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estRatÉGIa naVaL De DomÍnIo Do oceano ÍnDIco,

CDU 355.49(469:267)"15"
no InÍcIo Do sÉcULo XVI 515
Anais do Clube Militar Naval, Vol. cXLV, julho-dezembro 2015, p. 515-531

ESTRATégIA NAvAl DE DOmíNIO


DO OCEANO íNDICO, NO INíCIO
DO SéCUlO xvI
1

JoRGe semeDo De matos


capitão-de-fragata
jorge@traquete.net

RESUMO ABSTRACT
Em 1498, quando Vasco da Gama In 1498, when Vasco da Gama
chegou à Índia, encontrou um reached India, he found a struc-
mundo estruturado, com rotas tured world, with speciic ship-
marítimas especíicas cobrindo ping routes covering the entire
todo o espaço do oceano Índico e space of the Indian Ocean and
ligando os principais portos, des- connecting the main ports, from
de a costa africana até à longínqua the African coast to the far away
china e ao Japão. a progressiva China and Japan. The progres-
aprendizagem das relações entre sive learning of the relations
os participantes de um comércio among the participants of a
próspero permitiu aos portugue- lourishing trade allowed the
ses a concepção de um projecto Portuguese to design a political
político e militar cujo objectivo and military project whose clear
claro era o domínio destas vias objective was the domain of these
marítimas. esse projecto está pa- maritime paths. This project is
tente no “Regimento” dado a D. relected in the royal charter
Francisco de almeida, em 1505, given to Francisco de Almeida,
prevendo a construção de um in 1505, providing for the con-
conjunto de fortalezas em pon- struction of a series of forts at
tos estratégicos e a manutenção strategic points and maintaining

1
O autor não adota o Acordo Ortográico.
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de uma armada no mar, de forma a leet at sea in order to prevent


a impedir os acessos a todos os the access to those who refused
que recusassem a soberania por- to accept the Portuguese sover-
tuguesa. afonso de albuquerque, eignty. Afonso de Albuquerque,
assumindo o governo do estado assuming the state government
da Índia em 1509, foi o principal of India in 1509, was the chief
obreiro deste projecto de domí- architect of this project of naval
nio naval, obtido sobretudo com domain, obtained mainly with
as conquistas de Goa, malaca e the conquests of Goa, Malacca
ormuz. and Ormuz.

PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS


Oceano Índico, Estado da Índia, Indian Ocean, Estado da Índia,
Poder Naval, Afonso de Albu- Naval Power, Afonso de Albu-
querque. querque.
estRatÉGIa naVaL De DomÍnIo Do oceano ÍnDIco,
no InÍcIo Do sÉcULo XVI 517

No dia 25 de Outubro de 1495, morria na pequena aldeia do Alvor,


no sul de Portugal, o rei D. João II. Deixara atrás de si uma obra política
notável, no âmbito da centralização e organização de um estado moder-
no, mas, sobretudo, levara a cabo uma acção persistente, no sentido de
explorar toda a costa africana a sul do equador, e encontrar a passagem
para o Índico. conseguira-o através de um conjunto de explorações
marítimas que culminam numa expedição, comandada por Bartolomeu
Dias, que, no princípio do ano de 1488, conseguira ultrapassar a ponta
sul de áfrica e alcançar uma pequena baía calma e acolhedora, já no
oceano Índico. chamou-lhe angra de s. Brás, em homenagem ao santo
celebrado no 3 de Fevereiro, quando ali chegou e lançou ferro. ainda
percorreu mais umas centenas de léguas de costa, mas as condições dos
navios e a falta de abastecimento obrigaram-no a regressar, trazendo
para Lisboa a notícia de que passara aquele cabo tão terrível, que cha-
mara tormentoso. Respondeu-lhe o rei que esse cabo era a barreira que
faltava vencer para alcançar os seus objectivos, e melhor seria chamar-lhe
cabo da Boa esperança, porque agora sim estava aberto o caminho para
o oriente longínquo dos sonhos europeus.
No dia 8 de Julho de 1497, sob o comando de Vasco da Gama,
saíram de Lisboa quatro navios cujo destino era alcançar a Índia e esta-
belecer contactos indispensáveis à abertura de uma nova rota de espe-
ciarias, a realizar pelo cabo da Boa esperança em navios portugueses.
Desta vez a armada navegou para sul até ao arquipélago de cabo Verde,
ganhou barlavento num bordo até perto da costa africana e virou para
uma volta larga, que quase alcançou a costa do Brasil, contornando o
anticiclone do atlântico sul até encontrar os ventos gerais do oeste e
avançar em direcção ao cabo2. no dia 7 de novembro avistaram a Baía
de santa helena, perto da ponta sul de áfrica. não tinham conseguido
passar para o Índico, e aquele contratempo iria demorá-los cerca de
duas semanas, em bordos sucessivos, ao mar e a terra, até que consegui-
ram alcançar a angra de s. Brás, no dia 25 de novembro.
estava vencido o primeiro grande obstáculo da viagem, poden-
do descansar uns dias, aproveitando para reabastecer de água doce, no
mesmo local onde já o tinha feito Bartolomeu Dias, em 1488. E, pra-
ticamente, terminavam por ali as informações portuguesas sobre o es-

2
Diário da Viagem de Vasco da Gama, Introdução de Damião Peres, estudo náutico
de Gago Coutinho, 2 vols, Porto, Livraria Civilização, 1945.
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paço marítimo que ainda deveriam sulcar até chegar à Índia. adiante
alcançaram o “Rio dos Bons sinais”, nome dado por terem recebido a
visita de homens vestidos à maneira dos mouros do norte de áfrica,
que diziam já ter visto navios grandes como aqueles que levavam.
seguiu-se moçambique e mombaça, percebendo-se no tom do tex-
to a ansiedade crescente de quem encontra um mundo com hábitos
que já conheciam, procurando obsessivamente um piloto que pudesse
ajudá-los a atravessar o Índico. conseguiram-no em melinde, de onde
partiram a 24 de abril para mais uma longa travessia até ao malabar.
Avistaram a costa hindustânica a 18 de Maio e no dia 20 fundearam
um pouco a norte de calecut, cidade que sabiam ser um dos mais im-
portantes centros distribuidores de pimenta do oriente.
o primeiro homem desembarcado encontrou “dois mouros
de tunes que falavam castelhano e genovês” que lhe perguntaram
o que vinham fazer a terras tão distantes. “Vimos buscar cristãos e
especiarias”3 – responderam eles. Palavras ingénuas de quem não
imaginava que tipo de gente vivia naquela cidade, pensando (dese-
jando) que iriam encontrar um manancial de aliados para o comércio
rico do oriente. como sabemos, o número de cristãos era reduzido
e sem signiicado político, prevalecendo uma teia de relações domi-
nadas por outras solidariedades religiosas e étnicas integrando uma
realidade social, económica e política que podemos chamar de Mundo
Índico, com um critério semelhante ao que Braudel utilizou para o
Mundo Mediterrânico4. Um espaço que separa e une povos diferentes
que vão legando uns aos outros partes da sua cultura, no movimento
incessante de porto para porto, em rotas marítimas bem deinidas ao
ritmo cadenciado das monções asiáticas, que facilitam ou impedem as
viagens consoante a época do ano. Do mar Vermelho e Golfo Pérsico
saem navios que vão ao malabar comprar especiarias, que pagam com
ouro adquirido em sofala à custa dos tecidos de algodão de cambaia.
com estes mesmos tecidos se compravam também os produtos do ex-
tremo oriente, oriundos do arquipélago ou da china (cravo, sândalo,
sedas, porcelanas, etc.). O espaço deine-se, de forma simpliicada,
identiicando duas potências imperiais produtoras de artigos manu-

3
Ibidem, vol I, p. 60.
4
Kirti chaudhuri, Trade ans Civilization in the Indian Ocean. An Economic His-
tory from the rise of Islam to 1750, Cambridge, 1985, pg. 1 ss.
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no InÍcIo Do sÉcULo XVI 519

facturados de grande procura – a Índia e a china –, entre as quais


circulam os diversos “transportadores”, senhores das especiarias e
outras mercadorias que completam o sistema. se é verdade que não
lhes encontramos um destino comum5, temos formas tipiicadas de re-
lacionamento, estruturas estáveis de comércio e vias de comunicação
deinidas com regras próprias. E a diferenciação de tarefas relecte
uma realidade política e social própria, onde os senhores dos impé-
rios são apenas usufrutuários da rede comercial, distanciando-se dela
por valores éticos e religiosos muito fortes. Uma particularidade que
acabou por facilitar a entrada dos ocidentais, porque a sua actividade
icou no âmbito das rivalidades comerciais sem afectar o essencial dos
poderes imperiais dominantes6.

Fig. 1 – As monções do Oceano Índico Ocidental que determinam as


épocas das viagens. A monção de sudoeste, entre Maio e Agosto, que
provoca muito mau tempo no Malabar e impede a navegação, e a mon-
ção de Nordeste, que facilita as viagens da Índia para a costa africana.

5
Que Braudel identiicara no Mediterrâneo do tempo de Filipe II.
6
Denys Lombard, Le Carrefour Javanais, vol II, Paris, 1990, pg. 11 ss.
520 anaIs Do cLUBe mILItaR naVaL

Quando os portugueses chegaram à Índia não conheciam os por-


menores desta cadeia comercial e marítima, demorando vários anos até
se aperceberem da sua dimensão e pormenores. Imaginaram que ali en-
contrariam os cristãos de s. tomé e o reino do Preste João, que apenas
aguardavam por um aliado suicientemente forte para se organizarem
contra os mouros, supondo que os meios de que dispunham permitiriam
o envolvimento estratégico que levaria à queda do domínio islâmico.
contudo, ao abordarem o reino de calecut, não sabiam sequer quais
eram as cumplicidades que envolviam o samorim, soberano que supu-
nham ser o senhor de todo o comércio do malabar, nem tinham a noção
do domínio das comunidades muçulmanas sobre o comércio marítimo.
aliás, não estavam sequer a par de uma informação estratégica funda-
mental, como era o conhecimento pormenorizado das monções e das
suas consequências7.
a missão de Vasco da Gama em calecut, entendida como uma ac-
ção diplomática tendente a estabelecer uma nova via de acesso para as
especiarias, estava destinada ao insucesso, devido à falta de meios e de
conhecimento concreto desse mundo oriental. D. manuel e os seus con-
selheiros pensaram na qualidade dos navios, na forma de ultrapassar o
atlântico sul e dobrar o cabo, na necessidade de exibir alguma capaci-
dade militar, mas desconhecendo muitos pormenores importantes dessa
sociedade asiática, muito rica, complexa e requintada nos costumes.
o samorim não era um homem do mar8, e os benefícios do comércio
apenas lhe chegavam de forma indirecta através de taxas pagas pelos
mercadores islâmicos estabelecidos no reino ou que por ali passavam,
e foi mais sensível aos argumentos desses seus súbditos iéis, do que
a quaisquer vantagens que lhe pudesse oferecer esta “insólita gente”
vinda de tão longe. optou pela tentativa de não os deixar regressar,
anulando à nascença uma empresa que todos sabiam ser incerta. Fez
aquilo que se viria a revelar uma arma frequente nos pequenos poderes
hindustânicos: prolongar as conversações até à exaustão, fazendo cair

7
a navegação na costa indiana era praticamente impossível durante a monção de
sudoeste – de maio a agosto – devendo respeitar, nas outras alturas, o regime
sazonal de ventos, num sentido ou noutro.
8
sobre a cidade de calecut e o governo do samorim, ver Geneviève Bouchon,
«Calicut at the turn of sixteenth century», in Inde Découverte, Inde Retrouvée,
Paris-Lisbonne, 1999, pg. 227 ss.
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os inimigos na armadilha das monções que, por si só, destruiriam os na-


vios e as tripulações. Valeu aos portugueses a decisão do capitão-mor,
que zarpou para o norte e decidiu regressar, mesmo fora do período
favorável. chegaria a Lisboa apenas com dois navios, que entraram a
barra entre Agosto e Setembro de 1499, deixando no mar um rasto de
mortos dizimados pelo escorbuto e outras doenças provocadas por má
nutrição e carência de água doce potável.
apesar de tudo isto a viagem foi vista como um imenso sucesso
que provara a possibilidade de uma rota plena de perspectivas, a que
faltava um ajuste de pormenores para que fosse possível impô-la no
oriente. e o debate político que decorre na corte de Lisboa, desde esse
verão de 1499 até ao princípio do ano seguinte, vai-se deinindo em
duas posturas distintas: manter o esforço diplomático, tentando aliciar o
samorim para uma relação sólida com os portugueses? ou avançar com
uma armada poderosa que se impusesse pela força? D. manuel optaria
por uma posição intermédia, mantendo o carácter de embaixada, mas
reforçando-a com um poder naval capaz de intimidar as frágeis em-
barcações do Índico e a capacidade defensiva do samorim. Decidiu-se
pelo que hoje chamaríamos uma diplomacia musculada.
Vasco da Gama trouxera da Índia um mercador judeu que há vários
anos andava pelo oriente e que, convertido ao cristianismo9, se tornou
num dos principais conselheiros do rei e dos capitães, ciente do que
era o comércio do Índico, e partidário de um projecto de estabeleci-
mento de um poder naval que permitisse o que hoje designaríamos por
domínio do mar10. este homem acompanhou a 2ª viagem portuguesa
à Índia, comandada por Pedro álvares cabral, que alcançou calecut
em setembro de 1500, observando atentamente as sucessivas fases das
conversações que visavam a celebração de um tratado de paz e o esta-
belecimento de uma feitoria comercial, com um núcleo de portugueses
que tratariam da aquisição das mercadorias destinadas às armadas que
passariam a vir todos os anos de Lisboa. o processo passou pelos atra-

9
trata-se de Gaspar da Gama, que acompanhará a viagem de cabral em 1500, a
de Vasco da Gama em 1502 e a de D. Francisco de Almeida em 1505, icando
pela Índia onde terá morrido no tempo de afonso de albuquerque, provavelmente
em 1510. Jean aubin, Le Latin et l’Astrolabe, Vol II, Vol III, Paris, 2000, 2006,
passim.
10
hervé couteau-Bégarie, Traité de Stratégie, 2e Ed., Paris, 1999, pg 585.
522 anaIs Do cLUBe mILItaR naVaL

sos do costume, com incidentes de vária ordem que acabaram por levar
à destruição da feitoria, à morte dos portugueses que estavam em terra,
e ao sequente bombardeamento da cidade pela armada de cabral. os
navios ainda não estavam carregados, mas Gaspar da Gama indicou
ao capitão que poderia ir comprar pimenta a outros portos do malabar,
seguindo para cochim onde se estabeleceu o primeiro contacto com o
soberano que viria a ser o principal aliado dos portugueses na Índia.
experimentava-se uma outra arma poderosa da acção política europeia
no oriente: tratava-se de aproveitar as rivalidades entre pequenos pode-
res locais, oferecendo alianças que podiam beneiciar uns contra outros.
neste caso, cochim tentava libertar-se da tutela de calecut e contou
com o poder dos navios portugueses para atingir esse objectivo11.
cabral saiu de Lisboa com 13 navios, dos quais só 6 alcançaram
a Índia. Foram carregados com pimenta, canela, gengibre e outros
produtos do rico comércio oriental e, pelos testemunhos dos cronistas
portugueses, corroborados por relatos de embaixadores e comercian-
tes italianos estabelecidos em Lisboa, sabemos que a viagem foi muito
lucrativa, apesar das pesadas perdas em navios. o comércio tinha uma
margem de lucro extraordinária e o rei ganhava ânimo para continuar a
empresa, que já atraía aventureiros e investidores estrangeiros12.
os anos que se seguem são de uma aprendizagem mais profunda
da realidade oriental, actuando por tentativa e erro. em 1502 voltava à
Índia Vasco da Gama, com três armadas sob o seu comando. Levava
instruções para castigar duramente calecut e os seus aliados, para pro-
teger o rei de cochim, carregar a maioria dos navios com especiarias e
deixar no Índico duas forças navais: um navio no canal de moçambique
controlando o acesso a sofala, por onde saía o ouro do monomotapa; e
uma armada que correria a costa do Indostão enquanto o tempo lho per-
mitisse, indo até à entrada do mar Vermelho para desenvolver acções
de corso sobre os navios que de ali se aproximassem. nesta iniciativa se
pressente a política de D. manuel para os anos sequentes, feita à medida
da crescente informação sobre o sistema comercial marítimo do Índico.
Percebeu-se de imediato que era necessário construir uma fortaleza em

11
J. aubin, Op. Cit., vol III, pg. 293.
12
José manuel Garcia, Pedro Álvares Cabral, Lisboa, 2001, pg. 301 ss. Ver também
J. aubin, Op. Cit., vol III, pg. 297.
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no InÍcIo Do sÉcULo XVI 523

cochim e que a armada da Índia13 devia invernar naquele porto, descar-


regando a artilharia e utilizando a sua força para proteger o rajá dos ata-
ques lançados pelo samorim, durante a estação das chuvas, movendo as
suas tropas pelo interior, por vias terrestres ou pelos numerosos canais.
em 1505, contudo, o rei decide criar uma estrutura própria de do-
mínio português no Índico criando o que alguns anos depois mereceu o
nome de Estado Português da Índia. nomeou um Vice-Rei e dotou-o
de um Regimento pormenorizado, com regras de actuação claras e dei-
nidas14 que foi completando e aperfeiçoando, através de um conjunto de
cartas escritas anualmente e levadas pelos navios de uma carreira que se
tornou regular. a escolha recaiu sobre D. Francisco de almeida, a quem
foi dada uma carta de Poder,15 com uma validade de três anos, partindo
da barra de Lisboa a 25 de março de 1505, com 14 naus e 6 caravelas.
Devia deixar em sofala uma pequena armada, que controlaria o
acesso ao ouro, construindo uma fortaleza no principal ramo do delta
do rio Zambeze, mas esses navios atrasaram-se nos preparativos e só
foram ocupar a sua posição cerca de um mês mais tarde. Pretendia o
rei, com esta armada e com a fortaleza, bloquear o porto de sofala e
manter a soberania sobre uma importante escala da carreira da Índia,
que passou a fazer-se regularmente na ilha de moçambique. comple-
mentarmente devia ir a Quíloa, cujo rei prometera vassalagem a Portu-
gal, com o pagamento de um tributo a que se furtara sucessivamente.
Depois iria a melinde, onde subsistia uma amizade que vinha do tempo
da primeira viagem de Vasco da Gama, esperando pela época própria
para fazer a travessia para a Índia. Deveria ir direito à ilha de angediva,

13
A armada que icava na Índia, para se dedicar ao corso, quando os restantes navios
regressavam a Lisboa.
14
o documento pertence ao arquivo nacional torre do tombo (antt, m. 2 de
Leis, nº 13) e o seu texto está publicado em várias fontes impressas, como sejam
as Cartas de Afonso de Albuquerque, vol II, pgs 272-334. Jean aubin, Op. Cit.,
Vol III, pg. 329. Pode encontrar-se também em Joaquim Candeias da Silva, O
Fundador do «Estado Português da Índia» D. Francisco de Almeida, Lisboa,
1996, pgs 261-299.
15
Há uma clara delegação de poderes na igura de um Vice-Rei, com poderes limi-
tados pelas pormenorizadas instruções desse Regimento. na prática temos o que
um historiador português chamou de “exportação do poder”, num contexto difícil
em que a tendência europeia é de centralização desse exercício, e as estruturas
do estado se tornam cada vez mais complexas, mas centradas na igura do rei.
524 anaIs Do cLUBe mILItaR naVaL

onde construiria uma pequena fortiicação capaz de dar apoio à Armada


da Índia, seguindo depois para cochim. esta vontade de estabelecer
uma base em angediva é reveladora da noção da vantagem táctica que
se obtinha tendo a armada mais a norte, devido às condições meteoroló-
gicas durante o período em que era possível navegar naquelas paragens,
mostrando uma tendência que, mais tarde, levaria à conquista de Goa e
ao estabelecimento em Diu.16
o Regimento determinava ainda que a fortaleza de madeira cons-
truída em cochim fosse substituída por outra mais poderosa, feita em
pedra, com artilharia capaz de cobrir a entrada da barra, onde os navios
passariam a invernar durante a monção de sudoeste.
nesse ano de 1505, nada mais deveria preocupar D. Francisco que
não fosse o carregamento das naus do reino17, mas a Armada da Índia
devia ser reestruturada e dotada de dois navios de remo, navegando
entre o malabar e o Guzerate, de forma a restringir todo o movimento
comercial não autorizado pelos portugueses. Para formalizar este con-
trolo, foi instituído o que icaria conhecido como o regime de “Cartaz”,
que mais não era do que essa autorização, passada mediante o pagamen-
to de uma taxa própria ou por concessão a pedido dos poderes aliados18.
Para além disso, logo que lhe fosse possível deveria preparar-se para ir
ao mar Vermelho, tentando conquistar uma posição à sua entrada, de
forma a poder controlar todos movimentos dos navios muçulmanos,
impedindo o comércio e mesmo as peregrinações que anualmente se
dirigiam a meca, vindas de todo o Mundo Índico que, como dissemos,
tinha uma componente determinante de povos islamizados até às lon-
gínquas ilhas do arquipélago da Insulíndia.
Para Calecut havia, também, instruções especíicas. O rei não tinha
perdido a esperança de fazer amizade com o poderoso samorim – tanto
mais que sabia que não era muçulmano –, mas sabia da inluência que

16
As posições a norte, são posições que icam a barlavento, quando não está esta-
belecida a monção de sudoeste que impede as navegações normais.
17
J. aubin, Op. Cit., vol III, pg 333.
18
A palavra “cartaz”, cujo signiicado em língua portuguesa é hoje claro, tem uma
remota origem grega (carth), que chegou ao português pela via do árabe ķirţās,
cujo signiicado literal é o de “papiro” ou “papel”, mas que designou a autoriza-
ção necessário para a navegação no mar da Índia, a partir de 1505. R. sellheim,
Encyclopaedia of Islam, ed. CD-ROM, Leiden, 1999.
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no InÍcIo Do sÉcULo XVI 525

Fig. 2 – Ventos predominantes na costa da Índia, fora do período


da monção do sudoeste, que impede as navegações.

sobre ele tinham as comunidades islâmicas residentes e os mercadores


que por ali passavam em direcção ao Guzerate ou ao médio oriente,
de forma que agia com mais precauções. D. Francisco não deveria en-
jeitar as possibilidades de um acordo, mas deveria certiicar-se que os
outros aliados dos portugueses estavam de acordo com isso19, e exigir
que na sua cidade não voltassem a entrar as “naus de meca”. caso não o
conseguisse, deveria fazer-lhe a guerra por todos os meios disponíveis,
bloqueando completamente o porto, impedindo o comércio e o próprio
abastecimento.

19
o jogo diplomático assim o obrigava.
526 anaIs Do cLUBe mILItaR naVaL

o documento é vastíssimo e não se restringe a directivas que hoje


entenderíamos como de natureza estratégica. É um Regimento dado por
um monarca absoluto, com o desejo expresso de controlar todas as ac-
ções de alguém a quem concedeu o título de Vice-Rei, contrariando a
sua própria concepção de exercício do poder e cedendo às condições
da distância. Qualquer informação vinda da Índia chegaria ao reino um
ano depois, e as ordens reais chegavam ao oriente dois anos depois dos
factos que lhe davam origem, correndo o risco de encontrar uma situ-
ação completamente alterada, que a tornarias absurdas e desajustadas.
mas D. manuel teve o desejo de tudo continuar a regular, desde a forma
como deveria ser feito o fogo a bordo das naus, ao modo como se re-
gulavam as contas, ao carregamento das naus e, bem entendido a estas
questões de política geral, que envolviam um entendimento estratégico
da situação no Índico. Quero eu com isso dizer que não devemos reti-
rar deste género de documentos a ideia de um pensamento estratégico
organizado, nos moldes em que a ciência hoje nos aponta, podendo
apenas vislumbrar acções concertadas, reveladoras de um sentido estra-
tégico global ajustado ao domínio do mar, que podem ser interpretadas
com uma linguagem própria.
o rei de Portugal é dominado por um sentido messiânico alimen-
tado pelos êxitos das viagens marítimas e pretende asixiar o poder
islâmico estabelecido no médio oriente, sonhando com o apoio dos
cristãos de s. tomé e com o lendário Preste João, de forma que as suas
determinações nunca são menos do que absolutas. o bloqueio do mar
Vermelho e Golfo Pérsico não é visto em função dos meios de que dis-
põe, mas dos objectivos que ambiciona, e o seu desejo é que não passe
nenhum navio. Da mesma forma, a armada da Índia – cuja acção práti-
ca era essencialmente o corso – tinha por missão banir completamente
o movimento marítimo não controlado, e a política do cartaz, expressa
bem este objectivo. evidentemente que os caminhos do mar, no tempo
da navegação à vela – especialmente no oceano Índico – não são vias
abertas, como leva a supor a visão ininita dos espaços marítimos. Es-
tão sujeitos aos regimes de ventos e correntes que determinam rotas
estreitas e previsíveis, sobre as quais é possível actuar. De forma que
o controlo do mar confunde-se com o controlo dessas vias especíicas,
dos locais onde era preciso reabastecer (que também eram próprios e
conhecidos) e dos pontos quase obrigatórios de passagem, onde as ar-
madas portuguesas procuravam estabelecer-se de forma a sair com van-
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no InÍcIo Do sÉcULo XVI 527

tagem táctica. não é linear o estabelecimento de paralelismos directos


com a ciência estratégica do século XX e XXI, mas é possível encontrar
nexos de pensamento estratégico que se relacionam com os objectivos
conhecidos e deinidos. Esses nexos estão presentes no Regimento de
1505, têm uma coerência continuada nas determinações que lhe foram
sendo acrescentadas pela correspondência posterior, e espelham acções
que hoje têm uma expressão clara nos conceitos de bloqueio, de corso
e de domínio do mar.
a partir de 1507, D. Francisco de almeida vai deparar-se com um
outro problema na Índia, que não poderia ser previsto ou prevenido pelo
poder real: uma armada turca prepara-se no cairo e avança para o Índi-
co com o objectivo concreto de expulsar os portugueses. os turcos eram
bem conhecidos dos portugueses no mediterrâneo e a sua intervenção
directa causava sérias preocupações. entenderam sempre os portugue-
ses que, nenhum outro poder oriental podia fazer-lhes frente como os
turcos e esta ameaça punha directamente em causa a sua presença no
oriente. a actuação de D. Francisco, a partir do momento em que soube
desta ameaça, foi determinada pelo pensamento único e obsessivo de
os defrontar e derrotar, da forma que alfred mahan diria ser uma ba-
talha decisiva. como diriam, também, alguns conhecidos antagonistas
de mahan as batalhas decisivas são muito raras, e a que foi travada em
Diu, em Fevereiro de 1509, apesar da estrondosa vitória dos portugue-
ses, só foi decisiva por uma ou duas décadas, até que outros turcos vol-
taram ao Índico. Facilmente entendemos como teria sido decisiva para
os portugueses, se a tivessem perdido, porque a sua expulsão do Índico
era inevitável, percebendo que esse carácter determinante da batalha
varia de acordo com muitas circunstâncias, nem sempre evidentes. mas
a vitória sorriu aos navios lusitanos, permitindo a continuidade da estra-
tégia de D. manuel, aprofundada com ajustes de diversa ordem levados
a cabo pelo governador afonso de albuquerque.
o velho projecto da base em anjediva gorara-se logo no ano de
1506, devido às más condições da ilha, permanecendo de pé a neces-
sidade de criar uma base a norte, que acabou por ser estabelecida em
Goa, após a sua conquista em 1510. Ficar a norte, numa região oceânica
onde o período navegável é dominado por ventos desse sector, é icar
a barlavento em situação de vantagem táctica para actuar sobre uma
signiicativa parte do mar da Índia. Para além disso, Goa tinha melho-
res condições para albergar a armada da Índia, de forma que acabou
528 anaIs Do cLUBe mILItaR naVaL

por se impor como capital do Estado, icando Cochim com um papel


complementar vocacionado para a recolha e armazenamento da pimen-
ta exportada para a europa.
ainda em 1511, albuquerque conseguiu ocupar a cidade de ma-
laca, no estreito do mesmo nome, alargando a sua zona de acção para
oriente e controlando mais um ponto de passagem obrigatório para as
vias marítimas onde circulavam as mercadorias da china e do arquipé-
lago. e de malaca foi para o mar Vermelho e ormuz, tentando cumprir
mais um dos objectivos régios, de bloqueio ao médio oriente. contu-
do, não teve aí os sucessos que obtiveram nas conquistas anteriores.
conseguiu submeter ormuz em 1515, mas os portugueses nunca al-
cançaram nenhuma posição que lhes permitisse controlar as portas do
Bab el-mandeb. o bloqueio do mar Vermelho foi sempre incompleto,
e exercido de forma indirecta através de campanhas navais com esqua-
dras que iam invernar a ormuz ou em Goa.
Quando albuquerque terminou o seu mandato como governador20,
os portugueses tinham, no oceano Índico, quatro importantes posições
que correspondiam a portos importantes e pontos de apoio criteriosa-
mente colocados sobre rotas de comércio marítimo. até cerca de 1532,
a principal delas continuou a ser cochim, onde eram carregados, todos
os anos, os navios da Carreira da Índia. Goa tinha grandes vantagens
estratégicas – como disse – mas houve grande resistência em imple-
mentar todas as suas capacidades, devido aos interesses comerciais
imediatos que imperavam em cochim, carentes da visão estratégica
abrangente de afonso de albuquerque. Para além disso dominavam as
rotas do extremo oriente, que tinham de passar em frente de malaca, e
a entrada do Golfo Pérsico, com a fortaleza e os navios colocados em
ormuz. Paralelamente, com a armada da Índia e com as campanhas
regulares lançadas sobre o Golfo de adém e o mar Vermelho, controla-
vam quase todo o movimento marítimo do Índico. Deve dizer-se con-
tudo que nunca conseguiram um domínio absoluto do mar. a rota do
malabar, por onde circulavam especiarias, pedras preciosas e produtos
do extremo oriente para o Guzerate e para o mar Vermelho, encontrou
uma via mais ao largo, passando pelas ilhas maldivas e Laquedivas,

20
afonso de albuquerque morreu ao largo de Goa, quando já tinha chegado a ar-
mada com Lopo soares de albergaria, nomeado pelo rei de Portugal para ocupar
o cargo de Governador da Índia.
estRatÉGIa naVaL De DomÍnIo Do oceano ÍnDIco,
no InÍcIo Do sÉcULo XVI 529

Fig. 3 – Principais pontos de apoio do Poder Naval português no


Oceano Índico, após o governo de Afonso de Albuquerque

onde o acesso era difícil para as naus de grande porte. Para além disso, o
Guzerate foi-se tornando cada vez mais agressivo, levando à ocupação
da ponta de Diu21, mas obrigando a um esforço militar acrescido que, a
certa altura se tornou muito difícil.
escasseavam-lhes os meios humanos e o número de navios ne-
cessários para um espaço tão alargado, mas o primeiro meio século de
vida do estado Português da Índia viu crescer o seu poderio de forma
progressiva e consistente. na década de trinta os portugueses estabele-
ceram-se deinitivamente em Goa, multiplicando o número de residen-
tes e aumentando consideravelmente a quantidade e o tipo de navios.
a construção de estaleiros navais, dotados do saber dos construtores
europeus e da qualidade das madeiras da Índia foi decisiva para este
impulso. O rei D. Manuel morreu em 1521, quando as riquezas aluíam
a Lisboa em quantidades inimagináveis, mas a política de domínio do

21
Diu é o exemplo de uma posição estratégica extraordinariamente vantajosa para
toda a navegação, porque controla o Golfo de Cambaia e ica a barlavento de
toda a Índia, durante a estação navegável.
530 anaIs Do cLUBe mILItaR naVaL

Índico foi continuada pelo seu sucessor D. João III, até aos limites da
capacidade de um país que tinha pouco mais de um milhão e meio de
habitantes. adaptou-se às sucessivas circunstâncias, usou o poder dos
canhões e dos navios de grande porte, jogando com uma diplomacia
complexa e delicada assente em equilíbrios de forças que permitiram
uma presença no Oceano Índico, sem contestação credível, até ao inal
do século XVI, quando ali surgiram outras potências europeias.

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