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CDU 355.49(469:267)"15"
no InÍcIo Do sÉcULo XVI 515
Anais do Clube Militar Naval, Vol. cXLV, julho-dezembro 2015, p. 515-531
RESUMO ABSTRACT
Em 1498, quando Vasco da Gama In 1498, when Vasco da Gama
chegou à Índia, encontrou um reached India, he found a struc-
mundo estruturado, com rotas tured world, with speciic ship-
marítimas especíicas cobrindo ping routes covering the entire
todo o espaço do oceano Índico e space of the Indian Ocean and
ligando os principais portos, des- connecting the main ports, from
de a costa africana até à longínqua the African coast to the far away
china e ao Japão. a progressiva China and Japan. The progres-
aprendizagem das relações entre sive learning of the relations
os participantes de um comércio among the participants of a
próspero permitiu aos portugue- lourishing trade allowed the
ses a concepção de um projecto Portuguese to design a political
político e militar cujo objectivo and military project whose clear
claro era o domínio destas vias objective was the domain of these
marítimas. esse projecto está pa- maritime paths. This project is
tente no “Regimento” dado a D. relected in the royal charter
Francisco de almeida, em 1505, given to Francisco de Almeida,
prevendo a construção de um in 1505, providing for the con-
conjunto de fortalezas em pon- struction of a series of forts at
tos estratégicos e a manutenção strategic points and maintaining
1
O autor não adota o Acordo Ortográico.
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2
Diário da Viagem de Vasco da Gama, Introdução de Damião Peres, estudo náutico
de Gago Coutinho, 2 vols, Porto, Livraria Civilização, 1945.
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paço marítimo que ainda deveriam sulcar até chegar à Índia. adiante
alcançaram o “Rio dos Bons sinais”, nome dado por terem recebido a
visita de homens vestidos à maneira dos mouros do norte de áfrica,
que diziam já ter visto navios grandes como aqueles que levavam.
seguiu-se moçambique e mombaça, percebendo-se no tom do tex-
to a ansiedade crescente de quem encontra um mundo com hábitos
que já conheciam, procurando obsessivamente um piloto que pudesse
ajudá-los a atravessar o Índico. conseguiram-no em melinde, de onde
partiram a 24 de abril para mais uma longa travessia até ao malabar.
Avistaram a costa hindustânica a 18 de Maio e no dia 20 fundearam
um pouco a norte de calecut, cidade que sabiam ser um dos mais im-
portantes centros distribuidores de pimenta do oriente.
o primeiro homem desembarcado encontrou “dois mouros
de tunes que falavam castelhano e genovês” que lhe perguntaram
o que vinham fazer a terras tão distantes. “Vimos buscar cristãos e
especiarias”3 – responderam eles. Palavras ingénuas de quem não
imaginava que tipo de gente vivia naquela cidade, pensando (dese-
jando) que iriam encontrar um manancial de aliados para o comércio
rico do oriente. como sabemos, o número de cristãos era reduzido
e sem signiicado político, prevalecendo uma teia de relações domi-
nadas por outras solidariedades religiosas e étnicas integrando uma
realidade social, económica e política que podemos chamar de Mundo
Índico, com um critério semelhante ao que Braudel utilizou para o
Mundo Mediterrânico4. Um espaço que separa e une povos diferentes
que vão legando uns aos outros partes da sua cultura, no movimento
incessante de porto para porto, em rotas marítimas bem deinidas ao
ritmo cadenciado das monções asiáticas, que facilitam ou impedem as
viagens consoante a época do ano. Do mar Vermelho e Golfo Pérsico
saem navios que vão ao malabar comprar especiarias, que pagam com
ouro adquirido em sofala à custa dos tecidos de algodão de cambaia.
com estes mesmos tecidos se compravam também os produtos do ex-
tremo oriente, oriundos do arquipélago ou da china (cravo, sândalo,
sedas, porcelanas, etc.). O espaço deine-se, de forma simpliicada,
identiicando duas potências imperiais produtoras de artigos manu-
3
Ibidem, vol I, p. 60.
4
Kirti chaudhuri, Trade ans Civilization in the Indian Ocean. An Economic His-
tory from the rise of Islam to 1750, Cambridge, 1985, pg. 1 ss.
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5
Que Braudel identiicara no Mediterrâneo do tempo de Filipe II.
6
Denys Lombard, Le Carrefour Javanais, vol II, Paris, 1990, pg. 11 ss.
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7
a navegação na costa indiana era praticamente impossível durante a monção de
sudoeste – de maio a agosto – devendo respeitar, nas outras alturas, o regime
sazonal de ventos, num sentido ou noutro.
8
sobre a cidade de calecut e o governo do samorim, ver Geneviève Bouchon,
«Calicut at the turn of sixteenth century», in Inde Découverte, Inde Retrouvée,
Paris-Lisbonne, 1999, pg. 227 ss.
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trata-se de Gaspar da Gama, que acompanhará a viagem de cabral em 1500, a
de Vasco da Gama em 1502 e a de D. Francisco de Almeida em 1505, icando
pela Índia onde terá morrido no tempo de afonso de albuquerque, provavelmente
em 1510. Jean aubin, Le Latin et l’Astrolabe, Vol II, Vol III, Paris, 2000, 2006,
passim.
10
hervé couteau-Bégarie, Traité de Stratégie, 2e Ed., Paris, 1999, pg 585.
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sos do costume, com incidentes de vária ordem que acabaram por levar
à destruição da feitoria, à morte dos portugueses que estavam em terra,
e ao sequente bombardeamento da cidade pela armada de cabral. os
navios ainda não estavam carregados, mas Gaspar da Gama indicou
ao capitão que poderia ir comprar pimenta a outros portos do malabar,
seguindo para cochim onde se estabeleceu o primeiro contacto com o
soberano que viria a ser o principal aliado dos portugueses na Índia.
experimentava-se uma outra arma poderosa da acção política europeia
no oriente: tratava-se de aproveitar as rivalidades entre pequenos pode-
res locais, oferecendo alianças que podiam beneiciar uns contra outros.
neste caso, cochim tentava libertar-se da tutela de calecut e contou
com o poder dos navios portugueses para atingir esse objectivo11.
cabral saiu de Lisboa com 13 navios, dos quais só 6 alcançaram
a Índia. Foram carregados com pimenta, canela, gengibre e outros
produtos do rico comércio oriental e, pelos testemunhos dos cronistas
portugueses, corroborados por relatos de embaixadores e comercian-
tes italianos estabelecidos em Lisboa, sabemos que a viagem foi muito
lucrativa, apesar das pesadas perdas em navios. o comércio tinha uma
margem de lucro extraordinária e o rei ganhava ânimo para continuar a
empresa, que já atraía aventureiros e investidores estrangeiros12.
os anos que se seguem são de uma aprendizagem mais profunda
da realidade oriental, actuando por tentativa e erro. em 1502 voltava à
Índia Vasco da Gama, com três armadas sob o seu comando. Levava
instruções para castigar duramente calecut e os seus aliados, para pro-
teger o rei de cochim, carregar a maioria dos navios com especiarias e
deixar no Índico duas forças navais: um navio no canal de moçambique
controlando o acesso a sofala, por onde saía o ouro do monomotapa; e
uma armada que correria a costa do Indostão enquanto o tempo lho per-
mitisse, indo até à entrada do mar Vermelho para desenvolver acções
de corso sobre os navios que de ali se aproximassem. nesta iniciativa se
pressente a política de D. manuel para os anos sequentes, feita à medida
da crescente informação sobre o sistema comercial marítimo do Índico.
Percebeu-se de imediato que era necessário construir uma fortaleza em
11
J. aubin, Op. Cit., vol III, pg. 293.
12
José manuel Garcia, Pedro Álvares Cabral, Lisboa, 2001, pg. 301 ss. Ver também
J. aubin, Op. Cit., vol III, pg. 297.
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13
A armada que icava na Índia, para se dedicar ao corso, quando os restantes navios
regressavam a Lisboa.
14
o documento pertence ao arquivo nacional torre do tombo (antt, m. 2 de
Leis, nº 13) e o seu texto está publicado em várias fontes impressas, como sejam
as Cartas de Afonso de Albuquerque, vol II, pgs 272-334. Jean aubin, Op. Cit.,
Vol III, pg. 329. Pode encontrar-se também em Joaquim Candeias da Silva, O
Fundador do «Estado Português da Índia» D. Francisco de Almeida, Lisboa,
1996, pgs 261-299.
15
Há uma clara delegação de poderes na igura de um Vice-Rei, com poderes limi-
tados pelas pormenorizadas instruções desse Regimento. na prática temos o que
um historiador português chamou de “exportação do poder”, num contexto difícil
em que a tendência europeia é de centralização desse exercício, e as estruturas
do estado se tornam cada vez mais complexas, mas centradas na igura do rei.
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16
As posições a norte, são posições que icam a barlavento, quando não está esta-
belecida a monção de sudoeste que impede as navegações normais.
17
J. aubin, Op. Cit., vol III, pg 333.
18
A palavra “cartaz”, cujo signiicado em língua portuguesa é hoje claro, tem uma
remota origem grega (carth), que chegou ao português pela via do árabe ķirţās,
cujo signiicado literal é o de “papiro” ou “papel”, mas que designou a autoriza-
ção necessário para a navegação no mar da Índia, a partir de 1505. R. sellheim,
Encyclopaedia of Islam, ed. CD-ROM, Leiden, 1999.
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o jogo diplomático assim o obrigava.
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20
afonso de albuquerque morreu ao largo de Goa, quando já tinha chegado a ar-
mada com Lopo soares de albergaria, nomeado pelo rei de Portugal para ocupar
o cargo de Governador da Índia.
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onde o acesso era difícil para as naus de grande porte. Para além disso, o
Guzerate foi-se tornando cada vez mais agressivo, levando à ocupação
da ponta de Diu21, mas obrigando a um esforço militar acrescido que, a
certa altura se tornou muito difícil.
escasseavam-lhes os meios humanos e o número de navios ne-
cessários para um espaço tão alargado, mas o primeiro meio século de
vida do estado Português da Índia viu crescer o seu poderio de forma
progressiva e consistente. na década de trinta os portugueses estabele-
ceram-se deinitivamente em Goa, multiplicando o número de residen-
tes e aumentando consideravelmente a quantidade e o tipo de navios.
a construção de estaleiros navais, dotados do saber dos construtores
europeus e da qualidade das madeiras da Índia foi decisiva para este
impulso. O rei D. Manuel morreu em 1521, quando as riquezas aluíam
a Lisboa em quantidades inimagináveis, mas a política de domínio do
21
Diu é o exemplo de uma posição estratégica extraordinariamente vantajosa para
toda a navegação, porque controla o Golfo de Cambaia e ica a barlavento de
toda a Índia, durante a estação navegável.
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Índico foi continuada pelo seu sucessor D. João III, até aos limites da
capacidade de um país que tinha pouco mais de um milhão e meio de
habitantes. adaptou-se às sucessivas circunstâncias, usou o poder dos
canhões e dos navios de grande porte, jogando com uma diplomacia
complexa e delicada assente em equilíbrios de forças que permitiram
uma presença no Oceano Índico, sem contestação credível, até ao inal
do século XVI, quando ali surgiram outras potências europeias.
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