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João Pedro Noronha Ritter – Antropólogo formado pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA)
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DOSSIÊ SOBRE O PERFIL SÓCIO-ECONÔMICO E CONDIÇÕES DE
HABITAÇÃO DOS MORADORES DA OCUPAÇÃO “ATLANTIC BEACH”,
AFETADOS PELA POSSIBILIDADE DE DESPEJO EMITIDO EM JUÍZO NO
PROCESSO 0571037-56.2016.8.05.0001.
Se faz mister delinear, em primeiro lugar, os critérios que definem a população sem
teto, a fim de conhecer o perfil socioeconômico das famílias que vivem na ocupação e
as razões que as levaram a se estabelecer no imóvel abandonado há quase 30 (trinta)
anos. De acordo com o “Atlas sobre o direito de morar em Salvador” (SANTOS, et al.,
2012), I) todas aquelas famílias que convivem na mesma moradia com outros núcleos
familiares, quando duas ou três gerações da mesma família – sejam parentes ou famílias
conhecidas –, habitam no mesmo local, são elas sem teto por coabitação familiar (na
expressão popular, são pessoas que “moram de favor”); II) aquelas famílias que
comprometem mais de 30% da sua renda mensal com aluguel, são sem teto que
possuem um ônus excessivo com o aluguel; III) uma pequena minoria (0,76% dos que
vivem em ocupações em Salvador) são os sem teto que viviam em situação de rua.
Cabe trazer alguns relatos de moradores da ocupação Atlantic Beach que atestam
essa precariedade econômica aqui relatada e essa condição social enquanto sem teto.
Estes depoimentos coletados destacam os impactos dramáticos e imediatos que o
despejo causaria em suas famílias, e o estado de constante – mesmo que lenta –
manutenção e requalificação predial.
TZ., que também está desempregada, tem ainda uma situação crítica de saúde que a
faz depender do uso de remédios constantemente. Segundo ela, em determinado
momento, passou a ter problemas relacionados ao intestino e, agora, com os rins –
inclusive contou que precisará realizar uma operação de remoção de um deles em breve.
Mostrou por diversas vezes, como prova daquilo que estava a narrar, um “cacho” de
salgadinhos que é vendido por seu marido que trabalha no mercado informal como
ambulante, vendendo guloseimas e os referidos alimentos. Tal prática é, inclusive,
bastante comum nos ônibus de Salvador, de forma que, a todo momento, entram
vendedores que levam suas mercadorias como aquelas mostradas por TZ.
A compra de remédios por TZ. só é possível, segundo ela, graças ao fato de não ter
que pagar aluguéis incompatíveis com seu orçamento e do seu marido. As divisões de
sua casa, inclusive, eram feitas por lençóis e não por paredes de bloco.
C. M. S., de 27 anos, mora com seu esposo e três filhos – um de 5 anos, outro de 4
e um último com 6 meses. O esposo de C. M. S. é mais um dos vendedores ambulantes
da ocupação. Segundo ela, “não tem um valor certo [a renda mensal], é variável, mais
ou menos um salário mínimo. As vezes chega a ser um pouquinho mais, as vezes é um
pouquinho menos, não tem um valor certo”.
Em caso de despejo, C. M. S. conta que terá que separar-se de sua família por ser
“dona de casa” – como a mesma se define – e não ter opções de empregabilidade no
mercado de trabalho de Salvador. O motivo da separação, segundo ela, seria a
necessidade de manter os dois filhos mais velhos em Salvador para dar continuidade aos
seus estudos, enquanto C. M. S. voltaria para sua cidade de origem no interior da Bahia
apenas com o filho mais novo – de seis meses.
FIGURA 06 – C. M. S. e seus filhos
E. é uma mãe solteira “assalariada” com três filhos, todos criança, que tem como
renda mensal cerca de R$ 900,00. Ainda segundo ela, não recebe nenhuma pensão do(s)
pai(s) das crianças. Antes de ir para a ocupação, morava de favor com uma tia. Já na
ocupação, conta que todo o dinheiro recebido era gasto com ela e, principalmente, seus
filhos – neste sentido, cabe mencionar que durante a visita em sua casa, notou-se a
ausência de paredes internas separando os cômodos e a presença de uma concentração
de areia branca utilizada para construção.
“Eu não tenho ninguém, eu sou sozinha... Só auxílio de Deus mesmo...” e “[...] não
consegui investir na casa por causa das despesas dos filhos...” foram duas das
afirmações de E.
M., de 57 anos, mora na ocupação há dois com o seu marido, trabalhando como
diarista enquanto ele é vigia. Juntos, chegam a 1 salário mínimo e meio de rendimento
mensal.
FIGURA 07 – Sala de M.
FIGURA 08 – cozinha de M.
Nota-se, pelas imagens, que a casa de M., embora não rebocada – ao que tudo
indica, ainda – conta com dutos que protegem a fiação elétrica, garantindo maior
segurança à residência. Destacamos o aparelho disjuntor, que funciona para
interromper sobrecargas elétricas, oferecendo maior segurança para a moradora.
J. P., por sua vez, é um senhor de 67 anos que mora na ocupação desde o dia em
que ela foi fundada, em janeiro de 2016: “A gente que fez ocupação por precisão de
morar, a gente não sabe pra onde vai, pra quem apelar, se a gente tá aqui, [é] porque
precisa da moradia”.
Segundo ele, gastou “[...] o que podia e o que não podia [para construir o
apartamento], deixei de comprar remédio para minha ‘coroa’ com isso aqui [o
apartamento]”.
Sobre aluguel, diz: “Como é que pago aluguel? Tenho que dividir [minhas]
despesas (alimentação, remédio, transporte, etc.) com aluguel...”.
Segundo J. P. B., que morava em Conde com a família e hoje mora com três filhos
e a esposa na ocupação Atlantic Beach, o fato de não ter que pagar aluguel serviu para
que ele pudesse auxiliar a esposa a finalizar sua faculdade e, posteriormente, custear a
faculdade de pedagogia que sua filha, C. cursa atualmente – faltando, ainda, segundo
ela, 2 anos para a conclusão.
FIGURA 09 – J. P. B. em frente à sua residência.
FIGURA 12 – Banheiro recém construído com recursos próprios de J. P. B., assim como todas as
outras obras em sua residência.
FIGURA 13 – Um segundo banheiro no apartamento de J. P. B., ainda em construção, para
transformar o quarto em que divide com a esposa em uma suíte.
“Não tem lugar nenhum pra ir, lugar nenhum... Porque tem que olhar
pra faculdade da menina, pro estudo dos meninos... Aí não tem como
sair de Salvador, porque a carreira dos meninos tudo acaba... No
interior não tem como os meninos estudar, porque não tem a
faculdade da menina, não tem como estudar, aí fica vulnerável né?”
(Trecho de entrevista)
O referido morador reitera que não tem lugar algum para buscar abrigo em
Salvador, por esta razão, necessita continuar morando na ocupação, e isto significa, ante
o exposto até o presente momento, o empenho de múltiplos investimentos por parte dos
moradores em sua própria residência. Tais investimentos visam solucionar um duplo
problema: a falta de conforto e estrutura necessária para abrigar a complexidade de uma
família, e refrear a insegurança de uma construção espontânea, eventualmente,
tornando-a regular. Segundo J. P. B., se referindo ao seu apartamento,
M. S. S. C., por sua vez, estava desempregada junto ao seu marido quando
chegaram até a ocupação por não conseguirem arcar mais com as despesas de aluguel
(R$ 400,00 mensais).
“[...] tudo que a gente pega é para melhorar. Entendeu? Nunca sobra
pra guardar, porque é questão de alimentação, né? E no intuito sempre
de investir. Então não se tem um reserva para poder alugar uma casa
confortável, entendeu? Assim de última hora. É bem complicado”
(trecho de entrevista).
Sobre este futuro melhor buscado, M. S. S. C. nos conta que foi graças a uma bolsa e
ao fato de não ter mais despesas com aluguel que conseguiu ingressas na faculdade.
Neste momento, inclusive, nos pediu para parar a gravação para que não exista
nenhuma prova que possa vir a prejudica-la na sua carreira acadêmica, interrompendo o
fornecimento de sua bolsa de estudos.
“[...] não foi um espaço que a gente tirou de alguém que já estava
morando, foi um espaço vazio, onde muitas pessoas investiram o pouco
que tinham e até o que não tinham, porque eu acredito que muitas
pessoas colocaram em cartão de crédito para conseguir comprar
cimento, bloco, alguns pode ter tomado emprestado, entendeu?
Investindo aquilo que não tinha ou que tinha, na esperança de dias
melhores, aqui na estrutura. Então a gente deixou nossos sonhos e o
pouco que a gente tinha, então eu acho justo” (trecho de entrevista)
Nas figuras 14, 15 e 16 mais adiante, podemos notar que mesmo as laterais do
prédio estavam abertas antes e no início da ocupação, ao passo que atualmente (figura
18) podemos notar que não há nenhuma parte da fachada do prédio que esteja sem
limite físico, evitando, assim, riscos de quedas de adultos e, sobretudo, crianças.
Nas escadas também foram realizadas obras deste tipo: do primeiro ao último andar,
o que antes estava aberto e proporcionando perigo, podendo resultar em quedas fatais,
agora está completamente fechado e sem oferecer risco de queda.
Por fim, cabe registrar que a demanda por moradia digna empenhada pelas famílias
sem teto, estão legitimamente referenciadas pela letra da lei. De acordo com o referido
“Atlas...” (SANTOS, et al., 2012), a “[...]Constituição de 1988, em seus arts. 2.º incisos
I, II, IV e V; 43 a 45, 182, 183 e 225, e o Estatuto da Cidade (Lei federal nº
10.257/2001)” (p. 20), ratificam os textos internacionais que versam sobre o direito à
moradia, em particular, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC) da ONU (Organização das Nações Unidas) do qual o Brasil é
signatário. Neste último documento – que tem força de lei, sendo assim, cria a
obrigação de fazer cumprir esse direito por parte do signatário –, em seu artigo 11, §1º,
reconhece o direito de toda pessoa à moradia adequada, cabendo ao signatário se
comprometer a tomar medidas apropriadas para assegurar a consolidação deste
direito. Segundo o “Atlas...”, tanto a Constituição e a Lei federal, garantem
“[...] o direito à moradia [...] definido como direito a uma habitação digna,
de dimensões adequadas, que garanta aos seus moradores privacidade e
tranquilidade, bem como o acesso aos locais de trabalho e de lazer, aos
equipamentos urbanos e comunitários, ao transporte e aos serviços públicos
projetados de acordo com os interesses e as necessidades da população,
mediante uma gestão democrática, respeitando o princípio do
desenvolvimento sustentável.” (Idem., p. 21)
Nas figuras 14, 15, 16 e 17, podemos notar que a localização do referido imóvel e
seu terreno, possuía densa vegetação e não recebia – por parte dos proprietários, ou seja,
da OMR Construtora LTDA – manutenção necessária para resguardar o local. Também
por falta de manutenção, frequentadores da pista de cooper e dos equipamentos de lazer
da referida lagoa deixaram de comparecer ao local por conta dos incontáveis incidentes
negativos que ocorriam em suas intermediações. Referimo-nos, mais precisamente, a
assaltos e tentativas de assalto que ocorriam frequentemente nos arredores do referido
espaço que servia, em muitos casos, como rotas de fuga e esconderijo.
Segundo Jacobs (2011), o temor às ruas faz com que os transeuntes e cidadãos as
utilizem menos e, mais do que isto, afirma que “(...) o problema da insegurança não
pode ser solucionado por meio da dispersão das pessoas” (JACOBS, 2011, p. 32).
Assim sendo, se deduz que uma rua, um ambiente ou um terreno precisa de
movimentação para que ele gere uma sensação de segurança e, mais do que isso, gere
uma segurança na prática. É neste sentido que se argumenta que a existência da
ocupação “Atlantic Beach”, em um prédio e terreno abandonados por quase 30 anos,
gera segurança, inibindo a utilização do terreno para fins de fuga e esconderijo de
assaltantes, além, é claro, do fato de se colocar no perímetro quantidade considerável de
pessoas que utilizam aquela região para moradia. Outra vantagem é o fato de que, em
certa parcela graças a ocupação, a área pública da lagoa voltou a ser uma opção de lazer
cotidiano, intensificando o uso do equipamento público e, de novo, sendo importante
para a sensação de segurança.
“Você vê hoje que o pessoal que mora nos apartamentos (sic) eles fazem cooper
matinal, né? Quando o pessoal da prefeitura vem e que limpa a lagoa, você vê que
no horário de 7:30 ou 8:00 o pessoal está correndo na lagoa, andando... Então o
fato de a gente morar aqui e de ter pessoas circulando acaba trazendo uma
segurança para eles também, entendeu?” (Trecho de entrevista)
E diz mais:
“eu acho que a gente não está tirando nada de ninguém. A gente só tá querendo,
né? Permanecer em um lugar que ‘tava’ inabitado e que a gente com nosso esforço
a gente tem dado vida para este lugar” (Trecho de entrevista)
Figura 16 – estado do imóvel em abril de 2016, aproximadamente 3 meses depois da ocupação (vista
lateral)
Figura 17 – estado do imóvel em março de 2017, mais de 1 ano depois da ocupação (vista lateral)
Nas figuras 16, 17 e 18, podemos notar que o matagal foi controlado e que a
edificação está, agora, habitada. Além disso, ainda segundo Jacobs (2011), há a ideia da
necessidade de que haja “olhos para a rua” para que exista maior sensação de segurança
e segurança de fato. Neste sentido, os limites entre rua/espaço público e espaço privado
não devem, de acordo com a autora, ser delimitados por muros que obstruam a visão,
perdendo, assim, a capacidade de vigilância espontânea do espaço público. Nas figuras
04, podemos ver que a fachada frontal da ocupação – que liga-se à Rua Dr. Augusto
Lopes Pontes – encontra-se totalmente desprovida de muros.
Figura 18 – estado do imóvel em março de 2019, pouco mais de 3 anos após o início da ocupação.
3. CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes cidades. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2011.