversão sintática latina, os afetos ocupam uma posição de destaque no
Tratado Político. Essa posição é manifestamente verificável pelo teor da críti-
ca feita aos filósofos no primeiro parágrafo. A saber, a vida humana compor-
ta necessariamente uma dimensão afetiva e ignorar, ou rejeitar, tal dimensão
impede a concepção de um pensamento político aplicável. No quarto pará-
grafo, no entanto, é acrescentada uma nova camada ao tema da afetividade,
ampliando assim sua espessura. Após anunciar que se guiará apenas pelo que
está mais de acordo com a prática, Espinosa demonstra a intenção de investigar
as questões referentes à política “com a mesma liberdade do ânimo que é costu-
me nas coisas matemáticas”. Posteriormente, no parágrafo sexto desse mesmo
capítulo, o filósofo equipara a liberdade do ânimo à fortaleza (fortitudo). Essa
equiparação indica que há um elemento afetivo que orienta a própria análise
espinosana, pois, se nós voltarmos à Ética iii, veremos que a fortaleza é o afeto
próprio à razão.19 Sendo assim, os afetos não ocupariam apenas uma posição
central enquanto objeto de estudo, mas acompanhariam a própria análise. A
abordagem espinosana não pode de maneira alguma ser passional, mas ela não
se furta à afetividade própria da “Mente enquanto entende”.

Ora, do que vimos até agora segue-se necessariamente que uma investi-
gação sobre a política fundada conjuntamente na experiência e na razão não
pode, diante das ações e dos afetos humanos, pôr-se a rir, a chorar, ou a consi-

19 “Todas as ações que seguem dos afetos referidos à Mente enquanto entende eu refiro à
Fortaleza, que distingo em Firmeza e Generosidade. Pois por Firmeza entendo o Desejo pelo
qual cada um se esforça para conservar seu ser pelo só ditame da razão. Por Generosidade
entendo o Desejo pelo qual cada um se esforça para favorecer os outros homens e uni-los a
si por amizade pelo só ditame da razão. Assim, as ações que visam só ao útil do agente refiro
à Firmeza, e as que visam também ao útil do outro, à Generosidade” (espinosa, 2015a,
p. 335).

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 317


derá-los como detestáveis; a única atitude coerente nesse caso é a de procurar
entendê-los. A experiência afirma a existência e amplitude da vida afetiva, que
comporta tanto afetos alegres, quanto afetos tristes. Espinosa evidencia isso ao
declarar que encarará o amor e a glória da mesma maneira que o ódio, a ira e a
inveja. Já a razão, ao fazer-nos conhecer a ordem necessária da natureza, impli-
ca que nenhum afeto seja considerado como um vício, mas sim como uma pro-
priedade pertencente à natureza humana.

Esse último ponto nos permite fazer outra observação acerca das figuras
que abrem o tratado. Inicialmente afirmamos que o político é introduzido no
texto em oposição ao filósofo, e que essa oposição se dá através do contras-
te entre o que efetivamente é e o que deve ser. O argumento da experiência
demonstra, portanto, em que medida filósofo e político se distanciam em seus
respectivos métodos de abordagem do fenômeno político. Há, contudo, um
elemento em comum entre os dois: ambos trabalham com a categoria de vícios.
Os filósofos concebem os afetos como vícios, afirma Espinosa. Já os políticos,
a experiência lhes ensinou que enquanto houver homens haverá vícios. Ora,
o método espinosano, que se funda conjuntamente na experiência e na razão,
impede que se considere características próprias ao homem como desvios de
natureza, isto é, como vícios. Os primeiros parágrafos do tratado trabalham,
portanto, com duas oposições. Uma oposição se dá entre filósofos e políticos,
a outra se dá entre essas duas figuras e o próprio projeto espinosano.

Isso posto, podemos agora compreender o escopo do projeto espinosano


no Tratado Político. Desde o Tratado da Emenda do Intelecto Espinosa afir-
ma que conhecer verdadeiramente é conhecer as coisas por suas causas pri-
meiras (espinosa, 2015b, p. 69). Essa máxima, vimos anteriormente, orienta
também o percurso expositivo do tp. O objeto da política, portanto, é a sua
gênese – como podemos notar através das análises tanto de Chaui quanto de
Negri. Segundo Chaui, o “discurso político inteiramente novo” de Espinosa
começa por demarcar seu objeto: a “gênese da experiência política” ou, o que
é o mesmo, “o movimento de constituição do sujeito político e da institui-
ção do imperium ou poder político” (chaui, 2003, p. 161). Já Negri joga a

318 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ênfase diretamente para a questão afetiva ao escrever sobre esse mesmo pro-
cedimento genético; para ele o objeto da política é descrito como “a relação
entre o desenvolvimento das cupiditates individuais e o constituir-se da mul-
titudo” (negri, 2017, pp. 31). A bem da verdade, sobre essa questão os dois
comentadores mais concordam do que têm divergências. O que Chaui cha-
ma de sujeito político é a própria multitudo (chaui, 2003, p. 164), cuja gêne-
se deve ser buscada não na razão “e sim no conatus-cupiditas, seja ele racional
ou passional.”20 Tendo isso em vista, não é de espantar que Espinosa recorra
prontamente à Ética para dar início à exposição desse processo de gênese do
político.

É, pois, certo – e na nossa Ética demonstramos ser verdadeiro – que os


homens estão necessariamente sujeitos aos afetos e são constituídos de
tal maneira que se compadecem de quem está mal e invejam quem está
bem; são mais propensos à vingança que ao perdão; e, além disso, cada
um deseja que os outros vivam segundo o engenho dele, aprovem o que
ele próprio aprova e repudiem o que ele próprio repudia (espinosa,
2009, p. 8).

Essa propensão afetiva parece denotar uma disposição particularmente


problemática para o processo de sociabilização. Os homens, por conta de sua
natureza passional, aparentam tender ao dissenso e à desavença. O resultado
desse desejo de ser “o primeiro”, ou seja, de viver conforme seu próprio enge-
nho e fazer com que os outros também o vivam, coloca-os em uma situação
conflituosa e de oposição recíproca. Tendo em vista tal situação, Balibar lança
mão de uma questão interpretativa pertinente, ainda que controversa. Esta-

20 A autora demonstra que a razão não pode ser retirada da equação, pois ainda que
Espinosa deixe claro que a política não é instituída pela razão, nem por isso afirma que ela
é instituída contra a razão. (chaui, 2003, p. 160-161)

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 319


ria Espinosa retomando, em seus próprios termos, “o pessimismo antropológi-
co que a tradição reteve de Maquiavel?” (balibar, 1985, p. 68). O intérprete
francês não responde à pergunta logo que a faz, pois seu percurso argumen-
tativo o obriga a seguir outros caminhos.21 Contudo, independentemente da
resposta, a questão central levantada por Espinosa nessa altura do texto não se
coloca em termos de pessimismo. O recurso à Ética demonstra que o problema
da sociabilidade está diretamente relacionado com a ontologia do necessário.
Em outras palavras, não há juízo de valor moral subjacente à constatação da
propensão humana ao conflito.

Ora, mesmo sem juízo de valor, a natureza passional evidencia um obstá-


culo à vida em conjunto. Tendo isso em vista, Espinosa então cita duas con-
tramedidas que aspiram à moderação dos afetos. A primeira se dá através da
religião, que ao pregar o amor ao próximo e o direito do outro como sendo
igual ao seu próprio tenta fazer frente a essa inclinação ao conflito. No entan-
to, segundo o filósofo, a religião pouco pode perante os afetos humanos –
especialmente no espaço público. A segunda contramedida é aquela feita pela
razão, a qual já tinha sido demonstrada na Ética como sendo capaz de mode-
rar e refrear os afetos. Todavia, também na Ética, Espinosa já havia constatado
que o caminho para atingir tal moderação é extremamente árduo. A metafísica
espinosana demonstra a irrealidade de toda e qualquer tentativa de anular a
afetividade humana e seus efeitos. “Nem ordem teológica, nem ordem racio-
nal, a política é o exercício da ordenação da vida social segundo exigências
imanentes ao próprio social e sem jamais perder de vista os conflitos que inva-
riavelmente atravessam esse social” (santiago, 2019, p. 418). Assim sendo,
Espinosa então conclui o inevitável: se não é possível suprimir a afetividade no
indivíduo, por conseguinte também não é possível suprimi-la em nível coleti-

21 Balibar responde negativamente a essa questão em outro texto: “Quando Espinosa


declarou ser a cupiditas a “própria essência do homem” (e equacionou-a com a virtus)
ele não teve intenção de sustentar visões antropológicas pessimistas sobre o egoísmo
individual, nem teve a intenção de contrastá-las com visões puramente de moral altruísta”
(balibar, 1997, p. 34).

320 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


vo e, portanto, quem acredita poder induzir a multidão a viver exclusivamente
segundo a razão acredita em uma fábula.

Como consequência dessa impossibilidade de uma existência completa-


mente racional, torna-se necessário que o estado (imperium) se organize de
uma maneira tal que impossibilite que aqueles que cuidam da coisa pública
possam agir desonestamente, independente de se conduzirem pela razão ou
pelo afeto. Relegar a manutenção e a estabilidade da res publica a uma virtu-
de privada – por exemplo, à lealdade – é uma atitude temerária. Os afetos
aos quais os homens estão submetidos são flutuantes e, portanto, não podem
ser fonte de estabilidade para o imperium. A solução é o ordenamento da coi-
sa pública de uma forma tal que ela não seja subordinada às oscilações afeti-
vas dos indivíduos. Em termos espinosanos, não importa “para a segurança do
estado, com que ânimos os homens são induzidos a administrar corretamente
as coisas, contanto que as coisas sejam corretamente administradas. A liberda-
de do ânimo, ou fortaleza, é com efeito uma virtude privada, ao passo que a
segurança é a virtude do estado.”22

Após demonstrar essa discrepância entre virtudes individuais e coletivas,


Espinosa encerra o capítulo i do tp verbalizando o objeto da política. A expe-
riência ensina que “todos os homens, sejam bárbaros ou cultos, onde quer que
se juntem formam costumes e um estado civil” (espinosa, 2009, p. 10).23 A
conjunção desse ensinamento com a noção de que o conhecimento verda-
deiro é aquele a respeito das causas primeiras suscita no filósofo a pergunta
acerca da origem de tal situação. Ora, “as causas e fundamentos naturais do
estado” como vimos anteriormente, não podem ser buscadas na simples razão.
Dizer, como dissemos, que o conhecimento de segundo gênero desempenha
um papel importante na construção de um pensamento político seguro não
significa que se deve procurar a gênese da política na própria razão: “de modo

22 tp, 1, §5.
23 Considera-se aqui que estado civil é um sinônimo de situação civil. É importante notar
também que no texto original utiliza-se status nessa passagem, não imperium.

Matheus Romero de Morais p. 299 - 324 321


algum a cidade é uma associação racional”, diria Deleuze.24 Os homens estão
necessariamente sujeitos a afetos, logo, a dedução das “causas e fundamentos
naturais do estado (imperium)” deve ser feita a partir da “natureza ou condi-
ção comum dos homens” (espinosa, 2009, p. 10) – dedução que terá início
somente no capítulo ii.

Desta maneira, considerando que a construção propriamente dita do


núcleo do pensamento político espinosano – isto é, a exposição das causas pri-
meiras da política e de seus efeitos – se inicia somente a partir do segundo
capítulo do Tratado Político, podemos dizer então que o capítulo i do tp fun-
ciona como uma espécie de “introdução metódica”25 ao executar, ao menos,
três tarefas fundamentais: 1) limpeza do terreno de investigação, com a recusa
das figuras do filósofo e do político; 2) exposição – ainda que por vezes bre-
ve – de alguns conceitos centrais para o desenvolvimento da obra, como os de
afetividade e condição comum dos homens e 3) delimitação dos parâmetros
investigativos, ao colocar em questão a articulação entre experiência, razão e
método.

24 deleuze, 2017, p. 295.


25 negri, 2017, pp. 31.

322 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


POLITICAL INVESTIGATION: A METHOD’S QUESTION

abstract: The article aims to discuss the introductory function of the first
chapter of Spinoza’s Political Treatise. To this end, we will emphasize some
of the fundamental aspects in the text’s argumentative movement, such as
the central role played by the affects in political reasoning and the need for a
method of investigation which articulates experience and reason.
keywords: affections; method; experience; reason; politics;
Spinoza

referências bibliográficas
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de France.
___________. (1997) Spinoza: from Individuality to Transindividuality. Ebu-
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Tardin Cardoso e Paulo Sérgio Vasconcellos. São Paulo: Odysseus Editora.
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Editora Filosófica Politeia.
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da imaginação. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n. 42, pp. 237-252, 2020.
santiago, h. (2019) Entre Servidão e Liberdade. São Paulo: Editora Filosó-
fica Politeia.

324 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


TRADUÇÃO

excerto de uma carta escrita da batávia nas índias orien-


tais, de 27 de novembro de 1684, extraído de uma carta do sr.
fontenelle recebida em roterdã pelo sr. basnage.

Flavio Fontenelle Loque


Professor, Universidade Federal de Lavras, Minas Gerais, Brasil
flavioloque@yahoo.com

tradução

introdução
A revogação do Edito de Nantes por Luís xiv, ocorrida em outubro de
1685, é um marco na história da intolerância na França, embora a política dis-
criminatória contra os protestantes lhe seja anterior. Bastante apoiada pelos
católicos, notadamente nos discursos oficiais, essa política foi criticada por
Bernard de Fontenelle (1657-1757), homem de letras que então desfrutava de
grande notoriedade. Valendo-se de anagramas para Solima (antigo nome de
Jerusalém), Roma e Genebra, Fontenelle compôs uma alegoria dos conflitos
religiosos na França sob a forma de um relato de viagem em que descreve a
situação política na ilha de Bornéu.1 Mais precisamente, Fontenelle se concen-
tra na sucessão real após a morte de Mlisao e nas guerras daí decorrentes entre

1 Sobre a possibilidade de o relato ter sido escrito por Fontenelle em parceria com
Catherine Bernard (c. 1663-1712) ou exclusivamente por Bernard, veja-se a introdução a
Fontenelle (2021, pp. 16-18).

tradução p. 325 - 336 325


os partidários de Mrao e Eenagbr. O relato se encontra num excerto de uma
suposta carta enviada da Batávia (hoje, Jacarta) e que, repassado por Fontenel-
le a Jacques Basnage (1653-1723), foi publicado por Pierre Bayle (1647-1706)
no artigo x da edição referente a janeiro de 1686 das Nouvelles de la République
des Lettres. Ficcionalmente datada de 27 de novembro de 1684, a suposta carta
foi escrita em data incerta logo após a revogação do Edito de Nantes.2
Quando da publicação, Bayle não se deu conta de que se tratava de uma
alegoria e mencionou o nome de Fontenelle. Anos depois, em carta a Pierre
Des Maizeaux (1666-1745) de 17 de outubro de 1704, lamentou o ocorrido,
consciente de que a menção colocara Fontenelle em risco, mas observou que
ninguém na Holanda se dera conta da alegoria, o que só ocorreu quando reve-
lado por Basnage e outros refugiados de Rouen emigrados para Roterdã.3 Fon-
tenelle, contudo, não chegou a sofrer retaliações, pois teve a oportunidade de
se retratar junto à Coroa ao colaborar, em dezembro de 1686, num panegírico
a Luís xiv traduzindo versos do jesuíta Gabriel-François Le Jay (1657-1734) do
latim para o francês,4 conforme afirma Prosper Marchand (1678-1756) numa
de suas observações à carta de Bayle a Des Maizeaux mencionada há pouco
(bayle, 1714, p. 858-859, n. 8).

2 Sobre Fontenelle, o relato da ilha de Bornéu e a perseguição aos protestantes, além da


introdução a Fontenelle (2021), veja-se Adams (1991, pp. 25-27) e Pomeau (1988, p. 195).
3 Na Correspondência de Pierre Bayle, trata-se da carta 1643: “Eu ignorava por completo
o sentido oculto na carta que inseri na République des Lettres e ninguém nesse país, nem
mesmo o Sr. Jurieu [Pierre Jurieu (1637-1713)], nem sua esposa [Hélène Du Moulin
(1644-1720)], adivinhou o que esta queria dizer; nós só soubemos quando o Sr. Basnage e
outras pessoas de Rouen se refugiaram e nos ensinaram o que estava em jogo. Descobrimos
então como teria sido fácil descobrir o mistério, mas, quando não se suspeita que haja
mistério numa coisa, nada se busca e, por conseguinte, por mais fácil que seja desvendá-
lo, não se o desvenda.” Carta disponível em: http://bayle-correspondance.univ-st-etienne.
fr/?Bayle17041017-Lettre-Pierre-Bayle&lang=fr Acesso em: 19 de maio de 2022.
4 O panegírico resultou em duas publicações em 1687, ambas idênticas, mas feitas por
diferentes editores (cf. Le Jay, 1687a e 1687b). As duas informam na Advertência ao Leitor
que “a tradução dos versos latinos é do autor dos Diálogos dos Mortos, o que deve bastar para
que seja estimada” (em nenhuma das edições a Advertência está paginada).

326 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


A tradução a seguir contém todo o artigo x da edição referente a janeiro
de 1686 das Nouvelles de la République des Lettres e foi elaborada com base no
texto presente na edição original (bayle, 1686a), o qual foi cotejado com sua
segunda edição (bayle, 1686b), com sua reprodução nas Œuvres Diverses de
Pierre Bayle (bayle, 1737a) e com sua recente edição nas Œuvres Complètes de
Fontenelle (fontenelle, 2021). Assim como no original, o relato se encon-
tra em itálico. As notas de rodapé buscam fornecer informações sobre os per-
sonagens citados, além de apresentar uma breve proposta de interpretação dos
pontos centrais da alegoria. Em parte, as notas se valem das anotações presen-
tes em Fontenelle (2021 e 1788). Por fim, convém registrar que o núcleo do
artigo x, o Excerto de uma carta..., com frequência é publicado independente-
mente, desde o início do século xix, com o título Relato sobre a ilha de Bornéu.

tradução p. 325 - 336 327


Article x1

Par l’usage de tous les Journalistes des Sçavans, & par la déclaration que nous
en fîmes dans notre premiére Préface, les raretez des Indes sont du ressort de
ces Nouvelles. Or par ce terme de raretez il faut entendre non seulement ce qui
se rapporte aux choses inanimées, aux plantes & aux bêtes, mais aussi ce qui se
rapporte à l’homme, soit pour la constitution du corps, soit pour le goût de l’es-
prit. C’est sous cette derniére vûë que nous pourrons adopter l’Extrait d’une
Lettre écrite de Batavia, touchant une guerre civile qui s’est élevée dans l’Isle de
Borneo. C’est en quelque façon un Phénoméne Physique, puis qu’il est fondé
sur des goûts & sur des modifications singuliéres d’ame.2 Voyons de quoi il s’agit.

Extrait d’une Lettre écrite de Batavia dans les Indes Orientales, le 27. No-
vembre 1684. contenu dans une Lettre de M. de Fontenelles, reçûë à Rot-
terdam par M. Bânage.

Vous sçavez que dans l’Isle de Borneo dont nous sommes voisins, il n’y a que les
femmes qui puissent avoir la Royauté. Ces Peuples-là sont si jaloux d’être gouver-
nez par des personnes qui soient veritablement du Sang Royal, & ils ont une telle
opinion de la fragilité des femmes, qu’il leur faut toûjours une Reine dont les enfans
lui appartiennent incontestablement, & pour plus grande sûreté, les Principaux du
Païs doivent être presens aux accouchemens des Reines. Il y a quelques années que la
Reine nommée Mliséo mourut, & sa Fille Mréo lui succeda reconnuë d’abord dans
toute l’Isle sans difficulté. Les commencemens de son régne furent assez goûtez par
ses Sujets, mais ensuite les nouveautez qu’elle introduisit peu à peu dans le Gouver-
nement, firent murmurer. Mréo vouloit que tous ses Ministres fussent Eunuques,
condition trés-dure, & qu’on n’avoit point jusqu’alors imposée, & cependant elle

328 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


Artigo x

Pelo costume de todos os jornalistas dos eruditos e pela declaração que fize-
mos em nosso primeiro prefácio,4 as raridades das Índias são da alçada dessas
Nouvelles. Ora, pelo termo ‘raridade’, é preciso entender não somente o que
diz respeito às coisas inanimadas, às plantas e aos animais, mas também o que
diz respeito ao ser humano, seja quanto à constituição do corpo, seja quanto
ao gosto do espírito. É desse último ponto de vista que poderemos acolher o
Excerto de uma Carta escrita da Batávia acerca de uma guerra civil que eclodiu
na Ilha de Bornéu. De certa forma, ela é um fenômeno físico, pois se funda nos
gostos e nas modificações singulares da alma. Vejamos do que se trata.

Excerto de uma Carta escrita da Batávia nas Índias Orientais, de 27 de no-


vembro de 1684, extraído de uma carta do Sr. Fontenelle recebida em Roterdã
pelo Sr. Basnage.

[História alegórica de uma guerra civil na Ilha de Bornéu.]5 Vós sabeis que
na ilha de Bornéu, da qual somos vizinhos,6 somente as mulheres podem assumir
a realeza. Esses povos são tão ciosos de ser governados por pessoas que verdadei-
ramente possuam o sangue real e têm uma tal opinião acerca da fragilidade das
mulheres que, para eles, é necessário sempre ter uma rainha cujos filhos lhe perten-
çam incontestavelmente;7 e, para maior segurança, as pessoas mais importantes
do país devem estar presentes nos partos reais. Há alguns anos a rainha chamada
Mlisao morreu e sua filha Mrao a sucedeu, aclamada inicialmente em toda a ilha
sem dificuldade. As primícias de seu reino foram bastante apreciadas por seus
súditos, mas, em seguida, as novidades que pouco a pouco introduziu no governo
causaram murmúrio. Mrao queria que todos os seus ministros fossem eunucos,8
condição muito dura e que até então nunca havia sido imposta e, entretanto, ela

tradução p. 325 - 336 329


ne les faisoit mutiler que d’une certaine façon qui n’empêchoit pas les maris de se
plaindre encore d’eux. C’est la coûtume que les Reines donnent à certains jours
des festins publics à leurs Sujets. Mréo en avoit retranché la moitié de ce que don-
noient les autres Reines; bien plus, le pain étoit sous son régne d’un prix excessif
dans toute l’Isle, & l’on ne sçavoit ce qu’il étoit devenu, si ce n’est qu’on accusoit de
certains Magiciens qu’elle avoit à ses gages de le faire périr avec des paroles. On se
plaignoit beaucoup encore de quelques prisons nouvellement bâties où elle faisoit
jetter les criminels, & d’où elle les tiroit pour de l’argent, ce qui avoit considera-
blement augmenté ses revenus. Mais rien ne choquoit plus les habitans de Borneo
que la sale des cadavres qui étoit dans le Palais de la Reine, quoiqu’à dire le vrai
ce ne fût pas là un mal bien réel pour des Sujets. Elle faisoit embaumer les corps
de ses Favoris lorsqu’ils mouroient, on les arrangeoit dans cette salle en grande
cérémonie, & il faloit qu’on leur rendît ses respects avant que d’entrer dans l’ap-
partement de Mréo. Il y avoit des esprits naturellement fiers & indépendans qui
ne s’y pouvoient résoudre. Les Peuples de l’Isle étoient donc dans ces mauvaises
dispositions à l’égard du Gouvernement, lorsque voici une nouvelle Reine qui se
presente, qui prétend être Fille de Mliséo, & déposseder Mréo. Elle commence par
abolir toutes les nouveautéz dont on se plaignoit, point d’Eunuques chez elle,
point de Magiciens qui fassent encherir le pain, point de salle pour les cadavres,
point de prisons que selon l’ancien ordre, point de festins imparfaits. J’avois ou-
blié de vous dire que les Peuples de Borneo sont dans l’opinion que les enfans
légitimes doivent ressembler à leurs parens. Eénegu, c’étoit le nom de la nouvelle
Princesse, ressembloit parfaitement à la feue Reine Mliséo, au lieu que Mréo n’en
avoit presque pas un trait, aussi avoit-on remarqué que Mréo n’aimoit point trop
à se laisser voir en public; on dit même qu’elle supprimoit autant qu’il lui étoit
possible, les portraits de Mliséo. Eénegu tout au contraire les conservoit de tout son
pouvoir, & faisoit extrémement valoir sa ressamblance. Mréo avoit aussi de son
côté un grand avantage, c’est qu’il étoit constant qu’elle étoit née de Mliséo, du
moins par le rapport des Seigneurs qui avoient dû en être témoins, & ces Seigneurs

330 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


fazia com que fossem mutilados somente de uma certa maneira, a qual não impe-
dia os maridos de ainda se queixarem deles. É costume que as rainhas realizem,
em certos dias, festas públicas para seus súditos. Mrao havia suprimido a metade
do que as outras rainhas davam;9 além disso, o pão em seu reinado estava com um
preço excessivo em toda a ilha e não se sabia o que havia acontecido, a não ser que
se acusavam certos magos que ela tinha sob seu serviço de fazê-lo desaparecer com
palavras.10 Havia ainda muitas queixas acerca das prisões recentemente construí-
das nas quais ela fazia com que os criminosos fossem lançados e das quais os tirava
por dinheiro, o que havia feito aumentar consideravelmente seus rendimentos.11
Contudo, nada chocava mais os habitantes de Bornéu do que a sala dos cadáve-
res,12 que ficava no palácio da Rainha, embora, para dizer a verdade, esse não
fosse um mal muito grave para os súditos. Ela mandava embalsamar os corpos
dos seus favoritos quando morriam, os quais eram postos nessa sala com grande
cerimônia, sendo necessário prestar-lhes as deferências antes de entrar no aposento
de Mrao. Havia espíritos naturalmente altivos e independentes que não podiam
admitir isso. Os povos da ilha estavam então maldispostos com o governo quando
uma nova rainha se apresentou alegando ser a filha de Mlisao e pretendendo de-
por Mrao. Ela começou abolindo todas as novidades de que havia queixas: nada
de eunucos junto a ela, nada de magos que encareciam o pão, nada de sala para
os cadáveres, nada de prisões exceto segundo a antiga ordem, nada de festas im-
perfeitas. Esqueci-me de vos dizer que os povos de Bornéu são da opinião de que
os filhos legítimos devem parecer com seus pais. Eenagbr, esse era o nome da nova
princesa, parecia perfeitamente com a falecida rainha Mlisao, ao passo que Mrao
não possuía quase nenhum traço dela. Assim, observou-se que Mrao não gostava
muito de ser vista em público, dizia-se inclusive que ela suprimia, tanto quanto
lhe era possível, os retratos de Mliaso.13 Eenagbr, ao contrário, conservava-os com
todo seu poder e fazia o máximo para valorizar sua semelhança. Mrao tinha tam-
bém, do seu lado, uma grande vantagem, é que era certo que nascera de Mlisao,
ao menos pelo relato dos senhores que tiveram de ser testemunhas, e esses senhores

tradução p. 325 - 336 331


n’avoient point vû naître Eénegu. Il est vrai qu’Eénegu prétendoit qu’ils avoient
été corrompus, ce qui n’étoit gueres vraisemblable. Elle contoit aussi une histoire
de sa naissance par laquelle elle se trouvoit Fille légitime de Mliséo, mais c’étoit
une histoire presque incroyable, & pareille à peu prés à celle du Comte de S. Ge-
ran dont on a tant parlé dans notre Europe. Cependant la contestation de ces
deux Reines a partagé toute l’Isle, & y a allumé la guerre de toutes parts. Les
uns tiennent pour la ressemblance contre la certitude de la naissance, les autres
pour la certitude de la naissance contre la ressemblance. Il s’est donné beaucoup
de batailles trés-sanglantes, & aucun des deux partis n’a encore tout à fait ruiné
l’autre. On croit pourtant que Mréo l’emportera. Il n’y a pas long-temps qu’elle
a surpris dans des endroits fort difficiles une partie de l’Armée d’Eénegu, & en a
exigé le serment de fidelité. Si son parti n’en est pas extrêmement fortifié, parce
que ses soldats ne combattent pas trop volontiers sous ses enseignes, du moins celui
d’Eénegu en est fort affoibli. J’aurai soin de vous apprendre l’année prochaine le
succés de cette guerre, puisque vous aimez assez l’histoire pour ne pas négliger celle
de ces Pais barbares, dont les mœurs & les coûtumes sont si étranges.

Ce M. de Fontenelles qui a écrit ce qu’on vient de voir est un digne neveu de


Messieurs Corneille. Il s’est d’abord attaché à la Poësie, & a composé plusieurs
Piéces d’un goût delicat. On en a inseré plusieurs dans le Mercure Galant. Il a
fait aussi les Nouveaux Dialogues des Morts qu’on a tant loüez. Il semble pre-
sentement regarder comme au dessous de lui ce qui s’appelle productions de
bel esprit, car il s’attache tout entier aux Mathématiques & à la Métaphysique.
C’est de lui que viennent les deux questions d’Arithmétique sur le nombre 9.
qui ont été inserées dans les mois de Septembre & de Novembre 1685. S’il fait
autant de progrés en Métaphysique, que nous voyons qu’il en a fait en Piéces
Galantes & en Mathématiques, il excellera en trois choses qui pour l’ordinaire
demandent trois tours d’ame entiéremens differens.

332 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


não haviam visto Eenagbr nascer. É verdade que Eenagbr alegava que eles ha-
viam sido corrompidos, o que não era verossímil. Ela também contava uma his-
tória de seu nascimento pela qual se dizia filha legítima de Mlisao, mas era uma
história praticamente inacreditável e um pouco parecida com aquela do Conde de
S. Geran,14 de que tanto se falou em nossa Europa. Entretanto, a disputa dessas
duas rainhas dividiu toda a ilha e acendeu a guerra em toda parte. Uns ficam
com a semelhança contra a certeza do nascimento, outros com a certeza do nasci-
mento contra a semelhança. Deram-se muitas batalhas bastante sangrentas e, até
o momento, nenhum dos dois partidos arruinou completamente o outro. Crê-se,
todavia, que Mrao prevalecerá. Não faz muito tempo que ela surpreendeu uma
parte do exército de Eenagbr em lugares muito difíceis e exigiu o juramento de fi-
delidade. Se seu partido não se encontra no máximo da força, já que seus soldados
não combatem muito voluntariamente sob suas insígnias, ao menos o de Eenagbr
está bastante enfraquecido.15 Cuidarei de vos informar, no próximo ano, o que se
sucedeu nessa guerra, pois amais a história o suficiente para não negligenciar a
desses países bárbaros cujos modos e costumes são tão estranhos.

[Elogio do Sr. Fontenelle.] O Sr. Fontenelle, que escreveu o que acabamos


de ler, é um digno sobrinho de Corneille.16 Inicialmente, ele se dedicou à poe-
sia e compôs várias peças de gosto delicado. Várias foram inseridas no Mercu-
re Galant.17 Ele também fez os Novos Diálogos dos Mortos,18 que tanto foram
louvados. Atualmente, ele parece ver como inferiores a si mesmo as chamadas
produções de belo espírito, pois se dedica inteiramente à matemática e à meta-
física. É dele que provêm as duas questões de aritmética sobre o número nove
inseridas nos meses de setembro e novembro de 1685.19 Se fizer progressos em
metafísica como os que vemos ter feito nas peças galantes e nas matemáticas,
ele sobressairá em três coisas que comumente demandam três talentos de alma
inteiramente diferentes.20

tradução p. 325 - 336 333


notas de tradução
1--A reprodução do texto em francês mantém a ortografia, a acentuação e a
pontuação do original.
2--Em Fontenelle (2021, p. 29), lê-se d’air, mas nas duas primeiras edições
das Nouvelles (Bayle, 1686a, p. 86 e 1686b, p. 88), assim como nas Œuvres
Diverses (bayle, 1737a, p. 47a), lê-se d’ame.
3--Em Fontenelle (2021, p. 33), essa última frase não consta do texto. Sua exclu-
são não foi justificada.
4--Referência ao prefácio de Bayle (1737a, pp. 1a-3b) ao primeiro número das
Nouvelles.
5--O editor das Œuvres Diverses acrescentou ao texto alguns títulos marginais,
os quais foram aqui incorporados à tradução em itálico e entre colchetes.
6--Como o relato foi supostamente enviado da Batávia (hoje, Jacarta), seu
autor se encontra na ilha de Java, a qual está ao sul da ilha de Bornéu.
7--Hourcade e Pouloin (fontenelle, 2021, p. 25-26) consideram que uma
possível origem dessa ficção encontra-se no Journal des Sçavans de 5 de feve-
reiro de 1680, no qual se relata, com base numa carta escrita da Batávia, que
na ilha de Bornéu o governo cabia às mulheres, mas destacam que foi em
Achém, no norte da ilha de Sumatra, que houve um governo de mulheres,
quando de 1641 a 1688 o trono foi ocupado consecutivamente por quatro
rainhas. Ainda no que se refere à ginecocracia, Hourcade e Pouloin (fon-
tenelle, 2021, p. 25, n. 42) observam que a noção de soberania feminina
é abordada na tragédia Laodamie, de Bernard.
8--Alusão ao celibato.
9--A supressão do que era dado nas festas públicas remete à comunhão em que
não se oferta o vinho, somente o pão.
10--Alusão à transubstanciação.
11--Alusão ao purgatório e às indulgências.

334 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


12--Alusão ao culto de relíquias.
13--Alusão à proibição de traduzir a Bíblia para línguas vernáculas.
14--Bernard de La Guiche, Conde de Saint Geran (1641-1696), cuja filiação,
segundo Anselme (1733, p. 446), foi reconhecida depois de um processo
judicial concluído em 29 de julho de 1663. Apresentando outras fontes,
Hourcade e Pouloin (fontenelle, 2021, p. 32, n. 13) afirmam que o pro-
cesso se concluiu em 5 de junho de 1666.
15--Alusão ao decréscimo no número de protestantes em razão das conversões
forçadas e do exílio.
16--Pierre Corneille (1606-1684) era irmão de Marthe Corneille (1623-1696),
mãe de Fontenelle.
17--Fontenelle foi colaborador do Mercure Galant. Sobre a publicação, cf.
Dictionnaire des Journaux, 1600-1789. Disponível em: https://dictionnai-
re-journaux.gazettes18e.fr/journal/0919-le-mercure-galant Acesso em: 19
de maio de 2022.
18--Publicado em 1683.
19--As questões foram inseridas nos artigos ii dos volumes referentes aos meses
de setembro e novembro de 1685 das Nouvelles (cf. Bayle, 1737a, p. 363a-b,
406b-407b).
20--Agradeço à querida amiga Roberta Miquelanti pelo generoso envio de
material bibliográfico e aos(às) pareceristas pelas ótimas sugestões à tra-
dução.

tradução p. 325 - 336 335


referências bibliográficas
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bayle, p. (1686a) Nouvelles de la République de Lettres. Moins de Janvier 1686.
Amsterdam: chez Henry Desbordes. [Article x, pp. 86-91]
_____. (1686b) Nouvelles de la République de Lettres. Moins de Janvier 1686.
Seconde édition révûe & corrigée par l’auteur. Amsterdam: chez Henry
Desbordes. [Article x, pp. 87-92]
_____. (1714) Lettres choisies de Mr. Bayle avec des remarques. Rotterdam:
chez Fritsch et Böhm, 1714. t. iii.
_____. (1737a). Nouvelles de la République de Lettres. In: des maizeaux,
p. (Ed.) Œuvres Diverses de Pierre Bayle. La Haye: Compagnie des Librai-
ries. v. i. [Article x, pp. 476b-477b]
_____. (1737b) Réponse aux questions d’un provincial. In: des maizeaux,
p. (Ed.) Œuvres Diverses de Pierre Bayle. La Haye: Compagnie des Librai-
ries. v. iii.
_____. Correspondance de Pierre Bayle. Disponível em: http://bayle-corres-
pondance.univ-st-etienne.fr/?lang=fr Acesso em: 19 de maio de 2022.
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Paris: Honoré Champion. t. iii
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dictionnaire-journaux.gazettes18e.fr/ Acesso em: 19 de maio de 2022.
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la Société de l’Histoire du Protestantisme Français, v. 134, Actes des Journées
d’étude sur l’Édit de 1787 (Paris 9 et 10 octobre 1987), pp. 195- 206.

336 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


RESENHA DO LIVRO
DE CERA À CARNE,
DE JOSÉ MARCELO RAMOS SIVIERO

Silvana de Souza Ramos


Professora, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
ramos.si@usp.br

Como pensar um trajeto investigativo que nos permita aproximar


Merleau-Ponty de Descartes? Eis o grande tema que atravessa os capítulos do
livro De cera à carne (Appris Editora, 2022), de José Marcelo Ramos Siviero.
Não se trata de um pequeno desafio, uma vez que Merleau-Ponty faz questão
de se distanciar criticamente da ontologia dualista cartesiana.
A filosofia de Merleau-Ponty se constrói a partir do desafio de enraizar o
sujeito no corpo e fazer do último o veículo da existência. O projeto de fazer
uma fenomenologia da percepção exige recuperar a confiança na sensibilida-
de e instaurar um regime de verdade em que o erro não seja motivo de recusa
daquilo que experimentamos no e pelo corpo próprio. Nada mais distante do
pensamento cartesiano. O caminho das Meditações Metafísicas se desenha a
partir da desqualificação de todas as informações a que temos acesso pelos sen-
tidos. O regime da dúvida hiperbólica visa instaurar a primeira certeza, inaba-
lável, sobre a qual se possa reconstruir todo o edifício do saber. Ora, o primeiro
atingido por essa investigação é exatamente o campo do corpo e da sensibilida-

Silvana de Souza Ramos p. 337 - 340 337


de: os sentidos nos enganam e, por isso, temos de suspender o juízo acerca de
tudo o que nos vem através deles. A partir daí, a Primeira Meditação derruba
um a um os marcos de certeza com os quais a filosofia parecia lidar de modo
acrítico: a existência do corpo, as operações da matemática, a veracidade divi-
na, enfim, toda pretensão de certeza é abalada pelo procedimento hiperbólico
da dúvida. Assim, essa estratégia carrega passo a passo o filósofo à conquista da
primeira verdade: se duvido, penso; e, se penso, existo.

É certo, porém, que ao longo das Meditações não apenas a sensibilidade


será recuperada, como também as verdades matemáticas e a crença num deus
veraz, mas isso ao preço de que a partir de agora todo conhecimento deverá ser
mediado pelo juízo. Para Descartes, conhecer não é perceber com os sentidos,
pelo contrário, meu acesso ao mundo só pode ser claro e distinto se eu puder
olhá-lo da perspectiva da razão, pois apenas o juízo se mostra capaz de julgar
corretamente as impressões do mundo, de modo que a sensibilidade não mais
me engane. Não por acaso, Descartes recusa a realidade das qualidades sensí-
veis e aposta na apreensão geométrica do mundo, pois essa purificação da expe-
riência garante o conhecimento dos objetos exteriores. Há, porém, uma região
da experiência que jamais poderá ser integralmente esclarecida. Afinal, para
alicerçar o conhecimento no ser pensante, o caminho da dúvida, ao operar de
modo analítico, engendra uma cisão essencial entre res cogitans e res extensa, de
modo que a experiência da mistura da alma com o corpo próprio permanece
inevitavelmente obscura à razão.

Dito de outro modo, Descartes pode compreender o ser pensante com cla-
reza e distinção; pode também descrever o funcionamento mecânico do corpo
humano, considerando-o uma máquina que funciona segundo as leis da físi-
ca; e pode, ainda, conceber geometricamente os objetos exteriores. Contudo,
a existência viva da mistura do corpo com a alma permanece misteriosa. Há
testemunhos dessa união na experiência dos sentimentos, na fome, na dor, na
percepção confusa do mundo externo. Nenhum deles, porém, pode ser depu-
rado pela razão, ou pela luz natural, de modo que a união seja rigorosamente
explicada. A região da mistura só oferece indícios de veracidade que me incli-

338 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


nam a crer. Eis um limite que não pode ser ultrapassado pelo cartesianismo:
a luz da razão é incapaz de iluminar a experiência viva. Por isso, do ponto de
vista merleau-pontiano, esse modo de investigação nos priva de compreender a
existência encarnada de um corpo aberto ao mundo, marco inaugural de nosso
acesso a qualquer conhecimento.

É por isso que a filosofia de Merleau-Ponty é crítica ao cartesianismo: não


cabe buscar verdades abstratas para alicerçar o conhecimento, pois isso signifi-
caria obscurecer a origem ambígua da experiência sem a qual nada poderíamos
conhecer. Em primeiro lugar, ao se recusar a compreender a origem encarnada
do conhecimento, Descartes desistiu de meditar sobre as incertezas do mun-
do sensível. É preciso perguntar se não haveria um modo de compreendê-las,
sem julgá-las pela razão. Em segundo lugar, ao dar primazia à razão sobre a
sensibilidade, Descartes produziu uma abstração. A vida concreta do espírito
é sempre encarnada, jamais completamente depurada do corpo. Não há pen-
samento que não conte, ainda que tacitamente, com o mergulho originário do
corpo no mundo sensível. Quando damos início à reflexão, somos um corpo
complexo, imerso nas incertezas da sensibilidade. Não é um cogito puro aque-
le que dá origem à reflexão, mas sim um sujeito encarnado, que responde aos
questionamentos do mundo ao percorrê-lo com os sentidos. Esquecer essa ori-
gem ambígua implica negligenciar a experiência que abre a possibilidade de
construção de qualquer certeza.

Desistir de julgar a sensibilidade significa, para Merleau-Ponty, descrever a


percepção tal como ela concretamente se desenrola. Precisamos admitir que a
percepção não tem acesso a uma marca imediata e definitiva da veracidade do
que experimenta. Mas isso não quer dizer que ela deva ser descartada enquan-
to tal, pois a percepção pode vencer suas limitações momentâneas e, assim,
ampliar nosso horizonte de experiência do mundo. A percepção não acontece
no instante, pelo contrário, ela é um processo que, a cada visada, pode corrigir-
-se a si mesma. Se estou numa praia e avisto ao longe um tronco, objeto que eu
confundia anteriormente com um monte de areia, isso não significa que a per-
cepção esteja fadada ao erro. Novas visadas do objeto me permitem corrigir a

Silvana de Souza Ramos p. 337 - 340 339


impressão inicial e assim percebo que se trata de um tronco e não de um monte
de areia. Não preciso recorrer a uma instância superior à percepção para esca-
par do erro: a sensibilidade corrige-se a si mesma conforme minha exploração
do mundo se aprofunda. Assim, ao visar o mundo, descubro que ele é uma fon-
te inesgotável de experiência e aprendizado e, por isso, o conhecimento nunca
pode ser completo. A clareza e a distinção almejadas por Descartes só podem
ser abstrações que nos separam da experiência viva, esta que nunca se desfaz
totalmente da ambiguidade.

Mas se é assim, como a filosofia de Merleau-Ponty pode se encontrar com o


pensamento cartesiano? Para responder a essa pergunta, o livro de Siviero nos
convida a pensar no sentido profundo da descrição da percepção do pedaço
de cera, apresentada na Segunda Meditação cartesiana. Embora Descartes se
esforce para submeter a percepção da cera à inspeção do espírito, é certo que a
última jamais abandona o solo de experiência a partir de onde o conhecimento
do objeto em questão é forjado. A construção da reflexão exige o recurso a uma
sequência de percepções: da cera doce, com odor de flores, dura e fria àquela
aquecida, cujo odor se esvai, cuja forma e grandeza se alteram. A despeito da
defesa de uma metafísica dualista promovida por Descartes, o que temos aí em
curso é uma descrição da experiência perceptiva de modo que a inspeção do
espírito que a acompanha não deixa de estar fundada na relação originária do
corpo com o mundo.

É por isso que a proximidade do fenomenólogo com o seiscentista não


acontece por meio das teses que ambos sustentam acerca da percepção: o que
os aproxima é o papel que a descrição da experiência representa nos dois casos.
Pois tanto Descartes quanto Merleau-Ponty investigam o mistério da ligação
do sujeito encarnado com o mundo e descobrem aí um campo inesgotável, que
pode ser descrito, embora nunca possa ser inteiramente dominado pela razão.
O livro de Siviero traz à tona essa possibilidade de interpretação do diálogo de
Merleau-Ponty com Descartes. Cabe agora a leitoras e leitores dar prossegui-
mento a essa investida fecunda, bem-sucedida em iluminar a força filosófica
advinda da experiência da ambiguidade.

340 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


DA SEGUNDA NATUREZA AO MATERIALISMO
PICTÓRICO DE PIETER BRUEGEL

uma resenha de pieter bruegel: le tableau ou la sphère infinie –


pour une réforme théologico-politique de l’entendement,

de laurent bove

Bernardo Bianchi,
Pesquisador, Centre Marc Bloch, Berlim, Alemanha,
bernardobianchi@gmail.com

Ao longo de cerca de uma década, Laurent Bove vem explorando, de um pon-


to de vista espinosista, o tema da “segunda natureza”, o qual, anunciado en pas-
sant em La stratégie du conatus: affirmation et résistance chez Spinoza, de 1996,
ganhou centralidade em suas monografias publicadas na última década: Vau-
venargues ou le séditieux, de 2010, e Albert Camus, de la transfiguration, de
2014. Mas é com Pieter Bruegel: le tableau ou la sphère infinie (Vrin, 2019) que
Bove alcançou o pleno desenvolvimento desse filosofema1.
Pieter Bruegel, o Velho (1525/1530-1569), pintor flamengo cujo legado per-
tence à Bélgica e aos Países Baixos, é aqui objeto de uma análise que se articu-
la em torno a três eixos fundamentais: histórico, artístico e filosófico. Come-
cemos pelo título. Além de sugerir uma delimitação histórica, esse não deixa

1 Cabe mencionar que o tema da “segunda natureza” – e, muito particularmente, seus


desdobramentos políticos – foi também objeto de livro de Bertrand Ogilvie (ogilvie,
2012).

Bernardo Bianchi p. 341 - 349 341


dúvidas sobre o caráter ousado da empreitada a que se propõe seu autor. Afi-
nal, abordar os desenhos e pinturas de Bruegel sob a égide daquilo que pode-
ríamos chamar, com Espinosa, de uma “reforma do entendimento”, ou, com
Nicolau de Cusa, uma “esfera infinita”, significa situá-los num lugar que não
podemos reivindicar de saída como sendo o seu, qual seja, a história da filo-
sofia (bove, 2019, p. 117). Mas a pintura “pensa” (bove, 2019, p. 17). Não, é
certo, do mesmo modo que a filosofia ou o pensamento conceitual. E, sim, por
meio de “um movimento real e construtor de um autêntico pensamento pic-
tórico” (bove, 2019, p. 128). Nesse sentido, a inclusão da obra de Bruegel na
história da filosofia não significa a afirmação de sua dependência com relação
ao pensamento conceitual, como se este fosse a causa à qual as demais formas
de pensamento – aí incluído o pensamento pictórico – devessem se adequar.
Pelo contrário, seu lugar na história da filosofia somente pode ser plenamente
apreendido por meio da compreensão do seu regime próprio de pensamento.
Trata-se, em suma, de descobrir, por meio dos próprios desenhos e pin-
turas de Bruegel, uma produtividade cognitiva inerente à atividade artística.
Afinal, como afirma Bove, baseando-se na avaliação do célebre cartógrafo fla-
mengo Abraham Ortelius, um amigo do pintor flamengo, haveria nas compo-
sições artísticas deste “mais pensamento do que pintura” (bove, 2019, p. 17,
p. 133). Em suma, Bove postula uma simetria, de ordem epistemológica, entre
imagem e conceito:

[A]s lentes que Espinosa poliu com cuidado e habilidade em suas ofici-
nas em Voorburg e Rijnsburg, assim como nos conceitos de sua Ética,
também podem ser encontradas, na forma de desenhos e pinturas, nas
oficinas do pintor Pieter Bruegel, como dispositivos e/ou caminhos para
a verdade real das coisas (bove, 2019, p. 43).

Esta postulação não significa, todavia, uma confusão entre imaginação e

342 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


entendimento. Afinal, tal como reiteradamente afirmado por Bove ao longo
do livro, a própria arte produz, a partir do seu campo próprio, um dispositivo
cognitivo particular capaz justamente de separar imaginação e entendimento.
É o que fica patente na análise que Bove faz de Elck ou um qualquer2 (bove,
pp. 46-59, 2019) ou ainda de A queda de Ícaro3 (bove, pp. 135-49, 2019), obras
por meio das quais ele examina a insurgência do mestre flamengo contra os
agenciamentos subservientes das paixões e da imaginação, afirmando, em seu
lugar, a potência emancipadora do intelecto humano (bove, 2019, p. 53) e a
atividade humana enquanto “novo princípio imanente e constitutivo do mun-
do” (bove, 2019, p. 149). Desse modo, Bove nos convida a considerar as obras
de Bruegel como verdadeiros dispositivos críticos de reforma do entendimen-
to. O mesmo dispositivo pictórico aparece de forma contundente em outras
tantas análises por ele feitas de obras do pintor flamengo, cabendo destacar A
grande torre de Babel4 (bove, 2019, pp. 218-22), com sua crítica política dirigi-
da à dominação autocrática, e O massacre dos inocentes5 (bove, 2019, pp. 252-
54), no qual a crítica funde elementos bíblicos com referências a conflitos e
acontecimentos que prenunciam a Fúria Espanhola e a Guerra dos Oitenta
Anos.
No campo da história da arte, Bove dialoga com três intérpretes funda-
mentais, cada qual com uma monografia consagrada à obra de Bruegel: Char-
les de Tolnay, Marx Dvořák e Pierre Francastel. Este último é, sem dúvida, a
referência mais importante, uma vez que seu método de análise, embora his-
tórico, dá conta de uma abordagem interna às produções artísticas do pintor
flamengo. Diferentemente de Francastel, Tolnay havia sustentado, cerca de 30
anos antes, a tese de uma filiação entre Bruegel e um humanismo inspirado por
Nicolau de Cusa, notável filósofo alemão de meados do século xv. Bove subs-

2 Desenho de 1558, exposto no British Museum, em Londres.


3 Quadro também de 1558, que se perdeu, e do qual restam duas cópias, ambas expostas
em Bruxelas.
4 Quadro de 1563, exposto em Viena, no Kunsthistorisches Museum.
5 Quadro de cerca de 1566, exposto no Windsor Castle, na Inglaterra.

Bernardo Bianchi p. 341 - 349 343


creve grande parte das críticas de Francastel a Tolnay, destacando a inadequa-
ção de impor, à revelia de qualquer consideração histórica, um quadro inte-
lectual interpretativo à atividade artística de Bruegel. Embora Bove concentre
suas críticas nos limites metodológicos da perspectiva de Tolnay, fica claro que,
aos seus olhos, a interpretação deste do pensamento de Cusa através do con-
ceito de emanação seria equivocada. Para ele, o epíteto “platônico do mundo
invertido” (bove, 2019, p. 112) lançado por Tolnay por meio de sua leitura do
filósofo alemão não serviria para designar Bruegel – e nem Cusa. Embora não
diga diretamente, é bastante claro que sua percepção tanto da obra de Bruegel
quanto da de Cusa é orientada por aquilo que poderíamos chamar, a partir de
Gilles Deleuze, de propósito de “inversão do platonismo”6.

1. bosch, bruegel e a segunda natureza

Bove procura demonstrar como o tema do “mundo invertido”, independente-


mente de qualquer referência a Cusa, chega a Bruegel através de seu diálogo
com a obra de Hieronymus Bosch. Este é um dos propósitos fundamentais de
Bove: demarcar as diferenças entre estes dois mestres da pintura flamenga e
neerlandesa:

a diferença essencial e radical é que um (Bosch) pinta (ou pensa que pin-
ta...) a corrupção da natureza humana (marcada pelo pecado e pelo vício
que pervertem e deformam, até o ponto da monstruosidade, as rela-

6 O propósito de “inverter o platonismo” é assumido por Deleuze em 1966, num artigo


assim intitulado, que mais tarde foi renomeado para “Platão e o simulacro” e incluído em
Logique du sens, de 1969 (deleuze, 1966). Deleuze atribui esse propósito a Nietzsche,
que, em um de seus fragmentos póstumos, afirmava que: “[a] minha filosofia é o platonismo
invertido [umgedrehter Platonismus]: quanto mais longe do verdadeiramente existente,
mais puro, mais belo e melhor é. A vida na aparência como o objetivo”. Cf. nietzsche,
1980, p. 199.

344 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


ções racionalmente proporcionais do corpo humano), enquanto o outro
(Bruegel) pinta, ao contrário – e, à primeira vista, paradoxalmente – nos
mesmos personagens, as perfeições dessa mesma natureza, ou seja, um
poder de existir, de agir, de imaginar, de afirmar a realidade, sua materiali-
dade, sua corporeidade poderosa, singular, múltipla... (bove, 2019, p. 16).

Bosch é o pintor dos excessos. Seus quadros dão conta da desmesura, do


transbordamento que irrompe no mundo, indo de encontro aos planos e à
harmonia cósmica decretados por uma vontade transcendente. Contudo, essa
irrupção não é senão apreendida sob o signo da mortificação e da denúncia.
Ou seja, com Bosch, o que se vê é a exploração pictórica do tema da “segunda
natureza”, da produtividade múltipla e irremediável do real – um filosofema
transversal à história da filosofia – em confluência, porém, com a perspectiva
da queda e do pecado original, tal como foi reinterpretado pela tradição teo-
lógica, de Santo Agostinho a Savonarola. Assim, os excessos se tornam imper-
feições, marcando a corrupção da realidade existente relativamente a uma rea-
lidade primeira, que lhe falta. A desmesura da segunda natureza de Bosch é
apreendida sob o prisma da orfandade, isto é, sob a perspectiva de uma trans-
cendência que se retirou do mundo.
Bruegel, por sua vez, participa de uma tradição na qual Bove insere Erasmo
de Roterdã, Maquiavel, Rabelais, Étienne de La Boétie, Montaigne e, afastado
por quase um século, Espinosa, autores que emancipam a segunda natureza da
lógica da queda. Bruegel resgata os excessos transbordantes de Bosch da retóri-
ca da negação, pintando “a própria positividade e a poderosa produtividade da
vida do mundo invertido, sua truculência” (bove, 2019, p. 18), ou seja, trans-
mutando “uma sideração melancólica em potente meditação sobre a vida”
(bove, 2019, p. 264). Embora Bove não o diga de modo explícito, vê-se, assim,
que a lógica de “inversão do mundo”, que Tolnay imputava a Bruegel, serviria,
pelo contrário, para descrever Bosch. Bove não tem, porém, como objetivo
desenvolver esse quadro interpretativo, o qual teria requerido uma abordagem
mais pormenorizada da obra de Bosch.

Bernardo Bianchi p. 341 - 349 345


A fim de apreender a singularidade de Bruegel, Bove recorre a Dvorak e a
Mikhail Bakhtin. Com a ajuda do primeiro, dá um novo significado às lições
que Bruegel assimilou da sua viagem pela Itália (1552-1554)7. Ele refuta a tese
de uma filiação de Bruegel com o idealismo italiano, e postula, pelo contrário,
fortes afinidades com o pensamento de Maquiavel – e sua atenção para as coi-
sas em sua verdade efetiva (bove, 2019, pp. 78-9). Essa relação se exprimiria de
forma concreta em Os apicultores8, desenho em que aparece uma mandrágora,
numa possível referência à peça homônima do autor florentino.
Com as análises de Bakhtin a propósito de Rabelais, Bove estabelece uma
conexão entre Bruegel e o “realismo grotesco”, cujo mote é, a contrario sensu,
um “rebaixamento” afirmativo do ser. Ou seja, trata-se de afirmar a supera-
bundância da vida, a sua desmesura, a qual não deve ser submetida a qualquer
imaginação preestabelecida em termos de ordem ou mesmo harmonia9. Nesse
sentido, a vida não deve ser medida pelo sublime, mas unicamente a partir de
sua própria potência para produzir todo tipo de coisas. Essa problemática se
conecta à análise de quadros como O combate entre o Carnaval e a Quaresma10.
Num dos momentos de maior força do livro, Bove equipara o “rebaixamento”
expresso na pintura de Bruegel a uma “carnavalização do mundo” (bove, 2019,
p. 247). O quadro é estruturado pela representação de dois temas antagônicos:
de um lado, o carnaval, a afirmação de uma potência nômade e múltipla de
criação e de regeneração, que encontra abrigo nos elementos mais ordinárias
da vida da multidão; do outro, a quaresma, o tempo da penitência e da morti-
ficação, de reintrodução de uma hierarquia fundada na Igreja. Na caracteriza-
ção desse contraste, Bruegel não se atém às figuras típicas do carnaval, ele pinta

7 O período exato é bastante controverso entre os estudiosos de Bruegel.


8 Desenho de cerca de 1568, exposto no Kupferstichkabinett Berlin.
9 Lembremos do filme O baixio das bestas, de Cláudio Assis, que poderia ser interpretado
sob o mesmo prisma de um “realismo grotesco”, ou seja, de valorização de “elementos
marginais” da vida comum, em contraposição a elementos que são habitualmente
considerados como mais elevados e dignos de valor.
10 Quadro de 1559, exposto no Kunsthistorisches Museum, em Viena.

346 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


também os pobres, os doentes, os cegos, numa afirmação da vida que ultra-
passa o paradigma da privação. Chegamos assim, pelo caminho do grotesco,
a uma afirmação radical da igualdade de todos com relação a todos – a crítica
radical das ideias de hierarquia e de uniformidade. Trata-se, em suma, de uma
inversão da inversão.

2. o materialismo pictórico da virtude regozijante

Chegamos ao final da nossa análise do trabalho de Bove. Resta, porém, exa-


minarmos uma questão marginal, mas que não deixa de ter fortes ressonân-
cias com os elementos centrais do livro de Bove: a relação entre Bruegel e uma
perspectiva materialista. Numa passagem importante, mas que Bove inexpli-
cavelmente reserva para uma nota de rodapé, Claude-Henri Rocquet afirma
que “Bruegel é Bosch depois de ter abandonado o livro de Jó em favor de De
rerum natura” (bove, 2019, p. 18). A citação nos leva a uma melhor compreen-
são tanto da oposição de Bove ao estoicismo que Tolnay atribuía a certas obras
de Bruegel quanto da presença da lógica epicurista da “virtude regozijante” de
Dirk Volkertszoon Coornhert (bove, 2019, p. 200)11. A abordagem do tema
fica clara nas análises de Bove a propósito de Brincadeiras de criança (bove,
2019, pp. 249-52) e Ceia de casamento12 (bove, 2019, pp. 282-94).

Brincadeiras de criança dá, de fato, a sensação alegre de um tempo sus-


penso ou de uma vida humana arrancada da morte, no sentimento de
uma frater-eternidade do presente ou do que poderíamos chamar de uma
fraternidade cósmica; ou seja, o sentimento de pertencer à mesma natu-
reza, à mesma terra. É neste sentido que também podemos conceber que

11 Coornhert foi um importante pensador (e também artista), contemporâneo de


Bruegel, cuja obra guarda afinidades fundamentais com a filosofia de Espinosa.
12 Quadros de 1560 e 1568, respectivamente, ambos expostos no Kunsthistorisches
Museum.

Bernardo Bianchi p. 341 - 349 347


o corpo comum em liberdade (ou o corpo da Liberdade) expresso em
Brincadeiras de criança, manifesta, em última análise, o próprio corpo da
divindade... ou o corpo de Cristo (bove, 2019, pp. 257-8).

Não se trata, portanto, de conceber a felicidade como prêmio da virtude,


mas como a própria virtude, como o disse Espinosa13. Por essa via, esse conceito
reformado de virtude, ancorado não numa sensibilidade estoica, sobranceira
ao mundo, mas, sim, numa sensibilidade epicurista, de alegria no seio do mun-
do, em toda sua materialidade, e em comunhão com a multidão, resulta numa
concepção laica do Cristo, uma concepção da igualdade infensa a toda forma
de controle teológico-político.
Ao final do livro, depois de profundas análises históricas, a relação de
Bruegel e Cusa resplandece completamente reformada (ou transfigurada):
não mais na forma do “mundo invertido”, como queria Tolnay, mas, sim, por
meio de pistas deleuzianas que apontam para uma inversão do próprio plato-
nismo, na forma de uma radicalização da emanação em direção à imanência,
cujo símbolo máximo é precisamente “a esfera infinita”. Ou seja, enquanto a
esfera infinita de Cusa representava a afirmação da igualdade sob a potência do
Um enquanto princípio (arqué, poderíamos dizer) emanativo do real, passa-
mos, com Bruegel, a uma emancipação da igualdade, o que significa dizer que a
igualdade de todas as coisas não precisa mais da referência a Um. Ela se tornou
autoprodutiva, isto é, plenamente imanente.

13 Não se deve estranhar que esta frase, citada ipsis litteris nos Cadernos sobre a filosofia
epicurista, de Marx, tenha sido usada por este para expressar seu apreço por Lucrécio,
distinguindo-o de Plutarco (marx, 1968, p. 154).

348 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


bibliografia
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conatus: afirmação e resistência em Espinosa. São Paulo: Politeia.
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négative. Paris: L’Harmattan.

Bernardo Bianchi p. 341 - 349 349


NOTÍCIAS

defesas de doutorado

notícias

a dimensão política da linguagem e


o contradiscurso de baruch espinosa

Rafael dos Santos Monteiro


Orientador: Luís César Guimarães Oliva
20/12/2022
resumo: Mais próxima do corpo e da imaginação, a linguagem que pode
ser deduzida da ontologia espinosana nos coloca frente ao problema das rela-
ções entre mente e corpo. Como pode uma palavra, modo da extensão, comu-
nicar uma ideia, modo do pensamento, se nosso espírito não é uma replicação
do corpo e não há expressão entre os atributos? Ao mesmo tempo Espinosa
nos mostra como o desenvolvimento e permanência da língua de um povo ao
longo dos tempos depende do uso da linguagem em sociedade. Desenvolven-
do estes elementos, o presente projeto visa então construir uma proposta de
solução para o problema da linguagem em Espinosa pelo estudo de seus textos
políticos.

notícias p. 351 - 357 351


a aniquilação do mundo: hobbes e a construção do homem

Everson Machado
Orientadora: Maria das Graças de Souza
Defesa: 04/05/2023
Resumo: Hobbes escreveu em um tempo que estava fora de seus gonzos –
Reforma protestante, Revolução científica, Revolução inglesa e burguesa –, e
sua filosofia lida com esse mundo que revolvia ao seu redor. A filosofia hobbe-
siana gerou, assim, uma grande quantidade de textos que lhe são críticos, sendo
ela mesma não escassa de críticas às formas de pensamento de sua época. Há,
desse modo, por um lado, uma abordagem externa à obra de Hobbes a partir
de leituras que lhe são críticas, e até mesmo hostis, tanto de seus contempo-
râneos quanto de autores recentes, visando compreender o que está em jogo
em sua filosofia política, isto é, busca entrar na filosofia hobbesiana a partir de
tópicos considerados por seus críticos como problemáticos ou francamente
inaceitáveis. Essas falhas, reais ou não, vistas na filosofia hobbesiana por seus
críticos, servem de aberturas por onde se vê sua interação com as ideias da épo-
ca. Por outro lado, a filosofia hobbesiana é a um só tempo construtiva e destru-
tiva. Constrói por meio do método more geometrico e destrói discursos tidos
por verdadeiros – sejam eles de origem filosófica, bíblica, jurídica ou histórica
–, que informavam os discursos de seus contemporâneos. A filosofia hobbesia-
na busca ao mesmo tempo fundar e ampliar o conhecimento humano e redu-
zi-lo aos limites de uma razão que não ultrapassa o mundo empírico. Contudo,
além de uma pars destruens e de uma pars construens, há um momento em que
Hobbes reconstrói, momento histórico-filosófico, o homem tal como é his-
toricamente e mostra como e por que ele deve tornar-se moderno, isto é, um
homem hobbesiano.

352 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


defesas de mestrado

sonhar de olhos abertos: um estudo sobre os conceitos


de erro e de privação na filosofia de espinosa

Gabriel Frizzarin Ramalhães de Souza


Orientador: Luís César Guimarães Oliva
09/03/2023
resumo: Os conceitos de erro e de privação na filosofia de Espinosa
encontram-se atravessados por uma tensão: se Descartes define o erro como
uma privação decorrente do mau uso da liberdade da vontade na formulação
do juízo, Espinosa retira de cena as principais condições para sustentar essa
tese e, apesar disso, segue a definir o erro como uma privação de conhecimen-
to. Constatação tanto mais aguda quanto se nota que Espinosa revela-se aos
seus interlocutores um crítico contumaz da noção tradicional de privação. Por
que, então, a Ética trata de empregar o termo privação para definir a forma do
erro? O que a autoriza a falar em privação, atuante numa dimensão em que
não se faz mais necessário garantir a liberdade da vontade como seu principal
requisito? Qual é o propósito de Espinosa ao evocar esse termo para descre-
ver algo aparentemente marcado por profundas diferenças conceituais? À luz
dessas interrogações, este trabalho desenvolve um estudo sobre os conceitos
de erro e de privação na filosofia de Espinosa, buscando compreender qual
é o fundamento e o sentido desses conceitos e medindo as suas implicações
mais gerais ao lado de temas como a imaginação, a linguagem e a superstição.
Nesse quadro, acreditamos que o recurso à expressão “sonhar de olhos aber-
tos”, empregada em diversas obras do autor, torna-se pertinente para a com-
preensão dos conceitos de erro e de privação no espinosismo, sobretudo para
designar a condição na qual, mesmo na falsidade, os indivíduos opinam estar
na verdade.

notícias p. 351 - 357 353


o conceito de ideia em descartes

Bruno Gonçalves Moreira


Orientador: Homero Silveira Santiago
29/03/2023
resumo: Ao longo de sua obra, Descartes faz uma divisão entre, de um
lado, ideia enquanto um modo de pensamento e, de outro, ideia dotada de
realidade objetiva. Essa divisão aparece por mais de uma vez, porém a mais
explícita delas, do Prefácio ao leitor das Meditações sobre a filosofia primeira, é
feita com a intenção de resolver um problema na filosofia de Descartes: como
o sujeito limitado tem em si a ideia de um ser sumamente perfeito e infinito
(Deus)? A partir desse problema, Descartes propõe a divisão da ideia em dois
conceitos diferentes: de um lado, a palavra ideia é usada para referir-se à opera-
ção do intelecto, e nesse sentido ela não pode ser mais perfeita que o sujeito da
qual é um modo; do outro lado, a palavra ideia também é usada para referir-se
à coisa representada, e nesse sentido ela pode ser mais perfeita que o sujeito.
Tendo isso em vista, o foco desta dissertação é analisar como essa divisão se
sustenta ao longo de toda a obra de Descartes. Para isso, a análise estende-se
em quatro pontos: primeiro, a análise da ideia como gênero, pois a ideia é um
modo e/ou uma ação do pensamento; segundo, análise da realidade da ideia
como modo do pensamento, isto é, da realidade formal da ideia; terceiro, aná-
lise da realidade objetiva da ideia e da possível independência entre a ideia
dotada de realidade objetiva e ideia dotada de realidade formal; e, enfim, a aná-
lise da natureza da ideia, isto é, da função mais elementar e geral da ideia, que
defendemos ser a função de percepção.

354 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


lançamentos

a estratégia do conatus, afirmação e resistência em espinosa

Laurent Bove
Tradução: Bernardo Bianchi e José Marcelo Siviero
Editora Politeia
“É, antes de tudo, do ponto de vista desta dinâmica da resistência ativa do
conatus a uma aniquilação total pelas forças exteriores mais potentes, que a
afirmação da existência é denominada estratégia. Na raiz de toda existência,
há a resistência. Resistência e estratégia se seguem necessariamente da essên-
cia de cada ser existente como se “segue necessariamente aquilo que serve à sua
conservação”. A ideia de estratégia envolve, com efeito, a de ação causal total e,
para cada conatus – pode-se dizer, a cada instante da existência –, o risco essen-
cial de vida ou de morte do modo existente. Longe de toda finalidade inter-
na, a tese de uma estratégia do conatus se inscreve então no plano imanente e
causal, integralmente inteligível, do racionalismo absoluto. Potência singular
de afirmação e de resistência, o conatus espinosista é uma prática estratégica
de decisão de problemas e de sua resolução. A noção de estratégia, oriunda do
campo da guerra, não será empregada por nós de maneira metafórica. A con-
dição do corpo – de maneira mais urgente ainda que a das sociedades – é uma
condição de guerra total e ninguém escapará, por fim, da morte: ‘[n]a nature-
za das coisas, não é dada nenhuma coisa singular tal que não se dê outra mais
potente e mais forte do que ela. Mas, dada uma coisa qualquer, é dada outra
mais potente pela qual aquela pode ser destruída’”.

notícias p. 351 - 357 355


eventos

[colóquio paradoxos da emancipação]


entre democracia e autoritarismo: ambivalências do conhecimento

Departamento de Filosofia da usp, 2-3/03/2023

jornada espinosana

Departamento de Filosofia da usp, 10/03/2023


O evento contou a presença da professora Chantal Jaquet, que apresentou
uma comunicação sobre Espinosa e a neurobiologia; além disso, nesta mes-
ma ocasião houve o lançamento da tradução brasileira do livro A estratégia do
conatus, de Laurent Bove. A jornada foi transmitida pelo YouTube e pode ser
acompanhada no link: https://www.youtube.com/watch?v=r0oQ8i5qrqg.

conferência: percepção e perspectiva na monadologia de leibniz

Departamento de Filosofia da usp, 16/03/2023


Professora Celi Hirata (ufscar)

356 Cadernos Espinosanos São Paulo n.48 jan-jun 2023


colóquio: a obra de franklin leopoldo e silva

Departamento de Filosofia da usp, 21-23/03/2023


O colóquio foi realizado como uma forma de o professor Franklin que,
além de temas de filosofia contemporânea, também se dedicou ao estudo da
filosofia moderna e, inclusive, contribuiu com várias publicações nos Cadernos.

notícias p. 351 - 357 357


SUMÁRIO

introduction 11

articles

the individuation of mere entelechies in leibniz 15


Edgar Marques

essence and existence: 41


two orders of causality, deduction of finite
modes and freedom in spinoza’s philosophy
Giorgio Ferreira

the cogito as the link between thinking and being 75


Marcos Alexandre Borges

the state between history and eternity 99


Albano Pina

comparison between spinoza’s and 127


the jewish philosopher’s notion of death
Nei Ricardo de Souza

academic scepticism in descartes’ règles pour 157


la direction de l’esprit (i, ii, iii, viii and xii)
Marcelo Fonseca de Oliveira

the spinozism in schelling’s physics


Mariana Alkimin Rincon 181

a spinosan reading of nausea: 209


roquentin’s melancholy
Ágatha Cavallari
235 the last proposition of ethics
Paulo Vieira Neto

259 the concept of beatitude in the philosophies


of fichte and spinoza: moral and political
implications of idealism and dogmatism
Lucas Damián Scarfia

299 political investigation: a method’s question


Matheus Romero de Morais

translation

325 excerpt from a letter written from batavia in the


east indies, dated 27th of november 1684, extracted
from a letter by mr. fontenelle and received,
in rotterdam, by mr. basnage.
Flavio Fontenelle Loque

reviews

337 book review: da cera à carne, by josé marcelo ramos


siviero
Silvana de Souza Ramos

341 book review: pieter bruegel: le tableau ou la sphère


infinie – pour une réforme théologico-politique
de l’entendement, by laurent bove
Bernardo Bianchi

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Ca dernos E spi nosa nos

estudos sobre o século xvii


n. 48 jan-jun 2023 issn 1413-6651

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