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Verso e Reverso, XXV(58):62-77, janeiro-abril 2011

© 2011 by Unisinos - doi: 10.4013/ver.2011.25.58.07


ISSN 1806-6925

Constituição do Campo da Comunicação

Constitution of the Communication Field

José Luiz Braga


Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos, 950, Cristo Rei, 93022-000, São Leopoldo, RS, Brasil
jbraga@unisinos.br

Resumo. O artigo procura explicitar pontos Abstract. The article seeks to clarify key points to
principais para uma caracterização do campo de characterize the field of communication studies – its
estudos em Comunicação – sua possível constitui- possible formation as a discipline of knowledge, the
ção como disciplina do conhecimento; a questão da question of interdisciplinarity; perspectives related
interdisciplinaridade; perspectivas referentes aos to the objects of study, emphasizing the angle of
objetos de estudo, dando ênfase ao ângulo “in- “social interaction” and the theme of “media”; the
teração social” e ao tema “mídia”; o problema do problem of sharing the study of communication
compartilhamento do estudo sobre os fenômenos phenomena with other humanities and social
comunicacionais com as demais ciências humanas e sciences, the question of the constitution of the
sociais; a questão da constituição interna do campo, field, in its internal diversity, and the relationship
como explicitação de sua diversidade; e as relações between the phenomenon and sociocultural
entre o fenômeno e os contextos socioculturais. Cada contexts. Each of these aspects is addressed in two
um desses aspectos é abordado em dois momentos stages – as perceived in the first article appeared,
– conforme percebidos na primeira publicação in 2001, and notes included now, seeking to clarify
do artigo, em 2001; e em anotações atuais, que further perceptions occurring in the period.
procuram explicitar reflexões complementares
ocorridas nos dez anos de intervalo.

Palavras-chave: Campo da Comunicação, epistemolo- Key words: Field of Communication, episte-


gia, sociologia do conhecimento. mology, sociology of knowledge.
José Luiz Braga

Situando mem e sua Sociedade (como a História, a Socio-


logia, a Literatura, a Educação, as Artes, a An-
No início de 2011, a revista Verso e Reverso tropologia, os estudos da Linguagem, a Ciência
me consultou sobre o interesse em republicar Política, a Literatura, a Psicologia, etc.).
este artigo, para possibilitar sua presença on- Também de modo preliminar, queremos
line no periódico – uma vez que a publicação adotar a posição expressa de recusar uma ex-
inicial é do tempo em que a revista saía apenas plicação do Campo da Comunicação situando-
em papel. o como um “campo interdisciplinar”.
Fiquei naturalmente satisfeito com a possi- O conceito de interdisciplinaridade pode
bilidade. Lembrando os dez anos passados da significar duas coisas: a primeira corresponde
primeira publicação, pensei rever a formula- à percepção de que um campo de estudos hoje
ção para ajustes e atualizações. Percebi, porém, se vê inevitavelmente atravessado por dados,
que tal revisão pediria uma elaboração muito conhecimentos, problemas e abordagens con-
modificada. Como ainda mantenho o essencial cebidos e desenvolvidos em outras disciplinas
das perspectivas então expostas, uma alterna- e/ou tecnologias. Nesse caso, todos os campos
tiva me pareceu mais completa. O artigo con- de conhecimento são “interdisciplinares”, ou
serva a formulação original, acrescentando-se seja, não têm existência isolada, estanque. As-
após cada item anotações atuais em comple- sim a Física com relação à Matemática ou à
mento ou revisão. Química, por exemplo; a Biologia com relação
à Química e a Física; ambas com relação à En-
Preliminares genharia; etc.
Um segundo sentido é o da referência a um
À expressão “construção” do Campo da Co- espaço nítido de interface, em que um deter-
municação, prefiro o termo “constituição” do minado âmbito de conhecimentos se faz na
campo, porque neste comparecem dois senti- confluência de duas ou mais disciplinas esta-
dos complementares relevantes para o nosso belecidas – por exemplo, a Psicossociologia, a
tema: o constituir-se enquanto processo de Sociologia Jurídica, a Bioquímica.
elaboração do campo – a construção propria- No primeiro sentido, a denominação enfá-
mente dita; e a organização interna da coisa, tica para a Comunicação como campo inter-
que assim a constitui. disciplinar é óbvia e redundante, logo ociosa.
Preliminarmente creio ser relevante adotar- No segundo caso, seria preciso estudar o con-
se a posição decidida de que é ocioso debater junto específico de disciplinas, com seus for-
sobre o estatuto acadêmico do Campo da Co- necimentos e preocupações específicas que es-
municação – se de ciência, arte, disciplina, ou tariam compondo a interface interdisciplinar;
apenas um gênero de literatura. O que parece e sobretudo as vinculações e encadeamentos
importar é a constatação inarredável, na pre- que fazem interagir estes fornecimentos – o
sente situação histórico-social, da objetivação que nos parece bastante difícil de se capturar
de um espaço de estudos, reflexões e pesquisa enquanto características constituintes básicas do
percebidos largamente como relevantes, espa- Campo da Comunicação.
ço este que, ao ser nomeado pelo termo “Co- Entretanto, parece-nos que é em um ter-
municação” ou pela expressão “Comunicação ceiro sentido (vago e pouco refletido) que a
Social”, encontra forte consenso quanto ao de expressão é freqüentemente usada em sua
que se está falando – ainda que o contorno e a “explicação” do que seja o Campo da Comu-
organização interna desse espaço estejam lon- nicação. É como se este fosse uma espécie de
ge de ser consensuais. terreno vazio, sem outra existência senão pelo
A denominação confortável a que chega- fato de que todas as disciplinas humanas e
mos atualmente para nos referirmos a este es- sociais tivessem alguma coisa a dizer sobre o
paço – Campo da Comunicação – tem servido tema. E como o tema aparece nelas todas, seria
adequadamente a todos os nossos propósitos possível às vezes se encontrar para trocar seus
práticos de designação. pontos de vista específicos. De certa forma é
Não há dúvida também de que este espaço o que diz a metáfora de Wilbur Schramm – a
de preocupações encontra lugar adequado (e Comunicação é uma encruzilhada pela qual
diferenciado, embora evidentemente não es- muitos passam e poucos permanecem.
tanque) no conjunto de estudos que compõem Além do absurdo lógico de que o espaço de
a vasta abrangência das preocupações com o encontro é o vácuo, o que não fica explicado
desenvolvimento de conhecimento sobre o Ho- nessa perspectiva é por que, de repente, há um

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tema que se torna de interesse tão generaliza- adoção do valor da diversidade se compõe
do e com tal acuidade que não consegue mais adequadamente com o interesse em desafios e
efetivamente caber nos espaços de cada campo tensionamentos mútuos entre diferentes ângu-
particular ou de algumas interfaces bem cons- los de investigação. Assim, a questão deixa de
truídas. Note-se que outros temas ocupam ser uma alternativa “sim/não” para o concei-
igualmente o interesse de várias disciplinas – to de “disciplina”, passando a se caracterizar
por exemplo – a violência, o trabalho, o sexo, o como uma necessidade de desenvolvimento
discurso, a tomada de decisões. Em várias dis- dos conhecimentos produzidos – a partir de
ciplinas, esses temas surgem e simplesmente qualquer preferência “classificatória”. Ver, so-
se encaixam na ordem de preocupações domi- bre essa questão Braga (2010b).
nantes de cada campo, aí bem integradas. Ou
seja, ainda que transversais a vários campos, (b) Interdisciplinarismo
estes diversos temas são facilmente subsumi-
dos ao ângulo de interesse de cada disciplina. A questão do “interdisciplinarismo” arre-
No diálogo entre uma disciplina e outra, são feceu bastante, na década. A questão que se
essas angulações específicas que são cotejadas coloca hoje é justamente a de perceber as ar-
para ampliar o enfoque. ticulações entre o campo da Comunicação e
outras áreas – o que se espera de cada lado da
Anotações atuais interface.
No artigo de 2001, recusávamos um as-
(a) Disciplina ou Campo pecto específico da pretensão de “interdisci-
plinaridade” do campo – que era justamente
Talvez estejamos, hoje, mais próximos de o uso dessa perspectiva para “explicar” o que
uma “disciplina do conhecimento”. Por outro seriam esses estudos e para justificar sua dis-
lado, não se trataria de uma disciplina “como persão. Essa explicação era, na verdade, mais
as outras” – que embora já não sejam carac- que a defesa de uma visão frouxa dos estudos,
terizadas por um critério positivista, têm uma dispensando-os do cotejo entre diferentes vi-
história de criação em termos de “objeto & mé- sadas. Não tenho percebido, nos últimos anos,
todo”. No comentário do item Compartilha- nenhuma proposição nesse sentido. E hoje já
mentos práticos assinalaremos o que seria, em não se aceita que “qualquer coisa” possa ser
nossa perspectiva, um critério razoável para alegada como um estudo de comunicação.
caracterizar “disciplinas” em termos atuais, Afastada essa perspectiva frouxa, pode-
entre elas, a possibilidade da Comunicação. mos nos dedicar, com muito mais seriedade,
De todo modo, a questão já não se põe como a uma questão duplamente interessante, que
há dez anos. Podemos assumir uma “discipli- é o trabalho de interfaces. Este corresponde a
na” em processo de constituição – sem para um verdadeiro e efetivo trabalho de interdisci-
isso pretender ou exigir um delineamento plinaridade – desde que se leve a sério a busca
teórico abrangente ou positivista. Nenhuma dos enfoques comunicacionais.
das Ciências Humanas e Sociais que se cons- Temos aí um âmbito relevante de estudos
tituíram em tais termos (objeto teorizado mais com potencialidade para produzir avanços do
método) podem hoje se afirmar unificadas sob conhecimento sobre fenômenos comunicacio-
esse critério. nais. Temos também um espaço de desafios
O que distingue uma disciplina de conhe- especiais para nossa área, pois o “outro lado
cimento social, hoje, é sobretudo uma tradição da interface” – uma área de conhecimento
constitutiva de um ângulo especial para olhar mais estabelecida – fornece teorias e perspec-
a sociedade. Esse ângulo não é rigidamen- tivas necessárias, mas arrisca também absorver
te unificado, mas sim comporta variedades, a atenção do pesquisador, por suas teorias e
preferências diversas. Todas as CHS apresen- objetos mais tradicionalmente delineados.
tam espaços indefinidos, transições entre sua Muitas pesquisas da área ocorrem nessas
caracterização como “disciplina” e interfaces, interfaces – Comunicação e Política, Comu-
reflexão praxiológica e perspectivas de ordem nicação e Educação, Comunicação e Cultura;
prática. O campo acadêmico, em geral, é atra- Comunicação e diversas questões sociológicas,
vessado por essas diferentes transições. linguísticas, antropológicas, etc. Em todas estas
Por outro lado, o desafio da consolidação áreas de pesquisa, uma questão se põe como
se põe também para os que defendem a in- fundamental para assegurar possibilidades de
validade de uma configuração disciplinar. A avanço de conhecimento em Comunicação e de

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contribuição comunicacional para as CHS: o que relatamente, a expressão de subárea ou de se-


há de comunicacional nessa interface? Quanto a tor possível de pesquisa. Até porque qualquer
esse aspecto, ver Wilson Gomes (2004). tentativa desse tipo de redução encontra ime-
Com base nessa pergunta, consideramos diata resistência das áreas excluídas ou margi-
que os estudos de interfaces podem ser, em nalizadas – e eventualmente tentativas opostas
vez de um espaço de dispersão (com tendia a e simétricas de exclusão.
acontecer até os anos 90) um espaço de traba- Outro problema parece ser o de evitar so-
lho construtivo do conhecimento comunica- breposições com outras áreas de estudos mais
cional (Braga, 2004). tradicionalmente estabelecidas. Desde que se
se afasta de uma posição holista em direção
A questão do objeto a uma preferência mais “especializada”, este
ângulo especializado do objeto parece ser já
Depois daquelas preliminares, o primeiro espaço de observação de outra área, a linguís-
problema que assombra o pesquisador em Co- tica, a sociologia, a política, a economia, etc.
municação, preocupado em perceber a área em Entretanto, as duas tendências acima são
que trabalha – para se situar com alguma iden- apenas casos extremos. Identificamos duas
tidade acadêmica – é a de caracterizar, afinal, outras possibilidades, menos radicais em suas
qual é o objeto de conhecimento que a define. decisões de abrangência, e que ajudam a orga-
Duas primeiras alternativas ou tendências nizar nossa reflexão.
parecem se apresentar aqui. Ou a Comunica- Uma delas é a proposta de que o objeto da
ção surge como uma questão tão ampla, tão Comunicação é toda e qualquer “conversação”
difusa, tão presente em todas as atividades do espaço social. Ou melhor: o que há de pro-
humanas – que o objeto é de certo modo ina- priamente “conversacional” e de troca (sim-
preensível, e conclui-se que “tudo é comuni- bólica e de práticas interativas) nas diversas
cação” – a política, a educação, a literatura, as instâncias e situações da vida social. Em contra-
artes, e uma lista infinda em que se pretendes- posição a esta visão da comunicação generali-
se abarcar a ação humana e social. O holismo zada (mas ainda com ênfase nos processos co-
desta perspectiva parece crescentemente se municacionais – de trocas simbólicas e práticas,
confirmar pela presença recorrente da questão portanto) uma preferência mais circunscrita,
comunicacional nas mais diversas áreas de co- enfocando apenas o que ocorre nos “meios de
nhecimento e das práticas humanas. comunicação social” (MCS ou mídia).
Esta postura, talvez válida em um ângulo Já não estamos mais, aqui, nos extremos das
filosófico, não deixa entretanto margem para duas alternativas iniciais – não parece haver
uma pesquisa que se pretenda identificável. A holismo nem reducionismo, mas efetivamente
comunicação, espalhando-se como objeto por tentativas de recorte, com diferentes graus de
todas as áreas, estando em todas as pautas, abrangência. Cada uma destas duas possibili-
não está em nenhum lugar. dades apresenta vantagens e problemas.
A existência concreta e histórica de grupos A definição da área pelos meios oferece o
e instituições que se dão como voltadas espe- risco de segmentação do objeto em questões
cialmente para o estudo da comunicação, não tecnológicas, ou jurídico-políticas, ou expres-
permite adotar como identificação esta pers- sivo-interpretativas, ou outras. De fato, con-
pectiva holista. A tendência inversa, então se forme o pesquisador venha de uma outra área
coloca: a de escolher, de selecionar ângulos e humana e social mais constituída, tende a es-
objetos específicos identificadores da área. colher apenas um destes ângulos, mais avizi-
Esta segunda opção costuma esbarrar em nhante com seus saberes e processos.
alguns problemas, entretanto. Um deles cor- Mesmo quando reunimos múltiplos ân-
responde ao fato de que tentativas deste tipo gulos pelos quais os MCS se manifestam, fica
facilmente caem em um reducionismo “lógi- uma certa sensação de que outros processos
co”. Tenta-se identificar o núcleo do campo sociais, que não comparecem em relação de
com nossas preferências pessoais ou grupais contiguidade imediata com a mídia, estariam
de enfoque, banindo outras perspectivas à pe- nos escapando à observação e portanto ao tra-
riferia ou ao espaço externo ao campo. Como balho do conhecimento.
nenhuma dessas tentativas “setorializantes” Consideradas estas limitações, preferimos,
obteve até o momento o menor sucesso de no presente artigo, examinar mais detidamen-
consensualidade, cada uma delas permanece te as possibilidades e dificuldades de adoção
sendo o que é: apenas uma preferência e, cor- da perspectiva contraposta.

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Anotações atuais mediação cotidiana do conjunto das relações


sociais, da difusão das idéias e da formação das
Creio que a questão do objeto passou a ser condutas que têm lugar na sociedade” (Rüdi-
considerada menos crucial – pelo menos nos ger, 1998, p. 16). É uma excelente síntese do que
termos em que nos parecia posta no final dos constituiria, em essência, o nosso objeto.
anos 90 e início dos 2000. Uma confusão fre- O termo “conversação” tem a vantagem de
quente, então – possivelmente em decorrência não se confundir com qualquer outro tipo de
da cobrança (embora formalmente recusada) interação social. A expressão “conversar” cha-
de “objeto e método” como critério discipli- ma a atenção imediatamente para o aspecto de
nar – levava a pensar em “temas” mais que em troca comunicacional (ainda que o objeto de uma
“problemas comunicacionais”, como se aque- “conversa” possa ser de diversas naturezas –
les devessem ser caracterizadores. econômica, política, militar, científica, ou sen-
Ora, em uma disciplina constituída, como sual). Os modos e objetivos específicos são dei-
por exemplo a Sociologia, é possível pensar xados em segundo plano, e a palavra enfatiza a
em sub-áreas temáticas de especialização, sem troca e o fato de que essa troca é uma comunica-
que isso atrapalhe a percepção de critérios de ção. Poderíamos assim dizer que o objetivo e o
conhecimento – sociologia do trabalho, socio- objeto do Campo de Estudos em Comunicação,
logia da comunicação (significando “das mí- de modo quase tautológico, é observar como a
dias”). Não é o tema que assegura pertinência, sociedade conversa com a sociedade.
mas a visada sociológica posta sobre este. Por outro lado, aceitando o conceito, faremos
Não cabe, porém, pensar um campo de es- uma ressalva no que se refere à escolha da pala-
tudos coerente apenas em termos temáticos. vra para dizê-lo. As expressões “conversação”
E se essa coerência não for procurada, como e “conversa” tomam como metáfora e ampliam
justificar a presença de uma formação pós-gra- para o espaço social amplo o que ocorre entre
duada com esse enfoque, no país? pessoas em situação presencial. Isso traz pro-
Minha contraposição, no artigo, entre “mí- blemas – porque estimula uma perspectiva de-
dia” e “interações”, faz ambas parecerem obje- terminada por um modelo dialógico-simétrico-
tos temáticos – visada a ser, portanto, supera- alternado-recíproco de comunicação – modelo
da. Como me parece claro, hoje, que o objeto que não se justifica em instâncias mais comple-
da Comunicação não pode ser apreendido en- xas e diversificadas. Preferimos então utilizar
quanto “coisas” nem “temas”, mas sim como a expressão “interação social” (ou, quando ne-
um certo tipo de processos epistemicamente cessária maior explicitação, “interação comuni-
caracterizados por uma perspectiva comunica- cacional”), ou ainda simplesmente “interação”
cional – nosso esforço é o de perceber processos – abrangendo, mas não se restringindo àquelas
sociais em geral pela ótica que neles busca a dis- trocas do modelo alternado-recíproco.
tinção do fenômeno. Que se busque capturar Uma maneira (intuitiva e não “definido-
tais processos e suas características nas mídias, ra”) de referir-se à interação comunicacional
na atualidade, nos signos, em episódios intera- é considerar que se trata aí dos processos sim-
cionais – não faz tanta diferença. O relevante é bólicos e práticos que, organizando trocas en-
que nossas conjeturas sejam postas a teste por tre os seres humanos, viabilizam as diversas
sua capacidade para desvelar e explicitar os ações e objetivos em que se vêem engajados
processos que, de um modo ou de outro, resul- (por exemplo, de área política, educacional,
tem em distinção crescentemente clara sobre o econômica, criativa, ou estética) e toda e qual-
que se pretenda caracterizar como “fenôme- quer atuação que solicita co-participação.
no comunicacional” relacionado aos temas e Mas também o que decorre do esforço huma-
questões de nossa preferência. no de enfrentar as injunções do mundo e de
desenvolver aquelas atuações para seus obje-
Ângulo “interação social/ tivos – o próprio “estar em contato”, quer seja
comunicacional” solidário quer conflitivo – e provavelmente
com dosagens variadas de ambos; por coor-
Francisco Rüdiger, preferindo a perspecti- denação de esforços ou por competição ou
va abrangente que estamos aqui examinando, dominação.
refere o objeto de uma teoria da Comunicação Esta perspectiva pode ser efetivamente útil
como sendo a “conversação” da sociedade. Ci- para dar foco ao objeto de nossa preocupação e
tando Gabriel Tarde, desenvolve a proposição especificidade com relação às demais discipli-
de que a conversação constitui “uma espécie de nas humanas e sociais. Esta especificidade não

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significa entretanto que as interações sociais referem sobretudo a quatro ordens de reflexão.
(comunicacionais) não seriam tematizadas nas (i) a presença, com altíssima freqüência em
demais disciplinas – na verdade, desde o início nossos programas de pós-graduação, em
do século XX, percebe-se em todos os campos nossa produção publicada, em nossas pes-
do conhecimento humano e social uma cres- quisas e na história da construção do cam-
cente conscientização de que seus processos po, justamente da mídia que a alternativa
comunicacionais devem ser estudados. “geral” (interacional) procura recusar en-
A diferença parece ser que em todas as de- quanto objeto específico;
mais áreas observa-se a comunicação enquan- (ii) a questão do compartilhamento prático dos
to processo que faz funcionar alguma outra estudos – ou seja: desde que todas as áreas
atividade ou instância de interesse social-hu- de conhecimento humano e social abordam
mano – a literatura, a linguagem, a política, as a questão comunicacional, a “distribuição”
trocas econômicas, etc. No campo específico entre – e a “contribuição” dos – diferentes
da Comunicação, inversamente, os diferentes campos de estudo não parece poder ser de-
objetivos e objetos do humano e do social é finida apenas por aquela solução abstrata
que seriam percebidos pelo ângulo prioritá- referente ao ângulo de enfoque principal.
rio da comunicação que os organiza e que de- Ou ainda: na prática das pesquisas não
les decorre. percebemos uma distinção rigorosa no que
Assim, nas demais áreas de conhecimento, se refere ao ângulo preferencial;
ou a comunicação é observada sem ser pro- (iii) a questão da constituição interna do cam-
blematizada; ou então é problematizada em po, que não se faz a partir de proposi-
função dos interesses específicos da área. No ções abstratas ou de gestos epistemológi-
Campo da Comunicação, todo e qualquer fato cos formalizados, mas sim da prática da
humano seria problematizável no ângulo comu- pesquisa; mas que deveria poder ser de
nicacional. algum modo relacionada ao ângulo pro-
O que significa objetivar, destacar e proble- posto para que este possa ser visto como
matizar a dimensão comunicativa dos diver- produtivo;
sos procedimentos humanos – na política, na (iv) a questão de, ao ultrapassar as frontei-
educação, na produção científica, na criação ras facilmente demarcadas do território
artística, no intercâmbio cultural? Não se trata “meios de comunicação”, como evitar uma
apenas de perceber que as pessoas se engajam confusão (observada em alguns estudos)
nestas atividades e processos “conversando”, entre comunicação e cultura. Um exemplo
“se comunicando”. Tratar-se-ia, antes, de pro- dessa imersão do comunicacional no cul-
curar perceber o quê – nestes processos especi- tural são alguns trabalhos em torno das
ficados por seus modos e objetivos sociais – é mediações, a partir de J.-M. Barbero. Ao
entretanto inerente não a estas especificações, passar dos meios às mediações, às vezes o
mas resultante de (ou referente a) processos que parece haver de propriamente comu-
mais amplos de trocas simbólicas e de inte- nicacional nas relações dos usuários com a
rações que sobre-determinam o que aí se faz. mídia parece se diluir no “cultural”
Ou, em corolário, procurar perceber como tais
ações específicas outras sobredeterminam os Anotações atuais
processos de comunicação aí envolvidos.
Na perspectiva exposta nos comentários ao
* * * item sobre o objeto, mantenho a preferência
Como perspectiva geral, parece ser efeti- pela questão “interações”, que venho desen-
vamente possível adotar esta posição sobre o volvendo, sobretudo porque essa questão me
objeto do campo – que oferece ao mesmo tem- parece se apresentar como âmbito processual
po um ângulo de especificidade e uma solução relevante na ocorrência de episódios comuni-
razoável (embora um tanto abstrata e ampla) cacionais.
para justificar e distinguir a presença do tema Essa preferência não exclui temas ou obje-
“comunicação” no nosso campo e em todos os tos – apenas se demarca como “ângulo de en-
demais sem cair na atitude holista acima referida. trada” promissor para conjeturas, perguntas
Entretanto alguns problemas decorrem des- e pesquisa empírica. De modo próximo, me
ta perspectiva, que devem ser abordados para interesso por “midiatização”, mais que pro-
que se possa verificar mais acuradamente sua priamente por “mídias” (ver adiante, no item
possibilidade de eficácia. Estes problemas se Centralidade da mídia), pois esse conceito

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enfatiza expressamente processos segundo os mos que circunscrever nosso objeto com exclu-
quais “as mídias funcionam”, mas também pe- sividade ao que aí se passa.
los quais a sociedade contemporânea histori- A primeira razão é que os meios de comu-
camente aciona suas interações. Ou seja: a mi- nicação audiovisual são o fenômeno sócio-his-
diatização como processo comunicacional da tórico que permitiu perceber, objetivar e pro-
sociedade, mais que como “ação das mídias” blematizar os processos comunicacionais em
sobre a sociedade. perspectiva destacada (ou seja, deixando de
A questão da interação social vai além da ser apenas um componente de outras perspec-
metáfora conversacional, como já assinaláva- tivas e objetivos sociais e de conhecimento).
mos no artigo. A conversação enfatiza os pro- Foi preciso uma presença mediática “obje-
cessos de ida-e-volta, na troca entre interlocu- tivada” no espaço social para que a socieda-
tores. A ideia de “resposta” é percebida como de se perceba “conversando” consigo mesma.
um retorno imediato ao ponto de origem da Antes disso, era possível e fácil a sociedade
primeira contribuição conversacional. perceber (objetivar) determinados ângulos de
Na sociedade em midiatização, a interação interação comunicacional, subsumidos a uma
se manifesta mais claramente como um fluxo questão qualquer – por exemplo: o trabalho
sempre adiante. Com a emissão de uma men- de convencer pela palavra enquanto retórica
sagem, seja televisual, cinematográfica ou por e argumentação; a reflexão sobre a produção
processos informatizados em rede social, o “re- de efeitos poéticos; os modos pelos quais o ser
ceptor”, após apropriação de seu sentido (o que humano faz interagir sua psique com o mundo
implica a incidência das mediações acionadas), social que o cerca; etc.
pode sempre repor no espaço social suas inter- Uma vez aflorado o objeto (percebido,
pretações. Isso ocorrerá seja em presencialidade constituído, problematizado) ele não depende
(em conversações, justamente), seja por outras mais das condições de sua constituição – pode-
inserções midiatizadas – cartas, redes sociais, mos refletir e discutir sobre o que eram as in-
vídeos, novas produções empresariais, blogs, terações sociais comunicacionais há 3 séculos
observatórios, etc. Os circuitos aí acionados – ou três mil anos atrás. Ou seja: os MCS teriam
muito mais abrangentes, difusos, diferidos e sido condição de percepção e de objetivação,
complexos – é que constituem o espaço das res- mas não de constituição do objeto.
postas “adiante” na interação social. Antes do afloramento não só a sociedade
Uma parte de tais encaminhamentos certa- conversava consigo mesmo, como é óbvio;
mente voltará, transformada, às origens onde foi mas isto sempre foi percebido – em suas con-
emitida a mensagem – tomada como “inicial” versas setoriais, suas práticas sociais e sua re-
apenas para efeito de raciocínio. Na verdade a flexão – como educação, política, religião, ci-
circulação é constante. Uma parte dos processos ências, artes, economia, literatura. E aí sempre
aí ativados se torna então abrangentemente social subsumido aos objetivos e ângulos específicos
– propiciando esse retorno “modificado” e difuso. destas práticas e reflexões.
Como se percebe, esse processo, que pode- Uma segunda razão para a centralidade da
mos denominar de “fluxo comunicacional de mídia dentro do objeto “interação social” é a
circulação adiante”, não mantém semelhanças importância dos MCS como processo comuni-
com a referência “conversacional” que justi- cacional e de produção de sentidos comparti-
fiquem a metáfora. As conversações interpes- lháveis na sociedade contemporânea.
soais – em presença ou por rede – são apenas Pela primeira vez na história, uma socie-
parte possível do processo geral. dade se dotou de um vasto aparato tecnoló-
gico-empresarial-cultural-profissional-mítico
A centralidade da mídia voltado especificamente para (ou proposto
expressamente como sendo para) veiculação
A questão aqui é conseguir fazer conviver de mensagens e para a produção de efeitos de
uma perspectiva ampla sobre o comunicacio- fruição estética ou de entretenimento. Ao mes-
nal (enquanto estudo da “conversação social”) mo tempo, por sua dimensão, complexidade e
– que não o restringe ao que se passa na mídia diversidade de ações e poder intrínseco, este
– com a importância evidente dos processos aparato não pode ser visto como inteiramente
mediáticos nos estudos do campo acadêmico a serviço de uma outra determinada ordem de
da Comunicação. objetivos e processos sociais.
Existem algumas razões, creio, para perce- Isto significa que uma importante parte
ber a importância nuclear da mídia – sem ter- (em quantidade e relevância) do que se co-

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munica na sociedade contemporânea ocor- • e o mediático interfere e interage pro-


re através dos meios de comunicação. Cer- fundamente com os espaço não-mediá-
tamente incluo aí não somente os grandes ticos, em função de suas características
meios audiovisuais e informáticos, mas tam- de inclusividade e de penetrabilidade.
bém o jornal, o livro e toda e qualquer forma
de publicação impressa. É este conjunto de fatores que nos permitem
A terceira razão da importância da mídia afirmar que hoje vivemos em uma “sociedade
(além de ter sido o fenômeno estimulador/ge- de comunicação” ou “sociedade mediática”.
rador da percepção e problematização deste Dados estes argumentos, seria talvez pos-
ângulo, e da forte presença do mediático nas sível pretender que funcionam a favor da hi-
interações sociais contemporâneas) é o fato pótese de tomar os meios de comunicação di-
de que se trata de um fenômeno que põe em retamente como objeto do Campo. Entretanto,
causa modos habituais de conversação social é preciso assinalar que os MCS são apenas o
– que se fazia e se faz dentro de outros espa- fenômeno empírico – e como tal não corres-
ços organizados de funcionamento social; e do pondem propriamente a um ângulo ou preo-
trabalho acadêmico de iluminar e desvendar a cupação de busca de conhecimento. Portanto
sociedade: política, educação, artes, economia, sobre eles volta-se também, de pleno direito,
produção cultural, interações culturais. o olhar das demais áreas humanas e sociais.
Isso ocorre em função de duas característi- Para a área da Comunicação, não se trata de
cas que encontramos em todo aparato mediá- uma ênfase apenas no sistema jurídico-político
tico: a inclusividade e a penetrabilidade. Faço da mídia; nem apenas no sistema tecnológico;
aqui a transcrição direta de um trecho de um nem apenas no sistema profissional de produ-
artigo meu, anterior, no qual abordo estas ca- ção; nem apenas no conjunto de produtos e na
racterísticas: fortuna expressiva aí elaborada; nem apenas
nas circunstâncias da recepção que lhes é ofe-
Os novos recursos áudio e/ou visuais incluem recida. Qualquer destes enfoques, se exclusi-
(no sentido de captar, adicionar, subsumir) tudo vo, tende a segmentar o objeto e isolá-lo, seja
o que, em termos de som e/ou imagem possa ser de sua realidade social, seja de sua substância
representado. Ao fazer isto, adicionam também os
significativa, seja das suas condições de exis-
processos do espaço social registráveis por seus
equipamentos.
tência e produção. Trata-se de ver (em qual-
A inclusão de processos (e não apenas de “ob- quer dos pontos das relações de fluxo entre
jetos”) desenvolve já uma segunda característica estes elementos e processos), a interação social
dos meios. Ao adicionar processos, estes são in- comunicacional em funcionamento, com seus
evitavelmente modificados no espaço da inclusão objetivos, processos e tensões plurais.
- em pelo menos dois sentidos: o resultado final da Por outro lado, a perspectiva da “intera-
objetivação (da produção) é um processo modifi- ção social ampla” tomada como objeto não
cado em formas, ritmo, duração, perspectiva, in- nos impede de dirigir o olhar, com enfoque
terpretação; e o próprio processo, no espaço real, muito direcionado sobre a mídia, na observa-
recebe solicitação de modificações para “se ajus-
ção de um fenômeno recortado, para os pro-
tar” ao olhar/ouvido dos equipamentos.
Para esta característica dos meios, proponho a de- pósitos da pesquisa, como um fragmento da
nominação de penetrabilidade – o meio/processo realidade social (o sentido de um produto, as
de comunicação penetra nos processos sociais, vicissitudes de uma recepção, uma rotina de
modificando-os em função de seus próprios mo- produção, o funcionamento jurídico-político
dos operatórios (Braga, 1999, p. 132). de um sistema de comunicação ou a distribui-
ção de freqüências em um país). O que reúne
Temos então três razões para a centralidade e dá consistência a estas diversas observações
da mídia nas pesquisas da área: não é que tenham como objeto empírico um
• a presença dos meios audiovisuais via- determinado fenômeno ou processo mediáti-
bilizam a percepção histórica do “comu- co – mas sim que, em todos eles, estaremos
nicacional” como questão diretamente observando sua relação com (incidência sobre
problematizável; e/ou conseqüência para) as interações sociais.
• nas comunicações sociais hodiernas, o Isto permite examinar o fragmento sem des-
aparato mediático geral (incluindo a tacá-lo das relações que entretém – sem dua-
escrita publicada) tem uma importân- lismo, portanto.
cia primordial entre outras interações Nossa perspectiva então comporta a forte
extra-mediáticas; presença da preocupação com os processos

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Constituição do Campo da Comunicação

mediáticos enquanto fenômeno histórico e Tal reflexão, acredito, corresponde a supe-


social, na sociedade contemporânea e como rar a disjunção entre os dois “objetos” cote-
objeto principal de nossas preocupações de jados no artigo, mídia e interação. Essa pers-
pesquisa – mas não exclui outros objetos des- pectiva, naturalmente, nos leva a propor uma
de que neles se dê como enfoque principal a “continuidade” entre os processos comunica-
questão das interações comunicacional que os cionais da midiatização e os processos de co-
caracterizam. municação mais distantes do “midiatizado”.
Na sociedade contemporânea, seria difícil
Anotações atuais fazer um corte nítido entre fenômenos comu-
nicacionais da processualidade midiatizada e
Considero agora que o uso enfático da pa- fenômenos comunicacionais outros, diversa-
lavra “mídia” leva a equívocos. A expressão mente inscritos no fluxo comunicacional.
tende a sublinhar aspectos temáticos do ob-
jeto, relacionando a palavra a duas referên- Compartilhamentos práticos
cias materiais – seja a “mídia-empresa”, seja
a “mídia-tecnologia”, como se o simples fato A questão aqui é a de como desentranhar o
de tematizar tais objetos pudesse caracterizar objeto “comunicação” e lhe dar identidade no
um campo de estudos, quando na verdade tais campo, não confundida com os papéis específi-
“objetos” podem ser tema de estudo e pesqui- cos atribuídos pelas demais disciplinas parti-
sa por quaisquer das CHS. culares. Como assinala Luiz Cláudio Martino,
Adotando a expressão “midiatização”, se-
remos mais exatos, pois a expressão faz ressal- a natureza dos estudos em Ciências Humanas
tar os processos comunicacionais envolvidos. – que têm no homem um ser essencialmente
Certamente é um fato histórico que as so- comunicativo, seu objeto comum – faz com que a
análise dos processos comunicativos seja um pon-
ciedades contemporâneas acionam crescente-
to de passagem quase obrigatório, o que dificulta
mente tecnologias midiáticas para acionar e a delimitação mais precisa do objeto da Comuni-
fazer circular suas necessidades e interesses cação, uma vez que ele se encontra misturado às
de interação. É claro, também, que as ques- análises de outras disciplinas (2001, p. 78).
tões tecnológicas e as referentes aos processos
industriais/empresariais estruturam grande A clivagem geral e abstrata já foi exposta
parte desse uso. Mas a questão abrangente, acima: trata-se de distinguir primeiro a pre-
em nossa perspectiva, se reporta aos modos sença do ângulo “interação comunicacional”;
sociais de circulação que aí são inventados e e em seguida, verificar se este ângulo é que
produzem seus efeitos sociais. Tais processos comanda o olhar ou se está subsumido aos ob-
não são inteiramente determinados por causas jetivos prioritários de outras disciplinas. Mas
outras que fizessem do fenômeno comunica- esta proposição abstrata é insuficiente, pois as-
cional mero epifenômeno – percebemos lógi- sumimos que o que comanda a construção do
cas internas no processo comunicacional. campo não é um gesto teórico-epistemológico,
Nessa linha, podemos entender a midiatiza- e que as práticas do campo social da pesquisa
ção como um conjunto complexo de ações de so- é que oferecem substrato histórico.
ciedade (incluindo aí, é claro, a organização em- Há duas questões de partilha e seleções:
presarial e o desenvolvimento tecnológico) que
crescentemente se estabelecem como processo (a) decidir o que pode ser melhor estuda-
interacional de referência, passando a abranger e do a partir de paradigmas, métodos,
direcionar os processos gerais anteriores: os da teorias e pontos de vista de outras disci-
escrita, que anteriormente (e ainda) se apresen- plinas particulares; em contraste com o
ta como processo de referência principal, sub- que pode ser melhor percebido no cam-
sumindo a generalidade de processos; e os da po dos estudos em Comunicação;
oralidade tradicional (ver Braga, 2007). (b) decidir – dentro desse espaço indefini-
Claramente, estes moldes interacionais do de sub-temas possíveis – quais são
“anteriores” não desaparecem – ora se reorga- os tipos de objeto mais relevantes e mais
nizam no contexto geral da midiatização; ora urgentes para observar seus processos e
se circunscrevem a espaços especiais restritos produtos de interação.
(como ocorre também com a oralidade no pe-
ríodo da escrita como articuladora mais geral Estas partilhas não serão resultantes de de-
da interação social). cisões lógicas ou de especulações epistemoló-

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011


José Luiz Braga

gicas, mas o resultado histórico das pesquisas Pode-se dizer que o estágio de reflexão
elaboradas, tanto nomeadamente no Campo sobre as questões envolvidas na interação co-
da Comunicação como no campo de discipli- municacional não chegou ainda no ponto em
nas afins, onde o tema prevaleça. que a relevância e a profundidade das desco-
Até o século XX, os grandes meios sociais bertas dependa de um enfoque exclusivo ou
de comunicação (livro - jornal - artes) eram preponderante sobre o que é propriamente
objetos dentro de outros campos em que os “comunicacional”. Assim, muitas descobertas
ângulos gerais eram diversos. Por exemplo, o e elaborações conceituais fundamentais para o
livro na literatura; o livro na educação; o jornal Campo decorrem de perspectivas elaboradas
na política (eventualmente na literatura, como com enfoque outro.
folhetim, como divulgação cultural,...); o rádio É nas idas-e-vindas entre os diversos cam-
igualmente na política. Ou então, eram perce- pos que estamos construindo não um objeto
bidos com foco nas tensões que geravam com interdisciplinar, mas uma percepção crescen-
outros campos (a fotografia com a pintura; o temente complexa sobre o que sejam as intera-
cinema com o teatro, e em geral com o campo ções comunicacionais na sociedade.
das artes). Ou ainda, relacionados a questões O que talvez seja tarefa específica dos PPG
consideradas como “menores” ou circunstan- em Comunicação e dos pesquisadores mais
ciais das atividades sociais: cinema, rádio e te- envolvidos com a identificação do campo, é
levisão enquanto entretenimento. a reflexão continuada no sentido de desentra-
O que observamos hoje é uma diversida- nhar o objeto propriamente comunicacional
de de pesquisas que alimentam a área, vindas dos demais objetos de conhecimento humano
tanto dos PPG nomeadamente de Comuni- e social – os quais, com referência àquele ângu-
cação, como das demais disciplinas sociais e lo preferencial da área, podem ser vistos como
humanas – diversidade de que é um exemplo complementares.
marcante o funcionamento da Compós. O corolário desta tarefa é observar o fun-
Conforme a formação profissional ou a cionamento do que há de comunicacional no
simples preferência pessoal dos pesquisado- campo mesmo das diversas disciplinas hu-
res, o ângulo comunicacional comparece como manas e sociais – e ver como essa diversidade
predominante ou como subsumido – e essa pode ser percebida como “atravessada” por
clivagem nem sempre é relacionada à inserção uma mesma ordem de reflexões que as faz
em um PPG do Campo ou de outra disciplina interessantes de um outro ponto de vista: en-
humana ou social. quanto objetos comunicacionais.
Até onde se pode prever, esse compartilha- Com isto é que se tornará crescentemente
mento ad-hoc e variado continuará preponde- possível desenvolver teorias do campo comu-
rante durante ainda muito tempo. Assim, na nicacional.
partilha prática do ângulo comunicacional, não Por outro lado, voltando ao empírico, é
é possível (nem desejável) sugerir que os “nos- possível que os pesquisadores mais especifica-
sos” PPGs dêem prevalência ao ângulo comu- mente “da área” é que poderão crescentemen-
nicacional nas suas relações com outras pers- te desenvolver estudos midiáticos ao mesmo
pectivas do social; e que os demais espaços de tempo com mais acuidade (dada a presença e a
pesquisa mantenham o ângulo comunicacional freqüência do objeto) e com mais percepção de
apenas como aporte de contribuições vindas de conjunto (ou seja, evitando a fragmentação) –
nossa área e a serviço da “disciplina usuária”. exatamente porque aqui o ângulo interacional,
Tanto em um como em outro espaço, a pes- não tendo que ser subsumido a nenhuma outra
quisa faz surgir novas questões sobre a intera- prevalência, pode vir a produzir teorias gerais.
ção e novas perspectivas para abordá-las. Não A área da comunicação, voltada para as
há ainda (e não importa muito se haverá ou questões próprias da área, deve ser a principal
quando) disciplina fornecedora e disciplina propositora de questões e de problemas “es-
usuária no que se refere a esse ângulo. Ou seja: pecíficos”, além de desenvolvedoras de esfor-
o campo está sendo construído em conjunto ços criativos no sentido de articular, a partir
por pesquisadores de diversas áreas – sem- de seu ângulo preferencial, descobertas e for-
pre que o ângulo interacional comparece com mulações distintas, recebidas de outras áreas
alguma relevância em suas abordagens. Esta especializadas. As demais áreas, na medida de
circunstância não representa “invasão” do que sua formulação anterior de teorias e conceitos,
seria nossa especificidade, nem que nossa área com rigor estabelecido, para seus tipos espe-
se dilua nas demais. cíficos de objeto, por seu lado, provavelmente

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011 71


Constituição do Campo da Comunicação

continuarão ainda longamente a serem princi- hipóteses se apresentando no âmbito de uma


pais fornecedoras de rigor teórico e de substra- pluralidade de campos de conhecimento – ao
tos metodológicos para a pesquisa. mesmo tempo evidenciando sua importância
generalizada para a sociedade.
Anotações atuais Com essa perspectiva, podemos perceber
a complementaridade das duas questões com
Duas questões se complementam, quanto a que abrimos este item. Desentranhar o co-
esse aspecto. Uma delas se refere ao desentra- municacional não corresponde a definir um
nhamento do fenômeno comunicacional dos “território” à parte, nem temas, objetos ou
diversos âmbitos e disciplinas em que este é métodos que nos sejam exclusivos, mas sim
estudado. Trata-se, como abordado no item desenvolver perguntas e hipóteses para além
anterior, de extrair o fenômeno da percepção das que já são feitas pelas demais CHS – que
que as teorias das diversas CHS elaboram, não as farão, porque isso ultrapassaria seu
para percebê-lo menos dependente das ques- âmbito de interesse e as lógicas de seu campo
tões próprias destas disciplinas. de conhecimento.
A outra questão é de certo modo inversa: Isso, por sua vez, é também a contribuição
se dedicamos nosso esforço de pesquisa e teo- que o conhecimento comunicacional pode fa-
rização à construção de perspectivas próprias zer para o conjunto geral em que se inscreve,
para distinguir o fenômeno comunicacional, o das ciências humanas e sociais – a oferta de
é preciso pensar, de nossa parte, sobre a con- perguntas e hipóteses que possam ser então
tribuição que nos incumbe, no conjunto das “importadas” por estas disciplinas para tratar
CHS, para o esclarecimento do fenômeno. do comunicacional a serviço das questões es-
Uma perspectiva de Auguste Comte, no pecíficas que lhes interessam.
seu estudo sobre a constituição histórica das Teríamos aqui, então, o que considero um
disciplinas de conhecimento, apresenta uma critério contemporâneo válido para caracte-
intuição fundante: as primeiras perguntas e rizar uma disciplina: a competência de gerar
hipóteses, referentes a um fenômeno que se perguntas e hipóteses sobre aspectos da rea-
apresenta como questão para um novo conhe- lidade social em perspectiva diferenciada das
cimento, são desenvolvidas no âmbito de uma demais CHS – perguntas e hipóteses que, por
disciplina já estabelecida. Apenas na medida suas perspectivas próprias, estas não farão;
em que estas hipóteses e perguntas ultrapas- mas que podem, por outro lado, em regime de
sem a abrangência de interesse do campo já aproximação interdisciplinar, ser acionadas a
estabelecido, é que se funda um novo âmbito serviço do conhecimento de seus objetos para
de estudos e conhecimento. os quais a interface é relevante.
Com essa perspectiva, Comte propõe a per-
cepção da continuidade histórica que faz deri- A questão da constituição “interna”
var da matemática a cosmologia, desta, a físi- do campo
ca, no âmbito da qual se fizeram as primeiras
perguntas que vieram a configurar a química, Uma primeira clivagem, que se percebe na
onde surgem os problemas de conhecimento observação das pesquisas, ocorre entre os es-
que resultariam na biologia – para finalmen- tudos que enfocam alguma questão especifica-
te desprender-se desta a sociologia (in Alain, mente sobre a mídia; e outros estudos (talvez
1947, p. 295-304). em menor número, mas muito diversificados)
No que essa sequência tenha de esquemá- que abordam outras questões e outros obje-
tico ou de modelização posterior, permanece tos empíricos, extra-mediáticos, em função de
a boa heurística que se apercebe de perguntas componentes comunicacionais (interacionais)
sendo desenvolvidas antes que um objeto cla- aí envolvidos.
ro se configure. Outra clivagem pode também ser referi-
Ora, o que vemos nos desenvolvimentos de da. De um lado, temos um conjunto de estu-
um conhecimento comunicacional é justamen- dos que, por tradição, pelo lugar em que são
te, a partir do século XX, a profusão de ques- desenvolvidos ou então pela tranqüila preva-
tões que se referem, direta ou indiretamente, a lência do ângulo “interação” – são consensual-
esse fenômeno – vago que fosse – em todas as mente aceitos como pertencentes ao Campo da
ciências humanas e sociais. Comunicação de pleno direito e origem (ainda
Peculiaridade, no nosso caso, é essa cir- que lancem mão de teorias e conceitos desen-
cunstância em que vemos tais perguntas e volvidos em outras áreas de conhecimento).

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011


José Luiz Braga

Neste espaço é que encontramos a primeira comunicacional e os diversos ângulos de pre-


possibilidade de “interdisciplinaridade” refe- ocupação e busca das diversas disciplinas hu-
rida no início do artigo – e que em nada reduz manas e sociais.
a identidade do campo, a qual solicita e absor- Considerando a relevância atual da comu-
ve contribuições de outras áreas a serviço de nicação e sua problematização generalizada,
seu ângulo específico. estes espaços de interface seriam tantos quan-
De outro lado, encontramos estudos que ni- to fossem as disciplinas e atividades humanas
tidamente se fazem na fronteira entre os objetos identificáveis como campos de conhecimento
de preocupação do campo e os objetivos de ou- ou do fazer social. Entretanto, para efeitos prá-
tras disciplinas humanas e sociais. Aqui ocorre ticos, no documento referido achamos perti-
a segunda possibilidade de comparecimento de nente fazer agregações amplas. Temos assim:
interdisciplinaridade referida na introdução –
espaço em que facilmente se podem perceber Comunicação e Cultura
os relacionamentos que fazem interagir os for- Comunicação, Arte e Literatura
necimentos de cada lado da interface. Comunicação, Ciências Humanas e Filosofia
Dando-se atenção a estas duas clivagens, Comunicação e Ciências Sociais Aplicadas
é possível construir organizações do Campo
que não sejam reducionistas nem excludentes. Temos finalmente um último conjunto, for-
Concomitantemente, que não sejam exclusi- mado por uma única subárea – abrangendo
vistas (de fronteiras fechadas), nem tão disper- estudos em que a teoria seja mais que o movi-
sas que se tornem indefinidas e “gasosas” (a mento natural de toda pesquisa, para tornar-
interdisciplinaridade “etérea” que criticamos se o objeto mesmo desta (associado freqüente-
no início do artigo). mente a questões epistemológicas). É o espaço
Uma dessas organizações, elaboradas em em que o campo “se pensa”, no qual explicita
perspectiva essencialmente prática, é a que e acompanha seus próprios desenvolvimentos
foi proposta por uma comissão organizada históricos e teórico-epistemológicos:
pela Compós para este efeito em 1997 (Vas-
sallo Lopes et al., 1997). Teríamos três tipos Teoria e Epistemologia da Comunicação
básicos de componentes nessa organização.
Um deles é organizado em atenção à presen- Essa hipótese de descrição é detalhadamen-
ça e aos processos mediáticos. Temos aí as te trabalhada no documento referido, e portan-
angulações que habitualmente são oferecidas to evitamos aqui maiores elaborações. Entre-
pelas pesquisas, e que perspectivam a mídia tanto duas proposições devem ser explicitadas:
segundo clivagens empíricas:
(a) as subáreas não devem ser percebidas
Estudos de Meios como “territórios” (metáfora que levaria à
Práticas de Comunicação aceitação de fronteiras e de exclusividade).
Interpretação de Produtos Cada uma delas é apenas um “ângulo de en-
Recepção trada”, ou seja, uma perspectiva preferencial
para organização de objetos de pesquisa, ân-
Trata-se, portanto, dos estudos que enfo- gulo que não exclui temas das demais subá-
cam respectivamente o sistema e suas estrutu- reas, mas apenas os organiza em função do
rações; a produção; o produto; e os usos feitos enfoque ali adotado;
dos produtos na recepção. A estas quatro su- (b) a preocupação de ordem geral com o
báreas é possível acrescentar uma quinta, em elemento identificador do campo (a interação
que o enfoque não se volta diretamente para a comunicacional geral) é fundamental para su-
mídia, mas para aquilo que, na sociedade e no perar a fragmentação – tanto das subáreas me-
indivíduo, interage com os processos comuni- diáticas entre si, como da mídia em relação
cacionais amplos: à sociedade. O que evita a fragmentação é a
percepção de que o fragmento estudado está
Sociabilidade/Subjetividade e Comunicação em alguma relação com o processo geral da co-
municação social. Aliás, é pelo fato de o objeto
Um segundo conjunto de subáreas é justa- comunicacional incluir múltiplos ângulos, não
mente aquele em que se desenvolvem os es- subsumíveis em conjunto e sem restos a ne-
tudos de interface – são os espaços de inter- nhuma das perspectivas humanas e sociais es-
disciplinaridade entre o ângulo propriamente tabelecidas, que solicita (ainda que, na pesqui-

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011 73


Constituição do Campo da Comunicação

sa empírica, o trabalho possa ser fragmentário) das até os anos 90) apresentavam resultados
a construção de um campo em que angulações reducionistas, recusando o interesse de estu-
mais amplas sejam referidas para reconstitui- dos não abrangidos pela teoria proposta.
ção, no conjunto, de uma abrangência compre- O acolhimento indiscriminado da diversi-
ensiva do objeto. dade, por sua vez, estimulava a postura “inter-
Independente do acordo ou desacordo que disciplinarista frouxa” que criticamos – acei-
venha a ser feito sobre esta organização espe- tando a convivência meramente cumulada de
cífica, o que queremos assinalar aqui é a pos- todos os aportes.
sibilidade de organizar o campo em termos Adotando uma visada processual para a
práticos, de modo suficientemente específico e constituição do campo, assumimos hoje (ver
abrangente, para situar os principais núcleos Braga, 2011) que é importante manter a diver-
e enfoques, e para manter uma porosidade es- sidade, mas devendo-se trabalhar contra a dis-
timuladora de interações com as demais ciên- persão. O principal esforço contra a dispersão
cias humanas e sociais; sem ter que se dar nem não é o de forjar categorias prévias para en-
como fronteira guardada nem como encruzi- caixar reflexões, pesquisas, métodos e teorias.
lhada passivamente atravessada. Trata-se antes de buscar espaços – em nível
mais abstrato que o das pesquisas específicas
Anotações atuais – nos quais diferentes investimentos investi-
gativos, sobre ângulos variados do fenômeno
A Tabela de Áreas de Conhecimento, do comunicacional, possam buscar composição e
CNPq se mantém ainda como antes, não refor- tensionamento de suas questões e hipóteses.
mulada, embora diversas discussões e tentati- Essa perspectiva não corresponde a aplainar
vas tenham ocorrido na área, encaminhando diferenças, nem a subsumir resultados de um
várias propostas diferenciadas depois da pro- ângulo a outro. Trata-se, mais simplesmente de:
posta referida no artigo. (a) desafiar hipóteses de um ângulo pelos resul-
Parecia, à época do artigo original, que o tados de outro, através de um tensionamento
desenho interno em subáreas e especialidades entre as diferentes visadas; (b) buscar pergun-
dos estudos em Comunicação poderia ter um tas mais abrangentes; (c) desenvolver hipóteses
sentido organizador para os próprios deba- heurísticas que procurem articular fragmentos
tes do conhecimento. Hoje assumimos que se de conhecimento diferentemente produzidos.
trata, aí, sobretudo de uma questão de ordem Assim, a redução da dispersão não corres-
prática – importante para encaminhamentos ponde a reduzir a diversidade – mas apenas a
das agências de fomento, mas de menor ur- pôr em contraste, pelo debate e pela pesquisa,
gência no que se refere a visadas epistemoló- ângulos de estudo ainda não conectados.
gicas e metodológicas para o campo. Essa questão é desenvolvida em artigo (Bra-
A questão que atualmente nos parece cen- ga, 2011) elaborado com base no estudo de cem
tral para a constituição interna do campo de artigos, muito diversos entre si, apresentados
estudos não é propriamente a do estabeleci- na Compós – mas que puderam ser analisados
mento de categorias para verter os diferentes segundo mesmas clivagens interpretativas.
projetos e teorizações. É antes a questão vol-
tada para o desenvolvimento de dinâmicas de A distinção Comunicação x Cultura
articulação e de desafio mútuo entre ângulos
diferenciados de observação do fenômeno co- Um dos riscos de adotar uma perspectiva
municacional. de objeto comunicacional mais amplo que os
Uma constatação recorrente nos estudos do processos mediáticos é o de que, nos espaços
campo é a extraordinária diversidade de temá- sociais mais difusos, se perca a especificidade
ticas e abordagens. Isso decorre da complexi- de nosso enfoque, diluído na questão cultural.
dade do próprio fenômeno comunicacional, Em meu artigo sobre “Interação e Recep-
que atravessa todas as atividades humanas e ção” observo um risco deste tipo – não decor-
sociais. Refere-se também aos múltiplos ob- rente da inclusão de preocupações culturais,
serváveis empíricos e aos aportes teóricos que, mas quando daí decorre um esquecimento do
além daqueles desenvolvidos diretamente no que é propriamente comunicacional:
campo de estudos, são sobretudo buscados em
todas as CHS. A percepção sobre mediações culturais nas
As tentativas de domar a diversidade com quais está permeado e impregnado o receptor
base em teorias abrangentes (sobretudo tenta- é uma contribuição preciosa para os estudos da

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011


José Luiz Braga

área. Basta observar a alta freqüência de refe- certamente sobre os obstáculos às interações,
rências a Barbero nos mais diversos estudos de histórica e sociologicamente instalados no pro-
recepção. Mas um risco eventual incorrido por cesso). Uma boa discussão introdutória sobre
alguns estudiosos da questão é o de dar exclu- interações entre cultura de elite e cultura po-
siva ênfase aos demais determinantes culturais
pular aparece em Ginzburg (1987, Prefácio).
(extra-mediáticos), quando o receptor é afirma-
do como fortemente amparado por estas inser- A segunda perspectiva é a de auto-explici-
ções outras para simplesmente “resistir” aos tação do gesto cultural. As pessoas e grupos
produtos de massa. Pode ocorrer então um es- já não se movimentam somente nas estraté-
quecimento de que, entre o receptor e o produ- gias de interação “dentro” das regras de um
to mediático ocorrem efetivamente interações. jogo proposto pela tradição e pelos hábitos
Deixar de lado o produto mediático e os am- – e muito lentamente trabalhado (solapado e
bientes mediatizados de comunicação, obser- assoreado) pelas próprias estratégias. Traba-
vando-se apenas “o lado receptor” com suas de-
lha-se também conscientemente nas próprias
fesas e permeações culturais outras, pode levar
a perder de vista a importância de apreender e
regras do jogo.
ampliar conhecimentos sobre o que ocorre de Quando a cultura se percebe cultura, quan-
específico nas interações mediáticas (Braga, do o gesto que faço não pode mais se justificar
2000, p. 5). como se fosse “natural” – através de um “é
assim que se faz” – já não estamos exclusiva-
É preciso portanto distinguir, na cultura, o mente no território da cultura, mas também no
que é objeto das preocupações culturais etno- da Comunicação. Ou seja: não é mais cultura
gráficas; e o que deveria ser o objeto principal enquanto modo de ser, mas cultura enquanto
das preocupações do Campo da Comunicação. comunicação. É sempre “cultura”, é claro, mas
A cultura-identidade – enquanto dado prévio, não o é mais apenas como nos acostumaram a
de tradição, segundo o qual os seres humanos se vê-la os antropólogos. O gesto de cultura (fala,
inscrevem em sua comunidade e desenvolvem dança, criação, comportamento), em situação
estrategicamente seu ser – é hoje ultrapassada de auto-explicitação, já não é apenas movi-
por processos largamente auto-percebidos (e por- mento de participação e de identificação do in-
tanto “trabalhados”) de inserção – que levam à divíduo na comunidade. É também expressão
percepção de que pode ocorrer uma escolha entre consciente desse identificar-se – é comunica-
diversidades – e não mais apenas “acolhimento” e ção (aos iguais e aos diferentes) da opção fei-
“permeação” na identidade. ta. Corresponde a uma seleção entre diversos
Vemos aí duas perspectivas que, no espaço jogos e atuação consciente sobre suas regras,
cultural, interessam especificamente ao estudo via interação social. É nesta perspectiva que o
comunicacional. Uma delas é a da constatação gesto cultural nos interessa.
da diversidade como base para uma objetivação/ As duas perspectivas são naturalmente
problematização da questão comunicacional relacionadas. A co-presença irredutível de di-
(enquanto que o ângulo cultural tem tradicio- versidades é correlacionada com a auto-expli-
nalmente buscado observar o que identifica uma citação – e portanto com a “construção” cons-
cultura – ou seja, cultura enquanto identidade). ciente e auto-refletida da própria cultura.
A utilização da expressão “meios de comu- Daí decorrem questões que (como quer que
nicação” para referir transporte e vias de circu- sejam tratadas por outras disciplinas) para
lação, nos séculos XVIII e XIX, provavelmente nosso campo devem ser consideradas como
decorria da percepção de que aqueles meios “questões de comunicação” – ou seja, no que
viabilizavam a interação cultural entre locais envolvem a questão da “conversação entre cul-
diferentes – em que “local” não se refere ape- turas”. É assim que vejo, por exemplo, a ques-
nas ao território, mas também ao que aí acon- tão a que habitualmente se chama de “politi-
tece em perspectivas de cultura. camente correto”. Trata-se aí de um problema
Esta concepção de “meios de comunica- comunicacional: como fazer interagir culturas
ção” foi então adotada para referir processos diferentes, em situação de co-presença fora de
de ocorrência de interação entre diversidades. padrões historicamente desenvolvidos como
E a diversidade (naqueles séculos) é percebida guerra, catequese, submissão, aculturação ou
sobretudo entre povos diversos. Foi necessá- integração. A co-presença não se restringe à
rio começar a perceber as diferenças internas convivência física em um mesmo território. A
em uma mesma cultura – por exemplo, cultura globalização mediática torna de certa forma
de elite x cultura popular – para então refletir co-presentes todas ou quase todas as culturas
sobre a circulação e as interações entre elas (e e micro-culturas no mundo.

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011 75


Constituição do Campo da Comunicação

Assim, uma das questões nucleares que se bientes – e sobretudo evitando aceitar deter-
põem para os estudos da recepção é a de ob- minismos contextuais que levariam a tomar os
servar as interações entre processos culturais processos comunicacionais como meramente
diversos, referentes às múltiplas inserções das decorrentes de processos sociais outros, como
pessoas e grupos, e referentes ao que é dire- mero epifenômeno?
tamente mediático; uns e outros, entretanto Entendemos que não é produtivo (nem
percebidos não como se de natureza diversa, seria talvez possível) abstrair os contextos es-
mas enquanto “conversas” (interações) entre tudados pela sociologia, pela linguística, pela
inserções diversas. Esses estudos devem ser es- economia, pela história. Não há como fazer se-
pecialmente referidos neste ponto, pois é aqui paração prévia de variáveis, para examiná-las
– onde se observa uma das principais interfa- fora de contexto.
ces complexas entre o mediático e o extra-me- Uma primeira premissa a fazer, para que as
diático – que a questão cultural (e portanto a regularidades do contexto não sejam assumi-
especificidade comunicacional) se coloca. das como totalmente determinantes do comu-
As preocupações com a identidade cultural nicacional, é adotar uma inversão programática.
são desenvolvidas no campo antropológico ou Entendemos que as percepções das disciplinas
etnográfico. O que efetivamente interessa à co- vizinhas e das práticas comunicacionais ob-
municação não é propriamente a questão cul- servam os fenômenos segundo suas próprias
tural (caso em que a antropologia é suficiente). perspectivas: as questões prevalecentes são as
Mas sim o das interações comunicacionais en- da área estabelecida. O fenômeno comunica-
tre diferentes culturas (ou seja, entre diferentes cional é visto “a serviço” de outras questões
identidades). Quando o estudo de mediações – e portanto, visto “de fora”. De nossa parte,
se restringe ao estudo das identidades construí- devemos assumir a centralidade do fenôme-
das, nesse espaço de observação, o pesquisador no comunicacional tomando-o programati-
estará fazendo “cultura” (ou seja, etnografia ou camente como o constituinte interessante dos
antropologia). Só quando utiliza os dados aí ob- processos interacionais. Em Braga (2010b),
tidos para observar efetivamente como as intera- encaminhamos a previsão de um “programa
ções comunicacionais se dão entre esta “identi- tentativo” nesse sentido.
dade cultural” e a mídia é que estará fazendo Outra perspectiva para as distinções e arti-
propriamente “estudo de comunicação”. Não culações entre o comunicacional e o contexto
porque aí inclua a mídia – mas sim porque se envolve a previsão de um “lugar” epistêmico
volta então para a interação de uma identidade de ocorrência dos episódios comunicacionais,
cultural com outra (no caso, mediática). Ainda em que os diversos elementos sociais, heterogê-
sem a mídia teríamos comunicação – quando neos, se articulam e tensionam, segundo deter-
para além da observação de uma determinada minados sistemas de relações, em função mes-
identidade cultural, se observem as interações mo dos objetivos comunicacionais da sociedade
comunicacionais desta com outras. Será então e seus setores. Denominamos esse ambiente de
o caso do multiculturalismo, quando ultrapasse “dispositivos interacionais”. São socialmente
a descrição etnográfica da situação multicultu- elaborados – e naturalmente trazem para a inte-
ral (ou das culturas em presença) para observar ração as dinâmicas e linhas de causalidade das
como aquela diversidade específica observada diferentes regularidades sociais. Por outro lado,
transpõe as barreiras do diverso para interagir, a articulação dessas diferentes dinâmicas se faz
qualquer que seja a interação comunicacional, segundo as tentativas do processo comunica-
conflituosa ou solidária. cional que lhe dá sentido (logo, se organizam
diferentemente em cada dispositivo)
Anotações atuais Outro modo de perceber o que chamo de
dispositivos interacionais é considerar que
A questão que se coloca hoje, para além de correspondem a modos tentativos para ela-
distinções entre estudos “de cultura” e estu- boração de padrões interacionais segundo os
dos “de comunicação”, seria uma preocupa- quais a sociedade busca organizar o fluxo de
ção com modos de articulação entre objetos circulação comunicacional. Em Braga (2011,
e processos comunicacionais e contextos so- 2010a), faço a elaboração desse construto,
cioculturais. Assumindo que a comunicação como uma hipótese heurística para tensiona-
se dá sempre “em contexto”, como levar es- mento interno do campo – que, sem reduzir
tes em conta, sem se deixar conduzir pelos a diversidade, busca caminhos para reduzir
conhecimentos estabelecidos sobre tais am- a dispersão.

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011


José Luiz Braga

Conclusão Anotação final

O presente texto, com o objetivo de apre- O último parágrafo do texto continua vá-
sentar algumas reflexões sobre a constituição lido, reiterando o aspecto tentativo das con-
do Campo da Comunicação, toma como ponto jeturas e a expectativa de continuado avanço
de partida duas considerações preliminares. no desenvolvimento da área – mormente pelas
A primeira considera ocioso discutir sobre o refutações mútuas que os diferentes estudos
estatuto acadêmico formal do Campo – assu- sobre o campo apresentem, assim como pelas
mindo sua existência, enquanto “campo so- pesquisas sobre aspectos específicos do fenô-
cial” (caracterizado pelo desenvolvimento de meno comunicacional, em sua composição.
estudos e de pesquisas), como base suficiente
para as reflexões a serem feitas. A segunda Referências1
preliminar recusa a proposta de explicação do
ALAIN. 1947 [1939]. Idées. Introduction à la philoso-
campo por uma pretendida “natureza inter- phie - Platon, Descartes, Hegel, Auguste Comte. Pa-
disciplinar” deste. ris, Paul Hartmann, 430 p.
No desenvolvimento principal, discute-se so- BRAGA, J.L. 2011. Dispositivos Interacionais. Tra-
bre a opção entre tomar o estudo dos meios de balho selecionado pelo GT Epistemologia da Co-
comunicação como objeto nuclear de reflexão do municação. In: ENCONTRO DA COMPÓS, NA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
Campo de Pesquisa em Comunicação; ou, alter- DO SUL, XX, Porto Alegre, 2011. Anais... Porto
nativamente, considerar um objeto mais amplo Alegre, 15 p.
– as interações da comunicação social. BRAGA, J.L. 2010a. Nem rara nem ausente - tentati-
A partir de uma preferência pela segunda va. Matrizes, 4(1):65-81.
alternativa, examinam-se quatro problemas BRAGA, J.L. 2010b. Disciplina ou campo? O desafio da
consolidação dos estudos em Comunicação. In: J.
que são colocados para esta perspectiva: FERREIRA; F.J.P. PIMENTA; L. SIGNATES (orgs.),
Estudos da Comunicação: transversalidades epistemoló-
• explicar a forte presença da mídia como gicas. São Leopoldo, Editora Unisinos, p. 19-38.
objeto de estudos na área; BRAGA, J.L. 2007. Midiatização como processo in-
• refletir a respeito do compartilhamento teracional de referência. In: A.S. MÉDOLA; D.
CORREA ARAÚJO; F. BRUNO (orgs.), Imagem,
dos estudos sobre o tema Comunicação Visibilidade e Cultura Midiática. Porto Alegre, Su-
entre o próprio Campo e as demais disci- linas, p. 141-167.
plinas humanas e sociais; BRAGA, J.L. 2004. Os estudos de interface como es-
• organizar tentativamente, e para objeti- paço de construção do Campo da Comunicação.
vos práticos, as diversas perspectivas e Contracampo, 10/11:219-235.
BRAGA, J.L. 2000. Interatividade & Recepção. In: A.
temas que as pesquisas abordam;
FAUSTO NETO; A. HOHLFELDT; J.L. AIDAR
• distinguir (questão que não se coloca PRADO; S. DAYRELL PORTO (orgs.), Interação
para a opção de centralização exclusiva e Sentidos no Ciberespaço e na Sociedade. Porto Ale-
na mídia) os ângulos culturais que são de gre, Edipucrs, p. 109-136.
específico interesse para o Campo. BRAGA, J.L. 1999. Meios de Comunicação e Lin-
guagens: a Questão Educacional e a Interativi-
dade. Linhas Críticas, 5(9):129-148.
Naturalmente as reflexões apresentadas GINZBURG, C. 1987. O queijo e os vermes. São Paulo,
não correspondem a proposições epistemo- Companhia da Letras, 360 p.
lógicas para definição teórica do campo, mas GOMES, W. 2004. Transformações da política na era da
apenas a esforços descritivos e organizatórios comunicação de massa. São Paulo, Editora Paulus,
do que parece estar acontecendo no campo da 450 p.
MARTINO, L.C. 2001. Interdisciplinaridade e Ob-
pesquisa. Correlatamente, as reflexões apre- jeto de Estudo da Comunicação. In: A. FAUSTO
sentadas são inevitavelmente tentativas – su- NETO; J.L. AIDAR PRADO; S. DAYRELL POR-
jeitas não só à crítica e às objeções que nos fa- TO (orgs.), Campo da Comunicação. João Pessoa,
çam perceber limites em nossas proposições, Editora Universitária, p. 77-89.
mas também à própria dinâmica da área, que RÜDIGER, F. 1998. Introdução à Teoria da Comunica-
ção. São Paulo, Edicon. 116 p.
não se constitui e desenvolve através de estru- VASSALLO LOPES, M.I.; BRAGA, J.L.; SAMAIN,
turações abstratas, mas sim da realidade social E. 1997. Proposta de atualização da categorização do
e histórica de seu trabalho. campo da Comunicação em subáreas. Mimeo, 21 p.

1
Os artigos do autor apresentam perspectivas desenvolvidas posteriormente ao artigo agora republicado, e aqui referidas nos
comentários.

Verso e Reverso, vol. XXV, n. 58, janeiro-abril 2011 77

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