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ENSAIO

A inclusão social na universidade induz a excelência acadêmica

FOTO: GUSTAVO DIEHL/CREATIVE COMMONS

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Mauricio Ernica
06 de março de 2018

As políticas de ampliação de acesso e de permanência no ensino superior público são fundamentais para o
desenvolvimento do ensino e da pesquisa no Brasil

O novo reitor da Universidade de São Paulo, Vahan Agopyan, em entrevista ao UOL Educação , apresentou o que pensa sobre políticas de
acesso e permanência na universidade. Segundo ele, as políticas de ampliação do acesso, como cotas e bonificações, levariam à
universidade estudantes com deficiências escolares. As políticas de permanência, por sua vez, seriam assistencialistas e escapariam do
escopo e da vocação da universidade, motivo pelo qual deveriam ser financiadas e geridas pelo Estado. Entende-se melhor essas
afirmações ao se considerar o que, para o reitor, a universidade deve valorizar. Em entrevista à Associação dos Docentes da USP , ele
afirmou que a universidade deve atrair os melhores talentos para o seu corpo discente e deve buscar incessantemente a excelência
acadêmica.

Agopyan não recusa essas políticas cuja finalidade é aumentar as chances de indivíduos de grupos tradicionalmente distantes da
universidade pública diplomarem-se. Por isso, o que está em discussão é um modo de conceber a coexistência de dois objetivos que a
sociedade projeta sobre suas universidades: a inclusão social e a busca da excelência acadêmica.

Muitas pessoas na universidade e fora dela entendem que esses objetivos se opõem e se negam. Afinal, como se pode deduzir das
declarações do reitor, cotas e bonificações forçariam a universidade a selecionar, em vez dos melhores talentos, alunos com deficiências
na escolarização básica e que, ademais, demandam políticas de permanência. Sendo assim, aos que defendemos a possibilidade da
coexistência desses objetivos, cabe-nos problematizar essa suposta contradição.

Comecemos com uma pergunta: as políticas de ampliação do acesso à universidade pública levam à queda da qualidade acadêmica do
corpo discente? Os estudos que demonstram resultados acadêmicos positivos de cotistas já deveriam ter sido assumidos como uma
resposta suficiente: não! Podemos ir além, entretanto, e argumentar que a própria pergunta induz a um mau entendimento dos caminhos
complexos que produzem a distância cultural entre estudantes e universidade.

Não é preciso haver cotas e bonificações para que sejam aprovados na


universidade alunos com notas baixas no vestibular. Tampouco essas medidas
levam necessariamente à seleção de alunos com notas baixas. Isso porque É UM GRANDE EQUÍVOCO REDUZIR
nosso modelo de vestibular regula a seleção dos discentes pela concorrência ÀS COTAS E BONIFICAÇÕES A
entre os candidatos a cada carreira. Cotas e bonificações ajustam-se a essa PRODUÇÃO DA DISTÂNCIA
lógica sem alterá-la. Por isso, nos cursos com nota de corte alta, podem ser CULTURAL DOS ESTUDANTES EM
aprovados alunos cotistas ou bonificados com notas equivalentes ou até RELAÇÃO À UNIVERSIDADE. ESSE É
maiores que as de alunos que entram pela ampla concorrência em cursos de UM PROBLEMA ANTERIOR À
nota de corte mais baixa. INTRODUÇÃO DAS POLÍTICAS DE
INCLUSÃO E MUITO MAIS AMPLO DO
Além disso, alunos com boas notas no vestibular podem ser culturalmente QUE ELAS
distantes da universidade. Isso porque as provas de seleção exigem os
conhecimentos transmitidos pela escola básica, enquanto a universidade exige,
além desses conhecimentos, outros que não estão na cultura escolar – e o faz tão mais intensamente quanto maior é a distância entre as
áreas universitárias de saber e as disciplinas escolares. Como a cultura geral demandada e valorizada na universidade está além da cultura
escolar, não é raro, então, que o primeiro ano seja vivido como choque e como a descoberta de que os saberes adquiridos na escola básica
são insuficientes para o êxito nos cursos universitários. Por essa razão, há nas universidades legiões de ex-bons alunos, estudantes que
vivem o ingresso no ensino superior como a primeira experiência acadêmica negativa, ainda que, por vezes, possam ter tido boas notas no
vestibular.

É um grande equívoco, portanto, reduzir às cotas e bonificações a produção da distância cultural dos estudantes em relação à
universidade. Esse é um problema anterior à introdução das políticas de inclusão e muito mais amplo do que elas. Nossas universidades,
entretanto, não têm dedicado a devida atenção a ele. Quando o fazem, tendem a localizar sua causa nas “deficiências” dos estudantes,
raramente colocando em questão a pertinência de seus currículos e de suas práticas pedagógicas.

Passemos a outra pergunta: as políticas de permanência são assistencialistas, fugindo do escopo e da vocação da universidade?
Novamente, a resposta é não. Na universidade, políticas como moradia estudantil, alimentação, transporte, bolsas auxílio, serviços
médicos, psicológicos e psiquiátricos só podem ser políticas acadêmicas. O objetivo delas deve ser um só: criar condições (não só
materiais) para que os estudantes dediquem tempo e energia às atividades fim da universidade (ensino, pesquisa e extensão), obtendo
êxito.

Em um momento como o atual, de restrição orçamentária e de demanda por ampliação dessas medidas, é justo que as universidades
reivindiquem aportes adicionais de recurso para financiar políticas de permanência. Entretanto, é a universidade que deve geri-las, por
mais complexas e desafiadoras que elas sejam. Como as necessidades dos estudantes são multidimensionais e variáveis, um desafio
central para a gestão das políticas de permanência é produzir arranjos adequados de serviços diferentes, mobilizando equipes
multiprofissionais. É preciso esforço de coordenação para que essas políticas estejam orientadas para a produção de resultados
acadêmicos. Sem essa coordenação, ela podem se autonomizar e cada serviço provido pode ser tratado como um fim em si. Quem, se não a
universidade, pode assegurar esse sentido para elas?

Em um país excludente como o Brasil, conceber a incompatibilidade entre inclusão e busca de excelência paralisa a universidade em
enganos. A universidade ganha com a inclusão, pois a excelência acadêmica se desenvolve com a diversificação de experiências e de
percepções do que são nossas necessidades. A sociedade ganha com a inclusão, pois pode ter profissionais de alto nível mais diversificados
socialmente, em vez de apenas ver reproduzidas elites autorreferenciadas.

Mauricio Ernica é professor da Faculdade de Educação da Unicamp. Enquanto cursou ciências sociais na USP, morou, como hóspede, no
Crusp (Conjunto Residencial da USP) e se alimentou no bandejão. É mestre em antropologia social pela Unicamp e doutor em linguística
aplicada e estudos da linguagem pela PUC-SP. Coordenou o Programa de Moradia Estudantil da Unicamp.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal


e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem
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