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Solidão, gatos e sem feira: como se vive nos bairros


fantasmas em Maceió

Gustavo, Zuila e Carlos Nascimento: em meio a casas em ruína, família ainda vive no bairro do Pinheiro
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Carlos Madeiro
Colunista do UOL
16/07/2022 04h00
Carlos da Silva Nascimento, 77, lembra bem que, há menos de dois
anos, ia andando comprar frutas e verduras na feira do bairro do
Bebedouro, em Maceió, todos os sábados. "Hoje, um pão que precise
comprar, tenho de ir de carro."

A família Nascimento é uma das 72 que mantêm moradia nos bairros hoje
fantasmas da capital alagoana. Por conta de um problema causado pela
mineração da Braskem, o solo cedeu e 14,5 mil imóveis foram afetados. Cerca
de 60 mil pessoas tiveram de deixar os bairros de Bebedouro, Bom Parto,
Mutange, Pinheiro e Farol.

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Carlos diz que sua vida mudou especialmente pela saída


de amigos que moravam na vizinhança. "É muita tristeza
ter perdido todos eles. Vivemos sempre juntos. Com
alguns, mantenho contato. Mas muitas amizades se foram
para longe", diz.
"Eu me sinto enganado, desprestigiado, desrespeitado.
Existe uma demora para pagar pela casa. Só quem sabe o
valor dela sou eu, que trabalhei a vida para construir ela
com a minha esposa [Zuila da Silva Nascimento, 79]",
relata.

Quem está à frente das negociações com a Braskem pela


família é o filho de Carlos, o policial civil Gustavo Henrique
Nascimento, 49, que mora com os pais na ladeira do Calmon.

Ladeira do Calmon, em Bebedouro, segue aberta para carros, mas teve moradores retirados
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Segundo ele, a Braskem fez uma proposta de pouco mais de R$ 300 mil pela
casa de 197 m². "Com esse valor, não compramos uma casa assim", critica.

Mas o principal empecilho é que, ao lado da casa, mora sua tia Ione Gomes
da Silva, 82, que é cuidada por eles, de quem depende para vários serviços.

 Nós só sairemos para um local com duas casas juntas. Não posso
deixar minha tia longe, a gente precisa vê-la sempre."
Gustavo Nascimento, que mora na ladeira do Calmon
Com valores baixos de indenização, advogadas ficam

A advogada Andrea Karla Cardoso Amaral, 53, decidiu ficar na casa onde
mora há 12 anos no bairro Pinheiro, o primeiro a ser desocupado após um
tremor de terra em março de 2018.

Cercada por um muro alto e cerca serpentinada, ela vive no local com os dois
filhos, de 14 e 17 anos, e não tem mais vizinhos de lado nem de frente.

Ela se mostra cética quanto à necessidade de deixar o local. "Nunca acreditei


nessa história de afundamento aqui. Se eles estão com as vias abertas, como
é uma área de risco? Essa casa vai cair e a rua não? Precisa de uma
investigação séria para saber o que ocorreu", afirma.

Amaral diz que não se opõe a sair do local, mas diz que Braskem faz
"propostas horríveis". "Como advogada, fui acompanhando casos dos clientes.
É um esquema furado", diz.

Ela conta que, no caso dela, a empresa ofereceu R$ 685 mil de indenização
moral e material —bem abaixo do que pleiteia.

"Ela pega o valor devido da casa, baixa e coloca mais 10% para dizer que dá
como dano moral. Isso é fruto desse acordo que fizeram com a empresa, que
matou o proprietário, que não tem voz", afirma.

O que ela cita é o Termo de Acordo para Apoio na Desocupação das Áreas de
Risco, celebrado em janeiro de 2020, entre Braskem e autoridades locais. O
documento prevê o pagamento de compensação financeira pela empresa
para todos os imóveis de área de risco até o fim deste ano.


 Quero um valor maior, porque eu não estou interessada em vender
minha casa. Eles que querem comprar, têm de chegar ao menos em R$
1 milhão de indenização; ou não entrego. O dano moral é um valor que
eu defino, não eles. A minha mãe que morreu aqui no meio desse
imbróglio."
Andrea Karla Cardoso Amaral, moradora do Pinheiro

Ela conta que, mesmo a sua rua estando deserta à noite, se acostumou com a
situação. "Tomo cuidado, não sou muito fã de rua. Chego 17h30, 18h em casa
e me fecho. Não tenho medo", diz.

Andrea: valor oferecido pela Braskem é insuficiente


Imagem: Carlos Madeiro/UOL

A também advogada Sandra Catão, 49, decidiu ficar no bairro do Bebedouro,


onde vive há 31 anos, desde que a família veio de São Paulo.

Ela conta que chegou a ingressar no programa de compensação financeira da


Braskem, em novembro de 2020, mas, com a demora em ter uma proposta,
mudou de ideia.
"Eu vi que muitos dos moradores saíram e ficaram arrependidos. O valor que
eles pagam de aluguel, de R$ 1.000 por mês, é insuficiente para pagar uma
casa no mesmo padrão", afirma.

Sobre a permanência, porém, diz que pesou o fato de ajudar animais de rua
que foram abandonados.

 Isso me prendeu. Pensei: 'Só tem casa longe, como iria alimentá-los
todos os dias?'. Eles iriam morrer de fome. Hoje tenho 31 gatos aqui."
Sandra Catão, moradora do Bebedouro

A advogada Sandra Catão, 49, decidiu ficar e cuidar de animais abandonados por moradores dos bairros
afundados
Imagem: Arquivo pessoal

Decisão unânime da igreja

Além de casas, uma igreja tombada pelo patrimônio material e imaterial


histórico também decidiu ficar e lutar. Trata-se da Igreja Batista do Pinheiro,
conhecida no estado por ser uma congregação protagonista de lutas sociais e
de inclusividade.
O pastor Wellington Santos diz que a direção decidiu resistir. Lista como
motivos um parecer técnico atestando que não haveria problema geológico ou
estrutural que necessitasse de desocupação. "A decisão de ficar foi unânime
do corpo da igreja", relata.

Segundo ele, a negociação com a Braskem não andou porque os valores


apresentados aos moradores são sempre bem baixos e porque avaliam que se
trata de um prédio histórico. "A Igreja Batista do Pinheiro está localizada aqui
na rua Miguel Palmeira desde 1936. Entendemos que não nos interessaria
fazer nenhum tipo de negociação, fato que já foi comunicado ao MPF
[Ministério Público Federal]", diz.

Ele diz ainda que a igreja ainda promove cultos, mas perdeu fiéis, porque eles
se mudaram.

 Não temos o que negociar por hora. Temos muitos direitos, como os
danos causados a nossos membros, que foram espalhados em outras
igrejas. Estamos e seguimos aqui, de cabeça erguida."
Wellington Santos, pastor da Igreja Batista do Pinheiro

Igreja Batista do Pinheiro segue com cultos no bairro do Pinheiro


Imagem: Carlos Madeiro/UOL
O que dizem a Braskem e os órgãos envolvidos

A Defesa Civil de Maceió informou que 72 famílias, de 14 mil famílias que


residiam nos bairros, permanecem nas áreas mapeadas de risco. "Destas,
algumas estão em processo avançado para a efetivação das desocupações",
diz.

O órgão afirma que acompanha os casos para "conscientizar sobre a


importância da saída do local". Além disso, disponibiliza assistentes sociais e
psicólogos até o processo de realocação.

Já o MPF informou que o termo assinado em janeiro de 2020 "promove uma


possibilidade para o morador ou comerciante afetado agilizar o recebimento
de indenização, sem a necessidade de aguardar anos por uma solução
judicial".

"O acordo estabelece, portanto, que a desocupação deverá ser feita no menor
tempo possível e que os custos de realocação dos moradores e as respectivas
compensações/indenizações serão pagos pela Braskem", diz.

"Não há imposições, cabe às partes a negociação, garantido o direito do


morador à assistência jurídica. Todos os moradores e empresários que não
quiserem fazer o acordo ou não concordarem com a proposta da empresa
podem recorrer ao Judiciário", afirma.
Muro pichado em casa abandonada no bairro do Pinheiro, em Maceió
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Já a Braskem alegou que a definição do mapa de desocupação é atribuição


da Defesa Civil. A empresa apoia "realocação preventiva dos moradores e
comerciantes, realizando a mudança, o pagamento de auxílios financeiros e
uma série de serviços gratuitos".

Segundo a empresa, 98% dos 14.518 imóveis localizados na área já foram


desocupados de forma preventiva.

Sobre o plano de compensação, diz que há um pagamento de "indenização


justa, no menor tempo possível". "Até o fim de junho, o programa apresentou
15.772 propostas e 13.873 foram aceitas."

Sobre a permanência das famílias, diz que a adesão ao plano é voluntária.


Para cálculo da compensação financeira, a Braskem afirma que utiliza como
referência o valor de imóveis semelhantes em bairros de mesmas
características. Também são consideradas benfeitorias, e a depreciação não é
levada em conta.
Escola abandonada e mato crescendo na rua no bairro do Bebedouro
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

"As propostas têm como referência as normas técnicas brasileiras que fixam
diretrizes e procedimentos para avaliação de imóveis, além de estudos
elaborados pelo Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia
(Ibape)", completa.

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