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Thais Luzia Colaço

Organizadora

ELEMENTOS DE
ANTROPOLOGIA
JURÍDICA

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Apresentação ..... e ea
eatt ersseerseeteeeii 7
Capítulo 1
1
O despertar da Antropolopia Jurídica perateeareeree
mtanterercereetraserr
serrasacasas
cases nie trratenas 13
|é Thais Luzia Colaço

| Capítulo 2
| Etnicidade, alteridade e tolerância irem
41
| Antônio Brito

1 Capítulo 3
Estado Nacional, etnicidade e autodeterminação... rermemeeammesiertems
59
| Antônio Brito
!
' Capítulos |
; Novos atores e movimentos étnico-culturais: Antropologia
Jurídica na rota das
“identidades ......... eemnoeireaamte acerte renas edtereeemmereestemeremeisiereaataas
paterna 75
Adriana Biller Aparício

Capítulo 5
Antropologia, multiculturalismo e Direito: o reconhecimento
da identidade das
comunidades tradicionais no Brasil... meant
93
Raguel Fabiana Lopes Sparemberger
Carolina Giordani Kretymann

. Capítulo 6
Antropologia e diferença: quilombolas e indígenas na
luta pelo reconhecimento do
seu lugar no Brasil dos (desjiguais................ coeeseracterseerereram
s areaearmreereersesteerirça 125
Raguel Fabiana Lopes Sparemberper '

Capitulo 7
Laudos antropológicos e sua Contribuição ao Direito sms
161
Maria Dorothea Post. Derella ,
Flávia Cristina de Mello
Capítulo8 mit iasa
Identidade cultural inclusão digital dos povos indíg
enas sob a ótica da Antropo- APRESENTAÇÃO
logia
Thais Jurídi
Lua caColo
|. mean erertrrtmers
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quem apre menor yo e


Capítulo 9 :
O objetivo deste livro é trazer à discussão alguns elementos da Antro-
H
Alitropologia,, alteri' dade : e Direit
Centers
o: da construçãoo do é “outro” colonizado
+ :
pologia Jurídica aos professores e alunos dos cursos de graduação em.
inferior a partir do discurso colonial à necessidade como :
| Direito. Tal fato se deve principalmente a uma deliberação do Conselho
da prática alteritária ....... 217
Eloise da Silveira Petter Damásxio Nacional de Educação e Câmara de Educação Superior, por meio. da |
Resolução CNE/CES nº 9, de 29 de setembro de 2004, que institui as.
Capítulo 10 diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Direito e dá
Judo ação ou telativização: direitos humanos na perspectiva outras providências, tornando obrigatório nos projetos pedagógicos, em.
da Antropologia *
Urídica eme rnter erre trt traterenassetae eemrenmearaas teses treereasaado sua organização curricular, o conteúdo de Antropologia, no seu eixo de
Marina Vital Borges
Ê formação fundamental. a RE
Capítulo 11 Tal decisão criou a necessidade dos docentes e discentes dos Cursos,
Justiça comunitária, administração de conflitos de Graduação em Direito ampliarem seus conhecimentos interdisciplinares,
é Antropologia Jurídica: uma con-
tribuição para uma relação processual mais humana... estreitando os vínculos do Direito com a Antropologia. Diante desta nova,
terrestres 265
Marina Vital Borges obrigatoriedade existem algumas possibilidades, tais como: oferecer o
conteúdo de Antropologia inserido em alguma outra disciplina, como,
por exemplo, um item em Sociologia, ou incluir uma disciplina introdutória
de Antropologia, ou oferecer a disciplina de Antropologia Jutídica. |
A última opção, a nosso vet, é a mais apropriada, uma vez que terá
uma melhor utilidade aos futuros profissionais do Direito, por trazer uma
contribuição teórica e prática, levando os estudantes a refletitem e torna-
tem-se conscientes de situações concretas da nossa sociedade heterogê-
nea, pluriétnica e multicultural, preparando-os para saberem lidar no futu-
ro com situações adversas, quando atuarem como profissionais.
Observamos, ao longo do ano de 2006, quando da obrigatoriedade
da inclusão do conteúdo de Antropologia, ou mesmo da implantação da
disciplina de Antropologia Jurídica nas grades curriculares dos cursos de
graduação em Direito, que há uma carência muito grande do conheci-
mento do seu conteúdo e grande parte dos nossos colegas docentes não
sabem do que se trata.
Diante desse quadro, só cabe a nós, pesquisadores e professores da
Antropologia Jurídica, enaltecer a sábia iniciativa dos membros do Con-
selho Nacional de Educação e da Câmara de Educação Supetior e divul-
gar a Antropologia Jurídica, com a intenção de suprir essas deficiências e

' Inciso 1, art. 5º, Res. CNE/CES nº 9, de 29/09/2004.

7
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA “Tuais Luzia COLAÇO -

instigar e fomentar a sua tadicação no ensino e na pesquisa no Brasil, pois TIDADES, em que faz algumas reflexões sobre os atuais movimentos
só se pode ter apreço e valosizar aquilo que se conhece. sociais no contexto da globalização, nos quais os novos atores sociais vêm
A proposta deste trabalho tem como objetivo tornar públicas algu- demandando por direitos identitários (culturais, étnicos, livre orientação
mas pesquisas e discussões profícuas realizadas no ano de 2007, pelos sexual, gênero, entre outros), referindo-se às reivindicações alcançadas no

yos—
membros do Grupo de Pesquisa de Antropologia Jurídica - GPAJU, sob Brasil pelos novos atores sociais, na Constituição Federal de 1988 e de-
nossa coordenação, composto por colegas, professores e alunos do Pro- monstrando a eficácia da Antropologia Jurídica na compreensão do pro-
grama de Pós-Graduação em Direito da UFSC. cesso dinâmico das identidades culturais contemporâneas,

er
O título do livro ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDI- No capítulo quinto ANTROPOLOGIA, MULTICULTURALISMO
CA sugere a apresentação e discussão de alguns tópicos da Antropologia E DIREITO: O RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DAS
e do Direito:que devem estar entrelaçados, indispensáveis para o entendi- COMUNIDADES TRADICIONAIS NO BRASIL, a professora dou-
mento da Antropologia Jurídica, principalmente no concernente ao mo- tora Raquel Fabiana Lopes Sparemberger e à mestre Carolina Giordani

==
saico que representa a diversidade da sociedade na qual estamos inseridos, Kretzmann abordam a Antropologia, o multiculturalismo e o reconheci-

>
buscando trazer ferramentas a uma melhor atuação aos profissionais do mento da identidade de grupos culturalmente diferenciados. Definem
Direito com relação às questões teóricas e situações fáticas relacionadas comunidades tradicionais, a sua relação com o meio ambiente e a neces-

ema
aos direitos diferenciados existentes na sociedade atual, Os elementos dessa sidade da proteção do seu conhecimento. Tratam da questão da emanci-

e
diversidade, representados neste livro, são: pluralismo, multiculturalismo, pação e da necessidade de se garantir a igualdade para se alcançar a cida-
identidade, tolerância, igualdade, diferença, alteridade, etnicidade, inclu- dania a essas comunidades.
são, exclusão, preconceito. A doutora Raquel Fabiana Lopes Spareraberger, no sexto capítulo
A obra inicia com o capítulo O DESPERTAR DA ANTROPOLO- ANTROPOLOGIA E DIFERENÇA: QUILOMBOLAS E INDÍGE-
GIA JURÍDICA, elaborado pela organizadora do livro, em que faz uma NAS NA LUTA PELO RECONHECIMENTO DO SEU LUGAR
introdução da Antropologia Jutídica, apresenta o conceito de Antropolo- NO BRASIL, discorre sobre o histórico das desigualdades e exclusão no
gia e de Antropologia Jurídica, o histórico da Antropologia e da Antro- Brasil dos afro-descendentes e indígenas. Conceitua quilombolas, quilombos
pologia Jurídica, discute o direito das sociedades ágrafas, analisa a impor- e sociedades indígenas. Aborda a luta de tais parcialidades étnicas no res-
tância do estudo e da pesquisa da Antropologia Jurídica e demonstra os gate da sua identidade cultural e reconhecimento de seus direitos diferen-
diversos campos de atuação da pesquisa nesta área, ciados. Apresenta aspectos legais que garantem esses direitos, especifica-
No capítulo seguinte ETNICIDADE, ALTERIDADE E TOLE- mente a questão da titulação das áreas remanescentes de quilombos e
RÂNCIA, o doutorando Antônio Brito apresenta os conceitos de etnia, demarcação de terras indígenas.
alteridade, etnocentrismo, tolerância, demonstrando a importância de se No capítulo intitulado LAUDOS ANTROPOLÓGICOS E SUA
alcançar um verdadeiro Estado de Direito pluriétnico. CONTRIBUIÇÃO AO DIREITO as autoras, ambas anttopólogas, dou-
No capítulo terceiro ESTADO NACIONAL, ETNICIDADE E tora Maria Dorothea Post Darella e a doutora Flávia Cristina de Mello
AUTODETERMINAÇÃO, o autor acima citado discorre sobre a for- nos possibilitam o diálogo interdisciplinar, trazendo: a sua colaboração
mação dos Estados Nacionais e sobre o mito da homogeneidade étnica com seu conhecimento teórico e prático das questões formais e cotídia-
“dos Estados, bem como discute a problemática do Estado pluriétnico e nas da claboração dos laudos antropológicos voltados a processos admi-
da autodeterminação dos povos. nistrativos: relatórios de identificação étnica, relatórios de identificação e
Contamos com a participação da mestranda Adriana Biller Aparício delimitação de terra indígena, laudos periciais oriundos de litígios requeri-
no quarto capítulo NOVOS ATORES E MOVIMENTOS ÉTNICO- dos em juízo no âmbito da Justiça Federal. Além disso, demonstram a sua i
preocupação com os critérios éticos e as questões teórico-metodológicas,
1

CULTURAIS: ANTROPOLOGIA JURÍDICA NA ROTA DAS IDEN-


t

9
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA THAIS LUZIA COLAÇO ———————""

No capítulo IDENTIDADE ar e
CULTURAL E INCLUSÃO DIGI- ire o a se isinteressarem peso seu estudo
alunos e professores de Direit
TAL DOS POVOS INDÍGENAS SOB A com esta obra, € do
ÓTICA DA ANTROPO- E pe uisa no país. Dessa forma, pretendemos,
LOGIA JURÍDICA, a otganizadora desta insti nte assunto no mu
obra faz considerações sobre tão complexo e instiga
a polêmica discussão da inclusão digital dos já cara q
Pp a a reflexão deste
povos indígenas e a manuten- É Direito.
ção ou não da sua identidade cultural, Segundo
a autora, à tecnologia da E
informação é um patrimônio cultural da huma
nidade que deve estar dis- É
ponível a todos e que poderá trazer benefícios
, mas também alerta sobre
os riscos de um etnocídio e quaís são os cuida
dos necessários no momen- E
to da sua implantação. :
No texto seguinte, capítulo nono
GIA, ANTROPOLO
ALTERIDADE E DIREITO: DA CONSTR
UÇÃO DO “OUTRO”
COLONIZADO COMO INFERIOR A
PARTIR DO DISCURSO
COLONIAL À NECESSIDADE DA PRÁ
TICA ALTERITÁRIA, a
mestranda Eloise da Silveira Petter Damázio
traz algumas reflexões refe-
rentes à relação entre verdade, discurso e
poder. Demonstra à construção
do discu rso colonial do “outro” colonizado
como inferior, referindo-
se
ao: oriental, africano e ameríndio. Analisa
à telação do discurso colonial
com o Direito. Enfatiza a contribuição
da Antropologia Jurídica pata o
desenvolvimento da prática alteritária.
A mestre Marina Soares Vital Borges,
no décimo capítulo
UNIVERSALIZAÇÃO OU RELATIVIZAÇÃ
O: DIREITOS HUMA-
NOS NA PERSPECTIVA DA ANTROP
OLOGIA JURÍDICA, faz
apontamentos sobre a origem dos Direitos
Humanos, pondera a questão
da controvérsia entre a universalidade dos
Direitos Humanos e o relativismo
cultural, apresenta alguns exemplos polê
micos de práticas culturais que
incomodam o Ocidente,
O capítulo décimo primeiro JUSTIÇA
COMUNITÁRIA, ADMI-
NISTRAÇÃO DE CONFLITOS E ANT
ROPOLOGIA JURÍDICA:
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA
RELAÇÃO PROCESSUAL
MAIS HUMANA foi elaborado pela autor
a acima referida, que discorre
sobre a relaç ão judicial processual oficial no Brasil
, demonstrando sua
insuficiência e morosidade. Explicita
o seu marco teórico buscado na
Antropologia Jurídica o auxílio para
a formulação de uma proposta de
um tratamento judicial mais eficiente.
Demonstra sua viabilidade apresen-
tando casos concretos de justiça comunitária.

as
" Assim, convidamos o leitor a adentrat no novo/velho
mundo da
Antropologia Jurídica, assimilando algun
s de seus elementos, instigando

de
Are as
10

=
11
CAPÍTULO 1

O DESPERTAR DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA


2
THais Luzia COLAÇO

O objetivo deste capítulo é fazer a introdução de professores e alunos


dos cursos de Graduação e da Pós-Graduação em Direito no mundo da
Antropologia Jurídica.
Inicialmente apresentaremos o conceito de Antropologia. Na seguên-
cia, trataremos do seu histórico, desde a Antiguidade, como os gregos
viam os outros (“bárbaros”), os não-gregos; na Idade Média, como os
cristãos descreviam os não-cristãos; no colonialismo e imperialismo eu-
topeu, o estudo do “outro”, o não-europeu; no século XIX, a criação da
Antropologia, sob a influência do positivismo e do evolucionismo, até
chegar ao início do século XX, sob uma nova concepção (condena o
evolucionismo) e prática (participativa) antropológica.
Será descrito o conceito e o histórico de Antropologia Jurídica, ramo
da própria Antropologia, bem como nesse contexto será discutido o di-
teito das sociedades sem escrita e sem Estado, de acordo com a concep-
ção do pluralismo jurídico.
- Porintermédio dessas questões anteriormente relacionadas, será anali-
sada a importância do estudo e da pesquisa da Antropologia Jutídica
para o estudante de Direito e para os futuros profissionais.
Temos também a intenção de suprir algumas deficiências de conheci-
mento do que seja a Antropologia Jutídica, instigar e expandir o seu ensi-
no, pois só se pode ter apreço e valorizar aquilo que se conhece.

O QUE É ANTROPOLOGIA

Quando se estuda a Antropologia, é necessário ter o entendimento de

? Doutora em Direito, Mestre em História. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-


Graduação de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa em Antropologia Jurídica - GPAJU da UFSC. E-mail: thaisecj.ufse.br

13
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA Jurípica CapiruLo 1

cultura. Em fins do século XVIII, existiam duas


palavras que definiam tantas áreas do conhecimento, por si só não explica muita coisa. Não há
cultura, uma de origem francesa Civilization, referi
a-se às realizações mate- um consenso entre os antropólogos na sua definição.
riais de uma comunidade, e outra de origem germâ
nica, Kultur, abrangen- Qualquer que seja a definição adotada é possível entender Antropolo-
do os aspectos espirituais de um povo (LAR
AIA, 2006, p. 25). gia como a resposta para conhecermos o que somos a partir do espelho
No século XIX, Edward Tylor sintetizou os dois
conceitos antes des- fornecido pelo “outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários
critos num único vocábulo inglês, Culture, que repre das quais
sentava “todas as pos- mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através
sibilidades de realização humana”, ou seja, um “comp
lexo que inclui co- pode-se ampliar nossas possibilidades de sentir, agir erefletir sobte O que,
nhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou
qualquer outra capaci- afinal de contas, nos torna seres singulares, humanos (OLIVEIRA, 1998,
dade ou hábitos adquiridos pelo homem como
membro de uma socie- p. 10).
dade” (p. 25)
Assim, conforme Robert Shirley (1987, p. 1):
Nesse sentido, segundo Rattner (2005):
A Antropologia é uma ciência ao mesmo tempo social e natural;
[...] existem muitas definições para o termo cultura, embora haja devido ao enorsme alcance de sua função — o estudo do homem —é
um consenso entre os estudiosos de que cultura refere-se aquela parte quase um campo sem fronteiras; um mar de conhecimentos, 4
do ambiente produzida pelos homens e por eles aprendida e utiliza- Antropologia física, uma de suas subdivisões, estuda agenética bu-
da no processo contínuo de adaptação e transformação da sociedade mana, a fisiologia e a biologia, bem como os parentes evolutivos— os
e dos indivíduos. Para conhecer a cultura de um povo é fundamental primatas. A arqueologia, outra das subdivisões da Antropologia,
conhecer sua história, sua evolução cultural, ou seja, suas pesquisa a origem e a evolução da raça buimana, não somente 4
tradições
e as transformações que construíram e ainda constituem a culiura evolução biológica, mas também a social. A lingiiística antropolégi-
particular de cada tribo ou qualquer organização social (p. ca deriva do estudo de línguas não escritas e tem dado contribuições
2).
notáveis à psicologia, à história e à natureza do conhecimento bu-
A partir dos estudos da Antropologia, pode-se afitmar
que a cultura HIANO,
está inscrida no processo de socialização de cada ser, que
se constitui no |
convívio comunitário, no qual são assimiladas as normas
, os padrões, a Alguns antropólogos contemporâneos, todavia, não têm uma defini-
conduta, a religião, a língua, enfim, o conjunto que ção clara do termo, por entenderem que vai contra o espírito da Antro-
compõe o estilo de
vida. “É por meio da cultura que um povo constrói a
sua identidade e pologia, pensada como:
mantém vivas a sua história e sua etnia” (RATT
NER, 2005, p. 1).
Após a definição do que seja cultura, é importante [..] um conjunto de teorias (nem sempre concordantes) e diferentes
enfatizar à origem
da palavra Antropologia. Significa antropos = homem
e logos = estudo, ou: métodos e vécnicas de pesquisa que buscam explicar, compreender ou
seja, estudo do homem. Assim, a Antropologia é interpretar as mais diversas práticas dos bomens e mulheres em
o estudo do homem
como ser biológico, social e cultural. Também encontramos sociedade, Muitas dessas teorias baseiam-se em pesquisas de campo,
definições de
Antropologia como “estudo do homem e seus trabalhos nas quais os antropólogos buscam conviver com as populações locais
através do tem-
po e do espaço”; “A Antropologia é a mais humana das e aprender seus hábitos, valores, modos de vida, crenças, relações de
ciências e a mais
científica das humanidades”; “o que os antropólogos fazem” parentesco e outras dimensões da vida social (SANTOS, 2005,
; “Antropo-
logia nada mais é do que sociologia comparada” (SHIRLEY, p. 19).
1987, p. 1).
Esses conceitos, no entanto, ainda não são suficientes
para definir o
que seja Antropologia. O estudo do homem, tão genéri Santos faz questão de frisar a necessidade de desmitificação da figura
co e envolvendo
do antropólogo, visto como um pesquisador que vive em busca de mmulos
14 15
JDLEMEN TVS VI ANT KUPULUGIA | URILILA
-CapíruLo 1

e arcas perdidas, estilo Indiana Jones; ou vestido com roupas estilo safári, entre outros.
embrenhado nos interiores de florestas tropicais buscando estabelecer Nada melhor para entender o que seja a Antropologia, do que conhe-
contatos com perigosos selvagens. Também enfatiza que os antropólogos cer os seus atuais objetos de estudo, que podem ser verificados pelas
não realizam trabalho de arqueólogos, que estudam vestígios humanos palavras-chave das dissertações e teses defendidas no Brasil, tais como:
históricos e pré-históricos em escavações; ou de paleontólogos, que estu- família, parentesco, memória, cidadania, ONGs, ecologia, movimentos
dam fósseis de animais ou vegetais. Da mesma forma, não se identifica sociais, Igreja, extrativismo, masculinidade, violência conjugal, alimenta-
com a chamada Antropologia Física, que estuda os aspectos biológicos ção, cultos afro-brasileiros, migração, linguagem, viagens, artesanato, tra-
dos seres humanos (p. 17-18). balho, criança, infância, gravidez, adolescência, habitação, televisão, advo-
Sabe-se, nesse sentido, que a Antropologia volta-se cada vez mais para gados e juízes, política indigenista e história indígena (SANTOS, 2005, p.
uma auto-reflexão do seu papel político e social — enquanto ciência da 18), loucura, prostituição, homossexualismo, telações de gênero, religião,
crítica cultural — e dos parâmetros pelos quais tem produzido e represen- escolas de samba, bairros, favelas, mendigos, afto-descendentes, velhice
tado os significados da cultura. Há quem afirme que o “exótico” não etc.
existe mais, a maioria dos antropólogos contemporâneos afirma que “o Como podemos observar, hoje o objeto de pesquisa da Antropolo-
objeto de pesquisa da Antropologia não está mais nas sociedades distan- gia vai bem além do estudo das sociedades “primitivas”, “exóticas”, “sim- 2» ec » e

tes, intocáveis, primitivas” e sim dentro das nossas sociedades” (GEERTZ, ples”, “tradicionais”, tribais, sem escrita e sem Estado. Mesmo assim, o
2000, p. 88). estudo dessas sociedades é uma prática corrente e uma tradição na Antro-
Por isso, alguns antropólogos criticam a forma tradicional de fazer pologia social e cultural.
Antropologia. Mostram como a autoridade do antropólogo é construída, No século XIX, sob a influência do positivismo, sutgitam como ciên-
fazem revisões sobre a idéia de que “as culturas são totalidades autóno- cia a Antropologia e a Sociologia”, dentre outras áreas do conhecimento.
mas e integradas” e, sobretudo, recolocam no coração da disciplina an- Nesse sentido, explica Paulo Raposo (2007) que a “Antropologia e a Soci-
tropológica a importância da crítica cultural. Para os antropólogos pós- ologia constroem-se ambas como disciplinas acadêmicas no século XIX
modernistas “os símbolos em geral não são fixados categoricamente, eles como resposta e como produtos de uma emergente modernidade oci-
se desenvolvem e'modificam no tempo e no espaço; deve-se, portanto, dental”. A Sociologia gradualmente tomou essa modernidade como o
repensá-los no mundo atual” (OLIVEIRA; CABRAL, 2004, p. 3). seu específico objeto de conhecimento, enquanto a Antropologia se espe-
Segundo Laplantine (2001, p. 16-19), a Antropologia é dividida em cializou na pré-modernidade — aquilo que o antropólogo Michel-Rolph
cinco áteas: a biológica ou física, que estuda as variações dos caracteres Trouillot (1991, p. 12) denomina Zhe savage slot.
biológicos do homem no espaço e no tempo; a pré-histórica, vinculada Podemos pensar que a Antropologia assumiu a missão de servir como
com a Arqueologia, que estuda o homem por meio dos seus vestígios uma espécie de “batedor” para toda a ciência social, seguindo de perto os
materiais, visando a reconstituir as sociedades desaparecidas em seu as-
pecto material.e social; a linguística, que mediante o estudo da língua re- ' Optamos por utilizar aspas nas expressões “primitivas”,» e “exóticas”, “simples”, e “tradicionais”,
produz os seus valores, preocupações e seus pensamentos; a psicológica, por entendermos que o uso destes termos para tratar de sociedades ágrafas e sem Estado está
coberto de preconceito diante de uma visão. ctnocêntrica de acordo com os padrões da
que estuda os comportamentos, conscientes e inconscientes dos seres hu- sociedade ocidental. ,
manos; a social e cultural, ou etnologia, concernente ao todo de uma
, v ,

“ea antropologiá começou como o estudo de povos sera uma tradição escrita e este fato
obrigou os antropólogos a tentarem entender a lingua, a economia, a religião, a mitologia, as
sociedade, sua vida: material, sua organização política e jurídica, crenças leis e mesmo a biologia de um povo como partes de um todo e não como fragmentos
religiosas, sistema de parentesco, língua, psicologia, arte, conhecimento, estanques. O antropólogo teve de se tornar um generalista ao invés de um especialista, mesmo
quando seus interesses eram mais centralizados” (SHIRLEY, 1987, p. 2).
9 r - ' ao 1
- “Em alguns países, como na França, não apenas suas histórias se confundem: muitos
“A Antropologia Social ou Cultural se confundem. Muitos antropólogos não fazem distinção cientistas sociais franceses, até hoje, não fazem distinção entre as duas, utilizando ora uma, ora
entre uma e outra (SANTOS, 2005, p. 19). outra palavra para referir-se à sua área de trabalho” (SANTOS, 2005, p. 19).

16 17
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA Juríbica —
CapíruLo 1

passos anteriores dos missionários e o seu dilige


nte contributo para o borando na definição de políticas públicas, assessorando o Congresso
imperialismo colonial. A emergente Antropologia
pretende documentar É Nacional, o Judiciário, o Executivo e o Ministério Público quanto às ques-
a vida e os costumes desse “outro primitivo” » NO precis
o instante em que tões fundiárias, à defesa dos direitos das “minorias”, populações específi-
O projeto expansionista ocidental o condenava
à extinção. Simultanea- cas, movimentos sociais, organizações governamentais e não-governamen-
mente às transformações globais que configuraram a
emergência do ca- tais, entre outros. (Disponível em: < ielo,br Pscript=sci>. Áces-
pitalismo moderno — racionalização, secularização, industrialização so em: fev. 2007).
burocratização, comercialização, individualismo e, claro, imperialismo - Os antropólogos têm uma responsabilidade social e política muito
tornaram-se estandartes das modernas teorias sociais. A Sociologia traça-
ta o seu percurso por grande. No passado tiveram uma vinculação direta com o colonialismo, a
meio da observação direta e situacional desses
processos ocorridos no exploração, a dominação, o subdesenvolvimento, a espoliação, a aliena-
mundo ocidental, enquanto que a Antropologia
operará essa análise em
ção, o massacre, o genocídio e o etnocídio praticados contra as popula-
função de um “mundo em extinção”, um mundo
em que esse ções estudadas. Na conivência com a exploração das sociedades que estu-

“outro selvagem” se esfuma e desaparece (RAPOSO,
2007). da, sem impedir a alienação cultural, religiosa, econômica ou física signifi-
ca a própria opressão.
«Assim, 0 que as distinguia era e é especificamente o sex objeto
de O dever dos antropólogos é auxiliar estas populações se libertarem da
estudo. A Antropologia dedicava-se às sociedades ditas
“exóticas”, exploração, é “participar também no “desenvolvimento do subdesenvol-
ou de um mundo em extinção, enquanto que a Sociologia preocu
pa- vimento”. É ter consciência de que seu trabalho pode interferir na dinâmi-
va-se com os problemas sociais decorrentes da Revolução Industr
ial ca interna da sociedade e não deve ser um agente da alienação cultural,
resultado de seu próprio meio. Verifica-se, então, que Sociologia
foi religiosa, econômica ou física, transformando-os em dependentes
Jruto da sociedade capitalista industrial, a reflexão sobre si pró-
ria. A Antropologia também foi resultado do capitalismo, (COPANS et aí, 1971, p. 40).
porém O antropólogo /etnólogo vai dar voz a quem sempre se calou, por
colonialista e imperialista dos Países europeus que amplia
vam sen não ser compreendido ou ter “castrada” a sua fala, ou porque nunca foi
dominio aos mais longínquos lugares da Terra (SANTOS,
2005, ouvido, Também fará o papel de intermediário entre culturas diferentes,
p. 20-21).
ajudando a manter um diálogo (COPANS ez a/, 1971, p. 36-41). Indepen-
Por isso, no Brasil em geral à formação básica do dentemente da linha de atuação, seja na Antropologia urbana, tural ou
antropólogo inicia-
se na graduação do curso de Ciências Sociais, etnóloga, os profissionais devem ajudar os povos, populações ou comu-
que é dividido em três
áreas: Sociologia, Antropologia e Ciência Polític nidades estudadas nas suas relações com a sociedade moderna e capitalis-
a, porque ele precisa defi-
nir € compreender teoricamente a inter-relação ta, mas sem paternalismo, caridade e dominação
dessas áreas do conheci-
mento: a sociedade, o homem e a política. É, portan
to, na pós-graduação 7 . A ! ts! A
Conforme o Código de Etica do Antropólogo, os “direitos dos antropólogos devem estar
que os antropólogos vão se profissionalizar media subordinados aos direitos das populações que são objeto de pesquisa e têm como contrapartida
nte o desenvolvimento as responsabilidades inerentes ao exercício da atividade cientifica”,
da pesquisa na área, geralmente em torno de “três
eixos temáticos funda-
mentais: a etnologia indígena, o estudo das populações Com relação às populações estudadas, devem ser respeitados:
negras e o mundo “1. Direito de ser informadas sobre a natureza da pesquisa.
da cultura nos grandes centros urbanos”. (Dispo
nível em: <ymwyscielobr/
Scielo php?script=sci>. Acesso em: fev. 2007). 2. Direito de recusar-se a participar de uma pesquisa. .
Além das atividades de pesquisa, os antrópólogos contribuíram para 3. Direito de preservação de sua intimidade, de acordo com seus padrões culturais.
a
reflexão sobre os problemas da sociedade brasileira 4. Garantia de que a colaboração prestada à investigação não seja utilizada com o intuito de
e têm atuado direta- prejudicar o grupo investigado.
mente em diversos segmentos, participando de
debates nacionais, cola- 5. Direito de acesso aos resultados da investigação.

6. Direito de autoria das populações sobre sua própria produção cultural”,

18
19
comem oii no praca
VAPNULO 1

Conforme o que assevera Shirley (1987, p. 8), no entanto, a “linha meiro passo em direção à síntese e a Antropologia uma segunda e última
pragmática do campo tem sido modificada, mas a idéia de domínio está etapa da síntese, tomando por base as conclusões da etnografia c da
sendo substituída pela de cooperação, e a assistência ainda não desapare-
etnologia”. o
ceu”, Mesmo com os novos métodos e técnicas de pesquisa, a linha ro- Toda ciência procura encontrar os seus precursores. Há autores que
mântica nunca desaparecerá. “O mundo é extremamente complexo para consideram a Antropologia uma ciência humana muito antiga, por afir-
que'a Antropologia se transforme numa ciência exata num futuro previsí- marem que Heródoto, o chamado “pai da História”, da Geografia Com-
vel”, Na condição de ciência, tem uma tendência a obter um “grau de parada e da Etnologia, ter sido um dos precursores a estudar os costumes
objetividade e rigor, bem como controle de observação ao que ainda é dos povos “exóticos”, ou seja, todos aqueles povos que não eram gregos.
uma atte — a de ser antropólogo”. “A antiguidade das preocupações 'etnopráficas' seria um indício da curio-
Aos leigos no assunto, até aqui já foi possível ter uma idéia do ofício sidade natural das nossas sociedades relativamente aos outros grupos hu-
do antropólogo e da importância do seu trabalho para a sociedade, que manos, a fim de entre todos estabelecer as diferenças e as semelhanças”
transpassa a teotia, alcançando um âmbito prático de atuação direta ao (COPANS et aí, 1971, p. 9, 17).
objeto de estudo. Há, porém, divergências quanto à possibilidade de uma “atitude an-
Cabe, entretanto, apresentar neste capítulo as origens da Antropologia tropológica” por parte dos gregos da Antigiúidade, “já que ela implica
e o percurso que dela transcorreu para.se entender como chegou até aqui. numa relativização praticamente impossível para uma civilização que divi-
dia o universo humano entre 'nós' (os gregos, os homens) e os “outros”
HistÓRICO DA ANTROPOLOGIA que, como se sabe, eram os “bárbaros” (DA MATTA, 1987, p. 86).
Conforme assevera Copans (1971, p. 17), todo discurso referente aos
A Antropologia teve sua origem na etnografia, que coleta os dados, e outros tem um “duplo aspecto da exclusão ideológica e da inclusão “cien-
na etnologia, que os sintetiza e compara, visando a “unificar teórica e tífica', sustenta, portanto, todo o discurso etnográfico desde as origens”,
metodologicamente” a realidade humana (COPANS et aí, 1971, p. 14). ou seja, a descrição dos não-gregos é necessária “para saber em que é que
A etnografia é a disciplina que recolhe dados sobre a descrição de eles são ou não são “bárbaros”,
povos, língua, raça, religião, manifestações materiais. A etnologia sintetiza, Dentro dessa linha de raciocínio da inclusão pela exclusão, ou do inte-
compara, unifica teórica e metodologicamente a realidade humana. A resse pelo “exótico”, na Idade Média há todo um discurso dos cristãos
Antropologia é a ciência que tem por objeto de estudo a cultura material aos não-cristãos.
e espiritual dos chamados povos naturais; estudo e conhecimento do ponto No Renascimento inicia-se a expansão mercantil e política ocidental.
de vista cultural das populações “primitivas”. Estudo comparativo de O europeu vai ter contato intensivo com outros povos dos demais con-
todos os povos (p. 14). tinentes do globo e daí passa a ter um outro discurso sobre o não-euto-
Segundo o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1970, p. 377), a etnografia peu”.
corresponde “aos primeiros estágios da pesquisa: observação e descrição, Entre os séculos XVII'e XVIII-têm início os primeiros contornos
trabalho de campo. À etnologia, cóm relação à etnografia, seria um pti- empíricos de uma análise sistemática 'das sociedades não-européias medi-
ante relatos dos viajantes e dos missionários. À preocupação dos etnólogos
As responsabilidades dos antropólogos são:
de meados do século XVIII era “explicar as diferenças e as semelhanças,
“1. Oferecer informações objetivas sobre suas qualificações profissionais c a de seus colegas
sempre que for necessário para o trabalho a ser executado.
2. Na elaboração do trabalho, não omitir informações relevantes, a não ser nos casos previstos “6 importante ressaltar que os não-europeus também tinham um discurso da sua visão de
anteriormente. outros povos. “As crônicas, memófias, telatos de viagens dos árabes, dos persas, dos indianos,
3. Realizar o trabalho dentro dos cânones de objetividade e rigor inerentes à prática científica” dos chineses têm muitas vezes um valor insubstituível, e nós mal começamos a tirar proveito
científico destas obras, que constituem a visão não-ocidental de outras sociedades não ocidentais”
(SANTOS, 2005, p. 74). (COPANS ef aí, 1971, p. 17-18).
20 21
1
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA Jurídica —
CaríruLO 1

as drigens e as evoluções das sociedades”, Nesse


período aparecem pela defensores de suas culturas (SHIRLEY, 1987,p. 2-3).
primeira vez Os termos etnografia e etnologia, mas
somente no século Ainda para este autor (p. 1-3): “[...] um dos mais completos estudos já
XIX as duas disciplinas se enquadram como complement
ares, primeiro, a realizados sobre a história e a sociedade da ilha de Java foi feito pelo seu
etapa da coleta de dados, depois,a análise comparativa (COP
ANS etal governados britânico, Sir Stambord, que fundou a cidade de Cingapura,
1971, p. 18).
Outro foi o de Lord Lugard, o fundador da Nigéria. [...] O exemplo
Segundo Shirley (1987, p..2), a Antropologia
moderna é um mais famoso foi o de Lawrence da Arábia, que se tornou mais árabe do
subproduto do expansionismo colonial e imperial europe
u, e divide-se que inglês”.
em três temas principais: o pragmático, o romântico
e o científico. O Além da Europa, nos Estados Unidos da América, após o quase ex-
pragmatismo romântico foi a base:da Antropologia
social. As nações termínio dos povos nativos da América do Norte e do norte do México,
européias colonialistas e imperialistas (espanhola, portug
uesa, britânica os índios não constituíam mais uma ameaça à expansão norte-americana,
francesa e holandesa) tiveram contato com povos difere
ntes de outros com exceção da nação Sioux, localizada em regiões isoladas do planalto
continentes, que nada conheciam a seu respeito. Os reinos
católicos espa- central, Mesmo assim fundaram, em 1864, com objetivos científicos e
nhol e português delegaram à Igreja Católica a missã
o de conhecer também de “controle pacífico dos povos nativos do oeste”, o Departa-
cristianizar e “civilizar” esses povos. No início da conqui
sta, em 1521 foi mento Americano de Etnologia, dirigido pelo General John Wesley Powell
fundado na Cidade do México o Instituto de Estudos Asteca
s. A partir (SHIRLEY, 1987, p. 3).
daí surgem inúmeros trabalhos etnológicos realizados
por clérigos de or- Diante da questão prática socioeconômica do passado colonial e im-
dens religiosas (principalmente jesuítas). O interesse
principal dos missio- perialista da Antropologia, não podemos generalizar criticando-a moral-
nários foi pragmático: estudar, conhecer, transforma
r é dominar. mente, pois alguns antropólogos envolveram-se diretamente com as po-
| Não podemos, contudo, omitir o fato de que alguns
missionários (prin- pulações estudadas, como se observa a seguit:
cipalmente beneditinos e franciscanos), após a verifi
cação 4x foco das cruel-
dades praticadas contra os povos do Novo Mundo, indign
ados, denunci- Embora muitos estudiosos e missionários de então aceitassem a
aram as injustiças presenciadas e iniciaram a luta
em defesa de seus direi- visão do “fardo do homem branco” ou de trazer a “civilizações
tos. Um dos expoentes máximos foi o Frei Barto
lomeu de Las Casas; primitivas”, muitos outros se tornaram profundamente envolvidos
influenciado pelo discurso inflamado em defesa
dos índios do Frei Anto- com o povo que estudaram e, na prática, vieram a ser defensores
nio de Montesinos.
impetnosos de sua independência cultural, Esta é também uma das
Às outras nações colonialistas e imperialistas européias,
que não eram características comum aos antropólogos modernos. Pode-se notar
exclusivamente católicas, tinham outros intere
sses, que não a conversãoà que alguns foram além das pesquisas para serem incorporados a
fé. Nesse período o mercantilismo falou mais alto
e os interesses comer- tribo estudada (SHTRLEY, 1987, p. 3).
ciais foram mais fortes, Não há nenhuma Preocupaçã
o com a conversão
religiosa, e, sim, o interesse estava nas alianças
políticas e econômicas, Para Ainda no século XIX, ocorre o fenômeno do neocolonialismo, em
tanto, era muito importante conhecer os costumes
dos povos que esta- que os Estados europeus ocupam os continentes da África, da Ásia e da
vam sob a égide dos Estados imperialistas,
Oceania, e a Antropologia “científica” vai estar a serviço dos governos
À maioria dos antropólogos do século XIX proced
ia desses países e colonialistas, sob a influência do evolucionismo .
estavam a serviço do governo imperial. Alguns
estudavam e conheciam
Os povos dos demais continentes por razões exclusivam
ente práticas, para ” «As Ciências da Natureza, principalmente a Biologia, exerciam grande influência no meio
servir aos interesses da metrópole; outros, no entant intelectual europeu do século XIX, em particular as teorias evolucionistas de Pierre Lamark
o, por motivos ro- (1744-1829) e Charles Darwin (1809-1882). Para Lamark, as adaptações dos organismos ao meio
mânticos de pura curiosidade, fascinação e ambiente provocaram mudanças evolutivas. Já para Darwin, que se tornou mais conhecido
envolvimento, tornando-se que o primeiro, a evolução das espécies baseava-se em um processo de seléção natural. Em
ambas as teorias a idéia básica era de que os seres vivos evoluíam dos mais “simples' para os

22 23
Nesse período há um desenvolvimento da pesquisa empírica no senti-
empírica, que se realiza pelas missões científicas, que coletam documentos
do de traçar a evolução natural da espécie humana. A busca da otigem do
e objetos, c registram sistemática e ordenadamente dados das sociedades
homem inicia-se com “classificações biológicas das raças e à sua descrição
estudadas com o objetivo de conhecer, descrever e medir a diversidade
racial: a Antropologia física”, da origem e evolução como espécie natural
humana, não se tratando mais “de relatos de viagens de que se tiram
e como ser social. Estuda-se a paleontologia, a pré-história, para promo- considerações ideológicas ou históricas”. Tais objetos e informações che-
ver a descrição dos estágios anteriores da espécie humana, passando ne-
gam às mãos dos chamados “etnólogos de gabinetes” ou “eruditos da
cessatiamente por um evolucionismo linear, do mais simples ao mais com-
compilação”, que interpretam e analisam os dados produzindo obras te-
plexo, do inferior ao superior, do atrasado ao moderno (COPANS et al, óricas sobre os povos estudados (COPANS ef aí, 1971, p. 19).
1971, p. 18-19). ' Esse modelo de pesquisa das leis de evolução das sociedades humanas
Nesse contexto, as sociedades “primitivas” são consideradas os ante-
mostrou-se deficiente e “levou frequentemente a extrapolações e a gene-
passados da sociedade ocidental contemporânea. Há uma classificação talizações abusivas: as sínteses elaboradas acabam por silenciar as lacunas
dos diversos estágios pelos quais obrigatoriamente todas as sociedades da documentação ou os fatos que contrariam a demonstração” (p. 20).
passariam, verificadas nas formas de produção (Marx e Engels), formas Com o tempo, os antropólogos e sociólogos perceberam que era
de parentesco (Morgan, Banchofen) e formas de direito (Sumner Maine) impossível estudar os seres humanos com os mesmos métodos e critérios
(COPANS et aí, 1971, p. 20). empregados pelos cientistas da natureza, uma vez que os homens e mu-
Augusto Comte (1798-1857), filósofo francês, afirmou que “as expli- lheres são imprevisíveis, dotados da capacidade de criar e dar sentido à
cações que os homens davam para os fenômenos em geral (naturais ou
vida, produzindo, reproduzindo e modificando a sua própria cultura
sociais), haviam passado por três fases diferentes”. A primeira era chama- (SANTOS, 2005, p. 25).
da de “teológica ou fictícia”, em que os homens atribuíam as causas dos Mais tarde, com a união do trabalho de carnpo e a interpretação teó-
fenômenos ao sobrenatural; a segunda “metafísica ou abstrata”, na qual as
tica, a Antropologia adquire a sua otiginalidade e promove uma revolu-
explicações eram especulações filosóficas; a terceira “científica ou positi-
ção, como bem explicita Laplantine (2007, p. 75-76):
va”, em que, por intermédio de-métodos científicos, buscava-se as leis
que regiam os fenômenos sociais e naturais (SANTOS, 2005, p. 24).
[...] ela põe fim à repartição das tarefas, até então habitualmente
O primeiro antropólogo a elaborar um modelo de desenvolvimento divididas entre o observador (viajante, missionários, administra-
da humanidade foi o norte-americano Henry Lewis Morgan (1818-1881), dor) entregue ao papel subalterno de provedor de informação, e o
segundo o qual o desenvolvimento transcorria os três níveis: selvageria, pesquisador erudito, que, tendo permanecido na metrópole, recebe,
barbárie e civilização. Mais tarde, o escocês James Frazer (1854-1941) analisa e interpreta [...] O pesquisador compreende a partir desse
criou o modelo das fases da magia, religião e ciência (SANTOS, 2005, p. momento que ele deve deixar sen gabinete de trabalho para ir com-
22-23), partilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais
Sob a influência do positivismo * ampliou-se a pesquisa etnológica como enformadores a serem questionados, e sims como hóspedes que o
mais 'complexos', O evolucionismo, como explicação para a origem das espécies animais, recebem e mestres que o ensinam, Ele aprende então, como aluno
representou um grande avanço frente às explicações religiosas dominantes na época. atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver como eles, a falar
Por seu aspecto' revolucionário, o evolucionismo empolgou também pensadores de outras sua língua e a pensar nessa lingui, a sentir suas próprias emoções
áreas, que resolveram adaptar o modelo, construído para atender à natureza, ao estudo das
sociedades” (SANTOS, 2005, p. 22). dentro dele mesmo.
“ «Assim como no caso do evolucionismo, o positivismo também surgiu pela foste influência
exercida pelas ciências da natureza [...], pela possibilidade que ela abria para explicações A partir dessa nova postura dos antropólogos, a Antropologia, como
tacionais, em um mundo que tentava livrar-se do domínio das explicações religiosas. [...] À
idéia das ciências da sociedade, como à Antropologia e a Sociologia, utilizarem métodos das ciência moderna, disciplina universitária e profissão, surgiu no começo do
ciências naturais” (SANTOS, 2005, p. 24-25).
século XX, sendo seus precursores o judeu-alemão naturalizado norte-
24 25

11000 ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 1

americano Franz Boas, com formação


em Físic a, € O polonês expatriado, Malinowski foi o primeiro a praticar o trabalho de campo propria-
acolhido na Inglaterra, Bronislaw Malinows
li
com formação em Mate- mente dito, como observador participante . À partir dele a Antropologia
mática (SHIRLEY, 1987, p. 3-4).
Franz Boas foi o primeiro a contestar se torna a ciência da alteridade, dedicando-se aos estudos das lógicas pró-
o evolucionismorelativizando prias de cada cultura, Na obra “Os Argonautas do Pacífico”, descreve €
o conceito de cultura e negando a história
linear da humanidade valori- demonstra que apesar de tão diferentes do nosso modelo de sociedade,
zando a cultura cotidiana e não a oficial,
Fundou à escola do difusionismo os costumes dos trobriandeses têm uma significação e uma coerência
Pesquisou Antropologia Física, Lingú
ística, Folclore, Geografia, Mi ra-
ções e Organização Social (ROCHA, próprias, não tendo nada de “primitivo” ou atrasado (LAPLANTINE,
2004, p. 40-43). E 2007, p. 81). A sociedade do “outro” passa a ser fonte de reflexão para
Participou da expedição científico-a
ntropológica Jessup North Pacific transformação da sociedade do “eu” (ROCHA, 2004, p. 73).
Expedition com o objetivo de estudar
as comunidades que habitavam a A partir de Boas e Malinowski ocorte uma reviravolta na Antropolo-
costa noroeste do Pacífico, do Canadá
e do Alasca, Quando voltou da gia, tornando-se autônoma, passando do etnocentrismo ao relativismo
expediçã o, ocupou a cadeira de Antropologia,
na Universi
dade de cultural e rompendo com a concepção linear da História.
Colúmbia, em Nova Iorque. Foi o mest
re de grandes nomes da Antro- Radeliffe-Brown contestou a concepção de que se explica o presente
polo gia norte-americana, como: A. L, Kroeber,
Melville Herskotis, Ruth de uma sociedade pelo estudo do seu passado. À “sincronia — presente —
DO Ralph Linton, Margaret Mead, entre
outros (SHIRLEY, 1987 não está submetida à diacronia — história”, Assim, a Antropologia se
E com Bronislaw Malinowski que a teori desvincula da História, pois “nem todas as sociedades buscaram valorizar
a evolucionista é realmente o tempo linear, histórico, feito de acontecimentos sucessivos, como uma
combatida pela corrente funcionalista
sistemática, “Todo o elemento (ins- forma lógica e interessante para pensar sua própria existência”, A socie-
tituição) de uma cultura desempenha
uma função neste conjunto e reflete dade do “outro” é pensada com seus próprios termos. Há uma preocu-
uma necessidade biológica. As respostas
às nece ssidades primárias e às pação com a observação direta das ações cotidianas, realidade para ser
necessidades derivadas constituem a cultu
ra” (COPANS etal 1971 p.21) estudada, observada, descrita, comparada e classificada. Constatou que
“ em cada sociedade “algumas instituições desempenham uma “função”
elasO Podemos
século X io i e a ponsável/precursor

cultuado ear OS cita psicológica
das principais
aura u distoricismo, o funcionalismo,
i Escolas Antropológicas,
Entre: crucial na manutenção do “processo” e da “estrutura”, Se estas funções fo-
Pp
rem suptimidas, aquela sociedade se transformará numa outra, diferente”
in
ral, o configuracionismo
a ou ] tipológica do com
»mportamento cultural e o estruturalis
Pp escola procurou explicar o desenvolvimento cultural ,
por meio do processo de
utra, enfatizando a relativa raridade
(ROCHA, 2004, p. 56-64).
de
Nos Estados Unidos, no período entreguerras E. Sapir, M. Mead, R.
o estágio mais avançado ivilizaçã
Benedict, A. Kardinar e R. Linton formam uma associação de pesquisa-
i iali :
“selvagem”
dominação e e explomção
crias peiviização, o industrialismo burguês. Assim, as classificações de
pocixaram de ter a conotação ideológica e política que dores etnólogos, psicólogos e psicanalistas, que constroem “os modelos,
levava à
ovos
desenvolgimbar
+ Dem como a uma missão “evangelizadora”
ie das
4 é ur geltzadora” ee “eivilizanse:
“civilizatória” os princípios ou as configurações culturais (pattern) que fazem a origina-
foténcias capitalistas e coloniais, A
que aaa mento
ascado em instituições culturais, determinando dotes
a vida social pelas funções
partir da construção
lidade dos indivíduos e das culturas” (COPANS et aí, 1971, p. 21-22),
nova visão à esse vio esempenham nos grupos humanos, o funcionalismo
emprestou úma Os fundadores da Sociologia, E. Durkheim, C. Bouglé, R, Hertz e M.
suas instituições culuess e ao ia ada se id
azer isto pumano
desdobra estabelece funções
em inú ibili diferentes para Mauss, vão interessar-se pelas sociedades “primitivas” e suas manifesta-
biológica, natu
o “progresso”
lógica, al é tociei|VÍSto mais como uma opção de valores culturais do que determinação
te
: : inúmeras possibilidades esse devir:
tecnológica. A terceira escola, caracterizada
como configuracionista cultusal
* «Certamente há limites para O grau em que um antropólogo possa ou deva.tornar-se
membro de uma outra cultura. [...] O antropólogo desenvolve uma dupla visão de vida, torna-
se multicultural. De certo modo, converte-se no que estuda. Esta experiência antropológica”
é a marca do pesquisador de campo e ela muda sua personalidade para sempre. [...] À experiência
de uma pesquisa científica extensa não só permite ao antropólogo aprender uma outra
cultura, mas também, em muitos casos, faz com que ele esqueça ou questione os dogmas de
sua própria cultura” (SHIRLEY, 1987, p. 4-5).

26 27
TLEMENTOS Dig ANTROPOLOGIA JURIDICA CAPÍTULO 1

ções religiosas. Suas “primeiras pesquisas têm um caráter documental e dência “intelectualista” e filosófica, e seguiu os modelos sociólógico, estru-
livresco”. O fundador da etnologia teórica foi Marcel Mauss, que estudou turalista, marxista”; teve como pesquisadores mais significativos: Durkheim,
“a magia, a religião, o parentesco, a economia”, que vão originar “a síntese Mauss e Griaule. É dentro desse contexto que a Antropologia Jurídica faz
e a pesquisa das leis de funcionamento profundas e invisíveis” (COPANS parte da sua história e do seu conteúdo. Assim, a nossa próxima interven-
et al, 1971, p. 22), ção será no sentido de conceituar e historicizar a Antropologia Jutídica.
Em 1945, Claude Lévi-Strauss teorizou esses princípios de maneira
rigorosa. Sem o maior representante do funcionalismo e fundador do CONCEITO DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
estruturalismo antropológico ”, e criticando o excesso de importância que
se dáà História para interpretação do presente das sociedades, Lévi-Strauss A Antropologia Jutídica dedica-se ao estudo do Direito das socieda-
indaga: de qual história estamos tratando, da história cotidiana feita pelos des “simples”, das instituições do Direito da sociedade contemporânea,
homens comuns, ou da história construída pelos historiadores, ou da “re- do Direito Comparado e do pluralismo jurídico,
presentação filosófica feita tanto sobre a história dos homens quanto so- Shirley (1987, p. 14) divide o estudo da Antropologia Jurídica em três
bre a dos historiadores”? (ROCHA, 2004, p. 84). tipos:
Há outros teóricos que criticam o funcionalismo: A Antropologia Legal “é o trabalho clássico do antropólogo legal
[...], o estudo da ordem social, de regras e sanções em sociedades “sim-
Assim, Max Glukman, na Grã-Bretanha, e Georges Balandier, ples”, o “direito primitivo” na terminologia mais antiga”.
em França, puseram em foco a natureza contraditória, não iguali- A Antropologia Jurídica “é o emprego de métodos antropológicos
tária e assimétrica das relações sociais. Partidários de uma espécie de pesquisa, observação participante e comparação com modernas insti-
de empirismo historicizante ou tipológico, consagraram-se a estudos tuições de Direito. Trabalhos nesta linha têm sido feitos na polícia, na
de dinâmica social (rituais de rebelião, messianismos, casos de an- magistratura e até em prisões”.
tropologia política) que tentam esclarecer a natureza real das trans- O Diteito Comparado é o estudo e comparação de diferentes siste-
formações produzidas pela colonização enropéia na África negra mas jutídicos, simples e complexos, em que a colaboração do anttopólo-
(COPANS et aí, 1971, p. 22-23).
go é imprescindível “para auxiliar nesta espécie de trabalho, pelo alcance
de seu conhecimento multicultural e de sua consciência de muitos tipos
Para termos uma idéia do panorama da Antropologia norte-america-
diferentes de instituições jurídicas que não as das sociedades modernas
na, britânica e francesa, seguiremos o esquema de Laplantine (2007, p.
ocidentais”,
100). Para este autor, a Antropologia americana privilegiou o “estudo das Inicialmente é importante esclarecer que para se pensar em Antropo-
personalidades culturais e dos processos de difusões, contatos e trocas
logia Jurídica temos que desvincular o Direito do Estado e da escrita, ou
interculturais””; seguiu o “modelo histórico (o evolucionismo e neo-
seja, desmitificar o monismo jurídico, representado pelo Direito ocidental
evolucionismo), geográfico (o difusionismo), psicológico e psicanalítico como um paradigma incontestável, assegurado por um aparato estatal e
(o culturalismo)”; teve como principais pesquisadores Boas, Kroeber e R. apresentado por uma codificação escrita. Isso não significa que o Direito
Benedict. Já a britânica enfatizou o “estudo da organização dos sistemas estatal positivado não seja considerado Direito para a Antropologia, mas
sociais”; seguiu o modelo sincrônico e funcionalista do estruturalismo in- é apenas mais uma forma de Direito,
glês”; teve como pesquisadores mais influentes: Malinowski e Radcliffe- O monismo jurídico foi instituído na sociedade ocidental por volta
Brown. À francesa estudou os “sistemas de representações”; teve “ten-
dos séculos XVII e XVIII, sob a influência do absolutismo monárquico e
da burguesia revolucionária, havendo um processo de racionalização do
P De 1934 a 1939 lecionou Antropologia na Universidade de São Paulo - USP. Nesse período poder e de centralização burocrática. Após a Revolução Francesa são
realizou a primeira experiência de pesquisa de campo na Amazônia e no sul do Mato Grosso.

28 29
—0010 ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 1-—

incorporados “os múltiplos sistemas norm


ativos sob a base da igualdade era sempre associado à figura do Estado e da sua codificação escrita,
de todos perante o Direito nacional uno
e comum”, Assim, eliminou-se a sendo difícil, à maioria dos juristas, conceber outras formas de Direito
estrutura política corporativa” e mini
mizaram-se “as experiências de que não aquela já consagrada pelo modelo ocidental (COLAÇO, 2000, p.
pluralismo legal e processual” (WOLKM
ER, 2006, p. 638). 17).
O Direito ocidental é dotado de um sist
ema de representações especi- Nesse viés, Shirley (1987, p. 10) assevera que:
des em que “as diferenças são negadas
em nome da justiça e da igualda-
so : EP tend
e a confundir-se com a uniformi
dade” (ROULAND, Muitas sociedades existiram e ainda existem sem quaisquer. leis
Na realidade, todos os indivíduos agem escritas, ou poder burocrático, ou violência organizada do Estado.
de acordo com a comunida- Isto não significa que essas sociedades não tenham regras ou normas
de a que pertencem. Inicialmente a
família, depois a rede de amizades, sociais, nem quer dizer que não há mecanismos de controle social ou
esfera profissional, Cada qual tem suas à
regras próprias de moral, de poli- - sanções contra aqueles que infringem essas regras. Todavia esses
dez e de condutas que são cobradas inde
pendentemente da interferência mecanismos existem em outras instituições que não o Estado e, 0
do Direito oficial (ROULAND, 2003,
p. 83-88). que é ainda mais importante, estas instituições contintarm a funcio-
Pelo estudo do Direito de outras soci
edades, a Antropologia Jurídica nar mesmo na moderna sociedade urbana.
no Ss permite compreender melhor o
sistema juríd
jurídiico da nossa própria.
sociedade, Inicia-se com as microanálise
s de Brupos específicos, depois Todas as sociedades possuem normas, hábitos e costumes que influ-
no plano global, as diferenças entre as
diversas tradições culturais ceto- enciam a ordem social, independentemente de estarem escritos ou não,
mam toda a sua força: um chinês,
um europeu e um iraniano não faze “Provavelmente quase toda interação e comportamento social ocorrem
a mesma idéia de Direito”, Com relaç m
ão a esta questão, os empresários sem ação direta alguma de qualquer Estado”, Isso vem demonstrar “o
têm utilizado os trabalhos dos antropól
ogos para entenderem essa diver- papel relativamente:secundário que o Estado representa na vida cotidiana
sidade no momento de estabelecere
m relações comerciais internacionai e na manutenção da' ordem social” (SHIRLEY, 1987, p. 10).
(RO ULAND, 2003, p. 89).
O objeto de estudo da Antropologia
| o Dentro dessa concepção, segundo Shirley, alguns autores dividiram as
Jurídica clássica é o Direito das leis e/ou regras de comportamento social em principais e secundárias.
sociedades “simples”, sem escrita e sem Estado — ou
bora muitos autores relacionem o Diret
dista
nte dele, Em- Carbonnier elaborou a separação entre o grand droit, que representa as leis
o apenas com o Estado, a Antro- e instituições do Estado, e O petit droit, que representa as outras regras e
pologia moderna provou que existe
Direito em sociedades sem Estado. instituições essenciais à ordem e à vida em sociedade. Hart separou as
“regras primárias” e as “regras secundárias”: as primeiras regem o com-
O Direrro DAS SOCIEDADES SEM
ESCRITA portamento do indivíduo, e as segundas são as normas sociais que apli-
cam sanções âqueles que desobedecem às regras primárias. Paul Bohannan
Quando se trata da existência de outras
formas de Direito que não a afirma “que a maioria das sociedades tem “dupla institucionalização”, isto
Oficial, faz-se necessário definir o plur
alismo jurídico, que significa à é, instituições sobre conduta e instituições para punir condutas extrava-
multiplicidade de práticas jurídicas
existentes num mesmo espa o gantes” (1987, p. 10).
sociopolítico, interagidas por conflitos
ou consensos, podendo ser ou não Há muitas regras e costumes dentro de qualquer sociedade que não
Oficiais, materiais e culturais” (WO
LKMER, 2006, p. 639), Tal teori são leis formais, mas mesmo assim as pessoas obedecem. Isto não signi-
Yorecen a acei a fa-
tação da existência de um Direito entre fica que as pessoas sejam escravas dos costumes e obedeçam às regras
os povos ágrafos
: A questão da existência ou não de
ordenamento jurídico nos chama-
Os povos ágrafos foi discussão que se Cepsa éa mensagem fundamental dos grandes sociólogos do Direito, como Eugen Ehrlich
estendeu ao século XX. O Direito (Fundamental principles of the sociology of law, 1936), Wilhem Aubert (Sociology of law, 1969) e Jean
Carbonnier (Flexíble droit, 1971)” (SHIRLEY, 1987, p. 10).

30 31
MERAc
AA TAaIO 1 A LAO doa A ML ANNIE VILA
DRI PURA
CariíruLo 1

instintivamente e sem questionamento, Estas regras são elaboradas a


par- menos sem Direito, ainda que não possua o chamado Estado. O Direito
tir de bases sociais e econômicas e precisam ser vistas em seu conteúdo
tem por base a cultura, constituída fundamentalmente pelos costumes
social (SHIRLEY, 1987, p. 10, 12).
herdados socialmente (CHASE-SARDI, 1990, p. 49, 17-18).
Fundamentado em pesquisas de etnólogos e sociólogos, admitindo
«As regras da sociedade sem Estado, o direito “primitivo”, são uma
que não há uma “noção universal e eterna de justiça”, mas que ela pode
acumulação histórica das normas de vida que se tém mostrado
variar no tempo de no espaço, Gilissen confira a existência de costumes
valiosas ao longo das gerações, no sentido de manter a ordem e a
dos povos sem escrita que “têm um caráter jutídico porque existem aí
organização sociais, Essas regras são fregilentemente expressas em
meios de constrangimento para assegurar o respeito das regras de com-
Jórmulas que se mostram estranhas aos estudiosos do direito enro-
portamento” (GILISSEN, 1986, p. 36).
em, em formas metafísicas, e o desvio é muitas vezes caracterizado
Susnik (1988, p.121-122) entende que, para manter a integridade e a
como feitiçaria ao invés de crime, Contudo, a sociedade pode funcio-
ordem de qualquer grupamento humano, é fudamental existir um “guia
nar muito bem desta maneira (SHIRLEY, 1987, p. 12-13).
legal”, capaz de regular a convivência social, definindo as condutas proi-
bidas, com força moral suficiente para prevenir os atos socialmente re-
As sociedades “simples”, assim como as demais sociedades humanas,
prováveis.
são homogêneas, isto é, indivisíveis. Qualquer separação do jurídico, do
Chase-Sardi destaca a importância do costume como fonte do Ditei-
econômico, do religioso, do político e do social revela-se artificial, pois
existe uma rede de interligações de todas as atividades humanas, não sen- to, chamando a atenção para a forte tendência do início do século XX de
excluir o costume do âmbito jurídico, convertendo a “norma jurídica
do possível, na prática, isolá-las (COLAÇO, 2000, p. 20).
num verdadeiro fetiche, dotado de vontade e forças próprias”. Observa,
Nessas sociedades menos complexas que as sociedades modernas, a
porém, que o pensamento jurídico atual já está mais flexível para respeitar
dificuldade de separá-las por categorias sobrepuja-se, “sob pena de mu-
o “direito dos grupos”, que possuem normas com caráter consuetudiná-
tilar-se o perfil desta sociedade” (CALLEFI, 1992,:p. 90).
tio dignas do amparo legal. Nesse caso, a sua preocupação centra-se no
Torna-se complicado, porque o Direito está intrinsecamente ligado à
direito consuetudinário dos grupos indígenas que deve ser respeitado como
religião, à moral e aos costumes, o que Gilissen chama de “indiferenciação”,
tal nas suas especificidades (1990, p. 16, 70).
ou seja, “as diversas funções que nós distinguimos nas sociedades evoluí-
Por que os homens dessas sociedades obedecem às leis mesmo não
das — religião, moral, direito, etc. — estão aí confundidas” (GILISSEN, estando elas escritas? Conforme Weber, as leis são obedecidas por auto-
1986, p. 35).
tidade, quando a obediência é voluntária pela crença na sua obrigação.
O Direito das sociedades tradicionais é regido por um único fio con-
Também pode ser pelo poder, quando é obedecida mesmo não se con-
dutor, formado por quatro princípios básicos: a valoração dos interesses
cotdando com ela. E a legitimação é muito importante, pois significa que
coletivos em detrimento dos individuais, a. responsabilidade coletiva, a
a autoridade não tem oposição e que suas ordens são do interesse coleti-
solidariedadee a reciprocidade. Todos estes princípios estão intimamente
vo (SHIRLEY, 1987, p. 13-14).
ligados e normalmente se confundem (COLAÇO, 2000, p. 19).
Existem diversas opiniões em rélação às causas que motivam os po-
Chase-Sardi denomina de “etnocentrismo jurídico” a posição de vá-
vos sem escrita a obedecerem à lei. Malinowski assegura que eles são
tios autores, como Marx, Engels, Kelsen e Radcliffe-Brown, que vincu-
legítimos cumpridores e que raramente a violam, obedecendo com mais
lam o Direito ao Estado, não aceitando a existência de Direito nas socie-
facilidade que o homem moderno. Contrário à concepção de que obede-
dades sem escrita, por ão haver organização estatal. Afirma, ainda, que é
cem “automaticamente e rigidamente a todos os costumes por pura inér-
necessário atualizar-se com as modernas investigações antropológicas, que
cia”, faz nova interpretação da principal função do Direito, que seria “conter
chegam à conclusão de que não há sociedade humana sem cultura, muito
certas tendências naturais, canalizar e dirigir os instintos humanos e impor

32 33
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA Cariruro 1

uma conduta obrigatória não espontânea”, assegurando, assim, “um tipo


de cooperação baseada em concessões mútuas e em sacrifícios orienta-
' HistóRICO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA
dos para um fim comum” (MALINOWSKI, 1978, p. 26-27, 78-19).
O objeto de estudo da Antropologia Jurídica é o direito dos povos
Conforme a opinião de Susnik (1988, p. 121), o indivíduo não é “es-
estrangeiros, de culturas não-ocidentais, e, posteriormente, o seu própio
cravizado” pelas normas reguladoras, nem “ameaçado” pelas sanções
sistema jurídico ocidental. À princípio, é bem mais fácil estudar a socieda-
coercitivas, mas é “socializado” em decorrência da sua dependência
do de do “outro” do que a nossa própria, pois estamos tão envolvidos com
grupo. ' nossa cultura que tudo nos é natural: condutas, normas, comportamentos.
De acordo com as considerações de Clastres (1981, p. 202), a obedi-
Já as normas, condutas e comportamentos do outro nos são estranhos,
ência à lei é um desejo que a sociedade tem de permanecer indivisa. Violar
“Já há muito tempo, Montaigne escrevia que cada qual chama de barbárie
a lei seria alterar o corpo social, introduzir a inovação e a mudança que
ele o que não é de seu uso” (ROULAND, 2003, p. 70).
mesmo repudia, À lei é originária de um tempo “mítico” e “pré-huma-
A Antropologia Jurídica participou dessa visão redutora desde o seu
no”, legado pelos ancestrais ou heróis culturais, mantendo a ordem social,
surgimento, em fins do século XIX, com a propagação da Revolução
exigindo apenas o respeito à tradição. |
Industrial na Europa e a colonização da África e da Ásia.
O mesmo autor ressalta que na juventude os indivíduos são submeti-
Influenciados pelos ideais positivistas e progressistas, os antropólogos
dos aos chamados “ritos de iniciação”, Por meio da dor física, própria
do Direito acreditavam “que todas as sociedades são submetidas à leis de
dos rituais, “a sociedade dita a sua lei aos membros, ela inscreve o texto evolução de rigidez variável, que conduzem da selvageria à civilização:
da lei sobre a superfície dos corpos”, que determina a cada um: “tu não
passar-se-ia assim do oral ao escrito, da família ampla à família nuclear, da
vales menos do que qualquer outro, não vales mais do que qualquer ou-
propriedade coletiva à propriedade privada, do estatuto ao contrato, etc.
tro”. À cicatriz deixada no corpo é a prova de que o indivíduo
aceitou (ROULAND, 2003, p. 71). == |
submeter-se às regras que fundamentam toda a vida social do grupo. a dedicar-
Sir H, Sumner-Maine (1822-1888) foi o primeiro europeu
Desta forma, não é permitido esquecer a lei nem violá-la (1990,
182).
p. 180- se ao estudo do Direito dos estrangeiros. Fascinado pela cultura indiana,
deixa sua cátedra de Direito em Cambridge, Oxford e Londres, para
Durante o período da iniciação, o jovem recebe todos os ensinamentos
tornar-se o Vice-Chanceler da Universidade de Calcutá e Conselheiro do
que constituem o ideal da conduta comunitária. Após o seu término
, pode Governador-Geral da Índia. Foi um dos colaboradores na grande obra
considerar-se um homem, com plenos direitos e obrigações perante
a de codificação do Direito indiano. Fundamentado no estudo histórico
comunidade (CHASE-SARDI, 1990, p. 185).
dos indo-europeus, busca traços comuns entre o Direito indiano, irlandês
Em suma, os homens dessas sociedades obedecem às normas
de con-
vívio social instituídas pelo grupo porque são tão homogêneas quanto
e germânico. Suas pesquisas realizam-se com formulações de hipóteses
as . comuns de como as sociedades evoluíram: passam de um estágio arcaico,
normas jurídicas, morais, religiosas, de produção e outras se confund
em. desprovido de Direito, a um estado tribal no qual surge o Direito; depois
Todas essas regras são vitais para sua sobrevivência, principalmente
pela aparece a noção de pertencer a um território, o Direito se aperfeiçoa com
sua forma de se relacionar com o meio e pelo seu conhecimento
tecnológico. Violar a lei seria decretar a própria morte, pois o indivíd
as primeiras codificações. Observa também as sociedades estacioná-
teria poucas chances de sobrevivência caso fosse ignorado ou
uo tias”, como a Índia, e as “progressivas” ocidentais, o exemplo de civiliza-
abandona- ção. “Isso para dar a palma às potências européias e legitimar de modo
do pelo seu grupo. Além disso, existe todo o envolvimento psicológico:
burlar os costumes seria desrespeitar os tabus, irar os deuses e à natureza
científico e elegante a colonização” (ROULAND, 2003, p. T-13),
trazendo consequências catastróficas ao indivíduo infrator e à comunid
, Depois vem a escola alemã. Em 1878 foi publicada a Revista de
a- Direito Comparado”, dirigido por J. Kohler. Especialista em Direito
de em geral, pondo em risco a integridade do grupo.
Comercial, foi o primeiro a realizar estudos sobre a África. Em 1893, H.

34 35
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo |

E, Post, sob um rígido método evolucionista jutídico, publicou “Jurispru- A França, embora com o seu grande número de antropólogos e soci-
dência Etnológica” (p. 72). ólogos, permaneceu silenciosa por muito tempo nas questões da Antro-
R. Thurnwald, de 1906 a 1915, realiza pesquisa de campo, permane- pologia Jurídica. Durkheim recorre frequentemente aos direitos dos po-
cendo na Micronésia e na Melanésia e Nova Guiné. E Malinowski refu- vos “primitivos”, mas somente a partir de meados do século XX os his-
gia-se durante um tempo entre os indígenas australianos em Mailu, em toriadores do Direito (H. Lévy-Brúhl, M. Alliot, R. Verdier, E. Le Roy, J.
1915, e depois nas ilhas Trobriand, até 1918 (p. 73). Com Malinowski a Poitier) “fundam realmente a disciplina” (ROULAND, 2003, p. 74).
Antropologia Jutídica começa a tomar outros rumos. Em 1926 publicou Em 1973, Jane F. Collier publicou Law and Social in Zinacantan, um
“Crime e Costume na Sociedade Selvagem”. Foi um dos primeiros estu- tema moderno da Antropologia Jurídica e Legal, no qual realiza um estu-
dos sobre o Direito “primitivo”, em que faz uma análise científica sem do no México entre o Direito Zapoteca e as leis nacionais mexicanas,
nenhuma pretensão colonial. À Antropologia Legal inglesa volta sua aten- “por intermédio dos Tribunais do Cacique e do Serviço Nacional do
ção aos “problemas básicos da teoria do Direito: a base da posse da Índio do país”. Trabalhos semelhantes foram realizados na África
terra, os costumes do casamento, os processos de controle social nas co- (SHURLIY, 1987, p. 21).
munidades simples, o papel dos juízes na sociedade, e até os mecanismos Também há nos Estados Unidos uma quantidade considerável de es-
da própria administração colonial britânica” (SHIRLEY, 1987, p. 17). tudos sobre o Direito oriental: chinês, japonês e islâmico, no entanto “ten-
No século XX, após o Tratado de Versalhes, a escola antropológica dem a ser mais descritivos do que analíticos” (SHIRLEY, 1987, p. 22).
jutídica da Alemanha entra em declínio pela privação de suas colônias. Os
anglo-saxões tomam-lhe o lugar ao empreender trabalhos na África ne- CONSIDERAÇÕES FINAIS
gra, na Ásia e na América, Em 19416 publicado o primeiro livro escrito
conjuntamente por um antropólogo, E. Adamson-Hoebel, e um jurista, Esperamos que as questões tratadas neste capítulo tenham demonstta-
L, Llewellyn (ROULAND, 2003, p. 74). do a importância do despertar da Antropologia Jutídica no âmbito do
OQ Direito consuetudinário africano torna-se objeto de pesquisa cientí- ensino e da pesquisa no país, e que tenham esclarecido possíveis dúvidas
fica antropológica de diversas nacionalidades, tais como: Max Gluckman, quanto ao que seja o objeto de estudo da Antropologia Jurídica. Se tínha-
inglês; Paul Bohannan, norte-americano; Philip Gulliver, canadense. Após mos manifestações isoladas pelo Brasil de pesquisas e publicações nesta
o colonialismo na África, muitos antropólogos empenham-se em auxiliar área, agora será o momento de despertar o seu interesse,
“no desenvolvimento dos sistemas jurídicos das colônias recentemente Logicamente, não podemos ser injustos com nossos colegas juristas
independentes” (ROULAND, 2003, p. 17). antropólogos ou antropólogos juristas, que têm concentrado sua atenção
Para Shirley (1987, p. 20): pelo tema ao longo do século XX no Brasil, Muitos talvez, e aí nos inclu-
ífmos, já produziam pesquisa em Antropologia Jurídica sem se dar conta
4 escola antropológica americana da antropologia legal esteve me- disso. Todos os pesquisadores que desenvolveram trabalhos referentes
nos interessada na dominação prática do que nos problemas teóricos aos temas elencados a seguir estavam construindo a Antropologia Jurídi-
do direito comparado. Na área de solução de conflitos a antropolo- ca no Brasil, '
gia norte-americana impressiona-se com a habilidade técnica dos Questões dos direitos: étnico-culturais que envolvem comunidades tra-
Juizes Cheyennes, os “chefes da pas”, considerando-os superiores aos dicionais, indígenas, afro-descendentes, imigrantes de diversas nacionali-
Juíxes anglo-americanos. Neste caso, o estudo da lei dos nativos dades; movimentos étnico-culturais, movimentos sociais dos novos ato-
servim para.o aperfeiçoamento da estrutura jurídica norte-america- res rurais (sem-terra, bóias-frias, garimpeiros, entre outros) e urbanos
na, visando o bem-estar do povo. “É regra geral que as implania-
ções de reformas jurídicas nos Estados Unidos sejam fregilentemente 15 .
Quando nos referimos aos novos atores estamos falando de velhos atores, representantes
associadas aos antropólogos jurídicos e legais”. de parcelas da sociedade que sempre existiram, no entanto não eram reconhecidos seus

36 37
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 1

(sem-teto, crianças e adolescentes, homossexuais, mulheres, idosos, port DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à Antropologia
dores de necessidades especiais, profissionais do sexo, “loucos”, presidit Social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
rios, entre outros); ações afirmativas; relações de parentesco, sistema dk
justiça (Judiciário, Polícia, Ministério Público, acesso à justiça, sistem GEERTZ, C. Os usos da diversidade, In: Nova luz sobre a Antropolo-
prisional, solução de conflitos). gia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Além do ensino e da pesquisa, a Antropologia Jurídica pode revelar,
grau dos verdadeiros problemas na sociedade e talvez oferecer alguma GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Fundação
sugestões de aprimoramento, além de publicizar as injustiças e arbitrart Calouste Gulbenkian, 1986.
dades cometidas.
Assim, temos um campo imenso de pesquisa, que, além da teor, OLIVEIRA, Maria da Guia de; CABRAL, Benedita Edina S. L. Estudo
trabalha com casos concretos e poderá trazer soluções a situações reais d antropológico pós-moderno a partir da análise de Clifford Geertz. In:
problemas sociais que existem em nossa sociedade. Par'aiwa - Revista da Pós-Graduação em Sociologia da UFPB. João
Pessoa, n. 5, mar, 2004,
REFERÊNCIAS
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CALLEFI, Paula. O traçado das reduções jesuíticas e a transform co. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1988.
ção de conceitos culturais. Porto Alegre: Veritas. v. 37,n. 145, março &
1992, LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
CHASE-SARDI, Miguel. El derecho consuetudinario indígena y su
bibliografia antropológica en el Paraguay. Asunción: Universidail LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 20. ed.
Católica, 1990. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. 5. ed. Rio de Janeif LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tem-
ro: ERCA, 1990, po Brasileiro, 1970.

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1981, Barcelona: Ariel, 1978.

COLAÇO, Thais Luzia. “Incapacidade” indígena: tutela religiosa e vi PRESOTTO, Zélia Mariá Neves; MARCONI, Marina de Andrade. An-
olação do direito guarani nas missões jesuíticas. Curitiba: Juruá, 2000. tropologia, uma introdução. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

COPANS, J. et aí, Antropologia, ciência das sociedades primitivas? RAPOSO, Paulo. Etnografia: um itinerário possível da pré-modernidade
Lisboa: Edições 70, 1971. à pós-modernidade. Disponível em: Sunnuoficinadeetnografia blogspot.
com>. Acesso em: 31 out. 2007.

direitos como diferentes. Preferimos não empregar o termo “minorias”, que, normalmente, RATTNER, Henrique. Cultura, personalidade e identidade. Disponí-
quantitativamente, representa a maioria da população.

38 39
DOT mm mma once meme nana paes
aaa

vel em: <yyrvwuilcad.orgbr>. Acesso em: 12 maio 2005.


CAPÍTULO 2
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo: Brasiliense, 2004.

ROULAND, Norbert. Nos confins do Direito. São Paulo: Martins EINICIDADE, ALTERIDADE E TOLERÂNCIA
Fontes, 2003.

ANTONIO JosÉ GUIMARÃES BRITO


SANTOS, José dos. Antropologia para quem não vai ser antropólo
go. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2005.
O objetivo deste texto é pensar algumas categorias da Antropologia,
relacionando-as com o Direito. Num primeiro momento, será discutido
SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva,
o conceito de etnia como conjunto de fatores materiais, subjetivos e sim-
1987.
bólicos que dão identidade própria para determinado grupo social, per-
cebendo nesse sentido que identidade e diferença são processos íntimos,
SUSNIK, Branislava. Introducción a la antropologia social (Ambito
ou seja, uma não existe sem a outra. Esse mecanismo de comparação
americano). Asunción: Museo Etnográfico “Andrés Barbero”, 1988.
entre as diferenças étnicas nós chamamos de identidade contrastiva
Quando as diferenças se encontram, denominamos de alteridade”. Mui-
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. In: BARRETO, Vicente
tas vezes, contudo, esse encontro não se dá de forma amistosa, mas car-
de Paula. Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos,
regada de conflitos e tensões. Esse processo é entendido como Fricção
2006.
Interétnica, em outras palavras, o atrito ocasionado quando grupos dife-
rentes se relacionam. Em não poucas vezes essas tensões interétnicas são
causadoras de processos de exclusão, estigmas , e degradação do “ou-
tro””, Todo esse problema está situado na questão do etnocentrismo, ou
seja, tornar a minha identidade, meus valores étnicos o centro de todas as
coisas, tipo minha cultura é a correta e a do “outro” a errada; minha visão
do sagrado a verdadeira, a do “outro” a equivocada; meus costumes
alimentares os melhores, minhas vestimentas as mais adequadas e belas. À
visão etnocêntrica conduz ao genocídio, que pode ser tanto físico quanto
biológico, ou cultural . Por final, o artigo fará uma reflexão sobte a tole-

“ No decorrer do texto será discutida com mais detalhes a identidade contrastiva, mas
inicialmente já explicamos que esse processo é recorrente para delimitarmos as identidades.
Para saber sc sou pequeno tenho que me comparar com o gtande, para saber da sexualidade
masculina necessário confrontar com a feminina, e assim por diante.
7 . , a .
Alteridade é quando os membros ou grupos étnicos diferentes se encontram.
Bi. o a , Vo Co
Estigmas são idéias e visões preconcebidas com o intuito de diminuir, inferiorizar, marcar
o diferente.
y , . . “
A expressão “outro” é entendida como o diferente, o estranho.
20 4 . . - m
Sobre o genocídio, este artigo adota como marco o Projeto e a Convenção das Nações
Unidas sobre genocídio. O genocídio cultural também é denominado de etnocídio.

40 41
O Ê
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA Juríbica —
CAPÍTULO 2

tancia

em períodos extremamente remotos. São as questões culturais, no entan-


fazendo al umas considerações obre oseu onceito indica
se . à
” . .

to, que dão unidade à identidade étnica. Determinismo biológico é uma


como te Nica pata a construção A .. 2
de um caminho de convivenci
a interetni

plutiétnico . Todas
categoria sem fúndamento científico. Existiu para fomentar movimentos
racistas, como o exemplo recente do nazismo.
êssas categorias sao indicativas
à . e necessarias patas

A cultura, como assinala Boas (1938, apud MARCONI e col,

valor de
2005, p. 22), é “a totalidade das reações e atividades mentais € físicas que
caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo
J u stiça, I O tna- se assim Nnecessatia
á a discussão desses elementos! |
Iniciais 3 principalmente quanto àa imp ortan
A cia da cultura na vida do D: - social”. Para Malinowski (1944 apud MARCONI e col. 2005, p. 22), o
todo global consistente de implementos e bens de consumo, de cartas
feito, O fio condutor d n os tópicos do sumario
conceituando
constitucionais pata os vários agrupamentos sociais, de idéias e ofícios
etnia, discutindo sobre identidade e diferença, compreen-
dendo
humanos, de crenças e costumes. De acordo com Marconi e col. (2005),
q ue z a rela ça o entre diferentes c conhecid a€ p por alteri
e d “ ide , q ue essa
=S sas É
relFá ç Des U p ossuem qaa ritos ' cl a m « idos de fti cç: l O intere
tetni
tn ca£ , que esses a con - existem mais de 160 definições de cultura, contudo, como ressalta
Í itos
Herkovits (gpud LAKATOS 1982, p. 125), de forma clara e objetiva, cul-
: são fru os 8 do etnocentrismo , E m 4 US, q une o etnocentrismo p ode

tura é a parte do ambiente feita pelo homem. A cultura pode ser tanto
lex ar ate as praticas do 8 enocídio, sendo a tolerância um instr umento de
as,
material — ergologia — artefatos, bens tangíveis, construções, ferrament
instrumentos, como também imaterial — animologia — como crenças,
ETNIA:
conhecimento, significados, valores e aptidões. O conjunto desses elementos
IDENTIDADE, DIFERENÇA E IDENTIDADE
CONTRASTIVA coristitui aquilo que chamamos de identidade. E a identidade é o que
e
caracteriza a etnia. Assim, etnologia é o estudo das identidades étnicas,
do Etnia éa de dn IÇã
são de um povo, marcado por traços
culturais que lhe etnografia a descrição gráfica dos comportamentos étnicos.
entidade própria. Muito além dos traços
físicos, os contornos A identidade, porém, acompanha a diferença, pois são justamen-
da etnia a são
sã de natureza essencia
Í lmente cultural, Essa identidade atua não te nas relações entre etnias diferentes que as identidades se projetam, na-
quele espaço definido por Barth de fronteira interétnica (1998, p. 185). É
somente
, no pla n o ma terial
Í , mas Pp ossui Í ta mbém á uma I
dime nsão abstrata,
na fronteira interétnica, nessa faixa de confronto, que melhor observamos
| 1 ] A « . m | . . I .
) , 8!
, 8
as especificidades culturais da etnia, e descobrimos as identidades, pois
Ç E Í
relações de parentesco e padrões afetivos.
s Conhecemos um

identidade e diferença estão permanentemente juntas, considerando que a


, povo pela
.

ferências alimentares, pot suas festas € suas crenças espirituais,


identidade possui um caráter relacional. Como aponta Woodward (2000,
p. 7), “ser um sérvio é ser um não-croata. A identidade é, assim, marcada
Também
compartilha tm de um p assad
ss do c omum 3 de uma a história Viva na met

pela diferença”. Algumas vezes a identidade assume um caráter simbólico,


otia
c ole Iva + O c ritert
1 Q fi ÍSICO.
St 5 redu
5 | ci Q sta« eco
Cc p letamente s em

como uma comunidade imaginada, quando são reivindicados desejos de


valor cienti-
fico e um conceito de há Muito ultrapassado
' Raça é uma idéia absurda!
Podemos, num esforço arqueológico, pensarmos em troncos raciais 3 Isso
uma unidade já transformada. De qualquer forma, como argumenta Sil-
va (2000, p. 75), “assim como a identidade depende da diferença, a dife-
rença depende da identidade”. Essa relação, identidade-diferença, é cha-
2
Estado de Direito Pluriétnieu
co é desfana dO.
i neste texto,
x como Estado que reconheça a
mada de identidade contrastiva, ou seja, pata perceber os limites da mi-
diversidade érnica e cultural
q1 ito da h homogeneidad
à e construind
públicos e políticos de diálo Bo, num i
nha identidade preciso comparar com a identidade do “outro”. O “ou-
sentido democrático mais amplo.
u é sopAsos
con tios conceitos de cultura serão
tro” é a diferença, é é justamente a diferença que possibilita criar o senti-
indicados no tes texto, contudo ent endemos , de acordo
erkovits, que cultura é toda construção
hu
mento de pertencimento e unidade da identidade. Esse contraste pode se
a
A UNESCO, na década de 50, reconheceu
a inexistência da raça

42 43
- CAPÍTULO 2

manifestar de várias formas: no plano da religiosidade — cristão


s, judeus, de antagonismo e estranheza, quando não de exploração e crueldade.
hindus e muçulmanos — na esfera dos traços físicos
— negros, brancos,
asiáticos — ou mesmo Afinal, o distante, o desigual, na maioria das vezes, é visto na perspectiva
no sentido da sexualidade — heterossexuais, ho-
mossexuais e transexuais, A identidade contrastiva é o elemen de uma humanidade diminuída, ou melhor, de uma humanidade inferior.
to de per- E, nesse sentido, como bem observa Elias (2000, p. 199), “ao que parece,
cepção de pertencimento a determinado grupo étnico, isso graças
ao pro- quase todos os grupos humanos tendem a perceber determinados outros
cesso de comparação. Por exemplo, para ser croata é necess
ário se sentir grupos como pessoas de menor valor do que eles mesmos”.
primeiro como não-sérvio, e ser visto também por outros
croatas como É sabido que o processo de exclusão do “outro”, ou a prática da
croata.
intolerância, pode variar de forma e intensidade de um grupo para outro,
ALTERIDADE, FRICÇÃO INTERÉTNICA E EXCLUSÃO como também se diferenciar particularmente entre indivíduos do mesmo
gtupo, contudo ainda são escassos os estudos que expliquem a origem de
tal sentimento da personalidade humana, posto que a estigmatização do
Importa destacar que as sociedades humanas nunca se encontram iso-
“Outro” tende à universalidade. Talvez, indaga Elias (2000, p. 209), “pos-
ladas, como observa Lévi-Strauss (1952, p. 17). Por mais distante
s que se samos falar da necessidade humana, nunca serenada, de elevar a auto-
mostrem, a troca de informações entre sociedades estranhas ocorre
sem- estima, de melhorar o valor da própria pessoa ou do próprio grupo”, E
pre, mesmo em graus diferentes, A cultura é dinâmica, se manifes
ta sem- esse processo de diminuir o “Outro” para elevar a própria estima “é tão
pre de forma processual e relacional. Quando identidades diferen
tes se difundido que quase não podemos imaginar uma sociedade humana que
encontram, todavia, como entre etnias indígenas e não-índias, ocorre o não tenha desenvolvido, em relação a certos grupos, uma técnica de
que Roberto Cardoso de Oliveira entende por fricção interétnica.
Muitas estigmatização” (ELIAS, 2000, p. 210).
+

vezes, a fricção interétnica é marcada por violências, tanto no


plano físico Sugere Elias (2000) que, quanto maior a autoconfiança de um povo
quanto simbólico. Como pontua Oliveira (1996, p. 46), “a existênc
ia de em relação ao seu próprio valor, maior seria também o nível de tolerância
uma tende a negar a da outra”, Inclusive a própria idéia de fricção
já “com os outros povos, pois o processo de estigmatização tem muito a ver
insinua um processo complexo e tenso de atrito. Nas palavra
s de Martins com o sentimento de medo que paira entre os povos, e, nessa direção, o
(1997, p. 81), “a fronteira tem um caráter litúrgico e sacrificial, porque
autor ressalta que só poderemos esperar uma maior igualdade entre os
nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a
existência de grupos humanos, ou tolerância entte os povos, se conseguirmos reduzir
quem domina, subjuga e explora”. Nesse sentido, acrescenta Silva (2000,
o temor recíproco existente, tanto no plano individual, quanto no coleti-
p: 81) que “a identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão
com | vo,
relações de poder”,
A fricção interétnica é uma questão atual no mundo contemporâneo,
ETNOCENTRISMO OU GENOCÍDIO CULTURAL
inclusive urbano. Não se faz presente nas fronteiras dos povos
exóticos,
mas também no coração das grandes metrópoles do mundo.
Os confli- Chamamos de etnocentrismo a visão do Cutto como diminuído. Em
tos entre hispânicos, negros, coreanos, iraquianos e demais grupos huma-
nos nos Estados Unidos é um exemplo típico da contemporaneidade outras palavras, a própria etnia como referência absoluta de humanidade.
da A do “outro”, quando não perseguida, é inferiorizada. E isso pode ocor-
fricção interétnica. A Europa, toda retalhada pela diversidade cultural,
também é um vasto campo de estudo sobre o tema, basta recordar rer de inúmeras formas: estigmas, segregações e genocídios. Quando fa-
as lamos de genocídio encontramos, além do físico, o genocídio cultural,
questões levantadas, por exemplo, na França, com a proibição
do uso de conhecido também por etnocídio..
véus em escolas públicas, por estudantes muçulmanas,
Nesse sentido, importa reconhecer que o “outro” sempre foi motivo Segundo Panof e Perin (1979, p. 67), coube a Robert Jaulin o mérito
de introduzir a palavra etnocídio nos estudos etnológicos. Em seu “Dici-

44
45
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA — CapíruLo 2

onário de Etnologia”, esclarecem que o etnocídio foi uma palavra


bilidade criminal individual, em vários sentidos”. .
introduzida recentemente, em referência à imposição de um processo de
Assim, no tol de crimes elencados pelo Estatuto de Roma não estão
aculturação de uma cultura por outra, conduzindo à destruição dos valo-
presentes os crimes de terrorismo internacional, tráfico internacional de
tes sociais, morais e tradicionais da. sociedade dominada.
drogas, dominação colonial, intervenção e etnocídio.
No Projeto da Convenção de Genocídio das Nações Unidas, de 1948,
Na avaliação de Sunga (2000, p. 194), “havia hesitação de governos
constavam três espécies de genocídio: o genocídio físico, o biológico e o
em conferir ao Tribunal Penal Internacional jurisdição para crimes defini-
cultural, Fragoso (apud BENATTI; ALENCAR, 1993, p. 217), alerta,
dos em termos ambíguos”, e certamente, devido aos resquícios imperia-
porém, que a última dessas espécies não foi contemplada na versão final
listas impregnados na política ocidental internacional, o crime de etnocídio
da Convenção. não setia passível de consenso. o
Nesse sentido, como sustentam Benatti es «/(1 993), a exclusão do con-
Novamente o penocídio cultural foi descartado dos insttumentos jurí-
ceito de genocídio cultural da redação final da Convenção terminou, ao
dicos internacionais. Tanto os tribunais de Ruanda, da ex-Iugoslávia e o
que parece, deixando a descoberto o que alguns autores entendem ser
Tribunal Penal Internacional de Roma ttanscteveram os termos da Con-
uma espécie do gênero genocídio, qual seja, o etnocídio. Essa exclusão se:
venção de Genocídio de 1945, não abrindo a tipificação do crime para a
explica pelo apego aos valores eurocêntricos ocidentais, históric
os e inclusão de outras formas de genocídio.
colonialistas. Entre os crimes previstos pelo Tribunal Penal Internacional constam
Apesar do termo “etnocídio” constar na redação dos principais do-
crimes de guerra, crimes de agressão, genocídio e crimes contra a huma-
cumentos internacionais sobre povos indígenas, desde a Declaração
de nidade, como dispõe o artigo 7 do Estatuto de Roma, atos específicos
Barbados, foi somente à partir da Declaração de San José,
na Costa Rica, considerados crimes contra a humanidade. Entre esses, encontra-se o cri-
em 1981, de acordo com Papadópolo, (1995, p. 43), que o etnocídi
o me de apartheid,
começou a ser discutido como crime internacional. Segundo essa Decla-
O crime de apartheid aproxima-se do núcleo penal do crime de
ração, etnocídio significa negar a um povo o direito de desfrutar
, desen- etnocídio, pois ambos se baseiam na crença dá superioridade racial ou
volver e transmitir sua própria cultura. O etnocídio, ou genocídio cultural,
étnica e na exclusão do “outro”. Tanto os crimes de apartheid como os de
entretanto, ainda não foi incorporado pelo Direito Internacional Público
etnocídio buscam a eliminação do “outro”, seja pela segregação, caracte-
como crime internacional. Para isso, basta analisar os ctimes de
compe- rística básica do apartheid, ou pela integração forçada, ou aculturação, prá-
tência do Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de
Roma. tica mais constante do etnocídio.
É sabido que a implementação do Tribunal Penal Internacional
gerou Os meios empregados pelo apartheid e pelo etnocídio podem ser dife-
muita controvérsia no plano da política internacional, pois segundo Choukr
rentes, mas a finalidade permanece a mesma, a degradação e a eliminação
e Amboas (2000, p. 6), a não-participação de países fundamentais para
o do “outro”, quer por meio de regimes institucionais de isolamento e se
fortalecimento internacional desse Tribunal, como é o caso
dos Estados gregação, quer pela inclusão forçada do “outro” sem sua cultura, tradição
Unidos, da China e abstenção da Índia, “fez com que
mais da metade da e língua, e nesse sentido, o “outro” deixa de ser “outro”, pois nessa tran-
população do mundo ficasse fora do alcance desse tribunal”.
sição houve um processo de eliminação do “outro”, Por exemplo: esti-
Nesse sentido, diante das dificuldades políticas enfrentadas para
o es- ma-se que 300 milhões de indígenas, em mais de 70 países, são vitimas do
tabelecimento do Tribunal Penal Internacional e da consequente
codificação processo da aculturação forçada e da marginalização. No Brasil verífica-
de um Direito Internacional Penal, com poder persecutório,
optou-se se a ação dos missionários transculturais, que atuam com etnias indígenas
| por uma perspectiva mais restrita, e nesse aspecto observa Sunga
I (2000, na Amazônia. Esses grupos de religiosos, principalmente as Igrejas Novas
| p. 192), “o regime criado pelo Estatuto é mais restrito que o
normalmen- Tribos do Brasil e Jovens com uma Missão — JOCUM, praticam a
|
te previsto pelas regras de Direito Internacional no que
tange à responsa- evangelização ostensiva, traduzindo a Bíblia para as línguas indígenas e
l

46 47
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariruLo 2

transformando índios em pastores no meio da selva, Um exemplo co- Declaração de Barbados III, realizada na cidade do Rio de Janeiro, Brasil,
nhecido dessa prática de genocídio cultural é o caso dos Zo'é, na região no ano de 1993: “[.] um mundo sem comunidades alternativas, sem
de Santarém, Pará. Nesse caso, o Ministério Público Federal impetrou grupos sociais diferenciados, seria um mundo condenado à falta de
mandado de segurança contra a Igreja Novas Tribos, em defesa da cultu- criatividade e de lealdades fraternais”.
ra desse povo. Pergunta-se, no entanto, como estabelecer nos dias atuais um espaço
de respeito e convivência para a diversidade étnica. Para Arruda (2001, p.
24 25
ToLERÂNCIA E ESTADO DE DIREITO PLURIÉTNICO 61), “[...] a questão crucial, que a atualidade coloca de fotma cada vez
mais incisiva, é se haverá a oportunidade e a possibilidade de a humanida-
Pensar em tolerância é refletir sobre a diversidade cultural do mundo - de aventurar-se em culturas singulares no interior do sistema mundial, e
e os caminhos de uma relação mais justa, tanto do ponto de vista ético ainda acrescenta, inventando-se ao mesmo tempo outtos contratos de
como humano, uma vez.que, como observa Krenak (2001, p. 73), “as cidadania”. .
relações foram sempre muito desiguais e apoiadas em visões de mundo Assim, esse novo contrato de cidadania deve ter como base a tolerân-
muito exclusivas sobre o que é o ser humano”. cia, que, a propósito, significa respeito e valorização dos traços de singu-
Outro dado importante a ser discutido sobre tolerância nas relações é Jaridade do “Outro”. Essa nova cidadania implica o reconhecimento da
o atual fenômeno da globalização, a partir da idéia da uniformização, ou diversidade e a possibilidade de convivência justa e criativa dessas
massificação cultural produzida pelos modernos meios de comunicação. pluralidades.
Apesar dos atuais processos homogeneizadores da globalização, os Nesse sentido, acompanhando as observações de Wolkmer (1994, p.
territórios existenciais singularizados continuam existindo. Assim, mesmo 162), “estão na raiz da ordem pluralista a fragmentação, a diferença e a
com a ação niveladora dos poderosos meios internacionais de comunica- diversidade. Trata-se de admitir a diversidade de seres no mundo [...]
ção, o mundo está repleto de reivindicações identitárias e nacionalistas. É Assim, podemos considerar a tolerância como plano de ação de uma
que o mundo está se movimentando simultaneamente em direções con- ordem pluralista”.
trátias, como destaca Halliday (2001), tanto para a integração, quanto para Tolerância significa o contrário de todos os regimes de exclusão, de
a fragmentação. apartheid e de segregação. É possível afirmar que as práticas mais extremas
Sem dúvida, a humanidade é formada por milhares de povos, e o de intolerância são o genocídio, a “limpeza” étnica e a segregação racial,
reconhecimento e a consideração dessa pluralidade depende da visão par- apesar de a intolerância estar presente cotidianamente na vida civil é social,
ticular sobre o “outro”, Como alerta Krenak (2001, p. 72), “aceitando a mediante a discriminação sexual, racial e religiosa.
existência do “outro”, nós vamos aprendendo a reconhecer no mundo Tolerância, como salienta Grunberg (2001, p. 80), “pressupõe o teco-
um lugar de muitos povos”. nhecimento mútuo de que o Outro é um verdadeiro ser humano e um
Questiona-se, no entanto, como superar as diferenças sem eliminá-las, interesse em conhecer-se, apreciando uma diversidade cultural no mesmo
tomando-as não como fonte de estranheza e adversidade, mas como contexto geográfico e social”.
fonte de riqueza e solidariedade, pois, quão pobre seria a vida, e muito À tolerância não advém de um sentimento caridoso, nem da tesigna-
menos interessante, se não houvesse a existência dessa diversidade de po- ção diante de um acontecimento inevitável. Tolerar o “Outro” não signi-
vos. E nessa direção aponta Grunberg (2001, p. 82), citando trecho da fica um conformismo diante de uma convivência não desejada, mas, an-
tes de tudo, um olhar de respeito à singularidade do “Outro”, além de
zu ais | : a : ai a
"A referência fundamental adotada neste artigo para definir tolerância é a Convençãox sobre também uma percepção diferenciada, ou abrandada, da própria singula-
Tolerância da UNESCO.
2 o ir ridade.
Estado de Direito Pluriétnico é4 entendido,
. .
neste artigo, como um modelo de Estado que
reconheça a diversidade étnica, construindo espaços públicos e políticos de diálogo, para que Para Wolf (apud OLIVEIRA, 2001, p. 251), “a tolerância é verdadeira-
uma determinada cultura ou identidade não se encontre diminuída e nem violentada.

48 49
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CapíTULO 2

“mente a virtude de uma deinocracia pluralista”. Nesse propósito, importa reafirmando a relevância da preservação cultural,
destacar que a tolerância é o próprio fundamento do pluralismo, pois é a Diga-se, porém, que foi por meio da Declaração de Princípios sobre
partir dela que se constroem espaços políticos próprios. Concordando a Tolerância, de 1995, que a UNESCO promoveu, na esfera das relações
com Oliveira, no entanto, a tolerância não se resume em uma perspectiva internacionais, um debate mais amplo sobre a tolerância, definindo-a em
política. Tolerância é, antes de mais nada, uma condição de eticidade e seu artigo 1º como o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da
moralidade civilizatória. Nesse sentido, conforme Oliveira (2001, p. 251), diversidade das culturas de nosso mundo (GRUPIONI, 2001, p. 93).
“tem-se uma outra direção para o exame do problema da intolerância, Em uma publicação da UNESCO intitulada Reflexões sobre a Tolerância,
além do político”. Chelikani (1999) discorre amplamente sobre o significado profundo da
As questões de tolerância e intolerância incluem fatores de ordem psi- tolerância, bem como sua aplicação nas relações humanas e sociais. Para
cológica, através das imagens construídas em relação ao “outro”, A tole- Chelikani (1999, p. 25), “a tolerância é, essencialmente, uma virtude pes-
rância refere-se a uma disposição do espírito, capaz de criar novas formas soa! que reflete a atitude e a conduta social de um indivíduo-ou o com-
de relação interétnica, baseadas em uma moral universal, enquanto a into- portamento de um grupo”. Nesse sentido, adverte o autor ressaltando
lerância mantém as antigas estruturas de segregação e separativismo. Nas que a “tolerância é, antes, expressão da aptidão para a paz. Na realidade,
palavras de Silva (2001, p. 120), “vivenciar a tolerância como “atitude ati- é uma exigência para si mesmo”.
va” supõe, no mais íntimo das pessoas, uma profunda transformação”. A prática da tolerância, além de ser um elemento essencial para a paz,
Nesse aspecto, a tolerância pode ser entendida como encontro de sin- permite a elaboração de um processo dinâmico de enriquecimento mú-
gularidades, baseada em uma moral civilizatória que reconhece a diferen- tuo, o qual acontece por intermédio do estabelecimento de trocas perma-
ça como condição de relacionamento. nentes. Manifestar a diferença, sem medo ou arrogância, é o caminho
Importa destacar aqui que a tolerância não está relacionada com a para a construção de relações humanas mais tolerantes.
prática da caridade. Como assevera Cardoso (2001, p. 252), “é imperioso Tolerar não deve significar jamais reprimir a si mesmo, em uma falsa
separar da noção de tolerância qualquer sentido que a vincule a um certo
aceitação do Outro. Como pondera Chelikani (1999, p. 58), tolerância é a
sentimento da caridade diante do “Outro”. Pois, conforme observa prática de expressarmos nossas diferenças e respeitá-las, enquanto a atitu-
Renouvier (apud CARDOSO, 2001, p. 252), “a tolerância é uma virtude de de esconder nosso desacordo e fingirmos a aceitação do “outro”
da justiça, não da catidade”. chama-se hipocrisia.
Ultrapassando os limites políticos e psicológicos, e nesse sentido con- Pode-se pensar na tolerância como um novo paradigma humano, ba-
cordando com Roberto Cardoso, situamos o conceito de tolerância em seado em condições psicológicas voltadas ao desenvolvimento de uma
um patamar de moralidade e eticidade. Em outro dizer, tolerância enten- espiritualidade universal desvinculada das interpretações teológicas rastei-
dida como uma questão de direito fundamental. ras, uma vez que “a metade dos atos de intolerância e fanatismo ocorre,
No plano das relações internacionais, a tolerância tem sido discutida quaisquer que sejam suas raízes profundas, em nome da religião”
de forma indireta por inúmeros atores, mas coube à UNESCO desen- (CHELIKANI, 1999, p. 72). E, nesse sentido, apesar de não ser o propó-
volver a principal agenda de debates diretos sobre o tema. sito deste estudo analisar as implicações das religiões, é importante regis-
Primeiramente, surge, em 1966, no âmbito da UNESCO, a Declara- trar a necessidade mundial de uma espiritualidade fundamentada na pers-
ção sobre Princípios de Cooperação Cultural Internacional, que, em seu pectiva da tolerância. Como indaga Chelikani (1999, p. 74), “por que os
conteúdo, reconhece a diversidade cultural como patrimônio da humani- líderes religiosos não poderiam trabalhar juntos, no sentido de construí-
dade, enfatizando que todas as culturas devem ser preservadas e respeita- rem uma espiritualidade assistida por uma ética social e por uma cultura
das. Posteriormente, em 1978, a UNESCO aprova outrá declaração de
de paz no mundo inteiro?”
cunho pluralista, a Declaração sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, Essas questões são fundamentais para a construção de uma cultura de

50 51
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaritTuLo 2

paz e tolerância entre os povos, e necessitam ser estudadas e discutidas ligeira de desaparecimento, pois, quando nos vergamos às nossas referên-
com muita profundidade e seriedade. cias, sucumbimos a nós mesmos, e já não sabemos ao certo quem somos.
Sem dúvida, superar divergências históricas e ressentimentos recípro- Assim, estabelecer relações de tolerância significa superar o medo do
cos, alimentados por um sentimento de ódio que se perpetua entre gera- “Outro”, reivindicando simultaneamente a sua identidade como a do
ções, não se mostra uma tarefa fácil. Aliás, os acontecimentos parecem “Outro”. Para isso, faz-se necessária uma educação voltada para a prática
negar essa possibilidade, Se nos reportarmos àquelas situações críticas, da tolerância, permitindo um novo olhar sobre si e sobre o mundo. A
como entre palestinos e israelenses, curdos e sunitas, sérvios e croatas, televância da educação para o estabelecimento da tolerância é destacada
hutus e tutis, a perspectiva da tolerância se revela pouco aceitável. É fun- pela própria Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela
damental, contudo, ir direto à questão crucial e indagar sobre a própria Conferência Geral da UNESCO em 1995. Segundo essa Declaração
capacidade humana. O ser humano é capaz de ser tolerante? Mostra-se (UNESCO, Declaração de Princípios sobre a Tolerância, 1995, artigo 4,
apto a admitir a diferença entre si e o “Outro”, e com serenidade estabe- 4) a educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância, e declara, “a
lecer uma relação pacífica de enriquecimento mútuo? Em que medida educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo
isso é possível? Para tais perguntas, as respostas dependerão, em última prioritário” (UNESCO, Declaração de Princípios sobre a Tolerância, 1995,
análise, sempre, de um olhar subjetivo, e, nesse sentido, este estudo está artigo 4, 2).
fundado na crença da capacidade humana para o desenvolvimento de Em uma relação tolerante entre os povos, faz-se necessário afrouxar
uma cultura de tolerância mundial. certos laços existenciais, o que não significa, em hipótese alguma, abrir
O tema da natureza humana traz em seu bojo as mais diversas discus- mão da própria identidade. Na verdade, a tolerância realça os traços da
sões, e não cabe abrir aqui o debate sobre tais questionamentos tão am- identidade, mas, de uma forma pacífica e enriquecedora, ao contrário do
plos, porém, em virtude das reflexões feitas sobre a tolerância, faz-se que narra Krenak (2001, p. 75), quando observa a contradição de muitos
necessária uma defesa em favor da capacidade humana, e da possibilida- movimentos identitários:
de de se estabelecer entre os povos relações recíprocas de tolerância. É
nessa perspectiva que entendemos o ptisma da tolerância, como caminho Em cada um dos pedaços da América Latina, da Ásia e em
possível para o estabelecimento de uma cultura de paz entre os diversos alguns outros cantos do planeta nós vamos encontrar essa contradi-
povos que enriquecem com suas singularidades a existência humana. Às são: ao mesmo tempo em que um povo busca afirmar o que há de
diferenças existem para serem respeitadas, e o meio para se atingir esse mais criativo, como sociedade humana, na construção da cultura,
patamar civilizatório é a cultura para a tolerância. | no enriquecimento humano, as pessoas também se fecham no seu
A prática da tolerânciaé dinâmica e exige uma atitude ativa dos indiví- orgulho, na sua idéia de poder e impedem a plena realização do
duos e dos grupos. Ser tolerante não significa silenciar diante do “Outro”, convívio, da parceria, e também da tolerância, co-participação, so-
mas — pelo contrário — estabelecer um diálogo franco e aberto, em que as lidariedade e ajuda mútua.
diferenças são expostas e tratadas com naturalidade. Essa atitude ativa,
acolhida pela própria Declaração de Princípios sobre Tolerância, preten- À necessidade de tolerância entre os desiguais não está, contudo, restri-
de fazer da alteridade um valor a ser respeitado. ta às relações internacionais, mas principalmente na vida doméstica dos
Diga-se que superar o medo que o “Outro” sempre causa se trata de Estados nacionais, nos quais vivem conjuntamente os mais diversos po-
um dos grandes obstáculos para a prática da tolerância. O “Outro”, com vos em um mesmo territótio político, como no caso do Iraque, entre
sua singularidade, geralmente parece ameaçar a nossa cultura, como se sunitas, xiitas, curdos e outros pequenos grupos. É justamente no campo
provocasse certa desconstrução momentânea dos nossos próprios valo- doméstico dos Estados que os grupos dominantes se impõem, e onde
tes e referências estabelecidas, e, quando isso ocorre, surge a sensação também se desenvolvem os mecanismos de exclusão e estigma. Grupos

52 53
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 2

ciganos, negros, índios, minorias religiosas e homossexuais sofrem políti- REFERÊNCIAS


cas omissas e discriminatórias por parte de muitos Estados nacionais,
como na África do Sul no período do apartheid, na Turquia com os curdos, ARRUDA, Rinaldo Sérgio Vieira. Imagens do Índio: signos da intolerân-
e no Brasil com os índios. Os movimentos de xenofobia, a questão dos cia. In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux Boelitz;
imigrantes, como albaneses na Itália e argelinos e marroquinos na França,
FISCHMANN, Roseli (Orgs.). Tolerância e Povos Indígenas: constru-
são exemplos atuais de intolerância e etnocentrismo. Esses casos de into- indo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp, 2001.
lerância são apontados por Umberto Eco (2000, p. 18) como a Liga
Lombarda e a Frente Nacional de Le Pen.
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. São Paulo: UNESP,
Sem dúvida, porém, existem movimentos importantes em prol da 1998.
construção de um diálogo multicultural entre os povos. Bem observa
Rouland (2003, p. 270), por mais importante que seja a Declaração de BENATTI, José Heder; ALENCAR, José Maria. Os crimes contra
1789, o mundo não gira ao seu redor. Da mesma forma, apesar do cará- etnias e grupos étnicos: questões sobre o conceito de etnocídio. Os
ter histórico da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esse docu- Direitos Indígenas e a Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
mento está repleto de concepções ocidentais. Torna-se necessária uma 1993.
discussão multicultural, para que não se perpetue, em nome dos direitos
humanos, uma ação imperialista e etnocêntrica, em que as regras do jogo
CHELIKANI, Rao. V. B. J. Reflexões sobre a Tolerância. Tradução de
são ditadas de cima para baixo, prevalecendo os valores e conceitos dos Catarina Eleonora F. da Silva e Jeane Sawaya. Rio de Janeiro: Garamond,
Estados economicamente dominantes. O absolutismo dos mercados e 1999.
das massas, a democracia formal, ou ditadura das massas, é etnocêntrica
e prejudicial à cultura da tolerância.
CHOUKR, Fauzi Hassan; AMBOS, Kai (Org). Tribunal Penal Inter-
nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ECO, Umberto. Definições. In: Academia Universal das Culturas, A in-
Os temas tratados neste texto revestem-se de enorme importância tolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
pata uma prática ampla de justiça e respeito às diferenças culturais. Como
sabido, a diversidade cultural está presente nas tradições e costumes das ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsiders. Tradução de Vera
sociedades. Cada grupo social guarda consigo um universo de conheci- Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
mentos, oralidades e visões particulares sobre a vida e o destino da huma-
nidade. Esse cenário é profundamente enriquecedor para a experiência GRUNBERG, Georg (Coord.. La situación del Indígena en Améri-
humana. Diante da diversidade, refletir sobre a tolerância é um sentido, ca del Sur. Montevidéo: Tierra Nueva, 1971,
uma direção, uma indicação, apontando para um futuro mais solidário e
pacífico. GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Os Povos Indígenas e a Escola Dife-
Necessário destacar a importância do diálogo entre a Antropologia e renciada: comentários sobre alguns Instrumentos Jurídicos Internacionais.
o Direito, e esclarecer que o objetivo central deste texto foi caminhar In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux Boelitz;
nesse sentido, entre categorias tão próprias da Antropologia como etnia, FISCHMANN, Roseli (Orgs.). Tolerância e Povos Indígenas: constru-
identidade, diferença e cultura, com temas ligados ao mundo do Direito, indo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp, 2001,
tais como genocídio, etnocídio, democracia e tolerância.
|
sá 55
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariTULO 2

. Os Índios da América Central e a Construção de uma Cultura de PAPADÓPOLO, Midorí. El nuevo enfoque internacional en materia de
Tolerância. Tradução de Maria Denise Fajardo Grupioni. In: GRUPIONI, derechos de los pueblos indígenas. Guatemala: Universidad Rafael Landívar,
Luís Donisete Benzi; VIDAL, Lux Boelitz; FISCHMANN, Roseli (Orgs.). 1995.
Tolerância e Povos Indígenas: construindo práticas de respeito e soli-
dariedade. São Paulo: Edusp, 2001. ROULAND, Norbert. Nos confins do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
HALLIDAY, Fred. Repensando as relações internacionais. Potto Ale-
gre: UFRGS, 1999. SILVA, Aracy Lopes da. Educação para a Tolerância e Povos Indígenas
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KRENAS, Aílton. Uma visita inesperada. In: GRUPIONI, Luís Donisete FISCHMANN, Roseli (Orgs.). Tolerância e Povos Indígenas: constru-
Benzi; VIDAL, Lux Boelitz; FISCHMANN, Roseli (Orgs.). Tolerância e indo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp, 2001.
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6 57
CAPÍTULO 3

EsraDo NACIONAL, ETNICIDADE


E AUTODETERMINAÇÃO
26
ANTONIO José GUIMARÃES BRITO

Este capítulo tem como proposta refletir sobte a origem, natureza €


constituição do Estado Nacional, abordando questões relacionadas à.
etnicidade. Trata-se, portanto, de um tema de Antropologia Jurídica, pois
a preocupação não é apenas com a função política e legal do Estado
Nacional, mas também com a natureza pluriétnica dos grupos sociais que
convivem e se relacionam em seu interior. O Estado Nacional surgiu his-
toricamente durante o processo de transição da Idade Média para a Ida-
de Moderna. Desde esse período até os dias atuais, mudanças profundas
ocorreram com o Estado Nacional. Neste texto, primeiramente, será dis-
cutido o mito da homogeneidade .
Quando do surgimento do Estado Nacional e, por ocasião da definl-
ção dos limites territoriais e políticos de poder, existiam, e continuam
existindo, muitos grupos étnicos diferenciados, que acabaram historica-
mente sendo subjugados e admitidos no contexto em condições margi-
nais. O Estado Nacional moderno é uma ficção política, uma estrutura de
organização territorial e de poder. Necessário considerar, entretanto, que
o Estado não é a única forma de organização política. Existem grupos e
sociedades que se organizam politicamente de outras formas. Assim, a
pretensão universalista do Estado é uma idéia equivocada.
Nesse sentido, levando em consideração a natureza pluriétnica de fato
do Estado, torna-se importante refletir sobre arranjos políticos que pro-

de
* Mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor
Direitos Humanos no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC: Membro
de Pesquisa em Antropologia Jurídica - GPAJU e da Associação Brasileira de
do Grupo
Estudos Canadenses - ABECEN.
” - - . ; : , ;
O mito da homegencidade é a premissa equivocada de que o Estado é formado por grupos
sociais etnicamente iguais.

59
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CAPÍTULO 3

movam uma convivência interétnica saudável e justa do ponto de vista de


existente entre os vocábulos “povo” e “nação”, Na maioria dos manuais
uma democracia ampla e profunda, Esse tema será discutido como auto-
de Direito Constitucional, e mesmo nos compêndios de ciência política,
determinação dos povos, ou autonomia, também denominada de observa-se uma expressiva imprecisão sobre a matéria. Ota os termos
etnodesenvolvimento. Dito de outra maneira, todo povo tem o
direito “povo” e “nação” são tratados como sinônimos, ora são empregados
de se organizar politicamente de acordo com sua cultura, seus costumes
e com sentidos distintos. No intuito de formular uma teoria geral de Esta-
tradições. Neste capítulo chamamos de Estado de Direito Pluriétn
ico, ou do pluralista, é preciso distinguir entre um e outro termo, pois, como já
seja, um modelo de organização política que respeite e inclua as diferenças
salientara Júrgen Habermas, não é causal que o conceito de “nação” se
étnicas nos seus princípios fundadores.
refira ambiguamente tanto à “Volksnation” — a Nação pré-política — e à
“Staatsnation” — a Nação de cidadãos capacitados. Ou seja, a palavra na-
EsraDpos NACIONAIS E O MITO DA HOMOGENEIDADE ção é utilizada de forma ambivalente, tanto com sentido de povo como
de Estado.
No processo de formação do Estado Moderno, emergiu a necessid Dessa forma, como alerta Júrgen Habermas, a idéia clássica de Nação
a-
de da centralização política, representada pelas monarquias absoluti é a de que são comunidades que têm a mesma otigem, observando cultu-
stas.
Nesse sentido, é correto considerar. que os Estados Nacionais foram ta, linguagem, costumes e tradições. Esse foi o conceito de Nação vigente
formatados em matrizes absolutistas , Para Bobbio (1985, p. 69), o Esta- na Idade Média. Todavia, continua Habermas (1998, p. 88), “|...] no início
do “foi ideado à imagem e semelhança da soberania do príncipe”, da modernidade, surge um novo uso: a nação como titular de soberania
por-
tanto, observa Bobbio, “era o modelo de uma sociedade monista [...). E desde meados do século XVIII, ambos os significados, o de nação,
. A
sociedade real no entanto [...] é pluralista”? Isso significa que, apesar da no sentido de uma comunidade que tem a mesma origem e o de povo de
pretensão de unidade étnica do Estado Moderno, construindo a idéia um Estado, se entrelaçam”.
da
imagem de um único povo, na realidade, muitos gtupos étnicos foram Para o Estado Nacional absolutista, como pondera Amaral (2002, p.
forçados a participar desse projeto, em que, alguns grupos, em detrimen- 75), O Estado pressupõe uma sociedade homogênea e monista, compos-
to de outros, detinham o poder político. ta unicamente por cidadãos entendidos de forma racional e perfeitamen-
Caetano (1986) lembra que o Estado se trata de um povo, fixado num te iguais entre si, tais quais átomos simples e indivisíveis do sistema da
território de que é senhor, e que dentro das fronteiras desse espaço insti- Física clássica. Assim, a idéia abstrata do Estado Nacional clássico é a de
tuí, por autoridade própria, órgãos que elaborem as leis necessárias à que ele é composto por apenas um povo, identificado como Nação. Logo,
vida
coletiva e imponham a sua necessária execução. Assim sendo, destaca torna-se importante a desmitificação da concepção de Estado-Nação que
o
autor os três elementos tradicionais que constituem o Estado: povo, se instalou no pensamento político ocidental, de que todo Estado
tet-
titório e poder político, ou governo, como preferem alguns. E é justa- corresponde a uma Nação, portanto uno, monolítico e homogêneo
mente o primeiro elemento constitutivo dos Estados, o povo, que mere- (AMARAL, 2002, p. 76).
ce ser repensado. para. a formulação de uma teoria geral de Estado Essa idéia está fundamentada no princípio da nacionalidade, forte-
pluralista . mente defendido pelo jurista italiano Mancini (2003, p. 63). Para o referi-
Em primeiro lugar, deve ser destacada a grande confusão terminológica do autor do século XIX, nacionalidade seria uma sociedade natural de
homens com unidade de território, de origem, de costumes e de língua,
2 e : Ni
O primeiro modelo de Estado . is
Nacional foi o absolutista us
, inspirado em Thomas Hobbes. configurados numa vida em comum e numa consciência social. Ora, per-
Nessa concepção, o Estado estava nas mãos das monarquias absolutista
29 e .
s, concentrando poder. cebe-se que o cunho atribuído por Mancini à nacionalidade ultrapassa em
- 2
Monista e Pluralista do ponto de vista étnico. Apenas um povo, uma cultura, ou várias.
e.
3
muito o catáter meramente jurídico, de pacto político, adentrando em
. . .
Quando nos referimos a uma teoria geral de Estado Pluralista, queremos Rae -
étnicas para a formulação de uma teoria política constitutiva do Estado.
incluir as questões “aspectos antropológicos como costumes, língua e origem em comum.

60 61
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 3

Na verdade, essa noção de Nação defendida por Mancini se refere a apesar de abrigar diversos povos. Esta categoria de Estado funciona por
povo, sugerindo que para cada povo deveria haver um Estado-Nação, meio de mecanismos de exclusão, assimilação forçada, quando não de
mas isso, na prática, raramente ocorre. perseguição étnica. O terceiro modelo de Estado, ideal do ponto de vista
Defendendo a idéia da livre e espontânea constituição interna da Na- interétnico, seria um arranjo político complexo, no qual se reconheceria a
ção, Mancini critica severamente a união forçada dos povos em nome da pluralidade de povos existentes naquele território em comum. Nesta cate-
constituição de um Estado. Observa o jurista que “Um Estado, em que goria de Estado, os povos teriam o espaço político interno necessário,
muitas viçosas nacionalidades são sufocadas numa união forçada, não é chamado de autonomia, contornado por um vínculo político e jurídico
um corpo político, mas um monstro incapaz de transmitir vida. As na- mais abrangente, o da nacionalidade. Para esta idéia de Estado, é essencial
ções que não possuem governo saído das próprias entranhas e que ser- distinguir os fatores jurídicos e políticos dos aspectos antropológicos. E,
vem a leis impostas de fora não têm mais vontade jurídica, já se tornaram nesse sentido, povo não pode ser confundido com a noção de Nação.
meios dos fins de outrem e, portanto, coisas”. Por uma questão de organização teórica e sistêmica, povos são categorias
Não resta dúvida de que a idéia da Nação para Mancini está impreg- puramente antropológicas, e não podem ser confundidas com os laços
nada de aspectos antropológicos. Se. por um lado esse autor está repleto jurídicos e políticos necessários à constituição de um Estado. Agora, esses
de razão quando evidencia a necessidade de espaço político para cada mesmos povos, que permanecem com suas autonomias, estão ligados
povo, criticando corretamente a subjugação de um povo pelo outro, é pela nacionalidade, o fio político e jurídico que costura o complexo teci-
importante observar que o Estado, na verdade, é um pacto político sus- do social multiétnico. Na verdade, este Estado pluralista nada mais é que
tentado por um sistema jurídico. um pacto político complexo, baseado na tolerância e no reconhecimento
E, nesse sentido, quando nos referimos à figura do Estado estamos da heterogeneidade étnica, no
reconhecendo aspectos tanto políticos quanto jurídicos e antropológicos. Ao que parece, o problema teórico continua sendo a confusão exis-
Ao perceber o Estado apenas como fator antropológico, chegamos na- tente entre os fatores antropológicos, jurídicos e políticos fundamentais
turalmente à idéia defendida por Mancini, de que para cada povo é neces- do Estado.
sário um Estado próprio. Por outro lado, ao explicar o Estado, Por exemplo, segundo o constitucionalista Azambuja (1988, p. 19), ao
desconsiderando a pluralidade de povos, e os fatores antropológicos que contrário do aqui exposto, “povo é uma entidade jurídica; Nação é uma
são essenciais à sua constituição, estamos sacrificando a singularidade étni- entidade moral [...]. Nação é muita coisa mais do que povo, é uma comu-
ca que entiquece o mundo, sufocando a maioria dos povos e permitindo nidade de consciências, unidas por um sentimento complexo [...]. Quan-
a dominação de uns sobre os outros dentro das fronteiras do Estado. E do a população de um Estado não tem essa consciência [...] ela é apenas
é justamente isso que se perpetuou historicamente nas esferas domésticas um povo. De acordo com o entendimento de Miranda (1970, p. 352), a
dos Estados, ou seja, a subjugação das minorias pelo grupo dominante, nacionalidade é o vínculo jutídico-político de Direito público interno, que
que tentou construir a imagem da Nação à sua própria semelhança. faz da pessoa um dos elementos componentes da dimensão pessoal do
Assim, em tese, podemos pensar em três modelos de Estado: primei- Estado. Também nessa perspectiva Silva (2001,.p. 321) lembra que o ele-
ro um Estado-Nação monista, uno € homogêneo. Diga-se, contudo, que mento humano da noção de Estado é o povo, e que das relações deste
seria difícil encontrar na prática um Estado realmente monista, OU seja, com o território decorre o vínculo da nacionalidade.
ocupado por apenas um povo. O segundo Estado-Nação trata-se do Por outra ótica, Carvalho (1956, p. 7) assinala que a religião, a língua, os
Estado Nacional opressor, na qual, apesar da existência de mais de um hábitos e costumes são os fatores objetivos que permitem distinguir as
povo, as minorias estão subjugadas, e apenas o gtupo dominante dispõe nações entre st. À consciência coletiva, O sentimento da comunidade de
de espaço político necessário à sua sobrevivência. Este Estado, de poder origem seriam fatores subjetivos da distinção. Já para Morais (1999, p.
centralizado « absolutista, é o predominante, sc faz de uno É monista, 198), “Nação se trata [...] de um agrupamento humano [...] ligado por

62 63
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTULO 3

laços históricos, culturais, econômicos e linguísticos”. Nacionalidade, con- volvimento de uma cultura de tolerância, por meio dos processos comu-
tudo, refere-se ao vínculo jutídico-político que liga um indivíduo a um nicativos, é possível a organização de espaços políticos próprios, em har-
certo e determinado Estado. monia com o todo que o reveste. Acompanhando, no entanto, os apon-
Assim, percebemos os diversos sentidos com que são empregados os tamentos de Bartolomé (1998, p. 186), vale registrar que apesar de o diá-
termos “nação” e “bovo”. Ora, para concebermos um Estado pluralista, logo ser um dos elementos fundamentais de qualquer relação humana,
é necessário em primeiro lugar reconhecer a existência de mais de um “há estado ausente en el proceso interétnico [...). En lugar de diálogo há
povo em um mesmo território, considerando como povo os fatores de habido un monólogo pronunciado por las sociedades dominantes a tra-
ordem antropológica. Dessa forma, partimos da idéia de que os povos -vés de sus ideólogos y de sus instituciones”. Em outras palavras, a não-
que convivem no mesmo território político possuem um vínculo de natu- participação real das minorias nos processos decisórios é uma forma de
reza jurídica com o Estado, o qual chamamos de nacionalidade. No inte- dominação e intolerância. Na verdade, está na base ia cultura da tolerân-
rior de boa parte dos Estados Nacionais existem muitos povos, todos, cia construir uma comunidade de atgumentação intercultural.
contudo, ligados à figura política do Estado. Isso, na prática, seria o que Wolkmer (1994, p. 241) denomina de ética
Aceitando as premissas levantadas, cabe indagar: Como seria na práti- concreta da alteridade. Segundo este autor, “a ética da alteridade é uma
ca o funcionamento de um Estado com base na pluralidade de povos? ética antropológica da solidariedade que parte das necessidades dos seg-
Quais seriam as implicações internas e externas da nacionalidade? mentos humanos marginalizados e se propõe a gerat uma prática peda-
Primeiramente, considerando que a Nação é o conjunto de povos que gógica libertadora [...)” (p. 160-163) ainda relaciona elementos comuns
compõe o Estado, torna-se necessário um grande levantamento étnico para a concretização do pluralismo: autonomia, descentralização, localismo,
nacional, que permita uma visualização de natureza antropológica do Es- diversidade e tolerância, o que seria para o autor a adoção de um espírito
tado. Para isso, cada Estado multiétnico deve conhecer a sua própria cons- de respeito pelas diferenças, identidades distintas encontradas num mes-
tituição humana, tornando esse fato de domínio público para toda a soci- mo corpo social,
edade nacional. Ou seja, a sociedade nacional necessita reconhecer a di- Em relação à autonomia, Amaral (2002, p. 227) contribui com um
vetsidade de povos que existem nas fronteiras de seu Estado. Após esse conceito bem definido, observando se tratar de uma distribuição de po-
primeiro momento, torna-se imperioso o desenvolvimento de uma edu- der entre unidades políticas diferenciadas que se inter-relacionam ou que
cação voltada à tolerância, bem como, na medida da evolução desse pro- se enconttam associadas e que, no seu conjunto, constituem uma unidade
cesso, a constituição de espaços políticos internos, em que cada povo sistêmica superior.
possa, nos limites do seu. vínculo jurídico e político com a Nação que o O conjunto de todos esses elementos é fundamental para uma teoria
integra, preservar seus costumes, crenças, tradições e línguas. Em outros geral de Estado pluriétnico, destacando-se principalmente a prática peda-
termos, a autonomia tão defendida pelos povos indígenas. gógica voltada para a cultura da tolerância. O espírito da tolerância preci-
sa estar sendo vivenciado em todos os níveis, por meio de uma prática
EstTADO DE DIREITO PLURIÉTNICO, TOLERÂNCIA E educacional positiva. A alteridade” deve ser compreendida como um
AUTODETERMINAÇÃO valor nacional, tornando possível a formação de um Estado pluralista, no
qual, por meio da tolerância e de espaços, políticos autônomos, se consti-
A , . . A.
À autonomia torna-se sustentável à medida que a tolerância vai incor-
. tua um novo modelo de Estado. O princípio da autonomia cada vez
porando-se na cultura nacional, estabelecendo os diálogos interétnicos mais se afirma como técnica de convivência de populações, povos, te-
necessários à organização de um Estado pluralista. Com base no desen- giões, nações ou nacionalidades diferenciadas (AMARAL, 2007, p. 226).
Isso se torna cada vez mais urgente, diante da crise do Estado em relação
3% . . e. . . a . .
Como autonomia ou autodeterminação tomamos como conceito o respeito à diversidade 2 . a as
étnica, possibilitando que cada povo viva conforme sua cultura, tradições e costumes. Alteridade trata-se das relações entre os desiguais do ponto de vistaem étnico.
bemi

64 65
—————— ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA ———— CaríruLo 3

às minorias étnicas. Como salienta Santos (1989, p. 60), não são poucos os assumidamente pluriétnico e organizado de forma a teconhecer certos
movimentos étnicos armados que lutam pela independência de dezenas espaços autônomos, as minorias étnicas sobreviveram a séculos de ctuel-
de minorias submetidas aos Estados-Nação, em várias regiões da Terra. dade e genocídio, e estão cada vez mais exigindo seus direitos. Afinal, a
Da mesma forma, acrescenta o autor, observando o dinamismo com o capacidade de resistir tem sido uma das maiores catacterísticas desses
qual os movimentos identitários têm-se manifestado, outras lutas ocor- povos.
rem no âmbito político, objetivando a conquista de um mínimo de auto- O direito à autodeterminação deriva do reconhecimento da existência
nomia, que permita a convivência'com o Estado mantendo as diferenças de um povo. No plano das relações internacionais, isso é anunciado em
de língua, de cultura, de vida socioeconômica. . - inúmeras declarações, mas, concordando com Stavenhagen (1998, p. 60),
A fim de abrir espaços para a pluralidade étnica, os Estados Nacionais “tal vez no exista en los instrumentos internacionales sobre derechos hu-
precisam rever seus fundamentos e estabelecer um novo pacto constituci- manos texto que haya generado mayor controversia que éste”, ou seja, O
onal, segundo o qual os fatores étnicos sejam considerados não para a Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.
fragmentação da sociedade nacional, mas — muito pelo contrário — para No artigo 1º deste Pacto (1966) está declarado: Todos os povos têm
permitir uma troca mútua de culturas e tradições, ocasionando um enri- direito à livre determinação. Em decorrência, emerge o direito de estabe-
quecimento recíproco. lecer livremente sua condição política e prover seu desenvolvimento eco-
(1987,
Trata-se de um novo modelo de organização política, em que o Esta- nômico, social e cultural. Na verdade, como assinala Diaz-Polanco
do, conforme Amaral (2002, p. 88), surge então como comunidade polí- p 13),0 problema étnico-nacional tornou-se, nos tempos modernos, um
tica — não como um todo uno e homogêneo, mas como um todo articu- dos maiores e mais complexos desafios sociopolíticos.
lado, não só de homens considerados atomisticamente como cidadãos, Consideramos de grande validade trazer para esta discussão um dos
mas também da pluralidade de comunidades intermediárias [...]. Amaral princípios da Declaração de Princípios de Direito Internacional referente.
defende essa reorganização do Estado a partir das autonomias ou regiões às relações de amizade e cooperação entre os Estados, em conformidade
autônomas, definindo como Regionalismo: com a Carta das Nações Unidas. Eis o conteúdo do referido ptincípio, a
partir de Papadópolo (1995, p. 11):
[...] Não se trata, portanto, de desafiar o Estado, ou o respectivo
modelo específico de organização e de regulamentação da convivência Ninguna de las disposiciones de los párrafos precedentes (de la
humana. Pelo contrário, o Regionalismo insere-se, com clareza, e formulación del princípio de la igualdad de derechos y de la libre
desde o sen surgimento, dentro do quadro estatal. Constitui um determinación de los pueblos) se entenderá en el sentido de que auto-
movimento para a renovação e para a reforma estrutural do Esta- riza à fomentar acción alguna encaminada a quebrantar o
do e, por isso mesmo, para a sua contínua afirmação — não para a menospreciar, total o parcialmente. la integridad territorial de Es-
sua rejeição (2002, p. 133). tados soberanos e independentes que se conduzcan de conformidad
con el principio de la igualdad de derechos y de la libre determinación
Esse Regionalismo observado por Amaral (2002, p. 164) tem como de los pueblos antes descritos y estén, por tanto, dotados de un
ponto de partida ou como fundamento central o “[...] social, tal como ele gobierno que represente a la totalidad del pueblo perteneciente a
se apresenta: diferenciado, plural e complexo”, Faz uma crítica à engenha- territorio sin distinción por motivos de razça, credo o color.
ria político-organizacional da Modernidade, “[...] por se mostrar indife-
tente à pluralidade de entidades concretas que se manifestam na realidade . Esta interpretação também está presente no preâmbulo da-Conven-
social de base [..,]”. ção nº 169, de 1989, da OIT. Assim, autodeterminação não significa
Por
Jor
mais
ate
distante
feto a
que a pareça
Pee
essa realidade,
E í
de um listado
U

2 Organização Internacional do Trabalho.

66 67
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 3

direito à secessão ou ameaça à integridade dos territórios dos Estados. mo tem provocado aos Estados. Do mesmo modo, observa o mesmo
Como observa Papadópolo (1995, p. 63), a autodeterminação não deve autor; o etnodesenvolvimento pode sugerir aos Estados uma fase
ser entendida como direito à secessão ou direito à formação de novos introdutória à autodeterminação, ou seja, uma secessão futura.
Estados independentes. Autodeterminação, como resume Midorí Os Estados precisam assumir uma política libertária, que reconheça
a
Papadópolo, significa o oposto da integração e da assimilação. dimensão étnica pluralista permitindo que os povos sejam sujeitos
de sua
Entre as várias expressões: autogestão, autonomia, autogoverno e au- própria história. Nesse sentido, referindo-se ao tema dos povos indíge-
todeterminação — o termo utilizado pela Declaração de San José, de 1981, nas, destaca Villoro (apud RANGEL, 1998, p. 238) de forma incisiva:
“Etnodesenvolvimento”, semanticamente parece confirmar o menos
ameaçador para os Estados Nacionais. Enquanto fornios nós quem decide por eles, continuarão sendo obje-
Segundo a Declaração de San José de 1981, item 3, to da história que outros fazem. A verdadeira libertação do índio é
etnodesenvolvimento deve ser entendido como preservação cultural; ca- reconhecê-lo como sujeito, em cujas mãos está o seu bróprio destino;
pacidade de decisão quanto ao futuro; exercício de autodeterminação e sujeito capaz, de nos julgar segundo os seus próprios valores, como
estabelecimento de organizações próptias de poder. E isso significa ad- nós os temos sempre julgado; sujeito capasz de exercer a sua hberda-
mitir que o grupo étnico é uma unidade político-administrativa com au- de sem restrições, como nós exigimos exercé-la. Ser sujeito pleno é
toridade sobre seu território. Nesse sentido, o etnodesenvolvimento efeti- ser autônomo. O problema indígena só tem uma solução definitivas
va direitos históricos de povos que possuem identidades étnicas próprias o reconhecimento da autonomia dos povos indígenas.
no âmbito dos Estados Nacionais. A autonomia, muito mais do que se-
cessão, reconhece que todo povo é uma entidade pública de caráter Etnodescnvolvimento, autodeterminação ou autonomia dos povos
territorial, com direito à gestão de seus próprios interesses e assuntos lo- significa, acima de tudo, o rumo da própria história, como sujeito capaz
cais, como também aos recursos de seus territórios, de decidir. Isso é condição básica para um povo. Conforme apontam
en-
Como ressalta Stavenhagen (1989, p. 252-253), etnodesenvolvimento to de Bartolomé (1998, p. 185), um povo que carece de autodetermina-
significa encontrar na cultura a força e os recursos necessários para en- ção carece precisamente do direito de existir como tal.
frentar os desafios e as mudanças do mundo moderno.
A partir do exposto, questiona-se: como um Estado historicamente
Etnodesenvolvimento é uma redefinição da natureza nacional, é, antes de monista, centrado na idéia da homogeneização a partir da perspectiva do
tudo, um reconhecimento do complexo tecido multicultural de muitos grupo dominante, poderá construir um novo marco étnico dialógico,
que
Estados modernos. , . consolide os limites da nacionalidade, sem, contudo, olvidar sua
natuteza
É pertinente a observação de Diaz-Polanco (1987, p. 17) de que a multiétnica? Esse é o grande desafio étnico nacional da pós-modernidade.
solução da problemática étnica nacional não pode se basear na esperança Na verdade, trata-se de uma correção política de um desvio histórico. E.
de deter a roda da história, e que a perspectiva de manter as etnias como o equívoco foi pensar em um Estado constituído por uma Nação de um
crisálidas, envoltas em um perene casulo cultural, deve ser descartada, único povo. Admite-se hoje que muitos povos vivam nos mesmos limites
da nacionalidade, mas se indaga: Como os Estados,
deve-se levar. em consideração o direito de escolha. estruturados no
Substituir o termo “autodeterminação” por “etnodesenvolvimento” patadigma moderno, poderão funcionar a partir dessa constatação? Tal.
patece minimizar o mal-estar que a primeira causa aos Estados, pois, na vez por meio de um processo radical de democracia complexa, que reco-
verdade, a palavra autodeterminação sugere aos Estados algo além de nheça as desigualdades e promova afirmações positivas compensatórias.
Isso implica uma superação do sistema jurídico vigente, vale dizer,
uma política não-integracionista e assimilatória. Pode-se pensar, como in-
como assinala Rangel (1998, p. 239), para se alcançar a autodeterminação
dica Papadópolo, que o termo etnodesenvolvimento foi cunhado para
teivindicada pelos povos indígenas, por exemplo, é necessária a supera-,
substituir a de autodeterminação, isso dado aos problemas que este últi-

68 69
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 3

ção da juridicidade dos nossos próprios Estados modernos, ou seja, é tenças étnicas, a não ser o diálogo interétnico fundamentado numa cultura
importante um Direito objetivo pós-moderno — para dar-lhe algum nome. de tolerância, na qual politicamente todos os povos tenham o direito re-
E o princípio para superar a juridicidade moderna, segundo o mesmo conhecido à autodeterminação. Sem dúvida, essas questões são um dos
autor obsetva, está em considerar desigual os desiguais, considerando a temas mais intrigantes c fundamentais da Antropologia Jurídica, contribu-
existência da desigualdade real não para consagrá-la, mas para superá-la, indo certamente para a construção de um mundo menos violento e mais
Não entendemos superação das desigualdades como o seu desapareci- justo.
mento, mas das injustiças que elas provocam. Às diferenças existem e
continuarão existindo, pois a diversidade é uma das maiores riquezas hu-
REFERÊNCIAS
manas. São as injustiças, e não as desigualdades, que devem ser superadas.
Nos últimos anos a maioria das legislações tem reconhecido em seus
AMARAL, Carlos Eduardo Pacheco. Do Estado soberano ao Estado
sistemas normativos determinados direitos coletivos dos povos, sem,
das autonomias. Blumenau: Edifurb, 2002.
contudo, designá-los como direitos de autodeterminação. A partir de
Bartolomé (1998, p. 187) o termo “autonomia” produz uma espécie de
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 27. ed. Rio de Janeiro:
temor semântico, fazendo com que os Estados se comportem como se o
Globo, 1988.
céu estivesse caindo sobre suas cabeças.
O pavor de muitos Estados em relação à autodeterminação dos po-
BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. Procesos civilizatorios, pluralismo cul-
vos reflete o medo da criação de comunidades políticas independentes
tural y autonomiías étnicas en América Latina. In: BARTOLOMÉ, Miguel
que ameacem a soberania nacional. Esses mesmos Estados, contudo, não
A.; BARABAS, Alícia M. (Coord). Autonomías étnicas y Estados
vacilam diante dos interesses financeiros das transnacionais, estas sim peri-
nacionales. México: Instituto Nacional de Antropologia e História, 1998.
gosas para a soberania dos Estados.
BOBBIO, Norberto. El futuro de la democracia. Barcelona: Plaza &
CONSIDERAÇÕES FINAIS Janet, 1985.

As idéias apresentadas neste capítulo são de grandei importância para a CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e Direito Consti-
Antropologia Jurídica, discutindo possibilidades de constituição de um tucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1986.
modelo de Estado que considere as questões étnicas como fundamentais.
Como vimos, o Estado moderno foi concebido desconsiderando a di- CARVALHO, Aluísio Datdeau de. Nacionalidade e cidadania, Rio de
versidade étnica, subjugando povos, excluindo minorias, marginalizando Janeiro: Freitas Bastos, 1956.
os diferentes. Sabemos que não se trata de um tema simples, no entanto
são questões urgentes para a concretização de espaços políticos mais jus- DIAZ-POLANCO, Hector. Etnia, nación y política. México: Juan
tos e de acordo com a diversidade étnica. A opressão étnica é histórica e Pablos Editor, 1987.
atual, surgindo conflitos em todos os lugares, desde guerras étnicas nos
continentes africano e europeu, como no centro das grandes metrópoles, HABERMAS, Júrgen. Direito e democracia: entre facticidade e vali-
nas quais o fluxo migratório é intenso e constante. dade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo
Às diferenças culturais são fundamentais, pois tornam a experiên- Brasileiro, 1997. v. 2, p. 282.
cia existencial mais rica do ponto de vista humano. Nesse sentido, não há
outra possibilidade de pacificação dos conflitos produzidos pelas dife- - O Estado-nação europeu frente aos desafios da globalização: o

70 71
ISLEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariruLo 3

passado e o futuro da soberania e da cidadania. Tradução de Antonio Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos. Méxi-
Sergio Rocha. Revista Novos Estudos, São Paulo, n. 43, p. 88, 1998. co, 1989.

MANCINI, Pasquale Stanislao. Direito Internacional. Tradução de Ciro - Etnodesenvolvimento: uma dimensão ignorada no pensamento
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MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 com a emen-
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México: El Colegio de Mexico, Instituto Interamericano de Derechos
Humanos, 1988.

+ Os derechos indígenas: nuevo enfoque del sistema internacional.

72 73
CAPÍTULO 4

Novos ATORES E MOVIMENTOS ÉTNICO-


CULTURAIS: ANTROPOLOGIA JURÍDICA
NA ROTA DAS IDENTIDADES
.
ADRIANA BILLER APARÍCIO

No cenário atual de globalização econômica e cultural, a sociedade


civil, e em especial os movimentos sociais, por meio de ações coletivas;
vêm demandando direitos que transcendem a esfera da distribuição de
bens e serviços a serem prestados pelo Estado. “
Na atualidade é possível verificar que as demandas sociais não se res-
ttingem à esfera econômica. Muito além disso, os novos movimentos
clamam pelo reconhecimento de direitos diferenciados, tais como direi-
tos culturais, de livre orientação sexual, ou de uma maneira geral, direitos
identitários.
A Antropologia hoje superou a tradição de ter por objeto de estudo
as sociedades “primitivas” para assumir cada vez mais a perspectiva da
alteridade, trazendo para seu campo a análise de grupos diferenciados em
meio urbano, que fazem parte do que se denomina por novos atores
sociais.
O Direito, com base na teoria do pluralismo jurídico, busca transfor-
mar seu caráter historicamente conservador, por meio do qual reprodu-
ziu velhas injustiças sociais com suas normas gerais e abstratas, deixando
de contemplar as especificidades culturais de diversas identidades existen-
tes no Estado-Nação.
O estudo dos movimentos étnico-culturais no Direito tem a possibili-
dade de ingresso por intermédio da vereda aberta pela Antropologia
Jurídica, “arejando” os seus horizontes epistemológicos; e, no plano ptrá-

“ Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, Mestranda em Direito no Programa de


ecra,

Pós-Graduação da UFSC na área de Direito, Estado e Sociedade. Bolsista CAPES, Pesquisadora


do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica - GPAJU/UFSC.

75
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CAPÍTULO 4

tico, instrumentalizando o estudante e o jurista para a compreensão de


questões teóricas e de situações fáticas relacionadas aos direitos diferenci- A dinamicidade exigida pelo regime democrático repercute na
ados, ou direitos identitários.
dinamicidade que deve ter o próprio Direito. É assim que a Constituição
Na busca de rotas para o debate sobre os movimentos étnico-cultu- Federal elencou em seu artigo 5º o rol de direitos e garantias fundamen-
tais na Antropologia Jurídica, inicialmente será feita a análise da importân- tais, deixando em aberto a possibilidade do ingresso de novos direitos.
cia da ação coletiva na produção de juridicidade, bem como na legitimação Nesse sentido, o parágrafo 2º do mencionado artigo dispõe que os
do regime democrático, em contraste com a visão positivista que se con- direitos ali previstos não excluem outros decorrentes do regime demo-
tenta com meros procedimentos formais na formação do ordenamento crático e dos princípios adotados pela Carta Constitucional, além dos
jurídico. advindos de tratados internacionais nos quais o Brasil seja parte.
Em seguida, trabalhar-se-á a abordagem contemporânea dos movi- O regime democrático é baseado nos princípios da legalidade e da
mentos sociais na perspectiva da teoria dos “novos movimentos”, na qual
soberania popular. Desse fato resultá que a validade das normas depende
está inserida a não somente do atendimento ao procedimento formal previsto no
leitura a ser traçada sobre os movimentos étnico-culturais,
reconhecendo na afirmação das identidades o seu paradigma de análise. ordenamento estatal, mas também de aceitação social.
Conforme Habermas (1997, p. 50-118) trata da tensão existente entre a validade
já referido, os movimentos étnico-culturais serão estuda-
dos com base na teoria dos novos movimentos formal e a aceitação social da norma, na qual está presente um “espaço”
sociais, destacando-se o
fator da etnicidade como elemento central de aglutinação para reivindica- que deve ser preenchido pela legitimação. A aceitação das normas, deno-
ção do reconhecimento das diferenças, minada também de “validade social”, é a crença dos membros da comu-
Em seguida, cuidar-se-á dos novos atores sociais na especificidade do nidade na sua legitimidade.
contexto pátrio, considerando que as demandas dos movimentos étnico- O monismo jurídico moderno toma pot princípio que as normas
culturais no Brasil não se afastam das teivindicações por justiça social. - jurídicas são emanadas a partir de um único centro, o estatal. Sua legitimi-
Serão abordadas, dade é burocrática, em função de diversos processos de racionalização
ainda, as consequências jurídicas da atuação de tais
movimentos na Constituição Federal de 1988. do Estado”, em atendimento aos interesses da classe social que emerge na
Ao final, a Antropologia Jurídica será apresentada como o caminho modernidade, a burguesia (WOLKMER, 2001, p. 108-109).
pata o fortalecimento de uma nova cultura pluralista para o Direito, na Ainda que historicamente associado à burocracia estatal e à força do
qual sejam respeitadas as diferenças e a ação dos novos atores sociais mercado, o Direito também faz parte do que Habermas denomina de
tenha centralidade na produção de juridicidade. “mundo da vida”, isto é, o espaço da vida cotidiana, composto pelas
tradições culturais, local onde se desenvolvem as identidades individuais e
coletivas. À legitimidade do Diteito está estreitamente vinculada à relação
AÇÃO COLETIVA E A DINAMICIDADE DO JURÍDICO
que a positividade estabelece com suas fontes de solidariedade social.
A sociedade civil, ligada ao que se passa no “mundo da vida”, é res-
O Estado Democrático de Direito não apresenta uma configuração
ponsável por captar os ecos dos problemas socizis e transmiti-los para a
pronta, acabada. Ele deve ser entendido como um projeto que precisa de
esfera pública, local onde ocorrem os debates, politiza-se questões anteri-
atualizações em seu sistema de direitos, como condição de sua própria
ormente consideradas privadas (HABERMAS, 1997, p. 99).
legitimidade. Composta por organizações, associações e movimentos sociais, a so-
José Afonso da Silva ensina que democracia e direitos fundamentais ciedade civil tem o papel de liberar os atores sociais, promover-lhes auto-
do homem são conceitos históricos, devendo ser “enriquecidos” confor-
nomia para que possam operar em sentido diferente da lógica instrumen-
me as necessidades da sociedade civil, tomando por princípio básico a
soberania popular (1996, p. 126). 3 Dn . . - . ,
Para uma explicação detalhada dos diversos ciclos de formação do monismo, ver Capítulo
1, da obra “Pluralismo Jurídico” de Antônio Carlos Wolkmer, conforme referências.

76
77
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTULO 4

tal do mercado e dos poderes burocráticos (TOURAINE, 1997, p. 106). dos anos 60 do século XX na Europa, do movimento marxista clássico,
Os movimentos sociais atuam como “um fator dinâmico na criação e que tem por base a reivindicação econômica da distribuição de recursos
expansão dos espaços públicos da sociedade civil” (ARATO; COHEN, na sociedade capitalista. ' o o
1994, p. 173). São sujeitos capazes de canalizar importantes temas paraa Destaque-se, preliminarmente, a transcendência dá perspectiva da luta
esfera pública, exercendo pressão sobre o sistema político, ganhando es- de classes pelos novos movimentos, que trazem à cena política O-aspecto
paços e ampliando direitos. cultural e identitário do sujeito e dos diferentes grupos sociais...
De certa forma, os moviméntos sociais promovem o que Norbert Com a eclosão dos movimentos:de gênero, pacifistas, ecológicos. e
Rouland (2004, p. 12) denomina “armistício social”, pois traduzem em - das minorias étnicas, os teóricos dos-novos-movimentos sociais, como
termos jurídicos as reivindicações sociais. “Alain “Touraine, entenderam que a análise da ação coletiva centrada no
O sistema político elabora as questões que surgem-na esfera pública conflito baseado na relação capital-trabalho era insuficiente.
para dar con-
(HABERMAS, 1997, p. 92) a partir da ação coletiva e, muitas vezes, trans- ta da complexidade das demandas na sociedade pós-industrial.
forma suas demandas em notmas. Na análise de Touraine (1997, p. 100), os atores dos novos movimen-
A importância dos movimentos sociais para a sociedade civil não está tos sociais não estariam limitados a conflitos de classe, gerados a partir do
somente no êxito da concretização dos novos direitos, mas no potencial campo econômico. Os novos atores põem em debate a dominação soci-
de que dispõe para rediscutir valores, normas, instituições; ou, como des- al, questionando a utilização dos recursos e modelos culturais existentes e
ctevem Arato e Cohen (1994, p. 176), para modificar a cultura política, e pleiteiam o direito à diferença. .
pot que não acrescentar a cultura jurídica? Os novos movimentos sociais são considerados “movimentos cultu-
A legitimidade do Estado Democrático de Direito revela-se na livre tais”, uma vez que suas ações coletivas buscam transformar a sociedade,
discussão dos temas da esfera pública, trazendo as questões do “mundo defendendo o reconhecimento de valotes culturais alternativos e, ainda,
da vida” para a ótica estatal, sem encerrá-las numa torre de marfim, na de direitos específicos de grupos diferenciados.
qual o monismo jurídico busca fazer prisioneira a própria realidade social, Touraine (1997, p. 112) destaca que o movimento de mulheres, ecoló-
Para que seja possível pensar um novo Direito, não basta examinar à gico e das minorias étnicas, religiosas e nacionais são os mais importantes
formalidade de instituições que garantam a legalidade. É preciso conside- entre os novos movimentos sociais.
tar O pluralismo social, cultural, político e jurídico existente sob o teto do Scherer-Warxen (2000, p. 41) esclatece que os:movimentos sociais sur-
Estado-Nação, proporcionando sua comunicabilidade pela atuação da gidos entre 1960 e 1980, como os movimentos de gênero, ecológicos e
sociedade civil, étnicos, visavam especialmente “à afirmação de suas identidades específi-
Uma vez exercido este papel “pacificador” pela ação coletiva, que cas, o reconhecimento público de seus valores, o respeito às diferenças
possibilita a conversão de demandas sociais em direitos, o jurista não culturais e a conquista de novos direitos”,
deve contentar-se com o “silêncio das leis” (ROULAND, 2004, p. 12), A autora observa que a partir da segunda metade da década de 80
O estudo dos novos atores sociais e suas demandas é um instrumento haveria uma “crescente interação destes movimentos entre si”, e também
do qual os estudantes e operadores do Direito devem valer-se para não uma penetração dos ideais dos novos movimentos nos movimentos clás-
se descolarem da dinâmica da vida. sicos de reivindicação econômica, como o movimento sindical e de mo-
radores. .
À NOVA ABORDAGEM DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Os novos direitos derivam de demandas dos novos atores surpidas
em razão de necessidades que são históricas, uma vez que estão sempre
As Ciências Sociais elegeram o adjetivo “novos” para estabelecer a em criação e redefinição (WOLKMER, 2003, p. 19-20).
diferença entre os movimentos sociais contemporâneos, surgidos a partir A inovação dos novos movimentos, segundo Wolkmer (2003, p. 19-
'

78 79
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríTULO 4

20), não está somente no fato de trazerem reivindicações culturais, mas movimentos sociais (ORTIZ, 1999, p. 82).
também pela diferente forma de atuação dos atores-sociais, que não pas- Dessa forma, é importante reconhecer que-a demanda dos movimen-
sa pelas.vias institucionais formais, desafiando a dogmática jurídica tradi- tos de gênero, segundo esclarece Renato Ortiz, insere-se no
contexto da
cional, matriz da modernidade: “a construção da identidade nos movime
ntos de
Os sujeitos dos novos movimentos sociais não se limitam à atuação gênero é resultado dos ideais e da organização interna das socieda
des
partidária ou sindical, como outrora realizado pelo movimento operário, modernas” (1999, p. 82).
que seguia uma racionalidade burocrática. À ação coletiva dos novos ato- Costa e Werle (2000, p. 97), ao abordarem as diversas lutas
por teco-
res é difusa e não-hierarquizada, baseando-se numa lógica solidária e, as- nhecimento cultural, distinguem o fenômeno do movimento
de gênero
sim sendo, são considerados verdadeiros atores sociais. “dos étnico-culturais:
Uma-das características dos novos movimentos sociais é que a política
não está presente somente nos aparelhos estatais, encontrando-se dispersa O movimento feminista luta contra uma cultura dominante sexista
na vida social e cultural, e discricionária e as questões quê traz não dizem respeito apenas às
Além-de apresentarem novas formas de realização da política, pro- mulheres, podem afetar diretamente também a auioconpreensão
movem a politização de novos temas, como a violência doméstica, de- das pessoas do sexo masculino, No caso das lutas de minorias
nunciada na esfera pública pelo movimento de mulheres, a demanda pelo ébmicas e culinrais pelo reconhecimento de sua própria identidade, a
reconhecimento civil da união entre pessoas do mesmo sexo, levantada superação da opressão cultural pressupõe igualmente mudanças nas
pelo movimento ay concepções de mundo da enltura majoritária, Não obstante, dife-
A identidade coletiva é central no estudo dos novos movimentos so- rentemente da iuta de gênero, que implica numa inflexão Profunda
ciais, constituindo seu paradigma de análise. Os sujeitos desses novos no papel dos homens, há aqui uma demanda menos enfárica nos
movimentos unem-se em totno de um dado cultural específico como papéis e interesses dos que compartilham da enttura majoritária,
gênero, orientação sexual, idade e também etnia ou raça , sendo neste
último caso denominados de movimentos étnico-culturais, categoria que Se no movimento de mulheres pode ocorrer uma influência cultutal
será a seguir analisada. . profunda no papel do homem, na luta dos movimentos étnico-culturais
Em razão de sua identidade diferenciada ou por conftontarem valo- há uma demanda identitária que não exige, necessariamente, uma mudan-
res culturais hegemônicos, fazem resistência às diferentes formas de opres- ça na identidade cultural “do outro”,
são e dominação cultural e pleiteiam o reconhecimento de sua alteridade A superação das diferenças identitárias entre O gtupo portador
de
e o direito de vivenciá-la livremente. uma identidade étnica e outro grupo cultural dominante pode significa
r,
Apesar de estarem unidos em torno da realização identitária, o estudo segundo Renato Ortiz (1999,p. 82), o fim de uma comunidade: “No
da diversidade e da demanda dos novos atores deve ser feito com. base caso das sociedades indígenas, toda superação”, seja ela no sentido hegelian
o
na História.e na Antropologia, tendo-se a cautela necessária para estabele- ou não, implicaria o seu desaparecimento. A separação é a razão de ser
cer as distinções qualitativas entre as diferenças pleiteadas pelos diversos dessas culturas. Estou portanto sugerindo que na discussão sobre a diver-
sidade é necessário distinguir qualitativamente as diferenças”.
35 . . sa . . Na busca de problerhatizar os movimentos sociais sob o ponto
Atualmente denominado de movimento GLTTBS - gays, lésbicas, travestis, transexuais e
simpatizantes, mas:como é inerente à idéia de movimento social, está sujeito a constantes de
vista histórico e antropológico, apresenta-se, ainda, a questão fundame
modificações. , ntal
* sandro Sell, em sua obra “Ação afitmativa e democracia racial [...)” trabalha o conceito de
de diferenciar as reivindicaçõdas es minorias e dos povos autóctones.
taça. O autor demonstra que em termos biológicos este conceito está superado, e, Norbert Rouland (2004, p. 37) toma por parâmetro os Estados mo-
historicamente, está associado a uma visão hierárquica das capacidades humanas. No entanto,
o termo é utilizado para designar um lugar ocupado na estrutura sociocultural, servido como dernos para esclarecer que as minorias referem-se a grupos nacionai
s que
aporte para reivindicação de direitos.

80 81
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTULO 4

“no seio de uma-população dominante, possuem características étnicas, A etnicidade foi pensada, num primeiro momento, pela Antropolo-
religiosas ou linguísticas próprias”. gia, como um dado primordial, que poderia ser definida de forma obje-
Os povos autóctones, ainda que possam representar “o outro” dentro tiva, sendo que a ancestralidade comum bastaria para-a criação de “víncu-
de um Estado-Nação, possuem um “elo privilegiado” entre território e los naturais e-inevitáveis” entre as pessoas do prúpo' (POUTIGNAT;
história, que envolve processos de conquista e colonização (ROULAND, STREIFE-FENART, 1998, p. 91).
2004, p. 20-22). Para esta teoria. denominada “primordialista”, a enicidade: era uma
Disso decorre que suas reivindicações2 apresentam especificidades como qualidade essencial transmitida pelo grupo, independentemente das rela-
a demanda territorial e por autodeterminação. Thais Luzia Colaço (2003, ções externas, desconsiderando assim -o contexto-econômico-e:é político
p: 75-97) ensina que os novos direitos indígenas incluem, além dos direi- ao qual estavam submetidos os grupos sociais.
tos étnico-culturais, o direito à auto-organização, que implica no reconhe- Manuela Carneiro da Cunha (1987, p. 99) alerta que Max: Weber já)
cimento do pluralismo jurídico. argumentava que as comunidades étnicas apresentavam-se como uma
Os novos movimentos sociais surgem do conflito sobre os modelos eficiente fotma de organização pata “resistência ou conquista de espa-
culturais, buscando “promover mudanças nos valores dominantes e alte- ços”.
rar situações de discriminação, principalmente dentro de instituições da Ao longo dos anos 60 do século XX, os antropólogos começaram a
própria sociedade civil” (GOHN, 1997, p. 125). estudar a etnicidade sob o ponto de vista da interação social. Os grupos
Nos movimentos étnico-culturais destaca-se a demanda pelo reco- étnicos passam a ser pensados como um tipo de organização -que parte
nhecimento da identidade cultural de um determinado grupo diferencia- de uma auto-identificação em oposição a outros grupos. Na explanação
do, que significa a garantia de vivenciarem seus valores, sua língua, sua de Poutignat e Streiff-Fenart (1998, p. 112), com base na visão de Frederik
organização social dentro do Estado-Nação de formação pluriétnica. Barth, a etnicidade passou a ser pensada de forma relacional: “[.:] a abot-
dagem de Barth pressupõe o contato cultural e a mobilidade das pessoas
MOVIMENTOS ÉTNICO-CULTURAIS E AUTOCONSCIÊNCIA DE e problematiza a emetgência e a persistência dos-grupos étnicos como
GRUPOS unidades identificáveis pela manutenção de suas fronteiras”,
O processo de organização da etnicidade não é algo estático, essencialista,
Ao tratar da etnicidade, Rouland (2004, p. 24-25) vale-se do apropri- mas construído e intensificado com a interação entre diversos prupos.
ado título “a etnia dos outros” para demonstrar o aspecto negativo que Nesse caminho teórico Manuela Carneiro da Cunha vai esclarecer que
essa expressão adquiriu quando cunhada para denominar, desde o tempo uma das “funções” desempenhadas pela etnicidade decorre da necessida-
da Grécia Antiga, ds povos que não adotavam o modelo político e social de de se “estabelecer fronteiras claras para os grupos” (1987, p:102).
do grupo dominante. Nessa perspectiva dinâmica, afasta-sea explicação do grupo étnico
Se a questão étnica pode ser entendida por alguns como um foco com relação a um “isolamento no passado” para analisá-lo apartir de
irradiador de problemas sociais, tomando por base as guerras travadas “processos identitários”, concebidos dentro de uma dimensão política,
com base na intolerância, Rouland (2004, p. 27) considera que, dentro de de posicionamento perante uma sociedade envolvente.
um regime político democrático, de respeito às diferenças, a identidade À Antropologia pode indicar ao Direito que a etnicidade se àpresenta
étnica pode ser vista como fonte de riqueza cultural. de forma relacional e simbólica, estabelecendo fronteiras entre “nós” e
Numa ótica pluralista de respeito às diferenças, a etnicidade pode re- “eles”, No contexto de relação interétnica, ela veicula uma forma de resis-
presentar a formação da autoconsciência do indivíduo e do grupo sobre tência, ou ainda uma “reivindicação cultural”, que precisa ser: “ouvida e
suas especificidades culturais, formando identidades, sem que isso “ar-
respeitada dentro de um ordenamento democrático.
ranhe” os direitos fundamentais já consagrados pela humanidade,

82 83
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CArÍTULO 4

Novos ATORES NA CENA PÚBLICA BRASILEIRA teava autonomia sindical e novas formas de fazer política.
Tais movimentos, apesar de militarem em torno da clássica questão da
À categoria dos novos movimentos sociais, surgidos no contexto eu- distribuição de recursos, eram reconhecidos como “novos” eim função
topeu para dar conta da ação coletiva que decorre da crise do Estado de da forma diferenciada de ação coletiva, caracterizada pela organização
bem-estar-social contrasta com a realidade dos “movimentos populares” espontânea e não-hierárquica.
latino-americanos, surgidos no final do período de autoritarismo político Ao lado desses movimentos sociais urbanos, ao longo dos anos 80,
e decorrentes do que, ironicamente, Doimo trata por estado do “mal- desenvolveram-se aqueles ligados à demanda pelo reconhecimento
da
estar social” (1995, p. 67-68). identidade de determinados grupos sociais, como os movimentos étni-
Ainda que se trate de contextos tão diferentes como o europeu e o co-culturais, em especial o movimento negro e indígena,
brasileiro, a categoria dos novos movimentos sociais é válida na medida É importante destacar que os movimentos étnico-culturais, além de
em que contribui para a compreensão da ação coletiva feita por novos reivindicarem o reconhecimento de suas identidades, não deixavam
de se
atores, que lançam mão de distintas maneiras de fazer política, deman- posicionar com relação à reconstrução da democracia no Brasil. Os mo-
dando, além da redistribuição dos recursos, a transformação de valores vimentos sociais, durante a Constituinte, atuaram visando à previsão da
culturais hegemônicos e o reconhecimento das múltiplas identidades cul- participação popular e do reconhecimento das múltiplas identidades cul-
turais, turais existentes no Estado-Nação.
O potencial inovador dos novos movimentos sociais no Brasil coinci- À sociedade civil brasileira e os novos atores sociais exigiram uma
de com o fim da ditadura militar, em meados dos anos 70, e toma como democracia legitimada na participação popular. Assim, a Constituição previu
pleito, além do restabelecimento formal-do sistema de direitos e garantias diversos mecanismos de participação política, mesclando, segundo José
de liberdade, a própria “reinvenção radical da democracia” (PAOLI, 1995, Afonso da Silva (1996, p. 137), a democracia representativa e a democra-
p 20. cia participativa. São instrumentos de participação direta previstos em
* Os novos movimentos sociais no Brasil trazem à cena pública sujeitos nossa Constituição Federal: a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito e
que forani historicamente “depreciados” pela ordem social escravocrata a ação popular.
e elitista. Maria Célia Paoli observa. que os movimentos sociais deram Os movimentos étnico-culturais estiveram unidos aos movimentos
visibilidade a atores sociais que, de seu papel historicamente subalterno, populares na denominada “reinvenção democrática”. Obtiveram, por sua
passaram a se reconhecer como fonte de legitimação democrática (1995, vez, o êxito de coroar na Constituição Federal o pluralismo étnico-cultu-
p. 29). ral na formação do Estado brasileiro, que até então operava com o “mito
O desenvolvimento da teoria dos novos movimentos sociais no Brasil da democracia racial” em termos legislativos.
sutge a partir da análise da ação de grupos reivindicatórios que escapa- Nessa perspectiva, a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 215,
vam às instituições clássicas de representação, como sindicatos e partidos inclui a expressão “fontes da cultura nacional” para garantir a todos o
e que se encontravam “excluídos” da cidadania e dos bens e recursos pleno exercício dos direitos culturais, protegendo as manifestações popu-
mais básicos à condição humana, lares, indígenas e afro-brasileiras e de outtos gtupos participantes do pro-
“ Trata-se,
da ação coletiva da população carente que se organiza para: cesso civilizatório nacional. ;
demandar por creches, moradia, assistência médica, denominados pelos Em transparente reconhecimento ao pluralismo étnico a Constituição
cientistas sociais brasileiros como “movimento popular” ou “movimento
social utbano”, o “O mito segundo o qual o Brasil é constituído a partir da fusão do elemento branco, negro
€ índio tem origem em meados do século XIX, em razão da necessidade de construção
Os analistas dos movimentos sociais lançam seu olhar também para o identidade nacional. A primeira tentativa deste debate, segundo Renato Ortiz, tem matriz
da
de
novo movimento operário, conhecido como “chão de fábrica”, que plei- cunho racista, e foi apresentada pelos precursores das Ciências Sociais no Brasil: Nina'
Rodrigues, Silvio Romero e Euclides da Cunha (1986, p. 14).

64 65
——— ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 4

determina, no parágrafo 2º do referido artigo, que a lei deve dispor sobre blica até então, foi fundamental para o rompimento com a cultura jurídica
a fixação de datas comemorativas que tenham significação aos diferentes monista, que, a partir de uma visão homogênea da sociedade, vinha ope-
segmentos étnicos nacionais. rando com critérios meramente formais de legitimidade:
O artigo 216 da Constituição Federal torna amplo o conceito de
patrimônio cultural, que passa a envolver, além de bens de natureza mate- ANTROPOLOGIA JURÍDICA NA ROTA DAS IDENTIDADES
tial, os bens imateriais referentes à identidade e memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, incluindo as formas de ex- A: Antropologia foi, por muito tempo, definida em função do
pressão; os modos de criar, fazer e viver. “exotismo” de seu objeto de estudo, Esse estigma-ainda está presente
Em capítulo exclusivamente dedicadó:ãos índios, rompeu com o lop- quando -se: pensa que-toda diferença. possa parecer, num primeiro mo-
go passado assimilacionista para reconhecer-lhes sua organização social, mento, exótica.
sua cultura, costumes, línguas, crenças e direitos originários a terras tradi- Atualmente a Antropologia é definida como a ciência que opera com
cionais (artigo 231). as diferenças, lembrando Peirano que: “se todo exotismoé um tipo de
A formação educacional deverá assegurar o respeito aos valores cul- diferença, nem toda diferença é exótica” (2006, p. 53).
turais, artísticos nacionais e regionais, sendo garântido aos povos indíge- O primitivismo do “outro” derivou da perspectiva etnocêntrica, se-
nas a adoção de suas línguas maternas e seus processos próprios de apren- gundo a qual a cultura ocidental era tida como o padrão de desenvolvi-
dizagem (artigo 210, parágrafo 29. mento a ser seguido.
A comunidade afro-descendente obteve a garantia das terras Após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, a Antropologia passou a
quilombolas, elemento essencial para a preservação de sua cultura, no reconhecer que esteve a serviço do colonialismo e da expansão do capita-
artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, lismo, assumindo uma posição mais engajada, buscando militar “a servi-
No elenco dos direitos e garantias fundamentais do artigo 5º, inciso ço das minorias” (VESTOILLE, 2002, p. 10).
XLII, a Constituição determinou que o racismo fosse considerado crime Rouland, por sua vez, pondera que a Antropologia Jurídica é o instru-
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei, mento de conhecimento do papel do Direito na construção do homem
aprovada no ano subsequente . diante da multiplicidade de culturas (2003, p. 92-93).
À Constituição Federal expressou a demanda histórica de povos indí- Com as múltiplas crises que assolam o mundo, desde a ambiental,
genas e afro-descendentes que, mediante intensa participação política, co- passando pela crise de legitimidade das Ciências Humanas, pelo
locou em questionamento o mito da democracia racial, trazendo para a questionamento em torno dos paradigmas da modernidade, já não é
cena pública o debate sobre o direito à alteridade. possível pensar; mesmo ao senso comum, que a sociedade capitalista oci-
Além das reivindicações pelo reconhecimento das múltiplas identida- dental seja o modelo a ser seguido pela humanidade. ,
des culturais, os novos movimentos sociais, unidos em torno de outras A emergência dos movimentos étnico-culturais insere-se hoje no pro-
tantas questões culturais não exclusivamente étnicas, também alcançaram cesso maior de reivindicação das identidades culturais, na busca de afir-
êxito. Entre vários direitos, o movimento de mulheres conseguiu estabe- mação diante das mudanças estruturais promovidas pelo processo da
lecer, no artigo 226, parágrato 6º, a igualdade na sociedade conjugal. globalização, resistindo à “homogeneização” das diferenças (HAL, 2005,
Os movimentos sociais marcaram presença durante a elaboração da
p. 14).
Constituição, influenciando o legislador na elaboração de mecanismos de As identidades culturais não são “naturais”, “essenciais”, elas envol-
participação popular e na previsão de direitos identitários. vem não somente um passado em comum,'mas uma visão para o futuro,
O levante desses novos atores, considerados inexistentes na cena pú- estando sujeita a transformações (HALL, 2000, p. 108).
O esgotamento do monismo jurídico e da dogmática tradicional re-
“Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 e Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997.
86 87
tSLEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariruLo 4

clama uma mudança rumo ao reconhecimento do pluralismo jurídico,


REFERÊNCIAS
étnico e social. Esta é a demanda dos novos atores sociais, cuja identidade
deve ser entendida de forma processual, no contexto da produção de
ARATO, Andrew; COHEN, Jean. Sociedade civil e teoria social. Tn:
fronteiras simbólicas entte “nós” e “outros”,
AVRITZER, L. (Org). Sociedade civil e democratização. Belo Hori-
Ao sujeito individual abstrato, autor e destinatário do Direito Modet-
zonte: Del Rey, 1994. p. 149-182,
no, os novos atores posicionam-se como novos sujeitos, individuais ou
coletivos, mas pertencentes a um grupo portador de direitos diferencia-
COLAÇO, Thais Luzia. Os “novos” direitos indígenas. In: WOLKMER,
dos, trazendo como consegiência a demanda pelo reconhecimento de
Antônio Carlos; MORATO LEITE, José Rubens (Org). Os “novos”
sua alteridade.
direitos no Brasil: natureza e perspectivas [...]. São Paulo: Saraiva,
A sociedade plural deve ser a fonte e a limitação do Direito. Para que
se supere o problema do Estado moderno como único instituidor da
2003. p. 75-97,
jutidicidade, Rouland propõe o caminho da experiência antropológica
COSTA, Sérgio; WERLE, Denilson Luís, Reconhecer as diferenças: libe-
do pluralismo jurídico (2003, p. 173).
tais, comunitaristas e as relações raciais no Brasil. In: SCHERER-WARREN,
A Antropologia Jurídica, além de contribuir para uma visão do Direi-
- Ilse (Org). Cidadania e multiculturalismo: a tecria social no Brasil
to ligado a suas fontes sociais, abre ao estudante e ao jurista os caminhos
Contemporâneo. Florianópolis: UFSC, 2000.
para a compreensão da complexidade das demandas dos movimentos
étnico-culturais e dos novos atores na busca da afirmação de suas identi-
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história,
dades culturais.
etnicidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e
participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
- -Numa sociedade reconhecidamente plural, a atuação dos novos ato- 1995.
tes dos movimentos sociais contribui para que o Direito e a Democracia
aproximem-se de suas fontes de legitimidade social. GOHN, Maria da Glória Marcondes. Teoria dos movimentos sociais:
O paradigma identitário dos movimentos sociais é importante pata paradigmas clássicos e contemporâncos. São Paulo: Loyola, 1997,
uma compreensão mais aprofundada das necessidades da sociedade civil,
que no contexto brasileiro tem a especificidade de demandar não somen- HABERMAS, Júrgen. Direito e democracia: entre facticidade e valida-
te o reconhecimento de direitos diferenciados, mas também a justa distri- de. v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
buição
LolDOCA recursos.
de bens ee lr
A etnicidade, assim como outros dados da subjetividade, tais como HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da.
gênero, orientação sexual têm a força de aglutinar grupos sociais que exi- Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Ja-
gem do Direito uma nova cultura, de base plural e interdisciplinar. neiro, Vozes, 2000. p. 103-133.
A Antropologia Jurídica hoje serve como aporte ao diálogo do Direi-
to com a realidade política e social, com a multiplicidade cultural e étnica, - À identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro:
a fim de que, compreendendo melhor o processo dinâmico das identida- DP&A, 2005.
des culturais contemporâneas, possa caminhar rumo a uma nova cultura
pluralista. VESTOILE, Benóit et a/ (Org). Antropologia, impérios e estados

68 69
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTuLO 4

nacionais. Relume-Dumará: Rio de Janeiro, 2002. TOURAINE, Alain. Podremos vivir juntos? Iguales y diferentes, Buenos
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90 91
CAPÍTULO 5

ANTROPOLOGIA, MULTICULTURALISMO E
- DIREITO: O RECONHECIMENTO DA
IDENTIDADE DAS COMUNIDADES
TRADICIONAIS NO BRASIL
39
RAQUEL FABIANA LOPES SPAREMBERGER
40
CAROLINA GIORDANI KRETZMANN

À Antropologia Jutídica e o conceito de multiculturalismo inseriram-


se, nos últimos anos, ao debate em totno do conteúdo e do papel das
Constituições, tanto no que tange aos direitos das minorias, às reivindica-
ções territoriais, à proteção dos direitos culturais, à lírigua, aos currículos
escolares, quanto aos preceitos que fundamentam as Constituições.
É necessário que se reconheça a plurietnicidade e a pluriculturalidade
que está presente na formação da maioria dos Estados, o que vem justi-
ficar a afirmação de que os Estados não possuem uma composição ho-
mogênca e, com isso, o reconhecimento e a tutela de todos os grupos
presentes em sua formação é imprescindível para que a dignidade huma-
na seja realmente protegida e respeitada.
Nesse sentido, o texto aborda inicialmente a Antropologia, o
multiculturalismo e o reconhecimento da identidade de grupos cultural-
mente diferenciados, como é o caso das comunidades tradicionais brasi-
leiras. À seguir, expõe o conceito de comunidades tradicionais e demons-
tra sua intrínseca relação de sustentabilidade com o meio ambiente, con-

2 Pós-doutoranda em Direito pela UFSC. Doutora em Direito. Professora dos cursos de


Graduação e dos programas de Pós-Graduação (Mestrado) em Desenvolvimento, Gestão e
Cidadania da UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
e do Mestrado em Direito Ambiental e Relações de Trabalho da UCS - Universidade de Caxias
do Sul. Professora pesquisadora do CNPg.
“ Mestre em Diteito pela Universidade de Caxias do Sul - UCS. Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa do CNPq Direito, Meio Ambiente e Desenvolvimento.

93
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA ——— CAPÍTULO 5

tribuindo para a preservação da diversidade biológica e cultural. questionamentos no que se refere a minorias étnicas, processo de
Outra questão fundamental que é tratada é a da igualdade, da emanci- globalização econômica e cultural, bem como novos temas que a An-
pação e da cidadania. E nesse viés, o reconhecimento da diferença é peça tropologia Jurídica precisa alcançar na busca de novas respostas e inter-
fundamental para que a igualdade garantida pela Constituição não seja pretações. A Antropologia Jurídica, segundo Rouland (2003, p. 92) “[...] é
apenas formal, mas sim real e efetiva, que possa garantir a participação de instrumento de conhecimento, ela mostra que o Direito tem histórias, que
todos os indivíduos e grupos na vida social, econômica, política e cultural às vezes se encontram, onde menos se esperava”. Neste texto, pretende-
do país. se demonstrar uma dessas faces, o multiculturalismo.
A questão multicultural está presente na maioria dos países formados
por uma população heterogênea, por instituições democráticas e atingi-
ANTROPOLOGIA JuríDica, MULTICULTURALISMO E dos pelas consequências desastrosas dos processos de globalização
RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL hegemônica. Esses países apresentam minorias fortemente discrimina-
das e exploradas, que carregam o peso da colonização, da tentativa de
A Antropologia Jurídica tem se caracterizado como uma área do co- assimilação forçada, de incorporação ao cenário nacional e da superiori-
nhecimento importante na atualidade. O acelerado processo de globalização dade de uma cultura dominante, que considera todos os homens como
que atravessa o mundo gera novos marcos de regulação e novos cenários, “livres e iguais”.
que conectam realidades há muito pouco tempo distantes, mas que acen- De acordo com Santos e Nunes (2003, p. 26), a concepção original do
tuam as diferenças sociais e as tensões étnicas, que fazem emergir o termo multiculturalismo designa a “coexistência de formas culturais ou
multiculturalismo como uma característica extensiva a todas as socieda- de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades
des. É nesse sentido que surge a Antropologia Jurídica, pois ela possibilita modernas”. Pode-se afirmar, no entanto, que o multiculturalismo se tor-
a reflexão de questões como o papel do direito na cultura, bem como sua nou rapidamente um modo de descrever as diferenças culturais em um
inserção em contextos e realidades determinados. contexto transnacional e global. Além disso, afirmam os autores que, ape-
A Antropologia Jurídica, nesse sentido, atua não só em torno do de- sar dessas concepções, o multiculturalismo é um termo associado a pro-
bate sobre a existência do direito nas sociedades primitivas, como se pro- jetos e conteúdos emancipatórios e contra-hegemônicos, baseados em
punha na segunda metade do século XIX e início do século XX. Atual- 7
“ Temas como: família, parentesco, memória, cidadania, ONGs, ecologia, movimentos sociais,
mente ela se desenvolveu para atender novas perspectivas e argumenta- Igreja, extrativismo, masculinidade, violência conjugal, alimentação, cultos afro-brasileiros,
migração, linguagem, viagens, artesanato, trabalho, criança, infância, gravidez, adolescência,
ções que apontam a necessidade de dar conta de novas dimensões sim- habitação, televisão, advogados e juízes, política indigenista e história indígena, loucura,
bólicas e estruturais do direito em toda a sociedade. Segundo Sierra e prostituição, homossexualismo, mulher, religião, escolas de samba, bairros, favelas, mendigos,
afro-descendentes, velhice, raça, etnia etc.
Chenaut (2002, p. 114), para compreender o desenvolvimento desse campo
“As Nações Unidas não formalizaram uma definição de minoria universalmente aceita. O
do conhecimento é necessário analisar os contextos e conjunturas que têm primeiro esforço foi desenvolvido pela Subcomissão para Prevenção da Discriminação e
constituído a Antropologia Jurídica na atualidade. Contemporaneamente, Proteção das Minorias, quando, em 1950, sugeria: 1 - o termo minoria inclui, dentro do
conjunto da população, apenas aqueles grupos não dominantes, que possuem e desejam
novos enfoques, como a crítica à legalidade, outorgando relevância ao preservar tradições ou características étnicas, religiosas ou lingiísticas estáveis, marcadamente
distintas daquelas do resto da população; II - tais minorias devem propriamente incluir um
papel da cultura, do poder e da história, têm possibilitado grandes número de pessoas suficiente em si mesmo para preservar tais tradições e características; e HI
- tais minorias devem ser leais ao Estado dos quais sejam nacionais. Um conceito mais
político de minoria é aquele que descreve tais grupos como formado de cidadãos de um
Estado, constituindo minoria numérica e em posição não-dominante no Estado, dotada de
características étnicas, religiosas ou lingúísticas que diferenciam daquelas da maioria da
“1
Segundo Todd Gitlin, citado por Torres (2001, p. 202), o termo multiculturalismo é elástico
uma mistura de fatos e valores, atual justamente por ser bastante vaga para servir a muitos população, tendo um senso de solidariedade um para com o outro, motivado, senão apenas
interesses, Os partidários podem usar o termo para defender o reconhecimento da diferença implicitamente, por uma vontade coletiva de sobrevivere cujo objetivo é conquistar igualdade
ou para resistir a políticas e idéias impostas pelos conquistadores, ou para defender o com a maioria, nos fatos e na lei. Novamente estão presentes critérios objetivos e subjetivos,
cosmopolitismo — o interesse e o prazer que cada um possa ter dentro das diferenças do além da introdução de elemento político: nacionalidade ou cidadania do Estado (SEGUIN,
gênero humano. 2002, p. 9).

94 95
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 5

lutas pelo reconhecimento da diferença. Assim,


esses povos e às suas manifestações culturais.
No caso do Brasil, é possível afirmar que sempr
A idéia de movimento, de articulação de diferenças, de emergência e existiram conflitos
interétnicos, entre as próprias tribos indígenas,
de configurações culturais baseadas em contribuições de experiências por exemplo, na tentativa
de impor hegemonia umas às outras. Nesse sentid
e de histórias distintas tem levado a explorar as possibilidades o, assevera Darcy Ribei-
ro (1996, p. 168) que “a situação muda comp
emancipatórias do multiculturalismo, alimentando os debates e ini- letamente quando entra
nesse conflito um novo tipo de contendor, de
ciativas sobre novas definições de direitos, de identidades, de Justiça caráter itreconciliável, que
é o dominador europeu e os novos grupos humanos
e de cidadania (SANTOS; NUNES, p. 33). que ele vai aglutinando,
avassalando e configurando como uma macro
etnia expansionista”. Per-
cebe-se, então, já no princípio da história
Nas palavras de Charles Taylor (1997, p. 83), “todas as sociedades da colonização brasileira, a im-
posição e a opressão de uma cultura que se queria
estão a tornar-se cada vez mais multiculturais e, ao mesmo hegemônica, assentan-
tempo, mais do e definindo os contornos do que hoje ainda
permeáveis” , Tudo isso conduz à questão da imposição de algumas persiste: a necessidade de
cul- afirmação da identificação étnica e cultural dos
turas sobre outras. E, “considera-se que, neste aspecto, as sociedades libe- grupos formadores do
povo brasileiro.
rais do Ocidente são extremamente culpadas, em parte devido ao pas-
O processo de universalização cultural no Brasil
sado colonial, em parte devido à marginalização de segmentos de sua , iniciado pelos euro-
peus quando da sua chegada na “ilha Brasi)”, e que
população oriundos de outras culturas” (TAYLOR, 1997, p. 84).
otiginou o brasileiro, é
fruto de vários conflitos, como analisa Ribeiro (1996,
D'Adesky (2005, p. 198) chama a atenção pata a diferenciação entre p. 30):
pluralismo cultural e multiculturalismo, assegurando que o pleno reconhe-
Esse conflito se dá em todos os níveis, predominan
cimento da igualdade e da cidadania, associado ao tratamento igual de tesmente no biótico,
como uma guerra bacteriológica travada pelas pestes que
grupos étnicos que possuem uma cultura diferenciada é a base para uma o branco
trazia no corpo e eram mortais Para as populações
política multicultural e não de pluralismo cultural. Conforme o autor, “o indenes. No
ecológico, pela disputa do território, de suas matas.e riquez
pluralismo cultural não abarca necessariamente a política de as para
tratamento outros usos. No econômico e social, dela escravização
em pé de igualdade das diferentes culturas que se encontram num dado do índio, pela
mercantilização das relações de brodução, que articu
território geográfico” (p. 199); já o multiculturalismo possui a tendência lou os novos
mundos ao velho mundo enropen como provedores de gênero
de reconhecer a igualdade de valor intrínseco de cada cultura. s excóti-
cos, cativos e ouros. No plano ésnico-cultural, essa Hransf
À luta multicultural está enraizada no processo histórico de formação iguração se
dá pela gestação de mma etnia nova, que foi unificando,
dos países americanos, que passaram por um processo de conquista e na língua e
nos costumes, os índios desengajados de sen viver gentíli
colonização, seguido de uma política de assimilação forçada e de elimina- co, os negros
trazidos de África, e os europeus aqui querenciados
ção da identidade dos povos que habitavam as terras “descobertas”. .
Após o desaparecimento de grande parte da população indígena brasilei- Reafirmando a existência de uma política assimilaci
ra e da verdadeira segregação dos povos e culturas ditas “diferentes”, onista e universalista
no Brasil, Carlos Frederico Marés de Souza Filho
surge a consciência de que deve haver o reconhecimento e o respeito a (2003, p. 78), discorren-
do a respeito da criação dos Estados nacionais
latino-ameticanos, alerta
que esta se deu com a redação de uma Const

ituição que assegurava um
n
“A permeabilidade significae que as Vo sociedades estão
- . a ON tol de direitos e garantias individuais, restando aos
são mais os membros
mais teceptivas à migração multinacional: índios a possibilidade
cujo centro se situa noutra parte qualquer, que passaram a conhecer de integração como indivíduo, como cidadão,
uma vida de diáspora” (TAYLOR, 1997, p. 83). ou seja, como sujeito indi-
“ «Pensa-se que desde 1492 os europeus têm vindo a projetar desses povos uma
seres um tanto inferiores, “incivilizados”, e que, através da conquista e da força, imagem de % . . .
impô-la aos povos colonizados” (TAYLOR, 1997, p. 46).
conseguiram “Macroetnia, plano acima das etnias, Povo que vê ns ;
a si mesmo como ente singular .
demais e que aspira autocomando de seu destino frente aos
” (D'ADESKY, 2005, p. 35).

96 97
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA Caríruro 5

vidual de direitos. Conforme o referido autor, de liberdade e igualdade de todos os indivíduos, o que ocorre é a cegueira
do Estado diante da diferença, dos direitos coletivos de grupos que me-
“As políticas públicas e as leis, porém, se propuseram durante mui- recem atenção e respeito.
tos anos a cumprir essa vontade dos Estados nacionais: integrar os Santos (2002, p. 47) analisa o papel do Estado-Nação ao tratar da
povos como cidadãos, sujeitos de direito, capazes de negociar juridi- questão cultural, que em sua opinião vem desempenhando um*papel
camente, sem reconhecer seus direitos coletivos. Nesta perspectiva, o ambíguo, colaborando para a homogeneização e uniformidade cultural:
genocídio continnou, e cada tentativa de integração desses povos sig-
nificon a continnação do estado de guerra imposto quando da che- Enquanto, externamente, têm sido os arautos da diversidade cul.
gada dos exropens. Os povos perdiam não só a visibilidade, mas a tural, da autenticidade da caltra nacional, internamente, têm pro-
própria vida (2003, p. 78). movido a homogeneização e a uniformidade, esmagando a rica vari-
edade de culturas locais existentes no território nacional, através do
Dessa forma, os direitos garantidos pelas Constituições dos Estados poder da polícia, do direito, do sistema educacional ou dos meios de
nacionais apenas serviam dos sujeitos individuais, detentores de proprie- comunicação social, e na maior parte das vezes por todos eles em
dade”, Aos índios que aqui viviam eram aplicadas políticas de integração, conjunto (SANTOS, 2002, p. 47-48).
reforçando que sua situação como indios” deveria ser temporária. Exem-
plo disso é a própria Lei Indígena nº 6.001, de 1973, que em seu attigo A questão da dignidade adquire importância fundamental na análise
1º “regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades do reconhecimento da identidade das minorias excluídas. É necessário,
indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, pro- porém, que o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento da
gressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional” (SOUZA FILHO, República Federativa do Brasil e garantido pela Constituição Federal de
2003, p. 79). 1988 em seu artigo 1º, III, seja garantido também ao indivíduo enquanto
À formação étnica brasileira, assim como a dos outros países latino- componente de um grupo cultural específico, caracterizando a importân-
americanos, é muito rica e variada. Apesar desse fato, os povos ditos cia da dignidade para essa coletividade. À luta pelo reconhecimento e
“diferentes” encontram muitas dificuldades no reconhecimento e na-va- pelo respeito às diferenças faz parte de um ideal democrático mais am-
lorização de sua identidade cultural, peculiar e imensamente importante plo, saindo da esfera individual para abarcar a esfera coletiva e ir em busca
para a concretização dos ideais de proteção do meio ambiente e para a da ampliação do espaço público.
sobrevivência física desses povos. Essa multiplicidade étnica e cultural é O debate acerca da dignidade humana traz outra questão fundamen-
por vezes ignorada pelo Estado, que se mostra ineficiente no desenvolvi- tal, exposta por Boaventura de Sousa Santos, que é o de saber como
mento de políticas públicas em prol desses grupos. Em nome da garantia tornar mensuráveis as exigências de dignidade humana formuladas em
linguagens distintas, que possuem sua própria concepção de direitoe jus-
? “Assim, aquele indivíduo que lograsse amealhar algo, formando uma propriedade, passaria
a ser integrado ao sistema, ao passo que todos os outros não se integrariam jamais, continuando
tiça, por exemplo (SANTOS; NUNES, 2003, p. 63). A cultura diferenci-
a ser índios, quilombolas, pescadores, ribeirinhos, seringueiros, pequenos posseiros, vivendo ada dos povos indígenas confirma a existência de concepções de direito e
da extração, da coleta, da caça, da pesca, da pequena agricultura de subsistência, mantendo
fortes relações com a comunidade para viver e não raras vezes, enquanto longe do contato da justiça muito diferentes das sociedades ocidentais, existindo regras inter-
civilização, vivendo com fartura e felicidade, mas sob permanente ameaça, porque sc estivessem
sobre terras boas ou sobre alguma riqueza vegetal ou mineral economicamente viável, passariam
nas que devem ser respeitadas por todos os membros do grupo e, da
a ser objeto da cobiça, do engano e da desintegração” (SOUZA FILHO, 2003, p. 77). mesma forma, julgamentos e punições conforme regras próprias para
“8 . . . ,
Tramita no Congresso Nacional desde 1991 o novo “Estatuto das Sociedades Indígenas”, quem não segue o Direito interno,
cuja proposta é adaptar-se aos preceitos constitucionais que garantem direitos coletivos-nos
povos indígenas. A garantia de direitos e o respeito às comunidades tradicionais e suas
4%
Para tanto, entenda-se o conceito de meio ambiente englobando seus elementos naturais, manifestações, regras de auto-organização, crenças, modos de vida, são
artificiais e culturais.

98 99
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 5

fundamentais para que o princípio da dignidade da pessoa humana seja


Quando acontece a interação, um indivídno pode sentir
respeitado também quando se refere a essas comunidades, tão dignas de que sna
anto-imagem retransmitida pelo outro — por meio
consideração e tão merecedoras de dignidade quanto todos os “cida- de palavras,
atitudes, comportamentos —- é uma imagem
dãos” do. Estado. desvalorizante,
discriminatória, om até agressiva. Esta experiência pode
perturbar
O sujeito e instalar no âmago de sua identidade uma dúvida
IDENTIDADE, DIFERENÇA E RECONHECIMENTO
sobre o
sex real valor e o valor das metas que ele estabeleceu para
si mesmo,
“Éestaa grande queixa das minorias contra a maioria monocu
ltural
Identidade, para Charles Taylor (1997, p. 45), é “a maneira como uma (1999, p. 105).
pessoa se-define, como é que as suas características fundamentais fazem
dela um ser humano”. E a respeito da formação da identidade, acrescen- Na visão de Charles Taylor (1997, p. 47), existe
uma política de reco-
ta o autor: nhecimento igualitário, introduzida pela democracia
e que se baseia na
exigência de um estatuto igual paras as diversas cultur
as. À própria impor-
A tese consiste no fato de a nossa identidade ser formada, em parte, tância do reconhecimento, contudo, modificou-se a
partir de novas com-
pela existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes, preensões, como a da idéia de identidade individualizada
, surgida a partir
pelo reconhecimento incorrecto dos outros, podendo uma pessoa ou do final do século XVIII. A identidade individual
izada é aquela que cada
grupo de pessoas serem realmente prejudicadas, serem alvo de uma set descobre em si mesmo, sendo verdadeiro com
sua própria originali-
verdadeira distorção, se aqueles que os rodeiam reflectirem uma dade. E é com base nessa idéia que se torna possív
el entender o ideal
imagem limitativa, de inferioridade on de desprexo por eles mesmos moderno de autenticidade e os objetivos de auto-
realização que acolhem
(1997, p. 45). este ideal.
Castells (2001, p. 22) entende por identidade a
fonte de significado e
Comoé possível perceber, a política de reconhecimento é fundamen- de experiência de um povo. É “o processo de const
rução de significado
tal para Charles Taylor, pela sua capacidade de formar a identidade do com base em um atributo cultural, ou ainda um
conjunto de atributos
indivíduo. E o não-reconhecimento ou reconhecimento incorreto, pot culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(
m) sobre outras fontes
sua vez, também tem o poder de afetar as pessoas (negativamente), po- de significado”.
dendo constituir-se até em formas de agressão. De acordo com o autor, O autor chama a atenção para a diferenciação entre
a identidade e os
“Perante estas considerações, o teconhecimento incorreto não implica só papéis desempenhados pelos indivíduos na sociedade. Enqua
uma falta do respeito devido. Pode também marcar as suas vítimas nto os pa-
de péis (trabalhador, pai, mãe, sindicalista, jogad
or de basquete, por exem-
forma cruel, subjugando-as através de um sentimento incapacitante de plo) são definidos por normas das instituições
e organizações sociais, as
ódio contra elas mesmas. Por isso, o tespeito devido não é um acto de identidades são originadas pelos próprios atores
sociais e são construídas
gentileza para com os outros. É uma necessidade humana vital” (1997, p. por meio de processos de individuação. Embora
as identidades possam,
46). algumas vezes, ser formadas por instituições
dominantes, isso ocorte
Confirmando a teoria do não-reconhecimento de Charles Taylor,
Semprini (1999, p. 105) acrescenta que as experiências da diferença e do 2 “Percebe-se, ainda, que os papéis são aprendi
dos, mas podem ser revistos; podem ser
encontro com o outro, apesar de-se constituírem em condição de emer- perdidos, tirados e mesmo abandonados;
a pessoa pode variar, modificar e redefinir
existem papéis relacionados a outros papéis (ex.: papéis,
o
gência da identidade, também podem tornar-se experiências difíceis. Para relacionamento consiste de diversos papéis, ou seja, papel do filho implica um pai) e todo
verdade, nenhum papel é desempenhado sozinho em suma, os papéis são dinâmicos. Na
o autor: nem de forma exclusivamente protagônica,
vez que todos os papéis são complementares ante
sua
em um ambiente humano. Assim, o modo de ser de situação de unidade de ação realizada
exerceu como protagonista e como co-autor, além um indivíduo decorre dos papéis que
do que colheu com as próprias respostas'
dessas interações” (CUNHA, 2004, p. 48).

100 107
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 5

porque os indivíduos internalizam esse desejo de construir sua identidade reconhecimento. Para ele:
a partir dessas instituições (CASTELLS, 2001, p. 23).
Desse modo, é possível afirmar que toda e qualquer identidade é A emergência de uma minoria depende não somente do fato, para o
construída e a questão é definir como, porque, por quem, a partir de que grupo em questão, de chegar a se perceber como uma “minoria”, ou
ocorre essa construção. Essa construção parte de matéria-prima fornecida seja; como suma formação social apresentando suficientes traços co-
pela Antropologia, História, pela Geografia, pela Biologia, pelas institui- muns para adquirir homogeneidade e uma visibilidade interna aos
ções, pela memória coletiva, por desejos e fantasias pessoais, por crenças olhos de sens membros, mas igualmente pelo fato de conquistar uma
religiosas, entre outros fatores, e seus conteúdos são processados e reor- visibilidade externa e chegar a ser percebido como “minoria” pelo
ganizados pelos indivíduos ou pela sociedade em função de sua vida e de espaço social circundante (1999, p. 59).
sua cultuta (CASTELLS, 2001, p. 23).
A respeito da identidade nacional ou cultural, Jayme Paviani (2004) Jacques d'Adesky (2005, p. 192) vê no reconhecimento dos negros e
explica que a identidade de um povo ou de uma cultura aponta para um índios pelo Estado uma afirmação do pluralismo étnico, imprescindível
conjunto de costumes, comportamentos, valores, obras e para elementos para que se tenha uma idéia adequada da importância das diferentes etnias
socioculturais, como a língua e a religião. Alerta o autor, porém, que o e do respeito às suas diferenças. Para ele:
conceito de identidade nacional pode se tornar um instrumento equivoca-
do da realidade cultural de um povo, uma vez que toda identidade é O reconhecimento da existência de um pluralismo étnico, imbuído
constituída sobre a diferença. Dessa forma, na procura da identidade não do reconhecimento adequado da imagem dos grupos étnicos pelo .
se pode esquecer as diferenças. Mesmo que em relação aos seres humanos Estado, teria também efeitos deletérios sobre o discurso universalista
exista algo de comum, como os direitos fundamentais, por exemplo, as dominante, baseado na idéia da fusão das raças e na assimilação
diferenças entre eles devem ser admitidas (PAVIANI, 2004). por todos da cultura enropéia supostamente superior. Tal reconhe-
À questão da diferença é também fundamental para o multiculturalismo cimento adequado da imagem dos grupos negros e indígenas iria sem
e está no cerne das discussões acerca da identidade e cabe aqui abordá-la. dúvida contra o desejo daqueles que cultivam o ideal de
A diferença é processo humano e social, também fruto do processo his- homogeneização racial e que acreditam nas virtudes da assimilação
tórico e constitui ao mesmo tempo um resultado e uma condição transi- cultural como soluções para diluir as diferenças e as desigualdades
tória. É resultado quando se considera o passado e privilegia-se o proces- socioeconômicas (2005, p. 192).
so que resultou em diferença, e é uma condição transitória quando se
privilegia a continuidade da dinâmica, que irá constituir uma configuração Pode-se considerar a teoria de Charles Taylor acerca da identidade e
posterior (SEMPRINI, 1999, p. 58). das políticas de reconhecimento como uma das principais colaborações
Woodward (2005, p. 39) argumenta que “as identidades são fabricadas para a defesa do reconhecimento diferenciado de grupos minoritários e
por meio da marcação da diferença” e que “essa marcação da diferença excluídos, que não são atingidos ou beneficiados pelo respeito à dignida-'
ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto de da pessoa humana promovido pelos ideais universalistas e igualitários
por meio de formas de exclusão social”. A identidade, então, não é o e pelo ideal de democracia, em que todos os indivíduos são considerados
oposto da diferença, mas depende dela, na medida em que a diferença “livres e iguais”. Conforme o autor, a identidade pressupõe que cada ser
separa uma identidade da outra. humano possui características próprias, que são formadas e negociadas
Com base na diferença, Semprini (1999, p. 59) afirma que o nas relações com os outros, dando ao reconhecimento dessa identidade
multiculturalismo lança a problemática do lugar e dos direitos das mino- uma importância fundamental.
tias em relação à maioria, discutindo a questão da identidade e de seu Baseado em Herder, que afirma que cada ser humano tem a sua ma-

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CapiruLo 5

neita original de ser, sua própria medida, Charles Taylor (1997, p. 50) onde o grupo se reproduz social e economicamente; pela ocupação do
explica que “Antes do final do século XVIII, ninguém havia pensado que mesmo território por várias gerações; pela importância das atividades de
as diferenças entre seres humanos pudessem assumir este tipo de impor- subsistência, mesmo que em algumas comunidades a produção de mer-
tância moral. Existe uma determinada maneira de ser humano que é a cadorias esteja mais ou menos desenvolvida; pela importância dos sím-
minha maneira. Sou obrigado a viver a minha vida de acordo com essa bolos, mitos e rituais associados as suas atividades; pela utilização de
maneira, e não imitando a vida de outra pessoa”. tecnologias simples, com impacto limitado sobre o meio; pela auto-iden-
É essa maneita própria e original de ser, com uma identidade única e tificação ou pela identificação por outros de pertencer a uma cultura dife-
diferenciada, que não deve ser oprimida e assimilada, devendo set reco- renciada, entre outras (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 27).
nhecida e respeitada, que constitui os fundamentos dos ideais do O princípio 22 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992 estabelece
multiculturalismo e que quer introduzir uma nova concepção na busca que:
pelo respeito à dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos e a
todos os aspectos que esse respeito englobaria. As populações indígenas e suas comunidades, bem como ontras co-
munidades locais, têm papel fundamental na gestão do meio ambi-
CONCEITO DE COMUNIDADES TRADICIONAIS: O QUE E QUEM ente e no desenvolvimento, em virtude de seus conhecimentos € práti-
SÃO? cas tradicionais. Os Estados devem reconhecer e apoiar de forma
apropriada a identidade, cultura e interesses dessas populações e
Antonio Carlos Diegues e Rinaldo Arruda (2001, p. 27) definem po- comunidades, bem como babilitá-las a participar efetivamente da
promoção do desenvolvimento sustentável,
pulações tradicionais como:
Percebe-se, a partir desse princípio, o reconhecimento e a importância
Grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural, que
das comunidades tradicionais e de seus conhecimentos para o meio am-
reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou
biente. Em virtude, porém, dos interesses econômicos, do desrespeito à
menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias
identidade e cultura desses povos e da falta de proteção legal aos seus
com a naíureza. Tal noção refere-se tanto a povos indígenas quanto
a segmentos da população nacional, que desenvolveram modos par- conhecimentos e territórios, a sobrevivência e os propósitos de conserva-
Hiculares de existência, adaptadosa nichos ecológicos específicos. ção ficam à mercê da exploração de multinacionais, interessadas na rique-
za da biodiversidade nacional e dos conhecimentos que essas comunida-
Derani (2002, p. 153) reconhece cinco elementos identificadores de des possuem, obtidos em sua vivência e interação com os ecossistemas,
uma comunidade tradicional: “1. propriedade comunal;2. produção vol- bem como aos modelos de desenvolvimento econômico característicos e
tada para dentro (valor de uso); 3. distribuição comunitária do trabalho definidores da sociedade atual.
não assalariado; 4. tecnologia desenvolvida e transmitida. por processo A Medida Provisória 2.186-16/2001” define “comunidade local” como
comunitário, a partir da disposição de adaptação ao meio em que se esta- “grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos,
belecem; 5. transmissão da propriedade, conhecimento, pela tradição co-
distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente,
munitária, intergeracional”. ' por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas institui-
As comunidades tradicionais caracterizam-se pela dependência em te- ções sociais e econômicas”.
lação aos recursos naturais com os quais constroem seu modo de vida; Como importante elemento na relação entre as populações tradicio-
pelo conhecimento aprofundado que possuem da natureza, que é trans- 51 . Vora . no a
A Medida Provisória nº 2.186-16/2001 dispõe sobre o acesso ao patrimônio ns
genético, a
mitido de geração a geração oralmente; pela noção de território e espaço proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o.
acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização.

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 5

nais e a natureza está a noção de território para essas populações. O ter- de diferenciada dos demais membros da população nacional. Além deste
titório é que fornece os meios de subsistência, os meios de trabalho e reconhecimento, o reconhecimento dos “outros” (conforme a teoria de
produção, os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais. Charles Taylor) também influencia no próprio reconhecimento do grupo
“Além do espaço de reprodução econômica, das relações sociais, o ter- tradicional, incentivando a luta pela afirmação de sua identidade cultural
titório é também o /ocus das representações e do imaginário mitológico específica (TAYLOR, 1997, p. 53).
dessas sociedades tradicionais” (DIEGUES, 2001, p. 85). Neste Jocus “es- A capacidade que as comunidades tradicionais possuem des se relacio-
tão inscritas as mais básicas noções de autodeterminação, de articulação nat com um meio ecológico complexo, identificando, por exemplo, as
sociopolítica, de vivências e crenças religiosas, para não falar na própria diferenciações na fauna e na flora, as diversas espécies existentes, suas
existência física do grupo” (RAMOS, 1986, p. 20-21). formas de vida € funções, pode ser considerada prova do pattimônio
A noção de território possibilita o desenvolvimento das diversas ptá- cultural, graças a um saber prático que valoriza e preserva os ecossistemas
ticas sociais, indispensáveis para a vida na comunidade. O território é e que muitas vezes é visto como práticas improdutivas pelas sociedades
também o espaço do convívio social, onde a cultura, a religião, os rituais modernas (CASTRO, 2000, p. 166). '
e a organização social têm suas bases. Conforme Ramos (1986, p. 19), Ao mesmo tempo em que retiram da natuteza os recursos necessários
embora os povos indígenas tenham a noção de território, isso não signifi- para seu sustento, esses grupos tradicionais preservam os ecossistemas,
ca que não possa haver acesso entre as sociedades vizinhas e até mesmo a respeitando seus ritmos de renovação e equilíbrio. Conforme Castro (2000,
busca de locais mais apropriados para o cultivo das roças, a coleta e à p. 167), “nas sociedades ditas “tradicionais” e no seio de certos grupos
pesca em determinada época e de conformidade com as necessidades do agroextrativos, o trabalho encerra dimensões múltiplas, reunindo elemen-
grupo. Para a autora (1986, p. 19) tos técnicos com o mágico, o ritual, enfim, o simbólico”.
É com base no sistema de representações, símbolos e mitos que as
Ux dos temas de conversa mais recorrentes entre pessoas da mesma populações tradicionais constroem suas ações sobre o meio em que vi-
aldeia ou de aldeias diversas é o estado geral e particular do terri- vem. Alguns povos acreditam, por exemplo, que existem entes mágicos
tório: trocam-se notícias e anedotas sobre caçadas, abundância ou que castigam os que destroem as florestas, maltratam os animais ou pes-
escassez deste ou daquele produto, o processo no amadurecimento cam mais do que o necessário (DIEGUES, 2001, p. 28). Dessa forma,
deste on daquele fruto, as idas e vindas destes on daqueles morado- associando mitos, símbolos e até mesmo explicações religiosas, as popu-
res desta ou daquela aldeia, os sustos e as recompensas que a mata lações tradicionais criam uma relação de respeito pelos ciclos naturais,
pode trazer, os aspectos extranaturais on sobrenatmrais da floresta garantindo também sua sustentabilidade e mantendo viva a sua cultura,
ou dos rios ou das montanhas, como, por exemplo, o encontro oca- Diegues e Arruda (2001, p. 28) diferenciam as populações tradicionais
sional com espíritos na mata, e muitos outros assuntos que revelam indígenas daquelas tradicionais não-indígenas. Para eles, a identidade dos
a inquestionável importância do ferritório, não apenas como o stts- povos indígenasé definida de forma mais clara que a identidade da po-
tentáculo físico dessas populações, mas também — e principalmente pulação não-indígena, pois aqueles têm reconhecidos o direito histórico a
— como uma realidade socialmente construída, elaborada e intensa- seus territórios quando do estabelecimento de áreas indígenas no Brasil, A
mente vivida, história sociocultural dos indígenas é anterior e distinta das demais popu-
lações tradicionais (embora suas formas de reprodução tenham sido de-
Além das características já referidas, um dos elementos mais impor- pendentes e articuladas com a sociedade nacional), além de possuírem
tantes pata a caracterização de uma comunidade tradicional é o fato de os línguas próprias, diferentes do português. Apesar dessa diferenciação,
integrantes do grupo reconhecerem-se como tais, como membros de
porém, o conceito que reconhece as populações tradicionais como gru-
uma cultura singular, um grupo social particular, que possui uma identida-
pos humanos que possuem cultura diferenciada, com relações baseadas

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CapiruLo 5

na cooperação social c em formas próprias de tratar a natureza, é apro- A valorização e o respeito aos indígenas, quilombolas, caiçaras,
priado para caracterizar ambos os grupos de populações tradicionais: os babaçueitos e demais povos detentores de saberes tradicionais e que
de-
indígenas e os não-indígenas. pendem diretamente da natureza para viver, pode partir também do te-
As populações tradicionais não-indígenas descritas por Diegues e conhecimento às formas de manejo que desenvolvem. Essas formas res-
Arruda são as seguintes: açorianos, babaçueiros, caboclos/ribeirinhos peitam o ritmo da natureza, como o fato de exercerem a pesca na
época
amazônicos, caiçaras, caipiras /sitiantes, campeiros (pastoreio), jangadei- adequada e, quando há cheias ou piracema, buscarem outra forma
de
tos, pantaneiros, pescadores artesanais, praieiros, quilombolas, sertane- subsistência, como a pequena agricultura e o extrativismo vegetal,
jos/vaqueiros, varjeiros (DIEGUES e ARRUDA, 2001, p. 29). Como todas as populações tradicionais dependem dos recursos natu-
As populações indígenas constituem um exemplo muito expressivo tais para a sobrevivência familiar, medidas ecológico-sustentáveis são fun-
de comunidade tradicional existente no Brasil. São cerca de 220 socieda- damentais no desenvolvimento das atividades dessas populações. Diante
des indígenas culturalmente diferenciadas, que falam em torno de 180 -da necessidade de preservação ambiental e da intensa degradação a que o
línguas e que desenvolveram formas de adaptação aos ecossistemas pre- mundo assiste, políticas públicas em prol das populações tradicionais de-
sentes no território nacional. Conforme Diegues e Arruda (2001, p. 29): vem ser priorizadas.
Expulsar as populações de seus locais de origem (como ocorre nos
Ainda hoje, a qualidade de ocupação indígena deve ser enfatizada. modelos de unidades de conservação integral, por exemplo), onde vêm
Suas áreas, em geral são as de cobertura florestal mais preserva- desenvolvendo sua cultura e lutando pela sua sobrevivência há gerações,
da, mesmo nos casos em que a devastação ambiental tenha se ex- recolocando-os em áreas que não oferecem condições de manutenção e
pandido ao seu redor. Isso explica também as situações de que não permitem a continuidade de seu modo de vida tradicional, ape-
envolvimento de povos indígenas em processos de extração nas colabora para a sua marginalização e empobrecimento,
ambientalmente predatórios (madeira, minérios). Baseados em for-
mas socioculturais que restringem a ampliação desmesurada do uso
COMUNIDADES TRADICIONAIS, SUSTENTABILIDADE E A
dos recursos naturais assim como a acurenlação privada, esses povos
desenvolveram profundo e extenso conhecimento das características PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO BIOLÓGICO E CULTURAL
ambientais e possibilidades de manejo dos recursos naturais nos
territórios que ocupar, A sustentabilidade do desenvolvimento e, por conseguinte, a
sustentabilidade ambiental, requerem a consideração das necessidades
Apesar de os povos indígenas terem reconhecidos constitucionalmen- socioambientais, características dos países pobres e que devem constituir
te o direito à identidade cultural e direitos originários às terras que ocu- as bases para um novo processo de afirmação do paradigma da
pam, Diegues e Arruda (2001, p. 53) asseveram que sustentabilidade, Dessa forma, a proteção da biodiversidade , assim como
a preservação da sociodiversidade, com suas manifestações culturais e sua
o Estado não tem cumprido esse papel legal de proteção às áreas importância na interação com o meio, em que vivem, garantiram um
indígenas; mesmo as totalmente regularizadas, na sua maior parte, novo estilo de desenvolvimento ambiental, cultural, social, ética e politica-
sofrem invasões de garimpeiros, mineradoras, madeireiras epossei- mente sustentável,
ros; -são cortadas por estradas, ferrovias, linhas de transmissão, À transformação ocorrida entre a relação sociedade/natuteza produ-
inundadas por usinas hidrelétricas e outros impactos decorrentes de
projetos económicos da iniciativa privada e projetos desenvolvimentistas “A definição do termo diversidade biológica ou biodiversidade pode ser extraída do artigo
2º da Convenção sobre a Diversidade Biológica: Diversidade biológica significa as variabilidades
governamentais. de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, denrrte outros, os ecossistemas
terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem
parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas.

708 “109
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA Cariruro 5

ziu significativas modificações também no que se relaciona com a A efetiva construção de um novo modelo de desenvolvimento dese-
sociodiversidade. Assim como a natureza se transformou, à cultura tam- jável e necessário colocaria, segundo Henri Acselrad (2001, p. 93), a cida-
bém foi se moldando ao longo da história da humanidade. Dessa forma, dania como condição essencial. Dessa forma, a prioridáde do desenvol-
o valor da sociobiodiversidade pode ser entendido de diversos modos, vimento de políticas públicas reconhecendo as especificidades regionais
conforme a época em que está inserida. dos territórios e das culturas; o desenvolvimento de um modelo agrícola
Para as comunidades tradicionais, por exemplo, a valoração da que preserve a fertilidade dos solos e respeite a biodiversidade, um pa-
sociobiodiversidade está relacionada à sobrevivência material, à preserva- dtão energético baseado em fontes alternativas seriam alguns dos meios
ção dos costumes, da língua e toda herança cultural deixada por seus possibilitadores dessa construção (ACSELRAD, 2001, p. 94). '
antepassados. Além disso, os símbolos, mitos e atributos sagrados são Um tal desenvolvimento “apoiar-se-ia nas possibilidades “oferecidas
característicos do modo de vida tradicional e de sua intrínseca relação pela variedade de biomas, ecossistemas e demais configurações territoriais,
com o meio em que vivem. Em contrapartida, para a sociedade ociden- ou seja, na diversidade de saberes dos sujeitos sociais que se referenciam a
tal, a sociobiodiversidade é vista como um objeto de pesquisa, matéria- esses territórios” (ACSELRAD, 2001, p. 95). Mais uma vez o respeito às
prima para a indústria, fonte de impulsos tecnológicos e científicos, en- potencialidades e à riqueza ambiental e cultural do país poderia conduzir
fim, com finalidades que importam para a economia e mercado. a novas ações e políticas governamentais, por meio de projetos que pos-
O processo de modernização responsável pelo desenvolvimento das suam bases democráticas, que visem às garantias constitucionais das mi-
sociedades ocidentais e pelo degradante processo de transformação da notias étnicas e da coletividade, que concretizem o direito fundamental a
relação sociedade/natureza é o condutor da transformação e apropria- um meio ambiente ecologicamente equilibrado, enfim, que priorizem o
ção ocorrida em relação à sociobiodiversidade. Percebe-se uma perda ser humano na mais ampla garantia de sua dignidade.
generalizada: da diversidade cultural, da biodiversidade, da soberania dos O que tem chamado especial atenção no que respeita às comunidades
povos em nome da soberania econômica dos países ricos, da tradicionais é sua estreita ligação com a preservação da biodiversidade,
plurietnicidade. uma vez que a perda da diversidade ameaça também a sobrevivência
Estabelece-se, então, a relação entre uma sociedade que busca a cultural desses grupos, sendo possível afirmar que a destruição de
hegemonia e a apropriação do saber, de um lado, e a proteção aos-sabe- ecossistemas e a perda global da diversidade biológica podem conduzir a
res locais e tradicionais, de outro. À sociedade que busca hegemonia pre- uma perda maciça de diversidade cultural (HELENE,; BICUDO, 1994).
tende impor suas próprias leis sobre propriedade intelectual, por meio de “As diversidades biológica e cultural estão intimamente relacionadas entre
acordos bilaterais e multilaterais, rumo à apropriação e mercantilização si, ao mesmo tempo em que ambas são condição essencial para uma
dos conhecimentos tradicionais, do patrimônio genético e da maior sustentabilidade global” (HELENE,; BICUDO, 1994, p: 31).
biodiversidade. “A biodiversidade não simboliza apenas a riqueza da natureza; ela in-
Dessa forma, percebe-se nos países pobres a transformação cultural corpora diferentes tradições culturais e intelectuais” (SHIVA, 2001, p. 146).
das comunidades e a perda da biodiversidade em virtude do caráter Para Shiva, existem dois paradigmas conflitantes da biodiversidade, que é
utilitarista da sociobiodiversidade para os países ricos. Essa perda/apro- exacerbado pela emergência de novas biotecnologias e normas legais para
priação requer proteção legislativa eficiente e discussão em torno das suas o controle monopolista da vida. O primeiro paradigmaé mantido pelas
consequências e impactos para as comunidades tradicionais e para a soci- comunidades locais, que dependem da biodiversidade para sua
edade mundial. À necessidade de preservação da existência física e cultu- sustentabilidade. O segundo é aquele mantido pelos interesses comerciais
ral das comunidades tradicionais, assim como da biodiversidade, abre ligados à utilização da biodiversidade. Assim,
caminho para o reconhecimento e a necessidade de lutas estruturadas em
ideais socioambientais e multiculturais. Para as comunidades indígenas locais, conservar a biodiversidade

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariruLo 5

significa conservar seus direitos aos recursos, conhecimento e siste- cultivos agrícolas, na dieta e em todos os outros atributos da socie-
mas de produção próprios. Para os interesses comerciais, como as dade humana (WRI, UICN, PNUMA, 1992, p. 3).
empresas de biotecnologia farmacêntica e agrícola, a biodiversidade
em si não tem valor, não passa de matéria-prima. Esta produção Shiva (2001, p. 113) argumenta que a conservação da biodiversidade
tem suas bases na destruição da biodiversidade, à medida que os depende do respeito aos direitos das comunidades locais. A alienação
sistemas locais de produção fundados na diversidade são desalojados desses direitos é o caminho para a deterioração da biodiversidade, amea-
pela produção fundada na uniformidade, çando a sobrevivência ecológica e o bem-estar econômico. Segundo a
autora, “a diversidade é a chave da sustentabilidade. É a base
do
À crise.da biodiversidade não se caracteriza apenas pelo desapareci- mutualismo e da reciprocidade — a lei do retorno” que tem como princí-
mento de espécies que servem de matéria-prima aos empreendimentos pio o reconhecimento do direito de todas as espécies à felicidade e ao
empresariais. É uma crise que atinge a sustentação da vida e os meios de não-sofrimento”.
subsistência nos países pobres. E diante dos conflitos surgidos em torno A vida das comunidades tradicionais brasileiras é diretamente afetada
do sentido da biodiversidade, é preciso reconhecer que ela sempre foi um pela destruição da diversidade biológica. O desmatamento, o uso
recurso local comunitário, do qual dependem muitos sistemas sociais que indiscriminado dos recursos, a expansão das fronteiras e a instalação de
o utilizam segundo princípios de justiça e sustentabilidade e reconhecem o projetos de desenvolvimento econômico acabam tirando das comunida-
valor intrínseco da riqueza da biodiversidade (SHIVA, 2001, p. 146). des o direito ao uso e controle dos recursos naturais indispensáveis a sua
Conforme dados do Instituto Socioambiental (ISA), a diversidade sobrevivência. À partir daí, as conseguências serão sentidas tanto na esfera
biológica talvez seja a única esfera que situa o Brasil como o país mais tico ambiental quanto no plano social. A destruição ou diminuição de várias
do planeta..ÀA Amazônia representa a maior área contínua de floresta tro- espécies e de seus hábitats é um dos exemplos de perda resultante desse
pical do mundo, entre 10% e 20% das 1,5 milhão de espécies catalogadas processo. O empobrecimento, a marginalização e até mesmo o desaloja-
de seres vivos. Além disso, o Brasil é extremamente rico no quesito diver- mento das comunidades constitui a outra face do mesmo problema.
sidade de populações tradicionais, possui cerca de 220 povos indígenas, Pode-se reconhecer nas comunidades tradicionais uma capacidade de
além dos povos não-indígenas. auto-organização, que só foi possível graças à riqueza da biodiversidade
Assim,a necessidade atual da adoção de um conceito mais abrangente presente em seus territórios. Quando essa biodiversidade é vista como
de biodiversidade justifica-se pela riqueza de diversidade cultural presente um objeto, fonte de matéria-prima para as multinacionais, além da amea-
nos locais cuja biodiversidade é mais concentrada (Amazônia, Mata Atlân- ça à biodiversidade, ocorre a ameaça à auto-organização das comunida-
tica, no caso do Brasil). Nesse sentido, pode-se afitmar que: des e, consegientemente, uma dependência maior da intervenção estatal,
tanto no desenvolvimento de políticas em benefício dessas comunidades,
A diversidade cultural bumana também pode ser considerada par- quanto na necessidade de proteção jurídica, uma vez que as relações soci-
te da biodiversidade. Tal como a diversidade genética ou de espécies, ais, econômicas e culturais são alteradas e podem modificar o modo de
“alguns atributos das culturas humanas (como o nomadismo ou ro- vida tradicionalmente desenvolvido.
tação de culturas) representam “soluções” aos problemas de sobre- As comunidades tradicionais são detentoras de um conhecimento tico,
vivência em determinados ambientes. E, como outros aspectos da fruto da sua relação diferenciada com a natureza e que constituem uma
biodiversidade, a diversidade cultural ajuda as pessoas a se adapta- manifestação da diversidade cultural brasileira. Essa diversidade faz patte
rem a novas condições. À diversidade cultural manifesta-se pela do patrimônio histórico e cultural de um país que tem na multietnicidade
diversidade de linguagem, de crenças religiosas, de práticas de mane- e na multiculturalidade uma de suas características mais marcantes, Por
jo da terra, na arte, na música, na estrutura social, na seleção de isso, “enquanto objeto produzido e reproduzido nessas sociedades, o -

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ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTuLO 5

conhecimento associado ao meio é um patrimônio que não tem valor de Apesar das tentativas e dos debates que vinham ocorrendo em torno
troca e não é apropriado individualmente. Sua produção, reprodução, da matéria, em julho de 2000 o governo federal brasileiro editou a Medi-
utilização, manutenção é social: um patrimônio da coletividade que dele da Provisória 2.052 para regulamentar o acesso ao patrimônio genético,
necessita e com ele constrói sua existência” (DERANTI, 2002, p. 153). que posteriormente foi substituída pela Medida Provisória 2.186-16, de
Os conhecimentos tradicionais” são fruto de um processo social de 24 de agosto de 2001. Esta MP veio regulamentar o inciso H do $1º eo
aprendizado, de criações, de trocas e desenvolvimentos, transmitidos de $ 4º do artigo 225 da Constituição Federal, os artigos 1º, 8º, alínea “9º,
geração para geração. É possível: admitir a transmissão desse conheci- artigo 10, alínea “c”, artigos 15 e 16, alíneas 3 e 4 da Convenção sobre
mento, mas não a apropriação sob forma de patentes, sem considerar as Diversidade Biológica (DERANI, 2002). Explica Derani (2002; p. 155-
características peculiares que possuem. Assim como foram gerados e trans- 156) que, o
mitidos no decorrer de sua história, também devem ser protegidos como
fruto da história, construção histórica e patrimônio histórico. Assim como AMP disciplina o acesso ao patrimônio genético, o acesso ao conhe- »
a língua, os costumes e as crenças em deuses e seres especiais, os conheci- cimento tradicional associado, a repartição de benefícios adquiridos
mentos tradicionais passaram por um.processo de aprendizado, de expe-. com a exploração do patrimônio genético e do conhecimento tradici-
riência e de descoberta, permitindo a sobrevivência, a cura de diversos onal associado e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia
males, o culto aos tituais, a crença nos mitos, e, sobretudo, a continuidade para sua conservação e utilização. Acessar é apropriar-se. Quando
da vida em comunidade. a norma fala sobre acesso, dispõe sobre a apropriação, em que 0:
Devido à Convenção sobre Diversidade Biológica, uma série de con- sujeito “avessante” torna-se proprietário privado de algo que não é
ceitos e determinações acerca dos recursos genéticos e conhecimentos privativo de ninguém, pois ou pertence a todos (patrimônio genético) ..
tradicionais associados entta em cena, definindo novos valores a setem ou pertence a uma coletividade (conhecimento tradicional associado-
reconhecidos internacionalmente, em nome da preservação da diversida- ao patrimônio genético). Só há propriedade privada se o proprietá- -
de biológica. O reconhecimento pela CDB de que a preservação da di- rio encontrar-se legitimado pela norma jurídica. Ocorre uma apro-
versidade biológica está intrinsecamente ligada aos modos de vida tradici- priação privada originária, em que aquilo que está fora do mercado
onal abre um leque de discussões quanto à importância do respeito e e do sistema privado de propriedade torna-se pela primeira vez
preservação desses modos de vida e de toda riqueza cultural que eles integrante do modo capitalista de produção.
representam.
O trato legislativo que é dado à matéria referente ao patrimônio gené- Assim, é possível questionar, com Derani (2002, p. 157): é constitucio-
tico e conhecimentos tradicionais no Brasil é merecedor de críticas. O nal a inserção de um patrimônio coletivo nas relações privadas de produ-
ponto de partida para a discussão a respeito de direitos intelectuais coleti- ção? É constitucional a transformação da propriedade coletiva em pro-
vos no Brasil foi o reconhecimento da diferença entre as culturas pela priedade privada? É constitucional a modificação de modos de vida tra-
Constituição Federal de 1988, que reconhece como direitos coletivos o dicionais pelas novas relações criadas e pelo sistema de remuneração pre-
direito à sociodiversidade (artigo 215), o direito ao patrimônio cultural visto?
(artigo 216), o direito à biodiversidade (artigo 225). Apesar de haver o reconhecimento de direitos socioambientais na

” Essa Medida Provisória ficou conhecida como a “Medida Provisória da Novartis”, editada
53 : às pressas pelo Executivo para legitimar o acordo de bioprospecção firmado entre a
“O conhecimento tradicional é fruto do reproduzir de uma determinada relação social multinacional Novartis e a organização social BioAmazônia (criada para implementar o:Programa
entre os homens e destes com o meio para a produção de sua existência. Este resultado não de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia, com vistas a
tem valor monetário, não gera mercadoria, o que só ocorrerá quando ingressar como recurso fomentar o desenvolvimento da bioindústria), considerado lesivo por se resumir em vender
no processo produtivo fundado na propriedade privada, tendo na unidade produtiva 0 focus o acesso à matéria-prima genética para indústrias de biotecnologia. Mesmo com os protestos
transformador de recursos privados para a construção da mercadoria” (DERANI, 2002, p. de várias ONGs, da sociedade civil e com o caráter antidemocrático dessa regulamentação, o
152). governo vem reeditando a MP. i

114 115
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CapiTULO 5

Constituição Federal de 1988, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro


NUNES, 2003, p. 64).
um sistema de proteção legal que proteja eficazmente os direitos das co- É é realmente a abertura e a receptividade do tratamento
munidades tradicionais. E a “inexistência de tal proteção jurídica aos co- verdadeita-
mente igual que estão no cerne das reivindicações e das
nhecimentos tradicionais associados à biodiversidade tem gerado as mais lutas dos grupos
minoritários brasileiros, como os negros e os índios. As
diversas formas de espoliação e de apropriação indevida” (SANTILLI, reivindicações
perpassam muitas esferas indispensáveis à sobrevivência
2003). material e cultu-
ral desses grupos e requerem políticas em áreas fundamentais,
como no
sistema educacional, na proteção aos conhecimentos
tradicionais, na ga-
MULTICULTURALISMO, EMANCIPAÇÃO E CIDADANIA tantia dos territórios tradicionalmente ocupados por esses
grupos, na
sustentabilidade material e na sobrevivência física do grupo, entre
outras.
Santos e Nunes (2003, p. 63) afirmam que as políticas de integração À aproximação dos grupos minoritários ao espaço social contribui
na
dos índios na cidadania liberal constituem uma negação dos direitos cole- formação de sua identidade, uma vez que esta, pelo
menos em um dos
tivos destes povos, ensejando a necessidade de políticas emancipatórias e níveis, é também formada pela interação social, Por isso,
uma abertura do
a invenção de novas cidadanias. Os autores, no entanto, reconhecem a espaço social pode colaborar para a afirmação e auto-estima
do grupo,
tensão existente entre a igualdade e a diferença e sua implicação nessas sua conservação existencial e, principalmente, o reconhecimento
de que
lutas, completando: esses grupos são constitutivos da identidade nacional, promovendo
a di-
versidade cultural brasileira.
, A igualdade ou a diferença, por si sós, não são condições suficientes Além da necessária ampliação do espaço social, há que ocorrer
tam-
para uma política emancipatória, O debate sobre os direitos buma- bém uma modificação em seu conteúdo para que as lutas multiculturalistas
nos.e a sua reinvenção como. direitos multiculturais, bem como as modifiquem realmente a configuração desse espaço. Assim,
com o acesso
lutas dos povos indígenas e das mulheres, mostram que a afirmação de novos grupos e de novas reivindicações, a homogeneidade
do espaço
da igualdade com base em pressupostos universalistas como os que público deve dar lugar à heterogeneidade, propiciando espaço
determinam as concepções ocidentais, individualistas, dos direitos
ao teco-
nhecimento e considerações das diferenças,
humanos, conduz à descaracterização e negação das identidades, Diante das situações reais de opressão e marginalização sofridas pelas
das culturas e das experiências históricas diferenciadas, especial minorias e pelos povos considerados “diferentes”, é difícil
mente à recusa do reconhecimento de direitos coletivos. acreditar na
criação de um espaço autenticamente multicultural. Algumas
condições,
no entanto, poderiam auxiliar nessa construção, segundo
Assim sendo, a afirmação da diferença, por si só, também induz a um avaliação de
Semprini (1999, p. 146-148):
problema: pode servir de justificativa para a exclusão, inferiorização e 1) Em primeiro lugar, deve-se considerar o papel crescente
discriminação
dos “diferentes” (SANTOS; NUNES, 2003, p. 64). É jus- das instân-
cias individuais (como a realização pessoal, a subjetividade), dos
tamente diante dessa tensão entre a diferença e-a igualdade que é possível fatores
socioculturais (como os valores, os estilos de vida) e reivindicações
perceber a necessidade de reinvenção da cidadania e dos ideais de igual- identitárias (como a necessidade de reconhecimento).
dade apregoados pelas políticas liberais e que desde muito definem os 2) Em segundo lugar, o espaço multicultural deve ser reconhecido
caminhos da democracia em países que possuem minorias excluídas e como dinâmico e interativo, um espaço de sentido.
esquecidas em nome dos direitos dos cidadãos “livres e iguais”. Isso, po- 3) Em terceiro lugar, devem ser consideradas as diferentes manifesta-
tém, sem esquecer da lição de Santos, para quem deve-se “defender a ções dos personagens sociais envolvidos, a partir das múltiplas percep-
igualdade sempre que a diferença gerar inferioridade, e defender a dife- ções que os diferentes grupos possuem do espaço social, para
rença sempre que a igualdade implicar descaracterização” (SANTOS; que real-
mente ocorra uma transição para um espaço multicultural.

116
117
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 5

4) Em quarto lugar, as reivindicações multiculturais devem ser situadas concepção de que todos os indivídnos nascem livres e iguais. Por
em sua própria perspectiva. Isso significa que as raízes das reivindicações outro lado, porém, reduziu a cidadania a um mero status legal,
identitárias encontram-se numa frustração cultural ou marginalização so- estabelecendo os direitos que os indivíduos possuem contra o Estado.
cial, Dessa forma, o ressentimento pode tornar-se um “catalisador É irrelevante a forma do exercício desses direitos, desde que os
identitário”. indivíduos não violem a lei ou interfiram no direito dos outros. À
5) E, por fim, deve-se reconhecer que os conflitos identitários típicos cooperação social visa apenas facilitar a obtenção da prosperidade
de sociedades pós-industriais se dão entre sistemas temporais, entre rit- individual, Idéias como consciência pública, atividade cívica é parti
mos discordantes. Assim, um espaço multicultural deve buscar a cipação política em uma comunidade de iguais são estranhas ao
harmonização entre esses sistemas temporais diferentes. pensamento liberal (VIEIRA, 2001, p. 71).
Elevar as comunidades tradicionais à condição de cidadãs do Estado
brasileiro e ampliar a noção de democracia, de solidariedade e de partici- Ultrapassando o significado imposto pelas idéias liberais, a cidadania é
pação constituem premissas básicas para se atingir a verdadeira emanci- agora redefinida para comportar as reivindicações de diversos movimen-
pação e inclusão social e para que seus direitos culturais sejam garantidos tos sociais e de grupos culturais específicos. À situação formal de cidadão
e respeitados no Estado Democrático de Direito. não pode mais ser aceita como a única correta e possível de existência,
A questão da cidadania passa por revisões profundas a partir das pois os direitos universais promulgados em lei e garantidos a todos não se
mudanças estruturais surgidas com o processo de globalização e com a traduzem em igualdade completa, conforme já referido.
crise do Estado-Nação. Fala-se em declínio da cidadania, em teorias da O papel do Estado na garantia e na instituição dos direitos de cidada-
cidadania e na necessidade de novas interpretações e novos alargamentos nia, apesar das transformações ocorridas, ainda é fundamental no mode-
ao conceito de cidadania. lo político nacional. Outras instituições e organizações da sociedade civil,
Conforme Liszt Vieira (2001, p. 39), “a cidadania encontra-se, assim, no entanto, surgem no cenário mundial para modificar as lutas pelo aces-
estreitamente relacionada à imagem pública do indivíduo como cidadão so verdadeiramente democrático e pela redefinição do ideal de igualdade
livre e igual, e não às características que determinam sua identidade”, À em nome dos grupos minoritários, marginalizados, desvalorizados e ex-
concepção clássica de cidadania não atende às aspirações e necessidades cluídos da sociedade brasileira. '
de uma sociedade multicultural, composta por identidades étnicas e cultu- De acordo com Vieira (2001, p. 48), existe uma crescente preocupa-
tais marginalizadas e carentes de políticas de reconhecimento e valoriza- ção em compatibilizar a existência de diversas possibilidades e gradações
ção cultural, 5 de cidadania: nas pequenas comunidades, no próprio Estado-Nação ou
As idéias liberais que estavam no cerne do conceito de cidadania em âmbito global. Assim, “a cidadania, no âmbito desse esforço coletivo,
colaboraram para que a cidadania fosse considerada um status legal que não pode mais ser vista como um conjunto de direitos formais; mas sim
existia para garantir direitos de igualdade e liberdade aos indivíduos. Nes- como um modo de incorporação de indivíduos e grupos no contexto
se sentido, social” (VIEIRA, 2001, p. 48). À revitalização do conceito de cidadania
dá-se a partir da participação de uma diversidade de cidadãos, com suas
E inegável que o liberalismo contribuiu de forma significativa para reivindicações específicas e lutas por novos direitos que, ao final, não be-
a formulação da idéia de uma cidadania universal, baseada na neficiarão apenas um grupo específico, mas que abrirão caminho a uma
cidadania universal (VIEIRA, 2001, p. 49).
É «Com ênfase no indivíduo, o liberalismo propõe que a maioria dos direitos envolve As batalhas que as comunidades tradicionais brasileiras vêm travando
liberdades inerentes a cada e toda pessoa. Não obstante as poucas obrigações de contrapartida,
como pagamento de impostos ou o serviço militar, constituem pontos centrais as liberdades nas últimas décadas, em busca da afirmação de sua identidade e do reco-
civis e os direitos de propriedade. Os direitos individuais são vitais para a liberdade de ação nhecimento de direitos coletivos, com reconhecimento constitucional, é
do indivíduo. Em contraposição, os direitos sociais ou os pertencentes a grupos representam
uma violação aos princípios liberais, sendo assim evitados” (VIEIRA, 2001, p. 37).

718 119
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 5

verdade, mas com necessidade de efetivação e proteção na maioria dos sofrido pelos povos indígenas, constata-se que cles são, na verdade, “l-
casos, é um exemplo do esforço por emancipação social c redefinição do vres” para viver sua cultura, para ter seu direito próprio, para sc relacionar
ep o” e e 1 “ o Fr . a u a : , A ' 1

conceito de cidadania e, indo além: é uma luta pela garantia da diversida- de maneira diferenciada com a biodiversidade e para seguir sua história e
de cultural, para o alcance de um mundo plural. “reafirmar sua força e importância como cultura, Apesar de terem sido
ÀÁssim, com base no que foi afirmado até aqui, as lutas pelo reconhe- praticamente dizimados desde que foram “descobertos” pelos europeus,
cimento e defesa da identidade das comunidades tradicionais brasileiras a crescente consciência acerca da importância da biodiversidade, da di-
conduzem à necessidade de ampliação do espaço social, à redefinição do versidade cultural e da crise desencadeada pela modernização e seus pro-
conceito de cidadania e democracia. Somente dessa maneira estará garan- cessos tem auxiliado na luta dos povos indígenas, que vêm se mobilizan-
tida a preservação da diversidade cultural nacional, expressa por diversos do, por intermédio do auxílio de várias ONGs e movimentos sociais, nas
grupos culturalmente diferenciados, formadores de uma identidade naci- lutas pela afirmação de sua identidade e de seus direitos coletivos, abrin-
onal heterogênea e de um patrimônio cultural rico e diversificado, fonte do caminho para que outras minorias e culturas diferenciadas se engajem
de orgulho e merecedor de respeito, proteção e admiração, em nome das nessas lutas,
presentes e futuras gerações. Por isso, a luta pela proteção legal adequada às comunidades tradicio-
nais conduz à preservação da diversidade biológica e do patrimônio cul-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tural da humanidade. As formas especiais de manejo, a dependência aos
recursos naturais, as crenças e mitos que fazem parte de sua herança cultu-
À afirmação da identidade de um grupo que representa uma minoria tal são apenas alguns exemplos da forma diferenciada de convivência das
excluída é também a afirmação de sua história, perpassando pelo seu comunidades tradicionais com o meio em que vivem. O respeito às co-
modo de vida, pelos costumes, pelos mitos e crenças, pela língua com- munidades e aos conhecimentos tradicionais por elas desenvolvidos é tam-
pattilhada espelos conhecimentos gerados no seio do grupo. O que num bém a garantia de que essas comunidades continuarão vivas, desenvol-
primeiro momento parece apenas ser o desejo de se fazer reconhecer vendo sua cultura e possibilitando que as gerações futuras usufruam do
pelo outro, engloba também o próprio reconhecimento e a consciência legado cultural de seus antepassados e que não venham a constituir mais
que o grupo detém enquanto parte de uma coletividade, que possui dig- uma camada da população excluída e empobrecida, expulsa para grandes
nidade e valores capazes de construir e perpetuar uma história. Atualmen- centros urbanos e condenada a viver à margem de todas as garantias
te essas são também as preocupações da Antropologia jurídica, inerentes aos seres humanos.
A luta das comunidades tradicionais pela afirmação e reconhecimento
de sua identidade, construída por meio de sua diferença, é um exemplo REFERÊNCIAS
de busca pela validação de um passado e de uma história vivida em meio
a opressões-e-tentativas assimilacionistas; porém, nunca silénciadas e a cada ACSELRAD, Henri. Políticas ambientais e construção democrática. In:
dia mais significativas para- seus membros e: para. toda a humanidade, A VIANA, Gilney; SILVA, Marina; DINIZ, Nilo (Crgs.). O desafio da
afirmação da identidade das comunidades tradicionais: dá-se mediante o sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo:
reconhecimento de suas diferenças, que, por sua vez, estão estampadas Fundação Perseu Abramo, 2001.
nas formas singulares de vida, na relação com a biodiversidade, na signi-
ficação e representação-dos territórios que ocupam e, sobretudo, na ri- CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. A era da informação:
queza cultural que essas comunidades representam, formando um economia, sociedade e cultura. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt. v.
patrimônio cultural que merece ser protegido e preservado. II. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Mesmo com as tentativas assimilacionistas e com o intenso massacre

120 121
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA Caríruro 5

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
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CAPÍTULO 6

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TORRES, Carlos Alberto, Democrácia, educação e multiculturalismo.


Dilemas da cidadania no mundo globalizado. Petrópolis: Vozes, 2001. Este capítulo trata de uma temática interessante no atual contexto da
sociedade contemporânea e precisa ser enfrentado diante da realidade
social, jurídica e cultural em que vivem os quilombolas e indígenas. Nesse
sentido, num primeiro momento, o texto faz uma tetrospectiva histórica
do Brasil e seu contexto de desigualdade social. Enfatiza as heranças do
passado para compreender o cenário atual de indiferença, discriminação
e exclusão sofridas por estes grupos e ou minorias étnicas definidas como
quilombolas e indígenas.
O segundo item trata dos aspectos conceituais de quilombo/
quilombolas e sociedades indígenas, bem como da titulação das áteas
remanescentes de quilombos e da demarcação de terras dos indígenas. É
importante destacar a luta histórica dessas comunidades contra a discrimi-
nação racial, a falta de oportunidades e de inclusão social, Enfoca tam-
“a palavra “Antropologia” aqui está vinculada à Antropologia Social e Cultural (ou Etnológica),
cuja abrangência é considerável, posto que diz respeito a tudo que constitui uma sociedade:
seus modos de produção econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica, seus
sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua,
etc. (LAPLANTINE, 2007, p. 19).
“ Doutora em Direito pela Universidade Federalido Paraná - UFPR, Pós-doutoranda em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Professora dos programas de
Mestrado em Direito da Universidade de Caxias do Sul e em Desenvolvimento da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ.
* Sabe-se que conceito de “minoria” é aquele genericamente aceito pelas Nações Unidas
como grupos distintos dentro da população do Estado, possuindo características étnicas,
teligiosas ou lingúísticas estáveis, que diferem daquelas do resto da população; em princípio
numericamente inferiores ao resto da população; em uma posição de não-dominância; vítima
de discriminação (SEGUIN, 2000, p. 9).

124 125
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 6

. 59
bém uma abordagem da legislação brasileira referente a estas, bem como escravos africanos . E
o seu reconhecimento necessário para combater práticas e discursos de Hasenbalg (1979, p. 39-40), ao analisar a realidade vivida pelas popu-
não-reconhecimento, preconceito e intolerância vividos no Brasil. lações afro-brasileiras e indígenas, assevera que “a atual condição dos ne-
Por fim, analisa o contexto de luta e a incansável batalha pelo reconhe- gtos não é em grande parte o resultado da discriminação vigente, mas,
cimento jurídico de seus direitos e de seu lugar num país de desiguais. pelo contrário, advém da opressão no passado escravista”. Da mesma
forma, pode-se observar a situação do indígena e de suas comunidades,
O BrasiL E SEU CONTEXTO DE DESIGUALDADE SOCIAL: AS embora para estes a história de exclusão e discriminação seja diferenciada
das populações afro-descendentes, pois estas comunidades autóctones
HERANÇAS DO PASSADO
e/ou indígenas possuíam culturas e costumes absolutamente distintos da-
queles vivenciados pelos europeus no século XVI.
Para que se possa discutir a problemática dos indígenas e quilombolas
É importante enfatizar que ao adentratem no território brasileiro os
no Brasil, ou mesmo definir esta questão como socioantropológica, é
colonizadores não se espantaram com a presença dos indígenas, mas sim
necessário primeiramente abordar suas atuais implicações teóricas e polí-
com o seu modo de vida, tendo em vista ser completamente diferente
ticas, mas principalmente demonstrar historicamente como se configurou
daquele dos colonizadores, principalmente no que se refere aos costumes,
o quadro atual de exclusão social dessas comunidades.
às crenças e às tradições. Estima-se que em 1500 a população total exis-
À ocupação do território brasileiro pela metrópole portuguesa, locali-
tente no Brasil variava entre 800 mil a 10 milhões de indivíduos. Os pri-
zada fundamentalmente nos latifúndios monocultores e na exploração de
meiros contatos realizados eram alicerçados em uma relação harmoniosa
mão-de-obra escrava, trouxe profundos reflexos à formação da socieda-
e amistosa entre os colonizadores e os aborígenes, havendo a troca de
de local, De acordo com Hasenbalg (1979, p. 45), “a realidade escravista
bens manufaturados por pau-brasil.
produziu um sistema social integrado com uma estrutura de classes, um
sistema político e uma ideologia peculiares. O ponto de partida é a for-
mação e desenvolvimento das classes sociais”. 2 Após a abolição no Brasil, a maioria dos negros e mulatos permaneceu concentrada em
situação de dependência no setor agrícola de regiões economicamente atrasadas. Mesmo no
Para Holanda (1995, p. 31), “a tentativa de implantação da cultura Sudeste, onde a taxa mais acelerada de desenvolvimento resultou na contínua abertura de
européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não ad- novas posições na estrutura de classes, os não-brancos foram inicialmente excluídos das
posições polares do sistema capitalista emergente, como resultado da competição desvantajosa
versas largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da soci- com os imigrantes europeus. Só algumas décadas depois da abolição é que os negros e
edade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências”. mulatos no Sudeste começaram a ser incorporados à classe trabalhadora, e em muito menor
extensão, aos setores intermediários da estrutura de classes (HASENBALG, 1979, p. 193). “A
Entre tais consequências podem ser enfatizadas as desigualdades soci- maioria dos negros continuou desempenhando o mesmo papel de antes. Os antigos
proprietários de escravos os tratavam praticamente da mesma maneira cruel e desumana,
ais como uma das sequelas mais notáveis da colonização lusitana, e que Grande parte da sociedade dos brancos tinha para com eles uma atitude de desdém, fruto de
continuam sendo uma constante em nossa sociedade. um intenso preconceito racial”. Destarte, pode-se afirmar sem ressalvas que Os negros não
alcançaram a efetiva liberdade com a abolição da escravatura, em 1888. Após quase quatro
Sendo assim, o elevado grau de injustiça social vivenciado na atualida- séculos de escravidão, os ex-escravos não possuíam recursos financeiros para trabalhar por
conta própria, não tinham educação para buscar uma boa posição na sociedade, e tampouco
de pelos brasileiros deflui, em grande parte, do próprio processo de de- contavam com qualquer tipo de ajuda do governo brasileiro. Sendo assim, a abolição da
senvolvimento do país. As disparidades sociais ainda flagrantes em nossa escravatura não trouxe consigo uma perspectiva de igualdade efetiva entre os cidadãos. De
acordo com Carvalho (2002, p. 53), “essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática.
realidade são, portanto, frutos de uma conquista gananciosa, cuja finalida- Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogância de poucos correspondem o
desfavorecimento e a humilhação de muitos”. Diante desse embaraçoso contexto, análises e
de era apenas auferir lucros e vantagens à metrópole exploradora, Desse estatísticas socioeconômicas recentes comprovam os graves problemas enfrentados pela
modo, à sociedade escravocrata instituída e difundida durante todo o população afro-descendente na sociedade brasileira. Como herança dos séculos de exploração
e opressão, bem cosho da falta de programas de assistência político-governamentais, os
período colonial foi responsável pelos altos índices de preconceito e dis- negros ainda são, atualmente, a patcela mais atingida pela miséria, pela fome, pelo desemprego
e pela falta de acesso à saúde e à educação.
criminação racial em relação à população indígena e aos descendentes dos Ms

Povos autóctones, segundo Rouland (2004, p. 458), “são aqueles instalados em um território
. mo +
so

há tempos imemoriáveis ou (a alternativa é importante) considerados como tais”. '

126 127
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 6

Essa relação amistosa, no entanto, que possibilitava um convívio entre aldeamentos”. Tal possibilidade deu origem ao denominado paradigma
ambos .os povos, transformou-se a partir do momento em que os euro- assimilacionista, que tinha como característica principal a integração dos
peus decidem instalar-se no litoral brasileiro de forma definitiva. Até en- índios à cultura não-índia.
tão havia uma troca mútua de favores, sendo que os índios lhes forneciam Esse sistema de desenvolvimento foi adotado pelos europeus no trato
a madeira, existente em abundância, e os portugueses, em compensação, com as populações indígenas, uma vez que a legislação existente logo
lhes forneciam bens manufaturados. | após a chegada dos colonizadores oscilava entre reconhecer a diversidade
Assim, o colonizador adotou o lema: “sem lei, sem rei, sem fé” (CAR- cultural dessas populações culturalmente diferenciadas e à assimilação cul-
NEIRO, (1983, p. 21). O objetivo dos estrangeiros baseava-se no desejo tural. Segundo Carneiro (1983, p. 28), o período colonial produziu uma
de catequizar os índios para posteriormente torná-los um povo de traba- legislação indigenista contraditória, que oscilou entre o reconhecimento
lhadores,.conforme os padrões europeus em seu favor, para prestar os categórico da liberdade dos índios, diversas vezes reiterado, e a cxigência
serviços designados pela Coroa. Instaurou-se a partir de então um ptro- cada vez maior de mão-de-obra escrava. As ditas “guerras justas” e O
cesso de colonização forçada que as comunidades necessitavam enfrentar. resgate de “índios de corda” legitimavam a captura e venda de escravos
Essa “catequização” forçada desenvolvia-se aliada ao fato de que os indígenas.
colonizadores trouxeram inúmeras doenças até então desconhecidas, para Dessa forma, os indígenas foram incorporados à cultura dos euro-
as quais o sistema imunológico indígena não estava preparado para aguentar, peus gradativamente, por meio da catequese, a que eram obrigatoriamen-
tais como gripe, sarampo, catapora, varíola etc. Os indígenas ofereceram te submetidos. À resistência oferecida resultou infrutífera ao processo de
resistência por longo tempo, até.o momento em que foram vencidos, catequização a que foram submetidos. Para catequizar os índios, os não-
resultando na extinção pot completo de inúmeras tribos. A resistência índios (colonizadores) tiveram de aprender a língua indígena e posterior-
oferecida, porém, não prosperou, visto que as técnicas e instrumentos mente a língua principal que se falava no Brasil, chamada de língua-geral .
bélicos que possuíam eram precários em relação aos que os europeus Nas palavras de Albuquerque (2007, p. 197)
tinham desenvolvido, além de não disporem de recursos hábeis para
enfrentá-los em um confronto leal e justo. Nesse sentido, segundo Carnei- Os mecanismos políticos utilizados, desde os “descimentos”,
to (1983, p. 21), “as guerras punitivas conduzidas pelas autoridades colo-
niais, a escravidão, epidemias, foram responsáveis pelo enorme desgaste a Aldeamentos missionários, chamados também de “aldeias de repartição”, estavam
integrados
ao sistema colonial, funcionando como uma espécie de “armazém” no qual os índios
da população indígena original”. estocados. Aí, depois de catequizados, eram alugados e distribuídos - repartidos - eram
entre os
Cabe destacar que não houve somente a redução populacional desses colonos, os missionários e o serviço real da Coroa Portuguesa, para
obrigatoriamente trabalhar em ttoca de um pagamento, por um determinad
quem deviam
o período - que
povos, mas também, e principalmente, uma significativa diminuição da variou de dois a seis meses - findo o qual deveriam ser devolvidos à aldeia.
Por isso, a
documentação oficial os registra como índios de repartição, ou ainda impropriamente
diversidade cultural, e, consequentemente, de crenças, culturas, tradições, índios livres para melhor distingui-los dos índios escravos. Para eles, os jesuítas desembarcacomo
dos
costumes, resultando
em significativo prejuízo a essas populações. Assim, com o primeiro governador-geral deveriam criar aldeias especiais, que servisiam
de, cristianização e centros de “conversão do gentio à nossa santa fé católica”, de núcleos
para Souza-Filho (2002, p. 38), o que ocorreu no Brasil “foi um inigualável previsto por D, João, que formula os princípios norteadores da catequese
conforme
no Regimento a
Tomé de Sousa. Desrespeitando a localização das malocas tradicionais,
aniquilamento físico da população indígena, cuja quaritificação é quase as aldeias missionárias
fotam efetivamente situadas em locais próximos aos povoados portugueses
. Possuíam uma
impossível; [...] o que resta de cada povo é somente um exemplo de igreja ou capela, uma escola e casás para cada família, bem difesentes das malocas
comunitárias
e da vida que os índios levavam em suas aldeias de origem. Seu objetivo principal
tenacidade com que as culturas resistem à opressão e à assimilação com- concentrar
era mesmo
os índios, de nações e culturas diferentes, em um local de fácil acesso,
onde
pudessem ser catequizados e “civilizados”, aprendendo os princípios da religião
pulsória”, Essa ássimilação compulsória estava imbticada no conteúdo cristã
certos valores como obediência e disciplina, que os tornavam aptos para serem integrados e
20
das legislações que tratavam sobre o assunto na época, ou seja, as mesmas sistema colonial como força de trabalho (FREIRE; MALHEIROS, 2007).
62 . ,
oscilavam entre o reconhecimento ao direito de os povos indígenas se Os jesuítas ocuparam-se . . . .
do estudo e sistematização gramatical . ,
, em moldes latinos, da língua
tupi, Ao longo dos anos o tupi e o guarani foram sendo alterados sob a influência
manterem culturalmente diferenciados, e a possibilidade de manter os formando assim a língua-geral, que se tornaria o principal veículo da catequese
dos jesuítas,
(CARNEIRO,
1983, p. 23).

126 129
ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 6

aldeamentos, diretório, eram carregados de desrespeito, violência e formado minorias dominadoras que os tornassem submissos à opressão
prepotência para com os povos indígenas. Atitude não somente rela- e à exploração, facilitando assim os desígnios dos colonizadores.
cionada ao poder estatal português, mas também vinculada à ativi- Assim sendo, os nativos, “acostumados à vida em liberdade, na selva,
dade religiosa, evidenciando uma enmplicidade entre poder político e vivendo da caça e da pesca e com uma cultura própria de subsistência,
espiritual por meio das reduções jesuíticas. não corresponderam às exigências como trabalhadores nas plantações e
nos engenhos, assim como em outros empreendimentos, nas construções
Para este autor (2007, p. 197), “as reduções jesuíticas não deixaram de das fortificações e serviços diversos” (MELLO, 2003, p. 34).
ser um outro mecanismo de dominação aos grupos étnicos, do século Conforme Pinski (2000, p. 17), embora seja difícil aferir a extensão do
XVII ao XVIII, principalmente focalizada na região sul do Brasil”. Essas regime escravista completo para a mão-de-obra indígena'no Brasil (com
reduções serviram somente como elemento ideológico, pois a catequese as características de perpetuidade, transmissão hereditária por via'materna
disciplinou os índios que não se adequavam à cultura européia, e irrestrita alienabilidade), não há dúvidas de que não se tratou de casos
Tal cultura, segundo Colaço (2006, p. 11), foi “imposta” aos indígenas, esporádicos como se poderia pensar, mas de algo regulamentado pela
pois “Antes da chegada dos europeus à América, as populações indígenas Coroa Portuguesa e que atingiu amplo espaço e tempo. Para este autor
tinham cultura e história próprias, seguindo seu ritmo normal de desen- (2000, p. 18),
volvimento”. Era uma convivência harmoniosa com a natureza que o
colonizador desprezou, ou seja, o objetivo principal deste era transfor- ..] a degistação variou bastante, estabelecendo intmeras restrições
mar a população autóctone que aqui vivia em escrava. Para Colaço (2006, à escravidão do índio Várias formas de escravidão ocorrera,
p. 11-12), nessa fase da história: umas formais, outras informais, inclusive voluntária. Com suas
formas de existência desestruturadas, fregiientemente o índio via-se
A América era povoada por diversas elias indígenas que, HO con- obrigado a se vender on a entregar alguém da família em troca de
tato com o enropeu, sofreram mm choque demográfico cultural, mm prato de comida.
Demográfico, em decorrência da guerra da conquista, das doenças
transmitidas pelos brancos e pela intensiva exploração da mão-de- Percebe-se, nesse sentido, que várias foram as maneiras de escravização
obra indígena, como a escravidão, a “encomienda” e o do indígena no Brasil, todavia uma das questões importantes a se fazer na
“repartimiento ”, cultural como consegiiência da incompreensão, atualidade é: por que na época a mão-de-obra indígena desapareceu e ou
do desrespeito e da destruição de sua enttura pela imposição da foi substituída pelo braço africano?
culinra ocidental Segundo Pinski (2000, p. 20), a baixa densidade demográfica da po-
pulação indígena no Brasil; o fato de as tribos ficarem cada vez mais
No início de tal imposição os nativos desenvolveram com o donatário arredias, a partir da percepção do interesse dos não-índios em escravizá-
relações completamente pacíficas e amistosas, deixando-se converter ao los; a dizimação dos índios pot meio da superexploração da força de
cristianismo, ajudando na exploração do território, e até trabalhando de trabalho, à proteção jesuítica e, principalmente, o interesse da Coroa e dos
bom grado nas primeiras lavouras de subsistência. Explodiram, porém, traficantes foram os principais motivos de tal substituição.
numa feroz rebeldia quando perceberam que o donatário queria apenas Pinsky (1984, p. 21) esclarece que
despojá-los das suas terras e das suas ancestrais liberdades.
Então, como em toda parte nas Américas, seguiram-se longos anos de [..] 0 negro foi trasido para preencher o papel de força de trabalho,
esforços tão inúteis quanto sangrentos para sujeitar os indígenas a tal as- compulsório numa estrutura que se organizava em função disso. À
similação cultural. Nas suas “primitivas sociedades” ainda não se haviam grande lavoura colonial não se preocupava em prover o sustento dos

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaPíTULO 6

produtores, mas em produzir para o mercado. Dessa forma, a da por hierarquias opressoras, por formas sociais organizadas em “esta-
“racionalidade” e a eficiência de sua organização só podiam ser dos”, isto é, em situações nas quais o poder institucionalizado e o papel
avaliadas na medida em que atingissem esses objetivos, para os dos indivíduos estavam rigidamente codificados. Nascia-se nobre ou ser-
quais o escravo era fundamental. vo, mortia-se na mesma condição. Privilégios, deveres, normas e valores
estavam inscritos nas leis e costumes e também nas mentalidades. Códi-
Foi assim que o sistema escravocrata atraigado no Brasil tornou-se, gos de conduta, práticas econômicas, relações políticas, entre outros fato-
por conseguinte, um dos fatores determinantes para o aparecimento das tes, estavam tão naturalizados que eventuais transgressões (revolta de ser-
desigualdades sociais. Hasenbalg (1979, p. 29) afirma em sua obra que vos ou decapitação de um soberano, por exemplo) não alteravam a es-
sência das estratificações. É do reconhecimento de todos que essas desi-
Ei] 0 estravismo foi uma experiência histórica crucial para os gualdades, embora tenham atingido vários grupos sociais, os quilombolas
“negros nas Américas, Além de seu significado econômico, a impor- e indígenas fazem parte dos chamados grupos vulneráveis ou de resistên-
tância da relação senhor-escravo, como relação em que as clivagens cia ao instituído, pela discriminação c intolerância que sofreram e sofrem
de classe e raça coincidiam quase perfeitamente, reside nas formas ainda nos dias atuais. Sabe-se que a dessemelhança entre os indivíduos “é
eum que se moldou a tradição cultural e os padrões de organização perniciosa, antidemocrática, perigosa e injusta. Macula a liberdade e de-
social do grupo racial subordinado. põe contra a paz social. A cidadania só se concretiza à medida que graus
crescentes de igualdade se tornem elementos rotineiros dentro dos vátios
À libertação de milhares de escravos a partir de 1888, sem a garantia setores da sociedade brasileira” (COSTA, 1997, p. 21). É sabido também
das mínimas condições de subsistência, trouxe, da mesma forma, resulta- que a origem do racismo, da discriminação e da intolerância em relação a
dos desastrosos. À abolição da escravatura deixou a massa de libertos esses grupos não é científica, e o homem não nasce preconceituoso, Os
numa condição extremamente vulnerável, interferindo negativamente na motivos são políticos, sociais ou econômicos, empregados pelos indiví-
formação socioeconômica da população negra do Brasil. duos para justificar seus interesses e a exploração econômica, ou como
Como “ressalta Carvalho (2002, p. 53), em decorrência de tais fatos pretexto para a dominação política. Tanto na Antigiiidade como na Idade
históricos, atualmente a população afro-descendente Média os homens, em vários momentos, valetam-se de diferenças físicas
e de desacordos de caráter religioso como motivo para justificar suas
[..] é a parcela menos educada da população, com os empregos lutas pelo poder e sua ganância econômica (CARNEIRO, 1983, p. 18).
meénios qualificados, 08 menores salários, os piores índices de ascensão No entendimento desse autor (1983, p. 33), o Brasil é considerado um
“social. Nem mesmo o objetivo dos defensores da razão nacional de país com “poucas barreiras” à ascensão de indivíduos pertencentes às
formar uma população homogênea, sem grandes diferenças sociais, classes ou grupos étnicos — é o mito da democracia racial, legítima heran-
foi atingido. A população negra teve que enfrentar sozinha o desafio ça da colonização portuguesa, Nossa cultura, adaptada aos trópicos, se
da ascensão social, e fregiientemente precisou fazê-lo por rotas origi- completa com a idéia de que no Brasil se desenvolveram condições favo-
nais, como o esporte, a musica e a dança. Esporte, sobretudo o ráveis à miscigenação.
Jutebol, música, sobretudo o samba, e dança, sobretudo o carnaval, Observa-se, contudo, que a sociedade brasileira historicamente tem
foram os principais canais de ascensão dos negros até recentemente. possibilitado a continuidade de suas raízes excludentes e discriminatórias.
No quesito concentração de renda, por exemplo, os afro-brasileiros, ape-
Foi, no entanto, a partir da Modernidade, principalmente no Ocidente, sar de alguns poucos avanços históricos, continuam sendo a parcela mais
que a idéia de desigualdade social passa a ter relevância, Importância que desfavorecida da sociedade. A concentração de renda nas mãos de uma
se acentua pot envolver todas as dimensões da vida humana e das rela- minoria, constatada em todo o território nacional, acaba por deixar gran-
ções sociais. Isso porque por muitos séculos a humanidade esteve ordena-

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 6

des parcelas da população negra, além da indígena, afastadas dos meios no enquanto dimensão política de uma formação social diversa. O termo
de acesso ao exercício da cidadania. Essa realidade conduz necessatia- irá persistir principalmente para indicar as mais variadas manifestações de
mente à distribuição da pobreza. resistência” (LEITE, 2007).
Análises socioeconômicas recentes comprovam os graves problemas Segundo o historiador Décio Freitas (1980, p. 70), é possível identifi-
enfrentados pelas populações indígenas e afro-descendentes e ou car sete tipos principais de comunidades quilombolas: os agrícolas, os
quilombolas na sociedade brasileira. Como herança dos séculos de explo- extrativistas, os mercantis, os mineradores, os pastoris, os de serviços e os
ração e opressão, bem como da falta de programas de assistência políti- predatórios (que viviam de saques). À agricultura não está totalmente au-
co-governamentais, Os índios e os negros ainda são, atualmente, a parcela sente dos demais, mas não é propriamente o que viabiliza e define cada
mais atingida pela miséria, pela fome, pelo desemprego e pela falta de um deles. Sabe-se que os quilombos surgiram no Brasil durante o período
acesso à saúde e à educação. da escravidão, como uma forma de resistência para com aqueles que os
humilhavam.
QUILOMBOS E SOCIEDADES INDÍGENAS — OS QUILOMBOLAS Para Gama (2007), “Os escravos “rebeldes” fugiam dos domínios do
seu senhor para formarem grupos de resistência. Desse modo, por todo
As expressões quilombolas ou remanescentes de quilombos são em- o país, vários núcleos se formaram, dando otigem aos quilombos”. As-
pregadas desde o petíodo colonial, Quilombo, na linguagem toruba, signi- sim, segundo o autor:
fica habitação, e em banto, “reunião de acampamentos”, “união” (LOPES,
1988, p. 140). Em sua gênese, o sentido jurídico dessa categoria foi def- Le.) muitos líderes se destacaram nesses grupamentos, dentre etes.o
nido no ano de 1740 como “toda a habitação de negros fugidos, que conhecido Lsumbi dos Palmares, que lideron a Comunidade Quilombo
passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos dos Palmares, aos arredores da cidade alagoana cujo nome presta
levantados e nem se achem pilões nele” (WAGNER, 2002, p. 47). Esse homenagem aos quilombos: União dos Palmares. Com a abolição
conceito influenciou durante muitas décadas as análises sobre quilombos da escravidão, no ano de 1888, muitas dessas comunidades conti-
no Brasil, Segundo Leite (2007), quilombo é um conceito próprio dos nmaram a existir, bem como muitos dos ex-escravos, não tendo
africanos que vem sendo modificado através dos tempos. Quilombo sig- para onde ir, à margem da sociedade e sem condições mínimas para
nífica acampamento de guerreiros na floresta, ou uma reação guerreira a uma existência digna, formaram novos grupamentos, que, apesar
uma situação opressiva. Há alguns autores que especificam que o quilombo de não servirem mais. como um núcleo de resistência à escravidão,
brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do africano reconstituído pelos escra- serviam como um meio de ajudarem-se mutuamente e resgatar a
vizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela criação de uma cultura e a religiosidade da terra natal “deixada” (GAMA,
outra estrutura política na qual se encontravam todos os oprimidos. No 2007).
Brasil são encontradas muitas variações da terminologia quilombo, as-
sociadas à idéia de lugar, povo e às diversas etnias que o compõem, ma- A cultura que lhes foi deixada por seus antepassados, é reverenciada e
nifestação popular etc. tevivida atualmente pelo povo quilombola; a luta desses povos é. pela
O quilombo é enfocado a partir do ideário liberal, proveniente:
dos preservação da sua cultura e religiosidade de seus antepassados.
princípios de igualdade e liberdade da Revolução Francesa, em que é O Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica - Ciga
tomanticamente idealizado; ou sob o viés marxista-leninista, no qual é (2007), da Universidade de Brasília (UnB), publicou o “Cadastro Munici-
associado à luta armada, “como embriões revolucionários em busca de pal dos Territórios Quilombolas do Brasil”, estudo que mostra a existên-
uma mudança social” (LEITE, 2007). “A própria generalização do termo cia de 2.228 comunidades remanescentes de escravos no Brasil. Esse nú-
teria sido um produto da dificuldade dos historiadores em ver o fenôme- mero, contudo, é questionado pela Coordenação Nacional de Entidades

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CariTULO 6

Negras (Conen), hoje composta por mais de 300 instituições em todo o se é uma nova redução brutal da alteridade dos diferentes gtupos,
território brasileiro. Um de seus membros, o geólogo Gilberto Leal, acre- que,
sob este prisma, teriam de se adequar a um conceito genérico para novos
dita que existe o dobro de comunidades, ou seja, existem aproximada- propósitos de intervenção e controle social. Essa questão passou
mente 5 mil núcleos quilombolas. Grande parte das comunidades está a ser
amplamente debatida, a começar pelos próprios negros, que têm
concentrada no litoral do país. O Maranhão é o Estado com o maior sido
frequentemente solicitados a explicar porque insistem em manter diferen-
número de comunidades, 642, Em segúndo lugar, a Bahia, com 396 co- ças que a própria genética trata agora de desfazer. É relevante tal discus-
munidades, O Pará ocupa a terceira posição: 294 quilombos mapeados. são porque, apesar das grandes conquistas obtidas com a resistência
Apenas 32 comunidades negras remanescentes, menos de 2% dos dos
quilombos, os negros continuaram sofrendo toda sorte de opressão
quilombolas “existentes, foram regularizadas pelo Instituto Nacional de — o
que, de certa forma, ocorre ainda nos dias atuais --, tais como:
Colonização e Reforma Agrária (Incra). A meta do Incra é regularizar exclusão
social, discriminação racial, oportunidades desiguais etc. Outra
questão
158 comunidades quilombolas. importante, na concepção de Gama (2007), é a de que: “[...] mesmo
Existem comunidades quilombolas vivendo em pelo menos 24 esta- após
a formação da comunidade, em que os quilombolas, vendo-se alijados,
dos do Brasil: Amazonas, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, foram paulatinamente sendo retirados de suas terras de origem,
Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará,
pata se
estabelecerem em outros locais, em decorrência do crescimento
urbano,
Paraíba, Pernambuco, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Nor- especulação imobiliária, pressão dos setores economicamente mais
te, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e
for-
tes, eles continuaram a sua luta”.
Tocantins. Por essa razão, o artigo 68 do ADCT é um dispositivo constitucional
Esse reconhecimento só foi possível porque a Constituição Federal de de eficácia plena e de aplicabilidade imediata, de modo a garantir a essas
1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias comunidades a propriedade e a posse de suas terras, para que possam
(ADCT), reconheceu às comunidades remanescentes de quilombos o di- efetivamente difundir sua cultura, seus modos de criar, fazer e viver,
reito à posse definitiva de suas terras, ficando o Estado com a incumbên- e
resgatando valores surrupiados, como meio, inclusive, de assegurar sua
cia da emissão dos títulos definitivos. reprodução física, social, econômica e cultural (GAMA, 2007). Saliente-
O artigo em tela disciplina, in verbis, que: “Aos remanescentes das co- se, outrossim, que a propriedade dessas comunidades é um direito subje-
munidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconheci- tivo preexistente à CF de 1988, uma vez que, segundo assevera Gama
da a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos res- (2007), “o termo propriedade definitiva constante no artigo 68 do ADCT,
pectivos”, Constata-se, segundo Gama (2007), que o texto constitucional nos leva a essa conclusão, transmitindo a idéia de que antes já existia a
refere-se a remanescentes. Esta expressão merece ser interpretada de uma propriedade. Com o advento da Constituição estabeleceu-se a segurança
ed

forma alargada ou extensiva. Remanescente refere-se ao que restou, ao jurídica”.


que sobrou, Assim, interpretando literalmente o texto, ele teria aplicação Saliente-se que essa segurança foi reforçada por meio do Decreto 4.887,
0A

praticamente inócua, haja vista que, se hoje há algum. remanescente do de 20 de novembro de 2003, que constituiu -um passo importante na
ES

período da escravidão, este, certamente, deve estar nos seus últimos dias. concessão do título de propriedade às comunidades remanescentes de
“Então, onde. se lê remanescente, entenda-se descendente, que significa quilombos, posto que “regulamenta o procedimento para identificação,
derivar, provir por geração” (GAMA, 2007). Deve-se entender assim que reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas
o conceito atual de comunidade quilombola está vinculado à idéia de por remanescentes de quilombos de que trata o art. 68 do ADCT”,
descendentes dos escravos africanos. O parágrafo 1º do artigo 2º do Decreto 4.887, de 2003, traz a seguin-
- Para Leite (2007), uma das questões relevantes a serem discutidas é se te determinação:
o quilombo expressa a dimensão política da identidade negra no Brasil ou

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ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA CariTULO 6

Para fins desse Decreto, a caracterização dos remanescentes das titulação de suas tertas (SANTILLI, 2005, p. 170).
comunidades dos quilombos será atestada mediante antodefinição Para Juliana Santilli (2005, p. 173) “o Decreto (4.887) tevogou expres-
da própria comunidade. E atribui a seguinte tarefa ao INCRA, samente o Decreto nº 3.912, de 2001, que atribuía competência à Funda-
conforme descrito em sen art. 3º: Compete ao Ministério do Desen- ção Cultural Palmares para delimitar as terras quilombolas”, estabelecen-
volvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Coloniza- do que só poderia ser reconhecida a propriedade sobre terras ocupadas
ção e Reforma Agrária - Incra, a identificação, reconhecimento, por quilombos em 1988 que ainda estivessem ocupadas pelos quilombolas
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por rema- em 5 de outubro de 1988. Assim, a Fundação Cultural Palmares passou à
nescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da compe- ter as seguintes atribuições: , a
rência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Munici-
pios. Art 3 LIS4A autodefinição de que trata o $ 1º do ari. 2º
deste Decreto será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação
Sendo assim, conforme o exposto, constatando-se que o local ocupa- Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do
do situa-se em terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou regulamento [...] Art. 5º, Compete ao Ministério da Cultura, por
dos municípios, o INCRA, por meio da Superintendência Regional, pto- meio da Fundação Cultural Palmares, assistir e acompanhar o
porá a celebração de convênio com aquelas unidades da Federação para à Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Incra nas ações de
execução dos procedimentos e encaminhará os autos para os entes tes- regularização fundiária, para garantir a preservação da identida-
ponsáveis pela titulação, permanecendo, portanto, o direito das associa- de cultural dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem
ções à propriedade , observando-se, neste caso, rito previsto nas normas como para subsidiar os trabalhos técnicos quando houver a contes-
das respectivas entidades (GAMA, 2007). tação ao procedimento de identificação e reconhecimento previsto
É importante salientar que ao Ministério da Cultura e à Secretaria Es- neste Decreto [...] Art. 16. Após a expedição do título de reconhe-
pecial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial compete assistir e cimento de domínio, a Fundação Cultural Palmares garantirá as-
acompanhar as ações de regularização fundiária realizadas pelo INCRA, sistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comuni-
bem como é possibilitada e assegurada a participação dos quilombolas dades dos quilombolas para a defesa da posse contra esbulhos e
em todas as fases do procedimento administrativo de demarcação e turbações, para a proteção da integridade territorial da área deli-
mitada e sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com
A titulação não oferece maiores dificuldades quando as áreas ocupadas são definidas como outras entidades ou órgãos que prestem esta assistência. Parágrafo
devolutas da União. Incidindo, porém, em terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e
lagos, nem por isso a propriedade da comunidade ficará desfigurada, Nesse caso, haverá uma único. A Fundação Cultural Palmares prestará assessoramento
atuação conjunta entre o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União a fim de tomarem as aos órgãos de Defensoria Pública quando estes representarem em
medidas cabíveis para a expedição do título (art. 10 do Decreto nº 4.887/2003). - Em caso de
as terras ocupadas estarem sobrepostas às unidades de conservação constituídas, às áreas de Jjuíso os interesses dos remanescentes das comunidades de quilombos
segurança nacional, à faixa de fronteira e às terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-
Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI é à Fundação Cultural Palmares atuarão nos termos do art. 134 da Constituição Federal [...] Art. 18, [...]
conjuntamente com o objetivo de adotarem medidas que visem à sustentabilidade das Parágrafo único. A Fundação Cultural Palmares deverá instruir o
comunidades, conciliando o interesse do Estado (art. 11 do Decreto nº 4.887/2003), observadas,
quanto às unidades de conservação, as prescrições da Lei 9.985, de 18 de julho de 2000 processo para fins de registro ou tombamento ou zelar pelo
(GAMA, 2007).
acautelamento e preservação do patrimônio cultural brasileiro (PAT
A Segundo Santilli (2005, p. 174), “O procedimento administrativo regulado pelo Decreto nº
4.887 prevê a desapropriação nos casos de titulos de domínio particular incidentes sobre a XÃO, 2006, p. 124).
autenticidade e legitimidade dos respectivos títulos. Pôe fim dessa forma à uma polêmica
jurídica que vinha inviabilizando o efetivo exercício dos direitos territoriais dos quilombolas
sobre áreas com títulos particulares incidentes. Tal polêmica se iniciou quando a Subchefia tais desapropriações. Após a edição de tal parecer, a Fundação Cultural Palmaros passou à
para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República editou, em setembro atribuir prioritariamente títulos a quilombolas que incidissem sobre terras devolutas € não
de
2001, parecer propugnando pela inconstitucionalidade da desapropriação de imóveis para tivessem ocupantes particulares, pois não dispunha de instrumentos jurídicos para promove
reconhecimento das terras dos quilombolas e pela incompetência do INCRA para promover a desinstrução das áreas com títulos particulares incidentes”. :

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 6

Essa atribuição da Fundação Cultural Palmares de preservar o DEMARCAÇÃO DE TERRAS DOS QUILOMBOLAS
patrimônio cultural brasileiro significa, com certeza, a principal missão
pata a manutenção da identidade local dessas comunidades. A luta pelo O Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, definé os ptocedi-
território é uma das principais referências coletivas para essas comunida- mentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimi-
des. Assim, assegurar o efetivo exercício de seus direitos territoriais é fun- tação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras
damental a sua sobrevivência física e cultural (GANTILLI, 2005, p. 125). ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que
O texto constitucional visa, com o artigo 68 do ADCT, de um lado, trata O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O
reparar uma dívida histórica para com essas comunidades e propiciar artigo 2º determina que “[...] consideram-se remanescentes das comuni-
uma significativa melhoria na qualidade de vida dos descendentes de cs- dades dos quilombos, para fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais,
cravos, uma vez que são, a grande maioria, pessoas totalmente desprovi- segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, do-
das de recursos; e, de outro, o resgate dos valores culturais e dos modos tado de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade
de criar, fazer e viver (artigo 216, II, CF) das comunidades remanescentes negra, relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
de quilombos, que deu ensejo a uma autônoma e própria cultura afro- No período atual a realidade territorial dos charnados quilombos, a par-
brasileira, participante do nosso processo civilizatório ($ 1º do artigo 215 tir das interpretações de padrões de origens e formas de organização
da CF). social, limitaram a implementação do art. 68 do ADCT da Constituição
Na concepção de Leite (2007, p. 27), pata ser partícipe desse processo de 1988 a inúmeras comunidades negras rurais. Segundo Souza e Brasil
(2007), “o mapeamento das comunidades remanescentes evidencia que
[...] é necessário ir além de uma identidade negra colada ao sujeito pequena parte das comunidades agrícolas afro-descendentes seriam
ou por uma cultura congelada no tempo, que deve ser tombada pelo
abrangidas pela lei, o que constituía uma grande injustiça social”. Assim
patrimônio histórico e exposta à visitação pública. A noção de
sendo, pracurou-se contornar essa realidade, não mediante a extensão da
coletividade é o que efetivamente conduz, ao reconhecimento de sm
Lei, mas com interpretação abrangente e supra-histórica da categoria
direito que foi desconsiderado, de um esforço sem reconhecimento ou
“quilombo”, que passou a designar, em contradição frontal com a reali-
resultado, de um lugar tomado pela força e pela violência, Coletivi-
dade histórica, toda e qualquer comunidade com raízes africanas, fossem
dade no sentido de um pleito que é comum a todos, que expressa
quais fossem suas origens. Conforme Souza e Brasil (2007): “[...] a defini-
uma luta identificada e definida num desdobrar cotidiano por uma
ção de uma comunidade rural e, a seguir, urbana, como quilombola, não se
| existência melhor, por respeito e dignidade. É; por aí que a cidada-
deu através do reconhecimento de sua origem em um quilombo, na pré-
nia deixa de ser uma palavra da moda e passa a produzir efeito no
Abolição, mas da simples autoproclamação como quilombolas de grupo
atual quadro de desigualdades sociais no Brasil,
social estável ou semi-estável com algum grau de ancestralidade africana”,
A questão da legalização das terras dos chamados remanescentes de quilombos
Há muitos desafios que ainda hoje se apresentam na luta das comuni-
brasileiros passa hoje pelas discussões em torno da questão da identidade
dades remanescentes de quilombos pelo seu território, pela sua cultura e
e da territorialidade . Desde que foi garantido na Constituição de 1988, o
reconhecimento. Há uma forte tendência de exclusão desses grupos no
Brasil, o que acarteta a demora no processo de demarcação e titularização,
ameaças a sua integridade, que desencadeiam no quadro atual de desigual- É No Brasil existem inúmeras comunidades negras rurais que se originarama partir da doação
de terras. Se aplicarmos, porém, o conceito histórico de quilombo para análise dessas
dade. comunidades elas não se sustentam como remanescentes de antigos quilombos, gerados da
fuga e da manifestação do protesto negro ao cativeiro. O que se explica nesse caso é a não-
legalização das terras ocupadas pelos negros. Nestes locais o mais correto seria utilizar a
designação de comunidade negra rural, A esse respeito, vale lembrar que antes da Abolição,
cativos fugidos, libertos, negros livres subsistitam como cabochs nas margens e nos interstícios
das fronteiras agrícolas em expansão. Após a Abolição, essas comunidades “deram origem a

140. “141
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 6

direito das comunidades remanescentes de quilombos aos seus territórios encaminha a solicitação de regularização fundiária para o INCRA,
vem sendo desrespeitado, também por conta de interesses econômicos e É importante salientar que o conceito que esses grupos étnicos têm da
políticos ou de critérios burocráticos. A luta é contínua e árdua, ptrincipal- terra e do território não é na mesma perspectiva que temos. Ela não tem
mente quando ainda vivenciamos (ou vivencia-se) no Brasil desigualdades um significado puramente econômico, mas um espaço que permite a sua
devastadoras para esse grupo étnico. Trata-se de um processo de recons- caracterização identitária, sua cultura, raízes e garante o respeito às suas
trução identitária. características de otigem.
Embora o Decreto considerea auto-atribuição como critério de iden-
tidade quilombola, as comunidades ainda necessitam pleitear o reconheci-
SOCIEDADES INDÍGENAS: ASPECTOS GERAIS
mento por parte do Estado. Existe todo um procedimento obrigatório
para o processo de caracterização da comunidade como “remanescente
Segundo Alcida Rita Ramos (1988, p. 13), para os povos indígenas, a
de quilombo”, Primeiro o núcleo deve criar uma associação e registrá-la
terra significa muito mais que simples meio de subsistência. Ela representa
em cartório. Depois deve enviar para a Fundação Cultural Palmares -
o suporte da vida social e está diretamente ligada ao sistema de crenças e
FCP o documento em que seus membros se autodefinem como remanes-
conhecimentos. Não é apenas um tecutso natural, mas um recurso
centes de comunidade quilombola, Nesse documento deve constar a solicita-
sociocultural. Assim, a pertença cultural ou sociocultural do indígena à sua
ção do cadastramento da comunidade e a regularização fundiária de suas
terra é sua condição de existência no mundo. Conforme Stuart Hall (2003,
terras. Para a obtenção desta última é necessária a instituição de alguns
p. 51), para que se possa definir o conceito de cultura são necessários: as
elementos constitutivos dessas áreas:
memórias do passado, o desejo de viver em conjunto e a perpetuação da
herança. E acrescenta este autor: cada conquista do homem branco subju-
a) Processo físico: refere-se a ações de medição, delimitação e demar-
gou o povo conquistado e sua cultura, sua língua, suas tradições e costu-
cação dos territórios a titular, bem como a medidas adotadas para
mes, tentando impor uma hegemonia cultural unificada. A cultura é está-
assegurar 0 saneamento ambiental destas áreas [..].
vel, apesar de dinâmica. Esse paradoxo entre o estático e o dinâmico
b) Processo jurídico: refere-se aos levantamentos da cadeia dominial
pode ser explicado por meio do transcorrer dos tempos, da mudança
do título de dominio e outros documentos inseridos no perímetro do
nos usos e costumes de cada povo que tenta preservar sua cultura, adap-
território e às medidas judiciais visando à desapropriação de pro-
tando-a à atual realidade social em que vive. Em relação a esta dinamicidade
priedades de terceiros [..].
cultural, pode-se afirmar que alguns aspectos da cultura mudam e outros
6) Processo social: refere-se à declaração de remanescência e ao pro-
permanecem. Estas mudanças são características das dinâmicas culturais,
cesso de registro da respectiva certidão [...].
fruto de fatores externos. Por isso afirma-se que não há culturas puras e
d) Processo coletivo: refere-se às formas de organização social, culta-
não se pode classificar culturas como legítimas ou ilegítimas, inferiores ou
ral, econômica e religiosa das comunidades que incidem no processo
de apropriação e utilização do território e dos recursos naturais superiores.
necessários a sua subsistência, sobrevivência € reprodução, aspectos Apesar de os povos indígenas terem reconhecidos constitucionalmen-
que devem ser considerados para expedição dos títulos coletivos de te o direito à identidade cultural e direitos originários às terras que ocu-
ropriedade pró-indiviso, em benefício da comunidade (DIREI- pam, Diegues e Arruda (2001, p. 53) denunciam que
TO À MORADIA... 2007.
[..J o Estado não tem cumprido esse papel legal de proteção às
Por fim, com a publicação no Diário Oficial da União e no Diátio áreas indígenas; mesmo as totalmente regularizadas, na sua maior
Oficial do Estado deste ato administrativo, a Fundação Cultural Palmares parte, sofrem invasões de garimpeiros, mineradoras, madeireiras e
posseiros; são cortadas por estradas, ferrovias, linhas de transmis-

142 143.
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CAPÍTULO 6

são, inundadas por usinas hidrelétricas e outros impactos decor- artigo 4º, que classifica os índios como isolados, em
vias de integração e
rentes de projetos econômicos da iniciativa privada e projetos integrados, numa perspectiva que ele denomina “patadigma da
integração”.
desenvolvimentistas governamentais, Segundo tal paradigma, seria a partir da integração dos índios
à comuni-
dade nacional que eles seriam classificados como mais
ou menos evoluí-
Apontados os múltiplos e graves problemas enfrentados pelo povo dos: “Nesta perspectiva, portanto, o índio é visto como
um “ser inferior
indígena brasileiro, cabe ainda trazer a definição do conceito de índio a que deve ser e precisa ser “integrado à comunhão nacional. Compl
partir da legislação brasileira. Barretto (2004, p. 33) adota como ponto de etada a
integração não será mais considerado “inferior, mas
também não será
partida para a definição de “Indio” a Lei 6.001, de 1973, conhecida como mais considerado índio e, portanto, não merecerá mais
qualquer forma
o Estatuto do Índio. , cujo artigo 3º assim determina: de tutela especial”.
Quando se fala em tutela, esta não pode ser considerada
como inca-
Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir deno- pacidade, pois para Barreto (2004, p. 34), a Constituição
de 1988 substi-
minadas: o tuiu o antigo “paradigma da integração”, que tratava
o índio como um
1 - Índio ou Silvícola — É todo individuo de origem e ascendência ser incapaz, que deveria ser integrado à sociedade
nacional, pela adoção
pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a do “paradigma da interação”, que defende e reconhece
Hm grupo énico cujas características enttnrais o distingiem da soci-
a organização
social, os costumes, à língua, as tradições, as crenças,
bem como os dirci-
“ edade nacional; o , tos otiginários sobre suas terras, Nesse propósito, a partir da
- U - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal — E um conjunto de Constituição
de 1988 o regime tutelar indígena passou a ser exclusivamen
famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo te de prote-
ção. Trata-se de uma proteção constitucional que não deve
isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, ser confundi-
da com restrição de direitos, mas como uma garantia
quer em contaios intermitentes ou permanentes, sem, contudo, esta-
ao direito mais
importante do ser humano: o direito à vida.
rêm neles integrados. No Estatuto do Índio e na Declaração das Nações Unidas
sobre Di-
teitos dos Povos Indígenas há formas diferentes de perceb
Essa definição estabelecida pelo Estatuto do Índio, segundo o autor, é er o índio. No
primeiro, os índios são tratados numa perspectiva de inferioridad
feita sob três critérios: o genealógico (origem e ascendência pré-colombi- e, ao
passo que na atual Declaração, assim como na Constituição
ana); o cultural (características que se distinguem da comunidade nacio- , são tratados
numa perspectiva de diferença, ou seja, não são mais
nal); e o étnico (que se identifica como pertencendo a talgrupo étnico). O classificados dentto
de uma escala evolutiva a partir do “paradigma da integr
mesmo autor (p. 34) critica o Estatuto do Índio, especialmente o seu ação”, sendo-
lhes garantido o direito de serem “diferentes” à partir do “parad
igma da
interação”, que respeita a cultuta e os valores indígenas.
um campesinato
i negro que tendeu a se fechar so bre si, , como já o haviam feito os cabocios Assim, a As-
descendentes de nativos” (SOUZA; BRASIL, 2007). sembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU)
aprovou e
“ No Brasil, a Constituição Federal expressamente reconhece aos índios sua organização reforçou o paradigma da interação na Declaração das Naçõe
'social, costumes, línguas, crenças e tradições, impondo à União o dever de proteger e azer
s Unidas
respeitar todos esses bens. Já reconhece e garante, assim, existência cultural dos po sobre Direitos dos Povos Indígenas, em 13 de setembro de 2007. Esta
indígenas.
A legislação específica, porém, é anterior à promulgação
da Constituição ge 188. carregando “ Em 22 anos de luta, impasses e greve de fome, a ONU vem trabalhando no sentido de
ainda o tanço integracionista que sempre marcou a política indigenista brasileira. estabelecer uma Declaração sobre direitos dos povos indígenas
desde 1985. Anos de
negociações em um Grupo de Trabalho sobre populações
Assim, diante da mudança de paradigma trazida pela Constituição, há que se lutar pela átiação indígenas fizeram surgir uma
proposta com a participação de governos, representantes indígenas
de uma legislação que esteja em harmonia com os princípios onstitucionais cc sagrado: em proposta foi galgando degraus na burocracia internacional, passou e da sociedade civil. Esta
1988. O primeiro passo rumo a essa nova fase legislativa é a aprovação ty istatuto das Prevenção
por uma Subcomissão de
de Discriminação e Proteção de Minorias da ONU, em
Sociedades Indígenas, em substituição ao já ultrapassado Estatuto do n o Estatuto do 1994, e desde então estava
emperrada na Comissão de Direitos Humanos. Em 1993, a Assembléi
Índio e das Comunidades Indígenas, substitutivo do projeto assinado pelo depu a Geral da ONU proclamou
aprimeira Década Internacional dos Povos Indígenas do Mundo para
Pizzato, está parado na Câmara desde 1994. 2004, O objetivo principal nesse tempo
o período entre 1995 e
era a aprovação da Declaração. Em 2004, diante do

144 145
——— ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 6

Declaração é resultado de longa resistência do movimento indígena e incluindo obras de infra-estrutura, mineração ou uso de recursos
reconhece, entre outros pontos importantes, a autodeterminação dos povos hídricos.
indígenas. * Direito à reparação pelo furto de suas propriedades: a declaração
Segundo Mathias (2007), o texto da referida Declaração é extrema- exige dos Estados nacionais que reparem os povos indígenas com
mente avançado e reflete o conjunto das reivindicações atuais dos povos relação a qualquer propriedade cultural, intelecinal, religiosa ou
indígenas em todo o mundo acerca da melhoria de suas relações com os espiritual subtraída sem consentimento prévio informado ou em vi-
Estados nacionais, servindo para'estabelecer parâmetros mínimos para olação a suas normas tradicionais. Isso pode incluir a restituição ou
outros instrumentos internacionais e leis nacionais. Ainda para este autor repatriação de objetos cerimoniais sagrados. ss
(2007), “na declaração constam princípios como a igualdade de direitos e *-Direito a manter snas culturas: esse direito inclui entre outros o .
a proibição de discriminação, o direito à autodeterminação e a necessida- direito de manter seus nomes tradicionais para lugares e pessoas e
de de fazer do consentimento e do acordo de vontades o referencial de. - de entender e fazer-se entender em procedimentos políticos, adminis-
todo o relacionamento entre povos indígenas e Estados”. Os principais trativos ou judiciais, inclusive através de tradução.
pontos da Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indf- * Direito à comunicação: os povos indígenas têm direito de manter
genas são, segundo Mathias. (2007), os seguintes: seus próprios meios de comunicação em sHas línguas, bem como ter
acesso a todos os meios de comunicação não-indígenas, garantindo
* Autodeterminação: os povos indígenas tém o direito de determinar que a programação da mídia pública incorpore e reflita a diverst-
livremente sem status político e perseguir livremente sem desenvolvi dade entiural dos povos indígenas.
mento econômico, social e cultural, incluindo sistemas próprios de
educação, saúde, financiamento e resolução de confhtos, entre ontros, Apesar dos mais de quinhentos anos de massacre e dominação softi-
Este foi um dos principais pontos de discórdia entre os países; os dos-pelos povos indígenas no Brasil pela opressão dos colonizadores
contrários a ele alegavam que isso poderia levar à fundação de europeus, grande parte da população indígena resistiu bravamente. A de-
“nações” indígenas dentro de um território nacional. claração certamente possibilitará mais autonomia aos índios para que possam
* Direito ao consentimento livre, prévio e informado: da mesma minimizar as consequências da colonização e de um processo nocivo, de
forma que a Convenção 169 da Organização Internacional do imposição de uma cultura, que sofrem até hoje. Segundo Feitosa (2007),
Trabalho (OIT), a Declaração da ONU garante o direito de apesar de a Declaração não ser um matco legal obrigatório, ela avança no
povos indígenas serem adequadamente consultados antes da adoção sentido de intensificar o diálogo com o Estado. “No Brasil a legislação
de medidas legislativas ou administrativas de qualquer natureza, contempla vários temas incluídos no documento, mas sugere várias inter-
pretações que, na Declaração, foram expostas de uma tnaneira: clara e
impasse nas negociações e do risco de o processo
definitiva”.
esfriar, lideranças indígenas chegaram a
fazer greve de fome em frente ao prédio da ONU para pressionar os países por uma segunda A Declaração dos Povos Indígenas reveste-se de grande importância
Década, que foi enfim aprovada a partir de 2005 até 2014. Em 29 de junho de 2006, os países
chegaram a consenso junto aos representantes indígenas quanto ao teor da Declaração, para o Brasil, pois problemas como desenvolvimento econômico, social
aprovando-a na Comissão de Direitos Humanos. Durante todo esse processo, a estratégia do
movimento indígena foi a de preferir estender o tempo de negociação a ceder suas
e cultural, incluindo sistemas próprios de educação, saúde, financiamento
reivindicações básicas ante Os países contrários, capitaneados pelos Estados Unidos. A e resolução de conflitos, direito ao consentimento livre, prévio e informa-
Declaração já aguardava aprovação final da Assembléia Geral da ONU desde novembro de do, furto de suas propriedades, direito a manter suas culturas, suas línguas,
2006, mas um grupo de países africanos apoiados por Estados Unidos e Canadá levantou de |
última hora objeções quanto. ao alcance de termos como “povos” e “autodeterminação”. Os
argumentos se referiam ao suposto risco de criar divisões
bem como ter acesso a todos os meios tecnológicos e de comunicação,
e conflitos étnicos, bem como
ameaça às fronteiras dos países. Por fim, após intensa pressão de representantes indígenas e de entre outros, são de grande relevância na atualidade.
Outros países africanos e americanos, a Declaração veio a ser finalmente adotada pela Assembléia
Geral: da ONU, com 143 votos a. favor, onze abstenções e quatro votos contrários
(Estados
Paixão (2006, p. 125) destaca que, segundo dados da Funai, atualmen-
Unidos, Nova Zelândia, Canadá e Austrália). , te existem cerca de 345 mil índios, distribuídos entre 215 sociedades indí-

146 147
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CariTuLo 6

genas, que perfazem cerca de 0,2% da população brasileira. Cruzando O QUE É DEMARCAÇÃO DE TERRAS?
esses dados gerados pelo Censo de 2000, existiriam aproximadamente
356 mil pessoas autodeclaradas indígenas vivendo fora das terras comu-
| Segundo Almeida e Castro (2007), “Trata-se de proce
nitárias, inclusive em áreas urbanas. À Funai também estima que existam dimento admi-
aistrativo que tem por objetivo fixar os limites do
cerca de 53 grupos ainda não contatados, além de grupos que estão re- território tradicional.
mente ocupado pelos povos indígenas”. Referido
querendo o reconhecimento de sua condição indígena. procedimento tem
substrato constitucional, vez que a Carta Magna, no
Ambos os aspectos são indissociáveis e não podem set tratados sepa- seu artigo 231 e res-
pectivos parágrafos, traz a previsão da demarcação clas
tadamente, sob pena de a questão restar mal compreendida, Se forem terras tradicional.
mente ocupadas pelos indígenas. Sempre gue uma
consideradas somente as populações indígenas brasileiras, ver-se-á que comunidade indígena
possuir direitos sobre uma determinada área, nos
existem perto de 217 etnias que se expressam em aproximadamente 170 termos do $ 1º do
aro e ca CF, o poder público terá a atribu
línguas. Segundo o IBGE, há 604 áreas reconhecidas como indígenas, ição de identificá-la e
elimitá-la, de realizar a demarcação física dos seus limi
compreendendo 12,5% do território nacional (106.359.281 hectares), com istrá-
em cartórios de registro de imóveis e de protegê-la.
significativa concentração na Amazônia Legal. Esse processo de demar- Eos ae o
vinculados ao próprio caput do artigo 231 e, por essa
cação encontra-se, ainda, em curso, com 70% das terras indígenas regula- razão, a União não |
pode deixar de promovê-los.
tizadas, ou seja, demarcadas e homologadas (apud PAIXÃO, 2006, p. 126).
Nesse sentido, a União, por expressa disposição
O texto constitucional de 1988 trata de forma destacada no artigo constitucional, tem a
propriedade sobre referidas terras, mas aos índios deve
231, 4 1º, do conceito de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ser assegurada
sua posse permanente, inclusive garantindo-lhes o usufru
definidas como “aquelas por eles habitadas em caráter permanente, as to exclusivo das
tiquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes
utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preserva- (artigo 231 $2º
CH). Além disso, pela leitura, sobretudo do caput do att.
ção dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a 231, constata-se
que tem a União a obrigação de promover os atos necess
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. ários à demar-
cação física dos limites dos territórios indígenas e sua respec
Terras que, segundo o inciso XI do artigo 20 da CF, “são bens da União” tiva proteção.
(ALMEIDA; CASTRO, 2007). Segundo esses autores,
e que, pelo $.4º do artigo 231, são “inalienáveis e indisponíveis e os direi- a Lei nº 6.001, de
19 de dezembro de 1973, denominada Estatuto do
tos sobre elas impresctitíveis”. Índio, assim dispõe:
Embora os índios detenham a posse permanente e o “usufruto exclu-
Art 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do
sivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes em suas terras,
órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente
conforme 0 $ 2º do artigo 231 da Constituição, elas constituem patrimônio demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto
da União. E, como bens públicos de uso especial, as terras indígenas, além do
Poder Executivo. Após a promoção da demarcação, esta deverá
de inalienáveis e indisponíveis, não podem ser objeto de utilização de ser
homologada pelo Presidente da República, sendo registrada em Ser-
qualquer espécie por outros que não os próprios índios. Os grupos indí- viço do Patrimônio da União (SPU) e no registro imobiliário da
genas não podem ser removidos de suas terras, a não ser em casos de comarca da situação das terras. O dispositivo legal acima transcri-
catástrofe ou epidemia, com o referendo do Congresso Nacional, ou no to refere-se ao Decreto nº 1.775, de 08: de janeiro de 1996; que
interesse da'soberania, com aprovação prévia deste. Alguns juristas, a exem- regulamenta o art. 2% IX, da Lei nº 6.001/73. O início do
plo de'José Afonso da Silva (2005), atribuem a tal disposição o status de processo demarcatório em análise se dará por meio da identificação
princípio da irremovibilidade
dos índios de suas tertas. e delimitação da área, que será realizada or um grupo técnico de
trabalho. Outrossim, a teor do disposto no art. 2º do Decreto

1.775/96, a demarcação deverá necessariamente ser fundamenta-

148 149
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 6 - a e a

.B . 74
da em irabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reco- ção , registro .
nhecida, que elaborará estudo antropológico de identificação. É importante enfatizar aqui os dados. da FUNAI em relação às- terras
indígenas que se encontram em processo de demarcação e que
estão: mi-
Além dos estudos antropológicos, serão realizadas avaliações comple- nimamente na fase de serem identificadas. Segundo Paixão (2006;
p: 125),
mentares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e “esse território alcança 98.954.645. hectares, perfazendo 11,58%:
do total
ambiental, além do levantamento fundiário necessários à delimitação. Após do território brasileiro. Outras 139 áreas ainda estão em: processo-de
idenz
a conclusão dos trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico tificação”.
deverá apresentar relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência Para este autor: E
ao índio, caracterizando, desse modo, a terra indígena a ser demarcada. A
demarcação de terras, nesse sentido, tem como objetivo garantir o direito Embora a Constituição de 1988, do ponto de vista político e jurt-
do indígena « terra. Assim, foi com a aprovação do Estatuto do Índio, dico-formal, provocou uma rupinra no regime do ocnltamento e da
em 1973, que esse reconhecimento formal passou a obedecer a um pro- invisibilidade ao conceber que aspessoas indígenas e suas sociedades
cedimento administrativo. configurem-se diferenças étnico-culturais. Isso ocorre pelo-reconheci-
Conforme o artigo 19º, “As terras indígenas, por iniciativa e sob oti- mento indissociável:-dos índios e suas organizações sociais, seus u£os;.
entação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativa- costumes, tradições, direito ao território; à educação especiale capa-
mente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto cidade postulatória (2006, p. 127).
do Poder Executivo” (ESTATUTO DO ÍNDIO).
Segundo o Instituto Socioambiental (2007), “tal procedimento, que Embora exista o reconhecimento constituc dessas: ion
comunial
dades
estipula as etapas do longo processo de demarcação, é regulado por de- e de-seu território (terras); os interesses econômicos, o-destespeito
à iden-
creto do Executivo e, no decorrer dos anos, sofreu seguidas modifica- tidade e à cultura desses povos, além da faltade vontade: política; tendem
ções. A última modificação importante ocorteu com o Decreto 1.775, de a. impedir a sua sobrevivênciae-os propósitos de conservação: As
comu-
janeiro de 1996”, A seguir, expõe-se a sistemática atual do processo de nidades indígenas caracterizam-se pela'dependência em relação aos'reci
ir-
demarcação das terras indígenas (T' Is), conforme o disposto no Decreto sos naturais: com os quais constroem seu modo: de vida; pelo conheci-
nº 1.775/ 96: estudos de identificação A aprovação da FUNAI , contes- mento apurado -que possuem da natureza; que é transmitido oralmente de
tações , declarações dos limites da TI , demarcação física , homologa- geração a geração; pela noção: de tertitório e espaço: onde o' grupo
se
reproduz social e-economicamente; pela ocupação - do: mesmo-territór
io!
“ Primeiramente, à FUNAI nomeia um antropólogo com qualificação reconhecida para
elaborar estudo ansropológico de identificação da TI em questão, em prazo determinado. O
estudo do antropólogo fundamenta o trabalho do grupo técnico especializado, que realizará dias, após os 90 mencionados no parágrafo anterior, para elaborar
pareceres sobre as razões dé
estudos complementares de natureza erno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e todos os interessados € encaminh o. procedim
ar ento ao Mini-da stroJustiça: ,
ambiental, além do levantamento fundiário, com vistas à delimitação da TI. O grupo deverá n

ser coordenado por um antropólogo e composto preferencialmente por técnicos do quadro O Ministro da Justiça terá-30 dias para: (a) expedir. portaria, declarando.os
determinando a sua demarcação física; ou (b) prescrever diligências limites da:áreá'e
funcional do órgão indigenista. Ao final, o grupo apresentará relatório circunstanciado à a-serem cumpridas: em'
FUNAI, no qual deverão constar elementos e dados específicos listados na Portaria nº 14, de mais 90 dias; ou ainda, (c) desaprovar-a identificação, publicando
decisão fundamentada no
09/01/96, bem como a caracterização da TI a ser demarcada.
parágrafo 1º do artigo 231 da Constituição :Federal.. :
2

e O relatório deve ser aprovado pelo Presidente da FUNAI, que, no prazo de 15 dias, fará com Declarados os limites da área, a FUNAI promove a sua demarcação
“física, enquanto o-Incra
que seja publicado o seu resumo no DOU (Diário Oficial da União) e no Diário Oficial da (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária); em caráter
prioritátio, procederá ao
unidade federada correspondente, A publicação deve ainda ser afixada na sede da Prefeitura reassentamento de eventuais ocupantes não-índios.
local, , 73 .
O procedimento de demarcação
e . . . no
deve, por fim, ser submetido ao Presidente. da República
PA contar do início do procedimento até 90 dias após a publicação do relatório no DOU, para homologação por decreto. .
todo interessado, inclusive na
estados e municípios, poderá manifestar-se, apresentando ao A tersa demarcada e homologada será registrada, em até. 30 dias após
órgão indigenista suas razões, acompanhadas de todas as provas pertinentes, com o fim de cartório de imóveis da comarca correspondente e no SPU (Serviço
a homologação,
.no
pleitear indenização ou demonstrar vícios existentes no relatório. À FUNAI de Patrimônio “da União).
tem, então, 60 Tonte: <httpawwwinstitutosocioambiental.org.br>. Acesso
em: 29 out. 2007.

150 151
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA - CAPÍTULO 6
'

pos várias gerações; pela importância das atividades de subsistência, mes- reconhecimento, fazendo uma retrospectiva histórica do Brasil e seu con-
mo que em algumas comunidades a produção de mercadorias encontre- texto de sociedades indígenas, da titulação das áreas remanescentes de
se em fases mais ou menos desenvolvidas; pela importância dos símbo- quilombos, bem como da demarcação de terras dos indígenas. Analisou a
los, mitos e rituais associados as suas atividades; pela utilização de legislação brasileira pertinente, bem como o seu reconhecimento no Bra-
tecnologias simples, com impacto limitado sobre o meio; pela auto-iden- sil. Revelou o atual contexto de luta, demonstrando alguns fatos reais que
tificação ou pela identificação por outros de pertencer a uma cultura dife- refletem o incansável esforço pelo reconhecimento jurídico dos direitos
renciada, entre outras (DIEGUES; ARRUDA, 2001). desses grupos e de seu lugar num país de desiguais.
Por fim, é imprescindível, depois de demarcadas e garantidas as terras, Demonstrou que a exclusão social, a intolerância e a discriminação
assegurar, pata cada povo ou comunidade que habite uma terra indígena, contta os quilombolas e os indígenas só pode ser entendida por meio da
um processo. próprio de desenvolvimento, adequado à realidade e ao história dessas comunidades no Brasil. Certo é que esses atores sociais
anseio desse povo ou comunidade. Quanto ao dever do Estado, ele tem tiveram sua história, seu espaço, sua cultura e sua identidade massacrados.
a tarefa de facilitar, fomentar e possibilitar que essa escolha torne-se uma A história dos quilombolas e dos povos indígenas foi marcada pela opres-
realidade, constituindo-se esse o grande desafio que a FUNAI hoje tem são, pela perda de suas terras e sua identidade cultural. Na reversão desse
pela frente, quadro tornam-se relevantes os movimentos reivindicatórios e de luta,
Nesse sentido, uma das reivindicações teferentes à reestruturação do que nascem do empenho pela reconquista das terras e da preocupação
órgão indigenista é justamente essa, ou seja, promover à substituição do com o resgate cultural, sinalizando para a construção de uma nova identi-
velho modelo de indigenismo, catacterizado pelo paternalismo e dade cultural, própria dos dias atuais.
clientelismo, segundo o qual os índios são tratados como uma realidade O preconceito para com tais comunidades é unia realidade que dis-
genérica (índio genérico) e em vias de desaparecimento, por um novo tancia a perspectiva de igualdade sinalizada pela concepção de cidadania e
indigenismo, em que as múltiplas realidades sejam contempladas por di- de inclusão social. Profundamente entaizado, o preconceito e a conse-
ferentes formas de planejamento e experiências indigenistas. quente discriminação acabam estabelecendo uma barreira entre os dois
A cultura dos índios aparece talvez como algo que não apenas deve mundos: o do não-branco (índio e quilombola) e o do branco, como se
ser protegido, mas que deve ser respeitado e reconhecido como parte da fizessem parte de realidades distintas, realidades que impossibilita a com-
História do Brasil. A especificidade do conhecimento antropológico como preensão de cidadania como igualdade entre os indivíduos.
um saber enraizado na prática etnográfica, pode fornecer alguma luz. O que se busca é o respeito às diferenças culturais de cada um, reco-
Uma característica do envolvimento dos etnógrafos com as comunida- nhecimento, tolerância e efetividade legislativa, para que um dia seja pos-
des em que desenvolveram suas pesquisas é a contração de uma dívida sível a tomada de consciência do verdadeiro sentido de ver e compreen-
que, por definição, jamais será paga (SOUZA, 2007, p. 13). der o outro.
Vislumbra-se, no entanto, um certo otimismo. Num mundo de cons- Constata-se que a Constituição Federal de 1988 inovou muito em re-
tantes desafios e em mutação, as instituições, a legislação e, principalmen- lação às outras Cartas Constitucionais brasileiras, em especial porque aban-
te, os indivíduos precisam vencer as intolerâncias, os preconceitos e con- donou o paradigma da integração para dar lugar ao paradigma da
viver com a diversidade, Aceitar tais realidades é conhecer a nossa própria interação , que respeita a cultura, os valores e as diferenças. À construção
história, pois somos fruto dela, e não há como não considerá-la. dessa nova identidade cultural é fundamental, pois os quilombolas e indí-
genas vivem uma dupla exclusão, vendo-se envolvidos e condicionados
CONSIDERAÇÕES FINAIS. pela cultura dominante. E uma situação contraditória, de existir e não
existir, de não ser branco nem negro ou índio.
Este capítulo abordou a luta dos quilombolas e indígenas pelo seu n . . j
Respeita a cultura, os valores e as diferenças.

152 153
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA —— CAPÍTULO6

O reconhecimento social, cultural, político e jurídico poderá recuperar COSTA, Messias. O Brasil e seu futuro: um-estudo das desigualdades
alguns traços remanescentes de gerações passadas e, aliada ao atual estágio nacionais. São Paulo: Alfa- Omega, 1997,
cultural em que vivem tais comunidades, poder-se-á construir uma nova
dimensão identitária, preocupada principalmente com o fortalecimento CENTRO DE-CARTOGRAFIA APLICADA E INFORMAÇÃO
cultural dos quilombolas e indígenas, Nessas ações torna-se relevante o GEOGRÁFICA (Ciga); da Universidade de Brasília (UnB), Cadastro
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158 159
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 7

podem ser chamados a atuar como assistentes técnicos do juiz ou dos brasileiro quanto às diferenças culturais.
advogados das partes. À centralidade conferida ao saber antropológico Identicamente aos profissionais do Direito, para a Antropologia a re-
tem se constituído, assim, um desafio teórico-metodológico à profissão e flexão sobre tal tema é um exercício recente, bem como um caminho
à academia, na busca de aperfeiçoamento quanto à formação teórica e - desafiador em direção aos objetivos e qualidade desejados nesta constru-
critérios eficientes e éticos para o desempenho dessas novas atribuições. ção interdisciplinar, na qual teoria e metodologia mostram permanente
Em seu artigo “Os Laudos Periciais — Um Novo Cenário na Prática construção. O saber antropológico extrapola uma Antropologia essenci-
Antropológica”, Ilka Boaventura Leite (2005) tece expressivo histórico, almente acadêmica, com pesquisas de campo e etnografias sobre socieda-
balizado pela conjuntura do país, sobre o início, o crescimento de deman- des tradicionais (indígenas, camponesas, quilombolas, caiçaras etc.), e al-
das e a consolidação da prática de laudos antropológicos nos âmbitos cança espaços de atuação extra-acadêmica, como pondera Cláudia Fon-
administrativo e judicial, apontando referências bibliográficas basais como seca (2004, p. 81-82). A prestação de consultorias nas áreas de saúde,
“A Perícia Antropológica em Processos Judiciais” (SILVA; LUZ; HELM, educação, saberes, culturas, línguas indígenas, a elaboração de laudos an-
1994) e “Laudos Antropológicos: Carta de Ponta das Canas” (NUER/ tropológicos pata a demarcação de terras, de estudos socioambientais
UFSC, 2001) . O marco de consolidação dessa prática é o texto constita- sobre o impacto potencial de obras, de avaliações quanto a políticas de
cional de 1988, que consubstancia o reconhecimento da diversidade cul- preservação do patrimônio histórico, de estudos de cultura material e
tural como integrante do Estado brasileiro (BECKHAUSEN, [s.d.], p. 6). imaterial, e organização de exposições museológicas, entre outras,
Em 2001, durante o “Seminário sobre Territorialidade Guarani. À exemplificam as áreas de atuação. Tais atribuições requerem especializa-
Questão da Ocupação Tradicional”, a procuradora Analúcia Hartmann, ção de profissionais, interlocução multidisciplinar, diálogo intetinstitucional.
da Procuradoria da República em Santa Catarina (PR-SC), afirmou que Convidam a atualizações e conjugam competência, responsabilidade pro-
bons laudos oferecem substrato ao trabalho dos procuradores e acen- fissional e comprometimento ético
tuou a necessidade dos conhecimentos e práticas antropológicas para a Nesse sentido, eventos como cursos, grupos de trabalho e oficinas
viabilização de seu trabalho no amparo dos direitos de grupos de culturas têm sido organizados. Leite (2005, p. 23) menciona curso de laudos an-
diversas. Embasando-se no artigo 129 da Constituição Federal, que pon- tropológicos por ela ministrado quando da reunião da VIII ABANNE,
tua as funções do Ministério Público Federal, o que inclui a defesa dos em 2003 . O NUPAUB , em 2004, efetivou o curso “Conhecimentos
direitos e interesses indígenas, Marcelo Beckhausen (Ís.d.], p. 4), também Tradicionais, Formas de Acesso e Repartição de Benefícios” visando, en-
procurador da República (PR-RS), declara apostar no diálogo entre o tre outros, a “capacitar profissionais para a realização de laudos antropo-
Direito e a Antropologia, visando à consolidação do texto constitucional lógicos e acompanhamento de trabalhos em terras indígenas e de comu-
nidades locais, em atendimento aos requisitos do novo projeto de lei de
* Professora do Departamento de Antropologia e PPGAS da UFSC, Ilka B. Leite é coordenadora
do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas (NUER) e, por conseguinte, “regulamentação do acesso aos recursos genéticos”. Em 2007 ocorreu o -
do seu Projeto Quilombos no Sul do Brasil: Estudos Antropológicos com vistas à Aplicação
do Decreto 4.887. Organizadora da Oficina sobre Laudos Antropológicos (ocorrida na Ilha de
curso “O Trabalho do Antropólogo em Situações de Perícia”, em Salva-
Santa Catarina em 2000), autora do laudo da Comunidade de Casca (LEITE, 2002), entre outros, dor/BA”, cujo objetivo geral apontou para: “introduzir e familiarizar,
organizadora do livro “Laudos Periciais Antropológicos em Debate” e de grupos de trabalho
e fóruns de pesquisa nos eventos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) há mais de
uma década, coordenadora do GT Laudos Antropológicos da ABA no biênio 2000-2001, 80 . . .
Para aprofundamento do trabalho do antropólogo no Brasil, somando preparo profissional
ministrante de cursos de laudos periciais antropológicos no âmbito do PPGAS/UFSC ou
e posicionamento /comprometimento político, consultar Peirano (1995).
fora dele, a pesquisadora tem inscrito posição central para o avanço qualitativo da temática em
foco, rejuntando pesquisa de campo e sistematização teórico-metodológica. M Reunião da Associação Brasileira de Antropologia — Norte e Nordeste, ocorrida em São
7 « ” A = A +, . a Luís/MA. Curso ministrado em conjunto com o antropólogo Alfredo Wagner Almeida.
À autora assinala a importância dos convênios assinados entre a Procuradoria-Geral da
República e a ABA - o primeiro datado de 1987 - que têm o intuito de estreitar a colaboração É Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas ÚUmidas Brasileiras/USP;
entre os trabalhadores dos campos da Antropologia e do Direito na consecução de direitos Dados constantes da página eletrônica g , acessada em 22.10.07.
constitucionais. Vale sublinhar que a interlocução entre a ADA co MPE (Ministério Público
Federal) tem produzido importantes ferramentas para a qualificação dos estudos e documentos * Oferecido pelo Programa de Pesquisa Povos Indígenas no Nordeste do Brasil (PINEB -
derivados de perícias técnicas antropológicas. : FFCH/UFBA) e a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAL), o curso teve como

159 143
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTuLO 7

panoramicamente, o antropólogo em fase final de formação ou recém- regras particulares para condução do inquérito, meios de avaliação
formado [...] com os debates e conhecimentos próprios ao âmbito de distintos e, sobretudo, porque visam subsidiar a tomada de decisão
produção, de perícias antropológicas no Brasil”. Reuniões de Antropolo- sobre os fenômenos que estudam. Isso de modo algum os anula ou
gia (RBAs , RAMs , ABANNES) têm gerado reflexões, qualificações e desqualifica enquanto fonte de conhecimento, nem os remete neces-
publicações a respeito, espelhando o investimento da Associação Brasilei- sariamente ao exercício de papéis exteriores e apensos à condição de
ra de Antropologia (ABA) no debate relativo aos laudos antropológicos e antropólogo. Aponta, ao contrário, para questões teóricas e.
ao ofício do antropólogo no resguardo dos direitos socioculturais de metodológicas complexas e muito instigantes para o desenvolvimento
povos indígenas e outras minorias. da própria disciplina, bem como para a definição de seus espaços
Outros fóruns têm sido organizados com o fito de possibilitar legítimos de exercício profissional (idem, ibidena, p. 273).
aprofundamentos teórico-práticos, como o evento “Ensino de Antropo-
logia: Diagnóstico, Mudanças e Novas Inserções no Mercado de Traba- Vejamos, assim, algumas reflexões sobre laudos, enfatizando experi-
lho” , no qual apresentamos ponderações a respeito da questão indígena ências etnográficas nas quais questões teóricas e metodológicas emergem
(MELLO, 2002). Acompanhamos também discussões ampliadas junto concretamente.
ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da
UFSC, que ofereceu disciplinas voltadas aos temas, como Projetos de LAUDO DE IDENTIFICAÇÃO ÉTNICA
Desenvolvimento e a Elaboração de EIA/RIMAs, ministrada pelo pro-
fessor doutor Silvio Coelho dos Santos, em 2000, e Laudos Antropolópi- Laudos de identificação étnica são produto de perícia técnica antro-
cos, a cargo da professora doutora Ilka Boaventura Leite, em 2003, por pológica que pretende reunir elementos que indiquem a plausibilidade da
exemplo, afirmação de pertencimento de um grupo social a um grupo étnico de
Pode-se dizer que no campo de conhecimento da Antropologia, a otigem cultural americana ou africana. No caso quilombola, é requisitado
articulação e o refinamento teórico-metodológico quanto a laudos têm se majoritariamente em processos de regularização fundiária de terras de
constituído num fecundo processo, o que inclui o incremento da produ- ocupação tradicional por grupos sociais de egressos da escravatura, os
ção bibliográfica, e insere-se em significativo movimento a favor da cida- quilombos. No caso indígena, é adotado em processos fundiários e tam-
dania e autodeterminação dos grupos sociais estudados no Brasil. Os bém em processos que envolvem indígenas como uma das partes. Em
desafios do trabalho do antropólogo, contudo, são inúmeros, dadas in- processos fundiários, o laudo de identificação étnica indígena é o instru-
clusive “as expectativas e demandas da sociedade (e dos índios em parti- mento empregado pela Funai para análise e definição de determinados
cular) sobre o antropólogo” (OLIVEIRA, 2002, p. 257). grupos que pleiteiam o reconhecimento oficial do Estado brasileiro quan-
to a uma coletividade etnicamente diferenciada, indígena. Consiste em
Os landos periciais (judiciais ou administrativos) constituem mm peça técnica, inserida em processo administrativo, mediante a qual o ór-
gênero narrativo bem diverso das teses, monografias, comunicações, gão indigenista oficializa ou não esses grupos como indígenas, estenden-
artigos e ensaios, pois possuem finalidades distintas, são dirigidos a do-lhes ou não os direitos que lhes são concernentes legalmente. Um des-
um público bem específico, tém canais de financiamento próprio, ses direitos é justamente o fundiário. Assim como observado por Olivei-
ra (1998b, p. 61-62), reivindicações e mobilizações de povos indígenas
coordenadora geral a professora doutora Maria Rosário Carvalho. Dados constantes da página não reconhecidos pela Funai ou descritos na literatura etnológica se relaci-
eletrônica wwwacedefesorg.br, acessada em 22.10.07.
84 =" o . onam à territorialização. Em 2003, o órgão indigenista registrava cerca de
Trata-se das Reuniões Brasileiras de Antropologia.
Bs o . 20 solicitações de identificação étnica (ALMEIDA, 2003, p. 3). Em sínte-
Reuniões de Antropologia do Mercosul.
se, pode-se dizer que a identificação étnica converge definitivamente pata
“ Organizado pela ABA e cfetivado em Ponta das Canas (Ilha de Santa Catarina) no ano 2002.

164 165
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 7

a identificação territorial. Ambas estão entrelaçadas. determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Con-
Embora a Carta de Ponta das Canas, elaborada coletivamente em venção?. O Brasil tornou-se signatário da Convenção , o que faz crer que
2000, tivesse explicitado que esses relatórios não possuíam “caráter de o atestado de etnicidade ou autenticidade foi, ao menos nos termos pre-
atestado, devendo ser elaborados como diagnoses das situações sociais téritos, suplantado. Por outro lado, Leite (2005, p. 24) alerta que “estudos
investigadas, que otientem e balizem as intervenções governamentais na sobre identificação étnica ganharam, administrativa ou juridicamente, o
aplicação dos direitos constitucionais” (NUER/UFSC, 2001, p. 12), os caráter de perícia. Esse caráter [...] distancia-se hoje da esfera administrati-
mesmos eram tomados como procedimentos adotados pela Fundação va estatal, mas marca crescente presença em processos judiciais, o que
Nacional do Índio - Funai, como indicativos da “autenticidade” do gru- impõe e renova a necessidade de discuti-lo a fundo”.
po indígena. Nessa direção, tomemos os textos Critérios de Indianidade ou Lições
Lédson Kurtz de Almeida (2003, p. 3), antropólogo responsável pelo de Antropofagia e Parecer sobre os Critérios de Identidade Étnica, de
estudo antropológico pata o reconhecimento étnico do grupo da área Manuela Carneiro da Cunha (1986a, b). Os Instrumentos de Bordo: Ex-
denominada Borboleta (RS), menciona, nesse sentido: pectativas e Possibilidades do Trabalho do Antropólogo em Laudos Pe-
riciais e O Antropólogo como Perito: Entre o Indianismo e o Indigenismo,
Ultimamente a FUNAI vem desenvolvendo uma discussão provei- de João Pacheco de Oliveira (1994, 2002) e No Brasil todo mundo é
tosa no sentido de rever os “eritérios de indianidade” propostos e índio, exceto quem não é, de Eduardo Viveiros de Castro (2006), consi-
seguidos na década de 1980. À recente discussão expressa a preo- derando os devidos contextos temporais, ou seja, mais de duas “décadas
cupação do órgão oficial em reformular os critérios para futuros separam os dois primeiros dos dois últimos o
estudos de identificação étnica. A partir daí supôem-se a busca pela Cunha, em textos anteriores à Constituinte e à Convenção 169, aponta
compreensão das realidades diferenciadas acerca dos povos indígenas para a crescente inquietação manifestada pela Fundação Nacional do Ín-
em decorrência das distintas experiências vivenciadas pelos mesmos dio (Funai) de saber “quem é e quem não é índio”, classificação que visa à
no transcurso do processo de colonização do Brasil. “emancipação” de lideranças e comunidades indígenas consideradas ina-
dequadas no cenário nacional. Assinala também a dinamicidade e variabi-
Igualmente, em 2003, durante o I Encontro Nacional dos Povos em lidade cultural dos grupos indígenas, premissas advindas de situações eco-
Luta pelo Reconhecimento Etnico Oficial e Territorial , o tema foi deba- lógicas e sociais nas quais se encontram, sem a perda da identidade pró-
tido, sendo declarado pela representante da Funai que o órgão não mais ptia.
procederia nesses termos, passando a adotar o critério da autodeclaração Oliveira (1994, p. 116) chama a atenção de ântropólogos e juristas
como procedimento suficiente para o reconhecimento étnico oficial, de- para a complexidade não apenas da tarefa peticial, mas também de seu
cisão bem recebida pelos participantes. À determinação da Funai se lugar e o do antropólogo:
consubstanciava nos termos da Convenção 169 da Organização Interna-
cional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Indepen- O antropólogo pode efetivamente assegurar que um determinado
dentes que, em seu artigo 1º, estabelece: “A consciência de sua identidade grupo humano é (ou não) “indigena”, isto é, mantém relações de
indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para continuidade com populações pré-colombianas? Ou ainda, pode o
antropólogo estabelecer, tendo em vista tal grupo étnico, qual é pre-
” Refere-se também à Minuta de Proposta de Critérios para Estudos de Identificação
Étnica, elaborada por Rita Heloísa de Almeida, da Funai, Documento datado de março de Lv]
2002. Texto adotado em Genebra em 27 de junho de 1989, aprovado pelo Congresso Nacional
a 4 « = - . . ns através do Decreto Legislativo nº 143/2002 e promulgado pela Presidência da República pelo
livento ocorrido em Olinda/PE, de 15 à 20 de maio de 2003, promovido pelo Cimi/ Decreto nº 5.051/2004.
Nordeste. Contou com a participação de 90 lideranças de 47 povos indígenas do país, A bu
organizações indígenas e representantes de diversas instituições e entidades. Dados constantes
. a . . - .
Considerando-se os anos da primeira publicação dos textos de Manuela Carneiro da Cunha,
da página eletrônica wwmcedefes org.br, acessada em 22.10.07. 1981 e 1983, respectivamente. .

766 167
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLO 7

cisamente o território que lhe corresponde? ser classificado como indígena, apesar das grandes transformações
O antropólogo certamente dispõe da competência específica para por que passou. A resposta deveria ser tentada em duas linhas,
discorrer e analisar tais assuntos. Mas é importante indagar se o uma dirigida à aplicação de uma definição legal, a outra voltada
seu pronunciamento estará sendo interpretado como legitimamente para o convencimento de um público leigo e bem mais amplo. Mas a
o permite a pesquisa antropológica, ou se inversamente, as injunções dificuldade decorre da completa discrepância de significados atribu-
e expectativas contidas no contexto de um laudo pericial, o trans- édos ao termo “índio”,
formam em algo estranho à própria Antropologia.
Estas.são questões muito complexas do ponto de vista antropológi- E reitera que “[...] as definições do status jurídico de um grupo étnico
co, mas para as quais juízes, procuradores e advogados aguardam como “comunidade” ou “povo indígena” não devem ficar atreladas a uma
por respostas precisas. É por isso que qualificam como “perícia” as incerta e disputada materialização de representações genéricas sobre “o
investigações (que o antropólogo chamaria de “pesquisa”) empreen- índio”, muitas vezes verificada em situações radicalmente distintas daque-
didas para a elaboração de “um laudo”, ao qual é intrinsecamente las supostas pelo mito da primitividade” (Zdez, p. 264).
atribuído um elevado grau de exatidão técnico-cientíjica. Viveiros de Castro, em entrevista ao Instituto Socioambiental, desen-
volve com vigor essas questões polêmicas, abarcadas nas indagações:
Após mais de uma década”, Oliveira (2002, p. 259-263) discorre a “Quem é índio? E o que define o pertencimento a uma comunidade
respeito da “definição de um grupo étnico” e da “natureza da continuida- indígena?”. Assinala a retomada do processo incessante de ser índio após
de de um grupo étnico”, correlacionando grupos/comunidades e seus a Constituição de 1988 e defende que quem garante ser índio é o próprio
processos de territorialização. Menciona a radical distinção entre a identi- índio. O problema, para o autor, é a legitimidade da pergunta “Quem é
ficação e a classificação realizadas sobre elementos da flora e da fauna, € índio?”, advertindo ser esta uma pergunta jurídica e não antropológica,
as trabalhadas no mundo humano, sociocultural, alertando para a simpli- uma definição, “um problema posto e resolvido pelo Estado”, uma questão
ficação que jaz sob a autoclassificação. Acentua a permanente dinamicidade à qual os antropólogos devem se posicionar contrariamente, recusando-a
e à transformação das unidades sociais , o que faz com que análises como legítima. Considera não haver culturas inautênticas, uma vez que
situacionais mostrem que classificações e autoclassificações podem não não há culturas autênticas. “A autenticidade é uma autêntica invenção da
ser coincidentes” metafísica ocidental”, esclarece. Com efeito, expõe que “O objeto e o
No item “A definição como comunidade indígena”, Oliveira (2002, p. objetivo da Antropologia [...] é a elucidação das condições de autodeter-
imia DEO Dixie strif EIA?
din
263) pondera: ini AU VIROU MIO

não designa um indivíduo, mas especifica um certo tipo de coletivo. Nes-


Levando-se em conta as finalidades práticas de uma perícia, a se sentido, não existem índios, apenas comunidades, redes (d)e relações
questão a indagar é em que medida um grupo bumano atual, que que se podem chamar indígenas”. Comunidades para além das relações
configure uma unidade distinta e se reconheça enquanto tal, poderia de parentesco ou vizinhança, comunidades com relações de afinidade,
segundo o autor. Comunidades com memória, o que abrange
9 a . . ; - e
Texto reeditado posteriormente, com modificações, em Oliveira (19983). territorialidade. Viveiros de Castro, considerando a dimensão sociopolítica
? Dado que o texto editado em 1994 compôs o Seminário Perícia Antropológica em Processos essencial para a constituição da comunidade como “entidade socialmente
Judiciais, ocorrido em 1991.
sa : . : : . No diferenciada”, que aufere autonomia a si “para estatuir e deliberar sobre
divididos,
Pois que são grupos dominados, colonizados, incorporados a outras populações, sua composição”, entende que “cabe ao antropólogo criar condições te-
modalidades diversas e em diferentes contextos situacionais
esquartejados, remontados “sob
mesma forma organizacional, a qual
(OLIVEIRA, 2002, p. 261), mas que mantiveram “uma
os daquele óricas e políticas para permitir que as comunidades interessadas articulem
prescreve um padrão unificado de interação entre os membros e os não-membr
grupo” (p. 260). . sua indianidade”.
* Como se verá adiante, em relação aos Caxixó e aos Kaingang.

168 169
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaprituLo 7

Foi o que ocorreu, sim e não, no caso dos Caxixó na Região Alto
Rio MG)”, apresentou conclusão contrátia à da Funai, de 1994: os Caxixó
São Francisco, em Minas Gerais. Povo “feito de mistura” » Silenciado, que eram índios.
não se enquadrava na imagem estereotipada de índio, cuja dimensã
o
sociopolítica é apresentada por Vanessa Alvarenga Caldeira (2006).
Con- Tínhamos então dois laudos e, assis, resolvemos solicitar de imedi-
flitos e disputas fundiárias na região na década de 80 significaram ameaça ato um ontro de desempate, etapa necessária de mma eventual ação
concreta de expulsão e dissolução da última base territorial dos declaratória na Justiça Federal em função da resistência da Funai.
Caxixó
que, então, deram crédito à legislação nacional e solicitaram
providências O procedimento administrativo seguinte foi convencer a FUNAI
quanto à regularização fundiária. Os Caxixó, todavia, não
eram conside- da necessidade de confecção desse terceiro laudo, a fim de que se
rados índios pelo Estado brasileiro e disso resultaram três laudos
de reco- prsesse fim à celeuma (CRUZ, 2008, p. 11).
nhecimento étnico, no transcurso de oito anos. Laudo Antropológico
so-
bre a Comunidade denominada Caxixó, o primeiro, datado de 1994, de As palavras do procurador da República Álvaro Ricardo de Souza
autoria de Maria Hilda Baqueiro Paraíso, concluiu que os Caxixó
não se Cruz, que acompanhava o caso desde 1996, apontam para à importância
consubstanciavam como um grupo indígena.
da atuação da PR-MG no que tange à “vitória dos Caxixó”. A Funai,
O grupo, no entanto, se concebia como indígena. De acordo
com mediante essa circunstância, “propôs a realização de uma consultoria an-
Caldeira (2006, p. 13), os Caxixó “manifestaram sua dificuldade
em ter tropológica que fornecesse “uma avaliação técnica detalhada dos pacas
que sintetizar sua trajetória histórica a cada entidade, evento
e/ou órgão antropológicos existentes sobre a comunidade Caxixó ; como explica
público a quem solicitavam apoio. Segundo eles, apresentar
de forma João Pacheco de Oliveira (2003, p. 141), o próprio autor do parecer
objetiva, resumida e ordenada sua história constituía tarefa
árdua e exaus- elaborado em 2001. O estudo, denominado Os Caxixó do Capão do
tiva”, Diante disso, em 1998, o Centro de Documentação Indígena Distante das Imagens da
Eloy Ferreira Zezinho: Uma Comunidade
da Silva (Cedefes) e a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAT) Genérico , concluiu, como o próprio título
Primitividade e do Índio
iniciaram o projeto que os Caxixó do Capão do Zezinho denominaram explicita, pela identidade indígena Caxixó. A análise originou a imediata
“um apanhado de nossa história”. O relatório daí advindo “tentou ao demanda de regularização fundiária. Dessa forma, em 2004 foi a campo
máximo dar voz a esse povo que desejava falar sobre si mesmo, sobre o grupo técnico de identificação e delimitação da Terra Indígena (T )
sua história e sua forma de ver e sentir o mundo”. Assim
sendo, o estudo. Caxixó, coordenado por Vanessa A. Caldeira, cujo relatório preliminar
registrou a história oral Caxixó, levantou dados da historiografia
oficial, encontra-se em análise na Coordenação Geral de Identificação e Delimi-
identificou e contextualizou sítios arqueológicos da região,
refletiu sobre tação (CGID), que compõe a Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF) da
etnicidade e reconhecimento étnico. Constituiu material consult
ado pela
Procuradoria da República em Minas Gerais (PR-MG) para
a produção e addeia, que acompanhou a construção dos critérios de ternitorialidade
de novo laudo antropológico. Elaborado por Ana Flávia Moreira
Santos, Caxixó entre 1997 e 2006, expõe ser a identificação étnica Caxixó um
em 1999, o estudo, originalmente intitulado A História
tá é al?, Sítios processo em construção, sendo os Caxixó produto da história e partici-
Arqueológicos e Etnicidade: Os Caxixó de Martinho Campos
e Pompéu pantes ativos da produção da história do país “Silenciados pela historiografia
oficial, eles lutam para conquistar o seu passado, Como principal instrumento
os .
“A memória social: mos :
caxixó incorpora uma origem a nesse percurso, eles possuem a memória social, sobretudo, a oral. E nesse
heterogênea. Assumin. do-se como uma
“mistura” entre indígenas caxixós, “índios carijós”,
negros escravos e “brancos” governantes,
Os caxixós contemporâneos apresentam seu complex
o contexto de elaboração identitária —
rocesso
: este ocorrido no decorrer de sua história” (CALDEI
misturados”,o consultar Oliveira COTEEr(1998h),
e RA 2006, p. 154). Sobre “povos
: ! P * Laudo publicado no livro Reconhecimento Étnico em Exame: Dois Estudos sobre os
dr
Caxixó, Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003,
Caldeira, V. A. et al, Kaxixó:
. :
quem vs o
é esse povo? A
Relatório Técnico.
“ “ +
Contagem:
- -
Cedefes/
ANAI, 1999b. Parecer Pp publicado no livro Reconhecimento Étnico em Exame: Dois Estudos sobre os
Caxix6. Rio de Janeir »: Contra Capa, 2003.

770 171
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaPíTULO 7

sentido, os fatos não se perderam simplesmente porque não foram grafados segundo o qual é índio aquele que se identifica e é identificado por
— eles permaneceram vivos através da memória” (CALDEIRA, 2006, p. outros como tal,
49. Grifo no otiginal). »
O caso do grupo da área Borboleta (RS) também é paradigmático Em relatório anterior, Almeida (2003, p. 1)
no que tange à temática em pauta . Almeida (2005, p. 4) relata:
[...] expõe elementos que permitirão refletir sobre o reconhecimento
«As reivindicações da comunidade de Borboleta a respeito da regula- da coletividade analisada enquanto um grupo étnico que tem origem
rização fundiária de snas terras remontam, oficialmente, ao ano de e processo histórico comuns. Este grupo possui características da
1987, quando a F UNAI iniciou a tomar as medidas adihis- sociedade kaingang, se reconhece como Kaingang, é reconhecido por
trativas relativas o caso . Daquele momento, até hoje, 0 grupo outros Raingangues como tal e é identificado por regionais, por
passou por um processo de organização encontrando apoio em dife- instituições publicas e por meios de comunicação como Kaingang.
rentes setores da sociedade no intuito de alcançar seus objetivos.
Porém, as iniciativas administrativas tomadas pela FUNAI jun- A partir daí, a FUNAI decidiu pela aceitação formal dosKaingang
to aquela comunidade durante este período não tiveram continuida- da Borboleta com base nas informações fornecidas pelo laudo de
de em decorrência de devidas acerca da legitimidade da identidade identificação do grupo e levando em conta os procedimentos para o
indígena do grupo. Para esclarecimentos a este respeito o órgão reconhecimento étnico de acordo com a regulamentação vigente que
indigenista providenciou estudos sobre a identidade étnica da popu- preconiza a Convenção nº 169 da OIT, que recomenda auto-iden-
lação cujos resulhados foram apresentados em março de 2003, quando Hificação como critério fundamental para o reconhecimento da iden-
o relatório chegou à CGEP. Este relatório de reconhecimento étni- tidade éinica de um grupo. Nestas circunstâncias esta população
co das fainílias da Borboleta forneceu subsídios necessários para que passou a ser incluída em termos de assistência no mesmo plano de
a FUNAI decidisse sobre os próximos procedimentos (Almeida, . atendimento dado aos outros povos indígenas do Brasil, enquanto
-2002, 2003). Assim os estudos para a Identificação e Delimita- aguarda as definições territoriais (ALMEIDA, 2005, p. 10).
ção da Terra Indigena Borboleta visam garantir os direitos Cons-
delucionais a um grande contingente populacional que se auto-iden- No telatório circunstanciado de identificação e delimitação, Almeida
tífica como Kaingang e assim é identificado.
Neste sentido, o grupo da Borboleta se enquadra em um pensamen- a
Borboleta e os Caxixó de MG, no que

ta
to, praticamente consensual na antropologia, que segue o critério em termos históricos. Aponta também para a mistura com outros grupos
5 Tm. . Do ,
étnicos nacionais, aspecto mencionado anteriormente quanto aos Caxixó.
À área reivindicada insere-se nos municípios de Salto do Jacuí, Espumoso, Cruz Alta,
Soledade e Campos Borges (GRÁCIO, 2002, p. 148 ). Héber Rogério Grácio elaborou relatório
complementar ao de José Otávio Catafesto de Souza, mencionado na nota vindoura. O grupo da Borboleta, então, sustentando-se em bases políticas, foi
“Trata-se de um longo processo, descrito e analisado por Almeida (2002, 2003, 2005), que gradativamente resgatando sua memória coletiva e explicitando as
arrola estudos anteriores que não são coincidentes quanto à identificação do grupo étnico,
como: SIMONIAN, Lígia Terezinha Lopes. Informação Técnica 171: “A descendência dos especificidades étnicas, fundamentalmente associadas com a etnia
índios da Borboletae problemas de Terras Indígenas”, MIRAD: 1987, 11p.; SOUZA, José Raingang, compartilhando com está uma mesma continuidade his-
Otávio Catafesto de (Coord). Parecer Antropológico, Jurídico e Histórico de Identificação
da Terra Indigena Borboleta. FUNAI, 1998, 106p.; VEIGA, Juracilda. Algumas observações tórica. Além disso, a explicação dos kaingang da Borboleta para
sobre o Parecer Antropológicoe Jurídico 02/98 de identificação da “Terra Indígena
Borboleta”. 2000, 10p. mistura co o branco condiz com a abertura ao outro, própria
“O autor menciona que a Funai tomou conhecimento da reivindicação sobre a área Borboleta da visão cosmológica e da organização social dos Kaingang (p. 21).
por meio do Ofício CTI/SG/MIRAD nº 14/87, que encaminhou a Informação nº 171/SG/ 102 Do
MIRAD, de 24.08.87, de autoria de Lígia Simonian. Também neste caso, O grupo se posicionou Durante comunicação pessoal do autor em 31.10.07, este grupo possui . representaçã-o no
ante a expropriação e disputas territoriais, bem como preconceitos e discriminações. Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI) do RS.

172 173
EtamintoOS DIE ANTROPOLOGIA J URÍDICA Caríruto 7

Assim como no caso dos Caxixó, direitos territoriais advém de direi- sob responsabilidade da Funai e do Ministério da Justiça. Esse estudo
tos étnicos, coletivos. O Relatório Antropológico Circunstanciado de Iden- deve reunir informações técnicas das áreas referidas para indicar e defen-
tificação da Terra Indígena Borboleta/RS com a Inclusão do Levanta- der os limites propostos para a terra indígena, segundo normas legais
mento Ambiental (ALMEIDA, 2005), portanto, é consequência do pro- indicadas pelo artigo 231 da Constituição Federal, o Decreto 1.775/96 e
cesso que envolve o grupo Kaingang, a Funai e diversos antropólogos, a Portaria 14/96.
processo denominado movimento por Grácio (2002, p. 148). A “categoria
movimento é usada, no contexto interno, para se referir não somente à orga- O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico
nização do grupo na defesa de seus direitos no âmbito político, mas tam- especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio
bém como forma de diferenciar aqueles que são do grupo”. quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de
A etnografia, que abarca a cosmovisão, a memória, a organização realizar estudos complementares de natureza etno-bistórica, socioló-
sociopolítica, o posicionamento ante as sociedades regional e nacional, as gica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário
relações intergrupais, interinstitucionais e intersocietárias, entre outros as- necessários à delimitação (Decreto 1.775/96, art. 2º, 4 19.
pectos, procura apresentar a perspectiva indígena sobre as realidades
vivenciadas pelos grupos no espaço-tempo, a partir de uma relação Dentre as atribuições do antropólogo está a de traduzir inúmeros as-
dialógica. Dentre essas realidades advêm expropriações, reduções, esbulhas, pectos culturais indígenas, como a forma de ocupação territorial, por
novas frentes de ocupação /colonização, desmatamentos, confinamentos, exemplo, aos requisitos legais do documento, em especial na Portaria 1 4/
deslocamentos forçados, diásporas, discriminação, preconceito, mas tam- 96”. Além disso, cabe ao antropólogo reunir e sintetizar as informações:
bém destacam-se estratégias de permanente atualização e composição contidas nos relatórios técnicos dos outros profissionais do grupo de
coletiva, organizacional, cultural. À explicitação dessa conjuntura permite, trabalho para elaborar o produto final deste, que indica as dimensões e os
assim, a consolidação de identificação e delimitação de terras indígenas, limites da terra indígena, e justificar tais limites. Tal atribuição é celebrada
tema abordado no item subsequente. pelo artigo 2º do Decreto 1.775/96: “A demarcação das terras tradicio-
nalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desen-
RELATÓRIO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DE TERRA volvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em
INDÍGENA prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão fe-
deral de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação”.
O relatório circunstanciado Esse estudo corresponde metodologicamente ao fazer clássico de um
de identificação e delimitação de terras
indígenas consiste num laudo técnico antropológico dirigido ao processo antropólogo: a etnografia. Os dados que devem constar no laudo, indica-
sa ) - co O dos na Portaria 14/96, fazem parte dos dados básicos de uma pesquisa
administrativo de reconhecime nto e demarcação de uma terra indígena |,
emográfica: é preciso observar as relações cotidianas das pessoas entre si
e delas com o lugar onde vivem (ou viviam), realizar levantamentos
tua
O processo demarcatório. de terras indígena
, n
s está z definido
+
peto Decreto 1.775/96 - em censitários, genealógicos, descrever aspectos cosmológicos do grupo, suas
substituição ao Decreto 22/91 -, que prevê as seguintes etapas: a) identificação (terra indígena
a ser estudada ou em estudo pela Funai); b) delimitação Glimites aprovados pela Funai, práticas e áreas de usos rituais, cemitérios, lugares sagrados, a relação
publicados no Diário Oficial da União c no Diário Oficial do Estado); c) declaração (fimites
reconhecidos pelo Ministério da Justiça, oportunizando à demarcação física da área); d) socioeconômica e cosmológica do gtupo com tais locais, descrever as
homologação (demarcação homologada pelo presidente da República); e e) regularização
(registro no cartório de registro de imóveis é na Secretária de Património da União).
O
Decreto 1.775/96 introduziu o princípio do contraditório nos processos demarcatórios, o “É As normas para à elaboração do Relatório de Identificação e Delimitação de Terra Indígena
que significa dizer que proprietários ou instituições públicas passaram a ter possibilidade
estão definidas na Portatia 14/06 (Ministério da Justiça), que indica a apresentação de sete
para apresentação comprovada de contestações, analisadas pela Funai, “Transposto O processo
partes: dados gerais, habitação permanente, atividades produtivas, meio ambiente, reprodução
«gal em sua integra, o que pode durar vários anos, as terras passam a integrar o patrimônio da
fisica e cultural, levantamento fundiário e conclusão e delimitação (com a proposta de limites
União Federal, para usufruto exclusivo dos índios.
da àrea demarcada).

174 175
— ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA CarirtuLo 7

atividades econômicas, as relações com a sociedade envolvente ou outros unidade orgânica (OLIVEIRA JR., 1997, Pp. 4) que explicite
a ocupação atual e
grupos indígenas etc. Os estudos para a delimitação da área envolvem Os usos segundo os costumes e tradições daquela comunidade, consid
erando os
pesquisa etno-histórica, bibliográfica e documental, além de entrevistas. A tempos pretérito e vindouro (LADEIRA, 2002, p. 74),
que traduza o
proposta de limites deve ser considerada a partir da indicação da comu- processo de territorialização (OLÍVEIRA, 1998b, p. 56) das
comunidades in-
nidade sobre a obtenção e uso dos recursos naturais do local. O Decreto dígenas, que esteja investida dos significados que articulam
as noções serra
1.775/96 (artigo 2º, $ 3º) define: “O grupo indígena envolvido, represen- « território « territorialidade « territorialização (DARELLA, 2004),
que atenda
tado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em permanente adequação, dada a dinamicidade contextual. Config
urada a
todas as suas fases”. À indicação da comunidade deve ser cotejada com o compreensão indígena do território reivindicado e definid
os os limites
attigo 231. (S 1º) da CF, que determina as quatro situações que propostos para a terra indígena, um laudo precisa ainda incorp
orar refle-
consubstanciam, em conjunto e sem exclusão, o conceito de terras tradici- xões e proposições sobre o entorno da TT, à ocupação não-in
dígena na
onalmente ocupadas pelos índios, a saber: a) as áreas por eles habitadas TI, as estratégias de manutenção e controle da TI pelos
indígenas, a
em caráter permanente; b) as áreas utilizadas para suas atividades produ- desintrusão, a vigilância, recuperação e gestão ambiental,
prevendo o fu-
tivas; c) as áreas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais turo do povo indígena (OLIVEIRA JR., 1997, p. 6) .
necessários ao seu bem-estar; e d) as áreas necessárias a sua reprodução É importante lembrar que na instância de análise do relatório circun
s-
física e cultural, de conformidade com seus usos, costumes e tradições. tanciado de identificação e delimitação, muitas vezes os profiss
ionais ana-
Fica a cargo do antropólogo determinar a procedência da reivin- listas levam em consideração mais os aspectos políticos e as interl
ocuções
dicação indígena e defender tecnicamente essa decisão, que deve registrar com a sociedade envolvente que a reivindicação e a memóri
a indígenas.
a manifestação indígena a respeito da proposta de limites e “as razões e Assim, o laudo antropológico deve ser resultado de uma perícia
técnica,
fundamentos do acolhimento ou rejeição, total ou parcial, pelo Grupo que atende a quesitos específicos, mas acaba, por vezes, sendo
também
Técnico, do conteúdo da referida manifestação” (Portaria 14/96, artigo um instrumento à mercê de apreciações c interesses de cunho
político.
29. À responsabilidade técnica e a ética profissional são requisitos pata a Efetivada a aprovação do relatório e sua publicação no Diário
Oficial
tomada de decisão antropológica. da União (DOU) pelo titular da Funai, encerra-se a fase
de identificação e
Em casos nos quais o grupo indígena detém a maior parte da ocupa- delimitação e inicia-se o processo de demarcação propriamente
dito, como
ção da área em demarcação ou áreas de baixa densidade populacional, define o Decreto 1.775/96 (4 89):
por exemplo, a aplicabilidade dessas situações tem conotações distintas
aoo sul 1 do
de bras, cnhac o processo MUSTOIico GS
1 .
e r dJário
Desde o inicio do procedimento demareatório até noventa dias após
1 ER) 1
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À contexto tunaiario
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4 3 AÇO friGrA dir

contato impôs paulatina expropriação 20 longo dos séculos, que, soma- a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados
do à despopulação drástica, ao corifinamento, escravidão e extermínio e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais
das etnias que habitavam o território, causou inúmeros reartanjos na for-
ma de ocupação territorial desses povos e restringiu drasticamente a ocu- É Há considerável bibliografia advinda da análise da história da
política demarcatória de terras
pação do território original. indígenas no Brasil, de pesquisas a respeito de posicion
amentos da Funai, das categorias
presentes no artigo 231] do texto constitucional e os entendim
Tais aspectos nos fazem acentuar um pressuposto para O entendimen- das mesmas (como “terras tradicionalmente ocupadas”,
entos e interpretações a respeito
“caráter permanente”), da legislação
to do relatório circunstanciado, qual seja, precisamente a fluidez da identi- específica vigente, do “fazer antropológico” nessa circunstâ
ncia específica de produção de
laudo, de conflitos e impasses no transcurso de todo
o procedimento, da mobilização e
“ficação e delimitação de uma terra indígena. O relatório e, por conseguin- participação indígena, de resultados obtidos no que tange à regularização fundiária
indígenas, como apresentado por CEDI (1991), Santilli (1993), de terras
te, a proposta territorial, é fruto de uma construção tanto social quanto Oliveira Júnior (1997), Oliveira (19984), Kasburg e Gramkow
Silva, Luz e Helm (1994),
(1999), NUER/UFSC (2001),
histórica e política, um movimento com decisiva participação e Gramkow (2002), Lima e Barroso-Hoffmann (2002), Lima
e Barretto Filho (2005), Ricardo
(2000), Ricardo e Ricardo (2006), para citar alguns exemplos.
protagonismo indígena. À terra indígena sendo concebida como uma Os próprios relatórios
circunstanciados, por vezes disponibilizados oficialmente após sua aprovação,
largo aprendizado em relação às questões aqui expostas. são fontes de

176 177
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTULO 7

interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de as- das etnias mais excluídas do processo de reconhecimento dos direitos
sistência ao índio rações instruídas com todas as provas pertinentes, territoriais indígenas, se não a mais excluída. Os Guarani apresentam ocu-
tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações pação territorial circular, baseada na mobilidade das famílias entre aldeias,
de testemunhas, fotografias e mapas, para o firy de pleitear indeni- com adventos de migrações e circulação de bens e víveres: Habitam um
zação ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de território tradicional que abrange do litoral às bacias dos tios Paraná e
que trata o parágrafo anterior. Uruguai, espalhando-se por todo o cone sul do continente. O Território
Guarani, por eles denominado Yvy Rupa, compteende extensão que abar-
Nessa etapa encerra-se a participação do perito antropólogo que co- ca Brasil (RS, SC, PR, SP, RJ, ES, MS), Argentina (Misiones), Paraguai e
otdenou o grupo técnico de identificação e delimitação, contudo o pro- Uruguai, de forma não-exclusiva, e é substrato às redes de parentesco e
cesso pode ainda requerer a assessoria técnica antropológica, seja no pa- de intercâmbio e ao movimento, aspectos basilares nos campos social,
pel de assistente técnico do juiz que proferirá a sentença sobre os parece- político, econômico e cultural dessa população indígena. As fronteiras
res relativos às razões e provas apresentadas, seja ainda na controversa impostas pelo surgimento dos estados nacionais ftagmentaram o extenso
figura do autor de um contralaudo, como é denominado o documento território de ocupação não-exclusiva, mas a circularidade característica
que refuta o relatório circunstanciado de identificação e delimitação, con- desse grupo corroborou para a manutenção de uma efetiva unidade cul-
testando parcial ou integralmente o direito territorial indígena assinalado tural e linguística dentro desse espaço físico que une as aldeias espalhadas
pelo grupo técnico. Essas distintas atuações de profissionais de Antropo- dentro do território. o
logia têm trazido a lume aspectos da ética profissional e da formação A morosidade do reconhecimento dos direitos fundiários e da |
técnica desses petitos, como veremos adiante, concretização dos processos demarcatórios das terras Guarani é decor-
Discorreremos aqui sobre a questão da demarcação de terras Guarani, rente de aspectos como a incompreensão da forma de ocupação territorial
por apresentar peculiaridades determinantes ao entendimento de “terra desse povo por parte dos órgãos governamentais responsáveis pela regu-
tradicionalmente ocupada pelos índios”, Uma breve comparação entre o - latização fundiária e de articulações políticas contrárias às dematcações,
número de aldeias tanto ocupadas quanto desocupadas com o número com pressões e Jobbies de interesses antagônicos. Na década de 90, por
de terras indígenas demarcadas para a etnia, permite constatar a exemplo, o DEID (Departamento de Identificação e Delimitação/ Funai)
inadequação da situação Guarani ao direito assegurado pela CF a todos considerava terras Guarani apenas as áreas ocupadas no momento do
Os povos indígenas no país. Na maioria dos casos, não é posto em dúvida estudo, não considerando a mobilidade como elemento estruturante da
o pertencimento dos grupos familiares à etnia, uma vez que a maioria dos territorialidade Guarani. No início deste século a CGID (Coordenação
grupos Guarani mantém traços culturais evidentes, como o uso da língua Geral de Identificação e Delimitação /Funai) deflagrou um retrocesso
indígena e valorização da endogamia cultural. Diferentemente dos exem- notável nos processos de demarcação de terras Guarani, o que foi cons-
plos trazidos anteriormente, das etnias Caxixó e Kaingang, não há dificul- tatado na gestão vigente, que tem dedicado especial atenção à especificidade
dades técnicas na identificação étnica de um grupo Guarani e sim na com- territorial Guarani e ao contexto sul e sudeste. Essa mudança na orien-
provação da ocupação tradicional.
O povo dos Guarani reúne o maior contingente populacional indíge-
“É Nesse sentido, o coordenador da CGID, antropólogo Paulo Santilli, em conjunção com a
na do Brasil, com uma população transnacional que supera 65 mil pes- Diretoria de Assuntos Pundiários e à Presidência da Funai, organizou a Revnião de
soas, segundo estimativa de Assis e Garlet (2004, p. 45). Possuem uma das Planejamento dos Estudos para Identificação e Delimitação das Terras Indígenas nas Regiões
Sul e Sudeste do país - O Contexto Guarani e Tupi-Guarani, ocorrido em Brasília/DF, de 19
mais longas e documentadas histórias de contato com as frentes coloniza- a 21 de setembro de 2007. Consta da memória do evento: “A reunião dedicada ao planejamento
dos estudos antropológicos a serem desenvolvidos visando ao reconhecimento oficial dos
doras européias, logrando manterem-se em relativo isolamento, suficiente direitos territoriais indígenas nas Regiões Sul e Sudeste do país pautou-se pela- discussão
pata garantir a permanência e reprodução cultural. Apesar disso, é uma teórica e metodológica das pesquisas ernográficas para a identificação e delimitação das terras
Guarani”. Trata-se de um esforço histórico para o avanço do processo dematcatório de áreas
Guarani no país, que vem sendo assessorado pela Comissão Nacional Terra Guarani Yoy Rupa

178 179
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CAPÍTULO 7

tação política de reconhecimento dos direitos territoriais Guarani embasa- Gimenes, “Onde vivem os índio
s agora tem que ser
se nas conclusões teóricas dos estudos sobre a forma de ocupação do, porque cada vez aumenta mais
garanti
territorial Guarani, como pode ser percebido, por exemplo, nas teses de o branco, Se não crer deaçaa
muda o governo, muda a lei, então
Litaiff (1999), Ladeita (2001), Ciccarone (2001), Datrella (2004), Bertho não vai respeitar sem demarcação.
Tem que conseguir demarcação onde
(2005), Mello (2006), Assis (2006) e Pissolato (2006), sobretudo para o vivem os índios nesse litoral para
ter espaço para a gente”.
caso dos grupos familiares Guarani Mbya. Vale sublinhar que os desloca- Tal posição, explicitada em 2002
"mentos territoriais realizados pelos Guarani são há muito objeto de pes- por Darella (2004, p. 208), aponta
para a atual preocupação dos Guarani
quisa e as abordagens atuais focalizam aspectos sociológicos e com relação ao reconhecimento
dos seus diteitos territoriais. Esses direi
cosmológicos telacionados a esses movimentos. O conceito de território, tos estão no bojo da conjunção
entre a concepção de território de ocup
nessa côncepção, conjuga etnicidade, territorialidade e tradicionalidade, ação tradicional Guatani e a legis-
lação demarcatória brasileira.
economia e parentesco, ideologia e práxis. Faremos aqui referência mais especifi É
O Estado de Santa Catarina — parte social e cosmologicamente funda- camente às TIs Morro dos Ca-
valos (Palhoça) e Araça'í (Cunha Porã
mental do território tradicional Guarani —, por exemplo, sofreu significa- e Saudades), no litoral e no oeste
catarinense, respectivamente. As duas
tivo atraso na questão da demarcação de áreas Guarani, datando de 1993 áreas estão em processo de demar-
cação, porém em estágios distintos.
a formação do primeiro grupo técnico de identificação e delimitação. O telatório circunstanciado da TI
No litoral daquele Estado existem hoje 18 aldeias , além de famílias Morro dos Cavalos (LADEIRA
2002) explana, com Slareza, a ocupação,
desaldeadas ”, No interior, encontramos aldeias Guarani no Alto Vale do estratégias de uso da área, orga-
nização socio
política, a visão das famílias sobre a conj
Itajaí eno Oeste | assim como grupos que vivem no Meio Oeste e untura, Este docu-
mento, composto por textos, relatos,
no Extremo Oeste . No total, a população Guarani no Estado perfaz fotografias, genealogias, quadros
imagens de satélite, desenhos, fotografia
uma população aproximada de mil pessoas, entre Guarani Mbya e Chiripá. s aéreas e mapas, exemplifica a
interseção entre etnografia e laudo
Os locais de ocupação Guarani em Santa Catarina encontram-se em técnico, consubstanciando o direito
territorial dos Guarani
do passado ao futuro, apresentado na deli
situações" fundiárias diferenciadas, estando algumas em processo de de- da área, com dimensão de 1.988 hecta mitação
marcação e outtas sem quaisquer procedimentos a respeito. De todas as res, assentada sobre a noção de
venpação e sso atual, A comunidade de
aldeias /áreas existentes, apenas duas têm o processo de demarcação con- Morto dos Cavalos, ao ponderar
sobre limites da TI, assim se pronunciou:
” .
.
, É

cluído: Terra Indígena Mbiguaçu e Terra Indígena Cachoeira dos Inácios


(Marangatu). Na perspectiva do Guarani Mbya, segundo Darci Lino Nós não podemos escolher todas as terras
em volta, que nossos
* parentes usavam. Estamos aceitando
esse pedaço, porque sabemos
e pela Comissão Indígena Guarani Nhemongueta, formadas por lideranças Guarani. que nós não podemos pedir mais porque os branc
os já vão reclamar.
Mesmo aqui no Morro dos Cavalos o, branc
o Tekoa: Marangatu (Imaruí), Massiambu, Morro dos Cavalos, Cambirela (Palhoça), Mbiguaçu, o diz que já é dono e
Amâncio, Tekoa Kuriy, Tekoa Itanha'» (Biguaçu), Tekoa Tava'i (Canelinha), Tarumã, Piraí/Tiaraju, diz. que é dono de muito mais. E também das terras
Pindoty, Jabuticabeira, Yvapuru (Araquari), Conquista (Balneário Barra do Sul), Morro Alto, e dos morros
Reta (São Francisco do Sul), Yakã Porã (Garuva). Tekoa significa aldeia. que nossos parentes usavam antes até dos brancos
chegarem,
"* Como nos municípios de Guaramirim e Palhoça. O rio Massiambu Pequeno nós queremos porqu
e é ui lugar muito
“* No Toldo e no Bugio, ambas na Terra Indígena Laklânô, dos índios Xokleng. bonito, Gostamos de andar perto da água, é
um lugar bom para
Na Limeira, situada na Terra Indigena Xapecó e no Toldo Chimbangue 2, dos índios pescaria, onde vamos buscar taquara, que tem remédio que nós
Kaingang. at até hoje, remédios antigos (LADEIRA
, 2002, p. 7-
“ Em Treze Tílias.
112 a. . . no ns
Famílias que ocupam locais em Itapiranga e outros municípios limítrofes com o rio: va

Peperi-guaçu, que separa Santa Catarina da Província de Misiones (Argentina). Repú bii ica, , 20 inistro o da J Justi Ç a e ao
min p presidente da Funai . Nela os Guaran
él. i indicam, reconhecem

' Vo 180
181
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA J URÍDICA CapíruLo 7

Em dezembro de 2002, o resumo do relatório foi publicado no DOU camentos etc.; c) loteamento das terras pela Companhia Territorial Sul
e em outubto de 2003 o processo foi encaminhado ao Ministério da Brasil, e d) aumento de pressões e ameaças a partir da década de 40, com
Justiça, visando à assinatura da portaria declaratória. Nesses quatro anos a ocorrência de expulsões, cisões internas e dispersão dos Guarani. A rede
comunidade acompanha estreitamente o processo — cujo trâmite incluiu de sociabilidade aponta para casamentos entre Chiripá e Mbya, bem como
novamente a Funai — e segue no aguardo das providências governamen- Kaingang e jurua (branco), o que revela incorporação e rede de alianças.
tais que permitam a demarcação física da área. O relatório circunstanciado foi aprovado pela Funai em 2005 e a as-
De Morro dos Cavalos, no litoral, ao oeste, vejamos o caso de Araça'í, sinatura da portaria declaratória deu-se em 19.04.07, não sem contunden-
a primeira área Guarani no oeste catarinense com processo demarcatório tes protestos de moradores da região e de políticos catarinenses, A di-
desencadeado pela Funai. A portaria assinada em 2000 permitiu que o mensão da área ficou estabelecida em 2.721,28 hectares, mas tanto a ocu-
grupo técnico coordenado pela antropóloga Kimiye Tommasino efeti- pação quanto a delimitação são fortemente rejeitadas pelos habitantes de
vasse a pesquisa de campo com o grupo Chiripá, muito embora o acam- Saudades e Cunha Porã, Os pequenos agricultores, em específico, se orga-
pamento organizado pelos Guarani, visando à retomada da área, já não nizaram em defesa das propriedades, contrataram advogado e outro pro-
mais existisse, Os Guarani recebetam ordem de retirada pela Justiça Fe- fissional para elaboração do contralaudo, Em mais uma audiência pública
deral: foram transportados para o RS e proibidos de regressar ao local. O na Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, em 09.07.07, rei-
relatório circunstanciado (TOMMASINO, 2001) apresenta o cabedal de teraram que não deixarão a região em hipótese alguma, o que mostra a
trabalho do GT na região, quando as famílias viviam nos acampamentos dificuldade de retorno das famílias Guarani ao Araça. Essas famílias atu-
de Saudades e Nonoai, formados após a saída de Araça'í e o retorno do almente vivem no Toldo Chimbangue 2, área Kaingang, também situada
RS. no oeste de Santa Catarina, aguardando a oportunidade de teocupar sua
As nartativas dos Guarani quanto a essa ocupação específica datam área. Aos agricultores, por seu turno, cabe pagamento das benfeitorias,
do final do século XIX, dando conta da caracterização da região na épo- indenização do Estado por serem ocupantes de boa-fé, bem como
ca: existência de múltiplos rios, farta cobertura de matas, ausência de reassentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
morador branco. “Era puro sertão”, na fala dos Guarani. À escolha do (INCRA).
local para a formação dos aldeamentos fundamentava-se nas condições
ideais para vivência do teko, categoria Guarani para seu modo de viver, Laupo PERICIAL ANTROPOLÓGICO
sua cultura. À região preenchia os requisitos de “terra boa” e esse argu-
mento alimenta a luta política das famílias de AraçaY atualmente. O estu- Laudos periciais antropológicos são oriundos de perícias requeridas
do do GT demonstra e confirma o direito territorial das parentelas ou em juízo, no bojo de processos judiciais no âmbito da Justiça Federal.
famílias extensas, com base ainda em pesquisas bibliográfica e documen- Tratam de temas diversos, ligados aos direitos individuais e coletivos de
tal, elaboração de gráficos de parentesco, mapas com a localização de povos indígenas. Em processos judiciais, o antropólogo pode. atuar em .
cemitérios, roças, aldeias antigas, análise de histórias vividas e trajetórias. duas instâncias do processo: na realização da perícia em si ou na assessoria
De acordo com os Guataní, a chegada dos primeiros brancos na região técnica ao juiz (ou a alguma das partes), com a finalidade de elaboração
na qual viviam deu-se na década de 20, com os colonos sendo bem rece- de quesitos analisados nas perícias.
bidos pelo grupo; todavia, entre as consequências adveio: a) trabalho dos Tratado por antropólogos e operadores do Direito quando do Semi-
Guarani para os brancos (derrubada de mata, abertura de estrada etc); b) nário Perícia Antropológica em Processos Judiciais, em 1991, posterior-
tomada do lugar dos Guatani, com registro de incêndio de casas, espan- mente transformado em livro “, o. tema, desde então, potencializou-se,
e valorizam a ocupação pretérita remota ou mais recente, mas propõem uma delimitação
contida, diante da realidade atual no entorno, considerando ocupações não-indígenas e o
Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. “ silva, Luz e Helm (Org), 1994,

7182 183
CAPÍTULO 7
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA

e, por (p. 57). O termo em si, contudo, não mais enconira respaldo constitucio-
sendo apresentadas reflexões qualificadas a respeito dessa tarefa
ólogo, como é possíve l ob- nal,
conseguinte, das responsabilidades do antrop
Leite (1996, p. Vejamos ponderações do constitucionalista
José Afonso da Silva ([s.d.],
servatr em Oliveira (1998a, 2002) e Leite (2005). Segundo
- p. 718), que consolidou uma interpretação da Constituição Federal no que
6), “Os laudos periciais foram até pouco tempo elaborados exclusiva- se refere à ocupação de terras indígenas e o direiro advindo dessa ocupa-
agrôno-
mente por profissionais de outras áreas, tais como engenheiros
entou ção
mos, geógrafos e advogados. À entrada dos antropólogos repres
context os culturai s
um reconhecimento de sua competência para avaliar Terras tradicionalmente ocupadas não revela aí uma relação
de novos tipos
específicos e também a sua habilidade para a constituição
soci- temporal. Se recorrermos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que
de provas:documentais com vistas à conferit ou assegurar direitos reconhecia aos índios as terras onde estão tal qual as terras que
ais”, ocupavam no sertão, veremos que a expressão ocupadas tradici-
os
Optamos por trazer à baila laudos efetivados por conta de context onalmente não significa ocupação imemorial, Não quer dizer,
gação
territoriais bastante específicos, trabalhos requeridos após a promul pois, terras imemorialmente ocupadas, ou seja: terras que eles esta-
6, que define
da Constituição Federal, mas anteriores ao Decreto 1.775/9 ram ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memó-
itório,
o processo demarcatório de terras indígenas e introduz o contrad ria e, assis, somente estas seriam as terras deles [...).
em substituição ao Decreto 22/91. O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância tempo-
relati-
Vanessa Rosemary Lea (1997) elaborou em 1994 duas perícias ral, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utiliza-
ao norte do
vas ao Parque Indígena do Xingu . “A primeira refere-se rem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo
Juruna,
Parque Indígena do Xingu (PIX) e diz. respeito aos índios Suyá, tradicional de como eles se relacionam com a terra; já que bá comu-
ao Capoto ; os ptota-
MYabengokre, Kayabi e Trumai. A outra refere-se nidades mais estáveis, ontras menos estáveis, e as que têm espaços
e na publi-
gonistas são os MYabengoktre e Juruna” (p. 5). À autora mantev mais amplos em que se deslocam, etc. Daí dizer-se que tudo se
do
cação praticamente a mesma forma das perícias e esclarece os passos realize segundo seus usos, costumes e tradições (Citifos no origi-
o um process o é aberto na
trabalho do perito, assim iniciando; “Quand nal).
a por parte de
Justiça Federal, relativo a uma reivindicação à terra indígen
lista em
membros da sociedade envolvente, o juiz, não sendo um especia Passemos a apontamentos quanto à perícia relativa à TI Mangueirinha,
r dados para
povos indígenas, recorre a um antropólogo para fornece Den d A:
no Paraná, efetivada por Cecília Helm (1996a e 1996b), perita nomeada
ajudá-lo no entendimento da questão” (p. 5).
- para a elaboração de laudo sobre a área em litígio, o que inclui intimação
ntos do
Após a apresentação de fotografias, mapas, quadros, fragme para responder a 38 quesitos complementares encaminhados à Justiça
indígenas,
diário de campo, trechos da legislação referente às populações Federal pelos opostos F. Slaviero & Filhos S.A. Indústria e Comércio de
e os tex-
documentos, dados coletados em campo, dados bibliográficos Madeiras e outros . À antropóloga, cônscia da imprescindibilidade da
a perita- remata: SA
tos em si, que compõem as respostas aos quesitos, memória e relatos dos Kaingang e Guarani, expõe que recebeu “instru-
e o PIX
área sub judice está dentro do Parque Indígena do Xingu, ções de que deveria investigar a questão e apresentar prova documenta! da
bibliografia
corresponde a uma área imemotial indígena. Existe uma farta ocupação indígena do território em disputa” (1996a, p. 22. Grifo no oti-
conclu são” (p.
e documentação, idônea e fidedigna, que comprova esta ginal).
as pelos
141). Ostermo “imemorial” consta de uma das questões arrolad
a área imemoi al indígen a”
autores: “Diga, Sr. Antropólogo, o que signific
116
O posicionamento do eminente jurista consta da perícia de Vanessa R. Lea.
ns a = anus de Mato Grosso, no qual figuram u7 a
Processo nº 00.0003594-7, da 3 Vara da Seção Judiciária e Funai como réus.
Processo nº 00.0033390-5, da 2 Vara da Justiça Federal, Seção Judiciária do Paraná.
autores Fioravante Bertussi e outros € a União Federal
como

184 185
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 7

A sociedade e o Estado no mundo dos brancos tém os seus códigos. aponta que as respostas aos quesitos permitem concluir,
Os símbolos, as representações e as práticas das sociedades indige-
nas são diferenciados e têm valor reconhecido (CF, 88), porém no [..] com base nos documentos consultados, na história oral e nas
Estado brasileiro, dentro da ótica do drofissional de Direito, que investigações periciais realizadas na Area Indígena Mangueirinha
irá julgar a questão, a prova representa o elemento que dá consis- que os Kaingang e os Guarani estão na posse de todo o
tÊncia e embasamento à sentença (idem, ibidem, p. 23). território ocupado pot eles, ainda que tenha ocorrido a
divisão da Área em três glebas A, Be C. Nas suas repre-
Estamos, contudo, falando de sociedades ágrafas até recentemente — sentações, “o govetno vendeu uma terta-que é dos índios”
situação que vem se modificando consistentemente com a introdução de (Helm, 1996b, p. 46. Grifo no original.
escolas nas áreas indígenas, formação de professores indígenas de nível
médio e superior, embora isso não modifique o embasamento cultural Historiografia oficial e memória dos grupos, como expostas em lau-
dessas mesmas sociedades —, nas quais a palavra, as narrativas, a memória, dos antropológicos, não consistem, muitas vezes, em convergência. Crité-
Os processos de aprendizagem próprios são dados basilares. Para além rios jurídicos, assim, necessitam se adaptar a concepções de mundo dife-
disso, memória e territorialidade estão definitivamente relacionadas. To- renciadas. À inclusão de direitos coletivos no campo jurídico brasileiro,
mando a memória como permanente construção e reconstrução, elabo-
quando obstinadamente só vigorava o Direito privado, é um exemplo
ração, reflexão do ocorrido em gerações, Caldeira (2006, p. 49) argumen- vigoroso de consecução em termos de transformações e atualizações no
ta:
próprio campo da expansão dos direitos, patamar que não: permite se-
rem apenas retórica direitos humanos e planetários. o
Nesse sentido, os relatos de memória não têm necessariamente que Há também casos nos quais o antropólogo pode vir a ter o en-
repeiir os dados apresentados pela historiografia oficial, As diferen- tendimento, no transcurso do processo, de não mais haver necessidade de
ças, muitas vezes presentes, entre o escrito oficial e a memória oral elaboração da perícia. Trazemos como exemplo a ação ordinária de inde-
ou entre as memórias de diferentes grupos não implicam em falsida- nização por desapropriação indireta contra a União Federal e a Funai ,
de de uma das fontes. Contextualizadas e analisadas, todas apre- no caso da TI Mbiguaçu (Biguaçu/SC), de índios Guarani. Essa ação,
sentam uma compreensão dos fatos; no caso de memórias coletivas,
iniciada em 1995, transcorreu de modo a chegar ao termo de audiência,
elas representam a compreensão do passado de um sruposa partir três anos após, sendo nomeada profissional pata perícia antropológica-
do sem presente, on seja, sua releitura da vida,
arqueológica . Passados mais de dois anos, contudo, sendo intimada a
apresentar nova proposta fundamentada de honorários para realização
Helm, em sua persistente investigação no tocante à expropriação
de prova pericial no processo, a perita protocolou requerimento dirigido
territorial e depredação ambiental sofrida pelos Kaingang e Guatani em
ao juiz federal (em 13.09.00), apresentando fatos novos relacionados à TI
Mangueirinha , cruzou os relatos gravados dos indigenas com fontes
Mbiguaçu, os quais, e que, no seu entender, colocavam pot terra a neces-
históricas, valeu-se de sua vasta experiência em pesquisa, sobretudo com
sidade de efetivação da perícia. São eles: a) a criação da Portaria da Funai,
os Kaingang, o que soma largo cabedal bibliográfico, construiu diagra-
constituindo grupo técnico para efetivação de estudos complementares
mas de parentesco (genealogias), aprofundou entendimentos sobre a
di- de identificação e delimitação, em 15.09.98; b) a publicação do resumo
nâmica de ocupação e uso da. área indígena como um todo, nos tempos
do relatório circunstanciado, memorial descritivo e mapa da TI no DOU,
passado e presente, pelos grupos familiares Kaingang e Guarani. À
autora
"processo nº 95.00.02372:5.
u
“ep Área Indigena Mangueirinha compreendia 16.375ha. Com a redução
para 7.400ha. Devido à construção da hidrelétrica Salto Santiago, no em 1949 passou
rio Iguaçu, na década de “ Maria Dorothea Post Darella apresentou proposta juntamente com a arqueóloga Teresa
70 os índios perderam mais uma parte do seu território” (HELM,
19964, p. 33). Domitila Fossari, ambas do Museu Universitário/PRCE/UFSC. :

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA Carlruto 7

em 20.08.99; c) a publicação do mesmo resumo no DOE, em 04.10.99; e Agronomia >, com a colaboração de graduandos em Ciências Agronô-
d) a não-manifestação e/ou contestação por parte do Estado, município micas da upsc””, liderança Guarani Mbya “e indigenistas *, No bojo
ou demais interessados, em 90 dias, conforme previsto no Decreto 1.775/ de procedimento administrativo criminal, a procuradora da República
96; e) a publicação da portaria declaratória, na qual o ministro de Estado Analúcia Hartmann solicitou, por meio de expediente , “elaboração de
da Justiça declara de posse permanente a TI Mbiguaçu, com cerca de um laudo antropológico acerca da natureza da ocupação de área florestal
58ha, em 26.07.00. Tratava-se da mesma área em litígio e a manifestação por indígenas Guarani”. Anteriormente, João Akira Omoto, igualmente
da PR-SC deu-se nessa direção. Assim sendo, a perita explicitou ao juiz procurador da República, em ofício dirigido à mencionada colega, es-
federal que diante do exposto e após análise do procedimento adminis- clarece que o processo visava “à apuração de crime ambiental, em tese
trativo de demarcação das terras indígenas, caso aquela autoridade seguis- praticado por indígenas da comunidade Morro dos Cavalos”. E que: “O
se entendendo como necessária realização de prova pericial, não pode- procedimento foi instaurado tendo em vista notícia de invasão/ ocupação
ria efetivá-la naquele momento e desmatamento, por índios, de área pertencente-ao Parque Estadual da
Em 16.06.04, no transcurso do processo, as autoras deste artigo com- Serra do Tabuleiro”,
pareceram à audiência na Justiça Federal, na qualidade de testemunhas O desafio estava, pois, em explicitar a forma de ocupação de uma
artoladas pela PR-SC. Vale esclarecer que a perícia não foi concretizada e numerosa família Guarani no interior da Terra Indígena Morro dos Ca-
o juiz determinou a indenização da pretensa proprietária, considerando valos (município de Palhoça), cujo relatório circunstanciado de identifica
válido o registro imobiliário, anterior à chegada das famílias Guarani no ção e delimitação havia sido aprovado pela Funai em 2002, conforme
local. À procuradora Analúcia Hartmann e a Funai recorreram. O proces- descortinado anteriormente. Houve entendimento de que a pesquisa con-
so encontra-se há mais de um ano no Tribunal Regional Federal da 4 junta, intentando conjugação de saberes, poderia vir a aclarar a compre-
Região (Porto Alegre/RS). ensão para além da esfera da Procuradoria da República, abarcando jus-
Gostaríamos, ainda neste item, de mencionar à elaboração de tamente a Justiça Federal,
pareceres antropológicos por solicitação da PR-SC, diante de procedi- O parecer antropológico, entregue à PR-SC em data de 02.07.04, afir-
mentos relacionados à ocupação de áteas por parte de grupos familiares ma:
Guarani no litoral de Santa Catarina. Trata-se de estudos efetivados para
elucidação de procuradores da República e juízes federais, no cenário de O grupo em questão estabeleceu-se na área de maneira tradicional,
processos específicos. Para exemplificar, trazemos à pauta dois casos te- abrindo clareiras na mata no processo simultâneo de construção de
centes, datados.-dos anos 2004 e 2007. vivendas/ artefatos e manejo agroflorestal de snas roças. À arquite-
Tekoa Vy'a Porã. TI Morto dos Cavalos — Palhoça/SC. Laudo An- tura típica das casas de chão batido incluin paredes de madeiras
tropológico. Laudo Agronômico,o primeiro, foi o título dado ao pare. roliças, amarradas com cipó e cobertura de taquara aberta, deno-
cer elaborado. por equipe composta por profissionais da Antropologia tando robustez e beleza (DARELLA et al, 2004, p. 8).
Ro, a: . a .
A impossibilidade transcorria por conta do início dos trabalhos relacionados ao estudo de Tekoa Vy'a Porã sem drvida alguma foi e é considerada história.
impacto socioambiental da rodovia BR 101 — trecho sul. À perita indicou outra profissional
para a realização da tarefa ao juízo, mantendo a perita arqueóloga. História de ocupação tradicional Guarani, espaço que marca pen-
“2 Maria Dorothea Post Darella e Ângela Maria de Moraes Bertho.
4 Jean Carlos de..Andrade.Medeiros e Marta Adriana Pedsi. 2 pa nº 1.33.000,002775/2003-74, estabelecido com'base no relatório de vistoria
e inspeção da
Polícia Militar Ambiental de Santa Catarina nº 030/2ºPel/CPMPA/2003, de 26.02.03,
“* Bruno Utermoehl e Raoii da Silva Duarte,
a Ofício nº 01216/04-UTC/PR/SC, de 08.06.04, endereçado a Maria Dorothea Post Darella,
O então cacique de Morto dos Cavalos, Leonardo da Silva Gonçalves, Werá Tupã. que formou a equipe. A efetivação do trabalho deu-se em regime de cooperação com.a PR-
SC. .
“ Orivaldo Nunes Júnior (graduando da 8" fase do curso de Filosofia/CFH/ UFSC) e Clovis
A. Brighenti (CIMI Sul — Equipe Palhoça). ? Ofício nº 98/04-UCRIM/SC, de 21.05.04.

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 7

Samento e ação, que consubstancia e fortalece a memória Guarani. O estudo (DARELLA; MELLO, 2007), protocolado em 14.05.07”,
[...] Essa presença será reconhecida por décadas e séculos, um regis- fora solicitado pela PR-SC dada a “necessidade de redefinição da ocupa-
tro de persistência e coragem, nas palavras de Leonardo, para as ção Guarani da área denominada Cambirela, desencadeada pela mudan-
novas gerações em tempos vindouros, assim como ocorre hoje com ça da família extensa de André Benite para a área situada nalocalidade Rio
vários sinais existentes ao longo da costa catarinense, lidos pelos
da Dona, município de Canelinha/SC, no dia 18.04.07”. Outto grupo
Guarani através dos olhos do fiande reko [nossa cultura, nossos
Guarani, todavia, permaneceria na área, aspecto devidamente. apontado
costumes). Essa leitura justamerite lhes fornece legitimidade no es- em estudos anteriores.
paço-tempo (idem, ibidem, p. 12).
A metodologia adotada para a produção do Parecer Antropológico
de Cambirela leva em conta as pesquisas documental e bibliográfica, arti-
De acordo com o parecer agronômico:
culadas com trabalho de campo nas áreas Cambirela e Tekoa Tava'i,
(Canelinha), contatos com profissionais envolvidos, integrantes de organi-
[...] constatou-se que as famílias Guarani utilizaram os recursos
zações governamentais e não-governamentais. A sistematização e a análise
naturais da floresta nativa de forma sustentável, garantindo o pro-
dos dados de diferentes fontes precederam a composição e apresentação
cesso de regeneração natural das áreas adjacentes à área ocupada,
«conclusiva do estudo em forma de texto, fotografias e imagens de satéli-
processo este que se encontra em estágio inicial. Houve ainda o
te, complementadas com plotagem de pontos de locais de habitação, de
enriquecimento da área com a introdução de espécies domesticadas
uso, bem como episódios (cercas, torres de alta tensão, saída de-efluente
com diferentes finalidades, que contribui para a diversificação da
etc). “e
Hora. O que foi visto ilustra sobremaneira a relação que os Guarani
O item Conclusões, composto por 13 questões, ressalta em primeira
mantêm com o ecossistema, ocorrendo íntima ligação entre sua con-
instância:
cepção de mundo e a manutenção dos recursos naturais (idem, ibidem,
p. 22).
Criação, em regime de urgência, de grupo técnico
da FUNAI para identificação e delimitação da Ter-
O parecer antropológico-agronômico elucidou o procurador da Re-
pública João Akira Omoto quanto à matéria e engendrou pedido de ar- ra Indígena Cambirela, a partir da legitimidade e
reconhecimento de ocupação previsto no artigo 231
quivamento ao Juiz Federal da Vara Criminal de Florianópolis , por ele
da Constituição Federal. Esta deliberação e
acatado,
efetivação deveria ter sido anterior à medida
O segundo caso que aqui se quer assinalar relativo ao litoral catarinense,
mitigadora fundiária específica da duplicação da BR
trata especificamente da área Guarani de Cambirela (município de Palho-
101, constante do Convênio DNIT/FUNAL, que:
ça), situada à beira da rodovia BR 10, inserida no contexto de sua dupli-
prevê aquisição de áreas (DARELLA; MELLO,
cação. Em abril de 2007, a procuradora da República Analúcia Hartmann
2007, p. 12-13. Grifo e nota de rodapé de acordo com.
demandou oficialmente às antropólogas autoras deste artigo, “manifesta-
o original).
ção técnica acerca da situação de teivindicação fundiária, especialmente
considerando a negligência da FUNAI em relação à demarcação da
TI
Cambirela”. Havia urgência em apontar definições
. . A .
, mm 1

“ Estudo efetivado em cooperação com a PR-SC.


“ Segundo a procuradora da República Analúcia Hartmann, as áreas adquiridas deverão ser
registradas como bens dominiais coletivos das comunidades Guarani, como previsto pelo
artigo 17, HI, da Lei nº 6.001/73 — Estamto do Índio (posicionamento exarado no Processo
“ Datado de 16.07.04. 2005.72.00.011231-1 - Ação Civil Pública). A decisão do juiz, federal substituto na Titularidade
B .
' Considerando-se o Processo nº 2005.72.00.011231-1 - Ação Plena, Zenildo Bodnar, é de deferimento ao pedido formulado, com
Civil Pública. cláusula de
impenhorabilidade e inalienabilidade,

190 191
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLO 7

O estudo buscou reafirmar registros e conclusões indicadas em ou- inúmeras reflexões sobre como estabelecer critérios objetivos e imparci-
ttos relatórios /trabalhos, sobretudo no que se refere à ocupação e regu- ais de avaliação de distintas situações e tem gerado também sérias contro-
larização fundiária, assim como atualizar a conjuntura referente a vérsias sobre a atuação de antropólogos que assumem a função de desen-
Cambirela . Como ambas as autoras acompanham o processo histórico volver contralaudos, contratados por empresas ou pessoas físicas
das aldeias em questão, mediante pesquisa e atuação, além de terem inte- contestantes para produzir instrumentos técnicos que descaracterizem um
gtado a equipe de elaboração do estudo de impacto socioambiental e do primeiro laudo em favor dos povôs indígenas, no mais das vezes, tece-
progtama básico socioambiental do projeto de duplicação da BR 101 — bendo honorários vultosamente maiores dos que os indicados a esse tipo
trecho sul, parte do trabalho torna-se de assessoria e interlocução entre as de trabalho técnico.
- lideranças indígenas e as instituições da sociedade nacional com as quais Diante dos elementos aqui referidos, buscamos elencar alguns desafi-
interagem, como assinalado em Mello e Darella (2005). os e questões relacionadas ao fazer antropológico, considerando a neces-
sidade de contínuos debates e interlocuções entre os profissionais e teóti-
CONSIDERAÇÕES FINAIS cos da Antropologia e do Direito, para o avanço quanto a definições
técnicas e teóricas dessa interlocução.
Vistos estes exemplos de experiências de produções de laudos por
antropólogos e etnólogos , resta-nos ainda tecer algumas ponderações REFERÊNCIAS
sobre o papel do antropólogo nesses processos. Assim como para os
profissionais do Direito, a ética profissional tem preponderante papel na ALMEIDA, Lédson Kurtz de. Relatório Antropológico Preliminar
orientação e atuação profissional de cada perito antropólogo. de Reconhecimento Etnico. Caso Borboleta. 2002. 39p.
Assumir à responsabilidade com neutralidade e isenção ao definir res-
postas aos quesitos de um processo judicial ou administrativo é um desa- - Relatório de Campo para Subsidiar Reconhecimento Étni-
fio lançado ao profissional nas últimas décadas. Parte-se do papel do co. Caso Borboleta, 2003. 35p.
antropólogo-com perfil acadêmico e/ou etnográfico, que trava suas tela-
ções de reciprocidade com os grupos nos quais realiza suas pesquisas e, - Relatório Antropológico Circunstanciado de Identificação
muitas vezes; atua como assessot e interlocutor desses povos com a soci- da Terra Indígena Borboleta/RS com a inclusão do Levantamento
edade nacional. O antropólogo agora é chamado a exercer este novo Ambiental. 2005. 85p.
papel: o de perito técnico, objetivo e imparcial. Obviamente, o envolvimento
com a causa indígena e a ética profissional orientam a salvaguardar ASSIS, V. S. de. Dádiva, mercadoria e pessoa: As trocas na constitui-
inexoravelmente os direitos indígenas. Além disso, critérios técnicos de ção do mundo social Mbya-Guarani. Tese em Antropologia Social.
metodologide a pesquisa e análise de dados balizam a argumentação que Porto Alegre, PPGAS/UFRGS, 2006. 326p.
compõe o laudo. À metodologia, no entanto, envolve também a otienta-
ção ética, política e ideológica do perito. Como em todas as profissões, a ; GARLET, Ivoti José. Análise sobre as populações Guarani con-
subjetividade e a formação ideológica, política e a otientação ética nortearão temporâneas: demografia, espacialidade e questões fundiárias. Revista de
a
as decisões. Essa nova dimensão da atuação antropológica tem levado Indias, Madrid, v. LXIV (230):35-54, jan./abr. 2004.

em 1º.11,07 o parecer foi juntado ao BECKHAUSEN, Marcelo. Questões de Cidadania e'o Diálogo entre
“ De acordo com a procuradora Analúcia Hartmann,
processo, mas ainda não aprecia do pelo juiz federal. o Jurídico e a Antropologia. As Consequências do Reconhecimen-
antropológicos de outra natureza, como to da Diversidade Cultural. Texto, [s.d.]. 6p.
5 Não estão comentados, neste artigo, relatórios
ticos etnoambientais.
estudos de impacto socioambiental e diagnós

192 193
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 7

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA

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étnico em exame: dois estudos sobre os Caxixó. Rio de Janeiro: Contra O presente capítulo visa trazer à discussão a inclusão digital dos povos
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A tecnologia da informação é considerada um legado cultural dos
SEMINÁRIO sobre territorialidade Guarani. A questão da ocupa- nossos antepassados, tornando-se um patrimônio cultural dahumanida-
ção tradicional. Org, CIMI-Sul, MU/UFSC, CAPI. Florianópolis. Rela- de. Tal patrimônio deve estar disponível a todos os seres humanos que
tório Final, 2001. 92p. habitam o planeta Terra, posto que é um direito de exercício opcional.
Significa a democratização do conhecimento e da comunicação.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Tratar-se-á da questão da identidade cultural e da importância dos
São Paulo: Revista dos Tribunais, s.d. 6. ed. rev. e ampl. p. 504-510; 714- benefícios da inclusão digital às populações indígenas que se encontram
723, isoladas geograficamente ou não.
Enfatiza algumas considerações a respeito de como tais tecnologias
SILVA, O. S.; LUZ, L.; HELM, C. M. (Org). A Perícia Antropológica serão apresentadas aos povos indígenas, que, na sua maioria, possuem
em Processos Judiciais. Florianópolis: EdUFSC, 1994. 146p. peculiaridades culturais próprias e uma relação muito estreita com a natu-
reza. Como manter a identidade cultural dessas comunidades? De que
TOMMASINO, Kimiye (Coord.). Relatório de Identificação e Deli- forma oferecer o legado tecnológico da informação? Em que sentido
mitação da Terra Indígena Guarani de Araça'í. v. 1. Londriha/ alcançar e introduzir esta tecnologia em lugares ermos?
Chapecó, 2001. 248p. Todas essas questões serão discutidas ao longo deste trabalho.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “No Brasil, todo mundo é índio, TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO: PATRIMÔNIO CULTURAL DA
exceto quem não é”, In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fanny (Ed.). Po-
HUMANIDADE
vos Indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: Instituto Socioambiental,
2006. p. 41-49. À tecnologia disponível hoje à nossa sociedade é o resultado de um
136
Doutora em Direito. Mestre em História. Professora dos Cursos de Graduação
Graduação e Pós-
do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenadora
Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica — GPAJU da UFSC. [e-mail: thais(Dcc).ufse.br]do

108 “ana
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA Caríruco 8

longo processo de acumulação de experiências e conhecimentos adquiri- te de uma forma mais lenta, e externamente de uma maneira mais acele-
dos por numerosas gerações que nos antecederam. Consequentemente, a tada, chamada de aculturação, que propicia o conhecimento tecnológico
tecnologia da informação é um legado que deve estar acessível a todos, de outros povos (p. 95-97).
uma vez que se trata de um patrimônio cultural da humanidade. Sabe-se - E pelo processo de difusão são realizados os empréstimos culturais
que as novas tecnologias vieram para ficar e certamente alteram o .com-.. que forneceram à humanidade o desenvolvimento atual porque “grande
portamento social. A sociedade atual é da informação, as soluções digitais parte dos padrões culturais de um dado sistema não foram criados por
são infinitas, surpreendentes e poderosas. um processo autóctone, foram copiados de outros sistemas culturais” (p.
Todos esses avanços, no entanto, não estão disponíveis para a maioria 105).
da população. Custos altos, falta de infra-estrutura, ausência de capacitação Desde o surgimento do homo sapiens, em virtude da satisfação das ne-
e de uma política definida para a inclusão digital. As novas tecnologias de cessidades humanas, teve início no planeta um processo de desenvolvi-
comunicação e informação devem ser compartilhadas o quanto antes, mento tecnológico fundamentado nas experiências e na transmissão do
caso contrário estar-se-á correndo o risco de criarmos uma nova casta: Os conhecimento adquirido de geração a geração. Esse desenvolvimento
excluídos digitais. A sociedade da informação tem de ser democratizada, tecnológico foi relativamente lento até a Idade Moderna. Somente com a
deve possibilitar a toda a população, inclusive àquela parcela tida como Revolução Industrial a humanidade experimentou uma aceleração
vulnerável, o acesso às novas tecnologias, respeitando suas diferenças cul- tecnológica numa vertiginosa progressão geométrica. '
turais. O ciclo da longa duração de séculos de história passa a ser representa-
Aires Rover (2007) enfatiza a importância da cultura diante da do pela curta duração de décadas, anos, meses e dias. A cada novo dia há
tecnologia, quando assevera que: “[...] a questão central de todo este pro- um avanço considerável na tecnologia, principalmente no que concerne às
cesso não é tecnológica, mas cultural, na medida em que é preciso com- tecnologias da informação. Mudanças sempre existitam, mas nem todas
preender que as tecnologias ou as escolhas tecnológicas são produtos de ocorreram com a mesma intensidade que as dos últimos 25 anos.
relações sociais, fortemente marcadas por padrões e determinações À transformação mais radical da sociedade industrial iniciou-se a par-
construídas ao longo da história da comunidade e dos indivíduos”. tir da Segunda Guerra Mundial, com:
Por sua vez, Laraia (2006, p. 45, 52) enfatiza que as inovações e inven-
ções tecnológicas fazem parte do patrimônio cultural, pois: “[...] o ho- [...] 0 advento de uma nova civilização: uma alternância de épocas
mem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. [...] A mani- se verifica naquelas raras ocasiões históricas, nas quais não é apenas
pulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inova- uma única ciência ou uma única arte que progride, havendo uma
ções e as invenções. Estas são, pois, o esforço de toda uma comunidade interligação entre os domínios do saber, o que faz com que a expe-
[...], toda a experiência de um indivíduo é transmitida aos demais, criando rência bumana dê um salto de qualidade. Foram necessários 500
assim um interminável processo de acumulação”. | anos de organização moderna para produzir a Sociedade industri-
abs apenas dois séculos de indistria bastaram para provocar o ad-
É indispensável para o desenvolvimento criativo do ser humano a
vento pós-industrial (DE MASI, apud OLIVO, 2003, p. 332).
disponibilidade da tecnologia construída pelas gerações que nos antece-
deram. “Não basta a natuteza criar indivíduos altamente inteligentes, isto
“Todo conhecimento humano é transmitido pela comunicação, pela
ela o faz com frequência, mas é necessário que se coloque ao alcance articulação e pela conexão dos conhecimentos já adquiridos, produzindo
de
desses indivíduos o material que lhes permite exercer a sua criatividade novos conhecimentos. A sociedade da informaçãoé o resultado dessa
uma maneira revolucionária” (LARAIA, 2006, p. 46). teia de conexões dos novos conhecimentos. E podemos afirmar que “nunca
s e estão sujeitos cons-
Até mesmo os sistemas culturais são dinâmico antes a humanidade vivenciou esta experiência, só possível em função
da
que podem se dar internamen-
tantemente a processos de transformação,
201
200
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariTULO 8

descoberta de um novo padrão de conexão” (OLIVO, 2003, p. 320). A chamada “revolução informacional” possibilitou a conexão em tede
Hoje o mundo diminuiu de tamanho por estar todo conectado pela rede de todos os computadores do mundo, sem hierarquia, tornando:
da Internet.
A inclusão de redes no Brasil “iniciou-se por volta da década de 60, [e] f..] 0 saber e o conhecimento não mais como monopólio'de classes,
teve um grande impulso a partir da década de 90, quando a Internet e castas ou grupos, mas disponíveis para qualquer pessoa interessada,
outras formas de comunicação, como educação a distância, listas de dis- em qualquer momento, hora ou lugar, instantaneamente, sem inter-
cussão e chats, tornaram mais fácil o processo de troca de conhecimentos mediários; a informação transmitida na velocidade da luz, não
e experiências” (ROVER, 2007. | mais por meio de pergaminhos de tijolo, documentos de papel ou
Falta, entretanto, muito ainda a ser feito. fitas magnetizadas, mas via on line na forma de uma linguagem
binária de “0” e “1” (OLIVO, 2003, p. 320).
DIREITO À TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO
O tipo de relação apresentada nas redes é horizontal, em que todos
Atualmente mais de 90% da população mundial que vive nesta “soci- são membros fundamentais como produtores e receptores de conheci-
edade em rede” ainda não está conectada (OLIVO, 2003, p. 350). Diante mento. Fundamentados nos “princípios da isonomia, insubordinação,
dessa realidade, é inaceitável a exclusão digital de qualquer parcela da hu- descentralização, multiliderança e democracia, os tipos de telação depen-
manidade que desejar o acesso à Internet em qualquer lugar do planeta. dem das formas de comunicação estabelecidas pela rede” (ROVER, 2007).
Trata-se de uma recente reivindicação da sociedade: a nova era que se Todos, indistintamente, devem ter o direito de acesso à Internet.
apresenta, a era do acesso aos meios eletrônicos, criou essa nova neces-
sidade. O chamado direito de quinta geração, que representa “o direito a IDENTIDADE CULTURAL E A IMPORTÂNCIA DA INCLUSÃO
um acesso digno, eficiente, público e gratuito” à informação científica, DIGITAL AOS POVOS INDÍGENAS
artística e tradicional, enfim, à cultura e ao conhecimento de um modo
geral. Acessível “em todas as unidades de trabalho, conexão em todas as O conceito de identidade apresenta muitas controvérsias. EE um termo
escolas, ligações om line em. todas as residências” (OLIVO, 2003, p. 350- que não comporta uma definição única. Identidade pode ser compreen-
351) e, porque não, a conexão em todos os lugares ermos da orbe. dida como igualdade.
Os povos indígenas, isolados geograficamente ou não, devem ser in- Rosa (2007, p. 1) apresenta um conceito de identidade que nos parece
cluídos na revolução da tecnologia da informação como as demais soci- mais interessante, pois admite que “a própria identidade pode ser
edades urbanas. Nesse aspecto, o Brasil tem se destacado mundialmente estabelecida ou reconhecida com base em qualquer critério convencio-
por programas pioneiros de uso de novas tecnologias de informação por
. nal”, Esse conceito explica o caráter de construção da identidade, uma
comunidades carentes, mas abrange apenas uma pequena parcela da po-
vez que os critérios precisam ser estabelecidos e reconhecidos. Assim, o
pulação.
conceito de identidade pode ser tratado como uma construção simbóli-
A disponibilidade da rede, acessível a todos em qualquer lugar, favo-
ca. Isso significa que a construção da identidade também diz respeito à
rece a universalização do conhecimento e à democratização da tecnologia,
apreensão e interpretação da realidade, uma vez que é um processo de
deixando de ser um monopólio exclusivo dos países ticos ou mesmo da
representação simbólica, uma tentativa de compreensão de sua própria
elite econômica dos países pobres. Apesar de termos consciência de que
a posição no mundo. É justamente essa sua caracterização como interpreta-
Internet não resolverá todos os problemas da humanidade, podemos
ção que a impede de ser tomada como algo já definido. Verifica-se, nesse
afirmar que a expansão da tecnologia da informação servirá como
meca- sentido, que a identidade social é a posição da pessoa, em relação à posi-
nismo de libertação e independência de comunidades indígenas.
ção dos demais dentro da sociedade.

202 203
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 8

É nesse contexto que se faz necessário enfatizar a identidade social violência física e moral. Nesse sentido, a aplicação do conceit
pela qual se inserem os povos indígenas na tecnologia ou na sociedade de o de reco-
nhecimento e ou de identidade cultural tem gerado muitas dúvidas,
informação. Idéntidade, para Taylor (1998, p. 45), é “a maneira como ainda
não resolvidas de forma satisfatória. É necessário, sim, ações que
uma pessoa se"define, como é que as suas características fundamentais visem à
transformação efetiva.
fazem dela um ser humano”. E a respeito da formação da identidade, Assim, ainda conforme Nancy Fraser. (P: 24), faz-se necessário
acrescenta o autor: separar
estratégias “afirmativas” de “transformativas”. As primeiras estão volta-
das para a reavaliação positiva das identidades injustamente desvaloriza-
A tese consiste no fato de a nossa identidade ser formada, em parte, das, mantendo intacto, todavia, o conteúdo dessas identidades. Já estraté-
pela existência ou inexistência de reconhecimento é muitas vezes, gias “transformativas” voltam-se preferencialmente à! desconstrução das
pelo reconhecimento incorrecto dos outros, podendo uma pessoa ou identidades sociais, na medida em que questionam a própria validade do
grupo de pessoas serem realmente prejudicadas, serem alvo de uma
critério produtor da diferença.
verdadeira distorção, se aqueles que os rodeiam reflectirem uma Sabe-se que a globalização, segundo Zaoual (2003, p. 97), “tornou-se
imagem limitativa, de inferioridade ou de desprezo por eles mesmos. uma máquina incontrolável e excludente, já que é governada por mecanis-
mos culturalmente anônimos”. E no Brasil essa realidade é muito presen-
A política de reconhecimento é fundamental para Taylor (1998, p. 57),
te. Temos índios que vivem isolados no interior do país e “tradicional e
pelo fato de que é capaz de formar a identidade do indivíduo. E o não-
culturalmente têm sua subsistência baseada no extrativismo de bens natu-
reconhecimento ou reconhecimento incorreto, por sua vez, também tem
tais renováveis” (BRASIL, Portaria 22/92 do IBAMA). Em algumas des-
o poder de afetar as pessoas (negativamente), podendo revelar-se até em
sas regiões o único meio de transporte é o fluvial, levando-se muitas horas
formas de agressão. É nesse sentido que se faz necessária a discussão da
de viagem para chegar ao destino.
formação identitária social desses povos, bem como do seu reconheci-
À inclusão digital facilita o diálogo intercultural, a integração e a divul-
mento enquanto indivíduos inseridos na sociedade global da informação.
gação dos traços culturais, que podem ser eficientes instrumentos de luta
Tal reconhecimento é um desafio para as sociedades atuais,
e reivindicação de direitos de determinada comunidade em âmbito naci-
É urgente a construção de um mundo novo, repleto de alternativas onal e internacional. Exemplo disso é o Conselho Internacional de Trata-
que contemplem propósitos e esforços comuns, pois crenças e valores dos Indígenas, que há 20 anos foi uma das primeiras organizações indíge-
coletivos não somente conferem legitimidade às ações políticas e práticas nas norte-americanas, conseguindo espaço político na ONU pela Internet,
governamentais, mas também induzem processos poderosos de identifi- por meio da instituição de um Fórum: Permanente, fazendo valer os seus
cação, motivaçãoe participação que energizam e potencializam as aspira- direitos. As primeiras nações do Canadá tiveram apoio da sociedade na-
ções coletivas. Os seres humanos sentem-se mais realizados quando uni- cional e conseguiram mudar a Constituinte a seu favor. Os Kuna, do
dos, cada um atento e consciente de seu compromisso pessoal, servindo Panamá, também obtiveram apoio popular, assim como outras popula-
a um propósito comum (RATTNER, 2005, p. 5). Sões indígenas do México utilizando-se da Internet (POTIGUARA, 2007).
Exemplos de injustiça de reconhécimento são abundantes, e afetam as No Brasil, os povos indígenas podem fazer uso comercial da Internet,
comunidades indígenas, No Brasil, o imaginário social vinculado a esses
emptegando-a para a divulgação (devidamente respeitados os direitos de
ptupos ou povos é de que são seres inferiores. Segundo Nancy Fraser propriedade intelectual) de alguns produtos naturais ou manufaturados,
to incluem a tais como: ervas medicinais, artesanato, alimentos (guaraná, cupuaçu,
(2007 p 2), manifestações explícitas de não-reconhecimen
tai
mito remain

me io s de co mu nica çã o (o índio como urucum), etc. (POTIGUARA, 2007). — .

pentção estereo o mundo) a invisibilidade em certos espaço s de


ns
Va Ra

aa
, '

a Internet possibilita uma


Diante dos demais meios de comunicação,s ão Os protagonistas do seu
indáígenas
expressãoã , 08 ind
“o ao mundo);
desapegado maior liberdade de
re it os e à ma te rt al iz ação de atos de
“sadio ês ? un cotidiana d e di “205
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLO 8

próprio discurso e de suas reivindicações, apresentando um novo distância também nas comunidades indígenas, e não somente na socieda-
paradigma: o da “representação participativa”. de urbana, favorecendo o intercâmbio de conhecimentos científicos, tra-
Também existem programas especiais de divulgação das línguas nati- dicionais e culturais (Governo levará Internet a povos da floresta, 2007).
vas, literatura indígena e difusão do conhecimento: Também é possível ampliar as discussões dos movimentos sociais ur-
banos e rurais, mediante as chamadas “mídias alternativas, que, contraria-
[...] respeitados pela mídia e fortalecidos pelas Redes de Comunica- mente ao papel da mídia convencional, apresenta o problema através da
ção Indigena, pelas rádios cominitárias, pela internet através de própria voz e atuação do movimento popular, sem interesses
sites, pelos canais de televisão, e mesmo pelas conferências ou seminá- mercadológicos ou político-financeiros”, De acordo com Paschoal (2007,
rios indígenas, olho a olho ou virtuais, mas não mais precários, mas p. 15), há organizações que levam às autoridades competentes as princi-
de uma forma tecnológica, científica, educativa e sistemática país reivindicações dos povos das regiões em que atuam, e também di-
(POTIGUARA, 2007). vulgam sites com matérias, artigos e notícias, tais como: “[...] a COIAB —
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, o CIR
O acesso à Internet pelos índios faz com que sejam eliminadas as dis- — Conselho Indígena de Roraima, a APOIA — Associação dos Povos
tâncias, propiciando um novo tipo de organização, a chamada “cidade Indígenas do Oiapoque, o CIDOB — Confederación de Pueblos Indíge-
florestal”. Do interior da mata se mantém contato com o mundo. Pode nas Unidos y Organizados de Bolívia, a CONACIN— Coordenadora
ser fiscalizado o cumprimento das ações governamentais pelo respeito Nacional Indianista (Chile), entre outras”.
aos seus direitos, e uma integração com o Instituto Brasileiro do Meio Outra forma de comunicação virtual são as listas de discussões do
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, Fundação Na- Gazxxag e do Orkut, em que se trata de “questões de terra, direito indígena,
cional do Índio - FUNAI, e a Polícia Federal, o que permitirá respostas propriedade intelectual, também divulgação de trabalhos, congressos e
rápidas às demandas ao poder público. Favorece ações de planejamento, reuniões” (PASCHOAL, 2007, p. 18).
monitoramento e vigilância dos crimes ambientais e invasões de terras.
A questão da segurança é muito importante, pois essas comunidades QUAIS FORMAS DE INCLUSÃO?
isoladas podem entrar em contato com as autoridades e pedir socorro
em caso de necessidade, como ocorreu em 2003, quando as terras da Os benefícios da inclusão digital aos povos indígenas que se encon-
tribo indígena Ashaninka — localizadas no município de Marechal - tram isolados ou não já foram relatados anteriormente, no entanto, per-
Thaumaturgo, no Estado do Acre, nos limites do Brasil com o Peru — sistem algumas dúvidas, indagações, incertezas, angústias, Como serão
foram invadidas por madeireiros peruanos, ocasião na qual os Ashaninka recebidas por essas comunidades as novas tecnologias da informação?
recorreram à Polícia Federal brasileira e ao IBAMA (MOSCATELLI,
2007).
Como manter a sua identidade cultural após o contato com o mundo?
Quais seriam as melhores formas de inclusão? Que tipo de tecnologia
Ademais, nos casos de epidemias nas comunidades é possível a solici-
utilizar? Como capacitar os usuários? Temos o direito de excluí-los da
tação às autoridades competentes de atendimento médico especializado e
tecnologia da informação?
medicamentos. O acesso às tecnologias de informação permite, ainda, o
A maioria dessas comunidades encontra-se em áreas isoladas geogra-
cadastramento dos índios no Sistema Único de Saúde - SUS, ou na Previ-
ficamente e têm um estreito vínculo com a natureza pela forma como
dência Social - INSS, além de possibilitar uma melhor comunicação com
utilizam seus recursos. Também possuem uma identidade cultural muito
a Fundação Nacional de Saúde - FUNASA (Governo levará Internet a
própria, vivendo de uma maneira tradicional, distinta do restante do país,
povos da floresta, 2007).
Outrossim, a inclusão digital fomentaria a instituição da educação a diferentemente da comunidade nacional.
Há divergência de opiniões quanto ao fornecimento da cultura oci-

206 mm?
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 8

dental às comunidades indígenas, pois existem: a proximidade pode garantir, até certo
ponto, o sentimento de pertencer.
Esses processos ocorrem sob diferentes forma
s, afetando todos os as-
[.] muitas pessoas que pensam que não só os índios, mas a Ama- pectos da vida humana. A inclusão digital faz
zônia brasileira como um todo deveria ter uma cúpula protegêndo- com que os povos indígenas
sintam-se parte de um processo de' desenvolvime
a de todas as ações externas, quando na verdade nós, muitas vezes,
nito que não pode ser
visto como excludente e que se preocupa com
nos esquecemos de perguntar às comunidades indígenas o que elas o acesso e o direito à
info rmação de todos os seus cidadãos.
querem da cultura branca. É muito importante a gente perceber Sabe-se que a realidade brasileira é marcada fortemen
que os índios devem e podem ser senhores de seu próprio futuro, te pela hegemonia
preponderando a desigualdade de poder, dese
podem construir a sua própria nação (A tecnologia pode trans- struturando os domina-
dos, causando a exclusão, ou então uma inclu
formar vidas, 2007). são subalterna, fruto das
concepções neoliberais. Para responder a esses imper
ativos, faz-se neces-
sária uma reestruturação social sob forma de inclu
Sabe-se que a globalização apresenta uma cultura hegemônica, ou seja, são social e digital a
esses povos, sem criar uma expectativa de inclu
são, que, na verdade, nada
a cultura do pensamento único, e com a ajuda dos meios de comunicação mais é que uma inclusão subalterna, instigada pelo
consegue infiltrar nas sociedades, nos indivíduos, a crença de que o mais processo econômico
excludente da globalização hegemônica e multifacet
importante é o lucro, é o capital, é o dinheiro, por tal motivo nos torna- ada.
o Também há a compreensão, entretanto, de que a
mos seres “individualistas”, incapazes de pensarmos coletivamente. interação entre as
diversas culturas do planeta, além de outros benefícios
Conitrária a esse pensamento único, nasce a noção de globalização con- , pode gerar o tre-
forço da identidade cultural das comunidades indíg
tra-hegemônica , que se caracteriza pelas iniciativas em âmbito local-glo- enas, por meio da
divulgação das suas culturas e à consequente valorizaçã
bal, por meio de grupos sociais que lutam incansavelmente pela igualdade o das suas particu-
laridades diante das diferenças. O contato com o mund
social e a dignidade da pessoa humana. Essas iniciativas partem do local, o possibilita o
conhecimento da diversidade cultural; dessa forma
, o autoconhecimento
da realidade, das dificuldades. É lutando por reconhecimento que o aces- teforça a reafirmação interna e o respeito às
diferenças externas e a
so à inclusão digital será possível. São povos com realidades e vivências integração cultural de diferentes povos.
culturais diferentes, tnas cidadãos do mundo. Assim, encontramo-nos diante de um conflito: como gatan
Nas palavras de Hassan Zaoual (2003, p. 21), em todos os lugares, tir a manu-
tenção cultural dessas comunidades .sem abandoná-las e deixá
cada vez mais, as pessoas sentem necessidade de crer e de se inserir em -las à mercê
da sorte ou do infortúnio? Ou devemos disponibilizar-
locais de pertencimento. Os indígenas, nesse sentido, precisam pertencer a lhes o legado cul-
tural da humanidade, a tecnologia da informação, que, certamente,
estes lugares. Assim, à medida que cresce o global, também amplia-se o oportunizará um salto de qualidade nas suas vidas cotid
ianas, propiciando
sentimento do local e a necessidade de estar inserido nas discussões o acesso à cidadania nacional e planetária?
tecnológicas para reforçar os vínculos de; pertencimento. Temos que partir do princípio de que todas as culturas
são dinâmicas
As razões desse paradoxo são múltiplas, entre as quais mencionamos a e os povos indígenas, como qualquer outra sociedade, pode
m se adaptar
seguinte: a globalização, sinônimo de mercantilização do mundo, introduz às novas tecnologias sem enfraquecer à sua cultura, pois é possí
vel manter
localmente um tipo de incerteza e de vertigem na mente humana, Uma a tradição diante da globalização. :
das maneiras de reagir a isso consiste na busca da certeza de que somente -A Antropologiados : últimos 20 anos vem criticando a postura
essencialista do isolamento cultural e homogeneidade histórica de relacio-
E CogsRi a - que defendem
“[.] articulação transnacional de movimen tos, associações e organizações nat a representação local com o.isolamento, a pureza e o tradicionalismo,
i i dos ou marginalizad
os subalterniza itali
inali os pelo capitalismo pj lobal. AA globalização
conta hesemônic
“heg emôn
Reati funda
va icaao écomét para organizar e e disseminar estrat
estratégias políticas eficazes,
livrel por via de iniciativas de comércio justo e garantir O acesso
ciomenta
pois cultura tradicional nãoé sinônimo de cultura éstática (MARTINS,
onde emetg 2005, p. 13).
ecimento técnico é à tedes Ea261).
o ONGs dos países perifésicos ao conh p-
m estes países (SANTOS, 1999,
as políticas hegemônicas que afeta
209
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 8

Nunca poderemos, contudo, deixar de analisar cada caso separada- lógico conclusivo, se tais comunidades softerão ou não uma agressão a
mente, e ter a sensibilidade de não agredir uma comunidade que se man- sua forma de ser culturalmente, e nos casos de comunidades totalmente
teve sempre isolada. Levar a tecnologia da informação a essas comunida- isoladas aconselhamos nenhuma intervenção, para não corrermos o risco
des, certamente, seria uma forma de etnocídio pelo choque cultural e de repetirmos os erros do passado, ou seja, a prática da “aculturação”
pelas transformações bruscas na sua cultura. Assim procedendo, em vez brusca e violenta, simbólica ou não. nn
de inclusão, estaríamos praticando uma espécie de exclusão e extermínio Já existe no Brasil uma iniciativa do Ministério do Meio Ambiente e
cultural”, Corremos o risco de aumentar as necessidades dessas popula- do Ministério das Comunicações, da Associação de Cultura.e Meio Am-
ções e torná-las cada vez mais dependentes da sociedade capitalista. biente, da Rede Povos da Floresta, juntamente com o Governo Eletrôni-
O bom senso deve prevalecer, a tecnologia por si só não justifica tudo, co Federal de Atendimento ao Cidadão, de um pacto de instituição de
ou seja, a ética da alteridade deve predominar, pois nem sempre o que é uma rede de Internet para instalar “telecentros” em regiões indígenas e
bom para nós será bom para os outros. Da mesma forma, não podemos tradicionais. O benefício será oferecido parcialmente, com parcerias de
privar o “outro” dos benefícios que gozamos diante da tecnologia dispo- governos municipais e estaduais na obtenção de recursos. Inicialmente tal
nível, É iniciativa “levará sinal de satélite, Internet, educação ambiental e um cardá-
Por isso, os povos indígenas necessitam de uma atenção especial, uma pio de outros serviços públicos ox line a 150 populações tradicionais e
vez que sua cultura é muito peculiar e se mantém autêntica, algumas graças indígenas, que vivem em unidades de conservação e entornos, em regiões
justamente ao isolamento. Assim sendo, o mesmo isolamento as exclui remotas de treze estados brasileiros” (Governo levará Internet a povos
dos benefícios da tecnologia da sociedade de informação. Pela situação da floresta, 2007). e
de esquecimento por parte do Estado e da própria sociedade, algumas Até o momento, já foram integradas as aldeias Yawanawa, em Rio
dessas comunidades mostram-se carentes de saúde, de educação formal, Gregório, no Estado do Acre; Ashaninka, em Marechal Thaumaturgo, no
de conhecimento de seus direitos, de segurança, de trabalho decente, de Acre; Sapucay, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro; e brevemente será
cidadania e de dignidade humana. em São João das Missões, em Minas Gerais, sendo utilizadas em algumas
À primeira ação deve ser o estabelecimento de um programa de regiões a energia solar (BRASIL, 2007). À FUNAI, em parceria com a
conscientização sobre as transformações que essas comunidades sofrerão Fundação Bradesco, instalou o primeiro Centro de Inclusão Digital em
em suas vidas cotidianas com a inclusão digital. Após, o segundo passo aldeias, abrangendo o povo Karajá, da aldeia Canoanã, na Ilha do Bana-
será uma consulta prévia a tais comunidades: se realmente desejarem a nal (PASCHOAL, 2007, p. 23).
inclusão digital, tal decisão dever ser discutida e decidida pelos integrantes. A experiência do povo Ashaninka, descendente dos incas, que vive na
É indispensável um debate interno, se é oportuno ou não o uso da fronteira entre Brasil e Peru, no Estado do Acre, nos dá um exemplo de
tecnologia da informação. À decisão deve ser do próprio povo atingido. como pode ocorrer a inclusão digital de populações isoladas. Inicialmen-
Tais ações sempre devem estar resguardadas por um laudo antropo- te, os Ashaninka receberam a idéia com desconfiança, mas à medida que
foram se familiarizando com as ferramentas de tecnologia da informa-
“* “Normalmente numa comunidade que tem seus costumes e tradições, sobreviventes de ção, e conhecendo os benefícios do acesso à Internet, tornaram-se
uma organização de seus mestres, chefes e pajés, a cultura é passada, em muitos casos, favo-
oralmente, e por modos e comportamentos ensinados e usados por todos. É caso de grupos táveis a tais iniciativas. Como se observa do depoimento de um de seus
que ainda mantêm seus rituais em momentos tristes e alegres da tribo. E que se sentem
violentados com os costumes impostos como o dever de saber ler, escrever e viver dos líderes, Denki Pinhanta: “A gente quer aprender toda essa tecnologia que
“brancos'. [...] Imagine o índio 'puro” em sua essência que ainda não teve contato com os está chegando à nossa
“brancos”, mas vive isolado nas matas, e, de repente, por iniciativa de uma ONG e de estudiosos aldeia para ter esse mundo de comunicação: É
interessados em “preservar e divulgar essa cultura para outros (que não têm o mesmo objetivo muito importante para nós saber o que está acontecendo fora daqui e
de seus habitantes — uma vez que a linguagem do “branco” não faz parte da cultura indígena)
invade a tribo com uma máquina moderna capaz de mostrar o mundo lá fora e poder divulgar
transmitir a nossa vivência” (BRASIL, FUNAI, 2007).
a vida daquele grupo. Será que isso ajudaria “realmente” na
ou seria mais um ingrediente para. modificá-la?” (CABRAL,
preservação da cultura desse povo Para fins de capacitação:
2007).

240
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CapíruLo 8

f.] foi criado um programa de supervisão junto à Comissão Pró- Não é admissível, em pleno século XXI, que esse acervo cultural
não
Índio para o acompanhamento dos trabalhos de adapração das esteja disponível a todos, e que 90% da população do planeta seja exclu-
comunidades e ampliação da rede [...] na fase inicial do projeto ída do acesso à Internet. | |
“Rede Povos da Floresta”, alguns índios passaram uma semaiia no
Rio de Janeiro tendo cursos básicos [...]. Entre às ações deste grupo são uma obrgorida; 0d,eoja, devero eosestaranon ma opção
disponível às comuni dades e
está incluída a capacitação dos índios residentes nas aldeias, que isoladas, que poderão optar pela sua inclusão ou não. .
ficam responsáveis pelos equipamentos, pela tecnologia e pelo próprio | Desde que devidamente utilizada, a inclusão digital traz muitos benefí-
acesso à internet dos demais (BRASIL, FUNAI, 2007). cos aos seus usuários. Com o mundo conectado, ocorre uma redução
as distâncias físicas, uma relativização do tempo e do espaço, o desapa-
As iniciativas atualmente existentes no Brasil, por parte de organismos recimento das fronteiras territoriais.
de governo e não-governamentais, instituições ptivadas em parceria com As comunidades indígenas geograficamente isoladas nas florestas e
a Funai, Funasa, Comissão Pró-Índio, Instituto Socioambiental, Fundação em lugares de difícil acesso poderão experimentar uma melhoria no pa-
Bradesco, de inclusão digital dos indígenas, utilizam-se de tecnologia (ener- drão de qualidade de suas vidas, Será aumentada a sua segurança, uma vez
gia, rede de transmissão, equipamentos, capacitação e, uso), de acordo que poderão pedir socorro diante de situações de petigo, tais como inva-
com as peculiaridades de cada comunidade envolvida . sões de terras ou epidemias. Terão disponibilidade de educação formal
Pelo visto, os povos indígenas, que desejavam ou aceitaram a propos- de acordo com as suas necessidades. Poderão ampliar a comercialização
ta de ligação com a rede da Internet, estão satisfeitos com os efeitos po- da sua produção. Facilitará a divulgação da sua cultura pata que seja co-
sitivos da inclusão digital, porém ainda é uma atividade recente no interior nhecida e respeitada, possibilitando o conhecimento de outras culturas.
do Brasil, que certamente apresentará algumas deficiências, que deverão Os povos conhecerão melhor os seus direitos e fiscalizarão os atos gover-
- ser cortigidas ao longo dos anos. Ademais, deve existir todo um cuidado namentais referentes aos seus interesses, enfim, trará uma gama de benefi-
com a forma como setão tealizadas tais atividades, para não interferir cios. .
negativamente na cultura dessas comunidades. Deve haver, no entanto, extremo cuidado no momento do contato e
do oferecimento da tecnologia, para evitar um choque cultural e uma
transformação brusca. Cada caso deverá ser analisado individualmente
CONSIDERAÇÕES FINAIS
sempre acompanhado de um antropólogo. Em comunidades totalmente
isoladas, aconselhamos a não fazer contato.
No decortet deste artigo, tratamos da importância da inclusão digital
é Essas questões são muito polêmicas e ainda não há um consenso, as
dos povos indígenas. Demonstramos que a tecnologia da informação
das diversas geraçõe s opiniões são divergentes. Alguns pensadores entendem que as comunida-
um patrimônio cultural da humanidade, herdado
suficiente para des não necessitam da nossa tecnologiae a sua inclusão traria dependência
que nos antecederam, .que produziram conhecimento
e transformação nas suas bases, criando novas necessidades e gerando
viabilizar o désenvolvimento tecnológico a nossa disposição. um etnocídio.
. . . io destas Também há o entendimento, do qual. compartilhamos, de que todas
139 Vo
“Na maioria, dos sites existe o sistema de parcerias € financiamentos. A formação des
icação, o que fortalece de certa forma
icaçã o as sociedades têm o direito de usufruir dos benefícios da tecnologia da
tias
i pera10:O acesso a estes recursos de comun Mal
€ faz possivel o acesso ao ciberespaço Unido sociedade contemporânea e que a inclusão digital não será um novo ele-
vimento indígena em todo o mundo, tas d e de asassoc iaçõees
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organizaçõ i nais são
nacioionais sã gran des patcei
a mento que porá em tisco a identidade cultural dos povos indígenas; ao
(Ingl atert a), Alianza AM
i d (Noruega), Cafod Roraima (Itália), epedos
oo Qieáli), ces) (Inglaterra), Pro Índios di l Espa nta, INC e contrário, será um instrumental de afirmação cultural.
(Inglaterra), Survia l Intern ationa
(Alemanha) Rainforest Foundation (Franç a), im axa a a Por se tratar de um direito que atingirá comunidades diferenciadas e'
Franc e-Lib ertés - Found ation : Danielle Mitertand Holan dês p
Unidos) Centro
(Estados Unidos), NCIV -
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CHOAL, 2007,
Indígenas (Holanda) (PAS 213
PLC

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8 OTNIVO VIIARIN( VIDOTOdOYLNV SG SOLNINTTE


ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA

jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Petrópolis, 2003. CAPÍTULO 9


SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único
à consciência universal. Rio de Janeito: Record, 1999.
ANTROPOLOGIA, ALTERIDADE E DIREITO: DA
TAYLOR, €. Multiculturalismo. Tradução de Marta Machado. Lisboa:
Instituto Piaget, 1998.
CONSTRUÇÃO DO “OUTRO” COLONIZADO
COMO INFERIOR A PARTIR DO DISCURSO
ZAQUAL, Hassan. Globalização e diversidade cultural. Tradução de
Michel Thiollent. São Paulo: Cortez, 2003. COLONIAL À NECESSIDADE DA PRÁTICA
ALTERITÁRIA |
140
FLOISE DA SILVEIRA PETTER DAMÁZIO

O presente capítulo tem por objetivo investigar de que forma o “ou-


tro” colonizado foi construído como inferior, bem como analisar a ques-
tão da necessidade da prática alteritária. Do mesmo modo, será analisada
a relação dessa problemática com a Antropologia e com o Direito.
A Antropologia põe em discussão o “outro”, valotiza a diversidade, a
alteridade. Não resta a menor dúvida de que o Direito carece desse enfoque,
necessita de uma Antropologia Jutídica, pois ainda impera no pensamen-
to dos seus estudiosos a visão da lei como um elemento universal e abs-
trato, não como algo construído pela ação humana que assume formas
distintas em cada cultura,
Em decorrência da ausência de um olhar antropológico e crítico dos
discursos coloniais, persistem tendências homogeneizantes no âmbito do
discurso jurídico, as quais continuam o processo de inferiorização do “ou-
tro”. O Direito, muitas vezes, além de perpetuar o discurso de inferiori-
dade do “outro” colonizado, consolida'e aprofunda essa condição.
Tendo em conta tais carências, este capítulo proporciona aos estudan-
tes do Direito uma conttibuição fundamental, que diz respeito à exigência
do questionamento dos discursos instituídos e da necessidade de uma
prática alteritária fundada mediante uma perspectiva antropológica.
A abordagem aqui proposta, visando atingir seus: objetivos, realizar-

“4º Mestranda no curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC c bolsista da Capes.

217
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6 OINHAVO VDIGRIN( VIDOTOdONLNY A SOLNAHTTA


—————————— ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JuríDica —
CaríruLo 9

desinteressada e inevitável.A genealogia nietzschiana é uma operação do sos. considerados como verdadeiros. Cada sociedade “tem seu tegime
pensamento que se afasta da crença em “origens”, crença que é inerente à de
verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela
metafísica em” sua aspiração à universalidade e em sua supressão da
acolhe e faz funcionar como verdadeiros”. De igual modo, possui os
historicidade." ' no mecanismos que “permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
A genealogia desmascara a origem de valores morais nobres e superi- falsos, a mancira como sc sanciona uns e outros; as técnicas e os procedi-
ores, eles são o “fruto manchado de sangue de uma história bárbara de
mentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto da-
dívidas, torturas, obrigações e vinganças, todo o processo de horror pelo
queles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”
qual o animal humano foi sistematicamente violentado e debilitado para
(FOUCAULT, 1986, p. 12). Assim, um discurso qualificado como verda-
ser tornado aceitável pata a sociedade civilizada” (LUÚBKE, [s.d)], p. 173).
deiro torna-se o discurso universal, excluindo os demais.
Foucault - é um continuador da ctítica feroz à metafísica ocidental,
A verdade não é neutra, mas é oriunda da luta pelo poder cuja
traçada desde Nietzsche, Da mesma forma que Nietzsche, Foucault é um legitimação exige um discurso racional num certo contexto histórico.
crítico da ciência, do progresso e da verdade absoluta. As referências a Enfatizando o caráter produtivo do poder, Foucault destaca que o poder
Nietzsche estão presentes ao longo de sua obra. Entre as marcas deixadas “induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (1986, p. 8). Para este
por Nietzsche consta o “desinteresse por uma obra sistemática, primado autor (p. 13), a verdade “é centrada na forma do discurso científico e nas
da relação sobre o objeto, papel relevante da interpretação, importância instituições que a produzem”. A verdade é produzida e transmitida sob o
dos procedimentos estratégicos e, até mesmo, absorção da noção de controle, quase dominante, de alguns aparelhos políticos ou econômicos,
genealogia” (MARTON, 2001, p. 199). Foucault é herdeiro de Nietzsche tais como universidade, exército e meios de comunicação.
tanto em relação à genealogia como à Arqueologia, métodos utilizados Foucault discute os procedimentos de produção de discursos, dando
para diagnosticar os discursos na História. ênfase aos mecanismos de poder relativos à constituição das práticas
É por meio da Arqueologia que Foucault analisa como os saberes se discursivas. Observa que a produção do discurso é, em toda sociedade,
articulam com o poder. Mostra as estratégias da produção deste saber, ao mesmo tempo controlada, “selecionada, organizada e redistribuída
como os discúrsos criam determinadas realidades. Reflete sobre as ciên- por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus
cias do homem enquanto saberes, “investigando suas condições de exis- poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pe-
tência através da análise do que dizem, como dizem e por que dizem” sada 'e temível materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8-9).
(MACHADO, 1988, p. 11). Dessa forma, Foucault reintroduz.a luta do discurso no interior do
Foucault emprega o termo nietzschiano genealogia para “explicar o campo da análise, “não para fazer como os linguistas, uma análise siste-
aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidades externas mática de procedimentos retóricos, mas para estudaro discutso, mesmo
aos próprios saberes”. A genealogia é “essa análise dos saberes, que pre- o discurso de verdade, como procedimentos retóricos, maneiras de ven-
tende explicar sua existência e suas transformações situando-os como peças cer, de produzir acontecimentos, de produzir decisões, de produzir bata-
de relações de poder ou incluindo-os em um dispositivo político” (MA- lhas, de produzir vitórias” (FOUCAULT, 2005, p: 142).
CHADO, 2006, p. 167). É a partir de Foucault, portanto, que se poderá fazer uma análise críti-
O que se denomina verdade é constituído pelo jogo de regras, pela ca dos discursos, nos termos de sua legitimação histórica, denunciando a
otdem do discufso que condiciona esses saberes. A verdade é um produ- formação dos discursos de verdade em seus efeitos de poder.
to do poder-saber, da articulação entre estratégias de poder e de discur- As considerações seguintes visam analisar o discurso colonialista, a
construção da verdade sobre o “outro” colonizado, tendo em conta o
“ Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês, foi professor no Collêge de France. O exame crítico realizado por Foucault sobre os discursos da sociedade
impacto de sua obra passa por diversas áreas do conhecimento, principalmente pelas áreas ócidental, européia.
humanas e das Ciências Sociais. E autor de; entre outros livros, História da loucura; Arqueologi
disco insira

do saber, A ordem do discurso; A verdade e as formas jurídicas, Vigiar e punir.

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6 OTNLIVO VOIARIN[ VIDOTOGOUINY dA SOLNHNT


TS
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CapíruLo 9

O ORIENTAL de Said (1990, p. 15). Para ele, sem


examinar o orientalismo como um
discurso não é possível entender a “disciplina enor
memente sistemática
Na concepção de Santos (2006, p. 182), do ponto de vista do Ociden- por meio da qual a cultura européia consegui
u administrar «: e até produ-
te, o Oriente é a “descoberta primordial do segundo milênio”. O Oci- zir - o Orie nte política, sociológica, ideológica,
cien tífica e imaginativa-
dente “não existe fora do contraste com o não-Ocidente.[...] É o lugar mente durante o período pós-Iluminismo”.
cuja descoberta descobre o lugar do Ocidente: o centro da história que Referindo-se ao domínio inglês do Egito
no século XIX, Said (1990
começa a ser entendida como universal”. Esta é uma descoberta imperial, p. 46) observa que há ocidentais e orientais,
os “primeiros dominam; os
que assume, em tempos diferentes, conteúdos diferentes. segundos devem ser dominados, o que
costuma querer dizer que suas
terras devem ser ocupadas, seus assuntos
internos tigidamente controla-
O Oriente é, antes de mais, a civilização alternativa ao Ocidente dos, seu sangue e seu tesouro postos à disposiç
ão de uma ou outra potên-
— tal como o sol nasce a Oriente, também aí nasceram as civiliza- cia ocidental”. Novamente o que transparece é
a construção da superiori-
ções e os impérios. Esse mito das origens tem tantas leituras quantas dade dos ocidentais, possibilitando e justifican
do a dominação do “ou-
as que o Ocidente tem de si próprio, ainda que estas, por seu lado, ES
tro”.
também não existam senão em termos da comparação com o que - Para Santos (2006, p. 184), continuamos
prisioneiros da mesma con-
não é Ocidental, Um Ocidente decadente vê no Oriente a Idade do cepção do Oriente. |
Ouro; um Ocidente excaltante vê no Oriente a infância do progresso
civilizacional (SANTOS, 2006, p. 182). Se é verdade que as cruzadas selaram a concepção do, Orient
e que
prevaleceu até hoje no Ocidente, não é menos
verdade que, para o
A idéia de Oriente que prevaleceu no Ocidente teve a sua consagração mundo muçulmano, as cruzadas — agora designadas como
guer-
científica no-século XIX com o denominado otientalismo. Orientalismo é ras e invasões francas — compuseram a imagem do
Ocidente —
a concepção. do Oriente que domina nas ciências e nas humanidades eu- um mundo bárbaro, arrogante, intolerante, pouco honra
do nos com-
ropéias a partir do final do século XVIII. Segundo Said (1990, p. 59), promissos — que igualmente até hoje dominou.
esta idéia baseia-se no seguinte, os ocidentais são “racionais, pacíficos,
liberais, lógicos, capazes de ter valores reais, sem desconfiança natural”. O Ressalte-se que tais discursos servitam para justificar
as pretensões
oriental é “irracional, depravado (caído), infantil, “diferente”, O conheci- colonialistas e imperiais em relação ao Oriente. O Orient
e, no entanto,
mento do Oriente pelo Ocidente, por ter sido gerado por força, em um continua a ser uma civilização temível e temida, por meio
de duas formas
certo sentido cia o Oriente, o oriental e seu mundo (SAID, 1990, p. 50). principais, uma, de matriz política, o denominado
“despotismo oriental”,
Said busca, em sua obra “Orientalismo”, explorar nas sociedades e outra, de matriz religiosa, o denominado “fund
amentalismo islâmico”.
colonialistas a relação entre discurso e poder, definindo a constituição do Ou seja, o Oriente continua a ser o “outro” civilizacional
do Ocidente
oriental como diferente e subaiterno. Faz isso por intermédio da análise (SANTOS, 2006, p. 185). |
de relatos de viagem, poemas, romances, escritos políticos e científicos. ,

Dessa maneita realiza um novo tipo de estudo sobre o colonialismo, O AFRICANO A ,

desmitificando assim a verdade ocidental sobre os não-eutopeus, por


meio das relações de poder. A violência do Ocidente sobre os colonizados inclui uma visão a-
À categotia discurso, abordada por Foucault, é empregada no estudo histórica destes. Com relação à África esta realidade toma proporções
ainda maiores. Tanto que Hegel (1974, p. 203) considerava a África
ns

a pda
, mais
149 literário e ativista da causa palestina. Na sua obra
Edward Said (1935-2003): crítico o literá “ Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão. Tentou desenvolver um sistema filosófico
o mundo “oriental”.
conhecida, Orientalismo, analisa a visão ocidental d

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6 ONO VDIATIN( VIDOTOSOULNY Ja SOLNHNT


TS
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CapfruLo 9

evolutiva vem o branco europeu, com a astronomia e todas as carac- O discurso da recusa do estranho foi
O que se estabeleceu, pois foi
terísticas de sua superioridade (VOLTAIRE apud mediante um olhar de superioridade que o colonizador
MUNANGA, 1988, p. 18). Po passou a se rela-
cionar com os povos conquistados.
|
Tais discursos sobre as catactetísticas físicas e morais do negro foram [=] não acreditando em Dens, não lendo alma,
não tendo acesso à
adotados para legitimar e justificar a escravidão e a colonização. Como linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentand
o-se como um
consegiiência, o discurso colonialista construiu a verdade sobre os africa- animal, 0 selvagem é apreendido nos modos de
sm bestiário. E esse
nos: os colonizados africanos como uma população inferiorizada c os disenrso sobre a alteridade, que recorre const
antemente à metáfora
colonizadores brancos como uma taça superior. qoológica, abre o grande leque das ausências:
sem moral, sema reli-
Sião, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem
consciência, sem razão,
O AMERÍNDIO sem objeriro, sem arte, sem passado, sem futuro
(LAPLANTINE
1999, p. 41).
Desde a chegada dos europeus na América, desenvolveu-se um saber
antropológico aplicado aos colonizados. Em um primeiro momento, os A condição do ameríndio, se era selvagem
ou humano, foi discutida
ameríndios foram considerados ora criaturas puras e infantis, ora bárba- por Las Casas e Sepúlveda no debate de Valladolid. A polêmica de
ros e pagãos. Posteriormente, com a decadência da visão teológica do Valladolid resumia-se, basicamente, em
duas partes: “eram os índios tão
mundo e com a chegada da era moderna, o saber antropológico de ins- bárbaros e inferiores ao ponto de ser neces
sária à guerra para tirá-los
piração religiosa deu lugar à matriz cientificista naturalista. Desde então, desse estado? A outra questão era de direito:
era ju sta, em si, a guerra
os ametíndios foram designados como “naturalmente inferiores”. Ou contra os índios como meio de propagar o
cristianismo na América?
seja, “no período da conquista, o índio era visto como ser passivo, inca- (BRUIT, 1995, p. 122).
paz de tornar sujeito de sua própria história. Esta imagem permanece até Sepúlveda legitimou as justas causas da guerra
contra os índios, alertando
que estes eram gentes bárbaras, incultas, cont
os dias de hojee estende-se ao latino-americano em geral” (SILVA FI- aminadas por impiedades e
torpezas, e que foi muito bom que foram conqu
LHO, 2005, p. 222). istadas por uma “nação
humaníssima e excelente em todo gênero de
Todorov (1988, p. 34-35) esclarece que os povos ameríndios foram vittudes” (BRUIT, 1995 p.
128). Las Casas, contrapondo-se a Sepúlveda,
vistos primeiramente como culturalmente virgens, como uma página em defendeu os índios. Para
tanto caracterizou os ameríndios como fisicament
brancp. “Fisicamente nus, os índios são também, na opinião de Colombo, e débeis, o oposto do
selva gem do imaginário medieval (WOORTMAN
desprovidos de qualquer propriedade cultural [...] caracterizam-se, de cer- N, 2004, p. 140, 142).
As boas intenções de Las Casas, contudo,
to modo, pela ausência de costumes, ritos e religião”. serviram para justificar as
teorias que surgiram posteriormente soa infer
As opiniões sobre os ameríndios variavam, cada uma delas implicava br iorid
eade dos índios, como
as de Buffon e De Pauy”
uma posição na escala hierárquica. “Humano como o europeu? Subumano?
Com relação aos jesuítas do século XVI,
BestialP” Muitos relatos de viagens tratavam os índios como humanos estes acreditavam que o
inferiores ou animais superiores (WOORTMANN, 2004, p. 131).
155
Bartolomé de Las Casas (1484-1566): frade dominicano,
: ,
cronista, bispo de Chiapas
estra-
Nessa época sutgem duas ideologias concorrentes, “recusa do
Alcançou sua popularidade por meio da defesa dos índios. É autor ico).
de Brevisima relación de Ja
destrucción de las Indias.
cujo corolário é a boa consciência
nho apreendido a partir de úma falta, é
156 o . ,
Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573): filósofo espanhol. Conhecido: por sua defesa da
gu lário
açãão pelo estranho io
inaç a
oci edade; a fascscin
que se tem sobre si e sua soci
conquista da América e evangelização 'dos índios, por meio do direito do dominador frente

E
,

Ter
ao dominado.
e si e sua sociedade” (LA
é a má consciência que se tem sobr

dt
1a Cornelius De Pauw (1739-1799): filósofo holandês; É autor de, entre outros livros, História
da espécie humana.
1999, p. 38).
nn
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+

6 OINLjAVO) VILIRIN( VIDOTOJOLINY EG SOLNENETO


ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 9

casas e vestidos cómodos, e nem dos melindres do nosso luxo; porque O instrumental jurídico europeu, pelo fato de elaborar teorias jutídicas
finalmente não tém idéia de propriedade, nem desejos de distinções e ligadas inicialmente ao Direito natural, de cunho religioso, justificou a dou-
vaidades sociais, que são as molas poderosas que põem em atividade trinação dos índios e a escravidão dos africanos. A prática jurídica colonialista
o homem civilizado. reforçou uma realidade que se repetiria posteriormente, “a profunda
dissociação entre o Diteito feito para garantir os intéresses da elite admi-
Os habitantes das novas tertas deveriam ser civilizados, modetnizados nistrativa e a justiça permanentemente almejada e negada para uma popu-
pelos europeus. Dessa forma, Dussel considera que o ameríndio foi lação composta de índios, escravos negros e imensos segmentos societários
encoberto cómo “outto”, apresentado como bárbaro, sujeitado, excluídos” (WOLKMER, 1998, p. 91).
subsumido, forçado a se incorporar à “Totalidade dominadora” como Da mesma forma, o Direito moderno, mediante seu discurso de igual-
coisa, como instrumento, como oprimido, como encomendado, como dade (tomando como parâmetro o homem europeu), tentou anular as
assalariado (DUSSEL, 1993, p. 44). diferenças étnicas e culturais, tentou tornar iguais os diferentes, destruindo
Atualmente, embora exista o discurso da multiplicidade das culturas, suas identidades. A relação com o Estado fez com que os discutsos cien-
ainda persiste no imaginário a figura do ameríndio como inferior, a infe- tíficos, religiosos e políticos se apresentassem sob a modalidade de dis-
rioridade continua implícita nas representações sociais e também na polí- curso liberal, fundado na igualdade jurídica de direitos e deveres. O “ou-
tica indigenista. Apesar de todas as novidades, “a grande narrativa do tro” passou a ser considerado como igual, podendo assim ser assimilado
conflito interétnico, do choque de alteridades e da intolerância ocidental ou desqualificado (ORLANDI, 1990, p. 58).
pela diferença ainda continua a ser declamada em alto e bom som” (RA- Soriano chama de imperialismo jurídico a fórmula de imposição de
MOS, 2000, p. 282). um Direito em substituição aos Direitos das culturas e minorias. O impe-
tialista põe seu Direito no lugar dos Direitos dos povos dominados, os
O DISCURSO COLONIALISTA E O DIREITO tolera na medida em que não prejudiquem seu interesse. Para o autor, isso
tem sido a atitude dos colonizadores, não só no passado, mas também na
Todos os discursos colonialistas de inferiorização do outro (o religio- atualidade. Isso se dá pot meio do não-reconhecimento das culturas
so, o científico, o filosófico e o político), de uma maneira ou outra, foram
minoritárias, desde a marginalização até a supressão direta (SORIANO,
incorporados ao Direito. Em vista disso, os colonizadores decretaram a 2004, p. 116-117).
Salienta-se, portanto, que uma análise crítica sobre os discutsos, não
não-validade dos sistemas jurídicos existentes nas culturas dominadas,
apenas os colonialistas, mas também os pós-coloniais, é tema que deve
[..] os colonizadores enropeus encontraram nos territórios em que ser privilegiado pelos pesquisadores e profissionais do Direito. Muitas
se instalavam formas de organização social que ignoravam a noção vezes eles se atêm apenas à letra da lei, abstraída das condições históricas
universalizante e abstrata de sujeito de direito; pelo contrário, as e sociais que a produziram. Esquecem que o Direito não é apenas aquilo
relações pessoais de dependência eram muito fortes, num universo de que está nos códigos, mas que é construído por certos discursos em de-
solidariedade social representado por grupos que iam da família à terminado momento histórico e de acordo com certos interesses. Como
adverte Foucault, a verdade encontra-se sempre vinculada a questões de
tribo. [...] foi preciso destruir esta organização social e transformar
poder. A concepção foucaultiana é fundamental para analisar o Direito
ós indivíduos em sujeitos de direito, capazes de vender a sua força de
não como algo imparcial, mas como um discutso que produz realidades.
frabalho (MIAILLE, 1979, p: 112) Foucault realiza uma pesquisa histórica do Direito. Para ele as práticas
exilou-se em 1975 no México (onde aderiu à e saberes jurídicos aparecem inseridos na história, relacionados com o
“O Enrique Dussel (1934-): filósofo argentino, enfia da
nacionalidade mexican a), estudou a obra madura , de, Marx e a relação dás problema do poder e da produção da verdade (FONSECA, 2002, p:
Mundo. É autor de, entre outro S,
erica Latina em relação ao Velho
modernidade.
oia na América Laio 1492: 0 encobrimento do Outro: a origem do mito da

229
233
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríTULO 9

156). Suas concepções de verdade e discurso descaracterizam o discurso


discussão o “outro” e a valorizar a diversidade. Com Malinowslky ”, a
jurídico como isento e universal. As formas e os discursos sobre o Direi-
Antropologia tornou-se “uma “ciência” da alteridade que vira as costas ao
to relacionam-se com as práticas de poder que vão influenciar a sua pro-
empreendimento evolucionista da reconstituição das origens da civiliza-
dução (ASENSI, 2006, p. 8).
ção, e se dedica ao estudo das lógicas particulares e características
de cada
Para complementar essa postura crítica em relação aos discursos colo- cultura” (LAPLANTINE, 1987, p. 81).
niais, é necessário um olhar antropológico em relação ao Direito. Uma
Da mesma forma que a Antropologia foi uma das responsáveis pela
postura comprometida com a análise da construção do “outro” como
discriminação entre pessoas e entre povos, foi também a primeira ciência
inferior e também voltada para a ação, amparada na prática alteritária e
a pôr em discussão o “outro” e a valorizar a diferenciação, a diversidade
no respeito a toda diversidade. É a partir desse viés que se situa a impor-
cultural, a alteridade.
tância da Antropologia e da Antropologia Jutídica para o Direito.
O debate fundador da Antropologia Jurídica se deu entre os séculos
XIX e XX, sobre a existência ou não do Direito nas sociedades primitivas.
À CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA O debate oscilou entre uma visão legalista do Direito e uma visão ampla
JuríDiCA AO DIREITO: O DESENVOLVIMENTO DA PRÁTICA da lei para a qual o Direito, a cultura e a sociedade constituem partes
ALTERITÁRIA inseparáveis da realidade social. Nesse primeiro momento, assim como a
Antropologia, a Antropologia Jurídica esteve vinculada ao colonialismo,
Discursos de inferiorização do “outro” ainda são comuns, inclusive o que mudou com o desenvolvimento de estudos críticos sobre a legali-
no âmbito jurídico. E a partir dessa constatação que se destaca a impor- dade, destacando-se o papel da cultura, poder e história (SIERRA;
tância da Antropologia e da Antropologia Jurídica para o desenvolvi- CHENAUT, 2002, p. 114-115). Recentemente, com a emergência das
mento da prática alteritária. demandas étnicas e dos processos de globalização econômica e cultural,
Desde sua institucionalização, a Antropologia caracterizou-se como o surgiram novos temas e questionamentos, como a questão do pluralismo
estudo do “outro”. A Antropologia antiga considerava que existiam duas . e da hegemonia jurídica. |
formas de pensamento, o civilizado,
A Antropologia Jurídica nos liberta das amarras dos discutsos coloni-
3 , evoluído (euro eu),1 e o selvagem
primitivo, inferior (orientais, africanos, ameríndios, etc.) .
? B >
ais, que tinham como base o evolucionismo, o etnocentrismo, a conside-
A Antropologia do século XX, entretanto, mudou, constatou que o: ração de que existia apenas uma verdade, a ocidental. Ela analisa o Direito
nativo não era selvagem, primitivo, inferior. Passou então a colocar sob um olhar mais amplo, mais problematizado, não definido apenas pot
em
“manuais” e códigos,
Por considerar o Direito não como um aparato isolado e autônomo
161
“[...] a antropologia foi, talvez,
a rubrica mais importante, sob a qual o outro nativo foi '
importado para a Europa e dela exportado. A partir das diferença
europeus, antropólogos do século XIX construíram outro s reais dos povos não-
ser, de natureza diferente;
da sociedade, mas como um elemento construído pela atividade humana,
desencontros culturais e características foram
árabe, do aborígine, e assim por diante. Quando a expansão
construídas
como a essência do africano, do a Antropologia Jurídica oferece possibilidades de crítica ao Direito
colonial estava no auge e as
potências européias disputavam a África aos empurrões,
a antropologia e o estudo de povos hegemônico ocidental. Proporciona novos meios para o desenvolvimen-
não-cutopeus tornaram-se não apenas um esforço de
campo para instrução pública. O Outro foi importado paraestudiosos, mas também um vasto - to da prática alteritária em uma sociedade marcada pelo não-teconheci-
natural, em exposições públicas de povos primitivos, a Europa — em museus de história
posto cada vez mais à disposição do imaginário
e assim por diante — e dessa maneira, mento e pela inferiorização do “outro”,
popular.
popular, a antropologia do século XIX apresentava culturasTanto em sua forma erudita como A extrema necessidade da prática alteritária pode ser observada pelas
versões subdesenvolvidas dos europeus e da sua civilizaç e indivíduos não-europeus como
representando estágios no caminho da civilização européia. ão: eram sinais de primitivismo, consequências sociais quando se desconsidera a diversidade cultural, como
humana rumo à civilização foram, dessa forma,
Os estágios diacrônicos da evolução
concebid
nos diversos povos e culturas espalhados pelo globo, os como presentes sincronicamente
outros não-europeus dentro dessa teoria evolucionária À apresentação antropológica dos
ratificar a posição eminente dos europeus e com da civilização serviu para confirmar e
isso legitimar todo o projeto colonialista” “ Bronislaw Kasper Malinowski (1884-1942): antropólogo polonês, considerado um dos
(HARDT; NEGRI, 2001, p. 142). fundadores da moderna Antropologia Social. É autor de, entre outros livros,
/ ! » Magia, ciência e religião.
924
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JuríDica
CaríruLO 9

o genocídio dos ameríndios “e a escravidão dos africa


nos, entre outros, tam contribuições fundamentais ao Direito. Trazem
A prática alteritátia pode se dat entre indivíduos e grupos, aportes indispensá-
e leva em veis de crítica ao discurso colonial hegemônico. Ademais, possib
conta sempre os fenômenos da complementaridade e da interdepen ilitam
dência, que a atuação, tanto do pesquisador, como do profissional
no modo de pensar, de sentir, de agir, sem a preoc do Direito,
upação com a paute-se na prática alteritária e no conhecimento e compr
sobreposição, assimilação ou destruição
do “outro” com o qual nos rela- eensão de uma
cionamos (PINTO, 1994), humanidade plural.
No diálogo de culturas faz-se necessário o reconhecim
ento do dife- REFERÊNCIAS
tente, o reconhecimento da alteridade. Sendo a alteri
dade um conceito
fundamental da Antropologia, não resta a menor dúvid
a que o Diteito
necessita dessa disciplina. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- ASENSI, Felipe Dutra. O rosto que se desvanece na areia
da praia: ho-
mem, conhecimento e direito em Michel Foucault. Revist
Este capítulo buscou analisar de que forma se deu a const a Urutágua.
rução do Maringá, n. 9, abr.-jul. 2006. Disponível em: <yyrwurutagua uem.br/
“outro” colonizado como inferior, a partir do discur
so colonial, bem 009/09asensihtm>. Acesso em: 28 set, 2007.
como a necessidade da prática alteritária.
Às consequências de não se reconhecer a alteridade podem
ser catas- BHABHA, Homi. A questão do “outro”: diferença, discriminaçã
tróficas, O presente não está imune. Deve-se lembrar que, o e o
não muito discurso do colonialismo. In: HOLLANDA, Heloísa Buarqu
distante, o ideal nazista ceifou milhões.
de seres humanos, justamente por e de. Pós-
modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992,
estar amparado na inferiorização do “outro”. Várias outras p. 177-203.
carnificinas se
sucederam, as guerras no Vietnam, Iugoslávia, Afegan
istão e Iraque são « O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG,
alguns exemplos. 1998.
A alteridade permanece “recusada”, e isso pode ser consta
tado pela BONNICI, Thomas, Conceitos-chave da teoria pós-colonial
xenofobia, pelo racismo, pelo preconceito, pela segregação , Maringá:
e discrimina- Eduem, 2005.
ção em relação à raça, à etnia, ao gênero ou à classe social,
fenômenos
amplamente visíveis na contemporaneidade.
— — Teoria e crítica pós-colonialista. In: BONNICI, T. ZOLIN,
Embora o tema não tenha sido esgotado, pode significar um L. O.
passo Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâne
inicial para a compreensão não só da História, mas do momen as.
to atual, A Matingá: Eduem, 2003. p. 223-229.
intolerância, a agressão ao “outro” continuam sob formas cada
vez mais
brutais, entretanto são mascaradas por diversos discursos paliati
vos. BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas e a simula
É nesse contexto que a Antropologia e a Antropologia Jurídi ção dos
ca: pres- vencidos. Campinas: Unicamp, 1995. .

É usem entrar em detalhes, e para dar somente uma idéia global (apesar CUVILLIER, Armand. Pequeno vocabulário da língua filosófica. São
totalmente no direito de arredondar os números em se tratando de vidas
de não nos sentirmos
humanas), lembraremos
que em 1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
quais 80 habitam
as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões só restam 10. [...]
Se a palavra
genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse, É
um recorde,
patece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% e
mais), É.) DUSSEL, Enrique. 1492 — O encobrimento do outro. Petrópolis: Vo-
Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatomb
e) zes, 1993.
(TODOROY, 1988, p. 129).

236 237
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 9

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA

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Esteban (Ed.). Antropologia jurídica: perspectivas socioculturales en cl ca devido à emergência de demandas. cidadãs no contexto de luta pela
estudio del derecho. México: ANTROPOS, 2002. democracia. Essa situação resulta particularmente notória em relação às
lutas por reconhecimento dos direitos dos povos autóctones ”, deman-
SIQUELLI MONACO, Sônia Aparecida. Alfabetizar x alfabetizan- das que questionam o caráter monoétnico do Estado-Nação.
do: Uma relação de alteridade. In: Congresso Internacional e VI Semana A Antropologia, ao longo do século XX, trabalhou com o objetivo de
da Alfabetização, 2005. despertar a humanidade para perceber e aceitar a variedade das perspec-
tivas culturais. Para Segato (2006, p. 216), esta tarefa alcançou seu limite
SORIANO, Ramón. Interculturalismo. Entre liberalismo y atualmente, quando as culturas consideradas mais distantes, segundo a
Comunitarismô: Almuzara, 2004. perspectiva ocidental, têm de dialogar e negociar direitos nos foros esta-
belecidos por seus Estados nacionais.
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. : Este trabalho procura contribuir para essas discussões especificamente
São Paulo: Martins Fontes, 1988, acerca dos direitos humanos consagrados na Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948), que tem a finalidade de garantir a todos os
WOLKMER, Antônio Carlos (Org). Direito e justiça na América in- seres humanos os direitos ali positivados. Em relação às chamadas cultu-
dígena: da conquista à colonização. Porto Alegre: Livraria dos Advoga- tas não-ocidentais, até que ponto a aplicação desses direitos representa de
dos, 1998. fato algum benefício para esses indivíduos?
A diversidade das culturas é comumente vista como uma riqueza da
WOORTMANN, Klaas. O selvagem e o Novo Mundo: ameríndios, humanidade. De acordo com Laraia (1988, p. 120), a cultura é um con-
junto de comportamentos'e saberes característicos de um grupo humano
humanismo e escatologia, Brasília: UnB, 2004.
“* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Mestre em Direito, Estado
e Sociedade, Subárea Direito e Sistema de Justiça pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Professora substituta da Universidade Federal de Santa Catarina.

e Segundo Rouland (2004, p. 459), seria-todo e qualquer povo instalado em um território
como
tempos imemoriáveis e que mantém um vínculo com esse território. Pode ser usada
uma expressão para se referir a povos tribais ou comunidades “primitivas .

241
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 10-

ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas mediante (PIACENTINI, 2007, p. 7).
um processo de aprendizagem e transmitidas ao conjunto de seus mem- Eis algumas questões que este artigo pretende abordar. Ao enfocar
bros. Esse rol de comportamentos não deve ser entendido como um práticas culturais dos povos indígenas brasileiros e de outras culturas não-
bloco estático de práticas culturais que auxilia a definir a identidade de ocidentais, pretende-se refletir acerca dos dilemas de implementação ou
uma determinada sociedade. À cultura é um processo dinâmico que se não das premissas dos direitos humanos universais e até que ponto a
modifica quando em contato com as outras culturas ou com processos defesa desses direitos diante das práticas culturais descritas representa vio-
internos de transformação de alguns costumes, preservando o contexto lação no que tange à preservação da cultura indígena e à autodetermina-
de continuidade cultural . ção desses povos.
O multiculturalismo procura descrever a existência de uma A Antropologia Jurídica é uma importante ferramenta para estudar o
multiplicidade de culturas no mundo que coexistem e se interfluenciam tema, em primeiro lugar pela sua real disposição em compreender os
tanto dentro como fora de um mesmo Estado-Nação, e como projeto preceitos das culturas dos povos autóctones. No entendimento de Sala
político aponta para a celebração ou reconhecimento dessas diferenças (2004, p. 10), a Antropologia é uma disciplina estabelecedora de pontos e
culturais (SANTOS, 2003, p. 28). articulações entre os campos de saber e as práticas sociais. Como discipli-
Algumas práticas culturais, como o infanticídio e a mutilação genital na comparativa, seu enfoque permite encontrar as diferenças e semelhan-
feminina, têm sido objeto de muitas críticas e a invocação dos direitos ças entre os sistemas de crenças e os comportamentos a eles associados,
humanos ocidentais tem servido de ferramenta para interferência nessas Além disso, a Antropologia Jurídica percebe o Direito não apenas
comunidades com o objetivo de evitar que essas práticas degradantes à como norma oriunda unicamente do Estado. O reconhecimento do
dignidade humana se perpetuem. Pluralismo Jurídico º é um compromisso firmado ao se estudar esta
Em tempos de globalização o debate sobre a universalidade dos di- temática.
reitos humanos ganha novos contornos. Especialmente na esfera econô-
mica, esse fenômeno interconecta o mundo todo e a hegemonia do met- SOBRE O NASCIMENTO E CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS
cado capitalista gera o temor da homogeneização cultural. Nesse contex-
HUMANOS
to, é possível defender a idéia de direitos humanos universais? Como é
possível sustentar que todos os seres humanos possuem direitos inalienáveis,
independentemente das diferenças? Como exigir respeito a direitos bási- À noção dos direitos humanos surgiu para a proteção da dignidade
cos ante práticas culturais que os violam, quando justamente o respeito à
humana, Tornaram-se referência importante a partir das Declarações de
cultura e à autodeterminação dos povos são ferramentas para sua defesa? Direitos Humanos, principalmente B:// of Rights (1689, na Inglaterra), De-
Como essa tentativa de defender a dignidade humana pode se caracteri- claração da Independência Norte-Americana (1776) e a Declaração Fran-
zar imperialismo cultural — imposição de uma cultura dominante? - cesa dos Direitos do Homem e dos Cidadãos (1789).
Na modernidade ocidental o conceito de direitos humanos estava vin-
culado a certas características da sociedade européia dos séculos XVII e
166
Baseada na novela homônima de Witi Ihimaera, publicada em 1987,
o filme “Encantadora
de Baleias” (The Whales Rider), da diretora neozelandesa Niki Caro,
uma
ilustra a possibilidade de
cultura, nesse caso a dos Maotis, outorgar a uma mulher a posição
de líder e herdeira da
chefia do grupo, contrariando os princípios de sucessão arraigados
e da concepção de linhagem. No caso da história fictícia narrada nos preceitos da tradição à determinada cultura,
EA Eno do justamente para que à cultura possa sobrevive no filme, um costume tem 169
O paradigma do Pluralismo Jurídico, ao se aproximar da realidade social de demanda por
r, Sobre isso, veja SEGATO
direitos, principalmente coletivos, visualiza uma nova concepção de jutidicidade que não se
16 7 identifique unicamente com os direitos consagrados nos códigos e na legislação dogmática.
(997 um aprofundamento na questão do multicultutalismo, ver Warnier (2003) e Hall O principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico é a negação de que o Estado
seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda à produção do Direito,
1H Trata-
Segundo Piacentini (2007, p. 43), esta universalidade deve comporta se de uma perspectiva descentralizadora e antidogmática do direito que pretende “a supremacia
Nem o Estado nem as minorias podem colocar em xeque r o pluralismo cultural. de fundamentos ético-político-sociológicos sobre critérios tecnoformais positivistas”
a adesão ou não de um indivíduo (WOLKMER, 2001, p. XV).
219
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariruLo 10

XVII, como o individualismo, a luta pela liberdade de comerciar e a não- direito de igualdade formal perante a lei, gatantias
processuais como o
intervenção do. Estado na economia, A nova ordem liberal burguesa que devido processo legal, habeas corpus, petição etc). São direit
os vinculados
sutgia impôs, mediante as Constituições, a idéia de fundamental limitação mais fortemente a um pensamento liberal burguês, individualis
ta, num
da autoridade estatal por meio da técnica de separação de poderes e da período em que os direitos individuais eram entendidos como
garantias
declaração de direitos. Os direitos humanos integram a partir daí, ao lado contra o Estado, Esses direitos têm por titular o indivíduo,
ou seja, tradu-
da definição do sistema de governoe da organização do poder, a es- zem-se como faculdades ou atributos da pessoa, que, para serem
efetiva-
sência da Constituição, tornando-se um de seus elementos nucleares. Nes- dos, exigem, na maioria das vezes, apenas uma atitude de abste
nção esta-
se sentido, os direitos humanos, além de se constituírem como limitação
ao poder, são critérios de legitimação estatal e da própria ordem constitu- Os direitos de segunda dimensão começam a emergir no período
da
cional, Revolução Industrial (1750), ante as várias violações gerada
s pela explora-
A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e dos Cidadãos, ao ção do trabalho dos proletários nas fábricas. Iniciam-se as lutas pelos
estabelecer que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais chamados, por esse motivo, de direitos econômicos, sociais e cultur
ais
em direito”, inícia um movimento que pretende definir direitos a todos (direitos à saúde, educação, moradia, trabalho, sindicalizaç
ão, greve, direi-
os seres humanos, independentemente de sua nacionalidade e/ou cultura. “to dos trabalhadores etc.). Atribuiu-se ao Estado; naquele períod
o, um
comportamento ativo na realização da justiça social, Trata-se da liberd
Essa iniciativa consolida-se com a Declaração Universal dos Direitos do ade
Homem (1948) produzida no âmbito na Organização das. Nações Uni- por intermédio do Estado e não apenas da liberdade perante o Estado
.
das, que pretende conferir caráter universal aos direitos ali assegurados. São direitos positivos que deveriam ser efetivados: mediante a atuação
estatal,
Há várias formas de apresentar e classificar os direitos humanos. Para
Com a aceleração da indústria, a crise ecológica e o desenvolvimento
os fins deste trabalho e apresentar-se-á as dimensões — 2 dos direitos
tecnológico do século XX, reúnem-se na terceira dimensão os direitos à
humanos, possibilitando assim visualizar o seu reconhecimento progres-
proteção de grupos humanos. São direitos de titularidade coletiva ou difusa
sivo, a
(direito a um meio ambiente saudável e equilibrado, à paz, ao desenvolvi-
A primeira dimensão refere-se aos direitos individuais (direito à vida,
mento sustentável, ao patrimônio comum da humanidade, a uma vida
liberdade, propriedade, igualdade de expressão, direito à nacionalidade
digna etc.).
etc) e os direitos políticos (direito a voto, direito a eleger e set eleito,
Os direitos de quarta dimensão são decorrentes de um movimento de
universalização dos direitos humanos e referem-se novamente à proteção
"º A maioria dos trabalhos que se dedica ao estudo dos direitos humanos emprega várias
linhas ao tratamento de sua perspectiva histórica. Tal esforço vai além dos objetivos do de uma coletividade (direito à democracia direta, à informação ao
presente estudo. Dessa forma, serão apresentados apenas alguns apontamentos sobre direitos ,
que podem pertencer a essa categotia chamada direitos humanos. pluralismo cultural etc.). As atenções voltam-se para características especí-
M Optou-se pela adoção da nomenclatura “dimensões” em vez da idéia de “gerações”, pois
ficas de certos grupos, tais como: os direitos das mulheres, indígenas,
esta última pode ensejar a noção de que uma geração: substitui a outra, quando, na verdade, a negros, homossexuais, idosos, crianças'e adolescentes e outros.
idéia deve ser de reconhecimento progressivo, de complementaridade e não de alternância: e
substitutividade (SARLET, 2004, p: 53). “Alguns autores referem-se ainda à existência de uma quinta dimen-
“A própria utilização da nomenclatura direitos humanos é bastante controversa. A própria são, que se refere à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia
CF/88); b) direitos e garantias
II, da
Constituição se utiliza de: 2) direitos humanos (art. 4º, ai
adoonais genética. Esta dimensão abrange direitos vinculados à reprodução assisti-
j ades cons tituci
direi os e iberd
TI e axt. 5º, $ 1º, da CF/88;sc) 0) direit
fundamentaisis (epi(epígrafe do título
À
direitos e garantias individuais (art. 60, 4 4º, IV, E/88). da, ao aborto, eutanásia, transplantes de órgãos, manipulação genética,
(art. 5º, LXXI, da CF/88): d) acionais,
os tem sido utilizada para normas intern toss das mudança de sexo, clonagem, entre outros.
Comumente a nomenclatura diteitos humanforma geral, se aplic i am para aqueles firei ireito dos
uma
enquanto direitos fundamentais,i de s na esfera do direito constitucion
det r
res humanos reconhecidos e positivado sido associada aos direitos fundamentais ( E
De. es : = . x
É “importante destacar que vários autores fazem essa caracterização de dimensões de
E : do. A nomenclatura dime nsõe s tem pa evitar a idéiaidéia de de
irei os huma ) nos apena enas s Pp ara direitos fundamentais, entre eles Bonavides (2000), Andrade (1998), Comparato (2001), Barroso
i da aos direit
ilizáá-se neste momento ligac é apenas ap
04,4 p.p 36). Utiliz eleci do na nota anteri or, O objet ivo (2000), Miranda (2000), Canotilho (2001) e a obra clássica de Bobbio (1992).
derações j direitos conforme já estab facetas que os direi irei tos humanos pod em conter.
úma classificação acerca das difer i entes
245
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CAPÍTULO 10

A mera divisão dos direitos em dimensões não consegue explicar de ções Unidas - ONU, da qual fazem parte 192 países dos mais diversos
modo satisfatório toda a complexidade do processo de formação histó- matizes culturais, tendo todos se comprometido com a proteção dos
tica e social dos direitos humanos. O mérito dessa classificação talvez seja: direitos humanos, é possível pensar em um compromisso dos vários povos
demonstrar que os direitos humanos são construídos historicamente, po- do mundo em torno de um objetivo comum? (PIACENTINI, 2007, p.
dendo variar de acordo com os fatos históricos e com as influências po- 12). Que premissas são essas? Em torno de que reúnem-se hoje direitos
líticas de cada época. À idéia de um conjunto de direitos imutáveis que que seriam aceitos como verdadeiramente universais?
foram sempre garantidos, pelo menos teoricamente, aos seres humanos, Esses questionamentos envolvem muitas teses jurídico-filosóficas que
não se sustenta com a análise desse conjunto de dimensões. não são objeto deste trabalho. Para a maioria dos autores *, o fundamen-
Bobbio (1992) defende a idéia de que os direitos do homem são direi- to racional dos direitos humanos está na dignidade da pessoa humana —
tos historicamente relativos, posto que o elenco dos direitos do homem meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito. A questão,
se modificou e continua a se transformar juntamente com as condições contudo, está no conteúdo desse princípio: o que representa dignidade
históricas. O que é fundamental numa época pode não ser na outra. Os humana para cada cultura. O objetivo deste ensaio é, muito mais do que
direitos humanos desdobram-se em um processo inacabado, do qual a apresentar respostas às questões levantadas, despertar o estudante de Di-
Declaração Universal seria um ponto de partida. reito para uma crítica a respeito da pretensão universalizante dos direitos
Essa análise sobre os direitos humanos não consegue abranger toda a humanos.
complexidade das teorias existentes sobre o tema, mas serve aos objeti-
vos deste trabalho. Traçadas essas assertivas, pretende-se avançar nas discus- DIREITOS HUMANOS: UNIVERSALIDADE OU RELATIVISMO?
sões sobre as consequências de se aplicar esses direitos tidos como univer-
sais a povos cujas práticas culturais possam afrontá-los. A polêmica sobre os direitos humanos no mundo contemporâneo
Até que ponto esses direitos podem ser aplicados a todas as diferentes centra-se atualmente em duas visões. Herrera Flores (2002, p. 13) descreve
culturas do mundo? Considerando que os direitos humanos surgiram no em primeiro lugar uma visão abstrata, vazia de conteúdo, centrada na
Ocidente em uma sociedade organizada sobre os princípios do individu- concepção ocidental de Direito. E em segundo lugar, uma visão localista,
alismo, é viável que se questione a sua validade universal. A marca ociden- referenciada na idéia de cultura e de valor da diferença. A primeira visão,
tal pode ser facilmente identificada, segundo Santos (1997, p. 112), em a partir de sua aparente neutralidade, pretende garantir a todos um marco
muitos outros exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada, de convivência comum. A cultura, vista sob sua característica local, tem
sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento como finalidade garantir a sobrevivência de símbolos, de uma forma de
exclusivo de direitos individuais, com a única exceção do direito à auto- conhecimento e de valoração que oriente a ação do grupo para fins defi-
-
determinação; na prioridade concedida aos direitos cívicos e políticos nídos por seus membros.
sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, e no reconhecimento do À concepção da universalidade dos direitos fundamentais já era um
co . ,
de Bartolomé de Las Casas tis sobre os
direito de propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único principio presente em escritos
direito econômico. povos indígenas. À universalidade é sinônimo de igual dignidade de
Todas as culturas tendem a considerar os seus valores como mais todos
os homens, independentemente do espaço territorial no qual se
abrangentes. Isso é uma atitude natural, mas apenas a cultura ocidental encon-
tende a formulá-los como universais. Atualmente, porém, os direitos hu- 174
Entre os constitucionalistas já mencionados, merece
manos já correspondein a um conjunto de direitos que vai além dos direi- destaque Sarlet (2004). Para um
aprofundamento
) nessa questão, veja também Piacentini (2007).
o:
tos individuais, Não teriam esses direitos adquirido realmente uma “O domínio das coisas que são inferiores ao homem
mundo, sem exclusão de fiéis e infiéis segundo a corresp onde a todos: os homens do
aplicabilidade em todo mundo? Se pensarmos na Organização das Na- justiça e disposição divinas em geral, e
conforme o direito natural e das gentes em particular”,
para Defender a Justiça dos Índios”, Ver Souza Filho Bartolomé de Las Casas, “Princípios
(2001, p. 253). , ?
LA A se
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 10

tram. Essas idéias de Las Casas tinham consequências nem sempre aceitas Alguns poderiam rapidamente posicionar-se em favor da defesa dos
pelo poder espanhol da época, como o direito a terra e a sua própria direitos humanos, por serem compromissos inatredáveis na defesa da
jutisdição. Valores universais acabavam por inviabilizar a dominação, cons- dignidade da pessoa humana, devendo ficar acima de qualquer tentativa
tituindo-se a liberdade um impedimento à catequização e à conquista das de proteção à cultura. O problema está em perceber que, para os inte-
terras. o gtantes daquela etnia, tal prática não representa a opressão que pode ser
Las Casas defendia, segundo Souza Filho (2001, p. 259), que a univer- entendida ao se analisar o fato a partir de referenciais culturais ocidentais.
salidade dos direitos humanos consiste em cada povo construir seus pró- Rouland (2003, p. 90) levanta esse problema quando questiona, no
ptios direitos, segundo seus usos, costumes e tradições. Negando a exis- âmbito da Antropologia Jurídica, as condições de recepção de experién-
tência de preceitos humanos fundamentais, o autor preceituava que existe cias vindas de fora de um determinado sistema jurídico. Centrados nessa
um direito universal de cada povo de definir seus direitos humanos com cultura, em determinados referenciais, rotula-se as demais práticas como
a única limitação de não violar direitos de outros povos. aceitáveis ou não perante os direitos humanos.
Essa teoria sustenta que todos os homens são titulares das mesmas Essa questão fica ainda mais interessante quando se tememora, como
prerrogativas, muito embora vinculados a diferentes culturas. Com base já mencionado, que os direitos humanos, tendo se afirmado como con-
nas assertivas dispostas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e ceito na modernidade ocidental, estão vinculados a certos valores da épo-
em valores predominantemente ocidentais, procura-se observar as de- ca como: individualismo, luta pela liberdade de comerciar, a não-inter-
mais culturas, aprovando ou não determinadas práticas culturais. x - venção estatal na economia, a igualdade formal (perante a lei) e outros.
O problema dessa posição universalista é seu caráter etnocêntrico |, Visualizando-se os direitos humanos como uma construção moderna e
na medida em que transforma indevidamente valores e concepções de ocidental, pode-se entender a relevância das discussões sobre a imposição
uma sociedade em universais, tornando impossível o diálogo. Supondo- ou não dessas premissas a outras culturas. Em que medida essa tentativa
se que se encontra em um “centro” — um conjunto de proposições uni- de defender os direitos humanos pode se caracterizar uma imposição da
versalmente aceitas, passa a interpretar as demais concepções sobre os cultura ocidental ante essas práticas culturais?
direitos humanos e a julgá-las adequadas ou não. Levanta-se então uma Como contraponto a essas discussões, tem-se a doutrina do Relativismo
grande barreira que dificulta o diálogo com outras culturas. O que se tem Cultural. Essa teoria propugna que não há normas universais, pois tudo
é um monólogo opressivo para aqueles que não compartilham de nossos: seria culturalmente relativo. Cada cultura, cada sociedade estabelece seus
valores e concepções. valores, hábitos e práticas sociais. A todas seria atribuído o mesmo valor.
É fácil defender a diversidade cultural e a beleza de todas as manifes- Segundo Boas (2004, p. 97), é impossível comparar sociedades em
tações humanas. Ocorre que algumas vezes determinadas práticas cultu- termos de avanço e atraso, porque cada cultura só poderia ser entendida
tais chocam-se com essas prerrogativas dos direitos humanos. Nesses a partir de seus próprios valores, hábitos, modos de vida e de acordo
casos, o que deve ptevalecer:o respeito aos direitos humanos ou a defesa com sua própria história.
da tradição representada pela prática cultural? Para Sousa (2001, p. 47), na era da:globalização os direitos humanos
universais têm começado a parecer “um novo cavalo de tróia pata a
“A reação diante da alteridade, conforme bem explica Thomaz (1998, p. 430), faz parte
da tecolonização” empreendida pelo Ocidente em relação aos povos que
própria natureza das sociedades. Uma coisa caracteriza todas as sociedades humanas: O não compartilham dos mesmos ideais. Seria apenas mais um modo de
de formas de vida distintas
estranhamento diáhte dos costumes de outros povos, à avaliação
a partir dos elementoda s nossa própria cultura. Este estranhamento é chamado de controlar o resto do mundo e poderia configurat-se em abuso de poder
determinados valores, práticas
etnocentrismo. A postura“de tomar uma sociedade, uma cultura, ocidental. Idêntica expressão é empregada por Rouland (2003, p. 265),
culturais diferentes é chamada de
e crenças, como medida para julgar valores e práticas
etnocenttismo (SANTOS, 2005, p. 34). : que, apontando as regiões onde os direitos do homem são corretamente
” Um exemplo seria a mutilação genital feminina, que
ainda é praticada em alguns países da aplicados (América do Norte, Japão, Europa e Austrália), defende que
o envolvendo essa prática cultural, veja Piacentini
África e do Oriente Médio. Para uma discussã
(2007).
249
248
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 10

apesar de o Ocidente não ser o único depositário dos direitos do ho-


advogam é o feitio circunstancial dos direitos fundamentais. Ocorre que
mem, ele se acha o seu portador. Os direitos do homem seriam apenas a
essa posição pode legitimar padrões locais e ações que, adespeito de sua
continuação do colonialismo, “o veículo de uma lógica unitarista funda-
vatiedade, não contribuem para a emancipação humana |, ao contrário,
dora unicamente da modernidade ocidental”. Por essa razão, o autor de-
autotizariam algumas práticas contrárias a direitos entendidos como fun-
fende que essa concepção deve ser enriquecida com contribuições de outras
damentais (SANTOS, 2005, p. 210). Um exemplo, para esses autores,
culturas e não deve representar um axioma universal.
seria a questão do aborto e infanticídio nas aldeias indígenas.
Numa análise superficial, o reldtivismo parece atender aos objetivos
Em contrapartida, Santos (1997, p. 110) argumenta que a simples acei-
constitucionais de respeito à cultura, autodeterminação e tolerância entre
tação e aplicação dos direitos humanos à realidade de qualquer minoria
os povos. Ocorre que alguns autores alertam que a postura relativista car-
étnica também traz seus inconvenientes. À tese do autor é que, enquanto
rega em si o risco de se perder a legitimidade para reagir diante de deter- forem concebidos como universais, os direitos humanos poderão funci-
minadas formas de violência que têm sua justificativa em práticas culturais onat como um instrumento de opressão dessas minorias, tendendo a
específicas, como os sacrifícios humanos, escravidão, tortura e a conside-
operar como “uma forma de globalização de-cima-para-baixo”, Para
ração da mulher como ser inferior (PIACENTINI, 2007, p. 45). atuar no sentido de emancipação dessas comunidades, os direitos huma-
Além disso, Eberhard (2004, p. 164) destaca que o problema da posi- nos têm de ser “reconceptualizados como multiculturais”.
ção relativistaé o fato de que ela absolutiza as diferenças e se esquece de. Dessa maneira, por um lado, reconhecer a universalidade dos direitos
nossa natureza e condição humana comuns. Tal posição pode levar à im- humanos é entender, independentemente da pluralidade de valores envol-
posição dos valores de uns sobre os outros, aproximando-se muito dos
vidos, a dignidade da pessoa humana como tm valor fundarúental, que é
efeitos indesejáveis do universalismo. a própria condição de existência dos direitos do homem. Numa outra
Herrera Flores (2002, p. 19) preceitua que as vozes que exigem uma acepção, é preciso reconhecer que as facetas desses direitos humanos de-
volta ao local (ao particular) é uma reação compreensível, ante os desmandos
vem ser reconhecidas e preenchidas com um conteúdo multicultural
atribuídos a uma cultura ocidental que tem sido imposta às demais cultu- para que estes não se revelem mais um mecanismo de exclusão e optes-
tas há vários anos, O localismo, entretanto, não avança, imerso em uma
são dessas etnias marginalizadas, uma nova (re)colonização. À resposta a
pluralidade de interpretações, construindo um “universalismo de retas
essa tensão proposta por Santos (2002) é a de defender a igualdade, quan-
paralelas que somente se encontrarão no infinito do magma das diferen- do a diferença nos inferioriza, e o direito a ser diferentes, quando a igual-
ças culturais”. Com o intuito de não depreciar distinções culturais, o dade nos descaracteriza.
localismo reforça a categoria da distinção, da diferença radical, que culmi-
O mesmo autor formula uma estratégia de diálogo entre o
na em outras atitudes de separação e de desrespeito ao outro. universalismo e o relativismo. Em seu ensaio sobre uma versão multicultural
Na tentativa de desfazer essa contraposição entre universalismo e
dos direitos humanos, propõe o conceito de “hermenêutica diatópica”
relativismo, Freeman (2001, p. 92) assevera que o universalismo dos direi-
17 . ' . o
tos humanos é compatível com o respeito à diversidade cultural porque Todas as culturas geograficamente localizadas “possuem concepções acerca da dignidade-
os defensores dos direitos humanos podem celebrar todas as culturas, humana, mas nem sempre a identificam em termos de Direitos Humanos” (ver Santos, 1997).
19 . . . : Vão .
com a condição de que elas não oprimam aqueles que estão sob seu A questão do multiculturalismo será apenas tangenciada neste artigo. É importante dizer
que a própria expressão multiculturalismo tem vários significados cunhados por Taylor
poder. Segundo o referido autor, o entendimento de não se permitir (1993), entre outros. O tratamento de cada um desses significados foge ao objeto desse breve
estudo. Dessa forma, o multiculturalismo enquadra-se como um movimento teórico oposto
crítica externa da cultura pode colaborar com práticas intolerantes. A
idéia à questão da homogeneidade e entendido como a situação de convivência de grupos
dos direitos humanos universais colocaria uma barreira mínima a essa diferenciados culturalmente sob um mesmo território. Tal movimento não é novo, mas vem
ganhando expressão diante dos processos de deslocamentos humanos, principalmente nestes
espécie de colaboração, tempos globais, justificando « realização de uma gama de medidas políticas e estudos acadêmicos
diante da proliferação de reivindicações de caráter étnico-cultural resultantes do convívio
A pretexto de defesa da diversidade cultural, o que tais
pensadores sociocultural. Para uma discussão sobre uma cidadania multicultural, ver Dulce (2000).
“ Este conceito, na realidade, o autor toma de Raimundo Panikkar (1983).

250
251
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
— CAPÍTULO 10

como instrumento útil no diálogo intercultural dos direitos. A idéia é a de


dos direitos humanos e da análise de algumas saídas teóricas para a supe-
que todas as culturas são, em alguma medida, incompletas, e o diálogo
ração dessa dicotomia, não se deseja firmar um posicionamento a favor
entre elas pode avançar a partir dessa incompletude, desenvolvendo a
ou contra o universalismo. O objetivo das ponderações expostas é pen-
consciência de suas imperfeições. Pode-se construir gradativamente um
“multiculturalismo progressista”, com base em uma troca transcultural,
sar, a partir das práticas culturais a seguir apresentadas, se os direitos hu-
manos pretensamente universais têm representado para os povos autóc-
em uma hermenêutica diatópica, pela qual cada povo esteja disposto a se
tones melhorias no que tange a sua qualidade de vida, respeito à cultura e
expor ao olhar do outro, revelando suas fraquezas e escutando críticas aos
autodeterminação.
seus sistemas"de valores, :
Herrera Flores (2002, p. 14) também 'expõe sua visão complexa dos
direitos humanos como outra tentativa de superar a dicotomia entre ANTROPOLOGIA JURÍDICA E PRÁTICAS CULTURAIS QUE
universalismo e relativismo. Segundo o autor, tanto o relativismo quanto a INCOMODAM
universalidade 'dos direitos humanos são afirmações oriundas de uma
visão reducionista da realidade, Torna-se relevante, então, construir uma Diante do arcabouço teórico traçado, apresenta-se algumas práticas
cultura de direitos que recorra à universalidade das garantias e ao mesmo culturais que podem sedimentar a importância da discussão. Na observa-
tempo ao tespeito pelo diferente. Para a visão complexa dos direitos ção dessas situações é possível mantera concepção dos dircitos humanos
humanos, o contexto social não é o problerna, Essa concepção assume a como universais, cujas premissas devem ser aplicadas à todas as culturas,
realidade e a presença de múltiplas vozes, todas com o mesmo direito a servindo como proteção da dignidade humana? Ante as práticas culturais
se expressar. “Seria como passar de uma concepção representativa do oriundas de sociedades não-ocidentais, esses direitos deixam de ser uma
mundo a uma concepção democrática que prima pela participação e pe- garantia aos indivíduos e passam a ser um instrumento de imposição da
las decisões coletivas” (HERRERA FLORES, 2002, p. 16). cultura ocidental?
A visão complexa dos direitos humanos elaborada pelo autor aposta Uma das práticas mais mencionadas nesse tipo de discussão é a muti-
em uma racionalidade de resistência: Uma racionalidade que preceitua a lação genital feminina, expressão empregada para referência à extirpação
possibilidade-de se chegar a uma síntese universal das diferentes opções parcial ou total dos órgãos genitais femininos. Tal prática é antiga: estima-
sobre o direito e ao mesmo tempo não descarta as lutas pelo reconheci- se que 135 milhões de mulheres já foram submetidas em todo mundo e a
mento das diferenças étnicas ou de' gênero. Essa concepção repudia a cada ano 2 milhões de meninas; podem passar pot isso, Tal prática é co-
consideração: do universal como ponto de partida e propõe o mum em países da África, no Egito, Emirados Árabes, além de ocorrer
“universalismo de chegada”, que seria construído após um processo em comunidades de imigrantes na Indonésia, Índia, Malásia, Austrália,
conflitivo e de diálogo franco. Ao criar condições para os excluídos Canadá, Estados Unidos e na Europa. O tipo da mutilação, a idade e a
empoderarem-se dos processos de construção de hegemonia, poder-se- maneira de praticá-la variam conformeo grupo étnico ou o país, assim
ia criar mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam seu efe- como os motivos e os significados a ela atribuídas. Na maioria dos casos
tivo reconhecimento. a mutilação é associada à purificação das, meninas, para que elas possam
Eberhard:(2004, p. 161), partindo de premissas semelhantes, propõe alcançar falar com Deus. Em outtos contextos, a prática é associada à
o desenvolvimento de um diálogo intercultural sobre os direitos huma- higiene e saúde, como se as mulheres não mutiladas fossem pouco limpas
nos em que, -ém vez de simplesmente pretender desconstruir a aborda- e/ou não pudessem ter filhos. Há ainda 'na religião muçulmana razões
gemocidental tefutando sua universalidade, pudesse enriquecê-la por meio ligadas à fidelidade feminina: com a mutilação, a mulher perderia o desejo
o sexual e não procuraria outros parceiros (PIACENTINI, 2007, p. 117-
de perspectivas culturais diferentes.
de universalidade e relativismo 118).
Após o entendimento das concepções
Outra prática cultural que merece destaque na proposta deste artigo é

252 253
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CarfruLo 10

o chamado estupro étnico. Recentemente a mídia” destacou a estória da


homem. Então a mulher comete o infanticídio para não esperar tanto
paquistanesa Mukhtar Mai, por considerá-la emblemática da situação vi-
tempo para engravidar novamente.
vida pelas mulheres do Paquistão. Naquele país as mulheres seriam
Um caso que ganhou bastante notoriedade é o da índia Hakani. Nas-
espancadas, marcadas, queimadas com ácido c violentadas por causa de
cida em 1995, na tribo dos índios Suruuarrás, que vivem semi-isolados no
práticas culturais que legitimam o direito dos homens de julgá-las e puni-
sul do Amazonas, Hakani foi condenada à morte quando completou 2
las por seu comportamento. Nas vilas rurais do Paquistão os conselheiros
anos, porque não se desenvolvia no mesmo ritmo das outras crianças.
das tribos decidem qual deve ser o castigo para o que consideram um
Escalados para executar a sentença, seus pais prepararam um veneno obtido
mau comportamento das mulheres, que podem ser penalizadas até por
a partir da maceração.
de um cipó e, em vez de o ministrarem à filha,
erros cometidos por outras pessoas, No caso de Mukhtar Mai, foi o
ingeriram eles mesmos a substância. Após tentativas do irmão e do avô
irmão dela, um menino de 12 anos, quem desrespeitou uma velha
tradi- de sacrificar a criança, ações que causaram ferimentos graves na menina, .
ção ao se envolver com uma menina de uma casta superior. Isso foi en-
um casal de missionários protestantes, que tentava evangelizar os Suruuarrás,
tendido como um atrevimento e os homens da tribo decidiram que
apelou à tribo para que deixasse Hakani viver. Muito fraca, ela já contava
Mukhtar deveria ser punida por meio de um estupro coletivo, praticado
5 anos quando a tribo autorizou os missionários a levá-la para a cidade de
por seis homens, O irmão dela, Sakur, também sofreu violência e abuso Ribeirão Preto para tratamento, Os médicos descobriram que o atraso no
sexual, Ao contrário do que ocorre na maioria das vezes, Mukhtar
Mai seu desenvolvimento se devia ao hipotireoidismo, um distúrbio contornável
denunciou os fatos à Justiça do Paquistão. Diante da repercussão da histó-
por meio de remédios. Cm
tia na imprensa do mundo, seis homens foram condenados e esperam
a Outro caso citado por Barreto (2007, p. 2) refere-se a duas indiazinhas
decisão sobre a forma de punição que lhes será aplicada (pena de morte
da etnia Suruwahá (considerada semi-isolada pela FUNAN) — Tititu e
ou prisão perpétua). Iganani. Uma nasceu com pseudo-hermafroditismo e a outra com para-
Além dessas práticas que revelam a opressão que as mulheres sofrem
lisia cerebral. Nesse caso, os integrantes da tribo decidiram buscar trata-
nessas comunidades, existem em nosso país determinadas etnias indíge-.
mento na medicina tradicional, novamente com a ajuda de missionários,
nas que praticam atos que são vistos como reprováveis perante os
direitos antes de assassinar as crianças. Aqui, porém, segundo a autora, mesmo
humanos ocidentais. O mais comum deles é o infanticídio,
com o consentimento dos pais das crianças, a FUNASA e a FUNAI
É relativamente frequente nos meios de comunicação reportagens re-
mostraram-se bastante resistentes ao tratamento médico, pot considera-.
provando o infanticídio como prática cultural indígena. Em notícia tem uma interferência cultural causada pelos missionários. Se-não fosse a
publicada no jornal Folha de Boa Vista , no ano de 2004 as índias Yanoma
mi intervenção de políticos da região, as crianças teriam sido compelidas a
assassinaram 35 bebês indesejados, logo após o parto. O que pode pare-
retornar à aldeia, sem tratamento, onde seriam mortas e seus pais se suiçi-
cer uma barbárie para a sociedade não-índia é apenas
um traço cultural dariam, como declararam várias vezes.
desse povo. Segundo entrevista do antropólogo Erwin
Frank, publicada Barreto (2007, Pp. 7), citando documento produzido no âmbito das
nessa reportagem, o infanticídio é uma tradição
bastante arraigada na cul- Nações Unidas |, traz o conceito de liberdade cultural importante pata a
tura Yanomami. Tal conduta expressa a autonomia
da mulher em decidir análise que se pretende. A liberdade cultural implicaria oferecer às pessoas
pela vida ou a morte do filho e funciona como
uma forma de. seleção a possibilidade de escolher como formarão a sua identidade cultural. Não
para as malformações e para o sexo das crianças
. Os Yanomami, ptinci- se pode forçar a vinculação de uma pessoa a determinada cultura,
palmente os grupos mais afastados, prefere A
m que o primeiro filho seja
" Fonte: Jornal Nacional, 02/02/2006.
18

nz “ Fonte: Revista Veja, Edição 2021, 15 de agosto de 2007, reportagem


Ponte: “Infanticídio é uma tradição milena de Leonardo Coutinho.
(10/03/05). r dos Yanomami” - Volha de Boa
Disponível no Vista o PROGRAMA DE LAS NACIONES UNIDAS PARA EL DESARRO
site: <http://www.proyanomami.org.br/v090 LLO. Informe sobre
index.asp?pag=noticia&id=3980>. Acesso 4/ desarrollo humano 2004: La libertad cultural en el mundo diverso
em: 20 set. 2006. de hoy. Madrid: Ediciones
Mundi-Prensa, 2004.
'
254
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CartruLo 10

liberdade cultural, no contexto do desenvolvimento humano e da demo- referenciais culturais, é muito fácil simplesmente condenar
tais práticas.
cracia, significa ampliar ao máximo as possibilidades para o ser humano, À Antropologia há muitos anos tem se esforçado para desenv
olver
em prol da -sua qualidade de vida. O que tem ocortido, no caso dos esse debate. Cabe à nossa cultura ocidental interferir em
outras para
Sutuwahá, segundo a constatação da autora, é a privação. do direito de (des)dizer quais são as práticas aceitas no seio dessas sociedades?
Numa
escolher quais tradições em sua cultura devem ser preservadas e quais não. tentativa de responder a esta pergunta e recortendo ao arcabo
uço teórico
À autora denuncia que tem sido imposto a eles que permaneçam engessados anteriormente mencionado, facilmente poder-se-ia deslegitimar
tal inter-
em sua culturae qualquer tentativa de mudança é vista como ameaça à venção com argumentos referentes à preservação da cultura
e autodeter-
sobrevivência de sua frágil cultura . minação desses povos indígenas. Por outro lado, o infanticídio é
uma
Os relatos dessas práticas culturais são sempre chocantes. A primeira prática tolerável dentro do território nacional ante as garantias institu
cionais
teação do estudioso é condenar tais atos, por representarem opressões e estabelecidas?
violações aos seres humanos envolvidos. É inegável que a mutilação genital . Esse conjunto de perguntas forma o impasse que os estudiosos
da
feminina e o estupro étnico são violações à integridade física das mulhe- temática precisam enfrentar, Sobre as práticas de infanticídio, vale desta-
tes. Compete ao Ocidente, porém, interferir junto a esses países objetivando car que a Constituição brasileira garante o direito à vida como o
direito
pôr fim a essas ações? Qual é a origem dessas práticas culturais? Quais são por excelência (artigo 5º, CF/88" ). Acerca da criança e do adolescente, o
os motivos que as fazem sustentáveis e praticáveis atualmente nesses paí- Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/ 90) e a própria
Consti-
ses? Qual é a condição de permanência de uma mulhet não mutilada em tuição em vários dispositivos garantem uma série de direitos aplicáveis
uma tribo na qual essa prática é vista como tito de passagem da infância também à criança indígena, que vedariam expressamente a adoção de
tais
para o mundo adulto? práticas.
Antes de simplesmente repudiar é defender uma intervenção humani- Por outro lado, a mesma Constituição de 1988 garante aos indígenas o
us aque: :
tária em, por-exemplo, tribos indígenas que praticam infanticídio, é im- direito de permanecerem índios em termos culturais., sociais
“a cio
e territoriais 189
portante questionar os motivos pelos quais essas práticas são realizadas.
Infanticídio para nós pode ser uma barbaridade, mas conforme destaca 187 º
Art. 5º da CF/88: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
Rouland (2003, p. 344), em algumas sociedades tradicionais o nasci- à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
País a inviolabilidade do direito
nos termos seguintes: [...]”
mento em si não tem o mesmo significado que tem em nossa cultura. À 188 A
Art. 227 da CF/88: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
criança para esses povos leva tempo para se tornar realmente humana, daí adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à- saúde, à alimentação,
à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, 20 respeito, à liberdade e
o costume de:dar-lhe um nome apenas depois de vários anos. As mesmas à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de hegligência,
discriminação,
exploração, crueldade e opressão.”
perguntas voltam a incomodar: Quais seriam as consequências dessa in- 189 a
:
“a )
tervenção em-nome dos direitos humanos? Quais seriam as condições de Art. 215 da Constituição Federal: “O Estado garantirá a todos 6 pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará à valorização e
a difusão
manutenção -de uma etiança índia contra a vontade da tribo? Sem estudar das manifestações culturais, .
os motivos pelos quais esses-atos são realizados, e adotando os nossos $1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileir
as,
e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
$.2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação
para os
diferentes segmentos étnicos nacionais, :
e Segundo a autora, somente entre a etnia Yanomami o número de homicídios elevou o
coeficiente de môrtalidade infantil de 39,56 para 121, no ano de 2003. Ao todo, foram 68 $3º- A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração 'plurianual, visando ao
crianças vítimas de homicídio naquele ano. No ano seguinte, 2004, foram 98 as crianças vítimas desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem
de homicídio. Fonte: COMISSÃO PRÓ-YANOMAMI, Yanomami na Imprénsa. Parabólicas. à (EC nº 48/05):
Fonte: Folha de Boa Vista, 11 de março de 2005. Disponível em: Shetpily 1 - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;
Acesso em: 20 mar. .
www proyanomami.org.br/v0904/ index.asp?pag=noticia&id=3977>.
indígenas, mas II - produção, promoção e difusão de bens culturais;
“O autor emprega esta expressão para se re feir não apenas a(nosociedades
sentido de uma divisão
também a sociedades mais antigas, com grau de complexi dade HI - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;
(ROULAND, 2003, p. 74).
social) menos acutada que as chamadas socieda des modernas
RR 257
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CariruLo 10

A Lei Fundamental reconhece aos índios sua organização social, costu-


Diante desses dispositivos legais, permanece a pergunta no caso dos
mes, línguas, crenças, tradições e direitos sobre as terras tradicionalmente
Yanomami: O Estado brasileiro deve atuar no sentido de amparar as
ocupadas. Nesse sentido, a Carta Magna deixa para trás o paradigma
crianças, como sujeitos de direitos humanos, evitando a prática desses
integracionista, que cede lugar a um paradigma de reconhecimento . Os assassinatos? É compreensível que muitos autores, como Barreto (2007),
indígenas possuem o direito de continuar sendo indígenas (se assim o
defendam veementemente que sim. Este trabalho tem apenas a pretensão
desejarem) e as políticas públicas devem voltar-se à manutenção da iden-
de que o leitor compreenda que essas respostas não serão obtidas de
tidade deste grupo. Existiria, contudo, um limite a esse reconhecimento: a
forma tão simples assim.
colisão com os direitos humanos fundamentais ou direitos da personali-
dade,
A Convenção
CONSIDERAÇÕES FINAIS
169, de 1989, da Organização Internacional do Traba-
lho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes,
ratificada pelo Brasil em junho de 2002, adverte que, embora se recomen- Este artigo procurou contribuir para as discussões acerca da aplicação
de sensibilidade com relação ao chamado direito “consuetudinário” e aos dos direitos humanos nas sociedades atuais. Adotando a perspectiva da
costumes das sociedades indígenas, esses direitos não podem ser contra- Antropologia Jurídica, apresentou-se primeiramente uma breve
ditórios com os direitos definidos pelo sistema jurídico nacional nem com contextualização histórica acerca dos direitos humanos, para em seguida
os direitos humanos internacionalmente reconhecidos discorrer sobre as teorias de universalidade e relativismo dos direitos hu-
. Mantém-se, as-
sim, O impasse: ao mesmo tempo em que reconhece a pluralidade das manos e a respeito de propostas para superação dessa dicotomia.
práticas existentes, a Convenção não admite que essas sejam contra os Num terceiro momento, apresentam-se algumas práticas culturais que
direitos humanos . provocam reflexão diante dessa temática, O objetivo deste artigo não é
oferecer respostas /soluções a essa problemática tão desafiadora. Preten-
de-se, com o emprego da Antropologia Jurídica como ferramenta, pro-
IV - democratização do acesso aos bens de cultura; mover um despertar do leitor para as reais possibilidades de aplicação da
V - valorização da diversidade étnica e regional.” teoria de universalização dos direitos humanos e para uma percepção
Art. 231 da Constituição Federal: “São reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
mais realista da aplicação desses direitos no que se refere a culturas não-
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. [...)” ocidentais e dos povos autóctones:
“A idéia de reconhecimento está voltada à busca pela satisfação e valorização das necessidades Os integrantes da chamada “civilização” têm legitimidade pata inter-
particulares dos indivíduos, enquanto membros de grupos culturais específicos, ou seja, de
seus valores e diferenças culturais. Ressalta-se que esse tratamento diferenciado somente 3. A aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses
ocorre em virtude de serem tais indivíduos paste de uma sociedade maior, da qual necessitam povos exerçam os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país.e
serem tratados como iguais para poderem participar de maneira integral assumam as.
social (TAYLOR, 1993, p. 21). Nesse sentido, é estabelecida uma e paritária da vida obrigações correspondentes.
idéia de reconhecimento que
percebe o indivíduo, concomitantemente, enquanto membro “ Artigo 9º da Convenção 169 da or:
e enquanto membro de grupo cultural específico. Para uma de uma comunidade nacional
reconhecimento, ver Bauman (2003). discussão sobre O direito ao
1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico
191 nacional e com os direitos
humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitado
Para um aprofundamento no tema, ver Barreto s os métodos aos quais os
(2007). povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão
192 , . dos delitos cometidos pelos
Artigo 8º da Convenção 169 da OT; seus membros,
1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interess 2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunc
consideração seus costumes ou
ados, deverão ser levados na devida deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados iarem sobre questões penais
seu direito consuetudinário. a. respeito do assunto.
2. Esses povos deverão- ter o direito
na inte
de conservar seus costumes c instituiç : Artigo 10º da Convenção 169 da OIT:
que cles não sejam incompatíveis ões próprias, desde
com os direitos fundamentais definidos pelo !. Quando sanções penais
jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhe
sistema forem impostas pela legislação geral a membros dos povos
que for necessário, deverão ser estabelecidos procedi cidos.Sempre mencionados, deverão ser levadas em conta as suas
mentos para se solucionarem os conflitos . características econômicas, sociais e
que possam surgir na aplicação deste princípio. culturais.
o
2. Dever-se-á dar preferência a outros tipos de punição
que não o encarceramento.
258
nen
ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 10

ferir nessas práticas? Em que se origina tal legitimidade? Não há práticas REFERÊNCIAS
atrozes ocorrendo cotidianamente dentro da nossa sociedade: chacinas,
assassinatos, prisões superlotadas, violações sexuais a crianças, obsessão ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os direitos fundamentais
pela beleza estética que pode provocar anorexia e cirurgias plásticas des- na Cons-
tituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria
necessárias, exposição excessiva da sexualidade na mídia, levando crianças Almedina, 1998.
a se tornarem “adolescentes” cada vez mais cedo? Tais práticas poderiam BARRETO, Maíra de Paula. Universalidade dos diteitos humanos
por si sós despertar repúdio em outras culturas. Ão intervir em outras e da
personalidade versus relativismo cultural. Trabalho aprese
culturas, estamos preparados pata sermos analisados e julgados também ntado no XV
Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e
pot nossas práticas, nossa forma de vestir, a forma como tratamos nos- Pós-Gra-
duação em Direito - CONPEDI/Manaus. Disponível em:
sas mulheres e crianças? <http://
www.conpedi.org/manaus/arquivos/
anais/manaus/
O simples costume de furar as orelhas de meninas recém-nascidas estado dir povos maira de paula barreto.pdf> Acesso em: 10 jun.
pode ser visto em algumas culturas como uma prática degradante. É 2007.
pteciso que repensemos se os direitos humanos não podem ser utilizados
não só como ferramentas de proteção aos indígenas, mas, num contra- BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetivi
senso, como mecanismo para legitimar a' intervenção do não-índio na dade de
suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasilei
cultura indígena. ra. 4. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
Segato (2006, p. 228) indica a Antropologia como o campo de conhe-
cimento destinado a contribuir para o desenvolvimento da sensibilidade BAUMAN, Zygmunt. Comunidad: En busca de seguridad en un mundo
ética necessária para o estudo dessa questão. Sua tarefa não seria simples- hostil. Siglo XXI Editores Argentina, 2003.
mente ditigir-nosso olhar para o outro com a finalidade de conhecê-lo,
“mas a de possibilitar que nos conheçamos no olhar do outro”. . BOAS, Franz. Antropologia cultural. Organização de Celso Castro.
Rio
O mais importante é que mediante o estudo dessas e outras práticas de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
culturais possa se desenvolver uma maior aceitação das características dessas
culturas e dos motivos pelos quais os indivíduos agem dessa forma. Que BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992,
os integrantes da nossa cultura ocidental e “civilizada” possam abrir-se
verdadeiramente para o estudo do outro e da cultura desconhecida. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Não se pretende defender o universálismo ou relativismo dos direitos Malheiros, 2000.
humanos e tampouco legitimar uma ou outra prática cultural. Espera-se
apenas que estas considerações possam contribuir para o" despertar da CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e
“complexidade das discussões que se apresentam. Estudos mais vinculação do legislador — contributo para compreensão das normas
aprofundados devem ser feitos para viabilizar a possibilidade de real di- constitucionais programáticas. 2. ed. Portugal: Coimbra, 2001.
álogo entre culturas para a interação dos direitos humanos. Que os anseios
por aplicação unilateral de um conjunto de direitos humanos construído CHENAUT, Victoria; SIERRA, María Teresa. El campo de investigación
lutas
sem a participação de todas as culturas possam sersubstituídos pelas de la Antropologia Jurídica. Revista Nueva Antropologia, v. XIII, n.
contefbuam
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ALON 261
ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 10

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ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA

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construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Universidade
Todos os dias milhares de dramas humanos são expostos e vivenciados
de São Paulo, 2001.
nos processos judiciais em nosso país. As partes depositam nesses instru-
mentos suas expectativas e anseios, objetivando que às operadores jurídi-
TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del
cos ali presentes possam apontar saídas para problemas que não conse-
reconocimiento. Tradução de Mônica Utrilla de Neira, México: Fondo guem resolver por si mesmas.
de Cultura Ecônómica, 1993.
Ocorre que o Judiciário, imerso nessa crise generalizada que o assola,
não tem oferecido um tratamento adequado aos problemas que lhe são
THOMAZ, Ótnar Ribeiro. A Antropologia e o mundo contemporâneo:
apresentados. Este capítulo procura oferecer algumas contribuições so-
cultura e diversidade. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís
bre a temática, valendo-se dos princípios da Antropologia Jurídica e de
Donisete Benzi, A temática indígena na escola: novos subsídios para algumas experiências de Justiça Comunitária.
professores de 1º e 2º graus. 2. ed. São Paulo: Global/Brasília: MEC;
Para tanto, na primeira parte será:descrita a relação jurídica processual
MARI; UNESCO, 1998. oficial que se desenvolve em nosso país, em vários processos judiciais. A
análise, dentro dos limites deste estudo, enfocará a relação do movimento
WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Tradução de processual com sua (in)efetividade no tratamento dos conflitos humanos
Viviane Ribeiro. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2003. reais que estão por trás das queixas é/ou petições judiciais.
Num segundo momento, procura-se explicitar quais são as bases da
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma Antropologia Jurídica e no que esse marco teórico pode auxiliar num
nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001. tratamento e compreensão do conflito judicial de forma mais adequada e
“eficiente.
Por último, apresentando algumas experiências de Justiça Comunitária

"º Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Mestre em Direito, Estado
e Sociedade, Subárea Direito e Sistema de Justiça pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Professora substituta da Universidade Federal de Santa Catarina.

265
264
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 11

no Brasil e no exterior, pretende-se refletir sobre como os preceitos dessa motivou a contenda .
195

experiência judicial mais próxima das comunidades pode contribuir para À sustentação teórica dessa substituição das partes está na aceitação da
uma percepção judicial oficial mais completa e próxima do conflito —
ficção do “Contrato Social” proposto por Hobbes , pelo qual o Estado
motivo real de toda ação judicial. viria oferecer aos indivíduos que viviam em “estado de guerra” a paz
social. Tal premissa é questionada nos dias atuais, pois parte de suas bases,
RETRATOS: RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL OFICIAL que se revelaram inadequadas.
Primeiro a presunção de que sem. o Estado todos iriam se valer de
Inicialmente, traçar-se-á um panorama sobre as características da rela- -formas.negativas/violentas de administrar seus conflitos. Tal afirmação já
ção processual que têm se ultimado em milhares de tutelas jurídicas. em foi refutada, de certa forma, por Locke, que descreve a situação anterior
nosso país. Não se tem a pretensão de elaborar um compêndio doutriná- à criação do Estado como um “estado de natureza” e não como “esta-
tio sobre o assunto, mas esboçar algumas características da relação pro- “do de guerra”. Este “estado de natureza” seria relativamente pacífico,
cessual enfatizando as diferentes mazelas enfrentadas por todos os envol- apesar de alguns inconvenientes, tendo o Estado o objetivo de preservar
vidos (partes e operadores jurídicos). e consolidar direitos que as pessoas possuíam originalmente. Essa presun-
A relação processual é por si só bastante conturbada, Enquanto alguns ção é novamente falseada quando observamos, por exemplo (conforme
envolvidos depositam nela suas esperanças de alívio para seus problemas, apontado a seguir), as experiências de Justiça Comunitária trazidas por
com uma ligação quase religiosa com todos os operadores jutídicos e López (2000) e Ribeiro e Strozenberg (2001), na qual as comunidades
com as decisões proferidas, outros, em vez de tentar enfrentar seus con- alijadas do Estado descobriram formas não violentas de resolver desa-
flitos com seriedade e mútua disposição para compreender o outro, têm venças.
se utilizado dos artifícios e da lentidão processual como um mecanismo A segunda premissa, cuja veracidade pode ser questionada, é a de que
de intimidação e combate, Esta última conduta, apesar de não recomen- o Estado é o agente apropriado para administrar os conflitos sociais ade-
dada e até punida com algumas represálias impostas aos chamados liti- quadamente. As características da relação processual e a produção de de-
gantes de má-fé, é a própria justificativa para a existência da jurisdição cisões judiciais distantes da realidade social fomentam as dúvidas sobre tal
estatal. Para que os cidadãos não precisem se armar, valendo-se da
autotutela e da vingança privada, criou-se a jurisdição estatal de conflitos “É Poderíamos citar várias decisões judiciais consideradas inadequadas, mas mantendo o
que faz as vezes da guerra de interesses, como preceitua Carnelutti (2001, enfoque do trabalho na dificuldade que o Judiciário tem de lidar com os conflitos humanos,
segue um exemplo: “Estudante condenado a indenizar professor. Uma discussão com um
p. 15). professor, em plena sala de aula, vai custar caro aum estudante de Direito da [..]. ALSR.S. foi
rm . 3 194 condenado a pagar uma indenização de R$ 13 mil corrigidos monetariamente a [..]. A decisão
Essa substituição processual retira, em certa medida , dos contendores, é da 4º Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio. Em 2002, após receber uma ordem para
a possibilidade de compor seus próprios conflitos, transferindo mudar de lugar durante uma prova, o aluno se rebelou e chamou o
essa tare- “otário”, Por unanimidade, os desembargadores
professor de “bobão” e
fa ao Iistado, Diante da decisão constitucional de inafast negaram provimento ao recurso de ALS.RS,,
abilidade do Po- e mantiveram a sentença dada em 1º instância: pela 1º Vara Cível de [...]. De acordo com os
der Judiciário de qualquer lesão ou ameaça ao direito magistrados, a conduta desrespeitosa do aluno expôs o professor, que na ocasião ocupava
(artigo 5º, inciso. também o cargo de diretor-adjunto do curso de Direito,
XXXV, da Constituição Federal), é inaceitável à caracterizado
à situação vexatória, ficando
prestação jurisdicional, o dano moral” Notícia disponível em: <hrtp://www.t).rj.gov.br/
que, muitas vezes, nos é oferecida, com procedimento assessoria imprensa/noticia tj/ 2005/06/nottj2005-06-24 iiihtm>, Acesso em: 26 jul, 2006.
s demorados, ca- E fácil observar que a decisão judicial não contribuiu para a administração da desavença,
ros e decisões tantas vezes inexegiíveis e distantes da contrário, apenas acirrou ainda mais os ânimos porque as partes envolvidas ainda demonstramao
realidade social que dificuldades em compreender a versão do outro sobre os fatos,
i96
.
Em Hobbes, os homens firmam entre om
si um pacto de submissão pelo qual, visando
. A
à
194 preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva
Vale lembrar que as partes podem realizar, a da comunidade, trocando voluntariamente
termos do processo. Ocorre que a existência qualquer momento, um acordo sobre os sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã,
formal de “incentivos” à conciliação processual Esta teoria pressupõe que os homens viviam em um “estado de guerra”, baseado na insegurança
não proporciona aos envolvidos um encontro e na violência. Para aprofundamento neste
vários obstáculos presentes nas conciliações real com diálogo amplo. Tal fato se deve a ponto, ver Hobbes (1997).
judiciais que serão tratadas adiante.
” Ver Locke (1983).
PAR
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
Caríruro 11

afirmação. mantendo o litígio social existente, pois a sentença muitas vezes desagrada
Segundo Rouland (2003, p. 108), o que o Estado moderno. ertadicou a todos os conflitantes (FAGÚNDESZ, 2006, p. 251). O processo então é
não foi a violência nem a vingança, mas o “sistema vindicativo” que ao apenas mais um mecanismo de disputa, sendo adotado pelo “vencedor”
menos tinha a vantagem de canalizar os ímpetos e descontentamentos, como exercício de poder, côm a única finalidade de subjugar o outro
encerrando-os numa estrita regulação da ordem jurídica. (CHIOVENDA, 1977, p. 70). Desconsiderando toda a complexidade
A própria visão de um Direito cuja função seria a coordenação dos dos conflitos humanos, o ato de julgar trabalha com uma solução binária.
interesses que se manifestam na vida social, harmonizando relações subje- Julgar significa valorar um fato como justo ou injusto, lícito ou não, se-
tivas, com a máxima realização de valores humanos e com o mínimo de gundo o critério do Direito vigente (LIEBMAN, 1980, p. 3-4). Não se
desgaste (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1998, p. 19), é um visualiza uma saída intermediária pela qual as pessoas possam acordar
entendimento que não se sustenta quando observamos a atuação das ins- efetivamente: haverá sempre vencedores e vencidos, ou aquele que cedeu
tituições e dos operadores jurídicos. em um maior número de pontos que o outro.
Como harmonizar relações subjetivas se as partes muitas vezes não É por essa razão que a sentença judicial não acaba com o conflito.
conseguem expor amplamente a realidade dos fatos? Como promover Além de trabalhar apenas com uma parte da desavença de forma isolada,
pacificação social se os anseios e expectativas são engessados diante de desconsiderando o contexto em: que está inserida, há um movimento de
uma adequação tantas vezes forçada dos fatos à notma? Como promo- adequação forçada dos fatos à norma jutídica existente, e a imposição de
ver a realização dos valores humanos se os dramas pessoais ali apresenta- uma “solução” com resultados nem sempre apropriados para as partes e
dos não são valorizados e considerados tais como são, de forma comple- cômunidade envolvida.
xa e holística? o “A forma como o conflito é compreendido talvez;seja o mecanismo
Cada fenômeno apresenta sua multidimensionalidade natural. Cada gerador dessa contradição. A desavença, no meio jurídico, é sempre vista
ser é resultado da interação de múltiplos fatores genéticos, históricos, como algo negativo e prejudicial à sociedade, devendo ser eliminada a
ambientais, que se unem para proporcionar identidade ao homem. E da qualquer custo. Adotando uma visão mais realista, complexa e humana
mesma forma ocorre com cada conflito, cada desavença. Como pode- do problema, é preciso que o desentendimento seja entendido como algo
mos aplicar a lei genérica, sem levar em consideração as peculiaridades de natural e intrínseco à convivência em sociedade.
cada caso submetido ao Judiciário? (FAGUNDEZ, 2006, p. 215) . O processo lida com problemas humanos, vivos, Ocorte, no entanto,
Não há pacificação social e harmonização das relações subjetivas, pois que a maioria dos operadores jurídicos trata os dramas representados nos
isso prescindiria-de uma consideração do conflito social em si. Na atua- autos como se fossem casos mecânicos em série. Reconhecendo esses
ção da jurisdição tradicional, comumente, o que se tem é uma imposição elementos, Carnelutti (1944, p. 10) já propunha um sistema mais comple-
estatal de uma “solução” baseada nos preceitos legais. Dinamarco (2003, xo e mais humano de tratamento dos conflitos. Uma metodologia mais
p. 128) descreve que o escopo de pacificar pessoas, mediante a eliminação difícil, mas também mais concreta e eficiente. Um modelo de contato
de conflitos com justiça, é a razão mais- profunda pela qual o processo direto e pessoal do juiz com as partes, com 'as testemunhas e peritos,
existe e se legitima na sociedade. É intrigante pensar que o processo atual- utilizando a simplificação dos procedimentos e o princípio da oralidade
mente, além de não conseguir o seu pretenso objetivo de pacificar pesso- na busca de uma saída satisfatória ao caso. Este trabalho compartilha
as, é muito mais um instrumento de acirramento dos ânimos do que de dessa visão, mas defende a abertura de mais uma possibilidade de admi-
apaziguamento. nistração de desavenças, que se daria no âmbito comunitário, como vete-
mos a seguir. |
sual”
Isso se dá mediante a promessa de que ao final da “guerra proces
Outro fator que dificulta a aplicação do processo como mecanismo
irá vencedor. O uijuiz, ao decidiidir,r, dádá razãorazão aa u uma das partes, partes
alguém sairá efetivo de administração de conflitos é a forma como a relação jurídica
a do Direito, ver: FAGUNDEZ, (2006).
“º Para um aprofundamento sobre essa visão holístic
269
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA Caríruro 11-

processual é concebida. As partes são postas em segundo plano — desmitificação de atos como a audiência de conciliação. Esse deveria ser o
priorizando o Estado e seus representantes —, quando deveriam ser os momento em que as partes pudessem expor amplamente os motivos que
atores principais na exposição e administração da contenda. A proposta as levaram a ingressar com a ação judicial, e encontrar saídas viáveis para
apresentada neste trabalho é que essa posição de destaque possa ser ocu- o problema descrito. Infelizmente, isso não ocorre na maioria dos casos.
pada pelos reais interessados no deslinde da ação — as'partes —, e que estas Além das dificuldades referentes à linguagem, indumentária e arquitetura
possam ter uma ligação direta, apenas com a mediação estatal no intuito características do Poder Judiciário já mencionadas, durante a audiência
de encontrar solução para seus próprios problemas. argumentos como a lentidão do próprio sistema processual e inferências
Já é tempo de os conflitantes deixarem de ser vistos como incapazes, a respeito das próprias consequências jurídicas do fato são adotados como
que devem ser “tutelados” pelos seus advogados e “protegidos” pelos forma de “coagir”, muitas vezes, as partes a aceitarem determinados “acor-
promotores e juízes. Há, entretanto, vários entendimentos que funcionam dos”. Como é possível um diálogo amplo ante a ritualística que leva os
como empecilhos na aceitação de uma postura mais ativa dos contendotres - “leigos” a terem um temor reverencial perante as instituições judiciárias?
com um amplo tratamento da desavença. O primeiro deles é o argumen- Participar em diálogo implicaria, como preceitua Freire (2004, p. 119),
to de que as questões apresentadas ao Judiciário são sempre de grande um encontro entre as pessoas, e não em uín ato de depositar idéias de um
importância, e que se não foram resolvidas amigavelmente, necessitam da sujeito no outto, nem tampouco uma simples troca de idéias a serem
interferência estatal. Sobre tal afirmação, Calamandrei (1960, p. 31) lem- consumidas pelos envolvidos, Pressupõe que as pessoas se escutem umas
bra que diariamente inúmeras questões da mais alta importância são deci- às outras — escutar no sentido de se permitir estar aberto às idéias do
didas sem interferência judicial (diagnósticos médicos, descobrimentos outro.
científicos, políticas públicas e outras), e em todos esses casos as pessoas Ocorre que o conceito de conciliação, proveniente da ciência jurídica,
podem se sentar ao redor de uma mesa e encontrar uma saída satisfatória é diverso. Dinamarco (2003, p. 123) explicita que conciliaçãoé a interces-
para os interessados. Por que nos casos judiciais essa capacidade de chegar são de um sujeito entre os litigantes com vistas a persuadi-los à
a um acordo efetivo não é incentivada de forma ampla e irrestrita? autocomposição. Pergunta-se: tal ação é realmente possível? Alguém é
Para Calamandrei (1960, p. 33-34), o Estado não pode permitir que as capaz efetivamente de persuadir outro a realizar um acordo se este não
formas de fazer justiça sejam abandonadas à improvisação e aos interes: tem disposição para tanto? Parece-nos que o juiz não deve ser simples-
ses individuais, porque isso comprometeria a própria autoridade estatal, mente aquele que atuará no sentido de convencer as partes a chegarem a
que, gradativamente, abriria mão de uma de suas principais tarefas dis- um acordo, mas um mediador que contribuiria na construção de uma
postas no contrato social, À jurisdição estatal como forma de tratamento saída para o problema, que será construída com as partes.
de desavenças é um dos pilares que sustenta, perante o cidadão, a A desmitificação dos procedimentos judiciais passaria pela simplifica-
imprescindibilidade da existência do Estado e a sujeição dos indivíduos a ção desses procedimentos, envolvendo o emprego de uma linguagem
essa forma de regulação. cotidiana, chegando à (ou iniciando pela) figura do magistrado.
Outro obstáculo para a efetividade do processo como administrador Este cargo público que é considerado, principalmente pelos cidadãos
satisfatório de conflitos está na própria tradição da cultura jurídica, que se menos favorecidos economicamente, como uma figura quase mitológica,
desenvolveu de forma elitizada e excludente, O processo segue uma série mais que um homem, um ser divino (CARNELUTTI, 2001, p. 33), teve
de rituais e procedimentos que inviabilizam o acesso dos “leigos” a uma sua imagem construída pelo próprio ente estatal, ao garantir aos cidadãos
efetiva discussão sobre o problema descrito. A linguagem empregada, as que as “virtudes sobrenaturais” desse Hércules” o tornariam apto a ser
velhas práticas, togas e tituais do período imperial apenas distanciam
ain-
da mais aqueles que não estão inseridos neste “mundo jurídico”. 199
Faz-se aqui uma referência à metáfora do juiz Hércules, criada por Ronald Dworkin
O primeiro passo para uma relação processual mais humana seria (utiliza-se o capítulo 4 da obra “Levando os direitos a sério”, que foi originalmente publicada
à como um ensaio na Harvard Law Review n. 88 [1974-1975]. Dworkin imagina um magistrado
com capacidades e paciência sobre-humanas, competente para, de maneira criteriosa. e metódica, |
270 271
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 11

aquele que, em todas as situações, proferiria a verdade, a vontade da lei, a idéia de que o conflito nem sempre é negativo para o convívio em socie-
solução para o problema. dade e oferecer a oportunidade para que as pattes falem e ouçam. Falar
Esse aspecto'divino atribuído ao juiz é reforçado pela ritualística que o no sentido de expor os sentimentos que possuem em telação ao proble-
cerca, O magisttado é aquele que na audiência estará trajando toga, mes- ma, mediante uma conversa aínpla que possibilite o diálogo. Ouvir pres-
mo nas Comarcas com climas mais quentes do nosso país, e permanecerá supondo que não se tem uma parte como “dona da verdade”, estando
sentado à frente, se possível em posição mais alta, que os demais. Tais todos dispostos a aceitar o diferente e ser tolerante, permitindo que o
catacterísticas muitas vezes desagradam aos próprios magistrados, mas outro seja capaz de expor seus argumentos (RODRIGUES, 1995, p. 15).
são marcas profundas de uma prática processual do período imperial, de A ciência jurídica, entretanto, agarra-se aos formalismos processuais
uma relação súdito-soberano, das cerimônias solenes e das arquiteturas como se os mesmos pudessem oferecer alguma garantia contra o
quase litúrgicas-dos “palácios” da Justiça. subjetivismo e arbítrio dos que têm poder de decidir (PASSOS, 2000, p.
À atuação de alguns juízes colabora para a manutenção de tal postuta. 69). Os princípios gerais do processo, como a imparcialidade, igualdade,
A pretexto de exercer uma estéril imparcialidade, o juiz, algumas vezes, contraditório, ampla defesa, juiz natural (prévia instituição do juiz), publi-
esforça-se para se manter distante do problema social, e recorre a todo cidade, motivação das decisões, duplo grau de jurisdição, no afã de ofere-
esse apatato ideológico para, efetivamente, como preceituam Cintra, cer garantias individuais, criam um arcabouço que pretende conferir uma
Grinover e Dinamarco (1998, p. 51), colocar-se entre as partes e acima aparência lógica à decisão do juiz, não obstante esta surja primeiramente
delas, apenas como um espectador dessa “batalha judicial”. do seu livre-arbítrio, e apenas posteriormente o julgador procure funda-
Não querendo tesponsabilizar exclusivamente os magistrados que exer- menitação que embase seu intento (FAGUNDEZ, 2006, p. 228).
cem tão difícil ofício, é necessário observar que estes, lamentavelmente, Calamandrei (1960, p. 54) já se perguntava se esses ritualismos têm
muitas vezes, não são treinados para a paciência, tolerância e democracia, sido garantia de decisões mais justas. Nossas construções teóricas são úteis
mas habituados: à prepotência, como se as partes não tivessem nada a à Justiça? Nosso refinado arcabouço teórico e jurisprudencial serve ver-
dizer, mas apenãs devessem ouvir sua respeitável decisão (RODRIGUES, dadeiramente para que as sentenças sejam mais corretas e coerentes? Não
1995, p. 17). * se tem uma resposta fundamentada para essa pergunta. Observa-se, en-
Tem-se ainda a ilusão de que essa postura autoritária assumida por tretanto, que, muitas vezes, as decisões proferidas pelo Judiciário têm se
alguns juízes seria necessária para conservar sua autoridade perante os revelado distantes da desavença, isso porque o próprio problema apte-
advogados e as partes. Ocorre que tál conduta apenas acirra ainda mais os sentado não foi “percebido” de forma integral.
ânimos já exaltados das partes, estabelecendo, em alguns casos, entre juiz, Esses são alguns elementos, inerentes à relação processual, trazidos à
promotor e advogados, um meio de incompreensão e altivez baila com o objetivo de se visualizar a precariedade da atividade de admi-
(CALAMANDREI, 1960, p. 113). O juiz deve buscar o estabelecimento nistração dos conflitos oferecida pelos órgãos do Poder Judiciário. Não
de um ambiente em que as partes possam dialogar com respeito, com- se está afirmando que em todos os casos os procedimentos são ineficientes,
preensão e trangjuilidade. pretende-se apenas levantar falhas do sistema posto para que, utilizando-
O processo, como destaca Rodrigues (1995, p. 13-14), deve ser um se das práticas de Justiça Comunitária a seguir descritas, se possa vislum-
momento de falae escuta, possibilitando que a parte vivencie as suas brar alternativas de administração de desavenças mais satisfatórias e hu-
razões e a realidade do problema pela ótica do outro de forma não manas. ;
Vale ressaltar que não se ignota os esforços do Poder Judiciário para
passiva, solucionândo- desavenças por si só. Para tanto, deve-se partir da
melhorar a administração de conflitos humanos. Prova disso, São as várias
filtro da integridade
selecionar as hipóteses de interpretação dos casos concretos a partir do interpret ar a história iniciativas de modificação/ simplificação de procedimentos |, a aptova-
Assim, em diálogo com as partes daqueles processos, ele deverá
análise completa e gliteriosa
institucional como um movimento constante e partindo de uma nesses a leitura feita pela
ção, da legislaçã oe dos precedent es, para identificar “ O modelo de Stuttgart, citado por Cappelletti e Garth (1988, p. 78), é precursor nas
da Constitui
dos princípios jurídicos aplicáveis aos casos.
própria sociedade
273
272
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CarfruLo 11

ção das leis de Arbitragem, dos Juizados Especiais Estaduais e Federais e


todos enfrentam. O estudo dessas experiências, de forma aberta e sem
os vários projetos de Justiça Comunitária patrocinados pelos próprios
pré-conceitos, seria muito interessante na tentativa de buscar saídas pata
tribunais . Na maioria dos procedimentos, contudo, a relação proces-
nossos problemas jurídicos. É preciso deixar claro que não se está defen-
sual. guarda as características aqui apresentadas.
dendo a introdução de enxertos de modelos jurídicos de outras culturas
em nosso país. A Antropologia Jurídica permite compreender melhor
- É A ANTROPOLOGIA JURÍDICA COM ISSO? CONCEITOS E nossa sociedade, ao vermos: funcionar modelos diferenciados e observar
DELIMITAÇÕES que. nossas diretrizes e propostas não são as únicas possibilidades.
“Adotando essa perspectiva, o estudo compreende as chamadas socie-
Considerando as características da relação processual apresentada, é dades não-ocidentais e/ou os povos autóctones como etnias que de-
objetivo deste artigo oferecer alguma contribuição para melhoria desse vem ser respeitadas em sua autodeterminação e forma de viver. Ao ana-
cenário, recorrendo a experiências de Justiça Comunitária e da Antropo- lisar .as experiências de Justiça Comunitária, elas serão compreendidas
logia Jurídica. apenas como uma forma diferente de realizar a administração de confli-
Antes de continuar, é necessária a 'compreensão do marco teórico da tos, como uma maneira diferente de vivenciar o fenômeno judicial,
Antropologia Jurídica, norteador de todo o trabalho. Em outros capítu- Ao contrário do que muitos pensam, a Antropologia Jurídica não se
los deste livro essa tarefa já foi adequadamente realizada, por isso enfatizar- ocupa apenas dos direitos dos povos indígenas ou de outras “minorias”,
se-á apenas alguns aspectos pertinentes à discussão apresentada neste ca- como os quilombolas. É do conteúdo da Antropologia Jutídica o estudo,
pítulo. sem pré-conceitos, da cultura do outro, a intenção despretensiosa para
Pode-se iniciar a construção desse conceito pelo entendimento do que olhar o semelhante, trocar com a cultura do diferente e depois aprender/
seria Antropologia. Para atender aos objetivos deste projeto, pode-se ci- reaprender saídas para seus próprios problemas. :
tar Santos (2005, p. 19), segundo o qual Antropologia seria um conjunto Uma terceira acepção que revela a vinculação do estudo com a Antro-
de teorias, métodos e técnicas de pesquisa que buscam explicar e compte- pologia Jurídica está na forma de perceber o Direito. O Direito não é
ender as mais diversas práticas dos homens e mulheres em sociedade. entendido como norma oriunda unicamente do Estado. O reconheci
Nessa linha, a Antropologia Jurídica propõe-se a estudar os direitos de mento do Pluralismo Jurídico º » conforme demonstrado a seguir, é um
culturas não-ocidentais e, em seguida, com um olhar novo, voltar-se aos. compromisso a ser firmado ao se estudar essa temática.
direitos das sociedades ocidentais (ROULAND, 2003, p. 70). Conforme descreve Shirley (1987, p. 12), um postulado básico da
A Antropologia Jurídica mostra-nos que outras culturas, africanas ou Antropologia Legal é o de que as regras são feitas a partir de bases
orientais, descobriram diferentes direcionamentos pata problemas que 20
Segundo Rouland (2004, p. 459), seria todo e qualquer povo instalado
tempos imemoriáveis e que mantém um vínculo com esse em um território há
iniciativas para melhoria do acesso à Justiça. uma expressão para se
território. Pode ser usada como
Proposto pelo
depois denominado “Stuttgarter Moddel” numa homenag alemão Fritz Baur em 1965, e referir a povos tribais ou comunidades “primitivas”,
em à cidade alemã onde foi 20
Primeiramente posto em prática, este sistema é precursor “A consideração
de outras esferas de composição de conflitos e de
na defesa de um diálogo amplo, realização dos direitos,
oral € ativo entre partes, advogados e juízes, em que os magistrad além do Judiciário, é apenas uma das facetas do Pluralismo
os discutem com as partes Jurídico (WOLKMER, 2001). Tal
um projeto de sentença que é aprovada conjuntamente, Tal paradigma, ao se aproximar da realidade social de demanda
supracitado, resulta em celeridade processual (75% dos casos iniciativa, segundo o autor coletivos, visualiza uma nova concepção de juridicidade que
por direitos, principalmente
maior compreensão das partes em relação à sentença, diminuindtermina em 6 meses) e numa não
com os direitos consagrados nos códigos e na legislação dogmática. se identifique unicamente
o o índice de recorribilidade O principal núcleo para
em até um terço do normal, O qual converge o Pluralismo Jurídico é a negação de que
o Estado seja o centro único do
t poder político e a fonte exclusiva de toda a produção do Direito.
º Em pesquisa realizada pela autora em sites dos Tribunais de Trata-se de uma perspectiva
Justiça (BORGES, 2006, p. 179) descentralizadora e antidogmática do Direito que pretende “a
do nosso país, foram encontrados vários projetos ligados supremacia de fundamentos
ético-político-sociológicos sobre critérios tecno-formais positivistas”
a
intitulavam como sendo de Justiça Comunitária. Entre eles pode-seTribunais de Justiça que se XV). À caracterização dessa nova jutidicidade não será tratada (WOLKMER, 2001, p.
TJDF, TJMS, TJMT, TJRJ, TJRS e TJSC. Os projetos têm citar o TJAC, TJBA, TJCE, diretamente nos limites deste
diferentes perfis e nem todos se artigo, mas suas facetas são inevitavelmente tangenciadas por
adequam às diretrizes da Justiça Comunitária. Talvez
o melhor exemplo desses projetos é a movimentos de Justiça Comunitária. Sobre o assunto, veja ser muitas vezes base teórica dos
iniciativa do TJDF, Para maiores detalhes, veja a publicaçã Wolkmer (2001).
o antes mencionada. 204 : :
Este autor diferenci a Antropologia. Legal e Jurídica,
et . os
deixando a cargo da primeira o estudo
274 Amoa
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
Caríruro 11

sociais e econômicas e precisam ser vistas em seu conteúdo social e cultu- das no seio das comunidades carentes.
ral. O Direito, então, não é imutável e posto unicamente pelo Estado de Às práticas de Justiça Comunitária não são atuais, podendo-se obser-
forma definitiva e sacralizada..O Direito constitui um método de regulação var várias iniciativas, citadas por Cappelletti e Garth (1988, p. 14-15)”
social que é construído historicamente. Assim sendo, a observação de de tribunais de vizinhança ou sociais nos Estados Unidos e Inglatetra, e os
outtas formas de juridicidade possibilita uma maior compreensão de nossos centros de conciliação na França: :
próprios modelos. Assim, a “justiça civilizada” não está oposta natural- Algumas práticas serão descritas a seguir com o objetivo de revelar a
mente à barbárie existente nas chamadas sociedades “primitivas”. Ao con- tiqueza desse fenômeno judicial comunitário. Araújo (2005, p. 6), por exem-
trátio, essas sociedades souberam inventar mecanismos jurídicos de reso- plo, descreve a complexidade das instâncias de resolução de conflitos em
lução de conflitos que se constituem em inovações inestimáveis às socie- Moçambique.
dades moderrias (ROULAND, 2003, p. 121). Em 1978, três anos após a independência, foi aprovada a Lei da Or-
A Antropologia contribui, então, para uma conscientização pluralista ganização Judiciária daquele país, que previa a criação de tribunais popu-
do Direito não como um conjunto de regras (ligadas ou não ao Estado), lares em diferentes escalões territoriais: Tribunal Popular Supremo, tribu-
mas como aquilo que limita e formaliza a reprodução da humanidade nais populares provinciais, tribunais populares distritais e, finalmente, tri-
nos domínios que uma sociedade considera vitais — e existem muitas bunais populares de bairro ou localidade. Em todos os escalões partici-
maneitas de se fazer isso (EBERHARD, 2004, p. 168). pavam, no exercício da atividade judicial, juízes eleitos, isto é, juízes
Ao se deparar com a interculturalidade, o antropólogo do Direito não desprofissionalizados, escolhidos em assembléias populares para exerce-
pode deixar de notar o caráter não-universal das concepções ditas univer- tem funções judiciais. Estes desempenhavam funções verdadeiramente
sais e é obrigado a procurar por equivalentes, em outras culturas, pata O jurisdicionais, intervindo, nos casos penais, sobre matéria de fato e de
que chamamos de Direito. Para tanto, amplia a noção de Direito, direito. Na base da pirâmide, os tribunais de localidade e de bairro funci-
desvinculando-a da-idéia de Direito estatal ou de Direito como regras onavam exclusivamente com juízes eleitos, que conheciam as infrações de
gerais e impessoais (EBERHARD, 2004, p. 169). pequena gravidade e decidiam, de acordo com o bom senso e a justiça,
Ainda quéras perspectivas de Direito sejam diferentes, é inevitável que sempre que não fosse possível a reconciliação das partes.
sejamos capazes de articulá-las de alguma forma. Isso porqueé sabido Nessa perspectiva, considerou-se necessária a criação de órgãos que
que os modelos ocidentais de Direito e de Estado fracassaram. E urgente permitam aos cidadãos resolver pequenas diferenças no seio da comuni-
que repensemos, por outro viés, questões como Justiça, direitos huma- dade. São os Grupos Dinamizadores, que, sendo ainda mais próximos
nos, pacificação das sociedades, partindo de experiências internas do nos- do cidadão, não se assumem como instância de resolução de conflitos,
so país e aceitindo contribuições externas. atribuindo essa função 20s tribunais comunitários. Esses grupos apóiam
as pessoas que os procuram em situação de litígio, enviando para os tribu-
EU E VOCÊ: PRÁTICAS DE JUSTIÇA COMUNITÁRIA nais apenas os poucos casos que não conseguem dirimir. Os casos que
recebem inserem-se, essencialmente, em três categorias: conflitos em tor-
Admitindó-se a perspectiva antropológica, as características da relação no da habitação, casos sociais” e questões de feitiçaria. O secretário de
processual mêncionadas anteriormente e a crise do ordenamento jutídi- bairro procura formas de resolução próptias, fazendo uso da sua experi-
co-estatal antea falta de respostas céleres e satisfatórias às crescentes de-
mandas sociais, nada-mais coerente do que atribuir legitimidade aos no-
205 . E . as . .
Este ensaio foi produzido no âmbito do “Projeto de Florença”, capitancado pelos autores

vos atores sociais e às formas alternativas de administrar contendas, cria-


na década de 70, que buscou analisar as modificações ocorridas em todo o mundo, visando
melhorar o acesso à Justiça. “
20% . = miss a. 2. 2a
Engloba-se, aqui, relações de famiília*óú de vizinhança, como adultério, falta de assistência,
o
irei rado das normas em várias sociédades. Chama de Antropologia Jurídica material aos familiares, agressões verbais e físicas ou desentendimentos de qualquer outra
1987, p. 21). natureza.
estudo
do instituições jurídi icas modernas sob esse viés descrito (SHIRLEY,
o das oe

276 277
ELEMENTOS DE ÂNTROPOLOGIA JURÍDICA Carírutro 11

ência de vida e partilhando com as partes a concretização de uma solução. ção de conflitos sem envolvimento estatal. Em Ruanda funciona à “Justiça
A atuação desses secretários assenta-se, com frequência, num modelo so- da relva”. Todos os membros da aldeia podem participar desse procedi-
cial patriarcal, por exemplo, aconselhando as esposas a respeitarem o mento, cujo objetivo é resolver os litígios de vizinhança ou provenientes
matido e a aceitarem as suas várias mulheres. Não deixa, no entanto, e do de membros da mesma família. A decisão em cada uma das queixas deve
mesmo modo, de atribuir responsabilidades ao marido, que deve tratar a ser executada pelas partes, o que se dá em 82% dos casos, sem que o
esposa sem violência e com respeito, garantindo seu bem-estar. problema:fique sem solução imediata ou seja remetidoa uma jurisdição
Na Bolívia, há outro exemplo de Justiça Comunitária. Trata-se da cri- - oficial. Entre.as decisões emitidas, a maioria delas (54%) não obedece ao
ação de um Projeto de Lei de Justiça Comunitária dos Povos Indígenas e Direito oficial.
Comunidades Camponesas . À idéia do projeto é incluir na estrutura Entre .os esquimós, o referido auto (2003, p. 120) destaca que aquela
jurídica oficial do país os tribunais de tribos indígenas e comunidades pessoa que reincide no delito de homicídio é subtraída ao sistema
rurais. Esses tribunais comunitários já atuam informalmente no país. Por - vindicativo, pois consideram que sua obstinação o torna um perigo para a
sua conta — e sem ater-se ao Direito tradicional — esses tribunais julgam sociedade inteira. A comunidade decide então sua liquidação física, sem-
crimes no interior e aplicam penas que variam de um simples pedido de pre efetuada por seus parentes mais próximos. Dessa forma, pretende-se
desculpas a açoitamento, trabalhos forçados, exílio da tribo e até lincha- marcar que não se trata de um ato de vingança, por exemplo, da família
mento. À despeito da forma depreciativa ao governo boliviano, com que da vítima, mas uma pena e uma decisão drástica decorrente de sua con-
a maioria dos jornais abordou a notícia no Brasil, essa experiência tam- duta, Para alguns, relatos como esses podem estar distantes da nossa rea-
bém serve como um exemplo de práticas de Justiça Comunitária. lidade dita moderna e talvez pareçam apenas contos sobre um povo “pri-
Na Guatemala, Padilla (2005, p. 244) relata uma experiência bem-su- mitivo?, mas pergunta-se: o nosso “moderno” sistema penal tem conse-
cedida de atuação conjunta da jurisdição tradicional e da jurisdição comu- guido êxito. maior no “controle”.
da criminalidade? São nossas prisões
nitária indígena. No chamado caso Chiyaux, três indígenas foram acusa- algo mais do que sistemas de encarceramento e extermínio daqueles que
dos de roubar uma casa e a primeira reação da comunidade foi linchá-los. são inseridos nesse sistema? Qual prática de administração de conflito
Com a intervenção do líder comunitário, evitou-se o assassinato dos índi- tem um custo social maior?
os e os acusados foram entregues à Justiça Penal da cidade, Três meses A Antropologia Jurídica possibilita desmitificar a idéia de que a Justiça
depois, com o auxílio da defensoria indígena local, realizou-se a cerimô- civilizada proporcionada pelo Estado se oporia à barbárie sangrenta dos
nia de julgamento dos três acusados por autoridades indígenas tradicio- mecanismos de solução dos conflitos das sociedades tradicionais. Mesmo
nais, em conjunto com o Juizado Penal e a Defensoria Pública. A cerimô- nas chamadas sociedades modernas, o desenvolvimento de sistemas de
nia foi assistida por mais de mil pessoas. Na ocasião, os acusados reco- administração de conflitos paraestatais tem se mostrado muito eficiente
e
nheceram sua culpa e pediram perdão à comunidade. Ao final, foi solici- célere, deixando de lado a idéia de uma jurisdição alternativa de menor
tado que os processados compensassem o erro com 30 dias de trabalho - valor ou de “segunda mão”, Não se pretende aqui defender uma
comunitário em obras necessárias para a comunidade. Além disso, os ou
outra prática cultural, apenas deixar claro que a administração estatal dos
“réus” deveriam colocar sua mão sobre 20 grãos sagrados e responder a conflitos não é o único caminho possível e que as alternativas comunitá-
juramento feito pelo líder comunitário, prometendo respeitar a palavra rias de jurisdição não deixam a desejar, em nenhum aspecto, às práticas
empenhada, trabalhar honestamente, não roubar e ser um exemplo para tradicionais. =
os filhos e para a comunidade. Como visto pelos relatos anteriores, as iniciativas de Justiça Comunitá-
Rouland (2003, p. 255) descreve vários procedimentos de administra- tia possuem em comum o fato de pretender recuperar o papel
da cida-
dania na administração de suas próprias contendas, restaurando
a autori-
o Folha de S.Paulo (On Line), 04/01/2007. Disponível em: <http://wwwl .folha.uol.com.br/ dade e a sabedoria da própria comunidade para ajudar a resolver
folha/mundo/ ult94u103467.shtml>, .
os seus
970
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA
CaríruLo 11

problemas internos da melhor forma possível.


bilidades na administração de desavenças. Conforme é desejado por uma
Neste estudo, diante de tantas iniciativas comunitárias, enfatizaremos
visão complexa do conflito, este não é visto como algo negativo, que
as experiências:descritas por López (2000) e Ribeiro e Strozenberg (2001).
precisa ser eliminado da sóciedadee nem se considera que ele possa ser
'Tal escolha foi feita por se tratarem de experiências inóvadoras e que são
permanentemente resolvido e/ou: solucionado, à objetivo é “adminis-
ao mesmo tempo muito próximas de qualquer medida judicial estatal.
trar” a desavença para que se restabeleça a harmoniaicoletiva comunitária.
Esse destaque tem como objetivo compreender se (e em que medida) as
À administração de controvérsias entre as pessoas, historicamente, tem
iniciativas de Justiça Comunitária representam um avanço na construção
sido relegada às divindades. Os oráculos, a mitologia grega e romana e as
de uma relação processual mais humana e próxima do conflito social crenças religiosas, de uma forma geral, de certa maneira exerciam o papel
complexo, e no que elas podem contribuir para a jurisdição estatal. que hoje é atribuído aos magistrados. No Estado Democrático de Direi-
López (2000) relata as experiências com centros de mediação comuni- to, cada pessoa delega às instituições jurídicas e aos'operadores do Direito
tária na Colômbia. Organizado por Corporación Región, um Instituto Popu- a tarefa de decidir quem tem razão em determinada situação e qual é a
lar de Capacitação, o livro reúne vários artigos com impressões de proje- melhor saída para o caso concreto.
tos integrantes. da Rede de Justiça Comunitária e tratamento de confli-
Como já mencionado, as relações dos conflitantes com a Justiça e o
tos -, construindo uma série de características teóricas dessas práticas co- Diteito nem sempre são harmônicas, uma vez que'as decisões proferidas
munitárias, que serão usadas em vários momentos neste estudo.
pelos pequenos grupos de poder que ocupam cargos nas instituições jurí-
No Brasil destaca-se a experiência do Balcão de Direitos
dicas muitas vezes são incapazes de refletir, em definições gerais, a preten-
(STROZENBERG, 2001), mantido pela Viva Rio, otganização não-go- são de cada um dos componentes coletivos, e até mesmo de comptreen-
vernamental que desenvolve projetos sociais nas favelas do Rio de Janei- der os inúmeros fatores que envolvem essas desavenças (LÓPEZ, 2000,
to. O'Progtama existe há oito anos, possuindo atualmente sete núcleos Pp. 13). Os projetos de Justiça Comunitária pretendem fazer o resgate do
funcionando rias comunidades da Rocinha, Santa Marta, Cantagalo /Pa- cidadão para a posição de agente na administração dos conflitos de seu
vão-Pavãozinhô, Chapéu Mangueira e Babilônia, Parque da Maré, Praia próprio cotidiano, superando a idéia da comunidade passiva aos ditames
de Ramos, UNIRIO, além do núcleo itinerante, o Globomóvel. Os bal-
proferidos pelo Judiciário.
cões são instalados em prédios comunitários, nos quais estudantes e ou- Segundo autores que aceitam o Estado como principal (ou mesmo
tros voluntários atendem à comunidade. Mais de 70 mil atendimentos já único) mecanismo legítimo de composição de conflitos, a sociedade, ante
foram feitos, de cálculos trabalhistas à mediação e conciliação, passando a dificuldade de acesso ao Judiciário e/ou diante da sua lentidão, busca
por orientação jurídica em processos judiciais. A solução da maioria dos meios alternativos de resolução de suas contendas. Para esses autores, tais
conflitos não exige um saber jurídico sofisticado. Um pouco de bom mecanismos “alternativos” não seriam adequados, acartetando, além do
senso, técnica de negociação, atenção pata a equidade, disposição para descrédito na Justiça, a utilização devias alternativas violentas, desde a
ouvir e paciência bastam em grande parte dos casos. São conflitos famili- Justiça de mão própria, até intermediações arbitrárias, para chegar aos
ares, envolvendo, pensão alimentícia, guarda e visita aos filhos e proble- chamados “justiceiros” (GRINOVER, 1990, p. 43).
mas de vizinhança . Como se pode concluir das experiências relatadas, as comunidades
A proposta da Justiça Comunitária não é ser uma contraposição à alijadas do Estado têm descoberto, em' alguns casos, formas não violen-
Justiça estatal; masé defendida como um complemento de caráter “ tas de resolver conflitos. Lissas formas 'de administração ocotreriam em
educativo, a fim de que se tenham cidadãos conscientes de suas responsa- pequenas comunidades, favorecendo a introdução coletiva de uma série
208 :
Maiores informações
x :
podem
: : cars -
set obtidas nos sites: <www.reddejusticia.org.co> c
: de valores comuns que devem-scr respeitados. Procedendo nesse sentido,
<www.region.org.co>. É a resposta dada à desavençã'é aproximada da realidade enfrentada por
Informação retirada do site: <http:/ /wwryvivario.org.br/publique/cgi/ cgilua.exe/ sys/ aquelas pessoas. Essas práticas guardam assim uma afinidade identidade
start.htm?infoid =60&sid=22>. Acesso em: 26 jul. 2006.

280 281
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CariruLo 11

“Me,

com os conflitantes, sendo vistas como ações concretas que buscam res- crise e, ao mesmo tempo, de reconhecimento/ participação /incorp
ora-
tituir a harmonia social e não como postulados teóricos sem representa- ção de iniciativas de justiça participativa: o
ção ng; cotidiano local daquela comunidade o Esse movimento de instituição de mecanismos alternativos já vem acon-
Umig:das críticas a esse posicionamento é de que na medida em que se tecendo com a aprovação de leis de Arbitragem, dos Juizados Especiais
identificam-nos movimentos sociais fontes produtoras de direitos, estar- Estaduais e Federais e com as Comissões de Conciliação Prévia de
Con-
se-ia legitimando procedimentos como a vingança privada (linchamen- flitos Trabalhistas. Outra frente de reconhecimento dessas práticas de jus-
tos) e aceitando grupos armados como instâncias decisórias, conforme. tiça alternativa seriam os projetos de Justiça Comunitária capitaneados
infelizmente pode se encontrar na periferia de alguns centros urbanos. pelos Tribunais de Justiça”. o
De acordo com Wolkmer (2001, p. 157), as “normas” produzidas - Estabelecidas então as bases que clarificam a legitimidade de tais inici-
por esses grupos armados estariam excluídas dessa ““nova” legitimidade” ativas dentro da comunidade, recorrer-se-á às lições de López et a! (2000,
gerada a partir de valores, objetivos e interesses do todo comunitário, e p. 28-31) para promover a caracterização das práticas de Justiça Comuni
-
incorporados por meio da mobilização, da participação e da ação com- tária, sempre correlacionando com as deficiências apontadas na relação
partilhada. As normas de um direito comunitário devem ser reconhecidas processual tradicional, a fim de que se observe que essas iniciativas
têm
como resultantes de interesses cotidianos e concretos, do interesse e do muito a contribuir para o estabelecimento de uma relação judicial mais
bem geral, e estão direcionadas à satisfação das necessidades humanas humana e próxima do conflito social apresentado.
Vo
fundamentais, referentes à subsistência, à saúde, à moradia, à educação. Os mecanismos da Justiça Comunitária podem ser aplicados pela co-
Na vetdade, esse receio em admitir “juridicidades alternativas” e, como munidade em geral, pot uma pessoa, ou grupo de pessoas que gozem de
já referido, em promover uma efetiva simplificação dos procedimentos e prestígio e aceitação geral, no sentido de determinar e getir os conflito
s
ritualismos, revela um esforço cooptador do Estado que não admite ex» internos dessa comunidade,
pressões de Justiça oriundas de órgãos não-estatais, pois, na medida em Essas iniciativas têm o mérito de propiciar a reconstrução de mecanis-
que o fizer, poderá estar gradativamente abrindo mão de seu monopólio mos sociais de interação entre os indivíduos da comunidade, possibilitan-
de distribuidor de justiça e da força física. A redução da força estatal, com . do a efetiva participação cidadã, com respeito às diferenças e uma aceita-
a perda desse monopólio, acarretaria automaticamente num enfraqueci- ção mais realista da divergência. As divergências e a pluralidade de idéias
mento do poder oficial sobre o indivíduo de forma geral, e numa sensa- e interesses são classificadas como naturais e inatas à convivência em
soci-
ção de dispensabilidade do Estado como mantenedor obrigatório da edade e não como um vício a ser eliminado. Essa aceitação da diferenç
a
harmonia coletiva que possibilita o exercício dos direitos. acarreta na conscientização da contenda em si, num reconhecimento
de
Consciente dos riscos de tal prescindibilidade e de como as decisões
proferidas pelos órgãos estatais são vistas, muitas vezes, pelos cidadãos " Pergunta-se: por que motivo as instituições do Poder Judiciári
ações sociais que visam a proporcionar maior acesso à Justiça o estão se inserindo em
como decisões impostas, distantes do caso concreto e com falhas em sua carentes? Veronese (2004, p. 18), em estudo comparativo por parte de comunidades
de dois projetos de Justiça
exeguibilidade, é que o Poder Judiciário está vivendo um momento de Comunitária encampados pelo Tribunal de Justiça do Acre e do
Distrito Federal, aponta duas
possibilidades de resposta para a pergunta anterior. A primeira
seria de que os Tribunais, no
intuito de mitigar as consegiências da crise que enfrentam, estariam
sua competência,
agindo a fim de ampliar
reconhecendo /atuando em outros espaços de
* Outra prática que se aproxima da Justiça Comunitária, mas que não será objeto deste estudo, os meios oficiais tantas vezes revelam-se inacessíveis à maioria solução de conflitos, já que
da
é a chamada Justiça Restaurativa. À Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de possibilidade seria a de que os Tribunais buscam com esses projetos população. A segunda
consenso, em que a vítima e o infrator, e, em alguns casos, outros membros da comunidade tradicional da população carente, promovendo um movimento de aproximar a jurisdição
afetados pelo crime, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura reconhecimento e aceitação
dos serviços públicos por parte daquela localidade, Esta preocupa
dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo voluntário, informal, sem ção encontra-se refletida
em estudo realizado pelo Ministério da Justiça intitulado “Acesso
o peso e o ritual solene do cenário judiciário, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, alternativos de administração de conflitos: mapeamento nacional à Justiça por sistemas
conciliação e transação para se alcançar um acordo objetivando suprir as necessidades não-governamentais” (2005), que pretendeu fazer um levantamento de programas públicos e
individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator (ver jurisdição alternativa em nosso país, entre eles: programa de todos os programas de
GOMES PINTO, in: SLAKMON; DE VITTO; GOMES PINTO (2005); SCURO NETO e governamentais, incluindo os do sistema de Justiça e programa s instituídos por órgãos
PEREIRA (2000). : s instituídos por organizações
da sociedade civil que atuavam na administração pacífica de contenda
s.
909
CaríruLo 11
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA

tros.
ser parte naquele conflito, agente de composição do mesmo, detentor do
direito ali pleiteado e não um sujeito de necessidades, que busca, num * Outro ponto a ser destacadoé que nas práticas de Justiça Comunitária
momento extremo, aliados que lhe dêem razão, como acontece nos pro- há um desapego do aparato judicial, dos ritos procedimentais e do
cessos da Justiça comum. ordenamento jurídico em si, priorizando-se atender: cada caso concreto
Tal procedimento, apesar de mais complexo e trabalhoso, tem pot segundo circunstâncias próprias do fato e utilizando- -se os padrões de
finalidade compreender efetivamente o: conflito social que gerou as quei- conduta e razoabilidade daquela comunidade.
xas, O que não se vetifica nos processos de Justiça comum. O processo Para tanto, faz-se necessária a construção de uma nova metodologia
judicial comum:simplifica a desavença, despolitiza-a e reduz sua comple- jurídica que abandone o silogismo perfeito positivista de se adequar o
xidade, desprezando, muitas vezes, o contexto social em que a contenda caso concreto à norma, extraindo-se em seguida a solução. À interpreta-
está inserida.
ção e a forma de perceber a contenda devem ser construídas, e a decisão
A palavra é retomada como um importante mecanismo de relação é uma saída encontrada pelas partes e pelo mediador, e não uma imposi-
entre as pessoas. À possibilidade que as partes conflitantes têm de se escu- ção (SOUZA NETO, 2001, p: 82-83).
Na administração de seus conflitos, a comunidade produz mediado-
tar e falar abertamente, oportunidade que o processo formal lamentavel-
mente não oferece, é extremamente valorizada. Permitir-se compreender res que não têm contato com as partes e com a desavença apenas no
efetivamente as razões do outro é o primeiro passo para se recriar a momento em que as pessoas expõem suas razões; pelo contrário, o con-
ciliador é visto como alguém que acompanha os envolvidos na busca de
convivência pacífica.
uma solução satisfatória para eles, e justa no contexto comunitário especí-
Além do efetivo resgate da contenda humana engendrada nas queixas
trazidas até o mediador, as práticas de Justiça Comunitária têm o papel de fico em que estão atuando (ARDILA, 2000, p. 79).
promover dentro da comunidade o aparecimento de lideranças naturais À medida que vai desenvolvendo* julgamentos” baseados na equida-
- de, a comunidade (re)constrói redes de convivência, fortalecendo víncu-
úteis num exercício pleno de cidadania, inclusive na busca de concretização
los, edificando valores comuns, estruturando normas próprias e se
de direitos sociais (educação, saúde, moradiae outros).
Além de estarem mais próximos fisicamente das comunidades, esses (rejapropriando de suas experiências, tradições, potencialidades e neces-
centros de Justiça Comunitária primam pela utilização de uma linguagem sidades, fortalecendo-se como agentes atuantes na melhoria de sua quali-
dade de vida.
mais informal, conforme descrevem Ribeiro e Strozenberg (2001, p. 66),
com base em sua experiência no Projeto Baicão de Direitos (Rio de Janei- São essas experiências, tradições e valores de uma forma geral que
to). Quando se'fala num cuidado com a linguagem, não se trata apenas
produzem as “normas” da realidade social que regerão a mediação dos
conflitos da Justiça Comunitária. Assim sendo, além de não se apegar a
das palavras que serão empregadas nos documentos e nas “audiências”,
mas também emi toda uma disposição do mediador em construir com as ritos procedimentais, as práticas comunitárias valorizam a informalidade,
a desprofissionalização — as partes representam seus próprios interesses —
pessoas envolvidas no conflito uma saída que satisfaça a todos. Há uma
facilidade por-parte do mediador ém atuar no encaminhamento da “so- e privilegiam suas normas internas em detrimento do ordenamento jurí-
dico estatal. :
lução”, pelo fato de estar inserido na comunidade, tendo uma maior com-
Sobre o cumprimento das decisões na Justiça Comunitária, vetifica-se
preensão natural das contendas que ali se verificam. As práticas de Justiça
que uma maior aceitação do aparato adotado para administrar a desaven-
Comunitária devem ser adotadas,
de um lado, como fomentadoras de
ça acarreta num maior índice de exeguibilidade das decisões, pois a legiti-
uma comunidadé atuante e-participativa na administração de suas desa-
midade das mesmas não se funda na legalidade positivista e excludente,
venças internas, e, de outro, como formadoras de “agentes de
mas resulta da consensualidade, das práticas sociais e das necessidades
conscientização” que possam buscar, junto ao Poder Público, a
reconhecidas historicamente (WOLKMER, 2001, p. 326). A própria
concretização de direitos sociais como saúde, educação, moradia e ou-

284
285
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA —— —
CariruLo 11

coercibilidade para cumprimento das decisões judiciais é derivad


a não de CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma força imposta pelo Estado, mas do próprio contexto comuni
tário.
A solução encontrada busca a mútua satisfação das partes e o
restabelecimento da harmonia local, ao contrário da Justiça: comum, Mediante a insuficiência desse modelo jurídico liberal-individualista-
pela burguês em oferecer respostas satisfatórias às crescentes demandas sociais
qual se subentende que um sempre tem razão e que há sempre um
vence- e as dificuldades do Judiciário em atuar como instância de administração
dor (SANTAMARÍA, 2000, p. 59).
Assim, verifica-se que as experiências de Justiça Comunitária têm mui- de conflitos, os novos atores sociais vêm adotando mecanismos alternati-
to a oferecer no sentido de que se possa avançar na administraçã vos, entre-eles a Justiça Comunitária.
o dos Traçando alguns. delineamentos acerca da precariedade da relação pro-
conflitos e na concretização de uma relação processual mais humana
. cessual de perceber efetivamente o conflito que lhe é apresentado e con-
As iniciativas em prol de Justiça Comunitária devem ser estimuladas,
pois já é tempo que a comunidade se veja como parte na admini tribuir para a emergência de uma “decisão” que possa restabelecer a har-
stração monia social, este estudo defende que as experiências de Justiça Comuni-
de seus conflitos, envolvendo-se efetivamente e não apenas delegando
a tária podem contribuir em alguma medida para a consecução de uma
outrem a tarefa de encontrar uma “solução”. Para que isso
ocorra, no relação mais humana e próxima da realidade social dos envolvidos.
entanto, é imprescindível que ela seja vista pela Justiça tradicional
não como Este artigo é útil também para desmitificar a idéia de que a Antropo-
uma população carente que precisa ser “civilizada””” pelo advento
do, logia Jurídica se ocupa apenas dos direitos dos povos indígenas ou de
aparato jurídico tradicional, mas como agentes autônomos na
administra- outras “minorias”, como os quilombolas. O estudo de experiências de
ção de suas contendas, com uma possível utilização do ordena
mento ju- Justiça Comunitária oriundas da nossa e de outras culturas tem muito à
tídico tradicional, mas também com o respeito às “normas”
próprias da
comunidade, contribuir para a melhoria da relação processual estatal, Observando-se
Com a análise das experiências de Justiça Comunitária anterio resultados positivos de efetividade, abrangência e cumprimento das deci-
rmente
mencionadas, não se quer afirmar que em todos os casos a sões judiciais, é natural que façamos uma reflexão sobre o que considera-
decisão da mos avançado e moderno. À Antropologia Jurídica possibilita rever a
comunidade será sempre a mais adequada, e nem há um entendimento
de idéia de que a justiça civilizada proporcionada pelo Estado se oporia à
que tudo que vem das instâncias oficiais é sempre reprovável.
É interes- barbárie sangrenta dos mecanismos de solução dos conflitos das socieda-
sante apenas se oferecer o caminho da Justiça Comunitária como
uma des tradicionais. Mesmo
oportunidade a mais para a administração dos conflitos, e que as experi- no contexto das chamadas sociedades moder-
ências comunitárias positivas possam influenciar uma mudança nas, Os sistemas de administração de conflitos paraestatais têm se mostra-
interna do muito eficientes e céleres. Não se pretende a defesa de uma ou outra
nas instâncias oficiais,
A Justiça Comunitária, mais do que oferecer um “julgamento” na prática cultural, apenas deixar claro que a administração estatal dos confli-
lo- tos não é o único caminho possível e que as alternativas comunitárias de
calidade, e próximo fisicamente do cidadão, pode propiciar um
espaço jurisdição não deixam a desejar em nenhum aspecto às práticas tradicio-
para que os conflitantes encontrem por si sós um acordo mutuam
ente nais.
aceitável. Sob a ótica da Antropologia Jurídica, a Justiça Comunitária
pode Além de fomentar a criação de outros centros de Justiça Comunitária,
ser um importante elemento de reconhecimento das práticas culturai
s dos este trabalho apresentou algumas experiências de Justiça Comunitária para
povos autóctones e uma ferramenta útil para aquelas pessoas
que, mesmo
vivendo numa sociedade moderna, estão excluídas do acesso destacar as diferenças fundamentais entre estas práticas e os procedimen-
ao aparato - tos de jurisdição oficial. Tais informações, junto com a reflexão acerca
estatal,
at?
das bases da relação jurídica processual tradicional, pretendem demons-
iara
A expressão “banho civiliza tório” foi : usada por mi trar como as práticas judiciais estatais poderiam ser mais eficazes se fos-
intervenções sociais com um quê remocionista que Gomes (2001, p. 64), ao se reportar a
sustentam a necessidade de educar a
comunidade carente, sem enriquecidas com algumas premissas dessa Justiça Comunitária.

286
287
ELEMENTOS DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA CaríruLo 11

Esse raciocínio se revela coerente quando nos referimos aos projetos de Paz: las técnicas de la paciencia. Medellín: IPC/Corporación Región,
de Justiça Comunitária ou Justiça Itinerante encampados por Tribunais de 2000.
Justiça, .ou mesmo ao cotidiano dos Juizados Especiais, que pretendem
uma maior simplificação nos procedimentos. Em todas essas experién- BOAS, Franz. Anttopologia Cultural. Organização de Celso Castro.
Rio
cias, observa-se que mesmo quando se almeja uma aproximação entre o de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
procedimento e a realidade social do jurisdicionado, tem-se muita dificul-
dade em efetivá-la. Isso ocorre porque não é levando o aparato BORGES, Marina Soares Vital. Tribunales de justicia en Brasil, nuevas
jurisdicional para a comunidade (no caso dos Juizados Itinerantes), que se * prácticas de justicia participativa y justicia comunitária. Revista El Otro
terá uma decisão mais próxima do conflito social. De nada adianta utilizar Derecho, n. 35. Bogotá-Colômbia: Instituto Latinoamericano de Servicios
um procedimento tecnicamente mais célere, como é o caso dos Juizados Legales Alternativos-ILSA, dezembro, 2006.
Especiais, se o operador do Direito continua usando sua carapaça de
(pré)conceitos e seu arcabouço teórico, jurisprudencial e linguístico. CALAMANDREI, Piero. Proceso y democracia. Bucnos Aires: Euro-
Essa aproximação da tealidade social, que aparentemente é desejada pa-América, 1960.
pelos órgãos jurisdicionais |, só se efetivará na prática quando as institui-
ções e os operadores jurídicos puderem se despir finalmente de suas CAPPELLITTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto
Ale-
indumentárias e tratar, nos autos processuais, de conflitos humanos, com gre: Fabris, 1988.
a complexidade e incerteza que lhes são próprias. Uma relação processual
mais humana e uma decisão próxima da desavença social não serão origi- CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil. Buenos
nárias de leis e procedimentos judiciais mirabolantes, mas sim quando o Aires: Uteha, 1944.
processo, se tornar o que sempre deveria ter sido: um local de fala e
escuta, em que as partes, no real sentido da palavra, possam se sentir - Como se faz um processo. Tradução de Hiltomar Martins Oli-
integrantes e sujeitos da desavença apresentada. veira, 2. ed. Belo Horizonte: Líder Cultura Jurídica, 2001.

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2
de projetos
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Justiça Itinerante e/ou Comunitária existentes.

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292

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