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Recomendação Conjunta n.

01/DRDH-SC/DPU – NUCIDH/DPE-SC

A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, por meio da Defensoria Regional de


Direitos Humanos em Santa Catarina (DRDH/SC) e pelo Grupo de Trabalho Rua, e
a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA, por meio do
Núcleo de Cidadania, Igualdade, Diversidade, Direitos Humanos e Coletivos
(NUCIDH), vêm apresentar RECOMENDAÇÃO a fim de garantir os direitos
fundamentais da população em situação de rua, em virtude das recentes
declarações de representantes do Município de Florianópolis sobre a permanência
do coletivo no território, especialmente com relação à proposta de internação
psiquiátrica de pessoas com transtorno mental ou em uso prejudicial de substâncias
químicas.

1. DA ILEGALIDADE DA PROPOSIÇÃO MUNICIPAL

Inicialmente, destaca-se que a Defensoria Pública é instituição permanente,


essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e
instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a
promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, na forma do inciso LXXIV dos artigos 5º e 134 da Constituição da
República Federativa do Brasil.
Nesse contexto, a Defensoria Pública atua de forma estratégica em
demandas relacionadas à defesa dos direitos humanos de grupos vulnerabilizados,
como a população em situação de rua.
A presente Recomendação pretende fomentar a discussão acerca dos rumos
da política municipal da população de rua em Florianópolis, bem como propor
alternativas para garantir o direito à saúde das pessoas em situação de rua em
sofrimento mental ou em abuso de substâncias entorpecentes na Capital.
Para fins de contextualização sobre a matéria em exame, é imperioso
ressaltar que o Decreto Federal n. 7.053 dispõe sobre a Política Nacional da
População em Situação de Rua, à qual o Município de Florianópolis aderiu de forma
voluntária e, por consequência, implementou a Política Municipal de Atendimento à
População de Rua em Florianópolis através da Lei Municipal n. 8.751/2011, que
reconhece a pessoa em situação de rua como sujeito de direitos.
Dentre as políticas necessárias à superação da situação de rua, o acesso à
saúde dessas pessoas é, sem dúvida, ponto crucial para enfrentamento do poder
público na busca por alternativas capazes de dar oportunidades de tratamento
dignas e humanizadas.
Embora nobre a preocupação do Município de refletir sobre ações para
promover os direitos da população de rua portadora de transtornos mentais e em
situação de abuso de álcool e/ou droga, norteando a questão da dependência
química como uma questão afeta à saúde pública, a solução proposta por meio do
Projeto de Lei n. 19.044/2024 não é capaz de alcançar os fins a que se propõe,
além de violar a ordem legal e constitucional perante o tema, conforme será
exposto.
O Município de Florianópolis pretende, por meio do Projeto de Lei n.
19.044/2024, promover a internação, exclusivamente, de pessoas em situação de
rua com dependência química crônica e/ou transtornos mentais (art. 1º).
Inicialmente, é preciso contextualizar, desde já, que a intenção proposta pelo
Município acarreta tratamento diferenciado à população em situação de rua, distinto
das demais camadas sociais e do próprio coletivo no restante do país, revelando
uma política seletiva e de higienização social, incompatível com o Estado
Democrático de Direito e com os direitos fundamentais.
De qualquer modo, é imperioso mencionar que a internação é um instituto
previsto tanto na Lei Federal n. 10.216/2001 (atinente à proteção e aos direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais), como na Lei Federal n. 11.343/2006
(atinente ao tratamento do usuário ou dependente de drogas), motivo pelo qual a
sua aplicação prescinde de lei municipal.
Nos termos do art. 6º, I e II, da Lei n. 10.216/01, a internação voluntária é
aquela que se dá com o consentimento do usuário e a involuntária é aquela que se
dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro. No mesmo sentido prevê
o art. 23-A, §3º, I e II, da Lei n. 11.3431.
Considerando o teor do Projeto de Lei n. 19.044/2024, verifica-se que o
Município pretende lançar mão da internação psiquiátrica nas modalidades
voluntária e involuntária (art. 2º) como política pública municipal.
Na existência de lei federal sobre o tema, fundada na competência
concorrente da União para dispor de normas gerais sobre a defesa à saúde (art. 24,
XII, §§1º e 2º da CF), cabe ao Município apenas suplementar a legislação federal no
que couber (art. 30, II, da CF), devendo observar obrigatoriamente os princípios e as
diretrizes da regulamentação federal.
Todavia, o Projeto de Lei n. 19.044/2024 deixa de observar a legislação
federal ao permitir a internação sem exigência da necessidade de esgotamento dos
recursos extra-hospitalares, o que se depreende de seu art. 3º2 que não arrolou
como requisito a comprovação da impossibilidade de utilização de outras
alternativas previstas na rede de atenção à saúde como condição para aplicação da
medida extrema, desrespeitando o disposto no art. 4º da Lei n. 10.216/01 e no art.
23-A, §5º, II, e §6º, da Lei n. 11.343 que dispõem:

Art. 4, da Lei n. 10.216/01. A internação, em qualquer de suas modalidades,


só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
insuficientes.

Art. 23-A, da Lei n. 11.343. O tratamento do usuário ou dependente de


drogas deverá ser ordenado em uma rede de atenção à saúde, com
prioridade para as modalidades de tratamento ambulatorial, incluindo
excepcionalmente formas de internação em unidades de saúde e hospitais
gerais nos termos de normas dispostas pela União e articuladas com os
serviços de assistência social e em etapas que permitam:
[...]
§ 5º A internação involuntária:

1
art. 23-A, §3º, II, da Lei n. 11.343: internação voluntária: aquela que se dá, sem o consentimento do
dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor
público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sisnad, com
exceção de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que
justifiquem a medida.
2
II - será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o
padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de utilização
de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde;
§ 6º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada
quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

A Reforma Psiquiátrica, instituída por meio da Lei nº 10.216/2001, foi construída


sob a lógica de superação das práticas de exclusão, da garantia dos direitos das
pessoas com transtornos mentais, do tratamento comunitário e aberto como
prioridade, da ressocialização por meio de um atendimento multidisciplinar capaz de
promover autonomia, extirpando a lógica manicomial do ordenamento jurídico.
A partir da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216/01), o Estado redireciona a
política de promoção de saúde mental, adotando como eixo central a devida
participação das famílias e da sociedade, oferecendo, preferencialmente, serviços
comunitários de saúde mental, opções de tratamento e recuperação pela inserção
na família, no trabalho e na comunidade.
A legislação federal rompe com a lógica segregacionista de internação como
centro da política de atenção à saúde. Nesse novo contorno legal, as internações
são entendidas como recursos extremos, de curto prazo, aplicáveis somente
quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, possíveis
apenas após a submissão a tratamento ambulatorial3.
Nesse sentido, são direitos da pessoa portadora de transtorno mental: a) ter
acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde; b) ser tratada com humanidade
e respeito no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde; c) ser tratada em
ambiente terapêutico pelo meios menos invasivos possíveis e,
preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental, como prevê o art.
2º, parágrafo único, da Lei n. 10.216/014.
Portanto, a pretensão do Município de Florianópolis usurpa a legislação federal
ao pretender instituir a internação no território sem submetê-la ao esgotamento dos

3
Art. 4º da Lei n. 10.216/01 e o art. 23-A da Lei n. 11.343.
4
Art. 2º. [...] Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
meios extra-hospitalares e sem possibilitar ao interessado tratamento integral e
ambulatorial em meio aberto, terapêutico, multidisciplinar e menos invasivo.
Além disso, a legislação federal é clara ao determinar que a internação
involuntária somente poderá ser indicada “depois da avaliação sobre o tipo de droga
utilizada, o padrão de uso e na hipótese comprovada da impossibilidade de
utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde”
(art. 23-A, § 5º, II, da Lei 11.343/06).
Desta forma, embora permitida pela legislação brasileira, a internação
deve ser aplicada de forma excepcional, como ultima ratio, aplicável apenas
em caso onde todas as modalidades de recursos extra-hospitalares se
mostrarem insuficientes, situação a ser comprovada quando da apresentação
de laudo médico circunstanciado (art. 6º, 8º, da Lei n. 10.216 e 23-A, §5º, da Lei
n. 11.343)5, o qual indicará, de forma pormenorizada, todos os tratamentos e
alternativas utilizadas para recuperação da saúde mental do cidadão até a
formação da decisão médica quanto à ausência de outras medidas em meio
aberto possíveis para o caso.
Nesse sentido, a Resolução n. 08/2019 do Conselho Nacional de Direitos
Humanos esclarece:
Art. 12. [...]
§ 1º A internação psiquiátrica deve ser considerada um recurso
terapêutico com forte potencial iatrogênico, que induz à
recorrência (reinternações), com pior prognóstico a longo
prazo para os quadros de transtornos mentais, aumento
desproporcional para o custo do sistema e da assistência,
além de promoção de estigma, isolamento e fragilização das
relações sociais.
§ 2º Problemas associados ao uso de álcool e outras drogas
não devem ser considerados por si só indicativo de internação,
sem que sejam avaliados seu contexto clínico, recursos
disponíveis e vínculos sociais.

5
Diante da obrigação legal de priorizar o tratamento ambulatorial para pessoas
com sofrimento mental ou usuários de drogas, surge a preocupação em fortalecer e
estruturar os serviços do SUS e do SUAS no Município, especialmente a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS), a qual deve atingir a finalidade perseguida pelo
Município de Florianópolis de promover atenção humanizada à saúde mental da
população de rua.

3. DA NECESSIDADE DE ESTRUTURAÇÃO DO SERVIÇO DE SAÚDE DE


FORMA ESPECIALIZADA AO ATENDIMENTO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO
DE RUA

A Defensoria Pública reconhece o valioso debate proposto pelo Município, o


qual deve e precisa estruturar e fortalecer a política de saúde voltada à população
em situação de rua por meio de seus equipamentos municipais.
Inicialmente, a questão deve ser enfrentada por meio do fortalecimento e da
estruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)6 que devem garantir a
atenção integral à população em situação de rua em articulação com os demais
serviços da Rede de Atenção à Saúde e intersetoriais, garantindo o acesso inclusive
por busca ativa, a partir da lógica da redução de danos e da priorização do cuidado
comunitário, evitando-se o higienismo social a partir do afastamento em locais de
segregação, quebra de vínculos comunitários e demais violações de seus direitos.7
A atenção básica é a porta de entrada do SUS, em qualquer questão de
saúde. A ideia é que a Unidade Básica de Saúde, a Equipe Saúde da Família e as
equipes do Consultório na Rua sejam organizadas de forma a estabelecer vínculo
mais próximo às pessoas, identificar os problemas de saúde mais corriqueiros e, na
medida do possível, atendê-los na própria rede da atenção básica.
O aprimoramento da política de saúde deve se dar também junto aos
Centros de Atenção Psicossocial AD, modalidade de serviço especializada para
atendimento de necessidades decorrentes de abuso de substâncias químicas, e que

6
Regulamentada pelo Anexo V da Portaria de Consolidação n.03/2017 do Ministério da Saúde.
7
Art. 113 da Resolução n. 40 do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
se caracteriza por promover serviços de saúde de caráter aberto e comunitário,
provendo atenção diária para o acompanhamento do tratamento, oferecendo
atendimentos medicamentoso, psicoterápico e de suporte social.
Embora o Município disponibilize Centros de Atenção Psicossocial, cabem
alguns apontamentos que podem elucidar o motivo pelo qual os equipamentos não
atingem seu intento.
O serviço deve ser disponibilizado no âmbito municipal de acordo com a
demanda da população e ser oferecido em locais de fácil acesso às pessoas em
situação de rua, com atendimento especializado nas características complexas e
heterogêneas do coletivo.
Atualmente, não é esse o cenário que encontramos em Florianópolis. Isso
porque a cidade possui apenas dois CAPS AD, que já enfrentam grandes
dificuldades para atender às demandas regulares da população em geral pela falta
de estrutura e de pessoal, além de estarem situados em locais de difícil acesso à
população em situação de rua (bairros Estreito e Pantanal), não havendo qualquer
dispositivo na área central, onde se concentra a maior parte do coletivo, o que
configura obstáculo ao tratamento.
Também não há equipamento especializado no atendimento nas regiões sul e
norte da Ilha, sendo de notório conhecimento o número significativo de pessoas em
situação de rua que se concentram especialmente nos bairros de Canasvieiras e
Ingleses.
Considerando o empenho do Município para atender a população em
comento, são necessários, ainda, esforços para garantir um atendimento 24 horas
por meio da ampliação dos atendimentos dos CAPS para atender aos finais de
semana, feriados e à noite, o que não ocorre até o presente momento.
Quanto à atenção em urgência e emergência, a RAPS utiliza-se da rede
específica: o SAMU 192, Sala de Estabilização, UPA 24 horas, as portas
hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro, Unidades Básicas de Saúde,
entre outros. Aqui os CAPS também devem realizar o acolhimento e o cuidado das
pessoas em fase aguda do transtorno mental, bem como a articulação e
coordenação do cuidado nas situações que demandem internação, conforme prevê
a regulamentação do Ministério da Saúde.
É reiterada a reclamação dos serviços socioassistenciais municipais e dos
usuários quanto à negligência do atendimento do SAMU relativamente às pessoas
em situação de rua em Florianópolis, que, segundos massivos relatos, deixa de
atender inúmeras situações de urgência e emergência referentes a esse público
quando se refere que o atendimento deve se dar a este coletivo.
Ademais, Florianópolis não dispõe de Unidades de Acolhimento (UAs), que
seriam fundamentais no atendimento à população em vulnerabilidade social, já que
se referem a serviços gratuitos de acolhimento voluntário e cuidados contínuos para
pacientes com transtornos decorrentes do abuso de substâncias, e devem ser
implementadas em cidades com mais de 200 mil habitantes.
Os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) também são aliados no
tratamento da saúde mental ao disporem de moradias, com caráter de saúde
pública, voltadas ao acolhimento de pacientes egressos de hospitais psiquiátricos
ou regimes de internação psiquiátrica prolongadas.
Florianópolis já foi obrigada a dispor do serviço (SRTs) por meio de ação civil
pública proposta pela Defensoria Pública do Estado (autos n.
03085281320158240023), porém ainda não cumpriu a decisão judicial.
Neste cenário, a busca ativa nas ruas das pessoas que precisam de
atendimento, a conscientização sobre a prevenção do uso de drogas e sobre as
alternativas de tratamento, bem como os encaminhamentos desde o encontro na
rua até as unidades básicas de atendimento podem e devem ser realizadas pelo
Consultório na Rua, o qual tem um papel fundamental no atendimento da
população em situação de rua que necessita de cuidado à saúde.
As equipes do Consultório na Rua são constituídas por profissionais
multidisciplinares que atuam de forma itinerante e realizam abordagens diretas a
grupos populacionais vulneráveis, oferecendo ações e cuidados de saúde, com foco
especial a pessoas com transtornos mentais e usuários de álcool e outras drogas,
garantindo a busca ativa especialmente daqueles que não acessam os
equipamentos municipais e permitindo o acompanhamento do tratamento de saúde
dessas pessoas.
Embora a cidade ostente uma equipe do Consultório na Rua, é imperioso
promover condições adequadas de atendimento itinerante e efetivo no território, por
meio de equipes multidisciplinares, completas e com estruturas de trabalho aptas a
atingir a finalidade do serviço e dialogar com os demais equipamentos no município.
Ou seja, equipes que tenham condições efetivas de estar e atender nas ruas.
Para tanto, é imprescindível a disponibilização de veículo próprio e adequado
ao atendimento multidisciplinar e itinerante pela equipe do Consultório na Rua, que
atualmente se desloca uma única vez por semana, durante um único turno, por
ausência de unidade móvel disponível, o que evidentemente impede o alcance da
finalidade do serviço, prejudicando o usuário, acarretando os contornos hoje
indesejados pelo Município.
Além disso, é indispensável a ampliação de mais uma equipe do Consultório
na Rua, considerando que o Ministério da Saúde disponibilizou edital para
credenciamento de mais uma equipe que poderia ser implementada no Município.
Importante papel ainda ostenta o Centro de Referência Especializado à
População em Situação de Rua (Centro Pop) do Município, o qual funciona em
estrutura inadequada e não atende os objetivos propostos pela legislação, que seria
de promover um espaço de ressocialização e superação da situação de rua.
Ocorre que o equipamento em Florianópolis não permite a permanência da
população durante o dia e não desenvolve qualquer tipo de oficina, espaço coletivo
de reflexão ou atividades de convívio e socialização, além de apresentar uma
equipe há muito defasada que não tem condições de absorver a demanda para
encaminhamentos sociais imprescindíveis para superação da situação de rua.
Importante mencionar que o fortalecimento do Centro Pop em Florianópolis,
para promover um serviço especializado e efetivo à população de rua, se faz ainda
mais necessário, considerando que a cidade está entre as capitais com o menor
número de CREAS no país (somente possui duas unidades)8, o que demonstra que
8

https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/publicacoes/relat_po
p_rua_digital.pdf
estas unidades não possuem condições de absorver a complexidade da demanda
exigida por este coletivo.
Dessa forma, atualmente Florianópolis não dispõe de nenhum
espaço de convivência e ressocialização para população em situação de rua
com atividades durante o dia, já que todos os seus equipamentos especializados
impedem a permanência do coletivo em seus espaços, impondo a permanência das
pessoas nas ruas sem qualquer tipo de promoção social, o que, sem dúvidas,
contribui para o agravamento do uso de entorpecentes e sofrimento mental.
Tratando-se de uma população bastante vulnerável, a atenção à saúde das
pessoas em situação de rua deve ser articulada com os serviços de
assistência social, para garantir o cuidado compartilhado entre as equipes, de
modo que dividam informações e atuem conjuntamente de forma sinérgica, como
dispõem os artigos 109, VII e 111 da Resolução n. 40 do Conselho Nacional de
Direitos Humanos e art. 7º, X, do Decreto Federal n. 7.053/09.
Entretanto, o que se percebe em Florianópolis é uma total ausência de
diálogo e interação entre o Sistema Único de Assistência Social e o Sistema Único
de Saúde, o que prejudica o oferecimento de um serviço integral à população de
rua.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal determinou aos Municípios, em
sede de medida cautelar na ADPF 976, a formulação de um protocolo intersetorial
de atendimento na rede pública de saúde para a população de rua, entendendo
existir um “estado de coisas inconstitucional” diante da massiva violação de direitos
humanos da população de rua.
Florianópolis permaneceu inerte e segue sem cumprir a determinação
judicial, fragilizando a política municipal da população de rua no Município, que
necessita, para atingir seus objetivos, de um protocolo intersetorial de atendimento à
população de rua.
Além da estruturação dos serviços de atenção à saúde e de assistência
social, a capacitação dos profissionais para atendimento especializado da
população de rua, de modo que compreendam suas peculiaridades e dificuldades e
atendam com humanidade e respeito, é imprescindível para acolher um coletivo
muito vulnerabilizado e que necessita de suporte e cuidados atinentes às suas
características.
Ainda, medidas outras devem ser asseguradas pelo Município como
alternativas à ressocialização da população de rua.
Dentre as diretrizes da Lei n. 14.821, a qual institui a Política Nacional de
Trabalho Digno e Cidadania para a População em Situação de Rua, aponta-se “o
trabalho como possível ferramenta para a redução de danos, inclusive os
associados ao uso problemático de álcool e outras drogas, desde que respeitada a
autodeterminação das pessoas em situação de rua” (art. 3º, inciso VIII). Entretanto
não se verifica nenhuma política municipal que oferte condições de autonomia
financeira e de enfrentamento da pobreza por meio de inserção laboral.
O Programa Moradia Primeiro9, capitaneado pelo Governo Federal, é voltado
especialmente para pessoas em situação crônica de rua, por uso abusivo de álcool
e outras drogas e com transtorno mental, para garantir o acesso imediato a uma
moradia segura, individual, acompanhada por equipe interdisciplinar. Porém,
Florianópolis ainda não aderiu à política e não dispõe de nenhum programa
habitacional de inclusão às pessoas de rua em situação crônica, política
imprescindível para garantir a abstinência por pessoas em reabilitação.
Neste sentido, a ausência e a precariedade dos mencionados serviços
colaboram com o contexto social em que está inserida a população em situação de
rua em sofrimento mental ou abuso de drogas no Município, que é o verdadeiro
responsável pela gravidade da situação que tanto expõe.

4. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA INTERNAÇÃO COMO POLÍTICA


PÚBLICA

A saúde deve ser interpretada como um direito social do cidadão, e não um


dever a ser imposto pelo Poder Público, conforme a disposição do art. 6º da
Constituição Federal. Isto é, os cidadãos devem dispor dos instrumentos para

https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/acoes-e-programas/
moradia-primeiro.
usufruir do direito à saúde, se assim desejarem, sendo que a obrigação pública se
restringe à criação e fomento destes meios.
Tal interpretação encontra guarida no direito fundamental à liberdade e à
proibição da privação da liberdade sem o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF),
assentando-se no Estado Democrático de Direito que tem em seu cerne a dignidade
humana (art. 1º, da CF).
Assim, ninguém pode ser privado de sua liberdade para, forçadamente,
submeter-se a qualquer espécie de tratamento, sem o livre consentimento
esclarecido.
A partir disso, conclui-se que a estrutura do Sistema Único de Saúde é uma
política de promoção social que não inclui estratégias que atentem contra as
liberdades individuais, motivo pelo qual práticas segregadoras, como a
internação psiquiátrica, somente podem ser aplicadas excepcionalmente e
não adotadas como política pública massiva e de caráter global com medidas
de cunho higienista.
Neste sentido dispõe a Resolução n. 40/2020/CNDH em seu art. 44, §1º: “É
vedado usar qualquer oferta do SUAS como instrumento de limpeza social, com a
remoção de pessoas em situação de rua por conta de populares e comerciantes
incomodados com a sua presença.”
Também preocupa, nesse cenário, a forma com que será implementada a
internação e o local onde os indivíduos serão internados, visto que o Projeto de Lei
apresentado não esclarece tais circunstâncias, abrindo margem para situações
vexatórias e desumanas. A atual falta de estrutura do Município para atender a
demanda regular de saúde mental (já descrita acima) sem qualquer previsão
concreta de ampliação da RAPS corrobora a preocupação.
A Lei n. 10.216/2001 determina que é absolutamente vedada a internação
de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com
características asilares (art. 4º, § 3º).
A Lei de Drogas, por sua vez, estabelece, em seu art. 23-A, caput e §2º, que
a internação, se realizada, deve se dar em unidades de saúde e hospitais gerais.
Nesta seara, cumpre destacar a impossibilidade de internação em
comunidades terapêuticas, mesmo na modalidade voluntária, pois possuem
caráter residencial e não integram o Sistema Único de Saúde (SUS) ou o Sistema
Único de Assistência Social (SUAS), o que dificulta o combate a irregularidades e
prejudica o tratamento à saúde.
Aliás, nesse sentido, a própria possibilidade de internação involuntária sem
consentimento da pessoa internada (prevista no PL ora comentado) se apresenta
contra o caráter voluntário das comunidades terapêuticas, nos termos do que dispõe
o art. 19, inciso III da Resolução - RDC nº 29/2011 da ANVISA.
Além disso, cabe destacar a medida cautelar proferida pelo Supremo Tribunal
Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 976, Ademais
proibiu o “ o recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o
transporte compulsório de pessoas em situação de rua.” (ADPF 976 MC-Ref,
Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 22-08-2023).
Nesse cenário, lançar mão da internação como política pública massiva
corrobora com o estado de coisas inconstitucional contra os direitos da população
de rua, viola a legislação federal atinente à matéria, e à própria legislação municipal
( Lei n. 8.751/2011) que dispõe como princípios da política municipal o respeito e a
garantia à dignidade da população de rua, a autonomia dos seus direitos, bem como
o direito à convivência comunitária, a garantia da supressão de todo e qualquer ato
violento, a não-discriminação no acesso a qualquer serviço e a proibição de
tratamento degradante ou humilhante.

4. RESPONSABILIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE

Considerando que há incongruência entre o Projeto de Lei de iniciativa da


Prefeitura e a regulamentação federal que disciplina os procedimentos de
internação psiquiátrica (Lei n. 10.216/2001), nos moldes descritos acima, é
importante advertir os profissionais atuantes na rede pública de saúde de que as
internações voluntárias e involuntárias eventualmente realizadas no Município
devem sempre observar os requisitos previstos na Lei n. 10.216/2001 e na Lei
n. 13.343/2006.
A falha em observar as disposições legais exigidas, especialmente no tocante
à comprovação do esgotamento dos recursos extra-hospitalares, acarretará a
respectiva responsabilização administrativa e criminal do profissional, em
razão da violação de dispositivo legal vinculante.
Destaca-se, nesse sentido, que o art. 148 do Código Penal prevê como crime
com pena de reclusão, de um a três anos, “Privar alguém de sua liberdade,
mediante seqüestro ou cárcere privado”. Também a Lei nº 9.455/97, que define os
crimes de tortura, tipifica a conduta de “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou
autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico
ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”
com pena de reclusão, de dois a oito anos.

5. RECOMENDAÇÕES

Diante do exposto, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do


Estado de Santa Catarina, nos termos do art. 128, X, da Lei nº 80/94 e art. 1º, e 4º,
RESOLVEM RECOMENDAR AO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS, na pessoa do
Chefe do Executivo Municipal, a adoção das providências necessárias para:

a) Não adotar a internação psiquiátrica como política pública em desfavor da


população de rua, garantindo-se a prioridade dos recursos extra-hospitalares
àqueles que manifestarem, espontânea e voluntariamente, interesse no
tratamento ambulatorial e em meio aberto, observando estritamente os
termos das Leis Federais n. 10.216 e 11.343;
b) Elaborar protocolo intersetorial de atendimento na rede pública de saúde para
a população em situação de rua, nos termos da medida cautelar proferida na
ADPF 976, priorizando-se o tratamento ambulatorial às pessoas em
situação de rua em sofrimento mental ou abuso de substâncias
entorpecentes, garantindo-se a interlocução das unidades de saúde com os
serviços socioassistenciais para facilitar o encaminhamento e transporte
daqueles que manifestem interesse no atendimento;
c) Ampliar os atendimentos promovidos pelos CAPS AD no Município,
garantindo-se atendimento integral, inclusive à noite, finais de semana e
feriados, com implementação de unidades nas regiões central e norte da
Capital em locais de fácil acesso à população em situação de rua;
d) Estruturar e fortalecer os serviços referentes à Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) no Município, e implementar e organizar os serviços ainda
inexistentes, de modo a permitir o atendimento em meio aberto das pessoas
em sofrimento mental e abuso de substâncias entorpecentes;
e) Implantar, no Município, serviço residencial terapêutico (SRT) e residências
inclusivas em capacidade apta a atender a demanda das pessoas com
deficiências em situação de vulnerabilidade de Florianópolis;
f) Promover a capacitação das equipes atuantes nos Centros de Atenção
Psicossocial para Álcool e drogas (CAPSad), SAMU e todas unidades de
saúde para atendimento especializado da população em situação de rua,
voltado ao atendimento humanizado e sob a lógica da redução de danos;
g) Traçar respostas institucionais revestidas de teor informativo e operacional,
como a elaboração de campanhas educativas e a implementação de medidas
preventivas que desalentem o consumo – tudo sob a ótica de proteção dos
usuários das sequelas resultantes do uso de tóxicos;
h) Expandir o serviço oferecido pelo Consultório na Rua no Município,
implementando mais uma equipe para atendimento, além do
aperfeiçoamento e estruturação das condições de trabalho da equipe
existente, através da ampliação das buscas ativas e do período de
funcionamento da unidade móvel;
i) Garantir o atendimento das pessoas em situação de rua, especialmente em
sofrimento mental ou dependência química, junto ao serviço ofertado pelo
SAMU no Município;
j) Orientar os serviços socioassistenciais de busca ativa para informar à
população de rua acerca dos programas de tratamento ambulatoriais e em
meio aberto disponíveis no município, bem como facilitar o acesso a eles,
consolidando objetivo da Política Nacional para a População em Situação de
Rua (art. 7º, I, Decreto n. 7.053/2009);
k) Assegurar a presença e contribuição efetiva da Secretaria Municipal de
Saúde no Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política
Municipal para a População em Situação de Rua, como estabelece o Decreto
Municipal n. 19.900/2019;

Ressalta-se que a presente RECOMENDAÇÃO busca solucionar a demanda


sem judicialização, a fim de, nos termos do artigo 4º, II, da Lei Complementar n°
80/94, “promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à
composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação,
conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de
conflitos”.
Solicita-se a gentileza de responder à presente recomendação, com
indicação acerca do acatamento ou não das medidas propostas e das providências
adotadas pelo Município para assegurar a proteção da população em situação de
rua no território, no prazo de 5 dias, preferencialmente de forma eletrônica, para o
e-mail nucidh@defensoria.sc.def.br.
Comunique-se a Presidência da Câmara de Vereadores, na pessoa do Sr.
JOÃO COBALCHINI, acerca desta Recomendação, para conhecimento e
encaminhamento aos demais vereadores de Florianópolis.
Comunique-se, ademais, ao Conselho Regional de Medicina de Santa
Catarina (CRM-SC), na pessoa do Sr. Presidente MARCELO LEMOS DOS REIS,
para que encaminhe a presente recomendação a todos os profissionais de saúde de
Florianópolis; e a Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, na pessoa da
Excelentíssima Secretária CRISTINA PIRES PAULUCI.
Enfim, encaminhe-se para ciência ao Consultório na Rua e aos Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS) de Florianópolis acerca do teor desta
recomendação.
Sendo o que cumpria informar e solicitar, aproveito para reiterar protestos de
elevada estima e admiração.

ANA PAULA
Assinado de forma digital por ANA
PAULA BERLATTO FAO
FISCHER:01757477098
BERLATTO FAO DN: c=BR, o=ICP-Brasil, ou=presencial,
ou=83043745000165, ou=Secretaria da

FISCHER:017574
Receita Federal do Brasil - RFB,
ou=ARCIASC, ou=RFB e-CPF A3, cn=ANA
PAULA BERLATTO FAO
77098 FISCHER:01757477098
Dados: 2024.02.06 15:33:53 -03'00'

ANA PAULA BERLATTO FÃO FISCHER


Defensora Pública do Estado
Coordenadora do Núcleo de Cidadania, Igualdade, Diversidade, Direitos Humanos e
Coletivos (NUCIDH)

Assinado de forma digital por JULIA GIMENES


JULIA GIMENES PEDROLLO:01010616170
DN: c=BR, o=ICP-Brasil, ou=presencial, ou=83043745000165,

PEDROLLO:01010616170
ou=Secretaria da Receita Federal do Brasil - RFB, ou=ARCIASC,
ou=RFB e-CPF A3, cn=JULIA GIMENES PEDROLLO:01010616170
Dados: 2024.02.06 15:31:26 -03'00'

JULIA GIMENES PEDROLLO


Defensora Pública do Estado
Coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude, Direitos da Pessoa Idosa e da
Pessoa com Deficiência (NIJID)

MARIANA DOERING ZAMPROGNA


Defensora Pública Federal
Defensora Regional de Direitos Humanos em Santa Catarina (DRDH/SC)

ÉRICA DE OLIVEIRA HARTMANN


Defensora Pública Federal
Membro do GT Rua da Defensoria Pública da União

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