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Indivisível dualidade

Lenine Linera

"Texto pertencente ao acervo de peças teatrais da biblioteca da Universidade Federal de Uberlândia

(UFU), digitalizado para fins de preservação por meio do projeto Biblioteca Digital de Peças Teatrais

(BDteatro). Este projeto é financiado pela FAPEMIG (Convênio EDT-1870/02) e pela UFU. Para a

montagem cênica, é necessário a autorização dos autores, através da Sociedade Brasileira de

Autores Teatrais - SBAT"


Indivisível dualidade

I ATO
O cenário é apartamento velho, decadente, porém com um certo toque de bom gosto.
GLORIA - (Chamando) Coral! (tempo) Coral. (Continuando a fazer tricô) Coral.
CORAL - O que é mulher. (Entrando com um pano de prato nas mãos)
GLORIA - Onde é que você estava?
CORAL - Ora onde, na cozinha né querida, como sempre.
GLORIA - Me diz uma coizinha. Como é mesmo este ponto?
CORAL - Mas você é uma negação meu amor, já te expliquei horrores de vezes e nada?
GLORIA - Eu não recordo se é um por cima dois por baixo, depois entrelaça...
CORAL - Para tudo. Isto está parecendo uma suruba, um por cima dois por baixo. Gloria, põe
na cabeça você não tem a menor queda para prendas domésticas.
GLORIA - Bobagem, eu poderia ser maravilhosa no que quizer.
CORAL - E pelo visto não está querendo. E além do mais, isto que você está fazendo mais
parece um cachecol para girafa.
GLORIA - É que eu estou só ensaiando...
CORAL - Não é ensaiando, é praticando. Você mistura sempre o bendito teatro em tudo.
GLORIA - Talvez você tenha razão, toda a minha vida dediquei ao teatro. Foram longos e
gloriosos anos. O pano se abrindo, a luz como um raio dourado e eu brilhava. Depois
aplausos, flores e as infinidaveis comemorações, champanhe...
CORAL - Acorda meu bem, a realidade agora é outra. O tempo passou, os anos chegaram e
eis-nos aqui, sem pano de boca, sem luzes e muito menos champanhe. Concordo que nosso
cenário mudou muito.
GLORIA - Cale a boca. Você sempre contra mim, destruindo os meus sonhos. Até hoje eu
não sei como aturo a sua presença.
CORAL - Não fale assim, um dia eu vou embora, o seu polichinelo preferido,e você vai
lamentar pelo resto da vida.
GLORIA - (Afirmativa e jocosa) Eu corro este risco. (Tempo) Coral, vem cá seu velho bôbo.
CORAL - Velho não...víbora (Riem) Gloria Lamarc, você é muito geniosa.
GLORIA - E você um veado velho cheio de melindres. Você sabe que eu te adoro. Por outro
lado, todos os homens que passaram pela minha vida eu dominei.
CORAL - (Pensativo) Eu sei.
GLORIA - Como está o tempo? Será que vamos ter tormenta?
CORAL - Não, o tempo esta ótimo.
GLORIA - (Apavorada) Você não abriu a casa, abriu? Você sabe que não deve abrir a casa
nunca. (Levanta e verifica) as janelas, as portas, estão trancadas?
CORAL - Estão.
GLORIA - Tem certeza?

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CORAL - Tenho. Calma Gloria, você sabe perfeitamente que eu jamais abriria. Lembra do
nosso pacto?
GLORIA - (Lentamente) Lembro. Nós sempre fomos cúmplices, não é mesmo? É intrigante
como nossas vidas, tão diferentes, sempre estiveram curiosamente ligadas.
CORAL - Mudemos de assunto por favor.
GLORIA - Porque? Você ainda tem recentimentos? Faz tanto tempo...
CORAL - Mesmo assim por favor pare.
GLORIA - Que hora são?
CORAL - (Exitante) Quase cinco.
GLORIA - Meu Deus, quase cinco horas e você assim. Vamos vá se preparar.
CORAL - Não hoje não, eu não estou com disposição...
GLORIA - Nem mais uma palavra, vá. (Coral sai de cena)
CORAL - (Voltando com um velho quimono chines) Esta bom assim?
GLORIA - Deixa ver, é, esta bom. Pode começar.
CORAL - Você acha isto tudo tremendamente ridículo?
GLORIA - Não tem ridículo nenhum. Nós sempre fomos metódicos e não vejo porque mudar.
Isto me traz tantas recordações. Longos cruzeiros, viagens e paises distantes...
CORAL - Concordo com tudo, está certo, mas fazendo todo este ritual do chá, com garrafa
térmica?
GLORIA - E que tem isto? Vão-se os anéis ficam os dedos. As porcelanas quebraram? E daí?
O que importa é este clima mistico, sensual.
CORAL - Pra mim é uma refinada frescura.
GLORIA - Você anda muito rabugento ultimamente. O que está acontecendo? Sempre faz
com máxima boa vontade, de uns tempos pra cá vive reclamando de tudo. Você não me
perdoa por ter feito aquela viagem e você ter ficado, não é mesmo?
CORAL - Não é verdade. Simplesmente você viajou na hora errada.
GLORIA - Como hora errada? Meu grande sonho sempre foi conhecer o mundo e quando isto
se apresentou, não exitei um minuto se quer.
CORAL - E o seu filho recém nascido? Em que plano ficou?
GLORIA - Ele era muito criança ainda. E além do mais, você tomou conta dele com todo
carinho.
CORAL - Disto não tenha dúvidas. Eu fui uma mãe exemplar. Noites acordado, pequenas
doenças, remédios, mas tudo tão reconfortador. Meu pequeno filho...
GLORIA - Não seja ridículo. Meu filho, meu filho entendeu?
CORAL - Eu entendo, você entende, mas ele será que entende?
GLORIA - É claro que sim. E depois, quando você veio do interior, tudo que você sabe foi
ensinado por mim. Você era uma bicha silvestre, eu te ensinei tudo, como se vestir, como se
portar e até a falar direito.
CORAL - Ah mas que mentira, eu simplesmente era um pouco inibido, só um pouquinho.
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GLORIA - Seu ingrato, foram longos dias te domesticando e é assim que que você me paga?
CORAL - Eu acho que já te paguei tudo com juros.
GLORIA - Está me jogando na cara alguma coisa?
CORAL - Não, não estou jogando nada em ninguém. Realmente você me ensinou muita
coisa, mas você esquece que quando eu fui morar com você eu era a sua empregada
doméstica? Lavava, passava, e tudo mais.
GLORIA - Eu te acolhi como um membro da família, é verdade que não te pagava salário,
mas ficaria embaraçoso o pagar a um familiar.
CORAL - Sim querida só que eu não era teu familiar.
GLORIA - Naquela época todos disputavam um autógrafo, a minha companhia e você
convivia comigo dioturnatmente. E a sua entrada para o teatro? Já esqueceu?
CORAL - Não, não esqueci, só que eu lhe servia de apoio. Eu o travesti da última fila, nem
era quase visto.
GLORIA - E o que você queria? O meu papel? Ser a estrela da companhia?
CORAL - Na verdade eu não queria nada, só queria viver e na verdade o teatro rebolado me
fascinava.
GLORIA - (Rindo) Deixa de bobagens, depois voce fez até uma produção independente em
que você era o astro principal. (Rindo) Como era mesmo o nome da peça? (Ri)
CORAL - Para Gloria, isto é uma coisa já passada, esquece.
GLORIA - (Rindo) Deixe-me ver...ora senhor...lembrei ? O putinho feio!
CORAL - Não fui compreendido, foi um fracasso total e no fim perdi tudo que tinha e que
não tinha. Era uma versão bem humorada da história infantil. Aquele critico de teatro nunca
foi muito com a minha cara. Mas eu tenho certeza que você saboreou o meu fracasso.
GLORIA - Não fala assim, quem te ouve falando pensa que eu sou uma megera. Seu Coral,
não se dirija a mim pelo menos por um dia.
CORAL - Vai ser um prazer muito grande tenha certeza. Cambio e desligo. (Ela recomeça no
tricô, êle anda por toda a cena debochadamente. Depois se aproxima de Gloria por traz e
tapa-lhe os olhos) quem é?
GLORIA - Betty Davis! Ora seu velho estúpido, quem seria. Só tem nós dois aqui dentro.
CORAL - Cruzes Gloria, como você é desmancha prazeres.
GLORIA - Desculpe. Desculpe meu amigo, as vezes eu sei que sou um pouco intolerante.
CORAL - Um pouco? Mas deixa isto prá lá, não é mesmo?
GLORIA - Coral, você recorda daquele rapaz que sempre te mandava flores ao camarim?
CORAL - Você não viu o meu leque de madreperola por aí? Tá um calor horrivel...
GLORIA - Coral, não fuja. Fiz uma pergunta e espero resposta.
CORAL - Mas que bobagem, já faz tanto tempo...
GLORIA - Se bem me recordo, vocês tiveram um longo romance. Ele era tão gentil. Que fim
levou ele?
CORAL - Mandei embora o colibri. Um artista não pode se dedicar a uma só pessoa. Na
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verdade já tive perdas piores.


GLORIA - Já vai começar? Você não está me acusando novamente, está?
CORAL - Certas coisas te fazem mal, não é verdade Gloria? (Leva a mão ao peito)
GLORIA - Está sentindo alguma coisa?
CORAL - Não.
GLORIA - (Aflita) Está sim, você está me escondendo alguma coisa. Já tomou teu remédio da
pressão?
CORAL - Eu não tenho pressão alta.
GLORIA - Então pra diabetis.
CORAL - Eu não sou diabetico.
GLORIA - Então que doença você tem?
CORAL - Nenhuma meu bem. Você é que é cardíaca.
GLORIA - É mesmo. Eu sempre confundo nossas coisas.
CORAL - E eu não sei por acaso? E normalmente você se confunde sempre a teu favor.
GLORIA - Ingrato, eu me preocupando com você e você com picuinhas antigas.
CORAL - Sabe que eu te admiro tremendamente Gloria? Você consegue sempre se sair
vitoriosa em qualquer dialogo. Você é uma ótima enxadrista, tem lances notáveis.
GLORIA - Você é que é muito fresco.
CORAL - Gloria.
GLORIA - (Jocosa) (Imitando) Gloria. Você é veado.
CORAL - Por favor pare.
GLORIA - (Debochando) veado. Veadinho, veadinho.
CXORAL - Vou fazer de conta que você não existe. Prá mim o que está na minha frente é um
monte de bosta.
GLORIA - Veja como está falando. Você não pode nunca me ignorar, ninguém pode me
ignorar.
CORAL - Ah, ficou brabinha não é mesmo Z i l d i n h a!
GLORIA - Não repita mais isto, meu nome é Gloria. Gloria Lamarc!
CORAL - Nunquinha meu amor, eu vi teu registro de nascimento e sei até a tua idade.
GLORIA - Você mecheu nas minhas coisas, violou meus segredos...
CORAL - Agora eu que digo, que frescura.
GLORIA - Muito bem, e você como se chama? Qual é a sua idade? Responda.
CORAL - Nem por ouro, nem por prata de por sangue da lagarta. (Ri)
GLORIA - Você está insuportaval hoje senhor Coral. (Tempo) Você não viu minhas pinturas?
CORAL - Quais pinturas? Sim por que você parece um Arc an ciel.
GLORIA - Meu baton, meu pó Ladi, meu carmim, o que mais eu poderia usar?
CORAL - Não sei, na verdade você usa tudo que tem direito.
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GLORIA - Você fala assim por que nunca teve coragem de se maquiar, a não ser no teatro.
CORAL - E pode ter certeza que me sinto muito bem assim.
GLORIA - Mas vendo bem, um cremezinho não caia mal. Você está com uns pés de galinha...
CORAL - (Regalando bem os olhos) Pés de galinha? Onde?
GLORIA- Onde mais você poderia ter, Coral? Nos olhos é claro.
CORAL - Gosado nem tinha reparado.
GLORIA - Se não tinha reparado, agora seus problemas são dois. Rugas e falta de visão.
CORAL - Não é falta de visão não senhora. Onde estão os espelhos? Onde estão?
GLORIA - Não precisamos disto. Podemos viver perfeitamente sem espelhos.
CORAL - É medo, não é mesmo. Medo de se olhar e ver que estamos velhos.
GLORIA - Para por favor, não fale mais assim. Você está otimo. Não ligue o que eu falei, eu
só queria te provocar. Coral você está um verdadeiro principe.
CORAL - Bobagem Gloria, nós temos que aceitar certas coisas. Nascemos, crescemos e...
GLORIA - (interrompendo) Não fale mais nada. Você está muito inconveniente hoje.
(Tempo)
CORAL - (Lentamente) Gloria, e se nós saíssemos daqui? Procurasse um outro lugar...
GLORIA - (Histérica) - Eu não quero ouvir, eu me recuso a ouvir. Eu não quero. - (Como se
fosse criancinha) - Mamãe posso ir? Quantos passos? Quantos? - (Como se ouvisse) - Não é
muito, é muito, se eu der tantos passos, eu passo desta vida.
CORAL - (Aflito) Gloria, Gloria, está tudo bem nós vamos ficar, por muitos tempo querida.
Calma, calma, Está tudo bem?
GLORIA - (Calma) - Claro que está tudo bem. Agora está tudo bem. (Tempo) Nós
poderiamos mudar um pouco a decoração da casa. Que acha disto? Cortinas novas de chints,
talvez brocado? É vamos mudar tudo para vivermos muito tempo aquí, talvez sempre.
CORAL - Que exagero Gloria, sempre é muito.
GLORIA - (Continua absorta) Quando ele vier aqui de novo, vou pedir muitas coisas. Êle
sempre vem não é mesmo Coral?
CORAL Sempre. Sua pontualidade chega a ser irritante. Como um pêndulo que vai e vem
sempre obedecendo um espaço de tempo.
GLORIA - E isto te irrita? Você não sente saudade dele?
CORAL - Muita, mas nós fizemos um trato, não é mesmo. Nos isolariamos do mundo,
ninguém mais nos veria, nem êle.
GLORIA - Você pensa que isto não me doi? Saber que ele está ali do outro lado da porta,
deixa o que precisamos e vai embora.
CORAL - E se quando ele vir da próxima vez nós o recebessemos e...
GLORIA - (Cortando) Não, Já lhe disse que não.
CORAL - Você tem medo, confesse.
GLORIA - Ora, medo de que?

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CORAL - Os espelhos Gloria, onde estão os espelhos?


GLORIA - O que você está insinuando? Que estou velha? Responda mocinho.
CORAL - Eu não estou insinuando nada, estou afirmando. Gloria você sempre foge da
realidade, alias sua vida sempre foi uma fuga continua. Fugiu das responsabilidades, do amor,
da vida.
GLORIA - Não é exatamente uma fuga, sempre pensei em coisas mais perfeitas. Muito bem,
de que eu me orgulharia de minha idade, da...da minha velhice? É muito simpatico quando
dizem que a idade dignifica, enobresse. Mentira a velhice é deformante, perdemos os
sentidos, a noção de tempo e espaço. Nosso tempo já passou e nosso espaço é num lar para
velhos ou na melhor das hipóteses um quarto que não vá atrapalhar ninguém.
CORAL - Como você está amarga, minha amiga, animo (Faz alguns tregeitos tipo Carmem
Miranda) O tabuleiro da baiana tem...(Ambos riem)
GLORIA - Sossega leão, teu tempo já passou. Coral como você era ótimo.
CORAL - Bondade tua, você sim que era uma deusa.
GLORIA - Que nada, eu simplesmente era uma boa atriz que deu sorte.
CORAL - Deu sorte é? Agora mudou de nome?
GLORIA - O que você está dizendo com isto, velho Fresco? Que eu prestava favores para
conseguir papeis?
CORAL - Que horror Gloria, você leva tudo a ferro e fogo. Falei por falar e você sabe mais
que ninguem que eu era tem fã número um.
GLORIA - Sabe o que me veio à cabeça? Aquela apresentação tua numa churrascaria.
CORAL - Isola (Bate em tudo que vê) que falta de imaginação, com tantas coisas boas, tantos
trabalhos de alto nivel e você me vem com isto?
GLORIA - O que é que tem? Eu achei tão gosado e até aplaudi de pé.
CORAL - Só voce meu amor, porque o resto estavam engalfinhados em seus churrascos. Mas
pensando bem você foi muito maldosa. Lembra o vestido que me emprestou? E a peruca?
GLORIA - Você estava um pouco gordinho era o único que te servia.
CORAL - Um horror, eu dublando Yma sumac, com aquela roupa parecia Yemanjá. (Riem)
Quanta degradação por um prato de comida. Agora cá entre nós, que miséria que nós
estavamos, heim? Eu decadente, em fim de carreira, você querendo manter um status, com
pose de estrela. Fazia meus pequenos trabalhos, recebia o cachê, e lá iamos nós correndo fazer
compras e levar a comida do nosso filho.
GLORIA - Mesmo assim era um tempo muito bom. (Tempo) Coral, você sempre foi assim?
CORAL - Assim como?
GLORIA - (Fazendo trajeitos) Assim ora.
CORAL - Sabe de uma coisa? Eu acho que sempre fui assim (Repete os trajeitos). Desde
pequeno eu sempre andei com as mãos assim (Mostrando) nem eu mesmo sei porque. Minha
tia, uma velhota solteirona e professora, sempre me repreendia. - Ajeita estas mãos, isto não é
jeito de de se comportar.
CORAL - Como último recurso, inventei que andava daquela maneira porque de outro modo

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me doia. Foi um alvorosso total, todos querendo saber o que doia, porque doia. Conclusão me
levaram ao médico. Chegando no tal médico, ele me olhou, pediu que todos se retirassem e
primeiro me deu um tapinha na bunda e depois me disse: Já? Sai dalí com as mãos boas e
todos disseram que o médico era um gênio. Em casa, eu tinha sonhos com a mão do médico
me apalpando, um escândalo. Como vê, é um caso de bicho-pediatria.
GLORIA - E que mais?
CORAL - Como o que mais? Parece um abutre querendo mais carniça.
GLORIA - Desculpa não foi isso que eu queria dizer, é que você é tão interessante,
engraçado, que a gente tem vontade de saber mais.
CORAL - É todos sempre me achavam engraçado, alegre. Assim, eu passei uma vida toda
tendo que parecer engraçado. E você sempre foi assim?
GLORIA - Agora eu que pergunto, como assim?
CORAL - Impulsiva, irreverente, mandona...
GLORIA - Não, aí que está o x do problema. Minha infância foi muito sofrida. Cada degrau,
para se galgado, era debaixo de muita luta, muito sacrificio. Então aprendemos que para subir
não se pode fazer concessões, é você ou os outros. Para me tornar alguém respeitada, tive que
pisar em muitas pessoas., renunciar a pequenos sonhos, mas eu consegui. Meu caro Coral,
quando me perguntavam a quem devia meu sucesso, sempre respondi sem o menor pudor: -A
mim mesma.
CORAL - E você se sente bem assim?
GLORIA - Porque não? Este sempre foi meu modo de ser, agir. Nunca me imprecionei com
os avanços ou modernismos. Sendo uma pessoa única, teria obrigatoriamente de me aceitar e
conviver comigo mesma da melhor maneira possivel.
CORAL - Esta imagem, este mito que você criou, nunca te perturbou? Nunca sentiu
necessidade de ter que avançar mais para satisfazer ao teu público?
GLORIA - Que interessante este nosso assunto, isto nunca me passou pela cabeça. Sabe de
uma coisa? Jamais tentei ser outra coisa que não eu mesma. Toda esta trajetória, minha arte,
me dizem que não é tão importante ser a mais diferente. É necessário sim, ter seu brilho
próprio. Como uma estrela, ao passo que outros serão sempre planetas, lindos, mas planetas.
CORAL - Nossa, gloria você hoje está bárbara, da pontinha.
GLORIA - (Tom) E você decaida?
CORAL - (Contrariado) Eu o que, Emilinha Borba?
GLORIA - Teu perfil (Coral mostra, num gesto feminino, seu perfil) Não, falo de tua vida
passada, tua infância.
CORAL - Parece tudo tão longe, tão distante, mas ao mesmo tempo tão nitido e real. Eu
venho de uma família numerosa. Muitos irmãos, irmãs. Minha mãe era uma mulher lutadora,
mas sem grandes brilhos. Como dizia minha avó, uma perfeita dona de casa, com um talento
incrivel na arte da submisão.
CORAL - Meu pai, um homem de certa posição do interior, sempre viveu sua vida sem
prestar grandes contas a ninguém. Pode-se dizer, um casal perfeito. Lembro de uma vez, era
véspera de natal e minha mãe distribuiu as tarefas a serem realizadas. Meus irmãos e irmãs
por serem mais adultos, pegaram os serviços mais pesados. Prá mim, devido a minha
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fragilidade, foi dada a tarefa de terminar comos insetos, baratas, ratos, etc.
Munido de inceticidas, raticidas e tudo mais, comecei o meu trabalho. Na noite de natal a casa
estava linda, brilhando, um verdadeiro brinco sem nenhum inseto. Mas eu chorava ao redor da
arvore de natal, pensando nos mosquitinhos, baratinhas e ratinhos que naquela noite estavam
orfãos por minha causa.
GLORIA - Mas é o cúmulo da frescura Coral.
CORAL - Eu sei, mas o que é que eu vou fazer. Sempre fui assim. Meu pobre corpo fragil era
um convite à coisas tristes. (Tempo) (Pega um lencinho e leva ao nariz com pose teatral)
Você nunca foi exatamente uma mulher do lar, não é mesmo?
GLORIA - Realmente não. Minha mãe, assim como minha avó, que eram perfeitas donas de
casa, como você diz, ficavam perplexas com a minha absoluta inaptidão para as coisas do lar.
CORAL - Você sempre deu um passo a frente de sua época. Me recordo de seus convites
nada recatados às pessoas que lhe interessava.
GLORIA - E porque perder tempo pergunto eu? Considero o máximo da hipocrisia querer
alguma coisa ou alguém e se fingir de sonsa. A vida é só esta, o isntante dura exatamente o
seu tempo. Sempre fui à luta, por isto sempre consegui o que quis. Mas você também nunca
ficou atráz.
CORAL - É diferente, eu sou homem. (Gloria ri) Está rindo de que cobra? Sou homem sim
senhora. Diferente é verdade, mas um homem.
GLORIA - Você quer dizer então que um homem é sempre um homem, independente de
qualquer coisa e uma mulher é sempre uma mulher?
CORAL - É óbvio Gloria. Mas não no sentido que você está tentando colocar.
GLORIA - Agora mesmo é que eu não entendi nada.
CORAL - Pensar nunca foi o teu forte querida. Você está tentando colocar o homem
sentimentalmente falando, num plano inferior.
GLORIA - Não é bem assim, mas quase assim.
CORAL - Gloria, você sabia que nos povos antigos havia uma diferença bastante grande entre
homens e mulheres?
GLORIA - Pois é o que eu estou dizendo...
CORAL - Não, você está mal informada. A história, a real história conta que nos primordios,
a mulher era considerada matriz, aquela que gerava os filhos e cuidava da harmonia do lar, O
divertimento, as orgias, cabia às prostitutas e a amizade o amor, era entre os homens.
GLORIA - Cruzes que coisa mais machista, se assim se pode dizer.
CORAL - Pois é meu bem, como vê, voces ganharam terreno.
GLORIA - Na verdade, nunca me detive em pensar no que era certo com determinada época.
Sempre me revoltei com a submissão, a inércia de certas mulheres você ia à alguma vesperal
dançante, as mulheres ficavam sentadas em volta do saltão, enquanto os homens as rodiavam
examinando, como quem examina o animal para o abate.
CORAL - Que horror não é mesmo Gloria e depois, tome valsa...
GLORIA - Valsa? E tome polca! (Canta com trageitos a música e tome polca. Após terminar
os dois riem)
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CORAL - Quer beber alguma coisa?


GLORIA - Não. Não gosto de beber.
CORAL - Não água meu bem, porque antes...
GLORIA - Mentiroso, nunca fui dada às bebidas alcólicas. Bebia socialmente. Agora você,
você sim bebia feito uma louca.
CORAL - Mas eu nunca escondi, alias eu nunca escondi nada. Desde cedo entendi que tinha
planos direitos sobre a minha vida. Críticas? Sempre houveram, mas e daí? Quem me critica
me dá alguma coisa? Me sustenta? Não! Então às favas com seus comentários e suas vidinhas
ridiculamente norteadas pelo que os outros dizem. Como dizia minha vó: Nunca bebi água
nas orelhas de ninguém.
GLORIA - Mas que homem independente, nem parece aquele rapaz franzino e assustado que
chegara do interior o qual eu conhecia.
CORAL - As coisas mudam e você sabe disso. Aprendi a lutar pra conseguir as coisas que
queria. Aprendi com você.
GLORIA - Você pode afirmar que foi feliz?
CORAL - Ninguém pode fazer tal afirmação. Não creio numa felicidade para sempre ou uma
infelicidae eterna. Por muitas vezes fui muito feliz e por diversas vezes extremamente infeliz.
GLORIA - (Com intenção) Se refere a algum fato em especial?
CORAL - Prefiro não falar.
GLORIA - Como não falar, se você coloca as coisas nas entrelinhs como se eu tivesse culpa
de algo.
CORAL - Repito; esqueça Gloria.
GLORIA - Não senhor, se começamos, vamos até o fim. De que você me acusa? (Começa a
trovejar e ralampiar. Gloria fica em pânico) Coral. Coral...
CORAL - Calma Gloria, calma...
GLORIA - Vai chover, Coral. Vai haver tempestade. Está tudo fechado?
CORAL - Está.
GLORIA - (Quase gritando) Verificou as portas e janelas? Estão trancadas?
CORAL - ( No mesmo tom) Estão, estão, Pare.
GLORIA - Eu tenho medo. Eu não quero. Coral, pelo amor de Deus faça parar tudo. (Apaga a
luz. Pequena pausa e foco de luz sobre Gloria sentanda em sua cadeira) Vamos lá, tá na hora.
CORAL - (Da cochia) Já vai.
GLORIA - Vamos logo senhor Coral, minha paciencia tem limites. (apaga o foco de Gloria e
outro incide em Coral que entra vestido de violeteira com um castilho de violetas e canta La
violetera com trageitos dramático)
GLORIA - (No final) Bravo, bravo! (Aplaude)
CORAL - Bravo nada. Está um droga, horrivel. Está cada dia pior.
GLORIA - Que nada seu bôbo. É verdade que a sua performance de hoje não foi das
melhores, mas mesmo assim eu gostei.

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CORAL - Já estou cheio de todos os dias fazer a mesma coisa. Esta rotina me cansa.
GLORIA - Mas o que é isto? Lembra que fizemos um trato?
CORAL - Lembro, lembro mas não quero mais. Me dê uma razão para eu fazer sempre a
mesma coisa até morrer.
GLORIA - Cale-se. Esta palavra está proibida de ser pronunciada aqui em casa.
CORAL - Você sempre mandando, comandando tudo. Coral faça isto. Coral faça aquilo.
Chega, entendeu, chega.
GLORIA - Porque toda esta revolta agora?
CORAL - Não tem porque. As coisas necessariamente não precisam ser coerentes.
GLORIA - Você está tão diferente. Não é o coral que conheço tão bem.
CORAL - Aí está a prova que não me conhece tão bem assim. Este seu pavor pela morte...
GLORIA - Pare Coral, eu não quero ouvir.
CORAL - Morte, Morte. Porque não, porque esta recusa em falar de um coisa que com
certeza um dia vai acontecer...
GLORIA - (com as mãos nos ouvidos) Eu me recuso a falar nisso.
CORAL - E mais uma coisa, já é tempo de parar com esta mania de clausura. Porque nos
isolarmos do mundo?
GLORIA : Você sabe o porque. Não quero aparecer diante dos meus admiradores de outra
maneira que não seja a divina Gloria Lamarc.
CORAL - Não minta Gloria. Você tem outros motivos e não quer que transpareça.
GLORIA - Não é verdade.
CORAL - Porque você não aparece nem sequer para o teu filho?
GLORIA - Nosso Coral, lembra? Nosso.
CORAL - Chega de representação, fora do palco você é uma péssima atriz. Pensa que não me
doi sentir quando êle chega todas as semanas à nossa porta e deixa os mantimentos e outras
coisas mais e se retirar lentamente? Parece que o estou vendo.
GLORIA - Por favor pare. Eu não suporto mais.
CORAL - Não, não chega Gloria, hoje nós vamos falar de tudo que é tabú nesta casa.
GLORIA - E tem algo mais?
CORAL - Tem, você sabe que tem. (Pausa) Eu tenho pena de você gloria.
GLORIA - Pena porque? Eu não quero a sua pena.
CORAL - Você tem medo, só que não diz.
GLORIA - Medo, eu? De que por exemplo?
CORAL - Te falta coragem de dizer e relembrar certas coisas.
GLORIA - Não é verdade.
CORAL - a palavra remorso não te diz nada?
GLORIA - E porque haveria de dizer?

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CORAL - Cartas na mesa Gloria. Tem algumas coisas trancadas na minha garganta não sei
quanto tempo faz.
GLORIA - Você não vai falar de...
CORAL - Vou. Um dia seria inevitavel e peso que hoje é chegado o momento certo.
GLORIA - Bobagem Coral, porque mexer em coisas que já passaram?
CORAL - Prá você passou, mas prá mim marcou muito forte.
GLORIA - Você está imaginando coisas...
CORAL - Não, não estou. Eu sei de tudo com detalhes.
GLORIA - Mas como você pode saber? Você nunca me disse nada.
CORAL - Tem uma coisa que se chama discrição.
(Luz apaga. Acende luz bassa em outro plano do palco.
HOMEM - (Entrando) (à Gloria) Olá. Gostaria de falar com Coral.
GLORIA - Ele não está, saiu para fazer compras.
HOMEM - Então eu volto mais tarde.
GLORIA - Absolutamente. Fique e espere, êle não deve demorar.
HOMEM - Eu não gostaria de atrapalhar...
GLORIA - Não atrapalha em nada. Fique à vontade. (Observando-o) Espere, você não é o
amiguinho que Coral tanto fala?
HOMEM - (EMBARAÇADO) Não sei, talvez seja.
GLORIA - Não precisa se envergonhar, eu e Coral jogamos aberto. Não temos segredos.
HOMEM - Talvez seja melhor voltar outro dia
GLORIA - coral me falou muito a seu respeito. Você é diretor de teatro não é mesmo?
HOMEM - É...estou desenvolvendo um roteiro...
GLORIA - Que beleza, posso saber como é?
HOMEM - Não sei, eu apenas estou começando.
GLORIA - Todos começam um dia. Depois todo bom roteiro, com um boa atriz, certamente
será sucesso.
HOMEM - Coral gostou muito.
GLORIA - E já escolheu a estrela?
HOMEM - Bem...eu escrevi para Coral.
GLORIA - Ah, Coral. Você é bem jovem tem um futuro brilhante, certamente. Você é
casado?
HOMEM - Não.
GLORIA - Você vive somente de teatro?
HOMEM - Não, eu trabalho em uma rádio.
GLORIA - Facinante, eu acho o rádio um veículo facinante. Aceita um drink?
HOMEM - Não obrigado.
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Lenine Linera

GLORIA - (Se serve de bebida observando-o) Você é amante de Coral, não é verdade?
HOMEM - (Embaraçado) Minha senhora...
GLORIA - quanta bobagem, eu sou uma mulher evoluida, não ligo para isso. Você já teve
esperiências com mulheres?
HOMEM - É logico que sim. Porque esta pergunta?
GLORIA - por nada. Coral não é exatamente um adonis. Não vejo o que você encontrou nele.
HOMEM - Tem coisas que não tem explicação e necessariamente não é preciso explicar.
GLORIA - Entendo. (Aproxima-se) Você é muito interessante.
HOMEM - Eu?
GLORIA - Você sim. Já pensou unir o seu talento com a minha arte, meu sucesso?
HOMEM - Não, nunca pensei. Afinal você é uma estrela famosa e eu um ilustre
desconhecido.
GLORIA - E daí? Eu estou disposta a participar de um trabalho seu. Apostar no seu talento.
HOMEM - Verdade? Seria muito importante para mim.
GLORIA - (Abrindo os braços. Então.. Luz novamente em Coral e Gloria) Então todo este
tempo você sabia de tudo? E nunca me disse nada?
CORAL - Na vida tudo tem seu curso normal. Assim como o rio sempre corre para o mar, o
homem é para a mulher.
GLORIA - E suportou tudo calado?
CORAL - E que adiantaria eu gritar, brigar? Depois veio o filho.
GLORIA - o filho, meu e dele.
CORAL - Mais do que nunca eu me dediquei àquela criança. Eu via nela um prolongamento
do pai. Depois veio aquela viagem ao redor do mundo. Lá foram voces e eu fiquei com meu
pequeno menino. Inversamente do que todos poderiam esperar, eu supri com muito amor a tua
ausencia. Acompanhei a cada instante a evolução daquele pequeno ser, que alheio a tudo via
em mim a figura da mãe.
GLORIA - (Baixo) Pare.
CORAL - (Mesmo tom) - Não vamos até o fim. Você voltou só, aquilo que prá você foi uma
aventura, para mim representou parte da minha vida.
GLORIA - (Pausa) E agora?
CORAL - Agora eu vou embora.
GLORIA - Embora?
CORAL - Sim, o melhor agora para nós é eu ir.
GLORIA - E vai me deixar só?
CORAL - Você nunca vai estar só, você tem tem suas glorias, seus trofeus para lhe fazerem
companhia.
GLORIA - Pois vá. Eu suportarei. Não vai apanhar suas coisas?
CORAL - Não, eu já não preciso de nada.

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Indivisível dualidade

GLORIA - Leve seu cachecol, pode estar frio lá fora.


CORAL - (Olhando ao redor) Tantos anos...
GLORIA - (Coral já se encaminha para saida) - Coral...Fique ( Luz apaga e acende em outro
plano do palco.)
HOMEM - Coral, eu preciso te falar.
CORAL - Meu Deus que cara mais séria. Que houve?
HOMEM - conversa que vamos Ter eu penso que não será a mais agradavel.
CORAL - Não me diga que não terminou o roteiro?
HOMEM - Terminei, mas não é exatamente isto.
CORAL - E o que é então?
HOMEM - Coral, as coisas na vida nem sempre são exatamente como a gente quer.
CORAL - Você me assusta.
HOMEM - Eu preciso da tua compreensão.
CORAL - Uma...uma mulher?
HOMEM - Não é só isto, a minha carreira...
CORAL - Posso sabem quem é?
HOMEM - Me perdoe Coral é uma coisa mais forte. Não pense que isto não me doi, Eu gosto
de você, gosto mesmo. Você foi a única pessoa que me deu a mão quando eu precisei.
Acreditou em mim e até financeiramente me ajudou.
CORAL - Pra que todo este discurso? Você vai embora não é mesmo? Não vamos
transformar esta despedida num final de romance barato. Boa sorte meu amigo. (Volta a cena
anterior)
GLORIA - Coral, fique.
CORAL - Pra que?
GLORIA - Não sei se você vai entender, mas existem coisas traçadas e ninguem pode mudar.
CORAL - Ninguem?
GLORIA - Ninguem. Nem nós mesmos. (Tom) Olhe fique vamos refazer muitas coisas.
CORAL - Por exemplo?
GLORIA - Para começar, vamos abrir aquela janela que dá para os fundos.
CORAL - (Sorrindo) ora vejam quanto avanço!
GLORIA - Isto, eu quero te ver assim, com aquele sorriso colgate. (Riem)
CORAL - Gloria você é uma lêndia, um coliforme, vai trançando suas teias e quando vemos
estamos irremediavelmente prêsos.
GLORIA - Eu não estou prendendo você, você é que está preso a mim. Não por grilhões, mas
por um coisa maior.
CORAL - Talvez seja. É como uma roda viva, um moto contínuo, nós vamos rodando sempre
à frente, como que mudando de dimensões. Cada vez mais distante e incompreensivelmente
no mesmo lugar.
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Lenine Linera

GLORIA - E isto não é bom?


CORAL - É possivel. Talvez seja, não sei até que ponto.
GLORIA - Coral, lembra daquelas brincadeiras que fazíamos?
CORAL - Qual?
GLORIA - Vem cá. Faz uma cara de alegre.
CORAL - Não Gloria. (Rindo)
GLORIA - Sim senhor. Uma carinha de alegre. (Ele faz. Riem) Agora uma cara de triste. (Ele
faz) Uma de brabo.
CORAL - Chega Gloria já estou muito...vamos brincar de outra coisa.
GLORIA - Já sei, me conta um história.
CORAL - História?
GLORIA - Claro, aquelas que você mistura tudo.
CORAL - Tá bom, lá vai: quando aquela história terminou e foi dito foram felizes para
sempre, começaram os equívocos. Branca de Neve estava me pela crise conjugal. Por golpe
de esquerda o principe foi deposto. A coisa apertou e eles foram obrigados a entregar o
castelo e ir morar num quarto e sala. Os anoenzinhos coitados botaram o pé no mundo e cada
qual foi para o seu lado. Aproveitando uma saida do principe, que fora ao dentista colar a sua
dentadura, Branca de Neve foi visitar Rapunzel, que tinha sacudido a poeira e agora
participava de um movimento clandestino. Rapunzel agora usava um corte de cabelo muito
chic, bem curtinho, ala homem, e esta curtindo outra. Era lésbica.
CORAL - O encontro das duas foi muito efuzivo com beijinhos e umas doses de cuba libre.
Branca de Neve ficou intusiasmada com os trabalhos em couro que Rapunzel fazia e até se
propuseram a fazer uma sociedade e montar uma butique de artesanato. Conversa vai
conversa vem, Branca ficou sabendo do paradeiro dos seus anõezinhos. O Zangado virou
alcoólatra. O Dengoso era bicha e fazia números de transformismo num cabaré no baixo
Leblon. O único que estava a deriva era o Dunga. Branca de Neve então levou êle para casa e
estava muito feliz de Ter novamente um de seus anões com ela. A primeira coisa que fez foi
dar um banho nele como sempre fazera. Depois levou para cama e perguntou:
- Que que você quer agora?
-Anãozinho qué tranza...
- O que seu anãozinho tarado? Fora! Rua!
Êle sai fazendo ameaças que um dia ia voltar e então...
(Os dois riem e ficam estáticos. Entra homem de idade, caminha por tudo olhando e tocando
com carinho.)
HOMEM - Quanta saudade vou sentir. Hoje é o último dia, à quanto tempo eu venho aqui.
Tudo abandonado. Este lugar me traz tantas lembranças. Aqui morou uma grande estrela:
Gloria Lamarc, ela e seu fiel amigo Coral, que também era um famoso artista transformista.
Até hoje nunca se soube muito bem o que aqui se passou. Um dia ainda no auge do sucesso,
Gloria e Coral desapareceram, ninguém sabia do seu paradeiro. Somente eu. Viveram aqui
enclausurados por muitos anos. Todos faziam especulações a respeito, mas ninguém sabia do
paradeiro dos dois. Certo dia alguém conseguiu arrombar a porta e entrou.
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Indivisível dualidade

- Foi manchete nos jornais. Os dois estavam mortos. Ela sentada na cadeira de balanço com o
tricot às mãos e Ele sentado no chão encostado em suas pernas. Por incrível que pareça, os
dois se fitavam e em seus rostos brincava um suave sorriso infantil. Muitos dizem que este
lugar é mal assombrado, pois afirmam ouvir vozes, risos e até músicas. (Caminha em Cena) -
Adeus Gloria! Adeus Coral! (Sai. Coral levanta e sai para a cochia como no inicio da peça. -
Começa a tocar a mesma música, Abajour Lilás)
GLORIA - (Tricotando) Coral. Coral.
CORAL - O que é mulher da vida! (Continuam a cena baixinho enquanto o pano fecha.)

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