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Ana Coradazzie Lucas (antadori

L O RIO
NEDICOHISTORIAS,
EXPERIENCIAS
E LIÇOES DE VIDA

mg
MG EDTORES
Hoje é dia de ir ao médico

Há alguns dias, chegando


cedinho ao consultório,
deparei com
uma senlhora bem idosa numa cadeira de rodas,
conduzida por um
senhor to idoso quanto ela; ambos estavam acompanhados de uma
mulher. Todos aguardavam na porta de entrada. era Supus que uma
paciente nova esperando para me consultar, mas tinha chegado cedo
demais. Abri rápido para que eles pudessem
aguardar a consulta mais
confortavelmente e fui organizar tudo para começar o atendimento
do dia. Ao abrir a
agenda, vi que a consulta da tal senhora estava
agendada para dali a quase duas horas. Olhei para o relógio e consi-
derei que seria absurdo deixá-la esperando tanto tempo, então anteci
pei o atendimento. Assim que eles entraram, a nora agradeceu a gen-
tileza e se apressou em explicar o motivo do adiantamento.
Dona Nair recebera o diagnóstico de câncer de reto havia cerca
de três semanas, já com metástases no fígado e no pulmão. Várias
estratégias de tratamento tinham sido cogitadas em sua cidade, mas
diante da idade avançada dela os filhos estavam muito
preocupados
com o que aconteceria a seguir. Foi ent o que começou a busca da
melhor alternativa para a dona Nair, que ocupara desde sempre o
cargo de coração da família. Sua doença era algo totalmente inespe-
rado e assustador, e eles queriam ter certeza de decidir pelo melhor
caminho. Haviam conversado com médicos próximos e com pacien-
tes oncológicos conhecidos da família; por fim, fizeram uma longa
busca na internet, chegando então à nossa clínica. Como moravam a
quase duzentos quilômetros de distância, os dias que antecederam a
consulta haviam sido destinados aos preparativos d a vinda da nora
de
para acompanhá-la aos detalhes do transporte, possibilidade

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-(Ana Coradazzi e Lucas Cantadori )--
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internação e pedidos de licença no trabalho dos filhos. Dona Nair


tinha se levantado de madrugada, tomado banho e um café da ma-
nhã apressado, e às cinco horas da manh eles já estavam no carro, a
caminho. Olhei para ela, franzina e sorridente, os cabelos penteados
para o lado e presos com uma fivela tic-tac. Vi seus brincos, o batom
clarinho ea bolsa alojada no colo. Ao lado dela, uma sacola com um
casaco (caso esfriasse), bolachas e uma garrata de água. Aquela se-
nhora viera preparada.
Após pouco mais de uma hora, eles já tinham esclarecido suas
diividas e estavam prontos para a viagem de volta, cheios de informa-
ções e decisões a tomar. Vendo os três indo embora, um pensamento
invadiu a minha mente: o tempo e a energia despendidos por todos
eles durante aqueles dias. A busca de o informações, agendamento
da melhor data possível, os preparativos para a viagem, os transtormos
para organizar as rotinas de todos, o sacrifício de acordar tão cedo e
pegar uma estrada tortuosa para não chegarem atrasados, tudo issop
carregado de expectativas. Tudo isso para que eu dedicasse a eles
uma parcela tão
do meu tempo. pequena
Eclaro que não sou ingênua a ponto de imaginar um mundo no
qual acontece um relacionamento mágico entre os médicos e seus
pacientes em cada consulta e onde médicos dispõem de um tempo
limlado para atendè-los e ouvir tudo sobre sua vida, desde o dia em
que nasceram. Na verdade, sei bem realidade e
Mas o
como nossa out
que me comoveu foi me dar conta de quanto passamos a
t
nportäca na vida de pessoas que ainda nen conhecemos e cOno
peqienos alos ou palavras nossos podem ter um impacto etern0 ta
Irajetória delas. F um papel de muita honra, tambem de e e

Tesponsabilidade. O mínimo (que deveríamos oferecer é um pouco le


alenção e pacincia.
Pacl? Nem
perto disso. Por debaixo do jaleco há angustius
SOIS, iestoes fanmiliares,
pe
contas a pagar, problemas de saude. t
Del Cxistle ia
onipresente escassez de tenpo. Mas eu realmente acre
oqee1possivel atender digaente n paciente (e sua tanilk)
c
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(O médico e o rio *

l c m p o restrito. SAo necCssarios treinamento e, mais importante


aida, experiência. Não estou talando da experiência médica técnica,
mcdida pela quantidade de pacientes atendidos durante sua carreira,
nimero de artigos cientiticos lidos ou tratamentos preseritos. Eu me
rehro especilicamente à experiëncia com os relacionamentos huma-
NOS. Falo da prática diária da escuta ativa, na qual conscientemente
vollamos toda a atenção para o interlocutor à nossa frente. Aprende
mos o significado de cada reação e gesto, bem como suas consequên-
cias futuras (boas ou péssimas). E aprendemos que as palavras devem
ser usadas para obter um bom resultado em cada situação, em cada
momento. Aprendemos a usar os olhos, o tom de voz, a posição na
cadeira, o sorriso. E chega um ponto em que somos capazes de, em
poucos minutos, estabelecer laços de empatia e confiança. Pronto.
O exercício consciente e diário dos relacionamentos é uma ferra-
menta poderosa que - é uma pena - pode ser facilmente ignorada e

desvalorizada pelo médico, em nome da falta de tempo ou de qual-


quer outra desculpa. Digo que lamento por dois motivos. O primeiro
é que, acreditando que uma consulta rápida (e sem olhar para o pa
ciente) pode poupar seu tempo, o médico apenas cria um problema
maior mais tarde, quando vai gastar o dobro do seu tempo precioso
explicando complicações que não previu, corrigindo diagnósticos
malleitos, interpretando exames desnecessários, esclarecendo pela
quarta vez a mesma dúvida. O segundo, e mais importante, é que ele
perde a valiosa oportunidade de se tornar um médico cada vez me-
hor. Mais do que isso, perde a chance de se tornar uma pessoa que
realmente faça diferença na vida dos outros. E poucas coisas são mais
lamentáveis do que isso.

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