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Os anjos de Sodoma
Roberto Piva

Eu vi os anjos de Sodoma escalando


um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados e
violentos aniquilando os mercadores,
roubando o sono das virgens,
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando
a loucura e o arrependimento de Deus

Dez chamamentos ao amigo


Hilda Hilst

Se te pareço noturna e imperfeita


Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio


E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.


E mais atento.
2

A lenda da prostituta Evlyn Roe


Bertolt Brecht

Quando veio a primavera e o mar ficou azul


A bordo chegou
Com a última canoa
A jovem Evlyn Roe.

Usava um pano sobre o corpo


Que era bonito, bem vistoso.
Não tinha ouro ou ornamento
Exceto o cabelo generoso.

“Seu Capitão, leve-me à Terra Santa


Tenho que ver Jesus Cristo.”
“Venha junto, pois somos tolos e é uma mulher
Como não temos visto.”

“Ele recompensará. Sou uma pobre garota.


Minha alma pertence a Jesus.”
“Então podes nos dar seu corpo!
Pois o seu senhor não pode pagar:
Ele já morreu, dizem que na cruz.”

Eles navegaram com sol e vento


E Evlyn Roe amaram.
Ela comia seu pão e bebia seu vinho
E nisso sempre chorava.

Eles dançavam de noite, dançavam de dia


Não cuidavam do timão.
Evlyn Roe era tímida e suave:
Eles eram duros e sem coração.

A primavera se foi. O verão acabou.


Ela a noite corria, os pés em sujas sapatilhas
De um mastro a outro, olhando no breu
Procurando praias tranquilas
A pobre Evlyn Roe.

Ela dançava à noite, dançava de dia.


E ficou quase doente, cansada.
“Seu Capitão, quando chegaremos
À Cidade Sagrada?”

O capitão estava em seu colo


E sorrindo a beijou .
“De quem é a culpa, se nunca chegamos
Só pode ser de Evlyn Roe.”
3

Ela dançava à noite, dançava de dia


Até ficar inteiramente esgotada.
Do capitão ao mais novo grumete
Todos estavam dela saciados.

Usava um vestido de seda


Com uns rasgões e remendos
E na fronte desfigurada tinha
Uma mecha de cabelos sebentos.

“Nunca Te verei, Jesus


Com esse corpo pecador.
A uma puta qualquer
Não podes dar Teu amor.”

De um lado para outro corria


Os pés e o coração lhe começavam a pesar
Uma noite, já quando ninguém via
Uma noite desceu para o mar.

Isto se deu no fim de janeiro


Ela nadou muito tempo no frio
A temperatura aumenta, os ramos florescem
Somente em março ou abril.

Abandonou-se às ondas escuras


Que a lavaram por dentro e por fora.
Chegarei antes à Terra Sagrada
Pois o capitão ainda demora.

Ao chegar ao céu, já na primavera


S. Pedro, na porta, a recusou:
“Deus me disse: Não quero aqui
A prostituta Evlyn Roe.”

E ao chegar ao inferno
O portão fechado encontrou:
O Diabo gritou: “Não quero aqui
A beata Evlyn Roe.”

Assim vagou no vento e no espago


E nunca mais parou
Num fim de tarde eu a vi passar no campo:
Tropeçava muito. Não encontrava descanso
A pobre Evlyn Roe.
4

Os sapatos
Arnaldo Antunes

Os sapatos ficam entre os pés


e o chão, no que são como as
palavras. As meias entre os pés
e os sapatos, como os adjetivos.
Os verbos, passos. Cadarços, laços.
Os pés caminham lado a lado,
calçados. Sapatos são calçados.
Porque são e porque são usados.
Palavras são pedaços. Os pés
descalços caminham calados

Sinal Fechado
Paulinho da Viola

Olá, como vai ?


Eu vou indo e você, tudo bem ?
Tudo bem eu vou indo correndo
Pegar meu lugar no futuro, e você ?
Tudo bem, eu vou indo em busca
De um sono tranquilo, quem sabe ...
Quanto tempo... pois é...
Quanto tempo...

Me perdoe a pressa
É a alma dos nossos negócios
Oh! Não tem de quê
Eu também só ando a cem
Quando é que você telefona ?
Precisamos nos ver por aí
Pra semana, prometo talvez nos vejamos
Quem sabe ?
Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...)

Tanta coisa que eu tinha a dizer


Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor, telefone, eu preciso
Beber alguma coisa, rapidamente
Pra semana
O sinal ...
Eu espero você
Vai abrir...
Por favor, não esqueça,
Adeus...

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