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apresentação 11
artigos
essência e existência: 41
duas ordens de causalidade, dedução
dos modos finitos e a liberdade em espinosa
Giorgio Ferreira
tradução
resenhas
351 notícias
APRESENTAÇÃO
11
Ca dernos E spi nosa nos
Edgar Marques2
Professor, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
edgarm@terra.com.br
resumo: Analiso e critico neste artigo a solução apresentada por Robert Bran-
dom para o problema por ele formulado acerca do critério de distintividade
das percepções presentes nas meras enteléquias. Brandom considera ser pro-
blemática a vinculação entre distinção e consciência feita por vários intérpretes
de Leibniz com o propósito de dar conta dos diferentes graus de distinção das
percepções, pois tal vinculação somente pode ser válida para almas e espíritos,
não se aplicando às enteléquias, as quais não são dotadas de nenhum tipo de
senciência ou de reflexão. Em função disso, Brandom propõe uma interpre-
tação que não apresentaria essa dificuldade. Segundo essa proposta, uma per-
cepção será tão mais distinta quanto maior for seu domínio expressivo, isto
é, seu grau de distinção será determinado pela quantidade de inferências que
se deixam realizar a partir dela. Torna-se possível, assim, de acordo com ele a
comparação de diferentes percepções e a ordenação delas em uma série que
vai das menos distintas às mais distintas tomando como base seus respectivos
domínios expressivos. Mostro neste artigo que tanto esse – a meu ver, aparente
– problema levantado por Brandom quanto a solução por ele proposta decor-
rem de uma compreensão parcial e equivocada da teoria leibniziana das môna-
das, de tal forma que estaríamos aqui diante de uma solução equivocada para
um problema inexistente.
palavras-chave: Leibniz; mônada; percepção; apercepção; distinção.
1 Agradeço a Karla Chediak pelas discussões da versão anterior deste artigo, que muito
contribuíram para que ele chegasse a este formato final. Agradeço também à parecerista
(ao parecerista) dos Cadernos Espinosanos pela leitura atenta e pelas sugestões de alteração.
2 Pesquisador uerj/cnpq.
Edgar Marques p. 15 - 40 15
Leibniz vocaliza no parágrafo 14 da Monadologia uma de suas mais agudas
discordâncias com a filosofia cartesiana. Lá ele critica os cartesianos por terem
identificado percepção com apercepção ou consciência, o que os teria levado
a recusar, por um lado, a existência de percepções das quais não nos apercebe-
mos, bem como, por outro, que haja almas que não sejam autoconscientes. A
teoria leibniziana da mente irá se caracterizar, em contraposição à concepção
cartesiana, precisamente pela afirmação da existência tanto de estados men-
tais inconscientes quanto de almas que não são dotadas de consciência ou de
racionalidade. Essa disjunção é aqui importante, pois, como esclareceremos
um pouco melhor mais adiante, a doutrina de Leibniz irá afirmar a existência
de três tipos diversos de alma, desempenhando a consciência e a racionalidade
papéis distintos nessa diferenciação.
Na arquitetônica conceitual da Monadologia o parágrafo 14 deve ser com-
preendido em função de uma importante inflexão começada no parágrafo 8
e que culmina nos parágrafos 14 e 15 com a introdução das noções de percep-
ção e de apetição, respectivamente. No referido parágrafo 8 Leibniz se defron-
ta com uma consequência indesejada que parece se seguir dos 7 parágrafos
iniciais do texto, qual seja, a de que as mônadas, por serem metafisicamente
simples, não poderem ser dotadas de qualidades. Essa presumida implicação
aparentemente resulta da tese, sustentada naqueles sete primeiros parágrafos,
de que as mônadas têm de ser simples, uma vez que inegavelmente a posse de
diferentes propriedades configura, sim, um certo tipo de complexidade, o que
convida a considerar a afirmação de tal posse como sendo incompatível com a
tese da simplicidade das mônadas. Não é por outra razão que Leibniz começa
o parágrafo 8 com a conjunção adversativa “entretanto” (cependant) seguida
da afirmação de que é preciso que as mônadas possuam algumas qualidades.3
A presença dessa conjunção adversativa imediatamente antes dessa afirmação
indica que Leibniz pretende afastar uma consequência que ele julga que alguns
de seus leitores poderiam ter extraído da ideia da simplicidade das mônadas,
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sobejamente sabido, Leibniz sustenta que dois entes somente podem ser dife-
renciados um do outro caso um deles possua ao menos uma propriedade que o
outro não possui.5 Dessa maneira, se o mundo fosse constituído por mônadas
completamente destituídas de qualidades, elas não seriam diferentes mônadas,
mas, sim, seriam uma mesma e única mônada, já que não haveria como elas se
diferenciarem umas das outras.
Leibniz afirma não apenas que as mônadas possuem múltiplas qualidades,
mas considera também que as mônadas sofrem mudanças qualitativas, isto é,
que elas perdem certas qualidades e adquirem outras ao longo do tempo. Isso
porque, segundo ele, não poderia haver qualquer mudança na esfera fenome-
nal dos corpos caso não houvesse mudanças qualitativas nas mônadas, uma vez
que tudo o que se encontra nos compostos está fundado no que está presente
nos simples que eles pressupõem. Essas mudanças, por sua vez, consistem em
modificações qualitativas nessas mônadas, isto é, em transições de determina-
das propriedades para outras. Mas é claro que isso somente faz sentido caso as
mônadas sejam concebidas como sendo qualitativamente complexas e mutá-
veis. Dado que o que está nos compostos tem de provir unicamente dos sim-
ples de cuja agregação eles resultam, então somente pode haver mudanças no
mundo físico caso haja mudanças qualitativas das mônadas. Como facilmente
constatamos que o mundo que nos cerca encontra-se em um estado de per-
manente mudança, basta essa constatação para que possamos afirmar que as
mônadas são dotadas de qualidades e que elas sofrem alterações ao ganharem
ou perderem algumas qualidades.
Estabelecido que as mônadas (a) devem possuir qualidades e (b) que elas se
modificam contínua e constantemente, Leibniz se volta para a caracterização
da natureza da mônada no que diz respeito à posse dessas qualidades mutáveis.
Ele diferencia, no interior das mônadas, o princípio da mudança daquilo que,
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sua ocorrência. Desse modo, em todo ato de pensamento temos acesso imedia-
to ao seu conteúdo intencional e nos tornamos dele cientes. Mas não apenas
isso. Todo ato de pensamento é por nós percebido como consistindo em um
ato de pensamento, o que faz com que, ao pensarmos, tornemo-nos conscien-
tes não somente do que pensamos, mas também de que pensamos, isto é, de
que somos nós o sujeito do ato de pensamento a cujo conteúdo acedemos dire-
ta e imediatamente simplesmente ao entreter esse estado interno. Com isso,
em Descartes, todo ato de pensamento envolve tanto consciência do conteúdo
do ato quanto consciência de si mesmo.
É precisamente esse vínculo interno entre pensamento (percepção, no
vocabulário de Leibniz), consciência e consciência de si (apercepção, nos ter-
mos leibnizianos) que Leibniz julga ser equivocado no cartesianismo. Para ele
as percepções não precisam ser necessariamente acompanhadas da consciência
de seu conteúdo ou da autoconsciência, podendo, ao contrário, haver percep-
ções desprovidas desses dois tipos de consciência. Leibniz considera que a afir-
mação de Descartes de que unicamente os seres humanos, por serem dotados
de razão e autoconsciência, possuem almas, tem por base exatamente esse nexo
intrínseco estabelecido por ele entre as percepções e a consciência do mundo
e a consciência de si.
A recusa a considerar haver tal nexo permite a Leibniz distinguir três
tipos de estados mentais ou representações: (a) as meras percepções, que são
estados passageiros que envolvem e representam o composto no simples; (b)
as sensações, que se formam quando certas impressões são mais distintas e
ganham relevo, destacando-se das demais impressões e passando, em função
disso, a ser acompanhadas pela memória; (c) as apercepções, que envolvem
um ato reflexivo por meio do qual o sujeito se volta sobre si mesmo e ganha
consciência de seus próprios estados internos enquanto seus. A tipologização
das mônadas tem por base a posse desses três tipos de representação. Elas se
dividem em: enteléquias, que possuem unicamente meras percepções e
apetites; almas, que, além de percepções e apetites, possuem também sensa-
ções; e, finalmente, mentes ou espíritos, que, além de percepções, apetites
e sensações, possuem também apercepções, isto é, possuem uma consciência
ela [cada mônada criada] representa com maior distinção o corpo que
lhe é particularmente afetado e cuja enteléquia constitui; e como esse
corpo expressa todo o universo pela conexão de toda a matéria no pleno,
a alma representa também todo o universo ao representar este corpo de
maneira particular (leibniz, 2004, p. 143).
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que espelhos vivos6, que refletem o universo em sua totalidade. Mas essa conse-
quência é embaraçosa para Leibniz, uma vez que, por serem imateriais e incor-
póreas as mônadas não possuem massa nem ocupam uma posição no espaço,
somente podendo se diferenciar umas das outras pelos seus estados internos.
Dado que tais estados consistem, como vimos, em estados representacionais e
como a identidade de representações é normalmente fornecida pelo conteúdo
que elas veiculam, então torna-se um problema fundamentar a possibilidade
de individuação das mônadas, pois a tese de que todas elas representam exata-
mente o mesmo – a saber, o universo com um todo – parece implicar que não
é possível diferenciá-las umas das outras, havendo assim uma única mônada
criada, e não infinitas mônadas.
Leibniz encontra uma saída extremamente astuta para essa dificuldade: ele
afirma que todas as mônadas representam o mesmo, mas não do mesmo modo.
As mônadas podem ser individuadas e distinguidas umas das outras em fun-
ção de possuírem percepções que apresentam diferentes graus de distinção/
confusão. Dessa maneira, ainda que todas as mônadas expressem igualmente o
mundo em seu todo, as mônadas se deixam individuar e se distinguir umas das
outras por possuírem percepções diversamente distintas ou diversamente con-
fusas. Essa ligação aos seus respectivos corpos próprios, que é o que possibilita
que as mônadas expressem o mundo, é também a fonte dos graus diversos de
distinção e confusão de suas percepções. Isso se dá porque todo corpo tem de
necessariamente assumir uma posição na extensão, o que implica que todos os
outros corpos estejam situados a diferentes distâncias em uma malha espaço-
-temporal que se distende a partir do ponto ocupado por esse corpo. Assim,
obrigatoriamente alguns corpos estarão mais próximos desse corpo, enquanto
outros estarão mais distantes. Leibniz considera que as modificações presentes
nos corpos expressam ou registram de maneira mais nítida o que ocorre nas
suas imediações e de maneira menos nítida e mais confusa aquilo que ocorre
mais distante deles. Uma mônada, ao expressar o corpo ao qual ela está liga-
6 Essa imagem é utilizada por Leibniz em diversos textos, dentre os quais podemos
destacar os Princípios da Natureza e da Graça (§3) e o Discurso de Metafísica (§9).
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As noções de distinção/confusão desempenham, assim, um papel central
não apenas na epistemologia leibniziana, mas igualmente em sua metafísica,
pois é apenas através do apelo aos diferentes graus de distinção/confusão pre-
sentes nas diversas percepções das mônadas que se torna possível que as môna-
das criadas possam ser individuadas e diferenciadas umas das outras. Desse
modo, dizer que as diversas mônadas constituem diferentes perspectivas ou
pontos de vista acerca do mundo não significa, na filosofia de Leibniz, nada
além do que afirmar que as percepções das diferentes mônadas são distintas/
confusas de modos dessemelhantes, quer dizer, que elas apresentam graus desi-
guais de distinção/confusão. É imprescindível, então, que se determine de
maneira precisa quais são as bases sobre as quais se apoia a distribuição das
percepções em um gradiente de percepções mais ou menos distintas.
Na literatura mais recente acerca do pensamento de Leibniz há uma viva
discussão acerca desse tópico. No que segue vou reconstruir em traços largos
essa discussão, mostrando em seguida por que considero que ela se apoia em
uma compreensão algo equivocada da doutrina leibniziana.
A interpretação mais natural da concepção leibniziana de distinção repou-
sa sobre o estabelecimento de um vínculo interno entre essa noção e a de cons-
ciência. Dessa forma, o esclarecimento da subsistência de graus diversos de dis-
tinção estaria associado à aceitação de que há diferentes graus em que as môna-
das podem ser conscientes de suas percepções, variando desde as situações em
que elas não registram de nenhuma forma seus estados internos até aquelas em
que os conteúdos desses estados são a elas totalmente presentes. Seríamos leva-
dos, assim, a chamar as percepções conscientes de distintas e as inconscientes
de confusas, elucidando, portanto, a noção de distinção através do apelo às
noções de consciência e de registro.
das coisas, ainda que seja verdade que essa representação seja confusa quanto ao detalhe de
todo o universo e distinta em apenas uma pequena parte das coisas (...) Não é no objeto,
mas na modificação do objeto do conhecimento que as mônadas são limitadas. Todas elas
tendem confusamente ao infinito, ao todo; mas são limitadas e distinguem-se pelos graus
das percepções distintas” (leibniz, 2004, p. 142).
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Para ele, o grau de distinção/confusão das percepções está, portanto, inter-
namente associado a quão sensíveis ou insensíveis as mônadas são às infor-
mações acerca do universo que essas percepções veiculam. O ponto central
na determinação do grau de distinção de uma percepção diz respeito, então,
a quanto do conteúdo representacional que essa percepção porta é, por assim
dizer, acessado pela mônada na qual essa percepção se encontra. 8
Apesar dessa interpretação ser prima facie plausível, ela apresenta, contu-
do, uma dificuldade concernente à individuação das enteléquias. Essa dificul-
dade foi levantada inicialmente por Robert Brandom (1981), em seu artigo
sobre graus de percepção em Leibniz. O ponto de Brandom é que essa vincula-
ção entre distinção e consciência somente pode ser válida em relação às almas e
aos espíritos, que são dotados, respectivamente, de sensações e de apercepções,
e não apenas de meras percepções, não se aplicando às enteléquias, as quais
não são dotadas de nenhum tipo de senciência ou de reflexão. Dessa maneira,
na medida em que as enteléquias não possuem, em função da baixa complexi-
dade estrutural dos corpos aos quais elas estão ligadas, capacidade de acessar
ou registrar o conteúdo representacional constitutivo de suas percepções, não
parece ser razoável que se busque explicar os diferentes graus de distinção ou
de obscuridade de suas meras percepções através do recurso à diversidade dos
graus de consciência desses conteúdos.
A dificuldade levantada por Brandom relativa à vinculação entre distinção
e consciência diz respeito, assim, ao fato dessa interpretação de Leibniz apelar
a diferentes graus de consciência para esclarecer a gradação de distinção/obs-
curidade no interior do conjunto das percepções que inerem às enteléquias,
ainda que essas sejam caracterizadas como mônadas desprovidas de qualquer
tipo de consciência. O problema é que, não sendo as enteléquias sencientes,
8 Retomo nos parágrafos que se seguem, com algumas pequenas modificações, minha
apresentação das concepções de Robert Brandom e Margaret Wilson presentes em meu
artigo (marques, 2019, pp. 41-62). Gostaria de ressaltar, entretanto, que minha posição
acerca desse tópico sofreu fortes alterações desde então, o que pode ser constatado com a
leitura do presente artigo.
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esse critério, mais distinto e menos confuso do que p1 e p2, as quais possibili-
tam que se infira apenas, respectivamente, que o objeto é vermelho e que ele é
cúbico. Partindo unicamente de p1 não seria possível distinguir esse objeto de
uma esfera vermelha. Da mesma forma, a partir de p2 não se poderia diferen-
ciá-lo de um cubo azul. Unicamente p3 possibilitaria que, com base nas per-
cepções dessas mônadas, fossem discernidos uns dos outros o cubo vermelho, a
esfera vermelha e o cubo azul. Por essa razão p3 seria mais distinto que p2 e p1.
Os estados perceptivos em que as mônadas se encontram a cada momento
expressam, de acordo com uma das mais características teses da metafísica lei-
bniziana, a totalidade do universo, vale dizer, eles expressam todas as modifi-
cações de todas as mônadas. Essa interexpressividade mútua tem como base a
harmonia preestabelecida entre todas as mônadas que compõem o mundo, e é
isso que possibilita identificar os conteúdos de seus estados internos com seu
poder de inferência. Nas palavras de Brandom:
Uma vez que as mônadas não se deixam diferenciar umas das outras em
função daquilo que elas representam, a saber, o universo como um todo, elas
se individuam em função do modo como o conteúdo intencional relativo ao
todo do universo se distribui entre as diversas percepções que constituem seus
estados perceptivos. Assim, retomando o exemplo acima, uma mônada a com
a percepção p3 seria diferente de uma mônada b com as percepções p1 e p2, ain-
da que os conteúdos de p1 e p2 associados correspondam ao conteúdo de p3.
Com isso, torna-se possível individuar as mônadas a e b ainda que o conteúdo
expressivo total delas coincida. A diferença entre elas, e que possibilita que elas
sejam indivíduos distintos um do outro, está relacionada, então, ao fato de elas
O que Brandom parece sustentar é que, uma vez que as percepções são
representações, seu conteúdo deve ser acessível ao sujeito ao qual esse estado
representacional inere, sendo individuado pelos seus diferenciados domínios
expressivos próprios a cada uma delas. É a pressuposição tácita dessa acessibili-
dade interna que possibilita a Brandom dizer, por exemplo, que as percepções
fornecem às mônadas que as possuem informações acerca do mundo ou que
essas mônadas experienciam o mundo por meio de suas percepções. Contu-
do, a adoção da ideia de acessibilidade interna padece de um problema capital
no que diz respeito à questão que ora discutimos: ela não pode ser aplicada
sem mais às puras enteléquias, isto é, às mônadas que possuem unicamente
meras percepções e que não são, portanto, nem sencientes nem racionais. As
enteléquias caracterizam-se exatamente por não registrarem o conteúdo das
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próprias percepções, não possuindo, assim, esses conteúdos nenhuma dimen-
são fenomenal, quer dizer, esses conteúdos não são vivenciados de nenhuma
maneira pela mônada que os porta. Não há nas puras enteléquias, por assim
dizer, nenhum acesso interno aos conteúdos de suas percepções, não sendo
razoável, portanto, que se apele à noção de acessibilidade interna para dar con-
ta dos critérios de distinção que sejam válidos para os três tipos de percepções
monádicas.
Eu gostaria de pontuar aqui que a adoção da parte de Brandom da ideia
de acessibilidade interna ao conteúdo é, para dizer o mínimo, inusitada, uma
vez que foi precisamente levando em conta a natureza própria das enteléquias
que ele recusou o vínculo interno entre distinção e consciência proposto por
intérpretes clássicos como Furth, Parkinson e McRae. A impressão que fica é a
de que ele deixou entrar pela janela o demônio que havia expulsado pela porta.
No entanto, seria, a meu ver, equivocado rejeitar a interpretação de Bran-
dom simplesmente em função de seu compromisso com a tese de uma acessi-
bilidade interna aos conteúdos das percepções, uma vez que a segunda noção,
a saber, a de dedutibilidade externa parece independer conceitualmente da pri-
meira. Assim, a rejeição da primeira tese não acarreta a recusa da segunda.
Mas essa segunda tese se defronta com suas próprias dificuldades.
Em primeiro lugar, como bem o sublinha Margaret Wilson (1999, p. 340),
ela depende da consideração de que um estado perceptivo em que uma môna-
da se encontra seja constituído por diversas percepções coocorrentes. Uma
questão que se coloca aqui é a de como seria possível a individuação de per-
cepções coocorrentes em meras enteléquias, isto é, em mônadas totalmente
desprovidas quer de consciência fenomenal ou senciente quer de consciência
reflexiva. Em mônadas conscientes podemos apelar para suas vivências senso-
riais ou para os modos pelos quais elas se apercebem reflexivamente de suas
percepções para diferenciar, no interior de um estado perceptivo, umas das
outras as diversas percepções que o compõem. O problema aqui é o de esta-
belecer como essas percepções podem ser individuadas nas meras enteléquias,
uma vez que as percepções, por um lado, não são estados físicos e, por outro,
não se deixam acessar internamente pela mônada à qual elas inerem. Podemos
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vando-se sua unidade do fato de essa multiplicidade ser percebida por uma
mente como constituindo uma unidade. Fenômenos não podem ser, assim, de
acordo com Leibniz, entes reais ou substanciais, pois além de dependerem de
Deus para existir eles também têm sua unidade dependente do modo de ser
pensado por uma mente externa. Ser um fenômeno é, então, um modo de ser
derivado, e não um modo de ser fundamental, uma vez que um fenômeno é
unicamente na medida em que ele é pensado por uma mente dele distinta. O
incontornável apelo a uma mente externa – ainda que seja a mente divina – no
caso da determinação do domínio expressivo das percepções das puras ente-
léquias traz, então, consigo o espinhoso problema de fenomenalização dessas
enteléquias, as quais, entretanto, como dito expressamente por Leibniz, são
substâncias.
As duas noções basilares que constituem a concepção de Brandom – a
saber, dedutibilidade externa e acessibilidade interna – são, assim, usando uma
linguagem suave, dificilmente aplicáveis às meras percepções presentes nas
enteléquias, não consistindo a interpretação de Brandom, portanto, em uma
resposta viável para a questão da determinação do critério de distintividade das
puras percepções presentes nas meras enteléquias.
Não julgo, contudo, que o fracasso de Brandom seja de alguma maneira
catastrófico, pois suspeito que, no final das contas, ele apenas fornece uma res-
posta equivocada para um problema inexistente. Vamos agora ao meu ponto.
Brandom critica, como vimos acima, a concepção compartilhada,
dentre outros, por Furth, Parkinson e McRae, segundo a qual os graus diversos
de distinção das percepções estão vinculados aos diferentes graus de consciên-
cia que as mônadas possuem dessas percepções, contemplando um gradiente
que vai desde um estado de ausência de registro do conteúdo dessas percepções
até o estado do pleno acesso a tais conteúdos. Brandom argumenta que, sendo
as enteléquias exatamente caracterizadas pela completa falta de consciência,
não seria possível fundamentar a diferença dos graus de distinção de suas per-
cepções através do apelo à noção de consciência.
Creio que Brandom vê aqui uma dificuldade inexistente em função de
uma compreensão da parte dele por demais simplificadora e algo equivocada
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considerar que a consciência de si não emerge a partir de algum tipo de inten-
sificação da consciência do mundo, não havendo, dessa maneira, nenhum pro-
cesso natural por meio do qual almas tornem-se espíritos.
Uma vez que, de acordo com a doutrina leibniziana, as mônadas existem
sempre ligadas a corpos, formando seres vivos, torna-se uma questão para Lei-
bniz a determinação de quando e como surgem as almas racionais próprias aos
seres humanos. No parágrafo 91 de seus Ensaios de Teodiceia, ele rejeita a ideia
de que as almas racionais sejam criadas por Deus no momento da concepção
ou do nascimento e formula a sua concepção do seguinte modo:
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com eles como um príncipe se relaciona com seus súditos ou um pai com seus
filhos, formando com esses uma sociedade moral, um mundo moral no inte-
rior do mundo natural.
Sendo assim, contrariamente ao que poderia sugerir o princípio leibnizia-
no da continuidade, para Leibniz a razão não se encontra presente em graus
menores ou mesmo infinitesimais nas mônadas animais nem nas meras ente-
léquias. Na verdade, segundo a doutrina leibniziana, as mônadas desses dois
tipos não são dotadas de razão em nenhum grau. O que não significa, contu-
do, e esse é o ponto importante para mim aqui, que elas não sejam dotadas de
consciência. Leibniz diferencia em seu sistema – ainda que não nominalmente
– entre uma consciência do mundo e a consciência de si (ou consciência refle-
xiva, ou razão). A consciência de si está presente unicamente nos espíritos,
não se encontrando em nenhum grau nas demais mônadas. Já a consciência do
mundo possui uma natureza gradativa e acompanha, ainda que em graus infi-
nitesimais, todas as percepções.
Que essa é a posição de Leibniz fica claro pelo papel desempenhado pela
noção das pequenas percepções9 em seu sistema. Leibniz, como todos devem
se recordar, introduz essa noção para dar conta do fato de que muitas das sen-
sações que registramos parecem ser o produto da associação de infinitas outras
sensações, as quais, paradoxalmente, não são elas mesmas por nós registradas.
Quando ouvimos, usando o repisado exemplo de Leibniz, o barulho de uma
onda do mar quebrando, esse som ouvido resulta do som produzido pela que-
da de cada uma das milhões de gotas de água que constituem a onda que se
quebra. A sensação auditiva produzida pelo quebrar da onda é, dessa maneira,
fruto da combinação dos quase imperceptíveis sons gerados pela queda par-
ticular de cada uma dessas gotas, podendo se considerar, então, que essa sen-
sação consciente é produto de infinitas percepções das quais não temos clara
consciência, mas que resultam naquela. O acúmulo de pequenas percepções
9 Retomo aqui algumas das considerações que fiz em Marques (2019), mas em sentido
oposto do presente naquele outro texto. Divirjo atualmente de várias das afirmações lá
presentes e que, por motivos óbvios, não são aqui retomadas.
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te, ainda que em grau infinitesimal, em todas as percepções encontráveis nas
almas animais e nas meras enteléquias, sendo, por esse motivo, plenamente jus-
tificável, no interior do sistema leibniziano, que se fundamente, como o fazem
Furth, McRae e Parkinson, os graus de distinção das percepções inerentes às
meras enteléquias nos graus de consciência que essas possuem de suas percep-
ções, uma vez que, tal como o evidencia a noção de pequenas percepções, todas
as mônadas possuem consciência, ainda que em grau ínfimo e tendente a zero,
de suas percepções.
referências bibliográficas:
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tory of Philosophy, vol. 19, n. 4.
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notas de Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Martins Fontes.
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Piauí e Juliana Cecci Silva. São Paulo: Estação Liberdade.
Edgar Marques p. 15 - 40 39
marques, s. (2019). et al ii (ed.), Caminhos da Razão, Mauá, Rio de Janeiro.
parkinson, g. (1982), “The ‘Intellectualization of Appearances’: Aspects of
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bniz. Critical and Interpretative Essays. Minneapolis: University of Min-
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ness, Representation, and God’s Mind”. In: Ideas and Mechanism. Essays
on Early Modern Philosophy, edited by M. Wilson, Princeton: Princeton
University Press.
Giorgio Ferreira
Professor, Universidade do Estado da Bahia, Salvador, Brasil
giorgio.ferreira@gmail.com
resumo: O presente artigo tem por meta analisar a possibilidade de concilia-
ção entre a determinação e a liberdade em Espinosa. Dessa maneira, o artigo
iniciará tratando das duas séries causais indicadas por Espinosa no §100 do
tie: a “série das coisas fixas e eternas” e a “série das coisas singulares mutá-
veis”. A abordagem dessas duas séries causais tem por meta compreender o que
as distingue e as implicações dessa distinção para a filosofia de Espinosa. Em
seguida analisar-se-ão as noções de essência objetiva e essência formal eviden-
ciando que o que está em jogo em eiip7 é a adequação entre essas duas essên-
cias, e não uma adequação entre a essência e a existência. Nesse momento tam-
bém será evidenciado que o tipo de causalidade que está em jogo em eiip7 e
eiip8 é uma causalidade imanente, do tipo todo-parte, a qual se faz entre o
conjunto e seus subconjuntos: ser parte é ser um subconjunto de Deus. Feito
isso, mostrar-se-á que no âmbito da existência dos subconjuntos — e não no
âmbito de sua essência — é possível autonomia relativa interpares, desde que
essa autonomia seja concebida como subordinada aos conjuntos anteriores.
Nesse momento também será evidenciado em que medida os modos finitos
podem ser deduzidos da substância infinita sem que isso implique a negação
de sua liberdade.
palavras-chave: Essência; existência; causalidade; determinação; liberdade.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 41
1. a série das coisas fixas eternas e a série das coisas singulares e
mutáveis: a ordem da essência e a ordem da existência
2 Numeração Bruder
3 Doravante referido como tie.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 43
será enunciado em eiip7, mas de duas ordens distintas. Essas duas ordens dife-
rem entre si não enquanto pensamento e extensão, mas enquanto uma exprime
a ordem e concatenação das propriedades intrínsecas de uma coisa, e a outra
exprime a sequência das denominações extrínsecas da mesma coisa. Para escla-
recer ainda mais as diferenças entre essas duas ordens pode-se tomar novamen-
te o exemplo da definição do círculo, oferecido por Espinosa no §96 do tie.
Um círculo pode ser gerado tanto por um segmento de reta girando em torno
de um eixo fixo quanto por um carimbo. Pegue-se, por exemplo, um círculo
vermelho carimbado em um papel. As propriedades desse círculo podem ser
explicadas tanto pela definição genética quanto pelo conjunto de circunstân-
cias que gerou aquele determinado círculo. Isto é, esse círculo vermelho em
um papel pode ser explicado pela série das coisas fixas e eternas, e, nesse caso,
explicar-se-ão suas propriedades intrínsecas, ainda que não tenha sido gerado
por um compasso; por outro lado, esse círculo pode ser explicado pelo con-
junto infinito de circunstâncias que desencadeou o carimbo vermelho de sua
figura no papel, e, nesse caso, ter-se-ão explicado suas denominações extrín-
secas, tais como ser vermelho e estar em um papel, mas não suas proprieda-
des intrínsecas. Nos dois casos tem-se uma cadeia determinada4, mas apenas
a série das coisas fixas e eternas possui força de definição e é capaz de oferecer
uma explicação válida para todos os círculos, ainda que não explique as pro-
priedades extrínsecas que cada círculo possuirá; e, se a série das coisas fixas e
Além das duas séries apontadas acima, os parágrafos 33-34 do tie colocam
em jogo uma outra distinção que perpassa todo o tie, e que está em jogo ao
longo de toda a Ética, qual seja, a distinção entre essência objetiva e essência
formal, bem como a relação existente entre elas. Nesse momento, Espinosa
indica que uma essência formal pode ser conteúdo de uma outra ideia, isto
é, pode ser objeto de uma outra ideia: uma essência formal pode estar con-
tida objetivamente em outra ideia. A ideia de Pedro, sua essência objetiva,
contém sua essência formal enquanto objeto. Ao passo que a ideia da ideia de
Pedro conterá objetivamente a essência objetiva de Pedro. Ou, dito de outra
5 A diferença entre a “série das coisas fixas e eternas” e a “série das coisas singulares
mutáveis” é retomada em kv, ii, cap. 5, ao falar das coisas que são eternas por sua natureza,
das que são eternas em razão de sua causa e das que são perecíveis.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 45
maneira, a ideia da ideia de Pedro contém objetivamente a essência objetiva de
Pedro; e a essência objetiva de Pedro conterá objetivamente a essência formal
de Pedro.6 Ou seja, “para inteligir a essência de Pedro não é preciso inteligir a
própria ideia de Pedro, e muito menos a ideia da ideia de Pedro” (espinosa,
2004, tie, §34, p. 21), basta que se intelija Pedro, isto é, basta que se intelija sua
essência formal. A relação aí estabelecida, entre o ideado e sua ideia, é a mesma
relação estabelecida entre o corpo humano e a mente humana; e é também a
mesma relação entre a ideia e a ideia da ideia, e entre a mente humana e o inte-
lecto de Deus. Trata-se de uma coisa que é objeto de uma ideia, que, por sua
vez, pode ser objeto de outra ideia, que por sua vez pode ser objeto de outra
ideia, uma contida na outra, indefinidamente, até que se alcance o intelecto de
Deus. É por esse motivo que Espinosa afirma, em eip17esc. que “a verdade e
a e a essência formal das coisas [formalis rerum essentia] são o que são porque
elas assim existem, objetivamente, no intelecto de Deus [Dei intellectu existit
obiective]” (espinosa, 2010, p. 41).
Quando Espinosa afirma que a ordem e a conexão das coisas é o mesmo
que a ordem e a conexão das ideias ele está afirmando exatamente a adequação
entre a essência formal de uma coisa e sua essência objetiva, tal qual ela existe
no intelecto de Deus. Essa adequação entre a essência formal e a essência obje-
tiva não é equivalente à adequação entre a ordem da essência (série das coisas
fixas e eternas) e a ordem da existência (série das coisas singulares mutáveis). A
ordem da essência se exprime objetivamente como a ordem da definição ima-
nente, da ideia adequada; e, ao menos a partir da Ética, se exprime formalmen-
te como tudo aquilo que dessa ordem deriva, isto é, como um esforço interno
que a coisa faz, a partir de suas propriedades intrínsecas, para permanecer na
existência. A ordem da existência, por sua vez, refere-se às relações que as coi-
6 É por isso que a certeza obtida no nível da relação entre a essência objetiva e a essência
formal já é suficiente para atestar a veracidade da coisa: a certeza no nível da ideia da ideia
apenas reproduz a primeira certeza no nível da ideia. A relação entre a ideia e a ideia da
ideia também é uma relação entre a essência objetiva e a essência formal. Sobre o assunto,
cf. também gleizer, 1999, pp. 141-248.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 47
denominações extrínsecas é uma relação de inadequação, posto que tais pro-
priedades não se explicam de forma imanente pela essência objetiva da coisa.
Ou, para finalizar, a maneira como a essência formal de Pedro é afetada por
caracteres decorrentes de sua existência não é abarcada por sua essência obje-
tiva (eiip29cor.).
Saindo do tie e indo em direção à Ética, a afirmação de que “a ordem e a
conexão das coisas é o mesmo que a ordem e a conexão das ideias”, em eiip7,
se refere exatamente à relação imanente que se dá entre a essência objetiva e a
essência formal, e não à relação transitiva — extrínseca e inadequada — que se
dá entre a essência formal de uma coisa e as propriedades que decorrem de sua
relação com a essência formal de outras coisas, isto é, da “série das coisas singu-
lares mutáveis”.7 A maior prova disso é que o corolário que se segue à eiip7 afir-
ma que “tudo o que se segue, formalmente [formaliter], da natureza infini-
ta de Deus segue-se, objetivamente [objective], em Deus, na mesma ordem
e segundo a mesma conexão, da ideia de Deus” (espinosa, 2010, p. 87, negri-
tos meus). Esse postulado não pode ser lido ignorando-se a relação entre reali-
dade formal e realidade objetiva, e, mais que isso, ele deve ser lido aplicando-
-se às essências, ou ideias adequadas, posto que se trata das coisas existentes em
Deus, e Deus não possui ideias inadequadas. Trata-se, então, da relação entre a
essência objetiva e a essência formal, e não da relação transitiva entre a essência
formal de um modo e a essência formal de outro modo. As propriedades da
essência formal de um modo finito decorrem de sua essência objetiva, e não da
essência — seja formal ou objetiva — de outro modo.8 Trata-se de saber como
7 Ou, caso se prefira, eiip7 refere-se a uma relação entre essência objetiva e as propriedades
intrínsecas que ela implica na existência da coisa, e não uma relação entre a essência objetiva
e os acidentes, ou denominações extrínsecas. Para continuar no exemplo do círculo, a sua
essência objetiva — que não tem periferia nem centro — implica que o círculo existente
em ato possua periferia, centro e todos os raios do mesmo tamanho, mas não implica que
ele seja vermelho ou verde. A essência objetiva do círculo implica algumas propriedades em
sua essência formal, mas não implica nenhuma propriedade extrínseca, ou acidental, que
decorre de sua interação com outros objetos na existência.
8 “[...] a verdade e a essência formal das coisas são o que são porque elas assim existem,
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 49
3. eiip7 e a causalidade imanente
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 51
coisas singulares mutáveis, das biografias, mas a ordem das leis de Deus, das
leis da natureza (leis físicas, químicas, biológicas, as alergias, etc.) e como isso
impacta na essência singular que é Pedro.15 Ou seja, a ordem e a conexão das
ideias (essências objetivas contidas no intelecto de Deus) é o mesmo que a
ordem e a conexão das coisas (daquilo que as coisas são, isto é, de suas pro-
priedades intrínsecas, sua essência formal). Aquele que conhece a ordem da
essência (série das coisas fixas e eternas) conhece muito mais de Pedro do que
aquele que conhece apenas a ordem da existência (a série das coisas singulares
mutáveis) que o gerou ou que ele teve ao longo de sua vida. No primeiro caso
se conhecem as propriedades intrínsecas que derivam da essência objetiva de
Pedro e condicionam sua essência formal (eiip7); no segundo caso conhecem-
-se apenas denominações extrínsecas, ideias inadequadas, oriundas do contato
com outros corpos (eiip29cor.).
Um belo exemplo da relação de causalidade imanente entre o todo e as
partes é a Carta 32. Nessa carta Espinosa se propõe a responder à seguinte
questão: “Como conhecemos de que maneira cada uma das partes [pars] da
Natureza concorda com seu todo [toto conveniat] e como se vincula [cohaeret]
às restantes?”(guinsburg, 2014, vol. 2, p. 165; g iv 169-170). Não é à toa que,
na Carta 32, ao explicar a relação de conexão e do vínculo das partes da natu-
reza umas com as outras e com a totalidade, Espinosa remete ao exemplo do
sangue com a linfa e com o quilo, que configura-se exatamente como uma rela-
ção do todo com as partes.16 A relação de determinação entre todas as coisas
dos problemas enfrentados pela Ética, a saber, o caminho para a união da mente com Deus
(cf. eivp28). Nos três casos, a resposta é dada remetendo-se às relações entre conjunto e
subconjuntos, entre aquilo que está contido e aquilo que não está contido.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 53
seu corpo com as reações termodinâmicas, com a temperatura, com o oxigê-
nio, com os líquidos, com os nutrientes, e “de que maneira cada uma das partes
da Natureza concorda com seu todo e como se vincula às restantes” (guins-
burg, 2014, vol. 2, g iv 169-170, p. 165). É a partir dessas leis e das ideias des-
ses corpos que se compreende propriamente a essência de Pedro, e não a partir
do conjunto das biografias que o gerou em um determinado momento da his-
tória.17 Dessa maneira, compreendem-se as propriedades intrínsecas de Pedro
mediante a compreensão da causalidade que rege o todo na qual se insere a sua
proporção determinada de movimento e repouso, e não a partir da ordem da
existência, da série das coisas singulares mutáveis que gerou sua existência e
suas denominações extrínsecas: é o saber médico, mais do que o historiográfi-
co, que é importante para conhecer a essência de Pedro! No exemplo da Carta
32 passa-se do sangue — concebido enquanto totalidade do universo e cau-
sa imanente de suas partes — para a essência objetiva da linfa e do quilo nele
compreendidas; a partir da essência objetiva compreende-se a essência formal;
e das essências formais passa-se para as afecções dessas essências formais, isto
é, às afecções e afetos do sangue e da linfa. Da mesma maneira, passa-se do
intelecto de Deus para a ideia da ideia de Pedro, e dessa para a ideia de Pedro
(Partes 1 e 2 da Ética); e da ideia de Pedro para o próprio Pedro e sua essência
formal (Parte 3 da Ética); e da essência formal de Pedro para as suas afecções
e afetos (final da Parte 3 e Partes 4 e 5). Em todos os casos se passa de um con-
junto que funciona como causa imanente para um subconjunto menor que
lhe é subordinado. Se a mente do sangue possui a essência objetiva do quilo
e da linfa não é senão porque o seu ideado, o sangue, contém o quilo e a linfa
formalmente. Trata-se, aí, de uma causalidade imanente, e não de uma causa-
lidade transitiva.
O todo não é um aglomerado de coisas, o todo possui uma essência que
o define enquanto tal e que regula as relações das partes entre si e das partes
17 É por não tratar de biografias que essa ordem é dita “sob a perspectiva da eternidade”
[sub aeternitatis specie] (evp30). Essa ordem é um “eterno presente”, e não uma duração.
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não de sua essência” (espinosa, 2010, eip17esc., p. 41), e isso significa dizer
que João causa a existência de Pedro sem, com isso, gerar sua essência objetiva
ou formal; e (ii) a afirmação de que João causa Pedro e a ideia de João causa a
ideia de Pedro cai em um exemplo de causalidade transitiva e inadequada entre
as coisas e entre as ideias, o que não pode dar-se em Deus.
21 “a verdade e a essência formal das coisas são o que são porque elas assim existem,
objetivamente, no intelecto de Deus [intellectu existit objective]” (espinosa, 2010,
eip17esc., p. 41) (negrito meu). Cf. também eip30dem e eiip7cor.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 57
ção ela mesma. Ou, dito ainda de outra maneira, é possível uma alteração nos
modos sem ferir os decretos de Deus, sem ferir sua predeterminação (que se dá
no âmbito da totalidade). Isso posto, é possível haver liberdade no âmbito da
existência dos modos finitos, entre as partes, interpares, e é visando essa liber-
dade possível que Espinosa escreve o tie, o Breve Tratado, a Ética, o Tratado
Teológico-Político e o Tratado-Político. Toda a obra de Espinosa se inscreve nes-
se campo da possibilidade da liberdade interpares, a qual não conflita com os
decretos divinos, que regem a totalidade das coisas.
A ordem da existência [ordine existendi] é oriunda dessa interação interpa-
res. Ela é nomeada série das coisas singulares mutáveis [seriem rerum singula-
rium mutabilium] precisamente porque, nela, as coisas podem se alterar. Por
outro lado, a ordem da essência, ou ordem da natureza [ordinem Naturae],22
é chamada de série das coisas fixas e eternas [seriem rerum fixarum aeterna-
rumque] precisamente porque, apesar das alterações interpares, a essência (a
proporção, a lei que regula, os decretos de Deus, etc.) permanece a mesma. É
acerca dessa duas ordens que versa a Carta 64 ao tratar da “face do universo
inteiro que, embora mude de infinitas maneiras, permanece sempre a mesma
[facies totius Universi, quae quamvis infinitis modis variet, manet tamen semper
eadem]” (guinsburg, 2014, vol. 2, iv 278, p. 255).
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 59
determinada mais particularizada. A sequência das proporções determinadas
de movimento e repouso (isto é, a sequência das leis) é a mesma sequência das
ideias dessas proporções; a sequência das essências formais é a mesma sequên-
cia das essências objetivas, ou seja, “a ordem e a conexão das ideias é o mesmo
que a ordem e a conexão das coisas” (espinosa, 2010, eiip7, p. 87). Explicita-
-se, assim, e mais uma vez, a identidade entre a ordem e a conexão das ideias e
a ordem a conexão das coisas.
Caso se queira a dedução dos modos finitos a partir do pensamento, pode-
-se proceder da seguinte maneira. Em primeiro lugar, a potência infinita de
Deus implica atividade, e isso se exprime no pensamento como vontade e
intelecto, que são os modos infinitos imediatos (eip32cor.1). Em um segundo
momento têm-se os efeitos dessa atividade, isto é, o conjunto das ideias exis-
tentes no mundo, qual seja, o modo infinito mediato. Esse conjunto de ideias
é a mente do modo infinito mediato da extensão: a mente de Deus. Em um
terceiro momento, o modo infinito mediato, por sua vez, implica ideias dos
corpos sólidos, líquidos e gasosos, ideias dos mares e das marés, dos gases e das
correntes de ar, ideias dos animais, dos homens, e, por fim, uma ideia de João e
de Pedro, e em ideias dos afetos de João e Pedro. Trata-se de uma série em que
cada conjunto se subordina ao anterior, e cujas leis e ideias não podem con-
tradizer as do anterior (eiiip5). Leis (extensão) ou essências objetivas (pen-
samento) mais universais se sobrepondo às menos universais, e leis que deri-
vam de um corpo particular (o conjunto do metabolismo, das alergias, etc.).
Nessa sequência, é possível haver alteração nos subconjuntos, interpares, desde
que isso não altere a quantidade de movimento e repouso do universo inteiro.
Conforme eiip7, a ordem do pensamento é a mesma da extensão: tanto a lógi-
ca quanto a física guiam-se por princípios imanentes, e não transitivos. A João
e a Pedro cabe conhecer a lei que rege seu próprio corpo, suas próprias ideias,
e, nesse âmbito específico, eles são livres para agir e determinar aquilo que a
partir deles se produzirá (eiiid2), isto é, para agir sobre seus afetos (evp2).
Convém notar que aquilo que a ideia de Pedro pressupõe não é a ideia
de João (seu pai), mas a ideia dos corpos que seu corpo pressupõe. O corpo
23 Se essa série fosse explicada pela causalidade transitiva entre Pedro e João operada no
âmbito da existência, e não da essência, configurar-se-ia como uma série incognoscível, haja
vista que não teria fim.
24 Sobre infinito em ato e “infinito porque não tem fim” e sobre a noção de conjunto, cf.
ferreira, 2021.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 61
no que respeita à ordem para que todas as nossas percepções sejam orde-
nadas e unidas, requer-se que, o mais depressa possível — e a razão o
exige — inquiramos se existe algum ser e, ao mesmo tempo, qual é
ele, que seja a causa de todas as coisas e cuja essência objetiva também
seja a causa de todas as nossas ideias; e então nossa mente, como dis-
semos, reproduzirá ao máximo a Natureza, pois possuirá objetivamente
a ordem e a união da mesma. [...] Mas é de notar que, aqui, por série
das causas e dos seres reais não entendo a série das coisas singulares
mutáveis, mas somente a série das coisas fixas e eternas (espinosa, 2004,
tie, §99-100, pp. 58-9).
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 63
uma necessidade de ordem imanente, e não transitiva. Ora, mas como explicar
que João é pai de Pedro se a relação de paternidade é, precisamente, uma rela-
ção transitiva? E como explicar o círculo vermelho carimbado em um papel
por um homem em uma manhã de sexta-feira, se a geração desse círculo por
esse homem é, precisamente, uma causalidade transitiva? E como explicar esses
predicados associados ao círculo — vermelho, carimbado, sexta-feira — que
são, precisamente, denominações extrínsecas em relação ao círculo, e, portan-
to, não são gerados diretamente a partir da causalidade imanente?
Ao tratar da “série das coisas fixas e eternas” e da “série das coisas singula-
res e móveis” no tie, Espinosa coloca a segunda como derivada da primeira.
Isso significa dizer que as denominações extrínsecas decorrem das proprieda-
des intrínsecas, e que a causalidade transitiva decorre da causalidade imanente,
e, portanto, Deus só é causa das denominações extrínsecas secundariamente,
ou, o que dá no mesmo, a causalidade transitiva é, antes, uma decorrência do
que uma causa propriamente dita. Nessa medida, a relação de paternidade de
João em relação a Pedro deve ser explicada tendo em vista os afetos de João
que, agindo de dentro pra fora, o lançaram em direção à Joana25, cujos afetos,
também agindo de dentro para fora, a lançaram em direção a João. É dessa
ação combinada entre a causa imanente agindo em João e a causa imanente
agindo em Joana que surge Pedro. Ou, dito de outra maneira, a causalidade
transitiva de João e Joana em relação a Pedro é um efeito da causalidade ima-
nente que age em João e em Joana. É por essa causalidade transitiva — secun-
dária em relação à causalidade imanente — que se explica que Pedro tenha
nascido em uma determinada data e local. Nesse exemplo, Deus é a causa da
essência, e, portanto, causa imanente e causa das propriedades intrínsecas de
Pedro; e Deus também é causa imanente da existência de Pedro, e, portanto,
de suas denominações extrínsecas, na medida em que é causa imanente tanto
de João quanto de Joana e de tantos outros seres que concorreram para que
esse encontro ocorresse. Ou seja, a existência de Pedro não se dá diretamente a
25 Personagem fictícia criada para fazer alusão à esposa de João e mãe de Pedro.
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 65
(espinosa, 2010, eip33esc.1, p. 57), e que, nas coisas criadas, a causa da exis-
tência não é a causa da essência. É também nesse sentido que Espinosa distin-
gue entre uma ordem e concatenação de ideias que se faz segundo as afecções
do corpo e que geram as ideias inadequadas (denominações extrínsecas), e que
varia de uma pessoa para outra; e uma ordem e concatenação das ideias que se
faz segundo o intelecto, isto é, segundo definições genéticas, segundo as essên-
cias, “e que é a mesma em todos os homens [et qui in omnibus hominibus idem
est]” (espinosa, 2010, eiip18esc., p. 113).
A relação entre essas duas séries (da essência e da existência) não coinci-
de com uma regressão ao infinito justamente por se tratar de duas séries dis-
tintas e acerca das quais não há equivalência. É possível pensar a causalidade
transitiva da existência de Pedro por uma série que regressa ao infinito, mas
não é possível pensar a causalidade imanente de sua essência por regressão ao
infinito justamente porque, nesse caso, a série termina em Deus. A regressão
ao infinito se dá, portanto, quando se está na série das coisas singulares mutá-
veis, na ordem da existência, na sequência das causas transitivas. Mas, deve-se
lembrar, que é justamente por abranger “infinitas circunstâncias atinentes a
uma e mesma coisa”, e por não ter nenhuma conexão com sua essência que a
série das coisas singulares mutáveis, ou “ordem da existência”, não é uma ver-
dade eterna, e, portanto, não importa ser conhecida (tie, §101). Apenas uma
das séries, justamente a que não importa ser conhecida e não é uma verdade
eterna, regride ao infinito; a outra — a que importa ser conhecida e que pro-
move a adequação entre essência objetiva e essência formal (eiip7) — termina
em Deus. Assim, para retomar o exemplo acima mencionado, eiip7 não trata
da relação transitiva existente entre as causas quando concorreram para que
João e Joana gerassem Pedro; mas, antes, de considerá-los agindo cada um por
si, segundo a sua própria essência, de maneira imanente, e não transitiva. É o
conatus, ou essência formal, de João e seu esforço por permanecer na existência
quem o determina a querer gerar filhos e perpetuar a si mesmo e sua espécie; é
o conatus de Joana, seu esforço por permanecer na existência, quem a determi-
na a querer gerar filhos e perpetuar a si mesma e sua espécie. É cada um dessas
essências formais, agindo de maneira imanente, o que determina o encontro e
O que se percebe é que as coisas podem ser ditas determinadas em dois sen-
tidos, e não há univocidade entre eles. As coisas são duplamente determinadas.
Em um primeiro sentido, na série das coisas fixas e eternas, as coisas são deter-
minadas desde a eternidade. Trata-se, aí, de verdades eternas. Esse é o âmbito
das essências objetiva e formal, e de sua adequação compondo uma e mesma
ordem imanente (eiip7 e eiip8): trata-se aí de uma determinação intrínseca,
imanente. Em um segundo sentido as coisas são determinadas pelos fatos que
condicionam sua existência. Trata-se, aí, de determinações extrínsecas, con-
tingentes à essência da coisa, de “verdades de fato”, aquelas cujo oposto não
implica contradição. Esse é o âmbito da existência, no qual uma e mesma coisa
tanto pode ser a causa de que a outra exista quanto pode ser a causa de que a
outra não exista, nos diz Espinosa (tie, §100). Da série das coisas fixas e eter-
nas decorrem as essências e as propriedades intrínsecas que lhes são imanentes.
Da série das coisas singulares e mutáveis — ordem da existência — decorre a
localização das coisas no espaço e no tempo, suas propriedades extrínsecas e
o número (eip8esc.2). Nessa medida, a essência formal dos modos finitos é
duplamente determinada. De um lado ela é determinada internamente por
sua essência objetiva e configura-se como um esforço por aderir a ela; de outro
lado ela é determinada pela existência dos outros modos que podem fazer com
que esse esforço cesse, isto é, com que a essência atual cesse de existir e que a
coisa deixe de existir formalmente. Quanto à primeira ordem, é inteiramente
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 67
vedada qualquer alteração por parte dos modos finitos; no entanto, quanto à
ordem da existência, essa alteração é perfeitamente possível. Não é permitido a
um homem alterar a composição de seu corpo, mas é permitido — sem alterar
sua essência objetiva — alterar a sua biografia.
Acerca da relação entre liberdade e determinação, o que se deve considerar
em primeiro lugar é que a admissão de que as coisas singulares podem deter-
minar a si mesmas em alguma medida é clara e óbvia, e sua negação consistiria,
inclusive, na negação de todo o projeto espinosista de uma reforma do inte-
lecto, de uma ética e da libertação do homem. Em segundo lugar, a “série das
coisas singulares mutáveis” não pode ser explicada levando em consideração
única e exclusivamente a determinação extrínseca de uma coisa sobre outra.
Isto porque tal concepção implicaria conceber as coisas como desprovidas de
determinação interna, isto é, como desprovidas de essência objetiva e essên-
cia formal. Somente algo que não possui essência pode ser determinado ape-
nas externamente, por causalidade transitiva; mas algo que não possui essência
não existe. Nessa medida, qualquer tentativa de pensar a ordem da existência e
das determinações extrínsecas deve levar em conta, também, a ordem da essên-
cia. Isso significa dizer que a série das coisas singulares mutáveis deve ser expli-
cada levando em consideração também aquilo que decorre do esforço de cada
ser finito por permanecer na existência, isto é, aquilo que decorre da essência
de cada ser finito, ou, caso se prefira, de sua determinação intrínseca, de sua
liberdade (eid7). Caso se coloque a questão em termos de liberdade huma-
na, pode-se afirmar que o que decorre da lei de Deus e de sua determinação é
a definição de homem (um composto de mente, corpo, conatus, um ser cujas
ideias compõem-se como uma narrativa mental, etc.), isto é, aquilo que, no
homem, é eterno; no entanto, a biografia, o conjunto de determinações extrín-
secas de cada um, aquilo que decorre mais das condições de sua existência do
que de sua essência, isso se dá pela inserção do homem na “série das coisas sin-
gulares mutáveis”. A biografia já não depende apenas da definição (eip8esc2),
mas de Deus mediado pelas coisas singulares (eiip9); e as coisas singulares,
por sua vez, possuem sua própria determinação interna e a possibilidade de,
em alguma medida, agirem determinadas internamente, caso contrário, não
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deração na “série das coisas singulares mutáveis” destrói as leis da natureza e a
possibilidade de se fazer ciência, uma vez que inseriria alguma contingência no
mundo. Todavia, não é necessário que a ordem da existência seja uma verdade
eterna para se salvaguardar a ciência em Espinosa. Primeiro, porque o próprio
Espinosa descarta essa série e a qualifica como algo que não importa ser conhe-
cido (tie, §100-101). Segundo, porque o conhecimento das ideias adequadas
é o conhecimento que se faz por definições genéticas, ou essências objetivas, e
isso aplica-se apenas à série das coisas eternas e fixas, e exclui a ordem da exis-
tência. Terceiro, porque o conhecimento intelectual nos mostra as coisas sob
a perspectiva da eternidade, e isso, novamente, aplica-se apenas à ordem das
essências, à série das coisas eternas e fixas e não à ordem da existência, que se dá
na duração (evp29esc.). Quarto, porque Deus age por causalidade imanente,
e não transitiva; e, assim, conhecer como Deus age é conhecer pela via intelec-
tual, das definições genéticas, e não pela via da causalidade transitiva. Dessa
maneira, a afirmação de que na ordem da existência o futuro não está estabele-
cido, e que ele depende em alguma medida do nosso esforço por perseverar na
existência, não conflita com a possibilidade de ciência na filosofia de Espinosa:
a ciência espinosana é da ordem da essência, e não da existência!
É justamente indicando que a ordem que importa ser conhecida é a da cau-
salidade imanente que se salva não apenas a ciência e a proposta de uma refor-
ma do intelecto, mas também a ética, a liberdade, o encontro com Deus, a bea-
titude e o pensamento que se dá sob a perspectiva da eternidade em Espinosa.
Jogar tudo isso fora e fazer a existência ser guiada unicamente por um deter-
minismo mecânico, transitivo e totalmente predeterminado é ignorar tanto a
concepção de ciência de Espinosa quanto o fato de que os modos finitos são
providos de conatus que os determinam internamente.26 Ciência é conhecer
26 Ora, se não é possível determinar-se internamente e fazer valer sua lei intrínseca contra
a determinação extrínseca, ao que Espinosa estaria se referindo quando, na Ética, fala em
“obedecer ao acaso e não a si mesmo” (evp41esc.)? E por que Espinosa fala de alguém que
está sujeito ao acaso como sendo alguém que não está sob seu próprio comando (eivPref.)?
E em que sentido fala que devemos nos conduzir frente às coisas da fortuna (eiip49esc.)?
8. considerações finais
27 Sobre o assunto e sua relação com as definições genéticas em Espinosa, cf. rezende,
2012.
28 É nesse sentido que Espinosa indica que é um fatalista, mas que não submete Deus aos
fatos (g iv 311).
Giorgio Ferreira p. 41 - 74 71
rar a própria ordem da existência. Nesse âmbito é possível ao homem alterar o
curso das coisas desde que isso não altere a proporção existente no todo, desde
que não altere a proporção total de movimento e repouso existente no univer-
so. Por fim, o homem alcança sua liberdade fazendo com que sua existência se
guie cada vez mais norteada por sua essência, ampliando, assim, sua potência
de agir.
Por fim, uma leitura do determinismo que ignore as duas ordens de cau-
salidade e resuma uma à outra é uma leitura que, ou (i) reduz toda relação de
causalidade à causalidade imanente e à série das coisas fixas e eternas, e, nesse
caso, perder-se-á o desenrolar da existência no tempo bem como as denomina-
ções extrínsecas que às coisas se ligam ao longo de sua existência; ou, (ii) o que
é ainda pior, reduz toda relação de causalidade à causalidade transitiva, e, nesse
caso, perder-se-á a maneira como Deus produz, ou seja, perder-se-á a ordem
dada pela essência das coisas, pela sua definição genética, pelas ideias adequa-
das.29 Essas questões devem ser listadas porque uma leitura do determinismo
que as ignore é uma leitura condenada a considerar o determinismo ignorando
tanto a diferença entre as duas ordens de causalidade (haja vista que conside-
rará apenas uma delas), quanto as diferenças entre propriedades intrínsecas e
denominações extrínsecas, isto é, não distinguirá entre o que importa e o que
não importa ser conhecido.
29 O debate sem fim entre Garret e Curley não parece ter outra fonte senão o fato de que
ambos ignoram os pontos elencados no parágrafo anterior e terminam por reduzir uma
série à outra. Cf. garret, 1991; curley, 1999.
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Mas não conheço, ainda, bastante claramente o que sou, eu que estou
certo de que sou; de sorte que, doravante, é preciso que eu atente com
todo cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por
mim, e assim para não me equivocar neste conhecimento que afirmo
ser mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora (des-
cartes, 1996, at vii, p. 25; ix, pp. 19-20).
Alquié, por exemplo, entende que o Discurso tem um viés científico e, por
isso, nele o cogito exerce uma “função” que está de acordo com as pretensões
da obra, é um modelo de verdade a ser seguido. Este comentador alerta que
nas Meditações não é o cogito que conduz ao sum, afirmado primeiramente,
pois nessa obra a expressão empregada é: Ego sum, ego existo. Como se trata da
afirmação de um Ser, uma existência, segundo este comentador, o cogito, nas
Meditações, não traz a existência de algo compreendido. No “Eu sou, eu existo”
não há a compreensão sobre o Eu que se constata como existente e, assim, este
Eu é conduzido a uma incompreensibilidade sobre o que ele é. Como conse-
quência, Alquié conclui que no “Eu sou, eu existo” das Meditações há a consta-
tação da existência de algo indeterminado (alquié, 1950, p. 183).
diferença entre tais formulações do cogito, ver alquié (2005. pp. 129-58) e forlin (2004).
Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso
que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois,
dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane,
não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser
alguma coisa (descartes, 1996, at vii, p. 25; ix, p. 19).
De sorte que, após ter pensado bastante nisto e ter examinado cuida-
dosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante
que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas
Eis a passagem que contém aquilo que é celebrado como a primeira verda-
de do sistema cartesiano. A primeira verdade, por ser a afirmação que sobrevi-
ve à dúvida mais radical e abrangente possível, é expressa, nas Meditações, pela
proposição “Eu sou, eu existo”. O cogito é a constatação indubitável da exis-
tência do Eu, é o conhecimento sobre uma existência: a existência do próprio
sujeito da dúvida.
Mas que tipo de conhecimento é o cogito? Como o Eu chega à constatação
indubitável de sua própria existência? Como a passagem analisada anterior-
mente deixa claro, é por pensar que o sujeito meditante chega à constatação:
“Eu sou, eu existo”. Se é o pensar a condição do conhecimento da existência do
sujeito meditante, ou seja, se é por pensar que o sujeito se dá conta de que é,
ou existe, poder-se-ia dizer que a proposição “Eu sou, eu existo” é a consequên-
cia de um raciocínio do tipo: “Se duvido, penso; se penso, sou ou existo; pen-
so; logo, eu sou, eu existo”? O cogito é expresso pelo enunciado “Penso, logo
existo” no Discurso do Método e nos Princípios da Filosofia. Considerando que
assumimos aqui que nas Meditações o cogito tem o mesmo sentido daquele das
obras mencionadas, apesar de ser expresso de forma diferente3, podemos con-
cluir que o conhecimento da existência do Eu é obtido através de um raciocí-
nio, do qual este conhecimento é conclusão?
Martial Gueroult explica que o cogito não é um raciocínio por ser uma afir-
mação particular, independente de alguma premissa que a anteceda. Para Gue-
roult, o cogito é a expressão proposicional imediata de um dado, de um fato, a
saber, a consciência de si. Como é um fato que ocorre durante a reflexão que
o Eu faz sobre seus pensamentos, é uma constatação, a constatação da existên-
Outro fator importante para que o cogito não seja considerado um racio-
cínio é que a terceira etapa da dúvida atinge o funcionamento da razão e, com
isso, o próprio raciocínio passa a ser considerado dubitável.4 Ou seja, o cogito
Além dos fatores acima mencionados, há uma passagem das Segundas Res-
postas em que Descartes afirma expressamente ser um erro considerar o cogito
como a conclusão de um silogismo, o que, segundo entendemos, corrobora a
tese de que o cogito não é um raciocínio:
[...] quando alguém diz: Penso, logo sou, ou existo, ele não conclui sua
existência de seu pensamento como pela força de um silogismo, mas
como uma coisa conhecida por si; ele a vê por simples inspeção do
espírito. Como se evidencia do fato de que, se a deduzisse por meio do
silogismo, deveria antes conhecer essa premissa maior: Tudo o que pen-
sa é ou existe. Mas, ao contrário, esta lhe é ensinada por ele sentir em si
próprio que não pode se dar que ele pense, caso não exista (descartes,
1996, at vii, p. 140; ix, pp. 110-111).
“o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas”.
[...] o conceito que a inteligência pura e atenta forma com tanta faci-
lidade e clareza que não fica absolutamente nenhuma dúvida sobre o
que compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito que
a inteligência pura e atenta forma, sem dúvida possível, conceito que
nasce apenas da luz da razão e cuja certeza é maior, por causa de sua
maior simplicidade (descartes, 1996, at x, p. 368).
O sujeito meditante não se dá conta de seu próprio ser por uma dedução
ou por um silogismo, mas pela percepção imediata de sua existência, percep-
ção realizada pelo próprio ato de pensar, que torna o sujeito meditante ime-
diatamente consciente de que existe. Deste modo, de acordo com nossa inter-
pretação, o cogito não é a constatação da existência do Eu, ou de um Eu sobre
o qual nada se sabe, mas de um Eu que se descobre existente enquanto pensa;
que se descobre existente pensando; a constatação da existência do Eu ocorre
concomitantemente à constatação de seu pensamento. Deste modo, no cogito,
pensar e ser são o mesmo.
Mas não conheço, ainda, bastante claramente o que sou, eu que estou cer-
to de que sou; de sorte que, doravante, é preciso que eu atente com todo
cuidado, para não tomar imprudentemente alguma outra coisa por mim, e
assim para não me equivocar neste conhecimento que afirmo ser mais cer-
Como podemos conferir, nessa passagem não se afirma algo como “não
conheço absolutamente o que eu sou”, mas “[...] não conheço, ainda,
bastante claramente o que sou [...]” (descartes, 1996, at vii, p. 25;
ix, pp. 19-20, negritos nossos). O Eu está certo de sua existência na medida
em que pensa (e somente na medida em que pensa), mas ainda não sabe “bas-
tante claramente” se nada mais faz parte de seu ser além do pensamento. E é
isso o que torna necessária uma análise cuidadosa sobre o que é este Eu cons-
tatado como existente. Não há dúvidas de que o “Eu sou, eu existo” é uma
verdade existencial, que traz à tona fundamentalmente o conhecimento da
existência do Eu. Por isso, no parágrafo quinto, é dito: “[...] eu que estou cer-
to de que sou [...]” (descartes, 1996, at vii, p. 25; ix, pp. 19-20, negri-
to nosso); e não por acaso a formulação do cogito nas Meditações é: “Eu sou,
eu existo”. No entanto, entendemos que isso não faz com que o cogito expres-
se uma existência desprovida de qualquer conteúdo, uma existência vazia.
Se no cogito o Eu é afirmado como um Ser, se o “Eu sou, eu existo” é uma
afirmação que expressa uma existência, não é uma existência absolutamente
nua, para usar os termos de Beyssade, e sobre a qual não se sabe absolutamen-
te nada; não é a existência de “alguma coisa”, de algo indeterminado, mas de
algo que existe pensando e, claro, pensa existindo: trata-se da existência de um
pensamento.
O que Descartes anuncia no parágrafo quinto da Meditação Segun-
da é a necessidade de obter mais clareza sobre o conhecimento deste Eu
que acaba de ser constatado como existente. Uma vez que “não sei bas-
tante claramente o que sou”, faz-se necessário obter mais clareza sobre este
conhecimento, para “[...] não tomar imprudentemente alguma outra coi-
sa por mim, [...] para não me equivocar neste conhecimento que afirmo ser
mais certo e mais evidente do que todos os que tive até agora” (descar-
tes, 1996, at vii, p. 25; ix, pp. 19-20). Descartes não afirma desconhe-
cer absolutamente o Eu constatado como existente, mas que o conhecimen-
to sobre esse ente precisa ser esclarecido, ou seja, é preciso ater-se para não
Eis por que considerarei de novo o que acreditava ser, antes de me empen-
har nestes últimos pensamentos; e de minhas antigas opiniões suprimirei
tudo o que pode ser combatido pelas razões que aleguei há pouco, de sorte
que permaneça apenas precisamente o que é de todo indubitável (des-
cartes, 1996, at vii, p. 25; ix, p. 20).
7 Lembrando que a dúvida continua em cena, o que permite ao sujeito meditante “suprimir
tudo o que pode ser combatido pelas razões alegadas há pouco” – as razões de duvidar – de
tal modo que somente o que não for atingido por essas razões poderá ser considerado, ou
seja, somente não será suprimido o que se mostrar indubitável.
Mas eu, o que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extrema-
mente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas
as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me? (descartes, 1996, at
vii, p. 26; ix, p. 21).
[...] forma do corpo natural que em potência tem vida. [...] é a primei-
ra atualidade do corpo natural orgânico. [...] é a substância segundo a
determinação, ou seja, o que é, para um corpo de tal tipo, ser o que é
(aristóteles, 2006, pp. 71-2).
8 “Posso estar certo de possuir a menor de todas as coisas que atribuí há pouco à natureza
corpórea? Detenho-me em pensar nisto com atenção, passo e repasso todas essas coisas em
meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que exista em mim” (descartes,
1996, at vi, p. 26; ix, p. 21).
Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o
tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse
de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito
agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando
precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um enten-
dimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteri-
ormente desconhecida (descartes, 1996, at vii, p. 27; ix, p. 21).
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afalcaopina@gmail.com
[...] os homens desejam por natureza o estado civil, não podendo aconte-
cer que eles alguma vez o dissolvam por completo (espinosa, 2012, tp, vi,
1, p.115, it. nosso).
Não ouso, de fato, negar que o corpo humano, mantendo embora a cir-
culação sanguínea e outras coisas em virtude das quais se considera que
o corpo vive, possa, não obstante, transformar-se numa outra natureza
totalmente diferente da sua [in aliam naturam a sua prorsus diversam
mutari]. Nenhuma razão, com efeito, me obriga a sustentar que o corpo
não morre a não ser que se converta em cadáver [...] (espinosa, 2020, e
iv p39 esc, p. 298, it. nosso).
cultivar, fortificar-se, repelir toda a força e viver segundo o parecer comum de todos eles”
(espinosa, 2012, tp, ii, 15, p. 86).
5 “Na verdade, acontece às vezes um homem sofrer tais transformações, que não é
fácil dizer que ainda é o mesmo, conforme eu ouvi contar de um certo poeta espanhol,
o qual tinha sido atingido por uma doença e, embora tivesse recuperado, ficou contudo
tão esquecido da sua vida passada, que não acreditava serem seus os contos e as tragédias
que havia escrito e poderia, sem dúvida, ser tido por uma criança adulta se também tivesse
esquecido a língua materna” (espinosa, 2020, e iv p39 esc, pp.298-299).
6 Foi Zourabichvili quem primeiro notou este paralelismo entre a transformação corporal
e a transformação política. Cf. zourabichvili, 2002, passim.
o problema da revolução
Aqui, porém, não posso deixar de frisar que [...] não é menos perigoso
afastar um monarca, ainda quando seja absolutamente evidente que ele
é um tirano. Porque um povo acostumado à autoridade do rei e só por ela
refreado desprezará e porá a ridículo uma autoridade inferior. Por isso,
se afasta um, ser-lhe-á necessário [...] eleger outro em lugar do anteri-
or, e este, mesmo que o não queira, será necessariamente um tirano. Com
Vemos, enfim, como é fatal para um povo que não está habituado a viver
sob reis e que já tem leis instituídas eleger um monarca. Porque, nem este
conseguirá manter um tão grande poder, nem a autoridade régia poderá
suportar leis e direitos do povo instituídos por alguém com autoridade
inferior à sua e, muito menos ainda, ser levada a defendê-las, sobretudo
porque no momento da sua instituição não pôde ser tido minimamente
em conta o rei, mas apenas o povo ou o Conselho, que julgava deter o
reino. Assim, se o rei defendesse os antigos direitos do povo, pareceria
mais seu escravo do que seu senhor. O novo monarca tentará, por isso,
introduzir a todo o custo leis novas, reformar em seu proveito os dire-
itos do Estado e reduzir o povo a uma condição tal que este não possa
retirar a dignidade aos reis tão facilmente como lha dá (espinosa, 2004,
ttp, p. 368, it. nosso).
10 Cf. tp, vii, 1 e 30; tp, viii, 9 e 10. Além dos modelos apresentados no tp, há ainda
o exemplo histórico da teocracia hebraica, a qual “podia ter durado indefinidamente”
(espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 363) se tivesse conservado a sua constituição original.
A primeira lei deste estado deve ser a que determina a proporção [ratio]
do número de patrícios relativamente à multidão. Deve, efetivamente
[...], haver entre esta e aqueles uma proporção tal que aumente, com o
crescimento da multidão, o número de patrícios. E esta proporção [...]
11 Sobre a extensão do conceito de “indivíduo” ao estado, há duas teses opostas: (1) uma
tese “naturalista”, que é a que Matheron preconiza, e que considera que o estado, como
todos os seres naturais, é um individuum com mens e conatus próprios; (2) uma tese
“artificialista”, que é a que Den Uyl e Rice defendem, e que considera que o estado constitui,
essencialmente, um artefacto (não uma entidade física), pelo que só em sentido metafórico
se lhe pode chamar “indivíduo”. Não nos deteremos aqui longamente nesta discussão. Basta-
nos dizer que, em termos de análise interpretativa, é lícito e frutuoso pensar o estado como
individuum, independentemente de saber se se trata dum indivíduo físico ou metafórico.
Cf. matheron (1988, pp.346-8; 2020, pp.179-200); den uyl, 1983, pp.70-80; rice,
1990. Vide, ainda a este respeito, guillemeau, 2008, pp. 121-40; rubio, 2014, pp. 33-57.
Além das leis mencionadas, que são leis respeitantes à relação governantes-
-governados, Espinosa propõe ainda uma série de regras respeitantes às rela-
ções intra e interinstitucionais. Falamos, por exemplo, da regra que determina
que o Concilio monárquico seja composto igualmente por “veteranos” e “nova-
tos” (espinosa, 2012, tp, vi, 16, p. 121)12, ou da regra que determina que o
número de síndicos esteja para o número de patrícios como o número de patrí-
cios para o dos plebeus (espinosa, 2012, tp, viii, 22, p. 168).
Qual a função destas leis proporcionais? Em primeiro lugar, corrigir os dese-
quilíbrios específicos de cada regime, como a tendência geral das monarquias
para se transformarem em aristocracias dissimuladas — isto é, monarquias nas
quais o rei governa de acordo com os interesses do pequeno grupo que sobre
ele tem ascendência, e não de acordo com o “interesse da maior parte dos súb-
ditos” (espinosa, 2012, tp, vii, 4, p. 134) –, ou a tendência geral das aristo-
cracias para se transformarem em oligarquias impotentes – isto é, aristocracias
nas quais o número e a força dos plebeus excede em muito a dos Optimates
(espinosa, 2012, tp, viii, 1-2, pp. 155-7). Depois, prevenir certas patologias
comuns a todos os regimes, como o nepotismo, o clientelismo, a perpetuação
nos cargos, etc. Em terceiro lugar, assegurar que os diferentes órgãos (legislati-
vo, executivo, fiscalizador, judicial) funcionem de maneira harmoniosa, traba-
lhando em conjunto para a salvaguarda do estado. Finalmente, garantir que tal
harmonia não é afetada por eventuais contrações ou expansões populacionais,
quer dizer, garantir que as partes que compõem o estado se relacionam sempre
“segundo uma certa proporção”.
12 “A razão por que é necessário escolher, todos os anos, um conselheiro por família é
evitar que o conselho seja composto ora por novatos inexperientes, ora por veteranos e
especialistas nos assuntos, o que aconteceria necessariamente se todos saíssem ao mesmo
tempo e fossem substituídos por novos” (espinosa, 2012, tp, vi, 6, p. 121).
Ora, se, como ainda agora vimos, uma das condições indispensáveis à esta-
bilidade do estado é que as suas instituições se relacionem segundo uma ratio
invariável, a outra condição é que essas instituições convenham ao “engenho”
(ingenium) popular. De nada serve, com efeito, conceber um sistema institu-
cional proporcionalmente equilibrado se depois, na prática, ele for incompatí-
vel com os costumes e fisionomia própria do povo a que se destina. O que não
significa, bem entendido, que as instituições não tenham qualquer influência
sobre o ingenium. Na verdade, este é, até certo ponto, determinado por aque-
las; mas há muitos outros fatores – entre os quais a língua, o ambiente físico ou
as experiências políticas passadas – que intervêm na sua formação, e que esca-
pam completamente à ação jurídico-institucional.14 Para que as instituições,
além de coerentes, sejam eficazes, há pois que organizá-las tendo em conta tal
limitação.
Foi assim que procedeu Moisés, elaborando uma lex “sobretudo adaptada
à maneira de ser e à conservação” (maxime ad ingenium & singularem con-
servationem [...] accommodata fuerit) (espinosa, 2004, ttp, iv, p. 183) dos
hebreus; mas foi igualmente assim que procederam os aragoneses, os quais,
uma vez livres do domínio mouro, não elegeram um rei “sem primeiro insti-
tuírem procedimentos justos e consentâneos com o engenho da nação [inge-
nio gentis consentaneis]” (espinosa, 2012, tp, vii, 30, p. 151). Donde o caráter
exemplar das constituições em causa (mosaica e aragonesa). Exemplaridade
que não reside apenas no seu equilíbrio formal, senão também, como agora
se compreende, na sua “conveniência sociológica”, isto é, na sua conformida-
de com os costumes e temperamento singular dos povos por elas regidos. O
que quer dizer que o que torna as aludidas constituições exemplares é simul-
taneamente o que as torna irrepetíveis – consoante Espinosa frisa, de maneira
expressa, em relação à constituição de Moisés.15 Na realidade, visto que não
indefinidamente, ninguém, contudo, pode hoje em dia imitá-lo nem seria aconselhável”
(espinosa, 2004, ttp, xviii, p. 363).
16 Cf. moreau 1994, p. 428.
17 “Deste modo, através desta virtude que o distinguia, ele [Moisés] instituiu o direito
divino e prescreveu-o ao povo, tendo, no entanto, o maior cuidado a fim de que este
cumprisse a sua obrigação, não tanto por medo, mas de livre vontade. Foram sobretudo
duas as razões que o obrigaram a agir assim: o caráter insubmisso do povo [...] e a ameaça de
guerra [...]” (espinosa, 2004, e, ttp, v, p. 197, it. nosso).
Tal como Maquiavel antes dele, Espinosa acredita, portanto, que todas as
sociedades, após um período inicial de desenvolvimento cívico, tendem natu-
ralmente a degenerar. E, à semelhança do “agudíssimo florentino”, também
Espinosa julga possível conter esta degenerescência mediante atempadas e
periódicas reconduções do corpo político ao seu princípio:
18 “Prova disto é a república romana, invencível face aos inimigos e tantas vezes vencida
e miseravelmente oprimida pelos seus cidadãos, em particular na guerra civil de Vespasiano
contra Vitélio)” (espinosa, 2004, ttp, xvii, p. 342, it. nosso).
19 “Há só um exemplo que não quero passar em silêncio, porque me parece digno de ser
recordado: é o estado dos aragoneses, que, possuídos de uma lealdade singular para com os
seus reis e de igual constância, conservaram invioladas as instituições do reino” (espinosa,
2012, tp, vii, 30, p.151, it. nosso).
20 “É inegável que todas as coisas do mundo têm um termo de vida. Mas, em geral, aquelas
que não desordenam o seu corpo e o mantêm ordenado de maneira que não se alteram [...],
seguem o percurso que lhes foi traçado pelo céu. E dado que me refiro a corpos mistos, como
as repúblicas e as seitas, digo que são salutares aquelas alterações que os reconduzem aos
seus princípios. Estão, pois, melhor instituídas, e têm vida mais longa, aquelas que podem
O primeiro remédio que me ocorreu para este mal foi nomear-se, a cada
cinco anos, um ditador supremo por um ou dois meses, com direito de
investigar, julgar e estatuir sobre o que fazem os senadores e cada um
dos funcionários e, consequentemente, restituir o estado ao seu princípio.
Mas quem procura evitar inconvenientes ao estado deve aplicar remédi-
os que convenham à natureza deste e que possam deduzir-se dos seus
fundamentos; caso contrário, desejando evitar Caríbdis, encalha em
Cila. É efetivamente verdade que todos, tanto os que governam como
os que são governados, devem ser contidos pelo medo do suplício ou
dano, para que não seja lícito pecar impunemente ou com lucro. Mas,
em contrapartida, também é certo que se este medo for comum aos homens
amiúde renovar-se [...]. E é coisa mais do que óbvia que, não se renovando, estes corpos
não duram. O modo de os renovar é [...] reconduzi-los aos seus princípios, porque todos
os princípios das seitas, repúblicas e reinos devem ter em si alguma bondade, mediante a
qual retomam o seu primeiro prestígio [riputazione] e o seu primeiro ardor [augumento]”
(maquiavel, 2015, Discorsi, iii, 1, p. 461, trad. nossa, it. nosso).
21 Cf. morfino, 2008, p. 64.
22 “Acresce que, se não é marcada uma data certa para nomear o ditador, não haverá
nenhuma proporcionalidade no tempo que medeia entre um e outro, proporcionalidade
que dissemos ser maximamente de observar, e a coisa seria de tal modo vaga que facilmente
se negligenciaria” (espinosa, 2012, tp, x, 1, pp. 200-1).
24 “[...] é necessário a quem edifica uma república e institui as suas leis pressupor que todos
os homens são propensos ao mal, e que todos estão predispostos a usar a sua malignidade
logo que se lhes ofereça ocasião” (maquiavel, 2015, Discorsi, i, 3, p. 69, trad. nossa).
25 É justamente isto que Espinosa afirma em ttp, iii, numa passagem de manifesta
influência maquiaveliana: “[...] a sociedade é tanto mais segura, mais estável e menos sujeita
aos azares da fortuna quanto mais sensato e vigilante for quem a funda e quem a governa;
pelo contrário, quanto mais ela é formada por homens rudes, mais ela está à mercê da
fortuna e menos ela é estável” (espinosa, 2004, ttp, iii, p.168).
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3 Esses nomes citados no ttp são aqueles que nos parecem ter mais impacto sobre o
aspecto filosófico da obra de Spinoza. Os trabalhos que consultamos também confirmam
isso. Além desses, também são citados: Jonathan ben Uziel, Flávio Josefo, David Kimchi,
Fílon Judeu, Rabi Solomon bem Isaac de Troyes (Rashi), Abraham ben David, Jehuda
Alpakar e Rabi Joseph ben Shem Tov, porém as referências que Spinoza faz a eles têm
sobretudo caráter teológico, ou seja, abordam aspectos bíblicos e históricos, portanto não
serão abordados nesse artigo.
Afirmo, digo eu, com Paulo, e talvez com todos os filósofos antigos, ain-
da que de outra maneira, que todas as coisas estão e se movem em Deus,
ouso mesmo acrescentar que tal foi o pensamento de todos os anti-
gos hebreus, na medida em que se pode conjecturá-lo segundo algumas
tradições, malgrado as alterações que sofreram (spinoza, 2014b, Carta
73, pp. 277-8).
Por mudança entendemos, nesta passagem, toda variação que pode se pro-
duzir em um objeto [sujet] qualquer, ainda que a própria essência do obje-
to guarde sua integridade; embora se tome comumente a palavra também
em um sentido mais largo para significar a corrupção das coisas, não uma
corrupção absoluta, mas uma corrupção que envolve ao mesmo tempo
uma geração subsequente; [...] mas os filósofos usam para essa designação
outra palavra ainda, a saber, transformação (spinoza, 2014a, pm, Cap. 4,
p. 290).
Todas as coisas que um ser criado faz não duram. Todos os seres criados
ficarão exaustos [se tentarem] criar a substância, que é a base de [todas as
coisas], ou se tentarem destruir a substância e fazê-la desaparecer. Todos
os trabalhos do homem consistem em formas, imagens e acidentes. Seres
humanos podem separar o que está unido ou unir o que está separado.
Eles podem mover o que está em repouso ou colocar em repouso o que
se move. Portanto, todos os trabalhos do homem são desperdício e vazio
(ibn ezra, 2017, p. 21, tradução nossa).
Uma geração vai, uma geração vem, e a terra sempre permanece. O sol
se levanta, o sol se deita, apressando-se a voltar ao seu lugar e é lá que ele
se levanta. O vento sopra em direção ao sul, gira para o norte, e girando
e girando vai o vento em suas voltas. Todos os rios correm para o mar e,
contudo, o mar nunca se enche: embora chegando ao fim do seu percur-
so, os rios continuam a correr (ecl. 1,4-7).
Segundo Ibn Ezra, esse trecho revela alguns aspectos sobre a criação das
coisas. É aí que ele localiza os quatro elementos: terra, fogo (sol), ar (vento) e
água (rios) e afirma que Coélet mencionou os quatro elementos porque tudo
o que se encontra sob o sol é criado a partir desses quatro elementos e deve
retornar a eles. Observamos, com efeito, que os elementos são descritos com
movimentos cíclicos. Inicialmente, o comentário feito envolve a terra: “Coélet
começa com a terra, pois a terra é como uma mulher que dá à luz [...] todas as
coisas criadas da terra deverão retornar a ela. Isso é semelhante a pois tu és pó a
ao pó tornarás (gn. 3,19)”6 (ibn ezra, 2017, pp. 29-30, tradução nossa). Sobre
isso, é no comentário do Gênesis que Ibn Ezra apresenta sua interpretação:
6 O versículo inteiro é assim: “Com o suor do teu rosto comerá teu pão até que retornes
ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás”.
A razão pela qual Coélet menciona esses quatro objetos; isto é, o sol, que é
o lugar do fogo, e o vento, a água e a terra é porque todas as coisas sob o sol
(plantas, animais, pessoas, aves e os peixes do mar) são produzidas por ess-
es objetos. Agora, se a natureza do sol, do vento, da água e da terra (que são
a origem das plantas, animais, pessoas, aves e os peixes) é retornar ao lugar
de onde partiram, como sua descendência poderia continuar para sempre?
Se sua descendência começa como vaidade, vai terminar como vaidade. Se
o homem é vaidade, então seu trabalho é vaidade certamente, pois é um
acidente quando relacionado ao próprio homem. O mesmo é ainda mais
verdadeiro sobre os pensamentos do homem, que são como um acidente
produzido por um acidente (ibn ezra, 2017, p. 34, tradução nossa).
Tudo é o mesmo para todos: uma sorte única, para o justo e o ímpio,
para o bom e o mau, para o puro e o impuro, para quem sacrifica como
o que não sacrifica; para o bom e o pecador, para quem jura e quem evi-
ta o juramento. Este é o mal que existe em tudo o que se faz debaixo do
sol: o mesmo destino cabe a todos. O coração dos homens está cheio de
maldade; enquanto vivem, seu coração está cheio de tolice, e seu fim é
junto aos mortos (ecl. 9, 2-3).
7 Definição de Spinoza sobre o que ele entende por coisa contingente: “As coisas
singulares eu as denomino contingentes, na medida em que, atentando somente à sua
essência, nós não encontramos nada que coloque necessariamente sua existência ou a
exclua necessariamente” (spinoza, 2014d, eiv, def. 3, p. 273). Isso implica justamente que
sua existência ou não existência vai depender do todo, ou da ordem comum da natureza.
[...]
Há um ponto digno de nota porque a palavra que foi traduzida por tipos
(kind, em inglês) é modos/modi, em latim, e é essa mesma palavra que aparece
no latim de Spinoza e que é traduzida como ‘modo’. Ou seja, Ibn Gabirol já
havia considerado a noção de modo, justamente no sentido de identificar as
diferentes apresentações da matéria e da forma. Há vários estudos que procu-
ram esclarecer a noção de modo em Spinoza (wolfson, 1934; gueroult,
1968; carvalho, 1983; melamed, 2018) e há a tendência de pensar que
essa noção teria sido incorporada por Spinoza a partir de Descartes, mas em
nenhum deles apareceu a possibilidade da noção de modo ter sido antecipada
por Ibn Gabirol e a partir daí ter feito parte do arcabouço teórico spinoziano.
Voltando à morte, na obra de Gabirol, Fonte da Vida, são escassas as
referências a ela. De fato, essa obra enfoca a criação e o surgimento da vida des-
de sua origem e percorre seus diferentes graus de emanação. Não há nenhuma
análise mais aprofundada sobre a corrupção e a morte, apenas o que comen-
tamos acima. A mensagem final da obra é obter um conhecimento elevado e
escapar da morte, unindo-se à fonte da vida. Não nos ocuparemos com esse
aspecto em detalhe, porém não é possível deixar de correlacionar essa perspec-
tiva de Ibn Gabirol com a própria perspectiva de Spinoza, conforme exposta
na quinta parte da Ética e sintetizada na seguinte proposição: “Nossa mente,
na medida em que se conhece a si mesma e conhece o corpo do ponto de vista
da eternidade, tem necessariamente o conhecimento de Deus, e sabe que ela
está em Deus e por ele é concebida” (spinoza, 2014d, ev, p30, p. 369).
Por fim, na cabala, a morte está associada com outras imperfeições como
a destruição, o pecado e a limitação e ocorre devido ao próprio processo de
emanação que em determinados graus perde a pureza da luz original. Isso ocor-
8 A origem de tudo se estabelece a partir do En Sof (ou Ayn Sof, Ein Sof), cuja tradução
pode ser sem limite, sem fim, ou mesmo infinito. É o termo usualmente utilizado para
designar Deus, na teoria cabalística. A partir dele surgem dez emanações, denominadas
sefirot (plural de sefira) que são: kether (coroa), hochmah (sabedoria), binah (inteligência),
hesed (bondade), geburah (rigor), tiferet (beleza), nezah (vitória), hod (glória), yesod
(fundamento) e malkut (reino) (cf. sefer yetzirah, 1997).
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4 Para alguns exegetas que defendem a interpretação das Regulae como um texto contra o
ceticismo, ver: paganini (2008, nota 1, p.271).
5 O livro de Paganini (2008, pp. 270-88) é uma das poucas pesquisas contemporâneas
que compreende haver ceticismo no sistema cartesiano, desde as Règles. Paganini começa
discordando da interpretação de Popkin do ceticismo cartesiano, inspirada em filósofos e
teólogos de fins da primeira metade do século xvii, da não superação do ceticismo pela
falsidade das idéias. No entanto, concorda com Scribano, que diz que Descartes contribui
para a retomada e modificação do ceticismo, nos moldes, portanto, da interpretação de
Popkin (a tradição cética como inimiga e aliada do ceticismo cartesiano).
6 “les machines de guerre des syllogismes probables de la scolastique” (descartes, 1953,
Regra ii, p.40). Neste contexto, Descartes modera a validade do método escolástico. De
acordo com Paganini (2008, p. 270): “En effet, il est bien connu que la seconde Règle donne
une description de la difficulté de savoir qui est assez proche des formules adoptées dans
la partie initiale du Discours (...) (rejet du probable, recherche de connaissances à propos
desquelles ‘le doute est impossible’, dénonciation du dogmatisme et du pédantisme comme
autant de faux-semblants élaborés pour éviter une franche profession d’ignorance, etc.)”. A
modalização probabilista do método da disputatio, através dos silogismos, provavelmente
remete à influência das obras de Cícero no período da escolástica tardia.
7 “Il faut lire les ouvrages des Anciens, parce qu’il y a pour nous un immense avantage
à pouvoir utiliser les travaux de tant d’hommes, aussi bien pour connaître ce qui jadis a
été découvert de bon, que pour savoir aussi ce qui reste ensuite à trouver dans toutes les
sciences” (descartes, 1953, p. 42). A referência implícita às obras da tradição cética
pressupõe o uso das ferramentas do ceticismo, buscando reformular as ciências.
11 Os tópicos sobre os quais trata esta carta são: diferenças entre os homens entre si e
entre os animais, inteligência e sensibilidade dos animais.
12 “Esse debruçar sobre si mesmo não passa de uma reflexão espontânea sobre o que ele
encontra nesse ‘grande livro’, o que o leva a ‘viajar’ durante toda a sua juventude. Montaigne
desejava que ‘esse grande mundo […] seja o livro de seu estudante’. Terá Descartes percorrido
os Ensaios no colégio ou no seio da família?” (rodis-lewis,1995, p. 34). E, de acordo com
Popkin (2003, p. 144): “When and how Descartes came into contact with sceptical views
is hard to tell. But he seems to have been well aware not only of the Pyrrhonian classics
but also of the sceptical current of his time, and its ever-increasing danger to the cause of
both science and religion”. Esta pertinente questão situa o contato com o ceticismo dos
Ensaios entre os anos finais em La Flèche (1614 ou 1615) até 1620 (ano em que se desalista
e começa a viajar). O contato com o De la Sagesse (1601), de Charron, acontece por volta
de 1619. Ver: rodis-lewis, 1995, p.61.
imutável” (cicero, 2012, Acad.i, viii.23, p. 113). Na inflexão entre moral e epistemologia,
a virtude supõe conhecimento. O termo em latim que se refere à ‘sabedoria’ é scientia, que,
por sua vez, corresponde ao termo grego sofia. Em grego, a distinção entre sofia e epistéme
esclarece a ambivalência do trecho acima, ambivalência que perpassa a obra cartesiana. O
próprio trecho original do Academica é ambíguo no uso do termo, pois, em seguida, Cícero
usa o termo sapientia (cicero, 2012, Acad.i, viii.24, p. 113).
15 Na regra xii encontra-se o quarto tropo para a suspensão do juízo (h. p, i.14), ou
seja, o conhecimento é relativo à percepção do sujeito: “(...) que celui qui est malade d’une
jaunisse juge que tout est jaune, parce qu’il a les yeux colorés en jaune (...)” (descartes,
1953, p.84). Sexto menciona este mesmo exemplo. Para Descartes, o conhecimento das
naturezas compostas pode oscilar em relação ao sujeito cognoscente, já que o sujeito
apresenta a capacidade de compor estas naturezas, ou segundo a experiência ou segundo as
próprias capacidades (impulso, conjectura ou dedução). Segundo Paganini (2008, p.233),
Descartes não conhecia as obras de Sexto Empírico, o que parece improvável, dado o
contexto intelectual na França das primeiras décadas do século xvii.
16 Sexto ataca a possibilidade mesma da aritmética através de um ataque aos números,
contra Pitágoras. Ver: sextus empiricus (1949, iv.1-34). Este é o quarto livro do
Adversus Mathematicos.
24 « (…) en effet, il n’y a peut-être pas une question, sur laquelle les savants n’aient été
souvent en désaccord. (…) » (descartes, 1953, Regra ii, p. 40). A diaphonia apresenta
um papel fulcral ao longo da primeira metade da filosofia moderna (até o século xviii).
Descartes menciona a diaphonia no contexto do comentário sobre o conhecimento
(filosofia, teologia e ciência): “car il n’existe à peu près rien qui n’ait été dit par l’un et
dont le contraire n’ait été affirmé par l’autre” (Regra iii, p. 43). Descartes está sopesando o
argumento de autoridade, dizendo que não há indubitabilidade nos escritos antigos.
25 No contexto do discurso de Luculo, são os estoicos que exigem que o método de
distinção das representações seja empregado no conhecimento da verdade: “Entendem esses
filósofos não ser necessário definir o que seja conhecimento ou percepção, ou, se quisermos
uma versão literal do grego, a compreensão, para traduzir o que eles chamam de katalepsis.
Os que pretendem persuadir os outros de que existe algo que pode ser compreendido ou
apercebido não procedem cientificamente, dizem os críticos, uma vez que nada existe de
mais claro que a própria clareza (...). Se estais de acordo poderei dizer perspicuidade ou
evidência” (cicero, 2012, Acad.i, vi.17, p. 108). O método cartesiano de definição do
escopo da razão, então, inspira-se no Academica, mas parte de uma exigência estoica. Notar
que a crítica de Arcesilau a Zenão é a de que o método estoico não é científico, o que
corrobora a influência acadêmica no desenvolvimento posterior do sistema cartesiano.
Notar ainda que os dois critérios epistêmicos, celebrados na história da filosofia moderna
por Descartes, ou seja, a clareza e a evidência, são oriundos do estoicismo.
27 “Et quoique bien des choses souvent poussent lui être proposées, dont la recherche sera
interdite par cette règle, il ne se croira pas cependant plus ignorant pour avoir clairement
compris qu’elles dépassent les bornes de l’intelligence humaine; et cette certitude même,
que nul ne peut rien savoir de la question cherchée, satisfera largement sa curiosité s’il
est raisonnable” (descartes, 1953, Regra viii, p. 64). A certeza dos limites da razão
configura uma ignorância natural que, quando conhecida, torna-se razoável.
28 Figura, extensão, movimento, largura, etc., são naturezas simples porque são indivisíveis
e conhecíveis de modo claro e distinto.
29 Para a interpretação deste preceito como um antídoto contra o ceticismo que, no
entanto, corrobora um tipo de ceticismo, ver: paganini, 2008, pp.271-3. Este método é
próximo ao estoicismo de Epiteto (ver, por exemplo, a parte iv do Manual, onde o uso das
representações é o tópico que define o estoicismo). No contexto da resposta acadêmica às
objeções de Luculo, lê-se: “A natureza não nos deu o conhecimento dos limites [do próprio
conhecimento], em nenhuma matéria podemos fixar até onde é possível ir” (cicero, 2012,
Acad.i, xxix.93, p. 162). Trata-se do ceticismo sobre a razão através do ataque à dialética,
exemplificado pela regressio ad infinitum como resultado do argumento do sorites.
30 O trecho é bastante similar ao seguinte trecho do diálogo Academica, no qual Cícero
critica os dogmáticos pela precipitação do assentimento: “não entendo porquê, mas é um
facto que a maioria dos homens prefere cair no erro e defender com todas as forças a teoria
por que sentiu alguma simpatia do que, sem obstinação, investigar qual a doutrina que
oferece maior coerência” (2012, Acad.i, iii.9, p. 101).
35 Na Regra ii, o alvo são os doutos (doctes), que se identificam aos céticos acadêmicos do
contexto parisiense da primeira metade do século xvii, ou seja, aqueles que não distinguem
o verdadeiro do falso e admitem por certo o duvidoso (descartes, 1953, Règle ii, p. 39).
A definição do douto alude ao cético acadêmico pela querela sobre as ideias verdadeiras,
versão moderna da querela entre estoicos e acadêmicos sobre as representações catalépticas.
abstract: It seems that some tools from academic scepticism are included
on the epistemic precepts in the Règles pour la direction de l’esprit (Amster-
dam, 1701). At the second Rule, for example, Carneades’ probabilism can be
found as one of the most leading tracks of academic scepticism in the early
modern philosophy. There are another topics from this tradition that were
used by Descartes on the formulation of his own modern scepticism, such
as the definition of science as wisdom (first Rule). In this way, academic scep-
ticism is, paradoxically, one of the allies of the search for Truth (as the fourth
Rule shows us). The scope of this paper, hence, is to comprehend how aca-
demic scepticism appears on the Règles’ epistemic project, through topics like
the search for wisdom, the doubt’s alleviation, the exercice of assentiment by
refusing probabilism and the truth of fideism. The academic method’s scope
includes these topics, defined by epistemic analysis or recursiviness.
keyword : Knowledge; Probability; Assentiment; Wisdom; Doubt.
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São duas filosofias às quais nosso autor se refere, sendo a filosofia da natu-
reza uma delas. A outra, a filosofia transcendental, que teve seu sistema desen-
volvido no prosseguimento do texto citado, é referida como oposta àquela.
São duas ciências de validade teórica equivalente e complementar e que, con-
tudo, “nunca podem a vir a ser uma”. Ambas se encarregam de um mesmo pro-
blema, a concordância (Übereinstimmung) entre a natureza e o Eu, o objeto e
o sujeito, o real e o ideal, mas se distinguem quanto ao percurso de resolução.
A filosofia da natureza parte, em seu princípio, do real, da natureza, em direção
ao ideal; enquanto o idealismo transcendental tem o Eu como ponto de par-
tida, o ideal, e se dirige, assim, ao real. Se este último é equivalente à filosofia
fichteana, como nosso próprio autor admite em diversas passagens, Schelling
parece demarcar uma de suas originalidades dentro do Idealismo pós-kantiano
ao dispor a filosofia da natureza necessariamente ao lado dele.
A intenção científica pressuposta, que é ao mesmo tempo sistemática,
aparece no conjunto inteiro da obra schellinguiana, desde seus primeiros escri-
tos. Por detrás da posição de que existem duas ciências de valor teórico equi-
valente, tem-se em vista como tarefa da filosofia a construção de uma ciência
autofundante. Em seu primeiro escrito, Sobre a possibilidade de uma forma da
filosofia em geral, vemos nosso autor desenvolver a definição hipotética de sua
atividade:
Nada me parece mais evidente, para provar quão pouco a maioria captou
até agora o espírito da Crítica da Razão Pura, do que aquela crença quase uni-
versal de que a Crítica da Razão Pura pertence apenas a um único sistema,
quando, entretanto, o caráter próprio de uma crítica da razão tem de consis-
tir exatamente em não favorecer a nenhum sistema como exclusividade, mas
antes, em estabelecer efetivamente o cânon para todos eles, ou, pelo menos,
prepará-lo. [...] mas nada de mais triste pode acontecer a uma tal obra do que
ver o método que estabelece para todos os sistemas ser tomado pelo próprio
sistema. (schelling, 1973, p. 188)
É possível observar não apenas um, mas ao menos dois sistemas filosóficos
já presentes na história que lograram em sua tarefa, aqueles do dogmatismo e
do criticismo. O primeiro ensaio de Schelling, Sobre a possibilidade da filosofia
em geral, assim como a filosofia de Fichte, na medida em que apresenta o Eu
como princípio de toda ciência, se aproximou deste último, mas sem notar que
ao seu lado se mantinha consistentemente um outro sistema, com um princí-
pio oposto ao seu, que corresponde ao dogmatismo.
Na Terceira Carta, o método universal da Crítica se traduz pelo problema
com o qual ela teria se iniciado “Como chegamos, em geral, a julgar sintetica-
2 Há, nesse aspecto, uma proximidade à filosofia fichteana, segundo a leitura de Rubens
Torres. (torres, 1975, pp. 34-36)
3 Sobre esse assunto, ver artigo Schelling e a Questão dos Postulados Práticos em ‘Cartas
filosóficas sobre dogmatismo e criticismo’ (pacheco, 2018).
4 ei, proposição 16, corolário 1: “Deus é causa eficiente de todas as coisas que podem cair
sob o intelecto divino”; corolário 2: “Deus é causa por si, e não por acidente”; corolário 3.:
“Deus é absolutamente causa primeira”. (espinosa, 2015, p.75-7)
6 Schelling to Goethe (26 January 1801), in f. w. j. Schelling, Briefe und Dokumente, ed.
Horst Fuhrmans, 3 vols. to date (Bonn: Bouvier Verlag, 1962– 1:243).
8 “É preciso que uma nova síntese mais elevada seja dada na natureza, a qual não pode ser
buscada na natureza, sem dúvida, senão enquanto ela não for considerada, como um todo,
absolutamente orgânica”, que segue com a nota “Que é, então, a mesma natureza que produz
com as mesmas forças os fenômenos naturais gerais, isso ocorre apenas na medida em que
essas forças se encontram em um estado mais elevado na natureza orgânica.” (schelling,
1958, iii, p. 326, tradução nossa).
9 Schelling faz a referência nesta passagem ao texto de Jacobi a respeito de David Hume.
O fato de nossa experiência não nos ter feito conhecer nenhuma trans-
formação na natureza, nenhuma passagem de uma forma (Form) ou
de uma espécie (Art) à outra (ainda que possamos ao menos mencion-
ar, como fenômenos análogos, as metamorfoses de certos insetos, assim
como as das plantas, se cada botão for um novo indivíduo) não con-
stitui uma prova contra essa possibilidade, visto que um adepto dessa
ideia poderia responder que as mudanças às quais a natureza orgânica e
inorgânica estão submetidas podem ocorrem em períodos muito mais
longos que os nossos curtos períodos, os quais não nos dão a medida e
que são tão pequenos que, até agora, não chegamos a viver a data limite
de uma delas [...]. (schelling, 1958, ii, pp. 348-349, tradução nossa).
11 A hipótese da transformação dos produtos da natureza não foi formulada pelo próprio
Schelling no interior de sua filosofia da natureza, ainda que ela tenha sido pensada em
paralelo com a filosofia transcendental no que diz respeito a uma história da autoconsciência
do Eu, como mostramos acima. Ela coincide com um argumento que aparece na História
Natural de Buffon, em especial coincide com o verbete “asno”, como indica Stéphane
Schmitt em uma nota de sua cuidadosa edição crítica da tradução de Da alma do mundo
para o francês (schelling, 2007, p.196). Schelling menciona algumas vezes o trabalho de
Buffon, por exemplo em ii, 487, em que ele faz uma citação das Époques de la nature.
15 Como menciona Robert Richards, ainda que um texto filosófico não tenha fornecido
um ganho positivo para as demais ciências até o momento atual, podemos recordar o que
Foucault propunha na História da sexualidade: “o trabalho de pensar sua própria história
pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar
diferente.” (richards, 2002, p. 511)
abstract: The following text discusses a passage from the Introduction to the
outline of the system of the philosophy of nature written by Schelling in 1799, in
which he equates the project of his philosophy of nature with the realization
of a “Spinozism of physics”. The understanding of such a designation entails
at least two moments. The first refers to the presupposed systematicity of the
form of his philosophy, which he claims to be rigorously scientific. The second
presents his opposition to the materialist and mechanistic understanding of
nature, with its description based on the primacy of the organic over the inor-
ganic.
keywords: Schelling; Spinozism; philosophy of nature; immanence; organ-
ism.
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Logo de início, podemos dizer que propor uma leitura de Sartre à luz das
concepções espinosanas não é uma tarefa fácil, tampouco intuitiva. Ao con-
siderarmos o contraste enfático existente entre tais formulações teóricas, tor-
na-se patente a impossibilidade de traçarmos elementos consonantes entre,
por um lado, a filosofia sartriana alicerçada na contingência, e por outro lado,
a “ontologia do necessário” (chaui, 2016, p. 94), constituída no caminho
demonstrativo da Ética. Embora não tenhamos a mera intenção de contrapor
os elementos divergentes entre as respectivas teorias filosóficas, visto que tal
empreitada, além de bastante extensiva, demandaria capacidades que nos esca-
pam, a nosso ver não seria possível intentar caminhar por rotas tão díspares
sem que o tom contrastante viesse à tona.
Mas como explicar a escolha por este peculiar ponto de partida? Tendo
em vista nossas análises sobre A náusea, oriundas dos resultados de nossa pes-
quisa recente, enxergamos a possibilidade de trazer aspectos pertinentes do
romance de Sartre ao campo espinosano de compreensão dos afetos. Nesse
sentido, gostaríamos de destacar o conflito aflitivo de Roquentin - protagonis-
ta da novela sartriana -, em relação à contingência, como um caso ilustrativo
da formulação de Espinosa sobre o sentido de servidão humana, expresso na
Ética iv. De modo mais específico, concentraremos nossos esforços em deline-
ar a questão sobre a melancolia de acordo com as peculiaridades descritas por
Roquentin, porém, com vistas a traçar a explicação propriamente espinosana
dessa paixão.
De acordo com a discussão sobre os afetos, se, em sentido inverso ao
homem virtuoso, aquele que está dominado pela paixão mergulha no oceano
turbulento do sentimento de contingência, também é certo, a título de “lei
necessária da Natureza”, que “a alegria aumenta a potência de agir da mente e
do corpo e que a tristeza as diminui” (chaui, 2016, p. 340). No entanto, ainda
que a tristeza remeta à questão originária de nossa empreitada, as especificida-
des tocantes à definição de melancolia é o que nos caberá examinar. Portanto,
acreditamos que os elementos presentes em A náusea são passíveis de serem
[...] Meu pensamento sou eu: eis por que não posso parar. Existo porque
penso…e não posso me impedir de pensar. Nesse exato momento - é
terrível - se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me
extraio do nada a que aspiro: o ódio, a repugnância de existir são outras
3 Como Moutinho (1995, p. 59) salienta, a contraposição com Descartes não é gratuita.
O próprio Sartre parece nos oferecer fortes indícios do tom anticartesiano presente no
romance, desde o início das primeiras experiências nauseantes de Roquentin. Para um
esmiuçamento desta questão cf. moutinho, l. d. s. (1995).
4 Ainda que Espinosa insira o desejo na categoria dos afetos dos quais todos os outros
serão derivados, destaca-se que esse é mais amplo do que a alegria e a tristeza. Como
explica Marilena Chauí: “Embora haja três afetos primários, podemos observar que há uma
distinção entre o desejo, de um lado, e a alegria e a tristeza, de outro, pois as duas últimas se
referem ao aumento ou diminuição da potência do conatus singular, enquanto o primeiro é
idêntico ao próprio conatus [...] (chaui, 2016, p. 330).
5 Cumpre destacar que, ao analisar a interação entre a obra sartriana de 1938 e a psicologia
clínica, Schneider (2006, p. 55) bem aponta que a náusea sentida por Roquentin é uma
experiência de ordem psicofísica. No entanto, é preciso verificar com cautela se é possível
afirmar que há uma superação efetiva da náusea por parte da personagem, tal como a autora
propõe (schneider, 2006, p. 59), posto que, mesmo ao final do romance, Roquentin
ainda constata a presença do mal-estar (sartre, 2019, p. 196).
6 Segundo a explicação de Marilena Chaui: “De fato, ao apresentar os afetos como coisas
singulares, Espinosa os apresenta ontologicamente como efeitos necessários de causas
naturais determinadas e eles próprios como causas de efeitos determinados e os insere na
ordem e rede necessária de conexões causais da Natureza” (chaui, 2016, p. 294).
7 No primeiro corolário da prop. 44 da parte ii, Espinosa enuncia que: “Daí segue depender
só da imaginação que contemplemos as coisas, tanto a respeito do passado quanto do
futuro, como contingentes” (espinosa, 2021, p. 207). Em outras palavras, é a imaginação
que introduz a temporalidade e permite a afirmação sobre uma coisa ser passada, presente
ou futura; jamais a razão. Tal procedimento é realizado devido à associação dos eventos
com determinados movimentos corporais, considerados como pontos referenciais (oliva,
2014, p. 15).
É útil ao homem o que dispõe o Corpo humano tal que possa ser afe-
tado de múltiplas maneiras ou o que o torna apto a afetar os Corpos
externos de múltiplas maneiras; e tanto mais útil quanto torna o Corpo
mais apto a ser afetado e afetar os outros corpos de múltiplas maneiras;
e, inversamente, é nocivo o que torna o Corpo menos apto a isto (espi-
nosa, 2021, p. 439).
Com base no que foi dito, podemos observar que a oposição melancólica
à fruição social se mostra absurda na Ética espinosana. A impossibilidade de se
levar uma vida humana solitária e plena ressoa nos danos ao desenvolvimento
das aptidões mentais e corporais e na consequente incapacidade para a plura-
lidade de afecções e ideias simultâneas. Como explica Chaui: “[...] a sociabi-
lidade é o útil por excelência, pois a condição humana de modo finito e parte
da Natureza não apenas impossibilita a autossuficiência do indivíduo isola-
do, mas também introduz a sociabilidade como natural e necessária” (chaui,
2016, p. 425). Dessa forma, é preciso reter que a virtude não enclausura nem
nos encerra em nós mesmos. Antes, abre-nos para o mundo, posto que na exte-
rioridade existem coisas que são favoráveis ao incremento de nossa potência.
Em contrapartida, aquele que se encontra tomado pelas paixões, ao navegar
no oceano tempestuoso das incertezas, acreditará no proveito de sua própria
impotência.
4. considerações finais
referências bibliográficas
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sartre, j-p. (2019). A Náusea. Trad. Rita Braga. 25. ed. Rio de Janeiro: Nova
Para Espinosa, então, julgar que o poder sobre as paixões, a virtude da For-
taleza, dá origem à felicidade consiste em tomar o efeito pela causa ou o condi-
cionado pelo condicionante — trata-se primeiro de efetivamente fruir da feli-
cidade para então manifestar a Fortaleza, como emblema dessa felicidade. O
início mesmo da proposição 42 sugere o motivo para essa inversão de papéis. A
felicidade não resulta como um prêmio da virtude, mas coincide completamente
com a própria virtude, de tal forma que se seguem três consequências imedia-
tas sobre a forma como se relacionam felicidade (beatitude) e virtude. A saber:
1) a virtude não causa, propriamente falando, a beatitude, 2) não cabe pensar a
beatitude como o prêmio de uma virtude efetiva, logo, a relação com ela não se
resume imediatamente na de merecimento porque 3) felicidade e virtude mani-
festam-se como o mesmo sem mediação. Por consequência, dentro do ambien-
te da Ética, uma ética da virtude equivale completamente a uma ética da felici-
dade, e de fato o fazem, pelo menos no que concerne ao enunciado da proposi-
ção 42. Não se trata, portanto, de praticar a virtude e depois fruir da felicidade,
mas de fazer as duas coisas em um único ato. Daí que o poder de coibir a Lascí-
via ocupe o posto de consequência nesse processo. O homem feliz espinosano,
por natureza, compreende e critica suas paixões, dispondo delas segundo sua
natureza, em sua felicidade e com ela. Não se trata de coibir as paixões para ser
feliz, mas de vê-las sem força porque se é feliz1. O que muda também a hipótese
1 A interpretação sobre as paixões neste texto acompanha a delineada por chaui, 2011,
É uma solução econômica no que diz respeito à alternativa entre uma ética
da virtude e uma da felicidade. Extingue-se a diferença. Entretanto, essa descri-
ção da beatitude e de seu encontro final com a virtude não deixa de criar pro-
blemas para o leitor da Ética. Por dois motivos fundamentais. Primeiro: o poder
(potestas) de refrear as paixões pode sugerir que a felicidade, tomada como cau-
sa, permita uma escolha do homem feliz, isto é, permita que ele recuse ou aceite
sua submissão à Lascívia. Mas a Ética não deixava margem a nenhum funda-
mento objetivo ou subjetivo para uma tal escolha. Isso porque, objetivamente,
um acontecimento vem determinado por suas causas numa ordem de necessi-
dade inquebrável, a paixão ela mesma é um acontecimento que tem como cau-
sas o objeto apaixonante e a natureza do apaixonável que efetivamente sofreu
a paixão, e então tal apaixonado não poderia deixar de sê-lo sem contrariar sua
própria natureza (o que envolveria uma contradição insustentável consigo mes-
mo) ou a força do objeto apaixonante (o que exigiria dele um excesso de força
que tornaria a paixão impossível, ao invés de opcional). Não há, consequente-
mente, condições objetivas para a escolha entre sofrer ou não a paixão. Tam-
bém não se alcançam condições subjetivas para tanto, porque toda paixão, sub-
jetivamente, exprime um desejo, e este último em momento algum vem inde-
terminado o suficiente para permitir um estado que envolva com indiferença a
afirmação e a negação de seu objeto. Ao desejo resta apenas a uma das partes de
uma disjunção, e desejar significa, antes de tudo, afirmar o vínculo com o objeto,
ou negá-lo apenas. Claro que pode haver dois desejos contrários sem contra-
dição, mas então teremos uma oscilação do ânimo mais que uma indiferença.
passim.
ii
Claro que a justificativa deste percurso exige que se traga à luz algo da lon-
ga história que culminou na proposição 42 da Quinta Parte. Ora, a cláusula
que inicia a demonstração (fundada na proposição 36 da mesma Parte e em seu
É que a mente está inteira em todas as suas ações, e cada ação coincide não
só com uma virtude, mas também exprime a força para agir que, em si mesma,
oferece o estofo concreto de toda virtude. Logo, a primeira parte da demons-
tração termina por fazer confluir em um único ato três manifestações: 1) da
felicidade, 2) do amor intelectual e 3) da compreensão intelectual — e ain-
2 Tal postulado é desenvolvido de forma muito mais aprofundada por chaui (1999) no
primeiro volume de A Nervura do Real.
“… quanto mais … tanto mais … tanto maior … tanto menos …”, a saber, o
amor intelectual, a compreensão intelectual, a felicidade e a virtude mostram-
-se passíveis de graduação, sujeitas ao mais e ao menos, ao maior e o menor.
Há, na gênese da felicidade, todo um movimento de ida à maior virtude, à
maximização da virtude, que leva também a otimizar o poder de refrear as pai-
xões ou ainda, o que é equivalente, a reduzir os efeitos das más afecções até seu
mínimo.
Antes de seguirmos essa pista, o que faremos logo adiante, cabe ainda
observarmos mais um pouco o escólio à proposição 42 em um ponto funda-
mental. A descrição dramática da posição do ignorante que o escólio oferece
— e a contrapartida elevada que cabe ao sábio — repetem com algumas novi-
dades a confluência de atos que a demonstração secamente enunciava na série
‘amor intelectual = felicidade = compreensão intelectual = virtude = supe-
ração das más afecções’ (matriz da proporção direta ‘mais amor intelectual =
mais felicidade = mais compreensão intelectual = mais virtude = maior poder
de superar as afecções más”). Mas a série agora é explicitada com outras pala-
vras:
5 Algumas traduções dessa proposição podem esconder o que está em jogo, do ponto de
vista da proporção entre os fatores que estamos investigando. Para tanto, por exemplo é
preciso alterar a tradução de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio
Simões em “Os Pensadores” no que concerne ao uso de termos como ‘consciência’,
‘íntimo’, ‘contentamento’ e ao desaparecimento da remissão aos estados de ânimo, e à
força do ânimo que parecem ser compreendidos na tradução como ‘estados interiores’.
Um exemplo é a tradução de Antônio Simões à Ev P42, onde se lê “O ignorante, com
efeito, além de ser agitado de muitas maneiras pelas causas externas e de nunca gozar
do verdadeiro contentamento íntimo, vive, ainda, quase sem consciência de si
mesmo...” (espinosa, 1979, Ev P42, esc., p. 300, negritos nossos), o que é muito diferente
de inconsciente de si. Há toda uma psicologia por trás desses termos que pode não caber
dentro dos limites da filosofia da Ética e o uso dos termos pode infiltrar uma certa confusão.
Para conferência do leitor dispomos do original abaixo. Ei-lo:“Ex quibus apparet, quantum
Sapiens polleat, potiorque sit ignaro, qui solâ libidine agitur. Ignarus enim, praeterquam quod
a causis externis, multis modis agitatur, nec unquam vera animi acquiescentia potitur, vivit
praeterea sui, & Dei, & rerum quasi inscius, & simulac pati desinit, simul etiam esse desinit.
Cum contra sapiens, quatenus ut talis consideratur, vix animo movetur; sed sui, & Dei, &
rerum aeterna quadam necessitate conscius, nunquam esse desinit; sed semper vera animi
acquiescentia potitur.” (espinosa, 2015, Ev P42, esc., p. 578)
iii
Ora, haver apenas um sentido absoluto do ‘ser em si’ implica a exclusão dos
modos da posse de uma essência atual, porque não precisaríamos aceitar a per-
severança no esse para um modo enquanto um modo não é em si e não cumpre
Eis, então, o significado último da expressão ‘ser em si’ (in se est) entendida
em sentido relativo: carregar a necessidade legada por sua pertinência à ordem
do real. As concepções de modo não excluem outras formas de alcançá-los que
não digam respeito a essa necessidade, entretanto, dessa última perspectiva, os
modos não compreendidos em sua necessidade não são mais objeto da propo-
sição 6.
iv
7 O conceito de essência da coisa singular pode ser empregado para “assinalar a relação
interna entre uma essência e sua existência” (chaui, 2016, p.32).
Isso significa que, realmente, em alguns desses afetos trata-se de uma dimi-
nuição no poder de agir porque a coação externa interfere nas ações próprias
do modo. Todavia é necessário levar em conta que, se é verdade que toda
diminuição do poder de agir vem de causas exteriores não deixa de ser verda-
de também que algumas causas exteriores permanecem podendo aumentar o
poder de ação, porque o princípio inverso não foi demonstrado por Espino-
sa em lugar algum, e não se segue imediatamente. Isso é: tudo o que discorda
da essência atual e tende a suprimir sua passagem ao ato de ser vem de causas
externas a essa essência, mas nem tudo o que é externo discorda, por isso mes-
mo, de uma essência atual. Dois seres humanos, por exemplo, são tão próximos
em sua essência que é possível pensar um aumento do poder de ação de ambos
dada uma aliança entre eles. Algumas causas externas diminuem o poder de
ação, outras não, e os maus afetos (o adjetivo mau, aqui, significando apenas
a discordância pontual com relação à essência atual em questão) originam-se
apenas das primeiras. Assim, a submissão às paixões, quando estas exprimem
Não, pelo menos, no seguinte sentido: o sábio é pela sua ação, sua atitu-
de e sua posição no mundo confirmam sua ação de tal forma que o sábio “é”,
e o ignorante, baixo-relevo disso, falta em ser porque opera sem ação, e nele
também sua atitude, sua posição no mundo e sua trajetória existencial negam
seu esse. Mas então o segredo final da Ética seria no final de todas as contas,
no epílogo de todas as demonstrações, justamente a costura que foi tramada
entre uma ontologia da ação como esse e uma ética que faz coincidir virtude e
da felicidade? O grande segredo seria o da convergência entre ação, felicidade
e virtude, substituindo uma ética da deliberação e do merecimento? Parece ser
esse o sentido da derradeira proposição da Ética.
referências bibliográficas
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Souza Chaui, Carlos Lopes de Mattos, Joaquim de Carvalho, Joaquim
Ferreira Gomes, Antônio Simões e Manuel de Castro. São Paulo: Abril
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______. (2015). Ética. Tradução Grupo de Estudos Espinosanos. São Paulo:
edusp
oliva, l. c. g. (2015). Causalidade e necessidade na ontologia de Espinosa. Dis-
curso, nº 45/2, pp. 249-72.
resumo: Neste artigo procuro expor a forma pela qual aparece o conceito de
beatitude (Seligkeit-beatitudo) no pensamento de Fichte e de Espinosa. Tendo
isso em vista, ressalto a importância de considerar os fundamentos metafísicos
dos seus sistemas filosóficos para poder compreender suas implicações práticas
– em particular as morais e políticas – a respeito do sentido que aquele conceito
adota. Assim, pretendo analisar a metafísica fichteana do ansiar (Sehnen) como
base da sua concepção da beatitude em um sentido moral, ao mesmo tempo que
buscarei, em um sentido filosófico-histórico, confrontar essa perspectiva com
a ideia espinosana de uma beatitudo, que, deixando de lado a moralidade, uma
vez que para ele a política assume um papel primário na existência humana,
de um ponto de vista fichteano só poderia ser considerada como irracional
e dogmática. O confronto entre ambos os pensadores pretende favorecer
a compreensão tanto de suas posições sobre o tema como dos seus sistemas
filosóficos per se.
palavras-chave: Fichte; Espinosa; beatitude; idealismo; dogmatismo.
2 Também levaremos em conta: Beitrag zur Berichtigung der Urtheile des Publikums
über die französische Revolution (bb) (1793); Einige Vorlesungen über die Bestimmung des
Gelehrten (bg) (1794); Über die Würde des Menschen (wm); Erste und Zweite Einleitung
in der Wissenschaftslehre (ee-ze) (1796-1797); Grundlage des Naturrechts (gnr) (1796-
1797); Verantwortungsschriften gegen die Anklage des Atheismus (vs) (1799). Quanto às
edições em português utilizadas nas citações e referências para as obras de Fichte e de
Espinosa, eu coloco a paginação depois de uma barra (/). Quando não há edição em língua
portuguesa, a tradução é minha.
3 Eu, não-eu, e sua mútua relação, são os princípios do seu sistema filosófico. Cf. fichte,
1965, i/2, pp. 255-82; 2021, pp. 37-67.
4 Por sua parte, Zöller realça que também em ssl Fichte adota essa ideia (Cf. zöller,
2018, p. 282).
1. a beatitude fichteana
[m]uitas vezes, no meio dos negócios [...] da vida, a todo homem que
não seja [...] ignóbil, não pode mais que apertar seu peito e sair dele um
gemido de que não é possível que essa vida seja seu verdadeiro desti-
no [...]. Este ansiar por algo superior [...] assiste inextinguivelmente na
alma do homem. E de forma igualmente inextinguível ressoa nele a voz
de que algo é um dever (Pflicht) (fichte 1977, i/5, p. 424).
[o] esforço visa à causalidade [...], esta causalidade não pode ser posta
como se dirigindo ao não-eu; porque então seria posta uma atividade
[...] toda a lei «teorética» se funda sobre uma “prática”, e dado que bem
pode haver uma só lei prática, sobre uma e a mesma lei [...]. Resulta
daí a liberdade absoluta da reflexão e da abstração, também no aspec-
to teorético, e a possibilidade de dirigir a atenção “segundo a obrigação
(pflichtmäßig)”, sobre algo, e desviá-la de outra coisa, possibilidade sem
a qual nenhuma moral é possível. O fatalismo, que se funda em que o
nosso agir e querer é dependente do sistema das nossas representações, é
destruído no seu fundamento, ao ser aqui mostrado que é o sistema das
nossas representações que por sua vez depende do nosso impulso (Trieb)
(fichte, 1965, i/2, p.424; 2021, p.229).7
o fim de toda nossa existência e de toda nossa ação, um fim que não
poderá alcançar-se [...], que o ser racional se torne [...] livre [...] de tudo
o que não seja a razão [...]. [E]ste destino é o qual se nos anuncia por
meio daquele ansiar que nenhum bem finito pode satisfazer. Esse fim é
o que temos [...] o dever de nos propor (fichte, 1977, i/5, p.426).
Ora, mesmo quando essa descrição do próprio do humano como ser racio-
nal pareça sumir para o sujeito em um estágio de total insatisfação, Fichte
sublinha que é esse ansiar, esse dever, que se ergue como o caminho para uma
existência beata. Ainda mais: esse roteiro é já a beatitude. Ela não é um gozo
sensível. De fato, não há objeto finito que satisfaça o ansiar ou que seja o foco
de uma ação pelo dever. A ação à qual o dever convoca é a ação pelo dever
mesmo: “[e]u quero minha «beatitude» não como um estado de gozo [...],
mas porque [...] é o que um ser racional há de merecer [...]. Como meio úni-
co e infalível da «beatitude», minha consciência moral mostra-me o cumpri-
mento do dever” (fichte, 1977, i/5, pp. 426-7).8 Por sua vez, é importante
Acerca do tema, Solé sublinha que para Fichte, na confrontação com Espinosa, o Eu como
princípio sistemático é deduzido transcendentalmente, à diferença do sentido arbitrário
– transcendente – da afirmação da substância como princípio do sistema espinosano
(cf. solé, 2017, p. 159 e também cf. janke, 1970, p. 145. Por outro lado, vale apontar o
artigo de Solé como confronto com o nosso, já que ele pretende ligar Fichte e Espinosa (cf.
solé, 2017, pp. 159-163). Por sua vez, Rivera de Rosales sublinha a diferença entre Fichte
e Espinosa explicitando as qualificações de idealista e dogmático ao mesmo tempo que
aponta a diferença entre um pensamento transcendental e um transcendente (cf. rivera
de rosales, 2008, p. 139. Nota 13 e p.144. Nota 42). Por último, cf. serrano, 2011, p. 9.
9 Diz na wm: “[m]esmo sem conhecer meu sistema é impossível considerá[-lo] como
espinosista [...]. A unidade do espírito puro é para mim um «ideal inatingível»; fim último
que jamais se realiza” (fichte, 1965, i/2, p.89; 1999b, p.149).
eu quero minha beatitude não como um estado de gozo [...] mas porque
[...] é aquilo que um ser racional merece [...]. Como [seu] meio [...],
minha consciência moral mostra o cumprimento do dever [...]. Impõe-
se a mim [...] que existe uma [...] ordem [...] que conta com a morali-
dade de todos e que mediante essa moralidade se dirige à beatitude de
todos (fichte, 1977, i/5, pp. 426-7).
10 Na e, os termos salvação e beatitudo são homólogos. Cf. espinosa, 2021, e v p36, esc.,
p. 569. Para uma leitura que assinala o local da afetividade mais do que da intelectualidade
como concebida por Espinosa nesse contexto, cf. chaui, 2011, pp. 94-6.
2. a beatitudo espinosana
11 Para uma visão de conjunto sobre esta dedução, cf. paula, 2009, pp. 275 e ss.
12 Ver nota 9. Neste sentido diz na ee: “[n]enhum desses sistemas pode refutar
diretamente ao oposto, já que a discussão entre eles é uma discussão sobre o primeiro
princípio” (fichte, 1970, i/4, 191).
17 Isto se deduz da primazia da teoria. Gaudio aponta: “para Fichte, Espinosa não
reconhece a primazia da prática. Em consequência, ao colocar um fundamento anterior
ao eu, [seu] sistema [...] se unifica num princípio transcendente [...]. [A] excisão do eu
a respeito da instância soberana o conduz para um dogmatismo inaceitável para Fichte
[…]. Na medida em que o eu [...] é posto por algo superior, o sistema admite uma causa
extrínseca que afoga a autolegitimação” (gaudio, 2015, p. 133). Por sua parte, Bos liga a
Espinosa e Fichte, já que: “nos dois o problema central não é o conhecer mas o viver” (bos,
2017, p. 413, trad. nossa); e lima amorim & gacki, 2011, p. 8, pretendem mostrar que o
Deus espinosano não é um princípio transcendente.
18 Também, cf. ttp, xvi, pp. 234-235. Com relação à identificação entre Deus e natureza,
cf. e iv, pref., p. 373. Por sua parte, Nadler sublinha a conexão entre a e e o ttp acerca dessa
noção, cf. nadler, 2011, p. 86.
19 Peña aponta para isso quando escreve: “esse ‘amor a Deus’ não pode ser outra coisa
senão o conhecimento da necessidade e a crítica de nossa subjetividade, reconhecendo que
esta subjetividade não é a ‘realidade definitiva’, pois se resolve numa ordem verdadeira e
eterna que nos transborda, e quando nos transborda [...] nós a ‘amamos’” (peña, 2004, p.
305, trad. nossa).
20 Também, cf. espinosa, 2009, tp ii, 8, p. 15; cf. espinosa, 2003, ttp xvi, p. 235.
21 Entre colchetes colocamos o termo Estado - ao qual nos inclinamos -, segundo a edição
do texto consultada em espanhol. É interessante sublinhar que Espinosa não reconhece
diferença entre os termos Sociedade (Societas) e Estado (cf. espinosa, 2021, e iv p37, esc.
ii, p. 437; cf. espinosa, 2003, ttp iv, pp. 73-4; cf. espinosa, 2009, tp iii, 1, p. 99). Cf.
domínguez, 1986, p. 28. Ao contrário, Fichte traça uma distinção entre os termos (cf.
fichte, 1964, i/1, p.276 e cf. lópez domínguez, 1993, p. 148).
22 Como se, por outro lado, o idealismo não tivesse uma visão realista da existência
humana. Escreve Fichte: “[a] Doutrina da ciência [...] se poderia denominar um real-
idealismo ou um ideal-realismo” (fichte, 1965, i/2, p.412; 2021, p.216). Também, cf.
fichte, 1965, i/2, p.355; 2021, p.150. Fichte sabe que o ideal de uma vida puramente
racional e beata é impossível, mas é por sua impossibilidade que tem que ser procurado,
visto que essa procura perfeccionista é já seu alcance no seu constante ser produzido.
Com efeito, tal como expõe em ap, não importa o resultado do agir humano na procura
da beatitude como fim absoluto enquanto dever, mas a intenção na sua consecução.
Exatamente o inverso do que apresenta Espinosa quando diz: “[n]em importa, para a
segurança do Estado, com que ânimo os homens são induzidos a administrar corretamente
as coisas, contanto que as coisas sejam corretamente administradas” (espinosa, 2009, tp
i, 6, p. 9). Por outro lado, Tatián sustenta que o Estado espinosano, não sendo o governo
da virtude, tampouco é apenas um dispositivo de ordenamento e impedimento de conflito
(cf. tatián, 2013, p. 87).
23 Analisando o ttp, Domínguez explica esta questão que aparece no tp: “[o] Estado
de Espinosa não é utópico, para homens que forem só razão. É um Estado realista, para
homens submetidos a [...] paixões e interesses” (domínguez, 1986, p. 32, trad. nossa).
24 No ttp: “[o] nosso supremo bem e a nossa beatitudo resumem-se no conhecimento e
amor de Deus ” (espinosa, 2003, ttp iv, p. 69).
35 Cf. espinosa, 2021, e iv, def., p. 347. Quanto ao conceito de segurança no seu
pensamento político, sustenta que ela é “a virtude do Estado” (espinosa, 2009, tp i, 6, p.
9). Também no ttp é central (cf. espinosa, 2003, ttp iv, p. 66; ttp xx, p. 300 e p302).
36 Por outro lado, no ttp encontramos passagens que permitem pensar a possibilidade
de uma leitura da filosofia política espinosana na qual a fundamentação da politicidade e
do Estado não se baseia no medo (cf. espinosa, 2003, ttp iv, p. 76; ttp v, p. 86; ttp
xx, p. 302).
40 Esta ideia aparece também como “viver o melhor possível” (cf. espinosa, 2003, ttp
xvi, p. 237; cf. tp v, 1, p. 43).
41 Também, cf. espinosa, 2021, e iv p35, cor., p. 427; e iv, ap., cap. xii e xiv, pp. 499
e 501.
42 Esta contradição é aquela que refuta o intento de Espinosa de justificar o Estado como
âmbito da liberdade e da beatitudo - segundo a associação entre os termos (cf. espinosa,
2021, e v p36, esc., p. 569) -, como o propósito de pensar os homens como seres racionais
e não como bestas ou autômatos (cf. espinosa, 2003, ttp xx, p. 302).
[o] homem que é conduzido pela razão não é conduzido a obedecer pelo
Medo (pela Prop. 63 desta parte); mas, enquanto se esforça para con-
servar seu ser pelo ditame da razão [...], deseja observar a regra da vida
e da utilidade comuns (pela Prop. 37 desta parte), e consequentemente
(como mostramos no Esc. 2 da Prop. 37 desta parte) viver pelo decre-
to comum da cidade [Estado] (espinosa, 2021, e iv p73, dem., p. 491).
43 Cf. lópez domínguez, 1996, p. 125; cf. cruz, 1975, pp. x-xi; cf. breazale, 1999,
p. 101; cf. rockmore, 2014, p. 9.
44 Para uma análise do ateísmo espinosano no qual aparece a dualidade imanência/
transcendência, cf. chaui, 2009, pp. 322-334. Também hernández pedrero (2012,
p. 70) apoia-se na crítica de Espinosa ao Deus teísta e afirma que sua ideia de Deus e seu
sistema é imanentista. A questão da transcendência aparece também quanto ao pensamento
político. De forma antecipada, podemos contrastar aqui com a leitura de garcía ruzo,
2015, p. 70, acerca do caráter transcendente do Estado como apresentado por Espinosa.
[c]ada um existe por sumo direito de natureza e [...] cuida do que lhe
tem utilidade [...]. E se os homens vivessem sob a condução da razão,
cada um possuiria este direito sem nenhum dano para outro. Porém,
como estão submetidos aos afetos [...], são contrários uns aos outros
quando precisam de auxílio mútuo. Portanto, para que possam viver em
concórdia [...], é necessário que cedam seu direito natural e tornem uns
aos outros seguros de que nada haverão de fazer que possa causar dano a
outro. Mas de que maneira pode ocorrer [?] A saber, nenhum afeto pode
ser coibido a não ser por um afeto mais forte e contrário [...], e cada um
abstém-se de causar dano por temor de um dano maior. É, portanto, por
esta lei que a Sociedade poderá firmar-se, desde que [...] tenha o poder
de prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e firmá-las não pela
razão [...] mas por ameaças. E esta Sociedade [...], é denominada Cidade
[Estado] (espinosa, 2021, e iv p37, esc. ii, pp. 435 e 437).45
Por outro lado, também no ttp e no tp, o fator medo e o mal menor46 apa-
recem como determinantes a respeito do procedimento dedutivo do Estado –
assim como de sua reprodução –, enquanto pretensa necessidade dos homens
serem dirigidos por uma instância única que gere temor e aja coativamente em
prol de sua conservação. Escreve no ttp:
não há ninguém que não deseje viver, tanto quanto possível, ao abrigo
do medo, coisa que não poderá verificar-se enquanto cada um for livre
de fazer tudo quanto quiser [...]. Por isso, tiveram de estatuir e acordar
45 A crítica ao finalismo é uma das bases do sistema da E. Cf. espinosa, 2021, e i, Ap.,
pp. 111-121.
46 Cf. teixeira, 2001, p. 13.
No caso do tp, essa ideia aparece sob a noção do Estado como “uma só
mente”: “no estado civil todos temem as mesmas coisas e é idêntica para todos
a causa de segurança e a regra de vida” (espinosa, 2009, tp iii, 3, pp. 26-7).48
E: “o corpo do Estado deve ser conduzido como que por uma só mente” (espi-
nosa, 2009, tp iii, 5, p. 27).49 A ideia de uma só mente que organize a vida
social aparece no tp na maneira pela qual Espinosa concebe a relação entre
direito natural e direito civil. A análise particular deste tema exigiria um arti-
go separado, mas o que vale apontar é que tanto no estado de natureza como
no estado civil os homens, segundo Espinosa, agem conduzidos pelas mesmas
causas, a saber, esperança e medo (cf. espinosa, 2009, tp iii, 3, p. 26), sendo
que o fato de serem conduzidos como por uma só mente à qual temem não
tem outra fundamentação que o fato de ser mais vantajoso - menos mau - que
ter que resguardar-se de todos e cada um dos homens. Mais uma vez vemos que
a lógica do mal menor aparece como a fundamentação do Estado, com base
nos conceitos de segurança, medo e esperança50 à vista daquilo que resulta útil
De fato, Espinosa sustenta que o homem que não age movido pelo medo
e/ou pela esperança não tem lugar no Estado e, ainda mais, é seu inimigo,
podendo ser coibido e coagido a obedecer às ordens ensinadas pela legisla-
ção política (cf. espinosa, 2009, tp ii, p. 20; tp iii, 8, p. 30). Precisamente,
a questão para pensar é o que acontece quando não se trata da conservação de
si mesmo, mas do autoaperfeiçoamento – como exibido no idealismo moral
fichteano – e da procura da máxima perfeição – como o que Espinosa chama
de beatitudo (cf. espinosa, 2021, e v p33, esc., p. 565). O desenvolvimento da
lógica do mal menor fundamentada nos conceitos de utilidade e conatus, cuja
ressonância prática é o realismo político que encontra no Estado sua institui-
ção fundamental e na geração de medo e ameaças seu modus operandi em prol
dessa conservação material dos homens, acaso não contraria a consecução da
beatitudo? Acaso não é contraditória a lógica segundo a qual para o homem
deixar de ter medo, tem que ter medo?51 Por sua vez, pode-se colocar como
pergunta: acaso o sistema espinosano, tanto em termos metafísicos como prá-
ticos, não implica irracionalidade? Espinosa observa esse problema quando,
havendo defendido que os homens têm que agir segundo a legislação impos-
ta pelo direito civil para além de sua consideração como justa ou injusta (cf.
espinosa, 2009, tp iii, 5, p. 27), escreve: “pode-se objetar se não será contra
o ditame da razão sujeitar-se totalmente ao juízo de outrem, e por conseguinte
se o estado civil [político] não repugnará à razão, de onde se seguiria que era
51 Podemos contrastar com a leitura que Bagley faz. Cf. bagley, 2008, pp. 148 e ss.
abstract: In this paper I try to expose the way in which the concept of beat-
itude (Seligkeit-beatitudo) appears in the thought of Fichte and Spinoza. To
this end, I emphasize the importance of considering the metaphysical foun-
dations of their philosophical systems, in order to be able to understand their
practical implications - in particular moral and political - regarding the mean-
ing that this concept adopts. Thus, I intend to give an account of the Fichte-
an metaphysics of the longing (Sehnen) as the basis of his conception of the
beatitude in a moral sense. At the same time I aim to compare, in a philosoph-
ical-historical sense, this perspective with the Spinozist idea of a beatitude that
- leaving morality aside, since politics adopts a primary role in human exis-
tence -, from Fichte’s point of view, could only be considered as irrational and
dogmatic. The confrontation between the two thinkers intends to favor the
understanding of their opposing positions as well as their philosophical sys-
tems per se.
keywords: Fichte; Spinoza; beatitude; idealism; dogmatism.
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Uma das primeiras coisas que aprendemos ao estudar latim é que a ordem
das palavras na construção de uma frase difere muito daquela a que estamos
acostumados. Em português, assim como na maioria das línguas românicas
modernas, a posição de cada palavra é bastante rígida e qualquer inversão sim-
ples pode acarretar inversão do sentido da frase. Isso acontece porque em por-
tuguês o que determina a função de uma palavra na frase é sua posição. Em
latim, por outro lado, o que nos revela o sujeito e o objeto de uma oração é o
caso em que cada vocábulo se encontra, não o lugar que ocupa na frase. Por
conseguinte, a ordem das palavras em uma sentença é consideravelmente mais
livre em latim do que em português. Todavia, dizer que a escrita latina é mais
flexível não significa dizer que o lugar que cada palavra ocupa na frase não tem
2 Com exceção dessa primeira citação, retirada da Opera (1972), utilizaremos a tradução
do Tratado Político para o português feita pela wmf Martins Fontes (2009).
***
3 Por exemplo, na frase “Caesar in Galliam contendit” (César marchou para a Gália)
temos uma amostra da disposição comum das palavras em uma sentença latina: o sujeito
da frase se encontra na primeira posição; o adjunto de lugar na segunda posição; e o verbo
por último. Todavia, se invertermos a ordem e colocarmos o adjunto antecedendo o sujeito
da frase – in Galliam Caesar contendit – temos o que se pode chamar de uma disposição
enfática. Ao posicionar “in Galliam” no início da oração o que se busca é destacar o local
para onde César marchou (como se estivéssemos respondendo à pergunta “para onde César
marchou?”). Este não é o único efeito discursivo que pode ser obtido através do rearranjo
das palavras na oração latina, porém é o único que interessa a este texto, pois é a partir dele
que começaremos nossa análise. Cf. jones e sidwell, 2012 p. 606.
4 Doravante usaremos a abreviação ‘tp’ para nos referirmos ao Tratado Político.
Nada acontece na natureza que possa ser atribuído a um vício dela; pois
a natureza é sempre a mesma, e uma só e a mesma em toda parte é sua
virtude e potência de agir, isto é, as leis e regras da natureza, segundo as
quais todas as coisas acontecem e mudam de uma forma em outra, são
em toda parte e sempre as mesmas, e portanto uma só e mesma deve ser
também a maneira de entender a natureza de qualquer coisa, a saber, por
meio das leis e regras universais da natureza (espinosa, 2015a, p. 235).
A afetividade será tratada com o mesmo método pelo qual foram trata-
dos Deus, na Ética i, o corpo e a mente, na Ética ii. A justificativa espinosa-
na, inclusive, nos faz recordar o que está escrito no apêndice do De Deo. Lá
o filósofo demonstra que a gênese dos preconceitos sobre “bem e mal, méri-
to e pecado, louvor e vitupério, ordem e confusão, beleza e feiura, e outros
desse gênero”, está na aplicação do raciocínio finalista à natureza (espinosa,
2015a, p. 111). Por pensar que as coisas naturais são produzidas a partir de cau-
causa’. É exatamente essa concepção do conhecimento que guia o Tratado Político. Neste,
a matemática é invocada desde o início em termos que lembram o prefácio da Parte iii da
Ética, pois aqui, como lá, trata-se de deduzir a causa das relações entre os homens a partir
do ‘estudo da natureza humana’.” (chaui, 2003, p. 208).
7 “A ordem consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem ser conhecidas
sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que sejam
demonstradas só pelas coisas que as precedem.” (descartes, 1973, p. 176)
10 Balibar sugere que a figura do político é baseada em Maquiavel (balibar, 1985, p. 67),
no entanto nos parece mais preciso dizer, como o faz Chaui, que ela se baseia em uma certa
imagem, fundada na teologia, do príncipe maquiavélico enquanto aquele que age para a
perdição dos demais (chaui, 2003, p. 156 e 210).
Mas o escólio da proposição 18, que explicou como se estabelece esse dis-
positivo imaginário com o qual as ideias, em vez de se darem em uma
sucessão de instantes independentes uns dos outros, se desenvolvem em
um cenário de repetição ao longo de séries temporais contínuas onde elas
parecem interligadas, mostrou também que esses conhecimentos, mui-
to mais elaborados e sofisticados do que aqueles que são fornecidos pela
experiência bruta, e que dependem de um aprendizado longo e complexo,
entretanto não diferem no fundo daqueles que nos são dados de imediato
sem passar por esses retransmissores interpretativos, pois os dispositivos
que os produzem trabalham sobre as representações imaginárias, materi-
ais brutos elaborados pela percepção, sem lhes retirar seu caráter acidental
próprio às ideias inadequadas. A observação foi feita quando se comentou
o escólio da proposição 18: para a percepção e suas representações imag-
inárias não há nada além dos signos e dos signos de signos, sem que nada
venha interromper essa cadeia de significações, de maneira a fixá-la dis-
tintamente sobre uma só coisa precisamente determinada pelas condições
de sua própria natureza; no mundo da imaginação há lugar somente para
as interpretações mais ou menos trabalhadas e elaboradas. Isto quer diz-
er que, não mais que no caso precedente, nós não lidamos com as rep-
resentações obedecendo a uma ordem indo no sentido do intelecto.
(macherey, 1997, p. 313)
14 Para melhor compreender o que Espinosa quer dizer com falsidade cf. espinosa,
2015a, pp. 165-169 e pp. 189-91.
15 “Por nenhum outro motivo uma coisa é dita contingente senão com relação a um
defeito de nosso conhecimento.” (espinosa, 2015a, p. 103)
16 “Dessa maneira, podemos determinar a diferença entre a percepção da parte pela
Essa pequena digressão pela Ética ii nos permite voltar à reflexão polí-
tica e abordar a pergunta que fizemos anteriormente com mais subsídios
conceituais. Pois bem, pode a experiência dos políticos ser um guia segu-
ro? A resposta de Espinosa é negativa. Ainda que tenham escrito sobre polí-
tica de maneira mais feliz que os filósofos, é notável que na descrição espi-
nosana o conhecimento dos políticos provém da ocasião e do acaso, dan-
do a entender que ele seria um conhecimento do primeiro gênero, não do
A experiência serve de baliza e não se deve buscar nada que não esteja de
acordo com ela – eis o erro dos filósofos, produzir um modelo humano ide-
al que não encontra lastro algum na experiência real. Mas, considerada em
si mesma, a experiência é o reino do acaso, da fortuna, da contingência e do
acúmulo desordenado de imagens. Por conseguinte, o conhecimento basea-
do na só experiência é um conhecimento que erra, em ambos os sentidos que
a palavra sugere. Erra porque é passível de conter falsidade, uma vez que é um
conhecimento que se funda em ideias inadequadas; mas também erra porque
não enxerga o nexo causal necessário entre as coisas da natureza e, portan-
to, vaga indiscriminadamente de uma ideia para outra, ao acaso e sem cami-
nho certo, estabelecendo vínculos imaginários entre as ideias produzidas na
mente.
Ora, do que vimos até agora segue-se necessariamente que uma investi-
gação sobre a política fundada conjuntamente na experiência e na razão não
pode, diante das ações e dos afetos humanos, pôr-se a rir, a chorar, ou a consi-
19 “Todas as ações que seguem dos afetos referidos à Mente enquanto entende eu refiro à
Fortaleza, que distingo em Firmeza e Generosidade. Pois por Firmeza entendo o Desejo pelo
qual cada um se esforça para conservar seu ser pelo só ditame da razão. Por Generosidade
entendo o Desejo pelo qual cada um se esforça para favorecer os outros homens e uni-los a
si por amizade pelo só ditame da razão. Assim, as ações que visam só ao útil do agente refiro
à Firmeza, e as que visam também ao útil do outro, à Generosidade” (espinosa, 2015a,
p. 335).
Esse último ponto nos permite fazer outra observação acerca das figuras
que abrem o tratado. Inicialmente afirmamos que o político é introduzido no
texto em oposição ao filósofo, e que essa oposição se dá através do contras-
te entre o que efetivamente é e o que deve ser. O argumento da experiência
demonstra, portanto, em que medida filósofo e político se distanciam em seus
respectivos métodos de abordagem do fenômeno político. Há, contudo, um
elemento em comum entre os dois: ambos trabalham com a categoria de vícios.
Os filósofos concebem os afetos como vícios, afirma Espinosa. Já os políticos,
a experiência lhes ensinou que enquanto houver homens haverá vícios. Ora,
o método espinosano, que se funda conjuntamente na experiência e na razão,
impede que se considere características próprias ao homem como desvios de
natureza, isto é, como vícios. Os primeiros parágrafos do tratado trabalham,
portanto, com duas oposições. Uma oposição se dá entre filósofos e políticos,
a outra se dá entre essas duas figuras e o próprio projeto espinosano.
20 A autora demonstra que a razão não pode ser retirada da equação, pois ainda que
Espinosa deixe claro que a política não é instituída pela razão, nem por isso afirma que ela
é instituída contra a razão. (chaui, 2003, p. 160-161)
22 tp, 1, §5.
23 Considera-se aqui que estado civil é um sinônimo de situação civil. É importante notar
também que no texto original utiliza-se status nessa passagem, não imperium.
abstract: The article aims to discuss the introductory function of the first
chapter of Spinoza’s Political Treatise. To this end, we will emphasize some
of the fundamental aspects in the text’s argumentative movement, such as
the central role played by the affects in political reasoning and the need for a
method of investigation which articulates experience and reason.
keywords: affections; method; experience; reason; politics;
Spinoza
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tradução
introdução
A revogação do Edito de Nantes por Luís xiv, ocorrida em outubro de
1685, é um marco na história da intolerância na França, embora a política dis-
criminatória contra os protestantes lhe seja anterior. Bastante apoiada pelos
católicos, notadamente nos discursos oficiais, essa política foi criticada por
Bernard de Fontenelle (1657-1757), homem de letras que então desfrutava de
grande notoriedade. Valendo-se de anagramas para Solima (antigo nome de
Jerusalém), Roma e Genebra, Fontenelle compôs uma alegoria dos conflitos
religiosos na França sob a forma de um relato de viagem em que descreve a
situação política na ilha de Bornéu.1 Mais precisamente, Fontenelle se concen-
tra na sucessão real após a morte de Mlisao e nas guerras daí decorrentes entre
1 Sobre a possibilidade de o relato ter sido escrito por Fontenelle em parceria com
Catherine Bernard (c. 1663-1712) ou exclusivamente por Bernard, veja-se a introdução a
Fontenelle (2021, pp. 16-18).
Par l’usage de tous les Journalistes des Sçavans, & par la déclaration que nous
en fîmes dans notre premiére Préface, les raretez des Indes sont du ressort de
ces Nouvelles. Or par ce terme de raretez il faut entendre non seulement ce qui
se rapporte aux choses inanimées, aux plantes & aux bêtes, mais aussi ce qui se
rapporte à l’homme, soit pour la constitution du corps, soit pour le goût de l’es-
prit. C’est sous cette derniére vûë que nous pourrons adopter l’Extrait d’une
Lettre écrite de Batavia, touchant une guerre civile qui s’est élevée dans l’Isle de
Borneo. C’est en quelque façon un Phénoméne Physique, puis qu’il est fondé
sur des goûts & sur des modifications singuliéres d’ame.2 Voyons de quoi il s’agit.
Extrait d’une Lettre écrite de Batavia dans les Indes Orientales, le 27. No-
vembre 1684. contenu dans une Lettre de M. de Fontenelles, reçûë à Rot-
terdam par M. Bânage.
Vous sçavez que dans l’Isle de Borneo dont nous sommes voisins, il n’y a que les
femmes qui puissent avoir la Royauté. Ces Peuples-là sont si jaloux d’être gouver-
nez par des personnes qui soient veritablement du Sang Royal, & ils ont une telle
opinion de la fragilité des femmes, qu’il leur faut toûjours une Reine dont les enfans
lui appartiennent incontestablement, & pour plus grande sûreté, les Principaux du
Païs doivent être presens aux accouchemens des Reines. Il y a quelques années que la
Reine nommée Mliséo mourut, & sa Fille Mréo lui succeda reconnuë d’abord dans
toute l’Isle sans difficulté. Les commencemens de son régne furent assez goûtez par
ses Sujets, mais ensuite les nouveautez qu’elle introduisit peu à peu dans le Gouver-
nement, firent murmurer. Mréo vouloit que tous ses Ministres fussent Eunuques,
condition trés-dure, & qu’on n’avoit point jusqu’alors imposée, & cependant elle
Pelo costume de todos os jornalistas dos eruditos e pela declaração que fize-
mos em nosso primeiro prefácio,4 as raridades das Índias são da alçada dessas
Nouvelles. Ora, pelo termo ‘raridade’, é preciso entender não somente o que
diz respeito às coisas inanimadas, às plantas e aos animais, mas também o que
diz respeito ao ser humano, seja quanto à constituição do corpo, seja quanto
ao gosto do espírito. É desse último ponto de vista que poderemos acolher o
Excerto de uma Carta escrita da Batávia acerca de uma guerra civil que eclodiu
na Ilha de Bornéu. De certa forma, ela é um fenômeno físico, pois se funda nos
gostos e nas modificações singulares da alma. Vejamos do que se trata.
[História alegórica de uma guerra civil na Ilha de Bornéu.]5 Vós sabeis que
na ilha de Bornéu, da qual somos vizinhos,6 somente as mulheres podem assumir
a realeza. Esses povos são tão ciosos de ser governados por pessoas que verdadei-
ramente possuam o sangue real e têm uma tal opinião acerca da fragilidade das
mulheres que, para eles, é necessário sempre ter uma rainha cujos filhos lhe perten-
çam incontestavelmente;7 e, para maior segurança, as pessoas mais importantes
do país devem estar presentes nos partos reais. Há alguns anos a rainha chamada
Mlisao morreu e sua filha Mrao a sucedeu, aclamada inicialmente em toda a ilha
sem dificuldade. As primícias de seu reino foram bastante apreciadas por seus
súditos, mas, em seguida, as novidades que pouco a pouco introduziu no governo
causaram murmúrio. Mrao queria que todos os seus ministros fossem eunucos,8
condição muito dura e que até então nunca havia sido imposta e, entretanto, ela
Dito de outro modo, Descartes pode compreender o ser pensante com cla-
reza e distinção; pode também descrever o funcionamento mecânico do corpo
humano, considerando-o uma máquina que funciona segundo as leis da físi-
ca; e pode, ainda, conceber geometricamente os objetos exteriores. Contudo,
a existência viva da mistura do corpo com a alma permanece misteriosa. Há
testemunhos dessa união na experiência dos sentimentos, na fome, na dor, na
percepção confusa do mundo externo. Nenhum deles, porém, pode ser depu-
rado pela razão, ou pela luz natural, de modo que a união seja rigorosamente
explicada. A região da mistura só oferece indícios de veracidade que me incli-
de laurent bove
Bernardo Bianchi,
Pesquisador, Centre Marc Bloch, Berlim, Alemanha,
bernardobianchi@gmail.com
[A]s lentes que Espinosa poliu com cuidado e habilidade em suas ofici-
nas em Voorburg e Rijnsburg, assim como nos conceitos de sua Ética,
também podem ser encontradas, na forma de desenhos e pinturas, nas
oficinas do pintor Pieter Bruegel, como dispositivos e/ou caminhos para
a verdade real das coisas (bove, 2019, p. 43).
a diferença essencial e radical é que um (Bosch) pinta (ou pensa que pin-
ta...) a corrupção da natureza humana (marcada pelo pecado e pelo vício
que pervertem e deformam, até o ponto da monstruosidade, as rela-
13 Não se deve estranhar que esta frase, citada ipsis litteris nos Cadernos sobre a filosofia
epicurista, de Marx, tenha sido usada por este para expressar seu apreço por Lucrécio,
distinguindo-o de Plutarco (marx, 1968, p. 154).
defesas de doutorado
notícias
Everson Machado
Orientadora: Maria das Graças de Souza
Defesa: 04/05/2023
Resumo: Hobbes escreveu em um tempo que estava fora de seus gonzos –
Reforma protestante, Revolução científica, Revolução inglesa e burguesa –, e
sua filosofia lida com esse mundo que revolvia ao seu redor. A filosofia hobbe-
siana gerou, assim, uma grande quantidade de textos que lhe são críticos, sendo
ela mesma não escassa de críticas às formas de pensamento de sua época. Há,
desse modo, por um lado, uma abordagem externa à obra de Hobbes a partir
de leituras que lhe são críticas, e até mesmo hostis, tanto de seus contempo-
râneos quanto de autores recentes, visando compreender o que está em jogo
em sua filosofia política, isto é, busca entrar na filosofia hobbesiana a partir de
tópicos considerados por seus críticos como problemáticos ou francamente
inaceitáveis. Essas falhas, reais ou não, vistas na filosofia hobbesiana por seus
críticos, servem de aberturas por onde se vê sua interação com as ideias da épo-
ca. Por outro lado, a filosofia hobbesiana é a um só tempo construtiva e destru-
tiva. Constrói por meio do método more geometrico e destrói discursos tidos
por verdadeiros – sejam eles de origem filosófica, bíblica, jurídica ou histórica
–, que informavam os discursos de seus contemporâneos. A filosofia hobbesia-
na busca ao mesmo tempo fundar e ampliar o conhecimento humano e redu-
zi-lo aos limites de uma razão que não ultrapassa o mundo empírico. Contudo,
além de uma pars destruens e de uma pars construens, há um momento em que
Hobbes reconstrói, momento histórico-filosófico, o homem tal como é his-
toricamente e mostra como e por que ele deve tornar-se moderno, isto é, um
homem hobbesiano.
Laurent Bove
Tradução: Bernardo Bianchi e José Marcelo Siviero
Editora Politeia
“É, antes de tudo, do ponto de vista desta dinâmica da resistência ativa do
conatus a uma aniquilação total pelas forças exteriores mais potentes, que a
afirmação da existência é denominada estratégia. Na raiz de toda existência,
há a resistência. Resistência e estratégia se seguem necessariamente da essên-
cia de cada ser existente como se “segue necessariamente aquilo que serve à sua
conservação”. A ideia de estratégia envolve, com efeito, a de ação causal total e,
para cada conatus – pode-se dizer, a cada instante da existência –, o risco essen-
cial de vida ou de morte do modo existente. Longe de toda finalidade inter-
na, a tese de uma estratégia do conatus se inscreve então no plano imanente e
causal, integralmente inteligível, do racionalismo absoluto. Potência singular
de afirmação e de resistência, o conatus espinosista é uma prática estratégica
de decisão de problemas e de sua resolução. A noção de estratégia, oriunda do
campo da guerra, não será empregada por nós de maneira metafórica. A con-
dição do corpo – de maneira mais urgente ainda que a das sociedades – é uma
condição de guerra total e ninguém escapará, por fim, da morte: ‘[n]a nature-
za das coisas, não é dada nenhuma coisa singular tal que não se dê outra mais
potente e mais forte do que ela. Mas, dada uma coisa qualquer, é dada outra
mais potente pela qual aquela pode ser destruída’”.
jornada espinosana
introduction 11
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