Segredo de Francisco - Arquivo Jabuti

O segredo de
FRANCISCO
André Fernando dos Reis Trindade
O segredo de
FRANCISCO
Londrina
2021
Cult
Dados Internacionais de Catalogação na
Publicação (CIP)
T833s
Trindade, André Fernando dos Reis
O segredo de Francisco/ André Fernando
dos Reis Trindade. – Londrina, PR: Thoth,
2021.
222 p.
ISBN 978-65-5959-080-3
© Direitos de Publicação Editora Thoth.
Londrina/PR.
1. Ficção brasileira. I. Título.
www.editorathoth.com.br
contato@editorathoth.com.br CDD B869.3

CDU
82-31(81)
Ficha Catalográfica elaborada pela

bibliotecária Rafaela Ghacham Desiderato
Diagramação: Editora Thoth CRB 14/1437
Capa: Lucas Mitio Tsuruda
Revisão: Cláudia Bergamini
Índices para catálogo sistemático
Editor chefe: Bruno Fuga
Coordenador de Produção Editorial: Thiago 1. Literatura brasileira : Ficção : B869.3
Caversan Antunes
Diretor de Operações de Conteúdo: Arthur
Bezerra de Souza Junior
Conselho Editorial (Gestão 2021) Proibida a reprodução parcial ou total desta obra
Prof. Me. Anderson de Azevedo • Me. Aniele sem autorização. A violação dos Direitos Autorais é
Pissinati • Prof. Dr. Antônio Pereira Gaio Júnior crime estabelecido na Lei n. 9.610/98.
• Prof. Me. Alberto Shinji Higa • Prof. Dr. Arthur Todos os direitos desta edição são reservados
Bezerra de Souza Junior • Prof. Dr. Bruno Augusto pela Editora Thoth. A Editora Thoth não se
responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por
Sampaio Fuga • Prof. Dr. Clodomiro José Bannwart seus autores.
Junior • Prof. Me. Daniel Colnago Rodrigues • Prof.
Dr. Fábio Ricardo R. Brasilino • Prof. Dr. Flávio
Tartuce • Esp. Gabriela Amorim Paviani • Prof. Dr.
Guilherme Wünsch • Prof. Me. Ivan Martins Tristão
• Prof. Me. Júlio Alves Caixêta Júnior • Prof. Esp.
Marcelo Pichioli da Silveira • Profª. Dra. Marcia
Cristina Xavier de Souza • Esp. Rafaela Ghacham
Desiderato • Profª. Dr. Rita de Cássia R. Tarifa Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança
Espolador • Prof. Dr. Thiago Caversan Antunes • com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real
Prof. Dr. Zulmar Fachin terá sido mera coincidência.
SOBRE O
Autor
ANDRÉ FERNANDO DOS REIS TRINDADE
Mais velho de três filhos, nascido na pequena cidade de Sertão/
RS, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Passo
Fundo em 1998. Já no início do curso começou a participar
dos grupos de pesquisa como bolsista. Depois de concluir a
graduação, seguiu carreira acadêmica cursando mestrado em
direito e publicando diversos livros. Também cursou MBA
em gestão do ensino superior e MBA em gestão estratégica de
empresas. É especialista em EAD e atualmente coordena cursos
superiores.
SUMÁRIO
Sumário
SOBRE O AUTOR��7
SANGUE EM SANTIAGO��13
A FACE DA MORTE��16
OS ANDES CHORAM��21
JANELA DA ALMA��28
OS OLHOS DA ÁGUIA��34
DO PÓ VIESTE, AO PÓ VOLTARÁS��37
O ENVIADO��43
DESCALÇOS��48
DAI A CÉSAR O QUE É DE CESAR��54
A MORTE��57
A DOR DA MEMÓRIA��62
O ANJO DA GUARDA��68
MERGULHO NO RIO DA PRATA��71
VIVENDO BUENOS AIRES��79
O SINAL DA SALVAÇÃO ��83
PROVAÇÃO DIVINA��89
ADIÓS NONINO ��92
UMA SEGUNDA CHANCE��100
UVITA��103
O ENCONTRO DE BACCO COM AFRODITE ��107
O MUNDO É DOS HONESTOS ��111
A MARCA DA PAIXÃO ��113
POR UMA CABEÇA��116
DE PUNTA CABEÇA��119
UM REI COM DUAS RAINHAS��124
O “NOVO” VELHO MUNDO��127
O FIM DOS TEMPOS��130
TEMPO DE AMAR��132
O AMOR DE JULIETA��141
DOIS DEUSES��146
HABEMUS PAPAM��150
EGOCENTRISMO��153
QUEM TEM BOCA VAI À ROMA��158
O BEIJO DA MORTE��164
OS GLADIADORES��170
MEU PEDIDO��173
AMICI MIEI ��176
(DES)INFORMAÇÃO ��180
SEGURANÇA TUPINIQUIM��182
A VIRGEM AGNESE��186
TERRA SANTA��190
BANHO DIVINO��194
O DIA EM QUE A TERRA PAROU��196
O INÍCIO DO FIM��199
CONFISSÕES��204
NOVOS HÁBITOS ��212
A VERDADE VOS LIBERTARÁ��216
FIM��222
I
SANGUE EM SANTIAGO
O Arcebispo de Buenos Aires, Dom Geraldo Klaus, tentava

fugir pelos corredores do prédio histórico, depois de ter levado
uma facada na perna direita. Seus passos eram lentos e seu sangue
criou um rastro no piso do Museu Colonial de São Francisco,
na cidade de Santiago, capital do Chile. A dor aumentava com
o sangue que jorrava em abundância. A cada passo que dava,
sua vida diminuía em meio às obras de arte que recontavam a
vida e obra de São Francisco de Assis. O piso antigo de pedra,
já desgastado pelos séculos e pelas milhares de pessoas que
circularam, recebia visitas fora do comum naquela sombria noite.
Quadros de diversas épocas foram reunidos em uma exposição
única com o objetivo de descrever a trajetória da maior figura do
cristianismo depois de Jesus. Um ser iluminado que defendeu
o evangelho e a vida segundo os ensinamentos e exemplos de
Cristo. Ele abriu mão da sua condição privilegiada para se dedicar
aos mais pobres e defender as criaturas, que chamava de irmãos.
Por isso foi canonizado como o santo patrono dos animais e do
meio ambiente.
Um fim digno, pensou Dom Geraldo. Dividir meu leito de
morte com São Francisco, sua trajetória coroava o trabalho de
décadas do Arcebispo na defesa de um mundo mais justo. A
sobriedade de quem sabia que estava para morrer espantava o
próprio Arcebispo. Lutamos contra a morte a cada segundo de
nossas vidas, mesmo sabendo que é uma condição natural e o
O segredo de Francisco
caminho de todos os seres vivos. A certeza do fim traz a paz que

muitas vezes não encontramos na rotina atribulada da vida. A
morte é o fim, mas a vida é o caminho a ser percorrido até ele. A
maturidade do Arcebispo em refletir sobre sua passagem terrena
acalentou seu coração, pois tinha a certeza de que sua vida não
foi em vão.
Ao mesmo tempo em que escutava os passos do seu agressor
se aproximando, em um local vazio e sem vigilância, o medo da
morte se misturava com a beleza da arte que o cercava. Mesmo
cambaleando, Dom Geraldo conseguiu entrar na Igreja de São
Francisco que fica ao lado do Museu. Um exemplo de arquitetura
colonial do século XVI com paredes sólidas de pedra polida que
suportaram diversos terremotos e preservaram o prédio mais
antigo da capital Chilena. A fé do Chile passou pelo pequeno
altar que era palco de uma morte naquela noite.
Ao chegar ao centro da igreja, as forças de Dom Geraldo
se acabaram e ele caiu de costas no meio da nave. Sua vida
escorria pelo piso centenário, enquanto observava o teto. Sorriu
estranhamente por nunca ter parado para apreciar a beleza das
madeiras com temas florais que adornavam a igreja.
Como é belo o meu sepulcro – Pensou em voz alta.
O executor se aproximou lentamente. Pela experiência que
tinha em ver as pessoas agonizando, sabia que a morte do
Arcebispo era inevitável e próxima. Mas não podia deixar que
isso acontecesse sem conseguir a informação de que precisava.
Carlos chegou andando lentamente, até molhar os pés no
sangue acumulado, e observou o Arcebispo deitado no chão, O
corpo já não oferecia resistência alguma. Estava praticamente
sem reação e sua temperatura confirmava a chegada da morte.
Carlos se ajoelhou ao lado de Dom Geraldo e levantou a cabeça
dele, até que seus olhos estivessem alinhados para fazer uma
pergunta.
- Sente a morte chegar?
-14-
André Trindade
- Sim. Ela sempre vem na hora certa – Respondeu Dom

Geraldo com o mesmo tom de voz que utilizou por décadas para
aconselhar as ovelhas de seu rebanho.
- Preciso que você fale se mais alguém sabe. Apenas o nome.
Dom Geraldo sentiu o frio tomar o seu corpo e teve a certeza
de que sua existência na terra estava por acabar. Levou lentamente
sua mão até o rosto do seu assassino, olhou no fundo dos olhos
e falou:
- Eu te perdoo, meu filho. E a tua penitência é saber que eu
levarei tudo aquilo que precisas saber comigo.
Sua mão caiu no piso gelado de pedra. Não existia mais
Dom Geraldo, apenas um corpo. O corpo do Arcebispo que,
por décadas, pregou a paz e, até no seu leito de morte, deu um
exemplo de amor, perdoando aquele que tirou sua vida. Nada
mais do que um corpo. Carne e alma já não estavam mais
unidas. Apenas as memórias das décadas de trabalho, como um
verdadeiro orientador espiritual que conduzia os católicos para o
caminho da Igreja, seriam seu legado.
O assassino fechou os olhos do Arcebispo e fez o sinal da
cruz antes de começar a vasculhar seus bolsos. Não encontrou
nada que chamasse sua atenção na carteira, apenas alguns pesos
chilenos, um cartão de crédito e documentos. No outro bolso
encontrou um celular. Limpou o polegar cheio de sangue e
pressionou contra a tela até desbloquear o telefone. Com uma
rápida pesquisa, identificou uma mensagem suspeita – S. L. Ela
morreu! Está na hora de contarmos a verdade. Abraço R.P. –
Pelo prefixo era um número de Buenos Aires. A mensagem
era importante e não teve dúvida, decepou o polegar de Dom
Geraldo com a mesma faca que utilizou para torturá-lo por quase
uma hora e saiu em direção ao centro de Santiago com uma
certeza: sua missão tinha apenas começado.
-15-
II
A FACE DA MORTE
Seu rosto era lindo! Os anos passaram, mas a beleza dos traços
continuava intacta. Uma mulher que trazia na sua face as marcas
de uma vida com alegrias e dissabores. Seus olhos fechados
transmitiam uma impressão de paz a todos que se despediam
no velório. Um descanso para quem lutou pela vida, mas aceitou
a morte com leveza na alma. O caixão de madeira avermelhada
estava suspenso sobre três suportes de metal. O tecido branco
com renda que forrava seu interior trazia ainda mais claridade
para sua pele quase albina. As mãos sobre o peito seguravam o
inseparável terço que ganhou da mãe.
Ver a própria mãe no caixão cercada por coroas de flores
de diversas famílias e amigos deixou Lucca com um misto de
impotência e dor. A dor implacável de quem perdeu uma parte
da sua essência. As lembranças dos bons momentos se repetiam
continuamente em sua mente. Instantes de carinho e até as
cobranças típicas de uma legítima matriarca passaram a compor
um roteiro de vida que se resumiu na despedida da morte. A
incapacidade de impedir a morte e a autocobrança martirizavam
Lucca. Por que não vivemos mais próximos? Quantas vezes
deixei para responder mais tarde uma mensagem e esqueci?
Quantas ligações não feitas e carinho não retribuído? A morte
não perdoa! Ela ceifa a vida sem data e hora.
Lucca não tinha mais lágrimas. Seus olhos castanhos estavam
vermelhos de tanto chorar. Olhava para o corpo de Vitória, mas
André Trindade
enxergava além. A morte é um ciclo conhecido da vida. Mas

não temos a racionalidade para entender essa condição humana.
Sabemos da nossa condição finita, mas vivemos como seres
imortais. Cada dia de nossa existência é envolvido em rotinas
que não nos deixam saborear o tempo que nos resta. A contagem
da idade é uma prova de que vivemos momentos sem pensar
quanto nos falta. Será que estarei vivo no final do ano para a
viagem de férias programada? A morte é uma certeza com data
incerta. Destino único dos mortais que vivem como se fossem
seres eternos numa inconsciência até cômoda.
Lucca repensou sua vida diante da morte da mãe. Quando
ela atinge alguém próximo, rompemos o ciclo e reduzimos a
velocidade da nossa rotina, pensando que poderemos ser os
próximos. Imaginamos as pessoas que deixaremos e como elas
ficarão na nossa ausência. As brigas em família e os pequenos
detalhes perdem importância diante da morte. O ser sobrepõe o
ter. O toque de carinho que deixou de ser dado faz a alma chorar
mais do que os olhos. A vida toma sentido com a morte!
Os flashes de memória e a angústia do velório são interrompidos
por abraços de familiares e amigos que tentam consolar a perda.
Alguns são formais, apenas como uma obrigação social. Outros
são profundos e envolvem o corpo, a alma e acalentam o
coração. A importância de uma pessoa para os demais pode ser
observada em sua despedida. O gesto final de adeus representa
muito para os familiares. Mais que respeito à pessoa que morreu,
é uma forma de demonstração de que ela representou algo de
importante para os outros.
Lucca lembrou do enterro de um diretor da empresa em
que trabalhou. Era uma grande empresa com mais de 2000
funcionários, e uma rotina de pessoas que fervilhava todos os
dias. Quando chegou no velório, ficou instigado pela reduzida
quantidade de pessoas presentes, além dos familiares. Como
era novo na empresa, achou estranho, mas logo entendeu que
a importância que damos para as pessoas em vida se refletem
-17-
no agradecimento e no respeito ao seu nome após a morte. O

diretor não era um líder, mas apenas um chefe que trocava a
empatia pelo sabor do poder de mando, nunca teve o respeito dos
seus funcionários, apenas seu medo. Usava seu pequeno poder
sobre os demais funcionários como uma forma de satisfazer seu
ego e nunca criou relações saudáveis de confiança e amizade.
Seria lembrado como mais um chefe autoritário, deixando mais
mágoa que saudade no coração dos empregados. Estranho como
a morte é reveladora.
Ao ver toda a pequena cidade no velório, Lucca notou o
respeito e a importância de sua mãe para a comunidade. Ela
era uma parte do grupo de moradores que se perdia e deixava
de cumprir uma função de relevância. Sempre foi muito ativa e
envolvida com os grupos religiosos que movimentam a cidade.
Quanto menor a cidade, mais apegadas às ações da Igreja as
pessoas ficam. Historicamente as cidades são fundadas em torno
da Igreja. Ela unifica a sociedade e direciona a fé das pessoas para
um bem comum. Do batizado ao velório, a vida de um cristão
está na Igreja. As despedidas nos velórios são um evento social
que reúnem amigos, vizinhos e parentes. Em meio à dezena
de pessoas que consolaram Lucca, uma senhora chegou perto,
abraçou-o, carinhosamente, e falou ao seu ouvido:
- Vitória sempre foi muito forte! Você como filho único foi
criado com a mesma força. A minha mãe passou isso para as
filhas.
- Muito obrigado, tia Rosa! Sei que a vó Carmem sofreu muito
e fez das filhas verdadeiras guerreiras.
A avó Carmem teve duas filhas. Vitória era a mais velha. Ela e
Rosa sempre foram muito diferentes. Apesar de criadas no mesmo
ambiente, não tinham semelhanças físicas e de personalidade.
Enquanto Rosa era baixinha e alegre, Vitória era alta e tímida.
Tinham apenas 3 anos de diferença e passaram boa parte da
infância juntas nas brincadeiras e brigas típicas de irmãos. O pai
-18-
André Trindade
de Lucca morreu em um acidente de carro, quando ele ainda

era uma criança. Não tinha memória paterna. O mais próximo
disso foi o seu avô Gumercindo, que, apesar de sempre estar
presente, nunca demonstrava afeto. Vitória foi um exemplo de
dedicação. Criou um filho sozinha, contra todas as dificuldades
que o mundo apresentou.
Durante o velório, as pessoas cumpriam praticamente o
mesmo ritual de despedida. Entravam na capela mortuária,
cumprimentavam a família, olhavam pela última vez o corpo
de Vitória e conversavam com as pessoas mais próximas.
Algumas ficavam horas falando sobre as histórias que viveram
com ela, outras apenas passavam rapidamente para prestar suas
condolências. Vitória era enfermeira e ajudou muitas pessoas
durante os anos em que trabalhou no hospital da cidade. Tinha
um dom de tratar bem as pessoas e cuidar dos enfermos como
se fossem da própria família. A simplicidade de quem gosta de
ajudar os outros sem intenções, apenas fazer o bem, porque é a
coisa certa a fazer. Um coração que ficava feliz em ver os outros
felizes. Por isso, seu velório estava lotado. Reconhecimento da
sua bondade.
Lucca via a igreja lotando e lembrou da origem do velório na
idade média. Era uma cerimônia em que as pessoas passavam
a noite vigiando o falecido. Como o consumo exagerado de
álcool poderia gerar efeitos semelhantes à morte e não existia luz
elétrica, as pessoas ficavam acompanhando o corpo com velas
para evitar que se enterrasse um vivo. Assim surgiu a expressão
velar o corpo. Uma tradição fúnebre seguida pela religião
católica. Impressionante como a nossa cultura absorve praxes
que replicamos por séculos sem sabermos a própria origem, mas,
mesmo assim, continuamos a seguir tais hábitos.
Muitos amigos da infância de Lucca apareceram para dar os
pêsames. Ficou impressionado como as pessoas mudaram. As
crianças que brincavam na escola primária hoje eram adultas, pais
de família e estavam quase irreconhecíveis. Como saiu cedo de
-19-
casa para estudar, acabou perdendo o contato com a maioria dos

colegas da escola fundamental. Apenas duas ou três amizades
reais persistiram no tempo, e seus contatos eram cada vez mais
esporádicos, pois vivenciavam contextos muito diferentes. Mas
as amizades verdadeiras não se perdem com a distância ou com
o passar dos anos. Elas são como uma brasa que, ao menor sinal
de vento, reacende e mantém viva sua chama.
Entre tantas pessoas que estavam no velório, uma figura
chamou a atenção de Lucca. Quem seria aquela linda mulher que
estava próxima à porta?
-20-
III
OS ANDES CHORAM
Carlos chegou ao Serro de Santa Lucia em poucos minutos.

O táxi o deixou na base do parque que foi o local onde, em 1540,
Pedro Valdívia fundou a cidade de Santiago. Com mais de 70
metros de altura, o Serro já era conhecido pelos índios Machupe
que o chamavam de Huélem, uma expressão de dor, sofrimento.
Sentimentos que estavam presentes na mente de Carlos. Já estava
imperceptível em meio às pessoas no serro quando ligou:
- Buongiorno, padrinho.
- Buongiorno, Carlos. Tudo bem?
- Sim, padrinho. A linha é segura?
- Sim, podemos falar sem problemas. Deu tudo certo com o
Arcebispo? Conseguiu as informações de que precisamos?
- Infelizmente não. Usei todas as formas de pressão, mas foi
em vão. Mesmo com muita dor, ele não baixou a guarda.
Do outro lado da linha, um silêncio de clara reprovação tomou
a conversa. Carlos já conhecia o padrinho há muito tempo para
saber quando algo o desagradava. Por isso, retornou a conversa
como uma forma de reduzir o desgaste.
- Mas temos uma pista, padrinho. Consegui identificar uma
mensagem do Arcebispo para um número de Buenos Aires com
um código secreto.
- Que espécie de mensagem?

- “S. L. Ela morreu! Está na hora de contarmos a verdade.
Abraço R.P.” - Com certeza falava da morte de Vitória.
- Passe o número que vou tentar localizar a origem com um
de nossos contatos. Quem sabe descobrimos algo.
- Perfeito, Padrinho. Embarco imediatamente para o Brasil,
assim finalizo a entrega eliminando o segundo alvo.
- Ainda não entendo, como Vitória foi morrer? – Indagou o
padrinho.
- Padrinho, eu estive pessoalmente no hospital e vi que ela
estava bem. Estava fora de risco e não tinha indício algum de que
sua vida corria perigo.
- Enviamos você para Santiago com a certeza de que ela
estava viva. As coisas mudaram de rumo e precisamos que volte
ao Brasil e elimine todas as provas que podem nos comprometer.
Confio em você. Ciao!
Após desligar o telefone, Carlos sentiu o peso de ter
decepcionado o padrinho. Algo difícil para quem deve tudo ao
homem que lhe criou como um filho. Quando seu pai foi morto
em uma disputa por pontos de venda de drogas em Nápoles, a
mãe de Carlos tomou a decisão mais difícil de sua vida, pediu
ajuda ao padrinho e deixou o próprio filho sob sua guarda, com
um único pedido: ‘agora ele é a sua família, nunca desonre o
seu nome’. Essa foi a última vez em que Carlos viu a mãe. Ela
desapareceu no mundo sem deixar vestígios, com a certeza de
que o filho estava seguro em boas mãos. Com apenas 10 anos,
Carlos deixou a cidade natal para viver com a família do padrinho
em Roma.
As poucas lembranças que tinha dessa época em que vivia
com os pais se resumem aos passeios de funicular, as brincadeiras
com os amigos e a adoração ao time do Nápoles e seu maior
ídolo: Maradona. Nápoles escondia no seu subsolo uma outra
-22-
André Trindade
cidade, ligando toda a região com túneis do século III a.C. Muitos
deles foram usados como refúgios durante os bombardeios da
segunda grande guerra, mas na lembrança de Carlos eram apenas
esconderijos para brincar com os amigos. Uma cidade linda e
perigosa! Construída na base do Monte Vesúvio que, séculos
depois de destruir a cidade de Pompeia, ainda continuava ativo,
trazia na sua essência a beleza e o medo arraigados. Dotada de
uma cultura própria do Sul, Nápoles possuiu até hoje um ar
diferencial das demais cidades italianas.
A mãe de Carlos nunca comentou sobre os “negócios” do
pai, muito menos sobre sua morte. Por mais que fosse apenas
uma criança, ela sabia que sua vida corria perigo. O assassino do
pai de Carlos com certeza mataria seu filho para evitar a vendetta.
Era previsível que o filho procurasse vingar a morte do pai e,
por isso, o assassino teria que eliminar Carlos enquanto ainda
era uma criança, para evitar a retaliação. O sangue da família
era sagrado. A única forma de garantir a segurança de Carlos
seria deixá-lo sob a proteção do padrinho. Como ele pertencia à
cúpula da Aíma - a máfia que dominava Roma e toda a região do
Lazio – o assassino não ousaria atacar e criar uma guerra entre
as famílias.
O padrinho era uma pessoa respeitada por todos. Vinha de
uma geração de mafiosos que construiu seu nome com sangue,
poder e dinheiro. Apesar de ser extremamente religioso, sabia
usar da força e da articulação política para atingir seus objetivos.
Tinha olhos e ouvidos em cada pedaço de Roma. Do bairro mais
pobre ao parlamento italiano, todos conheciam o padrinho. A
articulação em tratar com as pessoas, atender pedidos e cobrar
favores era uma arte que o padrinho dominava como ninguém.
Ensinou para Carlos que muito de seu trabalho era apenas
coordenar interesses e saber cobrar os favores na hora certa. A
máfia tinha poder, mas só usava quando fosse necessário. Assim
passava ileso às críticas e conseguia atingir seus objetivos sem
agredir ou criar animosidades. Sempre falava para Carlos que
-23-
era respeitado por todos, porque adaptou a frase de Thomas

Jefferson para a sua condição: “o preço do poder é a eterna
vigilância”. Honrar o seu nome era uma obrigação.
Carlos lembrou que um dia brigou com colegas de escola e
chegou em casa com o olho roxo. Seu padrinho perguntou quem
tinha feito isso e ele contou que foram dois colegas de escola,
mas estava tudo bem. Não era para o padrinho ficar preocupado.
O padrinho insistiu e pediu os nomes. Depois que Carlos contou,
o padrinho saiu sem falar nada. No dia seguinte, os dois meninos
vieram acompanhados com os pais para pedir desculpas. Algo
estranho que Carlos só pôde entender mais tarde.
Quando fez 18 anos, o padrinho chamou Carlos para uma
séria conversa. Havia descoberto que ele pegara uma arma da
sua coleção e tinha comprado um bilhete para Nápoles com a
intenção de vingar o pai. A dor da perda familiar seria lavada
com sangue. Essa era a tradição que deixaria o coração de Carlos
em paz. Matar o homem que destruiu sua família e o privara do
convívio dos pais era sua missão de vida. Mas a experiência do
padrinho antecipou os seus passos como uma jogada de xadrez.
- Carlos, preciso fazer uma pergunta.
- Sim, padrinho. Pode falar.
- Como você pretende matar o assassino do seu pai?
Carlos ficou perplexo com a pergunta. Não tinha contado
para ninguém.
- Como o senhor sabe disso?
- Eu tenho meus informantes. Ninguém faz nada em Roma
sem que eu saiba, principalmente aqueles mais próximos.
- Desculpe, padrinho. – Respondeu Carlos, baixando a cabeça.
- Você lembra quando aqueles meninos pediram desculpa
depois de terem brigado com você na escola?
-24-
André Trindade
- Sim. Até hoje me respeitam e nunca mais tive problemas

com outros colegas. - Respondeu Carlos.
- Naquele dia eu saí de casa e falei com o Capo da Aíma.
Contei o que tinha acontecido e relatei minha preocupação. Não
queria que se tornasse um “problema pessoal.” Entre nós, os
problemas devem ser resolvidos para não se tornarem pessoais.
Se isso acontece, temos que eliminar as pessoas que causam o
problema, porque elas são o problema. Os pais daqueles meninos
sabiam disso e tudo se resolveu naturalmente.
- Sim. Como mágica! Sorriu Carlos.
- Não foi mágica – falou o padrinho, enquanto colocava a
sua mão direita no ombro de Carlos. A Aíma, assim como as
demais máfias italianas, tem um código próprio de defesa de seus
membros. Uma história que remonta à Sicília do século XII e
está inserida na nossa cultura.
- E como ela começou?
- A máfia nasceu da união de vários camponeses que precisavam
de proteção contra os senhores feudais que se utilizavam de atos
criminosos para tomar suas terras. Com o passar dos anos, outras
pessoas se uniram ao grupo que se fortaleceu e passou a ditar as
regras. Foi a necessidade de proteção das pessoas vulneráveis que
fez surgir a máfia.
- A união dos fracos os tornou fortes. - Falou Carlos.
- Isso mesmo! Depois de certo tempo ditando as regras,
algumas máfias desvirtuaram e começaram a impor sua força,
obrigando os demais a pagarem pela proteção. Uma “proteção
forçada” que penalizava aqueles que não pagavam. O que era
pra ser uma forma de proteção, virou extorsão. E, com isso,
outras formas ilícitas de atuar acabaram por criminalizar a máfia
enquanto instituição. A nossa principal ferramenta é algo que
vem do próprio homem: o poder. Temos o poder de fazer as
coisas acontecerem e usamos o poder para nossa autodefesa.
-25-
Ajudamos aqueles que precisam, sabendo que ficam com uma

dívida conosco. Essa dívida sempre é cobrada, e quem desrespeita
paga o preço. A grande diferença com relação às outras famílias
da máfia é que a nossa organização manteve as origens e só atua
como meio de proteção dos nossos irmãos. O nome Aíma vem
do grego: sangue. E significa que daremos o nosso sangue para
defender você. Agora, basta saber se você quer participar da
nossa família?
- Sim! Esse é o meu destino.
Carlos sabia que era um caminho sem volta. Uma escolha
que mudaria sua vida para sempre. Abriu mão de uma parte da
liberdade para ter a garantia de uma vida melhor e segura no
seio da família mafiosa. Muitas portas se abririam, mas outras
poderiam se fechar para sempre. Com um código de honra
próprio, a Aíma nunca deixou seus integrantes sem amparo,
mas punia com severidade seus traidores. Aquele que ousasse
prejudicar o grupo deveria ser erradicado, assim como a sangria
que renova o sangue. Como o padrinho sempre lhe passou
confiança, não hesitou em aceitar o convite. Assim nasceu mais
um filho da Aíma. O Sangue mafioso se renovava outra vez.
- Muito bem Carlos. Esse é um grande passo na sua vida. E
para demonstrar que defendemos nosso sangue, ajudarei com
a questão do seu pai. Com certeza você seria facilmente morto
em Nápoles. Aprenda que planejamento e conhecimento são
essenciais para qualquer atividade. Uma cabeça treinada não erra.
A partir daquele dia, Carlos passou a ser treinado pelos homens
da Aíma e aprendeu tudo sobre a arte de matar. Utilização de
armas, explosivos e até venenos passaram a fazer parte do seu
currículo. Cada situação era analisada com calma para evitar
surpresas. O alvo tinha que ser estudado com antecedência, para
se ter a melhor oportunidade, sem o risco de ser interceptado.
Carlos aprendeu que a melhor maneira de eliminar um alvo
seria evitar que soubessem o que acontecera ou ter um possível
-26-
André Trindade
responsável em mente. Assim, as atenções seriam desviadas e a

morte passava despercebida.
A ideia inicial de atirar com uma pistola na cabeça do
assassino do seu pai foi substituída por um rifle de precisão com
silenciador. A morte dele com certeza seria atribuída a algum
cliente insatisfeito ou que devia uma elevada quantia ao traficante.
O assassino estava sentado no mesmo ponto de venda de drogas
em que seu pai fora morto anos atrás. Era um senhor que usava
um chapéu panamá e estava acompanhado por jovem de origem
africana que fazia o trabalho de entrega das drogas. Uma estratégia
muito utilizada para evitar a prisão do traficante e atribuir a culpa
ao extracomunitário. Uma pessoa sempre pronta para assumir
a responsabilidade e, ao final da condenação, ser extraditada.
A venda de drogas era organizada pela máfia local. Um ataque
de outra família seria guerra declarada, por isso a certeza do
padrinho de que a ânsia de Carlos deveria ser controlada.
Carlos escolheu o local com antecedência e pôde preparar
toda a estratégia. Do quarto em que estava, tinha plena visão
do ponto em que o traficante ficava. Era impossível ver Carlos
com seu rifle atrás da cortina. As roupas espalhadas nos varais
das estreitas ruas de Nápoles decoravam as paredes do bairro
pobre. Como de costume, perto das 11 horas, o traficante sentou
à frente do pequeno comércio utilizado como fachada para a
venda de drogas. Carlos esperou acender o cigarro para disparar.
Um tiro certeiro, limpo e silencioso. Assim foi a primeira morte
da sua lista. Seu pai foi honrado e o sangue do traficante embebia
o piso que, anos atrás, absorvera o sangue do seu pai.
Quase vinte anos depois, e com um polegar no bolso, Carlos
ainda mantinha o respeito e a confiança dedicados ao padrinho.
Tornou-se seu homem de confiança e referência da Aíma em
se tratando de eliminar “problemas” que prejudicavam a família.
Era um profissional na arte de matar que atendia todos os casos
da família com eficiência e discrição. Seu próximo destino: Brasil.
-27-
IV
JANELA DA ALMA
Com cabelos escuros e brilhantes que desciam lisos como uma

cortina sobre os ombros e um corpo esguio levemente torneado,
sua presença se destacava em qualquer lugar. A pele branca e o
rosto rosado ressaltavam a beleza dos olhos azuis. Vestia uma
calça de couro e um collant pretos que valorizavam as delicadas,
mas insinuantes, curvas protegidas sobre a jaqueta da mesma cor.
Uma roupa diferente das demais pessoas que estavam no velório.
Cada detalhe da jovem mulher fora esculpido na mente de Lucca
nos poucos segundos em que seus olhos conseguiram percorrer.
Será que é alguma conhecida? Filha de alguma amiga da minha
mãe? Pensou Lucca. Como fazia quase 20 anos que havia saído
da pequena cidade para estudar, perdeu contato com a maioria
das pessoas da sua infância. Mas a forma como estava vestida em
nada lembrava as pessoas do local. Com certeza era uma peça de
outro tabuleiro.
- Lucca, vem aqui. – Chamou a tia Rosa junto ao caixão.
- Sim tia, estou indo.
Tia Rosa segurou Lucca com o braço esquerdo e colocou a
mão direita sobre o corpo gelado de Vitória. Alguns segundos
depois, ela retirou o Rosário que estava entre as mãos da irmã e
entregou para Lucca:
- Este rosário era da sua mãe, ela ganhou da sua avó Carmem.
Recebi uma missão de Vitória na semana passada. Quando foi
André Trindade
internada, ela me pediu, na verdade ordenou, que eu entregasse

duas coisas para você, caso o pior acontecesse. Além do rosário,
ela também deixou uma foto que está na minha casa.
- Será que ela sabia que iria morrer?
- Achei muito estranho o pedido, pois tinha certeza de que
ela ficaria bem. O quadro de saúde dela era estável e as colegas
que trabalharam com ela no hospital por anos sempre estavam
atentas. Os médicos não tinham receio sobre a saúde dela. Foi
uma surpresa quando ligaram do hospital, dizendo que tinha
falecido. Falei com ela algumas horas antes e notei que estava
lúcida e transmitindo muita paz de espírito.
Lucca olhou o rosário com muita atenção. Era uma peça de
madeira com uma cruz entalhada nos mínimos detalhes. Sobre
a cruz ressaltava a imagem de Cristo crucificado em prata. Uma
obra artesanal que passou por gerações e, apesar de ser antiga,
mantinha-se em ótima conservação. Imediatamente lembrou da
mão da mãe rezando no dia do velório da vó, com o mesmo
rosário. Uma imagem que se repetia hoje e fazia o coração de
Lucca fiar ainda mais pesado.
- Lucca, este Rosário era muito importante para a sua mãe. Ela
sempre dizia que era o alicerce da nossa família. Você conhece o
seu significado?
- Não, tia. Sei apenas que algumas pessoas chamam de Terço.
- Rosário significa “Coroa de Rosas”. Segundo a tradição,
cada vez que se reza uma Ave-Maria, a Virgem recebe uma rosa
e, quando completa um rosário, uma coroa de rosas. O Rosário é
dividido em três partes iguais, chamadas mistérios, com 50 Ave-
Marias cada. Representam a vida, a paixão e a glória de Jesus e
Maria. Por corresponder à terça parte, cada mistério recebe o
nome de Terço. Guarde-o junto ao seu coração e sua mãe sempre
estará próxima.
-29-
O Rosário que recebeu da mãe era um lindo artefato. No

verso da cruz um detalhe chamou a atenção de Lucca, foram
entalhadas as letras J e C. Uma letra em cada lado, exatamente
atrás das mãos de Cristo. Com certeza uma referência a Jesus
Cristo. As letras marcavam o lugar em que os pregos prendiam
as mãos de Cristo.
Rosa abraçou o sobrinho novamente. Por cima do ombro
da tia, Lucca olhou para a sala e notou que a mulher havia
desaparecido. Observou atentamente cada espaço, mas perdeu de
vista a bela jovem que chamou a sua atenção. Seus olhos ficaram
involuntariamente inquietos. Entre um cumprimento e um abraço
tentava em vão encontrá-la. Ela chegou e saiu rapidamente,
deixando apenas a imagem que Lucca nunca esqueceria.
As horas passaram e a movimentação do velório aumentou.
Muitas pessoas aproveitavam para chegar mais tarde, próximo
da hora do sepultamento. É costume nas cidades pequenas
anunciarem o falecimento e os horários do velório e do enterro
pela campana da igreja. O engraçado é que quando o anúncio
fora feito, toda a cidade já sabia do falecimento. As informações
voavam.
O padre entrou na igreja e cumprimentou todas as pessoas até
chegar na tia Rosa. Falaram por um instante e Lucca percebeu
que algo estava errado.
- O que houve, tia? Tudo bem?
- Claro Lucca. Não é nada, vou em casa e já volto.
Lucca não acreditou na desculpa e foi falar com o padre.
- Boa tarde, padre. Tudo bem?
- Meus sentimentos, meu filho. A sua mãe era um exemplo
para a nossa comunidade e uma perda lastimável para nossa
Igreja. Vamos apenas esperar a sua tia Rosa e já iniciaremos a
missa.
-30-
André Trindade
- Não entendi o que ela foi fazer em casa?

- Na verdade é uma situação delicada. A sua mãe sempre foi
muito ativa em nossa Igreja, mas estava com o dízimo atrasado
no último ano. A dona Rosa ficou de acertar.
- Quer dizer que o senhor só vai rezar se pagarmos o dízimo
atrasado? – Falou Lucca com um tom de poucos amigos.
- Não! - Respondeu o padre tentando amenizar a situação. – É
que temos alguns custos e precisamos da colaboração de todos
os fiéis. A Igreja é uma instituição e precisa do apoio de todos.
Sem isso ela não se mantém.
- Isso ajuda? – Falou Lucca entregando um maço com
algumas notas.
- Sim, meu filho. É até mais do que precisa.
- Pode ficar com o resto, padre. Fica como uma antecipação,
caso eu precise de alguma oração.
O padre ficou constrangido, mas não devolveu o dinheiro. A
cerimônia fúnebre poderia começar. Lucca escutou as palavras
de amor ao próximo, devoção e sentimento cristão com raiva
pelo ocorrido. Um discurso que não casava com a realidade.
As instituições que pregavam o desapego aos bens materiais
se tornaram materialistas. Havia um abismo entre o que Cristo
pregava e a prática da Igreja que usa o seu nome. A essência
cristã estava sendo alterada e a Igreja perdia adeptos a cada dia,
por fugir do seu cerne. Lucca nunca foi um exemplo de fiel. Sua
participação religiosa sempre foi mais social do que espiritual.
Ajudava como coroinha quando jovem, mas não conseguia ver o
sentido das suas ações. Era mais uma forma de atender o pedido
da mãe do que um desejo próprio. Considerava-se um católico
pouco praticante por opção e falta de estímulo. A Igreja estava
fora de conexão com o mundo atual e perdia fiéis para outras
instituições. Lucca era um desses fiéis com pouca devoção.
-31-
Lucca acompanhou toda a missa de corpo presente ao lado

da tia Rosa. A hora do fechamento do caixão cortou seu coração.
Tentou segurar, mas as lágrimas explodiram em seus olhos e
molharam a face de que se despedia. Alguns amigos tentaram
consolar, mas não existem palavras nessa hora. Um abraço forte
e sincero funciona muito mais.
Com a ajuda de alguns amigos e familiares colocaram o caixão
na traseira do carro funerário. Tia Rosa foi junto com o motorista,
no banco do caroneiro. Lucca preferiu acompanhar o cortejo
fúnebre a pé. Cada passo no calçamento de pedra trazia uma
lembrança da infância, principalmente dos dias em que brincava
com os amigos e a mãe tinha que gritar da janela chamando para
entrar em casa. Era a rotina das cidades pequenas nos anos da
década de 80. Uma vida simples, mas sem as preocupações com
segurança dos dias atuais.
O cemitério ficava próximo e, como de costume, todos
acompanharam caminhando e rezando. O carro da funerária
entrou pelo corredor central do cemitério até chegar próximo
do jazigo da família. Alguns amigos ajudaram a carregar o caixão
que fora posicionado na gaveta ao lado da avó Carmem, mãe de
Vitória. Lucca abriu a pequena janela que ficava sobre o rosto
da mãe e deu um beijo no vidro. Era a última imagem que teria
dela. O caixão foi empurrado e rapidamente fechado com uma
lápide de mármore. Nesse momento o padre proferiu algumas
palavras e perguntou se algum familiar gostaria de se manifestar,
mas ninguém tinha condições de falar. Aos poucos as pessoas
se despediram, ficando apenas os familiares e amigos mais
próximos. Por fim, Lucca deu adeus à mãe e foi para casa tentar
descansar. Seu corpo e alma estavam esgotados. Cada passo que
dava na rua de paralelepípedos fazia os joelhos cansados por
ficar um dia inteiro em pé doeram ainda mais.
- Quer uma carona? É apertado, mas cabe mais um – Perguntou
tia Rosa dentro do carro mortuário.
-32-
André Trindade
- Não tia, vou caminhando. Prefiro andar para espairecer. –

Respondeu Lucca.
Voltou andando e vendo ao fundo o pôr do sol sobre os
telhados da cidade. Ao chegar em casa, tomou um banho e um
calmante. Seria a única forma de conseguir dormir depois do
triste dia. O remédio fez efeito quase imediato e Lucca apagou.
Mal sabia ele que a noite seria longa.
-33-
V
OS OLHOS DA ÁGUIA
A distância era razoável para observação. Fran sabia que,

se ficasse muito próxima da casa de Lucca, poderia chamar a
atenção. Escolheu o canto da praça, pois, além de permitir uma
visão panorâmica do local, era escuro o suficiente para encobrir
sua vigilância. Quando recebeu o chamado falando que não
podia perder Lucca de vista um segundo, teve a certeza de que
algo muito sério estava acontecendo. Apesar de ter acompanhado
Lucca durante todo o velório e sepultamento, passou quase
imperceptível. Não podia ser notada para evitar que sua missão
se frustrasse.
Embora estivesse em uma escura praça às 22 horas de uma
sexta-feira 13, Fran não tinha medo e muito menos superstição.
Muitas pessoas têm receio da data macabra sem conhecer seu
real significado. Ela sabia que esse dia ficara maculado, porque
na sexta-feira do dia 13 de outubro de 1307 o Papa Clemente
V, a pedido do Rei Felipe IV da França, declarou a Ordem dos
Templários ilegal, acusando seus membros de terem cometido
heresia. Com esse argumento, o rei ordenou a prisão dos
cavaleiros templários, sendo torturados e executados em todo
o território da França. Uma data que levou o temor e a barbárie
para a Europa ao ponto desse medo persistir por séculos como
a noite sombria. A Ordem fora criada em 1119 para reunir 8
cavaleiros que tinham por objetivo proteger os peregrinos que
iam para Jerusalém rezar no berço do cristianismo. Assim nasceu
André Trindade
a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de

Salomão, conhecidos como Cavaleiros Templários.
A ordem cresceu e tinha muitos recursos provenientes das
doações que recebia. A traição à Igreja foi um pretexto para
acabar com a Ordem dos Templários, sua fortuna e poder. Como
o Rei Felipe IV tinha muitas dívidas com os templários, usou
da acusação e do apoio do Papa para acabar com seus credores.
O dinheiro e o poder tinham, mais uma vez, desvirtuado os
caminhos da Igreja e o nome de Cristo foi usado para justificar
as injustas mortes. Muitas das vidas ceifadas na fatídica noite
de sexta-feira eram de cavaleiros que fizeram votos de pobreza,
castidade e devoção à Igreja. Defenderam a Igreja nas cruzadas e
acabaram morrendo por ordem desta.
Mais do que azar, a sexta-feira 13 é um símbolo de que a
maldade não está na data, mas no coração do homem. A tortura
e a morte dos templários repercutem na história por mais de 800
anos como uma marca que deve ser lembrada pelo seu importante
papel e devoção inabalável aos seus princípios. Morreram por
uma causa que até hoje move montanhas: a devoção a Cristo e
aos seus ensinamentos.
Fran sabia que, apesar de não ser cômodo o banco de madeira
escolhido para monitorar Lucca naquela sexta-feira, era muito
melhor do que as acomodações usadas para torturar aqueles
que criaram a fama deste dia. Não tinha nada a reclamar. Não se
escutava vivalma nas proximidades da praça, e as luzes apagadas
da casa indicavam que Lucca estava dormindo.
Era quase 1 hora, quando um carro rompeu o silêncio da
cidade, seguindo pela rua lateral no sentido do cemitério. Como
passou longe da casa de Lucca não chamou a atenção de Fran
que novamente tentou se acomodar no banco resmungando:
- Nunca mais venho vigiar alguém de moto. Que falta faz o
banco de um carro agora.
-35-
Perto das 3 horas, o carro da polícia passou em disparada

com a sirene ligada. Seus olhos azuis olhavam toda a cena com
espanto. A movimentação aumentou até que uma senhora
entrou correndo na casa de Lucca. Poucos minutos depois, os
dois saíram em disparada.
- Ops! Aconteceu algo.
Subiu na moto e seguiu os dois a uma distância que não
percebessem, até que entraram no cemitério. Era hora de agir.
-36-
VI
DO PÓ VIESTE, AO PÓ VOLTARÁS
- Lucca! Acorda! Lucca! – Gritava desesperadamente a tia

Rosa, tentando acordar Lucca.
Lucca finalmente acordou, mas ainda estava atordoado com o
efeito do calmante que tomou para dormir.
- Oi tia, o que aconteceu? São 03 horas da madrugada.
- Aconteceu uma coisa terrível. Queimaram o corpo da sua
mãe.
- Como?! – Respondeu Lucca incrédulo.
- Isso mesmo. A polícia ligou lá em casa, falando que o vigia
do cemitério viu o fogo no jazigo da sua mãe.
- Vamos lá! – Respondeu Lucca ainda atordoado.
Lucca vestiu a roupa rapidamente e saiu correndo junto
com a tia Rosa. Em poucos minutos, chegaram ao cemitério. A
visão era aterrorizante. O jazigo da família estava em chamas. O
fogo atingiu mais de 4 metros de altura e começou a derrubar a
estrutura que não suportou as altas temperaturas. Lucca gritou
para as pessoas que cercavam o local pegarem a mangueira para
apagar o fogo. O segurança do cemitério respondeu apavorado:
- Não dá. Quebraram o cano. Não tem como trazer água aqui.
- Como? Mais durante a tarde usaram uma mangueira para
fazer o cimento do jazigo.
- Sim. Mas a mangueira sumiu e o cano foi quebrado. Aposto

que foi o mesmo louco que ateou fogo.
- Você viu quem fez isso?
- Encontrei um galão com restos de gasolina na saída do
cemitério, mas não vi quem deixou.
A notícia se espalhou pela cidade mais rápido que as
labaredas. Aos poucos os restos mortais de Vitória viravam pó
e os curiosos se aglomeravam no entorno. A foto de Vitória na
lápide estava protegida por um fino pedaço de vidro que aos
poucos esquentou e fez sua imagem amarelar antes de queimar.
Quando conseguiram apagar o fogo com os extintores, quase
nada sobrou do jazigo. E uma dezena de pessoas circulava pelo
local tentando entender o que tinha acontecido. A polícia colheu
o depoimento do segurança e das primeiras pessoas que viram o
incêndio, mas era tudo em vão. Ninguém viu o incendiário.
O dia estava quase amanhecendo e já era possível ver a
claridade que precede a aurora. Lucca estava exausto e ainda
sofria os efeitos dos medicamentos. Sem entender nada e com a
adrenalina baixando, seu corpo parecia pesado como uma pedra
puxada pela gravidade. Trazia no rosto os restos mortais da mãe
em forma de fuligem e resolveu voltar para casa. Seu andar era
algo desolador, praticamente se arrastava no cemitério como um
zumbi.
Lucca estava caminhando pelas passagens estreitas entre os
túmulos quando percebeu que alguém o estava seguindo. Por
um momento ficou intrigado, mas desconsiderou, pois a pessoa
que em menos de 24 horas perdeu a mãe e viu o corpo dela ser
cremado de forma criminosa não deve se assustar com alguém
caminhando no cemitério às 05 horas da manhã.
Quando a velocidade dos passos aumentou, Lucca resolveu
virar-se para saber o que estava acontecendo. Como ainda estava
muito escuro, conseguiu ver apenas um vulto de capuz vindo
em sua direção. Antes de perguntar quem era, uma mão puxou
-38-
André Trindade
seu braço e tomou sua frente com uma arma atirando na direção
do vulto que saiu correndo entre os jazigos. Lucca pôde ver
uma faca na mão da pessoa que o seguia. Com o susto do tiro,
Lucca caiu entre os túmulos e raspou a perna no cimento áspero
do piso. Quem atirou no vulto e salvou sua vida foi a mulher
desconhecida que chamou sua atenção no velório. Ela olhou para
Lucca, estendeu a mão e falou:
- Lucca, meu nome é Francesca. Venha comigo, se quiser
viver.
Ainda atordoado com a cena e escutando os gritos de
desespero das pessoas com os tiros no cemitério, Lucca olhou o
azul piscina dos olhos de Francesca e pode ler a verdade nas suas
palavras. Ela tinha acabado de salvar a sua vida e, apesar de ser
uma estranha, transmitiu segurança. Lucca pegou em sua mão e
saíram correndo para o portão do cemitério.
- Onde está o seu carro? - Perguntou Lucca.
- Está ali! - Apontou Francesca para o outro lado da deserta
rua. – Esse é o meu “carro”.
Lucca viu apenas uma moto. Ao se aproximar descobriu que
eram uma HONDA CBX 750F, a famosa 7 galo, um clássico
das décadas de 80 e 90. Francesca guardou a arma e subiu
rapidamente na moto. Olhou para Lucca e falou rispidamente:
- Tá esperando um convite formal? Sobe rápido!
Lucca sentou no banco e quase caiu com a arrancada. Segurou
com força na cintura de Francesca que disparou pela cidade em
sentido à rodovia. Apenas Francesca usava capacete. Quando saiu
de casa para vigiar Lucca, não imaginou que teria um caroneiro.
Os dois estavam em alta velocidade, cortando o vento enquanto
o sol nascia no horizonte. Lucca segurava firme com as duas
mãos no corpo de Francesca. Sua mão direita esquivava da arma
que estava na cintura e quase roçava em seu seio. Podia sentir seu
abdômen definido. Era uma mulher alta e forte, apesar de esguia.
-39-
Um corpo de modelo com toques de sensualidade, armada e

pilotando uma moto a quase 200 km por hora.
O vento fazia Lucca fechar os olhos e seus sentidos estavam
presos ao contato com Francesca. Ela nada falou durante a
rápida viagem. Depois de 30 minutos rodando, saíram da rodovia
para uma estrada de terra. Lucca continuava agarrado enquanto
Francesca reduzia a velocidade para não derrapar nas pedras
soltas. Chegaram em um portão de metal com as seguintes
iniciais MSF.
- Abra o portão. - Falou Francesca.
Sem falar nada, Lucca desceu da moto com o corpo todo
dolorido e abriu o portão, enquanto Francesca entrou com a
moto na propriedade. Depois de fechar o portão, Lucca subiu na
moto e percorreram mais alguns minutos por uma estrada com
uma plantação de trigo que se estendia até perder de vista. A
beleza dos campos de trigo em um espaço praticamente inabitado
trazia um pouco de paz e ajudava a reduzir a adrenalina que ainda
pulsava nas veias de Lucca.
- Chegamos. – Falou Francesca ao parar em frente à uma
construção antiga feita de tijolos vermelhos. – Este é o Mosteiro
de São Francisco, por isso das iniciais MSF no portão. Aqui
estaremos seguros.
A construção rústica parecia um forte da época colonial.
Uma grande porta se destacava junto às paredes sem nenhuma
janela externa. Lucca ficou na dúvida se essas paredes eram para
protegê-lo ou prendê-lo?
- Como assim estaremos seguros, Francesca? Ou você me
explica tudo ou volto pra casa e chamo a polícia. Eu não conheço
você e me traz para um lugar que eu nem imaginava que existia.
Isso é um sequestro?
-40-
André Trindade
Francesca franziu a testa e se aproximou de Lucca. Ficou

alguns segundos em silêncio só olhando. Sua expressão era muito
forte.
- Em primeiro lugar você tem que me agradecer por salvar a
sua vida. Em segundo lugar, se você voltar, estará morto em meia
hora. Se quiser voltar, pode ir. Não vou impedir. Mas se quiser
viver, vai ter que seguir as minhas ordens. Entendeu?
Impossível dizer não. Ela tinha razão e uma pistola Glock.
- E mais uma coisa, pode me chamar de Fran.
- OK, entendi.
- Agora nós vamos entrar no Mosteiro e você não pode falar
nada. Capicci?
Lucca assentiu com a cabeça. Realmente se Francesca quisesse
matá-lo já teria feito.
Fran bateu três vezes na pesada porta de madeira da entrada
lateral do mosteiro. Depois de alguns segundos, um pequeno
visor se abriu por onde um rosto observou os dois sem nada
falar. O visor se fechou e a porta foi aberta. Fran entrou e fez
sinal para Lucca entrar. Ao passar pela porta, encontram uma
senhora vestida toda de preto apenas com o rosto visível. Lucca
estendeu a mão para cumprimentá-la.
- Bom dia. É um prazer, me chamo Lucca Reis.
A mulher olhou Lucca sem mudar a feição fechada. Fran
demonstrou com o olhar a reprovação pela gafe, enquanto Lucca
ficou sem entender nada. A mulher fez sinal para Fran seguir em
frente e deixou os dois.
- Que parte do não pode falar nada você não entendeu,
Lucca? Essas mulheres fizeram voto de silêncio. Tem irmãs que
estão a mais de 40 anos seguindo esse voto. Não seria agora que
quebrariam o voto só para se apresentar pra você.
- Nem um oi elas podem dar?
-41-
- O voto permite as orações como única forma de romper o

silêncio. Além disso, elas só podem sair em caso de doença.
- Que loucura, elas abrem mão de toda a liberdade.
- Liberdade? – Respondeu Fran – Aqui elas estão livres de
pintar as unhas, usar salto alto, cuidar do cabelo, fazer academia,
trabalhar o dia inteiro, além de cuidar dos filhos, marido e da
casa. Quem será que tem mais liberdade?
- Elas estão praticamente fora da sociedade.
- O voto que fizeram simplifica a vida e elas não se prendem
às exigências sociais. Quem sabe um dia você entenderá o que
significa a real liberdade. Elas podem abdicar de seus votos a
qualquer momento, mas já idealizaram um mundo em que suas
expectativas estão num plano que não contempla a preocupação
sobre que calça comprar para ficar na moda.
- Até porque esse uniforme que usam não é dos mais
bonitinhos – Sorriu Lucca até ver o olhar de reprovação de Fran.
- Chegamos, este é o seu quarto. Tome um banho e descanse,
enquanto vou telefonar para tentar descobrir algo. Lucca entrou
no pequeno quarto com uma janela alta que permitia ver apenas
a luz do sol e uma cama de solteiro com uma bíblia. As paredes
rústicas lembravam uma cela. No canto direito do quarto, um
cano sem chuveiro anunciava um banho gelado pela frente.
Cada gota que caía no corpo de Lucca parecia uma navalha
que cortava sua carne. A privação era total, mas o frio ajudou a
relaxar depois que deitou com o grosso cobertor feito com lã de
ovelha. O cheiro do cobertor fez Lucca lembrar mais uma vez da
sua infância. Deitou na cama e estava quase dormindo, quando
levantou e conferiu se a porta estava trancada. Quando viu que
não estava preso, relaxou e conseguiu dormir.
-42-
VII
O ENVIADO
Caminhar entre os túmulos do Cemitério da Recoleta, em

Buenos Aires, era uma forma de meditar. Um hábito que Davi
aprendeu com seu amigo, Dom Geraldo. No início achou que
era loucura, mas o silêncio e a paz da necrópole propiciavam
a serenidade necessária para se pensar com clareza. Ao circular
entre os túmulos e ver celebridades e pessoas comuns reunidas
no descanso eterno, pensou no óbvio: no fim todos somos iguais.
Cada lápide contava uma história de vida. Da tradicional
esposa que serviu seu marido e família no início do século XIX
aos presidentes que governaram a Argentina, todos tiveram uma
passagem que marcou a vida de seus familiares ou de uma nação
inteira. A morte não encerra o ciclo, pois parte das pessoas fica no
seu legado. Não apenas o legado financeiro, esse é o primeiro a se
dissolver, mas principalmente nas ações e lembranças deixadas.
Já que uma pessoa não morre enquanto seu nome é pronunciado,
as marcas, boas ou ruins, são a nossa única herança. Seja como
um grande líder espiritual ou um genocida, o que fica, no final,
são as lembranças de seus atos na história. Se refletirmos, a vida
é uma corrida cuja premiação para os que chegam no final é
desconhecida. Como marcou Antonio Machado com sua poesia,
“Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.” O segredo
da vida é pensar no seu fim, assim valorizamos o caminho e
deixamos de nos preocupar com detalhes e dissabores que são o
tempero dessa nossa rápida passagem. Muitas dessas lembranças
podem ser vistas na beleza dos túmulos que remontam ao auge

da Argentina e a seu crescimento econômico.
Davi parou em frente ao túmulo de Lilian Crociaci de Szaszak,
uma jovem de 26 anos que morreu em uma avalanche na
Áustria, em 1970. A beleza do jazigo em estilo gótico contrasta
com a tragédia que lhe deu origem. A imagem da jovem com
seu cachorro chama a atenção pela riqueza de detalhes. Dom
Geraldo ficava sentado observando aquele túmulo por horas.
Um dia Davi chamou sua atenção pelo horário.
- Dom Geraldo, não seria melhor retornarmos. Logo vai
anoitecer.
- Está com medo do escuro? – Brincou o Arcebispo.
- Digamos que um cemitério à noite não é um dos meus
lugares preferidos.
- Não tenha medo dos mortos, meu filho. Preocupe-se com
os vivos. Eles é que você tem que temer.
Davi era o chefe da segurança de Dom Geraldo Klaus e
agora tinha a certeza de que suas palavras estavam mais do que
corretas. Por inúmeras vezes alertou que o Arcebispo era uma
pessoa visada e não deveria ficar exposto. Mas sempre escutava
a mesma resposta:
- Um pastor deve estar com o seu rebanho.
A notícia da violenta morte de Dom Geraldo fez Davi chorar
sentado no mesmo banco do cemitério utilizado pelo Arcebispo
para refletir. Criou um carinho pela postura paterna do Arcebispo
que virou seu conselheiro para todas as horas. Mais do que uma
relação profissional, via nele um amigo e guia espiritual. Sentiu-se
totalmente impotente em não poder ajudar ou, ao menos, estar
ao seu lado e poder evitar a barbárie ocorrida.
Davi sabia que as posições políticas e ideológicas do Arcebispo
sempre foram polêmicas. Recebia muito apoio por defender
-44-
André Trindade
uma Igreja voltada para o atendimento dos necessitados. Mas

como suas palavras ultrapassavam os muros da Igreja e mexiam
com interesses governamentais, também criou inimizades. A
Igreja para Dom Geraldo deveria ser acolhedora e agir como
Cristo, buscando a defesa dos mais fracos em uma sociedade
de crescentes desigualdades. Essa ideia dava calafrios em alguns
milionários. Quando falou para uma multidão de quase 10.000
fiéis que 1% da população global possui a mesma riqueza dos
outros 99%, a indignação foi geral. Para muitos, era uma verdade
mais que inconveniente.
Um determinado dia falaram sobre a crise de 2008, analisando
os fatos e os resultados. Davi tinha uma visão de mercado liberal e
adorava escutar os argumentos e contrapontos de Dom Geraldo.
- Mas uma economia liberal tem grandes vantagens no cenário
atual. - Comentou Davi.
- Depende. Lembre-se da frase de Thomas Hobbes: “o homem
é lobo do próprio homem”. A crise financeira de 2008 foi um
bom exemplo de que o Estado tem que controlar a economia.
O aumento do crédito imobiliário sem controle elevou o preço
dos imóveis a um patamar irreal. Os bancos lucraram muito,
oferecendo crédito para pessoas que não tinham condições. Os
EUA não controlaram essa oferta e as hipotecas se tornaram um
meio de negociação que fez as agências darem classificação de
baixo risco para os negócios, sem observar critérios reais. Essa
bolha estourou com a falência do Lehman Brothers em 15 de
setembro de 2008, deixando uma conta de 691 bilhões e 25 mil
funcionários demitidos.
- Lembro disso. Na sequência outros bancos também
quebraram.
- Deixar o mercado se autorregular é um risco muito grande
para uma modelo econômico mundial.
- Mas como é possível controlar esse tipo de movimentação?
O dinheiro flui muito rápido?
-45-
- Boa pergunta. Apesar de seguir regras internacionais, cada

país tem sua soberania. Por isso, os controles internos devem ser
muito bem estruturados para minimizar os efeitos internacionais.
Controlar 100% é praticamente impossível, pois a economia é
global.
Davi estudou na Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade de Buenos Aires antes de ingressar na segurança
do Arcebispado. Adorava debater as teses defendidas por
Dom Geraldo. Por vezes esquecia que o Arcebispo tinha pós-
doutorado em Sociologia e contrapunha suas explicações com
a maior simplicidade. A grande vantagem de debater com uma
pessoa esclarecida é que ela utiliza da lógica e não dos títulos para
defender seus argumentos. Davi falava que o Arcebispo possuía
a simplicidade de quem conhece e a necessidade de sempre estar
em contato com a população para conhecer a realidade dos fatos,
não das notícias.
A viagem de Dom Geraldo para Santiago deveria ser rápida.
Estava concluindo um estudo sobre a vida de São Francisco
e como seu exemplo poderia ajudar na defesa de políticas de
geração de renda para os mais pobres. Davi não sabia muito
sobre esse estudo, mas pelo tempo dedicado e pela euforia
demonstrada pelo Arcebispo deveria ser algo muito importante.
O octogenário parecia um universitário no primeiro dia de aula
quando comentava sobre seu trabalho. Segundo o Arcebispo, a
Igreja deveria defender a proposta de que os países adotassem
uma Renda Básica Universal para todos os seus nacionais. Assim,
a redistribuição de renda poderia assegurar a diminuição das
desigualdades sociais. Sua crítica principal era de que a busca
incessante pelo lucro fez reduzir os postos de trabalho com a
mecanização das indústrias.
Sempre falava do caso das indústrias dos EUA e Europa
que foram levadas para a China em busca de mão de obra
barata e baixa tributação. Levaram a produção e deixaram os
trabalhadores desempregados. Sem empregos, não existia renda
-46-
André Trindade
para consumirem. Um ciclo vicioso que serviu para transformar

a China no parque industrial de um mundo de desempregados.
Esse custo o capitalismo teria que assumir e repensar uma forma
de gerar renda para manter seus consumidores ativos. Para o
Arcebispo, essa mudança no cenário mundial ficou evidente
quando Trump prometeu trazer as indústrias de volta aos EUA
e gerou uma grande expectativa de criação de empregos. Só
esqueceu de avisar que elas viriam totalmente robotizadas e com
um número reduzido de empregos. Davi lembrou que em um de
seus debates Dom Geraldo falou que o capitalismo era casado
com o socialismo e apenas a redistribuição de renda garantiria a
subsistência dos dois. O capitalismo depende do consumo das
pessoas e, sem renda, elas reduzem o consumo e a economia
quebra.
Mas era um campo minado falar de geração de renda. Os
governantes sabem que, depois de implantada, uma política
pública de renda básica universal dificilmente seria cortada. Por
isso, o receio de a Igreja tomar frente em assuntos de estado,
para não ultrapassar o limite do estado Laico. Uma separação
mais formal que real, pois a Igreja sempre esteve ativa na política,
e o Estado, apesar de não ter religião oficial, utiliza-se dos seus
princípios e crenças para produzir as normas que o regem.
Esse era um dos medos de Davi. A morte do Arcebispo
poderia ter essa motivação?
Davi se levantou e saiu em direção à saída do cemitério. Já
estava na hora de ir para o Aeroporto de Buenos Aires para pegar
o voo com destino a Santiago. Queria acompanhar de perto a
investigação do caso e descobrir quem era o assassino de Dom
Geraldo. Quando estava no meio do caminho, seu telefone tocou
e as únicas palavras que falou após ficar por 3 minutos escutando
foram:
- Entendido. Embarco para o Brasil imediatamente.
-47-
VIII
DESCALÇOS
Lucca acordou todo dolorido, seu corpo sentiu o reflexo da

falta de exercícios aliado ao estresse do último dia. Olhou em
volta do pequeno quarto de 3 m por 2 m e sentiu a claustrofobia
de quem está em uma cela. Sentiu algo estranho, algo diferente. O
silêncio era total. As grossas paredes de tijolo repeliam os ruídos
e a distância da estrada impedia escutar até o barulho dos carros.
Uma sensação estranha para quem morava em uma cidade como
São Paulo, onde o barulho é uma condição natural do ambiente.
O sossego embebia seus ouvidos com uma paz plena. Olhou o
relógio e viu que já eram 4 horas da tarde, tinha dormido por
quase 10 horas. Com certeza foi o efeito do calmante que utilizou
para cair no sono.
Saiu lentamente pelo largo corredor de pedra até encontrar
uma irmã que lhe cumprimentou com um sorriso e um aceno de
cabeça. Quando ia dar boa tarde lembrou do voto de silêncio e
retribuiu com um gesto de saudação com a cabeça. Logo que a
irmã saiu, Fran chegou ao seu encontro.
- Bom dia bela adormecida, conseguiu descansar?
Lucca ficou impressionado com o senso de humor de Fran
mesmo em uma situação adversa.
- Boa tarde Fran, acabei apagando, mas agora já estou
renovado. Preciso falar com você sobre o que está acontecendo.
Acho que deveríamos chamar a polícia. Eles poderiam ajudar a
André Trindade
descobrir quem queimou o corpo da minha mãe e tentou me

matar. É a coisa mais lógica a se fazer.
Fran respondeu de pronto.
- Quem vai acreditar? Não temos prova alguma que tentaram
esfaquear você. Duvido muito que o pequeno cemitério tenha
câmeras de segurança. Se o vigia não viu uma pessoa ateando
fogo ao jazigo, você acredita que poderia testemunhar algo que
apenas nós vimos. Aqui você está seguro. Nenhuma das irmãs
sabe o que aconteceu, tampouco falariam sobre isso. Também
não podem nos rastrear, pois aqui não tem telefone, internet nem
sinal de fumaça.
Lucca colocou a mão no bolso e sentiu a falta do celular.
Fran notou o movimento e falou:
- Não se preocupe. Tive o cuidado de desligar e esconder o seu
celular. Para o caso de você tentar fazer algum contato. Mesmo
sem querer, poderia entregar a nossa localização. Devolvo assim
que descobrirmos por que querem matar você.
- Se isso não for cárcere privado, não sei o que é?
Fran franziu a testa e foi andando com passos decididos, que
romperam o silêncio do corredor até uma porta. Ao abri-la, foi
possível ver a estrada por onde vieram.
- Esta porta sempre fica aberta pelo lado de dentro. As
mulheres que aqui estão sabem disso e tem a certeza de que
podem sair a qualquer hora. Mas elas também sabem que a porta
está fechada pelo lado de fora. Se saírem, não poderão mais
voltar. Isso vale para você! - Apontou para Lucca. - Aqui dentro
eu consigo garantir a sua segurança. Se passar por esta porta, não
tenho como ajudar. Então? Está dentro ou fora? Lucca esperou
alguns instantes. Caminhou lentamente em direção à Fran, olhou
para o seu rosto e fechou a porta.
-49-
- Já que estamos em um monastério, vou dar a você um voto

de confiança. Se elas passam uma vida inteira aqui, eu consigo
ficar algumas horas.
- Saiba que essas mulheres abdicaram do mundo exterior em
prol de uma missão: a entrega plena ao Senhor. Tudo do que elas
precisam está aqui dentro. Elas conseguem passar toda a vida em
oração apenas com o básico para a subsistência.
Enquanto caminhavam, avistaram uma irmã descalça
capinando a horta do mosteiro. Estava em plena sintonia com a
terra. Com os pés descalços, utilizava da força do sol e da água
para que as sementes produzissem seus alimentos. Uma receita
milenar que provém o sustento da humanidade, mas que muitas
vezes nos esquecemos.
- Ela não precisa de um calçado para fazer isso? - Perguntou
Lucca.
- Claro que não. O homem e a terra sempre estiveram ligados,
é da natureza humana caminhar descalços. Uma das formas de
descarregar as energias negativas e carregar as positivas é manter
essa unidade.
- Estranho, não se vê mais esse tipo de coisa. Quando penso
em pessoas descalças, sempre me vem à mente a imagem da
pobreza.
- Muito pelo contrário! Veja aquela irmã, o ato de cultivar
a terra é o mesmo há séculos. Ela está tão envolvida com essa
atividade que esquece do resto do mundo. Não tem listas de
e-mail para ler, projetos para entregar, prazos para cumprir,
mensagens para responder. Ela apenas vive. Suas expectativas
são as mais simples. Por isso não tem frustrações, olhando o
celular constantemente para saber se existe alguma novidade
ou publicando algo no Instagram com a ansiedade de receber
likes, apenas para satisfazer seu ego com curtidas de pessoas
condicionadas ao mesmo processo. O mundo lá fora enlouqueceu
e não notamos.
-50-
André Trindade
- Concordo Fran, conheci pessoas que vivem em um mundo

de aparências. Você já viu alguém publicar uma foto chorando e
dizendo que o dia foi uma merda? Não estamos preparados para
uma rede social real. O feliz fake vende mais. Faz parte do nosso
mundo de consumo. Se eu comprar a calça da moda que deixou a
modelo feliz na foto, eu também ficarei feliz. Essa padronização
da felicidade facilita as coisas. As pessoas deixaram de pensar e
passaram a pedir doses de felicidade por delivery. Não é uma vida
sustentável. Quando vi a notícia de que um jovem matou outro
para roubar um tênis de marca, eu tive a certeza de que a nossa
sociedade estava doente.
- Parabéns Sr. Lucca, fiquei surpresa com a sua percepção.
Nada mal.
- São os estudos que realizei no Doutorado em Direito.
Trabalhei a questão da evolução das necessidades humanas no
século XX. E você, com certeza, tem alguma formação específica?
- Não muitas. - Sorriu Fran. - Sou formada em Teologia e
História.
- Que interessante.
- Comecei pela Teologia e depois aprofundei meus estudos
na História.
- Gosta de qual parte do estudo da História?
- Principalmente a história da religião.
- Claro, é natural que os estudos em teologia ajudaram nesta
decisão.
- Sim. Existe um mundo não estudado sobre as religiões.
Muito da nossa cultura e das nossas atitudes têm origem na
religião. Você sabia que até hoje uma tribo da Indonésia tem o
costume religioso de amputar a ponta de um dos dedos quando
morre um parente.
- Sério?
-51-
- Sim. As mulheres amarram o dedo por 30 minutos até ficar

amortecido e cortam a ponta.
- Mas e a hemorragia?
- Segundo o costume, devem queimar a ponta para criar novo
tecido.
- Ainda bem que tenho poucos parentes. – Riu Lucca.
- Não se preocupe. Apenas as mulheres devem seguir o ritual.
- Essa prática deveria ser proibida!
- Concordo, é uma violação cruel ao corpo da mulher e
deve ser criminalizada. Isso passa pela reeducação e mudança
de valores. Ocorre que cada cultura tem o seu histórico. Uma
cultura ocidental tem o hábito de perfurar o corpo das meninas
nos primeiros dias de vida para colocar adereços de metal.
- Meu Deus! Que tribo é essa?
- A nossa. Você nunca viu uma menina de brincos?
- Há! Mas é diferente.
- Sim! Sempre é diferente. A cultura é diferente. Será que aos
olhos da mulher que amputa a ponta do dedo, porque perdeu um
filho ver um bebê ter a orelha perfurada não seria uma crueldade?
A criança não teve opção de escolha.
- Nunca tinha pensado sobre esse ponto de vista.
- O difícil é saber o que é certo e o que é errado em um mundo
multicultural. Cada povo tem uma tradição que fundamentou
seus princípios e valores. Impor a nossa cultura aos demais é
uma visão egoísta.
- Foi o que Hitler fez ao tentar uma pureza racial.
- Podemos ir muito mais longe na História. O extremismo
religioso mata há séculos em nome de um deus que sempre
defendeu a vida.
-52-
André Trindade
- Será que é da natureza humana sermos desumanos?

- A pergunta correta não é essa, mas qual é a natureza humana?
-53-
IX
DAI A CÉSAR O QUE É DE CESAR
- Sim! Concordo plenamente. Nenhum dos nossos investidores

quer correr esse risco. Sempre trabalhamos com muita segurança
e não será agora que vamos pôr tudo a perder. É um perigo
muito grande essa intervenção – fala o padrinho com uma voz
notadamente preocupada.
Do outro lado da linha, um grande investidor, com milhões
depositados no Banco do Vaticano, comenta a notícia de que o
novo Papa fala em criar uma Igreja dos pobres.
- O Santo Padre não pode mudar as regras dessa forma.
Confiamos por décadas na seriedade e segurança do Banco
do Vaticano como guardião do nosso dinheiro. O meu pai já
negociava com o Banco antes mesmo de eu nascer. Você sabe
que não sou o único preocupado. Vários amigos observam com
muita cautela as últimas declarações do Papa. Não podemos
arriscar uma intervenção no banco, nossos negócios dependem
disso.
- Pode avisar todos de que não existe essa possibilidade.
- Posso confiar?
- Fique tranquilo! - Respondeu o padrinho.
- Muito obrigado, padrinho! Você nunca falhou conosco. Ciao.
- Ciao.
André Trindade
Ao desligar o telefone, o padrinho respirou fundo, soltou a

gravata e tomou um copo d’água para tentar se acalmar. Não era
nada fácil ser o diretor financeiro de receitas externas do Banco
do Vaticano. Uma função estressante, pois ficava literalmente
entre a cruz e a espada. De um lado, os interesses da Igreja e
toda sua vocação declaradamente assistencial; do outro lado,
os investidores que buscam no Instituto Per Le Opere di Religione
(conhecido como Banco do Vaticano) a segurança e solidez de
uma instituição financeira que movimenta recursos de todo o
mundo de forma rápida e discreta.
Com certeza é uma ótima opção para quem precisa circular
dinheiro sem levantar suspeitas, pois a grande maioria dos países
não cobrava impostos do “dinheiro sagrado”.
O banco foi criado pelo Papa Pio XII em 27 de junho de
1942, durante a Segunda Guerra Mundial, e virou guardião da
riqueza conquistada pelo Vaticano a partir do século IV com o
imperador Constantino. Com a assinatura do Tratado de Latrão, a
Itália reconheceu o Vaticano como Estado Soberano e instituiu a
isenção de tributos sobre suas propriedades, tendo o Papa como
chefe de Estado. Com essa autonomia, o Banco do Vaticano
passou a receber parte das doações dos fiéis de todo o mundo
sem o controle do fisco Italiano.
Um banco com movimentação financeira em todo o mundo
e autonomia para autocontrole de suas ações é um prato cheio
para a máfia. Ter condições de circular dinheiro sem um controle
externo é o sonho de qualquer criminoso que pretende expandir
seus negócios. Tanto é verdade que, em 2010, as autoridades
italianas investigaram alguns diretores do banco por não seguirem
os protocolos europeus antilavagem de dinheiro.
As coisas pioraram quando, em junho de 2013, o recém-
aclamado Papa Francisco criou uma Comissão Pontifícia para
reformar o Banco do Vaticano, declarando que pretendia
-55-
transformá-lo em uma instituição “honesta e transparente”. Uma

postura corajosa que assustou muito.
Com certeza foi um balde de água fria para os negócios de
quem não quer que suas transações fiquem aparentes. Boa parte
dos mais de 3 bilhões de euros depositados no banco são da
Aíma e outros parceiros de negócios. A indicação do padrinho
para o cargo no banco foi estratégica. Conseguiu a confiança do
clero, usando da mais antiga técnica de negociação, a corrupção.
Mas as coisas não iam bem depois dos escândalos e das novas
posturas do Vaticano.
Um Papa que busca a honestidade e um banco conhecido
por movimentações suspeitas e sem controle não combinam. Por
isso o padrinho aumentou a sua dose de calmante para dormir.
A cada dia que passava, as cobranças aumentavam de ambos os
lados. Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Só basta
saber quem é a pedra da história. Com certeza não é a mesma
pedra sobre a qual Jesus pediu a Pedro que edificasse a sua Igreja.
As chaves da Igreja de São Pedro, deveriam voltar para as mãos
certas.
A máfia e o Banco do Vaticano já tiveram outros entraves
históricos. O padrinho lembrou da questão envolvendo o
Banco Ambrosiano, na década de 80, momento em que seriam
denunciadas pelo Papa João Paulo I. Um papado que durou
apenas 33 dias cuja morte ainda hoje levanta suspeitas.
O padrinho sentou na sua cadeira de couro e enviou uma
mensagem para Carlos.
- Precisamos cumprir a missão imediatamente. O cerco está
se fechando.
-56-
X
A MORTE
Fran recebeu uma ligação e ficou imóvel por alguns

minutos, apenas escutando. Pela demora no relato e a expressão
concentrada, Lucca sabia que escutava algo muito importante.
Encerrou se despedindo da outra pessoa com uma saudação
estranha.
- Muito obrigado. Amém, Madre.
- O que aconteceu? Perguntou Lucca muito apreensivo.
- Consegui informações sobre o caso da sua mãe. Ela cometeu
suicídio.
- O quê? Como assim?
- Depois do ocorrido no cemitério, a polícia foi investigar e uma
enfermeira do hospital informou que uma pessoa que se passava
por parente foi visitar a sua mãe no dia anterior a sua morte.
Ela até achou que fosse um filho ou sobrinho. Encontraram no
quarto dela uma injeção com cloreto de potássio. Pela quantidade
identificada, ficou claro que foi isso que provocou a parada
cardíaca.
- Então foi essa pessoa que matou a minha mãe?
- Impossível, a enfermeira falou com ela depois da saída do
visitante. Apesar de extremamente abalada, estava fisicamente
bem.
- Mas como ela sabe que foi suicídio?

- Uma frase que ela disse chamou a atenção da enfermeira.
- O que ela disse? – Falou Lucca apreensivo.
“Amo minha família, mas tenho que fazer isso por um bem
maior.”
- A enfermeira achou que estava delirando e não ficou muito
preocupada. Ela rezou com o terço na mão e minutos depois foi
encontrada morta. Depois que constataram o óbito e levaram o
corpo, ela foi arrumar o quarto e encontrou a injeção atrás da
cabeceira da cama. Não tinha marcas de agressão e, como a sua
mãe era enfermeira, administrou a dose sabendo que teria uma
morte lenta e indolor.
- Será que o homem que foi visitá-la era o mesmo que tentou
me matar?
- Provavelmente. Mas como o hospital é pequeno, não tem
câmeras para identificação.
Lucca sentou na mureta de pedra, de costas para Fran, e baixou
a cabeça. Pegou no bolso o terço da mãe que a tira lhe entregara e
começou a chorar. Fran não era uma mulher emotiva, mas notou
que tinha errado na forma como deu a notícia. Estava falando
da mãe que Lucca acabara de perder. Aproximou-se e colocou a
mão direita em seu ombro. Seu toque amenizou o estrago feito
pela notícia.
- Desculpe. Não tive a intenção de machucar você ainda mais.
As últimas horas foram terríveis e não quero aumentar a sua
angústia.
Lucca se levantou e virou de frente para Fran. Os olhos de
Lucca ainda cheios de lágrimas imploravam por um abraço.
Foi isso que ela fez. Um abraço apertado e quente e uma única
palavra sussurrada ao ouvido:
- Desculpe!
-58-
André Trindade
- Não fique preocupada, Fran. Não tem outra forma de falar

o que aconteceu. Apesar de ainda estar abalado, prefiro que você
sempre conte a verdade. Seus olhos me passam a confiança de
que preciso no momento.
- OK! – Falou Fran, secando as lágrimas com os polegares e
segurando a cabeça de Lucca com as duas mãos. - Sei que você
está muito triste e assustado com o desfecho da sua mãe. Mas eu
preciso que fique muito atento, não quero que aconteça o mesmo
com você. A voz de Fran era afetuosa, mas suas palavras eram
diretas.
- Tá bom – Respondeu Lucca. - Mas preciso saber algo. Quem
é você e por que está me ajudando?
Fran ficou olhando por alguns instantes. Soltou a cabeça de
Lucca e deixou os braços caírem lentamente.
- Digamos que eu trabalho para a mesma congregação
responsável por este mosteiro. Recebi uma ligação da minha
superior, pedindo para ficar de olho em você. Não sei mais nada
sobre isso.
Lucca escutou as palavras e não duvidou um segundo sequer.
A verdade transparecia em seus olhos azuis.
- Não entendo, Fran. Por que alguém queimou o corpo da
minha mãe e quer me assassinar? Não temos inimigos. Não
temos dinheiro nem dívidas. Depois da morte do meu pai,
passamos por momentos muito difíceis. Minha mãe sustentava a
casa sozinha e eu tive que começar a trabalhar muito cedo. Com
10 anos, já era ajudante em um pequeno mercado e nunca parei
de trabalhar e estudar até terminar o Doutorado.
- A sua mãe fazia o quê?
- Ela era enfermeira no mesmo hospital em que faleceu.
Depois que se aposentou, passou a ficar em casa para cuidar do
meu avô. Ele não podia ficar sozinho.
-59-
- Precisamos encontrar o motivo.

- Tem algo muito estranho nessa história. E, para piorar, você
é enviada por uma congregação franciscana para me proteger.
Me belisca pra saber se não estou sonhando. Quer dizer, em um
pesadelo.
- Concordo! - Falou Fran, enquanto caminhava ao lado
de Lucca. O movimento ajudava a refletir melhor. – Como
não sabemos contra quem estamos lutando, e o motivo dessa
perseguição, estamos vulneráveis. Você não consegue identificar
motivos hoje, mas tem alguma situação no passado que possa ter
gerado essa perseguição? Com certeza é algo importante para a
congregação ter me enviado.
- Não faço ideia. – Gesticulou Lucca, abrindo os braços.
- Só tem um jeito, Lucca. Temos que investigar a sua mãe. Ela
nunca falou nada que possa ter acontecido?
- Não, nunca comentou nada. Ela sempre foi muito reservada.
- Vamos fazer o seguinte. Assim que anoitecer, nós vamos
até a casa da sua mãe, sem chamar a atenção da vizinhança, e
vasculhamos as coisas dela. É impossível que não tenha uma
ponta solta nessa história.
- Combinado – Disse Lucca.
- Agora me dê licença que está na hora da oração. Como é o
único momento em que as irmãs rompem o silêncio, eu quero
participar. Partimos em 1 hora.
Lucca saiu em direção ao quarto com o coração dividido
entre medo e ódio pelo que tinha acontecido com sua mãe.
Não acreditava que a mãe tinha tirado a própria vida. Era muito
religiosa e sabia que o suicídio é um dos principais dogmas da
Igreja. Sabendo da devoção da mãe e da sua visão de que a pessoa
que não respeita a própria vida era indigna de entrar no céu, teve
a certeza de que algo muito grave tinha acontecido. O suicídio
-60-
André Trindade
nunca foi, na sua visão, uma opção, mas um sinal de fraqueza.

Se Deus nos deu a vida, só ele pode tirar, segundo a doutrina da
Igreja, seguida à risca por Vitória.
Lucca lembrou de uma matéria que assistiu na TV falando
do impressionante número de pessoas que cometem suicídio no
mundo. Praticamente um indivíduo a cada 40 segundos tira a
própria vida. É a terceira causa de morte entre os jovens. Uma
verdadeira epidemia que pouco é abordada. O mais estranho é
que sua mãe nunca apresentou sintomas de depressão ou teve
problemas com álcool, duas das principais causas.
Para tirar a própria vida, a pessoa tem que se sentir tão
frustrada que a sua existência não se justifica mais. Ao fugir
da vida, os problemas não desaparecem, eles são o tempero da
nossa existência. Muitas vezes superestimamos os problemas e
essa agonia nos corrói. Como um amor não correspondido na
juventude que na hora parece o fim e, depois de alguns anos,
resta na nossa memória como uma boa lembrança. O segredo é
ter um olhar tópico do caso. Olhar de cima da situação para ter
a certeza que o problema é tão pequeno dentro da nossa história
de vida que não vale a pena perder tempo com ele. Quando falam
que a vida começa aos 40 é porque a maturidade faz as pessoas
responderem à seguinte pergunta: o que é prioridade?
Lucca sabia que sua mãe tinha a família e a religião como
prioridades, e o suicídio não combina com nenhuma delas. Para
tirar a própria vida, com certeza estava defendendo uma delas.
-61-
XI
A DOR DA MEMÓRIA
Mais uma vez Lucca pode sentir o corpo de Fran em suas

mãos. Agora os dois estavam com capacete e rodavam em uma
velocidade menor para retornar à cidade em busca de alguma pista
do ocorrido. Cada curva que Fran fazia com a moto, aproximava
ainda mais os dois. Apesar da jaqueta de couro, era possível
sentir a sua pele embaixo do collant. Lucca nunca tinha andado
na carona de uma moto, sempre teve medo por não conseguir
controlar a situação e estar na dependência do piloto. Preso à
cintura de Fran, a situação passou do receio para o prazer. Já
conhecia as curvas da estrada, agora estava conhecendo as curvas
de Fran.
Ela sentia as mãos de Lucca presas ao corpo com menos
tensão que na viagem anterior. Eram mais carinhosas e delicadas
do que antes. Não tinha o hábito de levar caroneiros na sua
moto. Era uma motociclista solitária que estava acostumada
a pegar a estrada e rodar por longas distâncias. A sensação de
liberdade tomava seu corpo quando pilotava. Os braços de Lucca
prendiam os dois perfeitamente. A sensação de pilotar com mais
um passageiro deixou de ser incômoda para ser aconchegante.
Estava gostando da companhia.
Quando chegaram à cidade, Lucca notou que estava com as
mãos suadas pelo calor do corpo de Fran, deixando uma marca
molhada no seu collant.
- Desculpe, deixei você molhada.
André Trindade
Fran riu e deixou Lucca ainda mais constrangido pela besteira

que havia acabado de dizer.
- Quer dizer.... a roupa molhada. Não quis falar sobre .... você
entendeu...
- Entendi. Não fique preocupado. – Falou Fran, tentando
acalmar o envergonhado Lucca.
Para evitar a atenção das pessoas, pararam na entrada da
cidade e esconderam a moto atrás de um barracão abandonado.
Depois de um corpo incendiado no cemitério, seguido de um
tiroteio, muitas histórias surgiram e com elas o medo das pessoas
saírem de suas casas.
Com o cair da noite, não existia uma alma viva na rua. Para
evitar desconfianças, Fran teve uma ideia.
- Vamos caminhar até a sua casa de mãos dadas. Se alguém
nos encontrar na rua, vão pensar que somos um casal e não
levantaremos suspeitas.
Lucca consentiu e estendeu a mão.
Assim, caminharam por algumas quadras sem encontrar
ninguém. A única pessoa que avistaram foi o segurança da praça
que fez um cumprimento, levantando a mão. Algo típico das
cidades pequenas. Primeiro cumprimente, depois veja se a pessoa
é conhecida.
Lucca acompanhava os passos de Fran. Ela possuía
personalidade forte até no modo como caminhava. Sua mão
era macia com dedos delicados e longos. Quem diria que essa
delicadeza segura e atira com uma pistola automática. Em pouco
tempo, as mãos de Lucca começam a suar novamente. A última
vez que sentiu essa sensação foi no dia do casamento com a ex-
mulher. Uma lembrança boa do início do casamento. Antes da
crise e separação.
- Chegamos. É aquela casa da esquina. – Falou Lucca.
-63-
- Sei. Estive sentada por horas naquele maldito banco de

madeira vigiando você.
- Vamos entrar pelos fundos para não chamar a atenção. –
Completou Lucca.
A porta estava aberta e rapidamente estavam na garagem.
Muitas das cidades pequenas têm baixos índices de criminalidade.
São quase como um condomínio fechado, e as pessoas não
trancam as portas. Lucca entrou no quarto e pegou seus
documentos, o passaporte e o dinheiro que tinha na mochila.
Seu quarto estava intacto. A mãe não havia mudado nada do dia
em que saiu de casa para estudar. Parou por um instante e olhou
o porta-retratos com a foto da infância junto com os pais. Uma
das poucas recordações da família. Agora estava só.
Quando chegaram na sala, encontraram a tia Rosa cuidando
do avô, Gumercindo.
- Lucca do céu! Você está vivo! A polícia está louca atrás de
você. – Grita a tia desesperadamente.
- Calma, tia, estou bem. Acabei fugindo, porque tinha um
louco tentando me matar.
- Sim! Escutei o tiro. Fiquei junto com o pessoal que estava
falando com os policiais até as coisas se acalmarem. A cidade
inteira só fala disso. Acham que você foi sequestrado ou estava
morto numa vala. E quem é essa? - Pergunta a tia Rosa, apontando
para Fran.
- O nome dela é Francesca. É uma amiga. Ela está tentando
me ajudar a descobrir o que aconteceu.
- Vou avisar a polícia que você está bem.
- Não! - Falou Fran. - Não sabemos em quem podemos
confiar. Até descobrirmos é melhor manter sigilo.
- Tia, precisamos da sua ajuda. A senhora sabe se a minha mãe
estava depressiva ou tinha algum problema sério?
-64-
André Trindade
- Não Lucca. Não notei nada de estranho com ela. Quando

não estava cuidando do seu avô, estava assistindo à missa pela
televisão.
- É possível que ela tenha cometido suicídio? – Perguntou
Fran.
A pergunta assustou tia Rosa que respondeu de forma seca.
- Bem, já que perguntou. Um dia fui visitá-la no hospital e
estranhei a fala dela. Falou que uma pessoa não podia fazer um
mundo inteiro sofrer. Quando perguntei do que se tratava, ela
desconversou. Mas não sei se ela cometeria suicídio. Era uma
pessoa muito esclarecida e temente a Deus.
- Isso mesmo – Respondeu Lucca. – Recebemos a informação
de que ela tirou a própria vida, mas não imagino por que teria
feito isso.
- Olha, querido, depois da morte da sua avó Carmem, há 8
anos, eu notei uma mudança na sua mãe. Ela se tornou uma
pessoa muito mais religiosa. Participava ativamente dos grupos
de oração da Igreja, sempre acompanhava as transmissões de
missas do Vaticano e nunca, nunca, largava o terço.
- Essa história está estranha, Tia.
- Um detalhe estranho é que ela pediu para eu entregar uma
foto da vó Carmem para você.
- Uma vadia! - Falou o vô Gumercindo com uma feição
assustadora, espantando todos na cozinha.
- Me desculpem. – Comentou a tia Rosa - O Alzheimer dele
está bem avançado. Ele já tinha um início da doença antes da vó
Carmem falecer. Com sua morte, o caso só vem se agravando.
Ele já não reconhece a maioria das pessoas. A sua mãe cuidava
dele como se fosse uma criança. Do nada ele xingava a falecida
esposa, depois chorava por ela.
-65-
- Tia, se possível, pegue a foto que a minha mãe falou enquanto

eu falo com o meu avô.
A tia Rosa foi para o quarto buscar a foto que Vitória tinha
deixado sobre os seus cuidados. Lucca sentou ao lado do avô e
colocou a mão sobre sua perna. Nunca teve proximidade com
o avô pela forma ríspida como era tratado. A situação dele era
bem delicada. Praticamente não interagia. A noção do tempo se
perdeu em sua memória. Lembrava de fatos da juventude, mas
esquecia o próprio nome.
- Vô, sou eu, o Lucca, seu neto, filho da Vitória.
- Ela não é minha filha e você não é meu neto! – Falou o vô
Gumercindo com uma feição ainda mais braba, tirando a mão de
Lucca com raiva.
- Deixa ele, Lucca, aqui está a foto de que eu falei.
- Muito obrigado, tia.
- Lucca, que ponto vermelho é esse na sua camisa? - Falou a
tia.
Fran deu um pulo e como uma felina empurrou Lucca para
o chão. No mesmo instante escutaram o barulho do vidro
quebrando. A tia sem entender nada viu brotar sangue no pijama
do vô Gumercindo que não conseguiu levantar. Levou o tiro
destinado ao Lucca.
- Fiquem abaixados! - Gritou Fran. - Longe das janelas.
A tia Rosa tentou correr, mas foi abatida antes de chegar à
porta da garagem. Fran começou a rastejar até o corredor da
casa. Ela chamou Lucca que passou ao lado do corpo do avô e
ficou com a roupa ensopada com seu sangue. Ainda abaixados,
Fran falou para o Lucca:
- Aqui nós somos um alvo fácil. Precisamos tirar a vantagem
do atirador. Você consegue desligar a luz da casa, enquanto eu
penso em algo?
-66-
André Trindade
Lucca andou abaixado até o início do corredor, no sentido

oposto ao atirador, e desligou a chave geral. A casa estava em
plena escuridão. Mesmo assim, a iluminação da rua ainda permitia
uma pequena visibilidade. Lucca voltou para perto da Fran.
- E agora Fran?
- Temos que encontrar uma saída pelos fundos da casa.
- A janela do meu quarto dá para o muro do vizinho. Ele tem
um pomar no fundo da casa. Se conseguirmos pular, sairemos
pelo outro lado da quadra. É nossa melhor opção.
Lucca andou rapidamente até seu quarto e abriu a janela de
madeira. Foi o primeiro a pular. Lembrou da época que fazia isso
para sair escondido com os amigos. Fran pulou nos braços de
Lucca e caiu deitada sobre ele, que ficou parado sentindo o peso
do seu corpo. Ela se levantou rapidamente e saíram correndo
até o corredor que levava para a frente da casa do vizinho. Fran
parou antes de chegarem ao portão e perguntou:
- Lucca, e o cachorro?
- O vizinho não tem cachorro.
- Fala isso pro doberman que tá ali. - Falou Fran, apontado
para uma fera que observava os dois.
- Corre! - Gritou Lucca, puxando Fran pelo braço até o portão.
O cão ficou enlouquecido e não parava de latir. Mas esse era
o menor dos perigos da noite.
-67-
XII
O ANJO DA GUARDA
Carlos não errava um tiro. Treinou muito com os capangas

do padrinho. Não sabia quanto o avô e a tia de Lucca estavam
envolvidos, mas não teve dúvida em eliminar os dois também.
Com a luneta e a mira laser era como atirar em patinhos em
uma lagoa. Lucca seria o próximo. Já devia estar morto com uma
silenciosa facada no cemitério, se não fosse a proteção de Fran.
A gasolina na caçamba da camionete era suficiente para queimar
seu corpo em algum mato próximo. O plano perfeito, não fosse
aquela mulher.
Quem seria ela? Pensava Carlos.
Aguardou a movimentação na casa, mas nada pôde ver depois
que as luzes se apagaram. Quando escutou os latidos na casa
dos fundos, teve a certeza de que eram eles. Resolveu sair do
ponto alto da praça que tinha escolhido para fazer os disparos
e seguir o alerta do cão. Estava com uma camioneta roubada
com os vidros escurecidos pelo insulfilme que não permitia ver
o rifle utilizado nos disparos. Ligou o motor e saiu em direção
à esquina. Ao chegar, conseguiu ver os dois saindo pelo portão,
enquanto o cachorro latia. Nem desligou a camionete, como era
ótimo atirador não teria como errar. Preparou o rifle e enquadrou
Fran na mira. Sabia que a eliminando, ficaria mais fácil acabar
com Lucca. O disparo acertou Fran que caiu gritando na hora.
O silenciador do rifle abafou o disparo e apenas o barulho do
projétil cortando a carne de Fran pode ser escutado. Fran gritou
André Trindade
e caiu no chão da rua pavimentada com pedra. Lucca a viu caída

e voltou para ajudar.
- Venha Fran. Você consegue andar?
- Me deixe. Corra para salvar a sua vida.
Lucca não obedeceu e instintivamente tentou erguer Fran.
Não deixaria a mulher que salvou sua vida baleada no chão frio.
Nesse mesmo instante, Carlos recarregou o rifle e se posicionou
para disparar mais uma vez. Lucca estava na sua mira e pensou
em voz alta.
- Já era!
Quando ia disparar, um barulho chamou sua atenção. Era
um carro que passava na rua e parou ao lado de Lucca e Fran,
tapando a visão do atirador. O veículo grande e escuro como a
noite era dirigido por Davi, o chefe da segurança do Arcebispo.
Ele abriu a porta traseira do carro e chamou Lucca e Fran.
- Entrem logo!
Lucca ajudou Fran a entrar no banco traseiro e sentou ao
seu lado. Carlos vendo que estava perdendo seus alvos disparou
contra o motorista, mas a bala ficou alojada no vidro blindado.
Davi fechou a porta e saiu da cidade em alta velocidade.
- Muito obrigado! Sem você estaríamos mortos. – Falou Lucca
– Precisamos levar ela para um hospital.
- Nada disso, Lucca! Foi só um tiro de raspão na perna. Nada
mais que alguns pontos. – Falou Fran enquanto tirava a calça de
couro.
Fez isso com a maior naturalidade, mostrava o corte na perna
esquerda. Davi abriu o porta-luvas e entregou o kit de primeiros
socorros, falando:
- Utilize esse material. Assim você pode limpar o ferimento e
dar uns pontos. Não temos como parar no hospital.
-69-
- Eu nunca dei ponto na minha vida! – Falou Lucca.

- Deixa que eu faço. Apenas passe o fio na agulha. – Respondeu
Fran.
Enquanto Lucca quase desmaiava, em poucos minutos, Fran
terminava sua autossutura.
- Muito obrigado pelo kit de primeiros socorros. Por acaso
você não teria um anti-inflamatório.
Davi olha para trás e, com um inconfundível sotaque portenho,
responde:
- Tenho no avião.
Fran e Lucca se olham sem falar nada e perguntam ao mesmo
tempo.
- Que avião?
-70-
XIII
MERGULHO NO RIO DA PRATA
Por questão de segundos Davi não chegou atrasado e teria

mais dois corpos para incluir no relatório. Os dois continuavam
no banco traseiro do carro, enquanto dirigia para o aeroporto.
Lucca ficou espantado com a marca de bala que não atravessou
o vidro. Tinha a certeza de que aquele projétil tinha o seu nome.
A perna de Fran parou de sangrar depois que fez os pontos e
colocou um curativo. Foi um tiro de raspão que poderia ter sido
fatal se não estivessem correndo, quando Carlos atirou. Lucca
ficou impressionado com a frieza de Fran costurando sua própria
carne. Não chorou, mesmo sentindo a dor da agulha suturando
sua perna sem anestesia.
- Quer uma água, Fran? – Perguntou Lucca, notadamente
preocupado.
- Não temos como parar agora, se quiser temos água no avião.
– Respondeu Davi.
Em poucos minutos chegaram ao aeroporto local. Era uma
pista pequena, mas tinha o tamanho suficiente para a manobra
dos aviões. Quando desceram do carro, viram que o avião a que
Davi se referia era na verdade um jatinho. Devido à urgência do
caso, fretar uma aeronave rápida foi a única opção.
Fran e Lucca nem hesitaram em subir no jatinho, depois
que Davi salvou suas vidas. Sentaram nas luxuosas poltronas de
couro caramelo. Em poucos minutos o piloto taxiou e partiram
com destino à capital Argentina. Um voo rápido, mas suficiente

para algumas explicações.
- Lucca, por que querem matar você? – Perguntou Davi.
Lucca e Fran trocaram olhares de aflição.
- Pensei que você tivesse a resposta. – Comentou Fran. – Nós
também estamos averiguando. Aliás, quem é você?
- Me desculpem. Na afobação de salvar vocês, não tive tempo
de me apresentar. Meu nome é Davi. Sou chefe de segurança do
Arcebispo de Buenos Aires.
- O arcebispo mandou você? – Perguntou Lucca.
- Vocês não leem jornais? O Arcebispo foi morto na noite
retrasada. Na verdade, os jornais não divulgaram, mas ele foi
assassinado.
- Mas quem mandou você? - Perguntou Fran.
- Eu estava embarcando para Santiago para acompanhar as
investigações sobre a morte de Dom Geraldo, quando recebi
uma ligação dizendo que era para protegê-lo.
- Quem ligou?
- Infelizmente não posso falar quem ligou e também não sei
o motivo, mas a pessoa deixou claro que deveria usar de todos
os esforços para mantê-lo vivo. O que eu acho muito estranho,
porque o Arcebispo de Buenos Aires foi assassinado no Chile e
como sou responsável pela sua segurança imaginei que deveria
estar investigando o caso. Lucca, você sabe alguma coisa sobre
o Arcebispo?
- Não conhecia o Arcebispo e sequer fui à Argentina. Aliás,
fui uma vez quando visitei a tríplice fronteira em Foz do Iguaçu.
Mas isso não deve contar, porque fiquei só alguns minutos...
- Foco, Lucca! – Interrompeu Fran.
-72-
André Trindade
- Tá bom, Fran, ainda estou nervoso com tudo o que

aconteceu.
- Olha Davi, acredito nas suas boas intenções. Eu fui enviada
pela Congregação Franciscana para vigiar o Lucca e acabei me
envolvendo em uma perseguição. Até um tiro levei e, com certeza,
estaríamos mortos se não fosse a sua ajuda. Tenho certeza de
que Lucca deve ser muito importante para movimentar toda a
Igreja. Conversamos muito, mas não conseguimos descobrir o
motivo dessa perseguição. Até agora a única pista que temos é
uma foto deixada pela mãe do Lucca.
- Posso ver essa foto?
- Claro! - Disse Lucca, entregando a foto para Davi.
Era uma foto muito antiga em preto e branco com dois jovens
em pé numa escadaria de igreja. O retrato estava incompleto,
faltava um pedaço da foto que nitidamente fora rasgada.
- Esta aqui é a minha avó Carmem. Já o homem que está ao
seu lado eu não conheço.
- É o Arcebispo – interrompeu Davi. – Sim é um registro
dele na juventude. Vi outras parecidas quando ajudei a organizar
as fotos de Dom Geraldo para uma biografia que estavam
montando. Essa foto está incompleta, isso significa que mais
alguém estava na imagem. Vocês imaginam quem pode ser?
- Não faço ideia. – Falou Lucca.
- Eu também não. – completou Fran.
- Aposto que essa pessoa é a chave do nosso mistério. Espere!
Tem algo escrito no verso da foto. “No meio de quatro mares, as
mãos de Netuno e do pai do inferno indicam o caminho da Luz.”
Os três se olharam ainda mais perdidos.
- A foto é antiga, mas a escrita é recente. Dá pra notar que a
tinta da caneta é nova.
-73-
- Como você sabe disso, Davi?

- Para trabalhar como segurança, eu fiz um curso de
investigação e perícia. Uma das disciplinas que cursei foi
grafoscopia. Aprendemos a validar assinaturas e reconhecer
fraudes. Lucca, essa letra é familiar?
- Sim. É a letra da minha mãe. Ela deixou essa mensagem
codificada com a certeza de que poderia cair em mãos erradas.
- Perfeito, Lucca! Chegando em Buenos Aires, nós
descobriremos a peça que falta nesse quebra-cabeça.
Nesse momento o celular de Davi tocou.
- Senhor! Aqui é Pedro Aguilera, da guarda eclesiástica de
Santiago. Acabamos de ter acesso às informações da polícia,
inclusive de uma filmagem do Arcebispo. Uma câmera externa
capturou algumas imagens de Dom Geraldo em uma das janelas
do Museu de São Francisco.
- Consegue enviar essa imagem?
- Sim. Em instantes estará no seu WhatsApp.
- Muito obrigado.
Davi recebeu a filmagem já ampliada. Quase não se conseguia
identificar o Arcebispo, a imagem não era clara. Dom Geraldo
parou em frente à janela e fez o sinal da cruz de forma incompleta
por duas vezes. Com certeza era um aviso, não teria errado o
sinal.
Davi mostra o vídeo para Fran e Lucca que não entendem o
sinal.
- Ele estava fazendo o sinal da Cruz? – Pergunta Lucca.
- Sim. Mas está enviando alguma informação. - Comenta Fran.
- Não consigo entender. O que ele quis dizer com o sinal da
cruz incompleto? – Indagou Davi.
-74-
André Trindade
- Fran, você que estudou a história da Igreja tem alguma ideia

do que ele quis dizer?
– Bom, o sinal da cruz surgiu no século II com um padre
chamado Tertuliano. No começo era feito apenas com o polegar
na testa. Agora, usa-se a mão direita com os dedos abertos
significando a cinco chagas de Jesus. É sinal de um amor sem
limites de Jesus na Cruz.
Lucca e Davi olharam abismados. Fran não parava de
surpreender.
- Mas existe algum significado no sinal da cruz incompleto?
- Pelo que pude ver no vídeo ele não completa a Santíssima
Trindade. Apenas faz referência ao Pai, ao Filho, mas não termina
o sinal com o Espírito Santo.
- Pai e filho? Ainda continuo sem entender – Comenta Lucca.
- É um mistério que vamos ter que resolver- Falou Davi –
Agora descansem que o voo será rápido e temos muitas perguntas
para serem respondidas em Buenos Aires.
Fran tinha tomado um analgésico que fez a dor passar, mas
trouxe junto o sono, e o corpo cansado não resistiu. Lucca
reclinou a poltrona e também descansou, enquanto Davi fazia
contato com Buenos Aires em busca de mais informações.
Depois de um tempo escutaram o chamado do piloto.
- Senhor Davi, chegaremos no aeroporto de Ezeiza em 10
minutos. Peça para todos colocarem os cintos de segurança.
O voo aterrissou e em poucos minutos estavam dentro do
carro que os esperava. Já havia amanhecido e o sol começava a
castigar. Apesar de terem descansado um pouco durante o voo, a
fadiga depois de toda a adrenalina da noite era visível.
- Escutem – falou Davi. – Enquanto vocês dormiam eu mandei
a foto para a pesquisadora que fez a biógrafa do Arcebispo
analisar. Ela comentou que pela idade e pelas roupas a foto,
-75-
foi tirada durante o período em que o Arcebispo estudava no

Colégio Máximo San José. Ela falou que o uniforme era padrão
para todos os alunos.
- Precisamos falar com alguém do colégio para ver se tem
alguma informação que ajude na investigação. – Comentou Fran.
- Sim. Já acordei a diretora do Colégio que está nos esperando.
– Respondeu Davi.
O trajeto do aeroporto até o Colégio foi rápido. Em menos
de 1 hora já haviam percorrido o caminho sem movimento no
amanhecer de Buenos Aires. Chegaram no imponente prédio
do Colégio. Uma obra de arte em forma de arquitetura. Quatro
andares de construção que demonstravam o poder da Companhia
de Jesus.
A diretora estava à espera no portão do colégio visivelmente
espantada. Acordou com o susto do celular chamado às 06 horas
da manhã e um pedido inusitado do Chefe da segurança do
Arcebispo.
- Bom dia! Me chamo Teresa Pelayo. Sou a diretora do Colégio
Máximo San José. Recebi a ligação do Senhor. Me diga que tem
algo a ver com isso? – Mostrou a primeira página do Diário
Clarín com a notícia da morte do Arcebispo. – A notícia fala que
o Arcebispo teve um mal súbito e faleceu.
Davi pegou o jornal e rapidamente identificou que haviam
abafado a notícia do assassinato. Uma técnica antiga da Igreja
para não gerar mais desconfianças entre os seus seguidores.
- Sim. Respondeu Davi mostrando a foto - Precisamos de
uma informação sobre uma aluna que estudou aqui no mesmo
ano do Arcebispo.
- Sigam-me – Falou a diretora depois de olhar a foto.
Os três acompanharam a diretora pela escola. Como o dia
tinha apenas iniciado e a escola estava vazia, o silêncio tomava
-76-
André Trindade
conta do antigo prédio de tal forma que era possível escutar

um alfinete caindo no lindo piso preto e branco em forma de
mosaico.
Subiram uma longa escada com corrimão todo trabalhado
em metal até a sala da diretora. Um computador sobre a mesa
destoava da decoração clássica em madeira.
- Só um instante. Vou pesquisar nos arquivos da turma do
Arcebispo. – Falou a diretora.
- Vocês guardam os arquivos de todos os alunos? – Perguntou
Davi.
– Sim! Nós digitalizamos todos os arquivos da escola. Temos
informações que datam da fundação do colégio em 1930. E voilà!
Aqui está a ficha do Arcebispo. Ele estudou entre 1955 e 1957.
- Existe alguma Carmem na mesma turma? – Indagou Fran.
- Deixe-me verificar. Sim, temos uma aluna que foi colega de
Dom Geraldo cujo nome é Carmem Veronesi. Uma das únicas
mulheres da turma.
- Tem alguma imagem dela? – Perguntou Lucca.
- Temos uma na ficha digitalizada. Veja! – Exclamou a
diretora. – É a mesma mulher da foto que você me mostrou.
- A senhora sabe quem poderia estar na parte da foto que foi
rasgada?
A diretora olhou com cara de poucos amigos para Davi e
respondeu com deboche:
- Tá achando que sou adivinho ou vidente? Claro que não sei.
A única coisa que posso dizer é que essa foto foi tirada na igreja de
San Ignácio de Loyola. Era uma tradição dos alunos fazerem esse
registro na igreja mais antiga de Buenos Aires quando estavam
se formando. Quem sabe vocês descubram alguma informação
sobre quem tirava tais fotos na igreja.
-77-
- Muito obrigado, a senhora ajudou muito. Vamos para a

igreja de San Ignácio imediatamente. Só tenho um último pedido.
– Falou Davi. - Mantenha essa nossa conversa em total sigilo. É
para o bem da Igreja.
- Pode contar comigo. – Respondeu a diretora, acompanhado
os visitantes até a saída do colégio.
A diretora fechou a porta do colégio, observando os três
entrarem no carro. Quando cruzaram o portão da entrada,
pegou o telefone e ligou para um número conhecido, mas pouco
utilizado.
- Bom dia! Desculpe pelo horário, mas tenho informações
que podem ser interessantes.
-78-
XIV
VIVENDO BUENOS AIRES
Carlos chegou em Buenos Aires apenas 3 horas depois que seu

alvo. A interceptação telefônica clandestina feita nos celulares do
Arcebispo e seu chefe de segurança foi uma ótima ideia. Apesar de
Dom Geraldo não ter revelado as informações de que precisava,
as falas de Davi ajudaram muito. Essa é a vantagem de pertencer
à Aíma, tinha uma rede de contatos que se espalhava por todo o
mundo com acesso aos mais diversos setores. Incluía chefes de
Estado corruptos até operadores de empresas de telefonia. Uma
teia de aranha que podia ser acionada usando o dinheiro como
cartão de acesso universal. Assim sempre estavam um passo à
frente dos demais.
Sabendo do destino de Davi, Carlos conseguiu uma passagem
de última hora no primeiro voo que saiu de São Paulo para
Buenos Aires. Em menos de 3 horas já tinha desembarcado e
recebido a informação de que Davi ligou para o padre residente
na igreja de San Ignácio de Loyola, pedindo uma audiência
urgente, confirmando a informação dada pela diretora do
Colégio Máximo San José a um dos membros da Aíma. Carlos
saiu do terminal e recebeu um pacote com uma pistola de um
menino que saiu tão rápido como chegou. Agora estava pronto
para retomar a caçada. Pegou um táxi na saída do aeroporto em
direção à igreja. Pelo horário, conseguiria interceptar os dois
rapidamente.
Conferiu de forma discreta se a pistola estava carregada e

pronta dentro do próprio pacote que recebeu. Não queria chamar
a atenção do taxista. Olhou pelo vidro do carro e percebeu que
tinha esquecido como era lindo o caminho do aeroporto para o
centro de Buenos Aires. As largas pistas cercadas por árvores e
plantações começavam a se mesclar com o ambiente urbano da
entrada da capital.
Ao chegar no centro notou o trânsito parado. Algo estranho
para a avenida 9 de Julho, a mais larga pista do mundo com 18
faixas, 12, na pista principal e 6, nas laterais. Em certos pontos,
esse número aumenta para 22 faixas, cortando o centro de Buenos
Aires. Com certeza é o principal ponto de circulação da cidade.
- O que aconteceu? - Perguntou Carlos ao taxista.
- Greve, Senhor. Mais uma manifestação dos sindicatos pela
falta de empregos.
- Essa é uma realidade que assola todo o mundo, meu amigo.
Os baixos custos de produção e a tributação reduzida da Ásia
levaram todas as indústrias para lá. - Comentou Carlos.
- Sim! O Senhor tem razão. O pior é que o estado possui um
custo muito alto para manter uma estrutura pesada, burocrática
e ineficiente. A população não consegue trabalhar e ainda assim
paga muito imposto. Só para o Senhor ter uma ideia, um tênis
de marca custa em torno de 100 dólares. Houve uma época em
que o Dólar e o Peso Argentino tinham a mesma cotação, agora
um peso vale poucos centavos de dólar. O detalhe é que o tênis
continua custando 100 dólares e o salário na Argentina não
acompanhou essa valorização. O resultado foi o empobrecimento
geral da população.
- Verdade! - Comentou Carlos. – As economias do mundo não
estão preparadas para a desindustrialização. Além da concorrência
de produtos mais baratos, a modernização da indústria elimina a
mão de obra. É um caminho sem volta.
-80-
André Trindade
- Falando em caminho, vou tentar pegar um atalho para

fugirmos da paralisação. Se ficarmos atrás da manifestação, só
conseguiremos sair amanhã.
Próximo dali o responsável pela igreja recebia três visitantes.
Padre César era um exemplar servo da Igreja e amigo pessoal
do Arcebispo. Dedicou a maior parte da vida para cuidar de San
Ignácio de Loyola e sua história. Era praticamente um acervo
vivo de todo o passado que circulou entre as paredes do prédio
histórico.
- Muito obrigado pela pronta disposição, Padre César. -
Agradeceu Davi.
- Não tem que agradecer, Davi. Apenas fiquei preocupado
contigo quando soube da morte do Arcebispo.
Davi ficou envergonhado em responder que, apesar de ser o
chefe da sua segurança, não acompanhou sua viagem a Santiago.
Era uma dor que corroía seu coração e o deixava consternado.
- Bom, padre, precisamos da sua ajuda para resolver um
mistério do passado.
- Pois vieram ao lugar certo! – Riu Padre César. – Vocês
estão em um dos prédios mais antigos das Américas. O passado
brota em suas colunas. San Inácio de Loyola foi a primeira igreja
de Buenos Aires, ela foi construída pelos jesuítas entre 1686 e
1722. No seu subterrâneo, são encontrados túneis que levam
para vários pontos da cidade, eles foram usados para defesa e até
contrabando no período colonial.
- Não imaginava que uma igreja tivesse tanta história. –
Comentou Lucca.
- Essa com certeza tem. Já foi usada como Escola de Medicina,
Biblioteca Nacional e até como quartel militar durante a invasão
inglesa de 1806. O que não falta para nossa igreja é história.
-81-
- Precisamos descobrir quem tirou essas fotos. – Falou Davi

mostrando a foto com Carmem e o Arcebispo.
O Padre olhou a foto com cuidado.
- Sim. Essa foto foi feita aqui. Todos os alunos tiravam fotos
quando encerravam o liceu, usando como fundo a fachada em
estilo barroco de San Ignácio de Loyola. Já vi muitas dessas.
- A igreja tem algum registo dessas fotos? – Perguntou Davi.
- Não. O Senhor que fazia as fotos faleceu. Seu filho continuou
por um tempo, mas acabou desistindo. Com a popularização das
câmeras digitais, acabou o movimento dos fotógrafos tradicionais
e mais uma tradição foi sepultada.
- Será que conseguimos o negativo dessa foto com o filho do
fotógrafo? - Perguntou Lucca.
- Creio que não. - Respondeu o Padre. - Fiquei sabendo que
ele jogou todo o material fora depois que encerrou a atividade.
Um verdadeiro crime com a história.
Padre César parou de falar quando viu uma pessoa se
aproximar.
- O que deseja, meu filho? Não vê que estamos em uma
reunião?
- Terminou a reunião! - Falou Carlos, disparando sua arma.
-82-
XV
O SINAL DA SALVAÇÃO
Quando Davi se virou, só deu tempo de ver Carlos com a

arma na mão. Tentou sacar, mas levou um tiro antes que pudesse
reagir. Sentiu o projétil passar queimando sua carne e caiu no
meio da sala. Quando ia receber o segundo tiro, viu Carlos se jogar
atrás de uma poltrona. Mais uma vez era Fran com sua Glock
9 mm atrapalhando o trabalho do principal assassino da máfia.
Fran disparou 4 vezes, enquanto empurrava Lucca e o Padre para
fora da sala. Padre César, em pânico, fechou a porta enquanto os
tiros continuavam. Os disparos de Carlos traspassaram a porta
de madeira, mas não acertaram ninguém.
- Venham comigo! Conheço uma saída que vocês podem usar
para fugir. – Disse o padre.
Enquanto corriam pelos corredores da centenária igreja,
Carlos tentava quebrar a porta. Desceram uma escadaria escura
com os degraus de pedra já desgastada pelos séculos até uma sala
que era utilizada como depósito. A porta de ferro era tão grossa
que as balas nunca a perfurariam.
- Ajude a empurrar esse armário. – Falou o Padre. - Aqui atrás
está a entrada de um dos túneis subterrâneos de Buenos Aires.
Foi muito utilizada no passado e hoje, mais uma vez, servirá para
salvar vidas.
- O senhor não vem? - Perguntou Lucca.
- Não. Eu fico aqui defendendo a minha igreja. O atirador não

conseguirá transpor essa porta. Podem seguir em segurança.
O túnel era completamente escuro. Fran ligou a lanterna
do celular e conseguiu enxergar a construção perfeitamente
conservada. Era um túnel baixo feito em pedra. As paredes
úmidas se aproximavam em certo ponto e ficava apertado até
para uma pessoa mediana passar. Depois de uns dois minutos
caminhando, chegaram à uma bifurcação.
- E agora, Fran, para que lado vamos?
- Temos que tomar o cuidado para não andarmos em círculo
ou podemos nos perder.
- Pensou em algo?
- Lembra do fio de Ariadne?
- Fio de quem?
- A mitologia conta que Ariadne era a princesa de Creta
apaixonada pelo herói Teseu. Para ajudar o amado a fugir do
labirinto habitado pelo monstro Minotauro (metade homem
metade touro) usou um novelo de lã. Teseu consegue sair do
labirinto seguindo o caminho que deixou com o fio dado por
Ariane. Nunca imaginei que a história estudada durante a
faculdade ajudaria a salvar as nossas vidas.
- OK, mas não temos nenhum fio, muito menos uma Ariane
para ajudar. – Respondeu Lucca.
- Nesse caso vamos fazer uma marca no canto da parede,
assim saberemos que já estivemos aqui.
- Perfeito! Mas para que lado vamos? Direita ou Esquerda?
- Você está vendo alguma placa de indicação? - Perguntou
Fran de forma irônica - Para quem não sabe o que quer ou onde
está, qualquer caminho serve.
-84-
André Trindade
Escolheram o túnel da direita e continuaram a caminhar

pelo subsolo de Buenos Aires. Depois de mais alguns minutos
desbravando os túneis, Fran parou imóvel como uma estátua.
- O que foi, Fran? Aconteceu algo?
- Um rato – Gritou Fran, pulando e se protegendo atrás de
Lucca.
Lucca pegou o celular e iluminou o pequeno roedor que
olhava fixo para a luz do telefone.
- Que é isso? Uma mulher que anda de moto e atira com
medo desse ratinho.
- Odeio ratos, são nojentos. Tira esse bicho daqui!
Lucca assustou o “monstro” dos subterrâneos de Buenos
Aires que se escondeu em uma fenda do túnel. Fran seguiu atrás
de Lucca, segurando sua mão. Estava protegida pelo seu herói.
Pela primeira vez Lucca viu Fran com medo e notou aquela
mulher forte também tinha seu lado frágil. Ela buscou em sua
proteção a segurança necessária para seguirem o caminho do
escuro percurso dos túneis de Buenos Aires. Chegaram a um
determinado ponto que foi possível escutar um barulho familiar.
Era o metrô que estava próximo.
- Estamos chegando perto de uma saída.
- Como você sabe, Lucca?
- Você notou que o túnel está cada vez mais íngreme.
- Sim. Espero que os ratos não tenham seguido o mesmo
caminho.
Chegaram em um ponto onde o túnel continuava, mas uma
longa escada se abria na lateral direita. Seguiram pela escada até
uma porta de metal semelhante à da Igreja de San Inácio de
Loyola. Tentaram empurrar a porta, mas era impossível movê-la.
Foi feita para bloquear exércitos e nunca abriria apenas com o
-85-
esforço dos dois. Fran ficou com tanta raiva que chutou a porta
com força.
- Maldição! Não acredito que vou morrer trancada num túnel
repleto de ratos.
- Calma, vamos procurar outra saída – Falou Lucca, abraçando
Fran para acalmá-la.
Estavam abraçados em silêncio quando, do outro lado da
porta, foi possível escutar um barulho. Era alguém arrastando
uma espécie de móvel pesado. Depois de alguns segundos,
escutaram uma voz madura fazendo uma pergunta. Lucca
encostou o ouvido na porta e pode identificar a pergunta feita.
Não acreditava nas palavras que seus ouvidos escutaram. Era
o mesmo código que utilizava para a entrada nos templos da
maçonaria.
Lucca se aproximou e bateu cinco vezes na porta de forma
compassada, seguindo um ritmo específico que era conhecido
pela ordem da maçonaria em todo o mundo. Do outro lado,
responderam com outros 6 toques em outro ritmo. Lucca então
respondeu com mais 3 toques e o silêncio voltou a reinar no
escuro túnel.
- E agora, Lucca? Deu certo?
Antes que ele respondesse, a porta se abriu e um senhor
grisalho com camisa branca, calça social, colete e gravata
borboleta pretos lhe estendeu a mão. O comprimento durou
alguns segundos em que ficaram em completo silêncio apenas se
olhando até o senhor falar com um sorriso:
- Seja bem-vindo, meu irmão. Presumo que precise de ajuda?
- Sim meu irmão. É um caso de urgência. Precisamos sair de
Buenos Aires o mais rápido possível. Estamos sendo perseguidos
por um assassino. Ele acabou de atirar no chefe da guarda do
Arcebispo no meio da igreja de San Ignácio de Loyola. Creio que
ele esteja morto.
-86-
André Trindade
- Pode contar comigo! Vou providenciar com os nossos

irmãos uma forma segura para vocês saírem da cidade sem
levantar suspeitas. Agora venham comigo.
Fran estranhou que o homem se prontificou a ajudar sem
sequer pedir seus nomes. Pela confiança depositada parecia que
os dois eram conhecidos de longa data. Difícil acreditar que, em
um mundo de tanta desconfiança e falsidade, a ajuda imediata e
incondicional tenha vindo de um desconhecido.
- Muito obrigado pelo apoio, meu irmão. Tivemos sorte em
encontrá-lo.
- Não se preocupe, além de guarda da passagem sou
sommelier do Café Tortoni. O mais tradicional café de Buenos
Aires que, além de uma arquitetura belíssima, possui na sua adega
subterrânea uma passagem para os túneis secretos da cidade.
Lucca acompanhou seu irmão de ordem com a certeza de que
estava em boas mãos. Saíram da adega repleta do melhor Malbec
Argentino para uma pequena mesa no canto de um salão escuro.
- Meu irmão. - Disse o sommelier. - Fiquem aqui enquanto
providencio algo para vocês beberem. Onde estão é praticamente
impossível reconhecê-los; assim, terei tempo de providenciar a
saída de vocês de Buenos Aires.
Era um salão com aproximadamente 40 pessoas que
ocupavam pequenas mesas. A iluminação reduzida servia apenas
para os garçons atenderem os clientes mantendo a privacidade
dos casais. Um ambiente aconchegante e sensual.
- O que foi aquilo? - Perguntou Fran sobre o apoio do
sommelier.
- Ele é meu irmão. Respondeu Lucca. E como irmão sabe
que estou dizendo a verdade. Esse é um dos nossos códigos na
maçonaria. Ele me avaliou quando nos cumprimentamos. E teve
a certeza de que estava ajudando a pessoa certa.
-87-
- Como pode alguém ajudar uma pessoa que conheceu no

túnel de Buenos Aires sem ter certeza de que está falando a
verdade?
- A maçonaria seleciona muito bem seus membros. Somente
aqueles puros de coração que não tenham vícios podem entrar no
seu quadro. Depois disso ela continua a lapidar o caráter de seus
integrantes ao ponto de virarem verdadeiros irmãos, defendendo
princípios e valores comuns. Entre nós não existe segredos. Por
isso não tive o menor receio de contar sobre o ocorrido na igreja
de San Inácio.
- Impressionante – Respondeu Fran - Não imaginava que
existia um tipo de organização secreta com tais atributos.
- Digamos que a maçonaria é mais discreta que secreta.
Ela ajuda muitas pessoas sem aparecer, pela simples vocação
beneficente. Tanto quem ajuda quanto quem é ajudado não
precisam aparecer. O importante é ajudar.
Nesse momento o garçom chegou com uma garrafa do
Malbec Catena Zapata.
- Desculpe, nós não pedimos vinho. – Falou Fran.
- É uma cortesia do sommelier – Respondeu o garçom.
Antes que Fran recusasse mais uma vez, Lucca colocou sua
mão sobre a dela dizendo.
- Adoraremos provar. Assim começa a nossa noite portenha.
-88-
XVI
PROVAÇÃO DIVINA
Carlos ainda estava assustado. Nunca esteve tão perto da

morte. Como assassino, aprendeu que planejamento, calma e
distância sempre garantiam mortes mais seguras. Era a segunda
vez que recebia disparos da mesma pessoa em poucas horas.
Estava arriscando muito e descumprindo as próprias regras que
criou. Os disparos de Fran ainda estavam zumbindo em seu
ouvido. Com certeza era uma profissional que sabia o que fazer.
Depois que viu Fran e Lucca escaparem com o padre pelo
corredor com a porta de ferro, Carlos não teve outra saída. Fugiu
da igreja tentando não ser reconhecido pelas pessoas que se
aglomeravam na sua entrada. O tiroteio fez o centro da cidade
parar. Antes de sair, passou por Davi deitado na sala do Padre
César com o peito todo ensanguentado. Pelo seu estado era mais
uma morte para sua coleção.
Depois do tiroteio, a polícia chegou rapidamente a San
Ignacio de Loyola. Carlos já tinha saído sem deixar rastros, pois
sabia que a igreja não tinha sistema de vigilância para registrar
sua imagem. Contudo, não podia arriscar ser reconhecido por
algum dos fiéis que estavam na igreja, quando entrou para
procurar Lucca. Andou por duas quadras até chegar na Catedral
Metropolitana, sede da arquidiocese de Buenos Aires. Uma
belíssima construção neoclássica que tornava a praça de maio
ainda mais atraente. Como a catedral estava lotada, era o local
certo para se esconder. Sem saber o que movia toda aquela
multidão, Carlos foi acompanhando o fluxo das pessoas até ver

o real motivo da aglomeração: era o caixão com o corpo do
Arcebispo Dom Geraldo que acabara de chegar de Santiago.
Parou por um instante ao seu lado e pode ver que estava
com as mãos sobrepostas com flores que escondiam a ausência
do dedão que Carlos trazia no bolso, junto com seu celular. As
pessoas se amontoavam aos prantos para a despedida de seu líder
religioso. Aos poucos foi empurrado pela onda de pessoas até
chegar no fundo da catedral. Sentou no último banco e baixou
a cabeça para orar. O medo da morte tinha tomado seu corpo.
As mãos estavam suadas e trêmulas. Sua respiração continuava
ofegante como um prenúncio de ataque de pânico. Depois de
um tempo cabisbaixo, conseguiu controlar a respiração e abriu
os olhos.
Vendo a comoção das pessoas no adeus ao arcebispo,
começou a questionar suas atitudes. Uma menina de 7 anos de
idade com um vestido branco e um rosto angelical sentou ao seu
lado e pegou sua mão. Estava com os olhos cheios de lágrimas.
Olhou para Carlos enquanto colocava a pequena palma sobre sua
mão e disse:
- Não fique triste, moço! O Arcebispo está no céu, ao lado de
Jesus, cuidando de nós.
Carlos deu um abraço na menina e começou a chorar
lembrando que o perdão ao próprio assassino foram as últimas
palavras do Arcebispo.
Nunca questionou as ordens do padrinho. Cada morte que
a Aíma encomendava era realizada sem hesitação. Tinha uma
regra de nunca se aproximar das suas vítimas. Assim era mais
fácil realizar o trabalho e virar as costas para as consequências.
Mas parece que dessa vez Deus colocou Carlos à prova. A dor
das pessoas que estavam na Catedral era a maior prova do mal
que seus atos causavam.
-90-
André Trindade
Lembrou da primeira vez que matou uma mulher. Uma

pobre universitária que testemunhou um de seus assassinatos e
conseguiu ver seu rosto. Ela não tinha culpa alguma, mas estava
na hora errada no lugar errado. Carlos sabia que não poderia
deixar ela viva, era muito arriscado. Ela implorou pela vida e a
lágrima que caiu de seu rosto até hoje marcam sua memória. Com
um tiro de pistola com silenciador, a história de uma bela jovem
se encerrou nas suas mãos. E mais uma morte sem solução foi
arquivada pela polícia.
Carlos imaginou o sofrimento da família da jovem ao
encontrar o corpo. Deveria ser o mesmo sofrimento que passou
quando chamaram sua mãe para ver o corpo do marido. Tentava
esquecer essas imagens, mas era impossível. Estavam incrustadas
em sua mente e voltavam de tempos em tempos como uma
forma de martírio.
- Reza, moço! O Arcebispo sempre falava que rezando nossa
dor passa. – Falou a menina se despedindo de Carlos.
Carlos rezou, pedindo perdão pelos atos que tinha cometido.
Essa seria a última missão da sua vida. Seu coração não aguentava
mais carregar o peso de tanta dor. Tinha que eliminar Lucca o
mais rápido possível. Somente assim teria paz.
-91-
XVII
ADIÓS NONINO
Enquanto isso, Fran e Lucca estavam na segunda garrafa de

vinho no subsolo do Café Tortoni. Estavam esperando a ajuda
para saírem de Buenos Aires. Fran olhou preocupada para o
seu relógio, estava angustiada com a demora, pois sabia que
cada minuto que passava as chances de serem encontrados pelo
assassino aumentavam.
Nesse instante, as conversas de todas as mesas foram
interrompidas por uma música. No canto esquerdo do palco,
uma luz vermelha iluminou um músico tocando um Bandoneón.
Uma espécie de acordeom usado no tango, cuja sonoridade torna
a dança típica da Argentina ainda mais bela.
No lado direito do palco, outra luz iluminou um dançarino,
elegantemente vestido com terno e chapéu típicos da década de
1920. A terceira luz se acendeu, iluminando a estrela da noite no
centro do palco. Uma linda mulher com cabelos negros e um
vestido vermelho com decotes avantajados. O homem caminhou
lentamente enquanto o músico tocava Adiós Nonino. A obra
prima do compositor Astor Piazzolla. O dançarino encenou uma
abordagem à mulher que o desprezou. Ela tentou afastar-se, mas
o homem a puxou pela mão até ficarem abraçados. Na sequência,
começaram a dançar, entrelaçando braços e pernas em perfeita
sintonia. Cada movimento demonstrava a sensualidade do toque
e a cumplicidade dos corpos. O tato masculino ao conduzir a
dança demonstrava força e carinho ao mesmo tempo. A leveza
André Trindade
dos passos da dançarina realçava a beleza do seu corpo e a

sutileza feminina. Definitivamente o tango é uma dança que
exalta a sensualidade.
Fran assistiu aos movimentos com total atenção. Cada gesto
dos dançarinos faz seu coração acelerar. Seu rosto branco realçava
as bochechas vermelhas pelo vinho e calor que sentia. Passou a
mão no pescoço e notou que estava suando. Seu corpo nunca
reagiu de tal forma. Com o desenrolar da dança, Lucca que estava
sentado à sua direita coloca a mão em sua perna. Fran notou que
foi um ato involuntário. Como se fosse um hábito. Pensou em
repelir o toque, mas acabou deixando. Aquela mão trazia mais
calor para o seu corpo. Sentia mais sensibilidade no leve toque
de Lucca na perna direita do que o ferimento à bala na perna
esquerda. A dor e o prazer ao mesmo tempo eram sensações
que se compensavam. Bebeu mais uma taça de vinho e o calor
continuou aumentando. Sentia suas partes mudando e cruzou
as pernas. Seus olhos acompanhavam a ligação dos corpos,
dançando enquanto imaginava seu corpo sendo possuído por
Lucca.
Não! Pensou Fran, tirando a mão de Lucca de sua perna. Ele
pediu desculpa e como se nada tivesse acontecido continuou
assistindo ao show. Reação típica da pouco apurada sensibilidade
masculina. Enquanto Fran era um vulcão de excitação, Lucca
parecia calmo como um lago.
O tango encerrou no exato momento em que o sommelier
chegou.
- Pronto, meu irmão. Tudo resolvido. Para evitar o risco
de vocês serem localizados, conseguimos duas passagens para
Montevidéu. A chance de estarem vigiando os aeroportos de
Buenos Aires é grande. Do Uruguai fica fácil pegar voos para
qualquer lugar do mundo. Chegando lá procurem o hotel
Carrasco. Já entrei em contato com um irmão que estará
esperando por vocês.
-93-
- Muito obrigado, meu irmão, salvou a minha vida. - Falou

Lucca, abraçando o sommelier fortemente.
- Vocês têm que pegar o Buquebus no Porto Madeiro em
1 hora. Podem ir de táxi ou, se preferirem, podem fazer uma
caminhada de 20 minutos.
- Não, é arriscado andarmos pelas ruas de Buenos Aires. Meu
receio é que possam nos reconhecer. – Comentou Fran.
- A cidade está em ebulição. Os movimentos sociais
organizaram um grande protesto que praticamente fechou
Buenos Aires. A falta de empregos e, principalmente, de uma
perspectiva de melhora na economia levaram as pessoas para a
rua.
- É uma manifestação programada? – Perguntou Lucca.
-Sim, meu irmão. Depois de anos de populismo a conta
chegou. A população empobreceu e o auge econômico da
Argentina ficou apenas na lembrança. Essa é a receita de uma
bomba pronta para explodir.
- Não será arriscado seguir essa manifestação? – Perguntou
Lucca.
- Muito pelo contrário. O Café Tortoni fica na Avenida de
Mayo, uma das mais requintadas ruas de Buenos Aires. Os
manifestantes têm por costume iniciar as manifestações na avenida
9 de Julho e depois descem a Avenida de Mayo até a praça que
leva o mesmo nome. Em frente à Casa Rosada fica o ponto final
das manifestações. As grandes mudanças na Argentina seguem
o clamor popular. Vocês podem entrar no meio da multidão e
nunca serão reconhecidos.
- Vamos caminhar, preciso tomar um ar fresco. – Disse Fran
com o corpo ainda em chamas.
Lucca e Fran saíram do Café Tortoni e se misturaram em
meio à multidão de argentinos que protestavam. Lucca até pegou
-94-
André Trindade
um cartaz que pregava contra o capitalismo. Caminharam com a

multidão até o pronto principal da manifestação. A praça de Mayo
estava completamente lotada. A trágica coincidência da grande
manifestação ser marcada no mesmo dia em que o Arcebispo
estava sendo velado na Catedral Metropolitana uniu devotos e
manifestantes no mesmo lugar e transformou a Praça de Mayo
em um formigueiro humano.
Lucca e Fran acompanharam os manifestantes até a lateral
da Casa Rosada. A belíssima construção é a sede da presidência
da Argentina. Seu estilo arquitetônico inconfundível remonta
ao ano 1594. Originariamente utilizada como Fortaleza Real
de Dom Juan Baltazar da Austría às margens do Rio da Prata.
Demolida em 1850, a fortaleza deu espaço para o atual edifício
Alfândega Nova. Segundo relatos históricos, a cor rosada surgiu
da fusão do branco e do vermelho, cores que representavam dois
partidos políticos.
- Lucca, não podemos ficar no meio dessa multidão, se o
assassino nos encontrar, não teremos como reagir. Vamos para
um local mais calmo. – Comentou Fran preocupada.
- Veja Fran, aquela placa indica a entrada para um museu. Lá
estaremos menos expostos.
Os dois entraram no museu da presidência que fica no subsolo
da Casa Rosada. O museu é o resultado da restauração do antigo
Forte de Buenos Aires, local onde foi construída a Casa Rosada,
e registra toda a história política da Argentina. As antigas paredes
de tijolos criaram um embate com a moderna arquitetura da
restauração. O teto em formato de abóbada abriga mais de 1000
obras de valor histórico. Chamou a atenção de Lucca o quadro
de um casal. Ao chegar perto, viu que era o retrato do presidente
Perón e sua esposa Eva Duarte. A famosa Evita Perón.
A cumplicidade do casal, registrada na pintura a óleo, era
plena. Evita com um vestido branco longo roubava a cena do
presidente. Seu sorriso espalhava simpatia por todo o museu.
-95-
Era impossível passar pela obra e não sentir sua energia. Fran
se aproximou de Lucca e instintivamente pegou em sua mão,
imitando o casal ícone da Argentina.
- Veja no quadro que Evita está ao lado do seu marido como
uma forma de apoio. – Falou Lucca.
- Sim. Estão felizes por estarem juntos. Não como uma forma
de competição. Estão em sintonia. Será que esse é o verdadeiro
amor?
- Pela alegria dos dois, eu imagino que sim.
- Com a maturidade, o desgaste das pequenas coisas já
não interfere mais na relação. Começamos a valorizar mais as
diferenças que nos completam ao invés de tentar adaptá-las à
nossa visão de mundo.
- Até porque cada pessoa tem um histórico de vida com
experiências que são únicas.
- Exatamente. Saber se colocar no lugar da outra pessoa é
muito difícil. Eu não sei o que ela vivenciou e que marcas traz.
- Por isso não podemos julgar. O meu juízo sempre será algo
pessoal. Sobre uma vida que eu não vivi.
- Verdade, Lucca. Por isso o certo e o errado são muitas vezes
questão de ponto de vista.
- Sim. Tanto Perón quanto Evita trazem seus históricos de
família, amigos e outras relações. O segredo é saber que a nossa
memória não é compartilhada pela outra pessoa e temos que
aceitar a memória dela para construir uma relação afetuosa.
Os olhos de Fran brilhavam ao escutar as palavras de Lucca.
Ficou estática apenas admirando a clareza própria da maturidade
humana. Lucca não sabia se o olhar de Fran era efeito das suas
palavras ou do Malbec. Mais provável que fosse um blend.
Saíram do museu em direção ao Porto Madero. Em poucos
minutos chegaram ao lugar mais romântico de Buenos Aires.
-96-
André Trindade
Era uma área totalmente restaurada do cais que abriga muitos

restaurantes e bares. Um dos locais preferidos pelos casais
apaixonados de Buenos Aires. Passaram ao lado da Puente de
La Mujer.
- Os detalhes são muito sensuais.
- Como? – Pergunta Lucca sem entender o comentário de
Fran.
- Os detalhes dessa ponte. As curvas da ponte lembram um
casal dançando tango e o entrosamento dos cabos sustentando a
estrutura assemelha-se ao homem conduzindo sua parceira com
segurança e leveza.
Lucca viu que todos os casais que estavam passando pela
ponte estavam abraçados e não perdeu tempo. Puxou Fran pela
cintura.
- Em Roma, faça como os Romanos. Assim não levantaremos
suspeitas.
Fran sentiu-se protegida em seus braços na caminhada que
fizeram até o buquebus. Uma mulher caminhando abraçada em
Puerto Madero não quer guerra com ninguém. A caminhada
sobre os ares do Rio da Prata e um clima levemente frio fez Fran
se aproximar ainda mais de Lucca. Andaram lentamente como os
outros casais até chegarem no terminal da embarcação.
Apresentaram os documentos e subiram a bordo da enorme
embarcação com quase 100 metros. Suas dimensões permitiam
transportar 1000 pessoas e seus automóveis ao mesmo tempo.
Era a forma mais prática de cortar o Rio da Prata em direção a
Montevidéu.
Lucca notou que Fran ainda estava levemente alcoolizada. Ela
sentou ao seu lado com o rosto ruborizado. Choque do calor de
seu corpo com o vento do porto.
- Você é casado? - Perguntou Fran de forma direta e objetiva.
-97-
Lucca estranhou a pergunta direta e sem rodeios de Fran.

Uma forma nada usual de tirar uma dúvida. Apesar de surpreso,
Lucca entrou na brincadeira.
- Não, sou divorciado!
- Faz muito tempo?
- Sim! Casei com uma namorada da faculdade. Conheci ela no
meio do curso de Direito, quando veio transferida para a minha
faculdade e logo começamos a namorar. Era uma pessoa incrível
e resolvemos morar juntos no último ano do curso. Tudo estava
perfeito e resolvemos casar logo após a formatura.
- E por que terminaram?
- O sonho dela era fazer concurso. Queria muito ser delegada
da Polícia Federal. Eu sempre incentivei e até ajudei com os
estudos. Nossa vida de casal se resumia a estudar. Ela para os
concursos, eu, para o mestrado. Ao contrário dela, eu sempre
quis seguir a vida acadêmica. Em 2008 ingressei no mestrado
com bolsa integral e ela passou no concurso. Pensei que os
nossos sonhos tinham se realizado. Puro engano!
- O que houve? - Perguntou Fran, sentada no banco caramelo
do buquebus com os olhos fixos em cada palavra de Lucca.
- Ela assumiu o concurso em João Pessoa enquanto eu já
estava no Doutorado em São Paulo. No começo era até legal.
A distância era compensada pelo tempo que passávamos juntos.
Fazíamos uma programação de períodos de férias, feriados e
recessos do meu curso. O Primeiro ano foi assim. Mas a distância
castigava nossa relação a cada minuto.
- Imagino. Cada um realizando seu sonho, mas distantes. Deve
ser muito desgastante.
- No segundo ano, eu recebi um convite para ficar 6 meses
na Itália, fazendo o Doutorado Sanduíche. Ganhei uma bolsa e
não tinha como recusar. Uma oportunidade dessas acontece uma
-98-
André Trindade
única vez na vida. Principalmente quando o convite foi feito pelo

pela maior autoridade mundial na área da minha pesquisa.
- Ela foi junto com você para a Itália?
- Não. Ela estava em estágio probatória da Polícia Federal e
não tinha como sair por esse período. Foi o começo do fim do
nosso casamento. Nossa relação esfriou e ficamos até 2 semanas
sem nos falar. Quando voltei para o Brasil, já éramos praticamente
estranhos.
- Você pediu o divórcio?
- Não. Ela se apaixonou por uma colega de trabalho.
- Sério!?
-Sim. Até hoje ela jura que começaram depois da nossa
separação. Mas tenho certeza que foi antes. Hoje eles moram em
São Paulo, estão casados e com dois filhos. Não posso culpar ela.
Foram os desencontros das nossas vidas.
- Esse mundo tá muito louco. - Comentou Fran. - Até pouco
tempo as pessoas nasciam, casavam e morriam no mesmo lugar.
Hoje elas têm muito mais mobilidade por questões de trabalho,
mas não conseguem constituir família e ter uma horta para
plantar um pé de tomate. Lembra da irmã do mosteiro? Será que
ela não está certa na simplicidade da vida que leva?
- Pode ser! Lembro de uma pesquisa que falava que o homem
das cavernas trabalhava 2 ou 3 horas e ficava o resto do dia com
a família. Hoje nós trabalhamos 10, 12 até 14 horas e ficamos
pouco tempo com a família.
- E o pior é que nos consideramos seres evoluídos - Sorriu
Fran de uma forma descontraída.
A conversa durou mais meia hora. Esse foi o pouco tempo
que Fran conseguiu ficar acordada. Mas tempo suficiente para
Lucca notar que seu interesse era correspondido.
-99-
XVIII
UMA SEGUNDA CHANCE
Ao chegar na igreja, a polícia encontrou Davi com um tiro

no peito. A bala entrou perto do coração e saiu atrás do ombro.
Por pouco não atingiu o órgão vital. A ambulância levou Davi
inconsciente para o hospital. Como perdeu muito sangue e sua
vida estava em grave risco, os socorristas cortaram a rua Bolívar
em alta velocidade, tentando reanimar Davi de todas as formas.
A ambulância deu ingresso no pronto socorro do Hospital
Santa Lúcia com acompanhamento dos paramédicos que
estancaram a hemorragia para evitar que o sangramento
continuasse e administraram medicamento para a dor. Com o
rápido atendimento foi possível estabilizar o caso.
- Foi um milagre ele ter sobrevivido – Falou o paramédico
para o enfermeiro do hospital.
Davi permaneceu desacordado por 3 horas com vários
médicos acompanhando seu estado. Como o projétil atravessou
seu corpo, a cirurgia apenas certificou que não permaneceu
nenhum estilhaço da bala ou alguma hemorragia. Com certeza
a morte tinha batido na porta de Davi. Em anos atuando como
segurança, nunca precisou sacar a arma ou sofrera uma agressão.
Em apenas um dia protegendo Lucca já era a segunda vez que
recebia tiros. Acordou ainda debilitado pela anestesia, mas logo
ficou agitado e gritou.
- Onde estou?
André Trindade
- Calma. – Respondeu o enfermeiro – o Senhor passou por

uma cirurgia, mas passa bem.
Davi pôde ver que do lado de fora do quarto dois policiais
estavam falando com Estevam, um dos seguranças que atuava na
equipe da arquidiocese sob seu comando. Davi fez um sinal com
a mão e chamou-o.
- Estevam, preciso de um favor.
- Chefe. Foi a mão divina que desviou a bala. Por milímetros
o tiro não atinge o coração e...
- Sim, sim! – Respondeu Davi impaciente. – Preste atenção.
Preciso saber se mais alguém foi baleado? Alguém morreu?
- Não chefe. Não encontraram nenhum corpo. E o Padre
César falou que os seus amigos conseguiram fugir.
- Ótimo! Preciso do meu celular. Tenho que fazer uma ligação
urgente.
Estevam entregou o celular e saiu do quarto pedindo um
pouco de paciência aos policiais. Davi logo falaria com eles para
explicar o tiroteio na igreja.
A ligação de Davi foi prontamente atendida pelo chefe da
segurança do Vaticano.
- Boa tarde?
- Você quis dizer boa noite. Viu que horas são aqui em Roma?
- Desculpe, mas é urgente. Lucca fugiu, acompanhado de uma
enviada da Congregação Franciscana.
- Como assim? Você os deixou fugir?
- Acabei de levar um tiro e estou internado.
- Lucca atirou em você?
-101-
- Não. Pior do que isso, estão fugindo de um assassino

profissional. Ele queimou o corpo da mãe de Lucca e está atrás
dele.
- Temos que encontrá-los imediatamente. Utilize os recursos
que precisar para isso.
- Entendido. Boa tarde... digo noite.
Davi desligou o telefone e chamou Estevam.
- Quer falar com os policiais, chefe?
- Sim. Mas antes preciso que você acione os nossos contatos
para localizar essas duas pessoas sem que a polícia saiba. É
urgente!
Davi sabia que o interesse do Vaticano por Lucca era sinal de
que algo muito importante estava por acontecer.
Mais rápido que Davi e a polícia, Carlos recebeu a informação
do trajeto de Lucca e Fran, 30 minutos após embarcarem. Os
dados foram rapidamente captados pelo informante da Aíma na
imigração. Carlos pegou um táxi diretamente para um aeroporto
local onde um bimotor o esperava. Tinha que chegar rapidamente
a Montevidéu para não perder a pista dos seus alvos.
-102-
XIX
UVITA
- Acorda Fran! Chegamos.

- O quê? Como? – Responde Fran despertando assustada.
- Chegamos ao Porto de Montevidéu.
Fran ainda estava sob efeito do vinho quando cochilou e
demorou para lembrar onde estava. Desembarcaram no terminal
de passageiros do porto de Montevidéu. O clima ainda mais frio
e, com o anoitecer, apresentava um ar intimista e aconchegante
logo na chegada da capital Uruguaia. Pegaram o primeiro táxi
que encontraram. Fran sentou ao lado de Lucca e encostou a
cabeça no seu ombro, ainda estava sonolenta.
- Qual é o destino? - Perguntou o taxista.
- Vamos para o hotel Carrasco. É muito longe?
- Sem trânsito meia hora. Nesse horário até 50 minutos.
- Preciso comer algo antes. Tem algum restaurante aqui perto.
– Falou Fran.
- Sei de um muito bom, falou o taxista.
Depois de 5 minutos chegaram a um bar chamado Fun Fun.
- Moço, eu falei restaurante, não um bar. - Reclamou Fran.
- Minha senhora, o bar Fun Fun foi fundado em 1895 e, com
certeza, tem a melhor comida de Montevidéu.
Fran não discutiu. Se ficou aberto por tanto tempo é porque

deve ser bom. Além de estar com muita fome para questionar a
indicação. O bar era pequeno e aconchegante. Pela quantidade de
pessoas, com certeza era uma referência da noite de Montevidéu.
Cada centímetro das paredes do bar é disputado por fotos, quadros
e camisetas de times de futebol. Uma decoração carregada que
traduz a vida dos uruguaios e suas paixões.
Mesmo lotado, conseguiram uma das últimas mesas
disponíveis. O garçom chegou com o cardápio repleto da melhor
comida montevideana. Um nome do cardápio chamou a atenção
de Lucca.
- Que bebida é essa tal de Uvita?
- É uma bebida da casa feita com vinho da uva garnacha e
vinho do porto. A fórmula é guardada em segredo por décadas.
Querem experimentar?
- Com certeza - disse Lucca antes que Fran pudesse recusar.
O garçom serviu a garrafa da bebida que tinha um leve sabor
adocicado.
- E para jantar, já escolheram?
- Eu quero um bife de tiras com batatas. – Respondeu Fran.
- Eu quero uma massa. Alguma recomendação?
- Temos um talharim a carbonara maravilhoso.
- Pode ser esse. – Respondeu Lucca.
O garçom saiu e Lucca ficou imaginando o prato. De repente
deu um soco na mesa que espantou as pessoas próximas.
- É isso!
- O que foi? – Falou Fran derrubando o copo de uvita com
o susto.
- A resposta para o enigma da foto é o talharim.
-104-
André Trindade
Fran olhava sem entender nada. Com certeza a uvita tinha

afetado o cérebro de Lucca que continuou falando.
- Quando eu estudei em Roma sempre pedia um talharini
ai quatte mare. Um prato que usa frutos dos quatro mares que
cercam a Itália: Adriático, Jônico, Tirreno e Mediterrâneo.
Os olhos de Fran brilharam. Afinal Lucca não era tão burro.
Conseguiu desvendar o início do enigma criado por sua mãe.
- Com certeza as respostas que procuramos estão na Itália. -
Respondeu Fran.
- Sim! Além disso, minha mãe sabia que eu adoro esse prato.
Terminaram de jantar festejando a descoberta com mais uma
garrafa de uvita. Ao fundo do bar, um casal sexagenário começou
a dançar sozinho ao som da milonga, música típica dos pampas
do sul da América. Com a maior desenvoltura e vivacidade, a
dupla exauria felicidade e tirava aplausos dos clientes do bar com
a demonstração de que o amor não tem idade. Fran assistiu a
cena com o coração palpitando.
Terminaram o jantar e pediram um táxi. O centro histórico de
Montevidéu era apaixonante, uma parte da Europa construída
abaixo da linha do Equador. Fran entrou no táxi e ficou admirada
com as construções que emolduram a capital uruguaia. Cada
detalhe planejado para garantir mobilidade sem perder a beleza
arquitetônica. O taxista saiu do centro e seguiu pela orla para
chegar mais rápido ao Hotel Carrasco. Durante o trajeto, Lucca
abraçou Fran aquecendo seu corpo. Ela sentia-se protegida em
seus braços. Apesar de ter conhecido Lucca a poucas horas, sentia
uma sinergia entre os dois como se estivessem próximos há anos.
Lucca e Fran desembarcaram do táxi e se depararam com
uma monumental construção de mais de um século totalmente
restaurada. O hotel Carrasco parecia um castelo iluminado
destacando a grandeza, o poder e o glamour do Uruguai.
Sentiam como se estivessem entrando em uma obra de arte,
-105-
ao ingressarem na recepção com lindas colunas laterais que

destacavam o vitral. Quando chegaram no balcão da recepção, o
funcionário perguntou com um sorriso.
- Boa noite. Os senhores têm reserva?
- Sim! Respondeu um senhor alto com terno escuro. – Deixa
que eu cuido deles.
Era o gerente do hotel. Ele havia recebido uma ligação de
um irmão da maçonaria de Buenos Aires no período da tarde.
Apertou a mão de Lucca e disse:
- Tudo bem, meu irmão. Seu quarto está pronto, é só me
acompanhar.
Sem falar mais nada nem se identificar, o gerente acompanhou
os dois até uma das suítes. Todos os detalhes da arquitetura
deixavam claro que estavam no melhor hotel do Uruguai e, com
certeza, um dos melhores do mundo. O senhor abriu a porta e
entregou um cartão de acesso ao quarto.
- Aqui estarão seguros. Não lançarei os nomes de vocês no
sistema por questão de segurança. Se precisarem de algo podem
me chamar.
O gerente entregou um cartão com seu telefone e se despediu
de Lucca com o mesmo abraço dado pelo Sommelier do Café
Tortoni. Fran viu a solidariedade e o compromisso entre dois
homens que nunca se viram. Unidos por laços maiores que as
nossas fúteis relações sociais. Eram verdadeiramente pessoas se
ajudando, sem promessas ou expectativas. Verdadeiros irmãos.
-106-
XX
O ENCONTRO DE BACCO COM
AFRODITE
Fran estava visivelmente cansada depois da fuga de Buenos

Aires. Ao entrar na luxuosa suíte, deixou a jaqueta de couro sobre
um móvel de madeira e sentou na aconchegante poltrona para
tirar as botas de motociclista. O vinho portenho e a uvita do fun
fun ainda circulavam em seu corpo.
- Preciso de um banho! - Falou Fran.
Levantou descalça e saiu em direção ao banheiro. Empurrou
a porta com força que bateu, mas não fechou, ficando levemente
entreaberta. Lucca vasculhou o quarto e encontrou roupões
personalizados do hotel e uma pequena adega com os melhores
vinhos Tannat. Um símbolo do Uruguai. Ao deitar na cama,
notou que pelo reflexo do espelho do banheiro era possível ver a
ducha e Fran se banhando. Foi em direção da porta para fechá-la,
mas ao se aproximar os segundos se tornaram séculos. Seu corpo
era perfeito. Branco como a neve dos alpes suíços, contrastava
com os cabelos negros que caíam até as costas. A marca do tiro
não reduzia o encanto de suas curvas que a água cobria por
completo.
Lucca não conseguiu fechar a porta. Seu sangue fervilhava
de excitação. Fazia muito tempo que não sentia aquela sensação.
Lembrou de quando tocou Fran, ao andarem de moto e pôde
sentir mais uma vez seu corpo em suas mãos.
Nesse momento, Fran virou-se e viu Lucca parado na porta.

- O que está fazendo? – Falou ela enquanto protegia seu corpo
com as mãos.
- Vim trazer um roupão – Respondeu Lucca entrando no
banheiro com o roupão na mão e os olhos voltados para o
mármore branco no chão.
Ficou com o braço estendido esperando que Fran pegasse a
vestimenta.
Fran sabia que, apesar de ele estar vendo-a banhar-se nua,
o ato de desviar o olhar enquanto entregava o roupão era uma
forma de respeito com seu corpo. Por segundos, lembrou do
calor que sentiu ao se excitar durante o show de tango com a
mão de Lucca. Não sabia o que fazer. Seu corpo implorava por
algo que nunca tinha feito. Algo que era da sua natureza e que
tinha se privado por muito tempo. Sem pesar o lado racional,
mas apenas o sentimento carnal, pegou o roupão. Quando Lucca
soltou a peça, Fran pegou a sua mão e não deixou ele sair. Ao
virar-se para Fran, viu que ela tinha deixado cair o roupão e
estava nua como a Vênus de Milo com seus lindos olhos azuis
implorando por amor. Ela puxou Lucca para o chuveiro com
roupa e tudo, pegando sua outra mão até ficarem muito próximos.
A água continuava correndo sobre os dois. Lucca abraçou Fran e
olhando em seus olhos falou:
- Quero você.
- Então pega o que você quer!
Os dois se beijaram com muita paixão. Os lábios de Fran
sentiram na boca de Lucca um campo novo. Uma experiência
que nunca tinha provado: seu primeiro beijo.
Lucca já estava todo encharcado, mas continuou beijando
Fran enquanto tirava cada peça de roupa. Em poucos segundos
estavam completamente nus. Fran pode sentir que Lucca estava
muito excitado enquanto a beijava. Era impossível não perceber,
-108-
André Trindade
pois seu órgão encostava em seu corpo a todo momento. Lucca

virou Fran de costas e começou a beijar seu pescoço. Sua mão
direita subia lentamente das suas pernas até o quadril, enquanto
a esquerda acariciava seu seio. O beijo no pescoço deixou Fran
arrepiada dos pés à cabeça. Seu corpo estava em ebulição. Fran
repeliu a mão de Lucca quando tocou suas partes. Ainda não
sabia o que fazer. Lucca continuou beijando Fran que virou de
frente. Lucca ergueu Fran em seus braços e colocou-a sentada
na pia de mármore. Ainda escorria água dos seus corpos quando
Lucca começou a beijar seus seios. Cada toque da boca de
Lucca deixava Fran ainda mais enlouquecida. Lucca se abaixou e
começou a beijar as partes de Fran. Ela tentou empurrar a cabeça
de Lucca, mas quando sentiu sua língua parou imediatamente.
Ele sabia o que estava fazendo. Alternava beijos em suas coxas
com um toque molhado, mas firme de sua língua. Ficou toda
molhada enquanto Lucca estava de joelhos fazendo reverência
ao seu corpo. Fran começou a sentir algo estranho em seu
corpo como uma explosão, melhor, uma implosão. Algo que
vinha de dentro da sua espinha em forma de descarga elétrica
e a fez gritar impulsivamente. O ápice do prazer fez Fran cair,
abraçando Lucca. Ele notou que o orgasmo a deixou toda mole.
Levantou e levou Fran para o quarto. Fran deitada de bruços na
cama parecia uma obra de arte esculpida por Michelangelo só
para os olhos de Lucca. A perna direita de Fran estava levemente
inclinada. Lucca deitou ao seu lado e mais uma vez beijou seu
pescoço. Os arrepios voltaram imediatamente. A mão direita de
Lucca percorreu suas curvas com muita delicadeza. Dessa vez
Fran não retirou sua mão. Ele começou a massagear suas partes
que estavam molhadas, não pelo chuveiro, mas pelo prazer. Os
movimentos no lugar certo fizeram Fran sentir que estava sendo
dominada novamente pela sensação de excitação. O órgão de
Lucca estava encostado em suas nádegas. Ela colocou a mão
e percebeu que estava rígido como uma pedra. Então Lucca
começou a roçar em suas partes. Por várias vezes no movimento
similar ao que fazia com o dedo. Quando estava ficando ainda
-109-
mais excitada, sentiu que Lucca já estava dentro dela. Eram

literalmente um só corpo. Uma só carne. Seu hímen se rompeu e
sentiu uma leve dor. Uma dor que não fazia frente ao prazer que
experimentava. O pênis de Lucca percorria o interior do Fran
numa entrega total. Pelo canto da janela Fran consegui ver a lua
cheia que iluminava os amantes em movimento. Uma cena que
pela sua beleza poderia ser retratada como o prazer da vida. O
prazer maior que é capaz de gerar a vida.
Fran sentiu a sensação de auge do prazer chegar ao mesmo
tempo em que Lucca. Gozaram juntos do amor carnal e dormiram
abraçados sob a luz da lua.
-110-
XXI
O MUNDO É DOS HONESTOS
Carlos desembarcou no aeroporto Ángel Adami e em poucos

minutos já circulava pelas ruas de Montevidéu à procura de
Lucca e Fran. Os contatos da Aíma estavam com os nomes e as
descrições dos dois. Era questão de tempo até serem localizados
e abatidos. Carlos lembrou de quando era jovem e o padrinho o
levou para caçar na savana africana. De cima de seu esconderijo
viram um Leopardo disparar e derrubar um antílope que,
indefeso, agonizou até a morte com as presas no pescoço.
- Carlos, veja como é importante ser o mais rápido. Assim você
sobrevive. Todos os dias o Leopardo sai para caçar e o antílope
sai para correr de seu predador. Aquele que falhar perde o jogo.
Essa é uma lição de vida. Sendo predador ou presa, sempre esteja
preparado para ser o mais rápido.
Carlos sabia que seria muito difícil cumprir sua missão
se perdesse seus alvos em Montevideo. Era uma questão de
sobrevivência não decepcionar o padrinho e a própria Aíma.
Como tinha olhos na polícia, aeroportos e rodoviárias, o território
da caçada já estava mapeado. O mínimo deslize seria suficiente
para o leopardo atacar.
A Aíma distribuiu a foto de Lucca pela cidade oferecendo uma
ótima recompensa por informações. O submundo de Montevidéu
compartilhou a imagem centenas de vezes. É espantoso como
o dinheiro faz as coisas fluírem mais rápido. Em pouco tempo
Lucca passou a ser uma das pessoas mais conhecidas da cidade.

Era questão de tempo para Carlos conseguir uma pista.
Perto das 2 horas da manhã, Carlos circulava pela Praça da
independência de Montevidéu quando recebeu uma mensagem.
Um dos contatos da Aíma tinha conseguido informações sobre
o paradeiro de Lucca. Em poucos minutos o informante chegou.
Encontraram-se próximo às colunas do teatro Solis. A rua estava
vazia e o único barulho que se escutava era o vento gelado do rio
da Prata castigando as construções da cidade velha.
- Tem certeza que foi esse homem que você viu? Perguntou
Carlos.
- Sim! Estava acompanhado por uma mulher. - Respondeu o
taxista.
- Onde você os deixou?
- Peguei os dois no bar Fun Fun e deixei no hotel Carrasco. Foi
a melhor corrida que fiz. Não tinham pesos e eu acabei cobrando
em reais. Ganhei quase o dobro do valor da corrida normal. –
Riu o taxista com alegria por ter se aproveitado dos passageiros.
– Falando nisso. Quero receber a recompensa pela informação.
Carlos notou o ar de satisfação do taxista em contar vantagem
por ter enganado os dois clientes. A desonestidade brilhava em
seus olhos.
- Tome aqui o seu dinheiro. – Falou Carlos ao entregar 300
dólares. O que é justo é justo.
O taxista saiu contando o dinheiro, mas não chegou na terceira
nota. Caiu ao lado da coluna do teatro com um tiro na nuca. Com
o silenciador da pistola de Carlos, apenas o barulho do corpo
caindo se escutou. Não podia confiar em um informante que
tinha visto seu rosto.
A ganância deixava mais uma vítima no caminho e Carlos
tinha um encontro marcado com Lucca.
-112-
XXII
A MARCA DA PAIXÃO
- Fran! – Gritou Lucca. – O seu ferimento piorou. Veja o

sangue na cama.
Fran acordou assustada e viu a cama com uma marca de
sangue. Olhou o ferimento e notou que a origem do sangue era
outra.
- Esse sangue não é da minha perna, foi da minha virgindade.
Ela se levantou toda encabulada e procurou a roupa espalhada
pelo chão do banheiro sem falar nada. Lucca ficou deitado
olhando Fran se vestir sem entender o que tinha acontecido.
Notou que durante a noite de amor que passaram, Fran preferiu
ser dominada e amada por iniciativa de Lucca, mas não passou
pela sua cabeça que ela poderia ser virgem.
- Virgem? Como Assim?
Fran sabia que tinha chegado a hora de contar a verdade.
Parou na poltrona em frente a Lucca e disparou.
- Eu sou, aliás, eu era uma irmã da Congregação Franciscana
que acaba de romper o voto de castidade.
- Como!?
- Isso mesmo. Depois de 32 anos de castidade, minha
virgindade não existe mais.
Lucca riu até notar a feição séria de Fran.
- Impossível!
- Você não acredita que eu era virgem?
- Quanto à virgindade eu não duvido. Mas não consigo
imaginar você como uma freira. – Comentou Lucca.
- São coisas do destino. Eu fui abandonada na roda dos
enjeitados e acabei sendo criada no orfanato das irmãs
franciscanas. Nunca tive contato com meus pais e as irmãs
acabaram se tornado a minha família. Elas me deram todo o
carinho afeto que eu precisei para crescer.
- Você nunca pensou em procurar a sua família. Para ao menos
saber se estão vivos?
- Sim. Quando era mais jovem tive essa vontade. Mas não
consegui nenhuma informação e acabei desistindo. A roda dos
enjeitados é utilizada para proteger a criança e a identidade da
mãe que não pode assumir o filho por diversos motivos. A partir
do momento que a mãe deixa a criança, não existe mais vínculo
com o filho.
- Não deve ser nada fácil uma mãe ter que deixar um filho
para adoção.
- O pior é que fui para o mosteiro cedo e as irmãs nunca
tocaram no assunto.
- Elas já não falam muito. – Brincou Lucca.
- O convívio com elas ajudou muito. A Madre Superiora
sempre me ajudou. Ela ainda era irmã quando eu cheguei no
orfanato e acompanhou meu crescimento de perto. Mesmo
depois de assumir como Madre sempre vinha me visitar no
orfanato.
- Estranho não terem adotado você. Muitos casais que não
conseguem ter filhos, procuram os orfanatos e você seria a
criança perfeita.
-114-
André Trindade
- O pior era ver os meus amigos mais novos sendo adotados.

Era uma sensação estranha.
- Por que estranha?
- Ao mesmo tempo em que eu ficava feliz por serem adotados
e terem uma família que os acolhia, sentia uma tristeza por não
ser eu e por perder mais um irmão de orfanato. O dia que a
Madre me viu chorando, ela me abraçou e disse que as irmãs
eram a minha família.
- Isso ajudou você na escolha de seguir na vocação?
- Com certeza. Com 15 anos ingressei no noviciado e fiz meus
votos.
- Até eu estragar tudo. – Comentou Lucca.
Fran ficou vermelha. Ainda tinha muita vergonha de tudo
que tinha acontecido, mas sentia uma liberdade com Lucca que
nunca teve com outra pessoa. Parecia que já se conheciam há
muito tempo. Uma afinidade de alma e agora de corpo.
-115-
XXIII
POR UMA CABEÇA
Passavam das 3 horas da manhã quando Carlos chegou no

hotel Carrasco. Sentia que estava no lugar certo. Não perdeu
tempo e foi logo perguntando ao funcionário da recepção:
- Boa noite, meu amigo.
- Boa noite, Senhor! Em que posso ajudá-lo?
- Estou procurando um amigo. O taxista disse que deixou ele
aqui, é uma questão urgente.
- Me desculpe Senhor, mas é regra do hotel não passar
informações dos hóspedes.
- Não tem como você abrir uma exceção? – Falou Carlos
mostrando uma nota de 100 dólares.
- Infelizmente não. Regras são regras.
- Tem certeza? – Insistiu Carlos com mais duas notas de 100
dólares.
O funcionário sentiu a tentação e resolveu arriscar.
- Se essas 3 notas tiverem mais duas amigas posso dar uma
olhada no sistema.
Carlos colocou os 500 dólares dentro do folder do hotel e
deixou em cima do balcão. O funcionário guardou o folder no
bolso. Era praticamente mais do que ganharia por um mês de
André Trindade
trabalho. Carlos sempre escutou do padrinho que todo homem

tem um preço. O segredo é saber chegar no valor certo.
- Como é o nome do seu amigo?
- Lucca Reis. Está acompanhado por uma mulher que não sei
o nome.
- Não. Não temos nenhum hóspede registrado com esse
nome.
- Impossível. Eles devem estar aqui.
- Pode ser que estejam no Cassino do Hotel. Muitas pessoas
vêm aqui só para jogar e se divertir, mas não ficam hospedados.
É só descer pela escadaria que o senhor encontrará a porta de
acesso.
Carlos seguiu o caminho indicado pelo funcionário. Antes
de entrar no Cassino, viu que os seguranças do lugar revistavam
todas as pessoas. Foi ao banheiro e escondeu sua arma atrás da
cesta de lixo. Logo ao passar pela portaria, ficou espantado com
o requinte do lugar. A tranquilidade do saguão vazio contrastava
com o movimento do cassino no subsolo. Era o principal ponto
de encontro dos apostadores sul-americanos. Reunia jogadores
de todo o mundo no salão com decoração vermelha e detalhes
dourados. Muitas fortunas surgiram e uma quantidade ainda
maior desapareceu entre suas paredes. Passou ao lado das mesas,
logo abaixo do palco de shows e pegou uma faca antes que o
garçom recolhesse os talheres. Rudimentar, mas serviria para
uma morte rápida, caso encontrasse Lucca. Circulou por todos
os pontos do cassino sem encontrar Lucca. Até que um garçom
apareceu:
- O Senhor deseja algo?
Carlos notou que um dos seguranças o vigiava discretamente.
Não podia levantar suspeita.
-117-
- Aceito um whisky. Onde posso comprar fichas para as

máquinas caça-níqueis?
- Logo no fundo à direita, Senhor.
Carlos comprou 100 dólares em moedas e ficou apreciando
sua bebida enquanto olhava o cassino. Jogou por meia hora até
que as moedas e a paciência acabaram e resolveu sair do Cassino.
Passou no banheiro e pegou sua arma. Estava indo embora
frustrado quando o funcionário da portaria gritou:
- Senhor! Senhor!
- Sim. O que foi.
- Falei com um amigo que estava na recepção antes do meu
horário. Ele comentou que o gerente recebeu um casal sem
registrá-los no sistema. Achou muito estranho, pois vai contra a
regra que o próprio gerente exige.
- Só podem ser eles. Onde estão?
- Não sei informar qual o quarto. Mas se me der mais 200
dólares deixo o senhor ficar na recepção do hotel até descobrir
onde estão.
Carlos viu que o funcionário gostou da brincadeira de ganhar
dinheiro fácil. Pagou a quantia solicitada e voltou para a recepção
do hotel onde ficou admirando as duas estátuas de cavalo
esculpidas em mármore preto. Por um instante, lembrou do
tango Por una cabeza de Gardel. A música enaltecia o charme de
Montevidéu e contava a história de um apostador que comparava
a emoção das corridas de cavalos com sua paixão pelas mulheres.
No momento a única cabeça que importava era a de Lucca. Sairia
do hotel só depois de consegui-la.
-118-
XXIV
DE PUNTA CABEÇA
O dia apenas tinha amanhecido e o telefone já tocava no

quarto.
- Bom dia, meu irmão. Conseguiu descansar? – Pergunta o
gerente do hotel.
- Sim, meu irmão. Muito obrigado pelo apoio – Responde
Lucca ainda nu deitado ao lado de Fran.
- Tenho duas notícias para dar, uma boa e outra ruim. A
ruim é que já estão procurando vocês por toda a cidade. A sua
foto circulou por todas as redes sociais com uma notícia falsa
de que você é um criminoso perigoso. Até pagam por qualquer
informação que possa indicar onde estão. Apesar de todo o
cuidado, o hotel já não é mais um local seguro.
- Nossa. E a boa notícia?
- A boa notícia é que consegui um voo para São Paulo. Pego
vocês em 20 minutos na lateral do hotel. Saiam sem falar com
ninguém.
- Combinado. Estamos descendo.
Lucca admirou Fran ainda completamente nua ao seu lado
e teve receio de acordar o anjo que dividia seu leito. Seu corpo
descansava em plenitude sob o lençol branco de seda. Lucca
podia ficar horas apreciando cada detalhe de sua beleza, mas
sabia que a segurança dos dois era prioridade. Acordou Fran com
um beijo quente e molhado em seu pescoço que a fez despertar

com o corpo todo arrepiado.
- Bom dia princesa. Precisamos sair.
Fran acordou se espreguiçando e logo lembrou da noite
anterior ficando ruborizada de vergonha. Os dois se vestiram e
desceram do quarto do hotel.
- Espere Lucca. Vou pegar uma fruta para comermos no
restaurante.
- Enquanto isso, eu vejo se o gerente está na entrada do hotel.
Lucca seguiu pelo longo corredor e deu de cara com Carlos.
Seu coração quase saiu pela boca.
Carlos levantou rapidamente e pegou a arma no bolso. O
funcionário da recepção viu a besteira que tinha feito e gritou
para a segurança, mas às 5h 30 da manhã ninguém responderia.
Lucca tentou voltar, mas o elevador estava subindo. Então correu
para o restaurante. No meio do caminho, Fran abriu a porta e viu
a cena. Sacou a arma e gritou para Lucca.
- Abaixe!
Lucca se jogou no chão e Fran disparou. Apesar da distância,
o disparo passou muito próximo de Carlos que se escondeu atrás
da estátua de cavalo. O segundo e o terceiro disparos arrancaram
a cabeça da estátua. Carlos derrubou o cavalo de pedra no meio
do corredor e revidou os tiros. Fran estava melhor posicionada
e conseguia ter mais campo de visão para atirar. Carlos rastejou
para a lateral do corredor e saiu em disparada pelo saguão do
hotel.
- Você está bem? – Falou Fran estendendo a mão para Lucca.
- Sim. Assustado, mas vivo. Vamos sair daqui.
Saíram do hotel no exato momento que o gerente estacionou.
-120-
André Trindade
- Entrem! Entrem! Que bom que vocês conseguiram

descansar. Muitas pessoas procuram o nosso hotel pelo silêncio
e ambiente calmo, é o ideal para relaxar.
Lucca e Fran se olharam e não responderam nada. Não era
hora de falar sobre o tiroteio que acabou de acontecer, muito
menos do cavalo decapitado.
- Não tenho como agradecer o apoio, mas é provável que
estejam monitorando o aeroporto de Montevidéu.
- Por isso vamos para outro aeroporto. A melhor opção é
pegar o voo em Punta del Este.
- Ótima ideia! Com certeza não imaginam que podemos
embarcar lá. – Falou Fran.
- Sim. A rota que seguiremos é segura e, além disso, pedi para
um amigo que trabalha na locadora de carros do aeroporto ficar
atento a qualquer movimentação estranha. Para evitar que fiquem
expostos esperando no saguão, seguiremos para Punta Ballena.
Assim conseguem tomar um café na Casapueblo enquanto
esperam o horário.
- Que lugar é esse? – Perguntou Fran.
- Casapueblo é a antiga casa de verão do artista Carlos Páez
Vilaró. Fica na península de Punta Ballena. Muito próxima ao
aeroporto.
- Esse artista vai nos receber a essa hora? – Perguntou Fran.
- Não. – Riu o gerente - Ele faleceu em 2014. A beleza da casa
decorada com suas obras chamou tanto a atenção dos turistas
que transformaram o local em um hotel. O gerente do local é
meu amigo e vai nos receber com todo o cuidado e descrição de
que precisamos.
Com a pista praticamente vazia, chegaram em Punta Ballena
em menos de 1 hora e 30 minutos. A Casapueblo só tinha casa
no nome. Era uma mansão com 13 pisos e 56 quartos. Sua
-121-
construção acompanhava o relevo da encosta como se fosse um

lençol branco delicadamente solto sobre as pedras.
- Se essa era a casa de praia eu só imagino a casa da cidade. –
Brincou Lucca.
- Vilaró demorou 36 anos para construir a casa. Ela lembra
muito as construções de Santorino, na costa da Grécia. Mas
a grande atração sempre foi seu ateliê e as obras que o artista
produziu. A vida toda ele recebeu em sua casa diversas
celebridades que apreciavam suas produções.
O gerente cumprimentou seu amigo do hotel e sentaram
na varanda da casa. Os raios do sol refletidos sobre o oceano
Atlântico tornavam as paredes brancas ainda mais claras. Com
essa vista e a brisa do mar, o coração de Lucca já estava mais
calmo. Nem parecia que tinha participado de um tiroteio poucos
minutos atrás.
- O lugar fica ainda mais lindo durante o pôr do sol. – Falou
o gerente.
- Quem sabe um dia voltamos para ver. - Respondeu Lucca,
colocando a mão sobre a perna de Fran.
Terminaram o café e seguiram para o aeroporto. Lucca se
despediu do gerente agradecendo todo o apoio e falando que
entraria em contato pelo número do seu cartão para ressarcir
alguns “danos” causados.
Fran assustou o Gerente ao entregar sua Glock.
- O que é isso? – Perguntou o gerente.
- Fique para você. É um presente. Não vou conseguir embarcar
com ela no avião e prefiro deixá-la em boas mãos.
- Muito obrigado. Guardarei comigo.
Conseguiram pegar o primeiro voo para São Paulo, mas
tinham um grande problema. Na hora do embarque, Lucca
-122-
André Trindade
apresentou o passaporte e Fran a carteira de identidade. Ela não

conseguiria embarcar para a Itália sem o passaporte.
- E se buscarmos o seu passaporte? – Falou Lucca.
- Não vai adiantar. O meu passaporte está vencido. Como não
tinha nenhuma viagem internacional programada, deixei para
renovar mais tarde.
- Não posso ir sem você. – Falou Lucca.
As palavras de Lucca ressoaram com muito carinho nos
ouvidos de Fran. Ele realmente pensava nela. A noite maravilhosa
que tiveram não foi só prazer. Via sentimento em sua expressão.
- Tive uma ideia. – Falou Lucca. – Vou comprar um cartão
para fazer uma ligação internacional.
- Vai falar com quem?
- Minha ex-mulher!
-123-
XXV
UM REI COM DUAS RAINHAS
Lucca utilizou um telefone público para ligar com o cartão

de chamadas internacionais. Algo quase não usado nos dias
atuais, mas muito útil quando não se tem um celular ou não se
quer correr o risco de que a ligação seja rastreada. Lucca ainda
lembrava o número da ex-mulher que atendeu imediatamente. A
ligação durou poucos minutos e quando terminou, Lucca pôde
notar que a feição da Fran não era das melhores.
- Tudo bem? Aconteceu algo? – Perguntou Lucca.
- Eu que pergunto. – Respondeu Fran. - Primeiro você fala
que não pode ir para a Itália sozinho. Agora quer falar com a sua
ex? Pede pra ela ir junto contigo.
- Posso estar enganado, mas isso me parece um pequeno
ataque de ciúme. – Sorriu Lucca.
- Você só pode estar brincando. Sabia que tanto ciúme quanto
cio têm origem na mesma palavra grega zelus. – Respondeu Fran
ainda mais nervosa.
- Sério? – Lucca continuava com um sorriso que irritava Fran.
- Como não estou no cio e não tenho nenhum “zelo” por
você, pode descartar essa ideia de ciúme.
- Mas só o que você tem feito nos últimos dias é cuidar de
mim. Isso não é zelo?
André Trindade
Fran ficou vermelha de braba, mas não falou mais nada. Lucca
parou de cutucar a fera. O voo para São Paulo foi um silêncio
total. Lucca riu sozinho, pensando.
- Será que essa foi a nossa primeira crise?
Desembarcaram em São Paulo perto das 11 h 30 min. O
voo para a Itália sairia só às 13 h 30 min, tempo suficiente para
resolver a questão do embarque de Fran. Amanda esperou os
dois, logo após a imigração. Fazia anos que Lucca não via a
ex-mulher. Estava ainda mais linda com longos cabelos loiros
cacheados que ressaltavam seus olhos esverdeados. Vestia um
terno escuro típico da profissão. Fran deu espaço para falarem e
ficou atrás de Lucca.
- Muito obrigado pela ajuda. Não sei como agradecer.
- Tive certeza de que era urgente. Foram anos sem nos falar.
- Conseguiu o que pedi?
- Sim. Está aqui o passaporte. Tive que falar com um colega
delegado que atua na emissão.
- Sabia que podia contar com você. - Falou Lucca, abraçando
a ex.
- Ela gosta de você.
- Como assim? - Perguntou Lucca intrigado.
- Ela me fulminou com os olhos quando me abraçou. Típico
de quem tem ciúme.
Lucca riu até se virar e ver o rosto de Fran. Agradeceu por
ela ter deixado a arma no Uruguai ou teriam outro tiroteio no
aeroporto.
Lucca se despediu da ex e entregou passaporte para Fran.
- Pronto. Agora você pode embarcar.
-125-
- Era isso que você tinha pedido para a sua ex? Por que não
falou? Eu deveria ter agradecido a ela.
- Você não bater nela já foi o suficiente. - Falou Lucca
segurando a gargalhada.
Fran estava encabulada. Será que foi ciúme? Realmente teve
vontade de disparar na ex de Lucca quando se abraçaram. Era
novata nessas emoções e precisava controlá-las.
-126-
XXVI
O “NOVO” VELHO MUNDO
Lucca e Fran estavam na sala de embarque esperando o

voo para Milão. Já tinham comprado roupas novas e se vestido
no banheiro do aeroporto. Fran olhava o passaporte novinho
conseguido pela ex-mulher de Lucca, ainda envergonhada pela
postura que teve.
- Lucca, por que o teu passaporte é vermelho? O meu é azul.
- É que eu tenho a cidadania italiana. Uso o passaporte
italiano para facilitar a entrada em outros países, principalmente
na Europa.
- Pensei que você fosse brasileiro?
- Sim. Nasci no Brasil, mas meu avô paterno era italiano e pela
lei quem tem descendência de um cidadão italiano pode pedir o
reconhecimento da nacionalidade. Pedi a minha quando morei
em Roma durante o doutorado.
- Legal. É muito difícil conseguir.
- Na verdade não. As pessoas interessadas têm que reunir
a documentação para comprovar que têm algum antepassado
italiano.
- Falando em Itália, já sabemos qual é o nosso destino? Por
onde devemos começar? – Perguntou Fran.
- Não tenho ideia.
Lucca pegou a foto que a mãe deixou e leu novamente a frase

com o código. “No meio de quatro mares, as mãos de Netuno e
do pai do inferno indicam o caminho da Luz.”
- Descobrimos que a Itália é o país cercado por 4 mares. Mas
e o resto do enigma?
- A minha mãe criou esse enigma com a certeza de que eu
conseguiria decifrá-lo. Ela não nos colocaria em um beco sem
saída. Cada palavra tem um significado próprio e remete à um
contexto que eu deveria saber. Foi a forma que ela encontrou
para nos dar o caminho sem que a informação caia em mãos
erradas.
- Tenho certeza disso, Lucca. Precisamos descobrir a sequência
do enigma. O que ela quis dizer com “as mãos de Netuno”?
- Só pode ser algum lugar na Itália que tenha referência com o
deus dos mares. Mas onde?
- Não consigo imaginar. Respondeu Fran.
- Temos um caminho. - Falou Lucca – Vamos usar o maior
sistema de pesquisa já criado pelo homem: o Google.
Lucca riu da própria resposta. Lembrou da época em que
era estudante e que para pesquisar algo na faculdade tinha que
passar horas na biblioteca. Vasculhava os catálogos sobre o tema
e folheava os sumários da pilha de livros selecionados, rezando
para encontrar o assunto da pesquisa em algum deles. Isso quando
não era necessário pedir o livro para outra biblioteca ou esperar
que o aluno que retirou a obra devolvesse o exemplar. E pensar
que hoje a informação está, literalmente, na palma da mão.
Fran pesquisou “cidade de Netuno na Itália”, mas nada de
relevante apareceu.
- Pesquise apenas sobre Netuno. – Falou Lucca.
- Veja Lucca, apareceu uma imponente imagem do deus dos
mares segurando uma lança.
-128-
André Trindade
- Na verdade é um tridente. Uma arma muito usada pelos

gladiadores nas arenas romanas. Os lutadores geralmente usavam
o tridente junto com uma rede. Assim imobilizavam o oponente
com a rede para atacar com as 3 lâminas do tridente.
- Deixa eu pesquisar no google Maps: cidade do tridente na
Itália. Tem algumas empresas e uma praça na cidade de Trento,
norte da Itália.
- É isso! Só pode ser Trento. Minha mãe visitou essa cidade
quando participou de uma excursão para o norte da Itália. Lembro
que ela ficou apaixonada pelo local e falou que os campos verdes
a as montanhas eram a imagem perfeita do paraíso. Chegou até
a comentar que se não tivesse que cuidar do meu avô mudaria
para a região de Trento só para aproveitar o fim da vida. Pesquise
sobre essa cidade.
- Vejamos aqui, é uma cidade com pouco mais de 100 mil
habitantes cujo nome é uma homenagem ao deus Netuno.
- Bingo! Achamos nossa cidade, Fran.
- Minha mãe conheceu bem a cidade de Trento durante a
estadia. Nossa próxima pista deve estar lá. Ela gostou tanto do
lugar que até tirou uma foto esquiando nos alpes da região.
- A sua mãe esquiava?
- Claro que não. Tirou a foto poucos minutos antes de cair e
desistir já na primeira aula de esqui.
- Olha Lucca, a praça principal tem uma fonte com a estátua
de Netuno. – Falou Fran entusiasmada.
- Esse é o nosso destino.
Lucca tinha a certeza de que a mãe deixou a foto com
coordenadas que só ele poderia decifrar. Mas seu coração ainda
estava angustiado com toda a situação. A cada descoberta mais
dúvidas apareciam.
-129-
XXVII
O FIM DOS TEMPOS
Carlos entrou na Catedral Metropolitana de Montevidéu,

bem em frente à Praça Constituição. Muito próximo de onde foi
encontrado o corpo de um taxista morto durante a madrugada.
Tinha um hábito incentivado pelo padrinho de rezar toda vez
que estava confuso e precisava de uma resposta. A oração abria
sua mente e preparava o caminho para as respostas chegarem. A
Catedral era o lugar certo. Construída inicialmente em 1720, ainda
no governo da Espanha, pelas mãos dos índios Tapes, trazidos
pelas missões jesuítas, foi sucedida pela construção atual de 1804.
Era um imponente prédio com uma fachada neoclássica.
Carlos sentou na primeira fila e pôde observar um altar
de mármore rosa que se destacava entre tantas imagens que
adornavam as paredes da igreja. O total silêncio do local era
ideal para refletir sobre o que fazer. Perdeu a pista dos seus alvos
depois do tiroteio no hotel Carrasco, por isso precisava pensar
quais seriam seus passos para tentar antecipá-los. O tempo era
curto e estava contra Carlos. Tinha que analisar o que aconteceu
para tentar prever o futuro.
- Tempo? É tudo que eu não tenho. – Pensou em voz alta.
Nesse momento Carlos lembrou de outro hábito que aprendeu
com o padrinho. A leitura dos clássicos da literatura. Em especial
a obra Confissões, de Santo Agostinho. Na passagem que fala do
tempo, o autor afirma que não temos presente, passado e futuro.
André Trindade
Para ele, o passado se resume em nossa memória, pois já não

existe mais. O futuro nada mais é do que a incerteza de nossas
expectativas, e também não existe. E o presente é a percepção
imediata do nosso meio. É o que sentimos. Por isso, o tempo é
pessoal (memória, expectativa e sentimento) e cada um vive o
seu tempo.
Essa lição foi muito importante para Carlos. Conhecendo as
memórias e as expectativas de Lucca, seria mais fácil encontrá-
lo. Começou a lembrar de todos os acontecimentos até aquele
momento. O fato de Davi salvar Lucca significava que a Igreja
tinha entrado na briga, mas como sempre, de forma velada para
não levantar suspeitas. E a mulher que acompanhava Lucca?
Com certeza foi treinada. Pensou em silêncio, mas não conseguiu
traçar uma linha de raciocínio que pudesse ligar os pontos dessa
história. Não tinha outra forma. Teria que informar o padrinho
que perdeu a localização de Lucca. Era melhor fazer isso o mais
rápido possível para acionar os contatos da Aíma.
Carlos fez o sinal da cruz e saiu da Catedral. Quando pegou o
celular para ligar, uma mensagem do padrinho chegou:
- Venha imediatamente para a Itália. O nosso alvo acaba de
desembarcar em Milão.
A Aíma era muito rápida. Foram informados, logo após os
passaportes de Lucca e Fran serem apresentados no sistema de
imigração do aeroporto de Malpensa - Itália.
Carlos partiu para o aeroporto de Montevidéu. Agora estava
mais aliviado, pois a caçada seria em seu território.
-131-
XXVIII
TEMPO DE AMAR
O avião para a Itália estava quase vazio, algo de se esperar

devido ao alto preço da tarifa. Lucca teria que usar a renda das
próximas 3 gerações para pagar o cartão de crédito, depois que
comprou as passagens de última hora no balcão. Sentaram nas
poltronas bem ao fundo, próximo do banheiro com apenas
algumas pessoas sentadas à frente.
- Me explica uma coisa - perguntou Lucca – Você falou que
era irmã da Congregação Franciscana.
- Sim. - Respondeu Fran.
- Por que você abandonou o mosteiro?
- Isso foi uma longa história.
- Temos muito tempo até Milão.
- Bom, você lembra que eu falei que estudei teologia e depois
cursei história.
- Sim.
- O curso de teologia eu fiz em uma faculdade confessional,
junto com outras irmãs e padres. Foi uma sequência dos estudos
bíblicos do noviciado. A cada texto que estudava, minha
curiosidade se aguçava ainda mais. Conhecer da essência do ser
humano e sua espiritualidade é algo apaixonante.
André Trindade
- Imagino que o ambiente com as irmãs era propício para

aforar essa vocação. – Comentou Lucca.
- Com certeza. Depois que terminei o curso de teologia, senti
falta de algo mais profundo e resolvi cursar História. Queria
conhecer a fundo a evolução das religiões para saber quanto de
nossa cultura tem origem na religião.
- Assim você deu continuidade na mesma faculdade.
- Não foi possível. A única opção foi ingressar na Universidade
pública que ficava em outra cidade, pois a faculdade onde eu
concluí teologia não tinha o curso de história. Minha rotina
mudou e todo dia eu pegava um ônibus para chegar na faculdade
depois de uma hora.
- Isso que é força de vontade para estudar.
- Sim. Eu adorava o curso e todo o conhecimento sobre a
história da humanidade, suas culturas e costumes. Isso sempre
me instigou.
- Você frequentava as aulas vestida de irmã?
- Claro! Não tinha como ser diferente. Sempre sentei no final
da sala até para evitar os comentários sarcásticos dos colegas
que achavam estranho uma irmã em um curso com pessoas
de perfis tão diferentes. Eu sempre ficava sozinha na sala. Seja
pela timidez ou pela dificuldade de falar com os outros alunos
que tinham uma vida totalmente diferente da minha. Enquanto
eu festejava estudando e conhecendo mais sobre a história do
mundo fora dos muros do mosteiro, as minhas colegas riam
contando sobre as festas e as bebedeiras. Era como água e óleo,
não conseguíamos nos misturar.
- Mas o que fez você mudar de postura e deixar de usar as
vestes de irmã?
Fran baixou a cabeça e respirou profundamente. Lucca notou
que a pergunta abalou Fran e a resposta seria espinhosa. Depois
-133-
de uma breve pausa seguida de um suspiro, Fran começou a

relatar seu drama pessoal.
- Tomei essa decisão depois que aconteceu algo que até hoje
me arrepia. Estava na biblioteca tão concentrada na leitura que
acabei não percebendo o horário. Corri até a parada, mas o
ônibus já tinha partido.
- E o que você fez? – Perguntou Lucca.
- Um rapaz que fazia algumas disciplinas no meu curso parou
e ofereceu uma carona até a rodoviária. Como não tinha opção,
acabei aceitando. Eu nunca tinha conversado com ele, mas sabia
que estudava na mesma sala e não desconfiei de suas intenções.
- Você conseguiu encontrar um ônibus na rodoviária?
Fran baixou a cabeça e começou a chorar. Seus olhos azuis
estavam vertendo lágrimas descontroladamente.
- O que foi? - Perguntou Lucca.
- O rapaz desviou o caminho com a desculpa de pegar um
atalho. Quando notei, estávamos parados em uma estrada de
terra deserta. Ele colocou a mão na minha perna dizendo que
queria ver o que a irmã escondia embaixo da túnica. Tirei a mão
dele e dei um tapa em seu rosto.
- Que idiota! O que ele fez depois?
- Falou que se não fizesse o que ele queria iria me deixar
sozinha na estrada. Quando tentou me atacar novamente, eu o
acertei com o livro que carregava e consegui fugir. Ele tentou me
encontrar, mas eu fiquei escondida no mato até ver que o carro
tinha saído. Nunca um homem tinha encostado no meu corpo.
Eu me sentia suja e agredida pela vontade dele tentar me possuir
a força. Caminhei no escuro por mais de uma hora até chegar na
estrada principal.
- Conseguiu ajuda de alguém?
-134-
André Trindade
- Ninguém parava com medo de ser um assalto. Depois de um

tempo, eu cheguei em um posto de gasolina praticamente tendo
um ataque de nervos. Desmaiei e fui acordar no hospital.
- Prenderam esse bandido?
- Tentei fazer a denúncia, mas não tinha provas e nenhuma
testemunha. Por fim, as irmãs pediram para eu desistir da
denúncia ou poderia expor a congregação. Foi o dia que eu falei
com a Madre superiora avisando que iria deixar a congregação,
era inaceitável uma mulher sofrer tal abuso e ninguém punir o
agressor. Além disso, a minha sede pelo conhecimento falou mais
alto. Eu continuaria o curso, mesmo sem a aprovação das irmãs.
- O que a Madre falou?
- Sabendo que eu não queria deixar de estudar, ela fez uma
proposta para eu ajudar a congregação com algumas questões
práticas. Apesar de as irmãs viverem em um tempo paralelo, não
podem se isolar por completo da realidade. Eu sou esse elo.
- Que tipo de atividade você realizou para a congregação?
- Um pouco de tudo. Participei como voluntária em ações da
Igreja na África, trabalhei nos campos de refugiados no Paquistão
e até ajudei os movimentos contra o aborto em diversos países.
- Então você é uma espiã da Igreja? - Brincou Lucca.
- Quase isso! - Riu Fran. Mas até hoje não tive que desarmar
nenhuma bomba ou saltar de um avião sem paraquedas.
- Mas sabe atirar!
- Tive umas aulas quando participei do grupo de apoio
humanitário após a guerra da Síria.
- Você esteve na guerra?
- Não! Como foi feito um embargo econômico, muitas
crianças estavam morrendo por falta de medicamentos. A nossa
congregação ajudava no tratamento dessas crianças.
-135-
- Nós não temos noção do quanto esses embargos são

devastadores.
- Não mesmo, o pior é saber que crianças morrem por falta de
medicamentos básicos, é algo que corta o coração.
- A mídia de massa não divulga essas informações e a maioria
das pessoas sequer imagina que isso acontece.
- Por isso a congregação me envia. Faço relatos para a Madre
Superiora de todas as questões de interesse da congregação.
- Você é a pessoa de confiança dela?
- Na verdade, sou os olhos e ouvidos dela. Assim ela pode
conhecer a realidade sem precisar se expor.
- Vai contar o que aconteceu entre nós?
- Não sei como nem quando, mas vou. – Falou Fran dando
um suspiro e baixando a cabeça.
- Tirei você do “bom caminho” – Brincou Lucca.
- A escolha foi minha. E até agora não me arrependo.
- Que bom! - Falou Lucca colocando a mão sobre a perna de
Fran.
- Mas e a questão da castidade? Você como irmã não é
obrigada a seguir?
- Essa é uma questão muito discutida. Para a Igreja, o celibato
e a castidade são formas de garantir que os sacerdotes tenham
uma entrega plena à sua missão, seguindo a devoção de Cristo.
Assim seu único vínculo nupcial é com a própria Igreja. Isso está
até previsto no código canônico.
- A Igreja sempre teve esse dogma?
- Não. O celibato é constantemente questionado na história
da Igreja. Muitos clérigos acabaram se casando mesmo contra
-136-
André Trindade
a orientação das normas canônicas. Até mesmo alguns Papas

foram casados.
- Os Papas?
- Sim! Lembro que foi o caso de Adriano II, Leão IX e
Gregório VII.
- Não entendo como a Igreja pode negar um fato natural
como o sexo e o prazer?
- Mas nem sempre foi assim, a questão da sexualidade na
Igreja chegou ao ponto de termos relatos de que centenas de
prostitutas foram chamadas para atender o clero durante sua
reunião no concílio de Constança em 1414.
- Quem diria. Reunião animada essa. – Riu Lucca.
- Foi assim até a Igreja estabelecer definitivamente a
obrigatoriedade do celibato para todo o clero e acabar com a
festa.
- Ainda acho que cometi um pecado ao tirar a virgindade de
uma freira.
- Nada que você fez foi contra a minha vontade. Depois
da tentativa de estupro, fiquei traumatizada de uma forma que
todo homem me causava medo. Mas com você foi diferente. Me
senti confiante nos seus braços e algo fez meu corpo atender o
chamado da natureza, creio eu.
Fran retirou o encosto que separava os dois bancos e se
aproximou de Lucca. Ele a abraçou, deu um beijo no seu pescoço
e falou rindo.
- Se eu for para o inferno a culpa é sua.
Ela aproveitou que os demais bancos estavam vazios e deitou
com a cabeça no colo de Lucca. Ele começou a fazer carinho
delicadamente em seus cabelos, massageando sua nuca. Fran
descansava como um anjo sob sua guarda e proteção. Como
-137-
a temperatura do avião estava muito baixa, Lucca pegou um

cobertor e cobriu Fran deixando apenas seu rosto para fora.
- Tá gostando da massagem? – perguntou Lucca.
- Sim. Estou adorando. Pode continuar.
Lucca passou o dedo no pescoço de Fran com tanta leveza
que parecia uma pluma, deixando-a toda arrepiada. Com sua
mão, começou a massagear as costas de Fran, que ficou ainda
mais eriçada. Como se fosse um pistoleiro do velho oeste
sacando sua arma, soltou o sutiã de Fran que abriu os olhos, mas
não falou nada. Era a aprovação de que precisava. Começou a
passar as mãos em um movimento que subiu da cintura até as
costas. Cada vez que a mão deslizava se aproximava mais e mais
dos seios de Fran, centímetro por centímetro. Tudo com muito
cuidado para não ser flagrado por alguma aeromoça. Fran sentia
a mão habilidosa de Lucca desvendar cada parte do seu corpo.
Eram sensações totalmente novas para ela. Quando chegou ao
seio de Fran, notou que seu mamilo já estava todo arrepiado.
Parecia que aquele seio era feito para a mão de Lucca. Encaixava
como uma luva. Fran dava sinais de excitação cada vez que Lucca
tocava no bico do seu seio. Foram minutos que fizeram Fran
ficar totalmente acesa. Chegou ao ponto que Fran não aguentou
e levou a mão de Lucca para suas partes. Lucca ficou surpreso
pela iniciativa da ex-virgem e agradeceu por Fran ter escolhido
uma calça Legging no aeroporto. Com certeza teria muito mais
trabalho com a calça de couro.
Lucca sentiu o corpo de Fran molhado e incendiando ao
mesmo tempo. Começou a tocá-la com movimentos delicados.
Sabia que era uma área que precisava de muito carinho. Cada vez
que mexia, Fran deixava escapar pequenos gemidos de prazer.
Continuaram assim por alguns minutos, sempre cuidado para
não serem flagrados. Fran estava em êxtase e a cada toque de
Lucca lembrava da noite interior. Uma lembrança que a deixava
-138-
André Trindade
ainda mais louca e pôde sentir que Lucca estava acompanhando

sua excitação pelo aumento do volume em suas calças.
Lucca olhou as aeromoças no final do corredor conversando
e perguntou para Fran:
- Quer fazer uma loucura?
- Não sei o que é, mas eu quero. – Respondeu Fran com
desejo nos olhos.
- Então me segue – Falou Lucca enquanto se levantava.
Lucca entrou no banheiro do avião e deixou a porta aberta.
Quando Fran chegou perto, ele a puxou pela mão e fechou a
porta.
- Você está louco! – Sussurrou Fran.
Não deu tempo de responder porque Lucca já estava beijando
seu pescoço. Os dois estavam com muita vontade e resolveram
assumir o risco.
Lucca sentou no assento do banheiro e despiu Fran. Ela
sentou no colo de Lucca e sentiu seu membro pela segunda
vez. Enquanto ela se mexia, Lucca continuava masturbando seu
corpo. Os dois estavam em tamanha agitação pelas preliminares
que não demorou muito para o orgasmo chegar e Fran dar um
gritinho. Era a segunda vez que isso acontecia na sua vida e a
primeira vez que Lucca transava em um avião, uma tara antiga.
Vestiram-se rapidamente, mas ao abrir a porta do banheiro as
duas aeromoças estavam esperando do lado de fora. A primeira
estava com ódio no olhar. A outra aeromoça não aguentou e
começou a rir, tirando toda a autoridade da colega que estava
pronta para dar uma lição de moral.
- Já terminaram? – Falou a aeromoça. – Agora podem se
sentar que vamos servir o jantar.
- E não esqueçam de lavar as mãos - Falou ainda rindo a
segunda aeromoça.
-139-
Os dois saíram cabisbaixos como duas crianças que sabiam

ter feito alguma travessura e sentaram sem falar nada.
-140-
XXIX
O AMOR DE JULIETA
Com um fuso horário de 5 horas de diferença, Lucca e Fran

desembarcaram no aeroporto de Malpensa às 4 da manhã no
horário local. Seguiram diretamente para a Estação Central de
Milão para procurar o primeiro trem com destino a Trento. A
malha ferroviária italiana é uma das mais complexas do mundo,
interligando praticamente todo seu território. Apesar de muitas
linhas cortarem a península em forma de bota, os horários não
ajudavam, o primeiro trem com destino direto a Trento estava
programado para às 10 horas.
- É muito tarde. - Comentou Fran. – Ficaremos 5 horas
parados. Vamos pegar um carro.
- Espere um minuto. Há um trem que sai para Verona em
15 minutos. Como fica perto de Trento, podemos seguir com o
trem até lá e alugar um carro. Com certeza é a forma mais rápida
de chegarmos.
- Perfeito, Lucca! Assim não perdemos tempo.
Lucca e Fran embarcaram no trem quase vazio. Apenas alguns
trabalhadores italianos e uma família de imigrantes africanos
ocupavam as cabines. Notaram que os imigrantes haviam chegado
há pouco tempo no território, pois não sabiam uma palavra de
italiano quando o fiscal passou. Fran tentou imaginar qual era a
realidade de sofrimento e privação que obrigou aquelas pessoas a
deixarem seu lar para tentar um subemprego na Europa.
- Fran, você sabia que até hoje boa parte da mão de obra na
Europa é composta por imigrantes que se submetem ao trabalho
com baixa remuneração e sem registro? Uma forma de pacto
que beneficia o patrão e garante a subsistência dos imigrantes. –
Comentou Lucca.
- A globalização tem seus preferidos. O dinheiro é o primeiro
a atravessar as fronteiras em busca de maior rentabilidade. Com
um clique, os investimentos mudam de nacionalidade. Em
segundo lugar vem a informação. Ela também não obedece às
fronteiras dos territórios. A comunicação circula o mundo e
chega na palma da mão por meios oficiais e extra oficiais. Apenas
em último lugar temos o homem. A migração é controlada pelos
países conforme sua necessidade de mão de obra barata.
- Isso quando não são barrados por estarem fora do perfil da
imigração. – Completou Lucca.
- Acho que vai além disso. Muitas vezes são criadas normas de
“soberania” que geram dificuldades para o ingresso no mercado
de trabalho, criando uma espécie de segregação profissional.
Fran olhou para a criança de aproximadamente 4 anos e
imaginou como seria o seu futuro em uma terra nova, cheia
de dificuldades. Será que já nasceu com seu destino traçado?
Seu nome, cor, idioma e nacionalidade a tornariam apta para a
sociedade ou seriam um entrave. Terá as mesmas condições e
oportunidades que as crianças da sua idade? Ou será mais um
escravo moderno?
- A desigualdade social é um câncer para qualquer país. –
Desabafou Fran.
- Muito mais quando as instituições legalizam tais desigualdades
para manter seus privilégios como uma forma de hegemonia
sobre os demais. A migração é algo fluído, as pessoas sempre
buscarão as melhores condições de vida para seus familiares,
mesmo enfrentado adversidades e os muros que a vida impõe.
-142-
André Trindade
- Concordo Lucca! Temos que aprender que a história se

repete. As desigualdades sociais crescem até a revolta popular
eclodir e romper o ciclo.
- Mas como a natureza humana tem sede de poder, com
certeza um novo ciclo se iniciará. Pode demorar um pouco mais,
dependendo da consciência da sociedade. Lembro de um estudo
que falava sobre a influência da desigualdade social no índice
de criminalidade. Os menores índices estão entre os países com
pouca desigualdade.
- Os países mais ricos? – Perguntou Fran.
- Não necessariamente, uma vez a República de Palau, um
arquipélago formado por mais de 500 ilhas na Oceania, ficou
em primeiro lugar no índice de baixa criminalidade. Não é só
questão de ter dinheiro, mas de distribuição justa do dinheiro que
se tem. – Ponderou Lucca.
- Quanto maiores as diferenças sociais, maiores serão as
grades que nos separam.
O trem foi muito rápido e chegou em Verona às 7 horas. Os
dois desembarcaram e procuraram o guichê de informações para
saber onde poderiam locar um carro. Para surpresa e azar, foram
informados que as locadoras só abririam a partir das 8 horas.
- Não acredito - Comentou Lucca para a funcionária do guichê
de informação turístico.
- Como a nossa demanda é menor, não temos locadoras 24
horas. A empresa de locação fica a 20 minutos de caminhada
daqui. É só vocês seguirem pela rua principal até esse ponto. -
Respondeu a funcionária riscando um mapa de Verona. - Vocês
podem aproveitar a conhecer a cidade enquanto esperam.
Lucca agradeceu e saíram rapidamente com o mapa na mão.
Estava ansioso para chegar a Trento e continua a corrida para
desvendar as pistas deixadas por sua mãe. Os dois pareciam
turistas procurando algum ponto de visitação na movimentada
-143-
cidade medieval. Andaram por algumas quadras até passarem

pela frente da Arena de Verona. Lucca estava com pressa e não
quis parar para ver a construção de quase 20 séculos. Seguiram
por mais alguns minutos até que Fran parou subitamente em
uma porta ao ver um grupo de pessoas tirando fotos.
- Espera, Lucca!
- Não temos tempo. – Respondeu Lucca sem diminuir o ritmo.
- Só quero conferir algo.
Fran puxou Lucca pelo braço e entrou em um corredor de
pedra amarelada. Na lateral, uma parede servia de mural para
milhares de bilhetes escritos por pessoas de todo o mundo,
declarando seu amor nas mais diversas línguas. Ao fundo, uma
parede cheia de plantas descia como uma cortina e emolduravam
a figura que inspirou os amores impossíveis. Estavam na famosa
casa de Julieta. Sua estátua estava em frente ao terraço eternizado
na obra de William Shakespeare em 1591.
- É uma história que retrata a tragédia e o amor de dois
adolescentes em meio à guerra de duas famílias.
- Só faltou a estátua de Romeu. Deve ter fugido para não
casar. - Brincou Lucca.
- Por que as pessoas estão tirando fotos com a mão no seio da
estátua de Julieta?
- É uma tradição. Segundo a lenda, se fizer isso você terá um
amor eterno.
Sem pensar duas vezes, Fran foi logo apalpando a estátua.
- Você não vem? – Perguntou Fran.
- Eu não acredito nessas superstições.
- Isso não foi um pedido, venha logo.
Era melhor não discutir com uma mulher quando ela pede
algo. Principalmente quando ela salvou a sua vida e atira bem.
-144-
André Trindade
Os dois terminaram de acariciar Julieta e saíram em direção

à locadora. Em menos de 20 minutos já tinham preenchido a
documentação e partiram para a cidade de Trento. A estrada
era esplêndida. Saindo de Verona, já era possível ver o início dos
alpes italianos, uma beleza que se estende por outros países. A
estrada que acompanha o rio Ádige estava cercada por videiras
que produziam o Marzemino: um vinho local muito apreciado.
Quando terminam as videiras, montanhas repletas de árvores e
rochas crescem na frente dos viajantes até chegarem ao cume
cheio de neve. Uma obra prima da natureza.
- Agora entendo o comentário da sua mãe falando que a região
é o mais próximo que ela conseguia imaginar do paraíso. – Falou
Fran. – A paisagem parece uma obra prima das mãos divinas.
- Só espero não chegar no paraíso antes de conseguir as
respostas que precisamos. - Respondeu Lucca.
-145-
XXX
DOIS DEUSES
A viagem foi rápida, chegaram pela autoestrada usando a

saída em direção ao centro da cidade. Trento fica às margens do
rio Ádige e foi uma das principais rotas dos povos conquistados
pelos romanos, tornando-se município há mais de 2000 anos.
Trento testemunhou a história da humanidade. Suas construções
demonstram a evolução do homem e seu crescimento. Cada
centímetro da cidade incrustada nos pés das montanhas do Tirol
italiano tem muita história. Estacionaram o carro em uma praça
e foram caminhando até o centro histórico. Ao chegar na Piazza
Duomo, Fran ficou deslumbrada com a Fonte de Netuno em
frente à Catedral de San Vigilio.
- Veja, Lucca! Ele está apontando com a mão direita. Parece
que está indicando o caminho que a sua mãe descreveu na foto.
Lucca foi até o restaurante da esquina e pediu um mapa.
Era um velho hábito de viajante da época em que não existiam
celulares.
- Deixa eu traçar uma linha reta na direção que a estátua está
apontando.
- Vejamos o que Netuno nos fala. – Comentou Fran,
entusiasmada com o desenrolar da busca.
- Impossível! Ele está apontando para a saída da cidade, não
tem nada nesse caminho.
André Trindade
- Mas é a direção apontada pela estátua.

- A direção está certa. A estátua é que está errada.
- Como assim? – Indagou Lucca.
- Todas as estátuas da fonte foram esculpidas em mármore,
menos a estátua de Netuno que é feita em metal. Não acha isso
estranho?
Lucca olhou para o lado e saiu caminhando até chegar no
pequeno café em frente à fonte. Conversou com um idoso que
apreciava seu chá e voltou em poucos minutos com um sorriso
no rosto.
- Na dúvida pergunte aos mais velhos. Eles sempre sabem de
tudo.
- O que ele disse?
- A estátua original era feita em mármore e foi transferida para
a sede do município no Palazzo Thun, para evitar a degradação
pelo tempo. No lugar eles colocaram uma réplica em cobre.
- Onde fica esse palácio?
- Longe, muito longe! - Falou Lucca.
- Quão longe?
- 200 metros. - Respondeu Lucca, rindo.
- Seu palhaço. Vamos lá.
Os dois percorreram a “longa” distância até o Palazzo Thun.
Logo na entrada principal do edifício, já era possível ver a estátua
original de Netuno protegida da degradação do vento, chuva e
sol. A réplica da praça era linda, mas não se comparava com
a original em mármore branco. A estátua era perfeita em cada
detalhe, delineando o deus dos mares em sua imponência.
- A estátua está apontando para os fundos do Palácio. O que
tem lá? – Perguntou Fran.
-147-
- A área é muito grande, precisamos de mais informações.

- Veja o que diz a foto: “No meio de quatro mares, nas mãos
de Netuno e do pai do inferno está o caminho para a Luz”.
Temos que descobrir quem é o pai do inferno.
- Tem alguma informação no mapa sobre inferno, demônio,
diabo ou algo assim? - Perguntou Lucca.
- Nada, Lucca, apenas alguns comércios, repartições públicas
e uma praça.
- Que praça é essa?
- Praça Dante…. É isso! – Gritou Fran dando pulos!
- Como? Perguntou Lucca sem entender nada.
- Quando a sua mãe fala em pai do inferno não está se
referindo ao demônio ou algo assim. Mas ao capítulo da Divina
Comédia, escrito por Dante Alighieri.
- Ele é o pai do inferno?
- Na verdade foi ele que descreveu o inferno como é conhecido
hoje. Seu poema tem três partes: inferno, purgatório e paraíso e
foi escrito no século XIV em dialeto florentino. Algo estranho
para a época, pois a língua mais usada era o Latim e cada região
possuía um dialeto diferente. O mais interessante dessa história é
que, depois da unificação da Itália, o dialeto florentino passou a
ser a língua oficial do país e a divina comédia a maior referência
da literatura italiana.
- Vamos ver esse pai do inferno, a praça Dante fica logo aqui
ao lado.
Fran estava feliz por terem desvendado mais uma parte desse
mistério. Será que finalmente teriam uma resposta?
Os dois estavam animados com a descoberta das pistas deixadas
pela mãe de Lucca e chegaram na praça Dante rapidamente. O
monumento em homenagem ao poeta fiorentino se destacava no
-148-
André Trindade
jardim público. A estátua de Dante Alighieri apontava com a mão

direita a direção que deveriam seguir. Mais uma vez Lucca abriu
o mapa para saber o caminho a seguir, mas não tinha certeza.
Quando se virou, viu Fran subir na estátua.
- O que está fazendo? Ficou louca.
- Quero ter a visão da estátua.
- Desce daí! Se a polícia chegar, seremos presos.
- Lucca, estou vendo um castelo com algumas bandeiras bem
na direção apontada pela estátua. Só pode ser isso.
Lucca olhou no mapa e viu que era o Castelo de Buonconsiglio.
Fran foi descer da estátua e escorregou diretamente para os
braços de Lucca.
- Salva pelo meu cavalheiro. Só falta me levar até seu castelo.
- Pois não, My Lady. Siga-me.
-149-
XXXI
HABEMUS PAPAM
Davi ficou inquieto na cama do hospital. Sabia que o ferimento

do tiro era grave, mas não podia perder tempo. Muita coisa estava
em jogo e um pedido do Vaticano nunca seria desmotivado. Foi a
única vez que recebeu uma missão dessas e não queria desapontar,
pois já pesava em seus ombros a morte de Dom Geraldo. Algo
que não seria esquecido facilmente. Agora tinha perdido Lucca e,
como chefe da segurança do Arcebispado, não poderia cometer
mais erros. Pegou o telefone e ligou para um contato no governo.
Precisava de ajuda para localizar os dois.
As relações de poder entre religião e política estão sempre
próximas, às vezes até juntas. A ideia de um estado laico, sem
interferência da Igreja é apenas um sofisma. A política interfere
na Igreja e a Igreja interfere na política o tempo todo. Quantas
vezes viu o arcebispo receber visitas de políticos, pedindo apoio
para projetos, votações polêmicas e até para suas próprias
campanhas. Davi sabia que a imparcialidade política não existia,
o ser humano é um ser político por natureza. Lembrou de uma
frase que o Arcebispo sempre repetia: “Aqueles que não gostam
de política são governados pelos que gostam.”
Davi sabia que a própria Igreja Católica era uma construção
política. O Vaticano é um estado e o Papa é o seu chefe, com
mandato vitalício. Sua eleição ocorre por dois motivos: morte
ou renúncia do antecessor. Bento XVI foi o terceiro caso de
renúncia na história. Antes dele, apenas os Papas Celestino V,
André Trindade
em 1294, e Gregório XII, em 1409, haviam renunciado. Por isso

o mundo parou quando foi anunciada sua renúncia em 11 de
fevereiro de 2013. Apesar de muitas dúvidas que ainda pairam
no ar, foi um ato de muita coragem deixar o trono de São Pedro.
Como entidade política, o Vaticano tem regras próprias. Até
a confirmação da morte do Papa segue um ritual estabelecido.
Depois da constatação médica do falecimento, o cardeal
Camerlengo (camareiro) tem que chamar o Papa pelo seu nome
de batismo três vezes. Se esse não responde é oficializada a morte
e retirado o anel de pescador. A joia representa a missão do
Papa como pescador de almas e sucessor de Pedro, fundador da
Igreja, que também era pescador. Depois de incinerado o anel, é
anunciada a morte do Papa.
Após o anúncio, os cardeais são convidados para o funeral
e convocados para a eleição de um novo Papa. Essa votação é
chamada de conclave e significa em latim “em um lugar fechado”.
É justamente nesse lugar fechado que os cardeais recebem um
papel onde devem indicar o nome do escolhido como Pontífice.
Cada voto deve ser lido três vezes e será eleito como Papa aquele
cardeal que obtiver dois terços dos votos mais um. Se nenhum
cardeal atingir essa quantidade de votos as cédulas devem ser
queimadas e iniciada nova votação. Ao queimar as cédulas da
eleição frustrada, é produzida a fumaça escura que sai pela
chaminé, anunciando a decisão. Cada votação demonstra que
a política decide aquele que representa a maioria dos demais
cardeais, e seus interesses. A fumaça branca na chaminé é o sinal
de que a Igreja católica tem um novo chefe: habemus papam!
Como toda escolha política, a eleição do Papa gera expectativas
e reações. Dependendo do perfil do novo pontífice, a Igreja
pode mudar o seu rumo. Davi sabia dos bastidores do clero e
sua política, por isso conseguiu facilmente o apoio do governo,
quando falou que estava precisando de ajuda para localizar Lucca
e Fran. Ainda mais após a comovente notícia do assassinato do
Arcebispo.
-151-
Em menos de 1 hora, seu telefone tocou com a informação

de que precisava. Os dois haviam embarcado para Itália e pela
previsão do voo já estavam na velha bota. Enviou a informação
para o chefe da Segurança do Vaticano com a certeza de que
agora a briga era entre gigantes.
A informação de que Lucca estava na Itália circulou
rapidamente entre os corredores do Vaticano. Sem dar qualquer
explicação para Davi, a segurança da Santa Sé começaria a agir.
-152-
XXXII
EGOCENTRISMO
O percurso da Piazza Dante até o Castelo Buonconsiglio foi

rápido, em menos de 5 minutos Lucca e Fran estavam na frente
da enorme construção de pedra. Sobre a sua torre principal, três
bandeiras tremulavam com o vento dos alpes. Trento, a Itália
e a Europa dividiam o mesmo espaço com seus mastros. Fran
encontrou um totem que resumia a história do castelo em várias
línguas.
- Veja isso Lucca! Construído no século XII, o castelo foi
a moradia do primeiro bispo de Trento. Com edificações de
diferentes épocas, possui uma torre redonda e um muro de
proteção que destacava o castelo das demais construções de
Trento. A mescla de vários estilos arquitetônicos transformou o
castelo no ponto turístico mais visitado da região.
O palácio tinha uma vista privilegiada de toda a cidade. Fran
ficou admirada com os afrescos no teto e as obras de arte do
castelo. Os dois circularam por toda a construção medieval sem
encontrar a resposta que queriam. Então resolveram descansar
no jardim que ficava no centro do castelo.
- Estamos perdidos. – Comentou Lucca – Não consigo
entender o que minha mãe quis dizer. Nos trouxe para um beco
sem saída.
- Não pode ser, ela sabia que conseguiríamos decifrar o seu

enigma. Será que tem alguma ligação com o Concílio de Trento?
- O que foi esse concílio? - Perguntou Lucca.
- Os concílios são reuniões da alta cúpula ecumênica para
deliberar sobre vários temas. Até hoje foram feitos 21 concílios
da Igreja Católica. Na prática é uma assembleia que reúne todos
os bispos.
- Mas por que o Concílio de Trento é tão importante para ser
mencionado por minha mãe?
- Foi o concílio mais longo da história, entre os anos 1545 e
1563. Só para você ter uma ideia, durante o Concílio de Trento, a
Igreja teve 5 Papas diferentes.
- Quase 20 Anos de discussão?
- Sim! Na verdade, o Concílio de Trento foi um divisor de
águas da Igreja Católica. Foi uma resposta à reforma protestante
liderada por Martinho Lutero no início do século XVI. Ele se
rebelou contra os abusos do clero e a venda de indulgências,
pregando o retorno da Igreja aos princípios das escrituras
sagradas. O concílio é convocado pelo Papa toda vez que a Igreja
precisa tomar decisões importantes sobre seu futuro.
- Por isso o Concílio de Trento também é chamado de
Contrarreforma?
- Exatamente! Foi uma tentativa de reorganização do clero
para amenizar o crescimento da Igreja Protestante, após a cisão
promovida por Lutero.
- Por que não convidaram o grupo da Reforma Protestante
para participar do concílio e acabar com as divergências?
- Eles foram chamados e até participaram do concílio, mas
sem direito a voto. Ficou claro que o objetivo era sufocar o grupo
protestante.
- Então o concílio não teve resultados?
-154-
André Trindade
- Claro que sim! Foi ele que redesenhou a Igreja que

conhecemos hoje. Suas decisões foram tão significativas que
demoraram 300 anos para organizarem outro concílio. Entre
os temas aprovados estão a unificação do ritual das missas, os
sete sacramentos, a hierarquia da Igreja e a obrigatoriedade do
celibato.
- Que nem todos cumprem – Comentou Lucca com um
sorriso debochado.
- Sem comentários. – Respondeu Fran.
- Mas essas decisões não podem mudar?
- Até podem, mas uma Igreja só prospera se tiver diretrizes
bem definidas.
- Concordo contigo. Minha mãe tornou-se uma seguidora fiel
da Igreja Católica, só não atuava mais porque não deram espaço.
- A participação das mulheres na Igreja, assim como em
muitos outros setores, sempre foi limitada. Cada conquista das
mulheres em um mundo predominantemente machista deve
ser comemorada e a Igreja Católica é um dos últimos redutos
predominantemente masculino.
- Penso que é uma questão de tempo para mudarem essa
postura.
- A própria Igreja Católica tem limitações históricas à
participação feminina. A justificativa de que Cristo convidou
apenas homens para serem seus apóstolos não me convence
como argumento para limitar o acesso das mulheres às instâncias
superiores da Igreja. Muitas das comunidades católicas só
persistem pelo trabalho das mulheres. É um dogma que deve ser
repensado pelo bem e subsistência da própria Igreja.
Neste momento, uma excursão cheia de crianças de uma
escola local chegou ao jardim do castelo. Corriam e pulavam
como se estivessem no parquinho.
-155-
- Agora não conseguiremos pensar em mais nada com essa

bagunça – Reclamou Lucca.
- “Deixai vir a mim as crianças, porque delas é o Reino dos
Céus.”
- O que é isso Fran? Vai rezar agora?
- Nada é por acaso, incrédulo! Quem sabe as crianças nos
tragam respostas sobre o Concílio de Trento e o que significa
o “O Caminho da Luz”. – Falou Fran apontado para o guia
turístico que acompanhava a excursão. - Vamos perguntar para
ele.
Era um senhor de óculos, alto e ruivo, que estava esperando o
grupo tirar fotos para saírem.
- Boa tarde – Cumprimentou Lucca em Italiano.
- Boa tarde. - Respondeu o guia.
- Precisamos de uma ajuda. O Senhor sabe informar o que
significa a expressão “caminho da Luz” e se ela tem alguma
relação com o Castelo Buonconsiglio?
- Pergunta interessante, meu jovem. O Castelo foi utilizado
pelo Concílio de Trento quando o Papa Paulo III convocou o
19º Conselho Ecumênico da Igreja Católica como uma forma de
garantir a unidade da sua fé depois da reforma protestante.
- Sim! Foi uma resposta ao movimento liderado por Martinho
Lutero que protestava contra os abusos do clero e defendia uma
reforma no catolicismo. – Complementou Fran, demonstrando
que conhecia do assunto.
- Exatamente! Como o clero se reunia no salão principal
do castelo, foi feita uma reforma na sua estrutura para que os
vitrais sempre mantivessem o Papa iluminado. Como o Papa
representava o divino em forma humana, nada mais justo que
se apresentasse como um ser iluminado, assim permanecia em
-156-
André Trindade
destaque perante os demais. Esses novos vitrais foram chamados

de Caminho da Luz.
Lucca agradeceu o guia pela verdadeira aula e saiu
acompanhado de Fran.
- E agora Lucca? O que faremos?
- Só temos uma coisa a fazer, precisamos falar com o Papa!
-157-
XXXIII
QUEM TEM BOCA VAI À ROMA
- Impossível, Lucca! O Papa nunca irá nos receber.

- Calma Fran, temos que tentar! O sinal deixado pela minha
mãe é claro, o Papa é o caminho da luz e precisamos encontrar
um jeito de falar com ele.
- Você tem noção de que ele é uma das pessoas mais
importantes do mundo, se der tudo certo, vão conseguir uma
agenda na próxima década. Além disso, ele é uma das pessoas
mais protegidas, a guarda papal não deixará você chegar a menos
de 1 quilômetro dele.
- Não deve ser tão difícil, Fran. O sonho da minha mãe foi ver
o Papa de perto. Levei ela para Copacabana na Jornada Mundial
da Juventude em 2013 e conseguimos tirar uma foto dele quando
passou de papamóvel. Depois daquele dia, minha mãe ficou ainda
mais devota, não perdia uma transmissão da TV do Vaticano.
- São situações diferentes, ver o Papa e falar com ele. Imagine
que milhares de pessoas participam da Udienza Generale, mas
nenhuma delas fala diretamente com o Papa.
- Lembro de ter ouvido falar dessa audiência. Como ela
funciona?
- É uma sessão em que o Papa encontra os devotos e faz
comunicados oficiais. É realizada às quartas-feiras pela manhã e
ele circula com o papamóvel entre os fiéis.
André Trindade
- Hoje é terça, se corrermos, chegaremos em Roma a tempo.

Fran não acreditava no otimismo de Lucca. As chances
de conseguirem falar com o Papa eram mínimas, mas não via
outra saída. Embarcaram no carro e seguiram para Roma pela
Autoestrada do Sol. Uma rota que exala beleza em cada parte
do trajeto. Quando passaram pelos campos verdes próximos de
Florência parecia que estavam dentro de uma pintura de Van
Gogh. Em determinado ponto Lucca notou que Fran tinha
fechado os olhos.
- Está tudo bem, Fran?
- Sim, só estava rezando o Pai Nosso.
- Ainda não perdeu todos os hábitos, irmã?
- Claro que não! Você sabia que o Pai Nosso é a principal
oração da Igreja Católica.
- Sim, a oração ensinada pelo próprio Cristo.
- Mas você sabia que foi uma das primeiras formas de
identificação dos cristãos?
- Como assim?
- O Cristianismo surgiu dentro de outra religião, o judaísmo.
Na sua origem, os apóstolos começaram a pregar os ensinamentos
de Jesus em várias regiões e Paulo converteu novos povos à
doutrina sem exigir a circuncisão, que era uma obrigatoriedade
para os judeus. Isso gerou um primeiro distanciamento entre o
judaísmo e o recém-criado cristianismo.
- Quer dizer que a circuncisão dividiu essas duas religiões?
- Esse foi apenas um dos motivos, mas a necessidade de criação
de uma identidade própria do cristianismo é que foi decisiva.
- E onde entra o Pai Nosso nessa história? - Pergunta Lucca.
- Como a oração é um dos principais atributos de uma religião,
o Pai Nosso passou a ser a marca do cristianismo.
-159-
- A oração que atravessou os séculos levando a mensagem de

Cristo?
- Sim, mas existe um ditado em italiano que diz: tradutore
traditore - o tradutor é o traidor. As versões divergem no tempo.
Estudos apontam que o aramaico era a língua utilizada por Jesus,
por isso a versão de São Mateus do Pai Nosso é mais adequada
que a versão de São Lucas, que usava o grego.
- Elas são muito diferentes?
- Não muito, onde falamos ‘perdoai as nossas ofensas assim
como perdoamos a quem nos tenha ofendido’, deveria ser
‘perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos as de nossos
devedores’. Essa é a tradução correta do aramaico, segundo São
Mateus.
- Adorei a segunda versão. Vou deixar de pagar o banco
alegando questão religiosa - Brincou Lucca.
- Se a oração ensinada por Cristo sofreu alterações, imagina
a Bíblia? Quantas versões existiram até chegarmos na tradução
atual? Uma coisa é certa, além de termos textos diferentes,
com o passar do tempo, as interpretações também se alteram.
A linguagem é uma construção que transforma o sentido das
palavras diariamente. O texto pode até ser igual, mas a informação
que as pessoas assimilam também muda.
- Com certeza! Um exemplo que me chamou a atenção quando
fui traduzir um livro foi o termo “libertino”, antigamente era
utilizado para identificar o escravo liberto, hoje é sinônimo de
pessoa devassa.
- Temos muito que aprender com a História.
- Ainda bem que tenho minha professora particular. – Falou
Lucca.
A viagem foi longa, mas serviu para Lucca se aproximar ainda
mais de Fran. A cumplicidade dos dois era algo que sobrepunha
-160-
André Trindade
o medo inicial que limita as relações. Ambos passaram por

experiências desgastantes, mas encontraram segurança e proteção
no outro. Laços que se constroem na adversidade são duradouros.
Chegaram em Roma perto das 18 horas e seguiram diretamente
para o hotel Mercure Coliseu. O mesmo hotel em que Lucca
ficou hospedado durante o doutorado. Conhecia praticamente
todos os funcionários e suas manias, era praticamente da família.
- Vou terminar o check-in e já subo – Falou Lucca.
- Ok! Vou subir direto para o restaurante, estou morrendo de
fome.
Lucca ficou conversando com o amigo que estava na recepção
até finalizar o check-in e logo subiu para o restaurante. Seu
coração palpitou quando chegou na cobertura e viu Fran sentada
próxima à piscina, tendo como pano de fundo o entardecer
sobre o Coliseu. Uma cena que nunca sairia da sua memória. A
beleza do sol se pondo sobre uma das 7 maravilhas do mundo
só era superada pelo sorriso de Fran, quando ela avistou Lucca
chegando. Ele ficou parado apreciando o momento até Fran
chamá-lo. Ela estava bebendo um Aperol Spritz enquanto
esperava Lucca.
- Quer uma bebida também? – Perguntou Fran.
- Acho que vou pedir um refrigerante, preciso relaxar.
- Relaxar com refrigerante?! Melhor um vinho ou drink. –
Sorriu Fran.
- Até que para uma irmã você está bem animadinha. - Retrucou
Lucca.
- Cristo transformou água em vinho, não encontrei nenhum
relato que fale dele criando refrigerante.
- Garçom! – Chamou Lucca – Um Negroni, por favor.
-161-
E assim os dois degustaram seus drinques ao entardecer. O

mesmo sol que iluminou milhares de amantes deixava os dois na
companhia da lua cheia de Roma.
Jantaram um talharini ai quatte mare. O prato preferido de
Lucca quando cursou o doutorado na Universidade de Roma.
Já era uma tradição saborear a iguaria acompanhada de um bom
vinho Frascati. Lucca lembrou do período em que estudava na
Universidade La Sapienza e circulava por Roma a pé. Preferia fazer
um caminho diferente a cada dia, pois encontrava muita história
e diversidade ao se perder pelas ruas da cidade cosmopolita de
3.000 anos e quase 3 milhões de habitantes. Seu orientador do
doutorado, um típico romano, falava que a cidade de Roma era
tão importante que cabia um país dentro do seu território. Uma
clara referência ao Vaticano. Não é à toa que Roma é considerada
o berço da civilização ocidental.
- Lembrando do passado? - Perguntou Fran.
- Sim, da época em que morei em Roma. Cada dia que passei
aqui parecia uma aventura.
- Boa parte dos fatos históricos que estudei envolvendo
o cristianismo se passaram aqui. É realmente uma cidade
maravilhosa.
- Uma manhã fui correr e desci a pista do Circo Máximo
imaginando as corridas de bigas. O mesmo local que reunia
apreciadores das corridas há séculos era um ponto de encontro
de jovens namorados que deitavam na grama e dividiam suas
paixões e expectativas.
- Quem sabe um dia alguém me convide para conhecer o
local. – Interrompeu Fran rindo.
- Quando cheguei no final da pista, encontrei um edifício
antigo com um longo corredor. Parei para descansar na sombra
e me chamou a atenção que na parede do fundo da construção
uma escultura de pedra estava protegida por uma simples corda.
-162-
André Trindade
- O que era? – Perguntou Fran totalmente curiosa.

- A Bocca della Verittá, ou boca da verdade. A escultura em
mármore representa um deus. Existem divergências, mas
provavelmente seja o deus do rio Tibre.
- Mas o que essa escultura tem de tão especial? Roma é repleta
de esculturas.
- Segundo a lenda, a pessoa que contar uma mentira com a
mão na Bocca della Verittá será mordida e perderá a mão.
- Esse foi o primeiro detector de mentiras da história. – Riu
Fran.
- O mais engraçado é que descobri a escultura por acaso.
Depois daquele dia, passei a caminhar por todas as ruas de Roma
prestando mais atenção e notei que cada centímetro dessa cidade
possui muita história. Por isso é chamada de cidade eterna.
- Sim. - Respondeu Fran – Lembro das aulas de história que
falavam da fundação de Roma. Sobre os dois irmãos, Rômulo
e Remo, que foram deixados em um cesto no rio Tibre e, por
um milagre, não morreram. Eles foram adotados por uma loba
que os amamentou, até que um pastor os encontrou e os levou
para casa. Os dois cresceram juntos e resolveram fundar uma
nova cidade. O drama começa quando os irmãos brigaram para
decidir quem daria o nome e conduziria a cidade. Rômulo acaba
matando o irmão Remo e governa Roma por 38 anos.
- Uma história trágica de disputa entre irmãos que deu origem
à Roma.
- Vamos descansar – Falou Fran depois de um leve bocejo. –
Amanhã teremos nossa audiência papal.
- Apesar de você não acreditar, tenho certeza que
conseguiremos alguma informação ou contato com o Papa.
Tenha fé, irmã!
- Tá bom! Se a fé move montanhas vamos manter a esperança.
-163-
XXXIV
O BEIJO DA MORTE
Carlos chegou em Roma às 19 horas. Contou com a sorte

de que o primeiro voo de Montevidéu com destino à Itália
desembarcava na capital. Desceu no aeroporto de Fiumicino com
a intenção de seguir para o norte com um voo local e continuar a
caçada na região de Verona, onde Lucca e Fran alugaram o carro.
Seus planos mudaram logo que pisou no solo italiano e recebeu
a mensagem do padrinho.
- Espero você na minha casa. É urgente!
Carlos suou frio ao ver a mensagem. Geralmente o padrinho
não escrevia, era uma forma de evitar rastros, caso fossem
investigados. E pelo tom da mensagem o assunto era sério.
Carlos pegou um táxi e, em menos de 30 minutos, estava no
portão da casa do padrinho. Entrou direto digitando a senha e
cumprimentou os dois seguranças da porta, eram velhos amigos.
Um torcedor do Lazio e outro do Roma. Até hoje não entendia
como não brigavam por futebol. A disputa dos torcedores era
passional.
Carlos entrou na sala toda decorada em madeira e mármore
e viu o padrinho encerrando uma ligação. Sua feição não era das
melhores e trazia nas olheiras o claro semblante da preocupação.
Sempre foi um homem comedido e dificilmente expressava sua
opinião, sem que tivesse a certeza de que as palavras seriam bem
acolhidas. Como um dos principais intermediários da Aíma,
André Trindade
aprendeu a negociar com os melhores. Uma frase resumia sua

atuação moderada: “você é senhor do que cala e escravo do que
fala.”
- Você está bem? Parece cansado. - Perguntou o padrinho ao
ver Carlos na porta da sala.
- Sim, estou bem. Apenas ansioso para terminar o serviço.
Quero partir para Verona o mais rápido possível, essa foi a
última localização identificada de Lucca. – Respondeu Carlos,
abaixando-se e beijando a mão do padrinho em sinal de respeito.
- Não será necessário, Lucca foi localizado em Roma, ele está
hospedado no Mercure Coliseu. Identificamos a movimentação
do cartão de crédito, assim que fez o check-in.
- Como conseguiram a informação tão rápido?
- Você esqueceu que temos um banco? Controlamos
todas as movimentações financeiras dos nossos clientes e de
algumas pessoas de nosso interesse. É só seguir o dinheiro que
encontramos a pessoa.
Carlos lembrou que seguir o dinheiro foi uma das estratégias
utilizadas pela operação Mãos Limpas para desvendar o
funcionamento da máfia italiana. A Aíma aprendeu rápido e
agora utilizavam a estratégia em benefício próprio.
- Vou para o hotel imediatamente.
- Calma, Carlos, a situação ficou um pouco mais complicada.
Descobrimos que o celular com prefixo da Argentina que recebeu
a mensagem do Arcebispo está em Roma.
- Como assim?
- O número que recebeu a mensagem também está registrado
no nome do Arcebispo. É um celular com chip pré-pago da
Argentina que está em roaming internacional em Roma. Assim
fica mais difícil de localizar a origem das mensagens. Nosso
-165-
contato na empresa de telefonia verificou que o celular era

utilizado apenas para falar com o Arcebispo.
- Não realizou contato com outros números?
- Não, era uma linha exclusiva com o Arcebispo. Você
conseguiu descobrir o que significa o código S. L. e R.P.?
- Não faço ideia. Mas com certeza a pessoa tem informações
que podem nos prejudicar.
- Nosso pessoal pesquisou, mas também não conseguiu
desvendar o código.
- É possível que tenhamos que eliminar mais alguém? –
Perguntou Carlos.
- Sim! E, para piorar, recebemos a informação de que a guarda
do Vaticano sabe que Lucca está sendo perseguido. Precisamos
tomar ainda mais cuidado para ele não ser encontrado pela guarda.
Tem que ser algo extremamente discreto para não envolver a
Aíma. Ele tem que desaparecer sem deixar qualquer vestígio.
- E a mulher que está com ele?
- Também deve ser eliminada. Não podemos deixar
testemunhas, pois o Banco do Vaticano e a própria Aíma estão
em risco. Acredito na sua competência. Resolva isso de uma vez
por todas!
O padrinho se despediu dando um beijo na face de Carlos.
Isso era mais assustador do que se tivesse recebido um soco no
estômago. O beijo recebido por Carlos tinha uma simbologia.
Era o conhecido beijo da morte. Um sinal dado pelo chefe da
máfia que determina a morte de algum traidor. Mas também
servia como aviso. Os mais antigos falam que o beijo da morte
tem origem no beijo dado por Judas antes de entregar Cristo
aos soldados. Carlos sabia que sua vida dependia do sucesso da
missão. Nem mesmo o afeto do padrinho conseguiria salvá-lo
da ira da Aíma, se falhasse. Todo um conglomerado envolvendo
-166-
André Trindade
empresários, políticos e muito dinheiro poderia ruir. Sua vida não

era nada perto do que estava em jogo.
- Preciso de apoio. – Falou Carlos.
- Pode levar os dois seguranças, são da minha extrema
confiança. Mas se lembre, não podemos deixar Lucca chegar até
o Vaticano, isso é fundamental.
Carlos saiu acompanhado pelos seguranças no carro com
placas falsas, usado pelo padrinho para os serviços da Aíma.
Sabia que não poderiam levantar suspeitas e que a Guarda Suíça
que fazia a segurança do Vaticano tinha muitos contatos. Logo
saberiam onde Lucca estava hospedado. Tinha que ser rápido e
preciso.
Chegaram ao hotel em 10 minutos. Carlos entrou acompanhado
de um dos seguranças, enquanto o outro esperou na frente do
hotel, próximo ao carro.
- Boa noite! – Disse Carlos ao funcionário da recepção do
hotel - Preciso falar com um amigo que está hospedado aqui no
hotel, o nome dele é Lucca Reis.
- Só um minuto. Deixe-me ver no sistema.
- Ok.
- Não, Senhor. Infelizmente não temos nenhum hóspede com
esse nome.
- Impossível! Ele chegou faz poucas horas.
- Só um instante. Vou falar com o gerente para confirmar.
O funcionário pegou o telefone e discou um número.
- Senhor Battisti, boa noite. Temos dois senhores aqui na
recepção procurando um hóspede de nome Lucca Reis. O senhor
sabe se temos alguém com esse nome no hotel.
Do outro lado da linha Lucca escutava em silêncio o código
que havia combinado com o amigo que trabalhava na recepção.
-167-
Era uma velha estratégia usada pelos funcionários do hotel para

avisar um hóspede que não queria ser importunado. Battisti era
uma referência ao terrorista de extrema esquerda Cesare Battisti
e sua fuga da Itália depois da condenação por quatro homicídios.
Tinham que fugir do hotel imediatamente.
- Saia daí imediatamente! Eles são perigosos. – Alertou Lucca.
- Só um minuto, o gerente me chamou. Retorno em um
instante. – Falou o funcionário da recepção.
Carlos notou que algo estava errado e puxou o franzino
funcionário pela gravata encostando sua cabeça no balcão. Sacou
a arma da cintura, colocando o cano na boca do funcionário.
- Eu não estou brincando! Ou você fala o quarto agora ou
nunca mais vai falar.
- 204. Eles estão no 204.
O funcionário caiu desmaiado depois que Carlos acertou sua
cabeça com a coronha da pistola.
- Suba pelas escadas que eu vou pelo elevador. Assim eles não
têm como escapar. – Falou Carlos para o segurança.
Fran e Lucca estavam prontos para sair quando avistaram o
segurança no corredor. Fecharam a porta e colocaram a trava
de segurança com correntes. Carlos chegou logo em seguida e
quebrou a porta apenas com um coice. Mas a corrente da trava
impediu que entrassem.
Lucca abriu a janela. Estavam no segundo andar. Quando
viu a pistola de Carlos não teve dúvidas, pulou em cima de um
arbusto na lateral do hotel.
- Venha Fran! Rápido.
Fran pulou na sequência e Lucca a segurou pelos braços.
Logo se levantaram e saíram correndo pelos fundos do hotel no
sentido do Coliseu.
-168-
André Trindade
Com mais três coices, Carlos conseguiu estourar a corrente e

quebrar a porta, mas os dois já estavam longe.
-169-
XXXV
OS GLADIADORES
Carlos e um dos seguranças saíram correndo do quarto pelo

corredor. O outro segurança que estava do lado de fora não viu a
movimentação ocorrida nos fundos do hotel. Os três se reuniram
próximo do carro para traçar a estratégia.
- Vamos nos dividir. – Disse Carlos aos seguranças - Cada um
segue por um caminho. Aquele que encontrar os dois pode atirar.
Lembrem-se de que não podemos chamar a atenção nem deixar
que a polícia encontre Lucca. Muito menos a guarda do Vaticano.
Carlos saiu pelos fundos seguindo o parque ao lado do
hotel. Um dos seguranças seguiu para o Sul pela Basílica de São
Clemente e o outro segurança foi para oeste, pela via que leva ao
Coliseu.
Fran e Lucca correram pelo parque ao lado do hotel, mas
viram que seriam presa fácil em um local pouco movimentado.
Resolveram correr pela via Labicana direto para o Coliseu. Com
certeza o local estaria mais movimentado e encontrariam um
policial. Ao chegarem no Coliseu, Fran ficou espantada com a
imensidão da construção.
Uma obra feita com tijolos, argamassa e areia há quase dois
mil anos que comportou até 80.000 espectadores. Tinha motivos
de sobra para ser um dos pontos turísticos mais conhecidos do
mundo. No subsolo do Coliseu, muitos dutos sustentavam o
palco de madeira coberto com areia usado nas apresentações.
André Trindade
Durante muitos anos o coliseu foi utilizado como local das

multidões. Lutas entre gladiadores, caçadas de animais selvagens
trazidos da África, encenações históricas e até massacres de
cristãos faziam parte da sua programação. A cultura romana
passava pelas largas colunas, que no seu auge eram revestidas de
mármore. O mais interessante é que as pedras que ornamentavam
a arena usada para a carnificina dos cristãos foram levadas para a
Basílica de São Pedro durante a idade média. O mundo realmente
dá voltas.
Lucca encontrou um funcionário do Coliseu no portão de
entrada. O local já estava fechado para visitação de turistas e ele
apenas vigiava a portaria.
- Senhor, boa noite. Precisamos de ajuda. Estamos sendo
perseguidos e precisamos chamar a polícia.
- Como assim? Quem está prosseguindo vocês? – Perguntou
o funcionário.
- Ele! - Apontou Fran para o segurança que os havia avistado.
O funcionário se descuidou e os dois entraram correndo
no Coliseu. Até tentou impedi-los, mas já estavam dentro do
portão. O segurança veio em disparada atrás de Fran e Lucca. O
funcionário tentou barrar a entrada, mas sentiu uma dor aguda e
caiu. Havia levado uma facada entre as costelas e não conseguiu
nem gritar. O segurança encostou o corpo do funcionário perto
do portão para que pensassem que estava sentado, não queria
que as pessoas chamassem a polícia. Pensou em avisar Carlos e
o outro segurança, mas estava tão próximo de matar os dois que
preferiu ganhar os méritos com o padrinho sozinho.
Fran e Lucca correram pela escadaria de pedra até o andar
intermediário. O Coliseu fazia jus ao nome com quase 50 metros
de altura e muitas arquibancadas. Lucca sentia dor no tornozelo
após a queda da janela do hotel. Apesar da adrenalina em suas
veias, já não conseguia mais correr.
-171-
- Vamos nos esconder aqui. – Falou Fran apontado para um

vão entre as colunas.
A iluminação externa no Coliseu não se repetia nos túneis e
a escuridão era assustadora. Parecia um emaranhado de cavernas
esculpido pela mão do homem.
Ficaram imóveis na esperança de que o funcionário tivesse
chamado a polícia. Não imaginavam que era mais um corpo a
jorrar sangue no piso do Coliseu. Estavam parados, em pleno
silêncio. Escutavam apenas algumas gargalhadas de jovens na
rua, mas dentro do Coliseu nenhum ruído se percebia. Lucca
conseguiu arrancar um tijolo da parede.
- Você está louco! Está destruído um patrimônio histórico
conservado por séculos. - Sussurrou Fran.
- Tem milhões de tijolos aqui, depois eu devolvo.
Os passos estavam se aproximando, era o segurança com um
punhal na mão. Lucca jogou o tijolo no rosto do segurança. Ele
era enorme, mas sentiu o impacto e deixou cair o punhal. Fran
tentou correr, mas levou um soco e caiu desacordada.
Lucca ficou enlouquecido e partiu para cima do segurança,
acertando um soco no rosto já marcado pelo corte do tijolo. O
segurança era treinado para a dor e desferiu um soco no estômago
de Lucca. Os dois em pé, já machucados e estudando o próximo
golpe, pareciam verdadeiros gladiadores que lutavam pela vida
no Coliseu. Apenas um sairia vivo da arena.
O segurança tinha grande vantagem, além de ser maior que
Lucca, era treinado em artes marciais. Quando Lucca tentou
acertar um soco, ele se defendeu e revidou com um golpe certeiro
no olho esquerdo de Lucca que ficou atordoado e sentiu o mata-
leão do segurança na sequência. A batalha estava encerrada.
Lucca não conseguia soltar o braço do segurança e a falta de ar
sufocava. A morte era questão de segundos e Lucca apagou.
-172-
XXXVI
MEU PEDIDO
- Acorda, Lucca! - Falou Fran, batendo no seu rosto.

- O que foi?
- Levanta, temos que sair daqui agora. Eu acertei o segurança
com o punhal, quando você desmaiou.
Lucca olhou para o lado e viu o segurança com o punhal
cravado na nuca. Um golpe certeiro que atingiu a espinha dele.
Saíram correndo pela escadaria até a entrada do Coliseu. Algumas
pessoas já tinham notado o funcionário morto e chamaram a
polícia.
- É melhor sairmos daqui rápido. - Falou Fran.
- Vou pegar o primeiro táxi que aparecer.
- Espera, Lucca, tem algo mais rápido. – Apontou Fran para
um ônibus de turistas. – Assim não levantaremos suspeitas até
decidirmos onde parar.
Sentaram nas últimas cadeiras do segundo andar, enquanto o
Ônibus seguia seu itinerário. Enquanto passavam pelas ruínas do
Fórum Romano e pelo Monumento a Vittorio Emanuele, Fran
cuidava do ferimento no olho de Lucca. A delicadeza com a mão
ao cuidar do olho machucado era uma clara evidência de que
Lucca era mais do que uma missão. Ela demonstrava carinho e
apreensão com seu estado. Tal atitude fez Lucca ficar calmo, pois
estava em boas mãos.
A parada final do ônibus foi a Fontana di Trevi. Lucca e Fran

acompanharam um grupo de turistas chineses e suas incansáveis
máquinas fotográficas. Não era a primeira vez que Lucca via a
Fontana, mas isso não diminuía sua admiração pela beleza da obra
barroca, construída sobre um aqueduto no ano 19 A.C. Passou
por diversas reformas, a última foi em 1762 com a inclusão das
esculturas do deus Netuno e seus seguidores. Fran pegou duas
moedas, deu uma para Lucca e jogou a outra por cima do ombro,
como diz a tradição.
- Faça um pedido e jogue a moeda, só não pode contar o que
você desejou.
- Acho que já está se realizando – Falou Lucca, pegando na
mão de Fran depois de jogar a moeda.
Fran sorriu encabulada e levou Lucca pela mão para sentarem
na escadaria do prédio em frente à Fontana. Precisavam pensar
sobre que estratégia seguiriam. Não teriam a menor chance
se ficassem desprotegidos na noite romana. Ainda mais sem
saberem em quem confiar.
- E agora? O que vamos fazer? Não podemos ficar na rua até
amanhecer. Seremos presas fáceis. – Falou Fran.
- Já sei! - Respondeu Lucca. – Vamos para a embaixada
brasileira, ela fica perto daqui, na Piazza Navona. Com certeza,
poderemos contar com o apoio do nosso governo até a poeira
baixar.
Saíram caminhando depois de comprarem um lenço que Fran
usou para cobrir o rosto e um boné do time da Roma para Lucca.
Andaram por 10 minutos até chegarem em uma construção
enorme que chamou a atenção de Fran.
- Deixe-me ser o seu guia turístico. – Brincou Lucca. – Esse é o
Panteão. A mais conservada obra da Roma antiga. Sua estrutura é
única e um avanço para a construção da época. O nome Panteon
vem do latim e quer dizer templo dedicado a todos os deuses.
-174-
André Trindade
- Como você sabe disso?

- Lembre que eu morei aqui durante o doutorado. Tive tempo
de conhecer bem Roma e acompanhar os guias que apresentam
a cidade.
- Sei que não pode, mas vou confessar meu pedido na Fontana
di Trevi. Quero voltar para Roma com você e conhecer cada
lugar dessa galeria de arte a céu aberto.
- Serei seu guia exclusivo – Falou Lucca, abraçando Fran.
-175-
XXXVII
AMICI MIEI
Roma estava um caos. A notícia dos assassinatos no Coliseu se

espalhou rapidamente e toda a polícia da capital estava no local.
Com ela, veio a mídia sensacionalista sedenta por uma resposta e,
principalmente, por um culpado. Carlos chegou no local e viu o
corpo do funcionário do Coliseu caído, e o IML levando o corpo
do segurança. O local estava completamente isolado e ligou na
hora para o padrinho.
- Padrinho, é urgente. Perdemos um dos nossos homens e a
polícia está no local.
- E os dois?
- Conseguiram escapar.
Padrinho dá um soco na mesa e grita.
- Maldição! Como isso foi acontecer. Era um dos nossos
melhores homens.
- Nos dividimos para encontrá-los depois que saíram do hotel
e ele não ligou informando que tinha localizado os dois. Foi um
erro de principiante.
- Não foi um erro de principiante. Foi erro crasso. Carlos,
você conhece a história de Marcus Licínio Crasso?
- Não, padrinho.
André Trindade
- Ele foi um político e militar que deixou seu nome na

história. Apesar de vitorioso em diversas batalhas, foi derrotado
por um erro grosseiro de estratégia militar. Estava confiante
na superioridade de seu exército e foi encurralado em um vale
estreito. Perdeu 50.000 homens, a própria vida e até hoje seu
nome é lembrado pelo erro de quem sabe o que tem que fazer,
mas não faz por descuido ou excesso de confiança. Não podemos
admitir esse tipo de erro!
Carlos ouvia com atenção sem falar nada.
- Vamos usar essa perda a nosso favor. – Completou o
padrinho. - Vou passar para o nosso contato da polícia o nome
do Lucca como suspeito dos assassinatos. Assim que o pegarem
teremos que dar um sumiço nele. Vou cobrar os favores que
alguns amigos da mídia me devem, pedindo que divulguem a
imagem de Lucca em toda a cidade.
O padrinho desligou o telefone e em poucos minutos toda a
polícia já estava à procura do suspeito de duplo homicídio, e a
mídia estampava a foto do procurado. Escolheram até um nome
para o criminoso: o assassino do Coliseu. Assim era impossível
ficar despercebido pelas ruas de Roma. A mídia é tão devastadora
quando quer audiência que, de mero desconhecido, Lucca passou
a ser inimigo número um de Roma em menos de uma hora.
O Padrinho sabia que o tempo era essencial. Tinham que
eliminar Lucca e toda prova que prejudicasse a Aíma. Nunca na
história a organização esteve tão fragilizada. Pegou sua lista de
contatos e chamou todos os homens da Aíma para uma reunião.
A situação chegou a um ponto em que o risco de a organização
ser desmantelada exigia ações imediatas. Aos poucos a casa foi
enchendo. Cada integrante que chegava cumpria um ritual de
beijar a mão do padrinho logo na entrada, como sinal de respeito.
Em menos de 1 hora, todos estavam reunidos. O último a chegar
foi um dos guardas do vaticano que fora integrado à família havia
pouco tempo.
-177-
O padrinho iniciou sua fala e todos escutavam com apreensão.

- Tempos difíceis! Tempos difíceis! Perdemos um de nossos
melhores homes. Foi morto dentro do Coliseu e ainda não
conseguimos deter os assassinos.
- Quem fez isso? – Perguntou um dos mais antigos integrantes
da Aíma. – Esse tipo de ataque à nossa família deve ser revidado
imediatamente.
- Com certeza – Respondeu o padrinho. – Sabemos quem,
por isso, precisamos que todos aqui se mobilizem. Além de
ter matado um dos nossos, esse assassino pode destruir nossa
organização. Ele não sabe do risco que nos causa, mas temos que
evitar de qualquer forma que ele chegue até o Vaticano.
Nesse momento entrou na sala um dos mais conhecidos
membros da Aíma. Todos ficaram em pé para saudar o deputado
que, por décadas, defendeu a família mafiosa junto ao parlamento
italiano.
- Boa noite Onorevole! Para nós, é uma honra contarmos
com sua presença. – Saudou o padrinho.
- Uma pena estarmos reunidos para lastimar a perda de um
dos nossos. Preferia estar festejando mais uma conquista da
família.
Todos assimilaram a fala do Deputado consternados e ele
continuou seu discurso enfático.
- A Aíma já passou por diversas fases críticas. Não é a primeira
e, infelizmente, não será a última vez que seremos atacados. Mas
uma verdade prevalecerá! O nosso sangue não escorre em vão. As
negociações com o Banco do Vaticano nos deram estabilidade e
ampliaram muito nossos negócios. Temos que estancar essa crise
imediatamente, pelo bem da família.
O padrinho aplaudiu em pé a fala do deputado e delimitou um
planejamento de emergência. Mesmo sabendo que Carlos era seu
-178-
André Trindade
melhor homem não podia arriscar a existência da família apenas

em suas mãos. Situações extremas exigem medidas extremas. A
ira da família Aíma tinha um nome: Lucca Reis
-179-
XXXVIII
(DES)INFORMAÇÃO
No Novo Mundo, Davi recebe uma mensagem do chefe da

Guarda do Vaticano com a notícia de que Lucca era procurado
por toda Roma. Os assassinatos dentro de um dos maiores
símbolos da Itália comoveram a todos. Davi não tinha terminado
de ler a notícia e o mesmo número que mandou a mensagem
ligou.
- Boa noite. Pode falar?
- Sim. Apesar de estar deitado no leito do hospital com um
furo perto do coração, eu consigo atender.
- Veja o que está acontecendo aqui. Estão todos atrás dele e
não conseguimos encontrá-lo.
- Não acredito que ele tenha matado essas pessoas da forma
como foi divulgado. Aposto que estava se defendendo.
- Entendo. Mas é difícil protegê-lo fora da nossa jurisdição.
E qualquer intervenção do Vaticano vai gerar muitas perguntas.
Não posso usar nossa equipe, pois temo que as informações
vazem.
- Sinceramente não sei o que fazer. – Desabafou Davi.
- Tem alguma ideia de como posso localizá-lo sem chamar a
atenção?
André Trindade
Lucca estudou em Roma. Ele conhece a cidade e vai conseguir

se esconder por algum tempo.
- Assim que amanhecer aqui em Roma ele será tão conhecido
que não haverá um canto em que consiga passar despercebido.
Fizeram um trabalho pesado de manipulação da mídia para
destruir a imagem dele. Com certeza foi coisa de profissional.
- A mídia tradicional perdeu muito do seu espaço para
a comunicação informal. As redes sociais assumiram boa
parte dessa fatia. Manipular a mídia já não é a única forma de
convencimento das massas. – Comentou Davi.
- Concordo! Agora são as pessoas que compartilham e muitas
vezes produzem informação. Verdadeiras ou não, convencem a
maioria que não tem capacidade crítica ou o tempo de verificar os
fatos. – Falou em tom enfático o chefe da segurança do Vaticano.
- O homem acredita naquilo que quer acreditar e acaba
consumindo as informações dos meios que se identificam com
suas verdades. Ao descrever Lucca como um assassino, criou-se
uma imagem assustadora que será facilmente vendida e divulgada
por todos os meios rapidamente.
- Infelizmente é a nossa realidade. Me avise se descobrir algo.
- Aviso sim! Abraço.
Davi desligou e começou a pensar sobre tudo que estava
acontecendo. O interesse da Santa Sé sobre Lucca era estranho.
Tinha certeza de que havia alguma ligação com a morte do
Arcebispo, mas não conseguia entender em que ponto as histórias
se cruzavam. Olhou pela janela do quarto do hospital e a fila
de jornalistas aumentava. Logo teria que dar uma nota sobre o
acontecido. Não é todo dia que o Arcebispo é assassinado e seu
chefe da segurança é baleado em um tiroteio na igreja mais antiga
de Buenos Aires.
-181-
XXXIX
SEGURANÇA TUPINIQUIM
Fran e Lucca andaram abraçados como um típico casal de

namorados da noite romana. Chegaram na Piazza Navona em
poucos minutos. Já passava da meia noite e poucas pessoas
circulavam pelo centro, apenas alguns jovens bêbados e os
moradores de rua que ficavam na praça, desfrutando do visual
das fontes como se fosse o jardim de suas casas.
A Embaixada Brasileira fica no canto da praça, no Palácio
Pamphili. Uma edificação histórica com mais de 16.000 metros
no centro de Roma que fora construída em 1630 e pertenceu ao
Papa Inocêncio X. A colorida bandeira brasileira hasteada acima
da porta de madeira contrasta com o visual monocromático do
enorme prédio branco. Lucca apertou a campainha e aguardou
por alguns instantes, até que uma voz respondeu pelo interfone.
- O horário de atendimento da Embaixada é das 8h30 às
11horas de segunda à sexta.
- Meu senhor, é urgente. Estão tentando nos matar e
precisamos de ajuda. - Respondeu Lucca.
Lucca escutou o interfone sendo desligado abruptamente sem
nenhuma resposta.
- E agora Lucca? Não podemos esperar na rua até amanhecer,
é muito perigoso.
André Trindade
Nesse instante a porta da Embaixada se abriu parcialmente

e um senhor acompanhado de um policial armado olhou
desconfiado para os dois.
- Entrem. Deixe-me ver os documentos de vocês.
Enquanto o funcionário analisava o passaporte de Fran e a
identidade de Lucca, o policial dava cobertura com a mão na
arma a uma distância segura.
- Me perdoem, mas teremos que revistar os dois. É o
procedimento padrão da embaixada.
Lucca achou o cúmulo ser revistado, mas não hesitou. Não
estava em condições de discutir.
- Venham comigo – Falou o funcionário apontado para o
corredor.
Apesar de ter morado em Roma, Lucca nunca tinha entrado
na Embaixada. O teto do salão com afrescos dourados tornava o
local ainda mais admirável.
- Podem aguardar aqui. Ele vai colher as informações para
sabermos o que ocorreu e como podemos ajudá-los. – Falou o
Senhor, deixando Lucca e Fran com o policial.
- Me desculpe. Sei que não é comum atender nesse horário,
mas é uma questão de vida ou morte.
- Não se preocupe. - Respondeu o policial pegando a caneta e
o bloco de anotações – Atendemos emergências quase todas as
noites. A maioria das vezes são brasileiros que tiveram o passaporte
perdido ou roubado. A emissão de um novo passaporte é feita
no Consulado que fica atrás da Embaixada, mas mesmo assim as
pessoas sempre batem à nossa porta.
- Mas quem roubaria um passaporte? – Perguntou Fran.
O policial riu com a pergunta.
-183-
- O passaporte brasileiro é um dos mais caros no mercado

negro, chegando a valer milhares de euros. O Brasil tem uma
multiplicidade cultural tão grande que qualquer foto colocada
no passaporte não gera desconfiança, não temos um fenótipo
nacional. Por isso é tão valioso e procurado pelos batedores de
carteira. Mas me parece que não é o caso de vocês? Falem o que
aconteceu.
- Fomos perseguidos por alguns homens. Um deles tentou
nos matar com uma faca no Coliseu. Tivemos que reagir e
acabamos matando-o. Mesmo assim, outros homens continuam
nos perseguindo.
O policial fechou o rosto e o caderninho de anotações no
mesmo instante. Lucca notou a seriedade da sua feição.
- Eu escutei algo na rádio sobre isso. Aguardem aqui enquanto
vou falar com meu superior.
O policial deixou os dois no salão e entrou em uma das
repartições da Embaixada. Lucca estava aliviado. O apoio da
embaixada era uma garantia de que teriam a proteção necessária.
Fran também relaxou e se esticou na cadeira. O cansaço já era
visível em seu rosto.
Vinte minutos depois, Fran dormia sentada e o Policial ainda
não tinha retornado. Lucca levantou e começou a caminhar, não
aguentava mais ficar sentado. Foi até o final do corredor procurar
um banheiro. Quando estava retornando escutou um leve
barulho. Era um carro escuro estacionando no jardim interno
do palácio. Dois homens desceram e cumprimentaram o policial.
Quando um deles se virou, Lucca pode ver que era Carlos.
- Acorde Fran! Acorde!
- O que foi?
- O policial nos entregou, temos que fugir. Rápido!
-184-
André Trindade
Lucca puxou Fran ainda meio dormindo e saíram correndo

pelo corredor.
- Não podemos descer, eles nos encontrarão. Temos que
encontrar outra saída.
Subiram pelas escadas até o último andar e encontraram
uma pequena porta. Estava fechada, mas Lucca forçou até abrir.
Entraram no sótão cheio de teias de aranha e algumas caixas com
material publicitário do Brasil. A única lâmpada do lugar pouco
iluminava. Fran viu um antigo cartaz de divulgação do Rio de
Janeiro estampando três mulatas seminuas na praia.
- Veja Lucca! Depois o Brasil não sabe porque tem fama de
turismo sexual. A própria embaixada brasileira fazia esse tipo de
divulgação.
- Depois falamos sobre isso - Respondeu Lucca tentando
achar uma saída.
-185-
XL
A VIRGEM AGNESE
- Onde eles estão? - Gritava Carlos com o policial dois andares

abaixo.
- Não sei! Eu juro que eles estavam aqui. Tenho certeza que
eram os dois procurados.
- Ou você os encontra ou pode esquecer o dinheiro da
recompensa.
- Não podem ter saído. A porta principal está fechada e nós
subimos pela porta de serviço.
- Vamos procurar. Eles não podem ter desaparecido.
- Podemos nos separar, porque eu revistei os dois e estão
desarmados.
- Acho melhor ficarmos juntos! Já perdi um homem esta noite
e não quero arriscar. Você, que conhece o lugar, vai na frente.
Começaram a subir os 4 andares, vasculhando as poucas salas
que não estavam trancadas.
Lucca conseguiu remover uma das pesadas telhas de barro do
telhado da embaixada.
- Vamos Fran! É a nossa única saída.
Lucca saiu primeiro. Subiu com calma, pisando na emenda
das telhas, pois havia madeira por baixo, para não quebrar o
André Trindade
telhado. Fran conseguiu sair, mas empurrou a telha removida que

escorregou e caiu no pátio da Embaixada.
- Escutaram isso? Parece que foi no pátio. - Falou o policial.
Carlos e os outros dois desceram rapidamente e viram a telha
despedaçada ao lado do carro.
- Veja! Eles estão no telhado. – Falou Carlos, sacando a arma.
O tiro passou muito próximo de Lucca que se jogou no
teto. Fran também se abaixou e foram rastejando pelas telhas
empoeiradas e ásperas, até ficarem fora da visão dos atiradores.
- Vamos atrás deles, devem ter subido pelo sótão.
Lucca e Fran estavam com uma pequena vantagem de tempo,
mas não conheciam o lugar. Também não tinham experiência
em fugas por telhados de palácios italianos. Mas aquele tiro que
passou perto foi o melhor incentivo. Correram sobre o telhado de
mais dois edifícios construídos à direita do palácio da embaixada
até chegarem em uma construção com uma abóbada. Era a
igreja de Santa’Agnese in Agone (Santa Inês).
Lucca tentou quebrar o vitral com um chute, mas não
conseguiu na primeira tentativa.
- Não Lucca! Esse vitral parece ser muito antigo. Você não
pode quebrar uma obra de arte.
Lucca olhou para Fran com um sorriso cínico e deu mais um
chute que estilhaçou o vitral.
- Não acredito! – Falou Fran indignada. – Vi um documentário
sobre o trabalho de restauração dessa igreja. Ela foi construída
no local em que Santa Inês foi martirizada por defender seus
votos ao cristianismo no século III. Conta a história que Inês
tinha 13 anos e foi cobiçada por Procópio, filho do prefeito de
Roma.
- Casou bem a santa. – Brincou Lucca.
-187-
- Nada disso. Como rejeitou o pretendente, foi julgada

e condenada a ser exposta nua num prostíbulo que ficava
exatamente aqui, na praça Navona. Segundo a lenda, uma
luz celestial protegeu Agnese e ninguém ousou tocá-la. Não
satisfeito, o prefeito mandou queimá-la, mas como as chamas
não atingiram seu corpo, foi decapitada. Seu crânio está até hoje
protegido pelas paredes da igreja que você acaba de vandalizar.
- Primeiro, vamos salvar nossas vidas, depois você me conta
mais a história da Santa.
Lucca e Fran desceram pela parte interna da abóbada até um
andaime usado na restauração da igreja. Quando chegaram no
piso, puderam ver a beleza da construção barroca e seus turíbulos
pendurados no teto de mais de 15 metros.
Carlos e o segurança seguiram os dois até a abóbada da igreja.
O policial continuou no telhado da embaixada, caso tentassem
voltar. O segurança foi o primeiro a entrar pelo vitral quebrado
e pôde ver os dois na base do andaime. Disparou sem sucesso,
enquanto Carlos descia.
- Vamos ficar embaixo do andaime! Assim ele não tem visão
para nos acertar. - Falou Fran.
- Tive uma ideia, Fran. Empurre o andaime para a direita e
depois para a esquerda.
Os dois começaram a balançar o andaime até derrubar a
estrutura. Mais destruição, pensou Fran. O segurança caiu sobre
um banco e morreu com a queda. Carlos pulou e se agarrou
à corrente do turíbulo que amenizou a pancada. Mesmo assim
acabou quebrando o pé com a queda.
- Corre! - Falou Lucca, levando Fran para a porta lateral da
Igreja. Não pensou duas vezes e já chegou chutando a porta, mas
era tão pesada que não moveu um centímetro.
- Você tentou fazer isso? – Falou Fran, girando a maçaneta e
abrindo a porta que estava fechada apenas pelo lado de fora. –
-188-
André Trindade
Depois nós vamos conversar sobre essa sua mania de quebrar as

coisas.
- Falamos sobre isso mais tarde.
- E agora vamos para onde? – Perguntou Fran.
- Só temos uma chance. Vamos para o Vaticano!
-189-
XLI
TERRA SANTA
Carlos conseguiu caminhar com o pé direito quebrado até a

porta lateral da igreja. Sentia muita dor e quase não conseguia
encostar o pé no chão. Andou lentamente até chegar próximo ao
grupo de jovens que estavam bebendo na praça Navona.
- O senhor está bem? Escutamos um estrondo na igreja. –
Falou um dos jovens.
- Preciso da tua scooter. – Respondeu, mostrando a pistola.
Carlos saiu correndo, deixando o corpo do segundo segurança
no meio da igreja. Não poderia voltar para casa sem finalizar a
missão. Sabia que mesmo a dor insuportável do pé quebrado era
melhor do que dar a notícia de que havia falhado mais uma vez.
Foi direto para o pronto socorro de fraturas.
Enquanto isso, Lucca e Fran caminhavam com pressa, mas
sem chamar atenção, pelas vias menos movimentadas da cidade.
Lucca sabia que apenas no Vaticano, fora do território da Itália
estariam seguros.
- Tem certeza de que é a melhor opção, Lucca?
- O Vaticano é um Estado com estrutura própria, nem a
polícia italiana pode atuar lá. Vamos nos esconder e esperar o dia
amanhecer. Como precisamos falar com o Papa, já estaremos lá
quando ele passar de papamóvel.
André Trindade
Fran assentiu com a cabeça e continuou caminhando com

Lucca até chegarem na Ponte Vittorio Emanuele II. Toda
iluminada e cercada de estátuas belíssimas, era um cartão postal
que permitia uma ótima vista do Castelo de Santo Ângelo. A
obra com quase 2000 anos serviu de inspiração para muitas
construções, inclusive o Forte de São Marcelo de Salvador –
Brasil. A influência da arquitetura ultrapassava os mares. De
longe conseguiram avistar a praça de São Pedro.
- Veja Fran! Temos que chegar perto daquela coluna.
- Não é uma coluna, Lucca. É o obelisco central, um dos
maiores símbolos da Igreja. Foi trazido do Egito por Calígula, no
século I d.C., e possui um dos pedaços originais da cruz de Jesus
Cristo no topo dos seus mais de 40 metros.
- Nossa, Fran. Vim diversas vezes na praça de São Pedro e não
imaginava isso.
- O Vaticano tem muitas histórias, algumas são desconhecidas
da grande população. Você sabia que a praça de São Pedro foi
construída com 4 grandes fileiras de colunas que simbolizam o
abraço da Igreja mãe aos visitantes?
- Impressionante, pois é a primeira vez que você visita a praça
e conhece muito mais do que eu.
- Estudei muito sobre a história da Igreja, mas tenho que
confessar que é muito melhor conhecer ao vivo. - Falou Fran
admirada com a quantidade de estátuas sobre as colunas da praça.
- O que significam essas estátuas? – Perguntou Lucca.
- São 140 imagens de santos, Papas e mártires da Igreja, elas
estão aqui para saudar os visitantes.
- É lindo, mas parece que estamos sendo vigiados
constantemente.
- E estamos, nesse exato momento dezenas de câmeras
acompanham toda a nossa movimentação.
-191-
Quando se aproximaram da grade na praça, um guarda barrou

os dois.
- Boa noite. A praça está fechada para visitação até as 7 horas.
- Somos turistas, não conseguimos fazer reserva do hotel e
gostaríamos de ser os primeiros a chegar na audiência do Santo
Papa para receber a sua benção. - Respondeu Lucca.
O guarda olhou desconfiado no relógio, eram quase 3 da
manhã, mas, como muitas outras vezes viu os fiéis madrugarem
na fila com a esperança de verem o Papa de perto, acabou
relevando. Sabia que a fé transforma as pessoas e respeitava a
comoção que sentiam.
- A cerimônia começa só às 10 horas. Se vão esperar todo
esse tempo, é melhor que fiquem sentados na lateral das colunas.
Infelizmente não podemos deixar as pessoas entrarem antes da
abertura.
- Está bem, esperaremos ali. – Falou Lucca pensando na
incoerência de uma praça de braços abertos que não acolhe uma
pessoa quando precisa.
- Você tem certeza que esse é o melhor lugar, Lucca?
- Claro que sim! Estamos em território do Vaticano, com
um guarda nos vigiando, câmeras acompanhando nossos
movimentos e dezenas de santos nos guardando.
Fran apenas esboçou um sorriso. O cansaço já dominava o
seu corpo.
Luca sentou na primeira coluna do lado esquerdo da praça.
- Sabia que estamos exatamente na divisa entre o território
italiano e o Vaticano? Alguns centímetros mudam todo o
contexto. Um novo território, novas leis, novos governantes.
Muda tudo!
Fran sentou quase no colo de Lucca que a abraçou.
-192-
André Trindade
- O seu abraço é melhor do que o da praça.

Lucca a viu dormir totalmente entregue nos seus braços. Ficou
apreciando seus traços angelicais sob a luz da lua cheia. A mais
bela escultura da praça estava em suas mãos, precisava protegê-
la. A cumplicidade dos dois amantes era perfeita. O corpo de
Fran aquecia Lucca que retribuía com a segurança de seus braços.
Uma sinergia que, do surgimento do homem, ou da criação de
Adão e Eva – já que estavam em solo da Santa Sé – garante a
continuidade da humanidade.
Lucca olhou o obelisco lembrando que um simples pedaço
de madeira da cruz de Jesus Cristo tinha o poder de mover
multidões. O simbolismo da entrega de Jesus para salvar aqueles
que tiraram a sua vida foi e será a maior prova de amor e altruísmo
da história. Uma lição que atravessou os séculos. Infelizmente
seus discípulos até hoje relutam em entender que a vida é curta e
o desapego aos bens materiais, o orgulho a inveja e tantos outros
sentimentos mesquinhos não nos acompanham. A única coisa
que deixamos, além de pó, é a imagem no coração das outras
pessoas. Seja ela boa ou má.
Quem sabe um dia as pessoas deixem de falar em nome de
Cristo e passem a agir como ele.
-193-
XLII
BANHO DIVINO
- Acordem! Acordem! Não é permitido que mendigos

durmam na praça. – Falou um guarda cutucando Fran e Lucca.
Já era dia e os dois tinham dormido por quatro horas seguidas.
A praça estava aberta e os primeiros turistas já começaram a
chegar.
Não podiam culpar o guarda. Depois de rastejarem no telhado
da embaixada e derrubarem o andaime da igreja de Santa’Agnese
pareciam dois mendigos.
- Se quiserem tomar um banho e lavarem as roupas, a
lavanderia está aberta. – Falou o guarda.
- Como? - Perguntou Fran.
- O Papa Francisco abriu uma lavanderia para os moradores
de rua. Também é possível tomar banho lá. Aproveitem, porque
tem pouco movimento nesse horário.
- Muito obrigado. - Respondeu Lucca.
Fran riu do rosto de Lucca todo sujo e marcado pelo soco que
levou no Coliseu.
- De renomado professor para mendigo. Que fase em, Doutor
Lucca, ou melhor, Doutor Mendigo.
- Como uma boa irmã da congregação franciscana, você faz
jus ao voto de pobreza.
André Trindade
Caminharam por 2 minutos até encontrarem várias bicicletas.

A prefeitura de Roma disponibilizou o meio alternativo de
transporte para reduzir a circulação de carros no centro histórico.
Andaram com as bicicletas, apreciando a margem do rio Tibre
por 10 minutos. Até chegarem no local indicado pelo guarda.
Apenas duas pessoas estavam na fila. Fran comprou 2
camisetas típicas de turistas de um ambulante africano.
- Mais discreto que isso é impossível – Falou Lucca com uma
camiseta escrita I LOVE ROMA e uma pizza desenhada.
- Tinha outra com a foto do Coliseu, mas não acho apropriada
depois da noite de ontem.
Uma voluntária ajudava os necessitados e organizava a
distribuição de sabão para aqueles que lavavam a roupa.
- Veja, Lucca. Uma iniciativa simples que ajuda os mais
necessitados e traz um pouco mais de dignidade para os
moradores de rua.
- Vou parabenizar pessoalmente o Papa pela iniciativa.
- Você não toma jeito – Riu Fran.
Depois de tomarem banho e renovarem a alma, estavam
prontos para retornar ao Vaticano com a missão de encontrar o
Papa e agradecer pela ducha.
-195-
XLIII
O DIA EM QUE A TERRA PAROU
Carlos não podia imaginar que Fran e Lucca passariam de

bicicleta a poucos metros do local onde estava. O pronto socorro
do hospital Espírito Santo ficava em frente ao rio Tibre. Seu pé
estava quebrado, mas conseguiu controlar a dor com analgésico.
O médico imobilizou o pé direito de Carlos com uma bota
ortopédica. Às sete horas em ponto, Carlos escutou o celular
tocar. Era o padrinho. Não atendeu com medo de informar a
morte do segundo segurança. Segundos depois a mensagem
chegou.
- Soube do ocorrido na igreja de Sant’Agnese. Você está bem?
Por um instante Carlos pensou em responder, mas o tom
paternal da preocupação certamente se transformaria em
cobrança. Não podia retornar sem a missão cumprida. Levantou
da cama com muita dificuldade de andar até que o enfermeiro viu
e tentou intervir.
- Não! O senhor não pode andar.
Carlos levantou a camisa deixando aparecer a pistola. A
recomendação médica foi desconsiderada diante da arma e Carlos
foi caminhando com muita dificuldade até a porta. Entrou no
táxi que estava parado na frente do hospital sem saber onde e o
que fazer. A dor ainda atrapalhava seu raciocínio.
- Para onde, Senhor?
André Trindade
- Rode pelo centro. Apenas rode.

Fran e Lucca tomavam café e comiam um panino, apreciando
os raios do sol refletidos no rio Tibre, como dois turistas em lua
de mel. Com as camisetas novas, o boné e o lenço comprados na
saída da Fontana de Trevi estavam tão imperceptíveis que Carlos
passou de táxi por eles sem notar. Pagaram a conta e voltaram
para o Vaticano de bicicleta, sentindo a brisa matinal. Tinham
tempo de sobra até a passagem do Papa entre os fiéis.
O Celular de Carlos recebeu mais uma mensagem do Padrinho.
- Sei que não quer atender, mas é urgente. Acabaram de pagar
uma conta no café próximo ao Vaticano. Eles não podem chegar
até aqui!
Carlos viu a mensagem e pediu para o taxista voltar ao
Vaticano. O cerco estava se fechando. Passou mais uma vez por
Lucca e Fran de bicicleta, quando resolveu ligar para o padrinho.
- Perdão padrinho. Eu falhei!
- Não temos tempo para isso agora. Precisamos evitar que os
dois entrem no Vaticano. Convoquei todos os nossos homens e
coloquei dois em cada entrada da praça de São Pedro. A ordem
é atirar para matar. Depois de abatidos, os corpos serão levados
pela polícia de Roma. Combinei tudo com os nossos contatos,
como já são procurados pelos assassinatos do Coliseu, será fácil
eliminar as provas.
- Combinado padrinho. Ficarei no portão principal.
Carlos chegou e logo identificou os dois integrantes da
Aíma que estavam na entrada principal do Vaticano. Armados
com pistolas e silenciador, fecharam o cerco na Praça de São
Pedro. Carlos ficou no centro, escorado em um pilar da grade de
proteção. Seria impossível passar pelos três e não ser percebido.
Lucca e Fran deixaram as bicicletas e foram direto para a
entrada do Vaticano.
-197-
- Veja Lucca! Ali na grade! É o homem que nos perseguiu.

Alertou Fran, virando-se de costas para Carlos. Lucca a
acompanhou e pararam em frente a um quiosque que vendia
lembranças para os turistas.
- Vamos comprar algo para disfarçar. – Falou Lucca pegando
um rosário com uma cruz em aço escovado e a abreviatura do
nome de Jesus em grego IHS. Era uma peça toda estilizada.
– Vou levar esse, toda irmã deve usar um terço. - Falou Lucca
colocando a peça no pescoço de Fran.
Fran adorou o presente. Apesar do perigo em que se
encontravam, Lucca não deixava de demonstrar afeto nos
pequenos detalhes, e o coração de Fran se enchia de esperança.
- Fran! Olha aquele grupo de turistas com o guia. Estão todos
de camiseta branca parecidas com as nossas. Vamos acompanhar
o grupo para não levantarmos suspeitas.
Seguiram o grupo que passou próximo do segurança do lado
esquerdo diretamente para o portão de bronze. Passaram pelos
detectores de metais que apontaram apenas o crucifixo de Fran
e sentaram nas cadeiras próximas da grade. Assim era mais fácil
falar com o Papa quando ele passasse com o papamóvel.
- Lucca, como você pretende falar com o Papa? Com certeza
seremos mais dois turistas no meio de outros milhares.
- Está vendo o casal aqui atrás?
- Sim. – Respondeu Fran.
- Eles têm uma criança de colo. O Papa geralmente para e
abençoa as crianças com um beijo. Quando ele for abençoar
o bebê, eu mostrarei a foto que a minha mãe deixou. Se ele
realmente for o caminho para a luz, nós saberemos.
- Em poucos minutos deve começar a cerimônia. Reze para
dar certo!
-198-
XLIV
O INÍCIO DO FIM
O chefe da segurança do Vaticano não passou a identificação

de Lucca para sua equipe, pois desconfiava que havia infiltrados
da Aíma entre seus homens. Estava certo de suas suspeitas.
Depois de anos atuando no Banco do Vaticano, não foi difícil
para a máfia cooptar alguns adeptos entre os servos de São
Pedro. Ainda era cedo, mas o padrinho já estava na sala no Banco
dos Vaticano quando recebeu a ligação de um deles pelo ramal
da Santa Sé.
- Padrinho.
- Nunca ligue por essa linha, não é segura.
- Mas é caso de urgência e o chefe da segurança proibiu o uso
de celulares durante nosso horário.
- Seja rápido.
- Acabei de localizar o assassino do Coliseu pelas câmeras
de segurança. Ele está na primeira fila da praça de São Pedro,
próximo da escadaria.
- Muito obrigado. – Desligou o padrinho.
Sob o sol forte, Carlos já não aguentava mais a dor do pé
quebrado. Tomou mais um analgésico sem beber água. O
comprimindo desceu rasgando sua garganta e deixou um gosto
amargo.
- Carlos! – Chamou um dos seguranças.

- O que foi?
- O padrinho avisou que avistaram os dois dentro do Vaticano.
Na cerca perto da escadaria.
- Maldição! Como conseguiram entrar. – Esbravejou Carlos,
com raiva pelo padrinho ter avisado o segurança e não ele. Era
sinal de que tinha perdido a confiança do seu protetor depois de
tantas falhas.
- Para piorar tudo, não conseguiria passar armado pelos
detectores de metais.
- Tive uma ideia – Falou Carlos.
Caminhou com dificuldade até a lateral da entrada, onde
conseguiu uma cadeira de rodas destinada para pessoas idosas
ou com problemas de locomoção. Carlos sentou sobre a arma,
enquanto o segurança empurrava a cadeira de rodas. Passaram
facilmente pelo detector de metais no exato momento em que o
papamóvel entrou na praça.
- Vamos rápido! Temos que achar eles. - Falou Carlos.
Fran e Lucca viram a multidão, que até então estava
calmamente sentada, aglomerar-se na cerca. Pareciam tietes em
um concerto de rock. O casal com a criança de colo também se
aproximou da cerca. Lucca estava colado neles com a foto na
mão. Além dos guardas que faziam a segurança para as pessoas
não ultrapassarem a proteção, seis seguranças acompanhavam
o papamóvel. Não queriam que o atentado contra o Papa João
Paulo II se reproduzisse. Ele levou dois tiros durante a audiência
geral em maio de 1981 e, até hoje, a atenção para que o incidente
não se repetisse era total.
O Papa estava a menos de 10 metros dos dois, quando apontou
para o bebê. O carro foi se aproximando e Lucca estava perto
de conseguir desvendar o mistério da morte de sua mãe e toda
-200-
André Trindade
a perseguição dos últimos dias. Fran estava ao lado de Lucca,

quando notou que algo estranho aconteceu no meio da multidão.
As pessoas começaram a se afastar, deixando um espaço aberto
a poucos metros do local em que estavam. Olhou para trás e viu
Carlos vindo na cadeira de rodas. Pedia licença para as pessoas
que se apertavam desesperadas para chegar perto do Papa. Nesse
momento, o Papa pegou a criança e deu um beijo em sua testa.
Mas em vez de entregar aos pais, passou para o segurança fazer
isso. A dor no nervo ciático não permitia se abaixar com peso.
Lucca notou que o Papa não chegaria próximo dos pais para
devolver a criança e gritou, mostrando a foto, mas no meio da
multidão não foi notado pelo Sumo Pontífice. Por um segundo,
viu suas esperanças se esvaindo e, não teve dúvidas, subiu na
cerca para se jogar no papamóvel.
Carlos viu o movimento de Lucca e lembrou da ordem do
padrinho, por um instante, pensou em tudo o que aconteceu nos
últimos dias e na decepção em não ter cumprido sua missão. Era
a primeira vez que desapontava aquele que sempre lhe apoiou
e não cumpria uma missão da Aíma. A dor que sentia pelo pé
quebrado e o cansaço físico e mental dos últimos dias ajudaram
na decisão extrema que o momento pedia. Carlos, vendo Lucca
ir em direção ao Papa, não hesitou: sacou a arma e atirou em sua
direção.
Fran viu a movimentação de Carlos para matar Lucca e,
de forma instintiva, saltou em sua direção, mas, antes que
pudesse deter o atirador, recebeu um tiro que tinha Lucca
como destinatário e caiu ao lado de Carlos. Os turistas que se
aglomeravam dispararam como uma manada e derrubaram as
cercas de proteção. O segurança que empurrava a cadeira de
rodas aproveitou a confusão e conseguiu fugir.
O Papa se abaixou com o barulho do disparo e rapidamente
foi cercado pelos seguranças que partiram com o papamóvel, em
disparada, pelos portões do Vaticano até um ponto seguro.
-201-
Depois do disparo, Carlos recebeu três tiros dos seguranças

do Papa e ficou imóvel na cadeira de rodas, deixando cair sua
arma ao lado de Fran. Antes de perder a consciência, ainda pôde
ver o sangue que jorrava de seu abdômen e sentir a dor de sua
carne rasgada pelos disparos. Encostou sua cabeça na cadeira
de rodas enquanto os seguranças o cercavam e a população
olhava a distância. O sol forte continuava a castigar seus últimos
momentos, mas o obelisco encobria seus raios, formando uma
imagem toda iluminada ao redor da cruz que adorna seu topo.
Ao ver a cruz iluminada, lembrou de São Dimas, o ladrão que
foi crucificado junto com Cristo e recebeu o perdão por ter
se arrependido de seus pecados. Carlos olhou para o obelisco,
enquanto os seguranças se aproximavam, e falou:
- Senhor, perdão!
Sabia que seu arrependimento na última hora não traria as
pessoas que matou de volta, muito menos atenuaria a dor dos
seus familiares. A única certeza que permeava seus pensamentos
era a de que tinha errado e sua morte encerrava um ciclo. Carlos
pôde finalmente sentir o alívio de se livrar da angústia das mortes
que carregava em suas costas. Seu fim tinha chegado da mesma
forma que suas vítimas, e a morte era uma sentença mais do
que justa depois de tanto mal que causara. Começou a rezar o
pai nosso, mas sentiu que suas forças escorriam junto com o
sangue que manchava o solo sagrado do Vaticano. Apenas seu
corpo continuava sobre a cadeira de rodas, já sua alma, não tinha
destino certo.
Enquanto isso, Lucca era preso e levado pela segurança do
Papa. Sua última visão ates de ser imobilizado e, praticamente
arrastado, foi Fran caída no chão da praça de São Pedro ao lado
do corpo de Carlos. Mesmo lutando com todas as suas forças
para ficar e ajudá-la, era impossível se desvencilhar dos dois
seguranças que o imobilizaram.
-202-
André Trindade
Em poucos minutos, todo o planeta recebeu vídeos e notícias

sobre um atentado contra o Papa Francisco. O tiro que parou o
mundo.
-203-
LXV
CONFISSÕES
Lucca foi levado para a sala da guarda do Vaticano. Não

conseguia esquecer a imagem do corpo de Fran no chão da praça
de São Pedro. Assim como Cristo, ela deu sua vida por outro sem
hesitar em qualquer momento. Abrir mão da própria vida para
salvar quem se ama era uma ação divina. A imagem de Fran caída
se alternava na mente de Lucca com seu sorriso no restaurante
do Hotel Mercure Coliseu. Em poucos dias, Lucca conheceu e se
apaixonou por uma mulher forte e, ao mesmo tempo, afetuosa.
Sabia que desde o primeiro momento em que a viu no velório
até aquele instante, ela fora um anjo que o protegeu. Nada
mais importava para Lucca, o amor que cultivou por Fran se
despedaçou com o último disparo de Carlos.
Enquanto Lucca sofria sua perda, os corredores do Vaticano
tremiam com a notícia de uma tentativa de assassinato. O Papa
estava recluso com acompanhamento médico, e a polícia recolhia
o corpo de Carlos.
Lucca chorava algemado em uma mesa, sendo vigiado por
dois guardas que nada falavam. Sentia dor nos braços pelo
golpe dado pelos seguranças do Papa para imobilizá-lo. Ficou
esperando por meia hora sentado até que um senhor baixinho,
calvo e de bigode escuro, notadamente pintado, entrou na sala.
Era o chefe da segurança do Vaticano.
- Bom dia Lucca, você está bem?
André Trindade
- Eu não fiz nada! Apenas queria falar com o Papa.

- Eu sei Lucca. Davi me passou boas referências suas. Quero
deixar claro que estamos aqui para protegê-lo. Logo tudo será
esclarecido e você ficará bem.
- Bem? Estou preso e minha namo...amiga morta. Como
posso estar bem?
- Bom. A sua amiga não morreu. O tiro acertou esse crucifixo
e desviou para o ombro. – Falou o chefe da segurança, mostrando
o crucifixo afundado pela marca do projétil. – Ela está sedada no
hospital, mas não corre risco de morte.
Lucca pegou o crucifixo e uma lágrima correu pelo seu rosto.
Somente quando perdemos alguém que verdadeiramente amamos
é que notamos sua importância e valorizamos cada momento
vivido. Beijou o crucifixo deformado pelo tiro, dizendo:
- Obrigado Senhor! Foi o seu poder que salvou a Fran.
- O bom pastor protege suas ovelhas - Falou com voz tenra
um senhor de batina branca e mocassim preto.
Os guardas e o chefe da segurança fizeram uma breve
reverência.
- Vossa Santidade! Não é seguro ficar aqui. - Falou o chefe da
segurança.
- Que lugar mais seguro que junto com meu chefe da segurança
e seus guardas. Além disso, estou com os meus seguranças na
porta. Agora preciso que me deixem a sós com esse jovem.
Temos muito a conversar.
- Não, Vossa Santidade. É muito...
- É uma ordem! E tirem as algemas dele!
O chefe obedeceu, totalmente contrariado.
- Estarei aqui fora caso precise, Vossa Santidade.
-205-
Lucca estava perplexo. Mesmo em seu plano de encontrar o

Papa, nunca imaginou que estivessem frente a frente dessa forma.
O Papa olhava em seu rosto fixamente. Como se estivesse
fazendo uma leitura de sua alma. Pôs a mão no bolso e tirou a
foto deixada pela mãe de Lucca.
- Sabem quem são? – Perguntou o Papa.
- Esse aqui é o Arcebispo de Buenos Aires e essa é a minha
avó.
- E este sou eu – Falou o Papa, colocando o pedaço que faltava
na foto com a sua imagem.
Lucca olhou a foto e realmente era o pedaço que completava
a fotografia.
- Não entendo, o Senhor conhecia os dois?
- Sim. É uma longa história. Peço que escute com ouvidos e
mente abertos.
- Conheci a Carmem quando estudei no curso de técnico em
química em Buenos Aires. Era uma pessoa alegre e cativante. Nos
aproximamos muito e, como qualquer jovem, comecei a cultivar
um sentimento muito forte por ela. Na mesma época, recebi o
chamado de Cristo para minha vocação, e pelos desencontros da
vida, Carmem não aceitou meu pedido de casamento e sumiu.
Eu cheguei a mandar uma carta pra ela dizendo que, se não nos
casássemos, me tornaria padre. Depois de um tempo eu fiquei
sabendo que ela tinha ido para o Brasil e estava casada. Essa
desilusão ajudou na escolha pela batina.
- Quer dizer que o Senhor namorou minha avó?
- Sim, no ano de 1957. Um ano antes de eu entrar no noviciado
da Companhia de Jesus. Quando me deixou, ela rasgou essa foto
falando que não queria mais lembranças minhas.
- Ela deixou a foto para minha mãe, junto com esse terço de
madeira.
-206-
André Trindade
O Papa pegou o terço e seus olhos ficaram molhados.

- Dei esse terço para ela como prova do meu amor. Meu
próximo presente seria um anel de noivado. Ela disse que tinha
jogado fora o terço.
- Viu essas letras aqui. – Falou o Papa apontando atrás do
crucifixo.
- Sim. O “J” e o “C” são as iniciais de Jesus Cristo. – Respondeu
Lucca.
- Não. Eu fiz essa marca. Significam Jorge e Carmem. Nossos
nomes estavam nas mãos de Cristo, assim como nossos destinos
sempre estão nas mãos de Deus.
Lucca levantou para caminhar e o chefe da segurança entrou
pela porta.
- Está tudo bem. Pode sair – Falou o Papa.
- Eu não entendo por que queimaram o corpo da minha mãe
e estão me perseguindo.
- Você sabe que todo poder gera encargos. Quando fui
eleito Papa, minha vida inteira foi devassada. Pesquisaram tudo
que podiam, inclusive sobre o meu namoro com Carmem.
Investigaram e descobriram que ela estava grávida, quando foi
para o Brasil.
- Grávida? Como assim?
- Isso mesmo. Ela fugiu com vergonha de ter engravidado
sem casar. Quando pensou em voltar, eu já tinha virado noviço.
- Então o Senhor é pai da minha mãe?
- Sim. E, por consequência, seu avô.
Lucca voltou a sentar. Era muita informação em tão pouco
tempo.
-207-
- Quando assumi a Santa Sé, tive a missão de realizar muitas

mudanças, entre elas moralizar o Banco do Vaticano. Esse
propósito incomodou muita gente poderosa e eu passei a ser
chantageado. Se mudasse algo, meu papado poderia ser curto.
- Não acredito que teriam coragem de matar o Papa. – Falou
Lucca.
- Claro que sim! Eu até parei de tomar chá para não acabar
envenenado como o Papa João Paulo I. Quando viram que não
tinha medo de perder a vida por fazer algo que achava correto,
procuraram outro meio de me pressionar.
- Mas o Senhor não podia renunciar?
- Foi isso que Bento XVI fez quando sofreu a mesma ameaça.
Renunciou para não perder a vida.
- A minha mãe sabia disso?
- Sim. Ela ficou sabendo em 2013. Aproveitei a visita ao
Brasil para a Conferência Mundial da Juventude e consegui uma
conversa com ela enquanto você dormia no hotel. Expliquei toda
a situação e que o fato deveria ser mantido em sigilo pelo bem
dela e da Igreja.
- Eu notei que ela voltou diferente da conferência, ficou muito
mais religiosa.
- Eu expliquei para ela que a aparição de um filho do Papa
mudaria tudo. Muitos dos paradigmas existentes hoje cairiam por
terra e a Igreja não estava preparada para essas mudanças.
- Então a minha mãe foi usada para garantir que o Banco não
sofreria intervenção?
- Sim! Mas como a crise mundial provocada pelo coronavírus
e o aumento da pobreza cresceram, as críticas ao patrimônio da
Igreja vieram à tona. De nada adianta um Papa franciscano se
a Igreja não prega a simplicidade. Por isso, o meu velho amigo
Dom Geraldo preparou um estudo sobre a criação de um projeto
-208-
André Trindade
mundial, liderado pela Igreja, para a implantação da Renda Básica

Universal.
- Davi, o Chefe da segurança do Arcebispo, falou sobre isso.
- A nossa ideia é que todas as pessoas do mundo recebam
uma ajuda mensal de 60 dólares. Os países ricos conseguiriam
pagar facilmente. Já os países pobres deveriam criar um tributo
sobre a extração de suas riquezas naturais.
- Nossa! Isso mudaria toda a tributação internacional.
- Com certeza. O objetivo do projeto é devolver para os
mais necessitados uma parte das riquezas exploradas pelos ricos
empresários, interessados apenas no lucro. Assim seria possível
redistribuir riqueza e garantir o mínimo existencial para milhões
de pessoas.
- A ideia é ótima. Por que não foi divulgada?
- Quem dá a ideia tem que dar o exemplo. Seria muito
fácil o Vaticano pregar isso sem ter que pôr a mão no bolso.
Principalmente, porque recebemos dízimos e doações de fiéis de
todo o mundo.
- Mas o Papa pode tomar essa decisão sozinho?
- Não! Só tem uma forma de mudar as estruturas da Igreja
e permitir que ela atue diretamente na defesa da renda básica
universal: um novo concílio!
- Agora entendo porque minha mãe me levou a Trento. Era
um sinal sobre o concílio.
- Ela sabia da minha intenção de revolucionar a Igreja, inclusive
como uma forma de adequar alguns dogmas à realidade em que
vivemos. Quando descobriram que Dom Geraldo preparava o
discurso em que eu apresentaria a convocação do concílio, tudo
mudou. Eu já não sabia em quem confiar.
- Mas e a polícia do Vaticano? Não pode ajudar?
-209-
- Temos corrupção em cada canto. Ela embebeda o homem

com suas tentações e compra sua honestidade. Como essa
proposta mexe com o interesse de grandes corporações, é
fácil chegar no preço do coração suscetível. O meu preço foi a
segurança da filha e do neto que só receberam de mim a ausência.
- Recebi a informação de que a minha mãe cometeu suicídio.
Não acredito que tenha feito isso.
- Sua mãe carregava nas costas a culpa por todas as mudanças
de que a Igreja precisa não serem implementadas. Ela me relatou
em uma carta que era muito egoísmo manter o sofrimento de
milhões de pessoas apenas para salvar sua vida. Tentei convencê-
la do contrário, mas foi inevitável.
- Por que queimaram o corpo dela?
- Com ela morta, já não tinham como me chantagear e
resolveram acabar com qualquer evidência que pudesse incriminá-
los. Inclusive você! Por isso pedi para a Madre Superiora da
Congregação Franciscana enviar alguém para vigiá-lo.
- Então foi por isso que ela enviou a Francesca.
- Era para ela apenas monitorar você. A coitada da irmã que
foi enviada não estava preparada para tudo que passaram.
- Creio que só estou vivo por causa dela. Até um tiro levou
para me salvar.
- Foi um ato nobre! O Vaticano enviará uma nota, falando que
a irmã Francesca foi a heroína que salvou Papa de um atentado
programado pelo diretor do Banco do Vaticano e seu cúmplice.
Identificamos que o atirador trabalhava com ele e conseguimos
interceptar uma ligação de um dos guardas do Vaticano que já
confessou tudo. Vocês serão inocentados dos crimes do Coliseu
e poderão partir assim que a irmã tiver alta.
- E se a imprensa perguntar algo?
-210-
André Trindade
- Compreenda Lucca, estou entre a Cruz e a Espada. De um

lado, meu coração pede para contar a verdade e acabar com toda
essa farsa; de outro, tenho receio da forma como os milhões de
fiéis da Igreja reagiriam.
- Entendo sua ingrata posição. Assim como a minha mãe,
manterei segredo.
- Agradeço do fundo do meu coração.
O Papa se levantou, foi em direção a Lucca e se ajoelhou,
beijando suas mãos.
- Muito obrigado, sangue do meu sangue.
-211-
LXVI
NOVOS HÁBITOS
Fran conseguiu abrir os olhos lentamente. Estava deitada em

um leito do Hospital do Vaticano. Um enfermeiro que monitorava
seu estado sorriu quando viu que estava acordando.
- O que houve? Como está Lucca?
- Calma! Ele está bem? – Respondeu alguém atrás do leito.
Era impossível não reconhecer a voz que sempre orientou a
vida de Fran. Em todos os momentos e aflições, era essa mesma
voz que aparecia com uma palavra de conforto ou motivação.
- Madre! Como a senhora chegou aqui?
- Calma, minha filha. Vim para Roma assim que recebi a
notícia de que estavam sendo procurados pelos assassinatos no
Coliseu. Por que não me avisou?
- Não tinha como ligar. Foi tudo tão rápido e meu receio é que
estivessem monitorando as ligações.
- Entendo. Não estou brava com você, apenas aliviada em
saber que está viva e bem. Nunca me perdoaria se algo tivesse
acontecido. Não posso perder você. – Falou a Madre abaixando
e beijando a testa de Fran.
- Madre. Não sei como contar, mas aconteceu algo.
- O que foi, minha filha?
André Trindade
- Segui suas ordens para vigiar o Lucca, mas acabei me

envolvendo com ele.
A irmã levantou-se e ficou de costas para Fran.
- Como assim?
- Nunca tinha sentido nada igual. Ele me fez ver uma nova
vida. Uma vida como mulher que é amada por um homem. Que
sente o mundo parar quando estão juntos. Que...
- Pare de falar. – Respondeu a Madre ainda de costas, olhando
para o crucifixo sobre a parede do quarto.
- Me desculpe, Madre. Eu pequei!
- Ele nos ensinou a não julgar. – Falou a Madre apontado para
o crucifixo na parede. – Eu também já pequei.
- Mas nunca da forma com que eu desapontei.
- Foi muito pior, minha filha. Quando era jovem me apaixonei
por um rapaz da minha escola. Ele era moreno e tinha olhos de
uma cor azul que nunca consegui esquecer. Passávamos muito
tempo juntos. Um dia fomos nadar no riacho perto da casa dos
meus avós e eu me entreguei para ele.
- A Senhora! - Falou Fran perplexa.
- Sim. Éramos praticamente crianças. Eu tinha 14 anos e nem
sabia o que estava fazendo. Cheguei em casa e contei para minha
mãe.
- Como ela reagiu?
- Da pior maneira. Me bateu muito e falou que eu tinha
desgraçado minha vida. No outro dia, meu pai me levou para o
mosteiro. Foi a última vez que tive contato com ele. Lembro até
hoje da minha mãe me colocando na charrete. Fiquei sabendo
que ele faleceu anos depois e falava como se eu tivesse morrido.
Praticamente me apagaram da memória.
- E o rapaz?
-213-
- Casou e teve uma família. Mas deixou uma lembrança. –

Falou a Madre, virando-se com os olhos encharcados.
- Que lembrança?
- Não tinha ideia da força do amor. Meses após entrar no
mosteiro, senti algo diferente. Meu corpo não era o mesmo.
Comecei a engordar e isso chamou a atenção das irmãs.
- Não acredito! A Senhora estava...
- Sim! Grávida! Crescia no meu ventre uma nova vida, fruto
do meu amor.
- E o que fizeram?
- As irmãs resolveram me apoiar. Eu era uma criança que teria
outra criança. Dei à luz uma linda menina que tem os olhos azuis
do pai.
- E onde ela está agora?
- Estou olhando pra ela agora – Falou a Madre aos prantos. –
Me perdoe, minha filha. Nunca contei a verdade com medo da
sua reação. Só de imaginar que você poderia estar morta, meu
coração se despedaçou.
- E a história sobre os meus pais terem me deixado na roda
dos enjeitados?
- Foi uma forma de evitar os comentários. Me desculpe. Se
existir piedade em você, preciso dela agora.
Fran colocou a mão sobre a Madre, fazendo carinho em sua
nuca.
- Você sempre foi e será minha mãe. Meu amor por você é
incondicional. Não me custa nada dar o perdão para quem me
deu a vida.
A Madre abraçou Fran. Não foi a primeira vez que deu um
abraço carinhoso na filha. Mas esse abraço era diferente, era um
abraço que tinha de um lado o perdão e a resignação de uma
-214-
André Trindade
filha e, de outro, o fim de um martírio por não poder contar a

verdade. “A verdade vos libertará”, pensou Fran ao perdoar a
mãe e libertá-la dos grilhões de uma mentira que machucava sua
alma dia após dia.
Nesse momento escutaram alguém bater à porta. A Madre se
inclinou em reverência ao Papa.
- Vossa Santidade.
- Não precisa disso, minha amiga. Você mais do que ninguém
sabe que sou contra essas formalidades. E como está a nossa
heroína?
- Ela está se recuperando bem. – Falou a Madre colocando a
mão sobre o ombro ferido de Fran.
- Posso conversar a sós com ela por um instante?
- Sim. Com certeza. Estarei aqui fora esperando.
O Papa e Fran conversaram por mais de uma hora. Quando
saiu, o Papa se despediu da Madre com um abraço dizendo.
- Cuide dessa menina, ela é o futuro da Igreja.
-215-
LXVII
A VERDADE VOS LIBERTARÁ
O mundo entrou em colapso. A imagem da mulher que

recebeu um tiro para salvar o Papa foi repetida milhões de vezes.
A irmã Francesca passou de uma desconhecida para possível
santa em horas. Em todo o planeta só se falava da mulher que
arriscou a própria vida por sua devoção à Igreja e à fé cristã. Foi a
primeira vez na história que as pessoas viram um mártir ao vivo.
O crucifixo que aparou a bala fez muitas pessoas chorarem.
E uma multidão nunca antes vista encheu o Vaticano e todo seu
entorno gritando a uma só voz.
- Senhor, o salvador!
Por mais que as palavras inspirem, os atos comovem. A ação
de Fran comoveu o mundo de tal forma que reacendeu o coração
de muitos católicos. Ela literalmente mudou o mundo.
A prisão do padrinho junto com a nota da Santa Sé de que
ele era o mandante do atentado foi o estopim para a intervenção
no Banco do Vaticano. Ministério Público Italiano, Europol
e Interpol estavam na fila para interrogar o padrinho e seus
comparsas. Muitos “investidores” não conseguiam dormir com
os possíveis desfechos do caso.
O Papa falou da morte de seu amigo Dom Geraldo e que
estavam trabalhando secretamente no projeto sobre a Renda
Básica Universal. Quando perguntado sobre qual era a simbologia
André Trindade
secreta nos códigos R.P. e S.L. que usavam para trocar mensagens,
o Papa Francisco explicou que era uma brincadeira com a
rivalidade dos times River Plate e San Lorenzo, sua esquadra do
coração.
Lucca esperava ansioso pela saída de Fran do hospital. Ela
apareceu com uma tala no braço esquerdo para proteger a região
em que a bala saiu.
- Acho que você esqueceu isso – Falou Lucca, entregando o
crucifixo amassado pela bala.
- Impossível esquecer. – Respondeu Fran, abrindo o botão da
blusa e mostrando a marca deixada pelo crucifixo em seu peito.
– Mais do que nunca, Cristo mora no meu coração.
Lucca abraçou-a com toda vontade e amor. Saíram com o
carro do Vaticano até o aeroporto, onde um jatinho esperava.
Lucca contou que tinha encontrado o Papa, mas Fran já sabia
de tudo.
- Ele me contou a sua história, Lucca. Então você é neto do
Papa? Quem diria!
- E sobre o que conversaram? – Perguntou Lucca.
- Foi uma longa conversa sobre o futuro da Igreja.
- E qual é o futuro da Igreja?
- Não sei! Mas acho que vamos construir esse futuro juntos.
Francisco foi o primeiro Papa latino-americano, isso já foi uma
quebra de paradigma.
- Concordo! Para que a Igreja se aproxime de seus fiéis, é
essencial que o Papa se identifique com eles. Quem sabe uma
mulher? – Brincou Lucca.
Fran deu um leve sorriso e abaixou a cabeça.
– É provável! – Respondeu Fran com um leve sorriso.
-217-
- Como? Uma mulher assumindo como Papa. Eu estava

brincando.
- Papisa! Esse é o nome correto.
- Era esse o assunto sobre o que conversaram?
- Sim. Na verdade, o tiro que levei mudou toda a trajetória
política da Igreja. A ideia inicial era que o novo Papa fosse o
Arcebispo da Nigéria.
- Claro! O primeiro Papa Negro seria a melhor forma de
expandir a Igreja na África.
- Verdade. Principalmente porque esse continente é o que
tem apresentado o maior crescimento no número de fiéis. No
último conclave essa questão já foi abordada. Mas uma mulher é
praticamente impossível.
- Por quê? – Perguntou Fran. - Você sabe que as mulheres são
maioria nos grupos de oração e igrejas?
- Mas o problema é que para ser Papa precisa ser ordenado, e
as mulheres não podem assumir uma função que hoje é exclusiva
dos homens. É um dos principais dogmas da Igreja.
- Sabe qual é a origem desse dogma, Lucca?
- Não.
- Lembra da Santa Ceia? Cristo chamou 12 homens para serem
seus apóstolos e pediu para darem continuidade ao seu trabalho.
Esse é o grande argumento que até hoje limita a ordenação de
mulheres e impede sua participação mais ativa na Igreja Católica.
- Você seria a primeira papisa da história! Não acredito!
- Na verdade a segunda. O Papa relatou que existem indícios
históricos que comprovam a lenda da papisa Joana.
- Não conheço essa lenda.
-218-
André Trindade
- Estudei sobre ela durante a faculdade. Era filha de um casal

inglês que residia na Alemanha. Quando ficou adulta, acabou se
apaixonando por um monge e fugiram para a Grécia. Depois de
alguns anos foram para o mosteiro de São Martinho em Roma.
- Permitiam mulheres no mosteiro?
- Não. Por isso ela se vestia como homem para ficar disfarçada
como monge. Mudou até o nome para Johannes Angelicus.
- Mas como a Igreja permitiu que uma mulher assumisse sua
liderança?
- Como era muito inteligente, logo se destacou entre os demais
membros do clero e foi nomeada Cardeal com o nome João, o
inglês. Joana foi eleita por unanimidade para assumir o Papado
depois da morte de Leão IV em 855.
- Nossa! Que loucura essa história. Como será que conseguiu
esconder isso do clero?
- Escondeu por algum tempo até que a natureza falou mais
alto. Acabou engravidando do seu amado monge e usou as
roupas largas para esconder o fruto desse amor.
- E o que aconteceu?
- Segundo os relatos, Joana sentiu fortes dores e deu à luz
no meio da rua durante uma procissão. A população reagiu com
desprezo por considerar o ato uma profanação aos dogmas da
Igreja a acabou apedrejando-a até a morte. A Igreja retirou essa
passagem da sua história, mas até hoje seu legado é lembrado. A
carta do Tarot que leva o nome de Papisa é prova desse fato.
- Não seria uma mudança muito radical ter uma mulher no
Vaticano? Meu medo é que acabem apedrejando você, assim
como a Joana.
- Com certeza. Foi isso que falei para o Papa Francisco. Não
sei se o mundo está preparado para ver uma mulher como líder
religiosa.
-219-
- E o que ele falou?

- Segundo ele, a mídia mundial propagou que eu segui o
exemplo de Cristo, dando a minha vida para salvar os outros e
o meu exemplo pode fazer a Igreja voltar ao rumo certo, depois
de séculos desvirtuada de seus princípios originais. As mudanças
que seriam lentas e graduais podem ser feitas de imediato e com
a aceitação dos católicos.
- E você? Quer ser papisa?
- Não sei se estou preparada. Mas fiz um desafio para o Papa.
Se ele contar a verdade sobre a sua mãe, eu me disponho a fazer
parte dessa nova Igreja. Ela é a verdadeira heroína que abriu mão
da própria vida para acabar com as chantagens dos mafiosos que
não queriam as mudanças na Igreja. Seu nome deve ser lembrado.
Lucca começou a chorar. Sua alma falava pelos olhos com
saudade e orgulho da mãe. Fran tinha razão, ela foi uma grande
mulher que preferiu a morte ao padecimento da Igreja e seus
projetos de humanização global.
Em menos de 1O horas já estavam em solo brasileiro.
Desembarcaram no mesmo aeroporto usado por Davi. Lucca
fez uma ligação com vídeo para o anjo Argentino e agradeceu o
apoio. Até brincou com o fato de Fran estar se recuperando mais
rápido que ele no hospital de Buenos Aires.
- Quais são seus planos, Davi?
- Primeiro eu vou tirar umas boas férias para me recuperar
bem. Depois vou para Roma. Fui convidado para trabalhar como
chefe da segurança pessoal do Papa.
- Que ótima notícia! Creio que não existe pessoa melhor.
- Ele me falou que precisa de alguém de muita confiança e
minha dedicação ao Arcebispo Dom Geraldo me credenciou
para o cargo.
- Vocês vão se dar muito bem.
-220-
André Trindade
- Só tem um problema.
- Qual? – Perguntou Lucca.
- Não posso brincar com ele quando o Boca Juniors ganhar
do San Lorenzo.
- Melhor não arriscar – Respondeu Fran rindo. – Cuide-se
meu amigo. Precisando de algo, sabe que pode contar conosco.
- Forte abraço.
Em meia hora já estavam escondidos no Monastério. Era o
lugar certo para fugir da perseguição da mídia nos próximos dias.
Chegaram na noite de quinta-feira e dormiram até o meio-dia de
sexta-feira para recuperar o cansaço dos últimos dias.
- Fran, quero pedir um favor.
- Pode falar.
- Amanhã é a missa de sétimo dia da minha mãe. É provável
que apareçam alguns repórteres e eu entenderei se você não
quiser participar.
- Vou com você! – Respondeu Fran sem hesitar. – O respeito
e a admiração que nutri pela coragem da sua mão me obrigam a
fazer parte dessa última homenagem.
A igreja estava lotada. Do lado de dentro, os curiosos
acompanharam a saga da mulher que fora queimada e do lado
de fora os fotógrafos e jornalistas se amontoavam na tentativa de
conseguir uma foto exclusiva da irmã que salvou o Papa.
Lucca e Fran entraram rapidamente pela porta lateral para
evitar as perguntas. Sentaram na primeira fila ao lado de alguns
parentes.
O Padre nunca viu a pequena igreja tão cheia. Ele subiu ao
altar e começou a missa.
- Meus irmãos.... Minha Nossa Senhora!
-221-
O padre parou subitamente e ficou branco ao mesmo tempo

em que era possível escutar a euforia dos fotógrafos e o tilintar
dos flashes das máquinas fotográficas.
Era a segunda vez que Lucca via aquela batina branca
combinada com mocassim preto. Cada passo era seguido de
lágrimas e comoção. O padre já estava ajoelhado quando o Papa
chegou até Lucca, beijou a sua testa e disse.
- Hoje nasce uma nova Igreja, meu neto.
FIM
-222-
Aponte a câmera do seu celular para o
QR Code e obtenha mais informações
sobre a Editora Thoth
www.booksbyauthors.com www.caminhodoslivros.com.br
A Editora Thoth é empresa parceira Livro impresso na gráfica
da Books By Authors Caminho dos Livros

Segredo de Francisco - Arquivo Jabuti

Enviado por

Dados do documento

Título original

Direitos autorais

Formatos disponíveis

Compartilhar este documento

Compartilhar ou incorporar documento

Opções de compartilhamento

Você considera este documento útil?

Este conteúdo é inapropriado?

Direitos autorais:

Formatos disponíveis

Segredo de Francisco - Arquivo Jabuti

Enviado por

Direitos autorais:

Formatos disponíveis

O segredo de

Ficha Catalográfica elaborada pela

DAI A CÉSAR O QUE É DE CESAR���������������������������������������������������������54

MERGULHO NO RIO DA PRATA������������������������������������������������������������71

VIVENDO BUENOS AIRES���������������������������������������������������������������������79

O SINAL DA SALVAÇÃO �����������������������������������������������������������������������83

ADIÓS NONINO ����������������������������������������������������������������������������������92

UMA SEGUNDA CHANCE�������������������������������������������������������������������100

O ENCONTRO DE BACCO COM AFRODITE ���������������������������������������107

O MUNDO É DOS HONESTOS �����������������������������������������������������������111

A MARCA DA PAIXÃO �����������������������������������������������������������������������113

POR UMA CABEÇA�����������������������������������������������������������������������������116

UM REI COM DUAS RAINHAS�������������������������������������������������������������124

O “NOVO” VELHO MUNDO����������������������������������������������������������������127

O FIM DOS TEMPOS���������������������������������������������������������������������������130

QUEM TEM BOCA VAI À ROMA����������������������������������������������������������158

AMICI MIEI ����������������������������������������������������������������������������������������176

O DIA EM QUE A TERRA PAROU���������������������������������������������������������196

NOVOS HÁBITOS ������������������������������������������������������������������������������212

A VERDADE VOS LIBERTARÁ��������������������������������������������������������������216

O Arcebispo de Buenos Aires, Dom Geraldo Klaus, tentava

caminho de todos os seres vivos. A certeza do fim traz a paz que

- Sim. Ela sempre vem na hora certa – Respondeu Dom

enxergava além. A morte é um ciclo conhecido da vida. Mas

no agradecimento e no respeito ao seu nome após a morte. O

de Lucca morreu em um acidente de carro, quando ele ainda

casa para estudar, acabou perdendo o contato com a maioria dos

Carlos chegou ao Serro de Santa Lucia em poucos minutos.

- Que espécie de mensagem?

era respeitado por todos, porque adaptou a frase de Thomas

- Sim. Até hoje me respeitam e nunca mais tive problemas

Ajudamos aqueles que precisam, sabendo que ficam com uma

responsável em mente. Assim, as atenções seriam desviadas e a

Com cabelos escuros e brilhantes que desciam lisos como uma

internada, ela me pediu, na verdade ordenou, que eu entregasse

O Rosário que recebeu da mãe era um lindo artefato. No

- Não entendi o que ela foi fazer em casa?

Lucca acompanhou toda a missa de corpo presente ao lado

- Não tia, vou caminhando. Prefiro andar para espairecer. –

A distância era razoável para observação. Fran sabia que,

a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de

Perto das 3 horas, o carro da polícia passou em disparada

- Lucca! Acorda! Lucca! – Gritava desesperadamente a tia

- Sim. Mas a mangueira sumiu e o cano foi quebrado. Aposto

Um corpo de modelo com toques de sensualidade, armada e

Francesca franziu a testa e se aproximou de Lucca. Ficou

- O voto permite as orações como única forma de romper o

Caminhar entre os túmulos do Cemitério da Recoleta, em

podem ser vistas na beleza dos túmulos que remontam ao auge

uma Igreja voltada para o atendimento dos necessitados. Mas

- Boa pergunta. Apesar de seguir regras internacionais, cada

para consumirem. Um ciclo vicioso que serviu para transformar

Lucca acordou todo dolorido, seu corpo sentiu o reflexo da

descobrir quem queimou o corpo da minha mãe e tentou me

- Já que estamos em um monastério, vou dar a você um voto

- Concordo Fran, conheci pessoas que vivem em um mundo

- Sim. As mulheres amarram o dedo por 30 minutos até ficar

- Será que é da natureza humana sermos desumanos?

- Sim! Concordo plenamente. Nenhum dos nossos investidores

Ao desligar o telefone, o padrinho respirou fundo, soltou a

transformá-lo em uma instituição “honesta e transparente”. Uma

Fran recebeu uma ligação e ficou imóvel por alguns

- Mas como ela sabe que foi suicídio?

DAI A CÉSAR O QUE É DE CESAR��54

MERGULHO NO RIO DA PRATA��71

VIVENDO BUENOS AIRES��79

O SINAL DA SALVAÇÃO ��83

ADIÓS NONINO ��92

UMA SEGUNDA CHANCE��100

O ENCONTRO DE BACCO COM AFRODITE ��107

O MUNDO É DOS HONESTOS ��111

A MARCA DA PAIXÃO ��113

POR UMA CABEÇA��116

UM REI COM DUAS RAINHAS��124

O “NOVO” VELHO MUNDO��127

O FIM DOS TEMPOS��130

QUEM TEM BOCA VAI À ROMA��158

AMICI MIEI ��176

O DIA EM QUE A TERRA PAROU��196

NOVOS HÁBITOS ��212

A VERDADE VOS LIBERTARÁ��216