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TER/HAVER + PARTICÍPIO
PASSADO: UM CASO DE
MUDANÇA NO
PORTUGUÊS ARCAICO
2014
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico
Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante
Examinada por:
______________________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Silvia Regina de Oliveira Cavalcante (UFRJ)
_______________________________________________________________________
Professora Doutora Célia Regina dos Santos Lopes (UFRJ)
_______________________________________________________________________
Professor Doutor Leonardo Lennertz Marcotulio (UFRJ)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2014
Medeiros, Carolina Salgado Lacerda Medeiros.
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico / Carolina
Salgado Lacerda Medeiros. – Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2014.
vi, 154f.:il.;
Orientador: Profª Drª Silvia Regina de Oliveira Cavalcante
Dissertaçao (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas, 2014.
Referências bibliográficas: f. 131 – 138.
1. Verbos auxiliares. 2. Particípio Passado. 3. Tempos Compostos. 4. Gramaticalização.
I. Medeiros, Carolina Salgado Lacerda. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Título:
Ter/haver + particípio passado: um caso de mudança no Português Arcaico
RESUMO
This paper presents a diachronic study of the composite structures formed with
ter/haver (have) + past participle in Old Portuguese. The study investigates how and in what
contexts such structures went from transitive-predicative constructions to periphrastic
constructions with perfective value. We deal with the change of ter and haver from full
verbs to auxiliary verbos as a case of grammaticalization, based on the framework of
Roberts & Roussou (2003).
The interest in this subject justifies itself in the fact that Old Portuguese presents
two types of participle constructions: (1) transitive-predicative constructions formed by ter
and haver, which are full lexical verbs with semantic value of ownership, plus an participle
that behaves as an adjective, agreeing in gender and number with the direct object of
ter/haver. After a process of change, this construction gives place to (2) a periphrastic
structure formed with ter and haver, which are auxiliary verbs, plus a past participle, which
was reinterpreted as a full verb. In order to investigate the formation of the second type of
construction, this study aims to identify the contexts that led to the change of ter and haver
from full to auxiliary verbs, describing the process of grammaticalization they went through
and the linguistic settings that worked on the passage of the past participle from adjective
to verb.
Using Portuguese texts from the 13th to 16th centuries and a formal theoretical
perspective on the process of grammaticalization (ROBERTS & ROUSSOU 2003), this
dissertation shows that the process of change that culminated in the emergence of
compound tenses in Portuguese involves a process of structural simplification. To do so, we
work with the hypothesis that the constructions with ter/haver + past participle have
suffered the loss of one syntactic movement operation. Due to it, ter and haver were
reanalyzed as auxiliaries, the past participle was reanalyzed as a verb and, as a consequence
of that, such constructions were reinterpreted as constructions of compound perfective
tense. The results suggest, based on the analysis of morphosyntactic elements such as
presence or absence of inflectional marks of agreement between the past participle and the
complement and the fixation of word order in Old Portuguese, that such change has already
occurred in the 13th century.
Esta pesquisa foi parcialmente financiada por uma bolsa CNPq.
“Enquanto eu tiver perguntas e não houver
resposta continuarei a escrever”.
A hora da estrela Clarice Lispector
À família, aos amigos.
Pelo apoio.
Agradecimentos
Índice de Figuras.............................................................................................................. iv
Introdução ....................................................................................................................... 1
2.2. Metodologia......................................................................................................... 34
2.2.1. O corpus......................................................................................................... 34
3.5. A gramaticalização de ter e haver e a emergência dos tempos compostos ........... 122
Conclusão..................................................................................................................... 130
Índice de Tabelas
Índice de Gráficos
Índice de Figuras
SG – singular
PL – plural
1P – primeira pessoa
2P – segunda pessoa
3P – terceira pessoa
1 SG – primeira pessoa do singular
2 SG – segunda pessoa do singular
3 SG – terceira pessoa do singular
1 PL – primeira pessoa do plural
2 PL – segunda pessoa do plural
3 PL – terceira pessoa do plural
NP – noun phrase (sintagma nominal)
AP – adjectival phrase (sintagma adjetival)
VP – verbal phrase (sintagma verbal)
PTP – particípio passado
SC – small clause
PA – Português Arcaico
CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval
GU – Gramática Universal (Universal Grammar)
Língua-I – Língua Interna
Língua-E – Língua Externa
FF – Forma Fonética
FL – Forma Lógica
C-I – Sistema Conceptual-Intencional
A-P – Sistema Articulatório-Perceptual
R&R – Roberts & Roussou (2006)
Testamento de Dom Afonso II (século 13) – TL13
vi
(1) a. E dhy partyo logo pera Bizcaya, que tiinha prometida ao iffante do~ Joha~, seu
primo. (CA14-048; Crónica de Afonso X; século 14)
b. "Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua
voontade e e´s metida em tuas çujas forniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te
rreceberei docem[en]t(e)". (CP15-013; Castelo Perigoso; século 15)
(2) a. Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as
posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de
Graada. (CA14-001; Crónica de Afonso X; século 14)
b. E despois d este rey ter acabado ysto, e ter alcamçado tanta vitorya de seus
ymmiguos, vemdo se ja homem de hidade desejamdo de descamsar em sua velhice, e
que hu~u filho que tinha ficasse rey por sua morte, detreminou de ho fazer rey em sua
vida. (CRB16-052; Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
Capítulo 1
em Português
formados por ter/haver + PTP, formas compostas que substituíram, no Português Arcaico
(PA), as formas flexionadas do Latim.
Em PA havia um conjunto de estruturas formadas pelos verbos ter e haver + PTP,
que admitiam duas interpretações. Inicialmente, as perífrases eram formadas por ter e
haver, sendo estes verbos lexicais com conteúdo semântico pleno, com valor de posse; o
PTP que acompanha estas estruturas funciona como um adjetivo, com a função de
modificador do complemento direto de ter/haver. Observem-se, abaixo, exemplos deste
tipo de construção em (1) e (2).
(1) E out(ro)ssi ma~do das dezimas das luctosas e das armas e dout(ra)s dezimas q(eu) eu
tenio apartadas en tesouros per meu reino, q(eu) eles as departia~ assi como uire~
por derecto. (TL13-001; Testamento de D. Afonso; século 13)
(2) E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e| nono
possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou a ffaz(er)
e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001; Foro Real de D. Afonso X;
século 13)
tenho/possuo dízimas e estas dízimas estão/são apartadas (divididas) em tesouros, para (1),
e que [alguém] haja/possua uma vida e que esta vida seja amarga e sofrida, para (2).
Além da questão da concordância entre o PTP e o complemento direto de
ter/haver, outro fator que evidencia o caráter adjetivo destas estruturas é a ordem dos
constituintes da sentença. No PA, ainda que a ordem típica dos elementos frásicos seja do
tipo V2 (cf. RIBEIRO 1995), nas construções com PTP esta ordem não era bem definida. Nas
construções em questão, eram possíveis ordens do tipo V1 NP PTP, NP V PTP ou PTP V NP2.
Nos exemplos (1) e (2) são observadas as ordens NP V PTP, para (1), sendo o complemento
relativizado neste caso, e V NP PTP, para (2). Somente após o processo de gramaticalização
pelo qual passam ter e haver que a ordem dos constituintes irá se fixar em V NP PTP, para as
construções adjetivas, e em V PTP NP, para as construções de tempo composto.
Após o processo de gramaticalização de ter e haver, a partir do qual estes verbos
tornam-se auxiliares, algumas mudanças tomam lugar nas construções com PTP. Como visto
acima, a ordem dos constituintes é fixada; além disso, perdem-se as marcas de
concordância do PTP com o complemento de ter/haver, sendo o PTP não mais um adjetivo,
mas um verbo. Na estrutura gramaticalizada, ter e haver perdem seu conteúdo semântico
de posse e deixam de ser os predicadores da sentença. Este papel é agora exercido pelo
PTP, que seleciona semanticamente os argumentos da perífrase. Observem-se, abaixo, os
exemplos (3) e (4), das construções com ter/haver + PTP, já gramaticalizadas.
(3) (...) partindo se el rey pera seu reyno, por respeyto da nova que lhe hera vymda,
deixamdo o reyno de Bisnaga em poder de Meliquy niby, sabido por toda a terra como
era fora d ella, os que escapara~o pellas montanhas, e outros, que contra suas
vontades com temor lhe tinha~o dado as menage~es das villas e lugares. (CRB16-010;
Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(4) Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as posturas
e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de Graada.
(CA14-001; Crónica de D. Afonso X; século 14)
Os exemplos acima mostram construções dos séculos 16 e 14, respectivamente, em
que ter e haver funcionam como verbos auxiliares, portanto, construções já
1
Ter/haver
2
Estas foram as ordens observadas no corpus utilizado nesta Dissertação.
8
gramaticalizadas. Nas estruturas acima observamos que o PTP não exibe marcas de
concordância com o complemento, evidenciando seu caráter verbal. Como é possível notar,
no exemplo (3) o PTP posto não concorda com o complemento feminino, plural as posturas
e ave~enças; o mesmo se observa em (4), em que o PTP dado não concorda com o
complemento, também no feminino, plural as menage~es das villas e lugares, o que seria
uma evidência para a interpretação destes PTPs como verbos, e não como adjetivos. Além
disso, nota-se a sequência V PTP na ordem dos constituintes frásicos, sequência típica dos
tempos compostos em Português, que exibem a ordem auxiliar-auxiliado. Por fim, o valor
semântico exibido pelas sequências ter/haver + PTP é, após a mudança, o de uma ação
concluída, permitindo a leitura [o rei] lhe deu as homenagens das vilas e lugares, para (3), e
o rei dom Fernando pôs [firmou] posturas e avenças com o rei de Granada, para (4).
As construções inovadoras de tempo composto geradas a partir da
gramaticalização de ter e haver e da reinterpretação do PTP como verbo convivem,
atualmente, com a forma antiga, formada com ter/haver plenos + PTP adjetivo, uma vez que
o processo de reanálise que subjaz a gramaticalização não pressupõe a exclusão da
estrutura conservadora da gramática da língua em questão. Observem-se as estruturas em
(5) e (6), abaixo.
3
Exemplo do portal O Globo de notícias online, disponível em http://ela.oglobo.globo.com/moda/veja-as-
celebridades-que-tem-usado-givenchy-nos-tapetes-vermelhos-8701149 (acesso em 11/12/2013).
4
Exemplo retirado do portal BOL de notícias online, disponível em http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-
noticias/entretenimento/2013/11/11/globo-ja-tem-novela-inteiramente-escrita-antes-da-estreia.htm (acesso em
11/12/2013).
9
sequência tem novela escrita (V NP PTP), ordem típica das construções adjetivas, além das
marcas de concordância entre o PTP escrita e o NP novela. As construções adjetivas com
PTP são formadas exclusivamente com ter, uma vez que haver não expressa valor de posse
no Português contemporâneo.
Na subseção seguinte apresentaremos um panorama histórico das estruturas
formadas por ter/haver + PTP desde o Latim até o Português, fazendo uma breve revisão
bibliográfica e descrevendo mais detalhadamente o funcionamento das construções em
questão.
5
Dicionário Essencial de Latim, Porto Editora, Porto, 2001.
6
Forma arcaica para ‘barbas’.
11
tornar o verbo mais produtivo em construções com PTP. Por outro lado, o verbo haver
adquire no PA outras acepções, como a significação existencial, contexto posteriormente
associado também a ter.
Os dados de Mattos e Silva (1989, 1992, 2002) mostram que no século 14 ocorre
variação entre haver e ter em estruturas do tipo (i) (posses inerentes), sendo haver o verbo
favorito. Em relação a (ii), havia variação entre os dois verbos, com predominância de haver
e, para (iii), também havia variação, mas com predominância de ter. Em relação a ter, no
século 14, sua difusão se inicia nas estruturas de posse do tipo (iii) – materiais adquiríveis –
se estendendo posteriormente para os contextos explicitados em (ii) e em (i),
respectivamente. Finalmente, na segunda metade do século 15, ter sobressai-se em
comparação a haver. Segundo Mattos e Silva (1992), a mudança semântica que se
processava no período arcaico do Português já vinha prefigurada da estrutura latina, em que
já se documentava a interseção semântica entre esses dois verbos, como visto acima.
O surgimento das perífrases perfectivas em Português foi motivado, segundo
Câmara Jr. (1969), por uma questão aspectual. No Latim, o verbo, além de receber flexão de
número e pessoa, apresentava marcas morfológicas que expressavam aspecto, tempo e
modo. Com o tempo, os traços que marcavam aspecto, por serem menos produtivos, foram
se perdendo, resultando em um rearranjo do sistema verbal latino que, posteriormente,
teria dado origem às construções de ter/haver + PTP, que dariam origem aos tempos
compostos em Português. Nas construções perifrásticas de tempo composto, o verbo
auxiliar se combina com uma forma verbal – neste caso, o PTP – não só para expressar
tempo e modo, mas também aspecto; por este motivo Câmara Jr. afirma que a perda da
marca morfológica de aspecto em Latim tenha originado as construções participiais com
valor perfectivo.
Segundo Said Ali (1964: 161-162), as formas de passado composto e simples são
dois aspectos do mesmo verbo. Assim, ver e ter/haver visto são dois aspectos do verbo ver.
No primeiro caso, a ação é expressa vagamente; no segundo, a ação é definida como
consumada. De acordo com o gramático, no pretérito perfeito, o verbo desta conjugação
composta significava a mesma coisa que na conjugação simples: teve visto e viu eram coisas
idênticas, mas o uso baniu a forma mais longa. Dias (1959:191), por outro lado, afirma que
as construções perifrásticas com ter e haver não apresentam diferença de sentido em
relação às formas de passado simples: “sobretudo em or. temporaes, o port. arch. medio
12
7
Tal subclasse seria composta pelos verbos ditos inacusativos.
13
(6) a. todos bees mh' á feitos (DSG 4.32.8 cf. Mattos e Silva 1992:92)
b. e, tanto que ele teve quisado todo, foi-se espedir del rei (LRR V. 106-107 cf. Mattos e
Silva 1992:92)
15
(7) a. E a mollier do conde, que já havia sabido e não sabida de sua filha toda sua fazenda
(LRR VIII. 15-16 cf. Mattos e Silva 1992:93).
b. E non sabedes vós quanto afam e trabalho ayades tomado não tomados e quantas
espadadas e seetadas havedes levadas (LRR X. 13-14 cf. Mattos e Silva 1992:93).
(8) a. Eu tinha as cartas escritas quando ele chegou. (cf. Mattos e Silva 1992:93)
b. Eu tinha escrito as cartas quando ele chegou. (idem)
Segundo o autor, nas construções com ter e haver o PTP continua a exercer a
função de anexo predicativo referido ao objeto, isto é, exerce a função de adjetivo, até o
século 17, quando perdem-se as marcas de concordância entre o PTP e o complemento.
Seria desta construção de caráter adjetivo que surgem as formas verbais compostas,
formadas por ter e haver, que perdem conteúdo semântico: “passou-se assim da
justaposição de formas verbais simples, independentes e de igual valia, à subordinação de
um elemento ao outro, considerando-se como verbo principal o particípio e ter [e haver]
como simples auxiliar. Esta combinação naturalmente só era possível quando um e outro
ato procediam do mesmo autor, isto é, quando o agente da ação expressa pelo particípio
não diferia do sujeito do verbo ter” (SAID ALI 1964:160).
Ribeiro (1993), com base no quadro de gramaticalização de Roberts (1992),
baseado na Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY 1981), analisa o fenômeno em
termos formais. Para a autora, a formação do tempo composto envolve a mudança de uma
categoria lexical para uma funcional, envolvendo perda de valor semântico e de estrutura
temática, tratando a passagem de haver e, posteriormente, de ter de verbo pleno a auxiliar
em termos de uma Reanálise Diacrônica (cf. ROBERTS 1992). Viotti (1998), também com
base no quadro de gramaticalização formal de Roberts (1992), mas se baseando nos
pressupostos do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), sugere que o verbo haver se
transformou em uma categoria funcional, e o verbo ter está também em processo de
reanálise diacrônica, pois a perda de conteúdo semântico que estes verbos sofreram e vêm
sofrendo ao longo de sua história é suficiente para que eles atinjam uma etapa em que
funcionem como uma categoria funcional. Os capítulos 2 e 3 tratarão em mais detalhes das
diferentes propostas para a gramaticalização de ter e haver em verbos auxiliares.
Acerca das perífrases formadas por habere + PTP em Latim, Roberts & Roussou
(2003) sugerem que a presença deste verbo em construções perfectivas com PTP não
implica que habere seja um auxiliar. Nestes contextos, habere é um verbo lexical que
seleciona um complemento participial, interpretado pelos autores como uma small clause.
Observe-se o exemplo (9) abaixo, retirado de Harris & Campbell (1995:182).
(9) in ea provincia pecunias magnas collocatas habent. (Harris & Campbell 1995:182)
In this province capital great invested have-3pl
17
8
‘Eles tem grande capital investido naquela província’ [minha tradução]
9
“Neste estágio inicial habeo não funcionava necessariamente como um auxiliar nas construções perfectivas.
Ao invés disso, podemos assumir que funciona como um verbo lexical que seleciona um complemento
participial (small clause)” [minha tradução].
18
10
Em línguas que possuem apenas um auxiliar para estes contextos, o mesmo verbo é usado, (cf. avoir, do
Francês) apresentando os valores semânticos de ter e de haver, simultaneamente, funcionando em
construções perifrásticas perfectivas, construções de posse e existenciais.
19
1.3 Resumo
Capítulo 2:
Base teórico-metodológica
(1) “E se pella uentura o s(er)uo uendudo auya feyto alguu mal ou alguu dano, o que o
(con)parou, se o non sabia, torneo aaquel d(e) que o (con)parou e receba seu preço”.
(FR13-019; século 13)
23
11
Em inglês UG, universal grammar.
24
12
Em inglês LF, logical form.
13
Em inglês PF, phonetic form.
25
moldes da Teoria X-barra14. Assim, da mesma forma que NP, VP, AP e PP são projeções
máximas dos núcleos N°, V°, A° e P°, respectivamente, DP, TP e CP são também as projeções
máximas dos núcleos D°, T° e C° respectivamente, apresentando, na representação
sintagmática, uma posição de complemento e uma de especificador, como se exemplifica
abaixo, na estrutura em que X é um núcleo lexical ou funcional.
14
O quadro mais recente para as representações sintagmáticas (bare phrase structure, cf. Chomsky 1995,
2000) poderia ser aqui utilizado. No entanto, nesta Dissertação optamos por utilizar o modelo clássico da
Teoria X-Barra (CHOMSKY 1981).
26
Concatenar – são necessárias para que a derivação aconteça e não são custosas do ponto de
vista da economia gramatical. Por outro lado, as operações Agree/Mover implicam custos
ao sistema computacional, uma vez que, para que aconteçam, é necessário que antes tenha
operado uma operação de Concatenar, e são utilizadas para que determinados traços,
denominados não-interpretáveis, sejam valorados no decorrer da derivação.
Como se pode observar por meio das operações sintáticas apresentadas acima, a
noção de economia está presente no Programa Minimalista. Os Princípios de Economia são
aplicados tanto às representações quanto às derivações. A mesma noção é importante no
modelo de gramaticalização de R&R, como veremos mais adiante.
Em relação à aplicação dos Princípios de Economia às derivações, a operação
Concatenar é menos custosa que a operação Mover. Assim, existem alguns princípios que
regularam a atuação de operações de movimento mais custosas à gramática, como o menor
esforço (least effort strategy), o movimento mais curto15 e o último recurso (a aplicação da
operação de movimento só ocorre quando não há outra operação menos custosa
disponível). Outro princípio seria a procrastinação, em que o movimento ocorre somente
em FL. Esses princípios pertencem à gramática de qualquer língua natural.
No modelo Minimalista, assim como em versões anteriores da Teoria, a diferença
entre as línguas é explicada com base na noção de parâmetros. No modelo de Chomsky
(1981), em que se adota uma concepção binária ([+] ou [-]) para os parâmetros, estes
podem ser marcados para um ou outro valor, sendo positivamente ou negativamente
marcados. Por exemplo, o Princípio da Projeção Estendida16 se refere ao fato de todas as
sentenças apresentarem um sujeito. A este Princípio está relacionado um Parâmetro que
determina se o sujeito deve ser realizado foneticamente ou não, ao menos no que respeita
as sentenças finitas. Esse Parâmetro, denominado Parâmetro do Sujeito Nulo17, seria
marcado, por exemplo, negativamente para o inglês e positivamente para o italiano.
No quadro do Programa Minimalista, Chomsky propõe que o conceito de
parâmetro seja direcionado para as propriedades dos núcleos funcionais, sendo, por isso,
restrito ao léxico. O tratamento dado às categorias funcionais passa a ser o tratamento dado
15
Operações de movimento simples são preferíveis às complexas. Deste modo, movimentos de menor esforço
e mais curtos são preferíveis aos de maior esforço e mais longos.
16
EPP, do inglês Extended Projection Principle
17
Em inglês, pro-drop Parameter
27
aos traços gramaticais presentes nessas categorias. Esses itens estão disponíveis no léxico
assim como os itens lexicais plenos. Neste modelo, os núcleos funcionais estão associados a
traços morfológicos que devem ser checados e apresentam a propriedade de desencadear
movimentos. Considerando novamente o Parâmetro do Sujeito Nulo, nesta nova
abordagem o núcleo funcional AgrS (núcleo do sintagma de Concordância) responsável pela
concordância do sujeito passa a ser parametrizado. Se AgrS é suficientemente rico para
licenciar e identificar sujeitos nulos, têm-se línguas como o italiano; por outro lado, se AgrS
não possui essas propriedades, têm-se línguas como o inglês (cf. ROBERTS e ROUSSOU
2003).
A nova abordagem dos parâmetros permite reduzir a variação entre línguas em
termos das propriedades dos núcleos funcionais. Por exemplo, em relação às línguas que se
diferenciam em termos de morfologia flexional, em uma determinada língua, um núcleo
funcional F apresenta uma forma visível em FF ao passo que em outra língua não. No que
respeita às línguas que se diferenciam em relação a ordem de constituintes, em uma
determinada língua, um núcleo funcional F é capaz de atrair outros materiais e, assim,
desencadear movimentos, ao passo que em outras línguas esse processo não ocorre (cf.
CHOMSKY 1995, 2000).
As subseções seguintes tratarão do fenômeno da gramaticalização primeiramente
em uma perspectiva geral e, em seguida, no modelo de R&R, inserido no quadro da Teoria
de Princípios e Parâmetros em sua versão do Programa Minimalista (CHOMSKY 1995, 2000).
(Least Effort Strategy), segundo a qual crianças em processo de aquisição de linguagem dão
preferência às representações que contêm cadeias com menores quantidades de elos.
Em proposta alternativa à de Roberts (1992), Viotti (1998), propõe que a
gramaticalização ocorre quando um elemento lexical pleno passa por um processo de
esvaziamento semântico a partir do qual não é mais capaz de estabelecer uma relação
predicativa com seus argumentos; isto é, a relação entre esse elemento e seus argumentos
deixa de ser uma relação temática. Como consequência este elemento sofre uma mudança
de categoria, deixando de integrar uma categoria lexical, semanticamente plena e capaz de
estabelecer relações temáticas, e passando a uma categoria funcional, puramente
gramatical. Para Viotti, o desbotamento semântico é a causa da gramaticalização, e não
apenas um fenômeno que lhe acompanha, como ocorre no quadro de Roberts (1992). Na
proposta de Viotti, portanto, a mudança de categoria verificada nos casos de
gramaticalização é uma consequência direta da perda de conteúdo semântico e da aplicação
de princípios gerais que orientam a gramática para estruturas mais simples.
Em outros termos, Roberts sugere que a Least Effort Strategy é responsável por
desencadear a reanálise que provoca a mudança de uma categoria lexical para uma
categoria funcional. Alternativamente, Viotti propõe que um fenômeno semântico, o
semantic bleaching, esvazia uma categoria lexical de sua capacidade de estabelecer relações
temáticas, e, em consequência disso, essa categoria passa a ser reanalisada como uma
categoria funcional distinta.
No caso particular dos verbos ter e haver, Viotti sugere que o verbo haver se
transformou em uma categoria funcional, e o verbo ter está também em processo de
reanálise diacrônica, pois a perda de conteúdo semântico que esses verbos sofreram e vêm
sofrendo ao longo de sua história é suficiente para que eles atinjam uma etapa em que são
gerados diretamente em I, como uma categoria funcional. Isso ocorreria, pois, à medida que
uma categoria lexical perde a capacidade de atribuir papel temático a seus argumentos, a
necessidade de ela ser projetada na parte mais encaixada da estrutura é desfeita, uma vez
que esta é justamente a parte em que se estabelecem as relações temáticas. Assim sendo,
tais elementos poderão ser projetados diretamente nas posições mais altas da estrutura, e,
assim, satisfazer condições gerais de economia, evitando operações custosas de
movimento.
31
A Figura acima mostra que uma geração N compartilha elementos de uma mesma
Língua-I, capaz de gerar enunciados. As amostras de Língua-E da geração N servem de input
para que a geração seguinte, N+1, adquira sua Língua-I. O contato dos aprendizes com os
dados linguísticos da geração anterior fará com que estes falantes aprendam o léxico e,
consequentemente, fixem os valores dos parâmetros em questão. Deste modo, a mudança
linguística é entendida como uma mudança na fixação do valor de um determinado
parâmetro, e se dá durante o processo de aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979,
1991), ocorrendo quando a natureza dos dados linguísticos que servirão de base para a
“fixação” de um parâmetro se torna ambígua para a nova geração, permitindo mais de uma
interpretação. Neste caso, a seleção em favor de um ou outro parâmetro se se dará em
função das representações mais simples.
32
Neste quadro a mudança tem início quando uma população de falantes adquire
uma gramática (Língua-I) que difere em pelo menos um parâmetro da gramática da geração
anterior. Adotando a conceituação de parâmetros de Chomsky (1995, 2000), o modelo de
R&R (2006) propõe um quadro no qual a mudança linguística é correlacionada a alterações
nas propriedades dos núcleos funcionais, podendo ser definida como uma mudança na
realização de núcleos funcionais ou em suas propriedades de atração. Como os parâmetros
são propriedades dos núcleos funcionais e estes estão no léxico, o processo de remarcação
do parâmetro se dará no período de aquisição da linguagem por meio do aprendizado do
léxico.
Com base no quadro teórico da Teoria de Princípios e Parâmetros em sua versão
minimalista (CHOMSKY 1995, 2000), R&R (2003) argumentam que a gramaticalização pode
ser capturada em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais, sendo,
portanto, um caso comum de mudança paramétrica e não uma mudança sintática especial.
Como visto, para os autores, a gramaticalização é entendida como um processo diacrônico
que envolve a criação de material funcional decorrente da reanálise de material lexical ou
criação de novo material funcional por meio da reanálise de material funcional já existente.
Por ser um caso comum de mudança paramétrica, a reanálise, que ocupa lugar central neste
quadro de gramaticalização, ocorre no período de aquisição da linguagem. A aprendizagem
de uma língua, segundo R&R (2003), pode ser descrita em termos de um sistema
computacionalmente conservador, uma vez que prefere representações estruturalmente
mais simples (cf. CLARK e ROBERTS 1993). Observem-se, como exemplo, as representações
abaixo, em que se nota que a estrutura (2) é mais simples que (3), uma vez que em (2) não
ocorrem operações de movimento nem de concatenação e em (3) a concatenação de F a G
resulta em uma estrutura mais complexa:
(2) G
(3) Modelo de simplificação estrutural (R&R 2003:16)
parâmetro der abertura para duas interpretações, o falante optará pela representação mais
simples (2), já que as representações com operações de movimento e concatenação são
mais complexas. Em um caso como este, a estrutura de (3) será reanalisada e, portanto,
reinterpretada no período de aquisição pela nova geração de falantes. Como resultado da
reanálise surge uma construção mais simples em termos estruturais, uma vez que a
operação de movimento é eliminada. Como apontam R&R (2003), a reanálise de (2) em (3)
também pode se dar das seguintes formas: (i) o aprendiz pode reanalisar a categoria movida
F como parte do sistema flexional de G. Esse tipo de reanálise gera uma recategorização de
F como elemento flexional; ou (ii) uma categoria XP pode ser reanalisada como núcleo X.
De modo geral a gramaticalização se dá em função do tipo de núcleo em questão,
que pode ser lexical ou funcional. Observe-se a figura abaixo, que ilustra o processo de
gramaticalização, de acordo com R&R (2003), adaptada de Marcotulio (2012:26).
2.2. Metodologia
A apresentação dos procedimentos metodológicos adotados neste trabalho será
feita em três momentos. Inicialmente será descrito o corpus utilizado no estudo, a
justificativa para a sua escolha e o recorte temporal utilizado. Na seção seguinte, 2.2.2, será
discutida a questão da periodização da Língua Portuguesa e definida a proposta de
periodização adotada na pesquisa. Finalmente, a seção 2.2.3 descreve os processos
metodológicos adotados para a recolha, tratamento e análise dos dados.
2.2.1. O corpus
O trabalho com Linguística Histórica demanda um cuidado, por parte do
investigador, com a escolha das fontes utilizadas na pesquisa. Quando trabalhamos com
manuscritos, é necessária a atenção com alguns detalhes como a datação e a autoria dos
textos, o estado de conservação dos documentos, as diferentes versões que se apresentam
para um mesmo documento, sua veracidade em relação ao original etc. Contudo, nem
sempre temos acesso às informações sobre os critérios utilizados para a elaboração da
edição filológica (cf. VAZQUEZ & MARQUES-AGUADO 2012, entre outros).
A alternativa ideal é que o pesquisador trabalhe com manuscritos originais e faça
sua própria edição crítica. Na maioria das vezes, porém, essa alternativa não é viável,
restando ao pesquisador a seleção de edições confiáveis do ponto de vista filológico.
Nesta dissertação optamos por utilizar textos já editados e digitalizados devido à
praticidade de que as ferramentas online dispõem. A vantagem de utilizar um corpus já
editado está na possibilidade de aumentar a gama de documentos para análise e, assim, foi
35
possível obter mais exemplos para respaldar as hipóteses deste estudo. Deste modo,
utilizamos nesta pesquisa o Corpus Informatizado do Português Medieval18(CIPM), um
corpus constituído por pesquisadores da Universidade Nova de Lisboa. A escolha do corpus
se justifica no período histórico e na variedade de textos literários e documentais que a
plataforma abarca, além da confiabilidade da edição dos documentos.
Os textos utilizados como corpus desta Dissertação constam na tabela abaixo, com
suas respectivas fontes originais19.
Texto Ano
Século 13
Testamento de D. Afonso II (TL13)
Fonte: COSTA, Pe. Avelino Jesus da (1979),
Os mais Antigos Documentos Escritos em 1214
Português, Revista Portuguesa de História,
17, pp. 307-321 (dois manuscritos: Lisboa e
Toledo).
Costumes de Santarém (CS13)
Fonte: RODRIGUES, Maria Celeste Matias 1294
(1992). Dos Costumes de Santarém,
Dissertação de Mestrado, Lisboa, F.L.L., pp.
160-251.
Notícias do Torto (NT13)
Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (1990), 1214
Boletim de Filologia, vol. xxxi, pp. 37-41
(texto crítico).
Tempos dos Preitos (TP13)
Fonte: FERREIRA, José de Azevedo (ed.) in 1280
Roudil, Jean (1986) Summa de los Neuve
Tiempos de los Pleitos. Édition et étude dune
variation sur un thème, Paris, Klincksieck, pp.
151-169.
18
Disponível online em http://cipm.fcsh.unl.pt.
Além do CIPM, há um vasto número de corpora digitalizados na internet, entre eles o Corpus Histórico do
Português Tycho-Brahe, disponível em http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus; o Corpus
Lexicográfico do Português, disponível em http://clp.dlc.ua.pt/inicio.aspx; o Corpus Eletrónico do CELGA –
Português do Período Clássico, disponível em http://www.uc.pt/uid/celga/recursosonline/cecppc; e o Corpus
do Português, disponível em http://www.cdp.ibilce.unesp.br/corpus.php.
19
As referências das fontes originais podem ser consultadas online na página do CIPM
(http://cipm.fcsh.unl.pt/gencontent.jsp?id=92)
36
Século 15
Castelo Perigoso (CP15)
Fonte: NETO, João António Santana (ed.) Data desconhecida
(1997), Duas Leituras do Tratado Ascético
Místico Castelo Perigoso, Dissertação de
Doutoramento, São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras eCiências Humanas, USP.
Edição revista por Irene Nunes.
História dos Reis de Portugal (HRP15)
Fonte: CINTRA, Luís Filipe Lindley (ed.) Data desconhecida
(1951) Crónica Geral de Espanha de 1344,
Lisboa, I. N. C. M.
Livro da Bem Ensinança do Bem Cavalgar
Toda Sela (LBE15) 1437-1438
Fonte: PIEL, Joseph (ed. crit.) (1944) Livro da
Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela.
Lisboa, Bertrand. Edição digitalizada, revista
por João Dionísio.
Textos Notariais (in História do Galego-
Português) (TN15) 1401-1500
Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)
História do Galego-Português, Coimbra, INIC,
pp. 19-295
Século 16
Crónica dos Reis de Bisnaga (CRB16) Data desconhecida
Fonte: LOPES, David (ed.) (1897) Chronica
dos Reis de Bisnaga, Lisboa, Imprensa
Nacional.
Textos Notariais (in Documentos Notariais)
(DN16) 1504-1548
Fonte: MARTINS, Ana Maria (ed.) (2000)
Documentos Notariais dos Séculos XII a XVI.
Edição digitalizada
Textos Notariais (in História do Galego- 1502-1516
Português) (HGP16)
Fonte: MAIA, Clarinda de Azevedo (1986)
História do Galego-Português, Coimbra, INIC,
pp. 19-295.
Textos Notariais (in Clíticos da História do
Português) (CHP16) 1504-1548
Fonte: MARTINS, Ana Maria (ed.) (1994)
38
A divisão dos textos para cada século foi feita de maneira que para cada século
houvesse um número proporcional de palavras, de modo que a obtenção de dados não
fosse influenciada pelo tamanho do corpus. Desta forma, os textos foram selecionados
levando em consideração o número de palavras, a partir do que obtivemos a seguinte
divisão:
TOTAL 101.679
Século 16
Crónica dos Reis de Bisnaga (CRB16) 43.833
Textos Notariais (in Documentos Notariais) 29.136
(DN16)
Textos Notariais (in História do Galego- 3.078
Português) (HGP16)
Textos Notariais (in Clíticos da História do 29.287
Português) (CHP16)
TOTAL 105.334
Tabela 3: Número de palavras do corpus
“(...) olhemos agora para o termo escolhido por cada um para definir a
segunda parte da primeira fase. Serafim da Silva Neto a chama de
“português comum,” Pilar Vasquez‐Cuesta de “português pré‐clássico” e
Lindley Cintra de “português médio”. (...) É interessante ressaltar o termo
de “português pré‐clássico” proposto por Pilar Vasquez Cuesta. Nele,
temos a ideia inovadora de que se trata de um período que, em lugar de
43
esta Dissertação, uma vez que utiliza os mesmos pressupostos teóricos aqui adotados. Ao
trabalharem com o conceito de que a mudança linguística se instaura no processo de
aquisição da linguagem (cf. LIGHTFOOT 1991, 1999), a data de nascimento do autor é levada
em consideração em sua proposta de periodização e não, como as abordagens tradicionais,
a data de elaboração do texto. Contudo, ainda que consideremos esta proposta de
periodização, optamos, nesta Dissertação, por utilizar a proposta tradicional, que considera
os séculos 13 ao 16 como o período dito Arcaico do Português.
Tal opção foi feita em função do corpus utilizado, e da datação adotada no mesmo.
Diferente dos documentos utilizados pelas autoras para sua proposta de periodização, que
levam em conta a data de nascimento dos autores dos documentos, os textos utilizados
nesta pesquisa são datados com base no ano em que foram escritos. Galves, Namiuti e
Paixão de Sousa (2005) e Galves (2007, 2010) utilizam como aporte teórico um modelo de
mudança em que esta ocorre no período de aquisição da linguagem pelo falante. A
mudança ocorre, pois, quando o falante de uma dada geração adquire uma Língua-I
diferente da língua da geração anterior à sua, cuja fala lhe serviu de input. Contudo, quando
se trata de mudança linguística, é necessária a observação da Língua-E para chegar à Língua-
I. Para tanto, necessita-se a utilização de corpora.
Uma mudança ocorrida na Língua-I de uma dada população de falantes será visível,
em algum período histórico, nos documentos escritos deixados por esta geração. Deste
modo, quando observamos um certo aspecto linguístico em um documento, que se
comporta de maneira diferente de um documento de data anterior, estamos fazendo uso de
dados da Língua-E – um documento escrito, neste caso – para capturar uma mudança na
Língua-I. Ao utilizar o ano de nascimento dos autores da documentação utilizada como
critério de datação para a periodização do Português, é possível localizar em que época uma
mudança linguística ocorreu. No que concerne esta pesquisa, ainda que que seja possível
sugerir a data de nascimento do autor com base no ano em que o texto foi escrito, optamos
por não fazê-lo, uma vez que alguns documentos não apresentavam o ano exato de sua
escritura. Porém, da mesma maneira que o fazem Galves, Namiuti e Paixão de Sousa (2005)
e Galves (2007, 2010), ainda que os objetivos da pesquisa de base gerativista seja
fundamentado em questões que levem à compreensão do funcionamento da Língua-I e de
sua aquisição, nos utilizamos, aqui, também, da Língua-E para alcançar mudanças ocorridas
na Língua-I.
45
20
Por exemplo, para a forma haver foram encontradas as seguintes grafias: aver, aaver, ouve, ouvera,
ouvera~, avia, avja, avya~, hej, ej etc. Para ter, encontraram-se formas como teer, tevessem, te~endo, teve,
tiinha, tinham, tiinha~, tem.Alem disso, não se podia prever com certeza com quais formas participais estes
verbos podiam ocorrer, portanto, optou-se pela busca manual.
46
(...) e d esta´ tomada na~o contente com a vitoria que ate ly tinha alcançada fez
muita gente prestes de pe e de cavalo. (CRB16-001 – Crónica dos Reis de Bisnaga;
século 16)
b) Haver
Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as
posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto con el rey de
Graada. (CA14-001 – Crónica de D. Afonso X; século 14)
b) Plural
E foy feita co~ condiça~ que el rey d' Arago~ lançasse fora de seu reyno o conde do~
Enrryque e do~ Tello e do Sancho, seus irma~aos, e que el rey de Castela entregasse
todollos castellos que tiinha tomados a el rey d' Arago~. (CA14-030 – Crónica de
Afonso X; século 14)
(...) e depois de ter ysto feyto, tiramdo aos costumes de seu pay, e llamçamdo se as
molheres, na~o queremdo saber cousa de seu reynno mais que os viços em que se
delleitava, estava muito d asento nesta cidade. (CRB16-015 – Crónica dos Reis d
Bisnaga; século 16)
E dize~ que [Ø] ouvero~ começo quando se a terra guaanhou aos mouros, que os
home~es começava~ de povorar a terra e fazer algu~us lugares cha~aos, dos quaaes
el rey no~ curava seno~ da justiça. (CA14-041 – Crónica de Afonso X; século 14)
47
b) Sem concordância
Se alguu d(e)mandar outro en iuyzo e o demandador lhy teu(er) forçado algu~a
cousa, ben se pod(e) deffender de lly no~ responder ata que o entrege daq(ui)llo
48
q(ue) lhy teu(er) forçado e non entre en iuyzo cono forçador ameos de seer
entregado. (FR13-004 – Foro Real de Afonso X; século 13)
Tipo de concordância
a) Gênero
elrey faz muito gramde honrra ao que daa a beijar os pees, porque as ma~os na~o
daa a beijar a nenhu~a pesoa, e asy quoamdo quer contentar os capita~es, ou
pesoas de quem tem recebidos, ou quer receber serviço, da lhe pachari pera suas
pessoas, que he muita honrra (CRB16-061 – Crónica dos Rei de Bisnaga; século 16)
b) Número
(...) las g(r)andes gerras q(ue) ouuo ent(r)e os señor(e)s com(m)o esso meesmo
pl(ey)tos et letigios entre los abbades q(ue) ouuo em este m(osteyr)o moy longos
t(en)pos por lo q(u)al ouuo reçebidas g(r)andes p(er)das et danos (...) (TN15-014 –
Textos Notariais in HGP; século 15)
c) Gênero e número
"Tu a´s, disse elle, avid(os) muit(os) prazer[e]s e ha´s longo tempo husado de tua
voontade e e´s metida em tuas çujasforniguaço~oes. Mas torna-te a mim e eu te
rrecebereidocem[en]t(e)". (CP15-009 – Castelo Periogoso; século 15)
E, veendo os mouros de Xarez que avyam tempo en que lhe el rey non podia fazer
estorvo pera o que elles tiinham pe~sado, cercaron no alcacer da villa Garçia Gomez
Carrilho co~ os que con el estavom. (CA14-016 – Crónica de Afonso X; século 14)
b) V N PTP
E el rey dom Afonsso outorgoulhe esto e deu aaquel rey mouro terra e que vivesse
en toda sa vida, a qual foy esta: o logar d'Algaba que he acerca de Sevilha, con
todollos dereitos que el rey hy avya e con o dizemo do azeite daly; e deulhe a orta de
Sevilha que chama~ a orta del rey; e rendas certas de maravidiis na judarya de
Sevilha e outras cousas en que este rey Abemafomad ouve ma~tiime~to honrrado
en toda sa vida (CA14-013 – Crónica de Afonso X; século 14)
c) V PTP N
E tem afastado outro mays de sy d esta maneyra [...] (CRB16-071 – Crónica dos Reis
de Bisnaga; século 16)
e) N nulo
E o sobred(i)to oliual q(ue) out(ro)ssy A uya~ no sobred(i)to val de Roy ve´egas
co~mo p(ar)tem p(e)las sobred(i)tas dyuysoes de suso declaradas por as sobred(i)tas
21
N corresponde ao complemento; V ao verbo (ter ou haver).
50
vinha (e) oli´ual (e) ca~po (e) mato q(ue) lhys Assy os sobred(i)tos P(ri)or (e)
Raçoeyros e~ nom(e) da d(i)ta Eig(re)i´a de sam B(er)tholam(eu) escambhadas (e)
p(e)la g(ui)sa q(ue) suso d(i)to he (e) declarado e~ escambho dadas (e) outo(r)gadas
Auya~, (TN14-011 – Textos Notariais in DN; século 14)
b) Século 14
E leixou Joha~ Fernandez de Fenastrosa por fronteyro e~ Taraçona e outros
cavaleyros e ge~tes pelas vilas e castelos que em Arago~ tiinha tomados. (CA14-026
– Crónica dos Reis de Bisnaga; século 14)
c) Século 15
Ora tornem(os) a nossa mate´ria, que avemosleixada. (CP15-002 – Castelo Perigoso;
século 15)
d) Século 16
(...) e determinamdo a fazer guerra ao rey de Bisnaga, e metello debaixo do seu
senhorio, passou as terras que novamente tinha ganhadas entramdo per as d el rey
de Bisnaga (CRB16-002 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
3. Capítulo 3:
Como visto nos capítulos anteriores desta Dissertação, as perífrases formadas por
ter/haver + PTP eram, até os séculos 14/15 (RIBEIRO 1993; MATTOS E SILVA 2002; ALMEIDA
2006; MEDEIROS 2012) construções transitivas-predicativas em que ter e haver se
comportavam como verbos plenos com valor semântico de posse e selecionavam como
complemento um NP e um PTP de caráter adjetivo. Após uma mudança considerada,
geralmente, como um caso de gramaticalização (RIBEIRO 1993; VIOTTI 1996; ALMEIDA
2006; MEDEIROS 2012), ter e haver passam de verbos plenos a verbos auxiliares e o PTP que
integra este tipo de construções é reinterpretado como um verbo, sendo este o predicador
das estruturas em questão.
Neste capítulo apresentaremos a análise dos dados obtidos neste estudo. Deste
modo, consideraremos a mudança pela qual passaram as construções de ter/haver + PTP
em Português como um caso de gramaticalização, com base no modelo de Roberts &
Roussou (2003), exposto no capítulo anterior. Para tanto, descreveremos o processo de
gramaticalização pelo qual passaram as construções em questão, tratando (i) da passagem
de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares e (ii) da reinterpretação dos PTPs de
adjetivos a verbos.
O capítulo está organizado como segue. Na seção 3.2, será apresentado o percurso
de ter e haver em direção à auxiliaridade, de acordo com a literatura revista e os dados
obtidos neste estudo; na seção seguinte, 3.3 será feita uma descrição dos PTPs em
Português, desde sua origem até sua integração nos tempos compostos perfectivos do
Português. A seção 3.4 traz evidências quantitativas e qualitativas para a gramaticalização
de ter e haver, discutindo o comportamento destes verbos nas construções em questão, de
acordo com o quadro de gramaticalização adotado, bem como os fatores morfossintáticos
relevantes para a implementação da mudança que resultou na emergência dos tempos
compostos em Português.
52
22
Dois parâmetros da ordem básica de palavras podem ser fixados no período de aquisição da linguagem pelas
crianças: o parâmetro do núcleo inicial e o parâmetro do núcleo final. Em uma língua de núcleo inicial o
núcleo, i.e., o elemento cujos traços semânticos e formais (como, por exemplo, traços de concordância) são
dominantes, ocorre no início do sintagma. Em línguas de núcleo final este ocorre no final do sintagma. O
Português é classificado como uma língua núcleo inicial, cuja ordem predominante é a sequência SVO.
53
relação gramatical de sujeito em frases com verbos auxiliares faz parte do predicado
organizado em torno do verbo auxiliado. Em construções com verbos auxiliares, o NP sujeito
é selecionado semanticamente pelo verbo auxiliado. Conclui a autora que esta subclasse
verbal se caracteriza por não possuir grade temática e por subcategorizar um complemento
de natureza verbal, um VP.
Castilho (2012) classifica os verbos em verbos plenos, verbos funcionais e verbos
auxiliares. Os verbos ditos plenos são aqueles que funcionam como núcleos da sentença,
selecionando argumentos e atribuindo-lhes papeis temáticos. Os verbos funcionais
representam a classe dos verbos que transferem o papel temático aos constituintes que se
posicionam à sua direita, “reduzindo-se a portadores de marcas morfológicas e
especializando-se na constituição de sentenças apresentacionais, atributivas e equativas”
(CASTILHO 2012:397). Por fim, os verbos auxiliares são os que desempenham papel
semelhante ao dos verbos funcionais, com a diferença de que à sua direita ocorrem verbos
plenos em sua forma nominal, aos quais os auxiliares atribuem categorias de pessoa e
número, funcionando meramente como indicadores de aspecto, tempo, voz e modo.
Segundo o autor, “o fenômeno mais interessante na gramaticalização é a sua
migração de verbo pleno para verbo funcional e deste para verbo auxiliar” (CASTILHO
2012:397). A passagem de verbos plenos a auxiliares pode ser resumida na seguinte escala:
verbo pleno > verbo funcional > verbo auxiliar23
Em relação à passagem de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, Castilho (2012)
afirma que, enquanto estes funcionam como verbos plenos com conteúdo semântico de
posse, selecionam um sujeito possuidor e um objeto direto. Segundo o autor, em Latim
tenere (ter) significava “ter em suas mãos, possuir”, enquanto habere (haver) significava “ter
em sua posse, ser dono, guardar”. A gramaticalização de ter/haver em auxiliares de tempo
composto perfectivo ocorre a partir dos contextos em que estes verbos selecionam um
objeto direto seguido de um predicativo deste objeto, expresso por um PTP, isto é, uma SC.
Tal sintaxe tem origem no Latim Vulgar e, segundo o autor, foi atestada também no Latim
Medieval. Observem-se os exemplos abaixo em (1):
(1) Formação do pretérito perfeito composto (CASTILHO 2012:405)
Habeo epistolam scriptam.
23
Considere-se que a escala proposta não indica uma sequência obrigatória no processo de gramaticalização.
54
No exemplo em (1), habeo exprime sentido de posse, como um verbo pleno. Neste
exemplo, a sentença tem o sentido de tenho uma carta escrita e não tenho escrito uma
carta, portanto uma perífrase de caráter adjetivo. Do ponto de vista sintático, habeo vem
seguido de dois complementos: o objeto direto epistolam e o PTP scriptam:
(1’) Habeo epistolam scriptam. (CASTILHO 2012:406)
Haver (1PS) carta (acusativo) escrita (acusativo)
Segundo Castilho (2012), no contexto acima, o PTP scriptam é ambíguo do ponto
de vista sintático, uma vez que pode ser interpretado como verbo ou como adjetivo. Na
primeira interpretação, tem o sentido de uma passiva (a carta foi escrita); na segunda,
expressa um estado (a carta está em um estado de ser escrita). A primeira paráfrase indica
que o processo de escrita da carta se dá no momento presente; a segunda explicita o estado
resultante deste processo. Nos exemplos (1), (1’), o verbo habeo rege a SC com núcleo
adjetival. O sujeito do PTP, neste contexto, funciona como o objeto direto de habeo. De
acordo com o autor, como nos exemplos acima o predicativo concorda com o objeto direto,
eram frequentes no PA e no Português Clássico ocorrências como as do Latim.
Em relação à mudança que resultou nos tempos compostos de valor perfectivo em
Português, Castilho (2012) afirma que estas estruturas passaram a mudar no seguinte ritmo:
fase 1: [verbo + objeto direto + predicativo] > fase 2: [verbo + predicativo + objeto direto],
isto é, tenho uma carta escrita > tenho escrito uma carta.
Na fase 1, o PTP concordava com o objeto direto. Na fase 2, o PTP ocorre adjacente
a ter/haver e perde o traço de concordância com o objeto direto, ocorrendo uma reanálise
da fase 1. Nesta segunda fase, perde-se também o valor semântico de posse e a de “um
presente que se referia ao passado, ganhando-se a noção de um passado que se refere ao
presente” (CASTILHO 2012:406). Segundo o autor, a mudança do enfoque temporal pode
ter resultado na gramaticalização de ter/haver e do PTP: “o valor de tempo presente
procede de ter/haver, que passam a auxiliares; o valor de tempo passado procede do PTP,
que passa a ocupar o núcleo do predicado (...). O Português preservou a noção de passado
que se estende ao presente: tenho dito significa ‘disse’ e ‘continuo dizendo’” (CASTILHO
2012:406-407).
Ao tratar da mudança de ter e haver de verbos plenos a auxiliares, Ribeiro (1993),
com base no modelo de gramaticalização de Roberts (1992) e na tipologia de verbos
locativos de Clark (1976), também propõe que a estrutura básica de ter e haver nas
55
construções perifrásticas com PTP (estendendo sua análise também para as estruturas com
o verbo ser) é constituída por uma SC, formada por um objeto direto e o predicativo deste
objeto.
Em sua análise, Ribeiro (1993) aponta que o particípio latino teve origem em uma
forma puramente adjetival. Vincent (1982 cf. RIBEIRO 1993) destaca que já no Latim Clássico
(e também no Latim Vulgar), habere ocorria em construções participiais em que o PTP
expressava propriedades ou atributos dos nomes e objetos aos quais se associava. Na
concepção de Ribeiro (1993), as construções formadas por habere + PTP, apesar de
envolverem um sentido exclusivamente passivo, não definiam nenhum tipo de relação
temporal com o seu complemento. As perífrases deste tipo serviam para indicar uma
relação aspectual de um evento concluído ou durativo.
Para a autora, nestas construções, habere impunha um traço passivo ao PTP, mas o
agente da passiva estava, geralmente, omisso, o que permitia duas interpretações da
sentença (2), abaixo:
(2) “in ea provincia pecunias magnas collocatas habent” (Cicero – cf. RIBEIRO 1993: 364)
Em (2) o sujeito de habere pode ou não ser o agente da passiva. Segundo a autora,
o fato de o sujeito de habere e o agente da passiva poderem ter referenciais distintos pode
implicar que habere era um atribuidor de papel temático ao NP sujeito, isto é, um possuidor.
Já o NP complemento pode receber papel temático de tema. Tais conclusões levam a autora
a analisar o verbo habere, nestes tipos de construção, como um verbo pleno que seleciona
um complemento IP contendo um PTP passivo. Em exemplos como (2), habere ainda não
teria sido gramaticalizado como verbo auxiliar aspectual nas construções com PTP do Latim.
Ribeiro (1993) trata a passagem de haver de verbo pleno a auxiliar em termos de
uma Reanálise Diacrônica (RD, cf. ROBERTS 1992). Sua análise se baseia em Lyons (1967,
1968 cf. RIBEIRO 1993) e em Clark (1978), que propõem que as construções existenciais,
locativas e possessivas estão relacionadas, por serem todas originalmente locativas. Tais
construções descrevem a localização de um objeto ou de um ser animado em algum espaço
físico ou na posse de alguém. Deste modo, todas estas construções apresentam um objeto
possuído e um possuidor, este último sendo analisado como um sintagma locativo que
contém o traço +animado. Com base nisto, a autora propõe que ser e haver, por um lado, e
56
ter, por outro, apresentam no PA propriedades distintas nas construções com PTP, sendo
ser e haver verbos auxiliares temporais e ter um verbo que seleciona um complemento
passivo/aspectual.
Como visto acima, Clark (1976) propõe que as construções existenciais, locativas e
possessivas estão relacionadas, pois todas têm como origem comum as construções
locativas. Tal relação se justifica no fato de todas essas construções descreverem a
localização de um objeto ou de um ser animado em um dado espaço físico ou na posse de
alguém. Segundo a autora, as construções exemplificadas abaixo possuem superficialmente
os mesmos constituintes:
(3) Construções locativas (cf. CLARK 1976:87)
a. Existencial: There is a book on the table.
Il y a un livre sur la table.
b. Locativa: The book is on the table.
Le livre est sur la table.
c. Posse1: Tom has a book.
Jean a un livre.
d. Posse2: The book is Tom’s.
Le livre est à Jean.
Para Clark (1976) tanto a quanto b possuem um sintagma nominal (a book/um livre
e the book/le livre) e um sintagma locativo (on the table/sur la table), mas suas ordens de
palavras são diferentes. Do mesmo modo, tanto c quanto d contêm um sintagma nominal
que se refere ao objeto possuído (a book/um livre e the book/le livre) e um sintagma
locativo na forma de um possuidor (Tom). Cada um destes constituintes é usado para
descrever a localização de um objeto, seja em um espaço físico (a e b), seja na possessão de
um indivíduo (c e d).
A proposta de Clark (1976) se estende aos verbos que compõem as construções
locativas, que atuam também como auxiliares nas construções perifrásticas em geral.
Segundo Guéron (1986) e Kato & Nascimento (1990), ambos citados em Ribeiro (1993:356),
os verbos das construções locativas funcionam como verbos inacusativos que selecionam
uma SC, à qual não designam papel temático. Guéron, que estuda o emprego de avoir
(ter/haver) no Francês nas construções existenciais, possessivas e perifrásticas (de tempo
composto), propõe que estas apresentam a mesma estrutura sintática, em que avoir
seleciona como complemento uma SC, formada por dois NPs. Seguindo as proposta de
57
Segundo a autora, nas construções existenciais ser e haver podem ser vistos como
auxiliares verbais, por não estarem associados a um papel temático lexical. O traço
LOCATIVO, que é um papel temático secundário, preenchido, no exemplo (5), pelo NP1 hi ou
pelo PTP nas construções possessivas não conta como argumento lexical do verbo.
A diferença essencial entre as construções existenciais e possessivas está no fato de
o operador da estrutura possessiva ser um NP +animado e +afetado. Neste caso o papel
temático pode ser realizado como um clítico dativo, por um complemento preposicional ou
por um NP possuidor da posse. O papel temático BENEFACTIVO (do NP, que porta o traço
+afetado) não é lexicalmente determinado nem obrigatório e, portanto, não conta para o
58
24
Resumidamente, o Critério Temático determina que cada NP referencial deve receber um papel temático (cf.
CHOMSKY 1981/1982 apud RIBEIRO 1993).
25
Ribeiro (1993) justifica o fato de a presença ou ausência de concordância não ser um elemento definidor da
emergência dos tempos compostos usando como exemplo o Francês: “os tempos compostos com être + PtP
do francês apresentam até hoje concordância sistemática entre esses dois elementos, assim como algumas das
construções com o auxiliar temporal avoir” (RIBEIRO1993:366).
59
26
Ribeiro (1993) utiliza a tipologia de Mattos e Silva (1992, 2002) para qualificar os tipos de posse
semanticamente selecionados por ter e haver.
60
perfectivas com PTP. Contudo, como visto acima, existe uma diferença entre as construções
com ter e as com haver + PTP.
Na análise de Ribeiro, ter seleciona um complemento nominal NP e, devido ao fato
de o PTP ser passivo, ter seria capaz de selecionar a voz do particípio. No entanto, nas
construções com ter + PTP, ter não define tempo em relação ao PTP, apesar de definir uma
relação de aspecto, o que a leva a propor que ter, assim como haver, ainda não é auxiliar
nas construções como as em (7), abaixo, retiradas de Ribeiro (1993: 369-170):
(7) a. a hoste dos godos teve cercada aquela meesma cidade de Parusio per sete anos
continuadamente (DSG 3.14.05)
b. E parando el mentes ao manto que tiinha tendudo antr’os braços (DSG 1.19.13)
c. E a mha cabeça já a el ten metuda na sa boca (DSG 4.36.17)
d. e que lhi mostrasse quen era aquel San Beento que aqueles seus bees tiinha
guardados (DSG 2.31.7)
e. huu gram penedo que nascia hi naturalmente e tiinha todo o logar coberto (DSG
1.13.10)
Ribeiro (1993) propõe, então, que, uma vez que em todos os exemplos acima o NP
complemento de ter é +definido, ter é, nestes contextos, um verbo pleno que seleciona um
NP sujeito e atribui um papel temático ao seu complemento. Deste modo, tanto ter quanto
o PTP têm conteúdo lexical e selecionam os papeis temáticos de seus argumentos. Assim, a
autora propõe que ter seleciona como complemento um IP ou um CP, ao qual atribui papel
temático TEMA. O NP complemento deste tipo de construção seria um argumento
selecionado pelo PTP que, por ser passivo, leva esse NP a ser analisado como um argumento
interno do PTP, exercendo a função sintática de sujeito da cláusula passiva.
Do mesmo modo que ocorre com as construções de haver + PTP, a RD de ter como
auxiliar temporal não elimina da língua as construções em que ter é um verbo pleno e seu
PTP é interpretado como uma passiva. Como visto acima, a motivação da RD de ter como
auxiliar está, segundo Ribeiro (1993:373), no fato de este verbo ocorrer também nas
construções de posse inerente: “os verbos que ocorrem nessas construções funcionam
como auxiliares funcionais, possivelmente gerados em I0. (...) mesmo nas posses1 materiais,
61
geralmente indefinidas, o verbo ter seleciona papeis temáticos secundários. Lembramos que
a não-seleção de papeis temáticos primários é uma característica de auxiliaridade”.
O percurso de ter e haver de verbos plenos a verbos auxiliares envolveu, como
visto acima, perdas de ordem sintática e semântica. Após o processo de gramaticalização,
ter e haver perdem o conteúdo semântico de posse e deixam de funcionar como núcleos
sentenciais, não mais selecionando argumentos externo e interno, nem atribuindo-lhes
papeis temáticos. Esta função é agora exercida pelos verbos no PTP, que passam a funcionar
como os predicadores das sentenças em questão. Ao se gramaticalizarem, ter e haver
passam a ocorrer na ordem fixa auxiliar-auxiliado, isto é, precedendo o PTP e atribuindo-
lhes categorias de pessoa e número, funcionando apenas como indicadores de aspecto,
tempo e modo.
Em relação à motivação da mudança pela qual passaram os verbos em questão,
assumimos, assim como Castilho (2012), que a gramaticalização de ter/haver em auxiliares
de tempo composto perfectivo ocorreu a partir dos contextos em que estes verbos
selecionam como complemento uma SC. A motivação para a gramaticalização
possivelmente se deu devido à reinterpretação do PTP como verbo. Uma vez que este
elemento é reanalisado como uma categoria verbal e, por conta disso, passa a ser o
predicador das construções perifrásticas em questão, ter e haver perdem esta função,
passando a funcionar apenas como verbos auxiliares de tempo composto.
A observação do corpus permitiu acompanhar a mudança de ter e haver em direção
à auxiliaridade. Em um primeiro estágio, ter/haver funcionam como verbos plenos ou
principais, e são o núcleo semântico da oração. Deste modo, nas construções com PTP,
ter/haver selecionam semanticamente o sujeito da oração, de caráter +animado; como
complemento, selecionam uma SC, formada por um objeto direto e um PTP de caráter
adjetivo. Note-se que foram encontradas também construções participiais em que haver
expressava conteúdo existencial, não selecionando, portanto, um argumento externo, como
veremos mais adiante. Observem-se os exemplos abaixo, de construções com ter e haver
plenos:
(8) E alem de ter esta gente, la tem suas pemsso~is que paga~o a elrey em cada hu~u
anno, tambem elrey tem sua gente hordenada a quem daa soldo, e tem oyto centos
allyfantes de sua pessoa, e quynhemtos cavallos continuadamente na sua estrebarya,e
62
pera estes gastos dos alyfantes e cavallos tem dado as remdas que lhe remde a cidade
de Bisnaga. (CRB16-082; Crónica dos Reis de Bisnaga – século 16)
[el rey] SUJEITO [tem]v [sua gente] OD [hordenada] PREDICATIVO DO OD
(9) Quem assi se humillda sem fingimento e sem buscar o prazer do mundo e que aja em
si esta dobrada homildadeprofundament(e) no coraçomrreiguadae que a mostre aa de
fora p(er) obras, elleha´ as cavas dobradas p(er)a guardar o castello do coraçom.
(CP15-013; Castelo Perigoso – século 15)
[elle] SUJEITO [há]v [as cavas] OD [dobradas] PREDICATIVO DO OD
a) Quando sse cheguava a ora da sua p(re)ciosa mort(e), veo sua madre, que da
espada da ssua paixom a alma avia t(r)espassada. (CP15-021 – Castelo Perigoso;
século 15)
b) E estava na villa o dicto rey Abenmafomad que a tiinha bem basteçida de muytas
viandas e muy boas gentes. (CA14-009 – Crónica de D. Afonso X, século 14)
(12) E nos Auemos (e) p(ro)metemos a au(er) firme (e) outorgado todalas cousas (e)cada
hu~a ((L014)) delas q(ue) fore~ f(e)ctas pelo d(i)cto nosso p(ro)curador so obligaço~ de
todos nossos be~es (e) do d(i)cto Mon(steiro) (CHP14-005; Textos Notariais in Clíticos
da História de Portugal; século 14)
27
Note-se que, ainda que a ordem prototípica das estruturas de tempo composto perfectivo seja [V PTP],
foram encontrados no corpus ocorrências de estruturas em que não havia concordância entre o PTP e o
complemento, mas com outra ordem, como, por exemplo, a construção seguinte: Despois de ter elrey feito
suas ofertas e sacreficios a seus ydollos, partio da cidade de Bisnaga con toda a sua gente. (CRB16-032 –
Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)
64
(13) Comuem a saber que porquamto a dita s(enho)ra dona guyomar tem vemdido a Jorge
de sousa q(ue) hora he na India dous moyos (e) meio de trygo da dita fazemda Com
pacto de Retro vemdemdo //(e)// por preço (e) comthia de çemto (e) quaremta (e)
seis mill r(eae)s elle dito s(e)nn(h)or dom amRique ma~dara deposytar em Juizo os
ditos çemto (e) coRemta (e) seis mill r(eae)s pera os aver o dito Jorge de sousa (e)
fficar llyure a dita ffazemda (e) desta maneira os ha ella dita s(enho)ra dona guyomar
por Reçebidos em sy. (DN16-005; Documentos Notariais; século 16)
[tem]v [vendido] PTP [dous moyos e meio de trigo]PTP
Como se pode observar, no exemplo (12), temos o verbo haver seguido de dois
PTPs, sendo um irregular, firme (em oposição a firmado), e um regular, outorgado e um
complemento todas las cousas. Note-se que não é documentada a concordância entre o PTP
e o complemento, evidência de que o PTP não é mais interpretado como um adjetivo, e sim
como um verbo. Como veremos mais adiante, a perda das marcas flexionais de
concordância, quando presentes, é uma consequência do processo de reanálise diacrônica
(cf. Roberts & Roussou 2003). Deste modo, isto, associado à fixação da ordem em [V PTP],
seria uma evidência de que o processo de gramaticalização estivesse já concluído neste
estágio. No exemplo (13) é possível observar o mesmo padrão. Neste caso, o verbo ter vem
seguido do PTP vendido e do complemento masculino, plural dous moyos e meio de trigo.
Da mesma maneira, não há concordância entre o PTP e o complemento e a ordem é fixada
em [V PTP].
Nos dois exemplos apresentados, o verbo auxiliar funciona apenas como um
marcador de pessoa, número, tempo, modo e aspecto. O papel de predicador é agora
delegado aos verbos no PTP, sendo estes os responsáveis por selecionar semanticamente o
sujeito e complemento das estruturas.
Note-se, ainda, que há, entre os dois estágios dados ambíguos em não era possível
precisar se se tratava da construção original ou da estrutura já gramaticalizada. São as
construções em que o complemento é masculino, singular, portanto não é possível afirmar
se há a concordância entre o objeto direto e o PTP ou não, como se pode observar nos
exemplos abaixo.
65
(14) O iffante do~ Joha~, que se chamava rey de Lya~, veo aa obedie~cia del rey do~
Ferna~do e beyjoulhe a ma~ao dhy a pouco. El reyfoy çercar el rey d' Arago~ na vila de
Murça e teveo çercado seys somanas. (CA14-040 – Crónica de Afonso X, século 14)
(15) E el rey dom Afonsso outorgoulhe esto e deu aaquel rey mouro terra e que vivesse en
toda sa vida, a qual foy esta: o logar d'Algaba que he acerca de Sevilha, con todollos
dereitos que el rey hy avya e con o dizemo do azeite daly; e deulhe a orta de Sevilha
que chama~ a orta del rey; e rendas certas de maravidiis na judarya de Sevilha e
outras cousas en que este rey Abemafomad ouve ma~tiime~to honrrado en toda sa
vida. (CA14-013 – Crónica de Afonso X, século 14)
funcionais está no fato de auxiliares lexicais se moverem para I (isto é, são gerados em V e
movem-se para I) e os funcionais são gerados diretamente em I. Formalmente a distinção
entre os verbos é como segue:
Por hipótese, temos que nas construções com ter e haver + PTP adjetivo, isto é, nas
construções ditas conservadoras, em que o complemento de ter/haver é uma SC, estes
verbos funcionam como verbos plenos, gerados em V, sendo, pois, membros da categoria
de verbos lexicais que assinam papel temático. Quando há a reinterpretação do PTP como
verbo, isto é, quando as perífrases em questão são formadas por ter/haver + PTP de caráter
verbal, ter e haver passam por uma mudança a partir da qual deixam de atribuir papel
temático. Deste modo temos que a reinterpretação do PTP como verbo, associada à fixação
da ordem dos constituintes em Português, tenha sido um elemento importante na
emergência dos tempos compostos perfectivos, uma vez que, ao se tornar predicador da
estrutura, enfraquece a estrutura temática de ter e haver, resultando em sua
gramaticalização como auxiliares funcionais.
Em síntese, é possível resumir a descrição dos verbos ter e haver enquanto verbos
plenos e verbos auxiliares como na Tabela 5 abaixo.
Como visto acima, os PTPs das construções perifrásticas com ter e haver podiam
funcionar como adjetivos nas construções predicativas e como verbos nas construções de
tempo composto perfectivo. Nas primeiras construções, o PTP funcionava como o
predicador do sujeito da SC selecionada por ter e haver, apresentando marcas de flexão de
gênero e número, concordando com o complemento dos verbos principais da sentença. Nas
construções de tempo composto, o PTP funciona como o predicador de toda a sentença,
selecionando os argumentos externo e interno da estrutura e atribuindo-lhes papeis
temáticos. A Tabela 6 abaixo elenca as principais características dos dois tipos de PTP em
questão.
Com base nos critérios acima, analisamos o PTP das construções perifrásticas com
ter e haver ora como verbo, ora como adjetivo. Quando analisado como verbo, classificamos
70
a perífrase como sendo de tempo composto perfectivo, ou seja, uma perífrase verbal em
que ter e haver se comportam como verbos auxiliares. Quando o PTP é analisado como
adjetivo, trata-se de uma perífrase em que ter e haver funcionam como verbos plenos,
portanto, não gramaticalizados, selecionando um complemento que é modificado pelo PTP.
Destaque-se que, ainda que ter e haver tenham passado por um processo de mudança por
meio do qual se tornam verbos auxiliares, isto não significa que a estrutura não
gramaticalizada (formada por ter e haver plenos + PTP adjetivo) tenha sido eliminada da
gramática. Esta, mesmo após a gramaticalização, passa a conviver com a estrutura
inovadora, sem, contudo, competir com ela.
A literatura que aborda a origem dos particípios passados desde o Latim até o
Português (assim como as outras línguas românicas)28 destaca que os PTPs em Latim têm
origem em um adjetivo verbal do Indo-Europeu. Segundo Dombrowski (2010), o PTP das
línguas romance descendem do particípio passivo perfeito do Latim, terminado em atus, -a,
-um (amatus, amata, amatum). Segundo o autor, ao passar para as línguas românicas esta
forma de PTP passou a ser usada nas construções de tempo composto perfectivo com
haver, assim como em outras formas verbais perifrásticas.
O PTP representa, geralmente, o resultado de um processo verbal. No entanto,
quando não apresenta categorias verbais de tempo, modo, número e pessoa, e sim as
categorias nominais de gênero e número, o PTP se afasta da classe dos verbos,
aproximando-se dos adjetivos. Devido à sua origem nominal, muitos verbos em Latim não
apresentavam uma forma correspondente no PTP, de modo que “os verbos que
sobreviveram adquiriram um à medida que o particípio passado começou a desempenhar
um papel sintáctico mais importante em construções perfectivas e passivas” (BARREIRO
1998:52).
Segundo Barreiro (1998), os PTPs presentes no Latim Vulgar e os presentes nas
línguas românicas não são os mesmos encontrados no Latim Clássico, a partir do que se
conclui que nem todos os PTPs latinos sobreviveram nas línguas a que deu origem. Nas
línguas românicas, alguns PTPs irregulares desaparecem, ao passo que outros se tornam
mais comuns; concomitantemente, novos PTPs são criados. De acordo com Barreiro
(1998:52) a expansão e a criação de novas formas participiais tem motivos subjacentes:
28
Cf. Barreiro (1998) e Laurent (1995 apud BARREIRO 1998)
71
Apesar de ser sabido que os PTPs têm origem no Latim e que sua origem provêm de
formas adjetivas, sua evolução desde o Latim até as línguas românicas não é muito clara.
Algumas formas apresentam uma evolução visível ao longo dos séculos, ao passo que outras
têm sua origem desconhecida. Em relação à mudança que estas formas sofreram, sabe-se
que os PTPs passaram por processos em que novas formas emergem, outras formas
desaparecem e, ainda, determinadas formas são recategorizadas. No caso dos PTPs do PA,
que compõem construções perifrásticas ao lado dos verbos ter e haver, assume-se que,
enquanto ter e haver são verbos plenos, ocorrem em construções com PTPs de caráter
adjetivo. Quando ter e haver passam pelo processo de gramaticalização por meio do qual se
tornam verbos auxiliares dos tempos compostos perfectivos, também o PTP é reanalisado e
recategorizado, passando de adjetivo a verbo.
Dombrowski (2010), levando em conta línguas românicas e eslavas, considera cinco
estágios de mudança dos PTPs desde o Latim: (1) no primeiro estágio os PTPs têm
significado puramente participial, isto é, expressando qualidade ou estado; (2) no segundo
estágio coexistem duas formas: uma em que o PTP expressa conteúdo adjetivo e outro em
que o PTP sofreu esvaziamento semântico e é combinado com um auxiliar em construções
perifrásticas, funcionando como marcador perfectivo; (3) os PTPs são usados primariamente
72
Segundo o autor é essencial para a análise das construções com PTP considerar os
padrões de concordância. Como é possível observar, o PTP scriptas concorda em número e
caso com litteras, o que seria um indicador de que a gramaticalização da forma participial
scriptas ainda não havia acontecido em Latim.
No segundo estágio de mudança, o PTP adjetivo coexiste com uma forma participial
semanticamente esvaziada e utilizada em construções com auxiliar, em que exerce funções
puramente verbais, não apresentando, portanto, marcas flexionais de concordância com o
complemento. Exatamente por este processo passa o PA, em que inicialmente havia uma
construção formada por ter/haver + PTP cujo sentido era puramente adjetivo, herdado do
73
Latim. Posteriormente, surge uma nova forma em que o PTP se comporta como verbo e é
utilizado com ter e haver já gramaticalizados em auxiliares. Segundo Dombrowski (2010:29),
“this is the best description of modern Romance languages such as Italian, French, and
Spanish. In these languages the use of forms derived from the Latin past passive participle as
participles can be contrasted to their use in periphrastic tense forms29”.
No terceiro estágio, no qual, em nossa interpretação, o Português atualmente se
encontra, os PTPs são utilizados como marcadores temporais perfectivos não finitos, na
nomenclatura do autor, mas também conservam seu uso adjetivo. Deste modo há, em uma
língua que atingiu esta fase, um PTP de caráter verbal, que compõe construções de tempo
composto com valor perfectivo junto com os auxiliares ter/haver30; ao lado desta forma
ocorre outra constituída por um PTP de caráter adjetivo. O quarto e quinto estágios de
mudança (cf. DOMBROWSKI 2010) não se aplicam ao Português e serão, por isso, deixados
de fora desta descrição.
Em relação às construções perifrásticas formadas por ter/haver + PTP em
Português, como visto anteriormente, sabe-se que estas têm origem em uma construção
latina. A forma flexionada do presente perfectivo de verbos transitivos do Latim foi
substituída, em Português e nas línguas românicas em geral, por uma estrutura formada
pelo verbo latino habere (haver) + PTP; posteriormente, ao lado desta construção surge em
Português uma construção semelhante formada com o verbo ter. À formação dos tempos
compostos com valor perfectivo se associam a fixação da ordem dos constituintes
sentenciais e a perda das marcas de concordância do PTP com o complemento antes
selecionado por ter e haver. Mas como se deu a perda das marcas de concordância do PTP
com o complemento?
R&R (2003), assim como Dombrowski (2010), afirmam que um fator crucial, no que
respeita a reanálise, é a perda das marcas flexionais de concordância. Neste caso é possível
afirmar que a reinterpretação do PTP como verbo e a consequente perda das marcas de
concordância estão relacionadas à reanálise de ter e haver são reanalisados como auxiliares.
29
“Esta é a melhor descrição de línguas românicas modernas, tais como o Italiano, o Francês e o Espanhol.
Nessas línguas o uso de formas derivadas do particípio passado passivo latino como particípios pode ser
contrastado ao seu uso em estruturas perifrásticas” [minha tradução]
30
Em línguas que possuem apenas um auxiliar para estes contextos, o mesmo verbo é usado, (cf. avoir, do
Francês) apresentando simultaneamente os valores semânticos de ter e de haver e funcionando em
construções perifrásticas perfectivas, construções de posse e existenciais.
74
Entende-se, pois, que uma análise que leve em conta o caráter do PTP em Português é
necessária para a compreensão da gramaticalização de ter e haver. A seguir vejamos como
se comportam os PTPs no período arcaico do Português e como sua evolução pode se
relacionar à reanálise dos verbos em questão.
(19) Lei 73 - costume e´ q(ue) sse eu tenho meu vinho aberto e chega o Relego & mj~
filha~ as medidas ento~ sarrarey a porta da adega & colerey a rama & des alj adea~te
no'-no uenderey sse me no~ au(e)er con os relegueyros & sse o eu no~ q(u)is(er)
uender como q(ue)r q(ue) mi~a cuba fiq(ue) encetada no~-no uenderej se mj~ no~
q(ui)s(er). (CS13-001, Costumes de Santarém, século 13)
(20) El rey do~ Enrryque se escusou, dize~do que el rey do~ Pedro avya perdido o reyno
por suas cruezas e maaos feytos, e que ele fora elegido por todollos prelados, fidalgos
e çidada~aos dos reynos de Castella. (CA14-031, Crónica de Afonso X, século 14)
Em (19) é possível observar uma construção formada por sujeito + verbo (ter) +
PTP, que permite duas interpretações distintas: (i) eu tenho um vinho e este vinho está
aberto, portanto uma construção na qual o PTP exerce uma função de adjetivo, modificando
o complemento de ter, vinho, e (ii) eu abri meu vinho, portanto, uma interpretação em que
ter é um verbo auxiliar e o PTP aberto é um verbo, se caracterizando, pois, como uma
construção de tempo composto.
75
(21) Isto n(os) he bem figurado no Segundo Liv(r)o dos Rreis, honde he [e]sc(ri)pto que
Naas Amonites tiinha cerquad(os) os jebes, que erom dos judeus, e rrequererom-lhe
paz. (CP15-027, Castelo Perigoso, século 15)
(22) E estava na villa o dicto rey Abenmafomad que a tiinha bem basteçida de muytas
viandas e muy boas gentes. (CA14-037, Crónica de D. Afonso X, século 14).
(23) E fallando da honrra e proveito, longo seria de contar quantos em as guerras d’elrrey,
meu senhor e padre, cuja alma deos aja, e em nas outras ham percalçado grandes
famas, estados e boas gaanças por seerem muyto ajudados desta manha. (LBE15-001,
Livro da Ensinanca do Bem Cavalgar Toda Sela, século 15)
(24) (...) e os lutadores va~o se por junto com a escada, que no meyo d aquella casa estaa,
e tem feyto hu~a eyra gramde de terra solta omde luta~o as molheres solteyras e
baylhadores; (...) (CRB16-081, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)
Os exemplos acima evidenciam o caráter verbal do PTP uma vez que este não
apresenta marcas flexionais de concordância com o complemento. Em (23), a ausência de
marcas flexionais de gênero e número no PTP com o complemento no plural grandes famas,
estados e gaanças, é uma forte evidência para a conclusão de que o PTP é um verbo,
afastando-se de suas características nominais, e de que ter é um verbo auxiliar, tratando-se,
portanto, de uma construção de tempo composto, cuja única interpretação possível é a de
uma ação concluída: quantos alcançaram grandes famas, estados e bons ganhos. Em (24) a
mesma interpretação – da sequência haver + PTP como tempo composto – é possível, uma
vez que não há marcas explícitas de concordância entre o PTP e o complemento que
justifiquem a interpretação do PTP como adjetivo. Portanto, neste caso, a única
interpretação possível é a seguinte: os lutadores fizeram uma eira grande de terra solta.
Compreender os diferentes estatutos do PTP e, no que respeita esta pesquisa,
identificar em que contextos o PTP é verbo ou adjetivo, se mostrou necessário para o
estudo da emergência dos tempos compostos em Português. Com base em um critério
morfológico – a presença ou a ausência de marcas flexionais de concordância do PTP com o
complemento direto do verbo – é possível identificar a natureza do PTP, em certos
contextos31 ; contudo, somente a observação da ausência ou presença de marcas de
31
Em certos contextos, pois há casos ambíguos como quando o complemento está no singular, masculino.
77
concordância não é suficiente para compreender a mudança pela qual passou o Português
quando da emergência dos tempos compostos perfectivos. Outros critérios foram utilizados
na presente análise, a saber, a formação e a fixação das formas participiais em Português e a
ordem dos constituintes na sentença, que serão assunto dos parágrafos seguintes.
32
Destaque-se que esta é uma generalização feita com base nos exemplos extraídos do corpus utilizado nesta
pesquisa.
78
ao menos no que respeita às construções com ter e haver no corpus utilizado, como se
observa nos exemplos a seguir. A Tabela 7 compara os verbos com duplo PTP no Português
atual e em PA.
Como é possível notar, verbos como entregar, matar, morrer e prender que
apresentam, no Português Contemporâneo, duplo particípio, não o apresentavam em PA,
possuindo, neste período, somente a forma adjetiva, isto é, a do PTP irregular, como se
observam nos exemplos abaixo:
(25) Entregar
E se teendo a carta entrega morrer, e na uida ou na morte no~ mudar nada
ne~desfaz(er) nenhu~a cousa daquello q(ue) e´ scripto ena carta (...). (FR13-024,
Foros de Garvão, século 13)
(26) Matar/morrer
Capitullo do que el rey fez despois de ter el rey de Bisnaga morto, e desbaratado.
(CRB16-007 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(27) Prender
(...) elles todos era~o mamdados por Narsenayque seu vassallo, ho quoall se fazya
muyto forte e gramde no reyno, e o tinha~o preso, (...). (CRB16-021, Crónica dos
Reis de Bisnaga, século 16)
Wlodek (2003), em relação aos PTPs duplos do Português, afirma que existe uma
diferença mais ou menos nítida quanto à distribuição das formas regulares e irregulares.
Segundo o autor, com exceção de alguns poucos verbos que possuem apenas um PTP forte
33
Os exemplos com o PTP morto são de difícil interpretação, pois dão margem à interpretação tanto como
morrer quanto como matar. Por este motivo foram agrupados em uma única categoria.
79
(irregular), como aberto, feito, dito, vindo, usados em todos os contextos em que podem
aparecer particípios, seja com a função de adjetivo ou como parte das formas verbais
compostas ativas e passivas, as formas irregulares dos PTP duplos geralmente não podem
fazer parte das formas compostas ativas (não sendo admitidas junto com o verbo ter). Como
consequência disso, as seguintes formas compostas são consideradas agramaticais:
(27) A polícia tinha *preso os assassinos. (WLODEK 2003:52)
(28) O João tinha *roto as calças. (idem)
Em PA, os verbos que apresentam somente a forma de PTP irregular, como os
apresentados na Tabela 7, evidenciam seu caráter adjetivo ao permitirem construções
formadas por ter ou haver mais o PTP destes verbos com marcas explícitas de concordância:
(29) (...) elle tinha destroydo os primcypaes home~es de seus reyno e mortos seus filhos e
tomadas suas fazemdas, tudo por comselho de seus cunhados por quem elle hera
mamdado. (CRB16-059, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16)
(30) (...) e depois de os ter presos o pay e filhos, estevera~o tres anos em prisa~o, e fez
regedor hu~u filho Codemerade. (CRB16-054, Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16).
Ao aplicar o teste de gramaticalidade como o feito por Wlodek (2003), fica evidente
o caráter adjetivo destes PTPs, uma vez que o uso de sua forma verbal gera sentenças
agramaticais:
(31) (...) elle tinha (...) *morto seus filhos (...)
(32) (...) e depois de os ter *preso o pay e filhos (...)
Com base no que foi visto acima e na afirmativa de Barreiro (1998:53), de que os
verbos que sobreviveram a passagem do Latim ao Português, mas não apresentavam uma
forma de PTP, adquiriram uma à medida que o PTP começou a desempenhar um papel
sintático mais importante em construções perfectivas e passivas, sugerimos que os verbos
que possuíam apenas um PTP irregular passam a apresentar um PTP regular após a
gramaticalização de ter/haver ou simultaneamente a esse processo. Deste modo, os verbos
que já apresentavam uma forma de PTP regular, mas ainda assim eram interpretados como
adjetivos, devido à sua origem, foram reanalisados como verbos, alguns apresentando uma
forma homófona para as duas funções. Já os verbos que apresentam formas de PTP
irregular teriam sofrido duas mudanças: (i) aqueles que hoje apresentam duplo PTP
adquirem uma forma nova (de PTP regular), talvez por analogia aos outros verbos, passando
80
a ser, pois, verbos de duplo PTP e (ii) aqueles que no PA e no Português atual apresentam
somente uma forma de PTP (a saber, o PTP irregular), são reinterpretados, passando a ter
duas funções para uma única forma.
Diferentemente dos verbos apresentados acima na Tabela 6, o único verbo que
hoje apresenta duplo particípio e o apresenta também no PA, é pagar, que possui a forma
regular pagado e a irregular, pago. Observem-se os exemplos abaixo em (33) para as formas
participiais de pagar.
(33) formas participiais de pagar
a) Mes quando homem tem paguado o que deve, entom pode faz(er) e diz(er) o
que q(ui)s(er). (CP15-033 – Castelo Perigoso, século 15)
b) It(em) me deue Afon(so) Yan(e)s, arçip(re)ste de Goyos, d'agora ha tr(e)s an(n)os
q(u)atro ca(r)gas de pan; et deste an(n)o pasado me deue todo o pan do
arçip(re)stado fora ende aq(ue)lo q(ue) mostrar p(er) meus aluaraes q(ue) me ha
pago. (TN15-004 – Textos Notariais, século 15)
c) (...) muytos dos capitae~es d elrey fora~o contar este repouso que elle fez,
[...]aos quoaes respomdeo que muytos hera~o mortos que na~o tinha~o culpa,
que se ho ydallca~olhe tinha feyto allgu~u desprazer que jaa lho tinha pago.
(CRB16-037 – Crónica dos Reis de Bisnaga, século 16.
28 com concordância. Das ocorrências restantes, 17 são de formas ambíguas, em que não é
possível documentar a concordância, e apenas 4 são de casos em que não há concordância,
a partir do século 14. Observem-se os exemplos abaixo, de ocorrências de verbos de um
único PTP irregular:
b) E vemdo el rey de Bisnaga a vontade dos d el rey de Delly, que era na~o partir d
ally sem dar fim aos que demtro na fortalleza comsygo tinha, fez hu~a falla a
todos, pomdo lhe diante a destroyça~o que el rey dos de Dely em seus reynos
feito tinha e que na~o contente com isso ho tinha posto em cerco naquella
fortaleza e logo todos fora~o armados (CRB16-004, Crónica dos Reis de Bisnaga,
século 16)
c) Este rey dom Afonso, en começo de seu reynado, firmou por tempo certo as
posturas e ave~eças que el rey dom Fernando, seu padre, avya posto com el
rey de Graada. (CA14-001, Crónica de Afonso X, século 14)
Em relação aos PTP irregulares, estes foram os que ocorreram com maior
frequência entre todos os PTP do corpus, sendo o mais frequente feito e suas flexões,
85
seguido por dito e suas flexões. Em seguida, os que ocorrem com mais frequência são PTP
regulares com terminação em –ado, como ganhado, tomado, cercado e suas flexões.
As formas com e sem concordância dos PTP regulares e irregulares ocorrem em
variação em todo o corpus ao longo dos séculos. Isto se dá, pois a reanálise não pressupõe a
eliminação da forma conservadora da gramática de uma dada língua. Quando tem início a
mudança que gerou os tempos compostos do Português, ter e haver são, inicialmente,
verbos plenos que selecionam como complemento um NP + PTP modificador, sendo esta a
forma conservadora. Após a gramaticalização destes verbos, que passam a auxiliares, e da
reinterpretação dos PTP adjetivos como verbos, surge a forma inovadora, diferente da
anterior. Ao ser reanalisada como outra construção, a primeira, conservadora, não é
eliminada, pois agora consiste em uma estrutura diferente da anterior. A questão da
mudança e da interação das formas inovadoras e conservadoras serão exploradas mais
adiante.
Uma vez diferenciadas as duas formas de PTP, adjetivo e verbal, ficam as questões:
por que o PTP adjetivo é reanalisado como verbo no PA; quais seriam as motivações? Por
que ter/haver são reanalisados como verbos auxiliares?
Por hipótese, assumimos que a mudança por meio da qual surgem os tempos
compostos perfectivos em Português envolvem alguns fatores, a saber, a reinterpretação
dos PTPs como verbos, resultando na perda das marcas flexionais de concordância e na
fixação da ordem dos constituintes. Nas construções em que o PTP funciona como adjetivo
exercendo, portanto, a função de modificador do complemento de ter e de haver, tais
verbos funcionavam como verbos plenos, predicadores e com valor semântico de posse.
Quando o PTP é reinterpretado, nos contextos que darão origem aos tempos compostos,
como verbo, este passa a exercer a função de predicador da sentença, podendo, também
selecionar o papel temático do sujeito da construção. Ao passarem a predicadores da
perífrase verbal, ter e haver perdem esta função, sendo reanalisados como verbos
auxiliares, incapazes de atribuir papel temático ao seu complemento. Tais questões serão
discutidas com mais detalhe na próxima seção.
86
(1992) e Roberts & Roussou (2003), levando em consideração os pontos exibidos nesta
subseção.
No século 13, as ocorrências com ter somavam 30% dos exemplos deste período,
ao passo que 70% destes eram de construções com haver. No século seguinte, os
percentuais são semelhantes, sendo 31% para ter e 69% para haver. No século 15, contudo,
as ocorrências de construções com ter crescem consideravelmente, somando 57% dos
dados para este período, enquanto as construções com haver somam 43%. Finalmente, no
século 16, as ocorrências com ter somam 98% das ocorrências para este século, ao passo
que as estruturas com haver somam apenas 2%. A queda das ocorrências de haver e o
aumento nas construções de ter com PTP podem ser melhor visualizadas no Gráfico 1
abaixo.
100 98
80
70 69
60 57
40 43
30 31
20
0 2
Século 13 Século 14 Século 15 Século 16
TER HAVER
Por outro lado, ainda que haver perca seu espaço semântico para o verbo ter, que
se torna o verbo prototípico dos tempos compostos, adquire, no PA, outras acepções, como
a significação existencial, contexto posteriormente associado também a ter. Observe-se o
exemplo abaixo, também retirado da Crónica de Afonso X, século 14, em que haver ocorre
em uma construção com PTP, que pode ser interpretada ou como estrutura de posse ou
como estrutura existencial.
(42) E, nas villas das estremaduras, avya outros foros apartados. (CA14-039 – Crónica de
Afonso X; século 14)
Em (42) as leituras possíveis são (i) Ø havia outros foros apartados e (ii) X havia
outros foros apartados. No caso de (42) classificamos a estrutura como de posse, baseando-
nos em Avelar & Callou (2007), segundo os quais não há, necessariamente, valor existencial
em sentenças como “tem várias maçãs na geladeira” ou “tem várias calças dentro do
armário” no Português Europeu.
90
- Concordância de número
a. Singular
(42) (...) e saymdo do reyno de Cambaya começou a entrar e fazer guerra ao Ballagate,
cujas terras agora sa~o do Idalca~o, tomamdo e destroymdo muitas cidades e
lugares, de maneira que despois de ter feyto muyto dapno, deixamdo aos naturaes
da terra as armas por lhas na~o poderem defemder, lhe entregara~o os corpos e
fazemdas. (CRB16-003 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(43) (...) mas antes jaa d este tempo en todo ho reyno de Bisnaga, na~o avya lugar
tomado, salvo a cidade de Nagumdym. (CRB16-091 – Crónica dos Reis de Bisnaga;
século 16)
b. Plural
(44) E tanto que errar duas ou tres vezes, por buscar tarde, digam-lhe que se avyse de
buscar cedo, por tal que, nom encontrando per boa vista, encontre per esmo, e se
ventuira ouver d’aver algu~a boa squeença, o acrecentamento do prazer e da
voontade lhe dara´ esforço de teer os olhos abertos aos encontros. (LBE15-023 –
Livro da Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)
(45) Et eu o d(i)to frey M(arti)no outorgo q(ue) sejan f(ey)ct(a)s de paz aaq(ue)l q(ue) as
teuer p(er) los be~es do d(i)to Afon(so) Yan(e)s Veloso q(ue) p(ar)a elo obligo et
outorgo & co~firmo sobr(e) elo o aluala p(er) q(ue) vos las dant(e) tjña dadas &
outorgadas. (TN15-009 – Textos Notariais; século 15)
- Concordância de gênero
a. Feminino
(46) Outrosy mandamos que se omen sen memoria ou sen syso ou que no~ aya ydade
ou q(ue) aya feyta t(ra)yçon a al rey ou (contra) senhor ou (contra) qualquer
senhorio ou monge ou freyre q(ue) aya feyta promisso~ ouq(ue) esteue p(er) huu
ano en ordi~ en prouo, der algu~a cousa d(e) seu, no~ ualha. (FR13-022 – Foro Real
de D. Afonso X; século 13)
(47) Enquanto el rey dom Afonso teve cercada esta villa, mandou o iffante do~
Henrrique, seu yrma~ao, que fosse cercar a villa d'Arcos e outrossi Librixa, que era
dhu~a moura. (CA14-005 – Crónica de D. Afonso X; século 14)
b. Masculino
92
(48) El reyfoy çercar el rey d' Arago~ na vila de Murça e teveo çercado seys somanas.
(CA14-040 – Crónica de D. Afonso X; século 14)
(49) Ora, avemosbuscado o lugar p(er)a edeficar nosso castello, (...). (CP15-011 –
Castelo Perigoso; século 15)
- Concordância de gênero e número
a. Singular, feminino
(50) E se per uentura el rey for d(e)ta~ grande piedade que o queyra leyxar uiuo |e|
nono possa faz(er), ameos que lly saque os ollos q(ue) non ueia o mal que cobijçou
a ffaz(er) e que aya semp(re) uyda amargada e peada. (FR13-001 – Foro Real de D.
Afonso X, século 13)
(51) El rey de Castela teve çercada Lixboa per mar e per terra algu~us dias. (HRP15-003
– História dos Reis de Portugal; século 15)
b. Singular, masculino
(52) E aquella parte da redea que aa ma~a~o deve tornar, tenha seu noo assy acertado
que, ainda que o justador desfaça a volta, que sempre a torne dar certa, ficando a
rredea em tal longura como se requere trazer. (LBE15-027 – Livro da Ensinança do
Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)
(53) E daqueste, que se pode dizer senom que deos por seus pecados o desemparou
specialmente do grande bem que lhe avya outorgado? (LBE15-017 – Livro da
Ensinança do Bem Cavalgar Toda Sela; século 15)
c. Plural, feminino
(54) Saluo ende q(ue) dessem os sesmeyros ((L041)) q(ue) meteu o co~celho. a cada
hu~u~ daq(ue)les q(ue) ti´j´a~ ((L042)) as p(re)surias filhadas aq(ue)lo q(ue) uissem
por be~ e como ualia ((L043)) eno~ mellor logo q(ue) ouuesse e~na p(re)suria q(ue)
ti´j´a~. (CA13-003 – Chancelaria de D. Afonso III; século 13)
(55) Sabham todos q(ue) em p(re)sença de mj~ Thom(e) affonso pu(blico) Tabelio~ de
Guimara~es (e) das t(estemunha)s adea~te sc(ri)ptas Sobre conte~da (e) dema~da
q(ue) era (e) sp(er)aua a sseer ant(re) don M(ar)tin vila noua Priol (e) o Conue~to
do Moestei´ro de vilari~o do Arçab(is)pado de Braga´a, da hu~a p(ar)te. (e) Joham
rro(drigu)iz fferraz scudei´ro da outra por rrazo~ das herdades q(ue) o d(i)to
Mon(steiro) aui´a gaanhadas na Qui~ta~a da Ramada [...] (TN14-002 – Textos
Notariais; século 14)
93
d. Plural, masculino
(56) Como se alçaron todollos mouros dos logares que el rey dom Afonso avia
guaanhados e se perdeo Exarez e muytos outros logares e do que el rey sobr'elo
fez Antre as cousas que aco~teceron en tempo del rei dom Fernando, seu padre
deste rey dom Afo~so, diz a estoria que, seendo este dom Afonso iffante,
guaanhou: o reyno de Murça, en que regnava naquel tempo Abenhuxel, como quer
que en outros logares se acha scripto que este Abenhuxel non reynava en Murça.
(CA14-014 – Crónica de Afonso X; século 14)
(57) E leixou Joha~ Fernandez de Fenastrosa por fronteyro e~ Taraçona e outros
cavaleyros e ge~tes pelas vilas e castelos que em Arago~ tiinha tomados. (CA14-06
– Crónica de Afonso X; século 14)
Sobre a expressão das marcas de concordância do PTP com o complemento das
construções perifrásticas em questão em Português, Câmara Jr (1973) atribui sua origem ao
Latim. Em Latim, o verbo recebia, além da flexão número-pessoal, marcações morfológicas
para expressar tempo, modo e aspecto. Com o tempo, houve a perda das marcas
morfológicas aspectuais, que seriam expressas pelas marcas de concordância entre o PTP e
o complemento, ao que se associa o surgimento das construções perifrásticas e ao próprio
rearranjo do sistema verbal latino. Segundo o autor, a perda destas marcas aspectuais foi o
que motivou a entrada das conjugações perifrásticas em uso pleno na língua, uma vez que,
nestas construções o verbo auxiliar se combinava a uma forma verbal para expressar não só
tempo e modo, mas também aspecto, isto é, a expressão verbal como um todo subordinava
a si o complemento, fazendo com que se preservassem as marcas de concordância do PTP
com o complemento.
Mattos e Silva (2002), acerca da concordância do PTP com o complemento,
considera que este é um dos fatores para não considerar as construções com ter e haver +
PTP como de tempo composto. Segundo a autora, a presença de marcas flexionais de
concordância indica que ainda não havia ocorrido a fusão semântica e sintática típica do
tempo composto, sendo o PTP, portanto, ainda um adjetivo e ter e haver verbos plenos.
Em relação à concordância entre o PTP e complemento em dados de ter e haver
nas construções participiais do século 17, Eleutério (2003) verificou que, quando o
complemento se encontrava à esquerda do predicador, o PTP apresenta um número maior
de formas com concordância. Para a autora, a difusão da mudança teria ocorrido a partir de
94
formas ambíguas, com complemento no masculino, singular, forma esta considerada menos
evidente, uma vez que é morfologicamente [-marcada].
Assim como Eleutério (2003) e Almeida (2006), neste trabalho consideramos que as
construções com complemento masculino, singular são responsáveis pela difusão da
mudança. Segundo as autoras, isto ocorre, pois nesta forma de complemento, por ser
morfologicamente [-marcado], não é evidente a marcação da concordância.
Para verificar a relaçãoa da aplicação da concordância relativamente ao verbo, isto
é, em que medida a concordância se aplica, relacionada às construções com ter e com
haver, foi feito o seguinte levantamento, que se observa na tabela abaixo.
TER HAVER
+ Concordância 84 – 43% 57 – 44%
- Concordância 15 – 7% 17 – 13%
Casos ambíguos: masculino singular 43 – 22% 33 – 25%
Casos ambíguos: pronome relativo, interrogativo
ou substantivo sem antecedente/nulo sem 54 – 28% 23 – 17%
antecedente)
TOTAL 196 – 100% 130 – 100%
Tabela 9: Marcação de concordância em construções com ter e com haver
Como visto anteriormente, dos 326 dados levantados no corpus, 196 foram de
estruturas formadas por ter + PTP e 130 foram de estruturas formadas por haver + PTP.
Destes dados, foram documentadas 84 construções com marcação de concordância e 15
construções sem marcação de concordância, para ter, contra 57 ocorrências de estruturas
sem marcação de concordância e 17 estruturas sem marcas de concordância para haver.
Percentualmente os dados de ter e de haver com concordância são semelhantes, somando
43% e 44% para cada verbo, respectivamente. Em relação à ausência de concordância, os
pontos percentuais somam 7% para ter e 13% para haver.
Em relação aos casos ditos ambíguos, devido a impossibilidade de precisar se há ou
não marcação de concordância, estes foram divididos em duas categorias: casos em que o
complemento está no masculino, singular, e casos em que houve presença de pronome
relativo, interrogativo ou substantivo sem antecedente ou complemento nulo sem
antecedente. No que concerne o primeiro grupo, estes dados somam percentuais
semelhantes, sendo 22% dentre as construções com haver, e 25% dentre as construções
95
com ter. No que respeita o segundo grupo de dados ambíguos, estes somam 28% para as
estruturas com ter e 17% para as estruturas com haver.
Observem-se exemplos deste tipo de construção abaixo.
(58) "Eu nom me guabo que aja cobrado o q(ue) desejo, mes vou semp(re) por acallçar
o gualardom". (CP15-029 – Castelo Perigoso; século 15)
(59) Mes quando homem tem paguado o que deve, entom pode faz(er) e diz(er) o que
q(ui)s(er). (CP15-033 – Castelo Perigoso; século 15)
O cruzamento dos grupos de fatores gênero, número e concordância corrobora a
hipótese proposta de que os dados com complemento singular, masculino possam ter sido o
gatilho da mudança. Como se observa na tabela abaixo, que mostra o número de
ocorrências dos dados com complemento feminino, plural; feminino, singular; masculino,
plural e masculino, singular, relacionados a concordância entre o PTP e o complemento, o
número de ocorrências de complementos masculino, singular é o maior dentre todas as
combinações possíveis.
Feminino Masculino
Número de ocorrências Número de ocorrências
Plural + concordância 46 38
- concordância 8 9
Singular + concordância 57 76
- concordância 15 -
Tabela 10: Marcação da concordância em relação ao gênero e número do complemento
34
“Se o gatilho linguístico é ambíguo o aprendiz irá escolher a opção que apresenta a representação mais
simples” [minha tradução]
96
composto são estruturalmente mais simples do que as estruturas adjetivas, uma vez que
não exigem movimento do verbo de V para I. Desta forma, uma vez que o gatilho no
momento da aquisição da linguagem é ambíguo, o falante opta pela construção mais
simples, interpretando as construções de ter/haver + PTP com complemento masculino,
singular, como de tempo composto.
Além disso, a questão da maior frequência deste tipo de construção no corpus
pode ser entendida como uma evidência de que este era o gatilho mais frequente no
período de aquisição da linguagem. Em um modelo em que a mudança é vista em termos de
mudanças paramétricas, isto é, uma mudança na fixação de um dado parâmetro no período
de aquisição da língua, a frequência é uma evidência importante. Isto se dá uma vez que,
quanto maior a frequência de um dado fenômeno, mais este estará servindo de input para
as gerações seguintes de falantes. Sendo as construções com complemento masculino,
singular, estruturas ambíguas e, também, as mais frequentes, sugerimos que no momento
da aquisição da linguagem uma dada população de falantes teve como input mais frequente
este tipo de construção, o que os levou a internalizá-la. Sendo a interpretação das
construções com este tipo de complemento como tempo composto a mais econômica, seria
esta a forma que os falantes da geração seguinte adquiriram.
Em relação ao período histórico, houve dados interessantes no que respeita a
concordância. Observe-se a tabela abaixo, que traz a distribuição dos exemplos com e sem
marcas de concordância do PTP com o complemento, por século.
Século + Concordância – Concordância Ambíguos Pron. +qu TOTAL
(masc. Sing)
Oco. – % Oco. – % Oco. – % Oco. – %
13 30 – 48% 2 – 3% 21 – 34% 9 – 15% 62
14 38 – 56% 10 – 14% 14 – 21% 6 – 9% 68
15 39 – 44% 7 – 8% 18 – 20% 24 – 27% 88
16 34 – 32% 13 – 12% 23 – 21% 38 – 35% 108
Total 141 – 43% 32 – 10% 76 – 23% 77 – 24% 326
Tabela 11: Realização da concordância, por século
35
Neste exemplo, consideramos o NP [Exarez] como feminino, uma vez que se trata de “a vila de Exarez”.
98
36
Neste exemplo, consideramos o NP [Bizcaya] como feminino, uma vez que se trata de “a cidade de Bizcaya”.
99
(70) Ao Senn(or) da t(e)rra saluo en facere~ foro co~ se(us) ueçi~os en p(ro)l do co~çelo
((L017)) e se pela uent(ur)a acaeçe q(ue) eses menjos orfaos mora~ todos en #j
cassa e q(ue) an p(ar)tido ((L018)) ffacam todos #j fforo. e sse an o p(ar)tido e
mora~ todos cada hu´u´ en sa cassa fac[er] cada ((L019)) hu´u´ p(er) ssi en p(ro)l do
conçelho e dos solteyrosq(ue) nos ma~dastes dicer se lis dero~ ((L020))
herdam(en)tos na p(re)soria da t(e)rra façam foro ta~ be~ coma os cassados se
ouuerem ((L021)) na ualia. (FG14-002 – Foros de Garvão; século 14)
(71) E nos Auemos (e) p(ro)metemos a au(er) firme (e) outorgado todalas cousas
(e)cada hu~a ((L014)) delas q(ue) fore~ f(e)ctas pelo d(i)cto nosso p(ro)curador so
obligaço~ de todos nossos be~es (e) do d(i)cto Mon(steiro)q(ue) p(er)a esto
obligamos ((L015)) f(e)cta a p(ro)curaço~ no d(i)cto Mon(steiro) #xij dias de
ffeu(er)ei´ro Era de Mil (e) t(re)ze~tos (e)Nouee~ta (e) quat(ro) Anos. (CHP14-005 –
Textos Notariais in Clíticos da História de Portugal; século 14)
(73) D(eu)s v(os) rrogo e conjuro todas devotas pessoas que avees cuidado de vossa
salvaçom, honrrae e amaae e s(er)vii de coraçom e de boca e de feito esta gloriosa
senhora; (CP15-015 – Castelo Perigoso; século 15)
(74) Hoovo´s, devotas c(re)aturas que avees cuidado da vossa sau´de, esguardaae a
desposiçom do co(r)po do vosso amigo! (CP15-019 – Castelo Perigoso; século 15)
(75) Isto acontece q(ua)ndo a pessoa a que D(eu)s fez tantas g(ra)çasensob(re)vece e
parece-lhe que tem asaz trabalhado e que he bem tenpo de folguar. (CP15-032 –
Castelo Perigoso; século 15)
(76) E fallando da honrra e proveito, longo seria de contar quantos em as guerras
d’elrrey, meu senhor e padre, cuja alma deos aja, e em nas outras ham percalçado
grandes famas, estados e boas gaanças por seerem muyto ajudados desta manha.
(LBE15-001 – Livro da Bem Ensinança do Cavalgar Toda Sela; século 15)
(77) [...]sabendo bem q(ue) vos, Ares Gonçalues, contador do señor don Pedro, ob(is)po
de Mondoñedo, q(ue) presente estades, auedes tragido & persuydo & tragedes &
persuydes libre & paçificamente ha herdade da Liñeira q(ue) jaz et he sita en
Masma. (TN15-005 – Textos Notariais in Clíticos da História de Portugal; século 15)
(78) Estando dom frey Ar(ia)s, abbade do mosteyro de S(an)ta M(ari)a d'Oseyra, et frey
P(edr)o de Lueda, p(r)ior, et o sup(r)ior et çelareyro et esmoleyro et os out(r)os
oficiaas & mo~jes do d(i)to m(osteyr)o, todos juntos en(n)o cap(itu)lo do d(i)to
mosteyro, depoys de avido seu acordo & co~selo et avendo co~siderado et visto
com(m)o este d(i)to mos[t]eyro avia avido moy g(r)andes p(er)das & rreçebidos
moy g(r)andes danos por las g(r)andes gerras q(ue) ouuo ent(r)e os señor(e)s
com(m)o esso meesmo pl(ey)tos et letigios entre los abbades q(ue) ouuo em este
m(osteyr)o moy longos t(en)pos por lo q(u)al ouuo reçebidas g(r)andes p(er)das et
danos asy en(n)as possiso~os et be~es, gra~jas, coutos, casares et herdad(e)s et
jurdiço~os et senorio q(ue) sobre elo avia o d(i)to mos[t]eyro por p(r)iuilegos, usos
et custumes; o q(u)al por lo q(ue) d(i)to he & por la mj~goa de justiçia real q(ue) en
este Reyno de Galiza foy et he faliçida & cariçida, ouuero~ cabsa os señores
t(en)poraas entrar et tomar a jurdiço~ et senorio dos d(i)tos coutos, g(r)anjas &
lugar(e)s q(ue) ao d(i)to m(osteyr)o p(er)tiçiam. (TN15-013 – Textos Notariais in
Clíticos da História de Portugal; século 15)
(79) (...) partindo se el rey pera seu reyno, por respeyto da nova que lhe hera vymda,
deixamdo o reyno de Bisnaga em poder de Meliquy niby, sabido por toda a terra
como era fora d ella, os que escapara~o pellas montanhas, e outros, que contra
suas vontades com temor lhe tinha~o dado as menage~es das villas e lugares.
(CRB16-010 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(80) (...) e passados allgu~us dias, cuydamdo Narsenaque na treyça~o em que lhe
fallavao, (...) chamou hu~u dia aquelles capita~es, que lhe per muytas vezes
tinha~o cometido, e preguntou lhe que maneyra terya pera matar elrey, sem ser
sabido que ho mamdava elle matar. (CRB16-020 – Crónica dos Reis de Bisnaga;
século 16).
(81) Despois de chegado Salvatinia, e muyto bem recebido d elrey, despois de ssua
chegada allgu~us dias, lhe disse elrey que elle desejava de comprir em todo ho
testamento d elrey Narsynga, que era tomar lhe Rachol37, que era hu~a cidade
muito forte, e das primcipaes do ydallca~o, que elle tinha tomado aos reys d
antepassados. (CRB16-030 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16).
(82) Despois de ter elrey feito suas ofertas e sacreficios a seus ydollos, partio da cidade
de Bisnaga con toda a sua gente. (CRB16-032 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século
16)
(83) [...] e os que se quisesem hir que se fosem na boa ora con todo o seu, alevantados
todos as ma~os pera ho ceo se deitara~o no cha~o por averem recebido tamanha
mercê. (CRB16-039 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(84) e per todos os reys con tanta verdade mantida, que na~o sabe por que te
demoveste a lhe fazer tamanha guerra, que sem sospeyta estava, quoamdo lhe
dera~o novas em como tinhas cercado a cidade de Rachol, e a comarca roubada e
destroyda, as quoaes novas fora~o causa de se mover e vir a socorrella, omde por
ty, foy toda sua corte morta, e o seu arayall todo roubado e destruydo, como tu es
boa testemunha do que asyr he feyto, e que te pede que do tal faças emmemda, e
mamdes tornar a sua artelharya e temdas, cavallos e allyfantes, com o mays que
lhe he tomado (CRB16-046 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(85) E despois d este rey ter acabado ysto, e ter alcamçado tanta vitorya de seus
ymmiguos, vemdo se ja homem de hidade desejamdo de descamsar em sua
velhice, e que hu~u filho que tinha ficasse rey por sua morte, detreminou de ho
fazer rey em sua vida. (CRB16-052 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16).
(86) elle tinha destroydo os primcypaes home~es de seu reynoe mortos seus filhos, e
tomadas suas fazemdas, tudo por comselho de seus cunhados por quem elle hera
mamdado; (CRB16-058 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(87) Depois tomamdo as portas da primeira serra, diguo que a entrada da porta omde
vem os que va~o de Goa, que he a mays principal entrada da bamda d aloeste,
37
Neste exemplo consideramos o NP [Rachol] como feminino, singular, uma vez que se trata “da cidade de
Rachol”.
102
dentro tem feito este rey hu~a cidade muy forte de muros e torres, e as portas
com hu~as entradas muy fortes com torres nas portas; (CRB16-069 – Crónica dos
Reis de Bisnaga; século 16)
(88) e os lutadores va~o se por junto com a escada, que no meyo d aquella casa estaa, e
tem feyto hu~a eyra gramde de terra solta omde luta~o as molheres solteyras e
baylhadores; (CRB16-081 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século 16)
(89) E alem de ter esta gente, la tem suas pemsso~is que paga~o a elrey em cada hu~u
anno, tambem elrey tem sua gente hordenada a quem daa soldo, e tem oyto
centos allyfantes de sua pessoa, e quynhemtos cavallos continuadamente na sua
estrebarya, e pera estes gastos dos alyfantes e cavallos tem dado as remdas que
lhe remde a cidade de Bisnaga. (CRB16-083 – Crónica dos Reis de Bisnaga; século
16)
(90) Comuem a saber que porquamto a dita s(enho)ra dona guyomar tem vemdido a
Jorge de sousa q(ue) hora he na India dous moyos (e) meio de trygo da dita
fazemda Com pacto de Retro vemdemdo //(e)// por preço (e) comthia de çemto (e)
quaremta (e) seis mill r(eae)s elle dito s(e)nn(h)or dom amRique ma~dara
deposytar em Juizo os ditos çemto (e) coRemta (e) seis mill r(eae)s pera os aver o
dito Jorge de sousa (e) fficar llyure a dita ffazemda (e) desta maneira os ha ella dita
s(enho)ra dona guyomar por Reçebidos em sy (DN16-005 – Documentos Notariais;
século 16)
(91) E com as comdiço~es em elle comtheudas (e) ella catarjna p(er)iz disse que ella
((L069)) que ella/sic/ o outorga (e) açeitava asy (e) da maneJra q(ue) em elle se
comte~ (e) dava sua ((L070)) outorga ao di(c)to p(ra)zo (e) obrigou a ello seu(s)
be~es (e) se obrigou a elle assy (e) da man(eira) ((L071)) q(ue) ho di(c)to seu
marjdo tem fe(i)to (e) outorgado. (CHP16-003 – Textos Notariais in Clíticos da
História de Portugal; século 16)
60% 56%
49%
50% 56% 47%
48%
40% 44%
30%
30%
32%
20% 14%
12%
8%
10%
3%
0%
13 14 15 16
Gráfico 2: Realização da concordância nas construções de ter e haver + PTP ao longo do tempo
O gráfico 2, acima, traz os percentuais dos dados com marcas de concordância, sem
marcas de concordância e dos dados considerados ambíguos, que foram amalgamados em
uma única categoria, ao longo dos séculos. Como é possível observar, as ocorrências de
estruturas de ter/haver + PTP sem marcação de concordância aumenta ao longo dos
séculos, mas se mantém relativamente estável. No século 13 o percentual das ocorrências
de construções de tempo composto somam 3% do total, valor que aumenta para 14% no
século seguinte. No século 15 há uma pequena queda, passando a 8% das ocorrências.
Finalmente, no século 16, o percentual de estruturas de tempo composto sobre para 12%.
Em relação às construções com marcas explícitas de concordância, nota-se uma
queda percentual a partir do século 15. As construções ambíguas (pronome +qu), por outro
lado, sofrem um aumento a partir deste período. As curvas relativas às estruturas com
concordância e aos dados ambíguos sugerem que no período estudado ocorre uma
competição entre estas duas estruturas, e não entre as primeiras e as sem marcação de
concordância. Dito isto, é possível sugerir que, ao passo que as estruturas de tempo
composto vão ganhando espaço na gramática do Português, as estruturas ambíguas
competem com as estruturas adjetivas. Neste período de competição vencem as estruturas
ambíguas que recebem a interpretação de tempo composto e não aquelas interpretadas
como estruturas adjetivas. Deste modo, é possível afirmar, com base nisto e em outras
104
evidências que serão vistas mais adiante, que as estruturas ambíguas compõem o gatilho da
gramaticalização que levou à emergência dos tempos compostos perfectivos em Português.
Em relação à localização temporal da emergência das estruturas em questão,
observamos o seguinte. Levando em consideração a perda das marcas de concordância, a
concepção de mudança de Lightfoot (1979, 1991, 1998) e o modelo de mudança por
gramaticalização de R&R (2003), é possível afirmar que a mudança que resulta na
emergência dos tempos compostos começa já no século 13, uma vez que neste século são
documentadas estruturas sem marcas de concordância e com a ordem típica dos tempos
compostos, [V PTP N], assunto que será debatido em mais detalhes na subseção seguinte.
Como visto, a mudança diacrônica é interpretada, nos termos de Lightfoot (1998) não como
uma mudança na língua, mas como mudanças nas gramáticas particulares de cada falante.
Sendo assim, a mudança se dá quando há uma mudança no ambiente linguístico no qual a
criança cresce: se o ambiente é minimamente distinto, a criança irá desenvolver uma
gramática diferente da gramática de seus pais. A mudança linguística é, pois, a mudança de
gramáticas individuais se espalhando em uma população.
No que respeita o espraiamento da mudança que levou as construções com
ter/haver + PTP adjetivo a serem reinterpretadas como estruturas de tempo composto
perfectivo em Português, observamos que sua implementação se dá no século 13, mas seu
espraiamento ocorre alguns séculos depois. Isto fica claro com o aumento das construções
sem concordância e das construções ambíguas em relação às construções com concordância
ao longo dos séculos. Como os dados da Tabela 11 mostram, as primeiras ocorrências de
dados sem marcas morfológicas de concordância surgem inicialmente no século 13 e seu
percentual aumenta ao longo dos séculos. Os dados ambíguos com complemento
masculino, singular, somam 34% das construções no século 13, passando a somar em média
20% nos séculos seguintes. O restante dos dados ambíguos segue aumentando ao longo dos
séculos. As construções com marcas de concordância, por outro lado, sofre uma queda
percentual a partir do século 14.
Da mesma forma, R&R (2003) assumem que a mudança linguística é um caso
regular de mudança paramétrica, sendo esta um aspecto do processo de fixação
paramétrica. A mudança tem início quando uma população de aprendizes adquire uma
gramática que difere em pelo menos um parâmetro da gramática dos falantes cujo
comportamento serviu de base para estes aprendizes. À medida que a geração mais nova
105
Ainda segundo R&R, “(…) if the trigger is ambiguous, the learner will choose the
option that yields the simpler representation39” (R&R 2003:27). Deste modo, de acordo com
R&R (2003), a aquisição da linguagem é vista como um processo de fixação paramétrica,
enquanto a mudança sintática é vista como o resultado da mudança ou resetting dos valores
paramétricos.
Sendo a gramaticalização um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise de
ter e haver como auxiliares de tempo composto se daria no momento de aquisição da
linguagem (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991), sendo desencadeada pelo gatilho oferecido por
evidências linguísticas ambíguas aos aprendizes que adquirem sua gramática (cf. R&R 2003).
Deste modo, com base no que foi exposto acima, assumimos que a reanálise de ter e haver
tenha tido início com base em dois parâmetros: (1) construções com ter e haver + PTP, com
complemento masculino, singular, ou construções do tipo +qu, cuja interpretação é a de
uma perífrase adjetiva e (2) construções com ter e haver + PTP, com complemento
masculino, singular, ou construções do tipo +qu, cuja interpretação é de tempo composto
perfectivo. Como o processo de aquisição da linguagem é orientado para a aquisição de
estruturais mais simples (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991, 1998; R&R 2003), a construção que
recebe a interpretação de tempo composto, que não apresenta movimento de ter e haver
de V para I, é preferível.
38
“(…) se a expressão de um parâmetro é suficientemente robusta, levará a uma fixação paramétrica correta.
Se, no entanto, a expressão do parâmetro é ambígua, então é provável que haja um ‘mecanismo de segurança’
no dispositivo de aprendizagem que leva à fixação de um certo valor – o determinismo fraco requer que isto
aconteça. Este valor continuará sendo compatível ao do input recebido, mas – novamente devido ao fraco
determinismo – poderá ser diferente do valor atribuído à gramática alvo e é isto que causa a mudança” [minha
tradução]
39
“(...) se o gatilho linguístico é ambiuo, então o falante optará pela opção que apresenta a representação
mais simples” [minha tradução]
106
Como é possível observar na Tabela 12, há mais dados como verbo ter do que com
haver, somando as construções com o primeiro verbo 196 ocorrências contra 130
107
tornando mais fixa, estes verbos passam a auxiliares e o PTP passa a predicar a sentença,
adquirindo o traço [+verbal]. Segundo a autora, a posição mais resistente à formação do
tempo composto seria aquela em que o complemento está à esquerda do predicador, pois
nesta ordem constatam-se formas mais marcadas com concordância.
Os dados de Almeida (2006) mostram que a ordem destas construções no PA era
extremamente livre, porém, ao longo dos séculos, a ordem ter/haver + PTP vai
gradualmente se fixando. Observem-se abaixo os resultados percentuais obtidos por
Almeida, em relação à ordem dos constituintes na sentença:
Como se pode observar, os resultados de Almeida (2006) sugerem que os seis tipos
de distribuição do complemento do PTP na sentença revelam sua liberdade de estruturação.
No século 13 a distribuição mais frequente é a com particípios intransitivos, isto é, em que
não há complemento, (V + PTP + Ø), seguida da ordem N +V + PTP. No século 14, a ordem
mais comum é V + N + PTP. No século 15 há um significativo aumento das sequências com
particípios intransitivos, somando 44% das ocorrências, ao mesmo tempo que a ordem N +
V + PTP decai de 50% dos dados para 38% destes. No século 16 são igualmente significativas
as ocorrências em que o particípio é intransitivo, somando 50%; há também um aumento
das sequências V + PTP + N, somando 21%, estrutura que possui a configuração típica do
tempo composto. Finalmente, no século 17, são maioria as sequências do tipo V + PTP + N
(46%), o que, segundo Almeida (2006) já é um indicador da cristalização da estrutura. Em
seus dados nota-se também uma gradual diminuição da flexão ao longo dos séculos, o que,
associada à fixação da ordem V + PTP, comprova sua hipótese de que ter e haver não eram
verbos auxiliares no PA.
110
Os dados de Mattos e Silva (1992)40 mostram que a ordem mais comum nas
perífrases com ter e haver é N + ter/haver + PTP, quando o complemento é relativizado, e
ter/haver + PTP + N, quando o complemento não é relativizado. Em sua perspectiva, seus
dados permitem supor que, no que se refere à difusão da mudança nas estruturas
sintagmáticas, a perda da concordância do PTP e, consequentemente, sua análise como PTP
verbal e não como adjetivo, partiu dos contextos em que a concordância não é saliente,
sendo considerados mais salientes os contextos em que o complemento direto do PTP
precede ter/haver e o PTP, com base em Naro e Lemle (1977:266, cf. MATTOS E SILVA
1992). A autora propõe ainda que a difusão da mudança foi favorecida pela estrutura na
distribuição sintagmática, já existente na língua, em que o PTP perde as marcas de
concordância, já que o complemento pode ser masculino e singular (casos ambíguos), bem
como pela estrutura em que o complemento é nulo, recuperável como pronome neutro
como isto, tudo.
Em artigo de 1992, Mattos e Silva atribui a difusão da mudança de ter e haver de
verbos plenos a auxiliares à ordem dos constituintes no Português. Segundo a autora, na
estrutura mais antiga o complemento do verbo não tem posição fixa, podendo preceder,
suceder ou estar entre ter/haver e o PTP, ou, ainda, ser zero, quando o PTP é -transitivo. Ter
e haver também podiam preceder ou suceder o PTP. Nos corpora analisados por Mattos e
Silva (1981:101), ocorrem as distribuições abaixo, com suas respectivas frequências:
ORDEM FREQUÊNCIA
1. V + PTP + Compl. Direto 21%
2. V + Compl. Direto + PTP 15%
3. Compl. Direto + V + PTP 94%
4. PTP + V + Compl. Direto 2%
5. Compl. Direto + PTP + V 4%
6. V + PTP 17%
Tabela 14: Ordem dos constituintes (MATTOS E SILVA 1981, 1992)
Nos dados da autora, nota-se que as distribuições com maior frequência são a 3,
em que o complemento direto do verbo é um relativo, sem marcas de gênero e número; a
1, em que o complemento sucede ter/haver e o PTP e a 6, em que o complemento é 0. Naro
e Lemle (1977:266 cf. MATTOS E SILVA 1992) analisam e quantificam as distribuições do tipo
40
O corpus de Mattos e Silva (1981, 1992) é oriundo dos quatro livros dos Diálogos de São Gregório (DSG).
111
construção pode ser ou adjetiva ou de tempo composto. Contudo, ainda que as duas ordens
que apresentam esta sequência, isto é, V PTP N e N V PTP, permitam a interpretação de
tempo composto, somente a primeira se fixará como a ordem prototípica dos tempos
compostos perfectivos, ao passo que a segunda é gradualmente eliminada da gramática do
Português.
No que refere ao que foi dito anteriormente, a análise dos dados selecionados para
esta Dissertação trouxe resultados semelhantes aos de Mattos e Silva (1992) em relação à
ordem (Tabela 13). Observem-se abaixo os dados na Tabela 14, em que são apresentados os
valores percentuais de acordo com a ordem ocorrida:
Como é possível observar, ao isolar os dados de construções com ter + PTP, nota-se
que a ordem é a com o complemento relativizadosomando quase metade dos dados.
Contudo, se observarmos em termos de estruturas, as relativas somam 46% do total,
percentual mais baixo do que o das estruturas simples (i.e., todas as que não são relativas).
Em seguida, tem-se a ordem [V PTP N], somando 20% dos dados, considerada favorável à
gramaticalização de ter como auxiliar, formando tempos compostos perfectivos, uma vez
que esta é a ordem fixa deste tipo de construção (auxiliar + PTP). Em seguida, a ordem que
mais ocorre é [V N PTP], em que o complemento está entre ter e o PTP, portanto uma
ordem não favorável à gramaticalização. A quarta ordem mais frequente é [N V PTP],
também favorável à gramaticalização, uma vez que ter precede o auxiliar. Por fim, há 6
ocorrências de complemento nulo, somando 3% dos dados com ter.
Ao isolar os dados com haver foram observadas algumas diferenças em relação aos
dados de ter + PTP. Como ocorre com os dados com ter + PTP, os exemplos mais frequentes
são aqueles em que o complemento está relativizado, somando 41% das construções
coletadas. Em seguida, também como ocorre com os dados com ter, a ordem favorita é [V
PTP N], contexto favorável à gramaticalização. A diferença está nos percentuais seguintes:
as próximas ordens mais frequentes são [N V PTP] (16%) e [V N PTP] (9%), que são contextos
favoráveis e não favoráveis à gramaticalização, respectivamente. Por fim, como nos dados
com ter, ocorrem as construções com complemento nulo, somando 7%.
A diferença entre ter e haver no que respeita a ordem está no fato de, nos dados
de haver + PTP serem mais frequentes os contextos que favorecem a fixação da ordem em
[V (haver) + PTP], ordem prototípica dos tempos compostos perfectivos do Português. Tal
resultado sugere que as construções com haver + PTP tenham se gramaticalizado antes das
115
construções com ter + PTP. Contudo, como visto na seção anterior, dados relativos à
concordância sugerem que a mudança já teria ocorrido no século 13, com ambos os verbos.
Para que se observasse em que medida as ordens favoráveis à gramaticalização
ocorriam ao longo dos séculos, foram cruzados os grupos de fatores século e ordem, a partir
do que se obteve a Tabela 17 abaixo:
SÉCULO Relat. V PTP N V N PTP N V PTP N nulo TOTAL
Oco. % Oco. % Oco. % Oco. % Oco % Oco.
.
13 28 45% 12 19% 10 16% 12 19% 0 0% 62
14 25 37% 13 19% 5 7% 18 26% 7 10% 68
15 29 43% 22 25% 18 21% 13 15% 6 6% 88
16 61 57% 27 25% 10 9% 8 7% 2 2% 108
Tabela 17: Ordem dos constituintes nas estruturas com ter/haver + PTP, em relação ao século
somando 25% dos dados. Em contrapartida, as ordens [V N PTP] e [N V PTP] caem para 9% e
7%, respectivamente. O mesmo ocorre com as construções com complemento nulo, que
passam a 2% das ocorrências.
Os dados expostos na tabela acima podem ser melhor visualizados no gráfico
abaixo.
60% 56%
50% 45%
37%
40% 33%
30%
26% 25% 25%
20% 19% 19% 19% 20%
16% 15%
10% 10% 9%
7% 7% 7%
0% 0% 2%
Século 13 Século 14 Século 15 Século 16
Com base nos resultados obtidos, observou-se que a ordem [V N PTP] ocorria mais
com o verbo ter do que com haver, a partir do que se pode sugerir que este era o verbo
preferido das construções adjetivas, em todos os séculos, principalmente nos séculos 13, 14
e 15. Em relação às ordens que impulsionaram a mudança, isto é, aquelas que apresentam a
sequência [V PTP], observou-se o seguinte. A ordem [V PTP N] é mais utilizada com haver
em todos os séculos, enquanto a sequência [N V PTP] é preferida com este verbo apenas no
século 13, sendo ter o mais utilizado com esta ordem nos séculos 14, 15 e 16. Em relação às
construções relativas, estas são mais produtivas com haver até o século 15; no século 16
todas as construções relativizadas são utilizadas com ter. As construções com complemento
nulo apresentam comportamento pouco estável, não havendo ocorrências no século 13,
ocorrendo categoricamente com haver no século 14, apresentando variação em favor de ter
no século 15 e ocorrendo categoricamente com ter no século 16. Por fim, todas as ordens
ocorrem mais frequentemente com ter no século 16, uma vez que a maioria dos dados
deste século é de construções com este ter + PTP.
A subseção seguinte tratará do cruzamento dos grupos de fatores ordem e
concordância. Discutiremos como os dois fatores estão interligados e como sua análise
contribui para o estudo da gramaticalização de ter e haver e, consequentemente, da
emergência dos tempos compostos perfectivos em Português.
118
Como foi visto nas seções anteriores, fatores como a marcação da concordância
entre o PTP e o complemento e a ordenação dos constituintes nas estruturas de ter e haver
+ PTP trazem evidências para a gramaticalização destes verbos como auxiliares. A mudança
sintática, isto é, a fixação de um novo parâmetro a partir de um gatilho ambíguo – que,
neste caso, julgamos serem as construções cujo complemento está no masculino, singular –
fica visível quando perdem-se as marcas de concordância em questão e quando a ordem da
construção estudada é fixada em [V PTP N].
Com base no modelo de mudança linguística e no modelo de gramática utilizado,
supomos que a gramaticalização de ter e haver tenha resultado, superficialmente, na
fixação da ordem e na perda das marcas de concordância. Deste modo, a mudança no
parâmetro do movimento do núcleo, isto é, a perda do movimento V para I, causou tais
rearranjos na gramática do PA, no que respeita às construções de ter/haver + PTP. Tal
suposição se baseia em Lightfoot (1998:95), que afirma “because parameters are abstract
and structural, changing one parameter setting may entail a range of new surface
phenomena”41. Do mesmo modo, Lightfoot (1998:105) argumenta, ainda, que “not only is a
new gramatical property typically manifested by a cluster of new phenomena; it also
sometimes sets off a chain reaction (...) such chain reactions can be understood through the
acquisition process”42.
Desta forma, a mudança de ter e haver pode ser vista como uma mudança em
cadeia, ou chain reaction: a partir de um gatilho ambíguo – construções de ter/haver + PTP
com complemento masculino, singular – o aprendiz adquire a estrutura com interpretação
de tempo composto, por esta ser a menos custosa, uma vez que, nesta estrutura, não há
movimento de ter/haver de V para I; estes verbos são concatenados diretamente em I.
Como consequência deste processo de reanálise, o PTP é reinterpretado como verbo, uma
41
“Devido ao fato de os parâmetros serem abstratos e estruturais, a mudança na fixação de um único
parâmetro pode desencadear uma série de novos fenômenos superficiais” [minha tradução].
42
“Novas propriedades gramaticais são não só manifestadas por uma série de novos fenômenos como
também podem desencadear uma reação em cadeia (...) tais reações em cadeia podem ser compreendidas por
meio do processo de aquisição” [minha tradução].
119
vez que ter e haver, ao serem concatenados diretamente em I, perdem estrutura temática;
o PTP passa, então, a ser o predicador da sentença. Outra consequência da concatenação de
ter/haver diretamente em I é a fixação da ordem, que se cristaliza em V PTP N. Por fim
perdem-se as marcas flexionais de concordância do PTP com o complemento. A observação
do comportamento das estruturas em questão relacionado à ordem e à concordância é,
pois, necessária, uma vez que estes são os únicos passos da gramaticalização
superficialmente visíveis.
No que respeita a relação entre ordem dos constituintes e concordância, Almeida
(2006:91), afirma que “é categórica a presença de concordância quando o complemento se
encontra à esquerda da construção participial ou quando está localizado entre ter/haver e a
forma participial no corpus”.
Ao analisar o comportamento da ordem relativamente à concordância ao longo dos
séculos, Almeida (2006:93) observa que “ainda no século XIV, quando o complemento está
localizado entre ter/haver e a forma participial, há uma maior probabilidade de a forma
participial estar indicando um estado do SN, impondo uma interpretação passiva ao
complemento dos verbos ter e haver. Contudo, nos casos em que o complemento se
encontra à esquerda do particípio, recuperado por um anafórico, há uma tendência de
interpretar o PTP como [+verbo]”.
No século 15, a autora nota que nos contextos em que há dois ou mais elementos
entre ter e haver e o PTP a marcação da concordância é também categórica. Sua hipótese é
a de que a intercalação de elementos na construção participial evidencie que a estrutura
não configura ainda uma forma composta. Contudo, ela percebe que neste período,
estruturas em que, mesmo havendo a intercalação de apenas um elemento entre ter/haver
e a forma participial, não há a flexão entre o PTP e o complemento.
Finalmente, nos séculos 16 e 17 Almeida (2006) observa que a flexão do particípio
com o complemento cai consideravelmente. Conclui a autora que até o século 15, a
concordância se dava prioritariamente quando o complemento se localizava mais à
esquerda; contudo, no século 16, esse aspecto passa a não ser mais definidor. Seus dados
confirmam que, quando o complemento sucede o PTP, a concordância entre o PTP e o
complemento é ainda mais restrita. Mesmo nos contextos em que o complemento precede
a construção, há, neste século, o predomínio de estruturas sem marcação de concordância.
120
Com base nos resultados é possível argumentar que no PA havia três ordens para
as construções de ter/haver + PTP: [V N PTP], [N V PTP] e [V PTP N], sendo a porcentagem
de suas ocorrências variável ao longo dos séculos. As ordens [V PTP N] e [V N PTP] irão se
perpetuar até o Português atual, sendo a primeira a ordem de construções de tempo
composto e a segunda, a ordem de construções adjetivas. As construções que têm a
sequência [V PTP] teriam sido aquelas que engatilharam a mudança em direção à formação
dos tempos compostos. A ordem [V PTP N], com complemento posposto, é a que se
concretiza como a ordem prototípica dos tempos compostos; a ordem [N V PTP], com
complemento anteposto, permitia mais frequentemente dupla interpretação, podendo ser
considerada como uma estrutura adjetiva ou uma perífrase perfectiva. Após a
gramaticalização de ter e haver tal ordem é gradualmente excluída da gramática da língua.
Com base no que vimos ao longo deste capítulo e nos resultados da Tabela 19e nos
Gráficos 2 e 3 podemos fazer algumas observações. Primeiramente o que se observa é que
os séculos 14 e 15 marcam um importante período de transição. A partir do século 14
aumentam os percentuais de estruturas sem marcas de concordância. Neste século crescem
os números das ordens [N V PTP] e N nulo. No século 15 crescem os números das ordens [V
N PTP] e [V PTP N], ordem que segue aumentando até o século 16, ao passo que as outras
ordens diminuem.
O considerável aumento das construções com complemento nulo no século 14,
período em que também aumentam consideravelmente os níveis de não aplicação da
concordância, pode ser interpretado como uma estratégia das gramáticas particulares de
cada falante para evitar a marcação ou não de concordância. De modo geral, todas as
estruturas com complemento nulo aumentam neste período, sejam elas com concordância
observável ou não. Desta forma, interpretamos que as gramáticas dos falantes optam pelas
construções com N nulo neste período de transição, evitando a escolha de uma estrutura
com marcas claras de concordância ou não.
O aumento das ordens [V N PTP] e [V PTP N] no século 15 nos leva a interpretar
que neste século houve um período de variação no que respeita estas estruturas. Como
veremos na seção seguinte, analisamos esta variação em termos de gramáticas em
competição, nos moldes de Kroch (1989). Deste modo, os séculos 14 e, mais
expressivamente, 15, são vistos como um período em que competem duas gramáticas, G1 e
G2. G1 seria uma gramática em que só há a construção de ter/haver + PTP com valor
122
para que a geração seguinte, N+1, adquira sua Língua-I. O contato dos aprendizes com os
dados linguísticos da geração anterior fará com que estes falantes aprendam o léxico e,
consequentemente, fixem os valores dos parâmetros em questão. Deste modo, como vimos
no capítulo anterior, a mudança linguística é entendida como uma mudança na fixação do
valor de um determinado parâmetro, e se dá durante o processo de aquisição da linguagem
(cf. LIGHTFOOT 1979, 1991).
Neste processo, a mudança linguística ocorre quando a natureza dos dados
linguísticos que servirão de input para a fixação de um parâmetro é obscura ou ambígua
para a nova geração, permitindo interpretações distintas. Neste caso, a seleção se dá em
função das representações mais simples. Como visto anteriormente, na modelo de
gramaticalização de R&R (2003), são justamente os dados linguísticos ambíguos que irão
impulsionar o processo de gramaticalização. Para os autores, o processo de
gramaticalização só ocorre quando se observam duas formas, ainda que homófonas, que se
comportam, sintaticamente, de forma distinta, levando à possibilidade de duas
interpretações distintas. No caso das construções formadas por ter/haver + PTP, assumimos
que o gatilho para a renálise que levará à gramaticalização sejam, como vimos, as
construções com complemento masculino, singular, uma vez que, nestes casos, são
possíveis duas interpretações: (i) a de uma construção adjetiva e (2) a de uma construção já
gramaticalizada, de tempo composto.
Nestes moldes, a mudança se inicia quando uma população de aprendizes converge
em um sistema gramatical – Língua-I – que difere em pelo menos um valor paramétrico do
sistema internalizado por falantes cujas produções linguísticas serviram de input para os
aprendizes. Adotando o conceito de parâmetros de Chomsky (1995, 2000), a mudança
linguística passa a ser relacionada a alterações nas propriedades dos núcleos funcionais.
Como os parâmetros são propriedades dos núcleos funcionais e estes estão no léxico, o
processo de remarcação do parâmetro se dará no período de aquisição da linguagem por
meio do aprendizado do léxico. A gramaticalização é capturada, pois, como um caso de
mudanças nas propriedades dos núcleos funcionais, sendo, portanto, um caso regular de
mudança paramétrica.
Sendo a gramaticalização um caso regular de mudança paramétrica, a reanálise de
ter e haver como auxiliares de tempo composto se daria no momento de aquisição da
linguagem, sendo desencadeada pelo gatilho oferecido por evidências linguísticas ambíguas
124
aos aprendizes que adquirem sua gramática. Deste modo, assumimos que a reanálise de ter
e haver tenha tido início com base em dois parâmetros: (1) construções com ter e haver +
PTP, com complemento masculino, singular, e com pronome qu-, cuja interpretação é a de
uma perífrase adjetiva e (2) construções com ter e haver + PTP, com complemento
masculino, singular, e com pronome qu-, cuja interpretação é a de tempo composto
perfectivo. Como o processo de aquisição da linguagem é orientado para a aquisição de
estruturas mais simples (cf. LIGHTFOOT 1979, 1991, 1998; ROBERTS & ROUSSOU 2003), a
construção que recebe a interpretação de tempo composto é preferível.
Tal preferência se deve ao fato de as construções com interpretação de tempo
composto serem sintaticamente mais simples, ou menos custosas, no que respeita às
propriedades de movimento de núcleo. Como vimos anteriormente, a gramaticalização
envolve a criação de novo material funcional, seja a partir da reanálise de material lexical ou
da reanálise de material funcional já existente. No caso das construções de ter e haver +
PTP, ocorre a reanálise da categoria lexical V, isto é, ter e haver, enquanto verbos plenos,
que é reinterpretada como uma categoria funcional I (ou, na nomenclatura de R&R 2003, T,
tense) nas construções de tempo composto perfectivo. A reanálise de verbo pleno como
verbo auxiliar resulta na perda de uma operação de movimento: enquanto categorias
lexicais, ter e haver eram concatenados em V e se moviam para I para receber marcas
flexionais e, após a mudança, são concatenados diretamente em I, não sendo mais
necessária a operação de movimento de V para I. Como consequência, surge uma
construção monoclausal formada pela sequência auxiliar-auxiliado. Neste sentido, nos
moldes de R&R, a perda da operação de movimento leva à gramaticalização: ter/haver são
reanalisados de V para I e a gramaticalização resulta na reanálise da estrutura biclausal V
(pleno) + PTP para uma estrutura perifrástica V (auxiliar) + PTP.
Deste modo, assumimos que as estruturas com interpretação adjetiva apresentam
movimento de ter/haver de V para I, ao passo que as estruturas com interpretação de
tempo composto não o fazem, sendo ter/haver concatenados diretamente em I. Observem-
se as Figura 9 e Figura 10 abaixo.
125
Como é possível observar a Figura 10 ilustra uma estrutura adjetiva formada por
ter/haver + PTP, em que as setas indicam as operações de movimento ocorridas (V para I e
movimento do sujeito de [spec, VP] para [spec, IP]). Nesta configuração, ter e haver
funcionam como verbos plenos e são concatenados na posição de V, após o que se movem
para a posição de núcleo de IP, onde recebem marcas flexionais. Nesta construção, a
posição de complemento de V é preenchida por uma SC formada por um NP e um PTP de
caráter adjetivo. A segunda estrutura, apresentada na Figura 11, representa a configuração
126
genérica de uma estrutura de tempo composto perfectivo, formada por ter/haver + PTP.
Nesta construção, observamos uma perífrase em que ter/haver são concatenados
diretamente no núcleo de IP, posição prototípica dos verbos auxiliares. O PTP,
reinterepretado como verbo, é concatenado em núcleo de V e a posição de complemento
de V pode ser preenchida por um NP complemento ou estar vazia.
Em suma, o processo de mudança de ter e haver que resultou na emergência dos
tempos compostos pode ser capturado nos seguintes termos. O input ambíguo – estruturas
de ter/haver com complemento masculino, singular – é adquirido pelo falante com duas
possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há operação de movimento
de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto, estrutura mais simples em que
não há operação de movimento de V para I.
Em relação aos dois tipos e construção e a aquisição de uma ou de outra,
assumimos a existência de duas gramáticas no PA: G1, uma gramática conservadora na qual
existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva, e G2, uma gramática inovadora, na qual
existem as duas construções: (i) e (ii). A depender do input que o aprendiz terá no período
de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou outra gramática. À medida que os dados
linguísticos das construções do tipo (ii) vão aumentando no corpus, isto é, a medida que a
presença de G2 é visível na Língua-E, é possível afirmar que a mudança está se
implementando. Assumimos, portanto, que, após um período de competição entre as duas
gramáticas (cf. KROCH 1989), vence G2, e ambas as estruturas passam a ser produtivas em
Português, cada uma exercendo sua função na língua.
O processo de mudança em questão é visto, ainda, como uma reação em cadeia,
uma vez que a mudança em um único parâmetro pode desencadear uma gama de novos
fenômenos visíveis superficialmente (LIGHTFOOT 1998). Deste modo, assumimos que, a
partir dos dados ambíguos que servem de input no período de aquisição da linguagem, o
aprendiz adquire a estrutura mais simples, isto é, a que recebe a interpretação de tempo
composto. Contudo, a aquisição deste novo parâmetro gera uma série de outras mudança
visíveis na Língua-E, tais como a fixação da ordem e a perda das marcas de concordância do
PTP com o complemento.
127
3.6. Síntese
de tempo composto. Contudo, a aquisição deste novo parâmetro gera uma série de outras
mudança visíveis na Língua-E, tais como a fixação da ordem e a perda das marcas de
concordância do PTP com o complemento.
Como foi visto, do ponto de vista da gramática gerativa, as propriedades
gramaticais das expressões linguísticas fornecidas pela documentação histórica (Língua-E)
servem para caracterizar o sistema linguístico internalizado pelo falante (Língua-I). No que
respeita ao objeto de estudo desta Dissertação, evidências de construções com ter e haver +
PTP já gramaticalizados no corpus do século 13 (portanto, evidências da Língua-I expressas
pela Língua-E) permitem concluir que a mudança havia ocorrido já neste período, ainda que
com um número restrito de falantes.
130
Conclusão
haver deixam de expressar qualquer valor semântico e integram estruturas com um PTP de
caráter verbal com valor perfectivo, as interpretamos como sendo de tempo composto. Nas
perífrases perfectivas não são documentadas marcas de concordância entre o PTP e o
complemento.
A partir da análise do comportamento de ter e de haver enquanto verbos plenos e
enquanto verbos auxiliares nas construções com PTP foi possível observar que, enquanto
verbos lexicais, funcionam como predicadores da estrutura participial, sendo o PTP, como
visto, interpretado como um adjetivo. Enquanto verbos auxiliares, ter e haver sofrem perda
de estrutura argumental e temática, bem como o conteúdo semântico de posse. Neste caso,
o PTP passa a atuar como o predicador da sentença, selecionando semanticamente o sujeito
da construção. Em relação a mudança a partir da qual o PTP é reinterpretado como um
verbo, assumimos que até a emergência dos tempos compostos, este funcionava apenas
como um adjetivo. Após a mudança, passa a exercer dupla função, podendo funcionar como
adjetivo nas construções transitivas-predicativas e como verbo nas estruturas de tempo
composto.
A análise quantitativa dos dados trouxe resultados que permitiram algumas
conclusões acerca da descrição do fenômeno estudado e corroboram as hipóteses
formuladas no início desta Dissertação. Primeiramente, observamos que as construções
com haver eram mais produtivas no corpus até o século 14. A partir deste século aumentam
as construções com ter, até que estas se tornam maioria no corpus. Com base nisto foi
possível afirmar que as construções com ter vão gradualmente aumentando ao longo dos
séculos, paralelamente à diminuição das estruturas com haver. Atualmente sabe-se que as
estruturas de tempo composto perfectivo em PB são predominantemente com o verbo ter.
No que respeita à concordância, em geral, a literatura considera a perda destas
marcas morfológicas do PTP com o complemento de ter e haver como um indicador do
surgimento dos tempos compostos perfectivos. Associado a isto a fixação da ordem em
[ter/haver PTP] também é um marcador da emergência deste tempo verbal em Português.
Os dados obtidos com a análise do corpus permitiram observar que é a partir do século 13
que surgem as primeiras estruturas sem marcas de concordância, tanto com ter quanto com
haver. Isto sugere que a implementação da mudança se dá já neste século; contudo, seu
espraiamento ocorre ao longo dos séculos seguintes, quando aumentam as ocorrências
deste tipo de estrutura no corpus.
132
original, resultando em uma estrutura inovadora, estruturalmente mais simples. Com base
nisto, assumimos que o input ambíguo – estruturas de ter/haver com complemento
masculino, singular e estruturas com pronomes interrogativos ou substantivos sem
antecedente e, ainda, com complementos nulos sem antecedente – é adquirido pelo falante
com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há operação de
movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto, estrutura mais
simples em que não há operação de movimento de V para I. Em relação aos dois tipos e
construção – a construção original, adjetiva, e a construção inovadora, de tempo composto
– e a aquisição de uma ou de outra, assumimos, ainda, a existência de duas gramáticas no
PA: G1, uma gramática conservadora na qual existe apenas a construção do tipo (i), adjetiva,
e G2, uma gramática inovadora, na qual existem as duas construções: (i) e (ii). A depender
do input que o aprendiz terá no período de aquisição da linguagem, ele adquire uma ou
outra gramática. Após um período de competição entre as duas gramáticas (cf. KROCH
1989), vence G2, e ambas as estruturas passam a ser produtivas em Português, cada uma
exercendo sua função na gramática da língua. Ambas as estruturas convivem, ainda hoje, na
gramática do Português Brasileiro.
Em suma, o processo de mudança de ter e haver que resultou na emergência dos
tempos compostos pode ser capturado nos seguintes termos. O input ambíguo é adquirido
pelo falante com duas possibilidades de interpretação: (i) construção adjetiva, em que há
operação de movimento de núcleo de V para I e (ii) construção de tempo composto,
estrutura mais simples em que ter e haver são concatenados diretamente em I. Uma vez
que a gramaticalização é vista em termos de mudanças nas propriedades dos núcleos
funcionais, assumimos que a primeira interpretação é marcada negativamente para o
parâmetro do movimento do núcleo e a segunda, marcada positivamente para este
parâmetro.
134
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