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Prezado Sr. Alex Raposo dos Santos, Defensor Público do Estado da Bahia.

Segue breve dossiê, elaborado de forma colaborativa e voluntária por


moradores/as da ocupação organizada pelo Movimento Sem Teto de Salvador (MSTS)
“Atlantic Beach”, localizada na Rua Dr. Augusto Lopes Pontes, 06 a 08, Costa Azul,
Salvador, Bahia, com apoio de pesquisadores da área de Ciências Sociais. O dossiê
permite compreender a necessidade da manutenção da residência estabelecida dentro
dos parâmetros legais, contemplando tanto o direito de acesso à moradia, quanto da
função social da propriedade, consolidados a partir da Constituição Federal de 1988.
Este documento busca contribuir, portanto, com a redução dos impactos do grave
problema do déficit habitacional que assola a população soteropolitana de baixa renda,
assim como dos impactos sofridos por uma possível remoção dos moradores da
ocupação em questão.

Tendo em vista o PROCESSO nº 0571037-56.2016.8.05.0001, viemos solicitar a


suspensão da LIMINAR DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE REQUERIDA que
resultaria na desocupação do imóvel, destarte, requeremos uma audiência com a
promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo do Ministério Público da Bahia (MP-
BA), a se realizar em dia e hora que for designada, com o objetivo dos moradores do
imóvel obterem informações sobre o andamento do citado processo e oferecerem
subsídios para a defesa do réu.

Rodrigo Anjos Andrade e Silva – Graduando em Sociologia pela Universidade Federal


da Bahia (UFBA)

rodrigo_ciso@hotmail.com

(71) 98824-9225

João Pedro Noronha Ritter – Antropólogo formado pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA)

noronharitter@hotmail.com

(71) 99308-4964
DOSSIÊ SOBRE O PERFIL SÓCIO-ECONÔMICO E CONDIÇÕES DE
HABITAÇÃO DOS MORADORES DA OCUPAÇÃO “ATLANTIC BEACH”,
AFETADOS PELA POSSIBILIDADE DE DESPEJO EMITIDO EM JUÍZO NO
PROCESSO 0571037-56.2016.8.05.0001.

1. Condições socioeconômicas: quem são os moradores da ocupação Atlantic


Beach?

Segundo os dados da Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD-IBGE),


em 2012, o déficit habitacional no Brasil era de 5,8 milhões de famílias que não gozam
do direito à moradia digna. Enquanto isso, em Salvador, este número chega 114 mil
famílias que necessitam de habitação apropriada (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO,
2014, p. 31). De acordo com a literatura científica, esta dramática realidade diz respeito,
dentre outros casos, à população sem teto. Os depoimentos dos moradores, que relatam
sobre sua realidade na condição de população sem teto e a própria situação de moradia
estabelecida na ocupação “Atlantic Beach”, nos permite entender que, apesar de
discorrer sobre o bem-estar das famílias, a possibilidade de um despejo significaria
objetivamente um flagelo na qualidade de vida destas pessoas. Por se tratar de uma
população de baixa renda, absolutamente alienada de recursos necessários para arcar
com os custos da moradia, e ainda, de acordo com a presente pesquisa, não possuem
vínculos aos quais possam recorrer para auxiliar na definição de uma nova moradia.
Estes depoimentos foram recolhidos por Rodrigo Anjos e João Ritter no dia 31/03/2019,
pesquisadores de áreas diversas das ciências sociais (sociologia e antropologia), que
acompanham a dinâmica da ocupação desde o ato da sua inauguração. Serviram de base
para este dossiê: entrevistas e relatórios de campo com 16 “chefes” de família
domiciliados na ocupação.

Se faz mister delinear, em primeiro lugar, os critérios que definem a população sem
teto, a fim de conhecer o perfil socioeconômico das famílias que vivem na ocupação e
as razões que as levaram a se estabelecer no imóvel abandonado há quase 30 (trinta)
anos. De acordo com o “Atlas sobre o direito de morar em Salvador” (SANTOS, et al.,
2012), I) todas aquelas famílias que convivem na mesma moradia com outros núcleos
familiares, quando duas ou três gerações da mesma família – sejam parentes ou famílias
conhecidas –, habitam no mesmo local, são elas sem teto por coabitação familiar (na
expressão popular, são pessoas que “moram de favor”); II) aquelas famílias que
comprometem mais de 30% da sua renda mensal com aluguel, são sem teto que
possuem um ônus excessivo com o aluguel; III) uma pequena minoria (0,76% dos que
vivem em ocupações em Salvador) são os sem teto que viviam em situação de rua.

De acordo com resultados preliminares de pesquisa ainda inacabada, as mulheres


são maioria no imóvel (61%), e ainda, 73% destas mulheres são mães solteiras, que se
encontram sozinhas para prover aos seus filhos. Sobre o núcleo familiar, em média,
cada chefe de família possui 02 (dois) dependentes (crianças, doentes e incapazes que
não auferem rendimento). Além disso, a metade dos núcleos familiares possuem 03
(três) ou mais dependentes. Sobre a renda média familiar, os dados expõe uma realidade
crítica: 89% dos moradores ganham não mais que 02 (dois) salários mínimos por mês. E
o mais surpreendente: 67% dos moradores recebem até 01 (um) salário mínimo. Dos
outros 11% dos moradores que ganham entre 1 a 2 salários mínimos, apenas 35% não
possui dependentes, ou seja, somente 3,2% dos moradores da ocupação recebem entre
01 (um) a 02 (dois) salários mínimos sem possuir familiares que dependem da sua
renda.

Cabe trazer alguns relatos de moradores da ocupação Atlantic Beach que atestam
essa precariedade econômica aqui relatada e essa condição social enquanto sem teto.
Estes depoimentos coletados destacam os impactos dramáticos e imediatos que o
despejo causaria em suas famílias, e o estado de constante – mesmo que lenta –
manutenção e requalificação predial.

2. Impactos da ordem de despejo sobre as famílias e manutenção do imóvel

U. e M. A. R. formam um casal que habita uma das residências dentro da ocupação.


O senhor em questão tem 75 anos de idade e alega receber 1 salário mínimo mensal
referente a sua aposentadoria, sem ter nenhuma atividade complementar na sua renda.
M. A. R., por sua vez, está desempregada e vive de um rendimento incerto que varia de
acordo com as faxinas que consegue fazer por mês, sendo, portanto, mais uma das
trabalhadoras informais soteropolitanas. Ela, M. A. R., conta que caso haja o despejo,
irá morar com parentes na Ilha de Itaparica, separando-se – não no sentido legal, mas
físico – de U.
Segundo U., que vive a cerca de dois anos e meio na ocupação, antes de recorrer a
ela morava de aluguel no bairro da Boca do Rio, pagando R$ 400,00 mensais mais
outras despesas básicas. Por não desprender recursos com o aluguel, nos contou que só
assim foi possível, junto com sua esposa, promover melhorias na moradia e se alimentar
melhor. Foram os dois que levantaram as paredes divisórias, rebocaram e construíram
tudo o que se encontra no interior do espaço. Segundo eles, sem dúvida, foi a redução
das despesas de aluguel que tornou possível reservar parte do montante mensal
arrecadado para construção de melhorias na casa que geraram, consequentemente, uma
melhoria nas condições de vida e conforto do casal.

FIGURA 01 – casa de seu U. e de dona M. A. R.

Nota-se, na figura acima, a parede rebocada e ausência de fios elétricos expostos.

A situação de desemprego assola parte considerável dos brasileiros e não é diferente


com os moradores da ocupação. Neste sentido, T. revela que, em sua casa, tanto ela
quanto seu marido estão desempregados: “Os dois desempregados! Tem dinheiro nem
para a mudança e nem para nada. E aí, como vai ser a situação da gente aí? Vai ficar
no meio da rua? Com móveis, com filho? [...]”.

Sobre como fazem para pagar as contas, T. diz:


“rapaz, no momento eu só tenho a renda do bolsa família e meu
marido porque está fazendo uns ‘bicos’, entendeu? Só isso. A renda
da gente é essa, porque ele se desempregou tem o que? 2 anos já. Tá
desempregado (...) de vez em quando aparece. E eu me viro, né?
Minhas unhas quando eu acho para fazer. Faxina de vez em quando.
Não tenho condição de pagar aluguel. Eu não tenho dinheiro
garantido todo mês, e o dinheiro que eu pego não da nem para pagar
um aluguel, porque aluguel é o que? De R$ 400,00 pra cima. E vai
comer o que? Entendeu?” (Trecho de entrevista)

TZ., que também está desempregada, tem ainda uma situação crítica de saúde que a
faz depender do uso de remédios constantemente. Segundo ela, em determinado
momento, passou a ter problemas relacionados ao intestino e, agora, com os rins –
inclusive contou que precisará realizar uma operação de remoção de um deles em breve.
Mostrou por diversas vezes, como prova daquilo que estava a narrar, um “cacho” de
salgadinhos que é vendido por seu marido que trabalha no mercado informal como
ambulante, vendendo guloseimas e os referidos alimentos. Tal prática é, inclusive,
bastante comum nos ônibus de Salvador, de forma que, a todo momento, entram
vendedores que levam suas mercadorias como aquelas mostradas por TZ.

A compra de remédios por TZ. só é possível, segundo ela, graças ao fato de não ter
que pagar aluguéis incompatíveis com seu orçamento e do seu marido. As divisões de
sua casa, inclusive, eram feitas por lençóis e não por paredes de bloco.

Dentre outros moradores que sofrem de problemas de saúde, encontramos I. R., de


52 anos, que é “doente do coração”, como nos diz. Para não ficar sozinha caso ocorra
alguma emergência, trouxe sua sobrinha acompanhada do filho de no máximo 2 anos de
idade, já que se separou de seu ex-marido ainda em 2014. I. R. nos contou que, em
determinado momento de sua vida, era dona de um pequeno bar no bairro de Santa
Cruz. O negócio, porém, não prosperou e, depois de tempos morando no próprio bar,
recorreu à ocupação. Entre o fim do bar e início do período em que ficou incapacitada
para trabalhar por conta do seu problema de saúde, tentou gerar renda como camelô,
ganhando em média R$ 600,00 por mês, segundo relato.
FIGURA 02 – quarto da casa de I.R.

Na figura, do quarto da casa de I. R., observamos a parede rebocada e ausência


de fiação elétrica exposta.

FIGURA 03 – Residem no apartamento a sobrinha de I. R. e o seu filho.


FIGURA 04 – I. R. em sua cozinha.

Na figura acima temos a cozinha de I. R. sem fiação elétrica exposta e rebocada.


Além disso, o local é também seu ambiente de trabalho, uma vez que o sustento que
garante a sua sobrevivência vem de vendas de salgados e comidas diversas.

C. M. S., de 27 anos, mora com seu esposo e três filhos – um de 5 anos, outro de 4
e um último com 6 meses. O esposo de C. M. S. é mais um dos vendedores ambulantes
da ocupação. Segundo ela, “não tem um valor certo [a renda mensal], é variável, mais
ou menos um salário mínimo. As vezes chega a ser um pouquinho mais, as vezes é um
pouquinho menos, não tem um valor certo”.

Em caso de despejo, C. M. S. conta que terá que separar-se de sua família por ser
“dona de casa” – como a mesma se define – e não ter opções de empregabilidade no
mercado de trabalho de Salvador. O motivo da separação, segundo ela, seria a
necessidade de manter os dois filhos mais velhos em Salvador para dar continuidade aos
seus estudos, enquanto C. M. S. voltaria para sua cidade de origem no interior da Bahia
apenas com o filho mais novo – de seis meses.
FIGURA 06 – C. M. S. e seus filhos

E. é uma mãe solteira “assalariada” com três filhos, todos criança, que tem como
renda mensal cerca de R$ 900,00. Ainda segundo ela, não recebe nenhuma pensão do(s)
pai(s) das crianças. Antes de ir para a ocupação, morava de favor com uma tia. Já na
ocupação, conta que todo o dinheiro recebido era gasto com ela e, principalmente, seus
filhos – neste sentido, cabe mencionar que durante a visita em sua casa, notou-se a
ausência de paredes internas separando os cômodos e a presença de uma concentração
de areia branca utilizada para construção.

“Eu não tenho ninguém, eu sou sozinha... Só auxílio de Deus mesmo...” e “[...] não
consegui investir na casa por causa das despesas dos filhos...” foram duas das
afirmações de E.

M., de 57 anos, mora na ocupação há dois com o seu marido, trabalhando como
diarista enquanto ele é vigia. Juntos, chegam a 1 salário mínimo e meio de rendimento
mensal.

M. passou por diferentes experiências quanto a moradia: morou de aluguel junto


com seu marido e filho adulto, os três dividindo os gastos; e, depois, devido a
dificuldades relacionadas a realidade de uma coabitação na moradia, passou a morar
“de favor” no próprio serviço do marido até o momento em que o empregador proibiu.
Depois de tentar, sem sucesso, financiar uma casa própria – a construtora a qual
recorreu alegou que não poderia dar entrada no financiamento por M. não se enquadrar
nos critérios de renda mínima aceitável, idade ativa nem ter capacidade de comprovar
renda fixa, segundo ela -, recorreu, finalmente, à ocupação.

FIGURA 07 – Sala de M.

FIGURA 08 – cozinha de M.
Nota-se, pelas imagens, que a casa de M., embora não rebocada – ao que tudo
indica, ainda – conta com dutos que protegem a fiação elétrica, garantindo maior
segurança à residência. Destacamos o aparelho disjuntor, que funciona para
interromper sobrecargas elétricas, oferecendo maior segurança para a moradora.

J. P., por sua vez, é um senhor de 67 anos que mora na ocupação desde o dia em
que ela foi fundada, em janeiro de 2016: “A gente que fez ocupação por precisão de
morar, a gente não sabe pra onde vai, pra quem apelar, se a gente tá aqui, [é] porque
precisa da moradia”.

Segundo ele, gastou “[...] o que podia e o que não podia [para construir o
apartamento], deixei de comprar remédio para minha ‘coroa’ com isso aqui [o
apartamento]”.

Sobre aluguel, diz: “Como é que pago aluguel? Tenho que dividir [minhas]
despesas (alimentação, remédio, transporte, etc.) com aluguel...”.

Temos ainda os casos das famílias de J. P. B. e M. S. S. C., exemplo de quem a


condição socioeconômica não serviu como empecilho para que se buscasse melhores
condições de vida para sua família através do estudo e aperfeiçoamento profissional.

Segundo J. P. B., que morava em Conde com a família e hoje mora com três filhos
e a esposa na ocupação Atlantic Beach, o fato de não ter que pagar aluguel serviu para
que ele pudesse auxiliar a esposa a finalizar sua faculdade e, posteriormente, custear a
faculdade de pedagogia que sua filha, C. cursa atualmente – faltando, ainda, segundo
ela, 2 anos para a conclusão.
FIGURA 09 – J. P. B. em frente à sua residência.

FIGURA 10 – Chão da sala de J. P. B. com metade da superfície azulejada.


FIGURA 11 – Disjuntores instalados na casa de J. P. B., apesar de temporariamente não contar com
um quadro adequado, oferece segurança à família como na casa de M..

FIGURA 12 – Banheiro recém construído com recursos próprios de J. P. B., assim como todas as
outras obras em sua residência.
FIGURA 13 – Um segundo banheiro no apartamento de J. P. B., ainda em construção, para
transformar o quarto em que divide com a esposa em uma suíte.

J. P. B. trabalha há mais de 20 anos na construção civil e tem 10 anos trabalhando


de carteira assinada. Neste sentido, disse que a ida para Salvador se deu pelo fato de
Conde não oferecer condições suficientes de empregabilidade na sua área de atuação – é
oportuno mencionar que estamos falando de uma cidade interiorana com
aproximadamente 25 mil habitantes, ao passo que Salvador apresenta pouco menos do
que 3 milhões. Quando perguntado sobre a possibilidade de ter de sair da ocupação, J.
P. B. responde que não teria condições de pagar um aluguel, “porque tem que comer
entendeu? Tem que ter dinheiro pra comer, dinheiro pra despesa, pra isso e aquilo...”.
Neste sentido, sua família estaria desassistida, sem ter qualquer perspectiva de
permanência em Salvador, para dar continuidade aos estudos e carreira profissional,
pois a sua família, a quem pode recorrer para abriga-los, reside em Conde. Nas suas
palavras, “ia ter que voltar tudo pro zero”, e conclui,

“Não tem lugar nenhum pra ir, lugar nenhum... Porque tem que olhar
pra faculdade da menina, pro estudo dos meninos... Aí não tem como
sair de Salvador, porque a carreira dos meninos tudo acaba... No
interior não tem como os meninos estudar, porque não tem a
faculdade da menina, não tem como estudar, aí fica vulnerável né?”
(Trecho de entrevista)

O referido morador reitera que não tem lugar algum para buscar abrigo em
Salvador, por esta razão, necessita continuar morando na ocupação, e isto significa, ante
o exposto até o presente momento, o empenho de múltiplos investimentos por parte dos
moradores em sua própria residência. Tais investimentos visam solucionar um duplo
problema: a falta de conforto e estrutura necessária para abrigar a complexidade de uma
família, e refrear a insegurança de uma construção espontânea, eventualmente,
tornando-a regular. Segundo J. P. B., se referindo ao seu apartamento,

“O que basta aqui é ter um complemente com bloco, reboco, a parte


elétrica e hidráulica, e só. É o que precisa aqui, só... Tem o quarto da
menina aqui que falta ‘azulejar’ o quarto, tenho dois banheiros... A
gente aqui só falta terminar de concluir, aí fica esse negócio de
despeja, não despeja, aí a gente fica vulnerável né?” (Trecho de
entrevista)

M. S. S. C., por sua vez, estava desempregada junto ao seu marido quando
chegaram até a ocupação por não conseguirem arcar mais com as despesas de aluguel
(R$ 400,00 mensais).

Com o marido empregado, veio a chance de realizar melhorias no apartamento.


Segundo ela, muito por causa dessas melhorias, se hoje tivessem que sair da ocupação,
não conseguiriam voltar para o aluguel, uma vez que todo o “caixa” feito durante os
meses foram revertidos em obras de infraestrutura básica na residência:

“[...] tudo que a gente pega é para melhorar. Entendeu? Nunca sobra
pra guardar, porque é questão de alimentação, né? E no intuito sempre
de investir. Então não se tem um reserva para poder alugar uma casa
confortável, entendeu? Assim de última hora. É bem complicado”
(trecho de entrevista).

Ainda segundo M. S. S. C.:

“[...] aqui é o sonho de uma vida melhor, entendeu? O fato de a gente


não pagar aluguel nos dá outras oportunidades, entendeu? De se vestir
melhor, de comer melhor, de ter uma saúde melhor, de pensar em um
futuro melhor. Então não é só a questão da moradia que está
ameaçada, mas os nossos sonhos, os nossos projetos, a esperança de
dias melhores, né?” (trecho de entrevista)

Sobre este futuro melhor buscado, M. S. S. C. nos conta que foi graças a uma bolsa e
ao fato de não ter mais despesas com aluguel que conseguiu ingressas na faculdade.
Neste momento, inclusive, nos pediu para parar a gravação para que não exista
nenhuma prova que possa vir a prejudica-la na sua carreira acadêmica, interrompendo o
fornecimento de sua bolsa de estudos.

Em relação a ocupação em geral, M. S. S. C. conta:

“[...] não foi um espaço que a gente tirou de alguém que já estava
morando, foi um espaço vazio, onde muitas pessoas investiram o pouco
que tinham e até o que não tinham, porque eu acredito que muitas
pessoas colocaram em cartão de crédito para conseguir comprar
cimento, bloco, alguns pode ter tomado emprestado, entendeu?
Investindo aquilo que não tinha ou que tinha, na esperança de dias
melhores, aqui na estrutura. Então a gente deixou nossos sonhos e o
pouco que a gente tinha, então eu acho justo” (trecho de entrevista)

Dentre os investimentos feitos, podemos observar questões de segurança como a


construção de paredes em “locais de risco” e outros itens. Neste sentido, a imagem
abaixo (figura 13) mostra tanto um extintor – item de segurança presente nos andares,
exceto quando são removidos para serem trocados por conta de prazo de validade –
quanto paredes na parte lateral da escada.
FIGURA 13 – Extintor no corredor do quarto andar.

Nas figuras 14, 15 e 16 mais adiante, podemos notar que mesmo as laterais do
prédio estavam abertas antes e no início da ocupação, ao passo que atualmente (figura
18) podemos notar que não há nenhuma parte da fachada do prédio que esteja sem
limite físico, evitando, assim, riscos de quedas de adultos e, sobretudo, crianças.

Nas escadas também foram realizadas obras deste tipo: do primeiro ao último andar,
o que antes estava aberto e proporcionando perigo, podendo resultar em quedas fatais,
agora está completamente fechado e sem oferecer risco de queda.

Por fim, cabe registrar que a demanda por moradia digna empenhada pelas famílias
sem teto, estão legitimamente referenciadas pela letra da lei. De acordo com o referido
“Atlas...” (SANTOS, et al., 2012), a “[...]Constituição de 1988, em seus arts. 2.º incisos
I, II, IV e V; 43 a 45, 182, 183 e 225, e o Estatuto da Cidade (Lei federal nº
10.257/2001)” (p. 20), ratificam os textos internacionais que versam sobre o direito à
moradia, em particular, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC) da ONU (Organização das Nações Unidas) do qual o Brasil é
signatário. Neste último documento – que tem força de lei, sendo assim, cria a
obrigação de fazer cumprir esse direito por parte do signatário –, em seu artigo 11, §1º,
reconhece o direito de toda pessoa à moradia adequada, cabendo ao signatário se
comprometer a tomar medidas apropriadas para assegurar a consolidação deste
direito. Segundo o “Atlas...”, tanto a Constituição e a Lei federal, garantem

“[...] o direito à moradia [...] definido como direito a uma habitação digna,
de dimensões adequadas, que garanta aos seus moradores privacidade e
tranquilidade, bem como o acesso aos locais de trabalho e de lazer, aos
equipamentos urbanos e comunitários, ao transporte e aos serviços públicos
projetados de acordo com os interesses e as necessidades da população,
mediante uma gestão democrática, respeitando o princípio do
desenvolvimento sustentável.” (Idem., p. 21)

2. As diferentes fases do imóvel e do terreno e a questão da segurança pública

Nas figuras 14, 15, 16 e 17, podemos notar que a localização do referido imóvel e
seu terreno, possuía densa vegetação e não recebia – por parte dos proprietários, ou seja,
da OMR Construtora LTDA – manutenção necessária para resguardar o local. Também
por falta de manutenção, frequentadores da pista de cooper e dos equipamentos de lazer
da referida lagoa deixaram de comparecer ao local por conta dos incontáveis incidentes
negativos que ocorriam em suas intermediações. Referimo-nos, mais precisamente, a
assaltos e tentativas de assalto que ocorriam frequentemente nos arredores do referido
espaço que servia, em muitos casos, como rotas de fuga e esconderijo.

Figura 14 – estado do imóvel em setembro de 2015, antes da ocupação (vista frontal)


Figura 15 – estado do imóvel em setembro de 2015, antes da ocupação (vista lateral)

Segundo Jacobs (2011), o temor às ruas faz com que os transeuntes e cidadãos as
utilizem menos e, mais do que isto, afirma que “(...) o problema da insegurança não
pode ser solucionado por meio da dispersão das pessoas” (JACOBS, 2011, p. 32).
Assim sendo, se deduz que uma rua, um ambiente ou um terreno precisa de
movimentação para que ele gere uma sensação de segurança e, mais do que isso, gere
uma segurança na prática. É neste sentido que se argumenta que a existência da
ocupação “Atlantic Beach”, em um prédio e terreno abandonados por quase 30 anos,
gera segurança, inibindo a utilização do terreno para fins de fuga e esconderijo de
assaltantes, além, é claro, do fato de se colocar no perímetro quantidade considerável de
pessoas que utilizam aquela região para moradia. Outra vantagem é o fato de que, em
certa parcela graças a ocupação, a área pública da lagoa voltou a ser uma opção de lazer
cotidiano, intensificando o uso do equipamento público e, de novo, sendo importante
para a sensação de segurança.

Sobre o tema, a moradora da ocupação M. S. S. C. relata que:

“Você vê hoje que o pessoal que mora nos apartamentos (sic) eles fazem cooper
matinal, né? Quando o pessoal da prefeitura vem e que limpa a lagoa, você vê que
no horário de 7:30 ou 8:00 o pessoal está correndo na lagoa, andando... Então o
fato de a gente morar aqui e de ter pessoas circulando acaba trazendo uma
segurança para eles também, entendeu?” (Trecho de entrevista)

E diz mais:
“eu acho que a gente não está tirando nada de ninguém. A gente só tá querendo,
né? Permanecer em um lugar que ‘tava’ inabitado e que a gente com nosso esforço
a gente tem dado vida para este lugar” (Trecho de entrevista)

Abaixo, fotos mais recentes da fachada da ocupação:

Figura 16 – estado do imóvel em abril de 2016, aproximadamente 3 meses depois da ocupação (vista
lateral)

Figura 17 – estado do imóvel em março de 2017, mais de 1 ano depois da ocupação (vista lateral)

Nas figuras 16, 17 e 18, podemos notar que o matagal foi controlado e que a
edificação está, agora, habitada. Além disso, ainda segundo Jacobs (2011), há a ideia da
necessidade de que haja “olhos para a rua” para que exista maior sensação de segurança
e segurança de fato. Neste sentido, os limites entre rua/espaço público e espaço privado
não devem, de acordo com a autora, ser delimitados por muros que obstruam a visão,
perdendo, assim, a capacidade de vigilância espontânea do espaço público. Nas figuras
04, podemos ver que a fachada frontal da ocupação – que liga-se à Rua Dr. Augusto
Lopes Pontes – encontra-se totalmente desprovida de muros.

Figura 18 – estado do imóvel em março de 2019, pouco mais de 3 anos após o início da ocupação.

3. CONCLUSÕES

De acordo com argumentação da OMR construtora LTDA., a ocupação representa


risco por estar sem sua devida conclusão. Porém, cabe salientar o fato de que a situação
do imóvel, antes de ser ocupado, apresentava condições visíveis piores do que aquelas
que são vistas atualmente – conforme as figuras 08 e 09 aqui apresentadas. Neste
sentido, é notório o fato de que os moradores, ao invés de prejudicar a estrutura do
prédio, fizeram melhorias no mesmo, fazendo com que, gradativamente, o risco ao qual
estão expostos seja reduzido com o passar do tempo e do investimento em melhorias
realizados pelos ocupantes.

Acompanhando a realidade transitória da ocupação, desde sua fundação até os


dias atuais, podemos vislumbrar um prognóstico que aponta para a resolução dos
problemas mencionados pela OMR construtora LTDA., cabendo, ainda, a comprovação
por parte da mesma de que a estrutura apresenta danos irreversíveis, ou seja, incapazes
de serem resolvidos com os adequados cuidados e as devidas reparações técnicas.

Assim, a argumentação do presente dossiê é a de que seria prudente um diálogo


com os moradores para que se possibilite, no mínimo, a adequação do imóvel às normas
de segurança, organizando um planejamento para que as metas sejam atingidas pelos
moradores. Definitivamente, expulsa-los não parece uma solução válida, de acordo com
os próprios relatos dos mesmos aqui expostos.

De acordo com os relatos aqui expostos, tratam-se de famílias que apresentam


uma renda que varia de menos de 1 salário mínimo até 2 salários mínimos, na maioria
dos casos. Há, portanto, uma necessidade de diálogo com as famílias para que se
construam alternativas viáveis de moradia para estes cidadãos ao invés de coloca-los
“no meio da rua” como foi mencionado por alguns, sem qualquer tipo de assistência e
acompanhamento.

Os problemas que envolveriam uma saída no prazo estabelecido vão desde a


incapacidade de se pagar aluguéis na região em que vivem atualmente até o fato de que
os moradores já construíram uma “rede” de sociabilidade e de atividades do entorno da
sua atual região de moradia. Assim sendo, muitos relataram que sair da atual moradia
causaria danos até mesmo na manutenção dos filhos nas escolas.

Além dessas questões, mostramos como a presença da ocupação em um terreno


abandonado há quase 30 (trinta) anos é benéfico para o entorno no que tange, sobretudo,
a sensação de segurança e a própria segurança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes cidades. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2011.

SANTOS, Elisabete et al. Atlas sobre o direito de morar em salvador. Salvador:


Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), 2012.

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