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A ressignificação do luto no grupo de apoio


psicológico: um relato de experiência no
contexto da Covid-19

Marcos Rodrigo Oliveira Maria Emanuele Alves Oliveira


Universidade Federal de Campina Grande - UFCG Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

Camila Gonçalves de Queiroz Flavio Lucio Almeida Lima


Universidade Federal de Campina Grande - UFCG Universidade Federal de Campina Grande - UFCG

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RESUMO

Este trabalho teve como objetivo descrever as vivências e reflexões obtidas a partir da ex-
periência com um grupo de pessoas em sofrimento psíquico decorrente do luto vivido em
consequência da COVID-19. O grupo de apoio psicológico contou com cinco facilitadores,
estagiários e estagiárias, do Estágio Básico Supervisionado I, do curso de Psicologia, da
Universidade Federal de Campina Grande. Após breve período de inscrição, dez pessoas
foram selecionadas e convidadas a participar. Foram realizados 10 encontros, de forma
remota, através da plataforma Google Meet. Os encontros aconteceram, semanalmen-
te, com duração de uma hora e trinta minutos, entre os meses de agosto e outubro de
2021. A Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers, foi utilizada como embasamento
teórico e metodológico. Foi percebido que o grupo de apoio psicológico se coloca como um
instrumento de forte influência na vivência do luto. Percebeu-se que o compartilhamento de
ideias, pensamentos, tristezas, frustrações e lágrimas serviu como base para a reestrutura-
ção das vidas dos enlutados/as. Deste modo, o processo de enfrentamento ao luto, embora
singular, tornou-se possível e com mais possibilidades, a partir das pluralidades expostas.
Concluiu-se ser de suma importância que a fala e, sobretudo, a escuta grupal ocupem no
processo de ressignificação do luto lugar de grande relevância. Logo, a partir desse processo
torna-se possível compreender, ainda que de forma dolorosa, o espaço que o ente falecido
ocupa na vida do sujeito e como o indivíduo pode, pouco a pouco, traçar novas estratégias
e formas de continuar inserido no convívio social.

Palavras-chave: Luto, Grupo, Apoio Psicológico, Psicologia.


INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19, do inglês Coronavirus Disease 2019, configurou-se como


um grande problema de saúde pública de ordem mundial. Desde o início do ano de 2020, o
mundo precisou se adaptar às modificações e as consequências oriundas da infecção pelo
coronavírus. O pouco conhecimento científico acerca do que de fato era o SARS-COV-2
e quais as suas consequências, contribuiu para a enorme proliferação e a grande taxa de
mortalidade (LOUREIRO; CARVALHO, 2020). O vírus, inicialmente visto como distante da
realidade brasileira, passou a ser transmitido de forma rápida, desencadeando uma con-
taminação em massa que culminou numa pandemia a qual ganhou grandes proporções e
afetou as mais diversas áreas, gerando sofrimentos distintos, centrados num único aspecto:
o medo da morte.
Neste sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS), junto às esferas governa-
mentais de cada país, precisou criar formas de lidar e barrar o crescimento da pandemia.
Demenech et al. (2020) afirmam que estratégias foram criadas de acordo com as demandas
e necessidades que surgiram naquele momento. Assim, o meio científico analisava métodos
de contenção dos casos, ao mesmo tempo que também procurava formas de desenvolvi-
mento de vacinas que fossem eficazes para a população. O isolamento social e o uso de
máscaras evidenciaram-se como dois grandes pilares para evitar a disseminação do vírus
e agravamento da pandemia (DEMENECH et al., 2020).
No Brasil, com base em Loureiro e Carvalho (2020), surgiram diversas discussões a
respeito de qual seria a melhor forma de enfrentamento da pandemia. O isolamento social,
durante alguns meses, foi criticado, tendo como argumento principal, a necessidade de tra-
balho por parte da população. Neste sentido, a pandemia fez emergir questões de ordem
econômica e social que se tornaram preocupantes para a sociedade como um todo. A de-
sigualdade econômica, que coloca o país entre os dez com o maior número de disparidade
social, a nível mundial, tangencia a problemática de ordem econômica e social, que resvalou
nos infortúnios potencializados pela pandemia.
Por outro lado, os altos índices de mortalidade decorrentes do crescimento despropor-
cional de casos e os protocolos seguidos perante a morte por COVID-19, tornaram o processo
de morte e do morrer um fenômeno de grande complexidade e sofrimentos, sobretudo de-
vido a evitação de rituais fúnebres tão significativos culturalmente. Os tempos antigos eram
marcados pela realização de cerimoniais estruturados com o intuito de significar a partida e
o fim da vida de alguém. A despedida ocorria de acordo com a tradição social, que possuía
muitas vezes base na religião cristã, que na figura do padre, acompanhava o momento de
perto, a fim de aproximar o morto de Deus (MARANHÃO, 2017).

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No entanto, nos dias atuais, a morte evidencia-se ainda como um grande tabu. O silêncio
em torno do assunto ocorre devido à crescente necessidade social de progresso e produtivi-
dade (MARANHÃO, 2017). Desta forma, a finitude facilmente é vista como algo distante da
realidade e que deve se evitar, visto que é preciso criar meios de socializar a vida, tornando
a morte uma certeza silenciada e omitida. A pandemia da COVID-19 transformou tal estru-
tura, haja vista a presença certa e notória da morte em todos os espaços sociais, seja pelas
mudanças repentinas em estilos de vida ou mesmo a morte presente de pessoas queridas.
O isolamento e as medidas que exigem distanciamento social devido ao risco de conta-
minação, impediram a realização dos rituais e cerimoniais fúnebres o que impossibilitou o en-
contro de familiares e amigos no contexto de perda de um ente querido. Em outras palavras,
os protocolos e dispositivos de enfrentamento da pandemia prejudicaram a vivência da morte
e do morrer, tornando esse processo um momento objetivo, distante e frio. A possibilidade
de contágio, em locais com diversas pessoas, além do risco de transmissão póstuma, criou
a esfera de reconstrução do processo de despedida e vivência do luto, podendo aumentar
o sofrimento dos envolvidos em tal situação (CREPALDI et al., 2020).
Acerca do luto, Soares e Mautoni (2013) afirmam que o mesmo pode ser experienciado
inicialmente a partir do grau de afeto pela pessoa morta. As reações emocionais subjacentes
ao apego, influenciam na maneira que o indivíduo vivenciará a dor da perda. Na vivência
do luto a pessoa é tomada por um estado doloroso e de sofrimento que pode ser transitório
ou demorado. O percurso vivido durante o processo de luto, tende a não obedecer a uma
ordem linear, podendo haver progressos e retrocessos. O choque, provocado pela morte,
deixa a pessoa enlutada refém de sentimentos como a negação, sensação de abandono,
desesperança, raiva e medo do futuro (SOARES; MAUTONI, 2013). O luto vivido em conse-
quência das mortes causadas pela COVID-19, tornou-se ainda mais difícil e complexo, devido
a maneira que a situação é experienciada. A ausência de despedida pode, por exemplo,
dificultar a compreensão e aceitação da morte (CREPALDI et al., 2020).
O apoio psicológico é fundamental para a elaboração e ressignificação do luto. A es-
cuta psicológica pode ser grande aliada para a reestruturação da vida frente a perda de
alguém. Os grupos de apoio psicológico, centrados no acolhimento, também surgem como
uma das bases para enfrentar o luto. De acordo com Andrade (2020), as particularidades do
sofrimento de cada indivíduo, quando compartilhadas, podem se tornar plurais, visto que a
troca produz conhecimento e crescimento. O grupo pode estruturar-se como uma rede de
apoio, onde as experiências colocadas são trabalhadas a partir de diversos pontos de vista.
Partindo de tais pressupostos, o presente estudo teve como objetivo descrever as
vivências e reflexões obtidas a partir da experiência com um grupo de apoio psicológico à
pessoas em sofrimento psíquico decorrente do luto vivido em consequência da COVID-19.

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RELATO DE CASO

Trata-se de um relato de experiência, a partir do grupo de acompanhamento e apoio


psicológico a pessoas enlutadas em decorrência da COVID-19. O grupo contou com cinco
facilitadores, estagiários e estagiárias, do Estágio Supervisionado Básico I, do curso de
psicologia, da Universidade Federal de Campina Grande. Todos os facilitadores estavam
sob supervisão de um docente do curso. O grupo foi formado a partir de demandas da po-
pulação geral e foi realizado de forma remota através do Serviço de Psicologia (SEP) da
referida universidade. Os participantes inscreveram-se através da plataforma Google Forms,
em link disparado e enviado por meio das redes sociais Facebook, Instagram e WhatsApp.
Utilizou-se como critérios para participação, ter idade igual ou superior a 18 anos e ter vivido
a perda de alguém próximo em decorrência da COVID-19. Após breve período de inscrição,
dez pessoas foram selecionadas e convidadas a participar do grupo de apoio psicológico,
todas elas concordaram com a participação através da assinatura do TCLE e da construção
do contrato de convivência. Foram realizados 10 encontros, de forma remota, através da
plataforma Google Meet. Os encontros aconteceram, semanalmente, com duração de uma
hora e trinta minutos, entre os meses de agosto e outubro de 2021. A Abordagem Centrada
na Pessoa, de Carl Rogers, foi utilizada como embasamento teórico e metodológico. Neste
sentido, utilizou-se como orientação a perspectiva de grupo vivencial onde cada integrante foi
convidado a partilhar de suas experiências naquele momento de sua vida, e assim foi fomen-
tada a fala e a escuta de cada pessoa pelo grupo. Para a pesquisa bibliográfica, utilizou-se
as bases de dados da SciELO e a Biblioteca Virtual da Saúde (BVS). As palavras-chave
usadas como descritores foram “morte”, “luto”, “COVID-19” e “grupo de apoio psicológico”.
A realização do grupo, além de focar no luto vivenciado pelos participantes, eviden-
ciou as reverberações da morte em diversos aspectos das vidas dos enlutados. O medo
de vivenciar novas experiências de cunho amoroso apareceu em muitos momentos, assim
como a ausência de foco em consequência da falta de pessoas que anteriormente funcio-
navam como norte.
Neste sentido, os participantes apresentaram as respectivas dores e as diferentes for-
mas de enfrentamento. A criação de laços, através da fala, foi um dos fios condutores para
a construção e solidificação do grupo, gerando possibilidades para a ressignificação da dor
individual de cada usuário. A potência da fala, nota-se, foi a base norteadora da experiência
dos usuários e dos estagiários. Os casos apresentados, embora distintos, encontram-se
no sofrimento e na necessidade, explícita ou implícita, de (re)encontrar força, coragem e
vontade de olhar e viver a vida.

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DISCUSSÃO

A partir do objetivo proposto, buscou-se evidenciar teoricamente a importância da


escuta e da fala para o processo de enfrentamento do luto. A literatura, em maioria, mostra
as diversas e diferentes fases do luto e as respectivas formas que cada indivíduo atravessa
tal momento. Foi percebido que a experiência voltada para a vivência do luto em isolamen-
to social ou em silêncio, pode acarretar conflitos psicológicos leves ou severos. Tal ponto
evidencia a relevância do processo de viver o luto de modo saudável. Isto é, partilhando
experiências, efetuando escutas, permitindo-se falas, experienciando aceitação, seja com
pessoas próximas ou com profissionais capacitados, por exemplos psicólogos. Neste sentido,
o grupo de apoio psicológico coloca-se como um instrumento de forte influência na vivência do
luto. Percebeu-se que o compartilhamento de fatos, pensamentos, sensações e sentimentos,
serviu como base para a reestruturação das vidas dos enlutados. Deste modo, o processo
de enfrentamento ao luto, embora singular, tornou-se possível e com mais possibilidades,
a partir das pluralidades expostas.

O luto em silêncio

A não verbalização da morte e da dor, foi marcada como um dos pontos mais fortes
e evidentes no grupo de apoio psicológico. O silêncio foi utilizado como estratégia de en-
frentamento, pois acreditava-se que o não falar possibilitaria a superação. Tal fato ocorreu,
sobretudo, pela não comunicação acerca do acontecimento e das dores vividas durante o
processo. A evitação em falar sobre a morte pareceu ser uma forma de enfrentamento a
qual foi solicitada em alguns momentos. A crença de que “a morte é a única certeza e chega
para todos”, ditava tal processo.
O silenciamento criou a sensação de que o luto estava sendo elaborado de maneira
adequada. No entanto, foi presente a disposição limitante em lidar com a ausência do ente
que morreu. Mesmo com o tempo corrido do luto, a não verbalização provocou, principal-
mente, o afastamento das relações familiares e a extrema solidão vivida durante o luto. A di-
ficuldade de falar sobre a morte, parte do medo de encontrar em si e no outro, sentimentos
que catalisam a dor. Deste modo, criou-se um contrato de apagamento da morte, onde a
pessoa enlutada e os mais próximos, vivenciavam o luto de modo invisível e solitário.
Conforme Coralli (2012), o silenciamento após a morte pode ocorrer por causa da
sensação de derrota que a experiência proporciona. A não verbalização cria a falsa ilusão
de que a morte não existe. Portanto, é possível elaborar um lugar imaginário em que a dor
cessará. O medo de falar sobre, evidencia o sentimento universal de que o fim, cedo ou
tarde, chegará. A falta de conhecimento acerca do que acontece após a morte, também

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funciona como inibidor da fala e causador do luto em silêncio. A ausência de fala também
pode ser compreendida como a necessidade de se mostrar forte, entendendo, neste caso,
que choro e tristeza categorizam fraqueza.

A presença da religiosidade/espiritualidade na elaboração do luto

A impossibilidade de verbalizar sentimentos tidos como negativos, além da cultuada


ideia de que demonstrar sofrimento é ser fraco, pode acarretar danos à saúde geral do in-
divíduo. O sujeito, ao longo de toda a vida, enfrenta situações de perda que podem desen-
cadear sintomas físicos e psíquicos. Essas perdas exigem um processo de ressignificação,
que se dará de forma individual (SAIBOT; SOUZA, 2019). Foi evidente no grupo de apoio
psicológico a utilização da religiosidade/espiritualidade como fator de enfrentamento. A vi-
vência religiosa e espiritual pareceu ser vista como um fator importante para ressignificar a
perda e como método de contribuição para prosseguir. Nesse cenário, tornou-se importante
perceber a importância da relação entre a religiosidade/espiritualidade e a saúde.
A religiosidade/espiritualidade se mostrou importante no processo de luto, pois contribuiu
diretamente com a visão que os(as) enlutados(as) têm a respeito da morte, na medida em
que trazem a sensação de que há um Deus cuidador, que sabe de todas as coisas e que,
por saber de tudo, não fará nada a fim de prejudicar a pessoa, mas, sim, para lhe provar
que ela consegue passar por aquela situação e que nada ocorre por acaso, ou seja, trazem
a sensação de que há um propósito para tudo e que as coisas acontecem como tem que
acontecer. Todo esse sentimento carrega uma noção de conformidade, de que se as coisas
estão assim, é porque tem que ser de tal forma, e esse redirecionamento do pensamento
contribui para acalmar a pessoa enlutada e trazer um pouco de conforto.
Foi possível perceber esses movimentos no grupo, na medida em que a maioria dos
integrantes trouxeram a ideia de um Deus que sabia de todas as coisas e que esse Deus
também daria a força necessária para enfrentar a situação. Os participantes se apegaram a
noção de que estava acontecendo o que tinha que acontecer e que eles eram capacitados
para passar por aquela circunstância. É possível perceber, portanto, que “a espiritualida-
de propicia o senso de controle e ameniza o sofrimento causado pela morte” (SAIBOT;
SOUZA, 2019, p.34).
Na área da saúde, é importante enxergar o ser humano como um todo, ou seja, con-
siderando também a sua espiritualidade pois “pode auxiliar no processo de superação do
luto e de retomada da vida, desde que essa espiritualidade seja mantida ativa na vida das
pessoas” (SAIBOT; SOUZA, 2019, p. 36). Portanto, é muito importante buscar aquilo que há
de mais singular em cada um, pois reflete a forma como o mesmo se expressa e lida com
as situações e essa forma deve ser valorizada.

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Foi percebida ainda a noção de que o ente que se foi tornou-se um anjo protetor que
estava sempre presente para proteger e cuidar da pessoa que ficou. Ou talvez, de que
aquela situação era melhor para a pessoa que faleceu, pois ela estaria em um lugar bom
e livre de qualquer sofrimento. Todos esses pensamentos trouxeram um conforto para os
participantes, facilitando a aceitação em relação ao que aconteceu. Portanto, foi possível
compreender que a religisiosidade/espititualidade ocupa um lugar muito forte na superação
do luto e que tais elementos devem ser levados em conta na recuperação dos indivíduos.
Dessa forma, Scorsolini-Comin et al (2020) ressaltam a religiosidade/espiritualidade como
recurso de compreensão dos efeitos da pandemia e situações de luto, bem como estratégia
de enfrentamento que pode promover cuidado humano e integrado. Por sua vez, Zandonadi
e Rolim (2019), em estudo empírico qualitativo com pessoas enlutadas, observaram a re-
levância da religiosidade na elaboração do luto, tendo em vista que é por meio dela que o
indivíduo recebe suporte espiritual e social para enfrentar.

O grupo vivencial como rede de apoio e autocuidado

As relações humanas baseiam-se intrinsecamente a partir do convívio e das relações


estabelecidas no meio social, o que permite que os indivíduos estejam inseridos em grupos
micro (escola, trabalho, amigos) ou macro (cidade, estado, país). Além disso, alguns gru-
pos podem ser criados com objetivos específicos voltados a proporcionar uma experiência
intensa de autocuidado e de espaço de fala necessários à liberdade de expressão humana
e ao encontro de experiências existenciais, o que pode ser facilmente percebido em grupos
de encontro orientados pela Abordagem Centrada na Pessoa (PINTO, 2020).
No grupo de apoio e acolhimento psicológico, observou-se o movimento das pessoas,
desde a sua formação, buscando estabelecer vínculos de confiança entre os participantes,
tornando os encontros propícios à fala e ao compartilhamento das emoções, sentimentos e
experiências proporcionados pela temática norteadora: a vivência do luto.
Além disso, o grupo como rede de apoio e autocuidado se constituiu através de um pro-
cesso, ainda que implícito. Logo, o caráter espontâneo das relações humanas proporcionou
encontros caracterizados por momentos de silêncio, choro, contestação, incongruências e
atravessamentos subjetivos das experiências individuais de cada integrante, o que tornou
possível o desenvolvimento do sentimento de pertencimento e de troca, tão necessários ao
desenvolvimento da rede de apoio.
Sendo assim, a cada encontro as relações entre os participantes tornavam-se ainda
mais simbólicas e a partir da fala e dos comentários tecidos, comumente se percebia a sen-
sibilidade para com o outro, como também o desejo em colocar em palavras toda a dor e
sofrimento causados pelo processo de luto. Diante disso, foi evidente que a vivência grupal

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foi permeada por um encontro existencial onde cada subjetividade se permitiu envolver-se a
ponto de fazer do grupo seu suporte de apoio naquele momento imediato. Segundo Fonseca
(1988), um aspecto que define um grupo vivencial é o encontro. Segundo o referido autor,
o que importa no grupo vivencial é o encontro efetivo das realidades existenciais para que
assim se criem e recriem de forma ativa através da “espontaneidade da dinâmica das rela-
ções de multiplicidade de suas perspectivas pessoais e coletivas” (FONSECA, 1988, p. 21).
Foi interessante notar que apesar do grupo surgir com uma temática bem definida, ao
longo dos encontros as relações entre os participantes tornavam-se intensas ao ponto de
outros assuntos pessoais ganharem espaço nas discussões, proporcionando autocuidado
para quem fala e respeito à experiência de outrem para quem escuta. Sendo assim, os
grupos de apoio psicológico são fortemente observados como uma via de mão dupla tanto
para quem participa como para quem facilita esse processo de cuidado.
É possível afirmar a riqueza existente em grupos de apoio psicológico à medida em
que esses grupos proporcionam para além de encontros humanos, encontros existenciais,
em que a dor, o sofrimento, a alegria e sobretudo, a ressignificação são sentidas de forma
subjetiva e particular, mas com o apoio, a escuta e a troca coletiva, impulsionando processos
terapêuticos individuais.

Reencontro de si diante da ressignificação da perda

À medida que os encontros aconteciam, os indivíduos por meio de relatos de sofrimen-


tos e desesperanças, expressavam o desejo de demonstrar as suas personalidades e novos
sentidos em relação à vida. Tal fato possibilitou, inclusive, que temas transversais, como
trabalho, viagens e família, adentrassem as falas, reconhecendo assim que quanto mais
falavam sobre si mesmos, a reconstrução pessoal diante da perda ficava mais congruente
com os sentimentos de esperança e renovação expressados ao fim de cada encontro.
Conforme elucidado por Pinto (2020), é natural do indivíduo possuir a capacidade de
superar-se, atualizando-se diante das dificuldades, ressignificando perdas em prol da sobre-
vivência, esta perspectiva provém da ideia de tendência atualizante desenvolvida por Rogers.
Sobre este aspecto, foi possível identificar esta capacidade de atualização na vivência grupal,
a partir dos encontros, ao falar sobre si, cada indivíduo passou a reconhecer-se novamente
com uma pessoa inteira, elaborando o seu luto, permitindo-se sentir cada sentimento em
decorrência a ausência do ente querido, após isso, apresentou sua superação através do
reencontro consigo mesmo.
Partindo da crença neste potencial, percebeu-se que através da fala, cada pessoa
expressava as formas de autocuidado durante o processo de ressignificação da vida em
meio a ausência de pessoas importantes. Sendo assim, o grupo tornou-se um espaço de

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escuta para compartilhar as experiências para além do sofrimento do luto, no qual o indi-
víduo trazia experiências cotidianas, afetadas pelo “aqui e agora”, possibilitando assim,
compreender como cada pessoa estava reconstruindo a vida, construindo novos sentidos,
durante o processo de luto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a experiência vivenciada através do grupo de apoio e acolhimento psicológico à


pessoas enlutadas em decorrência da COVID-19, percebe-se que é de suma importância
a vivência do luto em suas mais variadas formas, tendo em vista que cada indivíduo expe-
riencia a perda e o processo de ressignificação da morte de maneira singular.
Além disso, vale ressaltar a importância que a fala e, sobretudo, a escuta ocupam no
processo de ressignificação do luto à medida que os indivíduos formulam e colocam em pala-
vras sentimentos e angústias. Logo, a partir desse processo torna-se possível compreender,
ainda que de forma dolorosa, o espaço que o ente falecido ocupa na vida do sujeito e como
o indivíduo pode, pouco a pouco, traçar novas estratégias e formas de continuar inserido
no convívio social.
Nesse contexto, grupos de acolhimento orientados pela escuta qualificada e com um
olhar direcionado à pessoa que fala, além de eficaz, ocupam um papel imprescindível no
desenvolvimento subjetivo dos sujeitos, pois incentiva a fala dos mesmos. De modo que as
trocas de experiências e as formas de enfrentamento ao luto assumem caráter de rede de
apoio e de acolhimento aos sujeitos que em situações como esta recorrem ao isolamento e
ao silêncio como principais formas de enfrentamento.
Conclui-se, portanto, a necessária continuidade de aprofundamento no que diz res-
peito ao estudo de temas como luto em contexto da pandemia COVID-19, tendo em vista o
atravessamento social mundial que esse acontecimento acarretou. Não menos importante
é compreender a importância dos grupos de apoio psicológico e acolhimento, entendendo
sua finalidade e investindo cada vez mais neste recurso de apoio, facilitação e promoção
de direcionamentos e reflexões acerca de determinados temas.

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