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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Rodrigo Reis Maia

Morte à Arte:
O Construtivismo e os desafios da formação de uma cultura soviética
(1917-1932)

Rio de Janeiro
2014
Rodrigo Reis Maia

Morte à Arte:
O Construtivismo e os desafios da formação de uma cultura soviética
(1917-1932)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


História Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, realizada no interior da linha de pesquisa
Sociedade e Cultura, para obtenção do grau de Doutor
em História.

Orientadora: Andréa Casa Nova Maia.

Rio de Janeiro
2014
Folha de Aprovação

Programa de Pós-Graduação em História Social


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Tese de Doutorado
Rodrigo Reis Maia – DRE: 110173385

Título: Morte à arte: O construtivismo e os desafios da formação de uma cultura soviética


(1917-1932)

Banca Examinadora:

_________________________________________
Profa. Dra. Andréa Casa Nova Maia (Presidente) – UFRJ

_________________________________________
Prof. Dr. Maria Beatriz de Mello e Souza – UFRJ

_________________________________________
Prof. Dr. Ângelo de Oliveira Segrillo – USP

_________________________________________
Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho – UFF

_________________________________________
Profa. Dra. Paulo Knauss de Mendonça – UFF

Data de Aprovação: ____/____/________


Dedico este trabalho a Elena Serebryakova,
cuja paciência, alento e apoio se provaram
essenciais para que fosse completado...

... a Rafael Maia, cuja aprovação sempre persigo,


e cuja índole sempre me fez orgulhoso enquanto
seu irmão mais velho...

... e a Kazimir Malevich e Velimir Khlebnikov, por


me instigarem a estudar a vanguarda russa e por
terem me proporcionado, através de seus escritos,
uma recorrente sensação de fascínio e descoberta.
Agradecimentos

Após quatro anos de leituras, pesquisa, reflexão e escrita, chego a conclusão de que
a redação de uma tese como essa não é um exercício puramente individual. Em suas
exigências, na angústia que causa este processo, e nos obstáculos que se apresentam
quando o pesquisador se propõe a organizar a vasta diversidade de informações que
coletou e reflexões que realizou durante quatro anos, a atividade prolongada de pesquisa se
demonstra uma tarefa inevitavelmente assistida. Decerto eu, Rodrigo Reis Maia, não
conseguiria tê-la concluída se não fosse pelas constantes contribuições de certos indivíduos
e instituições, aos quais apenas posso oferecer nesta humilde página um breve
reconhecimento, desproporcional à real importância dos mesmos para a conclusão desse
trabalho.
Assim como na vida, coloco no topo deste rol a minha esposa, Elena Nikolaevna
Serebryakova, certamente a mais importante conquista de minha vida e o maior prêmio que
esta pesquisa me ofereceu – tendo eu a conhecido em Moscou enquanto realizava esta
pesquisa. Lena – ou Lenochka, como a chamo – foi a principal responsável pela
manutenção da minha sanidade durante este último ano, quando a ansiedade que sentia em
decorrência deste esforço de pesquisa alcançou seus maiores graus. Foi quem me acalmou,
me ajudou, de mim cuidou de maneira altruísta, e me motivou a perseverar nos piores
momentos. Fonte de constantes discussões, sempre uma ávida ouvinte e portadora de ímpar
perspectiva em qualquer discussão sobre a Rússia, minha culta e curiosa Lenochka foi uma
peça essencial para que minhas reflexões se concretizassem na presente tese.
Quando os desafios que encontrei não eram emocionais, mas acadêmicos, foi
Andrea Casa Nova Maia, minha estimada orientadora, que me guiou pelos entremeados
dados e confusas – e por vezes contraditórias – reflexões que me assolavam, oferecendo-
me uma nova e perspicaz perspectiva em cada uma de nossas conversas. Sempre por perto,
a professora Andrea me tranquilizou quando mais precisei, demonstrando-se um exemplo
de objetividade, seriedade e trabalho duro. Ainda que as circunstâncias de nosso primeiro
encontro não tenha sido fortuitas – pois eu em meados de 2009 era minha intenção
continuar sob a sábia orientação do célebre e saudoso Manoel Luiz Lima Salgado
Guimarães – ao fim destes quatro anos posso concluir sem sombra de dúvida que fui em
todo momento bem orientado por uma professora talentosa, sempre presente e disposta a
me ouvir.
Não posso deixar de mencionar, no entanto, o meu estimado professor, Manoel
Salgado. Continuo reconhecendo no professor Manoel uma das minhas grandes inspirações
acadêmicas, cujo crivo imaginado sempre busco contemplar e superar, pois reconheci e
reconheço em sua aprovação um atestado de excelência. Acima de tudo, o professor
Manoel ainda me inspira em minha profissão docente, e dele sempre me lembro em meus
esforços voltados à promoção de um equilíbrio entre a complexidade dos eventos
históricos e a acessibilidade na realização de discussões sobre os mesmos entre alunos de
idades diversas. Nesse sentido, da forma mais ampla possível na minha vida profissional,
seu legado continua a me orientar.
Gostaria de agradecer também a duas instituições, que se demonstraram cruciais
para que esta tese pudesse ser realizada. Ao PPGHIS, agradeço especialmente pela
paciência, pois diante dos desafios que encontrei em minhas tentativas de conciliar uma
carreira docente secundarista integral e o trabalho de pesquisa acadêmica sempre pude
contar com a flexibilidade e a paciência do Programa e de seus membros.
Ainda maior foi a paciência e a flexibilidade que me foram oferecida pela
Associação Britânica de Educação – ou The British School, Rio de Janeiro – em sua
valorização de aperfeiçoamento de seus professores, sempre recebendo de forma receptiva
minhas tentativas conciliatórias. Indo além, a escola parcialmente financiou uma de minhas
duas viagens à Rússia voltadas para pesquisa, além de ter estendido minhas férias para tal
viagem, demonstrando o grau de importância que confere à minha formação profissional e
certamente viabilizando de forma prática a pesquisa que resultou na presente tese.
Por fim, devo agradecer à minha família e meus amigos, que tal como Lena, me
ajudaram a superar os momentos mais desafiadores deste processo investigativo e
analítico. Meu irmão Rafael Reis Maia, a quem sempre admirei e continuo a admirar, em
seu caráter inabalável, temperamento difícil e sorriso fácil; meu saudoso pai Marcio Luiz
Soares Maia, que ensinou aos seus dois filhos o valor do trabalho, da humildade, da
dedicação, e do esforço de autoaperfeiçoamento, além de me ter oferecido enquanto vivia
um grau tão intenso e constante de carinho que ainda molda meus passos e me inspira em
momentos difíceis; e minha tia, Lúcia Maia Rangel, cuja simpatia e acessibilidade me
permitiram expor minhas dificuldades, e sempre vislumbrar soluções.
Aos meus amigos agradeço, mas também me desculpo. Esta tarefa me impôs certo
exílio e isolamento, e infelizmente há muito não os vejo. Tenho certeza de que agora nos
veremos sempre, e que foi parcialmente o desejo de reencontrá-los que me motivou a
terminar esta árdua, quase impossível tarefa. Obrigado pelas frequentes mensagens, pelos
insistentes convites, e por perdoarem a minha constante ausência, a despeito de tudo.
Resumo
MAIA, Rodrigo Reis. Morte à arte: O construtivismo e os desafios da formação de uma
cultura soviética (1917-1932). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A presente tese pode ser resumida como uma análise direcionada da produção artística e
literária construtivista russa durante os quinze primeiros anos que sucederam a Revolução
Russa de 1917. A partir da leitura compreensiva e reflexão das obras, escritos e
empreendimentos destes artistas, bem como se apoiando sobre a produção historiográfica
relacionada ao tema, tem-se por objetivo principal analisar a produção de tais artistas
inserida no contexto político, social e econômico soviético, com o intuito não apenas de
discutir os objetivos e propostas de tais artistas, mas as maneiras através das quais os
mesmos buscaram alcançar suas metas no contexto histórico em que se encontravam, bem
como a influência de fatores externos que tenham contribuído mais ou menos para o grau
de sucesso que alcançaram. Para a realização de tal análise, far-se-á referência à produção
de outros grupos artísticos, concorrentes dos construtivistas no âmbito artístico, bem como
aos direcionamentos de diferentes órgãos estatais soviéticos, com o intuito de oferecer ao
leitor um contexto social mais completo, a partir do qual se possa melhor relativizar os
sucessos e as dificuldades encontradas por estes artistas.
Abstract
MAIA, Rodrigo Reis. Morte à arte: O construtivismo e os desafios da formação de uma
cultura soviética (1917-1932). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

This thesis can be described as an analysis of the artistic and literary production of the
Russian constructivists during the first fifteen years which followed the Russian
Revolution of 1917. Through the comprehensive reading and reflection of works, writings
and enterprises of these artists, as well as with the support of historiographical productions
associated with this topic, the main objective pursued here is to analyze the work of these
artists within the Soviet Union’s political, social and economic context, aiming not only to
discuss the objectives and propositions of these artists, but the ways through which they
attempted to fulfill such goals in the historical context they found themselves in, as well as
the extent of the influence of external factors which might have contributed to the degree
of success they have encountered. In the execution of this analysis, reference will be made
to the production of other artistic groups, rivals of the constructivists in the artistic sphere,
as well as to the policies of different Soviet state organs, with the intention of offering the
reader a more complete social context, from which he can better relativize the successes
and the difficulties encountered by these artists.
Sumário

Introdução.............................................................................................................................15

Construtivismo(s).................................................................................................................21

Expansão e Construção........................................................................................................75

Morte à Arte!......................................................................................................................146

Interlúdio............................................................................................................................211

Contração e Arregimentação..............................................................................................214

Conclusão...........................................................................................................................275

Bibliografia.........................................................................................................................277

Anexo.................................................................................................................................286
Indice de Ilustrações

Capítulo I Pg.
1.1 - Natalya Goncharova – Floresta Verde e Amarela, 1912 29
1.2 - Mikhail Larionov – O Galeto (estudo raionista), 1914 29
1.3 - Vladimir Tatlin – Relevo Pictórico: Seleção de Materiais, 1914 33
1.4 - Vladimir Tatlin – Contra-relevo de canto, 1915 33
1.5 - El Lissitzky – Sala de Prouns, 1923 33
1.6 - Reconstituição da Letatlin, originalmente produzida entre 1928-1932 39
1.7 - Reconstituição da exibição de arte laboratorial da ObMoKhu, de 1921 44
1.8 - Kazimir Malevich - Cruz Preta, Quadrado Preto, Círculo Preto, 1915 48
1.9 - Kazimir Malevich – Supremus no55, 1916 49
1.10 - Ivan Kudriashev – Design de interior para o primeiro teatro soviético em 49
Orenburg, 1920
1.11 - Kazimir Malevich – O Amolador de Facas, 1914 52
1.12 - Natalya Goncharova – O Ciclista, 1913 52
1.13 - Naum Gabo – Cabeça no 2, 1916 70
1.14 - Anton Pevsner – Máscara, 1923 70

Capítulo II
2.1 – Declaração do Comitê Militar Revolucionário, de 25 de outubro de 1917 77

Capítulo III
3.1 – Lazar El Lissitzky – Bata nos Brancos com a Cunha Vermelha, 1920 158
3.2 – Dimitri Moor - Você já se registrou como voluntário?, 1920 158
3.3 – Dimitri Moor – Morte ao Capitalismo Mundial, 1919 158
3.4 – Aleksandr Apsit – Ano da Ditadura do Proletariado, 1918 161
3.5 – Vladimir Deni – Capital, 1920 161
3.6 – Dimitri Moor – Aperte a minha mão, desertor... , 1920 161
3.7 – Vladimir Mayakovsky – Ucranianos e Russos têm um brado em comum, 1920 162
3.8 – Ivan Malyutin – Para o Front polonês!, 1920 163
3.9 – Vladimir Mayakovsky – Nós acendemos esta luz sobre o mundo. 1920 163
3.10 – Mikhail Cheremnykh – No momento não há quem seja mais pobre do que 163
nós, 1920
3.11 – Mikhail Cheremnykh – A história das bolachas e da avó que não reconhece 164
a República, 1920
3.12 – Cartaz de anúncio da estréia de Mistério Bufo, 1918 167
3.13 – Kazimir Malevich – Figurino para os sete pares de impuros 170
3.14 – Kazimir Malevich – Figurino para os sete pares de puros 170
3.15 – Aleksandr Rodchenko – LenGiz: Livros sobre todos os campos de 177
conhecimento, 1925.
3.16 – Aleksandr Rodchenko – Profsoyuz é um golpe contra a escravização da 177
mulher. Profsoyuz é o defensor do trabalho feminino, 1925
3.17 – Aleksandr Rodchenko – Kinoglaz, 1924. 178
3.18 – Georgy e Vladimir Stenberg – Homem com uma Câmera, 1929. 178
3.19 – Anton Lavinsky – Encouraçado Potemkin, 1926. 178
3.20 – Aleksandr Rodchenko – Não é cidadão da USSR aquele que não é acionista 179
do Dobrolet, 1923.
3.21 – Gustav Klutsis – Sem teoria revolcionária não há movimento revolucionário, 179
1927
3.22 – Gustav Klutsis – Use o verão para aprender, data desconhecida 180
3.23 – Gustav Klutsis – Da Rússia da Nep virá a Rússia Socialista (Lenin), 1930 180
3.24 – Gustav Klutsis – O desenvolvimento do transporte é uma das tarefas mais 180
importantes para o Plano Quinquenal, 1929
3.25 – Gustav Klutsis – Sob o estandarte de Lenin. Para a construção do 180
socialismo, 1932.
3.26 – Sergey Chekhonin – Louça suprematista 191
3.27 – Kazimir Malevich – Design suprematista para bule 191
3.28 – Kazimir Malevich, Nikolai Suetin e Ilya Chasnik – Louça suprematista 191

3.29 – Aleksandr Rodchenko – Projeto de sala de leitura para um clube de 194


trabalhadores,1925
3.30 – Galaktionov – Cama dobrável, 1923 195
3.31 – Sobolev – Poltrona-Cama, 1923 195
3.32 – Ivan Morosov – Cama universal, 1923 195
3.33 – Rogoshin – Cadeira de metal tubular, 1928 195
3.34 – Varvara Stepanova – Desenhos e estampas para roupas, 1923-24 196
3.35 – Lyubov Popova – Modelo de vestido, 1923 196
3.36 – Varvara Stepanova – Estampas para roupas, 1924 196
3.37 – Vladimir Tatlin – Modelo para o Monumento à III Internacional, 1921 197
3.38 – Aleksandr Rodchenko – Montagens para o livro Pro Eto de Mayakovsky, 206
1925
3.39 – Rodchenko – Fotografia 209
3.40 – Rodchenko – Escada de incêndio, 1925 209
3.41 – Rodchenko – Escadas, 1930 209

Capítulo IV

4.1 – Capa da revista LEF, no 1, 1923 232


4.2 – Capa da revista LEF, no 3, 1923 232
4.3 – Capa da revista Novyi LEF, no 9 (21), 1928 232
o
4.4 – Capa da revista Novyi LEF, n 10 (22), 1928 232
4.5 – Kazimir Malevich – Camponeses, 1928-1932 263
4.6 – Kazimir Malevich – Retrato de um homem [Nikolai Kulbin], 1933 263
4.7 – Plataforma de embarque da estação Mayakovskaya, em Moscou 269
4.8 – Detalhe superior da estação Mayakovskaya, em Moscou 270
4.9 – Detalhe superior da estação Mayakovskaya, em Moscou 270
4.10 – Estátua na estação Ploshchad Revolyutsii , em Moscou 272
4.11 – Estátua na estação Ploshchad Revolyutsii , em Moscou 272
4.12 – Plataforma principal da estação Ploshchad Revolyutsii , em Moscou 273
Sobre as ilustrações

Optou-se em diversos momentos da presente tese a utilização de imagens que


pudessem complementar o esforço analítico realizado e, na medida em que frequentemente
tratar-se-á da produção destes artistas, oferecer ao leitor exemplos que permitam melhor
visualizar as maneiras através das quais as propostas e os projetos construtivistas tomaram
forma durante o período contemplado. A seguir, listamos a proveniência de tais imagens;
deve-se ressaltar, entretanto, que diversas das imagens utilizadas decorrem de produções
que foram reproduzidas múltiplas vezes, e também constam em diversos outros trabalhos
acadêmicos e sítios eletrônicos.
Dentre as pinturas utilizadas no primeiro capítulo, as quais se encontram
amplamente reproduzidas em diversos livros e sítios eletrônicos, recorreu-se aos livros de
Camila Gray, intitulado “The Russian Experiment in Art” para as imagens 1.1, 1.2, 1.3,
1.4, 1.11, 1.12, 3.1 e 3.37. As pinturas representadas em 1.8, 1.9 e 1.10 situam-se na Nova
Galeria Tretyakov, em Moscou, fotografadas pelo autor – bem como a imagem 1.7 e 1.13.
A composição de Lissitzky apresentada na imagem 1.5 pode ser encontrada na
compilação de escritos e obras do autor intitulada “Konstruktor Knigi El Lisitzky”,
organizado por Lyudmila Dorofeeva e editado pela editora “Fortuna El”, de Moscou.
Em relação aos pôsteres políticos apresentados, a maioria constitui o enorme acervo
da coleção Sergo Grigorian, abrigada fisicamente em Londres e acessível eletronicamente
no endereço www.redavantgarde.com. Estes pôsteres incluem as imagens 3.2, 3.3, 3.4, 3.5,
3.6, 3.22, 3.23, 3.24, 3.25. Outros pôsteres, predominantemente construtivistas, foram
retirados da coleção “Konstruktivizm v Sovetskom Plakate”, uma compilação de 24
pôsteres de orientação construtivista, editada pela Kontakt-Futura, de Moscou. Nesta
coleção constam os pôsteres 3.15, 3.19, 3.20 e 3.21.
Os pôsteres 3.16 e 1.17, por sua vez, tem exemplares que compõem outra coleção
privada – Merrill C. Berman – acessível para visualização pelo portal eletrônico da galeria
Tate, pelo endereço http://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/exhibition/rodchenko-
popova/rodchenko-and-popova-defining-constructivism (acessado em 24/04/2014) –
exposição correlata ao livro homônimo de Margarita Tupitsyn, referenciado nas discussões
a seguir.
Entre os pôsteres denominados janelas ROSTA, por sua vez, a seleção provém da
compilação presente em dois livros, The Bolshevik Poster, de autoria de Stephen White, e
Mayakovsky Okna Rosta, de Aleksei Morosov. De tais livros se retiraram as imagens 3.7,
3.8, 3.9, 3.10 e 3.11.
As imagens 3.12, 3.13 3 3.14, referentes à produção Mistério-Bufo de Mayakovsky,
podem ser encontradas na edição bilíngue à qual aqui se faz referência, editada Musa
Editora em 2001.
As imagens 3.26, 3.27, 3.28, 3.29, 3.30, 3.31, 3.32, 3.33, 3.34, 3.35 e 3.36, também
amplamente acessíveis em diversos livros e sítios eletrônicos, encontram-se por exemplo
no livro organização de Alexander Lavrentiev e Yuri Nasarov, intitulado “Russian Design.
Traditions and Experiment”, bem como no livro de autoria de Margarita Tupitsyn,
intitulado “Rodchenko & Popova: Defining Constructivism”, de 2009.
As fotografias de Rodchenko, por sua vez, reproduzidas nas imagens 3.40 e 3.41
compõem uma coleção privada, e podem ser visualizadas no sítio eletrônico da Casa de
Fotografia de Moscou [Movskovskii Dom Fotografii], acessível no endereço http://mamm-
mdf.ru/en/exhibitions/revolution-in-photography (acessado em 24/04/2014).
As imagens 3.39, 4.1, 4.2, 4.3 e 4.4, enquanto capas de periódicos vanguardistas
editados durante a década de XX, podem ser encontrados em diversos acervos
bibliográficos russos, incluindo a Biblioteca Estatal Russa.
As pinturas de Malevich representadas nas imagens 4.5 e 4.6, por sua vez,
encontram-se dispostas no Museu Estatal Russo em São Petersburgo.
O construtivismo soviético, a despeito das dificuldades enfrentadas por seus
proponentes durante o período em que ativamente se propuseram a transformar o papel
social do artista, ensejaria nas décadas subsequentes, e até os dias de hoje, a curiosidade e
o interesse de um grande número de pessoas. Consequentemente, suas obras podem ser
encontradas em diversas exposições, produções acadêmicas e não acadêmicas de diversas
proveniências, oferecendo ao leitor abundantes possibilidades de acesso a tal produção.
15

Introdução

A principal premissa subjacente a toda a discussão empreendida nesta tese se resume à


constatação de que a produção artística e a experiência social são mutuamente e
inextricavelmente relacionados, descartando-se portanto uma postura que contemple a
produção artística como atividade dissociada das circunstâncias sociais que a circundam, por
um lado, bem como outra postura que a interprete como resultado direto destas circunstâncias.
Entre estes dois extremos analíticos, aqui se presume poder observar em uma determinada
produção artística vestígios relativos às circunstâncias sociais que permearam a sua criação,
porém igualmente se reconhece a capacidade de tal produção, enquanto ação social, de
interferir sobre tais circunstâncias, contribuindo inevitavelmente para a ampla configuração
social que se possa pretender deduzir a partir desta e de outras produções contemporâneas –
em uma dinâmica social fraturada afim às teorizações de Fredrik Barth1.
Reconhecido este mutualismo, pode-se então interpretar as manifestações artísticas
que viriam a ser denominadas coletivamente como “vanguardistas” como manifestações que
tanto resultam das transformações sociais observadas por diversos autores entre as últimas
décadas do século XIX e as primeiras do século XX, quanto as respondem.
Tal constatação não deveria causar espanto, nem a noção de vanguarda aplicada a tais
produções deveria ser considerada excepcional. Apesar de explicitada principalmente no
campo artístico, o século XX seria um século de vanguardas, inspiradas pela aceleração da
experiência moderna e buscando amplificá-la a cada passo, exponencialmente expandindo os
limites de seus respectivos campos, e desafiando todos os paradigmas e as convenções
previamente estabelecidas – fortalecendo suas convicções a cada novo avanço. Nas palavras
de Marshal Berman, ao discutir o “público” inserido nesta sociedade do século XX, que
enfrentava um profundo e fundamental processo de transformação:
Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma
era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis da vida pessoal,
social e política. Ao mesmo tempo, o público moderno do século XIX ainda se
lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chega a
ser moderno por inteiro. É desta profunda dicotomia, dessa sensação de viver em
dois mundos simultaneamente, que emerge e se desdobra a idéia de modernismo e
modernização. No século XX, (...) o processo de modernização se expande a ponto
de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em
desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento. Por outro
lado, à medida que se expande, o público moderno se multiplica em uma multidão
de fragmentos, que falam linguagens incomensuravelmente confidenciais; a idéia
de modernidade, concebida em inúmeros e fragmentários caminhos, perde muito de

1
BARTH, Fredrik. Process and Form in Social Life. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1981.
16

sua nitidez, ressonância e profundidade e perde sua capacidade de organizar e dar


2
sentido à vida das pessoas.

O construtivismo russo foi uma destas vanguardas, um dos inúmeros “fragmentos” aos
quais Berman alude. Em suas reflexões, propostas e produções, seus adeptos apresentariam
uma abordagem radicalmente inovadora tanto em relação à produção artística quanto ao papel
exercido pela mesma – assim como por seus produtores – nesta nova sociedade que tão
rapidamente se transformava e, se observada sob o prisma de décadas anteriores, se
descaracterizava. Tais artistas, talvez entre os mais entusiasmados com o progresso científico
e material oferecido pela experiência moderna mesmo entre outros artistas vanguardistas,
defenderiam com a voracidade que se tornaria característica das vanguardas a integração
direta do artista a este processo de modernização, e exigiria do mesmo uma participação
palpável e útil que contribuísse para a exponencialização deste processo.
Esta proposta artística, por sua vez, fora desenvolvida no interior de um dos esforços
de transformação social mais amplos do século XX, se não o maior: a Revolução Russa de
1917. Se desconsiderarmos momentaneamente quaisquer considerações relativas aos
resultados destes esforços, poderemos melhor contemplar a magnitude da intenção
transformadora evidente nas ações e nos escritos da liderança bolchevique de 1917. Foi neste
contexto, com a expectativa de não apenas participar deste processo revolucionário, mas de
liderá-lo, que os proponentes do construtivismo formalizariam suas diretrizes, interpretando
seus respectivos papéis e elaborando suas expectativas para o futuro a partir da ideologia
motriz de tal revolução.
Nas discussões que seguem, portanto, têm-se como objetivo principal a análise das
teorizações e produções construtivistas, bem como das circunstâncias sociais, políticas e
econômicas que as permearam, e as reflexões e produções artísticas vanguardistas que as
antecederam, de modo a melhor compreender as motivações e as reflexões de tais artistas,
bem como de inseri-los neste processo amplo de revolução social e, a partir de tal operação,
discutir também o grau de realização que foram capazes de alcançar como resultado de seus
esforços.
A produção construtivista pode ser delimitada a partir de 1917, concomitantemente
com a tomada de poder por parte do partido bolchevique, resultando de um redirecionamento
teórico de parte significativa da vanguarda artística pré-revolucionária – autodenominada
futurista – em sua busca por uma maior adequação e sincronia com a proposta ideológica

2
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Editora Schwarcz LTDA. 1999, 16ª ed,
p.16-17.
17

marxista. Adotando diferentes direcionamentos e inflexões teóricas durante a sua existência,


pode ser considerada oficialmente extinta em 1934, com a oficialização estatal da abordagem
denominada Realismo Socialista como única forma de manifestação artístico-literária
revolucionária, o que por sua vez decorrera da prévia dissolução de todas as organizações
artístico-literárias decretada em 1932. Durante os quinze anos que transcorreram entre a
deposição do governo provisório de Kerensky e o decreto de 1932, a multiplicidade de
constrangimentos de ordem política, econômica e social que influenciariam em maior ou
menor grau as reflexões e produções destes artistas incluem a guerra civil e a política
soviética denominada Comunismo de Guerra, o cenário de debilidade econômica pós-guerra e
a adoção da Nova Política Econômica (NEP), a recepção do público, a morte de Lenin e sua
sucessão por Stalin, as reflexões e produções de propostas artísticas diversas e concorrentes,
entre tantas outras.
Em especial, tais construtivistas encontrariam um considerável obstáculo na própria
organização estatal soviética, à qual se aliaram imediatamente após a Revolução. A partir de
sua explícita e declarada intenção de servir como a vanguarda revolucionária no campo
artístico, os construtivistas buscariam implementar “por cima” os novos parâmetros artísticos
que redefiniriam ou, como diria Aleksey Gan em 1922, formalizariam a morte da arte como
era entendida antes de 1917. Porém, como se tornaria claro durante a década de 20, tal papel
contrastaria com as expectativas cada vez mais centralizadoras da direção partidária, a qual
desejaria cada vez mais não apenas uma produção artística que gozasse de hegemônica
apreciação pública e fosse capaz de mobilizar a população soviética, mas também uma
produção que estivesse sob controle e direção estatal, como parte do crescente processo de
planificação político-econômico que se tornaria predominante na União soviética pós-1928.
No entanto, a relação entre a reflexão acadêmica aqui proposta e o contexto acadêmico
no qual se insere deve, ao ver do autor, ser interpretada de acordo com o mesmo mutualismo
que se postulou existir entre a produção artística e a sociedade na qual esta é produzida. Em
relação ao contexto acadêmico brasileiro no qual esta produção visa se inserir, pode-se
observar uma notável e aguda escassez de reflexões voltadas à história russa e soviética, e
consequentemente um cenário árido no que diz respeito à disponibilização de materiais que
possam permitir tais reflexões. Por esse motivo, esta reflexão tem como objetivo secundário
contribuir para estudos relacionados futuros, o que resultou na adoção de uma abordagem
equilibrada, evitando uma verticalização excessiva sobre o tema de discussão principal, que
não permitiria o seu uso para a realização de análises de outra ordem, sem que se perdesse de
vista os objetivos analíticos aqui delineados, e que servisse também, portanto, para a
18

discussão mais especializada que contemple o cenário cultural e politico soviético durante o
período aqui contemplado.
Por outro lado, tal contexto de aridez acadêmica em relação a esta área de estudo
também representou desafios às investigações aqui propostas. No processo de elaboração da
presente tese, foi talvez o principal obstáculo a ser superado a escassez de tais materiais, bem
como a raridade de produções nacionais com as quais a presente discussão pudesse dialogar.
Considera-se que tal obstáculo fora satisfatoriamente superado, através da pesquisa primária
de arquivos e periódicos soviéticos contemporâneos, bem como do diálogo empreendido com
produções acadêmicas especializadas americanas, europeias e russas que tratam sobre este
tema e temas correlatos, e espera-se que a sua utilização aqui sirva de referência para que
outros estudos correlatos tenham ciência de sua existência.
O resultado destas reflexões e interpretações foi dividido em quatro capítulos, os quais
representam duas linhas de discussão fundamentais e complementares: a primeira consiste na
discussão da produção construtivista em si, abordando suas especificidades teóricas,
manifestações concretas e divergências interpretativas, bem como o grau de sucesso
alcançado por estes artistas em seus empreendimentos; por outro lado, realizar-se-á uma
análise paralela dos diferentes fatores que contribuíram para as escolhas realizadas por tais
artistas, a influência de tais fatores sobre os sucessos e insucessos de tais artistas, e as
maneiras através das quais as ações destes artistas, por sua vez, se fizeram sentir para além do
âmbito artístico.
Dessa maneira, o primeiro capítulo discutirá a própria categoria de construtivismo,
pretendendo primeiramente qualificá-la e contextualizá-la de modo a permitir ao leitor uma
nítida definição que o permita acompanhar todas as discussões empreendidas com seguro
entendimento acerca do que se pretende dizer quando aqui se lança mão de tal categoria.
Neste esforço de contextualização, far-se-á também ligações entre a produção construtivista e
o contexto vanguardista do século XX como um todo, e especialmente à produção futurista
russa que precedera o construtivismo. Pretende-se, em tal esforço de contextualização,
observar continuidades e rupturas que o construtivismo apresenta em relação às propostas
artísticas vanguardistas anteriores, de modo a melhor entender as expectativas e propostas de
tais artistas. O objetivo central deste capítulo é delinear as principais diretrizes teóricas e
singularidades da proposta artística construtivista, permitindo ao leitor um maior
entendimento das questões subjacentes às produções discutidas, bem como das semelhanças e
divergências entre tais diretrizes e o direcionamento partidário revolucionário, com o qual a
produção de tais artistas ora se alinhara, ora se afastara. Em tal esforço, lançar-se-á mão dos
19

manifestos e obras de proponentes do construtivismo, de modo a corroborar as afirmações


propostas e delimitar o escopo desta categoria, incluindo direcionamentos à ela internos.
O segundo capítulo introduzirá a discussão de cunho político relativa à produção e
administração cultural soviética entre 1917 e 1925, incluindo portanto os anos da Guerra Civil
e os primeiros cinco anos da Nova Politica Econômica. Tal capítulo tem o intuito de
demonstrar a relativa ascensão política destes artistas no cenário pós-revolucionário, bem
como colocá-la em perspectiva e, assim, oferecer um contraponto àquelas produções que,
como aqui se entende, exageram a influência e suposta hegemonia que tais artistas
desfrutaram durante os anos da Guerra Civil. Em seguida, discutindo-se a NEP, pretende-se
demonstrar os primeiros traços de descenso politico destes artistas diante da reconfiguração
política e institucional resultante da implementação dessa nova política governamental.
Durante todo o capitulo, por sua vez, far-se-á referência ao Comissariado de Esclarecimento
do Povo (Narkompros), órgão de administração cultural soviético, cuja atividade e
direcionamento se provam cruciais para o entendimento da política cultural soviética durante
os anos aqui contemplados, bem como para a flutuação política observável na participação
institucional de tais artistas construtivistas.
A proposta do terceiro capítulo é de complementar a discussão empreendida no
primeiro capítulo, apresentando e discutindo as principais manifestações concretas que
decorreram da aplicação das teorizações construtivistas durante o período aqui contemplado.
A partir da análise e discussão destas produções, espera-se poder associar tais manifestações
concretas às diretrizes teóricas analisadas no primeiro capítulo, bem como delinear os campos
de experimentação e inovação nos quais tais artistas foram mais ou menos bem-sucedidos. Da
mesma forma, neste capítulo é pretendida a discussão de inovações destes artistas que
permearam o cotidiano soviético e mesmo influenciou a produção de artistas de outras
orientações – como em relação ao uso de fotomontagem.
Por fim, o quarto capítulo tem por objetivo continuar a discussão empreendida no
segundo capítulo, complementando também as discussões contidas nos demais capítulos. Em
seu escopo, tal capítulo contém a discussão das diferentes transformações políticas observadas
na União Soviética entre os anos de 1926 e 1932, bem como seus impactos sobre a produção
artística construtivista, e sobre o reconhecimento público e político desta produção, se
comparada à produção de grupos artísticos de propostas diversas. Esta discussão visa
demonstrar as maneiras através das quais o Estado soviético paulatinamente se fez sentir
sobre a produção artística, recorrendo a diferentes resoluções partidárias que demonstram tal
tendência, bem como fazendo alusão a determinadas propostas que de forma cada vez mais
20

nítida receberiam a chancela estatal para suas produções, culminando na resolução de 1932,
intitulada “A respeito da Reestruturação das organizações artístico-literárias”, a qual
dissolveria todas as organizações artístico-literárias.
21

“A poesia é uma forma de produção. Dificílima, complexíssima, porém produção”.


Vladimir Mayakovsky

Capítulo I
Construtivismo(s)

“Como a vida, a pintura não se move para trás, mas sim adiante com toda a velocidade, e
seu aparente retorno nada mais é senão um movimento espiral expandindo para o futuro”.
Aleksandr Rodchenko
22

Em 1966 Michel Foucault descreveu em seu famoso As palavras e as coisas um


cenário de incertezas e possibilidades na virada do século XIX para o século XX, o qual
denominou “crise da representação”. Tal cenário, segundo o autor, se resumia à crise pela
qual passava todo o constructo intelectual e acadêmico ocidental, questionado por seus
próprios acólitos diante da vertiginosa sucessão de avanços tecnológicos e epifanias
filosóficas do período, que colocavam em xeque a capacidade humana de organizar e
compreender em sua total complexidade os fenômenos da realidade moderna. De forma bem
ilustrativa, o filósofo demonstra seu ponto de vista no prefácio de seu livro a partir de uma
interpretação de Borges, a partir da qual extrapola a seguinte conclusão:

(...) a suspeita de que existe uma desordem pior do que a do incongruente e da


aproximação do que não concorda entre si: a desordem que faz cintilar os
fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem
geometria, do heteróclito: e importa entender esta palavra no sentido mais próximo
da etimologia: as coisas apresentam-se nessa série "deitadas", "colocadas",
"dispostas" em sítios a tal ponto diferentes que se torna impossível encontrar para
3
elas um espaço acolhedor, definir, sob umas e outras, um lugar comum a todas .

O construtivismo russo, sobre o qual se pretende debater pelo decorrer de toda a tese,
tem sua formação e existência inserida no processo amplo de questionamentos, incertezas,
avanços e embates que de forma ampla Foucault começara a delinear acima. Tal silhueta não
seria terminada por Foucault, que a despeito de sua celebridade não seria capaz de completar
tão grandiosa obra – o próprio diz duvidar da capacidade mental do indivíduo humano em
abarcar a grandiosidade do processo que está a apontar. Mais adequado seria dizer que a
contribuição de Foucault foi uma adição significativa a um mosaico, a um conjunto de
contribuições que permite aos demais estudiosos do período um melhor entendimento da
experiência moderna no ocidente.
Este mosaico, que certamente não pode ser considerado “completo”, mas que talvez
por Gestalt se possa deduzir sua forma geral, tem dimensões desafiadoras: na medida em que
visa abarcar todas as áreas da experiência humana nas sociedades ocidentais, que
experimentavam a crescente aceleração da modernidade, tal mosaico há de se debruçar sobre
as manifestações culturais, organizações sociais, direcionamentos políticos, reformulações
econômicas e avanços científicos observados durante o período.
No interior desta infinidade de vetores que caoticamente delineiam a existência social
ocidental do início do século XX se insere o construtivismo, uma das manifestações artísticas

3
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 7
23

que integram as vanguardas artísticas, conjunto de produções artísticas originárias do início


do século que seriam aglutinadas sob tal termo militar por partilharem determinadas
características consideradas fundamentais por seus posteriores observadores – ainda que não
necessariamente pelos próprios artistas que a comporiam.
A título de curiosidade, utilizando-se um dos direcionamentos linguísticos propostos
pelo futurista russo Velimir Khlebnikov (o da simplificação e, neste caso, matematização da
língua)4, poder-se-ia portanto delimitar a contribuição aqui realizada para o grande mosaico
acima aludido como: Sociedade < Cultura < Arte < Vanguardas < Construtivismo. Dessa
forma, diante da necessidade de definir-se o Construtivismo enquanto fenômeno cultural e
artístico e também como categoria analítica, pretende-se neste capítulo uma breve discussão
acerca das vanguardas artísticas, do contexto no qual se dera sua formação, e das
características comuns que levaram estudiosos e críticos anteriores à adoção desta
denominação como passível de aglutinar satisfatoriamente tal diversa produção em uma única
categoria. A partir de tal contextualização pretende-se inserir o Construtivismo nesta
vanguarda, delineando seus principais alicerces teóricos e consequentemente garantindo ao
leitor o entendimento daquilo que é específico a esta manifestação artística, bem como às
dissonâncias entre esta e o universo geral da vanguarda ao qual fora designada. Durante toda a
discussão, far-se-á recorrente alusão às manifestações artísticas russas pré-revolucionárias
também consideradas vanguardistas, com o intuito de oferecer ao leitor subsídios suficientes
para o entendimento das discussões de capítulos posteriores, nas quais se tornarão nítidas
tanto rupturas quanto continuidades entre estas manifestações e a produção construtivista pós-
1917.

***

A inserção do experimentalismo futurista russo no contexto das vanguardas artísticas

As produções artísticas coletivamente abarcadas pela categoria de vanguarda situam-se


cronologicamente no primeiro quarto do século XX. A partir da apreciação das inovações e
questionamentos formais observados na produção de Cézanne5, em diversos grandes centros

4
Abundantes exemplos podem ser observados na compilação de suas formulações teóricas: DOUGLAS,
Charlotte. Collected Works of Velimir Khlebnikov. Cambridge: Harvard University Press, 1987.
5
Entre muitos que apontam as inovações formais de Cézanne como uma das primeiras manifestações do
experimentalismo que viria a caracterizar as vanguardas encontra-se Herbert Read, que afirma “Não há dúvidas
24

de produção artística europeia pode-se observar o desenvolvimento de propostas artísticas que


partilhariam em toda a sua diversidade determinados elementos que levariam aos seus futuros
observadores a aglutinação acima mencionada. No entanto, concomitantemente a tal
aglutinação observa-se também as insuficiências da mesma, na medida em que observava-se
que mesmo os fatores partilhados entre tais direcionamentos demonstravam flutuações que
dificultavam uma real amalgamação sob tal termo singular. Tal dificuldade pode ser
demonstrada nas palavras de Renato Poggioli, que a identificara na década de 60:

Sobre a questão da estética e poética da vanguarda nós podemos ainda dizer que, ao
contrário da tradição clássica e de forma ainda mais extrema e intensa do que o
movimento romântico, são precisamente estas características ideológicas e
psicológicas que formam um substrato unificado e permanente para uma poética e
uma estética as quais, de um ponto de vista analítico, formariam um resultado tão
complexo e caótico, ao ponto de não parecer redutível a um mínimo denominador
comum. A poética particular de vários movimentos da vanguarda não permitem um
6
estudo sob uma espécie de conceituação estética única .

A única solução encontrada por Poggioli, e que aqui também se reconhece como a
melhor solução possível, é a de pluralizar a categoria – vanguardas – e abordá-la com
consciência destas dissonâncias internas, reconhecendo aquilo que as associa, sem ignorar
aquilo que as distancia – uma característica difusa que, poder-se-ia argumentar, torna ainda
mais adequada a escolha pelo termo militar. Para que se possa proceder a uma discussão
acerca de uma das propostas que se insere neste universo, necessita-se portanto de maior
delimitação do grau em que tais tendências consonantes e dissonantes se apresentam na
mesma, buscando-se propiciar a maior clareza possível no exercício da análise aqui proposta.
Recorre-se novamente a Poggioli para apontar a primeira tendência que se considera
inerente à vanguarda e que, ainda que presente no Construtivismo, não pode ser observada em
determinadas manifestações associadas à mesma: que a ação do artista viria a extrapolar os
limites da ação artística, direcionando-se ao menos parcialmente às áreas de ação política ou
social. Recorrendo a um Fourierista chamado Gabriel-Desiré Laverdant, que escrevera em
texto intitulado De la mission de l’art et du role des artistes:
Arte, enquanto expressão social, se manifesta, em suas maiores manifestações, as
mais avançadas tendências sociais: ela é a precursora e a reveladora. Portanto, para

de que aquilo que denominamos arte moderna inicia-se com a determinação unívoca de um pintor francês em ver
o mundo objetivamente. Não é necessário mistério ao utilizar-se essa palavra: o que Cézanne desejava ver era o
mundo, ou a parte deste que estava a contemplar, como um objeto, sem qualquer intervenção ou da mente
organizada ou das emoções desorganizadas”, ainda que complete dizendo que o próprio Cézanne provavelmente
“teria deserdado e despossuído seus filhos”. Cf. READ, H. A Concise History of Modern Painting. Londres:
Thames and Hudson, 1959, p. 13 Grifo do autor. Tradução nossa.
6
POGGIOLI, Renato. The Theory of the Avant-Garde. Cambridge: Harvard UniversityPress, 1968, p.5
25

saber se a arte cumpre de forma digna sua missão enquanto iniciadora, se o artista é
verdadeiramente um membro da vanguarda, é necessário que se saiba para onde a
Humanidade está indo, saber qual é o destino da raça humana... Junto ao hino à
felicidade, a dolorosa e desesperadora ode... Desnudar com um pincel impiedoso
7
todas as brutalidades, toda a sujeira, que são a base da nossa sociedade .

Escrito no explosivo ambiente politico e social da década de 1840, o texto acima é


apontado por Poggioli como a primeira alusão ao papel da arte como vanguarda de inovação
social e política, a motivação original por detrás de tal denominação. No entanto, uma
manifestação artística que poderia ser relacionada àquilo que Laverdant exige só seria
observada sessenta anos mais tarde, a partir das produções de Henri Matisse, Pablo Picasso,
Jean Metzinger, Ernst Kirchner, entre tantos outros. Na produção dos mesmos, pode-se traçar
a qualificação vanguardista à transformação do entendimento artístico em termos formais, em
termos de análise formal das propriedades do meio artístico de forma mais extrema do que se
observara no prévio pós-impressionismo, e que portanto no campo da produção artística
tratar-se-ia de uma vanguarda, ou mesmo de vanguardas, explorando o desconhecido e, em
apesar dos grandes riscos e obstáculos, contribuindo para o desenvolvimento do entendimento
humano acerca da arte. Em diferentes graus, observa-se na produção de tais artistas uma
generalizada insatisfação com aquilo que denominam uma estagnação ou aridez da produção
artística acadêmica da virada do século, considerada inadequada às sensibilidades do início do
século, e alheia ao ímpeto investigativo e experimental que se poderia considerar
característico de tantos campos de reflexão e produção durante o período.
Neste quesito, portanto, as vanguardas não refletiriam explicitamente as expectativas
de Laverdant, mas a elas poderiam ser relacionadas, pelo seu comum desprezo à inércia e à
estagnação, e sua intenção reveladora, cuja tendência predominantemente redutora ressoa na
qualificação de Laverdant, quando este afirma ser parte do papel das vanguardas “Desnudar
com um pincel impiedoso todas as brutalidades, toda a sujeira, que são a base da nossa
sociedade”.
Em suas propostas de investigação e experimentação formal, as vanguardas seriam
uma radicalização daquilo que Greenberg viria a considerar o principal denominador comum
do modernismo nas artes e na literatura, a preocupação com a especificidade do meio
[medium specificity], com a pesquisa, experimentação e inovação formal. Em suas palavras:
(…) Eu identifico o Modernismo com a intensificação, quase a exacerbação, desta
tendência autocrítica que começou com o filósofo Kant.
(...) A autocrítica do Modernismo cresce a partir da crítica do Iluminismo, mas não
se equivale a ele. O Iluminismo criticava de fora, da maneira que normalmente se

7
POGGIOLI, 1968, p.5.
26

entende a crítica; o Modernismo critica por dentro, através das próprias


operações que estão sendo criticadas.
(...) O que havia de ser exibido não era apenas aquilo que era único e irredutível à
arte em geral, mas também aquilo que era único e irredutível a cada ramo particular
da arte.
(...) Rapidamente concluiu-se que a única e apropriada área de competência de cada
arte coincidia com aquilo que era único à natureza de seu meio. A tarefa da
autocrítica tornou-se a de eliminar dos efeitos específicos de cada arte todo e
qualquer efeito que pudesse ter concebivelmente sido apropriado de outro meio de
qualquer outra arte. Portanto cada arte se tornaria “pura”, e em sua “pureza”
encontraria a garantia de sua qualidade, assim como da sua independência.
(...) A arte realista, naturalista, havia desconstruído o meio, usando arte para ocultar
arte; o Modernismo usou a arte para chamar atenção para a arte. As limitações
que constituem o meio da pintura – a superfície plana, o formato do suporte, as
propriedades do pigmento – foram tratadas pelos Velhos Mestres como fatores
negativos que só podiam ser reconhecidos implícita ou indiretamente. Sob o
Modernismo as mesmas limitações passaram a ser consideradas fatores positivos, e
8
foram reconhecidas abertamente.

Esta objetividade científica, esta preocupação formal é ubíqua à produção


vanguardista, ainda que possa ser observada em diferentes graus entre seus proponentes; seria
esta característica que levaria Ortega y Gasset a cunhar a expressão arte desumanizada em
19259.
No entanto, uma vanguarda preocupada primariamente com a investigação formal e
restrita ao âmbito da produção artística não se encaixa exatamente com a expectativa de
Laverdant, que esperava da arte não o mesmo impulso progressista que se observava no
desenvolvimento científico, mas que assumisse um papel de porta-estandarte do progresso e
da transformação social. Este aspecto, que não se observa em diversas vertentes que se
inserem na Avant-Garde, pode ser observada na vanguarda russa – incluindo o
Construtivismo. Na polarização da vanguarda apresentada pela análise de Giulio Carlo Argan,
na qual “à arte que quer ser do seu tempo opõe-se uma arte sem tempo”10, o construtivismo
poderia ser considerada uma das “correntes do primeiro grupo que demonstram um juízo
substancialmente positivo sobre a atual situação do mundo, tendem a associar a arte à
sociedade, [na qual] o artista recusa o mito da arte ‘pura’ do ofício ‘sagrado’ ou ‘inspirado’”,
em contraste com o segundo grupo que delineia, caracterizado pelo “juízo negativo sobre a

8
FRASCINA, F. e HARRISON, C. (orgs.) Modern Art and Modernism: A Critical Anthology. Nova York:
Westview Press, 1982, p.5-10. O texto de Greenberg foi originalmente escrito em 1960
9
ORTEGA Y GASSET, Jose. A Desumanização da Arte. São Paulo: Editora Cortez, 2005.
10
ARGAN, G.C. Arte e Crítica da Arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p. 32.
27

situação atual da sociedade e sobre o seu comportamento condicionado pelo sistema


industrial” 11.
Aqui não cabe uma discussão detalhada da produção artística russa pré-revolucionária,
mas opta-se por aludir à mesma de modo a enriquecer o entendimento do leitor acerca do que
viria a ser o Construtivismo. Na vanguarda artística russa podem-se observar quatro principais
propostas artísticas, aqui elencadas e posteriormente definidas: o Futurismo, inicialmente
delineado em 1912 a partir dos escritos do grupo Hiléia; o Raionismo, lançado em 1913 pelos
artistas Mikhail Larionov e Natalya Goncharova; o Suprematismo, proposto por Kazimir
Malevich em 1915, e a Cultura de Materiais, fundada por Vladimir Tatlin também em 1915.
Em relação a Raionismo, Suprematismo e Cultura de Materiais, pode-se considerar
tais propostas como “afluentes” da pesquisa e produção futurista, e seus proponentes sem
exceção inseriam-se no contexto de produção futurista antes de formalizarem tais novas
plataformas artísticas. Antes do manifesto Um tapa na cara do Gosto Público do grupo
Hiléia, em 1912, aquilo que poder-se-ia considerar vanguarda na Rússia era
predominantemente a exploração e aplicação das inovações formais “importadas” da Europa,
em especial do Fauvismo e Cubismo, disponibilizadas amplamente aos artistas de Moscou
pelas coleções abertas de Sergey Shchukin e Ivan Morozov12. A partir de 1912, por sua vez,
observa-se a consolidação de Moscou como um centro de inovação e produção artística,
parelho a Berlim e Paris; se antes os russos avidamente consumiam, apreciavam e analisavam
as correntes desenvolvidas na Europa – vide Aleksandr Benois e seu periódico Mundo da
Arte13 – a partir de 1912 observa-se a presença de um fluxo oposto, no qual cresce o interesse
europeu relacionado às novas propostas russas, bem como uma crescente identidade

11
ARGAN, 1988, p. 29-32.
12
Sergei Shchukin e Ivan Morosov foram os detentores das duas mais extensas coleções de arte moderna na
Rússia durante o início do século XX. Credita-se a estes, portanto, uma parcela da responsabilidade no que
concerne a exposição das obras de Matisse, Picasso, Gauguin, Cézanne, entre outros, aos artistas russos do início
do século – em especial àqueles que não tinham meios para viajarem para o exterior, como diversos dos
futuristas aqui contemplados. Para mais sobre a vida, coleção e influência de Sergei Shchukin, vide GRAY,
Camilla. The Russian Experiment in Art (1863-1922). London: Thames and Hudson, 1971, p.67-69, e para
mais sobre Morosov, vide GRAY, Op.Cit., p. 69- 70.
13
Mundo da Arte foi um grupo criado em 1898 em São Petersburgo (e editor de revista homônima), considerado
responsável pela introdução do modernismo europeu na Rússia, entenda-se, os impressionistas e pós-
impressionistas, em especial franceses. O grupo se desfez em 1904, e muitos de seus participantes seguiram
caminhos diversos, mesmo que ainda fossem reconhecidos por seu empreendimento passado. Dentre seus
participantes os mais ilustres seriam Aleksandr Benois, visto como líder do grupo e cuja presença posterior no
campo artístico seria sentida primariamente enquanto crítico artístico, Sergey Diaghilev, conhecido pelos balés
que organizara na Europa posteriormente e Lev Bakst, conhecido cenógrafo que contribuíra para diversas
produções de Diaghilev
28

autônoma no campo de inovação artística, evidenciadas, por exemplo, na visita de Marinetti à


Rússia em 1914 – visita essa que não foi desprovida de atritos entre o suposto fundador do
Futurismo e os seus “súditos” russos14.
Sem exceção, todos direcionamentos de produção artística acima mencionados
ocupavam-se primariamente e radicalmente com a experimentação e inovação formal em suas
áreas de produção artística. No futurismo, a proposta do grupo Hiléia seria partilhada por
vasta maioria daqueles entendidos como futuristas na Rússia:
Jogar Pushkin, Dostoevskii, Tolstoi etc. etc. para fora do Navio da Modernidade.
(...)Nós ordenamos que os direitos dos poetas sejam reverenciado:
1. Expandir o escopo do vocabulário do poeta com palavras arbitrárias e inovadoras.
Palavra-novidade.
2. Sentir um insuperável ódio pela língua que antecede o tempo deles
3. Retirar com horror de suas orgulhosas sobrancelhas a grinalda de fama barata que
Você criou a partir de torneiras de banheiros.
15
4. Erigir-se sobre a rocha da palavra “nós” em meio a um mar de vaias e ultraje.

Declarações semelhantes podem ser observadas nos manifestos fundadores de


Raionismo16 e Suprematismo17 – e tal intenção de investigação formal pode também ser
deduzida da proposta de Tatlin, que não fora delineada com o mesmo detalhe por seu
proponente na forma de um manifesto específico.

14
A visita de Marinetti à Rússia foi organizada por Genrikh Tasteven, representante russo da parisiense Société
des grandes conférences, e ex-editor da famosa revista simbolista Tosão de Ouro. Previamente à sua chegada,
Larionov chegou a conclamar seus colegas russos a jogarem ovos podres sobre Marinetti por causa de sua traição
aos ideais futuristas. A respeito da visita de Marinetti Khlebnikov e Livshits escreveram um panfleto que dizia:
“Hoje alguns nativos e a colônia italiana às margens do Neva, por motivos a eles conhecidos, se prostram
diante de Marinetti, por conseqüência traindo os primeiros passos da arte russa no caminho à liberdade e à
honra, e colocando o nobre pescoço da Ásia sob o jugo da Europa. (...)Estrangeiro, lembre-se, você está em
outro país! O laço do servilismo na ovelha da hospitalidade” – Cf. MARKOV, Vladimir. Russian Futurism: A
History. Washington DC, New Academia Publishing, 2006, p. 151
15
BURLIUK, D. et al. Slap in the face of public taste (1912). in: LAWTON, Anna (Org.). Russian Futurism
Through its Manifestoes, 1912-1928. Londres: Cornell University Press, 1988, p. 51.
16
LARIONOV, Mikhail e GONCHAROVA, Natalya. Rayonists and Futurists: A Manifesto (1913) in:
BOWLT, John E. Russian Art of the Avant-Garde. London: Thames and Hudson, 1988, p.87-91.
17
MALEVICH, Kazimir. From Cubism and Futurism to Suprematism: The New Painterly Realism (1915),
in: BOWLT, op.cit., 1988, p.116-135.
29

1.1 – Natalya Goncharova – Floresta 1.2 – Mikhail Larionov – O Galeto (estudo


Verde e Amarela, 1912 raionista), 1914

No entanto, diferentemente do que se observa em outras manifestações vanguardistas,


nos escritos de tais artistas se percebe a preocupação com a dimensão social à qual Laverdant
esperava que a arte viesse a contemplar. Por um lado, nas produções de tais vertentes observa-
se considerações predominantemente artísticas: em seus esforços analíticos de investigação
formal, tais artistas tinham em comum o objetivo de aprofundar o entendimento do artista em
relação ao seu meio, bem como a sensibilidade do observador em relação às capacidades da
arte, para além da reprodução da realidade ou de um conteúdo externo ao âmbito da arte. Por
outro lado, paralelamente a tais proposições experimentais podem ser observadas
preocupações de natureza mais ampla, as quais parcialmente justificavam o experimentalismo
por tais artistas defendido: a expectativa de despertar e desenvolver sensibilidades que antes
haviam sido desencorajadas pela rigidez dos parâmetros artísticos acadêmicos e de tornar
evidente a capacidade da arte em lidar, problematizar e evidenciar das dimensões da vida
social que passavam pelas turbulências descritas acima. Tais artistas percebiam uma conexão
clara entre arte e vida, e de forma recorrente deixavam tal conexão clara, demonstrando como
objetivo central de suas propostas o estabelecimento de ligações e relações entre arte e vida
cotidiana. De fato, boa parte de seus manifestos fundadores preocupam-se mais com a
justificação social de suas propostas, com o estabelecimento da conexão entre suas propostas
30

artísticas e o contexto social no qual se inserem, do que com detalhes de suas propostas
formais propriamente ditas:
Em Benedikt Livshits, do grupo Hiléia:
Em suma: se constitui um erro presumir que os princípios expostos acima
foram completamente realizados nos trabalhos dos poetas que os reconhecem, é uma
distorção maior ainda da verdade afirmar que a nova corrente, em última instância,
pode ser reduzida à formação de palavras em um sentido estrito. Em vão nossos
excessivamente sagazes e solícitos amigos, que estão nos ajudando a constituir
nosso movimento, estão nos empurrando em direção àquele estreito caminho com
um zelo digno de melhores aplicações. Adaptando tudo que ocorre ao seu redor de
acordo com sua restrita compreensão, eles, ao nosso ver, com total honestidade
deixam de perceber o aspecto mais importante desta nova corrente – seu alicerce: a
mudança do ponto de vista ao se abordar o trabalho poético. Assim como queremos
“jogar Pushkin, Dostoevskii, Tolstoi etc. etc. para fora do Navio da Modernidade”,
não porque “nós estamos fascinados por novas temáticas”, mas porque deste novo
ponto de vista, deste novo ângulo, seus trabalhos perderam uma parte considerável
do seu não antes válido charme, da mesma forma que não se pode buscar (como o
faz, por exemplo, Bryusov) a essência e os critérios de avaliação da nova corrente na
correspondência ou não-correspondência de nossos neologismos com o espírito da
língua russa, ou entre nossas sentenças e a sintaxe acadêmica; não se pode buscá-los
em nossos meios de experimentação com novas rimas ou na justaposição de palavras
aparentemente incompatíveis. Tudo isto é periférico à nova corrente, é apenas um
meio relevante para a nossa transiente atualidade, a qual, sem tentar diminuir nossa
própria poesia, provavelmente rejeitaremos amanhã. Mas, o que nos separa de
nossos predecessores e de nossos contemporâneos com uma lacuna intransponível é
a exclusiva ênfase que colocamos sobre a palavra criativa, livre pela primeira vez,
18
liberta por nós.

Em Larionov e Goncharova:
Nós já temos esterco suficiente; agora precisamos plantar
(...) Arte para a vida e mais ainda – a vida para a arte!
Nós exclamamos: a totalidade do estilo brilhante dos tempos modernos – nossas
calças, casacos, sapatos, carrinhos, carros, aviões, ferrovias, grandiosos navios a
vapor – é fascinante, é uma grande época, uma que não possui paralelos em toda a
19
história do mundo .

Em Malevich:

É um erro supor que a época deles [dos mestres do Renascimento] foi o mais
brilhante florescimento da arte e que as gerações mais jovens devem a todo custo
aspirar a este ideal.
Esta ideia é falsa.
Ela distrai as forças jovens da corrente contemporânea da vida e dessa forma, as
distorce.
Seus corpos voam em aviões, porêm eles cobrem a arte e a vida com os velhos robes
de Neros e Ticianos.

18
LIVSHITS, Benedikt. The Liberation of the Word (1913) in: LAWTON, 1988, p. 81.
19
LARIONOV, Mikhail e GONCHAROVA, Natalya. Rayonists and Futurists: A Manifesto (1913) in:
BOWLT, 1988, p.89.
31

Consequentemente eles não são capazes de observar a nova beleza de nossa vida
moderna.
Porque eles vivem da beleza de épocas passadas.
(...) O vazio do passado não pode conter as gigantes construções e movimentos da
vida.
Na nossa vida de tecnologia.
(...) O lado tecnológico de nossa época avança cada vez mais, porém as pessoas
20
tentam empurrar a arte cada vez mais para trás.

Talvez em uma das mais claras manifestações que ecoariam as expectativas de


Laverdant seria no manifesto Por que nós nos pintamos: Um manifesto futurista.

Uma nova vida requer uma nova comunidade e uma nova forma de propagação.
(...) Nós juntamos a arte à vida. Depois de um longo isolamento dos artistas, nós em
convocamos a vida e a vida invadira a arte; é o momento para que a arte invada a
vida. O pintar de nossos rostos é o início da invasão. É o motivo pelo qual nossos
corações batem dessa maneira.
Auto-pintura é uma das novas posses valiosas que pertencem ao povo, como todas
as outras em nossa época. As antigas eram incoerentes e foram esmagadas pelo
dinheiro. Outro era valorizado como um ornamento e se tornou caro. Nós jogamos
para fora de seus pedestais ouro e pedras preciosas e os declaramos sem valor.
Cuidado, vocês que as colecionam e as acumulam – em breve se tornarão pedintes.
(...) O telescópio discerniu constelações perdidas no espaço; a pintura falará de
ideias perdidas.
Nós nos pintamos porque uma face limpa é ofensiva, porque nós queremos
apresentar o desconhecido, rearranjar a vida, e erguer a múltipla alma do homem aos
21
limites superiores da realidade.

De fato, os escritos de tais artistas – não apenas os russos – são célebres por suas
declarações bombásticas e escandalosas, e em determinados casos pode-se até questionar o
grau em que tais pretensões pode ser observado na real produção artística de seus proponentes
– sendo Davi Burliuk talvez aquele que mais tenha, no futurismo russo, a reputação entre
acadêmicos do artista que muito bradara, mas pouco fizera, em termos de inovação e
experimentação artística e/ou social22. No entanto, não é construtiva uma abordagem cínica de

20
MALEVICH, Kazimir. From Cubism and Futurism to Suprematism: The New Painterly Realism (1915),
in: BOWLT, 1988, p.120. Grifo nosso.
21
ZDANEVICH, Ilya e LARINOV, Mikhail. Why we paint ourselves: A futurist manifesto (1913) in:
BOWLT, 1988, p.79-83. Para uma tradução completa do manifesto em questão, vide anexo, p. 277-278.
22
Nas palavras ásperas de Vladimir Markov, ao analisar a contribuição de Burliuk ao almanaque Armadilha
para Juízes, de 1910: “There is nothing to praise in the eighteen poems by Nikolai Burliuk, who reveals himself
here a third-rate poeto f the symbolist school. These are clearly na amateur’s Works (sic), showing little feeling
for language or originality”. Cf. MARKOV, 2006, p. 24. O mesmo tom é observado recorrentemente na análise
de Markov acerca da produção e das formulações teóricas de Davi Burliuk. Há de se apontar, de modo
complementar, que os irmãos Burliuk (Davi, Nikolay e Vladimir) eram a principal fonte de financiamento do
grupo Hiléia, o qual se reunira na residência dos irmãos e fora nomeado a partir do nome da região na qual tal
casa se situava (Chernyanka, área que em tempos da Grécia antiga era nomeada Hiléia). O primeiro almanaque
futurista Um tapa na cara do Gosto Público fora publicado com recursos dos irmãos Burliuk.
32

tais manifestos, e beneficia-se aquele capaz de aplicar não apenas o conteúdo mas a
linguagem de tais manifestos à análise das obras de tais autores, buscando apreender o real
intuito revolucionário dos mesmos, para então decidir-se acerca do grau de sucesso
apresentado nas obras – operação analítica a ser realizada em capítulo posterior, no que
compete à produção construtivista.
A cultura de materiais, apenas uma vez mencionada, merece destaque. Desenvolvida
por Tatlin, e exibida pela primeira vez na exibição 0.10 em 191523, viria a ser considerada por
muitos, incluindo o próprio Tatlin, como precursora do Construtivismo – por vezes inclusive
subsumida ao termo Construtivismo sem maiores deliberações, o que aqui se afirma ser uma
decisão analítica equivocada.
A Cultura de Materiais consistia na proposta de se produzir arte a partir da utilização
de materiais cotidianos como o cobre, o ferro, o vidro etc. – materiais até então alheios ao
meio artístico – de modo a estudar suas propriedades e aplicabilidades no campo das artes 24.
A partir de experimentos iniciais nos quais a bidimensionalidade da pintura emoldurada era
hibridizada pela tridimensionalidade de materiais que delas saltavam ou elas atravessavam,
logo aboliria os constrangimentos da moldura em prol de seus famosos contra-relevos, obras
de experimentação tridimensionais.

23
A exposição 0.10 foi denominada por seus organizadores como “a última exposição futurista”. Foi nesta
exposição que Tatin apresentou seus primeiros experimentos formais tridimensionais e os inseriu na sua Cultura
de Materiais, e também nesta exposição que Malevich lançou sua proposta não-objetiva, denominada
Suprematismo. Para uma discussão aprofundada sobre esta exposição e sua recepção pelos críticos de arte
russos, Cf. SHARP, J. The Critical Reception of the 0.10 Exhibition: Malevich and Benua, in: GERMANO,
C.; GIMENEZ, C. (orgs.), The Great Utopia: The Russian and Soviet Avant-Garde, 1915-1932. Nova York:
The Solomon R. Guggenheim Museum, 1992,
24
Suas reflexões podem ser relacionadas, portanto, aos experimentos contemporâneos de Marcel Duchamp e,
especialmente de Pablo Picasso, cujas colagens tridimensionais utilizando madeira, por exemplo, datam de 1912.
Segundo Gray, inclusive, a “inspiração” de Tatlin provavelmente veio diretamente do inventor do cubismo.
Afirma que em 1912, com um grupo de amigos, o até então pouco conhecido Tatlin se envolveu em uma viagem
para a Europa, na qual as performances musicais deste grupo – realizadas nas ruas das cidades visitadas –
deveria financiar a viagem. Economizando, Tatlin supostamente viajara a Paris em busca do pintor que
idolatrava, e teria pedido insistentemente para trabalhar sob o mesmo, porém teve seu pedido recusado. A
coincidência entre estas datas e este contato sugerem que, talvez, a visita ao ateliê de Picasso e o contato com
seus pupilos, bem como o grande interesse de Tatlin sobre as experimentações do pintor francês, tenham tido
alguma parcela de influência na criação da Cultura de Materiais.
33

1.3 - Vladimir Tatlin – Relevo 1.4 - Vladimir Tatlin – Contra-relevo


Pictórico: Seleção de Materiais, de canto, 1915
1914

1.5 – El Lissitzky – Sala de Prouns, 1923


34

Durante esse período de produção prévio a 1917, a principal intenção declarada do


artista era paralela àquela dos artistas já mencionados, na medida em que suas obras, enquanto
experimentações formais, tinham o intuito de aprofundar o entendimento artístico acerca das
propriedades e possibilidades de tais materiais e de causar uma determinada reação ao
espectador que esteja harmonizada com as novas experiências da sociedade moderna: seus
contra-relevos, por exemplo, podem ser entendidos como experimentações com o espaço de
exposição contemporâneos aos de Duchamp e precursores de uma das bases do
experimentalismo da arte contemporânea.Nota-se, portanto, a apresentação de uma nova
faceta na produção de Tatlin quando este escreve, em 1918, seu manifesto O trabalho por
fazer:

O que aconteceu no aspecto social em 1917 foi realizado em nosso trabalho


enquanto artistas pictóricos em 1914, quando “materiais, volume e construção”
foram aceitos como nossos alicerces.
(...) Em 1915 uma exibição de modelos materiais em escala laboratorial foi realizada
em Moscou (uma exibição de relevos e contra-relevos) Uma exibição realizada em
1917 apresentou mais de um exemplo de combinações materiais, as quais eram os
resultados de investigações mais complexas sobre os usos do material em si, e ao
que leva isso: movimento, tensão, e a relação mútua entre ambos.
(...)Dessa forma emerge a oportunidade de unir formas puramente artísticas a
intenções utilitárias. Um exemplo disso é o projeto para o monumento para a III
25
Internacional

Diferentemente da preocupação essencialmente formal de seus experimentos pré-


revolucionários, o próprio Tatlin demarca em 1917 a adição de uma preocupação de outra
ordem em sua produção artística, ao aludir às “intenções utilitárias” que permeariam as suas
reflexões artísticas de então adiante. É neste crucial aspecto que a Cultura de Materiais se
distingue do Construtivismo que observar-se-ia na Rússia soviética: ainda que a proposta de
Tatlin tenha iniciado a experimentação com materiais industriais que seria a base sobre a qual
o Construtivismo se desenvolveria, aquela não possuía a intenção utilitária que viria a
definir a proposta construtivista.

A intenção utilitária do construtivismo soviético

O termo construtivismo só foi de fato utilizado com fim de denominar uma proposta
artística específica no contexto artístico russo em 1921, na medida em que a guerra civil
caminhava para o seu fim e durante a implementação da Nova Política Econômica (NEP).

25
TATLIN, V. The Work Ahead of Us (1920) in: BOWLT, 1988, p. 206-207. Grifo nosso.
35

Neste ano um pequeno grupo de artistas decidiu-se denominar Primeiro Grupo de


Trabalhadores Construtivistas, e através de um manifesto demarcar as bases sobre as quais
pretendiam fundar seus objetivos artísticos.
Ainda que represente uma formalização e um estreitamento programático do
construtivismo se comparado às teorizações prévias destes artistas, este grupo não passaria a
representar uma vertente artística unificada, e sim um afluente majoritário decorrente dos
debates organizados no interior do Inkhuk durante a década de 2026. Como discutir-se-á no
terceiro capítulo, a formação deste grupo apenas ressaltaria as divergências observadas no
interior do instituto relativas ao significado da “noção construtiva”, bem como das
consequências de sua adoção por parte do artista contemporâneo27.
No entanto, a formação deste grupo não necessariamente reduz o escopo da categoria
construtivismo aqui discutida, na medida em que os proponentes de diferentes abordagens e
interpretações artísticas no interior deste debate partilhariam certos alicerces teóricos comuns.
Em decorrência disso, no contexto de discussão historiográfica o construtivismo adquiriu um
escopo muito mais amplo do que a produção de grupos autointitulados construtivistas,
refletindo estas semelhanças essenciais. Na medida em que adquiriu contornos mais definidos
a partir da formação do grupo acima citado, o construtivismo teve sua genealogia de certa
forma construída pelos próprios artistas, muitos dos quais viam nos experimentos formais pré-
revolucionários de Vladimir Tatlin o início do ramo de investigação formal que os permitiu
desenvolver este novo direcionamento.
De acordo com esta sistematização, em sua forma mais básica e corrente, o
construtivismo pode ser entendido a partir de suas duas premissas essenciais, que ao mesmo
tempo o associa e o diferencia da produção vanguardista pré-revolucionária: a premissa de
inovação formal e a premissa utilitária.
A primeira premissa é aquela que permite o relacionamento e a aglutinação da
produção construtivista à produção vanguardista russa pré-revolucionária, tendo já sido
definida previamente; na medida em que seus primeiros proponentes já eram artisticamente
ativos antes de 1917, ou produziram suas primeiras reflexões artísticas durante os primeiros

26
Inkhuk (Institut Khudozhestvennoi Kulturi): Instituto de Cultura Artística. Formado em 1920 a partir da
iniciativa dos artistas que até então compunham a seção de artes [IZO] do Comissariado de Esclarecimento do
Povo [Narkompros], o Inkhuk tinha como principal servir como foro de discussões para a vanguarda soviética,
no qual eram debatidas questões consideradas importantes para o futuro desenvolvimento artístico e cultural
soviético, focando especialmente na discussão teórica e aplicada da abordagem construtivista, bem como da
questão de treinamento de novos artistas e da eventual integração do artista à realidade produtiva industrial.
27
GOUGH, Maria. The Artist as Producer: Russian Constructivism in Revolution. Berkeley: University of
California Press, 2005, p.68.
36

anos que seguiram a Revolução, quando a definição da produção vanguardista era


denominada futurista, podemos observar nos diferentes rumos de tais reflexões a presença de
alicerces comuns, bem como notar uma recorrente alusão de tais artistas ao experimentalismo
formal que seria característico das produções vanguardistas.
A segunda premissa, por sua vez, seria aquela que definiria o construtivismo em sua
especificidade. Esta premissa, que pode ser observada no manifesto de Tatlin acima citado,
exigiria da produção artística a preocupação com a sua utilidade, afastando-se portanto de um
entendimento contemplativo ou abstrato da arte na medida em que se concentrava sobre
questões práticas e sobre a inserção do artista e de sua produção na esfera real do trabalho
humano. Partindo da premissa de que a arte até então tradicional era essencialmente
contemplativa e decorativa, buscam os participantes do construtivismo constituir uma arte
essencialmente utilitária e aplicada, através do qual o artista age sobre o mundo de forma
concreta e positiva.
Esta proposta utilitária, entretanto, não reconhece o artesanato pré-revolucionário
como uma contraparte. Este artesanato, argumentariam os construtivistas, se define por sua
característica decorativa, e pouco ou nada se preocupava em relação à funcionalidade do
objeto que produzia ou decorava. Dessa forma, as modalidades artesanais pré-revolucionárias
foram por tais construtivistas associadas às belas artes em sua exclusividade estética, e em sua
indiferença a questões de ordem funcional e utilitária – a despeito de, em seu caso específico,
serem aplicadas a objetos de uso cotidiano28. Por esse motivo tais artistas proporiam uma
abordagem consideravelmente diversa em relação ao ensino e à prática de atividades como o
entalhe em madeira e o trabalho com metais, voltada para a industrialização e a produção em
massa – como veremos nos capítulos seguintes.
Como afirmaria Aleksandr Rodchenko, um dos principais membros do Primeiro
Grupo de Trabalhadores Construtivistas, questões de ordem estética deveriam ser
consideradas, no mínimo, secundárias quando se tem por prioridade uma preocupação
utilitária29. Mais do que se contentar com o adorno de objetos, nas palavras de Rodchenko, o
construtivista deve reconhecer “[que] estamos em um momento no qual ser um inventor, ou
pior ainda, um teórico, não é suficiente; é necessário ser também um produtor, um construtor,

28
GOUGH, 2005, p. 103.
29
MARGOLIN, Victor. The Struggle for Utopia; Rodchenko, Lissitzky, Moholy-Nagy, 1917-1946. Chicago:
The University of Chicago Press, 1997, p.89.
37

um mestre...”30. Em seu manifesto denominado A Linha, redigido poucos meses antes de


declarar a morte da pintura na exposição 5x5=25 de 192131, define de forma ampla o seu
entendimento do construtivismo:
Na linha uma nova visão de mundo se tornou clara: basicamente construir, ao invés
de representar (objetivar ou não-objetivar); produzir novas, eficientes, estruturas
construtivas inseridas na vida, e não a partir dela ou dissociadas dela.
A construção é um sistema através do qual um objeto é produzido com um uso
apropriado de materiais, e com um objetivo previamente estabelecido. Cada sistema
exige seus próprios materiais e seus usos específicos, cada sistema será um
descobrimento ou um aprimoramento.
(...) Não é suficiente que nós estejamos cercados por coisas desse tipo (falsamente
decorativas), que as pessoas corram a elas, às igrejas, aos museus e aos teatros – a
vida em si não é conscientemente produzida, ou apreciada, ou organizada. O homem
está entediado, o homem fala do trabalho como algo triste, entediante, no qual o
tempo é usado em vão. O homem fala de sua vida como monótona e vazia, com
certas exceções, porque ele não dá valor a sua humanidade intrínseca, a humanidade
que pode produzir algo por si própria, construir e destruir. Ele vai ao templo, ao
teatro, ao museu para “escapar da vida, para aprender a viver” (...) Esse homem
32
precisava do ópio da arte ou da religião .

Dessa maneira, podem ser entendidas as diferentes manifestações internas à categoria


denominada construtivismo aquelas que partilham ambas preocupações, e também suas
divergências podem ser entendidas a partir do peso, da intensidade, do papel exercido por
cada uma destas premissas na produção final do artista33. Por um lado, podemos observar
entre artistas como Kazimir Malevich e Lazar “El” Lissitzky uma maior preocupação com a
investigação formal e com a experimentação artística no interior daquilo que consideram seus
respectivos campos artísticos de produção. Em outro extremo, produções como as de
Rodchenko, Varvara Stepanova e Tatlin observa-se a gradual hegemonia da preocupação
utilitária, para a qual o caráter investigativo é apenas um método, e não uma finalidade, e a
intenção de se extrapolar os limites até então entendidos como delimitadores da produção
artística, em prol de uma produção voltada para o uso, e determinada pelas necessidades
concretas da sociedade.
Em sua diversidade, entretanto, pode-se observar em determinadas manifestações da
produção construtivista elementos que permitem melhor compreender as intenções de seus

30
LAVRENTIEV, Alexander (ed.). Aleksandr Rodchenko Experiments for the Future. Diaries, Essays,
Letters and other writings. Nova York: The Museum of Modern Art, 2005, p.108.
31
MARGOLIN, 1997, p.113.
32
LAVRENTIEV, op.cit., p.114.
33
RAILING, Patricia. The Idea of Construction as the Creative Principle in Russian Avant-Garde Art, in:
Leonardo, Vol.28, No 3 (1995), p. 200.
38

proponentes. Se a discussão relativa à produção de tais artistas será realizada mais adiante,
aqui cabe uma discussão breve de determinados conceitos-chave que permitem, dessa forma,
um entendimento mais completo das implicações teóricas da produção construtivista.
Uma das principais subcategorias inseridas no contexto do Construtivismo é aquilo
que se pode denominar produtivismo. Esta categoria se faz presente em determinados escritos,
porém de forma esporádica e inconstante. Por vezes artistas que estão a propor bases de uma
arte produtivista intitulam-se construtivistas, negando realmente qualquer consistência ao
termo enquanto uma divisão usada e consolidada no período. Alguns autores simplesmente
não mencionam este termo e simplesmente limitam-se a utilizar construtivismo como um
verbete amplo, ainda que não discutam o porquê desta escolha. Em termos básicos, essa
subcategoria contida no construtivismo se diferencia das demais por almejar em suas
intenções utilitárias um objetivo mais radical: a completa extinção do artista e a sua
integração à produção industrial – efetivamente fundindo as perícias e qualidades do artista
com às do engenheiro e arquiteto buscando máxima otimização. Dessa forma, a diretriz
utilitária era levada ao seu limite, com o fim do artista como consequência inevitável da
sociedade soviética e da natureza – ao menos parcialmente – contemplativa desse ofício.
Dentre os participantes deste subgrupo, por exemplo, cita-se Stepanova e Lyubov Popova, que
foram capazes integrarem-se no campo de produção têxtil e desenvolver diversos padrões
para roupas para a nova sociedade baseadas em investigações formais e suas conclusões; da
mesma forma pode-se inserir Tatlin no subgrupo, que durante a década de 20 tentou aprimorar
a eficiência de objetos do cotidiano como fogões e casacos, e mesmo desenvolver um aparato
pessoal de vôo – a Letatlin34. Para além dos confins da arte como podia ser até então
compreendida, os produtivistas almejavam a simbiose entre engenheiro e artista e a criação de
um novo profissional, acumulando o conhecimento técnico do primeiro e a natureza criativa e
o conhecimento formal do segundo – o artista-engenheiro. A arte como ofício autônomo,
portanto, extinguir-se-ia em prol de uma engenharia artística, capaz de gerar soluções
criativas às demandas materiais da sociedade soviética.

34
O nome decorre da contração do verbo Letat (voar) e o nome do artista.
39

1.6 - Reconstituição da Letatlin, originalmente produzida entre 1928-1932

De forma pedagógica o crítico literário Viktor Pertsov, em seu texto de 1922 intitulado
“Na junção entre arte e produção”, descreve em linhas marxistas o processo que resultara no
produtivismo. A combinação de segmentos abaixo ilustra essas bases produtivistas e a
maneira através da qual Pertsov as justifica historicamente:

Até agora, produção e arte não haviam se encontrado.


(...) O estado, através do Comissariado de Esclarecimento do Povo, criou para eles
inúmeros encontros através de toda forma de oficinas técnico-artísticas, porém
muitas destas vieram a ser fechadas. Ainda assim, a despeito de todos estes
esforços, a produção permaneceu sendo um completo mistério à arte, e vice-
versa.
(...) Diante dos olhos dos artistas russos, a indústria subitamente assumiu dimensões
imensas e desproporcionais, em especial graças às auspiciosas condições externas
criadas pela Revolução.
(...) A História e a tecnologia trouxeram tudo isso [as janelas e portas de nossas
casas, as mesas e cadeiras de nossos quartos, os utensílios que usamos diariamente,
nossas roupas etc.] ao mundo sem pedir permissão ao artista, mas agora a “arte
produtiva” é chamada para aprimorar estes objetos ou refazê-los por completo.
(...) Se a questão da fusão entre tecnologia e arte for considerada não como tópico
de discussão esporádica, mas seriamente, como uma questão social, então ela não
será fadada a receber uma solução superficial do artista que nada entende de
produção, ou do engenheiro que, da mesma maneira, não dispõe de treinamento
artístico.
40

(...) [Esta fusão] pode ser alcançada após termos recriado os sistemas de educar o
artista e o engenheiro, e depois de termos unido os mesmos de acordo com nossos
35
novos objetivos .

A proposta de fusão entre artista e engenheiro foi característica do produtivismo. Seria


através da intenção de formar artistas-engenheiros que seus proponentes pressupunham
formalizar o primeiro passo em sua intenção de extrapolação dos limites da produção artística,
e de sua eventual obsolescência. O ofício artístico passaria a se justificar pela sua relevância
produtiva no contexto social em que tal arte se insere, e portanto caberia ao artista usar de seu
know-how e de seus talentos para a melhora da condição material humana.
No entanto, a aplicação dessa subcategoria é de difícil uso, na medida em que sua
relação com o construtivismo não é auto-excludente; em outras palavras, a denominação de
um artista como produtivista seria passível de questionamento, pois implica que toda a sua
produção a partir de determinado momento tenha sido voltada para esta fusão – uma “fase
produtivista”, pode-se dizer. No entanto, como há de se ver, na produção de determinados
artistas – como Rodchenko – podem ser observadas variações em seus rumos produtivos, na
medida em que tais artistas ainda buscavam as maneiras através das quais poderiam executar
aquilo que previamente haviam teorizado – assim como encontravam obstáculos de difícil
transposição ao proporem seus projetos produtivistas. Por vezes esta indefinição por parte do
artista – inferida a partir da observação de sua obra – decorreu de constrangimentos políticos;
em outros casos, decorreu da multiplicidade de experimentos que marca sua produção ou
mesmo das diversas responsabilidades que cabiam ao artista em questão – que além de artista
poderia também exercer funções de professor, burocrata, jornalista etc.
Dessa maneira, à orientação artística descrita acima e denominada produtivismo não
deve caber denominação específica enquanto um direcionamento autossuficiente, mas talvez
apenas servir como uma desinência que permita delinear tendências internas ao
construtivismo – ao menos que se proponha criar termos semelhantes a todas as outras
tendências internas ao construtivismo e que partilhem um grau semelhante de importância em
seu interior, o que tornaria o construtivismo uma categoria de uso extremamente limitado e
complicado. Em outras palavras, na medida em que a atribuição produtivista decorre da
produção do artista sob análise, e diante da constatação de que apenas em determinados
momentos tal produção satisfaz os critérios que compõe esta subcategoria, a mesma perde
parte de sua importância enquanto categoria analítica, sendo mais importante enquanto uma
tendência interna ao construtivismo, ao invés de entendida como um desvio do mesmo.

35
PERTSOV, Viktor. At the Junction of Art and Production (1922), in: BOWLT, p.231-236. Grifo nosso.
41

A título comparativo, aponta-se a nítida distinção que se pode observar entre a


produção de Malevich até 1914 – quando o próprio denominava a sua produção como
futurista – com aquela que fora assinada pelo artista a partir de 1915, com o lançamento de
sua plataforma suprematista. Tanto em seus alicerces teóricos quanto no resultado final da
aplicação dos mesmos na resultante obra, ambas plataformas se diferenciam de forma nítida.
Em contraste com a relação entre estas duas plataformas de produção artística, o produtivismo
se apresenta principalmente como uma radicalização da proposta construtivista – e não,
essencialmente, uma proposta diversa em si – e diante da sua aplicação errática no contexto
soviético, decorrente de inúmeros fatores, inclusive dos experimentos dos próprios artistas,
opta-se aqui pela utilização primária da categoria mais ampla, construtivismo.
Outra importante subcategoria que se pode inserir no escopo do Construtivismo
enquanto direcionamento artístico é a da produção de Arte Laboratorial. A noção de arte
laboratorial é a que mais se assemelha à abordagem investigativa da produção pré-
revolucionária de Tatlin, agora voltada também para o fim utilitário de forma declarada. Ao
experimentar com materiais em suas formas mais brutas e investigar as mútuas relações e
aplicabilidades que estes materiais demonstravam, Tatlin realizava a mesma operação
experimental quase cartesiana de Malevich na pintura e Kruchenykh e Khlebnikov na
literatura. O valor destes experimentos não era limitado à própria experiência e conteúdo das
obras produzidas, mas encontrava-se especialmente nas conclusões que os artistas eram
capazes de extrair dos mesmos, tornando muito confusa a própria noção de obra de arte – na
medida em que obras deixam de ter seu valor artístico individualizado e passam a ter um valor
processual, quase como parte de uma metodologia dedutivo-científica. A partir destas
conclusões, Tatlin esperava ampliar seu conhecimento acerca das propriedades intrínsecas
destes materiais, tornando-os submissos à sua manipulação36. Essa exploração foi continuada
por grupos construtivistas durante os primeiros anos do estado soviético, pois a partir desta
esperava-se desenvolver ou desvendar novas aplicabilidades de materiais que, no âmbito
industrial, já eram utilizados – novamente, ferro, vidro, madeira, arame etc. No caso da arte
laboratorial, sua utilidade repousa sobre as aplicabilidades da atividade investigativa,
laboratorial, que realiza, a qual poderia resultar – ou não – em avanços materiais práticos e
36
Neste aspecto Tatlin partilha uma característica comum com muitos futuristas russos: a noção de que é
necessário que se tome as rédeas da arte, um ofício que até então, para eles, vinha sendo realizado de forma
aleatória. A experimentação formal é a base para entender-se a produção artística futurista russa pré-
revolucionária – e outras plataformas criadas por futuristas como Malevich (suprematismo) e Larionov
(raionismo) – na qual sustenta-se que tal experimentação tornaria gradualmente o artista mais e mais consciente
das propriedades e possibilidades permitidas pela arte e consequentemente, tornaria o artista soberano sobre a
mesma.
42

úteis à sociedade. Se antes da revolução a experimentação com esses materiais provinha de


preocupações predominantemente estéticas, a partir da formação da abordagem construtivista
se observaria preocupações voltadas para a aplicação prática destes materiais. Exemplo de tal
subcategoria pode ser encontrado na produção da ObMoKhu37.
Formada em 1919, a ObMoKhu era composta de jovens artistas matriculados no
Svomas de Petrogrado38. Em 1921 expuseram uma série de construções que demonstravam
uma radical mudança de rumo em termos criativos, as quais acompanhavam um manifesto no
qual declaravam dedicarem-se a tarefas utilitárias39. Nestas construções diversas
possibilidades investigativas podem ser observadas, como a utilização de materiais, o uso de
arames para fins de compensação e equilíbrio, bem como para enveredar em experimentos de
caráter cinético, permitindo a estas construções a possibilidade de movimentação e de
remanejamento de sua própria forma. Na avaliação de Maria Gough:
As novas construções espaciais [apresentadas na exposição da Obmokhu]
apresentam o espaço em si – espaço “vazio” – como se fosse material “concreto”.
Organizam este material, porém não o preenchem; declaram volume sem recorrerem
à matéria ou à massa; e dessa maneira dissolvem a distinção convencional entre o
exterior e o interior da forma. (...) Ainda que a eliminação da matéria e a inclusão
do espaço arquitetônico sejam práticas já apresentadas nos contra-relevos de canto
de Tatlin e nas construções e instalações de Picasso, nada prenunciava (a não ser
talvez o Monumento à Terceira Internacional de Tatlin, de 1920) a agressiva
40
intervenção feita pelos construtivistas em 1921 sobre a história da escultura .

A produção dos artistas que participaram deste grupo demonstra diretamente a


conexão entre o utilitarismo e a experimentação formal laboratorial que visa novas aplicações
utilitárias. Nesta produção faz-se referência à questões não apenas de natureza artística, mas
também relevantes aos campos de engenharia. Como determinou Boris Ioganson – um dos
membros deste grupo – em uma discussão em 1922, a experimentação formal construtivista
deveria “lidar com problemas de construção diretamente relacionados a tarefas utilitárias”41.

37
ObMoKhu (Obshchestva Molodykh khudozhnikov): Sociedade de Jovens Artistas. Formada em 1919 a partir
das oficinas construtivas oferecidas por Echeistov nos Ateliês Artísticos Estatais Livres (Svomas) de Moscou, a
ObMoKhu foi um dos primeiros grupos a adotar, de forma decidida e programática, a postura mecanicista que
defendia a extinção da arte e a assimilação do conhecimento artístico ao campo da engenharia e de outros ramos
da produção. Apresenta grande semelhança ao programa do Primeiro Grupo de trabalhadores Construtivistas,
formado em 1921, ao qual pertenciam artistas conhecidos como Rodchenko, Popova, Stepanova e Aleksei Gan.
38
Os Svomas serão melhor discutidos no capítulo seguinte.

39
LODDER, C. Russian Constructivism. New Haven: Yale University Press, 1983, p. 69
40
Ibid., p. 69
41
Ibid., p. 72
43

Justamente por não conhecer limitações programáticas em seus primeiros anos de


existência, mas sim apresentar-se como um grupo heterogêneo de artistas que partilhavam
apenas o direcionamento geral utilitário, o construtivismo soviético foi uma plataforma
artística a partir da qual múltiplos experimentos e ramos de investigação resultaram. Além das
variações já mencionadas, agrupa-se também sob a categoria Construtivismo as produções de
artistas como Gustav Klutsis e Rodchenko, responsáveis pelas primeiras investigações
artísticas aplicadas à técnica da fotografia, resultando tanto em pesquisa pictórica a partir da
fotografia (Rodchenko) como na fotomontagem. Da mesma maneira, a investigação formal
literária realizada pelos formalistas do grupo Opoyaz42, através da qual esperavam ampliar a
capacidade comunicativa da linguagem e a desconstrução da língua em conhecimentos
fundamentais que pudessem ser melhor manipulados e aplicados. Outra dificuldade que se
agrega ao uso da categoria se demonstra, portanto, na polivalência de seus participantes, os
quais muitas vezes não se limitaram a um meio particular de produção artística, mas sim
enveredaram em múltiplas direções simultaneamente – tendo em comum, no entanto, o
fundamento utilitário que aqui se sustenta ser o denominador comum do construtivismo.
Os artistas que compuseram as vanguardas russas, incluindo o Construtivismo
soviético, nitidamente demonstram em seus escritos e teorizações interesse pelos
desenvolvimentos científicos contemporâneos e imediatamente prévios às suas produções. O
desenvolvimento da fotografia, e posteriormente do cinema, bem como de novas técnicas e
tecnologias de reprodução material tornaram questionáveis não apenas os cânones
representativos da academia contemporânea, mas a validade da noção de obra de arte, em
especial da célebre obra-prima – não apenas na Rússia, como em diversos centros de
produção artística do ocidente; como disse Walter Benjamin, na era da reprodução mecânica,
“a autenticidade se esvazia na medida em que se aborda os meios que são inerentemente
múltiplos”43. Não apenas as vanguardas, mas a arte moderna como um todo, deve ser
entendida parcialmente como uma resposta a tais desenvolvimentos tecnológicos e ao seu
impacto sobre o ofício artístico.
x

42
Opoyaz (Obshchestvo izucheniya poeticheskogo yazyka): Sociedade para o Estudo da Linguagem Poética).
43
Cf. KRAUSS, Rosalind E. - The originality of the Avant-Garde in The originality of the Avant-Garde
and other modernist myths – Cambridge: MIT Press, 1986. p. 152. Este trecho, por sua vez, encontra-se no
texto do autor intitulado “Work of art in the age of mechanical reproduction”.
44

1.7 - Reconstituição da exibição de arte laboratorial da ObMoKhu, de 1921. Nenhum


dos trabalhos carrega qualquer indicação de autoria individual.

No entanto, seria superficial reconhecer-se apenas o impacto daqueles


desenvolvimentos científicos diretamente ou nitidamente relacionados com o campo artístico
sobre o trabalho dos artistas vanguardistas. Tanto na produção futurista pré-revolucionária,
quanto na produção construtivista pós-revolucionária, o contexto de intensa pesquisa e
inovação científica da virada do século teria um impacto considerável não apenas sobre as
obras destes artistas, mas sobre suas reflexões acerca de métodos, objetivos e propósitos da
arte na sociedade contemporânea. Nas palavras de Naum Gabo, que relembrava na década de
50 suas perspectivas durante a década de 20:
Eu diria que os eventos filosóficos e os eventos científicos no início deste século
certamente tiveram um impacto crucial na mentalidade da minha geração. Se muitos
de nós sabia exatamente ou não o que estava acontecendo de fato na ciência não
importa. O fato é que ela estava no ar, e o artista, com a sua sensibilidade, se
comporta como uma esponja. Ele pode não saber, mas ele suga as ideias, e estas tem
seu efeito sobre o mesmo.... Nós escultores rejeitamos a velha escultura porque nós
encontramos na mesma uma capacidade insuficiente para que nós expressássemos
nossas novas imagens. Nós tivemos que achar novos meios e introduzir novos
44
princípios e por isso que os princípios de espaço e estrutura se tornaram básicos .

44
RAILING, 1995, p. 193.
45

Em outras palavras, a atmosfera de progresso científico e material da virada do século


teve um nítido e reconhecido impacto sobre estes artistas enquanto indivíduos, e tal impacto
pode ser especialmente percebido ao se observar a maneira através da qual tais artistas se
expressam a respeito da arte. Nas palavras do historiador Meyer Shapiro:
As categorias mais antigas da arte foram traduzidas para a linguagem da tecnologia
moderna; o essencial foi associado ao eficiente, a unidade com o elemento
padronizado, a textura com novos materiais, a representação com a fotografia, o
desenho com a linha traçada mecanicamente, a cor com a cobertura plana de tinta, e
o design com o modelo ou o plano de instrução [instructing plan]. Os pintores,
portanto, ligaram sua inútil e arcaica atividade àquilo de mais avançado e imponente
em termos de produção moderna (...) precisamente porque a tecnologia era
concebida de maneira abstrata enquanto uma força independente com suas próprias
condições intrínsecas, e o engenheiro projetista [designing engineer] como o
45
verdadeiro construtor do mundo moderno .

Em primeiro lugar, relembra-se aqui o aspecto objetivo e experimental da produção


das vanguardas russas já mencionado, voltado para a inovação, e diretamente relacionado à tal
interseção entre arte e ciência que as vanguardas demonstram em seu interior. Ao descrever-
se os métodos e objetivos de muitos destes artistas, não se pode deixar de ver as claras
conotações científicas, cartesianas, de suas abordagens. Os futuristas pré-revolucionários – e
futuramente os formalistas que comporiam o Círculo Literário de Moscou e grupo Opoyaz, de
forma ainda mais nitidamente científica – buscaram reduzir a linguagem a denominadores
comuns, visando estabelecer através de experimentos linguísticos regras gerais de
propriedades da língua. Buscavam “libertar a palavra e a letra” do que denominavam
“ditadura do conteúdo”, e através da noção de linguagem transracional buscavam uma
ruptura com o paradigma existente e a exploração de outras propriedades até então
desconhecidas do ato de comunicação. Nas produções em que tal reflexão fora empreendida
observa-se a utilização de negritos e letras maiúsculas de forma não-convencional, a
publicação de obras manuscritas e mimeografadas, ao invés de tipografadas e os experimentos
com neologismos que caracterizaram as obras, especialmente destes dois artistas46. Tais

45
Cf. FREDRICKSON, Laurel. Vision and Material Practice: Vladimir Tatlin and the Design of Everyday
Objects in: Design Issues, Vol. 15 no 1 (Spring, 1999), p.50.
46
Tais neologismos poderiam variar desde palavras inteligíveis formadas a partir da utilização lógica – ou ao
menos compreensível – dos critérios de formação de palavras até palavras completamente novas, às quais se
poderia atribuir a expectativa de um impacto estético de outra ordem, extrapolando o sentido construído
racionalmente e visando um impacto emocional a partir de sua fonética ou de sua morfologia, por exemplo. O
que torna, para estes autores, o recurso transracional uma possibilidade tão rica é a amplitude de aplicações que
oferece. A cada manifesto se observam cada vez mais afirmações e possíveis aplicações para este recurso,
46

neologismos poderiam variar desde palavras inteligíveis formadas a partir da utilização lógica
– ou ao menos compreensível – dos critérios de formação de palavras até palavras
completamente novas, às quais se poderia atribuir a expectativa de um impacto estético de
outra ordem, extrapolando o sentido construído racionalmente e visando um impacto
emocional a partir de sua fonética ou de sua morfologia. Expandindo a noção de língua e
investigando-a por outras perspectivas que não a do conteúdo, esperava-se um entendimento
mais aprofundado sobre suas propriedades e possibilidades.
Exemplo disto pode ser extraído do manifesto Declaração da Palavra em si47,
assinado por Kruchenykh, no qual se pode ler que “uma nova forma verbal cria um novo
conteúdo, e não vice-versa”48. Através desta afirmação, este escritor inverte um cânone do
senso comum, de que uma palavra é criada em decorrência da demanda de que um
determinado significado seja contemplado linguisticamente. Na verdade, diz o autor, através
da reflexão e experimentação linguística, pode-se alcançar construções de linguagem a partir
das quais novos conteúdos e percepções se tornem evidentes, portanto “libertando” a língua
de sua submissão ao sentido e de demandas a ela externas.
Nas artes plásticas, o Suprematismo demonstrou a mesma natureza investigativa,
buscando estabelecer propriedades e inter-relações entre diferentes cores, linhas, texturas,
com o intuito de desvendar as propriedades de cada um dos elementos que compunham a arte
pictórica para que os mesmos fossem manipulados conscientemente pelo pintor. A própria
abordagem suprematista de Rodchenko às suas obras entre 1918 e 1921 demonstram esta
postura, na medida em que o autor cataloga os resultados observados a partir de seus diversos
experimentos formais e busca, a partir dos mesmos, a formulação de entendimentos gerais e o
descobrimento de aspectos fundamentais à produção pictórica49; tal aspecto investigativo
ainda se observa na interpretação do próprio Rodchenko, ainda em 1920, sobre o futuro da
pintura, para ele apenas dedutível, porém não passível de definição50. Se no início deste
capítulo se fez menção a Foucault e ao que o mesmo designara como um cenário de “crise da

demonstrando o escopo da revolução lingüística que estes autores esperavam permitir a partir da experimentação
transracional.
47
KRUCHENYKH, A. Declaration of the Word as Such (1913). In: LAWTON, 1988, p. 67-68.
48
ibid. p. 68.
49
LAVRENTIEV, Alexander (ed.). Aleksandr Rodchenko Experiments for the Future. Diaries, Essays,
Letters and other writings. Nova York: The Museum of Modern Art, 2005, p.86-98.
50
Ibid., p.99.
47

representação”, um momento em que a vertiginosa sucessão de desenvolvimentos científicos


da virada do século colocara em xeque a própria estrutura científica vigente, aqui afirma-se
que as vanguardas russas – e em variados graus, outras vertentes vanguardistas – tinham o
paralelo e correlato objetivo de revolucionar os paradigmas artísticos – o que torna
compreensível seus sucessivos ataques tanto à crítica artístico-literária contemporânea quanto
ao estabelecimento acadêmico51.
Esta característica cartesiana da produção vanguardista que pode ser observada em
tantas vertentes de produção artística na Rússia do século XX demonstra, inclusive, uma
crescente obsolescência da noção de obra de arte e, em especial, de obra-prima. Este
processo de obsolescência da obra de arte certamente se insere no interior deste processo mais
amplo de extinção da arte. Na década de 1920 muitos artistas russos vislumbravam sua
própria “extinção” na medida em que se amalgamassem a outros ramos produtivos; observa-
se já na década de 1910, entretanto, a produção artística não apenas como um fim em si – este
não era sequer o seu principal objetivo – mas como parte de um processo diacrônico de
exploração das possibilidades da arte. É ai que jaz a real importância de obras essenciais
como Quadrado Preto ou laboratoriais como aquelas produzidas pela ObMoKhu: se julgadas
como obras de arte em si, se o espectador esperar da obra início e fim, estas serão certamente
condenadas como ininteligíveis, demasiado simples ou completamente inartísticas; se
julgadas, entretanto, como etapas de um processo de investigação e experimentação formal no
campo artístico, tais obras passam a demonstrar novas dimensões. Na postulação de
Rodchenko abaixo, escrita em 1920, podemos observar a reavaliação que o artista propõe
sobre o método de produção artística estabelecido, no qual julga que a) a prática acadêmica,
diante de um contexto de constantes avanços técnicos, não é sustentável a longo prazo e, mais
importante, b) reconhece o peso de tal bagagem de tais convenções, parâmetros e
requerimentos sobre a tarefa criativa, que defende ser a principal ocupação a ser
desempenhada pelo artista:
É comumente dito que meus trabalhos pictóricos não são realmente obras mas
experimentos para algum tipo de trabalhos futuros ou para artistas do futuro. Mas eu
não concordo com isso de forma alguma. Os pintores antigos colocavam tudo que
havia sido previamente realizado no interior de suas obras - aquilo não era de sua
propriedade, digamos – além de seus próprios experimentos, grandes ou pequenos,
dependendo de sua genialidade. Com cada trabalho subsequente, o artista fazia o
mesmo: tudo que há de velho, e a sua própria novidade. (...) Mas em cada obra, eu
realizo um novo experimento sem a adição de tudo que é antigo – pertencente a
outros – e a cada obra eu imponho diferentes tarefas.

51
A título de exemplo, aponta-se o manifesto de título sugestivo escrito por KRUCHENYKH, Alexei. Secret
Vices of the Academicians (1915), in: LAWTON, 1988, p. 90-94.
48

(...)E como, por quanto tempo, poderia um pintor carregar todo o fardo dos prévios
desenvolvimentos? Eventualmente resultaria em sua morte sem que em um trabalho
ele fosse capaz de abarcar todos estes prévios desenvolvimentos, sem mencionar os
52
seus próprios...

Em outras palavras, uma das maiores e mais desprezadas características de tantas


vanguardas – não apenas russas – é a parcela de inteligibilidade da obra que decorre do
processo investigativo formal no qual a mesma se insere, o qual só pode ser apreendido a
partir do entendimento de tal processo. A obra em si significa pouco para o espectador, bem
como um experimento cientifico teria a um indivíduo que desconhecesse a(s) hipótese(s) que
o motivara ou as conclusões que se espera alcançar. Observemos, por exemplo, três obras de
Malevich, tendo em mente as suas motivações e seu método (acima discutidos brevemente) e
avaliando as três obras tanto enquanto obras de arte em si e como resultantes de um processo
investigativo formal:

1.8 – Kazimir Malevich - Cruz Preta, Quadrado Preto, Círculo Preto, 1915

52
LAVRENTIEV, 2005, p.101.
49

1.9 – Kazimir Malevich – Supremus no55, 1916.

.
1.10 – Ivan Kudriashev – Design de interior para
o primeiro teatro soviético em Orenburg, 1920
50

Esta objetividade cartesiana é talvez a mais nítida, abrangente e importante


manifestação do aspecto científico que permeara as vanguardas russas. No entanto, não é a
única: como há de se esperar daqueles que se denominaram futuristas, as potencialidades do
progresso tecnológico e os avanços científicos do período tiveram também papéis específicos
nas teorizações de tais artistas. Patricia Railing discorre sobre a importância da geometria
não-euclidiana na investigação formal e produção de tais artistas, bem como dos últimos
desenvolvimentos nas áreas biológicas e físicas53. Termos de significação científica são
recorrentes em seus manifestos, e tornava-se cada vez mais difícil acompanhar suas
motivações e aspirações se não se tivesse algum contato com tais avanços e descobertas. De
maneira semelhante a seus contemporâneos, observa-se entre tais artistas uma experiência de
“abolição de limites” que levaria às mais radicais e ambiciosas expectativas relacionadas ao
futuro da humanidade: podemos citar o exemplo de Mayakovsky, que acreditava ser
inevitável que, a partir das teorias de Einstein que acabara de tomar conhecimento, a
humanidade desenvolveria uma tecnologia capaz de ressuscitar os mortos54, ou de Velimir
Khlebnikov, que associara também à possibilidade de se alcançar a imortalidade os avanços
na área da física e aeronáutica, e presumia a partir da matemática ser capaz de deduzir
matrizes a partir das quais seria possível prever o futuro. Roman Jakobson teria dito sobre esta
característica presente em suas teorizações e daquelas de seus contemporâneos:
O tempo em si foi, e me parece continuar ser, a questão fundamental do nosso
período... Nossos pensamentos sobre o tempo foram diretamente inspirados pelas
discussões contemporâneas sobre a teoria da relatividade, com sua rejeição do tempo
enquanto unidade absoluta e de sua coordenação dos problemas de tempo e
55
espaço .

Esta interlocução entre arte e ciência suscitou mais do que uma abordagem objetiva
em relação à arte. No futurismo pré-revolucionário russo pode-se notar que a noção de
progresso científico e material humano, a “ausência de limites” mencionada acima, se observa
não apenas em seus manifestos, mas em suas obras. Pode-se notar um aspecto emancipatório
da produção futurista russa, a qual 1) adquirira tons nacionalistas nítidos nos escritos e obras
de vários de seus participantes56, tendo seu exemplo mais básico o verbete budetlyanstvo

53
RAILING, 1995, p. 196-199 passim.
54
JAKOBSON, R. A Geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 29-30.
55
RAILING, 1995, p. 196
56
A título de exemplo pode-se apontar o manifesto raionista de Larionov e Goncharova, no qual os autores
glorificam “o Oriente” e “o nacionalismo”, enquanto acusam o Ocidente de “vulgarizar as nossas formas e
51

cunhado por Khlebnikov de modo a suplantar o europeizado termo futurizm57 e 2)


frequentemente punha o homem como ator da modernidade, ao invés de glorificar a máquina
como os italianos. Os tons nacionalistas mencionados acima são aqui considerados evidência
deste aspecto emancipatório em decorrência do passado de relações entre Rússia e Europa, em
especial naquilo que diz respeito à cultura; no entanto, foge ao escopo do presente trabalho
uma discussão detalhada sobre esta relação. A segunda manifestação, por sua vez, foi
aparentemente constatada no ocidente primeiramente por Camila Gray58, a qual apontara que
no futurismo russo, ao invés da glorificação da máquina e da tecnologia, há de forma mais
clara uma glorificação daquilo que era essencial à modernidade – valores como a velocidade,
a dinâmica, o movimento, a força etc. – de forma quase que simbólica, e com o homem
sempre como o ator, aquele à qual a tecnologia é tanto submissa quanto libertadora – como
exemplos pode-se mencionar as pinturas Amolador de Facas, Automóvel e Ciclista.
No caso do construtivismo, este aspecto emancipatório tomou proporções distintas,
mais abrangentes e concretas. No caso do futurismo pré-revolucionário, o aspecto ativo acima
mencionado se manifestava de forma artística, e a produção artística “transbordava” sobre
outras áreas da experiência humana. O construtivismo, por sua vez, visou uma integração
mais radical entre arte e vida, cuja interpretação mais radical pressupunha tornar a arte
irreconhecível de acordo com os cânones pré-existentes, que a tornaria parte integrante e
indissociável da vida – sendo, portanto, extinta enquanto manifestação autônoma,
radicalmente transfigurada em um tipo de simbionte que não seria mais capaz de existir sobre
seus próprios alicerces. Um exemplo que engloba tanto a dimensão emancipatória das
vanguardas pré-revolucionárias quanto a intenção utilitária do construtivismo soviético foi a
Letatlin, a máquina voadora desenvolvida por Tatlin e exposta publicamente em 1932 – a ser

formas orientais, rebaixando o nível de tudo”. Cf. LARIONOV, Mikhail e GONCHAROVA, Natalya. Rayonists
and Futurists: A Manifesto (1913) in: BOWLT, 1988, p. 90.
57
A palavra budushchii significa futuro, sendo inclusive a partir desta que Khlebikov cunharia suas palavras para
o futurismo russo, como budetlyanin (futurista).
58
GRAY, 1971, p.153.
52

1.11 – Kazimir Malevich – O Amolador de Facas, 1914.

1.12 – Natalya Goncharova – O Ciclista, 1913.


53

discutida no terceiro capítulo. Ao discorrer sobre suas motivações em relação a este projeto,
Tatlin dissera: “Eu quero dar de volta ao homem a sensação de voar. O vôo mecânico do
avião a tirou de nós”59. Ironicamente, enquanto o futurismo italiano glorificaria a máquina
enquanto símbolo da modernidade e do progresso, sua contraparte russa e o Construtivismo
que se desenvolveu a partir da mesma priorizaram o potencial humano evidenciado pela
modernidade, rejeitando a proposta italiana como idólatra e reconhecendo os empecilhos que
a mesma modernidade poderia impor ao ser humano – os quais haviam de ser superados pelo
esforço consciente humano em busca do progresso constante. Como se observa no recorrente
brado que exigia a integração entre arte e vida, a produção vanguardista russa – e
especialmente o construtivismo, devido a sua natureza concreta – se baseia sobre uma
abordagem ativa e contemporânea do indivíduo, o qual deve interferir sobre a sua realidade, e
produzir ao invés de apenas assimilar – como brada Rodchenko:
Trabalhe para a vida, e não para palácios, templos, cemitérios e museus.
Trabalhe em meio a todos, para todos, e com todos.
Nada é eterno, tudo é temporário.
Consciência, experiência, objetivos, matemática, tecnologia, indústria e construção –
isso é o que está acima de tudo, acima da arte.
Viva a tecnologia construtiva.
Viva a abordagem construtiva a cada empreendimento
60
Viva o CONSTRUTIVISMO .

Também decorrente desta interlocução entre arte e ciência observar-se-ia entre os


proponentes da vanguarda russa uma crescente intenção integradora entre diferentes áreas de
produção artística, contribuindo para o enfraquecimento – e a eventual eliminação,
postulavam os mais radicais – dos limites que separavam tais diferentes atividades. Na
medida em que a ênfase formal na produção destes artistas se impunha sobre questões
relativas ao conteúdo das obras, a partir da preocupação com a já mencionada especificidade
do meio, observa-se uma crescente intenção integradora com o intuito de aplicação harmônica
das diferentes potencialidades oferecidas por cada um destes ramos, que resultaria naquilo que
Kandinsky e Boris Arvatov denominariam como Arte Monumental, cuja monumentalidade
decorreria de sua amplitude de escopo, e não de um intuito celebrador ou simbólico61.

59
Cf. FREDRICKSON, 1999, p.68.
60
LAVRENTIEV, 2005, p.114-115.
61
ARVATOV, Boris. Puti proletariat v izobrazitelnom iskusstve, in: TOLSTOI, V. P. (org.)
Khudozhestvennaya Zhizn Sovetskoi Rossii 1917-1932. Moscou: Galart, 2010, p. 128.
54

Tal intenção integradora teria consequências diversas nas produções de diferentes


artistas construtivistas. No âmbito material, a preocupação produtiva seria permeada por
questões relacionadas a outros campos de produção artística, não em decorrência de questões
estéticas, mas de preocupações de caráter formal ou funcional. A integração proposta,
portanto, representava um estágio posterior deste processo, na medida em que buscava
integrar não apenas diferentes campos de produção artística, e sim a produção artística como
um todo à tarefa produtiva cotidiana. Seria, por exemplo, o caso de Rodchenko, que
argumentaria a importância de preocupações em relação à faktura (textura), elemento presente
e essencial da pintura moderna, em sua tarefa produtiva; ou o caso de Stepanova e Popova,
que em seus empreendimentos no setor têxtil buscariam implementar princípios de ordem
pictórica juntamente à racionalização da produção de seus desenhos. No âmbito da arte
laboratorial pode-se observar preocupações relativas tanto a questões relacionadas à escultura
– a forma, dimensão, relações relativas dos materiais usados – quanto de tom arquitetônico –
uso de espaço, existência de tensão entre componentes constituintes.
Entre muitas outras manifestações concretas, pode-se observar diferentes
manifestações de tal traço, que apesar de não se apresentar igualmente em toda a produção
construtivista, permeia seus alicerces teóricos na medida em que o que há de mais essencial
nesta proposta artística presume um exercício de integração, entre arte e produção utilitária –
pois alegavam tais artistas que esta separação não era natural, mas sim decorrente das
características da sociedade burguesa, que divorciara arte da vida e a tornou um objeto de
contemplação e instrumento de diferenciação social. Esta expectativa integradora, este ideal
almejado pela produção construtivista pode ser observado, por exemplo, nas palavras de
Punin, fazendo referência ao Monumento à III Internacional de Tatlin ao discutir o Plano de
Propaganda Monumental de Lenin em 1918:

Em sua opinião [de Tatlin], é necessário se dar fim de uma vez por todas às
representações humanas; os monumentos modernos devem acima de tudo responder
ao desejo comum de síntese entre cada ramo individual da arte, a qual nós agora
observamos. Nenhuma pintura sem um entendimento espacial (e, em certos casos,
plástico) da forma, nenhuma escultura desprovida de entendimento [Kultury]
arquitetônico e pictórico, nenhuma arquitetura sem pintura ou espaço. O arquiteto, o
pintor, e o escultor devem participar igualmente no desenvolvimento e na concepção
de um monumento moderno. (...). O melhor plano não é aquele dividido em partes,
mas aquele que em sua totalidade satisfaz simultaneamente o arquiteto, o escultor e
62
o pintor .

62
PUNIN, Nikolai O Pamyatnikakh, in: TOLSTOI, 2010, p. 105.
55

Seria em grande parte resultante desta interpretação artística cartesiana e desta


intenção integradora o brado “Morte à arte”, expresso pelo construtivista Aleksei Gan em
1922. A palavra arte, tão antiga e polissêmica, significa muito e, ao mesmo tempo, pouco.
Aos que entendem a arte como o ofício criativo e transcendental do homem, a alegação de
Gan deve ter soado como um ataque radical e bárbaro contra uma das bases de todos os
valores da civilização ocidental; no entanto, Gan aponta apenas para a morte da arte como
esta tomou forma no decorrer de séculos e a necessidade de que seja suplantada por alguma
outra força, ofício ou teoria que seja coerente com a nova sociedade em formação. Em seu
livro de 1922, intitulado Construtivismo, Gan declara:
A revolução proletária não é uma palavra de flagelação mas um verdadeiro chicote,
que expulsa o parasitismo da realidade prática do homem sob quaisquer formas que
este parasitismo oculte sua repulsiva existência
(...) A arte é indissoluvelmente ligada: à teologia, metafísica e misticismo
Emergiu durante uma época de culturas primórdias, quando a técnica existia na
“forma embrionária de ferramentas”, e as formas econômicas vagavam em total
primitivismo.
Ela passou pela forja dos artesãos das guildas da Idade Média.
Ela foi reaquecida artificialmente pela hipocrisia da cultura burguesa e, finalmente,
colidiu contra o mundo mecânico de nossa época.
Morte à arte! Ela surgiu naturalmente; desenvolveu-se naturalmente e desapareceu
naturalmente.
MARXISTAS DEVEM TRABALHAR PARA ELUCIDAR SUA MORTE
CIENTIFICAMENTE E FORMULAR UMA NOVA FENOMENOLOGIA PARA
O OFÍCIO ARTÍSTICO INSERIDO NO NOVO AMBIENTE HISTÓRICO DE
63
NOSSO TEMPO

Para Gan, o único destino cabível à arte era a extinção; na medida em que a
praticidade, eficiência e utilidade de suas obras se tornassem os únicos critérios de avaliação
deste trabalho, a imposição de mecanicidade e racionalidade ao artista se tornaria ubíqua bem
como a distinção entre artista e engenheiro, nula, obsoleta. Entre alguns construtivistas do
grupo ObMoKhu, por exemplo, esta posição se apresenta com clareza, como demonstra a
afirmação de Medunetsky: “A arte termina conosco”; ou nas conclusões dos irmãos Stenberg:
“Eles [artistas] não servem para nada. Eles deveriam ser tratados da mesma maneira que a
Cheka trata os contra-revolucionários”64. Outros artistas, como Tatlin e Rodchenko, não
profetizam a extinção do artista, mas a sua hibridização sem completa assimilação por parte

63
GAN, A. Constructivism (1922) in: BOWLT,1988, p. 221. Tradução nossa. Grifo e formatação do autor,
adaptação nossa.
64
Cf. GASSNER, H. The Constructivists: Modernism on the way to modernization in: GERMANO, C.;
GIMENEZ, C., 1992, p. 299.
56

do outro ofício produtivo participante – resultando em títulos como o de artista-engenheiro65 –


bem como continuam a reconhecer a importância da experimentação desconstrutiva
desvinculada à preocupação utilitária – uma posição crescentemente difícil de defender,
especialmente a partir do momento em que a própria arte de esquerda é posta na defensiva
após a ascensão de Stalin. De forma ampla, observa-se em uma passagem de Karl Ioganson
uma faseologia amplamente sustentada pelo pensamento construtivista, o qual vislumbrava,
em geral, a arte utilitária em existência simbiôntica com a tecnologia e o avanço científico:
“Da pintura à escultura, da escultura à construção, da construção à tecnologia e à invenção –
este é o caminho que escolhi e estou certo de que será esta a direção última tomada por todo
artista revolucionário”66.
A despeito das divergências dentre tais artistas em relação ao papel produtivo do
artista, parecem concordar quando defendem a inevitabilidade e o valor positivo da ação
destrutiva, ainda que em grau variado, como uma tarefa necessária para a superação dos
parâmetros artísticos então estabelecidos67. A “morte” da arte seria, portanto, o futuro que
vislumbravam certos construtivistas em decorrência da já mencionada postura cartesiana
apresentada pela vanguarda russa como um todo, e exemplificada no manifesto de 1920 de El
Lissitzky, no qual o autor tenta conciliar a proposta predominantemente formal e pictórica do
Suprematismo pré-revolucionário à tarefa construtiva, ao reforçar o aspecto investigativo e
criativo da proposta lançada em 1915 por Malevich:
quando tivermos absorvido toda a riqueza da experiência da pintura quando nós
deixarmos para trás as desinibidas curvas do cubismo quando nós tivermos
apreendido o fim e o sistema do suprematismo – então nós teremos dado uma nova
face ao mundo nós o remodelaremos de forma tão completa que o sol não mais
reconhecerá seu satélite na arquitetura nos estamos caminhando em direção a um
conceito completamente novo depois que as horizontais arcaicas as esferas clássicas
e as verticais góticas dos estilos de edificação que precederam-nos nós estamos
agora entrando em um quarto estagio na medida em que alcançamos economia e
diagonais espaciais
(…) portanto A IDEIA DE “TRABALHO ARTÍSTICO” PRECISA SER
ABOLIDA POR SER UM CONCEITO CONTRA-REVOLUCIONÁRIO ACERCA
DO QUE É CRIATIVO e o trabalho deve ser aceito como uma das funções do
organismo vivo humano da mesma forma que o batimento do coração ou a atividade
68
de um centro nervoso de forma a receber a mesma proteção .

65
Esta titulação não aparece apenas em manifestos e elucubrações de determinados artistas, mas foi de fato uma
formação acadêmica reconhecida na União soviética até meados da década de 1930, oferecida, por exemplo,
pelo Vkhutemas (Vyshie khudozhestvenno-tekhnicheskii Masterskie – Oficinas Técnicas-Artísticas Superiores).
66
GASSNER H. The Constructivists: Modernism on the way to modernization in: GERMANO, C.;
GIMENEZ, C. (orgs.), 1992, p.312.
67
LAVRENTIEV, 2005, p.98-99.
68
Neste manifesto Lissitzkii optou por não recorrer a quase pontuação gramatical alguma, bem como a não
utilizar a tradicional letra maiúscula para o início de uma nova frase. Esta tradução, portanto, apenas reproduziu,
57

Este traço que agrega toda a produção construtivista é justamente aquilo que aqui se
busca definir como uma dimensão holística do construtivismo. Para além da arte, seus
participantes pretendiam integrar suas produções à realidade social na qual se inseriam,
tornando arte e ação social indistinguível – o que os diferenciaria não só dos demais artistas,
mas também dos “diversos mestres-artífices que bem conhecem o trabalho de seus colegas
mas não a beleza de seus materiais esta estrutura complexa tomada por completa representa
um organismo UNIFICADO” 69 o que é muito diferente de uma arte com intenções sociais ou
pretensões políticas. Considera-se, portanto, o construtivismo como possuidor de uma
dimensão holística justamente por ele carregar em si uma visão de mundo que excede os
confins da produção artística, por consistir em um sistema de ideias e valores que busca
abarcar toda a experiência humana, dedutível a partir do papel que estes indivíduos esperavam
realizar no interior de tal sistema.
Essa sistematização de valores e ideias foi uma característica do construtivismo que o
tornou especialmente afim da ideologia marxista – parcialmente de modo “oportunista”, como
as discussões posteriores hão de demonstrar. Chamar esse agente convergente de “ideológico”
é possível, porém passível de falsas interpretações em decorrência da polissemia da palavra
“ideologia” e de suas conotações políticas70; no entanto, em busca de denominadores comuns,
poder-se-ia aproximar os dois termos e simplesmente postular que as plataformas
construtivista e marxista demonstravam afinidades que tornam compreensível uma
aproximação entre proponentes de ambas.
A principal confluência entre o construtivismo e marxismo está no inerente
materialismo comum a ambos, na ênfase sobre a produção material e o trabalho como
unidades gerais de atribuição social de valor a qualquer esforço ou iniciativa71. Tal como o
marxismo postula que apenas através do trabalho é possível medir-se adequadamente a
contribuição social de um indivíduo ou grupo, no interior do sistema construtivista o valor
material e utilitário da obra produzida passa a ser o principal critério a partir da qual a obra é

na melhor de suas capacidades, a escolha formal do autor. Cf. EL LISSITZKY. Suprematism in World
Reconstruction (1920), in: BOWLT, 1988, p.157.
69
Cf. EL LISSITZKY. Suprematism in World Reconstruction (1920), in: BOWLT, op.cit., 1988, p.157.
70
WILLIAMS, R. Palavras-Chave [um vocabulário de cultura e sociedade]. São Paulo: Boitempo Editorial,
2007.
71
LODDER, 1983, p.47.
58

avaliada72. Daí resulta a conclusão da extinção da arte enquanto atividade contemplativa e a


construção de algo novo que suplantaria esta prática obsoleta. A ação do artista para estes
indivíduos deveria ser medida nestes termos, e o próprio processo de produção artística
deveria ser igualado ao de qualquer outra modalidade de produção; se aqueles considerados
mais moderados no interior deste espectro julgariam a ocupação artística uma ocupação de
requisitos utilitários, mas possuidora de sua própria especificidade e merecedora de
correspondente autonomia, os mais radicais proponentes do utilitarismo construtivista
defenderiam sua total hibridização. Em ambos os casos, observa-se uma interpretação ativa do
ofício artístico, e o já mencionado acordo em relação à necessidade de se desmantelar os
parâmetros artísticos vigentes.
O que há de errado com a arte, estes artistas postulavam, era justamente que esta era
regida por regras de produção aberrantes, como se fosse uma prática alheia a estas regras e
regidas por uma dinâmica própria – justificada por estes artistas como resultado da aura
espiritual e estética conferida à arte pelo sistema social anterior. Em 1924, por exemplo, o
formalista Osip Brik afirma que “uma pintura é o produto de uma forma específica de
trabalho artístico. Para realizá-la, um determinado número de recursos técnicos e habilidades
deve ser empregado”73. Gan, por sua vez, possui um texto em que se concentra inteiramente
neste assunto, intitulado “Da Arte enquanto atividade especulativa em direção ao trabalho
artístico socialmente significativo”. Por todo o texto observa-se o emprego intencional de uma
terminologia marxista em sua forma mais clara, bem como a adequação do trabalho artístico a
estes requerimentos; Gan afirma que todas as modalidades de trabalho socialmente relevantes
são interligadas e deveriam naturalmente se relacionar em nível de igualdade, apontando
portanto como uma aberração o status diferenciado da arte enquanto modalidade de produção
em relação às demais. Ademais, afirma:
No território do trabalho e do intelecto não há espaço para a atividade especulativa.
Na esfera da construção social, apenas possui valor concreto aquilo que é
indissoluvelmente ligado às necessidades e tarefas gerais do presente
revolucionário.
(...) A arte foi extinta! Não possui um lugar no aparato do trabalho humano.
Trabalho, tecnologia, organização!

72
Usa-se aqui o termo “obra” por tratar-se de uma discussão sobre a produção de um grupo reconhecido pela
comunidade acadêmica como artístico, sendo à produção deste portanto reservado o uso do verbete
correspondente. Entende-se, entretanto, que em retrospecto seria provavelmente mais apropriado o uso de um
termo desprovido do sentido artístico que adquiriu a palavra obra, sendo provavelmente palavras como
“produto” designações mais apropriadas.
73
BRIK, Osip. From Pictures to Textile Prints (1924) in: BOWLT, 1988. p.247.
59

A REAVALIAÇÃO DAS FUNÇÕES DA ATIVIDADE HUMANA, A


CONEXÃO DE TODOS OS ESFORÇOS COM O ALCANCE GERAL DOS
OBJETIVOS SOCIAIS
esta é a ideologia do nosso tempo
(...) Acabar com a atividade especulativa da arte e encontrar os caminhos para
a ação concreta empregando seu conhecimento e suas técnicas para os fins de
74
trabalhos verdadeiramente vivos e relevantes .

A afinidade teórica existente entre construtivismo e marxismo decerto contribuiu para


o nítido impacto destes artistas sobre a constituição de uma cultura soviética durante os
primeiros anos da Rússia revolucionária; no entanto, como há de ser discutido adiante,
considerações de ordem política e prática devem ser levadas em consideração em uma análise
da relação entre estes indivíduos e o estado soviético.
Esta afinidade teórica é reforçada, por sua vez, pelo objetivo comum a ambos: a
construção de uma sociedade nova e, especialmente, um homem novo – ambição presente em
alguns escritos vanguardistas75. No campo teórico, esta ambição comum aponta para mais
uma interseção entre o sistema construtivista e a ideologia marxista: a revolução, para Marx,
seria responsável pela completa reestruturação das relações sociais sobre novas bases,
impostas pelo grupo que lideraria o processo de extinção da antiga ordem e a construção de
um novo sistema, o proletariado. Após o sucesso dos bolcheviques em outubro de 1917,
portanto, muito se discutiu a respeito da formação de um novo homo sovieticus, um indivíduo
que personificaria os valores desta nova sociedade.
Tal como a teoria marxista, nos manifestos, discussões e produções construtivistas se
observa uma intenção semelhante. Artistas de orientações mais tradicionais, como os realistas
da AKhRR76, contentavam-se em contribuir com produções artísticas que ofereceriam uma
espécie de suporte cultural às políticas culturais empreendidas pelo Estado; em outras
palavras, a produção de tais artistas demonstra-se alheia a questões políticas e à constituição
de um novo homem, ou assume uma posição submissa de reafirmação das diretrizes impostas
pelo estado – em suas palavras, a posição de “porta-vozes” da revolução. Os construtivistas
demonstravam uma abordagem diferente em seus manifestos, seus métodos e em suas obras:
por um lado suas produções laboratoriais e mesmo “tradicionalmente” artísticas tinham um
intuito transformador intrínseco e buscavam expressar um ponto de vista político ou social;
74
GAN, A. Constructivism (1922) in: BOWLT, 1988, p.223. Formatação do autor.
75
YAKULOV, Georgi. Doklad khudozhnika G. B. Yakulova v Komissii po ustroistvu Vserossiskogo
Krasnogo Stadiona o vyrabotke stilya sooruzheniya, in: TOLSTOI, p. 133.
76
AKhRR (Assotsiatsia Khudozhnikov Revolutsionnoi Rossii): Associação dos Artistas da Rússia
Revolucionária)
60

por outro lado, em suas produções estritamente utilitárias buscavam apresentar o homem
russo diretamente às novas possibilidades permitidas pela modernidade, pela indústria e pelo
comunismo.
Esta abordagem se assemelha àquela empregada pelo partido bolchevique, de
revolução vinda de cima. Tal como o partido de Lenin buscou a demolição do sistema anterior
e a construção de um sistema político novo simultaneamente para o bem e à revelia da
população em geral, também os construtivistas pretendiam a transformação cultural por pela
ação direta, manifesta em exemplos concretos, materiais, e esperavam resistência durante este
processo por parte daqueles que não eram realmente capazes de ver – ainda – o caminho certo
a ser seguido. Em outras palavras, enquanto as expectativas iniciais do partido eram de
sobrepujar a resistência popular inicial e promover consenso em relação ao novo sistema
político após terem tomado o governo, a partir da aceitação popular de suas políticas iniciais,
também eram expectativas destes artistas promover uma transformação na percepção social e
cultural do cidadão soviético à partir da inovação, racionalização e modernização da
produção, realizada por eles. Alinhados com a posição teórica original do Comissariado de
Esclarecimento do Povo (Narkompros77), estes indivíduos esperavam promover, como uma
reação química, a gênese de um homem novo a partir da exposição do homem tradicional a
novas experiências, reações e possibilidades. Esta intenção se torna aparente, por exemplo,
nas palavras de Tatlin, que em 1920 escreveu:
Os resultados [da investigação e análise de materiais, volume e construção] são
modelos que nos estimulam a invenções em nossa tarefa de criação de um novo
mundo, e que motivam os produtores a exercer controle sobre as formas
78
encontradas em nossa vida cotidiana .

O manifesto fundador do Primeiro Grupo de Trabalhadores Construtivistas, de 1921,


demonstra tom semelhante e partilha a causa da criação de uma nova sociedade e de um novo
homem:
Os construtivistas estão convencidos de que, com a crescente influência de uma
visão de mundo materialista, a vida “espiritual” da sociedade, as dimensões
emocionais das pessoas não pode mais ser suportada por categorias abstratas de
beleza metafísica e pelas intrigas místicas de um espírito que seja superior à
sociedade.
Os construtivistas afirmam que todos os produtores de arte sem exceção participam
destas intrigas (...). Porém, aplicando razão conscientemente à vida, nossa jovem
sociedade proletária opera sob a égide dos únicos valores concretos de construção
social e é regida por objetivos claros.

77
Narkompros (ou NKP) é uma contração de Narodnyi Komissariat Prosvesheniya.
78
TATLIN, Vladimir. The Work Ahead of Us (1920) in: BOWLT, 1988, p. 207. Grifo nosso.
61

Ideologicamente, podemos dizer, conscientemente, nós extirpamos o passado,


porém em termos formais e práticos nós ainda não nos tornamos soberanos
sobre a realidade presente.
Nós não sentimentalizamos objetos; é por isso que não cantamos sobre o objeto em
versos poéticos. Mas temos o ímpeto de construir objetos; e por isso estamos
79
desenvolvendo e treinando nossa habilidade de produzir objetos .

Tatlin, por sua vez, justifica o papel do artista em termos semelhantes em seu
manifesto de 1919, intitulado “A indivíduo-iniciativa na criatividade do coletivo”:
1 O indivíduo-iniciativa é o agregador de energia do coletivo, direcionada ao
conhecimento e à invenção.
2 O indivíduo-iniciativa serve como ponto de contato entre a invenção e a
criatividade do coletivo
3 A viabilidade do coletivo é confirmada pelo números de unidades de iniciativa
evidentes no mesmo
4 O indivíduo-iniciativa é o ponto de refração da criatividade do coletivo e
80
proporciona a realização da ideia .

O mesmo tom permeia todo o texto de Gan já mencionado, bem como diversos outros
textos construtivistas contemporâneos. Não apenas é um texto de linguagem ativa, na qual
observa-se a intenção de tomar a iniciativa e as rédeas do processo de transformação social,
mas de clara intenção pedagógica: obviamente seus signatários não tinham qualquer
expectativa que estes textos fossem lidos por milhões de russos; no entanto, nestes textos
pretende-se deixar claro os métodos que tais artistas pretendiam utilizar em suas tentativas de
educar o cidadão soviético, torná-lo consciente das novas condições materiais a ele
disponíveis. Apenas um breve fragmento do manifesto fundador do grupo realista AKhRR,
defensor de cânones e aplicações artísticas tradicionais e suposto continuador da tradição do
realismo social russo do século XIX (na qual os andarilhos assumem posição de destaque81),
deve demonstrar com dura clareza mais do que o contraste entre o que buscavam produzir
construtivistas e realistas, mas as diferentes percepções dentre estes artistas em relação ao

79
The First Working Group of Constructivists (1921) in: BOWLT, 1988., p.241-242. Grifo nosso.
80
FREDRICKSON, 1999, p.59. Grifo nosso. O uso do termo “indivíduo-iniciativa” é uma opção de Tatlin, o
qual buscava um termo satisfatório que substituísse o carregado termo “artista”.
81
Os Andarilhos (Peredvizhniki) compunham um grupo artístico realista iniciado em 1863, que se caracterizou
pelo rompimento com os cânones acadêmicos da época, optando por pintar a Rússia “como ela era”, e
promovendo exposições itinerantes que atravessavam a Rússia. A produção realista do grupo tinha conteúdo de
crítica social, demonstrando características paralelas às dispostas pela produção realista francesa de meados do
século XIX – dentre as quais pode-se apontar a obra de Courbet. Dentre seus principais participantes
novecentistas cita-se Ilya Repin, Valentin Serov e Nikolai Kuznetsov. A tradição realista itinerária ainda existia
no período do artigo, e artistas autodenominados andarilhos ainda expunham suas obras pela RSFSR e, depois,
por toda a URSS.
62

papel social do artista. Mesmo o tom e a escolha de palavras deste manifesto permite ampla
comparação, que espera-se ser aparente ao leitor após a discussão aqui empreendida:
[Os artistas são] os porta-vozes da vida espiritual do povo.
Nosso dever cívico perante a humanidade é representar, de forma artística e
documental, o impulso revolucionário deste grande período histórico.
Nós representaremos o dia presente: a vida do Exército Vermelho, dos
trabalhadores, dos camponeses, dos revolucionários e dos heróis do trabalho.
Nós apresentaremos uma verdadeira representação dos eventos e não confecções
82
abstratas que desacreditam nossa Revolução diante do proletariado internacional .

Ironicamente, a questão da formação do homo sovieticus no campo artístico


transcorrera em meio a uma discussão entre indivíduos que, na terminologia de Berman,
poderiam ser considerados afins dos arquétipos de homem novo e homem supérfluo83. Nesta
dicotomia, Berman associa a nobreza educada russa oitocentista ao adjetivo supérfluo, pois
este é “rico em inteligência, sensibilidade e talento, mas carece de determinação para trabalhar
e agir”84. Em seguida, associa o homem novo com a ação e a iniciativa, e determina seu
aparecimento como relacionado à ascensão da intelligentsia russa oitocentista, a qual não é
determinada por raízes sanguíneas de nobreza. Usando Chernyshevsky como exemplo, define
que estes homens “orgulhavam-se de sua vulgaridade franca, de sua falta de requinte social,
de seu desprezo por tudo que fosse elegante. (...) [Eles] estão dispostos a agir decisivamente e
contentes em fazer recair sobre si ou sobre a sociedade qualquer embaraço, dor ou problema
que a ação possa impor”85.
Esta aproximação entre as categorias de Berman, que foram fabricadas para dar conta
de fenômenos políticos do século XIX, com o contraste entre os posicionamentos de
diferentes grupos artísticos durante os quinze primeiros anos da Rússia soviética é aqui
realizada por permitir uma multiplicidade de discussões.
Em primeiro lugar, esta dicotomia faz mais do que ilustrar os diferentes
comportamentos e abordagens de dois grupos diversos em relação à ação e transformação
social; ela localiza esta diferenciação socialmente. Ao associar o homem supérfluo ao

82
AKhRR. Declaration of the Association of Artists of Revolutionary Russia (1922) in: BOWLT, 1988,
p.266. Grifo nosso.
83
A discussão das duas categorias pode ser encontrada em: BERMAN, 1999, p.199-220 passim.
84
ibid. p.199.
85
ibid., p.204.
63

aristocrata e o homem novo ao raznochinets86, Berman permite que se estabeleça um paralelo


na presente discussão, entre aqueles que partilham os valores socialmente estabelecidos e,
consequentemente, demonstram uma tendência voltada para a prevenção de grandes
transformações de tais paradigmas, e aqueles que parecem ter sua voz subitamente ouvida no
campo de discussão em questão, e cuja discordância com estes mesmos valores pré-
estabelecidos resulta inevitavelmente em uma posição que exige mudança – e ação destrutiva,
como demonstra claramente a alusão a Chernyshevsky e ao seu famoso livro, “Que Fazer?”.
Neste caso, entretanto, a contraposição entre os grupos não decorre necessariamente de
discordâncias a nível ideológico, pois não é este o campo que diretamente gera opiniões
conflituosas entre os grupos, mas sim a nível artístico, entre aqueles que apoiam os valores, os
cânones e os bons costumes da arte – propriamente falando, a academia – e aqueles que visam
sua completa reorganização ou mesmo extinção – anti-acadêmicos87. Esta diferenciação
parece contribuir para uma aproximação – ao menos em nível de teoria – entre aqueles que
buscavam a completa reorganização social a nível de arte e cultura e aqueles que buscavam
semelhante reorganização a nível político e social; entre aqueles que no campo político e no
campo artístico tiveram suas ideias silenciadas por forças externas e subitamente
encontravam-se livres destes constrangimentos. No entanto, hoje o Realismo Socialista é um
fenômeno artístico conhecido pela grande maioria de pessoas que tenham lido ao menos um
livro sobre a União soviética, enquanto o construtivismo russo, excetuando-se talvez em
relação à sua produção gráfica, ainda jaz em relativa escuridão, ofuscado pelo suposto
construtivismo alemão – cujas semelhanças formais com o construtivismo russo contrastam
com suas divergências ideológico-artísticas...
A dicotomia de Berman oferece ainda outro traço que permite observar uma
identificação entre bolcheviques e construtivistas, em termos de abordagem às suas intenções
transformadoras: a ênfase na ação, mencionada anteriormente. A escolha de Chernyshevskii
como exemplo de homem novo, deste novo homem caracterizado por sua iniciativa e intenção

86
Berman define os raznochintsy (pl.) como “’homens de várias origens e classes’, termo administrativo para
todos os russos que não pertenciam à alta ou à baixa nobreza. Esse termo equivale, mais ou menos, ao Terceiro
Estado francês pré-revolucionário” (BERMAN, 1999, p.203).
87
Não se pretende aqui defender que os construtivistas eram os únicos que atacavam os rigores acadêmicos pré-
revolucionários, pois há de se ver adiante que outros grupos partilhavam este anti-academicismo. Da mesma
forma, este impulso anti-acadêmico é perceptível em diversas produções modernas, inclusive no futurismo russo
pré-revolucionário. Aqui apenas se sustenta que a discussão relativa à validade da tradição acadêmica é
responsável pela polarização do debate entre construtivistas e realistas, tal como a discussão acerca da validade
da tradição social e política oitocentista polarizou o debate entre homens supérfluos e novos.
64

em promover mudança social, é especialmente significativa pelo paralelo com Lenin 88. Tal
como Lenin, para Rodchenko, Popova, Stepanova, Gan e outros construtivistas lhes cabia a
responsabilidade de liderança – de vanguarda! – no processo de transformação cultural. Esta
premissa não consistia em um desafio direto à autoridade do partido, mas apenas na
constatação de que a transformação na área da cultura deveria ser empreendida pelos que
melhor entendiam a área em questão; dessa maneira, caberia aos próprios artistas a
responsabilidade em adequar este aspecto da cultura russa à nova realidade revolucionária.
Para eles, permitir que economistas e filósofos fossem responsáveis pelo direcionamento
artístico-cultural revolucionário seria equivalente a permitir que os mesmos economistas e
filósofos fossem responsáveis pelas decisões tomadas em campos científicos específicos
como agronomia e biomedicina – ironicamente, um desdobramento que transcorreu na Rússia
soviética e em outros países comunistas revolucionários, como a China, nos quais decisões
relativas a diversos campos de conhecimento eram tomadas por homens cujo mérito muitas
vezes repousava não sobre seu domínio sobre tal campo, mas sua posição e confiabilidade no
interior do partido.
Esta discussão serve para reforçar o quanto o construtivismo transgride os limites
tradicionalmente reconhecidos da arte. No fragmento do manifesto realista apresentado acima
pode-se observar a ênfase de seus signatários sobre aquilo que foi e sobre aquilo que é: sobre
passado e presente. Estes artistas querem “documentar” a experiência soviética, querem ser
“porta-vozes” e representar “o dia presente”. Os construtivistas ocupam-se também do
presente, mas sempre ditando sua produção e reflexão acerca do presente a partir das
demandas que este presente os impõe, visando sempre o progresso futuro. Buscam “lidar com
problemas de construção diretamente relacionados a tarefas utilitárias”, promover a
“construção de um novo mundo”. Por definição, a arte tradicional não pode se ocupar do
futuro, pois em sua própria estrutura há a dependência da herança acadêmica, e o respeito à
hierarquia inerente a uma relação mestre-pupilo; qualquer representação do futuro sobre estas
bases necessita lançar mão de experiências e cânones do passado, pois a arte tradicional

88
Ambos russos escreveram livros intitulados “O que fazer?”, nos quais apresentavam suas visões acerca do que
buscavam alcançar, e os métodos que pretendiam utilizar para alcançá-las. O livro de Chernyshevskii foi pela
primeira vez publicado em 1863, e o de Lenin, em 1902. A escolha de Lenin em utilizar literalmente o mesmo
título do livro de Chernyshevskii aponta para uma decisão ideológica consciente, na medida em que seu livro
ecoa ideias da produção oitocentista e do reconhecimento de Lenin do valor da obra de Chernyshevskii, visto
como um precursor da revolução na Rússia. A presença de Chernishevskii entre aqueles que seriam
representados no plano de propaganda monumental de Lenin, voltado a celebrar os precursores da revolução e
heróis do proletariado, parece demonstrar esse reconhecimento. Cf. BONNEL, V. Iconography of Power:
Soviet Political Posters under Lenin and Stalin. Berkeley: University of California Press, 1999, p.137-139.
65

necessita destes cânones para ser inteligível. Foram os construtivistas, juntamente com outros
grupos marginalizados antes da revolução, que puderam lançar seus impulsos na direção da
criação, da inovação e do desenvolvimento futuro, em larga parcela, porque propunham
justamente a rejeição dos cânones que, em seu entendimento, serviam apenas como
limitações.

***
A especificidade da intenção utilitária do construtivismo soviético

Como pudemos observar na discussão acima, o construtivismo é nitidamente


direcionado a uma drástica reavaliação do papel do então chamado “artista” na sociedade em
que se insere. Os construtivistas pregavam o fim da arte enquanto atividade autônoma e
contemplativa e do artista que a produzia não por julgarem tal artista incapaz de contribuir
ativamente enquanto indivíduo à vida social da população ao seu redor, mas porque julgavam
as práticas que até então definiam o ofício artístico como inadequadas para alcançar tal
objetivo. Se era este papel social do artista que se pretendia revolucionar, alguns destes
ofícios haveriam de ser igualmente revolucionados, ou mesmo extintos. Dessa forma,
recusavam o papel social conferido à arte e ao artista por indivíduos como Maksim Gorky –
visto como fundador do Realismo Socialista na década de 1930 – que em 1917 denunciava o
Governo Provisório por continuar enviando artistas para o front, a despeito do quão essenciais
estes artistas supostamente eram para o enriquecimento da sociedade russa:
“Idealismo Social” – é esta força que nos permite superar a vilania da vida e
perseguir persistentemente a justiça, a beleza a vida e da liberdade. (...) As
qualidades positivas da nossa alma são despertadas com maior e mais intenso
sucesso pelo poder da arte. Tal como a ciência é o intelecto do mundo, a arte é a
sua alma.
***
Enviar artistas talentosos para a guerra é um desperdício tão grande quanto colocar
ferraduras de ouro em um cavalo de carga.
Os demagogos da platéia provavelmente gritariam: “Mas e a igualdade?”
(...) Eu preciso afirmar que para mim o escritor Leo Tolstoy, ou o músico Sergei
Rakhmaninov, ou qualquer homem de talento, não equivale a soldado algum do
Comitê do batalhão dos soldados de Izmaylovsky.
(...) Não, eu protesto com toda a minha alma contra tornar homens de talento em
89
pobres soldados .

89
Ambos fragmentos são parte de dois artigos distintos escritos por Gorky para o periódico Novaya Zhizn (Vida
Nova), no qual era editor durante este período. O primeiro foi escrito em 20/04/1917 (Cf. GORKY, Maksim.
Untimely Thoughts. Essays on Revolution, Culture and the Bolsheviks (1917-1918). Nova york: Paul S.
Eriksson, Inc., 1968, p. 7-8), enquanto o segundo se encontra na edição de 02/05/1917 (IBID. p.23-24). Grifo
nosso.
66

Gorky parece igualar artista e intelectual em seus escritos. No entanto, faz algo bem
diferente, pois aloca aos intelectuais e artistas valores de importância semelhante, porém
especificidades que tornam ambos socialmente necessários. No entendimento de Gorky,
intelectuais e artistas são realmente mais importantes para o desenvolvimento social do que
indivíduos de outros segmentos; consequentemente, devem ser considerados como um valioso
recurso que deve ser poupado e protegido, mesmo à custa de perdas de materiais de reposição
mais simples. A contribuição social do artista, para Gorky, não pode ser suplantada mesmo
pelo intelectual, pois o aspecto transcendental que Gorky atribui à arte não pode ser emulado
por nenhuma outra atividade humana.
O contraste com o construtivismo permite observar que são de fato estes artistas que
parecem aproximar mais a arte ao exercício intelectual, questionando os limites que
demarcam a ação artística e dispostos a reavaliar racionalmente o papel da arte na nova
sociedade que se constituía a partir de 1917. É no construtivismo que a arte é igualada ao
exercício intelectual porque são seus proponentes que direcionam sua produção a partir de
operações racionais direcionadas por demandas materiais e com objetivos práticos; em
contraposição, a arte como a define Gorky é uma atividade que afeta a sociedade através da
promoção de “idealismo social”, força responsável pela inspiração e aperfeiçoamento do
homem – uma noção gradualmente esvaziada a partir dos avanços científicos do início do
século, se remetermos a nossas menções iniciais de Foucault e Berman, entre tantos outros.
Mais ainda, o foco do construtivismo na produção material e na produção em massa aproxima
o artista e o intelectual ao cidadão soviético comum; ao despir o artista de seu halo
transcendental90, o construtivismo o aproxima dos meros mortais que antes eram relegados a
uma categoria inferior – e tacitamente nivela também o papel do intelectual como um membro
participante do processo produtivo.
Dentre as modalidades artísticas mais tradicionais, a pintura foi talvez a mais atacada
pelos construtivistas, enquanto representante máxima das Belas Artes e da noção de arte pela
arte. Em 1921 a exposição 5x5=25 foi realizada em Moscou, exibindo cinco pinturas de cinco
artistas (Rodchenko, Popova, Stepanova, Aleksandra Ekster e Aleksandr Vesnin) que
buscavam proclamar o fim da pintura – e por extensão, da arte tradicional que tinha na pintura
seu maior representante. Entre as cinco pinturas de Rodchenko, por exemplo, três resumiam-
se à aplicação de cores básicas por toda a superfície da tela, na tentativa de desconstruir a

90
BERMAN, 1999, p. 111-117.
67

pintura ao seu mais básico patamar e apresentá-la como desprovida de reais possibilidades
criativas – sugestivamente as telas foram denominadas Amarelo, Azul e Vermelho.
O questionamento da pintura de cavalete precede os construtivistas e revela-se na
produção de diversos outros artistas de outros direcionamentos – na Rússia e na Europa. No
entanto, a crítica construtivista à pintura transcende o formalismo e toca na questão da
relevância social da pintura, diferentemente de outros críticos. As telas redondas de Picasso,
as desproporções de tela de Kandinsky e a abolição da moldura partilhada por tantos outros
artistas, bem como os posteriores experimentos de Jackson Pollock durante a década de 50
são exemplos de questionamento à pintura de cavalete que operam a nível de forma 91. No
construtivismo, por outro lado, a crítica à pintura não busca seu aperfeiçoamento, mas sua
extinção; a representação pictórica, para os construtivistas, serve apenas um propósito prático
se a mesma tiver uma função específica a ser realizada, seja na função de projeto, ou de
veículo para uma mensagem específica. Portanto, o que se pode observar é a crescente
oposição à pintura enquanto atividade socialmente válida, que deveria ser substituída pela
composição gráfica, a qual utilizaria recursos modernos, veicularia mensagens ou
contemplaria especificidades de diferentes projetos com maior precisão, e não seria oprimida
por séculos de canonização reforçada pelo gosto público que ainda estava por ser
transformado.
Brik, por exemplo, formalizou tal sentimento em um texto de 1924, no qual associa a
pintura ao espiritualismo e esteticismo pré-revolucionário, e afirma que tal prática deveria ser
extinta na medida em que seus alicerces sócio-teóricos foram suplantados pela Revolução. A
pintura deveria ser igualmente suplantada, portanto, por outras modalidades de produção que
fossem coerentes com as novas bases sociais em vigor. Afirma:
Está se tornando óbvio que a cultura artística não é restrita a objetos em exibições
ou museus (...).
(...) Nossa criação cultural é fundada completamente sobre um propósito específico.
Não concebemos uma obra cultural e educacional a não ser que esta possua alguma
espécie de objetivo prático, definitivo.
(...) Não há espaço para a cultura de cavalete nesta nova consciência. Sua força e
seu sentido jazem em seu extra-utilitarismo, no fato de que, na verdade, esta não
serve nenhum outro objetivo que não o de encantar, “acariciar”, o olho.
Todas as tentativas de tornar a pintura de cavalete em uma pintura propagandística
falharam (...) porque isto é essencialmente inconcebível.
A pintura de cavalete é produzida para existir por muito tempo, por anos ou mesmo
séculos. Porém como um tema de propaganda poderia existir por tanto tempo?

91
A alusão à produção de Pollock aqui resume-se à sua prática de delimitar os limites de sua tela após tê-la
pintado, efetivamente cortando uma grande lona pintada e extraindo desta, portanto, a tela. Na produção de
Pollock um desenvolvimento conceitual importante foi justamente o de apontar o constrangimento prévio que
uma tela de dimensões dadas a priori pode causar à obra em si, o qual torna-se nítido diante de uma prática que
nega a existência de limites prévios à produção.
68

(...) A pintura de cavalete não apenas é desnecessária para nossa cultura artística
contemporânea, mas é também um dos mais poderosos freios para o
desenvolvimento desta cultura.
Apenas aqueles artistas que de uma vez por todas romperam com a tradição do
cavalete, que reconheceram na prática o trabalho produtivo, não apenas como uma
modalidade igual de trabalho artístico, mas como a única possível – apenas tais
artistas podem abordar de forma produtiva e bem-sucedida os problemas da cultura
92
artística contemporânea e alcançar soluções.

No entanto, se nos fragmentos de textos construtivistas aqui reproduzidos se pode


nitidamente observar os limites que separam tal proposta artística daquelas manifestações
consideradas mais conservadoras e ultrapassadas pela vanguarda, por outro lado são
necessárias considerações mais específicas para que se possa melhor definir as singularidades
do construtivismo soviético em relação a outras propostas artísticas que pudessem ser de
alguma forma associadas à produção construtivista, e aos dois aspectos centrais que
essencialmente a constitui. Em outras palavras, se por um lado tais considerações
fundamentais permitem conferir ao termo construtivismo a capacidade de convergir e abarcar
produções aparentemente diversas, são necessárias discussões mais específicas para que seja
possível determinar a exclusão de outros vetores de produção artística associados ao
construtivismo, porém que não devem ser confundidos, para fins desta pesquisa, com a
produção construtivista soviética.
Afinal, a utilização da palavra construção por artistas para designar ao menos em parte
as suas motivações artísticas foi prévia à formalização do construtivismo russo. Já em 1912,
aponta Patricia Railing, a ideia de construção estava presente nas reflexões artísticas
europeias, como no fragmento textual de Metzinger e Gleizes, parte do tratado intitulado Du
Cubisme: “Compor, construir, desenhar, se reduz ao seguinte: a determinar através de nossas
próprias ações o dinamismo da forma”93; um “impulso construtivo” também é identificado
por Guillaume Appolinaire em suas reflexões que levariam à criação da revista L’Esprit
Nouveau por Le Corbusier e Amédée Ozenfant – a qual teria inclusive objetivos
consideravelmente díspares daqueles dos construtivistas russos94. Como diria Victor
Margolin:
Em contraste [com o construtivismo soviético], o termo “construtivismo” não
significou para a vanguarda da Europa ocidental uma arte que reunisse questões
formais e ideológicas. Ao invés disso, se tornara sinônima às propostas por uma arte
idealizada de formas elementares (...).

92
BRIK, Osip. From Pictures to Textile Prints (1924) in: BOWLT, 1988, p.245-248
93
RAILING, 1995, p. 193
94
Ibid., p. 193
69

Lazlo Moholy-Nagy, o artista húngaro que veio a Berlim em 1920, definiu o


construtivismo em termos de uma ordem formal fundamental. Em um texto de maio
de 1922, ele escreveu que “construtivismo tanto não é proletário quanto não é
capitalista. O construtivismo é primordial, sem classe e sem ancestral. Ele expressa a
forma pra da natureza, a cor direta, o elemento espacial sem distorções advindas de
95
considerações utilitárias .

A produção dos irmãos Pevsner – Anton e Naum Pevsner, o sendo o segundo mais
conhecido por Naum Gabo – é associada por alguns ao construtivismo em decorrência de seu
uso de materiais semelhantes e experimentos tridimensionais. A associação com o
construtivismo é compreensível quando se observa a produção dos dois irmãos, e reforçada
pela partilha de determinados traços presentes também na exposição programática contida no
manifesto realista, de autoria de ambos96 – como a associação entre produção artística e
produção científica, a importância da desconstrução para o ofício artístico consciente e uma
abordagem formal à produção artística. Porém esta associação se torna questionável diante de
uma leitura mais focada, na medida em que se constata que os próprios autores do manifesto
não se consideram construtivistas – como indica o próprio título do manifesto, que por outro
lado também não deve de forma alguma levar à associação dos irmãos Pevsner à produção de
artistas realistas contemporâneos, como aqueles da AKhRR. Ainda que a produção de Anton e
Naum Pevsner estabeleça diálogos com a produção construtivista, seus autores não propõem
em seu manifesto a extrapolação dos limites estabelecidos da arte – e a consequente
redefinição ou extinção da mesma – em seu manifesto, o qual resume-se a uma crítica à
produção moderna contemporânea e ao enaltecimento da vida enquanto diretriz para a
produção artística, porém delimitando claramente sua esfera de ação nos confins da arte –
talvez possa-se considerar tal posição como um meio termo entre a “arte pela arte” e a arte
utilitária dos construtivistas, e de certa maneira assemelhá-la essencialmente à Cultura de
Materiais pré-revolucionária de Tatlin.
Para os irmãos Pevsner a arte é a única entidade do mundo sensível capaz de
transcender as circunstâncias e interferências causadas pelo homem, e portanto a única
maneira real de atravessar a interferência humana e tocar na realidade – justificando portanto
a adjetivação que intitula o manifesto:
(...) Nenhum sistema artístico irá sobreviver às pressões de uma nova cultura
enquanto os alicerces da Arte sejam construídos sobre as verdadeiras leis da Vida.
(...) Espaço e tempo são as únicas formas nas quais a arte se constitui e portanto nas
quais a arte pode ser construída.

95
MARGOLIN, 1997, p.96.
96
Ibid., p.31.
70

(...) A realização de nossas percepções do mundo nos moldes do tempo e do espaço


é o único objetivo de nossa arte pictórica e plástica.
(...) Nós construímos a nossa obra como o universo constrói a sua própria obra,
como o engenheiro constrói suas pontes, como o matemático elabora suas fórmulas
orbitais.
(...) É por isso que ao criarmos coisas nós retiramos delas os rótulos de seus
criadores... Tudo que é acidental e local, deixando apenas a realidade expressa no
97
constante ritmo das forças nelas presentes .

1.13 – Naum Gabo – Cabeça no 2, 1916 1.14 – Anton Pevsner –


Máscara, 1923

Se por um lado é possível excluir a produção dos irmãos Pevsner do universo abarcado
pelo que aqui se define pelo termo construtivismo, a despeito das semelhanças superficiais
entre a produção de tais artistas e o aspecto material e experimental do construtivismo, por
outro lado uma das principais manifestações vanguardistas europeias associadas ao
construtivismo não pode ser excluída: a Bauhaus. Entretanto, diante dos alicerces teóricos da
produção da escola alemã, há de se qualificar tal produção de modo a se definir as principais
nuances que separam a mesma do construtivismo soviético.
Em primeiro lugar, há de se apontar uma razão importante para a primazia da Bauhaus
nos estudos acadêmicos posteriores sobre a produção construtivista – ou mesmo sobre a
instituição que seria paralela à Bauhaus enquanto uma instituição de ensino, a Vkhutemas. De
um lado, pode-se presumir pela escassez de estudos sobre a Rússia por parte dos grandes

97
GABO, N. e PEVSNER, A. The Realistic Manifesto (1920) in: BOWLT, p. 212-213 passim.
.
71

centros de pesquisa ocidentais durante o século XX uma falta de interesse sobre os


desenvolvimentos russos alheios ao campo político, como acusa Selim Khan-Magomedov:
“Se a herança da Bauhaus foi cuidadosamente conservada, catalogada, classificada, analisada,
publicada, a herança do Vkhutemas foi por longo tempo ignorada”98.
No entanto, se observarmos o que aponta Stephanie Barron, ao eurocentrismo que se
pode presumir pela escassez de estudos sobre a Rússia durante o século XX deve-se
certamente contrapor os consideráveis obstáculos impostos pela burocracia soviética. O
campo de estudos artístico não é exceção. Barron descreve não apenas as condições nas quais
muitas das obras eram mantidas, resultando em perdas consideráveis, mas especialmente em
empecilhos burocráticos impostos aos curadores e pesquisadores ocidentais que voltavam
seus olhos às obras soviéticas que o Politburo não tinha interesse em demonstrar 99 – nas
palavras da autora: “Tentativas no Ocidente de organizar qualquer exibição deste rico tesouro
de materiais são frustrados pela política e pela burocracia soviética, a qual inevitavelmente
interfere sobre o contexto no qual tais trabalhos seriam exibidos” 100.
A associação da Bauhaus ao construtivismo russo é certamente compreensível.
Tal como os russos, os participantes da Bauhaus demonstram em suas preocupações artísticas
as duas diretrizes fundamentais ao construtivismo: a sua dimensão experimental formal, e a
sua intenção utilitária. Na pedagogia da escola alemã se pode observar considerações
semelhantes àquelas dos construtivistas em relação a abordagem sobre o ensino da arte,
caracterizada por um entendimento amplo e racionalizado da mesma, e conferindo primazia
inicial a uma apresentação horizontal do ofício artístico antes que se esperasse de novos
artistas a especialização. Novamente se faz a ressalva de que, em diferentes manifestações do
construtivismo, assim como de outras plataformas artísticas, observam-se flutuações nas
relativas importâncias e intensidades dos aspectos que definem tal produção como pertencente
a tal plataforma – porém tais aspectos são partilhados por todos os seus participantes.

98
KHAN-MAGOMEDOV, apud. MIGUEL, J. Arte, ensino, utopia e revolução; os ateliês artísticos
Vkhutemas/Vkhutein (Rússia/URSS, 1920-1930). São Paulo, 2006. Tese (Doutorado em História) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 6.
99
Um efeito colateral interessante apontado por Barron como resultado da indisponibilidade das obras em
questão foi a multiplicação de falsificações de tais obras.
100
Cf. BARRON, S. The Russian Avant-Garde: A View from the West. in: BARRON, Stephanie e TUCHMAN,
Maurice. The Avant-Garde in Russia 1910-1930. New Perspectives. Los Angeles: Los Angeles County
Museum of Art, 1980, p.12
72

Observa-se também no interior do universo da instituição produções semelhantes aos


experimentos laboratoriais russos, como as construções do húngaro Lazló Moholy-Nagy101.
Estas mútuas ressonâncias são reforçadas pela comunicação que se observa entre as
instituições construtivistas Bauhaus e Vkhutemas, na qual uma mútua identificação pode ser
observada – como apontam as correspondências entre estudantes de Bauhaus e Vkhutemas
disponibilizadas por Jair Diniz Miguel102.
No entanto, em sua interpretação mais fundamental sobre o papel do artista neste novo
ambiente moderno, no qual o seu ofício necessitava de reformulação diante da aparente
obsolescência do que previamente se entendia por obra de arte, a Bauhaus se diferencia da
produção construtivista russa. Esta, como já se afirmou, demonstra variações que gravitam em
um espectro delimitado por duas posições extremas: de um lado, uma produção artística
envolvendo o uso de materiais industriais e com alto nível de experimentalismo formal, cuja
preocupação com questões utilitárias não pressupunha a extrapolação dos limites de
determinada área da produção artística, apenas a sua redefinição; de outro, a racionalização do
trabalho artístico voltada quase exclusivamente ao fim utilitário, tornando-se então o artista
em um engenheiro, em um projetista.
A Bauhaus, entretanto, apresenta uma abordagem artística que partilha semelhanças
com ambos extremos, porém não se encaixa propriamente no espectro acima delineado. Tal
como o extremo utilitário do construtivismo soviético, a Bauhaus se ocupa primariamente
com a tarefa construtiva, voltada portanto para a produção de objetos de característica
funcional e aplicabilidades claras; porém, com exceção talvez da sua abordagem
arquitetônica, não partilham com a produção produtivista o extremo racionalismo e
industrialismo que a torna característica. Os mais radicais construtivistas russos defendiam a
inserção do artista no âmbito industrial e sua futura amalgamação a este campo produtivo; os
produtos realizados ou idealizados pelos mesmos eram primariamente voltados para o seu uso
e para a sua reprodução em massa a nível industrial, e apresentavam em sua concepção
preocupações dessa natureza: custo, simplicidade de produção e montagem, economia de
espaço e durabilidade. Já a produção de objetos funcionais e cotidianos da Bauhaus parecem
ressaltar o papel artesanal, especializado do artista, cujo produto, ainda que passível de

101
Nascido em 1895, o artista húngaro Lazló Moholy-Nagy foi professor na Bauhaus entre 1923 – quando
substituiu o professor Johannes Itten – e lá permaneceu até 1928. Seus estudos fotográficos são estudados e
contrapostos aos de Rodchenko por Victor Margolin. Cf. MARGOLIN, 1997, p.123-161.
102
MIGUEL, J. 2006, p. A-100-101.
73

produção industrial, não era concebido sob as mesmas preocupações prioritárias dos
construtivistas russos, demonstrando comparativamente uma maior carga estética.
Pode-se considerar, portanto, que a Bauhaus não se propôs essencialmente a transpor
os limites que compunham o universo da arte. É talvez através desta distinção que o
diferencial do construtivismo russo se demonstre com a maior nitidez: pois de um lado, a
Bauhaus buscou incorporar o moderno à arte, buscou amalgamar a indústria ao ofício artístico
com o intuito de produzir o belo moderno, a estética moderna, ainda que em objetos
cotidianos – os quais se tornariam célebres e até hoje são reverenciados justamente em
decorrência da sua natureza artística, estética. E de outro vemos os construtivistas, que
não convidaram a indústria à arte, mas buscaram integrar a arte à indústria buscando o
aperfeiçoamento material da produção industrial. A produção da Bauhaus limitou-se sempre
ao artista, artesão, responsável por assinar não apenas o seu projeto de obra, mas a obra em si.
O preço dos objetos produzidos na Bauhaus durante sua existência decorrem da raridade
destes objetos, que por sua vez decorrem da natureza artesanal, dos mesmos; não foi o
objetivo final da Bauhaus enquanto instituição a elaboração de desenhos industriais para
produção em massa, mas de objetos diferenciados que resultariam dos esforços de um artista
com preocupações utilitárias e o know-how que o permitiria realizá-las. Os construtivistas
russos, pelo contrário, buscaram consistentemente o caminho da indústria e da produção em
massa. Priorizaram praticidade sobre inovação de design; julgavam a inovação através de
critérios práticos, e não estéticos103; em determinados casos, recusavam-se inclusive a
“assinar” suas criações, enfatizando o aspecto coletivo de sua produção – como os artistas da
ObMoKhu104.

***

As discussões até aqui realizadas tem como objetivo delinear com clareza as propostas
que constituem o que aqui se chama construtivismo soviético; para tal buscou-se
simultaneamente apontar os traços que permitem a aglutinação da produção destes indivíduos
sob uma categoria geral e excluir do escopo da mesma categoria a produção que, ainda que

103
A partir da negação da estética poder-se-ia realizar um diálogo entre construtivismo e o suprematismo
proposto por Malevich em 1915 – proposta que em muitos aspectos se difere dramaticamente do construtivismo.
Ainda que não seja propósito do presente trabalho realizar tal diálogo, uma reflexão desta natureza poderia
esclarecer a coexistência e as interferências mútuas de ambas propostas na Rússia soviética
104
LODDER, 1983, p.69
74

tradicionalmente relacionada ao termo, falham em apresentar os fundamentos necessários para


serem igualmente aglutinados.
O que parece ser a mais clara conclusão a se extrair desta discussão inicial resume-se
ao desejo destes indivíduos em revolucionar o campo produtivo no qual se inseriam.
Comparados com outros artistas acima mencionados, parecem estes construtivistas
caracterizarem-se por seu radicalismo e pela sua intenção até certo ponto destruidora,
necessária para um esforço criativo descompromissado com os constrangimentos culturais
pré-revolucionários. No entanto, a afinidade que este radicalismo materialista parece partilhar
com a ideologia marxista certamente choca o leitor que já antes ouviu falar do Realismo
Socialista ou teve contato com a produção cultural soviética pós-30. Cabe aos capítulos que
seguem, portanto, a tarefa de contrastar teoria e prática, política e cultura, com o intuito de
melhor delinear os sucessos e insucessos destes artistas em seus empreendimentos.
75

Capítulo II
Expansão e Construção
(1917-1925)

"Sem forma revolucionária não há arte revolucionária."


Vladimir Mayakovsky
76

No dia 25 de outubro de 1917105, Petrogrado amanhecera sem que a maior parte de sua
população soubesse que o governo provisório, estabelecido em fevereiro após a abdicação do
Tsar Nicolau II, havia sido deposto pelo Comitê Militar Revolucionário106 do soviete da
capital, sob o comando de Lev Trotsky – que havia sido eleito presidente do então
majoritariamente bolchevique soviete em 8 de outubro. Seria no decorrer do dia que a
população da capital tomaria conhecimento, através dos panfletos espalhados pelo próprio
soviete, que “a causa pela qual o povo vinha batalhando – o início imediato de negociações de
paz, o fim do monopólio da nobreza sobre a terra, o controle dos trabalhadores sobre as
indústrias, a criação de um governo soviético – foi concretizada.”.
Esta afirmação, no entanto, era exagerada: demoraria dias e semanas para que
mobilizações semelhantes acontecessem em outros centros urbanos da Rússia107, meses para
que o suposto governo soviético adquirisse ainda que seus mais vagos contornos – incluindo o
mudança da capital para Moscou e todos os subsequentes desafios administrativos e logísticos
de tal processo108 – e anos até que se pudesse afirmar que a autoridade de Lenin e do Partido
Comunista havia sido imposta sobre todas as demais forças políticas concorrentes no território
russo, de modo a assegurar, ao menos a médio prazo, a sobrevivência da “revolução dos
trabalhadores, soldados e camponeses” proclamada em outubro. Se a tomada de Petrogrado se
assemelha a um golpe de estado em decorrência da maneira através da qual fora realizada, os
anos que sucederam a ascensão dos bolcheviques em Petrogrado compõem realmente um
período revolucionário: não foram anos de consolidação, pura e simplesmente; foram anos de
guerra, de sacrifícios e de luta pela sobrevivência, durante os quais aqueles engajados ao
projeto revolucionário arriscariam suas vidas por uma total reformulação da sociedade em que

105
De acordo com o calendário juliano. Seria apenas no primeiro dia de fevereiro de 1918 que o recém
estabelecido governo soviético decretaria a adoção do calendário gregoriano, efetivamente adiantando o
calendário russo em quatorze dias (efetivamente tornando o dia seguinte o décimo quinto do mês). Esta alteração
causa eventuais confusões na medida em que a abdicação do Tsar ocorrera em fins de fevereiro de acordo com o
primeiro calendário (e portanto, início de março de acordo com o calendário gregoriano) e a tomada do poder na
capital pelos bolcheviques em fins de outubro (ou início de novembro). Aqui, ater-se-á às datas do calendário
Juliano no caso de qualquer evento prévio ao decreto acima citado, adotando-se consequentemente a cronologia
decorrente do calendário gregoriano apenas em relação a eventos posteriores ao decreto.
106
VRK (Voenno-Revolyutsionnyi Komitet): Criado em outubro de 1917 (algumas semanas antes da revolução),
o Comitê Militar Revolucionário foi justificado pelo Soviete de Petrogrado como uma medida que preveniria
uma nova ameaça como aquela que representara o general Kornilov – que supostamente tentara invadir
Petrogrado e depor o governo provisório em agosto (o que é ainda hoje debatido).
107
Manifestação semelhante só ocorreria em Moscou, por exemplo, no dia 5 de novembro, uma semana após a
tomada de Petrogrado.
108
Cf. FITZPATRICK, Sheila. The Commissariat of Enlightenment. Soviet organization of Education and the
Arts under Lunacharsky October 1917-1921. Nova York: Cambridge University Press, 1970, p. 18-20.
77

viviam. Foi um período de expansão para a Revolução, durante o qual o partido bolchevique
teve que adquirir dimensões consideravelmente maiores, e agregar aos seus números aqueles
indivíduos dispostos a participar de tal movimento. No campo artístico, a revolução também
resultaria em drásticos e abrangentes rearranjos, contrastando de forma nítida com a
multiplicidade ideológica observável durante o período de vigência do governo provisório, e
demonstrando pelo contrário a intenção de alinhamento da produção artística ao
direcionamento superior partidário, como demonstra Von Geldern:
A Revolução de Outubro provocou um realinhamento entre artistas e governo. Sob o
Governo Provisório, o estado e a revolução não haviam sido identificados com
qualquer partido específico. Artistas eram livres para identificarem suas obras à
Revolução sem se subordinarem a um partido ou plataforma. (...) Não seria o caso
após Outubro. O estado e a revolução haviam se tornado – a despeito de seu
antagonismo inerente – um corpo único e, consequentemente, reunidos sob a égide
109
de um partido único .

2.1 – Declaração do Comitê Militar


Revolucionário, de 25 de outubro de 1917,
que afirma:

“Aos cidadãos da Rússia,

O governo provisório foi deposto.


O poder estatal foi transferido às mãos do
órgão do Soviete de representantes dos
Trabalhadores e Soldados de Petrogrado,
o Comitê militar Revolucionário, que
lidera o proletariado de Petrogrado e sua
guarnição
A causa pela qual o povo vinha
batalhando – o início imediato de
negociações de paz, o fim do monopólio
da nobreza sobre a terra, o controle dos
trabalhadores sobre as indústrias, a
criação de um governo soviético – foi
concretizada.
Viva a revolução dos
trabalhadores, soldados e camponeses!”.

109
GELDERN, James von. Bolshevik Festivals, 1917-1920. Los Angeles: University of California Press, 1993,
p.22.
78

O presente capítulo tem por objetivo analisar a ação política dos artistas de orientação
construtivista, inseridas no contexto político deste período de consolidação – a guerra civil – e
durante o período inicial da Nova Política Econômica (NEP), a qual seria implementada
primariamente como forma de recuperação da economia russa após sete anos de conflito
ininterrupto em âmbito nacional. A discussão aqui empreendida se limitará até o meados da
NEP, mais especificamente 1925, na medida em que uma nítida mudança de direcionamento
político aplicado não apenas às artes, mas a praticamente todos os esforços governamentais
soviéticos pode ser observada a partir de 1926 – sobre o qual a análise será beneficiada por
uma análise segmentada em duas partes.
Para realizar tal debate, a discussão será dividida em quatro partes: em primeiro lugar,
será observado o processo de formação do Narkompros, órgão estatal de administração
cultural, a partir do qual se espera demonstrar as circunstâncias políticas do período da guerra
civil que permitiram aos agentes em ação no âmbito cultural um grau de autonomia que não
seria observado em períodos posteriores, e no qual observa-se uma expansão da influência e
do escopo de ação dos construtivistas; em seguida, discutir-se-ão as diferentes denominações
que foram utilizadas durante o período aqui contemplado para fazer referência à produção
destes artistas, na medida em que 1) a utilização destas diferentes denominações
frequentemente decorrera de intenções de cunho político e 2) a adoção de uma e a recusa ou
desuso de outra podem também em determinados casos ser entendidas como demonstrações
de tendências políticas contemporâneas; em terceiro lugar buscar-se-á analisar as maneiras
através das quais tais artistas buscaram implementar suas visões durante a guerra civil,
guiados pelo objetivo final de construir de uma nova realidade cultural que fosse coerente à
nova sociedade que os mesmos esperavam resultar das agruras da destruição da guerra civil;
finalmente analisar-se-á as transformações que a implementação da NEP110 resultou na esfera
da produção e administração artística, com o intuito de identificar as características e
desdobramentos desta política econômica sobre o escopo de ação específico dos artistas
construtivistas.

110
NEP – Novaya Ekonomicheskaya Politika. Política de recuperação econômica implementada pelo Sovnarkom
em 1921, após a guerra civil.
79

A formação e composição do Comissariado de Esclarecimento do Povo

Os primeiros anos que sucederam a tomada de Petrogrado pelos bolcheviques foram


dominados pela guerra civil, cujas reverberações sobre a produção artística e administração
pública de assuntos culturais serão adiante mencionadas. Entretanto, em todas as esferas da
estrutura política e da vida social o partido bolchevique também buscara as reformulações que
via como necessárias para o prosseguimento da Revolução em direção de uma sociedade
comunista. No campo artístico, este processo de reformulação permitiu aos artistas
construtivistas – então ainda popularmente reconhecidos como futuristas em decorrência de
suas obras e seus escritos pré-revolucionários – uma considerável expansão em termos de
influência política e presença no cenário artístico russo. Diante do caos e das inseguranças da
guerra civil, tais artistas se demonstrariam mais entusiasmados do que seus pares no campo
das artes em relação às ambições revolucionárias de Lenin e dos bolcheviques.
A expansão da participação de construtivistas no campo artístico e político soviético
durante a guerra civil tomou forma especialmente através do Narkompros111, cuja jurisdição
administrativa tornaria possível assemelhá-lo a um Ministério de Educação e Cultura112.
Dentro de tal jurisdição, cabia primariamente ao Narkompros a supervisão (assim como a
presumida reformulação) da estrutura escolar soviética em todos os níveis, bem como da
produção artística, publicações de ordem cultural e administração de instituições culturais,
como museus e teatros – seria o comissariado responsável, por exemplo, pela produção dos
bustos e monumentos que comporiam o Plano de Propaganda Monumental Revolucionária113
proposto por Lenin e aprovado pelo Sovnarkom em 1918114.

111
Narkompros (ou NKP): Narodnyi Komissariat Prosvesheniya, ou Comissariado de Esclarecimento do Povo.
112
Deve-se aqui ressaltar que os limites de tal jurisdição seriam ajustados com o decorrer dos anos,
frequentemente resultando em encolhimento do domínio deste comissariado em prol de outros. Em especial após
a morte de Lenin e em decorrência não apenas do isolamento político de Lunacharsky, mas da preponderância
política conferida a outros comissariados, observa-se uma progressiva redução das prerrogativas do Narkompros
e o início do direcionamento governamental de Stalin, aqui exemplificado pela remoção da gestão do Vkhutemas
– a principal instituição superior de estudo artístico e de ofícios artesanais como têxteis, madeira e metais – do
âmbito do Narkompros e sua alocação sob a autoridade do Vesenkha (Conselho Econômico Russo).
113
O Plano de Propaganda Monumental Revolucionária, aprovado em 1918, resumia-se a uma série de
monumentos a serem erigidos por todo o território russo através de monumentos que incorporassem ou dessem
forma aos valores da causa revolucionária – como o monumento à Primeira Constituição, comunista, erigido em
Moscou em 1919. Longe de incluir a vanguarda do partido bolchevique – era uma determinação de Lenin que
membro algum do partido fosse representado em monumentos enquanto vivo – a maioria destes monumentos
glorificariam figuras passadas associadas pelo partido ao pensamento ou a movimentos socialistas e
revolucionários, ainda que estritamente alheios ao marxismo – muitas vezes prévios ao nascimento de Marx.
Exemplos de tais figuras são Aleksandr Radischev, Stenka Razin, Aleksandr Herzen, Nikolai Chernyshevsky e
Georgi Plekhanov. ZLOBIN, Vasily e ZLOBIN, Nikolai (ed.) From the Archives: Twelve Documents from the
80

Chefiado por Anatoly Lunacharsky até 1929, o Narkompros seria composto por uma
série de subseções, as quais eram coletivamente supervisionadas por um Colegiado do
Narkompros, também chefiado por Lunacharsky. No caso da produção artística, foram
formados setores que teriam jurisdição sobre áreas artísticas específicas: IZO (Artes
Plásticas)115, TEO (Teatro), FOTO-KINO (Fotografia e filme), MUZO (Música) e LITO
(Literatura).
A escolha de Lunacharsky para a liderança do Narkompros fora apoiada pela maioria
dentre aqueles que compunham a liderança do partido em 1917, porém nunca fora unânime –
a despeito da afirmação de tal tom de seu colega vperedista Lebedev-Polyansky116. Suspeito
por certos membros do partido devido a sua associação com o grupo Vpered117 antes da
revolução, Lunacharsky se tornaria conhecido especialmente pelo seu intelectualismo e
entusiasmo revolucionário, bem como por sua moderação política e pela sua sensibilidade às
dificuldades pelas quais passavam aqueles que os cercavam. Exemplo desta sensibilidade e
deste romantismo que seria considerado por outros comunistas como uma fraqueza, bem
como do apreço que sentia pelo vasto legado artístico-cultural russo pré-revolucionário,
Lunacharsky oferecera inclusive um pedido de exoneração ao Sovnarkom pouco após a queda
de Petrogrado, quando fora noticiado que a Catedral de São Basilio estava sendo demolida – e
retirando tal pedido quando descobrira a falsidade desta afirmação118.

Secret Archives of the Central Committee, in: Demokratizatsiya, vol. 5, no 4 (Outono, 1997), e GELDERN,
1993, p.82-85.
114
Sovnarkom (Sovet narodnykh komissarov): Conselho de Comissários do Povo
115
IZO :Otdel Izobrazitelnykh Iskusstv. Literalmente poder-se-ia traduzir IZO como “Departamento de Belas
Artes”, como o faz Bowlt, porém a tradução literal não aparece em outros livros em decorrência justamente das
ações empreendidas pelo departamento, optando-se então por uma tradução menos carregada de sentido
ideológico como “artes plásticas” ou “artes visuais”
116
FITZPATRICK, 1970, p.9.
117
Fundado em 1909 por Aleksandr Bogdanov, o grupo Vpered representou um cisma com o direcionamento do
partido bolchevique, afirmando a necessidade de treinamento e educação do proletariado com o intuito de
expandir o escopo da classe revolucionária. Composto por bolcheviques que integrariam posteriormente o
Narkompros, como Pokrovsky, Lebedev-Polyansky e Lunacharsky, o Vpered buscou realizar sua proposta de
expansão da educação do proletariado a partir da formulação de universidades proletárias, inicialmente na ilha de
Capri, e posteriormente em Bolonha, ensejando forte oposição de Lenin, que considerava tal facciosismo anti-
marxista e danoso à causa revolucionária. A ideologia fundadora do grupo Vpered seria o alicerce básico para a
formalização do Proletkult em 1917, motivo pelo qual pode-se observar na liderança de tal organização
Bogdanov, bem como o apoio de ex-vperedistas à noção de arte proletária – como Lebedev-Polyansky e o
próprio Lunacharsky. Cf. MAROT, John Eric. Alexander Bogdanov, Vpered, and the Role of the Intellectual
in the Workers’ Movement, in : Russian Review, vol. 49, no3 (Julho, 1990), p. 241-264, passim.
118
FITZPATRICK, 1970, p.13-14.
81

Considerado por muitos como um marxista de inclinações românticas ou utópicas,


Lunacharsky era reconhecidamente um marxista entusiasmado, ainda que alguns duvidassem
que tal entusiasmo fosse compatível com o pragmatismo das decisões que o partido haveria de
tomar após a revolução, especialmente durante estes primeiros anos 119 - como afirmaria
Lebedev-Polyansky: “todos sabem que o camarada Lunacharsky é mais propenso a defender
literatos do que a lavar as suas próprias mãos”120.
A escolha de Lunacharsky para a chefia do Narkompros decorreu de seu entusiasmo e
entendimento de assuntos culturais, e observa-se nas memórias de diversos comunistas
proeminentes no partido em 1917 um julgamento predominantemente positivo em relação a
Lunacharsky – especialmente relacionado ao entusiasmo do mesmo, ainda que indicando-o
como politicamente ingênuo. Em um artigo de 1933, imediatamente posterior à morte do ex-
comissário do Narkompros, Trotsky exemplifica virtudes que observava no ex-comissário:
“As ideias revolucionárias, para Lunacharsky, não constituíam um entusiasmo de juventude:
Elas o penetraram até o mais profundo dos nervos e dos vasos sanguíneos. (...) Lunacharsky,
como sabemos, era impulsivo, mas conciliador”121. Lenin, por sua vez, admitira em mais de
uma ocasião admiração por Lunacharsky, como se pode observar nas declarações de Viktor
Shulgin, relembrando uma conversa com Lenin:
No mais alto momento de combate ao Proletkultismo [1920], quando Lunacharsky
não havia executado as instruções de Lenin, eu disse a Vladimir Ilych em tom de
reprovação: ‘e você ainda gosta dele’. Lenin então respondeu – e sua resposta foi tão
inesperada que eu a escrevi no mesmo momento – ‘e eu o aconselho que também
goste dele. Ele é completamente voltado para o futuro. É por isso que nele há tanta
alegria e tantos risos. E ele está disposto a dar esta alegria e estes risos a todos. É
claro que neste caso ele foi tolo; ele não deveria ter se permitido envolver pela rede
122
de Bogdanov. Mas nós os tiraremos dela .

O próprio Lunacharsky, em suas memórias, ressaltaria a diferença que observava entre


o seu entendimento do Marxismo e aquele de Lenin – observada não em questões ideológicas,
mas em relação à implementação prática de tal ideologia:
É claro que entre eu, por um lado, e Lenin, por outro, há grande dissimilaridade. Ele
abordava todas estas questões como um homem prático [praktik] com um enorme
entendimento tático, um verdadeiro gênio político. Eu as abordava como um filósofo
123
e, eu o direi de forma mais definida, como um poeta da revolução...

119
FITZPATRICK, 1970, p.1
120
FOX, Michael. Glavlit, Censorship and the Problem of Party Policy in Cultural Affairs, 1922-28, in:
Soviet Studies, vol. 44, no 6 (1992), p.1050.
121
TROTSKI, L., Literatura e Revolução. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2007, p. 208-210..
122
FITZPATRICK, 1970, p.10
123
Apud. FITZPATRICK, p.3
82

Sua manutenção enquanto Comissário do Narkompros, por sua vez, seria


crescentemente questionada não apenas pelos insucessos do Comissariado durante seus
primeiros anos, mas também devido à expansão numérica do partido, cujos novos membros
teriam um entendimento sobre o caminho revolucionário cada vez mais distante daquele da
geração bolchevique responsável pela tomada de Petrogrado.
O apontamento de Lunacharsky, portanto, demonstra uma dicotomia recorrente no
processo de formação do Estado soviético, na qual os méritos individuais eram postos à prova
a partir de uma comparação com as origens de classe de tal indivíduo, bem como de suas
prévias associações:
A explicação mais provável por detrás do apontamento de Lunacharsky para o
Comissariado de Educação – assim como o de Semashko para o Comissariado de
Saúde e Chicherin para o de assuntos internacionais – decorria de seu
reconhecimento enquanto o principal especialista do Partido neste campo. É
verdade, no entanto, que nem em Outubro, nem subsequentemente, Lunacharsky foi
admitido à cúpula interna do Partido, e a ambiguidade de seu status como um
especialista do Partido, porém não de líder do Partido foi refletida na reputação
posterior de seu comissariado. Os bolcheviques, como Lunacharsky, apoiavam o
esclarecimento, porém sem a sua ubíqua beneficência: eles não perdoaram seus doze
anos de apostasia em relação ao Partido ou sua preferência pela companhia de
124
poetas, ao invés de políticos .

Michael Fox faz um juízo semelhante sobre Lebedev-Polyansky, que também


integrara o grupo Vpered:
Lebedev-Polyansky, o primeiro diretor do Glavlit, foi um membro original do grupo
Vpered em 1909, o presidente nacional do Proletkult entre 1918 e 1920, bem como
o principal editor do periódico Proletarskaya Kultura entre 1918 e 1921. Ele
também foi nomeado por Lenin ao posto de comissário do departamento de
publicações literárias do Narkompros em 1918, e de tal forma se tornou membro do
colegiado do Narkompros. (...) Durante a década de 1920, entretanto, o Glavlit, a
despeito de sua posição de poder em relação aos autores e editoras, estava longe de
ser onipotente no interior da burocracia soviética, talvez porque Lebedev-Polyansky
não gozasse do prestígio no interior do partido para sobrepujar políticos mais
125
fortes .

O Narkompros sofreria durante esse período inicial de formação da mesma ironia que
afetaria o partido como um todo: aos bolcheviques faltavam os números necessários para
preencher todos os cargos que vascularizariam o gigante aparato estatal julgado necessário
para administrar a Rússia em sua totalidade, bem como supervisionar as demais repúblicas
soviéticas federadas que haviam de ser formadas – resultando em uma multiplicação de

124
Ibid., p.10
125
FOX, 1992, p. 1050.
83

comissariados que levaria Souvarine a criticar o regime soviético, denominando-o “ditadura


do secretariado”126, e Nadezhda Krupskaya a diagnosticar o que denominara uma “inflação de
comissariados”127. Tal necessidade numérica seria um desafio para o partido de vanguarda de
Lenin, o qual era por definição um de estrita hierarquia e comando, com rigorosos
regulamentos internos e objetivos definidos128, diferenciando-se nesse quesito tanto dos
socialistas-revolucionários129 quanto dos mencheviques130, cuja composição era mais
numerosa e menos seletiva. Eis portanto o dilema à frente da causa revolucionária
bolchevique: Lenin aparentemente acertara ao postular que a conquista da estrutura estatal e a
ignição da revolução poderiam ser realizadas por um grupo pequeno, porém treinado e
direcionado, de revolucionários; no entanto, a irradiação da mesma parecia exigir um número
muito superior de adeptos às visões do partido, os quais haviam de ser conquistados após a
tomada de poder – escassez evidenciada no apontamento de determinados indivíduos a
múltiplos cargos em diferentes segmentos da estrutura estatal, limitando a efetividade dos
mesmos em cada uma de suas múltiplas funções131.
Desafios adicionais seriam impostos ao Narkompros, devido à sua posição
relativamente baixa na lista de prioridade de alocação de recursos durante a guerra civil. Os
funcionários do comissariado recebiam provisões de qualidade e quantidade inferiores àquelas

126
O bolchevique Boris Souvarine, radicado na França e lá ativo membro do Partido Comunista Francês e
representante do mesmo no Comintern, acusaria através de tal denominação as proporções leviatânicas que
assumira o aparato estatal soviético. Apud. WOOD, P. The Politics of the Avant-Garde in: GERMANO, C.;
GIMENEZ, C. (orgs.), 1992, p.12.
127
FITZPATRICK, 1970, p.24.
128
Tal rigor se observa também na formação da estrutura que visava organizar o fomento à revolução global, o
Komintern. A partir da avaliação dos vinte e um pontos, critérios rigorosos contra os quais eram medidos os
partidos comunistas dos demais países, este rigor fica evidente, bem como o relaxamento destes critérios, no
início da década de 1920, coincide com o novo direcionamento que paulatinamente permeou a política soviética,
entre outros aspectos, no que diz respeito à filiação ao partido comunista.
129
O partido social-revolucionário gozava de amplo apoio popular antes da revolução, sendo o partido de
orientação socialista com maior aprovação na Rússia antes de 1917. Este apoio derivava especialmente das áreas
rurais, na medida em que o programa deste partido, afastado do marxismo e demonstrando grande afinidade às
propostas coletivistas dos eslavófilos e populistas do século XIX, melhor se adequava às ânsias e desejos do
campesinato russo, tradicional e ortodoxo.
130
A doutrina menchevique, que garantia que a revolução proletária deveria respeitar à faseologia revolucionária
do processo histórico tal como o definiu Marx, era certamente mais palatável àqueles de persuasões mais
moderadas na Rússia, se comparados aos bolcheviques. A título de exemplo, vale mencionar que, enquanto os
mencheviques apoiaram consistentemente o sindicalismo que formava-se e consolidava-se na Rússia desde a
virada do século, observa-se entre bolcheviques a denúncia desta prática como uma perversão pequeno-burguesa
que desinflava, ao invés de potencializar, a luta de classes.
131
FITZPATRICK, Sheila The Cultural Front. Power and Culture in Revolutionary Russia. Ithaca: Cornell
University Press, 1992, p.44, 52.
84

conferidas a integrantes de comissariados considerados mais relevantes, causando inclusive


evasão de profissionais do Narkompros em direção a outros órgãos governamentais – levando
à cunhagem do termo O Front Esquecido para denominar os esforços educacionais do
Narkompros que, segundo V. Lukin, eram minados pela falta de recursos e comunistas no
comissariado132. Afirma ainda Fitzpatrick:
[O] Narkompros continuava a sofrer de uma crônica falta tanto de trabalhadores
qualificados quanto de confiáveis membros do Partido.
(...) Membros do partido eram notoriamente indispostos a trabalhar no Narkompros,
e aqueles que o fizeram eram, com pouquíssimas exceções, mulheres. O
Narkompros se tornou (...) um local para o emprego das esposas e mulheres dos
políticos bolcheviques: seus membros incluíam as esposas de Lenin, Trotsky,
133
Zinoviev, Kamenev, Dzerzhinsky, Krzhizhanovsky e Bonch-Bruevich

Para tal fim de expansão numérica o rigor que antes se impunha aos revolucionários
profissionais do partido de vanguarda antes da revolução não poderia ser transposto de forma
integral. Na medida em que a nascente estrutura soviética se burocratizava e multiplicava, em
resposta aos desafios impostos pela extensão do território russo e pela intensidade das
mudanças que o partido buscava implementar, intensificava-se a demanda por quadros
administrativos capazes e ideologicamente desejáveis em todas as áreas – e no caso do
Narkompros, é ainda mais claro que o comissariado não estava em posição que o permitisse
grande seletividade. Neste contexto de expansão, multiplicaram-se as oportunidades de
participação política no interior da estrutura administrativa cultural soviética, na qual um
número considerável de artistas construtivistas pode se inserir, buscando implementar por
cima algumas das suas visões que antes da revolução eram rechaçadas pelos representantes
dos cânones e bons costumes da sociedade russa.
A tarefa do Narkompros tinha portanto como pré-requisito a formação do próprio
comissariado. Seus principais membros, que comporiam o Colegiado do comissariado e
portanto teriam a responsabilidade de supervisão do mesmo, eram também membros do
partido de longo tempo de filiação e certa proeminência, como Krupskaya, Mikhail
Pokrovsky, Evgraf Litkens, Platon Kerzhentsev e o próprio Lunacharsky – e, portanto,
ideologicamente “desejáveis”. Para que o comissariado adquirisse as dimensões necessárias
para a execução de suas tarefas, entretanto, era necessário que o partido buscasse indivíduos
fora dos quadros do relativamente pequeno partido bolchevique.

132
FITZPATRICK, 1970, p.167.
133
Ibid., p.19.
85

Em basicamente todos os seus subsetores o Narkompros adotou uma postura


voluntarista, esperando cooperação daqueles que por espontânea vontade viessem ao
comissariado aqueles com o entusiasmo revolucionário e as habilidades necessárias para a
execução tarefas requeridas. Em relação à produção artística, não foi diferente: uma semana
após a insurreição em Petrogrado o Narkompros publicou uma carta aberta aos artistas da
Rússia134, urgindo que os artistas abraçassem a causa revolucionária e ajudassem na proteção
do patrimônio artístico-cultural russo, bem como no processo de criação da arte
revolucionária. A carta ainda afirmava o desejo do Narkompros em estabelecer um diálogo
artístico que determinaria os rumos da revolução, dando a entender uma postura receptiva às
mais diversas vertentes artísticas que permeavam a produção das capitais135.
Foram os construtivistas aqueles que predominantemente responderam, de forma
positiva e entusiasmada, o convite de Lunacharsky. Em uma reunião organizada em Smolny,
aberta a quaisquer artistas interessados em engajamento com a causa revolucionária, estavam
entre os presentes mais conhecidos no contexto artístico-literário russo Aleksandr Blok,
Vselevod Meyerkhold, Natan Altman e Vladimir Mayakovsky136 – os três últimos associados
à vanguarda e ao construtivismo, e o simbolista Blok como “o estranho à mesa” 137, cujo
entusiasmado apoio à revolução destoaria de seus colegas literários e surpreenderia até
Trotsky138. Não apenas nesta ocasião, mas durante os primeiros meses de existência do
Narkompros, foram os artistas de orientação construtivista que demonstrariam maior
disposição em cooperar com o comissariado.
Em decorrência de tal voluntarismo, uma quantidade desproporcional de artistas que
compunham as vanguardas artísticas russas vieram a ocupar cargos no interior da estrutura do
Narkompros, exercendo maior influência sobre o campo de produção artístico-literária do que
haviam em qualquer momento anterior. Como Evgeny Zamyatin rapidamente apontaria, “os

134
TOLSTOI, 2010, p. 32
135
À menção das “capitais” da Rússia, deve-se entender as cidades de Petrogrado (renomeada Leningrado em
1924) e Moscou. Oficialmente, entretanto, as sedes dos órgãos administrativos soviéticos de âmbito nacional
foram transferidos para Moscou em 1918.
136
WHITE, Stephen. The Bolshevik Poster. New Haven: Yale University Press, 1988, p.75.
137
HELLER, Mikhail e NEKRICH, Aleksandr M. Utopia in Power. Nova York: Touchstone, 1992, p.55-56
138
TROTSKI, 2007, p.101-107 passim.
86

futuristas são os mais escorregadios de todos; sem perder sequer um segundo, eles
anunciaram que os artistas oficiais do novo regime, obviamente, seriam eles” 139.
O voluntarismo destes artistas era uma exceção no meio artístico, no qual a reação
predominante ao Narkompros fora de indiferença ou aberta hostilidade: “A tática recorrente
dos escritores e artistas era ignorar o Narkompros em nível oficial, e ao mesmo tempo criticá-
lo na imprensa não-bolchevique”, afirma Fitzpatrick140. Tal voluntarismo também era exceção
no âmbito da jurisdição do Narkompros como um todo141, envolvendo também os esforços de
reformulação do comissariado nas áreas de ensino e de produção cultural – como a
administração de museus, teatros e outras instituições culturais russas.
Em alguns casos a resistência ao governo não decorria necessariamente de uma
oposição ideológica ao comunismo, mas manifestações práticas das políticas estabelecidas
pelos comissariados. Foi o caso das greves escolares que sucederam a queda de Petrogrado, as
quais em linhas gerais não tinham cunho necessariamente ideológico, e sim uma recusa
pragmática das linhas de reforma que vinham sendo estabelecidas pelo Narkompros durante o
período – bem como pela pauperização do professor e de seu ambiente de trabalho. As
paralisações docentes em nível escolar primário e secundário decorriam principalmente de
questões materiais – salários, rações, condições de trabalho – e de discordâncias entre tais
docentes em nível regional e as diretrizes impostas pelo Narkompros a nível nacional, tanto
em questões de natureza pedagógica quanto em questões administrativas142.
Em outros casos, entretanto, a dissonância entre o partido e segmentos descontentes
alcançara níveis essenciais de discordância ideológica. Este foi o caso daqueles segmentos
mais protetores de sua autonomia, seja por terem tradicionalmente gozado de tal autonomia
durante o estado tsarista, ou por a terem experimentado durante o governo provisório – por
exemplo no âmbito cultural – mas que após outubro viram sua autonomia ameaçada pela
centralização gradual promovida pelo Sovnarkom e seus ramos secundários – neste caso, o
Narkompros. Isso pode ser observado no caso dos professores universitários, que viram
medidas como o relaxamento de critérios de admissão, a noção de participação do aluno na
administração acadêmica e, especialmente, a submissão do direcionamento curricular superior
ao estado como afrontas indiscutíveis à autonomia acadêmica e científica. Fitzpatrick
139
HELLER e NEKRICH, 1992, p.56.
140
FITZPATRICK, Sheila, op.cit. 1970, p.110.
141
FITZPATRICK, Sheila, op.cit. 1970, p.26-59, passim.
142
Para maiores detalhes e referências relativas a este assunto Cf. FITZPATRICK, 1992, p. 37-64.
87

apresenta diversos exemplos de resistência ao comissariado por parte dos professores em


diversas áreas de conhecimento, incluindo as ciências sociais, e demonstra as diferentes
técnicas adotadas pelo comissariado com o intuito de sobrepujar a resistência sem suscitar
rupturas no processo de ensino – entre as quais pode-se exemplificar a contratação de
professores marxistas pelo comissariado, a criação de novos institutos superiores destinados
ao ensino da ideologia marxista e mesmo a deportação de professores 143. A autora aponta
ainda como um dos principais desafios diante do comissariado a falta de professores
bolcheviques e as inclinações liberais ou moderadas da grande maioria do corpo docente
universitário russo:
Durante os anos da guerra civil quase todos os professores encaravam o novo
regime com profunda hostilidade
Historiadores soviéticos atribuem esta hostilidade às filiações burguesas dos
professores (...). Muitos dos professores eram Kadetes, haviam sido politicamente
ativos antes de outubro, e alguns indubitavelmente continuavam a exercer
atividades políticas em segredo contra o novo regime.
O mais importante conflito entre professores e o novo regime eclodiu na
Universidade de Moscou em relação à questão da autonomia de instituições de
ensino superior. Até o outono de 1920, o Narkompros e Novikov, reitor da
universidade, ainda tentavam alcançar uma conciliação. Eles até então não haviam
sido bem sucedidos, essencialmente, devido à persistência de professores Kadetes
no engajamento de atividades anti-soviéticas e na insistência da Cheka em prendê-
144
los .

No âmbito artístico a resistência ao Narkompros decorreu tanto de discordâncias


ideológicas quanto de reações a medidas que eram entendidas como prejudiciais aos
interesses e motivações individuais destes artistas. Fitzpatrick delineia longamente a batalha
empreendida por Lunacharsky – e especialmente outros membros mais radicais do
Narkompros, como o Proletkultista Kerzhentsev e o construtivista Meyerkhold145 – pela
aceitação e, em especial, pela submissão dos teatros imperiais à autoridade do Narkompros.
Instituições de magnitude cultural incomparáveis durante a Rússia Imperial, os grandes
teatros das capitais – Bolshoi e Malyi Teatr(y) em Moscou, Mariinsky, Mikhailovsky e
Aleksandrinsky em Petrogrado – demonstraram ferrenha oposição aos esforços
centralizadores do Narkompros, recusando-se primariamente a qualquer comprometimento de

143
FITZPATRICK, 1992, p.41
.
144
FITZPATRICK, Op. Cit. p.37-38 passim.
145
No momento de seu apontamento para a direção do TEO, Meyerkhold demonstrar-se-ia excepcionalmente
radical em relação à questão da autonomia institucional no campo teatral. Lançando o que seria conhecido no
âmbito teatral como “Outubro Teatral”, Meyerkhold buscaria – sem sucesso – a submissão de tais teatros à
jurisdição do TEO. Cf. CLARK, Katerina. Petersburg. Crucible of Cultural Revolution. Cambridge: Harvard
University Press, 1995, p.114-115
88

sua autonomia e desafiando, em certos casos abertamente, a autoridade do Narkompros –


como demonstra Fitzpatrick:
Na medida em que Batyushkov [administrador geral dos teatros estatais de
Petrogrado] não havia reconhecido o governo bolchevique, ele também não
reconheceu a sua demissão [ordenada por Lunacharsky]. Ao invés disso, ele instruiu
que os 160.000 rublos remanescentes das reservas do teatro fossem distribuídos
entre artistas e funcionários do teatro. Lunacharsky, indignado, escreveu que até que
o Estado fosse ressarcido, os teatros não receberiam qualquer subsídio estatal, e
ameaçou ‘aquele que desse instruções contrárias’ com o Tribunal Revolucionário.
Batyushkov, não menos indignado, desafiou Lunacharsky a prendê-lo.
(...) Ziloti [então administrador do Mariinsky] se recusou a entregar as chaves da
frisa imperial, ao menos que a requisitassem ‘os representantes de um governo
legitimo’.
Batyushkov e Ziloti expressaram os sentimentos da maioria dos artistas dos teatros
Aleksandrinsky e Mariinsky. ‘Se o Comissário do Povo Lunacharsky entrar no
teatro Mariinsky durante uma performance’, anunciou o regente Albert Coates, ‘eu
146
imediatamente repousarei minha baqueta e interromperei a minha regência’.

Tal como nas grandes instituições acadêmicas russas, que também se consideravam
“grandes demais” para serem subjugadas por este novo governo de forma tão radical e
unilateral, tais teatros justificariam sua recusa à Revolução em níveis de ordem ideológica e,
especialmente, artística. No âmbito ideológico, dentre outras discordâncias, aponta-se o
primordial ponto de conflito: a natureza e o propósito da arte. Os diretores de tais teatros, bem
como tantos outros artistas russos durante estes primeiros anos, entendiam a arte de uma
maneira que geraria conflitos com o direcionamento político da ditadura do proletariado –
aquela de “arte pela arte”, na qual a arte tinha um papel abstrato e quase espiritual de
engrandecimento e amadurecimento das sensibilidades do homem.
A linha partidária, por outro lado, entendia a arte como subproduto das relações
sociais e econômicas e consequentemente não deveria ser entendida à parte, mas sim
produzida – e gerida – de acordo com os direcionamentos da Revolução. Ainda que durante a
guerra civil o partido não tenha sido excepcionalmente rigoroso em termos de controle e
vigilância no âmbito artístico, era peremptória a vigilância e a hierarquização destas
instituições, que deveriam ser submetidas à autoridade do Narkompros, deixando a cargo do
comissariado definir o grau de autonomia que seria concedido a cada uma delas. Esta postura
se tornaria nítida diante da clara reprovação de Lunacharsky – reconhecido mesmo entre os
mais ferrenhos opositores do partido como um de seus membros mais moderados e
simpatizantes a instituições como tais teatros imperiais – diante da possibilidade de se criar
um Comissariado das Artes, alheio à jurisdição política do Narkompros147.

146
FITZPATRICK, 1970, p.117-118.
147
Ibid., p.113.
89

No campo das discordâncias práticas, a lista também seria longa; a submissão ao


Narkompros implicaria o controle do mesmo sobre todos os aspectos da produção de tais
teatros, a aplicação dos valores do partido – e não dos supostos grandes mestres que então
dirigiam tais teatros – para a escolha de obras e elenco, a organização das apresentações e
outras considerações. Especialmente, a recusa destes estabelecimentos também foi afetada por
três outras considerações: (1) eram instituições de tal magnitude que seus diretores
presumiram – corretamente – que o partido (ou ao menos Lunacharsky) não se atreveria a
dissolvê-las; (2) porque a aceitação de tal autoridade estatal reduziria consideravelmente as
recompensas materiais ao diretores e outros indivíduos envolvidos – lembremos que tais
teatros eram grandes instituições voltadas principalmente para os refinados gostos da elite
imperial, e gozavam de grande prestígio e privilégio há poucos meses, na medida em que sua
grandeza foi reconhecida e mantida pelo Governo Provisório, que pouco fizera em termos de
intervenção direta sobre as atividades de tais instituições durante sua existência – e (3) que
muitos, incluindo aqui tais diretores, não acreditavam na sobrevivência da revolução,
especialmente em decorrência do apoio ocidental aos exércitos brancos, bem como dos
reveses iniciais sofridos pelo Exército Vermelho.
A resistência oferecida por tais teatros não fora uma exceção, mas sim uma
manifestação sintomática da resistência que encontrava o Narkompros em suas
movimentações iniciais no âmbito cultural russo. Muitos dos teatros que aceitaram seu
atrelamento ao Narkompros fizeram-no primariamente por questões materiais, pela
necessidade de financiamento, como reconheceria o próprio comissariado148.
Em relação aos artistas construtivistas, sua presença no interior do Narkompros como
um todo não foi majoritária, tampouco suas propostas nos subdepartamentos artísticos
demonstravam grande afinidade com aquelas advindas de outros subdepartamentos. Em
questões educacionais, por exemplo, havia maior envolvimento de membros do partido
filiados antes de outubro, não apenas porque estas questões atraíram com maior frequência a
atenção de outros órgãos e do Sovnarkom, mas porque dentre os membros anteriores a
outubro havia certamente um número maior considerado capaz de lidar com questões
educacionais do que com questões artísticas.
No campo artístico, por outro lado, a falta de membros do partido julgados aptos ao
provimento de posições de liderança de tais subdepartamentos, acrescida ao singular

148
FITZPATRICK, 1970, p.142.
90

voluntarismo de um dos segmentos artísticos russos e à indiferença ou hostilidade dos demais,


resultou em considerável participação de artistas deste segmento em três dos cinco
subdepartamentos artísticos do Narkompros – TEO, MUZO e IZO149. Nestes três
departamentos, artistas de orientação construtivista teriam cargos de chefia durante o período
da guerra civil: TEO fora conferido a Meyerkhold em 1919 após os repetidos insucessos do
Narkompros em alcançar uma conciliação satisfatória com as instituições teatrais da capital;
MUZO seria liderado por Arthur Lourie, compositor signatário de manifestos futuristas pré-
revolucionários, cujos experimentos musicais incluem a tentativa de introduzir o conceito de
cubismo à composição musical; IZO, por sua vez, era liderado por David Shterenberg,
também reconhecidamente um pintor simpatizante da vanguarda, que após 1917 defenderia a
orientação utilitária que alicerçava o construtivismo. Todos estes subdepartamentos possuíam
em seus quadros outros artistas afins dos acima citados, em especial o IZO, no qual um
grande número de artistas construtivistas se concentraria: Malevich, Tatlin, Rodchenko,
Popova, Stepanova, Nadezhda Udaltsova, Olga Rozanova150 Natan Altman, El Lissitzky,
entre outros – ressaltando-se também que Tatlin e Altman chefiariam as seções do IZO de
Moscou e São Petersburgo, respectivamente151.
A exceção em relação à permeabilidade destes subdepartamentos ao construtivismo
parece ter sido o LITO, ainda que motivos que justifiquem esta exceção não caibam na
discussão aqui pretendida. Em qualquer caso, a influência do LITO em questões de natureza
literária seria reduzido em decorrência da competição de outras instituições sobre este campo
– as quais possuíam recursos passíveis de serem usados para a publicação de livros –, da
criação do Gosizdat em 1918152, da existência de outras editoras parcialmente autônomas em

149
De acordo com Fitzpatrick o setor FOTO-KINO fora chefiado por P. Voevodin. No entanto, pouco foi
encontrado no presente esforço de pesquisa em relação às ações ou composição deste departamento. Em relação
aos construtivistas, aqueles que se envolveriam com tais áreas (como Rodchenko) futuramente, parecem ter
afluído inicialmente ao IZO, e posteriormente seriam ativos na área de fotografia através de contribuições a
periódicos especializados específicos (como Kino-fot e Sovetskoe Kino). Note-se aqui também que tais artistas se
envolveriam nestes meios de produção artística durante a vigência da NEP, após sua remoção da estrutura do
Narkompros – vide abaixo.
150
A participação de Rozanova no interior do Narkompros seria curta, no entanto, na medida em que faleceu em
1918.
151
GRAY, 1971, p.230.
152
Gosizdat (Gosudarstvennoe Izdatelstvo): Editora Estatal criada no interior do Narkompros em 1918. Tornar-
se-ia autônoma no interior da estrutura do Narkompros em 1919, com orçamento e organização desvinculados do
colegiado do Narkompros. A despeito das dificuldades operacionais que sofreria em seus primeiros anos, o
Gosizdat era o principal agente regulador no campo da imprensa, responsável pela aprovação de quaisquer
manuscritos que fossem ser publicados de forma privada – sem financiamento estatal. Cf. FITZPATRICK, 1970,
p.133-136.
91

relação ao aparato estatal e da maior atenção – e consequentemente da moderação – dada pelo


governo a assuntos de ordem literária153. No caso dos outros subdepartamentos acima
mencionados, entretanto, não havia competição ou escrutínio alheio comparável àquele que se
apresentava ao LITO, o que conferiria a tais departamentos maior autonomia e impacto sobre
suas respectivas áreas.
Neste momento é importante ressaltar justamente o estado geral dos assuntos artísticos
e culturais, do ponto de vista político, durante os primeiros anos de existência do Narkompros
e do governo soviético. A formação deste governo, confrontada com os desafios da guerra
civil, com a necessidade de expurgar-se da nova estrutura os vícios de sua predecessora, e
com os demais desafios que pareciam ameaçar diretamente sua existência, viu-se por um lado
limitada a observar a difusão do empreendedorismo cultural como uma circunstância
secundária; por outro lado, a direção do mesmo governo acabou por reforçar esta difusão
como consequência de seu inicial direcionamento orgânico que visava fomentar o nascimento
natural de uma cultura proletária.
Entre 1917 e 1921 os construtivistas experimentaram o auge de sua influência sobre o
campo de produção artística, e buscaram se aproveitar desta autonomia para consolidar as
bases que os permitiriam delinear os caminhos da construção da cultura soviética sem o
impedimento de artistas conservadores que, a seu ver, não eram capazes de contemplar que o
futuro da arte na sociedade comunista jazia em sua extinção. A proeminência que gozaram no
âmbito administrativo cultural durante estes primeiros anos os permitiam grande influência
potencial, haja visto que pouco se havia teorizado sobre a relação entre estado e arte nesta
nova sociedade – e menos ainda que gozasse de consenso unânime entre a liderança partidária
– resultando em um campo consideravelmente virgem sobre o qual tais artistas teriam
excepcional influência modeladora154.
No entanto, logo se demonstrou a tais artistas que o próprio partido bolchevique, ainda
que marxista, divergia de forma profunda com suas visões e projetos, o que se tornaria mais e
mais nítido durante a década de 1920. De forma sucinta Von Geldern caracteriza esse período,
ao afirmar que estes “artistas receberiam oportunidades que antes nunca haviam sonhado
receber, e que em breve deixariam de existir”155. Posteriormente, de forma mais detida e
esclarecedora, ressalta o descompasso que se observaria entre tais artistas e o direcionamento

153
FOX, 1992, p.1045.
154
GELDERN, 1993, p. 27.
155
Ibid., p.15.
92

partidário, discutindo especificamente a divergência entre ambos em relação ao patrimônio


histórico cultural russo pré-revolucionário, e de forma parcialmente discutível acusando tanto
o partido quanto os artistas de uma interpretação incompleta do desafio cultural que
representava a revolução:
A rejeição da política do passado era mais simples do que a rejeição de sua cultura.
Muitos dos bolcheviques mais velhos, como Lenin e Lunacharsky, viam o legado
cultural como um recurso e defendiam a preservação de tudo aquilo que pudesse
servir a nova ordem. Cultura progressiva poderia ser resguardada e cultura
reacionária havia de ser descartada. Os Proletkultistas e futuristas mais radicais, pelo
contrário, viam o passado como peso morto. Eles não o consideravam passível de
redenção (...). Nenhum dos dois lados parecia entender o dilema plenamente. Lenin
via a tolice da retórica radical, porém acreditava de forma ingênua que o passado
poderia ser explorado de forma seletiva. Seu desejo de preservar o Teatro Bolshoy e
as óperas de Tchaikovsky repousavam sobre a premissa de que um ambiente
socialista iria dissolver suas associações ao velho regime. Os radicais percebiam a
teia pegajosa de associações que poderiam embaraçar uma cultura socialista
construída sobre tradições pré-existentes, porém eles não poderiam criar uma cultura
156
a partir do vácuo

Futurismo, Construtivismo, Esquerdismo: as conotações políticas da nomenclatura artística


(1917-1925)

Confrontados com a vasta quantidade de artigos, manifestos e declarações escritos


durante a guerra civil e o período de vigência da NEP tratando de questões artísticas, o leitor
há de se defrontar com três termos recorrentes, utilizados em diferentes contextos para
designar largamente o mesmo fenômeno, a vanguarda russa. São estes: Futurismo,
Construtivismo e Esquerdismo. Inicialmente, poder-se-ia atribuir a esta diversidade uma
causa diacrônica, o que implicaria em concluir que tais diferentes denominações se seguiram
diacronicamente na medida em que o fenômeno que as mesmas descreviam se transformava
com o passar do tempo. Esta conclusão seria apenas parcialmente correta: de fato, os
significados destas três definições sofreriam alterações durante os primeiros do regime
soviético; no entanto, em contradição com a hipótese causal diacrônica, uma definição não
suplantou completamente a sua antecessora. Observa-se, na verdade, a coexistência sincrônica
destas denominações, cujos significados no campo de discussão artística e cujas conotações
políticas sofreriam alterações durante seu período de uso. Dessa forma, é possível identificar
as conotações acima aludidas, e a partir de tal operação deduzir as intenções que motivaram
em diferentes momentos o uso desta ou daquela denominação – o que permite,

156
GELDERN, 1993, p.72.
93

consequentemente, maior entendimento dos discursos e escolhas presentes nos escritos aqui
contemplados.
Futurismo foi o termo que antes da revolução havia se tornado sinônimo de vanguarda
na Rússia157. Imediatamente após os eventos de outubro de 1917, referência à produção dos
artistas de orientação vanguardista foi feita através desta denominação, tanto entre seus
proponentes quando – e especialmente – por seus críticos. Na medida em que o futurismo pré-
revolucionário pouco teve em termos de coesão programática, sendo na verdade o resultado
de uma convergência daqueles artistas que tinham como principal diretriz a investigação e
inovação formal a despeito do conteúdo158, é compreensível que, em especial aos olhos da
crítica artístico-literária contemporânea, tais produções fossem agrupadas por sua natureza
radical e, para tantos críticos, ininteligível ou bruta. Nos escritos pré-revolucionários dos
próprios vanguardistas, observa-se uma delimitação mais nítida entre diferentes grupamentos
desta vanguarda – Raionismo, Suprematismo, Neoprimitivismo etc. – porém mesmo assim de
uma maneira que parece tacitamente incluir estas (bem definidas) propostas no plano geral do
Futurismo159 – ainda que como sucessoras do mesmo160.
No decorrer da guerra civil, entretanto, pode-se observar um gradual desaparecimento
do termo entre os escritos de artistas vanguardistas, dando lugar a denominações menos
abrangentes: construtivismo seria utilizado com fins de definição de uma determinada
proposta artística, enquanto esquerdista teria o principal intuito de identificar a vanguarda a
um determinado nicho do escopo político soviético.
O termo Construtivismo seria aplicado como denominação de uma orientação artística
específica apenas em 1921; entretanto, como já foi discutido, a noção de construção aplicada

157
Cf. BOWLT, 1988, p.xxix; GELDERN, 1993, p.65.
158
Mesmo no interior de grupos como o Hiléia pode-se notar consideráveis discrepâncias entre as produções de
seus membros – as quais eram entendidas por seus autores como exemplos de uma mesma proposta justamente
por partilharem essencialmente esta diretriz formalista.
159
MARKOV, 2006, p.165.
160
Pode-se perceber o estabelecimento destas conexões, por exemplo, nos manifestos de Larionov e Malevich
que lançaram as bases de suas respectivas formulações artísticas específicas. No caso de Larionov, seu manifesto
não faz qualquer menção de superação do futurismo, demonstrando aquilo que é específico ao raionismo e dando
a entender a sua coexistência com as demais produções essencialmente futuristas – Cf. LARIONOV, Mikhail e
GONCHAROVA, Natalya. Rayonists and Futurists: A Manifesto (1913) in: BOWLT, 1988, p. 90-93. No caso
de Malevich, por outro lado, observa-se na bombástica retórica do manifesto o suprematismo como um novo
estágio do futurismo, reconhecendo naquele a presença e contribuição do último – Cf. 160 MALEVICH, K. From
Cubism and Futurism to Suprematism: The New Realism of Painting (1915) in: RAILING, Patricia.
Malevich on Suprematism. Iowa: Museum of Art, 1999, p.25-42.
94

ao campo artístico, utilizada para descrever uma abordagem pragmática e utilitária à produção
artística, já podia ser observada em 1918. A cunhagem do termo, portanto, foi o resultado de
uma utilização cada vez mais recorrente de vocábulos como “útil”, “produção”, “fábrica” e
“construção” presente nos manifestos e nas produções artísticas dos primeiros anos que
seguiram a revolução.
Tal foco utilitário evidencia uma nítida mudança de orientação na produção e na
teorização artística de tais indivíduos, na medida em que antes da revolução mesmo Tatlin não
demonstrava em suas produções uma preocupação utilitária explícita, mas sim uma tendência
analítica formal que permite associá-lo ao futurismo – em outras palavras, não parece em
momento algum, em suas obras ou escritos, que a intenção do artista é a de construir objetos,
mas sim a de investigar as propriedades formais de materiais industriais de modo a aplica-los
à produção artística – associada por Gray às colagens de Picasso que a partir de 1912
incluiriam materiais tridimensionais161.
Da mesma maneira, enquanto os números de artistas que apoiariam a arte utilitária se
multiplicariam rapidamente após 1917, antes da revolução observa-se entre os membros da
vanguarda uma maior aceitação do Suprematismo de Malevich – dentre os artistas que
produziram obras a partir das teorizações de Malevich pode-se mencionar Rozanova, Popova,
Stepanova, Ivan Puni, Rodchenko, Lissitzky, Altman e outros, enquanto Tatlin encontraria
especialmente em Rodchenko – que teria contato com ambas propostas antes da revolução –
apoio aos seus experimentos materiais antes da revolução162. Entre 1918 e 1921, por outro
lado, o vínculo entre a produção vanguardista e a área produtiva pode ser observado de forma
recorrente nos escritos destes artistas, expresso de forma naturalizada – como se houvesse
sido a base de suas produções pré-revolucionárias.
Este súbito direcionamento rumo ao utilitarismo e o afluxo de tantos membros da
vanguarda em sua direção foi um processo parcialmente direcionado por questões de cunho
político, no qual tais artistas buscaram construir um elo entre a sua produção e a ideologia
marxista, buscando dois objetivos principais: a integração à causa revolucionária e a
superação de suas origens pré-revolucionárias e, consequentemente – ou especialmente –
burguesas.
Não se sustenta uma crítica que atribua a adoção do utilitarismo à produção
vanguardista a considerações de ordem puramente prática, como resultados de simples

161
GRAY, 1971, p. 174-176.
162
Ibid., p. 206-209.
95

oportunismo político; é nítida na produção e no ímpeto destes artistas, bem como reconhecido
por Lunacharsky e mesmo Trotsky – que reconhecia os méritos da vanguarda, mas certamente
não era um fã163 – a identificação com a causa revolucionária, ainda que o alinhamento
específico ao marxismo antes da revolução não seja aparente. Em outras palavras, ainda que
em sua maioria não houvessem se declarado bolcheviques antes de outubro, era nítido nos
escritos e nas produções destes artistas que os mesmos se identificavam essencialmente com a
ideia de uma revolução social. Tendo esta sido realizada pelos bolcheviques em 1917, pode-se
observar a adoção da causa vitoriosa por parte da vanguarda, e da subsequente reformulação
das bases de sua produção com intuito de contribuir no campo das artes com o processo
revolucionário.
Afirmada a sinceridade presente na identificação entre vanguarda e revolução, não se
pode desconsiderar, por outro lado, questões de ordem prática que, no contexto pós-
revolucionário, ajudam a entender a intensidade e abrangência da adoção do utilitarismo por
parte da vanguarda agora soviética. Como há de se ver, os primeiros quinze anos de existência
do regime soviético foram caracterizados no campo artístico pela competição entre diferentes
orientações artísticas por hegemonia na esfera artística soviética. Neste contexto de
competição, a vanguarda encontrar-se-ia em desvantagem se adotados os parâmetros artísticos
pré-revolucionários, nos quais já havia sido estabelecida a superioridade de outras orientações
artísticas em termos de recepção pelo público; a aplicação do utilitarismo à produção artística,
por outro lado, oferecia três desdobramentos à causa vanguardista neste embate: 1) fortalecia
o vínculo que se buscava construir com a ideologia revolucionária; 2) justificava a ênfase
formal e experimental do futurismo pré-revolucionário e 3) alterava os parâmetros da
discussão artística, reconfigurando o embate de modo a colocar a vanguarda em posição de
superioridade. Esta última característica deve ser ressaltada, pois também o é nos manifestos
de tais artistas: estes afirmavam de forma recorrente que as demais propostas artísticas eram
contrarrevolucionárias não apenas por serem ideologicamente incompatíveis com a revolução,
mas por serem obsoletas. Transformando a arte em trabalho, o discurso construtivista
desafiava seus concorrentes a apresentarem semelhantes afinidades ideológicas, contando

163
“É verdade que o hiperbolismo reflete até certo ponto o furor de nosso tempo, mas não se justifica seu
emprego indiscriminado na arte. Não se pode gritar mais forte que a guerra ou a Revolução. É mais fácil
sucumbir. O senso de medida na arte assemelha-se ao da realidade em política. A principal falta da poesia
futurista, mesmo nas suas melhores obras, é a falta do senso de medida: ela perdeu a medida dos salões e ainda
não encontrou a medida das praças públicas. (...) Mayakovsky muitas vezes grita quando deveria falar.” Cf.
TROTSKI, 2007, p.123.
96

com que a maior identificação deles com os cânones e paradigmas artísticos pré-
revolucionários os impediriam, em termos formais, a fazê-lo.
O utilitarismo seria característica recorrente das propostas artísticas delineadas por
membros da vanguarda durante os primeiros anos da revolução, mas não a única. No entanto,
tornar-se-ia cada vez mais frequente nos escritos de um número cada vez maior de artistas, na
medida em que outros aspectos das formulações vanguardistas pós-1917 demonstrar-se-iam
especialmente impopulares à direção do partido durante a guerra civil, sendo basicamente
abandonados após 1921.
Como exemplo pode-se mencionar a recorrente exigência de se destruir toda a herança
artística e cultural russa pré-revolucionária. Tal ímpeto destrutivo, presente no futurismo pré-
revolucionário, foi entendido e justificado por seus proponentes após 1917 a partir da sua
interpretação da ideologia marxista: para o desenvolvimento da sociedade proletária é
necessário que se expurgue da mesma as relações de classe pré-revolucionárias, bem como as
estruturas e construções culturais que resultaram das mesmas, e que as mantinham.
Os anos da guerra civil demonstrariam, entretanto, que a liderança política da
revolução não partilhava esta intenção destrutiva, voltando-se na verdade à conservação desta
herança tanto porque a sua extinção dificultaria o processo revolucionário – na medida em
que seria uma causa de insatisfação popular que não representaria qualquer ganho imediato à
causa revolucionária – quanto porque sua manutenção era entendida como uma das variáveis
na equação que resultaria na formação de uma cultura revolucionária. Diante desta
divergência, pode-se observar o paulatino abandono desta linha de argumentação nos escritos
vanguardistas.
O mesmo pode se observar em relação ao aspecto experimental e abstrato que era
característico ao futurismo pré-revolucionário. Em uma das primeiras associações formuladas
entre futurismo e comunismo, Altman associa a acusação de ininteligibilidade e barbarismo
da produção futurista feita pela crítica artística pré-revolucionária como resultado de um
conservadorismo pequeno-burguês semelhante àquele que antes de 1917 faria juízos políticos
semelhantes em relação às propostas bolcheviques164. O que implicitamente sugere Altman é
que o futurismo, tal como o bolchevismo, é descrito de forma negativa pelas forças que visam
por interesse próprio reprimi-lo, porém se conferidas aos seus proponentes as condições
necessárias para a sua execução plena, a resultante revolução levaria a produção artística a um
nível mais elevado. Entre 1918 e 1921 observa-se um processo semelhante àquele descrito

164
ALTMAN, Natan. Futurism and Proletarian Art (1918) in: BOWLT, 1988, p.161-163.
97

acima: em desacordo com o discurso observado nos escritos destes artistas, membros do
partido demonstrariam frequentemente opiniões negativas às produções abstratas dos
primeiros anos pós-revolucionários – especialmente quando estas compuseram projetos de
decoração pública e de manifestações cívicas165 – levando também ao seu gradual
desaparecimento nos escritos de tais artistas.
A construção, portanto, foi o aspecto principal da vanguarda soviética em formação,
não apenas por sua afinidade com a ideologia marxista, mas porque representou um front
argumentativo da vanguarda que não encontrou resistência política semelhante às demais
propostas acima descritas – pelo contrário, encontraria apoio, expresso por exemplo na
formação do Vkhutemas (a seguir)166. Através de seu recorrente uso, os proponentes da arte
utilitária podiam sempre lembrar seus leitores e espectadores das origens burguesas, do
anacronismo e do aspecto contemplativo da produção artística de todas as demais orientações
– incluindo aquelas autodenominadas proletárias!167 O construtivismo, portanto, estava “em
construção” entre os anos de 1917 e 1920, e como há de se ver adiante, sua formalização em
1921 decorreria justamente de um reflexo defensivo, na medida em que em tal momento
(NEP) muitos dos outros aspectos da produção vanguardista – ou esquerdista, como veremos
a seguir – pareciam especialmente vulneráveis a ataques de artistas de outras orientações.
A associação da vanguarda artística com a esquerda fora realizada antes da revolução,
justamente pelos críticos que consideravam a produção futurista de forma negativa. A
utilização da terminologia política visava justamente associar os brados destrutivos dos
manifestos futuristas ao radicalismo das orientações ideológicas da esquerda pré-
revolucionária. Após a revolução, entretanto, observa-se a inversão do significado da
esquerda no dicionário político russo, e a correspondente inversão do uso da terminologia na
discussão artística russa. Gradualmente pode se observar a “adoção” da esquerda pela
vanguarda – que antes da revolução nunca havia explicitamente recusado tal associação,
porém também não a havia explicitamente ratificado – culminando com a formalização do
Front Esquerdista das Artes (Lef), periódico publicado pela primeira vez em 1923, e que
sobreviveria em sua segunda versão (Novyi Lef) até 1928. Esta associação seria utilizada por

165
GELDERN, 1993, p. 96-98.
166
Vkhutemas (Vyshie KHudozhestvenno-Tekhnicheskie Masterskie): Ateliês Artísticos-Técnicos Superiores,
criado em 1920, em Moscou, renomeado Vkhutein (Vyshie KHudozhestvenno-Tekhnicheskii Institut) em 1928 e
extinto em 1930. Cf. LODDER, 1983, p.114.
167
Aqui o ponto de exclamação é um subproduto da influência dos manifestos lidos para a composição desta
discussão.
98

diversos artistas e escritores associados à produção construtivista como forma de estabelecer


uma ligação ideológica entre a produção destes artistas e a causa revolucionária, como há de
se ver a seguir. Entre aqueles que compunham a crítica artística pré-revolucionária
responsável pela associação entre vanguarda e esquerda, de forma igualmente compreensível,
observa-se o desaparecimento desta utilização, a não ser quando usada de modo a questionar a
sua aplicabilidade.
A denominação “esquerdista” representa um interessante desenvolvimento na
discussão artística soviética na medida em que sua função é externa a tal campo de produção.
A mera existência deste termo, aplicado a um grupo artístico com intuito de defini-lo, é
indicativo da importância de considerações de natureza política nos desdobramentos artísticos
soviéticos do período, e que justificação de tal ordem parecia cada vez mais necessária aos
construtivistas em sua campanha contínua para serem designados os oficiais porta-estandartes
da revolução cultural. Através do uso de tal categoria, estes artistas poderiam buscar justificar
a validade de suas produções em um nível antes ideológico do que artístico, permitindo
inclusive a unificação de diferentes variações da produção construtivista, de modo a combater
semelhante tendência encabeçada pela VAPP168 no âmbito da literatura proletária.
Adicionalmente, sua abrangência permitia a tentativa de justificar os novos rumos que
tomavam as produções de tais artistas durante o período, os quais cada vez mais buscavam
inserção no âmbito industrial na medida em que perdiam terreno no campo de produção
artística stricto sensu – indicando também o insucesso da campanha vanguardista prévia de
redefinir os limites do que se entende por arte, ou mesmo de sua abolição.
A conotação política dos termos acima é reforçada na medida em que se observam as
intenções específicas por detrás de seu uso. Todas as três possuem, de uma forma ou de outra,
um papel na discussão das origens do movimento vanguardista, especificamente de sua
origem de classe, na medida em que tal tópico tornar-se-ia cada vez mais importante durante a
década de 20 como um critério de avaliação do grau de “lealdade revolucionária” de
determinado indivíduo ou grupo. O relativo abandono do futurismo e a gradual adoção de
termos alternativos culminando no construtivismo por parte de seus proponentes, por um lado,
e a manutenção de seu uso por parte de seus críticos resulta da tentativa de esquecer ou
lembrar, respectivamente, as origens pré-revolucionárias das proposições da vanguarda. Por
um lado, o crescente front proletário encabeçado pela VAPP/RAPP exaltaria sua própria

168
VAPP (vserossiiskaya Assosiatsiya Proletarskykh Pisatelei): Associação de Escritores Proletários d(e tod)a
Rússia. Em 1925 renomear-se-ia RAPP (Rossiyskaya Assotsiatsiya Proletarskikh Pisatelei), que se pode traduzir
literalmente como Associação Russa de Escritores Proletários.
99

origem como aquilo que justificaria a sua hegemonia no campo das artes, classificando
futuristas e as demais orientações pré-revolucionárias como companheiros de viagem,
destinados à extinção assim que a Revolução não mais precisasse deles; por outro, através da
adoção do utilitarismo e pela identificação imediata explícita com a causa revolucionária, a
vanguarda aparentemente buscava afastar-se de tal possível acusação, e rapidamente “apagar”
suas “origens burguesas”169.
A utilização do vocábulo “esquerdista” possui semelhante intenção, na medida em que
demonstra a tentativa de suplantar a discussão relativa às origens das propostas vanguardistas,
transferindo-a ao mérito de adequação à causa revolucionária. Entretanto, como há de se ver
na discussão do período de vigência da NEP, tal critério também não seria favorável aos
construtivistas, diante dos novos rumos adquiridos pela causa revolucionária com a qual eles
pretendiam justificar seu alinhamento. Na medida em que o discurso radical da esquerda
artística se tornava cada vez mais dissonante do direcionamento tomado pelo Sovnarkom,
seria a vez dos críticos usarem a esquerda como modo de atacar tais artistas. No período
político conturbado que permeou a crescente debilidade e eventual morte de Lenin, com a
configuração e subsequente vilipêndio da Oposição de Esquerda, tais ocorrências seriam
refletidas nas conotações e nos subsequentes usos desta terminologia no campo artístico.
Aquilo que fora visto há poucos anos como um trunfo por parte da vanguarda tornar-se-ia,
após 1927, uma fraqueza a ser explorada por seus rivais.

Construtivismo de Guerra (1917-1921)

Durante a guerra civil a política soviética foi ditada pela diretriz que seria denominada
Comunismo de Guerra, que se resumia a uma política de priorização quase total de questões
referentes à vitória sobre os exércitos brancos, e na relegação a um plano secundário – ou
terciário – questões de outras ordens. Trotsky definira em 1924 de forma clara e concisa a
importância dada a assuntos culturais e artísticos durante a guerra civil: “Se o proletariado
russo, após a tomada do poder, não tivesse criado seu próprio exército, o Estado soviético há
169
Aqui deve ser ressaltado que, estritamente falando, a acusação do futurismo como sendo uma proposta
artística de “origem burguesa” é parcialmente uma decorrência do sentido que tomara tal termo no contexto pós-
1917, no qual “burguês” tornar-se-ia cada vez mais sinônimo de “pré-(contrar) revolucionário”. Ironicamente,
antes da Revolução membros da crítica artístico-literária russa atribuiriam a aparente falta de talento,
sensibilidade e refinamento que observavam na produção futurista – e que os levou a identificar tal proposta com
a esquerda revolucionária – às modestas origens de alguns de seus membros, como Malevich e Tatlin.
100

muito não existiria. E nós não pensaríamos nas questões econômicas, e muito menos nos
problemas da cultura.”170. Trotsky reforça ainda em outros momentos o seu depoimento, no
qual afirma que o Comunismo de Guerra relegara a terceiro plano os assuntos de ordem
cultural, considerados menos urgentes do que questões de ordem econômica, as quais por sua
vez não podiam partilhar a priorização dada ao principal objetivo governamental do período, a
vitória do exército vermelho. Em outras palavras, afirmara que o enriquecimento cultural da
sociedade proletária só se tornaria viável se antes se promovesse um desenvolvimento
material que a servisse de alicerce, e que tal desenvolvimento econômico só seria possível
após a eliminação total dos segmentos contrarrevolucionários171. Consequentemente, o
Comunismo de Guerra buscava assegurar a total imposição da verdadeira voz revolucionária
russa sobre aqueles que buscavam silenciá-la ou subvertê-la – de acordo com a perspectiva
dos bolcheviques, é claro.
A posição do Narkompros em relação à produção artística desta nova sociedade que se
formava, entretanto, se opõe à natureza do Comunismo de Guerra quase que diametralmente.
Enquanto a guerra civil representava a tentativa de imposição da autoridade comunista sobre
os seus rivais políticos, o Narkompros adotaria uma política experimental e conciliatória,
receptiva a todas as manifestações artísticas existentes, esperando a partir da múltipla
coexistência das mesmas uma formação orgânica da verdadeira arte do proletariado – um
direcionamento que gradualmente seria motivo de críticas contra o Narkompros, acusado de
demonstrar “tolerância excessiva à intelligentsia”172. – críticas estas que se tornariam oficiais
em 1928, como veremos no capítulo IV. Visando fomentar a formação e o desenvolvimento
de uma cultura soviética autóctone, a diretriz imposta pelo comissariado foi, portanto, a de
encorajamento da coexistência entre todas as propostas artísticas existentes – excetuando-se
aquelas consideradas contrarrevolucionárias – acompanhada do reconhecimento do valor do
legado artístico revolucionário, na medida em que “a nova arte proletária e socialista só pode
ser construída sobre o fundamento de todas as aquisições do passado (...). Neste legado do
passado devem ser impiedosamente expurgadas todas as impurezas e toda a depravação da
decadência burguesa” 173. Tal postura não foi uma exceção observada no campo das artes, mas

170
TROTSKI, 2007, p. 33
171
Ibid., p.34
172
FITZPATRICK, 1992, p.91
173
LUNACHARSKY, Anatoly. Tezisy khudozhestvennogo sektora Narkomprosa ob osnovakh politiki v
oblasti iskusstva, in: TOLSTOI, 2010, p. 143.
101

sim uma tendência observável em outras áreas, como na reformulação educacional da


sociedade russa:
Havia uma grande variedades de experimentos acontecendo durante os anos da
guerra civil, e estes eram, é claro, intencionais por parte do Narkompros. O
comissariado não estava procurando por uma única planta da escola do futuro. O que
valorizava em suas escolas experimentais era um espirito de liberdade, de atividade
comunitária, e talvez acima de tudo, de esperança. Nos piores períodos da guerra
civil Lunacharsky, Krupskaya e mesmo às vezes Lenin visitaram os jardins de
infância e as colônias infantis e sentiram que presenciavam o início de um mundo
174
novo .

Em outras palavras, a posição política adotada pelo Narkompros – com o respaldo do


Sovnarkom – resumia-se na constatação de que uma cultura especificamente soviética ainda
não poderia existir, tendo a revolução eclodido há tão pouco tempo. Entendia-se o processo de
formação desta especificidade cultural proletária como algo que naturalmente transcorreria se
aqueles encarregados pelo encaminhamento da sociedade socialista em direção ao comunismo
fossem responsáveis e competentes em seus direcionamentos. A partir da assimilação
consciente e ideologicamente consistente com os ideais proletários, a sociedade soviética
deveria naturalmente caminhar em direção à codificação de novos valores e normas sociais
que refletissem de maneira adequada suas novas prioridades e ethos.
No fragmento abaixo, escrito em 1920, pode-se observar, nos próprios termos
marxistas do comissário, a formulação que pretendia nortear os esforços formativos do
Narkompros. Este fragmento se insere em um texto publicado no Arauto do Teatro – entre
outras publicações, provavelmente – cujo objetivo é o de expor as principais diretrizes e
princípios a serem observados nas medidas por vir do comissariado.
Enquanto reconhece que o momento de estabelecer-se princípios inquestionáveis da
estética revolucionária ainda não chegou, a Seção de Arte do Narkompros e o Comitê
Central de Todos os Trabalhadores da Arte considera essencial elucidar de forma
adequada e precisa os princípios básicos através dos quais suas atividades serão guiadas.
(...) a nova arte proletária e socialista pode apenas ser construída sobre os alicerces de
todas as nossas aquisições do passado. Ao mesmo tempo reconhecemos que a
preservação e utilização dos genuínos valores artísticos que adquirimos da velha cultura
é indisputavelmente uma tarefa do governo soviético. Nesse aspecto o legado do
passado deve ser purificado impiedosamente de todas as influências de degeneração e
corrupção burguesa (...). Em geral, o proletariado precisa assimilar o legado da velha
175
cultura não como um pupilo, mas como um poderoso, consciente e incisivo crítico .

174
FITZPATRICK, 1970, p.50
175
LUNACHARSKY, A. e SLAVINSKY, Y., Theses of the Art Section of Narkompros and the Central
Comittee of the Union of Art Workers Concerning Basic Policy in the Field of Art (1920) in: BOWLT,
1988, p.184.
102

Por um lado, a política acima delineada tinha amplo respaldo dos altos escalões do
partido. Lenin seria um dos mais fortes aliados de Lunacharsky em defesa do legado artístico-
cultural russo pré-revolucionário176, e de forma recorrente seria aquele a quem recorrera o
Comissário de Esclarecimento quando este se encontrava cercado de vozes mais radicais e,
para Lunacharsky, destrutivas177. Trotsky, por sua vez, não apenas faz eco à visão de
Lunacharsky em suas reflexões178, como a elabora em seus escritos buscando apontar as
contribuições de determinados artistas e grupos para o processo de formação de tal arte do
proletariado. De forma semelhante, afirma:
As novas formas devem encontrar, por si mesmas e com independência, acesso à
consciência dos elementos avançados da classe operaria, à medida que estes,
culturalmente, se desenvolvam. A arte não pode viver nem se desenvolver sem uma
atmosfera de simpatia. É por essa via – e não por outra - que se desdobra um
processo complexo de mutuas relações. A elevação do nível cultural da classe
operaria ajudará e influenciará esses inovadores que realmente tem alguma coisa a
dizer. A afetação, inevitável quando reinam os conciliábulos, desaparecerá, e os
germes vivos produzirão formas novas que permitam resolver os novos problemas
artísticos. Essa evolução supõe antes de tudo a acumulação de bens culturais, o
179
aumento do bem-estar e o desenvolvimento da técnica .

Tal política também se enquadra na priorização de esforços de guerra determinados


pelo Comunismo de Guerra. Enquanto prioridade era dada ao suprimento e fortalecimento do
exército vermelho, caberia a outros segmentos da administração pública como o Narkompros
“trabalhar com aquilo que estava disponível”, tornando quaisquer artistas e intelectuais
dispostos à cooperação voluntária com o regime soviético um recurso valioso ao comissariado
de Lunacharsky. Qualquer medida direcionada à imposição de um paradigma artístico vindo

176
Em um rascunho de resolução sobre os direcionamentos da cultura proletária, escrito em 1920 e publicado em
1945, Lenin afirmara: “Não à invenção de uma nova cultura proletária, mas ao desenvolvimento dos melhores
modelos, tradições e resultados da cultura existente, do ponto de vista da ideologia marxista e das condições de
vida e da luta do proletariado durante seu período ditatorial – Cf. LENIN, Vladimir. Rough Draft of a Resolution
on Proletarian Culture. Acessado em http://marxists.org/archive/lenin/works/1920/oct/09b.htm (Data de acesso:
08/11/2013)
177
Pode-se notar nas discussões de ordem educacional do Narkompros uma presença constante de Lenin como
elemento moderador diante da radicalização das posições pedagógicas representadas, por um lado, por
Krupskaya e Pokrovsky, e de Otto Schmidt, por outro, em relação ao foco a ser dado à estruturação escolar
soviética, que para os primeiros deveria ser a formação ideológica e ampla do indivíduo, enquanto para o último
haveria de adotar um tom mais técnico, voltado para a formação de especialistas, devido à carência soviética de
quadros especializados. A visão de Schmidt seria descartada, e seu proponente fora transferido para o Gosizdat.
Cf. FITZPATRICK, 1970, p.10, 210-215, 319. Não se deve entender, entretanto, que a relação entre Lenin e
Lunacharsky foi sempre uma de mútuo suporte, tendo Lenin inclusive iniciado uma moção com o intuito de
remover Lunacharsky do partido pouco após a revolução, diante da posição inicial do Comissário de permitir a
cooperação com outros partidos e a formação de uma coalizão socialista. Ibid. p.13.
178
TROTSKI, p. 123.
179
Ibid., p. 128.
103

de cima implicaria já considerável controle do aparato estatal sobre a produção artística e


igualmente considerável consenso entre artistas sobre a validade de cooperar-se com o regime
– em graus que não desfrutava o Narkompros durante estes primeiros anos.
Dessa forma, sob a postura delineada acima, Lunacharsky fora capaz de cooptar ao
menos parcialmente a cooperação de diversos artistas e grupos, desde aqueles que encaravam
a Revolução com dúvida ou indiferença – como Aleksandr Benois, Konstantin Stanislavsky,
Aleksandr Blok e outros companheiros de viagem180 – até aqueles que a apoiavam, mas
presumiam manter sua autonomia em relação ao Estado por considerarem tal autonomia um
pré-requisito para o puro desenvolvimento de uma arte proletária – como o Proletkult181.
Ainda relacionando tal direcionamento às necessidades do Comunismo de Guerra, lembra-se
aqui que o direcionamento estabelecido pelo Sovnarkom e executado em todos os níveis da
administração soviética, em diferentes graus, até 1928, era um direcionamento de tolerância,
cooptação, e utilização vigiada dos especialistas que compunham a intelligentsia, considerada
um recurso estratégico que não podia, durante os primeiros anos, ser negligenciado pelo
Partido182.
Não apenas esta política conciliatória pode ser parcialmente entendida no contexto da
priorização dos esforços militares do exército vermelho durante a guerra civil, mas também
pela relativa ausência de qualquer formulação abrangente de uma política artística por parte
da liderança do partido bolchevique antes da revolução. Em suas reflexões sobre a política

180
Companheiro de Viagem (poputchik) foi uma expressão corrente na discussão literária soviética deste
período, a qual designava os indivíduos que aceitaram os princípios gerais do regime socialista, porém de forma
superficial, incompleta. O termo é usado principalmente, portanto, para designar artistas dispostos a cooperar
com o regime revolucionário a despeito da ausência de identificação prévia – ou contemporânea – com o mesmo,
ou da aceitação parcial ou distorcida de seus valores. Alguns exemplos, citados pelo próprio Trotsky, são
Iessenin, os irmãos Serapião, ou Kliuev. O escopo desta definição é alvo de debate, na medida em que a mesma
implica um nível de identificação com a revolução que, em especial entre construtivistas, seria alvo de ferrenha
discussão. Se Trotsky por um lado nitidamente parece considerar a vanguarda como parte deste grupo, dada a
sua origem burguesa, tais artistas esforçar-se-iam no decorrer destes primeiros anos para se desvencilharem de
tal atribuição, buscando redefini-la de modo a contemplar apenas os outros grupamentos artísticos considerados
por estes artistas como rivais. Cf. TROTSKI, 2007, p. 63-100.

181
O Proletkult – Proletarskaya Kultura, ou Cultura Proletária – foi uma organização formada em 1917, antes
dos eventos de outubro. Fundado por Aleksandr Bogdanov e tendo entre seus contribuintes em algum momento
de sua história ilustres como Gorky e o próprio Lunacharsky, o Proletkult defendeu avidamente sua autonomia
em relação ao governo soviético, mantendo-se desta forma até o início da década de 1920, quando fora forçado a
aceitar a tutela do partido para suas atividades. Bowlt afirma que a autonomia continuada do Proletkult, que fora
mais longeva do que qualquer outra no campo das artes, se deveu à sua fundação prévia à revolução. Pode-se
complementar esta afirmação atestando a vasta popularidade da fundação após a revolução, que possuía ateliês
por toda a Rússia e, em 1920, angariava quatrocentos mil membros.
182
FITZPATRICK, 1992, p. 92.
104

educacional soviética durante a guerra civil, James McClelland faz uma interessante reflexão
que pode aqui ser estendida ao âmbito da política artística soviética:
Uma explicação para as políticas educacionais contraditórias durante este período é
a de que para a educação, tal como para a maioria das outras áreas, os bolcheviques
tinham pouco em termos de um plano sistematizado antes da Revolução. Os escritos
de Lenin que tocavam em assuntos educacionais eram mais preocupados com a
promoção de uma revolução do que com a delineação da estrutura de um sistema
educacional pós-revolucionário. Krupskaia é a exceção parcial a essa regra, haja
visto que ela produziu um estudo de teoria educacional durante sua emigração (...).
Lunacharsky também teve algum contato com teoria pedagógica antes da
Revolução. Porém nem Krupskaia, nem Lunacharsky haviam dado muita atenção à
questão de como seus conceitos pedagógicos poderiam ser aplicados às condições
russas183.

O próprio comissário Lunacharsky, por sua vez, é considerado por contemporâneos e


por historiadores como um elemento vital na formação e especialmente na manutenção desta
política. Lunacharsky foi o mais convicto defensor da linha partidária acima delineada,
reafirmando no decorrer dos anos que não cabia ao partido interferir em questões de ordem
artística a não ser que estas representassem uma ameaça política à revolução – bem como em
múltiplos casos interpelando em favor de determinados artistas e escritores quando discordara
da decisão dos órgãos de segurança de colocá-los em detenção184. Sua moderação política já
foi mencionada, e durante os doze anos durante os quais exerceu a função de comissário do
Narkompros, sua postura foi predominantemente neutra em relação à intervenção estatal no
campo das artes – e quanto tal intervenção ocorrera, frequentemente ocorrera a despeito de
Lunacharsky.
Tal diretriz não-intervencionista decorreria da constatação do Comissário, partilhada
por membros influentes do partido como Trotsky e Krupskaya, de que ainda seria necessário
tempo para que o proletariado pudesse produzir a sua própria cultura e a sua própria
manifestação artística, sendo o presente momento portanto um de transição e amadurecimento
cultural do proletariado. Como diria o próprio Lunacharsky, “Somente o proletariado pode
produzir o seu critério artístico próprio, e portanto, nem o poder estatal, nem o sindicato
[russo de trabalhadores artísticos, ou Vserabis] deve assumir qualquer controle sobre este
processo, mas oferecer apoio aos novos direcionamentos emergentes na esfera artística” 185 A

183
MCCLELLAND, James C. Approaches to Higher Education, 1917-1921 in: Slavic Review, Vol.30, no 4
(Dezembro de 1971), p.819. Grifo nosso.
184
Cf. ZLOBIN e ZLOBIN, 1997. De acordo com Fitzpatrick, ainda, as múltiplas interpelações e cartas de
recomendação de Lunacharsky em defesa de indivíduos considerados perniciosos eventualmente resultaria na
perda de efeito político das mesmas.
185
LUNACHARSKY, Anatoly. Tezisy khudozhestvennogo sektora Narkomprosa ob osnovakh politiki v
oblasti iskusstva, in: TOLSTOI, 2010, p. 144.
105

convicção com a qual Lunacharsky defenderia tal linha partidária pode ser inclusive entendida
como um dos fatores responsáveis por sua eventual exoneração em 1929, na medida em que
uma mudança de direcionamento no âmbito cultural e artístico resultariam na conclusão de
que o Narkompros necessitava de nova liderança186.
Em suma, pode-se apontar quatro principais fatores responsáveis pela postura inicial
do Narkompros em relação à sua política relativa à arte. Primariamente, tal linha partidária no
campo artístico decorrera de considerações práticas, das demandas do Comunismo de Guerra:
no contexto da guerra civil, tal linha representa um entre tantos recuos estratégicos realizados
pelo partido durante o processo de consolidação da Revolução. O elemento ideológico que
sustenta a formação autóctone de uma arte proletária a partir de um processo orgânico de
múltipla coexistência de vertentes artísticas pré-revolucionárias serve de justificativa para tal
recuo, e mesmo que dentre seus defensores houvesse muitos que de fato acreditassem que este
era de fato o caminho da revolução nas artes, parece menos provável que tal política fosse
adotada fora de um contexto de generalizada indiferença ou animosidade ao Estado como fora
o período da Guerra civil – ou que tantas exceções e transgressões a tal direcionamento
fossem permitidas. Tanto as considerações práticas e a justificativa ideológica desta postura
podem ser parcialmente explicadas também pela inexistência de uma sistematização prévia da
política cultural pós-revolucionária, dando a tal direcionamento uma parcela de improviso.
Por fim, a identificação entre tal política e o comissário Lunacharsky, defensor aguerrido de
tal interpretação, a qual ele continuaria a tentar impor e defender mesmo quando a maioria
daqueles a seu redor abertamente a atacavam – o que levaria historiadores a considera-lo
politicamente ingênuo.
Independentemente dos fatores que contribuíram para a concepção desta postura
conciliatória em relação à produção artística, a sua implementação demonstraria um
afastamento da premissa inicial de coexistência e igual fomentação no campo artístico. Os
construtivistas que ocupavam cargos no interior do Narkompros demonstrariam durante este
período sua absoluta convicção na validade de suas propostas e interpretações relacionadas à
formação de uma arte revolucionária, e enquanto membros do Narkompros usariam de sua
autoridade administrativa para, como os bolcheviques haviam feito no plano político,

186
Em 1929, descontente com os rumos que tomaram a política cultural soviética sob Stalin e em claro desfavor
no interior do cenário político soviético, Lunacharsky – que antes da revolução e em seus primeiros anos se
observa repetidamente próximo a Trotsky, fisicamente ou em seus escritos – fora retirado do posto que até então
ocupara. Em 1933 fora apontado para o cargo de embaixador soviético na Espanha, porém não assumiu o posto,
tendo morrido durante o trajeto.
106

implementar por cima uma nova diretriz artística e cultural em nome do bem público, e à
despeito do gosto público187 – também desconsiderando o fato de que as suas participações no
Comissariado haviam sido justificadas por Lunacharsky a partir de tal direcionamento.
Neste aspecto as semelhanças entre as ações de tais artistas e os eventos que levaram à
revolução de outubro são muito interessantes. Enquanto membros de um órgão
administrativo, os construtivistas utilizariam de suas prerrogativas no interior deste órgão para
direcionar os recursos e ações do mesmo da maneira que julgavam servir a causa
revolucionária – à revelia de opiniões divergentes de outros membros. No interior do
Narkompros (Soviete), os construtivistas (bolcheviques) buscaram implementar por cima e a
despeito das opiniões do público (público) e de outras vozes concorrentes, como artistas de
orientações simbolista, realista, proletária (mencheviques e socialistas-revolucionários) – e em
prol dos mesmos, argumentariam – uma revolução artística (política e social) que
revolucionaria tudo o que entendia por arte (sociedade) de então em diante – e contando com
a aceitação futura de tal revolução, após as primeiras manifestações positivas da mesma, que
justificariam aos demais o radicalismo e os decorrentes sacrifícios de tal revolução. Tal como
Lenin e os bolcheviques, tais artistas buscaram assumir uma posição de vanguarda em seu
campo de ação, buscando “apoiar os objetivos da revolução em seus próprios termos, como
artistas progressistas, e não ordinários”188 – o que após o período da guerra civil resultaria em
fricções entre tais artistas e o Partido, cujo alto escalão nunca os havia realmente delegado tal
tarefa e ainda se via como a vanguarda da Revolução como um todo.
Durante estes primeiros anos, descritos por Heller e Nekrich como um período
simultaneamente de liberdade e necessidade189, tais artistas tiveram considerável liberdade de
ação, no contexto até aqui descrito. Diferentemente do que se tornaria característico em anos
posteriores, a produção e o empreendedorismo cultural nos grandes centros urbanos soviéticos
não foram, durante seus primeiros anos, guiados de forma planificada e centralizada, mas
transcorreram de forma difusa e pouco coordenada, permitindo inclusive exceções à
autoridade estatal no campo de produção artística, como veremos adiante. Em um cenário
como este, em que decisões de financiamento eram realizadas de maneira difusa e no qual a
opinião pública tinha reduzida influência – como decorrência da limitação da esfera social
187
Opta-se aqui pelo grifo para salientar o paralelo com o título do já mencionado manifesto futurista Tapa na
Cara do Gosto Público, que já havia delineado tal postura tipicamente vanguardista em 1912.
188
MARGOLIN, Victor. Constructivism and the Modern Poster, in: Art Journal, vol.44, no 1 (Primavera
1984), p.30.
189
HELLER e NEKRICH, 1992, p.50.
107

privada – um grupo de número reduzido, mas de vínculos de identificação especialmente


notável pode alcançar maiores possibilidades do que se esperaria em um cenário diverso. Com
esta relativa autonomia e propósito, tais artistas nitidamente desafiariam a postura
conciliatória acima descrita em prol de uma série de ações claramente direcionadas à
expansão da produção artística soviética sob os moldes por eles determinados.
Tal dinâmica pode ser observada especialmente na política do subdepartamento
IZO190, no qual artistas de orientação construtivista tiveram participação predominante. A
partir desta predominância construtivista alcançada no IZO, pode-se observar a adoção
institucional dos princípios artísticos propostos por tais artistas, bem como a alocação
prioritária de recursos do subdepartamento para projetos e organizações destes artistas.
Rozanova, por exemplo, lideraria a recém-criada Subseção de Arte e Produção; Rodchenko
assumiria tal subseção após a morte de Rozanova191, bem como encabeçaria a subseção de
museus192; as Rabfak, criadas em 1921, seriam supervisionadas pelo escultor construtivista
Aleksey Babichev193; por fim, o provimento destes artistas nas instituições superiores de
ensino artístico fundadas inicialmente sob a jurisdição do IZO Narkompros, e o financiamento
para o estabelecimento de um Instituto de Cultura Artística (Inkhuk). Observando-se estes e
outros exemplos, nota-se durante estes primeiros anos uma nítido facciosismo observado entre
tais artistas, os quais reconheciam a discrepância entre suas visões artísticas e as demais
manifestações pré-revolucionárias, bem como a sua minoria diante dos proponentes de tais
manifestações e a subsequente necessidade de se utilizarem desta posição institucional
favorável para a expansão de sua revolução artística.
A própria composição do IZO permite ao leitor suspeitar tal postura solidária e
faccionária entre seus membros construtivistas, na medida em que alguns de seus
participantes – como Mayakovsky e Osip Brik – não tinham qualquer real participação no
campo das artes visuais antes de outubro. Mayakovsky e Brik eram indivíduos inseridos no

190
IZO (Otdel Izobrazitelnykh Iskusstv). Literalmente poder-se-ia traduzir IZO como “Departamento de Belas
Artes”, como o faz Bowlt, porém a tradução literal não aparece em outros livros em decorrência justamente das
ações empreendidas pelo departamento, optando-se então por uma tradução menos carregada de sentido
ideológico como “artes plásticas” ou “artes visuais”.
191
LODDER, 1983, p.112. Com a criação desta subseção, a criação e os subsequentes debates do Inkhuk, e em
geral o direcionamento utilitário que se observa como característico do IZO Narkompros deste sua formação,
torna-se ainda mais problemática a adoção do termo izobrazitelnyi para a descrição da natureza de tal
subdepartamento – escolha que certamente não fora realizada pelos construtivistas que o compunham.
192
GRAY, 1971, p.230.
193
LODDER, op.cit., p.114.
108

meio literário – Mayakovsky como escritor, e Brik como crítico e estudioso linguístico – e no
entanto gravitaram em direção ao IZO, predominantemente porque era neste departamento
que teriam o respaldo e a autonomia para realizar projetos e reforçar as intenções e projetos de
seus colegas; em contraponto, o subdepartamento LITO, que haveria de ser o destino natural
destes dois indivíduos aqui usados como exemplo, fora preterido pelos mesmos em
decorrência da minoria construtivista em seu interior, e da subsequente dificuldade sequer em
receber apontamentos no interior do mesmo. Mesmo Mayakovsky, um escritor já reconhecido
antes da revolução e provavelmente a mais importante voz desta vanguarda russa em 1917,
não comporia o processo de reformulação e organização da atividade literária soviética
através dos canais oficiais, sendo atraído na verdade para órgãos afins, como o IZO e a
ROSTA194, para contribuir com a revolução às margens dos órgãos literários, e recebendo de
tais fontes alternativas os recursos para sua produção. Sua famosa obra Mistério-Bufo195,
publicada em 1918 para comemorar o primeiro aniversário da Revolução, e encenada sob
direção de Meyerkhold e com cenários produzidos por Malevich, bem como sua participação
na área de produção gráfica voltada à propaganda política, seriam realizadas com
financiamento destes órgãos, e discutidas no próximo capítulo.
O sectarismo demonstrado pelos construtivistas no IZO se insere em um contexto
maior e generalizado de estabelecimento de facções nos sulcos da administração soviética,
observável em quase todos as suas ramificações, e de natureza retroalimentadora. No caso do
Narkompros: por um lado, artistas como Mayakovsky gravitaram em direção a determinados
órgãos devido à receptividade dos mesmos aos seus desígnios; por outro, tal gravitação era ou
determinada, ou intensificada, pela repulsão exercida sobre tais artistas por outros órgãos,
predominantemente compostos por artistas de diferentes orientações, porém engajados em
comportamento sectário semelhante196.
Em um manifesto de 1918 Natan Altman justifica a postura que demonstrariam os
construtivistas do IZO, utilizando-se do voluntarismo dos mesmos após a revolução para
acusar artistas de orientações “conservadoras” de aderirem às tarefas revolucionárias como

194
ROSTA (Rossiskoe Telegrafnoe agentstvo): Agência Telegráfica Russa, criada inicialmente sob a jurisdição
do VTsIK e posteriormente transferido para o Narkompros – vide capítulo III.
195
MAYAKOVSKY, Vladimir. Mistério-Bufo. São Paulo: Musa Editora, 2001.
.
196
Este facciosismo não se limitou à esfera artística ou mesmo ao Narkompros, mas seria característica do
aparato estatal comunista como um todo, resultando em uma série de facções internas, cujas intrigas e
maquinações políticas seriam um dos motivos para a decisão de Lenin de tornar ilegal tal conduta em 1921,
anunciando no Décimo Congresso do Partido Comunista Russo a dissolução de toda e qualquer vertente interna
ao partido, e a adoção de uma linha partidária unificada.
109

decorrência de oportunismo e carreirismo, e não por genuína identificação com a causa


revolucionária. Dessa forma, justifica a agressividade e parcialidade dos construtivistas e a
necessidade de submissão de outros segmentos “suspeitos” àqueles mais identificados com a
causa revolucionária. Afirma:
Certos indivíduos e círculos artísticos que há pouco nos molestavam em diversas
“publicações culturais” por trabalhar com o governo soviético e que não conheciam
outra denominação para nós que não a de “burocratas” e “artistas fétidos” agora
prefeririam tomar nosso lugar
(...) Porque foi necessário um ano inteiro de um governo proletário e uma revolução
que contemplou metade do mundo para que os “em silêncio se pronunciassem”?
Por que apenas o futurismo revolucionário marchou em consonância com a
Revolução de Outubro?
A imagem de um trabalhador em uma pose heróica com uma bandeira vermelha e
um slogan apropriado – que tentadoramente inteligível isto é a uma pessoa não
197
versada em arte e quanto precisamos lutar contra esta perniciosa inteligibilidade .

Em contraposição a estes supostos carreiristas e falsos revolucionários, os


construtivistas podiam se utilizar de traços de suas propostas que pareciam a eles mais
adequados à proposta marxista, e reformar suas propostas de modo a reforçar o aspecto
industrial, produtivo e concreto de suas obras e de seus manifestos. Enquanto tantos artistas
de outras vertentes artísticas resistiam a conformar-se com o que ocorrera em outubro,
representam esse voluntarismo construtivista as palavras de Mayakovsky: “Aceitar ou não
aceitar? Esta nunca foi a questão para mim. Esta era a minha revolução” 198. Párias diante dos
olhos da maioria dos críticos artísticos antes da revolução, rechaçados durante o governo
provisório pela hegemonia conquistada por Benois199, estes artistas se propuseram a

197
BOWLT, 1988, p.161-163. Este manifesto foi publicado na segunda edição do periódico do IZO Narkompros
“Arte da Comuna”, discutido a seguir.
198
Apud. WOOD, P. The Politics of the Avant-Garde in: GERMANO, C.; GIMENEZ, C., 1992, p. 9.
199
De forma semelhante ao que se observa após os acontecimentos de outubro, a revolução de fevereiro que
resultou na abdicação de Nicolau II e na formação do governo provisório também ofereceu possibilidades de
participação a artistas que partilhassem os valores do regime. Durante este período, Gassner afirma ter
desfrutado o conhecido pós-impressionista e crítico de arte russo Aleksandr Benois especial autoridade em
assuntos culturais, o que resultou em uma natural marginalização da produção orientada por diretrizes
esquerdistas. O asco de Benois em relação a arte dita de vanguarda pode ser observada já em 1910, a partir de
seu artigo Kubizm ili Kukishizm? (Cubismo ou Ridiculismo?), bem como pelas repetidas cr[iticas negativas
formadas por ele em relação às exibições futuristas pré-revolucionárias, como a 0.10 (Zero.Dez) e a Tramway V
(Bonde 5), nas quais se observa as primeiras exibições, respectivamente, das obras suprematistas de Malevich e
dos contra-relevos de Tatlin. A criação do verbo burliukat, cuja intenção era a de significar fazer besteira, foi
cunhado pelo crítico a partir do sobrenome dos irmãos Burliuk, membros do grupo Hiléia, sendo mais um
exemplo de sua postura relativa à suposta arte esquerdista. Sobre a atuação de Benois durante o governo
provisório, Cf. GASSNER, H. The Constructivists: Modernism on the way to modernization in: GERMANO,
C.; GIMENEZ, C. (orgs.), 1992, p. 299-302. Sobre a posição crítica adotada por Benois em relação a arte de
vanguarda – e em especial, à futurista – Cf. SHARP, J. The Critical Reception of the 0.10 Exhibition:
Malevich and Benua, in: GERMANO, C.; GIMENEZ, C. (orgs.), 1992, p. 39-49; BOWLT, J., 1988, p. xxiv, 69-
70.
110

demonstrar – ou construir – grande identificação e afinidade ideológica em relação ao projeto


bolchevique, bem como o oportunismo para aproveitarem-se da abertura promovida pelos
revolucionários que buscavam apoio de indivíduos ideologicamente afinados às suas visões
revolucionárias. Dessa forma, esqueciam os momentos cooperativos demonstrados durante o
período do Governo Provisório, quando compunham parte minoritária da União de Artistas de
Petrogrado200 e participaram de iniciativas artísticas em conjunto com artistas de orientações
diversas201.
Tal postura agressiva e facciosa acima mencionada por parte dos construtivistas do
IZO pode ser observada nas atividades e na composição da subseção de museus (Muzeinoe
Biuro), formada pelo IZO Narkompros e cuja chefia fora confiada a Rodchenko. A
prerrogativa desta subseção era a de reorganizar e expandir a rede de museus da República
russa, e dispunha de um orçamento próprio tanto para a construção de novos museus quanto
para a aquisição de novas obras, e para a realocação de obras pré-existentes. Não apenas seu
orçamento foi direcionado de forma predominante à aquisição de obras alinhadas com as
diretrizes construtivistas202, como mesmo a prerrogativa de alocação de obras foi usada por
Rodchenko de forma a privilegiar as produções que julgava de maior teor revolucionário em
detrimento daquelas que deveriam ser marginalizadas por sua contribuição inferior ou mesmo
conteúdo duvidoso203 – há de se notar que mesmo o espaço físico no qual tal subseção fora
organizada se tornaria o local de encontro do Inkhuk, aonde discutiriam pontos programáticos
e os rumos criativos que vislumbravam204. No contexto da guerra civil e da posição política
que ocupava o Narkompros tal orçamento era significativo, somando vinte e seis milhões de
rublos em aquisições em 1920, resultando na compra de “1.336 pinturas, 404 ilustrações, 121

200
A União de Artistas de Petrogrado (Soyuz Deyatelei vsekh iskusstv) foi formada entre março e abril de 1917,
com a intenção de participar diretamente das decisões relacionadas ao direcionamento da produção artística russa
após a renúncia do Tsar em fevereiro. Segundo Von Geldern, fora formada em resposta à Comissão artística
(Komissiya po delam iskusstva) formada por Gorky e Benois no dia quatro de março de tal ano, a qual gozara de
apoio inicial do governo provisório, causando receio entre artistas das demais orientações em relação a um
possível monopólio de comissões e influência de tal grupo no campo artístico. Cf. GELDERN, 1993, p.18. Há de
se observar, entretanto, que outras organizações também seriam formadas, e descrições sobre as mesmas podem
ser encontradas na referência acima. Nestas também pode ser observada a coexistência e limitada – porém
presente – cooperação entre membros da vanguarda artística e aqueles que posteriormente seriam considerados
pela mesma vanguarda como elementos perniciosos à causa revolucionária.
201
Ibid. p.19-21.
202
Cf. GOUGH, 2005, p.66-68.
203
Cf. GRAY, Camilla, 1971, p. 230-231.
204
Ibid., p. 68.
111

obras de design gráfico, 54 esculturas e, finalmente, em uma categoria nova, onze ‘formas
espaciais’(prostranstvennye formy)”205. Em sua posição de direção, acompanhado de muitos
companheiros construtivistas no colegiado da subseção, Rodchenko buscou através das
ferramentas que lhe eram concedidas a imposição da produção construtivista, que entendia
como sendo a única capaz de contemplar os objetivos revolucionários de uma verdadeira
cultura soviética.
A criação de museus e a aquisição de obras que os compusessem era uma parcela
importante da tarefa cultural do IZO Narkompros, e a decisão de estabelecer Museus de
Cultura Artística por todo o território soviético – cuja supervisão também era prerrogativa de
Rodchenko, como diretor da subseção de museus – era um dos principais pontos em pauta.
Em sua atividade, entretanto, tal subseção parece frequentemente se afastar da diretriz
originária do Narkompros, demonstrando convicção de que apenas suas visões artísticas eram
realmente revolucionárias, e não comprometidas ou contaminadas com os valores e os vícios
da sociedade burguesa – buscando a destruição de tais vestígios presentes tanto no legado pré-
revolucionário quanto nas produções das demais orientações, em detrimento da explícita
importância dada tanto por Lunacharsky quanto por Lenin ao legado artístico russo pré-
revolucionário.
A influência construtivista no interior do processo de criação e gerenciamento destes
museus se demonstra pelo apontamento de artistas como Rodchenko, Altman, Malevich e
outros vanguardistas como diretores entre 1918 e 1926206, período em que tais artistas
puderam alocar fundos do orçamento artístico estatal para a aquisição de obras, dando
preferência sempre àquelas que entendiam ser representativas do processo de
desenvolvimento artístico que levaria à gênese de uma arte utilitária proletária – merece
destaque aqui a comissão concedida pelo Narkompros a Tatlin em 1919, a qual financiaria a
produção do nunca construído Monumento à III Internacional, recorrentemente usado por
historiadores do período como peça arquetípica das ambições do construtivismo e de seu
suposto utopismo no contexto de limitações materiais imposto pela guerra civil207. Soberana
sobre a questão de distribuição das obras estatais pelos museus que as abrigariam, os diretores
da subseção também concederiam foro privilegiado às obras de arte que demonstrassem maior

205
Ibid. p. 66.
206
Em 1926 o financiamento do Narkompros para a divisão de museus foi cortado, um desdobramento relativo à
contração política pós-guerra civil que será discutida adiante.
207
Cf. BOYM, Svetlana. Architecture of the Off-Modern. Nova York: Princeton Architectural Press, 2008,
p.8-14.
112

afinidade com a proposta construtivista, resultando em uma quantidade desproporcional de


obras que não demonstrassem tais afinidades ser alocada em regiões mais remotas da
República, longe dos olhos das duas capitais208.
Em relação às criticas recebidas por outros artistas devido à nítida
desproporcionalidade de alocação de recursos da subseção para a produção de obras
consideradas vanguardistas, o próprio Lunacharsky inicialmente defendera a subseção,
utilizando-se inclusive da diretriz conciliatória acima para tal: reconhecendo a resistência pré-
revolucionária às reflexões das vanguardas russas, Lunacharsky interpretara esta
desproporcionalidade inicial como um natural movimento de equilíbrio, no qual era
justificável um gasto proporcionalmente maior para a comissão de obras de tal natureza como
maneira de compensar o “atraso” causado pela rejeição das mesmas antes de outubro209.
Discutindo brevemente o efeito da ação de tais artistas na direção desta subseção, Patricia
Railing afirma:
As obras adquiridas foram aquelas dos artistas modernistas russos do fim do século
XIX, dos realistas, de todas os grupos de maior relevância: o Mundo da Arte, a
Rosa Azul, o Valete de Ouros, a extinta União de Artistas Russos, Rabo de Asno, e
dos vanguardistas – cubistas, futuristas, suprematistas e não-objetivistas. A
aquisição de obras da Avant-Garde em muito superou aquela de outros
grupos, e a arte abstrata da Avant-Garde russa não estava presente em apenas
um museu de arte moderna ao fim de 1920, mas sim em mais de trinta. Três
grandes coleções – uma em Moscou e duas em Petrogrado – mais todas coleções
dos demais museus, compuseram o primeiro museu de arte moderna,
210
provavelmente, do mundo .

De maneira semelhante estes artistas buscaram exercer influência sobre as publicações


artísticas editadas pelo IZO, das quais a de mais longa trajetória era intitulada Arte da
Comuna.
Arte da Comuna não foi o primeiro periódico artístico editado sob a jurisdição do IZO
Narkompros, mas foi o mais longevo periódico do comissariado enquanto órgão autônomo da

208
Cf GRAY, 1971, p. 230-231.
209
Ibid., p.230.
210
http://www.incorm.eu/museum.html (Acessado em 25 de outubro de 2013). Grifo nosso. A iniciativa
denominada “The international Chamber of Russian Modernism” é um projeto em construção que se define da
seguinte maneira: “The International Chamber of Russian Modernism, InCoRM, was founded in Paris on 14th
April 2007 by independent art historians and scientists who specialise in Russian Modernism. (…) The aim of
InCoRM is to provide a platform for dialogue amongst all those interested in Russian Modernism (…). It
publishes scholarly work, both art historical and scientific, in the Journal of InCoRM, which is found on-line as
well as in print”.
113

estrutura governamental soviética211. O periódico foi editado entre 1918 e 1920, tinha sua
direção editorial composta por três artistas esquerdistas – Nikolai Punin, Osip Brik e Natan
Altman212 – e produziu dezenove edições, no interior das quais se pode observar nitidamente a
preponderância de artigos alinhados às propostas construtivistas.
Considerando-se dezoito dos dezenove exemplares (excetua-se aqui o exemplar de
número 10, o qual não foi encontrado), de um total de 102 artigos, 61 foram redigidos por 8
artistas associados ao construtivismo: Nikolai Punin (25), Boris Kushner (11), Osip Brik (9),
Mayakovsky (7), Ivan Puni, (3), Altman (2), Malevich (2) e Viktor Shklovsky (2). Nestes
artigos seus autores frequentemente afirmavam que os demais direcionamentos artísticos
então existentes eram antiquados e consequentemente desprovidos das ferramentas
necessárias para de resolver os problemas que eram postos diante da sociedade soviética e de
desenvolver novos caminhos e novas potencialidades a serem trilhados por esta sociedade em
formação. Em oposição a tais direcionamentos, era necessária a formação de uma nova arte –
ou mesmo de uma modalidade produtiva inteiramente nova que surgiria a partir da extinção
da arte burguesa. A tarefa de criação desta nova arte, adequada a uma nova sociedade, deveria
repousar sobre os esforços destes artistas construtivistas, os quais estavam, segundo seu
raciocínio, em posição ímpar para alcançarem sucesso, na medida em que esta fora sua
preocupação básica durante os anos anteriores, enquanto componentes da vanguarda futurista.
Este posicionamento é observado não apenas a partir da quantidade avassaladora de artigos
que o indica, mas igualmente pela aberta adoção desta postura pelo corpo editorial do
periódico, como um editorial de 1919, no qual se pode ler:
Sem dúvida alguma a sociedade socialista terá seu próprio estilo de vida, sua
própria ciência, e sua própria arte; e, é claro, esta ciência e esta arte vão se diferir,
não apenas em seus objetivos, mas em suas técnicas e seus métodos em relação a
tudo que existira anteriormente.

211
Durante a guerra civil o departamento IZO também editou por u número limitado de edições os periódicos
Artes Plásticas (Izobrazitelnoe Iskusstvo), que teve apenas uma edição, e Arte (Iskusstvo), que teve por sua vez
oito edições. No entanto, como Cristina Lodder aponta, mesmo nestes dois periódicos a presença de artistas
esquerdistas era predominante, e os tópicos em discussão eram aqueles relativos às visões artísticas de tais
artistas. Arte da Comuna, neste contexto, diferenciou-se não apenas por sua longevidade, mas também por ter
apresentado, segundo Lodder, um teor ideológico mais intenso do que os anteriores, uma preocupação com a
afirmação dos valores subjacentes às propostas esquerdistas de tais artistas. Cf. LODDER, Christina. Art of the
Commune: Politics and Art in Soviet Journals, 1917-1920. in: Art Journal, Vol.52, No. 1, Political Journals and
Art, 1910-40 (1993). Los Angeles: College Art Association. pp. 24-33
212
Aqui utiliza-se o termo esquerdista em decorrência da menor identificação de Natan Altman com o aspecto
utilitário do construtivismo. Este artista ainda assim se alinhava aos demais na maioria de seus princípios
artísticos, porém não se encontra qualquer escrito de sua autoria defendendo ou propondo a aplicação prática da
arte, identificando-se mais, ao que parece, aos princípios do futurismo pré-revolucionário.
114

(...) esta arte deve ser livre do passado e odiar o passado tanto quanto a classe
213
trabalhadora o odeia.

O papel deste periódico deve ser posto em contexto para que não se superestime ou
subestime sua importância ao analisarem-se suas repercussões sobre a esfera cultural soviética
durante sua circulação. Certamente, este não era o periódico de maior circulação na Rússia
soviética, muito distante em números sua tiragem se comparada a jornais como o Pravda ou
Izvestiya. No entanto, aos grandes jornais soviéticos pouco espaço se alocava a questões de
ordem artística – exceto no que concerne a eventos públicos, como festivais – durante este
conturbado período, estando o governo completamente comprometido com os esforços da
guerra civil e da promoção da revolução mundial. Coube, portanto, em geral a periódicos
específicos e de menor tiragem o papel de principais suportes para a produção de artigos em
relação à produção artística soviética. Porém muitos dos periódicos que tratariam de questões
artísticas e culturais conhecidos pela historiografia russa seriam fundados apenas durante a
década de 1920, sob a vigência da NEP, e mesmo quando fossem fundados, incluiriam em sua
maioria uma diversidade maior de temas abordados, não se limitando apenas a questões
artísticas214 – conferindo portanto ao Arte da Comuna um foro relativamente privilegiado
durante o período da guerra civil.
O que torna o Arte da Comuna uma publicação especialmente relevante para a análise
aqui proposta não é a sua tiragem, mas a sua natureza editorial. Este era o periódico oficial do
Narkompros, financiado pelo mesmo, e que tratava de questões específicas do campo das
artes; esta chancela, em uma configuração política que presumia consolidar um monopólio
estatal sobre a esfera pública como a que se observa na Rússia durante este período, torna-o
relevante por corroborar a autoridade que se observa investida sobre os artistas de orientação
construtivista após outubro de 1917.
A importância que se deve conferir ao Arte da Comuna, portanto, decorre da
constatação de que o periódico demonstra-se sintomático da configuração política que se
observa na estrutura cultural administrativa soviética durante o período da guerra civil,
atestando a expansão da influência deste determinado conjunto de artistas em detrimento de
outros segmentos que antes da revolução gozavam de maior apreço e que hesitaram em
alinhar-se com o novo regime em formação. A presença majoritária de um determinado

213
LODDER, 1993, p.4.
214
Entre tais periódicos pode-se ressaltar entre os mais conhecidos o Kuznitsa (A Forja, 1920), Krasnaya Nov
(Solo virgem vermelho, 1921), Lef (1923), Na Postu! (A postos!, 1923) Oktyabr (Outubro, 1924), Novyi Mir
(Mundo Novo, 1925), Novyi Lef (Nova Lef, 1926), Na Literaturnom Postu! (No posto literário, 1926).
115

direcionamento artístico no interior deste periódico reflete a mesma forte influência no


colegiado do departamento que o administrava; tal colegiado, como acima já se apontou,
também buscou direcionar políticas públicas em outros fronts de ação do departamento
baseados em suas premissas artísticas, usando seu respaldo público como os bolcheviques o
haviam feito: impondo de cima um direcionamento que julgavam correto, a despeito da
resistência que poderiam vir a encontrar.
No entanto, poder-se-ia argumentar que no plano geral político e cultural soviético o
periódico em questão deve receber uma importância reduzida, sendo um periódico de tiragem
reduzida, que tratava de um assunto particular no interior da ampla esfera assuntos culturais
soviéticos, e que essencialmente possui um papel teórico no interior de tal esfera. Ainda que
seja nítido no periódico o favorecimento de uma determinada orientação artística em
detrimento de outras – um desafio direto ao direcionamento organicista de Lunacharsky acima
apresentado215 – a limitação de efeito do periódico no âmbito do prático e do concreto
inviabilizam qualquer hipótese que busque conferir a uma análise do mesmo grande
importância enquanto um formador de opiniões de ordem cultural. No entanto, como há de se
ver a seguir, em sua preponderância inicial no Narkompros o construtivismo foi capaz de
alcançar resultados também de ordem prática.
Como acima foi delineado, competia ao Narkompros a tarefa de reformulação da
estrutura educacional russa. No exercício de tal prerrogativa o Narkompros teve que lidar
constantemente com a necessidade de aprovação do Sovnarkom, e especialmente com a
interferência de outros setores da administração pública no que diz respeito à estruturação do
ensino superior soviético para o treinamento dos especialistas que a ditadura do proletariado
tanto necessitava. Entretanto, em relação a instituições primariamente artísticas, o IZO teve
considerável autonomia para, no interior das diretrizes gerais do comissariado relativas à
estruturação de instituições de ensino superior, moldar a nascente estrutura de produção e
treinamento artístico. Tal incursão no âmbito educacional seria uma das mais longevas
contribuições dos construtivistas à reformulação social soviética, iniciada através de sua
participação nos Svomas, e especialmente sobrevivendo na forma do Vkhutemas/Vkhutein até
1930.

215
Os construtivistas e demais esquerdistas foram criticados não apenas por artistas de outros direcionamentos
pelo favorecimento acima descrito, mas pelo próprio Lunacharskii no contexto da Arte da Comuna. Em 1918,
em um texto intitulado “Colher de Antídoto”, Lunacharskii alertara seus camaradas esquerdistas a respeito de
suas “tendências destrutivas no que diz respeito ao passado e sua inclinação, quando falando enquanto uma
escola específica, de falar em nome do governo”. Cf. LODDER, 1993, p.28.
116

Em dezembro de 1918, sob a autoridade do Narkompros, foram criados Ateliês


Estatais Livres216 (Svomas), os primeiros estabelecimentos de ensino superior artístico
fundados após a Revolução. Tais Ateliês Estatais foram criados sobre as estruturas das
instituições acadêmicas russas pré-revolucionárias, fechadas após outubro. A Academia
Imperial de Petrogrado, por exemplo, tornou-se o Svomas de Petrogrado217, enquanto no
mesmo ano dois Svomas em Moscou foram criados a partir do antigo Instituto de Pintura,
Escultura e Arquitetura de Moscou – aonde muitos que compuseram a primeira geração da
vanguarda russa estudaram – e da Escola Stroganov de Artes Aplicadas, respectivamente218.
Com o objetivo de “treinar indivíduos no campo das belas artes para que tenham uma
percepção completa de cultura artística nos campos de pintura, arquitetura e escultura” e
“reconhecendo entre suas paredes a existência livre de todas as tendências artísticas definidas,
os oficina oferecem a cada aluno a oportunidade de desenvolver a sua individualidade em
qualquer direção que deseje”219, os Svomas não representariam um rompimento com a noção
de belas artes como o faria posteriormente o Vkhutemas – tampouco era consolidada entre a
vanguarda russa em 1918 esta diretriz produtivista, que se tornaria o principal foco do
construtivismo durante a primeira metade da década de 20. Por outro lado, a influência da
esquerda artística no interior do Narkompros, e a adoção das diretrizes pedagógicas que o
comissariado buscava implementar em todas as instituições de ensino superior (VUZ)220
russas, resultariam em uma considerável presença e influência vanguardista na formação e
funcionamento dos Ateliês Livres.
Tais diretrizes ensejaram a já mencionada resistência e oposição por parte dos quadros
docentes das instituições de ensino superior, colocando em difícil posição o comissariado, que
não tinha como suplantar tais especialistas, e consequentemente teve que acomodá-los
temporariamente. No campo da produção artística, entretanto, os artistas que compunham a
vanguarda pré-revolucionária ofereceram ao partido aquilo que este não havia encontrado em
outras esferas do ensino superior – indivíduos especializados e ideologicamente desejáveis

216
Svomas: Svobodniye Gosudarstvenniye Khudozhestvenniye Masterskiye.
217
Estritamente falando, após ter sido desativada em 1918, a Academia Imperial daria lugar aos Ateliês
Educacionais Artísticos Livres de Petrogrado (Pegoskhuma), o qual seria então renomeado em 1919. Em 1921 o
Svomas de Petrogrado seria renomeado Academia das Artes, retomando uma característica acadêmica voltada
para o ensino das Belas Artes.
218
LODDER, 1983, p.109.
219
Ibid. p.109.
220
VUZ (Vyshee Uchebnoe Zavedenie): Instituição de Ensino Superior
117

dispostos a aceitar e implementar as diretrizes do Narkompros, e capazes de substituir


quaisquer segmentos recalcitrantes, os quais perderiam, portanto, sua capacidade de
pressionar o comissariado.
O Svomas consistia em uma reunião de ateliês livres, os quais se atrelavam
basicamente apenas por seu vínculo comum ao Narkompros, pelo propósito revolucionário ao
qual deveriam contribuir e por partilharem o mesmo espaço físico – incluindo a partilha de
determinadas estruturas, como o Instituto para o Estudo da Arte221. À parte disso, estes ateliês
funcionavam de forma autônoma e com pouco escrutínio governamental ou mesmo
institucional. Demonstrando uma semelhança palpável ao anti-academicismo que se observa
de forma especialmente pronunciada entre os futuristas pré-revolucionários e os
construtivistas, o Svomas prezava em sua estrutura por uma diretriz organicista, na qual
esperava-se que a escola fosse capaz de se autorregular em resposta às necessidades da
revolução, de que na medida em que seriam ateliês abertos à iniciativa do proletariado, que as
demandas destes seriam a força motriz e, simultaneamente, o princípio de equilíbrio e
regulação daqueles. Da mesma forma, esta diretriz subverte a hierarquia acadêmica,
conferindo aos alunos autoridade considerável sobre os assuntos dos ateliês, dando-lhes a
prerrogativa de eleição de diretores para os ateliês aos quais se filiassem, de participar
ativamente de determinadas áreas da administração dos ateliês ou mesmo de trabalhar em um
ateliê sem direção222.

A admissão aos Svomas, tal como das demais instituições de ensino superior durante
os primeiros anos da Revolução, não foi regida pelos constrangimentos pré-revolucionários
tradicionais como o mérito acadêmico ou conhecimentos prévios, em parte justamente porque
tal entrave artificialmente comprometeria a suposta capacidade de auto-regulação que os
ateliês, em tese, demonstrariam – tal como se observa nas regras de admissão para o Svomas,
dentre as quais há um limite de idade, mas que se caracteriza antes pela ausência do que pela
imposição de limites. “Todos aqueles que desejam receber uma formação artística
especializada tem o direito de entrar nos Ateliês Livres Estatais. (...) A apresentação de
diplomas não é necessária”223.

221
LODDER, op.cit., p.110
222
MIGUEL, 2006, p. A-1 a A-18, passim..
223
MIGUEL, 2006, p. A-4.
118

Da mesma maneira, nos documentos que conferiam forma ao Svomas se pode


observar os ecos da política conciliatória do Narkompros, que se demonstrou inaplicável em
outras instituições de ensino superior. Tal como fora publicado no Izvestiya em 1918, por
exemplo, no Svomas os alunos “agrupam-se em função das correntes artísticas das quais se
sentem próximos; fazem o mesmo nos ateliês especializados, quando estes existem”224. Se o
consenso partidário acerca da verdadeira arte proletária era o de que esta deveria ser formada
organicamente a partir do progresso da revolução, então este desenvolvimento deveria ocorrer
nestas instituições de ensino, as quais deveriam, obviamente, ser gerenciadas com as mesmas
preocupações conciliatórias e organicistas.
Em sua concepção, portanto, o Svomas representava a postura orgânica e holística do
Narkompros em relação à produção artística e aos rumos da revolução. Na prática, por outro
lado, a influência dos artistas construtivistas que dominavam o Narkompros se fez sentir. Em
especial no Svomas de Moscou um número elevado de artistas desta orientação foram
nomeados para dirigirem oficina – entre os quais se pode nomear Lyubov Popova, Varvara
Stepanova, Shterenberg, Malevich, Tatlin – e nos mesmos permaneceriam mesmo quando um
número desproporcionalmente grande de estudantes gravitavam em direção a oficina de
natureza diversa:
Os votos dos alunos indicaram imensa predileção pelas tendências artísticas mais
conservadoras. Arkhipov enquanto representante principal da escola Realista
recebeu 88 votos(...), o suprematista Malevich 4, e o futurista (sic) Tatlin 8 votos.
Independentemente desta distribuição, apenas dois representantes de cada uma
destas tendências foram escolhidos. Se os mestres fossem nomeados apenas a partir
dos resultados das votações estudantis, a escola não teria passado por qualquer
mudança significativa.

. Há de se notar também que um número considerável dos docentes remanescentes do


SVOMAS provinham de outras orientações associadas ao modernismo e ao vanguardismo
pré-revolucionário, como Vasili Kandinsky, Petr Konchalovsky, Robert Falk e Ilya Mashkov
(estes três últimos membros do grupo Valete de Ouros, ativo em experimentações associadas
ao fauvismo antes da Revolução – e geralmente repudiados pelos construtivistas por sua
moderação artística e política). Tal constatação é relevante por demonstrar que dentre os 24
ateliês do Svomas de Moscou225 nove eram dirigidos por membros relacionados à inovação

224
MIGUEL, 2006, p. A-5
225
Dentre estes 24 ateliês do Svomas de Moscou havia “14 ateliês de pintura, 4 de escultura, 3 de arquitetura, 1
de gravura (águaforte), 1 de fotografia e 1 de pintura sem mestre designado”, enquanto o Svomas de Petrogrado
(mais conservador e acadêmico em sua atuação), era composto por 14 ateliês de pintura, 4 de escultura, 3 de
arquitetura, além de ateliês de artes aplicadas (arquitetura de interiores, têxtil, metais, gravura e impressão,
119

artística e um deles seria o ateliê sem direção que resultaria no grupo Obmokhu, resultando
em uma proporção elevada de direção vanguardista quando se considera o número de artistas
e de candidatos relacionados a estas propostas antes de 1917.
A própria estruturação do ensino artístico em ateliês livres era condizente com as
propostas construtivistas contemporâneas. Tais ateliês livres permitiriam a formulação de
programas específicos cujo conteúdo e metodologia não seriam regidos por critérios
acadêmicos. A facultatividade de estudos artísticos prévios permitia a determinado professor
de um destes ateliês livres atrair e ensinar futuros artistas ainda não “contaminados” pelos
valores artísticos pré-revolucionários, indivíduos que ofereceriam maior maleabilidade ao
professor que buscasse apresentá-los a uma perspectiva artística até então desconhecida.
Atrelando-se a estes fatores o entrincheiramento que tais artistas pretendiam realizar na
burocracia cultural soviética e seu objetivo de utilização dos recursos públicos para
disseminar ideais não reconhecidos pela estética acadêmica pré-revolucionária, pode-se inferir
que em termos gerais a aplicação do modelo de Ateliês Livres ofereceu ao construtivismo
maiores motivos de satisfação do que àqueles artistas que antes da revolução compartilhavam
suas convicções artísticas com a crítica e com o estabelecimento artístico acadêmico.

A partir dos exemplos acima discutidos, observa-se que os artistas construtivistas


desfrutaram de considerável influência institucional no interior da organização administrativa
artística soviética, bem como a maneira através da qual utilizaram de tal influência para a
realização de seus projetos – dissonante na prática da premissa conciliatória defendida pelo
Narkompros, porém em teoria justificada por tais artistas pela mesma premissa. Tal influência
era decerto desproporcional a favor de tais artistas, tanto se considerarmos o quão
minoritários os mesmos eram no universo da atividade artística russa contemporânea, quanto
se observarmos a limitada aprovação pública às suas produções antes da revolução – cenário
que pouco mudaria ao fim da guerra civil, tais artistas descobririam.
No entanto, se as condições da guerra civil e do Comunismo de Guerra em larga parte
explicam o escopo da autonomia de ação de tais artistas e subdepartamentos, tais condições
também permitiram circunstâncias que parcialmente limitariam esta desproporcional
autonomia e influência – e portanto também parcialmente a justificaria. Durante estes
primeiros anos de consolidação, a política do comunismo de guerra consumiu as atenções do

cenografia, pintura ornamental, porcelana, cerâmica e ferro). Cf. MIGUEL, Jair Diniz. SVOMAS (Ateliês
Artísticos Livres Estatais): Arte, Liberdade, Flexibilidade e Novidade (2006), p.5-6
.
120

Sovnarkom e da Cheka resultando em reduzido escrutínio do partido e sua indisposição a criar


antagonismos imediatamente desnecessários, e permitindo consequentemente a existência de
atividades artísticas e culturais paralelas às ações do Narkompros.
Um exemplo de instituição que fugiria à jurisdição do Narkompros fora o Proletkult.
O Proletkult, idealizado e fundado por Aleksandr Bogdanov em 1917, poucos meses antes da
tomada de Petrogrado, tinha como premissa e objetivo a formulação das bases para a
produção da arte proletária, entendida por Bogdanov e seus colegas como a verdadeira arte
revolucionária.
A principal premissa teórica do Proletkult que alicerçava sua noção de arte proletária
era a de que a simples existência de um artista profissional era um fenômeno da sociedade
burguesa, e que tal artista nunca seria capaz de retratar a realidade e as sensibilidades do
proletariado. A despeito da sua técnica, portanto, tal artista jamais conseguiria desvincular-se
de suas origens burguesas e contemplar o conteúdo da revolução – em outras palavras, a
técnica poderia ser aprendida, porém o mesmo não pode ser dito a respeito da experiência do
proletariado. Neste sentido a arte proposta pelo Proletkult parece se diferenciar quase
diametralmente da arte futurista pré-revolucionária, a qual priorizava o progresso do domínio
técnico sobre a arte e sua execução, a despeito de constrangimentos de conteúdo – algo já
estabelecido nas discussões do futurismo transracional de Kruchenykh e Khlebnikov,
reforçado em diversos manifestos futuristas pré-revolucionários e ecoado nas reflexões
linguísticas de formalistas como Roman Jakobson e Viktor Shklovsky. No entanto,
especialmente destoante na arte proletária, e aquilo que a diferenciaria de todas as demais
propostas artísticas existentes na Rússia, era a de que qualquer trabalhador ou camponês podia
produzir arte – e, de fato, eram os mais indicados a fazê-lo depois de outubro, de modo a
promoverem uma “época de renascimento do espírito humano”226. Tal abordagem era vista de
forma positiva por contemporâneos como Lunacharsky, Trotsky e os demais defensores da
política conciliatória do Narkompros nas artes; estes entendiam o Proletkult como um dos
canais através dos quais o amadurecimento artístico do proletariado poderia ser promovido, e
a verdadeira manifestação artística da classe revolucionária eventualmente alcançada.
No entanto, a comparação entre a filosofia proletária do Proletkult e as manifestações
concretas de seus membros demonstraria dissonâncias. Como demonstra Mark Steinberg,
tanto em questões formais quanto em questões temáticas pode-se observar um descompasso

226
Cf. STEINBERG, Mark. Proletarian Imagination. Self, Modernity & the sacred in Russia, 1910-1925.
Ithaca: Cornell University Press, 2002, p.120.
121

entre o que se esperava que o trabalhador produzisse em seus empreendimentos literários e o


que de fato tais trabalhadores produziram. Em relação a questões formais e estilísticas, pode-
se observar na maior parte destas produções a adoção de cânones semelhantes àqueles que
caracterizavam a literatura oiticentista russa, resultando em um aparente tratamento burguês
aplicado ao conteúdo proletário227. Entre as temáticas recorrentes, por sua vez, observa-se
também tal descompasso, exemplificado por recorrentes produções escapistas e bucólicas,
remetendo ao passado camponês de muitos destes trabalhadores, às aldeias e à natureza,
associando-as com noções de paz, tranquilidade, conforto e nostalgia – tendência denominada
“pastoral proletário” por Steinberg228 – bem como pela frequente caracterização negativa do
cenário urbano e fabril, incluindo um poeta que chegou a “representar o martelo e a foice
como o emblema não do orgulho do trabalho mas do ‘sofrimento e da tormenta de milhões’, e
a descrever o advento do socialismo como ‘adornando o mundo com flores de sofrimento sem
precedentes’”229.
Estas dissonâncias confeririam um caráter contraditório a boa parte da produção do
Proletkult, na qual ecoavam superficialmente as diretrizes ideológicas do partido, porém o
faziam a partir de recursos linguísticos e abordagens contraditórias em relação a tais
diretrizes. Tais contradições resultariam em uma futura revisão do exclusivismo do
proletariado para a produção da arte proletária, a qual seria um resultado das críticas a tais
produções iniciais por parte de Bogdanov, Lebedev-Polyansky230 e outros membros do
Partido231, como se pode observar nos dois fragmentos abaixo:

227
Ibid., p.95-96, 112-118, passim.
228
Cf. STEINBERG, 2002, p.213.
229
Ibid., p.139.
230
Pavel Lebedev-Polyansky foi presidente nacional do Proletkult de 1918 a 1920, ocupou cargos no interior do
Narkompros, sendo inclusive chefe do Glavlit entre 1921 e 1930. “Lebedev-Polyansky frequentemente alertava
os escritores trabalhadores quanto ao erro de se expressarem ‘não em nossa língua’. (...)Entre estes falsos
discursos, o mais preocupante, nas palavras de Lebedev-Polyansky, advinha dos autores que esqueciam que ‘no
lugar do heroico indivíduo de pensamento crítico, o socialismo colocou a classe, o coletivo, acima de tudo’. Em
demasiado número poemas que se propunham ‘proletários’, Lebedev-Polyansky reclamava, havia apenas ‘eu, eu
e eu’. Cf. STEINBERG, op.cit., p.141.
231
Pode-se aqui apontar a resposta de Vladimir Kirillov a tais críticas, descrita por Steinberg: “O problema da
maioria dos cultos críticos comunistas em relação à verdadeira literatura proletária, Vladimir Kirillov comentou
em 1921 (em um texto amplamente lido que provocaria muita controvérsia), era que eles tinham abundante
domínio da teoria marxista e do método dialético, mas nunca haviam experimentado o ‘ar da fábrica’. (...) Tais
críticos, ainda que fossem ‘os melhores marxistas’, não eram capazes de ‘entender a profundidade e a
multiplicidade da natureza da criatividade artística do escritor proletário.” Cf. STEINBERG, op.cit., p.198.
122

Ele [Bogdanov] e outros lideres do Partido e do Proletkult frequentemente


lembravam os trabalhadores de que aquele que é membro do proletariado em um
nível sociológico não necessariamente o é em um nível ideológico. Este foi
especialmente o caso de escritores proletários. Dessa maneira, ele pode argumentar
em 1918 que “até o momento a poesia escrita por trabalhadores frequentemente,
majoritariamente, não é uma poesia dos trabalhadores”. Aquilo que determina o que
é proletário, afirmou de forma contundente, “não é o autor, mas o ponto de vista”.
(...) Simultaneamente, contribuindo à crescente ambiguidade destes argumentos,
Bogdanov admitiu que indivíduos estranhos ao proletariado (outsiders) não
deveriam assumir tais papéis e que trabalhadores deveriam evitar confiar ou
232
depender deles .

Em oposição ao individualismo filisteu e estreito da burguesia, poder-se-ia dizer,


este era um novo tipo de individualismo cósmico. Críticas frequentes por parte de
críticos marxista a respeito da penetração do abstrato e do místico em tamanha parte
daquilo que era escrito por proletários parcialmente reflete o reconhecimento de que
erros ideológicos frequentemente ocultavam-se sob a fachada de um coletivismo
233
radical

Independente das características das obras produzidas por seus membros, o Proletkult
foi uma instituição que alcançou quatrocentos mil membros em 1920; possuía espaços físicos
para sua organização nas duas capitais e em outros centros urbanos de médio porte234,
concedidos pelo poder público e financiados pelos próprios trabalhadores, a partir das vendas
de seus escritos e da exibição de seus espetáculos. O Proletkult organizava cursos, eventos e
exibições, e até 1922 encontrava-se formalmente desvinculado a qualquer instituição
governamental soviética. Durante este período de maior autonomia, o Proletkult publicara
livros de forma relativamente independente, e decerto teve parcela considerável no âmbito
artístico, partilhando no espaço público a arena que os construtivistas buscavam cada vez
mais moldar de acordo com seus próprios critérios. Dentre seus membros pode-se notar
nomes de influência política na administração soviética, inclusive no Narkompros –
destacando-se Kerzhentsev, que teria considerável papel nas discussões relacionadas às
politicas pedagógicas e culturais do comissariado.
No campo artístico, entretanto, membros do Proletkult demonstram limitada
penetração, pois ainda que apoiassem a revolução e o Estado soviético, seus membros
diretores permaneceriam fiéis aos alicerces teóricos de Bogdanov, defendendo sua autonomia
institucional como pré-requisito para a formação de uma arte puramente proletária,

232
Cf. STEINBERG, 2002, p.60
233
Ibid., p117.
234
Como a mansão Morosov (construída em estilo mourisco para o comerciante Arseny Morosov em 1899),
famosa construção em Moscou que serviria de centro de reuniões e teatro para o Proletkult, até 1928.
123

desvinculada de constrangimentos governamentais, e especialmente dos segmentos educados


– e portanto parcialmente aburguesados – que compunham o aparato governamental. Ainda
que membros desta organização possam em algum momento ter ocupado cargos no interior de
algumas das muitas seções do estado soviético, o Proletkult como um todo, e a maioria de
seus integrantes, permaneceu à parte, não por indiferença ou hostilidade ao regime, mas
devido ao entendimento de que tanto o Narkompros quanto o Proletkult tinham suas
respectivas tarefas, e deviam realizá-las em mútua cooperação.
A mera existência do Proletkult, e especialmente as proporções do mesmo, forçam a
relativização da participação de todos os subdepartamentos artísticos do Narkompros em
termos de impacto social. Especialmente no âmbito literário o Proletkult foi uma força
considerável durante os primeiros anos da Revolução, produzindo escritos em numerosa
quantidade. No entanto, no campo de produção artística visual o Proletkult fizera pouco que
pudesse servir para opor os esforços do IZO, especialmente por terem concentrado seus
esforços na área literária – área na qual, como já se viu, era a que os construtivistas menos
permearam mesmo durante estes primeiros anos de “liberdade e necessidade”.
O Proletkult era a maior instituição voltada para a produção artística e literária que
gozava de independência governamental durante os anos da guerra civil, porém não a única.
A relativa liberdade observada no período no âmbito artístico permitiu a formação de
organizações, publicações e empreendimentos menores, cuja existência fora tolerada pelo
estado desde que tais manifestações artísticas paralelas não fossem consideradas
contrarrevolucionárias – ainda que, como mostra Fitzpatrick, tal tolerância seria temporária e
sua manutenção ou alteração era sempre decorrente do juízo do partido em dado momento,
não sendo formalizada em qualquer tipo de amparo legal:
(...) a linha conciliatória tornou possível a formação de associações por parte da
intelligentsia – porém este era um privilégio, não um direito. Algumas instituições
culturais eram descritas como autônomas (Academia das Ciências, os teatros
imperiais), mas este era um favorecimento que poderia ser revogado, como foi o
caso do Proletkult e das universidades. O rótulo “autônomo” era na verdade um
aviso direcionado à linha dura do partido contra a perseguição destas instituições,
porém não era uma categoria legal. Nenhuma associação era autônoma no sentido de
poder excluir comunistas ou protestar contra a organização de uma facção comunista
em seu interior. O direcionamento conciliatório poderia permitir que uma associação
fosse liderada por um indivíduo que não fosse membro do partido comunista, porém
235
não o garantia .

235
FITZPATRICK, 1992, p.92
124

Organizações artísticas e literárias como a Casa dos Escritores (Dom Literatorov), a


Casa dos Eruditos (Dom Uchenykh), e a Casa das Artes (Dom Iskusstv)236, por exemplo,
foram formadas durante o período e financiadas de maneira privada – ou por vezes
indiretamente financiada com fundos públicos237 – e por vezes liderada/integrada por
indivíduos de certa proeminência – como Maksim Gorky238. Tais organizações reuniram
diferentes membros da comunidade literária de Petrogrado, que até então encontravam pouco
espaço para publicação durante o período, e representaram uma voz dissonante àquela do
Narkompros.
A atmosfera política do período da guerra civil não fora, portanto, um período de
monopólio artístico por parte da vanguarda construtivista, como sugerem – ainda que
inadvertidamente – determinados historiadores, os quais ao se calarem sobre as demais
dimensões e possibilidades de ação artística durante estes anos causam uma impressão
equivocada a respeito da abrangência e hegemonia do Narkompros durante o período. Na
verdade, parece mais adequado referir-se ao Narkompros como a voz oficial em assuntos
artísticos, porém em um momento de permissão moderada a vozes dissonantes em uma
intensidade que talvez não mais se repetisse durante a história da União Soviética.
Em termos de aplicação de fundos governamentais para a realização de eventos,
comissão de obras e criação de novos museus e instituições educacionais artísticas, pode-se
observar um papel dominante do comissariado e, por conseguinte, dos construtivistas em
certos subdepartamentos. Por outro lado, diante de uma miríade de esforços artísticos

236
Para mais aprofundada discussão relativa a estas três organizações, Cf. SCHERR, Barry. Notes on Literary
Life in Petrograd, 1918-1922: A Tale of Three Houses in: Slavic Review, Vol. 36, no2 (Junho, 1977), p.256-
267. A Casa das Artes inclusive esboçaria um periódico homônimo, que no entanto só produziria duas edições,
em 1921.
237
Por exemplo, Gorky usaria dos recursos da editora estatal Literatura Mundial (Vsemirnaya Literatura), a qual
deveria ter como principal ocupação a tradução de obras estrangeiras para o russo, para garantir a membros da
Casa dos Escritores uma ocupação formal remunerada que permitiria aos seus membros subsistência enquanto
escritores, o que se demonstrara difícil às margens do Estado durante o período da guerra civil. Cf. SCHERR,
1977, p.258
238
De acordo com Orlando Figes, inclusive, tais organizações foram essenciais para a sobrevivência e
subsequentemente pela produção de seus membros no contexto de escassez da guerra civil e de hostilidade
institucional partindo dos construtivistas. Afirma: “Gorky assumiu a defesa da intelligentsia faminta de
Petrogrado, negociando com os bolcheviques, entre os quais ele era altamente apreciado por seu alinhamento
esquerdista antes de 1917, por melhores rações e apartamentos. Ele estabeleceu um refúgio de escritores, seguido
por uma Casa dos Artistas, e estabeleceu sua própria editora, chamada Literatura Mundial, para publicar edições
baratas dos clássicos para as massas. A Literatura Mundial forneceu trabalho para um vasto número de
escritores, artistas e músicos como tradutores e editores. De fato, muitos dos grande nomes da literatura do
século XX (Zamyatin, Babel, Chukovsky, Khodasevich, Mandelstam, Piast, Zoshchenko e Blok e [sic] Gumilev)
deveram sua sobrevivência durante estes anos de fome ao patronato de Gorky”. Cf. FIGES, Orlando. Natasha’s
Dance. A Cultural History of Russia. Londres: Penguin Books, 2002, p.439.
125

paralelos, gozando de reduzido respaldo governamental, e mesmo relegando internamente a


um plano secundário assuntos artísticos em prol da política educacional239, o comissariado
não seria a voz dominante durante o período em termos de produção artística. Enquanto Figes
faz menção aos “anos de fome” durante os quais tantos escritores e artistas excluídos da
estrutura e do patronato estatal sobreviveram apenas através do apoio de indivíduos como
Gorky e Lunacharsky, por outro Fitzpatrick mostrara que mesmo para os membros do
Narkompros a alocação de rações e apartamentos era problemática, na medida em que gozava
o Comissariado de baixa prioridade na agenda do governo central240.
Durante a guerra civil, o Narkompros se sentiu maltratado em relação aos demais
comissariados. Reclamava que a ele era alocada uma quantidade de rações e serviços
essenciais abaixo do que necessitava, e que seus professores e empregados passavam
fome enquanto membros de outros comissariados, não. A posição comparada do
Narkompros é extremamente difícil de se definir. Não parece haver motivo para se
supor que o Narkompros estivesse em pior condição do que os comissariados de
saúde e de bem-estar social, apesar de que sem dúvida as suas expectativas eram
maiores e sua sensação de traição igualmente mais aguda. Porém o Narkompros
sempre se comparou com os grandes – e, ao menos em termos de tamanho, era
241
justificado fazê-lo – e não com os pequenos comissariados” .

Dessa maneira, o que se pode observar durante tal período seria a configuração dos
conflitos e embates artísticos que adquiriam contornos mais claros e proporções mais intensas
nos anos posteriores. Enquanto o colegiado do Narkompros e o Sovnarkom pareciam
concordar em 1918 que a política artística a ser promovida pelo Estado soviético era uma de
mútua coexistência entre diferentes vertentes artísticas, diferentes grupos artísticos operariam
no interior de tais permissivos limites de modo a minar e reduzir o escopo de ação de seus
“concorrentes”. Neste sentido, adquiriram uma vantagem inicial os construtivistas, os quais
reconheceram o embate por vir – ou poder-se-ia também dizer que em larga parte o criaram
ou o intensificaram – e se anteciparam aos demais ao adequar sua postura de acordo.
A despeito da relativa importância do Narkompros no contexto geral da produção
artística soviética durante o período, é nítido que durante este período tais artistas desfrutaram
de uma presença institucional no interior do governo soviético (1) de considerável influência
por si só, capazes de em certos casos direcionar a política do comissariado a despeito das
diretrizes pré-estabelecidas pelo próprio comissário Lunacharsky, e (2) especialmente notável
na medida em que em termos numéricos tal orientação artística era tão minoritária tanto em

239
FITZPATRICK, 1970, p.112.
240
FITZPATRICK, 1970, p.162-167.
241
Ibid., p.258.
126

termos de produtores quanto em termos de público, se comparada com outras propostas em


circulação durante o período. Mais do que seus “concorrentes”, os construtivistas
demonstraram maior coesão coletiva e mútua identificação durante o período, encontrando em
sua proposta artística uma espécie de “causa revolucionária” que não se observa nas demais
manifestações artísticas em atividade na Rússia - com exceção aqui do Proletkult, o qual
também acreditava conduzir uma revolução artística, porém pretendia fazê-lo às margens dos
órgãos governamentais do estado soviético, justificando sua reduzida influência no interior do
Narkompros.
A partir de seu voluntarismo e de sua integração ao aparato público, tais artistas
buscaram promover uma política de expansão e consolidação de seus valores e suas visões
artísticas que transcendia as visões ou produções individuais de seus participantes. Se antes da
revolução indivíduos como Benois consideravam esta vanguarda ridícula242 e composta por
indivíduos desprovidos de talento, formação e técnica, e portanto os relegavam a posições de
inferioridade, os construtivistas durante a guerra civil logo categorizaram os demais
segmentos como inimigos, e em diversos momentos demonstraram com clareza partilharem a
concepção de que apenas uma abordagem construtivista à produção artística era válida nesta
nova sociedade que a Revolução buscava construir.

A Nova Política Econômica e a reconfiguração de forças no campo artístico.

Tal como o regime de exceção criado pela Guerra civil pode ser sentido em todas as
ramificações da vida social russa durante tal período, o seu término resultou em um impacto
igualmente abrangente. Durante a primeira semana da década de 20, podem-se observar
consideráveis mudanças, rupturas e rearranjos no contexto artístico-cultural russo, se
comparado com o período imediatamente anterior, e tais podem ser amplamente relacionadas
à adoção da NEP.
A NEP foi idealizada por Lenin e implementada pelo Sovnarkom em 1921.
Economicamente, o intuito desta Nova Política Econômica era o de recuperar a economia
russa, cujos índices de produção haviam chegado a níveis baixíssimos, refletindo e agravando
os impactos dos sete últimos anos contínuos de guerra pelos quais passara o país, da Primeira
Guerra à guerra civil. A despeito de seu intuito econômico, a principal motivação por trás da

242
Sobre a posição crítica adotada por Benois em relação a arte de vanguarda – e em especial, à futurista – Cf.
SHARP, J. The Critical Reception of the 0.10 Exhibition: Malevich and Benua, in: GERMANO, C.;
GIMENEZ, C. (orgs.), 1992, p. 39-49.
127

NEP era de ordem política, na medida em que fora implementada em resposta a um momento
crítico de questionamento político ao partido, durante o qual mesmo os marinheiros de
Kronstadt – os quais durante estes primeiros anos haviam sido uns dos mais ardorosos
defensores da Revolução – expressaram abertamente sua revolta diante da situação na qual a
Rússia se encontrava bem como da estreiteza da representatividade política permitida pelo
partido, propondo o que denominariam a Terceira Revolução – esmagada pelo Exército
Vermelho em março de 1921243.
A autoria da NEP é largamente atribuída a Lenin, que a implementara a despeito de
considerável resistência interna por parte do partido, e finalmente apenas aceita em
decorrência da emergência que a situação econômica adquirira após o fim da guerra civil. Tal
política consistia na utilização consciente e controlada de dinâmicas capitalistas, recorrendo-
se a noções como as de competitividade, livre iniciativa e retorno individual para que se
estimulasse a produção russa – especialmente agrícola, a qual havia declinado gravemente em
decorrência da própria guerra, mas também da política de apropriação exercida pelo partido
como parte da política de Comunismo de Guerra. Os constrangimentos materiais de ordem
prática forçariam portanto o Sovnarkom a adequar a ideologia governante de modo a validar
este “passo para trás”244, entendido como necessário para a sobrevivência da Revolução e para
o posterior progresso da nova ordem proletária.
De forma geral, a implementação da NEP resultou em consideráveis mudanças às
prerrogativas reguladoras do estado. Sua adoção estruturalmente requeria o relaxamento do
controle estatal sobre as relações cotidianas de produção e consumo, para que se permitisse o
fluxo econômico livre sobre o qual se esperava que a economia soviética “reaquecesse”. Posto
de outra forma, esperava-se a partir da permissão de uma experiência capitalista controlada
que a auto-regulação econômica e o progresso otimizado decorrente da concorrência
individualista que o paradigma liberal afirmava serem características à prática capitalista
acelerassem a recuperação econômica soviética, bem como se reconhecia que tal política era
incompatível com a tutela estatal tal como fora realizada nos anos anteriores.
No campo da produção e consumo artístico, a NEP resultou na expansão e legitimação
de um mercado privado para a aquisição de produções artísticas e literárias. Como vimos
243
HELLER e NEKRICH, 1992, p.107-110.
244
“Dar um passo para trás para que se possa dar dois para frente” é a clássica citação de Lenin que valida a
implementação de sua política econômica. Em outras palavras, a regressão às dinâmicas capitalistas deveria ser
utilizada de forma controlada com a finalidade de acelerar a recuperação material e econômica soviética,
tornando-se obsoleta tão logo tal objetivo fosse alcançado e o desenvolvimento da ordem socialista rumo ao
comunismo pudesse ser retomado.
128

anteriormente, durante a guerra civil o financiamento privado de iniciativas artísticas e


literárias fora permitido – como a existência da já mencionada Casa dos Escritores,
parcialmente financiada por M. Ginzburg245. Esta permissividade era, entretanto, excepcional,
decorrente não de uma política estatal expressamente permissiva a tal comportamento, mas a
uma resignação informal diante do mesmo, resultante de preocupações mais imediatas. A
NEP, no entanto, parecia formalizar esta permissividade, e consequentemente validar – ainda
que temporariamente – a existência e a importância diretora de um gosto público,
distanciando-se do paradigma do centralismo democrático que até então caracterizava a
doutrina revolucionária bolchevique.
Por outro lado, no âmbito cultural esta aparente permissividade foi acompanhada por
um crescente escrutínio do poder central sobre as questões de cunho cultural e artístico
durante o período de vigência da NEP – bem como sobre os segmentos institucionais
responsáveis por sua administração. Ainda em 1924 Trotsky diria que a situação artística
soviética não requeria urgência246, refletindo em sua afirmação a primazia conferida à questão
econômica nas preocupações da direção do partido; a guerra civil, entretanto, era a principal
razão por detrás da relativa autonomia conferida ao Narkompros durante seus primeiros anos,
e sua conclusão resultou consequentemente na ampliação das atenções direcionadas à
produção artística, e do prosseguimento dos esforços centralizadores do partido –
exemplificados no campo cultural, por exemplo, pela aglutinação do Proletkult ao
Narkompros em 1922247.
Essa aparente dicotomia entre liberdade e centralização pode ser parcialmente
entendida a partir da argumentação de Michael Fox, que sustenta que uma impressão de maior
liberdade durante o período da NEP, até certo ponto exagerada, decorre primariamente da sua
comparação com o período anterior, caracterizado pela hegemonia estatal no campo das artes,
bem como pelo sufocamento de iniciativas artísticas independentes decorrente das agruras da
guerra civil. Fox aponta, ainda, como a multiplicação de tais órgãos, e o pertencimento dos
mesmos a múltiplas jurisdições estatais, contribuiria para a crescente rivalidade entre tais
departamentos, o que levaria inclusive a considerável confusão e incoerência no exercício
prático das funções de todos estes comissariados, muitas vezes compostos por indivíduos de
inclinações políticas contrastantes. Enumerando os diferentes setores envolvidos apenas no

245
SCHERR, 1977 , p.257.
246
TROTSKI, 2007, p. 116.
247
BOWLT, 1988, p. xxxiv.
129

âmbito de censura de material impresso, o autor delineia os seguintes departamentos, em


operação durante a década de 20, e sujeitos a diferentes órgãos do aparato estatal soviético248:
 Glavlit [Narkompros];
 Seção de Agitprop [Comitê Central do Partido Comunista];
 Seção de Imprensa [Comitê Central do Partido Comunista];
 Comitê de Imprensa [Sovnarkom]
 Diretório de distribuição de papel [Vesenkha]
 Seção poligráfica [Vesenkha]
 Seção sócio-cultural [Gosplan]
 Seção de livros [Glavnauka – Narkompros]
 Secretaria bibliográfica [Glavpolitprosvet – Narkompros]
 Gosizdat [Narkompros, autônoma a partir de 1919]

Este processo de expansão de um mercado privado – aqui entendido especialmente


como autônomo, livre de constrangimentos estatais diretos – bem como esta maior atenção
estatal aos resultados alcançados pelo Narkompros até então e às decisões a serem tomadas de
então em diante são fatores que nos permitem entender a observável erosão da relação
institucional entre o Narkompros e seus membros mais radicais – construtivistas. A existência
prolongada deste mercado tornaria evidente a preferência do “gosto público” soviético por
produções artísticas inseridas em orientações consideradas conservadoras pelos
construtivistas, resultantes de uma abordagem tradicional às (Belas) artes – como pinturas e
esculturas representacionais e naturalistas, por exemplo, as quais seriam característica de
grupos como a AKhRR.
A NEP evidenciava, portanto, um público que resistia às experimentações abstratas de
artistas como Malevich, Lissitzky e Rodchenko, e um que não parecia atribuir às
experimentações artístico-industriais dos construtivistas do Obmokhu a chancela de trabalho
artístico. Há de se lembrar que os próprios futuristas, em seus manifestos pré-revolucionários,
vinculavam à educação artística do indivíduo sua capacidade de apreciar a arte que
produziam, complexa, experimental e avançada249. O coro que já existia desde 1917, que
afirmava uma resistência e especialmente uma incompreensão da arte produzida por estes
indivíduos por parte da maioria da sociedade soviética, se fortaleceria a partir de 1921
mediante os contornos que as opções individuais delineavam no campo privado das artes. Na
248
FOX, 1992, p.1052.
249
A título de exemplo reproduz-se aqui uma breve passagem do manifesto raionista, escrito por Mikhail
Larionov e Natalya Goncharova em 1913: “Nós exigimos que haja conhecimento do ofício artístico. (...) Aquilo
que é valioso para o amante de pintura encontra máxima expressão na pintura raionista. Os objetos que vemos na
vida não tem papel aqui, mas aquilo que é a essência da pintura em si pode ser mostrado aqui da melhor maneira
de todas – a combinação de cores, sua saturação, a relação entre massas coloridas, profundidade, textura; aquele
que é interessado por pinturas pode dar sua total atenção a todas estas coisas”. Cf. LARIONOV, Mikhail e
GONCHAROVA, Natalya. Rayonists and Futurists: A Manifesto (1913) in: BOWLT, 1988, p.90-91.
130

medida em que a NEP tinha como um de seus objetivos fundamentais a promoção de


consenso político em favor do partido através da recuperação econômica e melhoria de
condições de vida, no âmbito cultural fora também dada crescente predileção estatal àquelas
orientações artísticas que mais demonstrassem apelo e aceitação pública, por motivos
semelhantes.
As implicações da NEP no âmbito artístico, portanto, desagradaram de forma
hegemônica estes artistas. À sua autoridade tutelar que durante a guerra civil foi exercida com
o intuito de guiar as massas proletárias rumo ao seu próprio desenvolvimento cultural pleno a
NEP parecia contrapor entraves que permitiriam o alastro do passadismo e a distorção daquilo
que até então havia sido construído250. Para estes artistas, a posição legítima de vanguarda
cultural que o estado lhes havia direta ou indiretamente conferido esfacelava-se diante de um
novo direcionamento, o qual exigia que a vanguarda recuasse, e que a decisão dos rumos da
revolução fossem cada vez mais de responsabilidade partilhada das massas – uma espécie de
menchevismo que poucos anos antes era motivo de ataques de tais artistas ao Proletkult.
Após 1917, o processo de adequação do discurso esquerdista à ideologia marxista
tornou os seis anos de atividade futurista pré-revolucionária em uma fase preliminar do
combate contra o status quo, coroada com a vitória da revolução – “cubismo e futurismo
foram movimentos revolucionários na arte, antecipando a revolução da vida econômica e
política de 1917”, afirmara Malevich em 1919251. Nesta faseologia tal período pré-
revolucionário poder-se-ia inclusive ser interpretado em paralelo ao período de perseguição e
exílio dos bolcheviques, ambos entendidos por seus oponentes majoritários como segmentos
radicais, bárbaros, e forçados às margens de seus respectivos campos pela suposta
mesquinhez de tais grupos, os quais recusavam a proposta radical não por discordarem de
seus méritos, mas porque a aplicação da mesma lhes resultaria em perdas materiais252.
Adiante no processo histórico do progresso artístico revolucionário, tal como o entendia tais
artistas, o desenvolvimento contemporâneo do construtivismo é compreendido de forma quase

250
Passéism fora um termo usado pelos futuristas italianos para designar
251
Apud. BOWLT, 1988, p.xxxiii.
252
Além do manifesto original do grupo Hiléia, outros manifestos futuristas pré-revolucionários seriam
posteriormente utilizados para justificar esta faseologia, na qual antes da revolução os futuristas já haviam
observado no suposto establishment artístico uma espécia de conspiração silenciosa contra o progresso artístico,
na medida em que este poria em cheque o domínio de seus participantes sobre a esfera na qual eram
reconhecidos como “mestres” – chamada por Burliuk a “Cidadela do Bom Gosto”. Por exemplo, pode-se
observar tal sentimento de forma clara no manifesto vide BURLIUK, Davi. From now on I refuse to speak ill
even of the work of fools (1915), in: LAWTON, 1988, p. 96, ou KRUCHENYKH, Alexei. Secret Vices of the
Academicians (1915), in: LAWTON, 1988, p. 90-94.
131

orgânica, como um desdobramento natural das reflexões e experimentos daqueles que


vislumbram e buscam o futuro e a modernidade, na medida em que uma revolução social
passível de propiciar as condições para tal busca a eles se apresenta – era a arte-trabalho que
se tornaria a arte do proletariado. Como exemplo, reproduz-se aqui o seguinte fragmento de
uma declaração de Karl Ioganson: “Da pintura à escultura, da escultura à construção, da
construção à tecnologia e à invenção – este é o caminho que escolhi e estou certo de que será
esta a direção última tomada por todo artista revolucionário”253.
Nesta mesma faseologia, entretanto, a NEP não poderia ser inserida de forma coerente,
na medida em que parecia reinstituir a prática de “recompensar com dachas” 254 aqueles que
produzissem o que o gosto público demandava em sua suposta ignorância artística. A NEP,
portanto, foi veiculada majoritariamente em escritos de construtivistas como um erro imediato
de potencialidades catastróficas. Mayakovsky, a quem antes se fez referência pela sua
afirmação que chamava a revolução de outubro de “minha revolução”, também de forma
esclarecedora pôde apresentar sua visão da NEP: “Então, aquilo contra qual vocês vêm
lutando por vinte anos acabou de vencer”255. Emulando o que parece ser a perspectiva de
diversos destes artistas construtivistas, poder-se-ia dizer que a modernização, ao que parecia,
saía das mãos daqueles que “sabiam o que estavam fazendo”, e tornava-se sujeita à massa
ignorante, sugestionável e insegura, que se tornava à arte que lhe parecia mais “fácil” e
legítima. Responsáveis por este desenvolvimento, aos olhos destes artistas construtivistas,
eram justamente aqueles que da posição de direção permitiram esta nova orientação, bem
como aqueles que desta falha se aproveitaram, como carreiristas inescrupulosos – os artistas
que, durante os anos anteriores, estes artistas construtivistas tanto se esforçaram para
desacreditar.
Diante da aparente predileção pública por obras de outras orientações, guiadas por
outros preceitos e objetivos artísticos, por sua vez, estes artistas mantiveram o discurso que
antes buscava legitimar a política excludente que perseguiam no interior do Narkompros
durante os anos anteriores. Apoiando-se sobre a premissa de que formalmente o futurismo
havia sido o único fenômeno artístico russo que conscientemente buscou subverter e
questionar os cânones pré-revolucionários, e portanto o único a questionar e atacar a ordem
burguesa tal como esta se manifestava nas artes em antecipação à revolução de outubro,

253
GERMANO, C.; GIMENEZ, C. (orgs.), 1992, p.312.
254
LAWTON, 1988, p. 51.
255
GERMANO, C.; GIMENEZ, C. (orgs.), 1992, p.21.
132

acusavam os autores de obras diversas de contrarrevolucionários e carreiristas, afirmando que


não bastava a temática, o conteúdo da obra, satisfazer os requerimentos ideológicos da
revolução, mas também a forma, a constituição daquilo através do que esta temática e este
conteúdo eram veiculados. Como o proverbial lobo disfarçado de ovelha, a produção de tais
artistas carregava consigo, de acordo com este discurso, o germe burguês da arte ociosa e
motivada por constrangimentos mercadológicos. Os chamados companheiros de viagem,
tolerados durante a guerra civil pelo partido, deveriam agora ser postos sob a mesma lente que
antes discernia os brancos, aqueles cujos valores e intenções mais se assemelhavam à antiga
ordem do que buscavam a promoção do Homo Sovieticus.
O construtivismo, defendiam seus proponentes, contrapunha-se a estas modalidades
julgadas contrarrevolucionárias ao pretender constituir-se como um direcionamento de
pesquisa artística que buscava adequar formalmente a arte ao denominador ideológico comum
do trabalho, tacitamente denunciando a arte enquanto atividade contemplativa como
essencialmente burguesa, e buscando promover uma síntese coerente à nova realidade
revolucionária. O futurismo pré-revolucionário, com sua amplitude referenciada por sua
abordagem altamente progressista e experimental, igualmente parecia melhor se adequar
enquanto alicerce à teleologia revolucionária da ideologia marxista de 1917. Portanto a arte
figurativa dos realistas, por exemplo, era para estes artistas construtivistas subversiva porque
garantia a sobrevivência dos cânones e de valores artístico-formais pré-revolucionários,
supostamente constrangendo as potencialidades de desenvolvimento de uma cultura proletária
autóctone e nova. O passo para trás, portanto, arriscava ser fatal para a Revolução cultural,
afirmavam tacitamente os construtivistas, pois resultaria na reafirmação dos parâmetros da
arte burguesa, o que inevitavelmente causaria um desvio de curso da cultura revolucionária e,
provavelmente, a sua perda de rumo.
Esta linha de argumentação não impediu os rearranjos que foram feitos no
comissariado, frutos da maior atenção estatal a assuntos desta ordem após 1921. Lembrando a
diretriz delineada por Lunacharsky e Trotsky e respaldada por Lenin relativa à produção
artística revolucionária, baseada sobre a mútua coexistência das diversas correntes artísticas
pré-revolucionárias, não surpreende observar que as ações de diversos artistas construtivistas
enquanto membros do comissariado passariam agora a serem vistas como incompatíveis com
tal orientação de não-intervenção. Afinal, dissera Trotsky em 1924, quando discorrera sobre o
futurismo: “Não se pode gritar mais forte que a guerra ou a Revolução” 256. Lunacharsky já

256
TROTSKI, 2007, p.123
133

havia explicitado, no próprio Arte da Comuna, a sua insatisfação com a postura apresentada
por alguns de seus colegas:
Alguns de meus colaboradores mais próximos estavam mais do que um pouco
perturbados pelos primeiros números do jornal Arte da Comuna.
(...) Eu admito que também estou preocupado.
(...) Dezenas de vezes eu anunciei que o Comissariado de Esclarecimento deveria ser
imparcial em sua relação com direções individuais no campo artístico. No que diz
respeito a questões formais, os gostos artísticos do Comissário do Povo e de todos os
demais representantes do governo não deveriam ser levados em consideração. Nós
precisamos permitir o livre desenvolvimento de todas as orientações e de todos os
grupos artísticos.
(...) os futuristas foram os primeiros a vir ao auxílio da Revolução, e foram, entre
todos os intelectuais, os mais afins e sensíveis a ela. De fato, eles provaram ser bons
organizadores, e eu espero excelentes resultados dos ateliês artísticos livres e das
numerosas escolas regionais e provinciais que eles organizaram de acordo com um
amplo plano.
Porém seria um problema se os artistas-inovadores no fim das contas formassem
uma escola estatal de arte, e se tornassem agentes oficiais de uma arte que, ainda que
revolucionária, seria ditada por cima.
Dessa forma, há dois aspectos que são de certa forma alarmantes na jogem
fisionomia deste jornal em cujas colunas minha carta es imprime: suas inclinações
destrutivas com relação ao passado e sua tendência, ao falar com a voz de uma
257
escola particular, em simultaneamente falar com a voz do poder oficial.

A partir de 1921, o escrutínio partidário sobre os assuntos artísticos intensificou-se


gradualmente258. Multiplicaram-se comissões especializadas direcionadas a ramos específicos
da política cultural – tais como de gerenciamento de festivais públicos, por exemplo – cujos
cargos não seriam mais ocupados por artistas, mas cada vez mais por membros do crescente
partido comunista – cuja expansão também parcialmente suplantara a deficiência numérica
que fora, nos anos anteriores, um dos motivos para o provimento de tais construtivistas para
tais cargos. Da mesma forma foram reorganizadas determinadas prerrogativas que antes
competiam ao Narkompros, como a administração de instituições de ensino superior,
contribuindo para uma progressiva fragmentação da capacidade de ação política do
comissariado.
A indisposição de muitos destes construtivistas em assimilar as diretrizes
governamentais e um papel de subserviência direta aos ordenamentos de não-artistas resultou
em um movimento de exclusão destes artistas por parte da autoridade governamental, seja
pela alocação excludente de comissões estatais ou pela extinção de ramos institucionais em
que predominavam artistas desta persuasão – como a seção IZO do Narkompros, extinta em

257
LAWTON, 1988, p.253-254.
258
No âmbito do Narkompros, pode-se aqui apontar a título de exemplo a formação Glavpolitprosvet (Diretório
administrativo para educação política, 1920), Glavprofobr (Diretório administrativo para educação profissional,
1921) do Glavlit (Diretório Geral de assuntos literários e editoriais, 1922).
134

1921, parcialmente transferida à jurisdição do recém-formado Glavprofobr259 como um


“departamento artístico”, e resultando na exclusão de muitos artistas construtivistas da esfera
institucional administrativa soviética260. Em outros subdepartamentos nota-se uma tendência
semelhante: Arthur Lourie, chefiara o MUZO até 1921, quando seria acusado de inclinações
contrarrevolucionárias e enfrentaria o Tribunal Revolucionário261; no TEO Aleksei Gan seria
dispensado por Lunacharsky em 1920262, e Meyerkhold se afastaria em 1921 diante de sua
própria impopularidade no interior do departamento263.
Dessa maneira, não surpreende que, aos olhos de artistas de orientação construtivista,
bem como àqueles que partilhavam seus critérios e visões de futuro em relação ao caminho a
ser traçado artística e culturalmente pela sociedade soviética, o período iniciado pela NEP
fosse um período de crescente ressentimento e pessimismo. Em um processo de interferências
recíprocas, a gradual exclusão da vanguarda no direcionamento da produção e política
artística soviética fora concomitante à crescente popularidade, aceitação e promoção daquelas
orientações artísticas consideradas por tais vanguardistas como perniciosas.
O expurgo dos construtivistas do Narkompros e a reafirmação da política de não
intervenção e múltipla coexistência de vertentes artísticas permite duas constatações básicas: a
crescente atenção prestada pelo partido a questões artísticas – já mencionada – e o fracasso
dos artistas esquerdistas em entrincheirarem-se na estrutura administrativa soviética e,
especialmente, em convencer a liderança revolucionária da validade de seus argumentos
relativos aos caminhos revolucionários da arte soviética. Em outras palavras, a remoção
destes artistas indica que, aos olhos do partido, o direcionamento por aqueles delineado
durante a guerra civil não havia gerado resultados satisfatórios no campo artístico, falhando
tanto em cativar o a atenção pública quanto em demonstrar a lealdade à linha partidária que
viria a ser cada vez mais cobrada com o passar dos anos. O resultado foi a multiplicação de
organizações artísticas e da produção de obras de arte representacionais das mais variadas
vertentes artísticas, impulsionada pelo crescente mercado privado e pela aparente
permissividade expressa pela liderança revolucionária e formalizada pela NEP.

259
Glavprofobr (Glavnoe upravlenie professionalnogo obrazovaniya): Diretório administrativo para educação
profissional .
260
BOWLT, 1988, p. 186.
261
FITZPATRICK, 1970, p.309.
262
BOWLT, 1988, p.215
263
FITZPATRICK, 1970, p.313.
135

Dentre estas organizações artísticas pode-se aqui fazer referência a duas em especial,
as quais representariam as duas principais formulações artísticas que, durante a década de
1920, participariam do contínuo embate com o construtivismo no campo das artes – não mais
pela monopolização da estrutura administrativa estatal, mas agora pela aceitação pública e
pelo favor estatal. Estes grupos foram a AKhRR264 e a VAPP.
A AKhRR foi uma organização artística focada primariamente sobre a pintura, e que
mais se assemelharia ao futuramente implementado Realismo Socialista de 1934. Em 1922,
seus fundadores proclamavam sua tarefa revolucionária nas artes como sendo uma de
glorificação da revolução e veiculação dos ideais revolucionários ao proletariado – aquilo que
Andrey Zhdanov, em 1934, chamaria de “romantismo revolucionário”265. Defendiam o que
chamavam de realismo heroico, que fosse capaz de retratar de forma adequada os esforços
épicos dos agentes da revolução – fossem eles operários, agentes do governo, soldados do
exército vermelho, camponeses etc. Em suas telas, portanto, observa-se uma preocupação
social aplicada a uma abordagem formal realista que antes era característica dos
Andarilhos266. Os próprios membros fazem menção a continuarem justamente a herança do
realismo social do grupo da década de 1860. Entretanto, enquanto nas telas destes realistas do
século XIX frequentemente se podia observar temáticas de crítica social, entre as telas dos
artistas da AKhRR predominava uma orientação otimista e de exaltação da realidade operária
e da causa revolucionária – ainda que a falta de inventividade e uma certa limitação técnica é
apontada por certos historiadores como um ponto comum entre muitos membros de ambos
grupos267. Igualmente, tal como também se observaria em manifestos dos artistas

264
AKhRR (Assotsiatsia Khudozhnikov Revolutsionnoi Rossii): Associação dos Artistas da Rússia
Revolucionária). Em 1928 renomear-se-ia AKhR (Assotsiatsia Khudozhnikov Revolutsii), Associação dos
artistas da Revolução. Em 1931, por sua vez, a AKhR seria novamente renomeada, aglutinando grupos artísticos
menores e formando a RAPKh, alinhando-se como instituição artística paralela à RAPP, à qual por sua vez
competia a esfera literária.
265
BOWLT, 1988, p.293.
266
Os Andarilhos (Peredvizhniki) compunham um grupo artístico realista iniciado em 1863, que se caracterizou
pelo rompimento com os cânones acadêmicos da época, optando por pintar a Rússia “como ela era”, e
promovendo exposições itinerantes que atravessavam a Rússia. Afirma John Bowlt: “Ainda que membros tenhan
organizado exibições com regularidade até 1918, sua influência no campo artístico declinaria rapidamente após a
década de 1880. Suas melhores obras, exemplificadas pelas telas de artistas como Kramskoi e Repin, logo foram
substituídas por paisagens sentimentais e cenas domésticas, pouco inspiradas e tecnicamente pobres”. Cf.
BOWLT, John. Russian Art in the Nineteen Twenties, in: Soviet Studies, vol.22, no 4 (Abril, 1971), p. 585.
267
Exceções são feitas pelo próprio Bowlt em relação a tal juízo, reconhecendo por exemplo os méritos de Ilya
Repin e Ivan Kramskoy entre os mais talentosos dos Andarilhos, bem como Isaac Brodsky como
excepcionalmente talentoso entre os membros da AKhRR. Bowlt afirma: “Ainda que tenha se tornado sinônima
de pinturas sem imaginação, e por uma representatividade fotográfica e pobre, a AKhRR continha entre seus
membros artistas talentosos, os quais frequente e sinceramente acreditavam que apenas as cenas da vida
136

esquerdistas, a AKhRR se definiria parcialmente como a negação de seu principal


concorrente, buscando desacreditá-lo em seu manifesto fundador, do qual se retirou o
fragmento que segue:
Nossa responsabilidade cívica ante a humanidade é captar, artística e
documentalmente, o impulso revolucionário deste grande momento da história.
Nós representaremos o dia presente: a vida do Exército Vermelho, os trabalhadores,
os camponeses, os revolucionários, e os heróis do trabalho.
Nós produziremos uma verdadeira pintura dos eventos e não abstrações
mirabolantes que denigrem a revolução aos olhos do proletariado internacional.
(...) O dia de revolução, o momento de revolução, é o dia de heroísmo, o momento
de heroísmo – e agora nós devemos revelar nossas experiências artísticas através
das formas monumentais do estilo denominado realismo heróico.
Ao reconhecermos continuidade na arte e nos basearmos na visão de mundo
contemporânea, nós criamos este estilo de realismo heróico e assentamos os
alicerces do edifício universal da arte do futuro, a arte de uma sociedade sem
268
classes.

A VAPP, por sua vez, foi uma organização literária que pode ser entendida como um
desdobramento das propostas de arte proletária do Proletkult, o qual fora formalmente
anexado ao Narkompros em 1922, perdendo portanto a sua prévia autonomia institucional. Os
fundadores da VAPP, tal como os futuristas, frequentemente se posicionariam contra a
postura permissiva do partido, responsável pela sobrevivência da produção dos companheiros
de viagem, e buscavam na verdade um monopólio sobre o direcionamento literário semelhante
àquele almejado pelos construtivistas no interior do Narkompros durante a guerra civil,
buscando inclusive agregar aos seus quadros os membros de associações literárias menores de
orientação proletária, como o grupo Kuznitsa269 – resultando em óbvia concorrência entre
estes direcionamentos na medida em que ambos tinham como objetivo a imposição de uma
visão artística sobre a outra. Este ponto de convergência com a produção futurista relativa à
perniciosidade do legado pré-revolucionário seria, entretanto, muito pequeno se comparado
com os pontos de desacordo entre as propostas destes. Em primeiro lugar, a VAPP

contemporânea representadas de forma realista eram capazes de satisfazer as demandas das massas. Cf.
BOWLT, 1971, p. 585-586.
268
AKhRR. Declaration of the Association of Artists of Revolutionary Russia (1922). in: BOWLT, 1988,
p.266-267.
269
Kuznitsa foi outro grupo formado a partir do Proletkult, em 1919, o qual teria uma postura mais seletiva em
relação à participação das massas na produção literária. Lembrando dos eventos da década de 20, S Evgenov –
um membro deste grupo – descreve as estratégias através das quais, no contexto de livre competitividade que
havia sido estipulado pelo partido, a VAPP tentava na verdade coagir grupos de menor expressão à sua
aglutinação, processo que fora resistido, conta Evgenov, pelo Kuznitsa. Cf. EVGENOV, S. Uncivil War:
Gladkov & The Smithy vs. RAPP. Account of an underhanded attempt by the Russian Association of
Proletarian Writers in 1925 to subvert Party policy and legislate all rival literary organizations out of
existence. Encontrado em http://www.sovlit.net/uncivilwar/ (acessado em 1 de novembro de 2013). Traduzido
por Eric Konkol.
137

demonstraria um entendimento mais amplo da categoria companheiro de viagem, sempre


relembrando ao leitor as origens pré-revolucionárias e burguesas das produções da vanguarda;
em segundo lugar, declaravam também que a produção construtivista, na medida em que era
excessivamente abstrata e complexa, focada em experimentos formais que satisfizessem os
caprichos de seus autores e não no engrandecimento do espírito das massas, era
ideologicamente incompatível com as necessidades da revolução e as sensibilidades e
experiências das massas.
Esta multiplicação de agrupamentos artísticos, na qual a AKhRR e VAPP são apenas
os dois principais exemplos, é sintomática da reconfiguração das forças artísticas durante o
período da NEP. Com a remoção da facção construtivista do interior da estrutura do
Narkompros, e no interior do contexto geral de concorrência no campo das artes entre artistas
de direcionamentos artísticos diversos em busca do favor da burocracia soviética agora que
um destes grupos não mais parecia gozar de uma preponderância nítida, observa-se entre
campos artísticos rivais a formalização de fronts programáticos específicos e cada vez mais
radicalizados, que não apenas se sustentariam a partir de premissas autônomas mas, como se
observa em manifestos, igualmente a partir do espectro negativo da orientação oposta.
Durante a década de 1920 o embate que se observou durante a guerra civil no campo
das artes se transformaria como resultado desta reconfiguração de forças concorrentes; mais
ainda, a própria arena de tal embate sofreria alterações. No primeiro momento, os ataques da
esquerda vanguardista transcorreram de forma amplamente unidirecional, na medida em que
estes foram capazes de se colocarem em uma posição estrategicamente vantajosa no âmbito
institucional artístico soviético – o campo de batalha no qual tal conflito transcorria. Artistas
de orientações consideradas por tal vanguarda como passadistas e, portanto,
contrarrevolucionárias, tiveram seus esforços combativos parcialmente limitados justamente
pela proeminência inicial da posição institucional da vanguarda.
Durante a vigência da NEP, entretanto, o embate fora transposto do âmbito
institucional estatal à arena do gosto público, na medida em que a direção estatal fora posta
fora do alcance destes grupos artísticos, que agora abertamente disputavam entre si o favor da
mesma. Se anteriormente era a presença institucional construtivista que garantia ao grupo os
recursos materiais e influência política que compensariam sua minoridade numérica e
reduzida aceitação pública, durante o período de vigência da NEP tal vantagem estratégica
não seria mantida, deixando os construtivistas em difícil situação de competição pública com
138

seus rivais, cujas produções encontraram maior receptividade popular, seja entre
trabalhadores, membros dos mais altos escalões do partido, ou entre os Nepmen270.
Como a própria AKhRR haveria de parafrasear, Lenin dissera “A arte pertence ao
povo. Com suas mais profundas raízes ela deve penetrar no mais profundo interior das massas
trabalhadoras. Ela deve ser entendida por estas massas e amada por elas”271. Esta era uma
expectativa que, na década de 1920, os construtivistas pareciam ao partido incapazes de
alcançar. Consequentemente, no período de vigência da NEP observa-se a gradual expansão
de orientações artísticas opostas à vanguarda, como AKhRR e VAPP, e uma crescente
resistência às produções e formulações construtivistas: “a VAPP mostrou incrível crescimento
em seus quadros de escritores: de 717 pessoas em 1º de outubro de 1924 para 2.898 após um
ano; no futuro, a VAPP planejava alcançar 5.000-7.000 membros” – afirma Semen Evgenov
em 1925272.
Enquanto a VAPP crescia em termos de aceitação pública e reconhecimento estatal,
pleiteando repetidamente e agressivamente a legitimação de sua hegemonia no campo
literário, e enquanto se multiplicavam e se expandiam os grupos artísticos voltados para a
produção representacional e realista nas artes plásticas, como a AKhRR, nota-se nos escritos
construtivistas durante esse período uma crescente radicalização em direção ao utilitarismo e
à subsequente negação da arte, sintomática da gradual perda de espaço experimentada por tais
artistas durante o período de vigência da NEP. Na medida em que a NEP redefinia as
diretrizes partidárias sobre o campo artístico, tornava-se cada vez mais nítido o intuito de
reverter as tentativas de construtivistas de criar uma total integração entre arte e produção
industrial, e de se retornar a uma delimitação prévia que reconhecesse as diferenças entre a
arte propriamente dita e a arte aplicada – campo para o qual muitos construtivistas seriam
consequentemente “empurrados”.

270
Terminologia corrente da historiografia que trata da história soviética que designa aqueles cidadãos soviéticos
urbanos que enriqueceram durante o período de vigor da Nova Política Econômica, os quais eram os principais
consumidores privados de obras de arte durante o período.
271
Apud. AKhR. Declaration of the Association of Artists of the Revolution (1928). in: BOWLT, 1988, p.
271.
272
EVGENOV, S. Uncivil War: Gladkov & The Smithy vs. RAPP. Account of an underhanded attempt by the
Russian Association of Proletarian Writers in 1925 to subvert Party policy and legislate all rival literary
organizations out of existence, p.7
139

A resolução do Sovnarkom de 1925, na qual era reforçada a posição de não


intervenção em questões artísticas por parte do Partido273, não significaria uma concorrência
equilibrada entre estas múltiplas vertentes – o que o próprio documento reconhece, esperando
oferecer as condições necessárias para a eventual vitória da “verdadeira” arte e literatura do
proletariado. Tal resolução fora primariamente resultante das pressões do VAPP pelo
reconhecimento oficial de sua hegemonia, e apenas significava que o Partido não silenciaria
ou tornaria oficial qualquer orientação artística; entretanto, agora fora da estrutura estatal
soviética, os construtivistas enfrentaram crescente dificuldade em garantirem financiamento
para projetos e exposições, bem como comissões para as suas obras, buscando a partir da
década de 20 rumos artísticos alternativos na medida em que o campo artístico parecia se
reverter a sua configuração pré-revolucionária.
Em seu estudo sobre as atividades do Glavlit274 durante a NEP, Michael Fox
demonstra como órgãos como esse resultariam em uma considerável diferença entre a postura
teórica proposta pelo Narkompros e as suas manifestações práticas, executadas não apenas por
subdepartamentos do Narkompros – como o Glavlit – sobre os quais Lunacharsky não gozava
de total controle, mas também por subdepartamentos vinculados a outros órgãos da
administração soviética. Afirma:
Um estudo institucional do Glavlit, de fato, enfraquece as declarações de
Lunacharsky de que uma linha partidária única e bem definida foi ratificada durante
a NEP. Em retrospecto, a NEP em questões culturais aparenta menos um endosso
oficial de coexistência e moderação do que uma competição entre diferentes
abordagens. No campo da regulação cultural, tais diferentes abordagens geraram
uma espécie de pluralismo de facto; porém isto dificilmente equivale a um
pluralismo oficialmente ratificado, totalmente endossado pela política partidária. Na
prática, não havia uma “linha” única, mas sim uma variedade de tendências com
afiliações e contextos políticos, ideológicos e institucionais extremamente
275
complexos .

Foi durante este processo de marginalização que foi formado em 1921 o Primeiro
Grupo de Trabalhadores Construtivistas, marcando pela primeira vez a utilização do termo
construtivismo com a intenção de denominar um grupo com um conteúdo programático
específico – ao invés dos traços vagos que o construtivismo adquirira durante a guerra civil,
agrupando artistas de entendimentos artísticos parcialmente divergentes, porém unidos por

273
MAGUIRE, Robert. Red Virgin Soil. Soviet Literature in the 1920’s. Evanston: Northwestern University
Press, 1968, p. 170. Para a tradução desta resolução, vide anexo, p. 281-285.
274
Glavlit (Glavnoe Upravlenie po delam literatury i izdatelstv):Diretório Geral de assuntos literários e
editoriais.
275
Cf. FOX, 1992, p.1047.
140

princípios gerais como o utilitarismo e a recusa do legado artístico pré-revolucionário. Em seu


manifesto fundador pode-se observar não apenas a adoção de uma abordagem extremamente
racionalista e utilitária em relação ao ofício artístico, mas a radicalização do discurso
construtivista diante do contexto de competição observado durante a NEP:
Nós declaramos guerra à arte!
A racionalização do trabalho artístico dos construtivistas nada tem a ver com o
diletantismo dos criadores de arte que se esforçam para “socializar” os ramos
florescentes da arte, mas com a tentativa de compeli-los a aplicarem-se à realidade
social contemporânea.
(...) Os Construtivistas estão convencidos de que, com a crescente influência da
visão materialista do mundo, a chamada vida “espiritual” da sociedade, as
qualidades emocionais das pessoas não mais podem ser alicerçadas por categorias
abstratas de beleza metafísica e por intrigas místicas de um espírito que sobrevoa a
sociedade.
Os Construtivistas afirmam que todos os criadores de arte sem exceção estão
engajados nestas intrigas, e que independente das vestimentas realistas ou
naturalistas em que se drapejem, não são capazes de escapar essencialmente do
círculo mágico de truques e conjurações.
Mas ao aplicar-se razão consciente à vida, nossa jovem sociedade proletária vive
também apenas pelos valores concretos de construção social e por objetivos claros.
(...) E esta é a nossa realidade, nossa vida. Ideologicamente, conscientemente, nós
extirpamos o ontem, mas em termos práticos e formais, ainda não dominamos a
realidade de hoje.
Nós não sentimentalizamos objetos; é por isso que não cantamos sobre eles em
versos. Porém temos a convicção de criar objetos; é por isso que estamos
276
desenvolvendo e treinando nossa capacidade de construir objetos.

A formação do Primeiro Grupo de Trabalhadores Construtivistas, bem como de outros


grupos compostos por membros da esquerda artística soviética durante a década de 1920,
evidenciam uma radicalização amplamente decorrente da perda de espaço sentida por tais
artistas durante tal período. Até tal momento, muitos de seus participantes ainda se envolviam
com os meios artísticos “tradicionais” aos quais declararam guerra em 1921; nesse ano, a
exibição 5x5=25, composta por cinco obras pictóricas de cinco artistas esquerdistas –
Aleksandra Ekster, Rodchenko, Stepanova, Popova e Aleksandr Vesnin – declararia a morte
da arte, e a necessidade de transpor os esforços que se dedicavam a esta defunta manifestação
humana em direção às áreas nas quais tais esforços poderiam alcançar resultados reais277.
No âmbito educacional pode-se observar um processo semelhante de polarização
artística e eventual marginalização da arte esquerdista durante o período de vigência da NEP.
Assim como o estabelecimento dos Ateliês Estatais Livres (Svomas) durante a guerra civil
permite uma reflexão acerca dos princípios educacionais que guiavam a reformulação

276
BOWLT, 1988, p. 241-242.
277
MARGOLIN, 1997, p.81-82.
141

educacional artística promovida pelo Narkompros, bem como das forças envolvidas na sua
aplicação, o estabelecimento e contínuo funcionamento de outra instituição de ensino superior
permite semelhante análise durante o período da NEP: o Vkhutemas.
O Vkhutemas foi formado em novembro de 1920, a partir da fusão do Primeiro e
Segundo Svomas de Moscou, e definia-se como uma “instituição educacional especializada
para o avanço do treinamento técnico e artístico, criada para preparar mestres artistas
altamente qualificados para a indústria, assim como instrutores e diretores de educação para o
ensino técnico e profissionalizante” 278. Em sua composição constavam ateliês voltados para o
ensino artístico nos campos previamente contemplados pelo Svomas – pintura, arquitetura e
escultura – porém acrescidos a estes novas disciplinas associadas à arte aplicada – contendo
por exemplo departamentos voltados ao ensino de trabalho artístico com metais, madeira,
cerâmica, têxteis, composição gráfica etc. Em decorrência da aglutinação das belas artes e das
artes aplicadas em uma só instituição, o Vkhutemas tornar-se-ia o maior exemplo de uma
iniciativa voltada para a integração da arte à atividade industrial no contexto soviético.
O estabelecimento desta instituição ocorreu ao fim da guerra civil, durante um período
em que o exército vermelho ainda estava mobilizado e focos de resistência branca ainda
resistiam. Houve duas circunstâncias políticas atreladas à guerra civil, portanto, que
influenciariam a formulação do Vkhutemas, bem como o apoio partidário que tal iniciativa
recebera no momento de sua criação279. A primeira destas circunstâncias decorre de uma
iniciativa de Trotsky, voltada à aplicação de noções militares – em especial a conscrição – ao
campo produtivo civil. O Comunismo de Guerra já significava o controle estatal da produção
das fábricas – em contradição com o decreto de 1917 que conferia aos trabalhadores controle
sobre suas fábricas através de comitês compostos e eleitos por trabalhadores – e o projeto de
Trotsky visava estender tal jurisdição ao proletariado, buscando direcionar a população a
determinados campos de estudo e produção que fossem considerados estratégicos para o
esforço de guerra soviético280.

278
LODDER, 1983, p.112.
279
LODDER, 1983, p.113.
280
“A comissão [para conscrição trabalhista] foi estabelecida pelo Sovnarkom em 27 de dezembro de 1919 para
planejar a mobilização do trabalho de maneira quase militar, de modo a lidar com as questões urgentes
relacionadas ao colapso da indústria. A comissão foi criada no mais alto nível: seus membros eram Trotsky
(presidente e Comissário de Guerra, os comissários de trabalho, assuntos internos, alimentação, agricultura e
comunicações, bem como os presidentes do Vesenkha e VTSSPS [Conselho Central de Sindicatos da Rússia]”.
Cf. FITZPATRICK, 1970, p. 62-63.
142

Além desta iniciativa de alocação supervisionada de trabalhadores, contribuíram para


a construção do Vkhutemas as necessidades econômicas do país observáveis após sete anos de
guerra. Ambas circunstâncias se relacionam mutuamente, e indicam no início da década de 20
uma tendência no direcionamento político soviético de se direcionar o uso de toda a
capacidade produtiva soviética para a reconstrução econômica, em detrimento de outras
considerações que, neste contexto, foram antes enquadradas como “luxo” do que como
necessidade. Desse modo, é compreensível que tenha gozado de considerável apoio
governamental uma iniciativa que buscasse tornar produtivo um segmento que até o momento
havia se diferenciado por não ser envolvido diretamente em atividades de tal natureza. Não
por uma apreciação à produção construtivista até então, mas devido à necessidade de
mobilizar as forças produtivas russas, o partido apoiaria o Vkhutemas e aplaudiria a iniciativa
de integração entre arte e produção que a instituição simbolizava.
A despeito das motivações envolvidas, tal apoio ao Vkhutemas foi recebido com
entusiasmo entre os construtivistas, que viram na nova instituição – que seria composta
inicialmente por dois mil alunos281 – não apenas a validação estatal de suas teorizações, mas a
manifestação prática das mesmas, através da qual esperavam poder realizar as propostas
anteriormente delineadas e alcançar/consolidar a hegemonia do construtivismo sobre as
demais tendências artísticas vigentes. Esta seria uma instituição que formaria artistas-
engenheiros, artistas-construtores; tal terminologia explicitava a orientação científica e
utilitária do Vkhutemas, e ecoaria nas teorizações construtivistas contemporâneas realizadas
no Inkhuk, as quais também poderiam ser observadas em outros aspectos da estrutura do
Vkhutemas282.
Por um lado, tal entusiasmo fora justificado, na medida em que as oficinas
relacionadas à produção de materiais foram predominantemente atribuídas a artistas de tal
orientação; também foi amplamente dominado por construtivistas o então chamado curso
básico, obrigatório para todos os alunos durante o início de seus cursos283, antes que
escolhessem suas respectivas áreas. Por outro, a resistência popular demonstrada mesmo antes
da NEP aos empreendimentos construtivistas no campo das chamadas belas artes, atrelada ao

281
GARCIA, Hernan Carlos. "VKhUTEMAS/VKhUTEIN, Bauhaus, Hochschule fûr Gestaltung Ulm:
Experiências didáticas comparadas. FAU-USP, 2001, p.23. (dissertação de mestrado)
282
LODDER, 1983, p.122.
283
A duração deste curso básico sofreu variações durante os dez anos de existência do Vkhutemas, inicialmente
durando um ano, sendo até estendido a dois anos em 1923, porém finalmente reduzido a seis meses de duração
em 1926. Cf. LODDER, op.cit., p.114.
143

princípio de representatividade estudantil administrativa resultaram no gradual afastamento


das oficinas ligadas às chamadas Belas Artes em relação ao ideal produtivista que havia sido
declarado característica básica do Vkhutemas em 1920284. Adicionalmente, há de se ressaltar
que a predominância inicial de artistas de orientação construtivista – inclusive nos ateliês
associados com as Belas Artes durante seus primeiros anos – pode também ter sido
influenciada pela reformulação do Svomas de Petrogrado, que em 1921 passaria a ser
chamado de Academia das Artes – lembremos que foi sobre a estrutura da Academia Imperial
das Artes que tal instituição fora criada. A recriação desta instituição acadêmica decerto teve
algum efeito de atração sobre aqueles artistas considerados pela vanguarda como mais
conservadores, permitindo aos construtivistas maior integração a esta instituição claramente
mais identificada com suas propostas utilitárias.
No entanto, tal como se identifica nos escritos de artistas das múltiplas propostas
artísticas durante o período, no Vkhutemas também se observa um acirramento da competição
entre tais tendências artísticas em busca de hegemonia sobre as demais, bem como um
paulatino enfraquecimento político do discurso vanguardista acompanhado de semelhante
fortalecimento do apoio explicitado aos realistas e aos [escritores] proletários – no campo das
artes plásticas e literatura, respectivamente. Sobre a polarização que logo caracterizaria a
interação entre os diferentes institutos e artistas do Vkhutemas, Lodder discorre:
A falta de unidade entre os institutos do Vkhutemas também pode ser atribuída às
diferenças fundamentais de direcionamento artístico entre os membros do corpo
docente da escola, que eram divididos essencialmente em três grupos. Em 1923 a
LEF os categorizou da seguinte maneira
Os Puristas [pintores de cavalete] (Shevchenko, Lentulov, Fedorov, Mashkov, Falk,
Kardovskii, Arkhipov, Korolev etc.
Os artistas aplicados (Filippov, Favorskii, Pavlinov, Nivinskii, Sheverdyaevm
Egorov, Norvert, Rukhlyader etc.)
Os construtivistas e produtivistas (Rodchenko, Popova, Lavinskii, Vesnin e outros).
(...) A posição dos construtivistas e dos produtivistas é extraordinariamente
complicada. Por um lado eles precisam lutar contra os puristas em defesa da linha
Produtivista, e por outro eles precisam pressionar os artistas aplicados, de modo a
285
revolucionar as suas consciências artísticas .

O acirramento destas rivalidades no interior do Narkompros pode ser observado na já


mencionada predileção de alunos que optavam por estudar pintura e escultura por mestres de
orientação mais representacional. Esta predileção resultaria em uma composição que
favoreceria uma abordagem artística à pintura e escultura associada ainda aos cânones das

284
LODDER, 1983, p.115.
285
Ibid., p.121
144

Belas Artes, na qual a proposta de integração à produção industrial e ao ensino


profissionalizante era relegada a um plano secundário. Na medida em que tal configuração
tomava forma em tais ateliês, seus representantes construtivistas paulatinamente “migrariam”
para os departamentos mais nitidamente ligados à produção industrial, como o Derfak e o
Metfak286.
No curso básico também se pode observar esta mútua competição e rivalidade
característica da NEP. As disciplinas de tal curso eram ministradas majoritariamente por
artistas construtivistas, e na medida em que era um segmento obrigatório a todos os alunos do
Vkhutemas, realizado antes mesmo da escolha final do aluno pelo instituto ao qual iria se
afiliar, era visto pelos mesmo como o mecanismo através do qual poderiam introduzir os
novos estudantes aos novos direcionamentos da arte utilitária, e assegurar que tal
direcionamento fosse mantido a nível institucional ainda que fosse aplicado de forma
inconsistente entre os institutos. A contínua pressão exercida pelos institutos menos
identificados com o direcionamento industrial, em conjunto com a recorrente preferência
estudantil pelos estudos promovidos por tais institutos resultou em constantes ajustes feitos
sobre tal curso básico287. O mais significativo dentre estes foi a redução de sua duração para
seis meses288 – este segmento chegara a durar dois anos – reduzindo consequentemente o
contato destes artistas construtivistas com o curso discente como um todo, e claramente
ampliando a autonomia dos institutos individuais.
Reconhecendo neste processo um afastamento institucional da diretriz inicial voltada
para a integração do ofício artístico à realidade industrial, uma declaração dos construtivistas
foi redigida – assinada por Brik, Rodchenko, Lavinskii, Tarabukin, Stepanova, Aleksandr
Vesnin, Babichev, Popova, os irmãos Stenberg e Medunetsky – com o intuito de descrever
publicamente tal processo:
Os institutos de produção estão vazios. As maquinas estão sendo vendidas ou
alugadas. O corpo docente esta sendo reduzido.
Em compensação, os estúdios individuais de pintura e escultura para artistas de
segundo e terceiro escalão e pintores de cavalete estão se desenvolvendo
luxuriosamente.
O instituto gráfico, um dos mais importantes para os Produtivistas, foi singularmente
escolhido, e recebeu o mesmo status dos institutos de “belas” artes; adicionalmente,

286
O Derfak (Derevoobrabatyvayushchii fakultet – Faculdade de produção em madeira) e o Metfak
(Metalloobrabatyvayushchii fakultet – Faculdade de produção em metal) eram dois departamentos do
Vkhutemas associados à produção industrial. Tais departamentos seriam aglutinados em 1926, formando o
Dermetfak.
287
LODDER, 1983, p.140.
288
Ibid., p.114.
145

a principal ênfase repousa sobre campos artesanais – como gravura – enquanto as


massas, as máquinas e o trabalho moderno são mantidos em um plano secundário.
A Divisão Básica, aonde se realiza o treinamento preliminar dos jovens alunos, está
completamente nas mãos de ‘puristas’, pintores de cavalete desde os Andarilhos aos
Cézannistas. Não se fala em produção. Não há qualquer vestígio de alguma forma de
função social. Não há pôsteres, caricaturas, sátiras sociais, ou representações
grotescas da vida cotidiana – apenas pinturas e esculturas atemporais, apartidárias,
‘puras’ e ‘sagradas’, com suas paisagens, naturezas-mortas e modelos nus.
289
A Rabfak partilha esta posição .

No caso do Vkhutemas, o gradual declínio da presença e subsequente influência dos


construtivistas entre 1920 e 1926 parece sintomático do processo mais amplo de contração da
amplitude política que tais artistas haviam alcançado durante a guerra civil. Diante da
contínua resistência do gosto público às suas propostas, e diante de um cenário de recuperação
econômica, gradualmente a proposta de integração entre arte e produção industrial perderia
apelo em prol de uma arte politicamente engajada, cujo papel não mais seria atrelado à
produção industrial – como aquela proposta pela AKhRR.

289
Ibid, p.121.
146

Capítulo III
Morte à Arte!
Os caminhos da arte utilitária no contexto soviético

Quando inventaram o rádio, não sabiam exatamente como o usariam.

Karl Ioganson (Gough p.101)

Chegamos a um momento em que ser um inventor ou, no pior dos casos, um teórico, não é
mais suficiente; é necessário que se seja também um produtor, um construtor, um mestre...”

Aleksandr Rodcheko

A arte não deve se concentrar em museus-templos, mas em toda parte – nas ruas, nos trens,
nas fábricas, nas oficinas e nos apartamentos dos trabalhadores.

Vladimir Mayakovsky
147

Na discussão empreendida no primeiro capítulo pôde-se delinear os principais


alicerces teóricos que assemelham as diferentes teorizações pertencentes à proposta
construtivista, desde as suas intenções experimentais e utilitárias até seus objetivos
revolucionários relativos ao papel social do artista. Durante os primeiros anos de tais
teorizações, nas quais ainda se nota mesmo entre aqueles que posteriormente se tornariam os
mais radicais produtivistas, uma reticência em se declarar a abolição da arte em si, pode-se ao
menos observar como um traço comum entre tais artistas a intenção de engajamento social da
produção artística, voltada portanto não à apreciação contemplativa e ao aprimoramento de
execução de técnicas acadêmicas, mas a um produto artístico que se relacionasse diretamente
e ativamente ao desenvolvimento da causa revolucionária bolchevique.

No interior do escopo que comporia a vanguarda russa como um todo, a produção


construtivista talvez seja a que melhor representa o aspecto inovador e desbravador inerente a
esta categoria. A produção futurista russa, situada entre 1912 e 1917, demonstrou tais
aspectos em suas reflexões e experimentos formais, voltados para a revolução formal em seus
respectivos campos de produção artística; o construtivismo, por sua vez, teria objetivos mais
ambiciosos, ultrapassando o escopo da revolução formal aplicada à produção artística, na
medida em que se propunha a promover novas reflexões e experimentos que transcenderiam
os limites então aceitos da produção artística, extrapolando todos os parâmetros e, em casos
extremos, ensejando a inevitável conclusão de que a arte, como se entendia há poucos anos
apenas, haveria de morrer como consequência destes novos avanços.

Em relação à formação política do aparato estatal soviético, bem como da revolução


social a ser realizada pelo mesmo, pudemos observar também alguns exemplos dos inúmeros
obstáculos a serem superados pelo partido, especialmente numerosos durante os conturbados
anos da Guerra Civil, e apenas parcialmente superados durante os anos da NEP – ou mesmo
em certos casos substituídos por obstáculos de outra ordem. No entanto, em relação ao escopo
de ação política de tais artistas construtivistas, sobre os quais aqui se discute, pôde-se também
observar a relação entre o pioneirismo de seu apoio político à causa revolucionária de
outubro, em contraste à relativa indiferença ou até hostilidade inicial de tantos outros artistas e
escritores à causa bolchevique, e o escopo de sua esfera de ação institucional durante os anos
da Guerra Civil.

Se por um lado este processo de expansão do escopo de ação institucional dos artistas
construtivistas pode ser observado já a partir de 1918, por outro tanto as circunstâncias
148

caóticas resultantes da reformulação estatal agravadas pelo Comunismo de Guerra quanto a


relativa incipiência das teorizações construtivistas em tal período contribuiriam para uma
inicial indefinição no que diz respeito às manifestações práticas de tais teorias, na medida em
que estes artistas tateavam os limites de suas produções em busca da realização de suas
intenções utilitárias. Dessa maneira, podemos inclusive observar aqueles artistas que, se por
um lado podem ser considerados construtivistas devido à adoção de uma ampla definição
previamente estabelecida – abarcando aqueles que definiam como objetivo a produção de
obras que servissem um fim social, concreto e, portanto, que fossem úteis – em suas
posteriores reflexões se afastariam do ideal utilitário na medida em que este se tornaria mais
estreito, cada vez mais associado à produção de objetos de proveniência industrial e de
utilidade cotidiana. Na medida em que não apenas os limites institucionais do aparato estatal
soviético, mas a própria formulação teórica do construtivismo adotaram traços mais definidos,
tornar-se-á possível, por sua vez, identificar mais sólidas tendências ao tentarmos relacionar
as propostas teóricas destes artistas às suas produções.

Neste capítulo se pretende apresentar e discutir as mais significativas manifestações


das reflexões construtivistas durante os primeiros quinze anos de experiência revolucionária,
durante os quais seus proponentes buscaram realizar aquilo que haviam formalizado
previamente em suas reflexões, em seus artigos e manifestos. Tendo o ideal utilitário como
seu grande denominador comum, tais artistas realmente se considerariam desbravadores,
buscando inspiração nos últimos desenvolvimentos tecnológicos e em consonância com o que
entendiam ser as diretrizes ideológicas do marxismo revolucionário; em tais
empreendimentos, há de se ver que tal desbravamento os levaria em direções muito distintas
entre si, por vezes tornando até difícil ao observador estabelecer uma conexão entre seus
pontos de partida e seus destinos finais.

O objetivo final desta análise, no entanto, transcende a mera apresentação e descrição


de diferentes produções construtivistas, visando a problematização das mesmas e a análise de
características e fatores que tenham contribuído para o seu relativo sucesso – ou insucesso.
Dessa forma, optou-se por apresentar tais diferentes manifestações na medida em que
contribuíssem para a discussão de tais características e fatores, seguindo portanto uma
abordagem primariamente temática. De todo modo, há de se observar a importância da
contextualização cronológica de tais produções, resultando em menções recorrentes a
quaisquer fatores externos a tais produções que auxiliem na análise das mesmas, desde as
circunstâncias de suas produções até as expectativas que as nortearam.
149

O construtivismo diante do gosto público

Tal como o futurismo russo pré-revolucionário, que bradara em 1912 a busca irrestrita
pelo progresso artístico à revelia do gosto público, as reflexões construtivistas delimitariam
como principais prioridades a experimentação formal e o foco utilitário, considerando como
retardantes para o progresso artístico os constrangimentos oriundos deste gosto público, e
reafirmando em tal interpretação o viés científico que a teorização construtivista adotaria
gradualmente no decorrer de sua existência.

No entanto, esta postura fundamental da proposta construtivista seria também um dos


principais fatores que contribuiriam para as dificuldades encontradas por tais artistas no
contexto soviético. Durante a guerra civil, na qual o recém-estabelecido governo
revolucionário considerara como prioridade máxima a cooptação popular para a causa
revolucionária, tal postura por parte destes artistas seria eventualmente considerada pela
direção partidária como pouco adequada às demandas da Revolução. Tal divergência
constatada entre a orientação adotada por estes artistas e o direcionamento partidário relativo
à produção artística não seria mitigado, e sim ampliado nos anos da Nova Política Econômica,
durante a qual o gosto público receberia maior autonomia decisória e continuaria a ser
considerado um dos principais critérios a partir dos quais a produção artística seria avaliada.

Em decorrência da distância entre as preferências artísticas constatadas pela população


soviética e a produção construtivista, observa-se durante o período uma gradual
marginalização de tal produção, a qual acompanha o processo de exclusão destes artistas da
estrutura administrativa cultural soviética que seguira o fim da guerra civil. Ao fim da NEP,
quando um maior grau de controle e centralização fora imposto pela direção partidária sobre a
produção artística, a participação construtivista no âmbito artístico já havia tomado
proporções mínimas, buscando a realização de suas mais recentes propostas no âmbito
industrial ou nos campos artísticos mais recentes – como a fotografia – parcialmente em
decorrência da reduzida pressão oferecida pelo fator público em tais áreas.

Durante a guerra civil, empreendimentos artísticos que tinham como objetivo


contemplar o espaço público, como a construção de monumentos, a organização de festivais e
a produção de pôsteres revolucionários, foram aqueles que aparentemente gozaram de maior
importância durante este período inicial da revolução. Ainda que estas manifestações culturais
150

tenham continuado a figurar na política cultural soviética, durante os primeiros anos de


experiência revolucionária eles gozaram de relevância relativamente desproporcional.

A importância conferida a tais manifestações artísticas públicas pode ser parcialmente


entendida a partir do esforço de priorização inerente não apenas à visão de Lenin relativa à
submissão da produção artística às necessidades revolucionárias, mas também às exigências
do comunismo de guerra290: especialmente diante destas circunstâncias excepcionais, a
manifestação artística que melhor serviria a causa revolucionária seria aquela que contribuísse
para a formulação da legitimidade ideológica da revolução e a cooptação popular a esta causa
– de maneira simplificada, eficiente e abrangente. O aspecto propagandístico e promovedor de
consenso seria certamente o elemento central que justificaria o desproporcional subsídio
estatal para tais empreendimentos em um período de racionamentos e escassez generalizada.

Destes monumentos, pôsteres e festivais se esperava cooptação popular, direcionando


o debate das principais questões relacionadas à causa revolucionária no âmbito público, como
a legitimidade da revolução, a verdadeira natureza opressiva do prévio sistema imperialista e,
especialmente, a validação da guerra civil como uma causa justa, exaltando o exército
vermelho e a liderança revolucionária em sua luta contra os elementos contrarrevolucionários
que teriam como principal objetivo a reversão das primeiras medidas adotadas após a
revolução de outubro. Como postula Geldern, os festivais cívicos organizados durante a
guerra civil buscariam essencialmente construir pontes entre a população e “o idioma
marxista [que] permanecia incompreensível e alheio à maioria da população”291, legitimando em
termos marxistas a Revolução como fruição de um longo processo histórico e justificando, portanto, a autoridade do Partido como força

diretora na Rússia
:

Em vários aspectos
, a ideologia dos bolcheviques serviu de obstáculo à sua consolidação
de poder. Ao minar a legitimidade da monarquia e posteriormente do Governo
Provisório, os bolcheviques haviam rejeitado a cultura antiga e introduzido um
discurso de redistribuição de poder e de uma ordem social que transcenderia limites
nacionais. Ao faze-lo, eles enfraqueceram a legitimidade de toda autoridade. Os
festivais se contraporiam a essa tendência, ao moldarem o passado de modo a criar
um mito do destino. Os bolcheviques eram associados com os mais progressivos
elementos da história russa e mundial, o que criou uma hierarquia de eventos. A
292
Revolução de Outubro estava no cume.

290
GELDERN, 1993, p.5
291
Ibid., p.3.
292
Ibid., p.12.
151

No entanto, estas manifestações artísticas não se tornariam posteriormente, em termos


absolutos, menos importantes aos olhos do partido; pelo contrário, tanto a organização de
celebrações cívicas quanto a produção de pôsteres e monumentos continuariam a compor uma
importante faceta da política pública soviética durante toda a sua existência, tal como era
considerada crucial entre os bolcheviques mesmo antes da Revolução 293. O que se observa,
portanto, e o que justifica a relativa proeminência destas atividades durante o período, seria o
impacto da inicial desorganização que caracterizou a tarefa de reformulação da estrutura
estatal soviética sobre a administração de assuntos culturais. Esta reformulação não apenas a
criação e dissolução de órgãos administrativos, mas também o alinhamento entre órgãos de
natureza regional e seus superiores órgãos centrais, e a definição das respectivas
competências, orçamentos, relações hierárquicas e, especialmente, o provimento daqueles que
assumiriam os inúmeros cargos que comporiam todos estes órgãos. Se o entendimento da
estrutura estatal soviética, em sua imensa hierarquia cruzada, e atrelada à organização
partidária paralela, já se demonstra desafiadora, tal dificuldade é exponencialmente maior
durante estes primeiros anos, nos quais múltiplos órgãos competentes sobre determinada área
exerceriam suas atividades em mútua concorrência, e respondiam a diferentes órgãos
superiores, resultando em uma escala hierárquica tão confusa que, por vezes, apenas medidas
extraordinárias vindas “de cima” seriam capazes de alinhar hierarquicamente a administração
estatal294.

O efeito causado sobre a produção artística por este cenário de desorganização


institucional fora um de fragmentação e divergência de esforços institucionais295. Com o
Narkompros ainda em formação, as múltiplas comissões e órgãos formados, cada um com
determinadas competências e financiamento de proveniências diversas, se demonstrariam
pouco efetivas na mobilização de um esforço artístico significativo em outras áreas de
produção – mesmo o Narkompros teria seu escopo de ação limitado por tal contexto de
divisão e escassez de recursos. Diante deste cenário e da escassez de recursos da Guerra civil,
o que se observa é uma considerável quantidade de artistas envolvidos em eventos públicos
por toda a Rússia, ou buscando formas alternativas de garantir sua parcela de rações em um
momento no qual comissões artísticas estatais simplesmente eram insuficientes para a oferta
293
GELDERN, 1993, p.8.
294
Exemplo deste cenário de disputas e interferências institucionais pode ser observado no debate relativo à
reformulação da estrutura educacional estatal soviética, analisado em: FITZPATRICK, 1992, p. 26-58, passim.
295
GELDERN, op.cit., p.42.
152

de artistas que a Rússia dispunha – como observamos, esta busca incluía as ainda existentes
possibilidades privadas de financiamento, como as oferecidas pelas instituições literárias de
natureza privada apresentadas no capítulo anterior. No caso da vanguarda, seria a ocupação de
cargos públicos no interior do Narkompros que garantiria rendimentos a boa parte de seus
membros – ainda que se possa observar entre alguns destes indivíduos certo desgosto com a
natureza burocrática de suas obrigações administrativas296.

No que diz respeito à produção de festivais públicos, o construtivismo demonstrou


pouca participação. Dentre os artistas considerados membros da vanguarda russa, seriam
aqueles menos identificados com a produção utilitária que contribuiriam a tais festivais –
como Meyerkhold297, Natan Altman e Marc Chagall – e, mesmo assim, suas participações
seriam certamente menos numerosas do que aquelas de artistas de diferentes direcionamentos
artísticos, os quais seriam predominantemente considerados mais adequados a este tipo de
manifestação298. Em sua não-objetividade, os artistas participantes da vanguarda que se
aventurariam na área de produção de eventos desse tipo o fariam por um viés
predominantemente formal e suprematista, recorrendo a composições abstratas,
inescapavelmente, em seu formalismo, desprovidas de conteúdo político – ao menos um
conteúdo prontamente inteligível, como era esperado por boa parte daqueles que avaliariam a
validade desta abordagem decorativa na esfera pública. Ainda que em alguns casos a
produção vanguardista acima mencionada tenha sido recebida de forma positiva pelo público
participante299, a ausência de tal mensagem política não permitiria tal aprovação fosse
partilhada por aqueles encarregados da dimensão ideológica de tais eventos.

Em contraste com a abordagem dos artistas vanguardistas mencionada acima, tais


festivais constituíram-se predominantemente a partir de parâmetros previamente relacionados
a manifestações populares russas estabelecidas há séculos, nos quais preocupações de ordem

296
LAVRENTIEV, 2005, p.86-108, passim.
297
Ainda que posteriormente Vselevod Meyerkhold tornar-se-ia um dos principais defensores do construtivismo
e de uma abordagem utilitária e racional nas artes, esta postura não seria observada antes de 1919, e sim uma
postura mais moderada e conciliatória, afim não apenas das primeiras orientações do Narkompros, mas de sua
aparente intenção de coexistência junto ao cenário teatral pré-revolucionário. Cf. CLARK, 1995, p.114-115.
298
GELDERN, 1993, p.9-10.
299
Ibid., p.22.
153

artística formal eram de importância secundária. Como demonstra Roann Barris300, poderiam
ser observadas nítidas semelhanças entre estes festivais e manifestações populares russas, nas
quais valores como a participação do público, a utilização de um otimismo simbólico e a
redução da realidade a opostos extremos seriam característicos daquilo que Geldern denomina
“ideal orgânico”301 – sem mencionar, obviamente, a utilização de uma “linguagem” específica
a festivais que já era familiar aos seus participantes, contribuindo portanto para uma maior
eficiência de tal festival enquanto veículo de formação coletiva de opinião. Dessa maneira, no
contexto dos primeiros festivais públicos pós-revolucionários o que se pode observar é uma
abordagem altamente simbolizada, simplificada, e voltada para o entendimento do passado em
prol do progresso futuro, pautado pelo otimismo e pela idealização 302 – demonstrando, de
certa maneira, afinidade com elementos que seriam alicerces da proposta da AKhRR e,
eventualmente, do Realismo Socialista.

A configuração formal destes festivais, portanto, demonstra um nítido contraste se


comparada à abordagem verticalizante sustentada pelos vanguardistas durante este primeiro
momento, a qual se alicerçava sobre parâmetros formalmente artísticos, no interior dos quais
haveria espaço para maior complexidade de composição, que simultaneamente engajasse e
desafiasse um espectador crítico. A ênfase formalista da proposta vanguardista e a sua
denúncia contra a “ditadura do conteúdo” nas artes significava essencialmente o desejo de
guiar decisões artísticas através de critérios artísticos. Como vimos anteriormente, a inovação
formal defendida por tais artistas era interpretada de forma utilitária, na medida em que
levaria seus espectadores a questionamentos que resultariam na obsolescência das convenções
formais oriundas da configuração social pré-revolucionária, e na instigação de tais
espectadores em busca de novas formas de expressão cultural e artística.

Paralelamente à organização de manifestações cívicas e festivais populares, um dos


grandes projetos de mobilização política da população promovido durante o período da guerra
civil e de autoria do próprio Lenin seria o Plano de Propaganda Monumental, redigido em
1918, cujo objetivo básico era a produção e alocação de monumentos que representassem
grandes “heróis da causa revolucionária”, ou placas que contivessem “inscrições de caráter

300
BARRIS, Roann. The Constructivist Engaged Spectator: A politics of Reception, in: Design issues, vol.
15, no 1, (Primavera, 1999), p. 31-38.
301
GELDERN, 1993, p.33.
302
Ibid. p.9.
154

monumental”303, não apenas em Moscou e Petrogrado mas por toda a extensão da Rússia.
Este rol de heróis, que no início da década de 20 excederia setenta nomes304, incluiria
indivíduos selecionados pelo Partido considerados representativos da causa revolucionária –
entendida de forma bastante ampla, ao ponto de receber críticas até de Lunacharsky305 – em
escala nacional e global, incluindo Aleksandr Radischev, Stenka Razin, Aleksandr Herzen,
Chernyshevsky, Giuseppe Garibaldi, Jean-Paul Marat, Robert Owen, entre tantos outros306.
Oito slogans contidos nas placas acima mencionadas, por sua vez, podem ser observadas na
listagem de Lunacharsky enviada a Lenin em 1918307.

Em relação à participação na produção desses monumentos, as características da


abordagem artística construtivista durante estes primeiros anos os tornariam ainda menos
adequados à tarefa, aos olhos do Partido, dada a importância conferida ao aspecto
representativo e simbólico deste empreendimento. Pelo contrário, é na discussão sobre o
Plano de Propaganda Monumental, um tema intensamente discutido e representado na
imprensa durante estes primeiros anos, que se pode observar as primeiras divergências
ideológicas entre o Narkompros e tais artistas construtivistas, que eventualmente resultaria em
um crescente distanciamento entre ambas as partes.

Tais divergências seriam problematizadas por Punin, considerado um dos principais


teóricos da vanguarda soviética ao lado de Boris Arvatov e Boris Kushner, quando discutira
no periódico Arte da Comuna as implicações do plano de propaganda monumental e os
conflitos que observava entre este plano e a ideologia revolucionária308. Sua crítica principal

303
LUNACHARSKY, Anatoly. Statya Lunacharskogo Monumentalnaya agitatsiya, in: TOLSTOI, 2010, p.
49.
304
STERNBERG, David. Iz obzora deyatelnosti IZO Narkomprosa ob ustanovke agitatsionnykh
pamyatnikov v Moskve i Petrograde, in: TOLSTOI op.cit., p. 111-112.
305
LUNACHARSKY, Anatoly. Iz pisma A.V. Lunacharskogo V.I. Leninu o khode podgotovki
pamyatnikov i nadpicei, in: TOLSTOI, op.cit., p. 56.
306
Nomes incluídos na listagem publicada pelo Sovnarkom em 1918, posteriormente expandida de modo a
incluir outros nomes – e reproduzida no Anexo, p.279-280. Cf. BONCH-BRUEVICH, Vladimir e
GORBUNOV, Nikolai. Utverzhdennyi Sovnarkomom spisok predpolagaemykh k postanovke pamyatnikov
vydayushchimsya deyatelyam v oblasti obshchestvennoi i kulturnoi zhizn, in: TOLSTOI, op.cit., p. 54-55.
307
LUNACHARSKY, Anatoly. Iz pisma A.V. Lunacharskogo V.I. Leninu o khode podgotovki
pamyatnikov i nadpicei, in: TOLSTOI, Op.cit., p. 56.
308
Lembremos que o Arte da Comuna era um periódico oficial do Narkompros, e que artigos como esse seriam
aqueles que motivariam as já mencionadas críticas de Lunacharsky aos construtivistas que compunham o IZO
Narkompros.
155

se relaciona à preocupação investigativa formal da vanguarda e à sua consequente denúncia e


desprezo relativo ao legado cultural pré-revolucionário, que deveria ser superado e
descartado, de modo a não “infectar” os esforços revolucionários desta nova era.
Consequentemente, lançando mão de elementos da ideologia marxista para sustentar seu
argumento, afirma que “a própria ideia de erguer monumentos aos heróis da grande revolução
309
não é uma ideia comunista. Não há heróis, e especialmente não há grandes heróis” .A
elevação do indivíduo no monumento é para Punin uma contradição com o elemento coletivo
da ideologia revolucionária. Não apenas isso, mas se baseia sobre uma premissa que tem
como prioridade a veiculação de um conteúdo, ignorando implicações decorrentes do uso de
parâmetros formais pré-revolucionários – o que, como ecoariam outros vanguardistas em seus
respectivos escritos, serviria para atrasar o avanço da revolução no campo cultural, impedindo
que a população se desvinculasse da configuração cultural característica da sociedade
burguesa. Em decorrência disso, os escultores “inexperientes e conservadores” responsáveis
por estes monumentos produziriam resultados, para Punin, “tímidos e imitativos”.

À primeira vista, o comentário de Punin parece não considerar a intenção


propagandística destes monumentos. No entanto, sua crítica reconhece a intenção de
disponibilizar um conteúdo à população; o que o autor afirma é que o conservadorismo formal
de tais monumentos é contraproducente, pois não atrai a atenção dos transeuntes que o
rodeiam: “Os monumentos de propaganda são invisíveis não apenas por serem temporários e
pequenos, mas em decorrência da maneira realista através da qual estes indivíduos são
exaltados – que se tornou obsoleta”, afirma310. Em outras palavras, Punin afirma que a
estagnação formal evidenciada na produção de tais monumentos reduzia a sua capacidade de
veicular o conteúdo desejado, pois seus espectadores já haviam em larga medida se
acostumado a tais parâmetros formais, permitindo-os ignorar tais manifestações
propagandísticas cotidianas. A partir desta premissa, Punin concluiria que apenas através da
inovação formal poder-se-ia alcançar os objetivos propagandísticos desejados, na medida em
que tais rupturas formais causariam maior engajamento dos espectadores, levando a um grau
de conexão entre objeto e espectador que tais manifestações representativas não seriam mais
capazes de promover.

309
PUNIN, Nikolai, O pamyatnikakh, in: TOLSTOI, 2010, p. 104.
310
Ibid., p. 105.
156

Como exemplo, menciona o Monumento à III internacional, projetado por Tatlin em


1919 – a ser discutido posteriormente. Drasticamente diferente do que Lenin imaginara
quando formulara seu plano monumental, a abordagem de Tatlin partilha a característica
monumental, o impulso de integração já mencionado, que seria característico do
construtivismo. Afirma Punin que, além de servir uma série de utilidades, o monumento de
Tatlin alcançaria os objetivos que tais monumentos “obsoletos” não mais eram capazes de
atingir, ainda que de forma abstrata, e causar em seus espectadores justamente a reação
desejada pelo Partido: a exaltação da revolução e sua associação às noções de progresso,
modernidade e potência.

Reflexões posteriores parcialmente validariam as afirmações de Punin, na medida em


que a aparente recepção de tais monumentos ficou aquém das expectativas do Sovnarkom e
Narkompros, diante não apenas da baixa qualidade artística de muitos destes monumentos,
que muitas vezes não foram sequer reconhecidos por seus espectadores – como o exemplo do
monumento de Marx e Engels em Moscou, que seria interpretado por muitos como sendo um
monumento à São Cirilo e São Metódio – bem como de questões logísticas relativas aos
prazos de entrega de tais monumentos e dos materiais “transitórios” 311 nos quais eram
esculpidos. No entanto, esta crítica não parece considerar a natureza de curto prazo deste
projeto, a qual decorria justamente da escassez de materiais resultante do período, e da
premissa de Lenin da urgência com a qual tais monumentos se faziam necessários no contexto
revolucionário contemporâneo – quando o monumento de Tatlin, por sua vez, mesmo que não
consideremos tal escassez material e a indefinição das especificações deste projeto imenso,
levaria anos para ser completado.

Diferentemente das áreas de produção artística voltadas para o espaço público acima
mencionadas, seria na produção de pôsteres que os artistas construtivistas melhor
conseguiriam se adequar aos requerimentos partidários. Em decorrência de características
específicas a este campo produtivo, este não só seria um campo no qual tais artistas se
demonstrariam presentes por todo o período aqui contemplado, mas talvez uma das principais
áreas nas quais a intervenção construtivista teria um impacto de longo prazo, podendo-se

311
Cf. LUNACHARSKY, Anatoly. Statya Lunacharskogo Monumentalnaya agitatsiya, in: TOLSTOI, 2010,
p. 50. Os monumentos seriam esculpidos predominantemente em terracota ou gesso, e apenas posteriormente se
vislumbrava sua produção em materiais mais duráveis, como bronze ou mármore. A curta vida útil de tais
monumentos era esperada, porém talvez se possa argumentar que não de forma realista, haja visto que diante dos
elementos alguns monumentos sequer sobreviviam algumas semanas.
157

observar elementos introduzidos por tais artistas em produções posteriores de orientações


diversas, demonstrando uma real e duradoura contribuição a este campo.

Durante a guerra civil, no entanto, a participação da vanguarda neste campo seria


relativamente reduzida, na medida em que ainda adotaria uma postura essencialmente formal
e semelhante àquela observável nos festivais públicos acima mencionados. Exemplo disso é o
célebre pôster de El Lissitzky, “Bata nos brancos com a cunha vermelha”, no qual podemos
observar a vaga mensagem escrita em fragmentos pelo decorrer do texto, e um simbolismo de
cores e formas tão básico que seria ao menos inteligível à maioria de seus espectadores; no
entanto, se comparado a pôsteres contemporâneos mais “tradicionais”, representativos e de
mensagens mais diretas e específicas, como o icônico pôster de Dimitri Moor “Você já se
registrou como voluntário?”, ou a pôsteres de simbolismos ainda mais claros, como “Morte
ao Imperialismo Mundial”, podemos compreender que, diante de um partido que defendia a
linha propagandística do Plano Monumental, a abordagem de Lissitzky seria dificilmente
recebida com entusiasmo. Outros construtivistas, como Rodchenko, Popova e Tatlin não se
debruçaram sobre esta área de produção durante a guerra civil, ocupando-se de outros projetos
pictóricos de natureza experimental ou de suas atribuições institucionais na estrutura do
Narkompros.

A exceção à relativa dificuldade de penetração da produção vanguardista no campo da


produção de pôsteres durante a guerra civil seria a Janela ROSTA (Okno Rosta). A ROSTA
fora inicialmente criada em 1918, sob a jurisdição do Comitê Executivo Central Russo
(VTsIK)312; desde sua formação a ROSTA teve importante participação na área
propagandística, sendo talvez as janelas sua principal contribuição durante a guerra civil –
mas não a única313.

312
VTsIK (Vserossiskii Tsentralnyi Ispolnitelnyi Komitet): Comitê Executivo Central Russo.
313
A ROSTA também “distribuiria mapas, retratos e outros tipos de material visual, e houve tentativas de se
desenvolver jornais e pôsteres ‘iluminados’ projetando slides coloridos sobre as paredes de prédios públicos em
certas localidades adequadas”. Cf. WHITE, 1988, p.67
158

3.1 – Lazar El Lissitzky – Bata nos Brancos com a Cunha


Vermelha, 1920.

3.2 – Dimitri Moor - Você já se 3.3 – Dimitri Moor – Morte ao


registrou como voluntário?, 1920. Capitalismo Mundial, 1919.
159

As janelas ROSTA foram produzidas entre 1919 e 1922 314, e podem ser entendidas
como pôsteres, representações pictóricas no plano acompanhadas de texto de intuito
informativo ou propagandístico, e de tal forma denominadas devido às dimensões de tais
pôsteres315, os quais foram inicialmente afixados a janelas no ambiente público das cidades.
Assemelhadas predominantemente à antiga prática cultural chamada lubok316, produzido a
partir da prática xilográfica, as janelas inicialmente abordariam temas comuns aos demais
esforços propagandísticos soviéticos, como a legitimação da causa revolucionária e a
exaltação de Lenin e do proletariado, através de uma abordagem temática voltada para a
experiência do cotidiano. No entanto, dado o contexto da guerra civil, em sua absoluta
maioria tais janelas parecem ter tido o confronto como tema comum, veiculando diversas
mensagens à população, bem como servindo como uma forma alternativa de transmissão de
notícias relacionadas ao andamento da guerra.

Apesar de ter como seu primeiro produtor o artista Mikhail Cheremnykh, em Moscou,
logo a principal figura envolvida na produção destas janelas se tornaria Mayakovsky, que
assumiria informalmente a liderança desse projeto, exercendo voz dominante na escolha e no
tratamento de temas. Segundo o levantamento de White, Mayakovsky teria sido responsável
por cerca de um terço das janelas produzidas em Moscou, tendo ainda contribuído ativamente
na produção de muitas outras; apenas Cheremnykh teria uma produção numericamente
comparável à de Mayakovsky, e mesmo assim, segundo o próprio Cheremnykh, seria
relegado a segundo plano dado o papel de liderança exercido pelo vanguardista na confecção
das demais janelas317.

314
Em 1920 a jurisdição sobre a produção destas janelas foi transferida para o Para mais sobre a formação do
Glavpolitprosvet (Glavnyi Politiko-Prosvetitelnyi Komitet), ou Comitê de Educação Política do Narkompros.
Tanto a criação deste e de outros órgãos no interior do Narkompros quanto a transferência da agência ROSTA a
esta jurisdição fazem parte de um processo de reformulação que coincidiria com o fim da Guerra Civil, e
discutido em detalhes em FITZPATRICK, 1970, p. 188-255. Para mais sobre a formação da ROSTA Cf.
WHITE, 1988, p.65-67.

315
De acordo com White, as dimensões das janelas “variavam de 90 a 220 cm de altura, e de 70 a 220 cm de
largura; a maior, a janela no 167 do Glavpolitprosvet, era enorme, com 422 cm de altura e 230 de largura”. Cf.
WHITE, 1988, p.68.
316
O lubok é um entalhe tradicional de madeira popular na Rússia deste o fim do período kieviano. Consiste
geralmente em uma ou mais ilustrações entalhadas e pintadas na madeira, acompanhadas de um texto explicativo
ou suplementar.
317
WHITE, 1988, p. 68.
160

Inicialmente produzidas e reproduzidas manualmente, entre 1919 e 1920 as janelas da


sede da ROSTA, em Moscou, passariam a ser produzidas através do uso de estêncil,
resultando em tiragens de até 300 cópias para determinados exemplares; voltadas para a
rápida produção e reprodução, mesmo as janelas mais complexas são nitidamente
simplificadas se as compararmos aos demais pôsteres políticos contemporâneos. Em
Petrogrado, por sua vez, a técnica adotada fora a de talhar o desenho em linóleo, resultando
em um maior grau de detalhe no produto final, mas também em um tempo maior de conclusão
para a janela. Destes dois principais centros de produção – tendo Moscou, comparativamente,
excedido de maneira considerável Petrogrado em termos de produção de janelas originais –
partiriam modelos que seriam também reproduzidos em cidades próximas; em localidades
mais distantes, como Baku e Saratov, manifestações regionais de menor expressão dessas
janelas seriam criadas, seguindo principalmente os parâmetros formais estabelecidos pelo
principal centro produtor, Moscou318.

Em decorrência da escassez de materiais e recursos resultantes do contínuo esforço de


guerra, observa-se em grande número dos pôsteres do período uma abordagem formal
relativamente simplificada, como vimos. No entanto, mesmo se comparadas a tais pôsteres, as
janelas ROSTA demonstrariam um índice de simplificação ainda maior, dada a sua maior
tiragem e a celeridade com a qual se esperava que fossem produzidas. Outros pôsteres mais
elaborados, ainda que produzidos de através da mesma técnica de impressão, demandavam
maior atenção, tempo e recursos em seu processo de coloração, diante da maior riqueza de
detalhes, e consequentemente teriam uma tiragem e exposição inferior àquela das janelas –
como os exemplares abaixo.

318
MOROZOV, Aleksei (org.). Mayakovskii Okna Rosta 1919-1921. Moscou: Kontakt-Kultura, 2010, p. 96.
161

3.4 – Aleksandr Apsit – Ano da 3.5 – Vladimir Deni – Capital, 1920


Ditadura do Proletariado, 1918.

3.6 – Dimitri Moor – Aperte a minha mão, desertor. Você é tanto um destruidor
do Estado trabalhador-camponês quanto eu, o capitalista. Você é minha única
esperança, 1920.
162

O “modelo” formal de Mayakovsky, por sua vez, também pode ser observado na
produção de outros autores das janelas, como Ivan Malyutin e Vladimir Kozlinsky;
caracterizar-se-ia pela utilização simbólica de certas cores – especialmente o vermelho para
designar o cidadão soviético – e a dramatização formal realizada a partir de traços por vezes
exagerados, e por vezes simplificados com o intuito de exaltar determinado elemento do
pôster, focando a atenção do espectador319. Em contraste, nas janelas de Cheremnykh os
personagens são diferenciados especialmente a partir de convenções relativas às suas roupas,
diante de uma postura mais realista em relação à representação dos mesmos, e apenas a partir
de tal observação um espectador poderia diferenciar os personagens apresentados. Como o
próprio Mayakovsky argumentaria, o uso de um número menor de cores distintas tornava as
janelas mais baratas, assim como acelerava a sua reprodução. Nos tempos da guerra civil,
afirmava, novos desenvolvimentos aconteciam diariamente, e se tais janelas demorassem a ser
produzidas, já seriam obsoletas quando chegassem aos olhos do público320. Como discorre
White:

O próprio Mayakovsky recordava como a tecnologia gráfica simplesmente não era


capaz de arcar com a urgência do trabalho que vinha sendo realizado pela ROSTA.
Apenas pôsteres de significância de longo prazo podiam ser reproduzidos;
frequentemente um telegrama era recebido nos escritórios da ROSTA e um pôster
era preparado durante a noite, para ser afixado nas ruas na manhã seguinte antes que
os jornais fossem distribuídos. Notícias de vitórias no front (...) podiam chegar às
321
ruas na forma de um pôster em quarenta minutos em certas circunstâncias .

3.7 – Vladimir Mayakovsky – Ucranianos e Russos têm


um brado em comum, 1920.

319
Para uma extensa seleção das janelas ROSTA de Mayakovsky, Cf. MOROZOV, 2010.
320
WHITE, 1988, p. 76.
321
Ibid., p. 80.
163

3.8 – Ivan Malyutin – Para o Front 3.9 – Vladimir Mayakovsky – Nós


polonês!, 1920. acendemos esta luz sobre o mundo.
1920.

3.10 – Mikhail Cheremnykh – No momento não há quem seja mais pobre do que
nós, 1920.
164

3.11 – Mikhail Cheremnykh – A história das bolachas e da avó que não reconhece a
República, 1920.
165

O real impacto das janelas ROSTA é de difícil análise, dada a maneira caótica através
da qual tais janelas foram produzidas, reproduzidas e distribuídas. Além disso, as janelas não
representariam a totalidade da atividade de produção de pôsteres na Rússia soviética, ainda
que seja seu representante de maior tiragem e o produtor responsável pela maior quantidade
de pôsteres produzidos durante o período. No entanto, os números que as envolvem são
impressionantes, e indicam não apenas um ramo do esforço propagandístico soviético que
recebera financiamento pelo decorrer da guerra civil – acima da média se comparado àquele
destinado a outros ramos da produção cultural e propagandística322 – mas um considerável
escopo de distribuição, que pode ser entendido como reconhecimento estatal da validade e
importância deste ramo de produção. De acordo com o levantamento de White, foram
produzidas cerca de mil e seiscentas janelas entre 1919 e 1922, totalizando um número
estimado de duzentos e quarenta mil de janelas durante o período, contando apenas aquelas
produzidas pelo escritório principal da agência em Moscou323. Os rendimentos de seus
produtores também corrobora a conclusão relativa à importância estatal conferida às janelas,
considerados elevados no contexto da guerra civil, e especialmente contrastantes com os
limitados rendimentos oferecidos, por exemplo, aos funcionários do Narkompros, como
vimos no capítulo anterior. Como aponta White:

Amshei Nyurenberg se recorda que os salários da ROSTA eram pagos duas vezes ao
mês. Seus empregados vinham ao balcão receber [seus rendimentos] com sacolas em
mãos, haja visto que poderiam receber um grosso e, por vezes, pesado maço de
notas em compensação por seus trabalhos (...). [Cheremnykh] começou a se vestir
324
como um dândi, com roupas caras e botas de couro de grife .

O papel de liderança e destaque assumido por Mayakovsky na produção das janelas


ROSTA permite uma discussão mais ampla em relação a produção construtivista soviética
durante estes primeiros anos, no que diz respeito tanto à relação entre tal produção e o partido,
quanto em relação àquela e o público. Dadas as expectativas estatais para a produção artística
voltada para o público, a repercussão positiva da produção de Mayakovsky seria uma exceção
no contexto construtivista, assim mesmo antes da revolução seus escritos gozariam de maior

322
WHITE, 1988, p. 80.
323
Ibid., p. 68, 80-84.
324
Ibid., p. 80.
166

apreço popular em relação aos seus colegas, tornando-o já em 1913 o principal nome do
futurismo russo325.

O que parece distinguir Mayakovsky dos demais construtivistas neste aspecto é a sua
capacidade de abordar os questionamentos formais inerentes à experimentação vanguardista
sem tornar seu produto final inacessível àqueles que não se ocupam do estudo e entendimento
da arte. Mikhail Larionov afirmara em 1913 que “aquilo que é valioso para um amante de
pintura encontra sua expressão máxima na pintura raionista”326. Esta seria uma característica
da produção vanguardista, uma consequência de sua preocupação especializada com a questão
formal: seu distanciamento em relação àqueles que não tinham como principal ocupação ou
preocupação o estudo e entendimento da produção artística em todos os seus detalhes.
Mayakovsky, por outro lado, fora capaz em sua produção de realizar experimentos
semelhantes àqueles de Kruchenykh e Khlebnikov em relação à criação de novas palavras,
uso experimental do espaço da página, utilização de diferentes formas tipográficas, sem tornar
o conteúdo de suas produções demasiadamente abstrato, de modo a permanecer atraente
àqueles que, de outra forma, seriam repelidos pelo experimentalismo vanguardista.

Exemplo dessa especificidade na produção de Mayakovsky, que inclusive precede a


sua participação no empreendimento propagandístico da ROSTA, seria a peça intitulada
Mistério-Bufo327, publicada em 1918, e muito elogiada pelo próprio Lunacharsky. Sob
direção de Meyerkhold, e com a participação do próprio Mayakovsky328, esta peça seria
encenada em Petrogrado como parte das comemorações do primeiro ano da Revolução, e
reencenada pelos anos seguintes, até ao menos 1922. A atuação de Mayakovsky decorrera não
apenas de uma necessidade concreta – pois teve que assumir três papéis ao invés de um em

325
MARKOV, 2006, p.135-138. Entre 1912 e 1914 apenas Igor Severyanin, fundador de uma proposta intitulada
Ego-Futurismo gozaria de superior popularidade popular em relação a Mayakovsky. Entretanto, dado que seu
Ego-futurismo pouco se assemelharia à proposta de experimentação formal defendida pelo grupo Hiléia, e da
considerável semelhança observável entre tal produção e àquela dos escritores já célebres que compunham a elite
da literatura simbolista russa contemporânea, como Fyodor Sologub e Konstantin Balmont – que inclusive
contribuíram para almanaques de Severyanin – a utilização indistinta do termo futurismo para designar tal
produção pode resultar em conclusões distorcidas. A produção de Severyanin se resumia à exaltação do
hedonismo e da modernidade, resultando em produções formalmente semelhantes àquelas dos autores
simbolistas, mas lançando mão de “temas que ofereciam à sua audiência material excelente para devaneios, pois
combinavam exotismo, imagens do haute monde e modernidade” p.92.
326
LARIONOV, Mikhail e GONCHAROVA, Natalya. Rayonists and Futurists: A Manifesto (1913) in:
BOWLT, 1988, p.90-91.
327
MAYAKOVSKY, 2001.
328
Ibid., p.8-9.
167

certas noites, devido a ausência de outros atores – mas de sua interpretação teatral voltada à
proletarização do ator, e do teatro como um todo. Como o próprio afirmaria, Mistério-Bufo,
deveria ser reescrita, alterada, atualizada, banalizada, de acordo com o contexto do tempo
presente no qual era produzida; deveria ser encenada por homens comuns, e dispensava atores
profissionais – especialmente em decorrência da semelhança entre a experiência de tais
indivíduos e aquela dos personagens a serem representados.

3.12 – Cartaz de anúncio da estréia de Mistério Bufo, 1918.


168

A peça retrata de forma simplificada e simbólica o processo histórico que levaria o


proletariado – representado na peça pelos “sete pares de impuros”329 – ao paraíso. Antes de
alcançarem a sua terra prometida, que descobririam nada se assemelhar àquela que a crença
religiosa os prometia, os impuros tem primeiro que se conscientizar e sobrepujar a exploração
que lhes é imposta pelos sete pares de puros330, que representam as elites exploradoras; após
realizada a revolução que os libertaria de tal condição servil, e guiados pelo “mais simples dos
homens” – um profeta do proletariado, papel interpretado por Mayakovsky em 1918 –
haveriam de buscar pela terra prometida na arca que construíram. Para alcançá-la, primeiro
passam pelo inferno e pelo purgatório, onde desdenham do próprio Belzebu e de seus
diabretes, afirmando que tal inferno é pouca coisa se comparado à realidade fabril de onde
vinham; superado o inferno, finalmente encontram o paraíso, onde são recebidos por
Matusalém, Gabriel, e um séquito de anjos e santos – que incluem Tolstoy e Jean-Jacques
Rousseau. Logo concluiriam, no entanto, que tal realidade, em sua insipidez, não os convinha,
em sua insipidez, e partiriam novamente em busca de seu paraíso.

Quando finalmente encontram tal “terra prometida”, os impuros apercebem-se que


esta nada mais é do que uma cidade moderna, tal como aquelas com as quais estavam
acostumados, como Ivanovo-Voznesensk, Shuya e Manchester – portanto nem mesmo as
idealizadas e míticas capitais, mas as cidades que simbolizariam aos espectadores a realidade
industrial. O que tornaria esta cidade o paraíso seriam as “coisas” que lá encontram, as quais
possuem falas na peça, e afirmam: “de ninguém nós somos”. Estas coisas lá estavam para o
usufruto e a partilha dos impuros, que lá então viveriam, a contribuindo para a comunidade
com suas diferentes especialidades, e em comum usufruto das coisas que, por não serem de
posse privada de pessoa alguma, constituem não uma realidade opressiva e pauperizada, mas
ideal.

Nesta peça de Mayakovsky observamos diferentes elementos formais que permitem a


sua associação às demais produções vanguardistas voltadas para o teatro, como o desdenho a
atores profissionais, a diretriz orgânica que resultaria não apenas na constante readaptação do
texto, mas na interatividade entre enredo e cenário, na experimentação vocabular, recorrendo
a palavras e expressões comumente consideradas aquém do texto teatral, entre outros. O

329
Os impuros são: Limpa-chaminés, lanterneiro, chofer, costureira, mineiro, caprtinteiro, peão, criado,
sapateiro, ferreiro, padeiro, lavadeira e esquimós: pescador e caçador.
330
Os puros são: Negus, abissínio, rajá indiano, paxá turco, mercador-valentão russo, chinês, persa bem-nutrido,
francês gordo, australiano, pope, oficial alemão, oficial italiano, americano, estudante.
169

figurino de tal peça seria por si só um desafio aos parâmetros teatrais e um choque aos
espectadores, tendo sido desenhado por Malevich em orientação suprematista: assemelhado às
vestimentas contemporâneas, tais personagens são facilmente identificáveis, dada a natureza
satírica da peça; no entanto, observa-se também a exacerbação de seus elementos pela
abordagem suprematista, angulosa, geometrizada, e autônoma em relação à escolha de cores e
contrastes – bem como por elementos contemporâneos presentes em pôsteres e outras
representações simbólicas que, por exemplo, sempre retratariam a burguesia gorda e com
chapéus estilizados, especialmente cartolas331.

No entanto, o que tornaria Mistério-Bufo excepcional aos olhos de Lunacharsky, e que


justifica as renovadas apresentações durante os anos seguintes seria a coexistência de tais
elementos formais com um conteúdo que contivesse as reflexões e lições que se esperaria de
uma peça escrita para a celebração – e legitimação – da revolução de 1917. Em sua natureza
satírica, Mayakovsky abordaria o tema revolucionário com uma leveza e um humor que seria
não apenas atípico se comparada esta peça às produções literárias de seus colegas, focadas
primariamente na experimentação formal, mas também àquelas de alguns dos principais
autores adeptos de outras orientações literárias, como Blok – com seu pesado poema
revolucionário intitulado Os Doze, de 1918, aclamado por Trotsky332. Em sua narrativa, por
sua vez, Mayakovsky reduz os elementos do processo revolucionário a termos de simples
entendimento popular, adquirindo tons quase educativos, na medida em que se utiliza de
metáforas para ilustrar as condições que levaram e que justificam a revolução de outubro –
bem como delineia aquilo que ainda está por vir.

331
Cf. BONNEL, 1999, p. 196-210.
332
TROTSKI, 2007, p.101-106.
170

3.13 – Kazimir Malevich – Figurino para os sete pares de impuros.

3.14 – Kazimir Malevich – Figurino para os sete pares de puros.

No entanto, o que tornaria Mistério-Bufo excepcional aos olhos de Lunacharsky, e que


justifica as renovadas apresentações durante os anos seguintes seria a coexistência de tais
elementos formais com um conteúdo que contivesse as reflexões e lições que se esperaria de
uma peça escrita para a celebração – e legitimação – da revolução de 1917. Em sua natureza
satírica, Mayakovsky abordaria o tema revolucionário com uma leveza e um humor que seria
não apenas atípico se comparada esta peça às produções literárias de seus colegas, focadas
171

primariamente na experimentação formal, mas também àquelas de alguns dos principais


autores adeptos de outras orientações literárias, como Blok – com seu pesado poema
revolucionário intitulado Os Doze, de 1918, aclamado por Trotsky333. Em sua narrativa, por
sua vez, Mayakovsky reduz os elementos do processo revolucionário a termos de simples
entendimento popular, adquirindo tons quase educativos, na medida em que se utiliza de
metáforas para ilustrar as condições que levaram e que justificam a revolução de outubro –
bem como delineia aquilo que ainda está por vir.

Mistério-Bufo seria uma das mais completas e, de certa forma, aventurosas tentativas
no campo artístico de se apresentar ao cidadão russo os argumentos do partido para justificar
os sacrifícios revolucionários, tratando do tema revolucionário em seu passado, presente, e
suposto futuro. Em sua dicotomia entre puros e impuros, retrata a consciência de classe do
proletariado – “A errar pelo mundo/nosso povão acostumou-se/Não somos de nação
alguma./Trabalho nosso, pátria nossa.”334 – enquanto também aborda diversos aspectos das
classes dominantes vilipendiados pela propaganda partidária, colocando-os em termos
extremamente simples e cotidianos: o italiano e o alemão, a despeito de suas prévias
rivalidades, se unem diante do “inimigo comum” que os impuros representam335; os
argumentos usados pelos puros para justificar a parcela desigual de trabalho recebida pelos
impuros, atrelada à aparente incapacidade dos puros em exercer qualquer tarefa útil ou
prática336, e sua existência abastada e luxuosa antediluviana337; e mesmo as estratégias
adotadas pelos puros voltadas apenas para o apaziguamento das massas e o adiamento da
revolução, como promessas de reformas e democratização política338. Mesmo entre aqueles
que tivessem o menor dos contatos com a interpretação revolucionária vigente, a (breve)
sobrevivência do comerciante após a morte de todos os demais puros durante a revolução dos
impuros339 teria uma significância presente, real, consonante com a posição frequentemente

333
TROTSKI, 2007, p.101-106.
334
MAYAKOVSKY, 2001, p. 53.
335
Ibid., p. 91.
336
Ibid, p. 89.
337
Vale aqui ressaltar que a história se inicia com um dilúvio de proporções apocalípticas que submerge a toda a
Terra, evento que reuniria esta miríade de indivíduos desde o chinês ao americano.
338
MAYAKOVSKY, op.cit., p. 115-127.
339
Ibid., p. 175.
172

defendida pela vanguarda, contrária à sobrevivência de parâmetros artísticos pré-


revolucionários e à integração dos companheiros de viagem na nova sociedade soviética.

Talvez mais importante do que a representação e esquematização do passado


revolucionário, a peça oferece aos espectadores um vislumbre do futuro revolucionário aos
olhos de Mayakovsky: a realidade na qual se encontram! Apesar de recorrer a temas
religiosos correntes – um dilúvio, Belzebu e Matusalém, paraíso, purgatório e inferno –
Mayakovsky desmistifica o significado de inferno e paraíso aos olhos do proletariado, e o
substitui por uma realidade concreta, palpável, visando ilustrar as transformações
fundamentais que supostamente trazia a revolução. O inferno cristão, para os trabalhadores de
Mistério-Bufo, é tão pouco ameaçador que se referem a Belzebu como “um diabo velho, de
cabelos grisalhos”; repetidas vezes o ridicularizam, e por fim o perguntam “o que é que o
senhor achou para nos amedrontar./ Será que na usina/ da fundição/ o senhor nunca foi
passear?”340. O paraíso, por sua vez, os decepciona em sua insipidez, e recusando que por este
paraíso tanto sofreram, continuam em sua busca. Finalmente na cidade que Mayakovsky
retrata como a terra prometida, o tom educativo persiste na narrativa: a ausência de posse, a
“liberdade” das coisas, que lá estão apenas para servir aos impuros, remete à mais básica
premissa do comunismo; a desconfiança dos trabalhadores diante das máquinas, as quais eles
ressentem por os terem substituídos, é substituída pela explicação das próprias máquinas, que
se desculpam, e se afirmam: “do rublo escravas,/escravas de escravocrata/fomos./(...) Os
tentáculos dos mercadores das lojas se lançavam./Com raiva o coração dos mercados
palpitava!/A revolução./santa lavadeira,/com sabão/toda a sujeira da face da terra tirou./(...)
Peguem o que é seu.341”

A conexão que Mayakovsky parecia capaz de estabelecer entre sua produção e o gosto
público russo em geral, no entanto, seria uma exceção no contexto da produção construtivista.
Hipóteses e conclusões relativas a fatores que contribuíram para esta aparente sensibilidade de
Mayakovsky às especificidades do gosto público aqui não serão discutidas; no entanto, sua
existência é de difícil contestação e, ainda que tenha sido um dos signatários do manifesto que
afirmava ter por intenção “estapear” o gosto público, Mayakovsky se diferenciaria dos demais
ao tentar “jogar Pushkin, Dostoevsky, Tolstoy etc. etc. para fora do Navio da Modernidade” e
ativamente promover as diretrizes delineadas em seus escritos de um modo que ainda geraria

340
MAYAKOVSKY, 2001, p. 185.
341
Ibid., p. 253.
173

uma recepção positiva em um amplo número de leitores. A popularidade atípica de


Mayakovsky no contexto construtivista contribuiria, por exemplo, para a persistência da
circulação da Lef e, especialmente da Novyi Lef, e resultaria em sua glorificação póstuma
como um dos maiores ícones literários da revolução, como veremos no capítulo seguinte.

A produção artística construtivista tomada de forma generalizada durante o período da


guerra civil, pelo contrário, se distanciaria deste gosto público em termos fundamentais; é
uma característica recorrente nos escritos destes artistas a postura essencialmente
vanguardista que, para os próprios, os assemelharia aos vitoriosos bolcheviques de outubro.
Tal produção se inspiraria tanto pelo desejo desconstrutivo e experimental pré-revolucionário,
guiado pelo desejo de demolir a “cidadela do bom gosto”342 e de expor os vícios e
perversidades da Academia343, quanto pela intenção construtiva alicerçada por critérios que,
apesar de determinados a partir do interesse público, não contemplavam a participação do
mesmo. É compreensível, portanto, que na produção voltada especificamente para a esfera
pública a participação construtivista durante estes anos iniciais seria pouco significativa, o que
tornaria ainda mais significativo o apoio estatal dado a Tatlin para seus primeiros esforços
voltados para a construção de seu Monumento à III Internacional – o qual será discutido
posteriormente.

Durante a década de 20, por outro lado, observa-se uma expansão da participação
construtivista na produção de pôsteres, na medida em que artistas como, Rodchenko,
Stepanova, Klutsis, Lissitzky e os irmãos Georgii e Vladimir Stenberg – além do próprio
Mayakovsky, após a descontinuação das janelas344 – passariam a dedicar parte de suas
atenções a este campo produtivo. Esta tendência no interior da produção construtivista se
insere no contexto que sucedeu não apenas a formação do Primeiro Grupo de Trabalhadores
Construtivistas, mas da exposição que o antecedera, na qual Rodchenko declarara a morte da
pintura a já mencionada 5x5=25.

Tendo em vista a excepcionalidade das janelas ROSTA no contexto soviético durante


a guerra civil, uma crescente participação de construtivistas neste campo pode parecer
contraditória; no entanto, esta tendência pode ser parcialmente justificada pelas

342
BURLIUK, Davi. From now on I refuse to speak ill even of the work of fools, in: LAWTON, 1988, p. 96.
343
KRUCHENYKH, Alexei. Secret Vices of the Academicians, in: LAWTON, 1988, p. 90-94.
344
Deve-se ressaltar, entretanto, que todos os pôsteres encontrados com autoria de Mayakovsky foram
produzidos em cooperação com Rodchenko, com o papel de liderança técnica adotado pelo último.
174

transformações observadas no campo produtivo em questão. Durante este período, podemos


observar não apenas no contexto soviético, mas por diversas regiões da Europa, uma crescente
importância conferida a considerações técnicas na produção de pôsteres, que paulatinamente
se afastaria de suas origens artísticas e artesanais, dando lugar a abordagens mais
simplificadas, voltadas para a cativação do espectador, a rápida reprodução, e a utilização de
novos recursos tipográficos e fotográficos para a amplificação do efeito deste pôster. Em
outras palavras, ironicamente seria um dos principais impulsos da arte moderna – a ênfase
investigativa sobre aquilo que é específico a cada meio de produção artística – que resultaria
na gradual separação entre a produção artística e produção de pôsteres, gradualmente
desconstruindo a premissa defendida por tantos, inclusive Lunacharsky, da existência de uma
relação direta entre a qualidade artística de um pôster e sua eficácia propagandística345.

Através desta revolução técnica observada no campo de produção de pôsteres, os


construtivistas se viram em condições de aplicar diversas de seus mais recentes experimentos,
seja em campos relativos à arte aplicada ou produção industrial – como aqueles de natureza
tipográfica – ou a recentes técnicas cujas aplicabilidades artísticas ainda vinham sendo
investigadas por eles e outros indivíduos, na Rússia e na Europa – notavelmente, como
veremos adiante, a fotografia e a fotomontagem.

Tais recursos técnicos, a serem discutidos posteriormente, nos permitem compreender


o aparente aumento da capacidade da produção construtivista em formar vínculos com o
público espectador de seus pôsteres. O reducionismo formal e a utilização de novas
configurações tipográficas, bem como a reformulação do uso de espaço no pôster reforçariam
as hipóteses de Punin relativas à necessidade de inovação formal para que a propaganda
contemporânea fosse capaz de melhor atrair as atenções de seu público alvo. Por outro lado, a
importância do recurso fotográfico, não contemplado por Punin em seu artigo, não pode ser
menosprezada; enquanto Punin em 1919 defenderia a construção de monumentos e a
produção de obras propagandísticas abstratas, seguindo a tendência então defendida pelos
artistas que combinariam a experimentação formal do Suprematismo à tarefa utilitária da
vanguarda soviética – como Lissitzky – a produção de pôsteres construtivistas durante a
década de 20 demonstraria um recorrente recurso à representatividade resultante da técnica
fotográfica. Dessa maneira, podemos conferir a este desenvolvimento técnico a criação de
uma comunicação entre a ênfase técnica e industrializante da produção construtivista e a

345
LUNACHARSKY, Anatolii, Revolution and Art (1920), in: BOWLT, 1988, p.192.
175

demanda representativa e concreta do Partido sobre a produção de peças propagandísticas. A


ausência deste aspecto representativo em outras áreas de experimentação e produção visual
construtivista apenas reforça que as demais questões de ordem puramente formal não são
suficientes para justificar a crescente popularidade destes pôsteres, cujos elementos centrais
são, como vemos abaixo, representativos.

A multiplicação de exemplos de participação construtivista na produção de pôsteres


durante o período da NEP é excepcional, na medida em que nos demais segmentos
relacionados à produção visual a participação destes artistas seria gradualmente reduzida
durante o período. No entanto, tal expansão nesta área produtiva específica não é suficiente
para se contradizer a tendência geral de marginalização da produção artística construtivista,
mas sim sintomática de tal tendência, diante do crescente componente técnico presente em
tais pôsteres acima mencionado. Da mesma forma, a produção de tais pôsteres não reflete
uma situação de “dominação institucional” como observou-se no IZO Narkompros durante a
guerra civil, mas sim como um desdobramento da própria NEP; pelo contrário, tais pôsteres
foram comissionados por variados órgãos de diferentes áreas administrativas soviéticas –
dentre os quais pode-se brevemente mencionar Gum346, Rezinotrest347, Gosizdat, Dobrolet348,
Mosselprom349 – bem como empreendimentos privados, indicando um reconhecimento do
apelo propagandístico de tal abordagem gráfica por parte de tais contratantes350. Como afirma
Margolin, mencionando apenas a produção de Mayakovsky e Rodchenko em parceria: “Os
produtos que Mayakovsky e Rodchenko promoveram incluíam cigarros, doces, biscoitos,
borrachas, chupetas, lâmpadas, galochas, livros e manteiga” 351. A aparente recepção pública
positiva, assim como a excepcionalidade de tal recepção, pode ser observada no entusiasmado
depoimento de Rodchenko:
346
GUM (Glavnyi Universalnyi Magazin), ainda hoje aberto na praça vermelha, um dos mais conhecidos centros
comerciais da capital russa.
347
Rezinotrest foi um truste estatal voltado para a produção de produtos de uso cotidiano feitos primariamente de
borracha.
348
Dobrolet (Rossiskoe Obshchestvo Dobrovolnogo Vozdushnogo Flota): Sociedade da Frota aérea voluntária
russa. Formada em 1923, a primeira finalidade da Dobrolet fora a expansão da aviação civil, voltada para o
transporte de carga e passageiros. Eventualmente seria dissolvida, a Dobrolet é considerada a empresa de aviação
originária que eventualmente tornar-se-ia a Aeroflot.
349
Mosselprom (Moskovskoe Upravlenie Selskoe Promyslovoi Kooperatsii): Administração da Cooperativa
Rural de Moscou.
350
MARGOLIN, 1997, p.113.
351
Ibid., p.113
176

O trabalho de propaganda soviética continuava a todo vapor. Volodya escrevia os


textos sobre o piano à noite. (...) Eu e mais dois alunos do Vkhutemas desenhávamos até a
manhã. Toda a cidade de Moscou era adornada com nossas produções. O letreiro do
Mosselprom. Todos os quiosques eram nossos. O letreito do Gosizdat; Preto, vermelho,
dourado. Resinotrest, Gum... Nós produzimos quase cinquenta pôsteres, quase cem letreiros,
pacotes, embalagens, colunas propagandísticas, ilustrações em jornais e revistas352.

Ademais, a expansão construtivista nessa área também decorre do desenvolvimento de


novas áreas de produção artística no cenário russo, notadamente do cinema. Durante a década
de 1920, a produção cinematográfica de indivíduos associados à produção vanguardista, como
Sergey Eisenstein e Dziga Vertov, seriam acompanhadas por pôsteres promocionais de
autoria e configuração formal predominantemente construtivista. Tal como os construtivistas
até aqui mencionados, Eisenstein e Vertov – especialmente o segundo – privilegiariam a
investigação e experimentação formal em suas produções, aplicando conclusões decorrentes
das experimentações fotográficas de Rodchenko e outros construtivistas, bem como
contribuindo para tais experimentações a suas próprias maneiras. Em ambos os casos poder-
se-ia apontar uma preocupação com questões relativas ao conteúdo político destes filmes –
como Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro: Dez dias que abalaram o mundo (1928), de
Eisenstein, ou Um sexto do mundo (1926) e Décimo primeiro [ano] (1928), de Vertov 353. No
entanto, não se deve permitir que tais preocupações eclipsem o aspecto investigativo formal
de tais produções, presentes especialmente em outras produções de cunho político menos
acentuado – como o famoso Homem Com uma câmera (1929) de Vertov.

352
LODDER, 1983, p.201.
353
Respectivamente: Bronenosets Potemkin (1925), Oktyabr: Desyat dnei kotorye potryasli mir (1928), Shestaya
Chast Mira (1926) e Odinnadtsatyi (1928).
177

3.15 – Aleksandr Rodchenko – LenGiz: Livros sobre todos os campos de


conhecimento, 1925.

3.16 – Aleksandr Rodchenko – Profsoyuz é um golpe contra a


escravização da mulher. Profsoyuz é o defensor do trabalho feminino,
1925.
178

3.17 – Aleksandr Rodchenko – Kinoglaz, 3.18 – Georgy e Vladimir


1924. Stenberg – Homem com uma
Câmera, 1929.

3.19 – Anton Lavinsky – Encouraçado Potemkin, 1926.


179

3.20 – Aleksandr Rodchenko – Não é cidadão da USSR aquele que


não é acionista do Dobrolet, 1923.

3.21 – Gustav Klutsis – Sem


teoria revolcionária não há
movimento revolucionário,
1927.
180

3.22 – Gustav Klutsis – Use o verão 3.23 – Gustav Klutsis – Da Rússia da


para aprender, data desconhecida. Nep virá a Rússia Socialista (Lenin),
1930.

3.24 – Gustav Klutsis – O 3.25 – Gustav Klutsis – Sob o


desenvolvimento do transporte é uma estandarte de Lenin. Para a
das tarefas mais importantes para o construção do socialismo, 1932.
Plano Quinquenal, 1929.
181

Enfim, uma observação ampla sobre as diferentes áreas de produção contempladas por
estes artistas parece confirmar a dificuldade encontrada pelos mesmos em conciliar suas
intenções experimentais às expectativas do Partido e do público soviético em suas produções
inseridas no âmbito artístico. Seria especialmente nas áreas em que desenvolvimentos de
ordem técnica afastariam determinados segmentos produtivos dos parâmetros artísticos
previamente estabelecidos que tais artistas parecem ter alcançado seus mais impactantes
resultados no que diz respeito à permeação do espaço público, na medida em que tais aspectos
técnicos permitiriam a estes artistas conciliar seus experimentos à demanda representativa,
inclusive superando seus “ex-concorrentes” da pintura de cavalete em relação ao detalhismo
de suas produções.

Dessa forma, a despeito da presença do elemento utilitário na produção construtivista


durante a guerra civil, não se pode afirmar que durante estes anos a intenção de integrar a
produção artística à área industrial já estivesse definida ou consolidada entre estes artistas.
Não se deve presumir, portanto, que a adoção desta postura produtivista e industrializante
durante a década de 20 tenha sido um desdobramento natural oriundo daquilo que fora
produzido durante os primeiros anos após a revolução, predominantemente experimentais.
Ainda que tal caminho produtivista seja compreensível diante das teorizações prévias de tais
artistas, deve-se também reconhecer a resistência encontrada por tais artistas no que diz
respeito à recepção pública de tais propostas, acima discutida, e o subsequente efeito desta
resistência sobre o caminho adotado por estes artistas. Tal impulso de marginalização oriundo
desta resistência pública seria amplificado por um impulso semelhante de origem estatal, na
medida em que a satisfação da demanda pública tornar-se-ia um critério de crescente
importância em assuntos de administração cultural estatal durante esta década – como
discutiremos no próximo capítulo.
182

Os dilemas do construtivismo em sua busca pela integração industrial do artista.

Durante a década de 1920 é possível observar um grau consideravelmente maior de


definição na proposta utilitária construtivista. O fim da guerra civil e a gradual exclusão de
artistas construtivistas da estrutura administrativa cultural soviética coincidiriam com a
intensificação da tendência defendida entre estes artistas voltada para a integração de suas
capacidades criativas à produção industrial, parcialmente resultante também da resistência
pública apresentada às suas produções durante os anos anteriores. Data deste período a
formação do Primeiro Grupo de Trabalhadores Construtivistas, bem como a participação de
artistas desse grupo no curso básico e nos departamentos voltados às áreas industriais da
Vkhutemas; a experiência fabril de Ioganson, os empreendimentos têxteis de Popova e
Stepanova e as reflexões laboratoriais da Obmokhu, a partir das quais se destacariam
Ioganson, Medunetsky e os irmãos Stenberg; o ocaso do projeto monumental de Tatlin, seus
ambiciosos experimentos industriais, e as empreitadas utilitárias Malevich e seus discípulos
de Vitebsk, que compunham o grupo Unovis354. Foram também publicadas durante a década
os principais periódicos da vanguarda soviética – Lef e Novyi Lef – nos quais muitas das
produções e teorizações de tais artistas foram apresentadas, bem como um número crescente
de títulos de maior fôlego que tratavam do novo papel a ser assumido por artistas diante desta
nova realidade política e industrial – reservando-se aqui destaque a Boris Arvatov, talvez o
principal teórico do construtivismo em termos de produção textual durante o período355.

Inserido neste contexto de definição está o livro Konstruktivism, publicado por


Aleksey Gan em 1922, no qual se pode encontrar o brado “Morte à arte!”, usado aqui como
ilustrativo desta tendência industrializante. Esta declaração, acompanhada de uma reflexão
que presumia a total extinção da arte enquanto manifestação cultural autônoma em
decorrência de sua integração à realidade industrial, revela a faceta mais radical do
construtivismo enquanto uma proposta artística: não mais interessado na investigação daquilo
que era específico a cada modalidade artística, Gan se voltaria à tarefa de adequar o papel do
artista à sociedade soviética contemporânea, o que para ele exigia a transposição dos
parâmetros que definiam tais modalidades artísticas, e a subsequente “extinção” de seu
próprio ofício.

354
Unovis (Utverditelei Novogo Isskustva): Afirmadores da Nova Arte.
355
Por exemplo, ARVATOV, Boris. Iskusstvo i Proizvodstvo. Moscou: Proletkult, 1926, ou ARVATOV,
Boris. Ob [agit i proz] iskusstve. Moscou: Izdatelstvo “Federatsiya”, 1930.
183

A despeito do radicalismo de sua retórica, Gan se insere no interior dos crescentes


debates realizados no Inkhuk relativos ao novo papel a ser exercido pelo artista na nova
sociedade soviética em formação, nos quais a visão que o autor defende não é excepcional.
Neste debate, observa-se a partir de 1921 um crescente consenso quanto à necessidade de
extinção do ofício artístico em sua concepção pré-revolucionária como uma consequência
inevitável dos novos direcionamentos da produção construtivista: o ingresso destes artistas à
realidade industrial356.

O consenso quanto à inevitabilidade da extinção da arte não significaria, no entanto,


unanimidade nos debates realizados no Inkhuk em relação a diferentes detalhes da proposta
construtivista. A principal fonte de divergência em tais debates dizia respeito ao processo de
metamorfose pelo qual se esperava submeter o artista e, finalmente, qual o papel que tal
artista exerceria nesta nova configuração social – bem como o tempo necessário para que tal
processo fosse concluído ou gerasse frutos concretos. A partir do entendimento dos diferentes
papéis atribuídos a este artista industrial pode-se melhor compreender determinadas
características da teorização construtivista, e consequentemente as diversas maneiras através
das quais seus proponentes tentaram realizá-la.

Neste debate, podemos observar duas principais tendências: entre alguns, propunha-se
o reconhecimento do papel do artista como um de agente de liderança criativa, focado
primariamente na concepção de objetos e delegando a outros campos competentes a execução
destes projetos – um artista-inventor. Entre outros, defendia-se a participação direta e
concreta do artista no âmbito de produção industrial, levando-o ao cenário fabril e integrando-
o à realidade produtiva cotidiana – um artista-engenheiro. Duas das citações utilizadas na
abertura deste capítulo foram selecionadas porque ilustram os diferentes graus de importância
conferidos ao aspecto criativo e ao aspecto técnico da produção construtivista em cada uma
destas duas tendências. Por um lado, Karl Ioganson ressalta o vanguardismo criativo e
laboratorial como essencial para os maiores desenvolvimentos técnicos e tecnologicos,
aludindo à “descoberta do rádio”, que por ser um fenômeno radicalmente novo, não poderia

356
Este crescente consenso coincidiria com a gradual exclusão de membros avessos essencialmente a tais
propostas, como Kandinsky, que até então ocupara a presidência do Inkhuk, e após este novo redirecionamento
definiria sua migração para a Alemanha, onde assumiria uma posição docente na Bauhaus, além de se destacar
entre os proponentes do expressionismo que viria a ser apresentado pelo grupo Der Blaue Reiter. Cf. LINDSAY,
Kenneth Clement; VERGO, Peter (Orgs.). Kandinsky: Complete Writings on Art. Nova York: Da Capo, 1994,
p.455-456.
184

ser descoberto a partir de premissas previamente estabelecidas357. Rodchenko, por outro lado,
apesar de partilhar este foco criativo característico antes de 1920 358, passaria após o fim da
guerra civil a apoiar uma abordagem mais participativa e concreta do artista, julgando
“insuficiente” o papel do artista como inventor, e reforçando a necessidade, ao seu ver, da
priorização da contribuição material no trabalho do artista, um construtor acima de tudo359.

A primeira tendência é diretamente relacionada à postura futurista pré-revolucionária


adotada por indivídos como Velimir Khlebnikov e Aleksey Kruchenykh, bem como por
certos membros da segunda geração desta vanguarda como El Lissitzky, Boris Kushner e Karl
Ioganson. Tais artistas pressupunham que aquilo que diferenciava o artista dos demais
indivíduos, e o que o permitia ativamente contribuir para o progresso material humano era a
sua capacidade criativa, o requisito principal que o havia inicialmente atraído ao ofício
artístico. Em diversos de seus escritos pré-revolucionários podemos observar nas teorias
sociais de Khlebnikov o papel do artista e do escritor como o de um criador, de um inventor,
capaz de olhar para o que existe e vislumbrar aquilo que (ainda) não existe – tendo o próprio
Khlebnikov se equiparado a um Prometeu moderno registrado algumas de suas “visões do
futuro”, como a utilização do rádio para a manipulação dos cinco sentidos360, a elaboração de
equações matemáticas gerais capazes de prever o futuro361, entre várias outras.

Ó destino! Não minei vosso poder sobre a raça humana ao desvendar o código
secreto das leis através das quais vós governais? A que espécie de falésia serei eu
362
acorrentado?

Em tais reflexões, Khlebnikov exalta a criatividade do artista ao ponto de sugerir uma


divisão social polarizada a partir deste critério, entre criadores e executantes, entre inventores
e consumidores363, afirmando ser talvez o principal obstáculo enfrentado pela humanidade em
busca do progresso material e científico o monopólio de poder decisório por parte daqueles
357
GOUGH, 2005, p.101.
358
LAVRENTIEV, p.82.
359
Ibid., p.108.
360
DOUGLAS, 1987, p.395-396.
361
Ibid., p.277-291, 386-391.
362
Ibid., p.283.
363
DOUGLAS, 1987, p.359-363.
185

que não eram capazes de vislumbrar o novo, e apenas operar a partir dos parâmetros vigentes
ou, no máximo, promover avanços baseados sobre estes parâmetros, sem demonstrar o
radicalismo criativo necessário para almejar as criações fantásticas que podem ser observadas,
por exemplo, em contos de fadas – alguns dos quais, argumenta o escritor, são reais visões do
futuro, tendo algumas já se tornado realidade364. A própria proposta linguística transracional
de Kruchenykh e Khlebnikov, que buscava o “descongelamento” do entendimento
linguístico365 tendo como um de seus diversos objetivos a libertação do pensamento abstrato e
criativo, tinha como intuito final também ampliar o escopo de visão futura humano.
Resumindo sua visão em uma simples frase, Kruchenykh é capaz de delinear sua perspectiva,
de que para se alcançar maiores entendimentos sobre o mundo que nos cerca era necessário
que se questionasse e que se reformulasse os próprios parâmetros através dos quais nós
construímos o nosso entendimento deste mundo: “uma nova forma verbal cria um novo
conteúdo, e não vice-versa”366.

A visão defendida por Lissitzky em 1920, mencionada no primeiro capítulo, ecoa esta
interpretação relativa ao papel do artista nesta nova realidade sócio-politica ao afirmar a
necessidade de abolir a noção de “trabalho artístico” de modo a libertar o próprio artista dos
constrangimentos que o ofício artístico o impunha, com seus parâmetros acadêmicos e
requisitos externos – visando, nas palavras de Lissitzky, a “reconstrução do mundo”, tarefa
para a qual estes indivíduos haveriam de assumir um papel de liderança.

Ao considerar aquilo que este conceito ultrapassado de trabalho artístico julga ser
criativo como contrarrevolucionário, Lissitzky ecoa a postura defendida por Karl Ioganson e
Boris Kushner em inúmeros debates realizados no Inkhuk. Ioganson defende o aspecto
vanguardista do indivíduo criativo como central para o entendimento do papel do artista nesta
nova realidade, e se alinha à crítica de Kushner em relação àqueles que defendiam a simples
integração destes indivíduos à tarefa industrial como “fetichistas da engenharia”367, cegos à
principal contribuição que tais indivíduos poderiam oferecer à tarefa produtiva.

364
Ibid., p.263-264.
365
KRUCHENYKH, Aleksey. The Word as Such (1913), in: LAWTON, 1988, p.61.
366
KRUCHENYKH, A. Declaration of the Word as Such (1913). In: LAWTON, op.cit., 1988, p. 68.
367
GOUGH, 2005, p. 110.
186

Como discutiremos em breve, um grande número de construtivistas defenderia esta


integração ao trabalho industrial e teriam, portanto, o aperfeiçoamento do artista no campo de
entendimento técnico como prioridade. Ioganson, entretanto, implicitamente considera míope
esta proposta na medida em que, ainda que concorde quanto a necessidade de expansão do
entendimento técnico deste artista, julga necessário que tal técnica sirva não como um fim em
si, voltada apenas para a execução, mas como uma forma de potencializar as capacidades
criativas deste artista-inventor368. De forma mais contundente, denomina como Tatlinismo369
esta faceta que considera excessivamente focada na execução técnica, considerando-a danosa
ao desenvolvimento do construtivismo na medida em que contribuía à estagnação, pois se
foca primariamente sobre a execução e o aperfeiçoamento (racionalização) de objetos, do que
na superação do presente em busca do futuro, e inadvertidamente resultaria na destituição
daquilo que diferenciava o artista dos demais indivíduos envolvidos na produção industrial,
apenas para torna-lo “mais um” engenheiro. Afirma:

A técnica, tal como a observamos no momento atual, sem inovação, é um


pântano [boloto] estagnante.
Técnica é a aplicação de leis e regras e a utilização de invenções já conhecidas.
A técnica é fadada ao estase e à falta de progresso
O especialista técnico [tekhnik-spets] vive às custas do inventor370

Entre os integrantes do Inkhuk, entretanto, apoio à teoria do artista-inventor foi


minoritário. Ainda que cumprisse o requisito básico de integração do artista à atividade
produtiva e a subsequente redefinição – e extinção – do que se entendia por “arte”, tal
proposta ainda manteria um grau de separação entre o artista e a atividade produtiva “de fato”.
Esta aproximação parcial, que ainda reservava ao artista um papel “especial” no âmbito
produtivo, era para muitos uma semelhança intolerável com a noção burguesa do papel do
artista, alheio à atividade produtiva concreta e validado antes pela sua “genialidade” do que
por sua contribuição social. Em outras palavras, aqueles construtivistas que compunham esta
segunda tendência considerariam a interpretação construtivista de Ioganson demasiadamente
imaterial para servir de sustentação para este novo momento da reflexão construtivista, pois
não atrelaria este artista-inventor necessariamente às necessidades materiais contemporâneas
ou permitiria a expectativa de resultados objetivamente verificáveis.

368
GOUGH, 2005, p. 107.
369
Ibid. p. 109.
370
Ibid., p. 110.
187

Os artistas que comporiam a voz majoritária resultante destes debates voltados ao


direcionamento da reflexão construtivista defenderiam a formação de um artista-engenheiro.
Nesta interpretação, o papel criativo do artista, ainda que válido, era secundário diante do
arcabouço técnico que este indivíduo deveria possuir e do papel projetista e produtivo que
deveria exercer. O artista-engenheiro devia, acima de tudo, dominar as possibilidades técnicas
oferecidas pela indústria, para que pudesse executar suas próprias criações, as quais seriam
regidas por necessidades práticas previamente estabelecidas, resultando em um grau menor de
inventividade e um grau maior de pragmatismo se comparado ao artista-inventor sugerido por
Ioganson.

No entanto, havia discordâncias entre os proponentes desta tendência em relação aos


pré-requisitos deste novo papel. Entre alguns, notadamente os mais teóricos contribuintes
deste debate, como Boris Arvatov e Nikolai Tarabukin, reconhecia-se como temporariamente
inviabilizadora a deficiência de entendimento técnico dos artistas atualmente em atividade, os
quais precisariam de extensa educação de ordem técnica antes que pudesse sequer oferecer
qualquer contribuição válida no âmbito industrial. Estes indivíduos defendiam, portanto, a
formação do artista-engenheiro, mas o viam como o resultado de um processo de
reformulação do treinamento do artista, o que resultaria em seu aparecimento apenas durante
os próximos anos, resultante da aplicação de tais novos parâmetros sobre uma nova geração
de indivíduos. Consequentemente, afirmara Arvatov, cabia aos artistas que não dispusessem
de tal know how duas opções – o engajamento político, alheio à produção industrial, ou o
ingresso aos institutos politécnicos371.

Em sua maioria, entretanto, os artistas mais engajados na produção laboratorial


durante os anos anteriores, como Tatlin, Rodchenko, Stepanova, bem como os mais jovens
adeptos desta proposta construtivista advindos predominantemente da Obmokhu372 – como os
irmãos Stenberg e Konstantin Medunetsky – julgavam que os experimentos laboratoriais
realizados nos anos anteriores permitiram a tais artistas o desenvolvimento de sensibilidades e
compreensão industriais adequadas para que tal integração fosse por eles iniciada, ainda que
posteriormente pudesse ser desenvolvida e ampliada por novas gerações de artistas-
engenheiros, formadas por esta primeira geração373 - seriam estes artistas,

371
GOUGH, 2005, p.104.
372
Note-se que Karl Ioganson também fora um membro da Obmokhu, sendo a exceção entre estes membros.
373
GOUGH, 2005, p.104.
188

coincidentemente, aqueles que lecionariam nos ateliês do Vkhutemas, buscando justamente


aplicar seus novos parâmetros artísticos no treinamento de artistas-engenheiros do futuro.

Em outras palavras, se o papel declarado da arte laboratorial era transitório, decorrente


da transformação do artista em artista-engenheiro ou artista-construtor, então a discordância
aqui ressaltada, entre aqueles que defendiam a integração imediata ao campo industrial (como
Rodchenko e Stepanova) e aqueles que recomendavam cautela e o cumprimento de etapas
antes de realizar tal integração final, tratava de quando deveriam tais artistas por fim a tal
período laboratorial374.

Uma questão implícita a esse debate que não é tratada com clareza nos escritos dos
proponentes do construtivismo diz respeito à relação entre o artista-engenheiro que se
pretendia formar e o papel prévio que tal indivíduo exercera enquanto artista. Posto que tal
indivíduo previamente exercera o ofício artístico em um ou mais campos específicos – porém
não em todos – esperar-se-ia que uma transformação do mesmo em um artista-engenheiro
haveria de considerar a sua esfera prévia de produção. O silêncio observado em relação a esta
questão indica principalmente que, no entendimento de seus proponentes, tal questão não se
faria relevante para essa metamorfose, haja visto que todos os artistas partilhavam sua
capacidade criativa, bem como sua discutível compreensão acerca das questões técnicas
relevantes à produção industrial. Com a morte da arte, portanto, viria a extinção daquilo que
separava estes indivíduos entre diferentes campo, tornando-os indistintos no campo
consolidado do artista-engenheiro.

No entanto, como já se pode inferir da produção previamente discutida, houve uma


nítida relação entre a produção laboratorial e artística prévia desta primeira geração
produtivista e seus esforços industriais durante a década de 20; na medida em que se
integravam considerações de ordem pictórica, escultural e arquitetônica na produção
laboratorial construtivista, observa-se também a gravitação de tais artistas a campos
industriais que demonstrassem algum grau de afinidade com as suas produções prévias.

Em termos teóricos, a principal justificativa daqueles que defendiam a noção de um


artista-engenheiro decorria da necessidade de equiparação entre o papel social artista e aquele
dos demais trabalhadores, como desdobramento da adequação da reflexão construtivista aos

374
MARGOLIN, 1997, p.84.
189

parâmetros ideológicos marxistas. Tal equiparação resultaria no entendimento de que, tal


como os demais trabalhadores – e mesmo, ou especialmente, os líderes de cada esfera
produtiva industrial – estes artistas também deveriam ter como diretriz primária responder às
necessidades materiais contemporâneas da população, direcionando sua energia produtiva a
objetivos concretos.

A adoção desta postura por parte majoritária do Inkhuk também pode ser entendida
como resultante de considerações de ordem política, decorrentes do contexto de
marginalização da produção construtivista no âmbito artístico observado durante a década de
20 – e que, como veremos no próximo capítulo, se agravaria pelo decorrer da NEP. Afinal,
seriam talvez os principais trunfos da proposta construtivista, quando comparada às demais
propostas artísticas existentes, a sua aparente afinidade com a ideologia marxista, discutida no
primeiro capítulo, e a sua intenção industrializante e utilitária, que se alinharia à priorização
econômica da política soviética durante esta década; portanto, é compreensível que a
intensificação do processo de integração entre produção artística e industrial tenha favorecido
aquelas manifestações utilitárias que melhor exibissem esta afinidade. Ademais, diante de um
cenário de crescente demanda por especialistas nas mais diversas áreas de produção industrial
decorrente da recuperação econômica e da política de industrialização acelerada adotada
durante essa década, e de concomintante exclusão do utilitarismo no âmbito artístico, observa-
se um cenário teoricamente favorável para aqueles artistas que buscassem suprir tal demanda
– o que seria observado, por exemplo, por Brik, que tentara sem sucesso desvincular o Inkhuk
da jurisdição do Narkompros e sua transferência à jurisdição do Vesenkha375.

Exemplo do impacto desse constrangimento de ordem política pode ser encontrado na


trajetória produtiva do grupo Unovis, fundado por Malevich em Vitebsk em 1919 e passível
de ser inicialmente relacionado com a primeira tendência, mas que gradualmente adotaria
traços da abordagem produtiva adotada pelo Inkhuk durante a década de 1920.

Em sua fundação, o Unovis tinha como principal objetivo a aplicação da teoria não-
objetiva e investigativa do Suprematismo para a expansão da capacidade criativa humana e
para a promoção de novas sensibilidades a partir da exposição pública das produções
laboratoriais suprematistas – e tal como Ioganson, não relacionava diretamente o produtor
destas reflexões à todas as manifestações práticas que destas decorreriam. O manifesto de

375
Vesenkha (Vyshii Sovet Narodnogo Xozyaistvo): Conselho Supremo da Economia Nacional. Sobre a
iniciativa de Osip Brik, Cf. GOUGH, 2005, p.102.
190

Lissitzky previamente mencionado, por exemplo, fora escrito enquanto o artista participava
deste grupo, e lecionava na faculdade de Vitebsk. O Unovis era, portato, inicialmente um
grupo concentrado ainda na produção pictórica não-objetiva, reservando apenas à tarefa de
estimular novas reflexões o aspecto utilitário de sua proposta. Formado na cidade de Vitebsk,
o grupo se distanciaria das reflexões do Inkhuk, situado em Moscou, justamente por
considerar as reflexões do instituto demasiadamente desvinculadas do papel criativo do
artista, como afirma Aleksandra Shatskikh:

O mundo utilitário das coisas, tão passionalmente proclamado pela Unovis não
coincidia com o mundo que, durante o mesmo período, os produtivistas buscavam
criar. Malevich e os membros da Unovis desejavam compreender os “verdadeiros”
alicerces do universo e sua “transformação orgânico-natural – o Suprematismo
adotara uma dimensão ontológica. (...) Os mais proeminentes membros da Unovis
entendiam e partilhavam a postura de Malevich. Chashnik, por exemplo, concebia
suas produções suprematistas (as quais ele explicitamente denominava “planos” ou
“plantas” [blueprints]) como projetos para, e instrumentos de, um novo universo e
de uma nova sistematização do mundo.376

No entanto, na medida em que constrangimentos de ordem financeira reduziram o


financiamento disponível para as atividades do grupo, observa-se entre os membros da Unovis
uma expansão de seu escopo produtivo, levando primariamente a manifestações concretas de
suas reflexões377. Dentre estas manifestações, destaca-se por sua celebridade a abordagem
suprematista decorativa aplicada ao porcelanato, empreendida por membros da Unovis como
Ilya Chashnik, Sergey Chekhonin, Nikolai Suetin e pelo próprio Malevich. Hoje talvez as
mais lembradas manifestações das reflexões deste grupo – juntamente aos Prouns produzidos
e discutidos por El Lissitzky – tais objetos não refletem a orientação previamente delineada
por Malevich e seus colegas, reforçando a pressão de fatores externos sobre sua produção de
maneira mais nítida do que se poderia observar entre os construtivistas do Inkhuk, já que
estes, ainda que igualmente sujeitos a tais pressões, declarariam tal abordagem concreta como
seu objetivo primário. Tais produções também não refletiriam completamente as diretrizes
delineadas pelos proponentes do artista-engenheiro no Inkhuk, na medida em que a
intervenção artística sobre tais objetos fora primariamente decorativa, demonstrando pouca ou
nenhuma intervenção sobre a constituição do objeto em si e, quando tal intervenção ocorrera,
se dera sem que se tivesse como prioridade a racionalização e otimização da funcionalidade
376
SHATSKIKH, Aleksandra. Unovis: Epicenter of a New World, in: GERMANO, C.; GIMENEZ, C. 1992,
p. 58.
377
A exceção a esta tendência utilitária no Unovis foi Lissitzky, que emigrara para a Alemanha no início da
década. Lissitzky retornaria à União Soviética em 1925, onde continuaria a se dedicar a manifestações concretas
da abordagem utilitária, como na decoração de livros e na composição de pôsteres revolucionários, fazendo uso
da fotomontagem. Na Alemanha ele liderou a publicação do ainda hoje discutido periódico vanguardista Veshch-
Gegenstand-Objet, bem como colaboraria com as reflexões e experimentos da Bauhaus.
191

do objeto, mas sim em decorrência de considerações estilísticas – como o bule suprematista


de Malevich.

3.26 – Sergey Chekhonin – Louça 3.27 – Kazimir Malevich – Design


suprematista. suprematista para bule.

3.28 – Kazimir Malevich, Nikolai Suetin e Ilya Chasnik – Louça suprematista.

Entre os artistas que compunham o Inkhuk e apoiavam a formação do artista-


engenheiro pode-se observar uma maior abundância de manifestações concretas de suas
teorias, na forma de projetos, em decorrência de seu foco material, principalmente no que diz
192

respeito à produção de objetos de uso cotidiano. Através de uma abordagem crítica e criativa
aplicada ao processo de construção desses objetos, estes construtivistas buscavam questionar
as presentes dimensões e características dos mesmos com o intuito de otimizar a sua
funcionalidade, ou melhor adequá-los à realidade industrial e social contemporânea através
deste esforço racionalizante.

No que concerne à funcionalidade de tais objetos, observamos a elaboração de novos


modelos de objetos pré-existentes, visando torná-los mais eficientes ou – predominantemente
– ampliar seu escopo funcional, seja ampliando as possibilidades de tal objeto cumprir sua
função primária, ou conferindo ao mesmo múltiplas funções.

A preocupação com a eficiência de tais objetos seria especialmente presente nos


projetos de Tatlin. Em um de seus projetos mais conhecidos, o autointitulado fundador do
construtivismo concebera um modelo de fogão que teoricamente exigiria menos combustível
e melhor preservaria o calor gerado378; outro projeto de sua autoria, o “casaco do trabalhador”,
teria seu design concebido primariamente para as exigências da vida cotidiana do operário
urbano, e supostamente mais eficiente em relação à preservação do calor corporal, além de
apresentar uma racionalização dos elementos da peça, desenhados com as operações
cotidianas do trabalhador em mente, e passível de adaptação a diferentes ocasiões deste
cotidiano.

Mais numerosos seriam os projetos que visavam a otimização ou expansão das


funções de objetos cotidianos. Dentre estes, merecem destaque os diferentes projetos
realizados na Vkhutemas, sob a direção de construtivistas como Tatlin e Rodchenko, que
visavam não apenas a racionalização produtiva desses objetos, mas a sua adequação a
problemas soviéticos contemporâneos, como a economia de espaço e versatilidade,
preocupações evidentes em projetos como uma mesa multifuncional, uma cama que poderia
ser “dobrada” quando não estivesse sendo utilizada, ou mesmo a otimização de ambientes
inteiros, como no projeto de interior para um clube de trabalhadores, exposto no pavilhão
soviético da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas realizada
em Paris em 1925, considerada como o apogeu do construtivismo soviético no âmbito
internacional379 - ainda que, como relembra Margolin, tal exposição tenha tido como público-

378
GRAY, p.259-260.
379
ALLISON, Nicholas (ed.). L’Art Decoratif USSR Moscou Paris 1925. Washington: Henry Art Gallery,
1990, p. 8.
193

alvo um grupo demográfico, e fora organizada em um contexto político, consideravelmente


diferente daquele que se podia observar na União Soviética durante o mesmo período380.

Também reconhecido como um importante desdobramento do impulso de integração


entre arte e indústria foi a iniciativa conjunta de Lyubov Popova e Varvara Stepanova, que
buscaram no campo de produção têxtil demonstrar as possibilidades que resultariam da
integração de artistas ao campo industrial. Em 1923 ambas artistas responderam a um convite
geral anunciado pela Primeira Fábrica Têxtil Estatal de Moscou 381 e passaram a prover os
números desta fábrica, na qual buscaram implementar ativamente suas reflexões artísticas,
buscando adequá-las às realidades industriais.

Neste processo, as duas artistas presumiam alcançar nada menos do que a redefinição
do conceito de roupa, demovendo a priorização estética em prol do aperfeiçoamento formal
do produto, voltado para melhor realização de atividades. O desenho e estampa das roupas
continuou a existir, porém adquiriu um aspecto abstrato e, especialmente, deveria ser ditado
pelo uso específico que se esperava de determinada roupa. A beleza de uma peça de roupa
estaria na sua funcionalidade, a qual seria ditada pela atividade à qual tal roupa seria
destinada; por exemplo, roupas para trabalho seriam diferentes de roupa para lazer, que por
sua vez se difeririam de roupas para esportes. As subdivisões de possíveis funcionalidades de
roupas é imensa, e a cada atividade específica poderiam ser desenhados modelos específicos
para produção em massa.

Com seus desenhos, as duas artistas pretendiam simultaneamente garantir uma


homogeneização do vestuário condizente com uma sociedade sem classes e com a constatação
dos diferentes requerimentos de atividades diversas, e impedir um resultado monótono e
desprovido de estímulos. Em outras palavras, pretendiam produzir roupas específicas para
determinadas atividades e possuidoras de traços distintos em relação a outras peças, ao
mesmo tempo em que buscavam retirar da roupa aquilo que poderia se tornar um vetor de
diferenciação social entre indivíduos – uma consideração ausente no casaco de Tatlin. Esta
diferenciação não decorreria de questões mercadológicas, como tecidos exclusivos ou

380
MARGOLIN, 1997, p.93.
381
Cf. TUPITSYN, Margarita. Rodchenko & Popova: Defining Constructivism. Londres: Tate Museum, 2009,
p.150.
194

costuras artesanais de difícil automatização, mas da variedade de estampas e das diferentes


funcionalidades específicas a cada atividade382.

3.29 – Aleksandr Rodchenko – Projeto de sala de leitura para um clube de trabalhadores,


exposto na Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas de Paris,
1925.

382
A despeito de seu foco funcional, pode-se observar em determinados desenhos de Popova e Stepanova uma
preocupação estilística e alusão à moda enquanto critérios de produção. No entanto, como Margarita Tupitsyn
ressalta em sua análise, tais considerações decorrem especialmente dos constrangimentos mercadológicos da
NEP, e especialmente do reconhecimento da individualidade das usuárias destas roupas, e não representa um
sacrifício da funcionalidade e do pragmatismo construtivista em prol de considerações primariamente estéticas.
Cf. TUPITSYN, 2009, p.153.
195

3.30 – Galaktionov – Cama dobrável, 1923

3.31 – Sobolev – Poltrona-Cama, 1923

3.32 – Ivan Morosov – Cama universal, 1923 3.33 – Rogoshin – Cadeira de


metal tubular, 1928.
196

3.34 – Varvara Stepanova – Desenhos e 3.35 – Lyubov Popova –


estampas para roupas, 1923-24 Modelo de vestido, 1923.

3.36 – Varvara Stepanova – Estampas para roupas, 1924


197

3.37 – Vladimir Tatlin – Modelo para o Monumento à III Internacional, 1921.


198

Este rol de exemplos contendo diferentes projetos e ideias concebidos por estes artistas
durante a década de 20 poderia ser ainda mais extenso, dada a intensidade criativa e projetista
observada no interior dos ateliês industriais do Vkhutemas durante esse período. No entanto,
em sua grande maioria tais projetos não chegariam a ser produzidos em larga escala:
reforçando o prognóstico de Arvatov, as principais razões para que tais projetos
permanecessem limitados a alguns exemplares seriam de ordem técnica ou mercadológica383.

Nos projetos de Tatlin esta limitação técnica pode ser especialmente observada,
principalmente em decorrência da grandiosidade de alguns destes. Seu Monumento à III
Internacional foi definitivamente o mais ambicioso projeto apresentado por qualquer artista
construtivista em termos de dimensões, na medida em que presumia possuir uma altura
superior a quatrocentos metros ao fim de sua construção, o que o tornaria a estrutura
construída mais alta desta época – para termos comparativos, o Empire State Building, que
inaugurado como prédio mais alto do mundo em 1932, tem aproximadamente 443 metros (ou
381 metros desconsiderando a agulha superior). Mais ambicioso do que qualquer outra
construção de dimensões sequer semelhantes, o projeto de Tatlin concebia três estruturas
independentes alinhadas por um eixo central, as quais teriam formas geométricas diversas e
estariam em constante movimento: uma estrutura em forma de cubo seria a maior, e
revolveria ao redor de seu eixo constantemente de modo a completar uma rotação a cada ano;
acima desta haveria uma estrutura piramidal que revolveria completamente uma vez por mês;
e ao topo, uma estrutura cilíndrica que revolveria completamente uma vez por dia.

A comissão estatal recebida por Tatlin para desenvolver o seu projeto em 1919, dado o
contexto econômico do período, decorre antes do prestígio e da posição do artista na estrutura
do Narkompros – era presidente da seção IZO do Narkompros em Moscou até receber tal
comissão e se desligar do comissariado384 – do que de uma avaliação objetiva acerca da
viabilidade deste projeto. Antes de mais nada, que a base desta construção fosse capaz de se
mover presume uma capacidade de sustentação por parte do eixo central que talvez ainda hoje
esteja aquém das capacidades técnicas disponíveis aos engenheiros para uma construção desta
magnitude, uma questão que fora abordada por Tatlin através da construção de uma estrutura
externa que arcaria com esta carga, mas que aparentava, na opinião de Trotsky, “andaimes

383
Cf. GASSNER, H. The Constructivists: Modernism on the way to modernization in: GERMANO, C.;
GIMENEZ, C., 1992, p. 313.
384
BOWLT, 1988, p.205.
199

que não foram retirados”385 – contrastando com a intenção declarada de Tatlin, de suscitar nos
observadores de sua torre um movimento em direção ao infinito 386. Em geral, o projeto de
Tatlin era acima de tudo uma obra conceitual, com relativamente poucas especificações
técnicas, e diversos aspectos que contradizem a priorização funcional – reforçando a
afirmação de Boym quanto ao aspecto “aventuroso e experimental” do Monumento387. Ao
fim, a construção de algumas maquetes do monumento seria o mais próximo que tal projeto
chegaria de sua realização – e mesmo para tais modelos, dada a escassez de metais pela qual
passava a Rússia durante o período, a madeira foi utilizada como principal material de
construção, sendo posteriormente pintada de prateado para se assemelhar a metal388.

Em outro ambicioso projeto de Tatlin, talvez ainda mais ambicioso do que seu
Monumento do ponto de vista técnico, o construtivista tentou construir um aparato para voo
individual, a Letatlin. Mais do que o Monumento, a Letatlin seria prova contundente do
insuficiente entendimento técnico do artista; a partir da observação de insetos, e os tendo
como inspiração, o desenho final da Letatlin indica pouca adequação a considerações relativas
a aerodinâmica e desconsidera o peso corporal humano como desproporcionalmente superior
à capacidade do indivíduo em movimentar as asas do objeto – tampouco seriam estas asas
necessariamente resistentes para sustentar tal peso. Tal como seu Monumento, projetado mais
de dez anos antes, a Letatlin permaneceria como uma ideia, nunca produzida a não ser
enquanto uma representação desta ideia.

Mesmo quando Tatlin projetara produtos viáveis do ponto de vista técnico, outras
considerações práticas os inviabilizaram; tal fora o caso de sua vestimenta para trabalhadores,
a qual demonstrava diversos benefícios práticos, múltiplas possibilidades de uso e um design
racional, mas seria rejeitada por muitos trabalhadores devido a sua simplicidade estética e
inviabilizada industrialmente devido ao seu alto custo de produção e quantidade de detalhes
que tornava difícil a automatização da produção do mesmo389. Obstáculos semelhantes seriam
impostos a outros projetos industriais construtivistas, como os objetos desenhados por alunos

385
Apud. BOYM, 2008, p.9.
386
GRAY, 1971, p.226.
387
Apud. BOYM, op.cit., p.9.
388
GRAY, op.cit., p. 226.
389
LODDER, 1983, p.147.
200

do Vkhutemas ou os desenhos têxteis de Popova e Stepanova, os quais se demonstrariam


geralmente incapazes de “convencer” os diretores de fábricas quanto à viabilidade de sua
execução.

Outros fatores também podem ser entendidos como relevantes para o relativo
insucesso destes construtivistas em materializarem suas propostas em grandes números. Um
deles seria o gosto público, desafio recorrente imposto a tais artistas: o foco funcional e
padronizador e o questionamento de parâmetros existentes presente em alguns destes projetos,
como o casaco de Tatlin, os tornariam menos atraentes para aqueles responsáveis pela
produção de indústrias – incluindo líderes partidários – voltados para a recuperação da
produção industrial depois da guerra civil e para a satisfação da clientela cujas decisões, como
já vimos, frequentemente não coincidiram com o direcionamento produtivo construtivista. O
próprio Osip Brik, no artigo “Do quadro ao chintz”390, relata em sua reflexão as dificuldades
encontradas pela produção construtivista em suas empreitadas industriais, ressaltando – e
exagerando – o êxito têxtil de Popova e Stepanova como excepcional, demonstrando
pessimismo quanto aos sucessos de tais projetos até então. Mesmo nos modelos de Popova e
Stepanova, que indiscutivelmente apresentavam alguma preocupação estilística e ofereciam
diversidade tanto em função quanto em apresentação visual, em sua maioria contrariavam
parâmetros vigentes relativos à vestimenta feminina, contrastando com periódicos estilísticos
contemporâneos em relação aos seus componentes391.

Além de falhas de ordem técnica e da relativa indiferença por parte do público diante
deste esforço de racionalização de produção de objetos cotidianos, parece ter sido um fator
importante e frequentemente desconsiderado a incapacidade de tais artistas em “vencer a
inércia” da produção industrial. Por um lado, tais novos projetos simplesmente não
ofereceram suficientes melhorias que justificassem os riscos envolvidos com a sua produção
em massa, incluindo variáveis que vão desde a aceitação do novo produto no mercado –
incluindo, em muitos casos, um preço mais elevado – até a adequação do processo produtivo
ao novo produto392; por outro, pode-se também postular que os números reduzidos de adeptos
à tarefa de criação do artista-engenheiro, um número demasiadamente pequeno mesmo
quando posto no contexto apenas do Vkhutemas – no qual apenas 10% de seus 1300 alunos

390
BRIK, Osip. Ot kartiny k sitsu, in: LEF. Moscou: Gosizdat, 1924, no 6, p.27-34.
391
Cf. TUPITSYN, 2009, p.152-153.
392
MARGOLIN, 1997, p.100-102.
201

estavam matriculados nos ateliês voltados para a produção industrial393 – que se torna quase
insignificante quando visto no contexto industrial de Moscou, ou da Rússia como um todo.
Em outras palavras, se por um lado os projetos construtivistas acima mencionados não foram
capazes de oferecer resultados tecnicamente viáveis, ou ao menos versões suficientemente
aperfeiçoadas de modo a compensar os riscos e ajustes produtivos decorrentes, por outro lado
o construtivismo enquanto tendência produtiva não dispunha de voz ou volume significativos
no âmbito industrial, o que pode ter contribuído para as dificuldades na realização destes
diversos projetos.

Às dificuldades encontradas por estes artistas em relação à inserção no campo de


produção industrial deve ser acrescida a incompatibilidade observada entre os conhecimentos
técnicos destes indivíduos e as demandas industriais deste período. Deve-se lembrar que o
período que seguiu a aplicação do primeiro plano quinquenal fora um de intenso
desenvolvimento industrial, o qual se pretendia alcançar através do treinamento e utilização
de especialistas em suas respectivas áreas de atuação. Era, portanto, um contexto
diametralmente oposto às teorizações construtivistas que conceberam a noção de “artista-
construtor”, um indivíduo capaz de horizontalmente integrar a criatividade do artista aos
conhecimentos técnicos dos campos de produção industrial. O próprio Trotsky, escrevendo
em 1923, condenara tais ambições integradoras ao fracasso, reafirmando a resistência
demonstrada à produção vanguardista pelo público soviético, bem como atestando a
semelhança entre suas visões artísticas e a “linha dura” que seria implementada na URSS após
sua emigração. Afirma:

Os poetas, pintores, escultores e atores deveriam então parar de refletir, representar,


escrever poemas, pintar quadros, talhar esculturas, exprimir-se diante da ribalta e
introduzir sua arte diretamente na vida? Como? Onde? Por que portas? É preciso
seguramente aplaudir toda tentativa de incrementar, tanto quanto possível, o ritmo, o
som e a cor nas festividades populares, nos comícios e nas manifestações. Que se
tenha ao menos, porém, um pouco de imaginação histórica para compreender que
mais de uma geração virá e desaparecerá entre a pobreza econômica e cultural dos
dias de hoje e o momento em que a arte se fundirá com a vida, isto é, quando a vida
se enriquecerá em proporções tais que se modelará inteiramente na arte.

Para o bem ou para o mal, a arte como profissão subsistirá por muito tempo ainda,
servindo de instrumento de educação artística e social das massas, de seu praer
estético (...). Rejeitar a arte como forma de descrever e imaginar o conhecimento,
porque se opõe à arte burguesa contemplativa e impressionista dos últimos decênios,
significa arrebatar às mãos da classe que construiu uma nova sociedade uma
394
ferramenta da maior importância .

393
MARGOLIN, 1997, p.93.
394
TROTSKI, 2007, p.114.
202

Em suma, é nítida a discrepância entre o entusiasmo e a diligência demonstrados nos


diversos projetos industriais de autoria construtivista e a realidade produtiva industrial que,
predominantemente por questões relacionadas à factibilidade de tais projetos, os recusaria.
Em decorrência desta discrepância, é relevante o questionamento de Margolin relativo ao
utilitarismo construtivista, quando se pergunta se a reflexão construtivista fora “antes retórica
do que prática”395. Partindo desta reflexão, e realizando-se uma análise retrospectiva, a
produção construtivista acima discutida poderia ser melhor assemelhada a uma nova fase
laboratorial, na qual seus produtores se aproximavam da tarefa produtiva industrial ainda
como parte de sua proposta experimental e dedutiva – de certa forma, como sugerira Arvatov
e Tarabukin.

Posto em outras palavras, durante os primeiros dez anos de experiência revolucionária


muitos construtivistas não foram capazes de efetivamente corresponderem às propostas
utilitárias delineadas em seus manifestos396. Reconhecendo em uma autocrítica tal
predominante insucesso, o formalista Viktor Shklovsky, discursaria durante o Primeiro
Congresso de Escritores Soviéticos da União, realizado em 1934, quando a postura não-
intervencionista inicialmente defendida por Lunacharsky e Lenin havia sido substituída por
uma de direcionamento e controle estatal sobre a produção artístico-literária: “Nós, antigos
membros da Lef, pegamos o que era útil da vida, pensando que isso era estético. Nós,
construtivistas, criamos uma construção que se provaria não-construtiva”397. Ainda que as
circunstâncias políticas do período, que discutiremos a seguir, possam levar ao
questionamento a sinceridade desta autocrítica, a conclusão de Shklovsky relativa aos
resultados alcançados pelos construtivistas não parece divergir daquilo aqui discutido.

A notável exceção aqui relevante é a de Karl Ioganson, ex-membro da Obmokhu.


Ioganson que exercera entre 1923 e 1926 um cargo de direção na indústria metalúrgica
Prokatchik, em Moscou, bem com diretor da cooperativa estatal Pavlishchevo – situada a
duzentos quilômetros de Moscou, na guberniia de Kaluzhskaya – a partir de 1929. As
atividades de Ioganson em suas funções são descritas e analisadas em detalhes por Gough, a

395
MARGOLIN, p.85.
396
Cf. GOUGH, 2005, p.151.
397
Cf. BOWLT, 1988, p.291.
203

qual reconhece o status excepcional de tal participação industrial no contexto construtivista398.


No entanto, este excepcional sucesso de Ioganson em integrar-se ao campo de produção
industrial deve-se não apenas ao considerável conhecimento técnico de Ioganson, adquirido
enquanto aluno do Vkhutemas, mas à sua flexibilidade profissional, na medida em que
exercera outros papéis durante a sua carreira industrial que pouco ou nada tinham de
semelhante ao papel de artista-engenheiro defendido por seus ex-colegas no Inkhuk – mas sim
com o perfil aberto e predominantemente criativo que o próprio Ioganson tentara definir em
sua noção de artista-inventor, ainda que o papel exercido por ele nas fábricas em que
trabalhou não tenha sido predominantemente voltado para a pesquisa ou criação industrial.

A ironia que representa a carreira industrial de Ioganson é ampliada, porém, quando se


lembra que sua proposta voltada para a formação de um artista-inventor fora rechaçada no
interior do Inkhuk primariamente em decorrência da singularidade imaterial que conferia ao
artista, elevado a um patamar superior por uma qualidade imensurável e subjetiva. Seu
principal proponente, por outro lado, se assemelharia a um trabalhador industrial mais do que
qualquer outro de seus colegas, exercendo cargos no interior de tais fábricas que pouco ou
nada se assemelhariam ao trabalho artístico pré-revolucionário, mas ainda assim de modo que
poderia ser entendido como inserido na ampla categoria de artista-inventor.

O artista-engenheiro, por outro lado, defendido majoritariamente no Inkhuk em


decorrência de sua clara integração ao “front industrial” e, consequentemente, à sua suposta
equiparação ao operário, demonstraria reter em sua essência uma posição de destaque
semelhante àquela do artista-inventor, ainda que menos nítida, em decorrência do papel de
liderança projetista que havia de exercer. Seus proponentes jamais demonstraram a nítida
intenção de ingressarem no campo de produção industrial como operários, mas sempre como
criadores, diferenciando-se de Ioganson primariamente em relação à aplicação de tal
prerrogativa criadora mesmo a metas previamente estabelecidas, voltada para a solução de
problemas específicos e previamente reconhecidos – uma diferenciação relativamente branda,
se comparada às divergências observadas nas teorizações de tais artistas, e especialmente
entre os mais radicais defensores do artista-engenheiro, como Stepanova.

Diante da aparente intransponibilidade dos obstáculos encontrados pelos primeiros


artistas-engenheiros em seus empreendimentos industriais, seria fora do escopo industrial, no
campo de design gráfico, que tais artistas alcançariam resultados mais significativos e de

398
GOUGH, 2005, p.152-189, passim.
204

impacto mais visível e abrangente, que inclusive influenciaria a produção soviética durante os
anos seguintes. Através de experimentações tipográficas e fotográficas, bem como da
aplicação da técnica da fotomontagem, os construtivistas que enveredaram pelo campo do
design gráfico participariam da produção de objetos concretos, como pôsteres, livros,
letreiros, embalagens, entre outros, e consequentemente alcançariam um grau de êxito com o
qual nenhum de seus experimentos estritamente industriais poderia ser comparado.

Em contraste com a análise de Lodder, aqui não se afirma existir uma


incompatibilidade entre a ocupação com o design gráfico e as propostas construtivistas399, na
medida em que tal atividade cumpre os requisitos gerais da definição da categoria discutida
no primeiro capítulo, e se comparada à produção das janelas ROSTA apresenta ainda maior
participação técnica por parte do artista – que se expandiria para a composição gráfica de
objetos de uso cotidiano. No entanto, diante do contexto de meados da década de 20, na qual
como vimos a perspectiva construtivista se estreitara de modo a se voltar primaria ou
exclusivamente à produção industrial, o foco gráfico demonstra-se como um nítido recuo.
Ainda que os experimentos funcionais de tais artistas, bem como o foco industrial que os
dirigia, não tenham cessado por completo antes de 1929, a crescente ocupação com o campo
gráfico durante a década pode ser entendida como sintomática do declínio de tal diretriz, já
que a grande maioria dos artistas que por este campo enveredaram foi previamente o núcleo
do Inkhuk que defendera de forma mais convicta a formação do artista-engenheiro400.

A experimentação tipográfica fazia parte das preocupações vanguardistas mesmo antes


da revolução de 1917. A já mencionada proposta linguística transracional de Khlebnikov e
Kruchenykh, bem como as reflexões que a sucederam empreendidas por grupos formalistas se
pautariam sobre a premissa de que o conteúdo atribuído a uma palavra não era a única
variável que determinaria o impacto da mesma, mas que outras variáveis teriam igual ou
superior valor ao determinar tal impacto, e deveriam, portanto, ser objeto de reflexão: como,
por exemplo, fonética, tamanho, tipo, disposição na página etc. Afirmavam estes autores que
o mesmo texto, se tipografado ou manuscrito, causaria um efeito diverso ao seu leitor; que
traduções, focadas no conteúdo de palavras e na sua substituição por correspondentes,
implicava em inevitável perda ou transformação do efeito final da obra, devido à manutenção

399
LODDER, 1983, p. 181
400
Entre aqueles que enveredaram pela produção gráfica em meados da década de 20, podemos mencionar Gan,
Klutsis, Lissitzky, Rodchenko, Stepanova, Popova, Lavinsky, Medunetsky, os irmãos Stenberg – portanto,
primariamente os prévios defensores do artista-engenheiro.
205

de apenas uma dessas variáveis, ao custo das demais; que o espaço “em branco” da página, se
manipulado desta ou daquela maneira, poderia contribuir para qualquer que fosse o impacto
desejado pelo autor – como os poemas de “ferro-concreto” produzidos por futuristas como
Vasily Kamensky, caracterizados pela quase total ausência de tal espaço “livre” 401. Caberia à
experimentação formal, portanto, desafiar os parâmetros estabelecidos em relação a estas
variáveis, que então eram interpretadas como constantes, de modo a ampliar as possibilidades
e combinações aplicáveis ao campo de produção gráfica.

Entre construtivistas voltados para o aprimoramento de suas produções através de


aplicação de novas técnicas, reflexões tipográficas exerceram um papel duradouro sobre o
cenário de design gráfico soviético. Diferentes variações tipográficas, incluindo diferentes
tamanhos, contidas em um mesmo produto – como os pôsteres acima apresentados – fariam
parte das reflexões de tais artistas, que julgavam tais considerações relevantes para se otimizar
o efeito do produto gráfico finalizado. Em especial a alocação textual sobre o espaço plano
contrastaria cada vez mais com exemplos prévios, aplicando-se o texto de formas inovadoras
e que visavam complementar outros elementos da obra, dispondo-os de forma diagonal, em
diferentes espaços, ou adquirindo formas e dimensões que contribuíssem para o conteúdo total
da obra – emulando sons ou movimento, por exemplo, como no caso dos pôsteres
apresentados acima – ao invés de representar uma simples veiculação de conteúdo.

Mais impactante do que tais experimentos tipográficos seria a prática da


fotomontagem, cuja introdução na produção gráfica construtivista, como já observamos, seria
o principal fator que justificaria o desproporcional apelo público deste campo produtivo se
comparado aos demais campos de concentração da produção de tais artistas. Em decorrência
de sua representatividade e de sua inteligibilidade, seria também através desta técnica que a
produção construtivista se tornaria mais palatável aos órgãos públicos e grupos privados que
optariam por tal abordagem para fins propagandísticos402.

Através da aplicação desta técnica, observada pela primeira vez na produção de certos
dadaístas berlinenses403, os construtivistas presumiram poder afirmar em seus periódicos que
estavam corretos desde o princípio em relação à obsolescência da arte figurativa, e a esta

401
MARKOV, 2006, p.196-199.
402
LODDER, 1983, p.187.
403
Ibid., p.186.
206

opunham a abordagem técnica da fotografia e de sua seletiva manipulação – fotomontagem –


de modo a alcançar resultados mais realistas e, simultaneamente, de mais eficiente
reprodução. Ainda mais, a aplicação desta técnica também permitiria composições
anteriormente sequer contempladas, na medida em que a arte figurativa – e especialmente
seus produtores – era regida por parâmetros de composição que limitavam a disposição de
elementos pictóricos404. A fotomontagem, por sua vez, permitia para tais artistas a
coexistência de dois extremos até então distantes: a fidelidade ao detalhe decorrente da prática
fotográfica, e a disposição abstrativa ou livre de elementos decorrente da ausência de
parâmetros voltados para tal prática. O resultado da aplicação da fotomontagem e da
manipulação tipográfica foi uma composição visual até então indisponível, por vezes
alcançando níveis de abstração que demonstrariam a persistência de um viés experimental e
investigativo na produção gráfica construtivista.

3.38 – Aleksandr Rodchenko – Montagens para o livro Pro Eto de Mayakovsky,


1923

O grau de verossimilhança permitido pelo recurso fotográfico, no entanto, não resultou


na obsolescência da arte figurativa como profetizaram os construtivistas. Em suas

404
POPOVA, Lyubov. Foto-Montazh in: LEF, no 4. Moscou: Gosizdat, 1923, p. 41-45
207

interpretações relativas ao papel da fotografia e da fotomontagem no campo gráfico e visual,


os construtivistas focaram especialmente na capacidade de tais técnicas de retratar em
detalhes a realidade cotidiana, apresentando portanto em uma riqueza sem precedentes – e por
uma maior variedade de ângulos – os detalhes deste cotidiano405. Não contemplaram,
portanto, em sua exaltação da fotografia por sua riqueza de detalhes o aspecto épico e até
certo ponto idealizado que seria um dos pontos centrais da principal associação artística que
propunha uma abordagem figurativa e realista no campo visual, a AKhRR. Afinal, já na
década de 1860 a proposta realista dos Andarilhos se diferenciara não por sua capacidade
técnica, mas sim pela maneira através da qual seus temas foram abordados no campo
pictórico, pelo seu conteúdo extra-pictórico, social. Tal como estes, a AKhRR – que se
pressupunha sucessora da tradição dos andarilhos – também demonstraria um foco maior
sobre o tratamento dos temas abordados em suas produções do que sobre minúcias de ordem
técnica pictórica, e dessa maneira, melhor serviria a finalidade da arte para o processo
revolucionário, de acordo com o entendimento da liderança partidária durante o período406.
Adicionalmente, a escassez de material fotográfico durante o período, bem como a
necessidade de se retratar o passado – e faze-lo de forma idealizada – seriam alguns dos
diversos fatores que contribuiriam para, no mínimo, o adiamento da anunciada obsolescência
da pintura figurativa na União Soviética407.

Para além de sua aplicação concreta na produção gráfica, a prática fotográfica também
significou um novo campo laboratorial para um construtivista em especial: Rodchenko – que
reconheceria o campo fotográfico como essencialmente experimental, decorrente de sua
juventude408. Ainda que se possa considerar a própria aplicação da fotomontagem durante
esses anos como uma atividade laboratorial ao menos em parte, seria Rodchenko aquele que,
na União Soviética, se destacaria durante esse período como um investigador das diferentes
aplicações e possibilidades oferecidas pela prática fotográfica em si.

Suas reflexões e fotos, presentes em diversos exemplares da LEF e Novyi LEF, tinham
como objetivo expandir o seu entendimento sobre as aplicabilidades dessa nova técnica,

405
MARGOLIN, 1997, p. 133-134.
406
Decisão que teria consequências importantes relativas ao respaldo político conferido à AKhRR durante a
segunda metade da década de 20, discutido no capítulo seguinte.
407
LODDER, 1983, p.185.
408
MARGOLIN, op.cit., p.151.
208

abordando aquilo que lhe era específica. Diante da novidade desta modalidade, em certos
casos tais especificidades ainda haviam de ser “descobertas”, na medida em que as primeiras
manifestações práticas do uso da fotografia se resumiram amplamente à emulação da prática
pictórica – em retratos, por exemplo. Caberia aos esforços experimentais de indivíduos como
Rodchenko e Klutsis – assim como Moholy-Nagy, na Alemanha409 – a apresentação de novas
possibilidades permitidas pela fotografia, como novas perspectivas decorrentes de diversos
ângulos, manipulação de luz, sobreposição de profundidades em um suporte plano, entre
outras. Ecoando a postura vanguardista pré-revolucionária, que visava através da
experimentação formal causar estranhamento em seus espectadores, o que por sua vez
causaria questionamentos e reflexões, voltadas – esperavam seus autores – às convenções e
aos parâmetros artísticos, culturais e sociais vigentes, e afastando-os da “perspectiva
umbilical” 410, uma perspectiva naturalizada focada tão somente em seus respectivos campos
de visão. Nos dois fragmentos abaixo, escritos por Rodchenko, podemos observar suas
intenções e justificativas formais para suas reflexões e seus experimentos fotográficos:

Para que se ensine um homem a olhar de uma nova maneira é necessário que se
fotografe objetos ordinários e familiares de perspectivas completamente inesperadas
e posicionados de forma igualmente inesperada, assim como fotografar novos
objetos de uma grande variedade de perspectivas de modo a oferecer uma completa
impressão do objeto.

Nós somos ensinados a olhar de uma forma rotineira, inculcada. Nós precisamos
descobrir o mundo visível. Nós precisamos revolucionar nosso pensamento visual.
411
Nós precisamos remover a catarata de nossos olhos .

e
Quando eu apresento a imagem de uma árvore vista de baixo como se fosse um
objeto industrial, uma chaminé, isso causa uma revolução sobre os olhos do filisteu
e do velho conhecedor de paisagens. Dessa forma, eu estou expandindo a nossa
412
concepção relativa ao objeto ordinário, cotidiano .

409
MARGOLIN, 1997, p. 123-162, passim.
410
Ibid., p.153.
411
Apud. LODDER, 1983, p.204.
412
Apud. MARGOLIN, op.cit., p.133.
209

3.39 – Aleksandr Rodchenko – 3.40 – Aleksandr Rodchenko – Escada de


Fotografia de capa na Novyi Lef no 1, incêndio, 1925.
1927.

3.41 – Aleksandr Rodchenko – Escadas, 1930.


210

Apesar de não ter suplantado a arte figurativa, os resultados alcançados pela produção
gráfica construtivista da década de 20 teria um impacto profundo sobre o futuro deste campo
na União Soviética. Ainda que aplicada de variadas maneiras, a fotomontagem
paulatinamente se tornaria uma prática corrente na produção de pôsteres propagandísticos.
Determinados elementos da experimentação tipográfica construtivista, por sua vez, também
podem ser observadas, como a recorrência do uso de diagonais no espaço gráfico e a
manipulação textual visando ampliar a mensagem do produto final.

Se observarmos a produção construtivista durante a década de 20 como um todo,


entretanto, conclui-se que em sua grande maioria os projetos construtivistas ficaram aquém
das grandes ambições delineadas por seus proponentes. Em relação ao aspecto mais
ambicioso e importante de sua proposta artística, a integração entre arte e produção industrial
e subsequente extinção da arte enquanto atividade autônoma, pode se observar a insuficiência
de conhecimento técnico e científico de tais artistas como o principal fator agravante, que
justifica não apenas o insucesso resultante dos projetos apresentados por tais artistas-
engenheiros, mas o maior grau de tal insucesso, se comparado a outros empreendimentos
construtivistas durante o período que também encontraram resistência e um grau reduzido de
êxito. Sobre a produção construtivista como um todo, como havemos de discutir a seguir,
questões relativas à recepção pública de tais produções e, especialmente, relativas à
intervenção estatal sobre a produção artística seriam os principais fatores que levariam a
proposta construtivista, tão afim à ideologia marxista e modernizante em sua abordagem
formal, à extinção antes mesmo de 1932.
211

Interlúdio

No romance “Darkness at Noon”, escrito pelo húngaro Arthur Koestler em 1940, o


personagem Rubashov encontra-se em uma cela aguardando julgamento por seus supostos
crimes, dentre os quais figura a participação em uma conspiração para assassinar No 1, o líder
de seu país. A passagem abaixo é relata uma das inúmeras reflexões de Rubashov, no interior
de sua cela, e se demonstra especialmente relevante para a discussão do período a ser
realizada a seguir.

... A verdade última é penultimamente sempre uma falsidade. Aquele que acaba
provado correto ao fim parece anteriormente ser nocivo e equivocado.
Mas quem será provado correto? Isto será apenas sabido posteriormente. Enquanto
isso ele está fadado a agir a crédito e a vender sua alma ao demônio, esperançoso de sua
absolvição pela história.
Diz-se que No 1 tem “O Príncipe” de Maquiavel sempre sobre sua mesa de cabeceira.
Bem como deveria: desde então, nada realmente importante foi dito sobre as regras da ética
política. Nós fomos os primeiros a substituir a ética liberal do “fair play” do século XIX pela
ética revolucionária do século XX. Nisso nós também estávamos certos, uma revolução
conduzida a partir das regras de críquete é um absurdo. A política pode ser relativamente
justa durante os períodos de fôlego da história; em seus momentos mais críticos não há outra
regra possível se não a de que os fins justificam os meios. Nós introduzimos o neo-
maquiavelismo a este século; os outros, as ditaduras contrarrevolucionárias, o imitaram
toscamente. Nós fomos os neo-maquiavélicos em nome da razão universal – tal era a nossa
grandeza; os outros, em nome de um romanticismo nacional, o que era o seu anacronismo. É
por isso que nós seremos ao fim absolvidos pela história; mas não eles...
No entanto no momento nós estamos pensando e agindo a crédito. Como nós jogamos
fora todas as convenções e regras da moralidade do críquete, nosso único princípio diretor é
o da lógica consequente. Nós sofremos da terrível compulsão de seguirmos nosso pensamento
até a sua última consequência e agir de acordo com a mesma. Nós estamos navegando sem
lastro; portanto, cada toque no timão é uma questão de vida ou morte.
Há pouco tempo atrás, nosso proeminente agrônomo, B., foi baleado junto com trinta
de seus colaboradores porque ele defendia a opinião de que fertilizantes com nitrato artificial
eram superiores à potassa cáustica. No 1 é um defensor da potassa cáustica; logo B. e os
outros trinta tinham que ser liquidados enquanto sabotadores. Em uma agricultura
212

centralizada nacionalmente, a alternativa entre potassa e nitrato é de enorme importância:


ela pode decidir a próxima guerra. Se o No 1 estiver certo, a história o absolverá, e a
execução de trinta e um homens será uma mera bagatela. Se ele estiver errado...
Isso, e apenas isso, é o que importa: quem está objetivamente certo. Os moralistas do
críquete estão agitados por outro problema: se B. agia subjetivamente em boa fé quando ele
recomendou o uso de nitrogênio. Se não fosse o caso, de acordo com sua ética ele deveria ser
executado, ainda que posteriormente fosse demonstrado que o nitrogênio seria melhor no fim
das contas. Se agia em boa-fé, então deveria ser absolvido e autorizado a continuar a
promover o nitrato, mesmo que seu país se arruinasse por isso...
Obviamente isto é um completo absurdo. Para nós a questão subjetiva da boa fé é
irrelevante. Aquele que está errado precisa pagar; aquele que está certo será absolvido. Esta
é a lei do crédito histórico. Esta é a nossa lei.
A história nos ensinou que muitas vezes mentiras a servem melhor do que a verdade;
pois o homem é moroso e precisa ser conduzido através do deserto por quarenta anos antes
que tome um passo em seu desenvolvimento. E ele precisa ser conduzido pelo deserto com
ameaças e promessas, cercado de terrores e consolações imaginárias, para que não sente
prematuramente para descansar e se distraia em adorações a bezerros dourados.
Nós aprendemos a historia mais meticulosamente que os outros. Nós diferimos dos
demais em nossa consistência lógica. Nós sabemos que a virtude não importa à História, e
que os crimes permanecem impunes; mas que cada erro tem consequências e se imprime até
a sétima geração. Portanto nós concentramos todos os nossos esforços na prevenção de erros
e na destruição das suas próprias sementes. Cada ideia equivocada que nós seguíssemos
seria um crime cometido contra as gerações futuras. Portanto nós temos que punir ideias
equivocadas como outros punem crimes: com a morte. Nós fomos considerados loucos
porque nós seguíamos todo e qualquer pensamento às suas últimas consequências e agíamos
de acordo. Nós fomos comparados com a inquisição porque, como eles, nós constantemente
sentíamos em nós mesmos todo o peso da responsabilidade pela vida superindividual que
estava por vir. Nós nos assemelhamos aos grandes inquisidores na medida em que nós
perseguíamos as sementes do mal não apenas nos atos dos homens, mas em seus
pensamentos. Nós não admitíamos qualquer forma de esfera privada, nem mesmo dentro do
crânio humano. Nós vivíamos sob a compulsão de deduzir tudo até suas últimas
consequências. Nossas mentes eram carregadas de tanta tensão que a menor das colisões era
passível de causar um curto-circuito letal. Portanto nós éramos fadados à nossa mútua
destruição.
213

Eu era um destes. Eu pensava e agia como achava que deveria; Eu destruí pessoas
que eu gostava, e dei poder a outros que eu não gostava. A História me pôs onde eu estava;
eu esgotei o crédito que ela me concedera; se eu estava certo eu não tenho nada do que me
arrepender, e se eu estava errado, pagarei.
Porém como pode o presente decidir a verdade que só há de ser julgada no futuro?
Nós estamos fazendo o trabalho de profetas sem o dom para tal. Nós substituímos a visão
profética pela dedução lógica; porém ainda que tenhamos partido do mesmo ponto,
chegamos a resultados divergentes. Prova refuta prova, e ao fim nós precisamos recorrer à fé
– à fé axiomática na retidão de sua própria racionalidade. Este é o ponto crucial Nós
jogamos fora todos os lastros; apenas uma âncora nos segura: a fé em si próprio. A
geometria é a mais pura manifestação da razão humana, mas os axiomas de Euclides não
podem ser provados. Aquele que não acredita neles observa o desmoronamento de toda a
construção.
No 1 tem fé em si próprio, forte, lento, taciturno, e inabalável. Ele tem a mais sólida
âncora de todas. A minha se desgastara durante os últimos anos...
O fato é: Eu não mais acredito em minha própria infalibilidade. É por isso que estou
perdido.
214

Capítulo IV
Contração e Arregimentação
(1926-1932)

“Por que esses grupos se sentiram obrigados a guerrearem entre si, utilizando manifestos e
declarações, cartas à imprensa, artigos críticos – quaisquer meios a mão, inclusive físicos?
Por que eles não viveram e deixaram viver? Isso pode ser atribuído à competitividade natural
entre artistas, (...) mas também é produto das condições específicas do mundo artístico
soviético: decorria da percepção de que, no fim das contas, havia apenas um patrono e
financiador, um crítico e historiador da arte, um árbitro responsável por tudo que dizia
respeito à vida do artista: o Partido”.

Matthew Bown
215

A despeito da resolução partidária em relação a assuntos literários de 1925, na qual se


afirmava que o Estado não interferiria diretamente no campo literário como uma força
moderadora, pode-se observar já a partir de 1926 a formação de determinadas tendências que
afetariam consideravelmente o escopo de ação de artistas construtivistas durante os anos
seguintes. Tais tendências se demonstram como ramificações do amplo contexto de embates e
digressões políticas observáveis nas discussões da liderança partidária soviética russa após a
morte de Lenin em 1924. Neste embate, a tendência comumente considerada centrista –
liderada por Stalin – eventualmente se imporia tanto sobre a então denominada “oposição
esquerdista” na qual foram inseridos não apenas Trotsky, mas outros proeminentes membros
do partido como Kamenev, Zinoviev, bem como àqueles pertencentes ao denominado desvio
direitista, no qual Bukharin, Rykov e Tomsky seriam os membros de maior renome – e no
qual também poder-se-ia inserir Lunacharsky, cujas eventuais farpas com Bukharin durante os
primeiros anos da experiência revolucionária soviética não ofuscam as semelhanças
demonstradas nas persuasões de ambos durante este período413.

Este embate resultaria na gradual imposição de uma tendência cultural primariamente


voltada para a aplicação política da produção artística, o que resultaria em direcionamentos
que levariam o Estado a gradualmente favorecer e subsidiar aqueles artistas considerados
mais adequados às necessidades desta nova fase da revolução. Tal direcionamento resultou na
intensificação da contração que se observa no escopo de ação artística dos construtivistas, os
quais se viram afastados gradualmente do campo artístico não apenas em decorrência de suas
orientações programáticas, mas também da inospitalidade que adquiriria o cenário artístico
durante este período.

Durante os últimos anos da NEP, portanto, mantinha-se a nível oficial a orientação


organicista adotada pelo Narkompros, a partir da qual a se esperava que a coexistência
desimpedida de múltiplas orientações artísticas resultaria na eventual formação de uma
cultura que refletiria de forma genuína os valores da nova sociedade soviética. Entre 1926 e

413
Embates entre Bukharin e Lunacharsky durante os primeiros anos que seguiram a Revolução decorreram
primariamente de uma maior identificação entre Bukharin e as vozes mais radicais do discurso cultural soviético,
entre os quais se encontram os futuristas. Bukharin inclusive criticara Lunacharsky no jornal Pravda – no qual
servia como Editor Chefe – pela suposta brandura excessiva do Comissário de Esclarecimento em relação aos
vestígios burgueses encontrados na produção de determinados segmentos artísticos contemporâneos. Após a
implementação da NEP, por outro lado, observa-se um abrandamento da posição do próprio Bukharin, que
tornar-se-ia um dos principais defensores da manutenção da NEP, resultando em sua alocação na direita do
espectro político soviético na segunda metade da década de 20.
216

1927, entretanto, na medida em que a NEP “se esforçava para respirar”414, observa-se a
gradual formação de uma corrente cada vez mais intensa de crítica à “linha moderada”415
adotada pelo Narkompros e defendida por Lunacharsky; simultaneamente, observa-se um
crescente escrutínio estatal sobre assuntos culturais, o qual transcorrera de acordo com Fox de
forma “discreta”416, através de órgãos de censura de crescente influência e difícil delimitação
jurisdicional, como o Glavlit, ou através do apoio financeiro ou mesmo simbólico de
determinadas vertentes, como demonstra Bown em relação ao patronato de membros ilustres
do governo soviético – como Voroshilov e o próprio Stalin – a artistas de produção
semelhante àquela que se tornaria a representante da diretriz artística adotada pelo partido nos
anos seguintes – em detrimento das intenções e esforços do próprio Lunacharsky, o qual se
admitira durante o período que determinados segmentos da estrutura estatal estavam
interferindo na esfera cultural em clara oposição à linha oficial do partido estabelecida sobre
tal campo.417 Gradualmente, o que se observa é a suplantação de tal linha moderada pelo que
Fitzpatrick denomina “linha dura” no âmbito cultural, que a autora qualifica da seguinte
maneira:

A linha dura no campo cultural (...) era discriminatória e coercitiva,


ignorante ou desdenhosa da tradição cultural herdada, entusiasta da “cultura
proletária” e especialmente da dominação de instituições culturais
proletárias, bem como relativamente indiferente às necessidades do Estado
relativas aos serviços de especialistas técnicos. Seu mote era a “vigilância
diante do inimigo de classe”, o que muitos de seus adeptos entenderia
simplesmente como “batam na intelligentsia”. Suas taticas variavam desde
intimidação por parte de instituições administrativas regionais, passando
por jornalismo polemista até intrigas ocultas voltadas contra os moderados
418
da liderança .

O presente capítulo, portanto, visa explorar as implicações da adoção desta “linha


dura” em relação à produção e administração cultural soviética – e, em especial, à produção
artística e reconhecimento político dos construtivistas – recorrendo aos anos finais da NEP
com o intuito de discutir as maneiras através das quais tal linha já podia ser observada antes
de 1928. Espera-se demonstrar a partir de tal operação os novos contornos que adquirira a
esfera artística soviética na medida em que Stalin consolidava sua autoridade como líder

414
HELLER e NEKRICH, 1992, p. 201-202.
415
FITZPATRICK, 1992, p.91-114, passim.
416
FOX, 1992, p.1047.
417
Ibid., p.1047.
418
FITZPATRICK, Op.Cit., p.94.
217

indiscutível da União Soviética, afirmada nesta esfera através de sua resolução tratando A
Respeito da Reestruturação das Organizações Literárias e Artísticas, entendida como o ponto
inicial da política de centralização estatal da produção artística que resultaria na adoção do
Realismo Socialista como forma artística oficial em 1934.

Para a realização de tal análise, a discussão aqui empreendida será organizada de


forma cronológica, iniciando-se portanto com a discussão das primeiras manifestações dessa
linha ainda durante a vigência da NEP a despeito da suposta postura de não-intervenção
estatal sobre o campo cultural. Em seguida, após contemplar em linhas gerais este novo
direcionamento cultural, bem como seus primeiros impactos sobre o reconhecimento político
e a produção artística construtivista, empreender-se-á uma discussão relacionada às
conotações políticas das categorias mais frequentemente aplicadas para a descrição da
produção construtivista, com o intuito de demonstrar variações em tais conotações
decorrentes dos desdobramentos políticos contemporâneos, e permitindo portanto um
entendimento mais completo e atualizado do uso de tais termos aos leitores de textos do
período. Por fim, pretende-se analisar a natureza desta nova linha a partir de sua
implementação formal em 1928, bem como os impactos da mesma durante os anos seguintes,
os quais resultaram na intensificação da previamente observada tendência de marginalização
da proposta construtivista no âmbito artístico até sua total supressão em 1934.

O tectonismo político da NEP e seus ecos nos discursos artísticos contemporâneos

O decreto de 1932419 que abolia todas as instituições artísticas e literárias e buscava


centralizar toda a produção destas esferas em órgãos estatais unificados fora a cristalização
final de um direcionamento estatal implementado formalmente a partir de 1928, dando
sequência à então extinta NEP. De modo a melhor discernir os contornos de tal
direcionamento, interessa uma análise retrospectiva a partir de 1932, observando a gradual
implementação das medidas que contribuíram para tal clímax. Se o fizermos, podemos não
apenas discernir os principais parâmetros e objetivos deste novo direcionamento, mas também
observar indícios da existência do mesmo antes que fosse formalizado enquanto postura
estatal voltada à produção artística.

419
Vide anexo, p. 298.
218

Os anos que antecederam este decreto de 1932 demonstram uma abordagem


relativamente clara por parte do partido em relação à arte. Em primeiro lugar, observa-se a
intenção de que a produção artística fosse administrada de forma centralizada, e produzida de
maneira formalmente unificada. Ainda que apenas em 1932 possa se afirmar com firmeza que
o partido se propunha a administrar diretamente e em sua totalidade a esfera artística,
anteriormente já se demonstrava com relativa clareza a sua intenção de direcionar
indiretamente a produção artística através de maiores incentivos e reconhecimento oferecidos
aos artistas cujas produções fossem consideradas desejáveis, em detrimento daqueles cuja
produção não era mais reconhecida como válida contribuição à causa revolucionária – o que
contrasta nitidamente com a postura defendida pelo Narkompros durante a Guerra Civil.

Pode-se observar como principal característica comum a estas produções artísticas


gradualmente incentivadas pelo Estado soviético a sua natureza politicamente engajada e
predominantemente otimista, focada na veiculação clara de conteúdos de cunho nacional ou
socialista. Em relação à constituição formal de tais obras, por sua vez, observa-se
predominantemente a utilização de cânones formais considerados palatáveis, já estabelecidos,
e amplamente observáveis já na produção literária pré-revolucionária. Considerações formais,
portanto, assumem um caráter secundário nesta produção cada vez mais legitimada pela
liderança soviética, a qual parecia receptiva àqueles que priorizassem o conteúdo das obras
produzidas, desde que tal conteúdo fosse agregador às exigências revolucionárias
contemporâneas e alinhado ao entendimento ideológico do partido.

Além desta característica central, por outro lado, pode-se observar na produção de tais
artistas que gozavam de crescente popularidade entre os líderes da URSS a adoção de certas
diretrizes políticas que caracterizariam o direcionamento revolucionário do período,
contribuindo para um maior alinhamento entre ambas as partes e para o fortalecimento de
determinada corrente artística sobre as demais. Dentre estas diretrizes, pode-se apontar a
ênfase concedida aos esforços soviéticos em busca da autossuficiência econômica, e
subsequente adoção do direcionamento que seria entendido como “Socialismo em um só
país”, resultando no isolamento na esfera internacional, e no âmbito cultural, na exaltação de
valores e tradições nacionais acompanhada da crescente desconfiança de influências
internacionais.

Paralelamente ao “anti-cosmopolitismo” acima mencionado observa-se também no


discurso legitimador destes artistas a adoção da retórica de guerra de classes que se tornaria
219

especialmente relevante no cenário político soviético pós-1928, na qual afirmariam a maior


adequação de suas produções à realidade e aos gostos do proletariado, em detrimento de
outras orientações artísticas, de origens de classe duvidosas e produtoras de obras de difícil
entendimento ou pouca validade ao público proletário e camponês.

Estes seriam os principais contornos do direcionamento artístico fomentado pelo


partido ativamente a partir de 1928. No entanto, durante os últimos anos da NEP já podemos
observar o gradual abandono das diretrizes não-intervencionistas estabelecidas já em 1917 e
parcialmente reafirmadas na resolução de 1925, em grande parte decorrente dos embates
políticos que sucederam a morte de Lenin em 1924.

A Nova Política Econômica, quando implementada por Lenin em 1921, resumia-se


principalmente como um recuo ideológico e político voltado para a recuperação econômica da
Rússia Soviética. No entanto, com a crescente debilidade de Lenin e a formação da primeira
troika em 1923420 que o substituiria provisoriamente, pode-se observar a novamente a
formação de facções no interior da liderança do partido, as quais apresentavam diferentes
perspectivas ideológicas relativas ao direcionamento revolucionário. Tal facciosismo poderia
ser percebido nos escalões superiores do partido, por conseguinte, e afetaria de uma forma ou
de outra, a curto ou médio prazo, todas as esferas do aparato estatal soviético – inclusive a
esfera artística. O resultado deste embate, por sua vez, seria um constante rearranjo de forças
políticas e formulações ideológicas de seus participantes, resultante por sua vez da imposição
de uma vertente sobre outra, bem como da formalização ou reformulação de novas facções.
Há de se ver que, por um lado, a identificação de indivíduos com esta ou aquela facção não
seria facilmente revertida em momentos posteriores deste embate, “maculando-os” aos olhos
de seus prévios rivais; por outro lado, tal embate resultaria em um tectonismo de forças
políticas que afetaria indiretamente as demais esferas da vida social soviética. Em outras
palavras, os desdobramentos deste embate na mais alta instância política soviética afetariam
as forças envolvidas em embates realizados em instâncias inferiores, resultando no
fortalecimento ou enfraquecimento de determinadas perspectivas e propostas, as quais
buscavam se associar – ou eram por outros associadas – com as diferentes facções acima
mencionadas.

420
Composta por Zinoviev, Kamenev e Stalin. Para maiores detalhes sobre a formação e eventual dissolução
desta troika, Cf. HELLER e NEKRICH, 1992, p. 163-166, 181-185.
220

Tal como se disse até agora acerca do pensamento artístico da vanguarda russa e de
suas expectativas, também Trotsky via a real fruição da revolução ainda no futuro, com a
expansão do ardor revolucionário e a vitória final sobre a burguesia com a vitória de uma
revolução global; tal como eles, o presente não deveria ser visto como algo a se sacrificar pelo
futuro, mas uma oportunidade para determinar um direcionamento social que otimizaria o
progresso futuro – o qual poderia obviamente resultar em sacrifícios operacionais. Por um
lado, Trotsky sempre afirmara que entendia questões artísticas como merecedoras de menor
priorização do que questões de teor econômico ou político, na medida em que seu
desenvolvimento tinha como requisito o desenvolvimento prévio em tais campos 421; nunca
afirmara, também, que esperava pelo “fim” da arte como esta era entendida antes da
Revolução, e quando discorrera sobre tal assunto fora uma das principais vozes por trás da
validação dos companheiros de viagem como alternativa para o desenvolvimento da então
incipiente capacidade artística do proletariado. Por outro lado, Trotsky sempre fora uma voz
contrária a concessões ideológicas como aquelas observadas durante o período da NEP,
mostrando-se favorável à adoção de uma postura intervencionista e moderadora do Estado
semelhante àquela que fora característica do Comunismo de Guerra, e avesso a considerações
que contemplassem apenas a União Soviética, em detrimento dos objetivos revolucionários
globais, e entendendo que uma preocupação excessiva sobre constrangimentos do presente
poderia resultar em um efeito retardante sobre o processo histórico revolucionário. Esta forma
de pensar punha a Rússia soviética e as demais repúblicas federadas como vanguarda desta
revolução global e, portanto, como a linha de frente para as conquistas revolucionárias
futuras.

Era uma plataforma que contemplava sacrifícios internos para sucessos maiores,
justificada ideologicamente pelo progressivo processo histórico marxista. Entretanto, depois
de sete anos de conflito, bem como da subsequente recuperação socioeconômica propiciada
pela NEP – talvez a maior concessão ideológica de todas durante esta década – talvez não
houvesse um russo adulto sequer que não hesitasse, no mínimo, diante de qualquer discurso
que parecesse colocá-lo em um posicionamento de vanguarda – um que, por definição,
presume uma maior vulnerabilidade e um risco potencialmente maior de repercussões
negativas e danosas. Tal como os chamados artistas esquerdistas e seus experimentos
construtivos de arte laboratorial ou seus experimentos linguísticos e pictóricos, o caminho

421
TROTSKI, 2007, p.150-165.
221

revolucionário proposto por Trotsky e seus colaboradores oferecia ao povo russo – e,


principalmente, ao partido – um admirável objetivo sem demonstrar os meios através dos
quais tal objetivo seria alcançado.

Ironicamente, a linha ideológica defendida pela Oposição Esquerdista se demonstraria


muito mais “dura” do que aquela formalmente sustentada por Stalin, cujo posicionamento
durante os últimos anos da NEP seria a favor da manutenção da mesma, e considerado à
direita desta linha mais autoritária e internacionalista de Trotsky e Zinoviev – posicionamento
este que se alteraria após 1928, com a decisão de Stalin de abandonar a NEP e denunciar o
apoio de Bukharin, Rykov e Tomsky à mesma como um sintoma do desvio direitista que
observava no Partido. Neste direcionamento mais fluido e inicialmente moderado, as
afinidades com o realismo de orientação social característico dos membros da AKhRR no
campo das artes, bem como da corrente proletária centralizada ao redor da RAPP no campo
literário é ainda mais nítida do que aquela observada entre Trotsky e os construtivistas. A
defesa de uma política de consolidação e desenvolvimento econômico da ordem soviética
existente, de valorização do desenvolvimento interno em detrimento da alocação de
considerável parcela dos escassos recursos soviéticos para além dos limites da unidade da
federação e o afastamento em geral da influência internacional demonstra nítidas confluências
em relação a uma proposta artística de representação otimista do presente, de difusão de ideais
e exaltação de valores nacionais para todas as regiões da federação em uma linguagem
artística já dominada pelas massas.

A despeito de tais afinidades entre diferentes propostas artísticas e esta ou aquela


facção política durante estes anos que seguiram a morte de Lenin, em nenhum caso se observa
a clara “adoção” de um direcionamento artístico por parte de quaisquer destes grupos, os
quais formalmente pareciam ainda cumprir a postura estabelecida pela resolução de 1925
sobre assuntos culturais e artísticos. A posição formal do partido diante das frequentes
reivindicações de diferentes grupos artísticos durante o período fora, portanto, a de que tais
grupos alcançassem o monopólio artístico-literário ao qual se consideravam dignos
“naturalmente”, sem intervenção do aparato estatal:

Vale a pena ressaltar que apesar de nenhum político influente parecer defender
ativamente a causa dos proletários [RAPP/VAPP], a postura oficial em relação a
eles torna-se gradativamente mais receptiva a partir da resolução do departamento de
imprensa em maio de 1924, sua adoção em forma pouco alterada a partir da
resolução “A respeito da imprensa” do décimo terceiro congresso do partido, os
depoimentos de diversos membros da comissão do Politburo, bem como a resolução
do comitê central de junho de 1925, que reconhecera, em direta oposição a Trotsky,
222

o “direito histórico” do proletariado em alcançar “hegemonia” no campo literário,


porém propunha que os escritores proletários a conquistassem por conta própria sem
que fosse necessária uma solução “burocrática”, significando a intervenção do
422
partido em tal processo. .

No entanto, no contexto de livre iniciativa promovido pela NEP e do embate de forças


políticas que ocupou a liderança do partido durante estes anos, torna-se difícil traçar uma
linha que efetivamente distinga o apoio do indivíduo a determinada corrente artística de um
alinhamento e subsequente patronato político daquele em relação a esta. Quando tal apoio
individual fora concedido por membros da estrutura estatal soviética, observa-se cada vez
mais uma postura que gravita para uma área intermediária, “cinza”, encontrada entre as
estipulações em preto e branco da resolução de 1925; esta implicitamente sugeria que ao
Estado caberia a decisão de apoiar ou não esta ou aquela vertente artística, e nomeá-la ou não
como a que melhor representa a causa revolucionária. Não contempla, portanto, o apoio que
poderia ou não ser conferido não pelo monolítico Estado, mas pelas suas partes integrantes –
as quais neste período agiam em especial dissonância, tornando portanto impossível a
manutenção estrita desta divisão em dois polos nítidos e opostos.

O ambiente político destes anos afetaria ainda mais esta implícita dicotomia
estabelecida pela resolução de 1925, na medida em que tal resolução defendia principalmente
a neutralidade do Estado no campo artístico, enquanto durante os anos aqui discutidos se
tornaria cada vez mais claro às partes envolvidas, em basicamente todos os níveis, a
necessidade de alinhamento com um dos múltiplos direcionamentos existentes nas camadas
superiores do partido. Um expurgo discente universitário já em 1924, em resposta ao apoio
discente demonstrado a Trotsky e à sua Oposição Esquerdista423, demonstrava já os primeiros
traços da crescente polarização política observada durante o período. Se a Resolução de 1925
pusera a questão artística e literária soviética em relação ao Estado em termos de
“alinhamento ou não-alinhamento”, na prática os desdobramentos dos anos subsequentes
resultariam na gradual exclusão do “não-alinhamento” desta equação, e da substituição de tal
dicotomia por uma realidade de “múltiplos alinhamentos por parte de segmentos do Estado”.

Tomemos, por exemplo, a nítida predileção demonstrada pelo Comissário de Defesa


Kliment Voroshilov pela produção realista dos artistas da AKhRR, e de Aleksandr

422
FITZPATRICK, 1992, p.108-109.
423
Ibid., p. 97.
223

Gerasimov, em especial424. Em primeiro lugar, o patronato de longo prazo de Voroshilov


muito provavelmente não decorreu apenas de suas predileções artísticas individuais (as quais
resultariam em interesses passageiros diante de um cenário político hostil a tais produções),
mas também da adequação da produção de tais artistas aos desígnios da política soviética
contemporânea – entre os quais se relembra a recorrente exaltação do Exército Vermelho na
produção da AKhRR425.

Em segundo lugar, tal explícito apoio do Comissário de Defesa significara um número


considerável de comissões, não apenas por parte do comissariado em questão, o qual
financiaria ou encorajaria a realização de exibições das produções de tal grupo, mas por parte
de quaisquer indivíduos, ligados ou não a tal comissariado, que vissem no apoio e apreciação
do estimado camarada Voroshilov o indício que validaria a produção de tais artistas em
termos ideológicos.

Aqui nos deparamos com o cerne da questão, que parcialmente transcende o aspecto
financeiro relacionado às comissões acima mencionadas: certamente o camarada Kliment
Efrimovich teria tanto direito quanto qualquer outro cidadão soviético a adquirir obras de arte
e se relacionar com quaisquer indivíduos, artistas ou não; o patronato do Comissário de
Defesa Voroshilov, por outro lado, carregaria consigo uma carga maior, na medida em que se
poderia deduzir a partir das predileções do Comissário de Defesa e reconhecidamente um
homem de confiança de Stalin um indício de alinhamento entre esta forma de produção
artística e os rumos da liderança partidária. Em um período em que o bom gosto e a noção de
kulturnost426 seriam cada vez mais valorizados entre aqueles que aspiravam ascender no
aparato estatal – bem como entre aqueles que avaliavam os ambiciosos candidatos a ascensão
– tal respaldo certamente resultaria em uma influência que transcenderia qualquer apoio que
Voroshilov – ou Stalin, como veremos adiante – poderia oferecer enquanto indivíduo,
enquanto cidadão soviético.

424
BOWN, Matthew Cullerne. Art Under Stalin. Oxford: Phaidon, 1991, p.58.
425
MALLY, Lynn. Culture of the Future: The Proletkult movement in Revolutionary Movement. Berkeley:
University of California Press, 1990, p. 231.
426
Podendo ser traduzida literalmente como “nível de cultura”, esta expressão no contexto aqui discutido pode
ser assemelhada a “sofisticação”. Cf. VOLKOV, Vadim. The concept of Kul’turnost’: notes on the Stalinist
civilizing process, in: FITZPATRICK, Sheila(org). Stalinism: New Directions. Londres: Routledge, 2000,
p.210-230.
224

Durante estes anos qualquer indicação de predileção artística por parte de Stalin fora
discreta, em contraste com o entusiasmo demonstrado por Voroshilov em apoio aos realistas
da AKhRR, ou à reprovação de Trotsky em relação à viabilidade de uma arte proletária427.
Sua principal manifestação explícita de apreço pela arte proposta por artistas realistas da
AkhRR ocorrera em 1928, quando visitara a exposição do grupo dedicada ao décimo
aniversário do Exército Vermelho – segundo Bown uma das duas únicas exposições das quais
se tem relatos da visita pessoal de Stalin428. O impacto da visita de Stalin resultaria, segundo
Bown, em uma validação semelhante àquela discutida acima proveniente do patronato de
Voroshilov, porém decerto com maior intensidade:

A visita de Stalin, tão ordinária em si, foi importante para tais artistas durante este
período, e ainda mais em retrospecto, se a considerarmos a partir dos
desenvolvimentos das décadas de 1930 e 1940, quando o poder de Stalin era
absoluto. Ao enaltecer o trabalho de Repin, Stalin conferiu sua benção à forma
artística tal como a que propunha a AKhRR – patriótica, realista, voltada para a
imaginação popular. Evidencia-se que esta forma artística era favorecida por ele e
pela maioria de seus colegas a partir do fato de que durante a década de 1920 os
principais membros da AKhRR possuiam autorizações permanentes para visitarem o
429
Kremlin e socializavam com a liderança política .

Acrescido a esta desproporcional predileção demonstrada por membros da liderança


partidária soviética a grupos artísticos que partilhavam as já descritas características de
exaltação direta à revolução e utilização de convenções formais “conservadoras”, este foi um
período durante o qual proponentes de tais diretrizes artísticas puderam lançar mão das
opiniões expressas anteriormente a este período, usando-as para legitimarem sua própria
produção, ou para desqualificar seus rivais. Tal como Stalin, figura nos escritos de artistas
realistas e escritores proletários durante o período recorrentes alusões a Lenin,
reconhecidamente resistente às experimentações vanguardistas430 e defensor da submissão
artística à direção revolucionária, característica do centralismo democrático inerente ao
Leninismo.

Se por um lado a apreciação de determinadas figuras públicas à produção deste ou


daquele grupo pode ser entendida como um fator que resultaria na crescente popularidade dos
mesmos na medida em que seus patronos se afirmassem enquanto forças políticas

427
TROTSKI, 2007, p.150.
428
BOWN, 1991, p. 56
429
Ibid., p.57
430
Ibid., p. 27-28.
225

dominantes, uma dinâmica inversa pode ser observada quando analisamos figuras públicas
cujas orientações políticas foram gradualmente sobrepujadas pelas de seus rivais. Isto se
observa, por exemplo, no caso de Trotsky, cuja reprovação tanto à produção quanto aos
métodos e discurso do grupo proletário RAPP serviria, de acordo com Fitzpatrick, para
ganhos políticos do grupo literário após 1926:

(...) com um oponente como Trotsky, a VAPP pouco precisava de aliados; e


fortuitamente Voronsky [editor do periódico Krasnaya Nov e opositor das propostas
e das táticas da VAPP] era associado politicamente aos Trotskistas e um adepto às
visões literárias de Trotsky. Por causa de suas conexões com a oposição, a posição
de Voronsky no Krasnaya Nov estivera sob constante ameaça entre 1924 e 1927,
quando ele foi finalmente excluído. Os líderes da VAPP – a despeito de suas
próprias associações trotskistas prévias – não deixaram de lançar mão desta arma.
Eles buscaram de forma intensa ‘tornar sinônima a posição política de Trotsky à
linha literária de Voronsky [em assuntos literários] e mesmo com a linha de
431
quaisquer membros do partido que não apoiassem o ponto de vista da VAPP’ .

Tal recorrente predileção pessoal demonstrada por diferentes membros da liderança


partidária por uma modalidade artística representativa não passaria desapercebida entre
aqueles que produziam suas obras sobre outros parâmetros e princípios. Durante a NEP as
oportunidades profissionais de tais artistas passaria a se contrair gradualmente,
marginalizando-os de certa forma e os encorajando a buscar formas (e mercados) alternativas
para as suas produções. Neste caso, a vanguarda construtivista e os modernistas russos em
geral encontrariam maior simpatia no ocidente, no qual outros movimentos vanguardistas não
experimentaram semelhante contração política – ou a ativa interferência que seguira – durante
a década de 1920. Tal maior receptividade pode ser evidenciada pela entusiasmada relação
entre a Bauhaus e a Vkhutemas durante a década, bem como o sucesso da produção soviética
predominantemente construtivista exibida na exposição de artes decorativas e industriais de
Paris, realizada em 1925432. Diante da crescente aspereza doméstica diante das propostas dos
construtivistas e da maior receptividade destas produções no ocidente, observa-se um maior
fluxo de artistas soviéticos em tal direção, em busca de um público que substituísse aquele
que gravitava cada vez mais às modalidades artísticas apreciadas pela liderança. Exemplos
desta tendência incluem a exposição individual de Malevich na Alemanha em 1927, bem
como o exílio de Robert Falk e Natan Altman para Paris e a tentativa de semelhante mudança

431
FITZPATRICK, 1992, p. 108.
432
Para maiores informações sobre as obras exibidas e sua recepção em Paris, Cf. ALLISON, 1990.
226

por parte de Udaltsova e Aleksandr Drevin, cujas autorizações de viagem não foram
concedidas pelo partido433.

Dessa maneira, os últimos anos da NEP pareciam indicar que cada vez mais a
necessidade de um alinhamento com esta ou aquela linha. No entanto, devido a associações
ideológicas prévias a tal período, os construtivistas acabariam por ser associados à uma linha
de pensamento revolucionário que se tornaria indesejável já a partir de 1926. No Vkhutemas,
como há de se discutir adiante, tal impulso levaria à segregação da instituição em dois polos
distintos, bem como à eventual extinção do então denominado Vkhutein em 1930; durante o
período seria ainda realizado um expurgo no corpo discente de diversas universidades,
atribuindo-se o apoio de grande parte dos estudantes às propostas de Trotsky às origens não-
proletárias de tais estudantes; o próprio Narkompros, na medida em que Lunacharsky parecia
recusar-se a alterar o direcionamento de seu comissariado a despeito da nova linha que
gradualmente se delineava a partir das ações de seus superiores e colegas, tendo inclusive
buscado mitigar e reverter ações punitivas nos campos cultural e educacional como as
expulsões acima mencionadas, desgastando progressivamente sua posição enquanto
comissário434 e eventualmente decidindo renunciar ao seu cargo (1929), para ser substituido
por um comissário “mais adequado” com os novos direcionamentos da Revolução no âmbito
cultural:

Lunacharsky renunciou sua posição enquanto comissário de esclarecimento do povo


em 1929; Bukharin e Rykov foram identificados como líderes da “oposição
direitista” no partido. A linha moderada no campo cultural foi descrita como parte
deste desvio esquerdista, e instituições governamentais que a exerciam foram
435
extensivamente expurgadas .

A VAPP/RAPP, por sua vez, utilizar-se-ia de seus crescentes números para intimidar
mesmo outros grupos também denominados “proletários”, porém de inclinações formais
ligeiramente distintas, ensejando a aglutinação de grupos menores e sua própria expansão já a
partir de 1925, como descreve o integrante do grupo proletário A Forja Evgenov, afirmando
em seu texto que já neste ano a principal questão imposta ao grupo – que continha menos de
cem integrantes, comparado com os três mil da RAPP – era o de “unir-se à RAPP ou não?”436.

433
BOWN, 1991, p.62
434
FOX, 1992, p.1050.
435
FITZPATRICK, 1992, 113.
227

A expansão da abordagem artística defendida pela VAPP/RAPP e a resultante


contração da esfera de ação e recepção da vanguarda durante os anos da NEP podem ser
observadas quando comparamos os principais periódicos artístico-literários do período,
organizados respectivamente por ambos grupos, e de existência paralela: entre 1923 e 1925, a
437
VAPP publicara o periódico Na Postu! (à postos!) , enquanto aqueles que se entendiam
representantes da vanguarda soviética buscavam se unir ao redor da publicação Lef (Front
Esquerdista das Artes)438. Da mesma maneira, em 1926 foram lançadas novas empreitadas de
ambos os grupos: a então RAPP publicara o Na Literaturnom Postu! (No Posto Literário!),
enquanto os vanguardistas renovariam suas iniciativas no periódico Novyi Lef (Novo Lef).

Em primeiro lugar, observe-se que na própria denominação destes periódicos se pode


observar a nítida combatividade que seria característica desse período da produção artística
soviética. No caso dos quatro periódicos, é nítido e explícito o objetivo principal de
disseminar os princípios e propostas artísticas de seus grupos, e entendido como óbvia
consequência a necessidade de se demonstrar as deficiências e defeitos de seus rivais,
explicitamente mencionados em diversos artigos em tons negativos. A simples premissa de
unificação do disperso construtivismo em um “Front da Esquerda” indica uma preocupação
corporativa que se realizou em resposta ao aparecimento de contestação à posição desfrutada
por estes artistas durante o período do Comunismo de Guerra. Em repetidos artigos
publicados durante sua vida editorial, entre 1923 e 1926, uma miríade de artistas esquerdistas
demonstram não apenas concordância em relação á necessidade da constituição de um front

436
EVGENOV, S. Uncivil War: Gladkov & The Smithy vs. RAPP. Account of an underhanded attempt by the
Russian Association of Proletarian Writers in 1925 to subvert Party policy and legislate all rival literary
organizations out of existence, p.1.
437
O corpo editorial da Na Postu! consistiria dos membros da VAPP Leopold Averbakh, Grigorii Lelevich, S.
Rodov e Boris Volin, e incluira entre seus colaboradores em seu primeiro número nomes importantes no campo
artístico - como o crítico Vladimir Friche e o poeta Demian Bedny – e político – como Kamenev, Lebedev-
Polyansky, Larisa Reisner e Karl Radek. Em seu primeiro exemplar, seu corpo editorial se identifica com a causa
literária proletária do grupo VAPP, ainda que se diga também “à postos” contra o perigo de estagnação
institucional à qual Lenin anteriormente alertara ao criticar o Proletkult; também ao definir suas diretrizes faz
eco às premissas formais épicas e heroicas que caracterizariam a abordagem de VAPP e AKhRR em seus
respectivos campos de atuação, criticando todas as propostas artísticas que possuíssem origens pré-
revolucionárias, as quais eram pelos autores associadas aos Brancos da guerra civil

438
O corpo editorial da Lef seria compost pelos vanguardistas Boris Arvatov, Nikolai Aseev, Osip Brik, Boris
Kushner, Sergey Tretyakov e Nikolay Chuzhak. Todos estes membros, com exceção de Chuzhak, tem diversos
escritos que defendem a integração de arte e produção, demonstrando a inclinação predominantemente
construtivista desta revista, a despeito de sua intenção aglutinadora à vanguarda como um todo. Postulavam em
seu primeiro exemplar, no texto intitulado “Pelo que a Lef Luta?”, a intenção de “unir todas as forças
esquerdistas”, e “criar um front unificado para explodir os detritos velhos, para lutar pela integração de uma
nova cultura”.
228

único e coordenado para o embate contra orientações concorrentes, mas igualmente o escopo
do apelo que esta iniciativa apresentou à comunidade artística esquerdista soviética. Tal
solidariedade esquerdista resultaria inclusive na participação de artistas e escritores como os
transracionalistas Nikolai Aseyev e Sergei Tretyakov, ambos antigos membros do grupo 41º,
liderado por Kruchenykh em Tiflis, no Cáucaso439, e previamente pouco identificados com a
proposta de integração da arte ao ambiente industrial então predominante entre os
construtivistas. Entre outros contribuintes conhecidos observa-se artistas de orientações
semelhantes como Matyushin – que operava no interior do Ikhk com Malevich e Tatlin
durante o período – Vassilli Kamensky e Boris Pasternak, além de Mayakovsky e os
formalistas Shklovsky e Brik, que logo se alinhariam à vertente produtivista.

Em seu primeiro número, no artigo Pelo que a Lef Luta?, observa-se um esclarecedor
diagnóstico relativo ao cenário artístico contemporâneo, através do qual o corpo editorial da
revista – todos assinam este artigo440 – espera justificar a iniciativa de formação de um front
unido da esquerda nas artes:
A Arte da RSFSR, tal como se observa em primeiro de fevereiro de 1923:
I. Proletarte [Proletiskusstvo]. Parte dela degenerou em uma arte de escritores
oficiais, oprimidos por sua linguagem pobre e pela repetição de abecedários
políticos. Outra parte sucumbiu às influências da academia, e apenas o nome da
organização lembraria Revolução de Outubro. A terceira e melhor parte, após ter
seguido Belyi, está se reciclando com nossos critérios e, acreditamos, marchará a
frente conosco.
II. Litratura Oficial. De um ponto de vista teórico cada um tem uma opinião
própria sobre arte: Osinskii exalta Akhmatova, Bukharin exalta Pinkerton. Na
prática, apenas os nomes mais vendidos adornam as páginas dos jornais.
III. As “últimas” tendências literárias (os Serapião, Pilnyak etc.) tendo se
apropriado e diluído nossos recursos os estão misturando com temperos simbolistas
e os adaptando de forma bruta aos tons moderados da literatura nepiana.
IV. Vira-casacas políticos. Do Oeste vem uma invasão de estadistas anciãos
esclarecidos. Alexei Tolstoi já está a polir o cavalo branco de suas obras reunidas
para uma entrada triunfante em Moscou.
V. E finalmente em cantos diversos estão os esquerdistas individuais. Pessoas
e organizações (Inkhuk, Vkhutemas, o Gitis de Meyerkhold, Opoyaz etc.). Alguns
estão tentando heroicamente arar um solo virgem extremamente sólido por si
próprios, enquanto outros estão ainda se livrando dos grilhões do velho lixo com as
lixas que são seus versos.
A Lef deve unir todas as forças esquerdistas. A Lef deve auditar seus números,
depois de ter descartado o passado que antes estava a eles atrelado. A Lef deve criar
um front unificado para explodir os detritos velhos, para lutar pela integração de
uma nova cultura.

439
Tiflis atualmente é nomeada Tbilisi, a capital da Geórgia. O grupo 41º foi formado em Tiflis durante a Guerra
Civil, e ocupou-se primariamente de experimentações transracionais sob a liderança de Kruchenykh. Para mais
informações sobre o grupo, Cf. LAWTON, 1988, p.33-39 e MARKOV, 2006, p. 337-363.
440
Especificamente, os signatários foram: Nikolai Aseev, Boris Arvatov, Osip Brik, Boris Kushner, Vladimir
Mayakovsky, Sergey Tretyakov e Nikolai Chuzhak.
229

(...) A Lef irá agitar a arte com as idéias da comuna e abrir para a arte a
estrada para o amanhã.
(...) A Lef lutará pela construção estética da vida.
Nós não apenas reclamaremos um monopólio sobre o espírito revolucionário
441
na arte. Nós o provaremos em competição aberta.

No mesmo número, um literal “chamado às armas” convoca membros de todos os


rótulos possíveis da esquerda artística à unificação, argumentando um papel específico de
cada orientação para a formação de uma real força artística revolucionária, bem como
pretendendo demonstrar que a fragmentação acabaria por resultar em cenários negativos. No
fim deste artigo, intitulado A quem a Lef alerta?, o tom defensivo é expresso:
Lef está em prontidão.
Lef é a defesa de todos os criadores.
Lef está em prontidão.
442
Lef rejeita todos os fósseis, os estetas, e os consumidores de arte.

Esse tom defensivo não foi fruto de constrangimentos passageiros. O terceiro


exemplar possui um longo artigo, redigido por Tretyakov, intitulado Tribuna da Lef, no qual
se pretende rechaçar todas as críticas feitas a respeito da arte esquerdista e, efetivamente,
legitimar o futurismo-construtivismo como a arte da revolução. Adicionalmente, o artigo –
que se estrutura a partir de subtítulos que são, basicamente, as críticas contra as quais
Tretyakov elenca argumentos – apresenta ao historiador indícios da natureza das críticas que
sofriam estes artistas durante a década de 1920. Para fins de esclarecimento, seguem apenas
os subtítulos:
- Os futuristas são marqueteiros charlatães
- Futurismo é a recusa à arte burguesa decadente, como se atreve denominar-se uma
arte proletária
- As obras futuristas são incompreensíveis às massas.
- Isto não é futurismo
- Então por que os futuristas, que escrevem versos em linguagem “futurista”, não a
443
utilizam diálogos mundanos?

O artigo de Boris Arvatov, publicado em 1922 no periódico Arauto da Arte, intitulado


O Proletariado e a Arte Esquerdista é outro exemplo da percepção vanguardista relativa à
contração de sua esfera produtiva, e da decorrente preocupação defensiva que decorreu desta
contração. Este artigo, tal como o de Tretyakov, busca primariamente a legitimação do que o
autor entende por arte esquerdista como a plataforma artística que melhor contempla as

441
LEF no 1, 1923. Moscou: Gosizdat, p.6-8.
442
LEF no 1. 1923. Moscou: Gosizdat, p. 11
443
LEF no 3, 1923. Moscou: Gosizdat, p. 154-165, passim.
230

necessidades imediatas e futuras do proletariado. Neste, afirma que a arte proletária autóctone
ainda não demonstrou sinal de existência, mas que apenas poderia ser gerada a partir de uma
sucessão de determinados desenvolvimentos que a arte esquerdista estava em posição sem
igual para fomentar. Os argumentos que utiliza se apoiam sobre o utilitarismo e o
materialismo que permeavam a arte esquerdista após 1917, demonstrando afinidade com o
construtivismo de guerra amplo ao qual Tatlin ainda se aferrava em 1920. A seguinte
passagem é excepcionalmente ilustrativa do tom de Arvatov pelo decorrer do artigo:
Brada-se que a classe trabalhadora não compreende os artistas esquerdistas.
Mas é claro!... Se você fosse criado exposto a pinturas a óleo e cartões postais
vulgares, baratos e de mau gosto, não acharia fácil a exposição aos últimos
desenvolvimentos de uma cultudra superior. De qualquer forma, será isso mesmo
um argumento? Por acaso em dado momento marxistas não lutaram por suas
próprias idéias, enquanto o proletariado firmemente apoiava idéias diferentes?
Todas estas objeções derivam inteiramente da recusa subjetiva da arte
esquerdista por nossos “ideólogos” e seus discípulos, contaminados como o são por
antigos termos. Fetichistas até a medula de seus ossos, eles se portam em relação a
444
inovadores de uma forma absurdamente semelhante àquela de um burguês.

Não apenas este fragmento demonstra o tom defensivo ao qual se fez alusão, mas
apresenta como um argumento diverso a premissa da vanguarda, tão cara ao partido
revolucionário de Lenin. Igualmente, menciona de forma clara a dissensão em relação aos
“ideólogos”, postos sob aspas pejorativamente, diagnosticando conscientemente o
redirecionamento que agora marginalizar a produção construtivista, expurgando-a
gradualmente do campo artístico soviético. A menção aos discípulos também é elucidativa,
pois ecoa as críticas formuladas por outros artistas e escritores durante o período nas quais
afirmam constatar um enrijecimento ideológico presente de forma cada vez mais dominante
no cenário institucional estatal soviético, que por sua vez decorria ao menos parcialmente do
enrijecimento e da ortodoxia ideológica apresentada pelas novas gerações soviéticas que cada
vez mais ocupariam funções de liderança em tais órgãos – em uma tácita crítica ao
carreirismo que se tornaria característico do período de afirmação do Socialismo em um país.
Observando comparativamente os periódicos Na Postu! e Lef, logo se tornam
evidentes determinadas semelhanças entre ambos que permitem tal esforço comparativo, mas
também se observa mérito no reconhecimento dos integrantes da Lef relativo ao seu suposto
“descredenciamento” não apenas na esfera pública, mas no âmbito institucional estatal
soviético, a partir de uma observação de suas respectivas tiragens. São periódicos de
dimensões semelhantes; a Lef teve um total de 7 exemplares publicados, enquanto Na Postu!

444
ARVATOV, B. Proletariat and Leftist Art (1922). in: BOWLT, 1988, p. 227-228.
231

teve 6 exemplares, ambos publicados erraticamente no decorrer de três anos. Esta falta de
periodicidade é sintomática de um período de maior desorganização no contexto editorial
soviético em relação às artes, especialmente na medida em que outros periódicos que viriam a
tratar de questões culturais – como Oktyabr e Novyi Mir445 – só seriam publicados a partir de
1925. Enquanto a Lef era publicada pelo Gosizdat, Na Postu! seria publicada pela editora
Novaya Moskva. A despeito de consideráveis flutuações relativas ao número de páginas de
cada periódico, os exemplares de Na Postu! (aproximadamente 200-250 páginas por edição)
se demonstram um pouco mais volumosos do que os da Lef (aproximadamente 150 a 200
páginas por edição).

Observando a tiragem de ambos periódicos, também podemos observar semelhanças,


ainda que novamente o periódico da VAPP se demonstre melhor financiado: partindo de
tiragens semelhantes em 1923 (5000 exemplares por número), em 1925 o último exemplar de
Na Postu! ainda recebe o mesmo investimento da editora estatal (5000 exemplares), enquanto
a última edição da Lef tivera uma tiragem de 1500 exemplares – em seu exemplar menos
reproduzido (no 4), Na Postu! teve 3000 exemplares impressos. Tal discrepância parece
coerente com a recepção positiva recebida pela produção proletária do grupo VAPP em
comparação à resistência popular demonstrada às reflexões construtivistas durante estes anos,
anteriormente discutida. Adicionalmente, observa-se tal predileção na considerável
quantidade de anúncios observados nos periódicos da VAPP, especialmente se comparados
aos exemplares da Lef, os quais pouco exibem em termos de propaganda de outros periódicos,
livros a venda etc. A despeito de seus preços semelhantes, as edições de Na Postu! parecem
ter tido mais recursos à sua disposição, lançando mão com mais frequência de impressões
coloridas do que sua concorrente Lef, e dispondo de maior confiança e apoio do Gosizdat,
responsável pela sua publicação e, portanto, por determinar a viabilidade de sua tiragem e das
características de sua publicação.

445
Deve-se aqui fazer três ressalvas. Em primeiro lugar, o periódico Oktyabr (Outubro) não seria relacionado ao
grupo formado em 1928, que incluiria artistas construtivistas e será posteriormente discutido. Em segundo lugar,
Oktyabr seria inicialmente publicado em 1924, porém demonstraria semelhante irregularidade de publicação
neste ano, que resultaria em quatro exemplares apenas. Finalmente, o periódico Novyi Mir (Novo Mundo) não
tratava apenas de questões artísticas, mas de questões políticas, científicas e culturais; entretanto, dada as suas
dimensões – cada exemplar mensal continha mais de 300 páginas e eram impressos mais de 25000 exemplares
por número – e sua longevidade – fora publicado até 1989 – se tornaria um periódico de referência para a
discussão de questões artísticas.
232

4.1 – Capa da revista LEF, no 1, 4.2 – Capa da revista LEF, no 3,


1923 1923

4.3 – Capa da revista Novyi LEF, 4.4 – Capa da revista Novyi LEF,
no 9 (21), 1928 no 10 (22), 1928
233

No entanto, a despeito dessa observável “vantagem” editorial da revista Na Postu!


quando a comparamos à Lef, podemos notar que em primeiro lugar, é uma vantagem que não
se observa nitidamente em 1923, mas que se desenvolve gradualmente a partir da sucessão de
edições, culminando em 1925; e, em segundo lugar, ao compararmos com as dimensões
editoriais de suas respectivas sucessoras, observaremos um considerável aumento de tal
discrepância, o que também parece correlato a questões de ordem de recepção pública e
alinhamento a direcionamentos políticos.

Entre 1926 e 1927, o surgimento dos periódicos Na Literaturnom Postu! e Novyi Lef
representariam a renovação dos esforços de ambos grupos em disseminar suas visões
artísticas – agora ambos publicados pelo Gosizdat – porém já refletindo o considerável avanço
do primeiro sobre o segundo se os compararmos em termos de recursos e respaldo editorial.
São periódicos novamente semelhantes em sua constituição física, e demonstram uma maior
regularidade em relação a sua frequência de publicação, ainda que tenham sido
consideravelmente menores do que seus antecessores. Diferentemente de Na Postu! e Lef, Na
Literaturnom Postu! e Novyi Lef foram publicadas em páginas de tamanho menor (A5), e
seus exemplares tinham em média 50 páginas (no caso da Novyi Lef) ou 60 a 70 páginas (no
caso da Na Literaturnom Postu!).

No entanto, o periódico da RAPP seria mais volumoso se considerarmos as páginas


impressas por ano, na medida em que seu periódico tinha frequência quinzenal – resultando
em 24 exemplares por ano – enquanto a Novyi Lef seria de frequência mensal. Em relação à
tiragem, por sua vez, Na Literaturnom Postu demonstra ainda maior apreciação popular e
reconhecimento do Gosizdat, tendo edições que alcançaram 15000 exemplares, e em geral
mantendo-se constante entre 4500 e 6000 impressões por exemplar – ou seja, 9000 a 12000
exemplares impressos por mês, em duas edições. Novyi Lef, por sua vez, demonstra uma
tiragem mais modesta, culminando em 3500 exemplares em seu exemplar de número 13,
porém normalmente flutuando entre 2400 e 3000 exemplares por edição mensal. Para fins de
comparação, aqui pode-se apontar os exemplares do periódico Novyi Mir, tanto mais
abrangente em seu escopo quanto mais volumoso em sua composição, sendo mensalmente
publicados exemplares contendo uma média de 250 a 300 páginas A4, em tiragens que
gravitam em torno de 25000 cópias mensais – e de preço 50% maior (90 copeques) do que
tanto Na Literaturnom Postu! quanto Novyi Lef (60 copeques).
234

Tiragem de exemplares de Lef (1923-1925)


Lef (1923) Lef (1924) Lef (1925)

No 1 5000 No 5 3000 No 7 1500

No 2 5000 No 6 2000

No 3 3000

No 4 3000

Tiragem de exemplares de Na Postu! (1923-


1925)
Na Postu! (1923) Na Postu! (1924) Na Postu! (1925)

No 1 5000 No 5 5000 No 6 5000

No 2+3 5000

No 4 3000

Tiragem de exemplares de Novyi Lef (1927-1928)


Novyi Lef (1927) Novyi Lef (1928)

No 1 3000 No 6 N/A No 13 3500 No 19 2400

No 2 3000 No 7 2500 No 14 3000 No 20 2400

No 3 3000 No 8-9 2800 No 15 3000 No 21 2400

No 4 3000 No 10 2700 No 16 2750 No 22 2400

No 5 3000 No 11-12 2800 No 17 2400 No 23 N/A

No 18 2400 No 24 2400
235

Tiragem de exemplares de Na Literaturnom Postu! (1926-


1929)
NLP! 1926 NLP! 1927 NLP! 1928 NLP! 1929

No 1 N/A No 1 5000 No 1 6000 No 1 6000

No 2 N/A No 2 5000 No 2 5500 No 2 6000

No 3 9000 No 3 5000 No 3 5500 No 3 6000

No 4 9000 No 4 5000 No 4 5500 No 4-5 6250

No 5-6 15000 No 5-6 5500 No 5 5500 No 6 6000

No 7-8 15000 No 7 5000 No 6 5500 No 7 6000

No 8 5500 No 7 5500 No 8 6000

No 9 5000 No 8 5500 No 9 6000

No 10 5000 No 9 5250 No 10 5500

No 11-12 5000 No 10 5000 No 11-12 5500

No 13 4500 No 11-12 5000 No 13 5500

No 14 4500 No 13-14 5000 No 14 5250

No 15-16 4500 No 15-16 4750 No 15-16 5000

No 17-18 4500 No 17 4750 No 17 5000

No 19 4500 No 18 4750 No 18 5000

No 20 5000 No 19 4750 No 19 5000

No 21 4750 No 20-21 5000 No 20 5500

No 22-23 5000 No 22 5000 No 21-22 5500

No 24 4500 No 23 5000 No 23 5400

No 24 5000 No 24 5400
236

O que talvez seja a distinção mais importante para a discussão aqui empreendida,
entretanto, decorre da longevidade editorial de ambos periódicos. Enquanto a Novyi Lef teve
uma trajetória de vinte e quatro exemplares no decorrer de dois anos, descontinuada entre fins
de 1928 e início de 1929, Na Literaturnom Postu! publicou vinte e quatro edições anuais entre
1927 e 1931, bem como edições regulares em fins de 1926 e no início de 1932 – seu último
ano, em decorrência da dissolução da organização que era sua força motriz. Entre 1928 e
1932, do ponto de vista editorial, nada se vê diretamente relacionado ao construtivismo no
âmbito artístico, como este vinha se redefinindo durante o período; ao invés disso, as poucas e
infrequentes contribuições editoriais por parte destes artistas são encontradas em escritos
próprios – fadados à não-publicação ou “subpublicação” – ou em periódicos voltados para
discussões de outra ordem, consideradas “à margem” das belas artes, como aqueles que
debatiam fotografia e cinema.

Observando as características editoriais desses quatro periódicos, podem ser


constatadas manifestações de desdobramentos mencionados pela discussão aqui já
empreendida: durante o período da NEP, observa-se uma gradual retração da esfera de
atuação da vanguarda – aqui no campo editorial – que pode ser inicialmente observada
durante o período de debilidade e eventual morte de Lenin, e que gradualmente se
intensificaria na medida em que os rumos políticos adotados pelo partido mais se
distanciavam das premissas políticas e artísticas dos artistas construtivistas. A partir de 1928,
como veremos adiante, observa-se o quase total silenciamento da vanguarda, retratado aqui na
inexistência de periódicos artísticos que veiculassem propostas desta ordem, e do gradual
monopólio adquirido pelo direcionamento artístico representado por AKhRR, RAPP e
organizações semelhantes, considerado afim às expectativas partidárias sobre a produção
artística, e o entendimento da liderança soviética acerca do papel da arte nesta nova fase do
desenvolvimento revolucionário, no qual se esperava promover uma Grande Transformação
que permitiria à URSS sobrepujar as capacidades produtivas dos mais desenvolvidos países
capitalistas

***

Estes são apenas alguns exemplos das conexões que podemos estabelecer entre os
desdobramentos políticos das divergências ideológicas nas instâncias superiores do Partido e
as fortunas de diferentes grupos artísticos durante os últimos anos da NEP, nos quais de
acordo com a proclamação formal de 1925 o Estado não havia de “tomar partido” em
237

discussões de teor artístico – o que não o impedira, por outro lado, de promover a
“liquidação” oficial de grande parte do acervo vanguardista adquirido pelo Narkompros
durantes os anos anteriores sob a premissa de necessidade de capitalização 446. Durante sua
extensão, portanto, a NEP representou no âmbito artístico um período relativamente confuso e
instável na sequência de embates que caracterizaria os primeiros quinze anos da experiência
soviética na Rússia. Analisados comparativamente, tanto o período da Guerra Civil, quanto o
direcionamento político que demonstraria a liderança soviética após tomada a decisão de
interromper a NEP, demonstram muito maior definição no campo artístico em relação ao grau
e maneira(s) de envolvimento do Estado sobre as forças engajadas neste embate artístico. A
NEP, em contraponto, permitiu mais frequentes rearranjos de forças na esfera artística na
medida em que reafirmara e intensificara a postura de não-interferência formalmente
implementada em 1918; após a morte de Lenin, tal embate se acentuaria na medida em que a
postura não-intervencionista do Partido cada vez mais coexistiria (ou contrastaria) com
desdobramentos políticos relacionados com os novos rumos da revolução após a morte de seu
principal líder e organizador. Ao fim, se por um lado se pode dizer que até 1928 o Estado
permaneceu firme em sua posição de não conceder qualquer espécie de monopólio a este ou
aquele grupo artístico, durante os últimos anos da NEP já se podem observar novos contornos
que caracterizariam o embate artístico na medida em que este entrava em um novo momento,
evidenciados pelas reações de artistas adversamente afetados por tais desdobramentos, bem
como pela crescente autoridade e escopo de atividade de outros artistas, notadamente “em
voga” tanto no âmbito do “gosto público” quanto em relação ao crescente respaldo individual
recebido por membros da estrutura estatal.

Esquerdismo, Formalismo, Construtivismo: as conotações políticas da nomenclatura


artística [parte 2]

Empreendemos aqui uma discussão semelhante àquela do segundo capítulo, voltada


para a exploração das conotações e implicações políticas decorrentes do uso das categorias
enunciadas, dentre as quais duas já foram previamente discutidas, enquanto a terceira –
formalismo – é aqui acrescida à discussão. A renovação desta discussão neste momento
decorre da constatação de alterações no vocabulário empregado pelos diferentes integrantes

446
GOUGH, 2005, p. 63.
238

deste embate artístico durante o período contemplado neste capítulo, as quais evidenciam
reverberações dos desdobramentos políticos que sucederam a morte de Lenin e a gradual
consolidação da posição de Stalin como líder da União Soviética.

Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que a categoria “futurismo”, omitida nesta


seção mas anteriormente discutida, não desapareceria totalmente do vocabulário artístico
soviético antes de 1932. Entretanto, a discussão acerca de tal categoria aqui se provaria pouco
proveitosa, na medida em que as conotações relacionadas à aplicação de tal categoria
demonstram pouca alteração em relação ao período previamente estudado, bem como se
observa uma drástica redução da frequência com a qual se observa a utilização de tal termo –
especialmente em tom positivo. Seu principal uso com conotações negativas durante os
primeiros anos da experiência soviética se referiria às origens burguesas e pré-revolucionárias
de tal proposta, bem como à suposta ininteligibilidade de suas manifestações mais abstratas;
porém, em 1928 observa-se a gradual obsolescência do termo, já que durante a década de
1920 se consolidaram orientações artísticas cujos programas eram traçados ao futurismo e,
consequentemente, a tais origens – suplantando, efetivamente, esta categoria. Ademais, como
veremos a seguir, a acusação de origem suspeita voltada contra a produção vanguardista cada
vez mais faria uso de outras categorias.

Se durante a guerra civil e boa parte da NEP a adjetivação “esquerdista” fora usada
como um trunfo pelos construtivistas, simbólica da identificação que observavam entre a sua
proposta utilitária e a ideologia marxista, e remetendo ao alinhamento quase imediato de tais
artistas à causa revolucionária após 1917, durante a década de 1920 observar-se-ia a gradual
erosão das propriedades políticas positivas desta adjetivação, decorrentes dos já discutidos
embates políticos que sucederam a debilidade e eventual morte de Lenin; e na medida em que
tal erosão se realizava, aquilo que antes tornava esta identificação um trunfo passaria a ser
uma fraqueza, a ser explorada em um discurso consideravelmente diferente daquele que se
observa durante os primeiros anos da experiência soviética.

O vilipêndio da esquerda enquanto elemento do vocabulário político soviético


decorreu das sucessivas derrotas políticas sofridas pela oposição esquerdista de Trotsky e
Zinoviev entre 1923; estes reveses políticos, atrelados ao semelhante radicalismo previamente
demonstrado pelos artistas esquerdistas – os quais já em 1921 expressaram sua reprovação às
concessões resultantes da NEP – resultariam em uma crescente utilização de tal adjetivação
por parte daqueles que buscavam ressaltar as origens não mais burguesas, mas especialmente
239

esquerdistas, com o intuito de minar as pretensões culturais e políticas de tais artistas; tal
caracterização serviu para qualificar tal proposta artística como um “desvio” ideológico, uma
ameaça interna à crescente unificação ideológica proposta especialmente a partir de 1927, e
que deveria ser consequentemente entendida como duvidosa. Dessa forma, não surpreende
que após o fim da publicação Novyi Lef em 1929, pouco se observa em termos de utilização
de tal vocábulo por parte dos próprios construtivistas. Pelo contrário, observa-se tal ausência
no projeto de Mayakovsky e Brik que sucederia a Novyi Lef: um periódico artístico
denominado REF (Front Artístico Revolucionário) – o qual, entretanto, nunca concretizado447.

Não se deve entender, no entanto, que tais semelhanças atribuídas aos construtivistas
em relação às oposições políticas esquerdistas da década de 20 como provas da existência de
alianças reais entre artistas desta orientação e os principais participantes de tal bloco. Entre os
construtivistas e os demais artistas que podem ser incluídos na esquerda artística soviética,
ainda que se observe uma espécie de sectarismo motivado pela ameaça de orientações
concorrentes por uma mesma chancela ideológica – uma que por definição excluiria outras –
não há indícios que sustentem mesmo a menor forma de formação de blocos de apoio ou
lobby políticos declarados durante os primeiros anos que seguiram os primeiros acidentes
vasculares cerebrais de Lenin, como a produção de obras politicamente carregadas realizadas
espontaneamente ou a redação de artigos e manifestos de apoio a alguma das partes.
Entretanto, tal como em 1917 os pontos programáticos da produção construtivista utilitarista
pareciam partilhar afinidades com a ideologia revolucionária, durante estes primeiros anos da
década de 1920 estes artistas pareciam partilhar afinidade em relação às proposições de
Trotsky, enquanto parecem ainda mais nítidas as afinidades entre a proposta realista e o
discurso stalinista de consolidação – ainda que no último caso, especialmente após 1928, o
alinhamento entre tais partes tenha se tornado nítido e de difícil contestação.
Grupos proponentes de outras diretrizes artísticas, como a AKhR e a RAPP, não
sofreram semelhante vilipêndio por consequência do facciosismo observado durante a década
de 1920, na medida em que previamente não haviam sido nitidamente qualificados de tal
maneira. A AKhR, devido a sua proposta predominantemente não-alinhada vagamente
voltada à “glorificação da Revolução”, se beneficiaria de certa proteção diante das
repercussões negativas de tais confrontos políticos no âmbito artístico-cultural. As
organizações literárias como a RAPP/VAPP, por sua vez, poderiam a princípio ser

447
LAWTON, 1988, p.47-48.
240

identificadas com a esquerda, na medida em que sua denominação proletária as associariam


ao Proletkult, o qual havia sido por alguns identificado com a esquerda até 1922448; no
entanto, tal identificação não parece ter partido do próprio Proletkult, cuja pretensão
autonomista evitava tais alinhamentos; ademais, a maior e mais longa identificação dos
construtivistas com tal vocábulo, assim como a ativa postura da VAPP/RAPP em se dissociar
do Proletkult desde sua formação, permitiria a Averbakh e os demais membros da RAPP
apontar para os construtivistas, no mínimo, como “mais esquerdistas”. Sobre a relação entre o
Proletkult e a RAPP, Mally afirma:

Nos debates culturais em andamento [durante a década de 20] o Proletkult serviu


como um ponto de referência negativo. Seus alicerces teóricos e práticas culturais
haviam sido explicitamente condenadas por Lenin, cujos pronunciamentos foram
periodicamente reimpressos durante a Nova Política Econômica. Na medida em que
Lenin havia ligado a própria ideia de cultura proletária ao Proletkult e a Bogdanov,
outros grupos, especialmente a vocal e combativa VAPP, investiu considerável
energia tentando demonstrar o quanto a sua concepção de arte e ideologia proletária
se diferia do Bogdanovismo e dos “falsos métodos laboratoriais” do Proletkult. (...)
[O Proletkult] se tornou um bode expiatório conveniente para as novas organizações
que buscavam defletir hostilidade de seus esforços em definir uma cultura
449
proletária .

Em geral, pode-se perceber semelhanças ao observar-se em linhas gerais a abordagem


de Stalin e de tais grupos artísticos durante os últimos anos da NEP, no que diz respeito ao
facciosismo acima mencionado. Em ambos os casos a ausência de um alinhamento
formalizado permitiu uma maior flexibilidade de discurso, consequentemente resultando em
sua dissociação em relação aos espectros extremos desta flutuação terminológica em prol de
uma postura “indefinida”, e portanto, centrista por exclusão – o que é especialmente irônico
dada a convencional associação entre centrismo e moderação, em especial quando
contemplamos a VAPP/RAPP, cujo discurso artístico se tornaria conhecido por seu tom
agressivo e maniqueísta450. No caso de ambas organizações artísticas, observa-se sempre a
alusão direta à Revolução, quase como um ideal abstrato, porém sem que tal discurso
extrapole o âmbito artístico – demonstrando um reconhecimento da separação de tais esferas
que os construtivistas pouco demonstraram em qualquer momento até então. Se por um lado
desde 1917 muitos destes artistas vanguardistas se entendiam como a “vanguarda
revolucionária das artes”, os artistas que comporiam estes outros grupos se demonstram em

448
FOX, 1992, p. 1062.
449
MALLY, 1990, p.231.
450
Ibid., p.230-231.
241

seus escritos como agentes a serviço da causa revolucionária, e mesmo quando demonstram
em seus pontos programáticos as características formais e temáticas de suas propostas
artísticas, o fazem sem alusão a interpretações ideológicas e posicionamentos políticos fora do
âmbito artístico.

A despeito desta inversão semântica observada na “esquerda” enquanto vocábulo


político na Rússia soviética pós-Lenin, não seria através desta associação que os
construtivistas seriam criticados e atacados por seus rivais no campo das artes – mas sim pelo
uso acusatório da adjetivação “formalista”. Tal termo tomara corpo gradualmente após a
revolução, sendo usado predominantemente para denominar a abordagem analítica dos grupos
de estudo e reflexão linguística como o Círculo Linguístico de Moscou451 e a Sociedade para
o Estudo da Linguagem Poética (Opoyaz)452, preocupados com as características formais da
construção linguística e com o aprofundamento do entendimento humano sobre as
propriedades e aplicações da língua – ou, como disse Jakobson em 1919, “o objeto da ciência
da literatura não é a literatura, mas a literariedade (literaturnost)453”. Não se surpreende,
portanto, que os artistas futuristas que também se concentravam sobre tais questões se
relacionariam com tais estudiosos antes mesmo de 1917, e que tal semelhança fosse aparente
a qualquer indivíduo que tivesse contato com a teorização de ambos grupos. Ainda que
houvesse diferenças entre tais grupos em questões metodológicas, suas premissas e seus
objetivos os tornariam colaboradores, dentre as quais a aproximação entre Roman Jakobson,
Osip Brik e Viktor Shklovsky com os futuristas e construtivistas resultaria em múltiplas
colaborações durante os quinze primeiros anos que seguiram a Revolução – ainda que, como
aponta Markov, tal aproximação não fora unânime por parte dos formalistas, mencionando o
formalista Zhirmunsky, o qual afirmara que o futurismo era “uma doença sui generis da
arte”454.

451
O Círculo Linguístico de Moscou (Moskovskii Lingvisticheskii Kruzhok) foi fundado por estudantes de
história e filologia da Universidade de Moscou em 1915, e operara até 1924. Entre seus membros pode-se
mencionar Roman Jakobson como o membro de maior interação com a produção futurista e construtivista; Cf.
GOUGH, 2005, p.25. Sergey Bobrov, por sua vez, associara-se brevemente a um dos segmentos do futurismo
russo, o grupo Centrifuga, formado em 1913 e desfeito em 1917. Cf. MARKOV, 2006, p. 230.
452
A Opoyaz foi fundada em 1916, e dissolvida em 1930. Sediada em São Petersburgo, esta associação operou
paralelamente ao Círculo Linguístico de Moscou, e dentre seus membros pode-se mencionar Osip Brik e Viktor
Shklovsky como aqueles de maior interação com a produção futurista e construtivista; Cf. GOUGH, op.cit., p.25.
453
JAKOBSON, 2007, p.65.
454
MARKOV, p.383.
242

No contexto pós-1928, por outro lado, tal categoria adquiriria uma conotação mais
ampla, na qual as reflexões literárias de tais grupos seria apenas um exemplo. Esta adjetivação
seria atribuída àqueles indivíduos que demonstrassem em suas interpretações culturais e
formulações artísticas uma preocupação excessiva com questões de ordem formal,
consequentemente relegando a segundo plano considerações relacionadas ao conteúdo
veiculado pela sua produção artística. Na medida em que o direcionamento artístico soviético
caminhava em direção do objetivo de se produzir uma arte primariamente voltada para a
veiculação de um conteúdo socialista simples e direto, na qual considerações relacionadas ao
teor político e capacidade de mobilização social do conteúdo da obra adquiririam primazia
sobre aspectos formais, observa-se justamente o vilipêndio da produção que priorizasse
questões de ordem formal, entendidas como 1) de difícil entendimento popular, e
consequentemente pouco capaz de causar o efeito desejado; 2) de difícil regulamentação e
controle por parte de órgãos de supervisão da produção artística, haja visto que tais órgãos
não eram predominantemente compostos por artistas profissionais, e 3) indício de alienação
ideológica e simpatia internacionalista, resultando em acusações de Trotskismo ou de maiores
inclinações contrarrevolucionárias. Ilustraria esse posicionamento o jornalista soviético Osip
Beskin em 1930, ao afirmar que “formalismo em qualquer área artística, especialmente na
pintura, é agora a principal forma através da qual se exerce influência burguesa”455.

Seria o “construtivismo” o último reduto da vanguarda em termos de justificação


ideológica de suas produções; entretanto, esta categoria também sofreria crescente
transformação durante os anos da NEP e aqueles que a seguiram, adotando finalmente um tom
predominantemente negativo a partir de associações entre esta categoria e aquelas acima
discutidas. Em primeiro lugar, os construtivistas sempre fizeram alusão às dimensões
laboratoriais de sua proposta artística, através das quais presumiam experimentar com as
propriedades inerentes dos materiais com os quais construíam, e a partir de tal exercício,
expandir o entendimento do indivíduo sobre a matéria, tornando-o um melhor construtor. Tal
dimensão demonstra clara preocupação com a especificidade do meio deste artista construtor
– categoria já discutida e considerada subjacente a esta e outras produções vanguardistas
russas e europeias – e seria sempre justificada por seus proponentes como um exercício de
natureza científica. Paulatinamente, entretanto, na medida em que tais artistas falharam em
consolidar seus projetos de amalgamação entre arte e ciência, e na verdade observavam

455
BOWN, 1991, p.119.
243

ambos campos distanciarem-se mutuamente como parte dos desdobramentos políticos da


década de 1920, bem como da crescente importância dada à formação de especialistas
durante os anos que seguiram a NEP, observa-se crescente ressonância da argumentação de
seus críticos, que associavam tais experimentos não a uma metodologia científica – “afinal,
estamos tratando de arte, e não de ciência”, diriam – mas sim a um desperdício de tempo e
material em uma produção amadora e desprovida de sentido, essencialmente formal e, em
termos simples, estéril.

Assim como os limites entre ciência e arte precisavam ser redefinidos e, ao fim,
fundidos para a fruição das ambições construtivistas, semelhante processo de amalgamação
era requerido entre a produção artística e o desenvolvimento de objetos voltados para o uso
social e cotidiano. Neste quesito também se observa durante o período aqui contemplado um
distanciamento, ao invés de aproximação, entre as duas modalidades de produção. Como há
de se ver durante os últimos anos de existência do Vkhutemas/Vkhutein, os últimos anos da
década de 20, tal período presenciaria uma revitalização da noção de arte enquanto
modalidade de produção essencialmente estética e dissociada de considerações utilitárias,
pautada sobre os cânones representativos da arte pré-revolucionária – em especial na arte
realista e engajada dos Andarilhos – e na prioridade conferida pela liderança partidária à
satisfação dos gostos demonstrados pela população soviética durante a NEP.

No decorrer deste processo de marginalização ideológica daquilo que se entendia por


construtivismo, observa-se no uso desse termo pelos críticos de tal produção o entendimento
do construtivismo como uma proposta utópica, essencialmente formal, desprovida de
conteúdo revolucionário e, portanto, desalinhada em relação ao direcionamento da revolução
e pouco relevante enquanto contribuinte para o progresso da mesma. Tal entendimento
artístico questionava o construtivismo sobre a viabilidade prática de execução de tais projetos,
os quais tinham como requisito a formação de um artista-construtor, o qual não apenas ainda
não existia formalmente em números significativos456, como representava uma noção
contrária à exigência de especialização científica que se tornaria prioritária especialmente a
partir de 1928.

456
O Vkhutemas chegou a conferir diplomas de artista-engenheiros, porém posteriormente os portadores de tais
diplomas encontraram dificuldades em fazer valer estes diplomas, preteridos por aqueles advindos de cursos
especializados nas áreas que tais artistas-construtores também pressupunham exercer.
244

Adicionalmente, as três categorias acima discutidas poderiam ser acusadas de


cosmopolitismo, o que permitiria enquadrar a produção construtivista em outra categoria que
se tornaria cada vez mais politicamente indesejável a partir de 1928. Como já brevemente fora
mencionado, e posteriormente será mais detidamente debatido, parte integrante da grande
transformação que Stalin se propusera a empreender na URSS era a eliminação de elementos
contrarrevolucionários motivados e financiados por interesses capitalistas internacionais, os
quais segundo Stalin haviam sido responsáveis pela falta de progresso da Revolução até o
momento de tal pronunciamento. Este período carregaria a exigência, portanto, de
afastamento de influências internacionais na medida em que a URSS caminhava em direção à
linha de Socialismo em um só país, valorizando consequentemente a produção cultural que
veiculasse valores e temas nacionais e a glorificação do socialismo e da causa revolucionária.

Esta exigência seria adotada pelo discurso crítico à produção vanguardista; a


associação formada por tais críticos entre as propostas artísticas do construtivismo e a
oposição esquerdista seria potencializada em sua conotação negativa com a formação da
Oposição Esquerdista Internacional fundada por Trotsky em 1930, permitindo à argumentação
crítica ao construtivismo a denominação do mesmo como esquerdista e, agora
consequentemente, cosmopolita.

A acusação de formalismo adquirira maior conotação cosmopolita entre as três aqui


contempladas, sendo associada a uma abordagem artística excepcionalmente individualista, e
usada inclusive de forma sinônima em diversas ocasiões. Por um lado, os maiores êxitos e
reconhecimento da produção construtivista russa durante a década de 1920 parecem ter
ocorrido na Europa, aonde se podem observar produções paralelas em suas intenções
utilitárias – dentre as quais se destaca a Bauhaus – bem como outras consideradas
vanguardistas em suas reflexões e experimentações formais; por outro, no cenário soviético
observar-se-ia uma marginalização de tais propostas experimentais em prol de uma produção
mais alicerçada em cânones estabelecidos e que gozavam de maior apreço popular durante o
período. A partir de tal crescente discrepância entre às exigências e o subsequente fomento
estatal sobre a produção artística soviética e a produção vanguardista europeia que, durante a
década de 1920, parecia encontrar crescente número de adeptos e entusiastas, observa-se
nitidamente uma aproximação entre construtivismo, formalismo e cosmopolitismo por parte
dos críticos da vanguarda, a partir da qual tal produção seria não apenas estéril, mas
contribuiria negativamente para a causa revolucionária em decorrência não apenas das origens
245

de classe de seus autores, como da nítida associação entre esta produção e aquela dos países
capitalistas.

Ao analisarmos comparativamente as conotações das categorias discutidas até o


momento, podemos observar um paralelo entre as variações semânticas de tais categorias e os
desdobramentos políticos aplicados à esfera artística durante o período aqui contemplado.
Como se pode ver nos últimos parágrafos, durante os últimos anos da NEP e os anos que a
seguiram as principais categorias utilizadas para denominar a produção de artistas
considerados vanguardistas adquiriram conotações predominantemente negativas, na medida
em que tal produção era vilipendiada pelo discurso artístico de seus rivais no campo artístico,
os quais se sentiram primeiramente encorajados, e posteriormente legitimados, pela liderança
partidária. O gradual silenciamento desta vanguarda, observável especialmente após a última
edição da revista Novyi Lef, permitiria que esse processo se intensificasse, permitindo
associações largamente incontestes entre a produção construtivista e os valores e categorias
vilipendiados pelo Partido. Em outras palavras, no âmbito da nomenclatura utilizada nos
discursos artísticos durante o período se pode observar uma contração semelhante àquela que
se observa no campo prático de ação dos artistas construtivistas: tal como seu escopo de ação
se reduzia, também se reduziam as possibilidades de justificação positiva de suas propostas
artísticas, em um processo cíclico de agravamento. Tal situação contrasta com o período
anterior, discutido previamente: durante a Guerra Civil e os primeiros anos da NEP, tal como
o escopo de ação da vanguarda se demonstra mais amplo do que no período aqui discutido,
também no espectro semântico da nomenclatura corrente se observa uma maior “fatia
positiva”, a qual permitia tais artistas justificar suas propostas em termos e interpretações
ideológicas alinhadas – ainda que parcialmente – com os direcionamentos determinados pela
liderança partidária de tal período.

A Grande Transformação (ou Recuo?) das artes

A despeito da gradual adoção de um novo direcionamento cultural que pode ser


observado informalmente já em 1926 – ou mesmo antes, argumentariam certos
historiadores457 – seria a partir de 1928, que se poderia observar a formalização de uma
postura oficial relativa à administração e supervisão da produção cultural contrastante com

457
CLARK, Katerina. The “Quiet Revolution” in Soviet Intellectual Life, in: FITZPATRICK, Sheila et al.
(orgs.), Russia in the Era of NEP: Explorations in Soviet Society and Culture. Bloomington: Indiana
University Press, 1991, p. 211.
246

este prévio direcionamento, então hegemonicamente considerado demasiado brando e utópico


diante das necessidades da Revolução observadas pela nova liderança partidária458.

Este novo direcionamento se caracterizaria pela submissão das diretrizes culturais às


prioridades políticas e econômicas estabelecidas pelo Partido, dentre as quais se podem
destacar como principais a recuperação econômica soviética e seu subsequente
desenvolvimento, bem como a cooptação e mobilização política e ideológica da população.
Isto representa um considerável contraste se comparada à postura delineada por Lenin,
Trotsky e Lunacharsky em 1917, e reafirmada em 1925, abandonando uma postura
organicista de não-intervenção em prol de uma postura centralizadora voltada para a
mobilização política da produção artística. Tal nova postura fora introduzida após o expurgo –
e em alguns casos, a reabilitação – dos críticos de Stalin durante a NEP, bem como do
primeiro grande Tribunal Público, realizado após a morte de Lenin, o qual tinha como intuito
julgar os supostos sabotadores contrarrevolucionários acusados de causarem propositalmente
a redução da produção na região carbonífera da bacia do Don – conhecido como o Julgamento
de Shakhty. No campo cultural, a implementação desta resolução em tal contexto enviaria
uma clara mensagem, na qual se entendia que o Partido estava pronto para adotar uma linha
artística específica, a qual haveria que satisfazer as diretrizes acima apontadas – bem como
reafirmava os riscos envolvidos em se portar de maneira que pudesse ser interpretada como
contrarrevolucionária.

A formalização de tal direcionamento no âmbito artístico pode ser observada na


resolução do Comitê Central do partido sobre assuntos culturais de 1928, produzida com o
intuito de suplantar e atualizar as determinações da resolução de 1925. Em tal resolução,
observa-se uma mudança de posicionamento partidário em relação à produção artística, na
medida em que afirma como uma expectativa partidária o engajamento e o implícito
alinhamento de tal produção às tarefas da Revolução, ditadas pelo Comitê Central:

(...) em sua mais moderada passagem, citava a resolução de 1925, porém adiante
declarava guerra a quaisquer ‘recuos à posições classistas, ecletismo, ou atitude
benevolente em relação a uma ideologia alheia’. A resolução declarava que a
literatura, o teatro, o cinema, a pintura, a música e o rádio deviam ativamente
participar ‘no embate (...) contra a ideologia burguesa e pequeno-burguesa, contra a
vodka e a vulgaridade,’ bem como contra ‘o renascimento da ideologia burguesa sob
459
novos termos e contra a imitação servil da cultura burguesa .

458
FITZPATRICK, 1992, p.112
459
HELLER e NEKRICH, 1992, p. 269.
247

Esta resolução pode ser entendida como um dos principais marcos que representariam
no campo cultural aquilo que no campo político soviético seria denominado pelo próprio
Stalin em 1929 como uma “Grande Transformação”460, a inauguração de um radical
redirecionamento revolucionário que visava produzir através dos esforços planificadores do
Estado e do ardor revolucionário do proletariado um período de prosperidade e progresso sem
precedentes, tendo como prioridades a equiparação e superação do potencial industrial do
Ocidente, a ser alcançada através de uma política de industrialização acelerada, centralização
de prerrogativas políticas antes difusas entre múltiplos comissariados e comissões paralelas,
coletivização do campo e afastamento internacional.

No âmbito artístico, a premissa centralizadora e maniqueísta que seria característica


desta transformação se apresentava com mais clareza nos discursos associados com a “linha
dura” cultural, como se pode observar nos escritos da RAPP no âmbito literário. Entretanto,
como aponta Fitzpatrick, o apoio de Stalin durante este período a organização como a RAPP
não parece decorrer de uma real apreciação da produção de tais escritores, ou mesmo da
intenção de delegar a eles aspectos da tarefa revolucionária – como os desdobramentos desse
processo de centralização demonstrariam – mas sim a de utilizá-los como uma ferramenta que
o aproximasse do seu objetivo último: a centralização e submissão da produção artística ao
escrutínio do Estado, efetivamente revertendo a política organicista e não-intervencionista
implementada pelo Narkompros em 1917:

Ele [Stalin] usou a RAPP e a Academia Comunista como inquisidores no interior do


partido, bem como instrumentos de extensão de controle para além do mesmo.
Porém, na medida em que estas organizações expandiam seu poder político,
adquiriam autoridade e reivindicavam por mais, sua utilidade enquanto instrumentos
permanentes para a liderança partidária se tornou questionável. Eles não eram,
estritamente, órgãos do partido; e quando a RAPP em seu apogeu requerera
reconhecimento forma enquanto “porta-voz do partido” em assuntos literários, isso
foi recusado. Do ponto de vista da liderança partidária, iniciativas regionais e
oriundas do Komsomol, ainda que bem intencionadas, eram uma ameaça à
461
disciplina partidária .

Esta apresentação do período aqui discutido pelo próprio líder da URSS é reveladora
em muitos aspectos relevantes para a discussão a ser empreendida. Em primeiro lugar, como
já se mencionou, observa-se pela estruturação e conteúdo do texto que aquilo que define esta
grande transformação é a diferente perspectiva econômica e a intensidade com a qual este
460
O texto integral do discurso de Stalin traduzido para o inglês pode ser encontrado em
http://www.marxists.org/reference/archive/stalin/works/1929/11/03.htm (acessado em 02/01/2014)
461
FITZPATRICK, Sheila. Cultural Revolution in Russia 1928-1932, in: Journal of Contemporary History,
vol.9, no 1 (Janeiro, 1974), p.37.
248

novo direcionamento seria promovido. Da mesma maneira é também aparente que esta grande
transformação seria um período durante o qual o Partido perseguiria seus objetivos de forma
mais unificada, após os expurgos dos instigadores da esquerda e direita, resultando na
centralização da força revolucionária.

Outros traços, no entanto, revelam características diversas do direcionamento político


deste período anunciadas por Stalin, e que seriam especialmente relevantes para o campo
artístico. Em primeiro lugar, não há qualquer discussão que possa ser explicitamente
relacionada à esfera cultural no texto, sendo a grande transformação discutida em critérios
puramente econômicos, sociais e políticos. No entanto, pode-se extrapolar o papel da mesma
a partir das referências feitas pelo autor relativas à ciência, cercada por aspas em todas as
ocasiões que fora mencionada (5). Em sua breve aparição, a generalizada “ciência” é retratada
pelo autor como distante de considerações de ordem prática e, portanto, incapaz de dar conta
de todas as suas variáveis, na medida em que falhara em corretamente prever os resultados
dos esforços da coletivização, os quais o autor julga em seu texto como bem-sucedidos.
Especialmente reveladora é também a insinuação da “ciência” como ideologicamente
questionável, na medida em que a mesma é associada às considerações feitas pelos direitistas
relativas à coletivização.

A partir da linha de argumentação apresentada por Stalin, e dos desenvolvimentos que


a seguiram no âmbito cultural, pode-se formar um paralelo claro entre o entendimento de
Stalin relativo à ciência e à arte (ou “arte”?), no qual a expectativa governamental parecia se
tornar uma de submissão a considerações de ordem prática e à hierarquia partidária. Seria esta
característica que atrairia a crítica de tantos integrantes da vanguarda, incluindo-se aqui o
formalista Roman Jakobson, que atribuía a tal subserviência importância central em sua
hipótese de que a União Soviética estava na verdade “esbanjando seus poetas”462,
privilegiando indivíduos medíocres, porém obedientes, em detrimento de artistas realmente
capazes de elevar a produção cultural soviética a novas alturas – o que nos faz lembrar ao
exemplo de Trofim Lysenko, se pensarmos no campo de produção científica. Escrevendo em
1930, Jakobson enaltece a sua própria geração, considerando-a mais adequada para o
desenvolvimento da sociedade revolucionária, vista igualmente como caracteristicamente
plástica e repleta de potencialidades ainda não exploradas, necessitada de mãos
transformadoras. Em contrapartida, Jakobson critica aqueles indivíduos que, como demonstra

462
JAKOBSON, 2007.
249

sua subserviência, satisfaziam-se com a reprodução, ignorantes às consequências e aos


perigos resultantes da reprodução formal acrítica em tempos de formação de uma cultura
revolucionária. O que observa o autor durante a década de 1920, entretanto, são justamente as
manifestações de um processo de solidificação, que pareciam acabar por resultar na
marginalização e opressão daqueles que conscientemente optavam por não solidificarem-se.
Nas palavras de Jakobson, define a geração na qual inclui a si mesmo, bem como aos demais
participantes da vanguarda artística russa,

(...) os que perderam [com a morte de Mayakovsky em 1930] são a nossa geração.
Aqueles que têm, hoje, entre 30 e 45 anos de idade, aproximadamente. Aqueles que
chegaram aos anos da revolução já formados; que, mesmo não sendo barro amorfo,
ainda não estavam solidificados, ainda eram capazes de sentir e de se transformar,
ainda eram capazes de ver o momento não como alguma coisa de estático, mas
463
como oportunidade para reiniciar a formação

Tanto na retórica do discurso de Stalin acima discutido quanto na análise de


historiadores este período é recorrentemente caracterizado a partir do uso de categorias e
expressões que o designem como uma grande ruptura se comparado aos anos que o
precederam. No entanto, há de se refletir até que ponto, no campo artístico, esta
transformação pode ser considerada abrupta o suficiente para merecer tal designação. Uma
análise que compare a intensidade e brusquidão das transformações percebidas nos âmbitos
político-econômico e artístico parece indicar, na verdade, um maior grau de continuidade em
certos aspectos da esfera artística, na qual as transformações observadas durante o período
podem ser traçadas a desenvolvimentos já em curso durante os anos anteriores, ainda que sem
considerável respaldo oficial. Em outras palavras, não se contesta aqui a validade de tal
expressão para designar os redirecionamentos e as transformações políticas observadas na
União Soviética após 1928; entretanto, se questiona a validade de se transferir tal grau de
radicalismo à esfera cultural, na qual se pode observar mais do que amplos contornos deste
abrupto redirecionamento antes de 1928, bem como a adoção de cânones e critérios
previamente consolidados, e não a elaboração de parâmetros radicalmente novos. Dessa
maneira, parece mais adequado apontar-se para a interpretação de Nikolai Timasheff, que na
década de 1940 diagnosticara o que denominara um “Grande Recuo”464 na política soviética
durante a década de 30, voltando-se para valores tradicionais como noções de família e

463
JAKOBSON, p. 10.
464
TIMASHEFF, Nicholas. The Great Retreat: The Growth and Decline of Communism in Russia. Nova
York: E. P. Dutton & Company, 1946.
250

nacionalismo que, durante os anos anteriores, foram consideradas obstáculos a serem


superados, e não como alicerces para o progresso revolucionário. A despeito das válidas
críticas construídas sobre a análise de Timasheff, as quais questionam a validade da afirmação
acerca deste recuo quando atribuída ao campo econômico, por exemplo, no âmbito artístico
esta hipótese parece sustentar-se, na medida em que se pode observar na lógica de priorização
deste período a validade de recuar-se no campo artístico e cultural – entendidos como
secundários – de modo a oferecer alicerces culturais estáveis e consequentemente
potencializar os avanços em áreas consideradas estratégicas e, portanto, prioritárias. Em sua
análise das radicais teorizações de Aleksei Gan, aquele que bradara em seu texto
“Construtivismo” de 1922 “Morte à arte!”, Maria Gough também aponta a discrepância entre
o radicalismo da liderança partidária em determinadas esferas e o relativo conservadorismo
demonstrado pela mesma em questões culturais e artísticas:

A principal preocupação de Gan em Construtivismo é a de denunciar a incoerência


comumente observada entre marxistas e comunistas: a despeito de sua radicalidade
em assuntos econômicos, sociais, políticos, bem como em relação à revolução em si,
em relação às artes eles pareciam abandonar completamente as regras básicas do
materialismo histórico (especialmente, como Gan observa, que “cada estágio do
desenvolvimento social precisa ser entendido nos termos de suas próprias
características específicas, as quais são ímpares e apenas relativas ao mesmo”). Tais
comunistas buscaram ao invés disso defender os valores “eternos” da arte: “Assim
que abordamos a arte, nós deixamos de ser marxistas.... Os comunistas do
Narkompros que estão em controle de assuntos artísticos são [portanto] quase
idênticos aos não comunistas fora do Narkompros. Eles são tão cativados pelo belo
465
[nakhodiatsia v plenu u prekrasnogo] quanto os últimos o são pelo divino” .

De forma ampla, o que se observa entre 1926 e 1932 é em certa parte uma crescente
radicalização do confronto entre os proponentes de diferentes orientações artísticas e
literárias no âmbito soviético, sobre bases e tendências que precederam a Resolução de 1928.
Em consequência de tal radicalização também se observa a intensificação da tendência
previamente observável, relativa à preferência da orientação artística realista em detrimento
das propostas mais utilitárias e experimentais dos construtivistas. Esta radicalização
significou, portanto, maior contração na esfera de ação daqueles cuja produção não podia ser
propriamente arregimentada pela nova linha revolucionária, preteridos diante do crescente
grupo de artistas e escritores cuja produção servia a função de mobilização social desejada
pelo partido através da ênfase dada ao conteúdo revolucionário, veiculado de forma simples e
clara.

465
GOUGH, 2005, p.68.
251

A predileção e apoio demonstrados às produções de grupos como a AKhRR antes de


1928 seriam a partir de então acompanhadas de maior reconhecimento oficial de tal produção,
resultando inclusive em crescente representatividade numérica e autoridade destes grupos em
seus respectivos campos, com as quais eles puderam pressionar seus rivais de forma
semelhante à estratégia seguida pelos construtivistas durante a Guerra Civil.

Para muitos artistas, este não pode ter sido uma situação confortável, na medida em
que a AKhRR era claramente a organização favorecida pelo estado. As vantagens de
tamanho e financiamento foram intensificadas em 1928 pela importante visita de
Stalin, bem como pelo novo status, conferido pelo partido, de organização nacional,
o que a permitia estabelecer filiais por toda a União Soviética. Neste período a
466
situação profissional dos vanguardistas era certamente desconfortável .

A RAPP, por sua vez, encontraria semelhante respaldo no âmbito literário


especialmente após 1928, contribuindo para a perseguição de seus oponentes ideológicos, os
quais se enquadravam também nos segmentos considerados indesejáveis pelo Comitê Central:

A RAPP (como a VAPP se renomeou em 1928) recebeu poderes efetivos que a


permitia castigar e punir em nome do partido, e montou uma bem-sucedida
campanha contra o “direitismo” no interior da administração artística do
Narkompros, e conseguindo o apontamento de Raskolnikov para o cargo de direção,
e iniciou um violento embate com grupos competidores de “linhas-duras” da
467
Academia Comunista pelo controle da imprensa literária .

Durante o período da guerra civil, entretanto, quando eram os artistas “conservadores”


aqueles em situação “desconfortável”, os esforços de construtivistas em imprimir suas
posições teóricas relativas à arte sobre o aparato estatal cultural soviético não alcançariam o
mesmo grau de sucesso que foi alcançado pelos realistas no período aqui discutido. Em
primeiro lugar, os construtivistas nunca gozaram do mesmo peso numérico que grupos como
a RAPP, a qual gozara de milhares de membros e observara o crescimento de seus números
até a sua dissolução; de tal maneira, seus projetos de implementação de uma abordagem
construtivista às artes pressupunham sua aplicação de cima, realizada a partir da autoridade
alcançada pelos mesmos no interior da estrutura estatal e, portanto, tomando as rédeas da
revolução no âmbito artístico – frequentemente à revelia de Lunacharsky, como vimos, bem
como das inclinações artísticas de importantes membros do aparato estatal, como o próprio
Lenin468. Tal implementação de cima fora acompanhada por esforços paralelos limitados de

466
BOWN, 1991, p.61.
467
FITZPATRICK, 1992, p.113.
468
Cf. MARKOV, 2006, p. 316; BOWN, 1991, p.27
252

cooptação popular a este novo entendimento artístico; ainda que seja nítido que no interior do
Narkompros, bem como das oportunidades de publicação oferecidas à vanguarda um esforço
de cooptação nesse sentido, em sua grande parte os demais órgãos da estrutura estatal
soviética permaneceram indiferentes ou avessos à promoção de tais diretrizes artísticas. Haja
visto que o direcionamento estatal no âmbito cultural a partir de 1921 fora especialmente
pautado por considerações relativas ao gosto público, a falta de sucesso de tais artistas
convencer a população acerca da validade de suas propostas é um dos principais fatores que
permite entender a decisão estatal em primeiramente limitar e, posteriormente, reverter tais
medidas – e ao fazê-lo, voltar-se gradualmente à produção de grupos que satisfizessem este
requisito.

Em considerável medida, o sucesso parcial alcançado pelos esforços de tais artistas


construtivistas durante o período da guerra civil deve-se ainda ao estado de desorganização
que se encontrara o governo soviético durante estes primeiros anos, durante os quais
considerações dessa ordem não foram tomadas como prioritárias. Dessa forma, em um
momento posterior, durante o qual o Estado pudera se reorganizar e avaliar as atividades
realizadas em campos até então negligenciados, tais medidas foram parcialmente revertidas,
demonstrando a indisposição da liderança partidária em delegar o lado artístico da Revolução
a um grupo específico. Após 1928, da mesma maneira, a nova liderança soviética não dera
qualquer indicação de intenção em delegar tal tarefa a este ou aquele grupo; no entanto, os
grupos que aqui observamos como cada vez mais influentes alcançaram tal influência o
fizeram como agentes da liderança partidária, e não como a liderança em si. Em outras
palavras, tais artistas tiveram êxito em expandir a influência de suas ideias sobre o campo
artístico não por gozarem da autoridade estatal que os permitia impô-las sobre as demais, mas
por gozarem da predileção do gosto público, associada à disposição de acatar as diretrizes
impostas pela liderança – demonstrando uma flexibilidade ideológica considerada desejável
pelo Partido, e observada por membros de outros grupos469. Finalmente, mesmo durante o
auge da influência política de construtivistas no interior do Narkompros, tal produção não
gozara de apreço remotamente semelhante àquele demonstrado aos realistas durante a década
de 20.

469
EVGENOV, S. Uncivil War: Gladkov & The Smithy vs. RAPP. Account of an underhanded attempt by the
Russian Association of Proletarian Writers in 1925 to subvert Party policy and legislate all rival literary
organizations out of existence, p.7
253

A radicalização da rivalidade artística observada durante a década de 1920 e a


simultânea adoção cada vez mais decidida de um direcionamento político por parte do
governo soviético que se demonstraria simpático às propostas e perspectivas artísticas de
grupos como AKhRR e RAPP podem ser observadas, por exemplo, nas atividades e
transformações do Vkhutemas, o qual a partir de 1926 adquiriria dimensões cada vez mais
“conservadoras” – utilizando-se a perspectiva construtivista – até a sua extinção em 1930.

Durante seus últimos cinco anos de existência, o Vkhutemas fora dirigido pelo
sociólogo e arquiteto Pavel Novitsky. De acordo com Miguel, seria o reitor um dos principais
articuladores da segregação formal das esferas de ensino do Vkhutemas – a qual culminaria
na renomeação da instituição em 1928 para Vkhutein470. Durante sua gestão, Novitsky parece
ter mantido em mente o propósito técnico da instituição, tendo afirmado em 1927 que “até
recentemente, a despeito de seu nome (...) o Vkhutemas conferiu demasiada atenção à arte
‘pura’, especialmente à pintura”471. Segundo Lodder, a gestão de Novitsky fora aquela que
presenciou tal segregação, porém recorrentemente se observa a preocupação do reitor voltada
primariamente ao aspecto aplicado e prático da instituição, tendo por outro lado encontrado
dificuldades semelhantes àquelas encontradas pela vanguarda durante o período da Guerra
Civil – entre outras, a de convencer candidatos à vagas no instituto a respeito da metodologia
e da importância de certos cursos, tentando evitar a excessiva gravitação de tais alunos aos
cursos de teor puramente artístico em um momento em que se esperava acentuar o aspecto
técnico e industrial da instituição.

De certa forma, os esforços de Novitsky e os resultados de tais esforços – ou a falta


deles – são ilustrativos do contexto político no qual se inseria o Vkhutemas ao fim da NEP. A
renomeação do Vkhutemas para Vkhutein472 relaciona-se diretamente a este sectarismo que
decorre não apenas da progressiva afirmação de vertentes artísticas concorrentes, mas da
demanda estatal que motivara este desenvolvimento. Por um lado, parece claro à Novitsky
que aquilo que era diferencial em relação ao Vkhutemas era o seu aspecto industrial e
aplicado, o que resultaria em seus esforços voltados para conferir primazia às atividades e
departamentos mais claramente ligados a tais esferas. Tal como a direção das demais VUZ
soviéticas, entretanto, o reitor não gozaria da autonomia administrativa necessária para levar a

470
LODDER, 1983, p.114
471
Ibid., p.122.
472
Vkhutein (Vyshii KHudozhestvenno-Tekhnicheskii Institut): Instituto Superior Artístico-Técnico.
254

cabo esta reforma por completo, esbarrando nas deliberações de órgãos superiores que
pareciam resguardar e valorizar o aspecto artístico da instituição – em detrimento da esfera
valorizada pelo próprio reitor. A existência e o direcionamento destas interferências podem
ser exemplificadas na deliberação do presidente do Glavprofobr em 1927:
N.I. Chelyapov, presidente do Glavprofobr, indica que essa reorganização tem por
objetivo evitar a sobrecarga dos decanatos, simplificar e reduzir o custo de
funcionamento das faculdades, adaptá-las melhor à realidade. O Glavprofobr estima
que a divisão das faculdades apresentada pela direção do Vkhutemas perpetua o
aspecto por demais abstrato e formal do ensino sem trazer nenhuma precisão
suplementar quanto à natureza e o conteúdo dos cursos: acredita também que as
faculdades do Vkhutemas, em sua organização atual, não oferecem a imagem do
bom desenvolvimento de um VUZ artístico (estabelecimento escolar superior); uma
parte das faculdades funciona segundo o princípio artístico, enquanto uma outra
parte funciona segundo o princípio industrial. É por esses motivos que o
Glavprofobr propõe a fusão das faculdades de produção com tendência industrial
473
com as faculdades artísticas, sob a direção destas últimas.

No pronunciamento de Chelyapov se pode observar o resultado, no cenário do


Vkhutemas em meados da década de 1920, do antagonismo que se configurou entre as seções
industriais e artísticas, e como a posição governamental tendeu a submeter as primeiras à
primazia das segundas. O organicismo e a abrangência da proposta construtivista ainda podia
ser observada, defendida frequentemente por adeptos desta orientação que ainda operavam no
interior da instituição – dentre os quais se destaca Rodchenko, que fora decano da faculdade
de trabalhos em madeira e metal, (Dermetfak) – no entanto se demonstrava claramente em
retração diante da imposição governamental de primazia artística sobre empreitadas
industriais e de sua posição artística tradicional. A posição favorável de Novitsky em relação
aos departamentos de arte aplicada se demonstra, por sua vez, em suas cordiais relações com
Rodchenko mesmo após este deixar seu cargo de decano do Dermetfak em 1927, ou pela sua
entusiasmada correspondência com o diretor da Bauhaus Hannes Meyer, em 1929, ressaltando
a importância que conferia ao aspecto industrial do instituto474.
Inicialmente voltado ao treinamento de artistas técnicos capazes de contribuírem com
as necessidades materiais da revolução – e de tal forma elevando as artes aplicadas ao mesmo
nível das até então conhecidas belas artes – o Vkhutemas fora até meados da NEP a grande
esperança de construtivistas para a realização de seus programas e teorias. No entanto, se
antes de 1926 tal segregação já pode ser observada, seria especialmente após a renomeação da
instituição que observar-se-ia, nas palavras de Szymon Bojko, “tensões internas [que]

473
apud. MIGUEL, 2006, p. 108-109.
474
MIGUEL, 2006., p. A-101
255

forneceriam as bases para tendências descentralizantes”475. O resultado de tais tendências


seria a formação aparente de duas instituições distintas: uma voltada para as artes aplicadas e
focada apenas nas considerações técnicas em busca de um design extremamente
racionalizado, e outra voltada para a formação de artistas em moldes semelhantes àqueles de
instituições artísticas pré-revolucionárias476. De forma sugestiva, o curso básico que
alicerçava a prévia postura holística dos Ateliês seria reduzido de tal forma – e extinto em
1929477 – que em alguns anos se tornaria nítido aos escalões superiores da administração
cultural que o Vkhutein não tinha qualquer atribuição especial, tendo se tornado um par de
instituições semelhantes a outras em atividade, porém incapaz de direcionar seus recursos de
forma especializada como seus semelhantes – o que ensejaria a sua abolição em 1930 e a
“migração” da maior parte de seus departamentos a outras instituições educacionais
correspondentes. A segmentação da arte em seus respectivos campos autônomos foi realizada
em totalidade, demonstrando a total derrota da proposta integral construtivista diante dos
esforços governamentais contemporâneos voltados para o treinamento de especialistas. Sobre
esta dissolução, resume Miguel:
(...) O fim do Vkhutein também significou uma mudança na qualidade da produção
artística soviética, não somente porque o Realismo Socialista foi implementado
logo depois, mas porque os artistas perderam sua formação tecnológica e voltaram
a produzir em termos de obras-de-arte puras (pintura, escultura) ou em termos de
artes aplicadas (que são muito restritas e especializadas). As artes industriais e o
design deixaram de pertencer ao mundo da arte e passaram ao domínio dos
engenheiros (...).
A dissolução do Vkhutein foi bastante rápida. Entre 1930 e 1931, já estava em
funcionamento uma nova estrutura, totalmente diferenciada da anterior e
organizacionalmente mais distribuída(...) As faculdades se transformaram em
departamentos ou laboratórios de pesquisa e formação técnica, o que não era o
desejo dos professores, principalmente os que acreditavam no Artista-Construtor ou
no Artista-Engenheiro. O nome da profissão continuou a existir, mas não
significava a mesma coisa. Algumas das Faculdades, inclusive, perderam seu status
de formadoras de artistas, deixando de diplomar seus estudantes como artistas, caso
exemplar da Faculdade de Trabalho em Madeira e Metal, em que seus estudantes
não-diplomados tiveram que terminar seus estudos como engenheiros, e da
Faculdade de Cerâmica, que se transformou em seção artística do Instituto de
478
Silicatos (voltado à Engenharia de Materiais).

Paralelamente aos desdobramentos que levariam ao fim do Vkhutein, pode-se observar


nas ações e produções de outros artistas associados ao construtivismo e à vanguarda como um
475
BOJKO, Szymon. Vkhutemas in: BARRON, Stephanie e TUCHMAN, Maurice, 1980, p.80.
476
MIGUEL, 2006, p. 108
477
LODDER, 1983, p.140
478
MIGUEL, 2006, p.132-133.
256

todo o crescente impulso marginalizador de tais diretrizes produtivas, resultando na


apresentação de duas principais possibilidades àqueles artistas que não quisessem criar
antagonismos com o aparato estatal: a adequação de suas produções e de seus discursos
legitimadores às diretrizes impostas pelo Estado, ou a migração para outros meios de
produção, os quais extrapolariam os limites estritos das artes, em direção à realidade de
produção industrial propriamente, ou a ramos de produção relacionados às artes, porém sem a
presença igualmente marcante de rivais – como no cinema e na fotografia.

Uma das naturais possibilidades que se esperaria neste contexto de marginalização


seria a eventual exclusão de tais artistas, resultando em seu exílio. No entanto, como se
observa não apenas na trajetória de tantos destes artistas vanguardistas, mas na postura
adotada pelo Partido após 1928 em relação a todas as movimentações individuais
internacionais, tal opção se demonstraria indisponível àqueles que não demonstrassem um
propósito considerado relevante para o Estado e que justificasse tal deslocamento. Em outras
palavras, se durante os últimos anos da NEP o prospecto de emigração era difícil, ainda que
possível – como vimos nos casos de Falk, Drevin e Udaltsova – após 1928 tal opção se
tornaria praticamente indisponível, dada a incapacidade de tais artistas em cumprir os
requisitos específicos e altamente restritivos que acompanhavam os pedidos de concessão de
autorização para tais viagens – excetuando-se aqui casos excepcionais relativos a artistas
internacionalmente renomados e associados à Revolução, como Mayakovsky. Àqueles que se
demonstrassem incapazes de adequarem suas produções a tais diretrizes aguardava destino
semelhante a tantos outros que, durante os anos que seguiriam, seriam considerados pela
liderança soviética como elementos indesejáveis e contrarrevolucionários: reclusão e
eliminação. Este foi o caso, por exemplo, de Boris Kushner, um dos principais teóricos do
construtivismo, e Aleksey Gan, um de seus mais radicais proponentes: ambos morreriam em
campos prisionais durante a década de 1930479.

Evidenciam o impulso marginalizador aqui denominado e o subsequente esforço de


determinados artistas em adequarem ou melhor justificarem suas produções aos novos
parâmetros que guiavam a produção artística a formação de grupos artísticos como a OST480 e
o Oktyabr481. Tais grupos teriam uma composição heterogênea – tanto em questão etária

479
BOWLT, 1988, p. 215
480
OST (Obshchestvo Khudozhnikov-stankovistov): Sociedade de Artistas de Cavalete, fundada em 1925.
481
Oktyabr: Outubro, fundado em 1928.
257

quanto em relação aos estilos de produção de seus membros – e demonstrariam em seus


manifestos uma nítida adaptação de seus discursos às expectativas vigentes em relação ao
ofício artístico.

A OST, fundada em 1925, incluía David Shterenberg entre seus fundadores – um dos
apoiadores da vanguarda no Narkompros durante os anos anteriores – e demonstrava na
produção de seus participantes a intenção de desenvolvimento técnico e produção de pinturas
de qualidade e conteúdo contemporâneo, porém sem abrir mão de influências formais
vanguardistas. A própria fundação de uma sociedade de pintura de cavalete demonstra um
recuo em relação às propostas artísticas previamente defendidas pelos construtivistas e
previamente apoiadas por Shterenberg, mas ainda assim tal sociedade se entendia como rival
dos realistas da AKhRR, os quais acusavam de pobreza técnica e “andarilhismo”482, propondo
por sua vez em seu manifesto de 1929 promover “absoluta maestria técnica no campo da
pintura temática de cavalete, desenho e escultura na medida em que os avanços formais dos
últimos anos continuam a ser desenvolvidos”, assim como “contemporaneidade
revolucionária e clareza de conteúdo”483.

Entretanto, no curto rol de diretrizes que delineavam a plataforma da OST se


observam já indícios que contribuiriam para a sua inadequação às expectativas estatais
quando comparada com à plataforma programática da AKhRR. A prática denunciada pelo
grupo e que Shterenberg e seus colegas denominam “andarilhismo” parecia ser algo que a
liderança soviética buscava estimular ao invés de coibir, na medida em que durante boa parte
da década de 20 a mesma tentou promover o retorno do mais célebre dentre os andarilhos,
Ilya Repin484 – que morrera em 1930, sendo postumamente exaltado de forma
semelhantemente intensa àquela que precedera sua morte na Finlândia. A diretriz de
promoção de excelência formal, inclusive demonstrando a intenção de promover o contínuo
desenvolvimento da técnica pictórica, associa-se ao formalismo, especialmente quando, ao
discutir a relevância do conteúdo em suas produções, o grupo o faz de forma simples, sem
indicar a intenção de representações entusiasmadas ou épicas como prometia a AKhR. Não é

482
BOWLT, 1988, p.281.
483
Ibid., p.281.
484
BOWN, 1991, p.57.
258

surpreendente, portanto, que tal grupo só tenha realizado quatro exposições, sendo a última
destas em 1928, antes de serem formalmente dissolvidos em 1931485.

O grupo Oktyabr, por sua vez, teria uma composição mais ampla e numerosa, mas
também mais heterogênea do que a OST, tanto em relação às orientações artísticas prévias de
seus participantes quanto em relação aos campos de produção artística nos quais tais artistas
pretendiam se inserir. Dentre os artistas que compuseram este grupo, fundado em 1928,
observa-se nomes claramente vinculados à produção construtivista, como Rodchenko, Klutsis,
Lissitzky, Stepanova, Gan, Aleksandr e Viktor Vesnin, e mesmo Eisenstein; porém, no rol de
membros também pode-se observar artistas conhecidos por suas produções alheias às teorias
construtivistas, como o célebre ilustrador de pôsteres Dimitri Moor, o pintor Aleksandr
Deineka e Pavel Novitsky. Mais significativo do que a OST, portanto, fora o esforço
parcialmente conciliador do Otkyabr, na medida em que buscara novamente legitimar a
participação do artista em projetos e produção utilitárias, seguindo a mesma “bipolaridade”
que havia se tornado característica do Vkhutein a partir de 1928, na qual a produção artística e
industrial não seriam mutuamente excludentes, mas complementares para o ofício artístico.
Em sua declaração fundadora de 1928 pode-se observar diversas formulações conciliatórias,
que permitem melhor delinear as propostas deste grupo:

Nós estamos profundamente convictos de que as artes espaciais (arquitetura, pintura,


escultura, design gráfico, artes industriais, fotografia, cinematografia etc.) só podem
escapar da presente crise pela qual passam quando forem subordinadas ao serviço
das necessidades concretas do proletariado, dos líderes do campesinato, e das
minorias nacionais menos desenvolvidas.

(...) as artes espaciais devem servir o proletariado e as massas trabalhadoras em dois


campos interconectados:

No campo de propaganda ideológica (através de pinturas, frescos, impressões,


escultura, fotografia, cinematografia etc.);

No campo de produção e organização direta de um estilo de vida coletivo


(através da arquitetura, das artes industriais, da composição de festivais de massa
etc.)

Aos artistas que estão cientes destes princípios, aguardam as seguintes tarefas
imediatas:

(...) Ele [o artista] deve empreender uma avaliação crítica de todos os


desenvolvimentos formais e técnicos do passado. De especial valor para a arte
proletária são os desenvolvimentos das últimas décadas, quando os métodos
decorrentes da abordagem racional e construtiva à criação artística, os quais haviam
sido perdidos pelos artistas da burguesia, foram restaurados e se desenvolveram
consideravelmente.

485
BOWLT, 1988, p. 279.
259

(...) Nós reconhecemos e construiremos um realismo proletário que expresse a


determinação da classe revolucionária ativa (...). Mas nós ao mesmo tempo
rejeitamos o industrialismo abstrato e estético, e o tecnicismo inalterado que se
passa por arte revolucionária. (...) Para esse fim, a cooperação orgânica de todas
as formas de arte espacial precisa ser estabelecida.

(...) De modo a obter o máximo em termos de resultados nós estamos tentando


concentrar nossos esforços nos seguintes pontos essenciais:

a) Construção racional, questões de acomodação residencial, prédios sociais etc.;


b) Design artístico de objetos para consumo em massa produzidos pela indústria;
c) Design artístico para centros do novo estilo de vida coletiva: clubes de
trabalhadores, salas de leituras, cantinas, salas de chá etc.
d) Organização de festivais públicos
e) Educação artística

Ao avançar nesses caminhos, a arte proletária deixa para trás o slogan de seu
período transitório – “Arte para as Massas” – e prepara o terreno para a arte
das massas.

(...) Ao produzirmos a presente declaração, nos dissociamos de todos os grupos


artísticos em atividade no campo das artes espaciais. Estamos preparados a unir
forças com alguns deles desde que eles reconheçam os princípios básicos de nossa
plataforma em termos práticos. Nós saudamos a ideia de uma federação de
sociedades artísticas, e apoiaremos quaisquer esforços sérios que busquem uma
organização desse tipo.

(...) Em relação às forças básicas em atividade na arte soviética moderna, o processo


natural de autodeterminação artística e ideológica está sendo dificultado por uma
série de fenômenos indesejáveis. Nós consideramos ser nosso dever declarar que
rejeitamos o sistema de patronato pessoal e grupal e a proteção de tendências
artísticas ou artistas específicos. Nós apoiamos totalmente a competição irrestrita e
saudável das diferentes direções e escolas artísticas no interior de suas esferas
competentes (...). Mas nós rejeitamos a competição indesejável entre grupos
artísticos por comissões e pelo patronato de indivíduos e instituições influentes.
Nós rejeitamos qualquer pretensão de qualquer associação de artistas ao
monopólio ou exclusividade de representação dos interesses artísticos das
massas trabalhadoras e camponesas. Nós rejeitamos o sistema que permita a
criação de uma posição artificial de privilégio (moral e material) para qualquer
grupo artístico em detrimento de outras associações ou grupos esta é uma
contradição radical à política artística do Partido e do governo. (...) Nós somos
contra a ditadura dos elementos filisteus das artes espaciais soviéticas e a favor da
maturidade cultural, perícia artística e consistência ideológica dos novos artistas
proletários, os quais estão rapidamente ganhando força e avançando a uma posição
486
de destaque .

O esforço conciliatório do grupo Oktyabr seria insuficiente diante das crescentes


restrições estatais impostas sobre a produção artística. Até ser dissolvido em 1932, o grupo só
realizara uma exposição, e o almanaque que propunham publicar em 1930 o fora apenas em
1931, após diversas intervenções estatais de órgãos de censura. Este seria o último grupo
artístico soviético a apresentar propostas afins aos alicerces do construtivismo até 1932. Tal
como no caso da OST, o texto aqui parcialmente reproduzido permite identificar aspectos que,
por um lado, atestam o esforço de adequação destes artistas às novas demandas

486
BOWLT, 1988, p. 274-279.
260

revolucionárias vindas de cima, porém também traços que nos permitem observar
discrepâncias entre tais expectativas estatais e os alicerces teóricos propostos pelo grupo.

Por um lado, observa-se uma nítida tentativa de conciliação, através da justificações


oferecidas para validar as propostas do grupo, as quais demonstram afinidades com as mais
recentes políticas governamentais voltadas para a mobilização econômica nas cidades e
coletivização do campo – produção voltada para a propaganda de mobilização social e para a
estruturação de um estilo de vida coletivo, sempre reafirmando o papel da arte a serviço da
revolução. Observe-se ainda a recorrência da denominação “proletária” para designar a
produção do grupo, substituindo a terminologia esquerdista que sobrevivera até o último
número da Nova Lef, de 1928. Outras considerações relativas a terminologia podem ser
associadas aos esforços conciliatórios do grupo, como a cunhagem do termo “artes espaciais”
que abarcasse tanto as artes plásticas quanto a arquitetura, cinema e o que também
denominam “artes industriais”, buscando expandir a jurisdição da esfera artística de modo a
incluir outros campos de produção até então considerados alheios à mesma. Em especial,
note-se a rejeição do grupo a qualquer produção que denominam “industrialismo abstrato e
estético” bem como “tecnicismo inalterado”, buscando afastar-se de acusações de formalismo
e esvaziamento de conteúdo a despeito da importância conferida a questões formais na
passagem anterior.

Por outro lado, parecem mais numerosos e relevantes os traços da plataforma acima
reproduzida que contrastam com o contexto artístico até então delineado na presente
discussão. Observa-se, por exemplo, a reiteração da importância de questões formais, bem
como a valorização das experimentações formais dos últimos anos, como observamos
também no caso da OST. Complementar à ênfase formal observa-se a intenção utilitária ainda
presente em tal manifesto: ainda que parcialmente justificada pela intenção de servir a
revolução de acordo com as diretrizes partidárias, tal grupo reafirma a intenção de operar fora
da jurisdição artística, propondo-se a participar nas áreas de design de objetos e espaços e em
geral propondo uma multidisciplinaridade que, no contexto de crescente demanda por
especialização que foi o pós-28 soviético, assemelhava-se mais a diletantismo do que a uma
abordagem holística do ofício artístico.

Por último, os dois traços de maior relevância para a observação de tal discrepância
entre os pontos programáticos enunciados neste manifesto e as exigências estatais no campo
artístico são a ausência da discussão relativa ao conteúdo da produção artística, bem como a
261

proposta de competição e autodeterminação no campo artístico. Nas poucas passagens em


que observa-se uma discussão referente ao conteúdo de suas produções, o grupo apresenta
formalizações vagas, afirmando sua subordinação às “necessidades concretas do
proletariado”, bem como sua intenção em construir “um realismo proletário que expresse a
determinação da classe revolucionária ativa”; entretanto, tal como a OST, tal alinhamento
parcial à noção de realismo não incluía explicitamente a ênfase revolucionária otimista e épica
proposta pela AKhRR, indicando em tais vagas afirmações uma neutralidade em termos de
conteúdo mais facilmente associadas a propostas de cunho predominantemente formal, ou
daquelas menos propensas a moderação externa em relação a questões relacionadas ao
conteúdo das obras produzidas.

De maneira semelhante, a ênfase conferida ao processo de autodeterminação no


âmbito artístico contrasta com a tendência centralizadora já observada antes de 1928, e
implementada gradualmente a partir de então com respaldo oficial. Tal proposta de
autodeterminação implica uma autonomia aos grupos artísticos em atividade para discernirem
por si próprios quais eram de fato as “necessidades concretas do proletariado”, contrastando
com as intenções aglutinadoras do partido, que visava já em 1928 uma classificação mais
clara daquilo que pudesse ser considerada “arte revolucionária”, bem como do monopólio
estatal sobre tal definição. Pelo contrário, tal premissa de competitividade ampla
provavelmente resultaria justamente na heterogeneidade que o Partido buscava evitar, tendo
previamente observado que a existência de múltiplos direcionamentos artísticos resultara na
parcial dissipação das energias destes grupos em seus esforços combativos, energias estas que
poderiam, sob mais rígida tutela estatal, melhor servir a Revolução através de uma produção
homogênea e moderada de cima. O próprio partido só é mencionado uma vez em todo o
manifesto, e apenas para qualificar a postura do mesmo como não-intervencionista, e defender
a manutenção de tal postura; por outro lado, ao criticar os efeitos do “patronato de indivíduos
e instituições influentes” sobre este processo de autodeterminação, o grupo consequentemente
critica tais patronos, associando-os à “presente crise pela qual passam” as artes espaciais
durante este período.

O próprio manifesto carrega consigo uma crítica destes artistas à produção da AKhR,
implicitamente considerada ultrapassada na passagem “a arte proletária deixa para trás o
slogan de seu período transitório – “Arte para as Massas” – e prepara o terreno para a arte das
massas”, fazendo referência à citação de Lenin apropriada pelo grupo. Tal crítica ainda ecoa
em outras passagens, nas quais o grupo dá a entender que são tais artistas aqueles que
262

alcançaram uma “posição artificial de privilégio (moral e material)” sobre os demais grupos e
orientações artísticas, na medida em que era a AKhR que, no campo da produção artística,
reivindicava o “monopólio ou exclusividade de representação dos interesses artísticos das
massas trabalhadoras e camponesas”.

Por outro lado, se o Oktyabr parece em seu manifesto relutante a aceitar a crescente
intenção centralizadora demonstrada pelo partido, os grupos AKhR e RAPP demonstrariam
maior afinidade a tal exigência, evidenciada na formação da RAPKh em 1931487. Tal grupo
não apenas consolidou a AKhR à OKhS488, uma organização de menor, porém também
crescente expressão, mas efetivamente a alinhou à RAPP, como indica a semelhança de seus
acrônimos e a adoção do qualificativo “proletário”, previamente ausente da autodenominação
do grupo. Como demonstra Bown, a RAPKh teceria críticas semelhantes à sua contraparte
literária contra a produção vanguardista da qual o grupo Oktyabr parecia ser o último
representante, e alcançaria entre 1931 e 1932 hegemonia quase indiscutível no campo de
produção pictórica, resultando na cooptação inclusive de membros do próprio grupo Oktyabr:

A RAPKH propagava o ideal específico de uma arte proletária que rejeitava tanto o
entusiasmo tecnológico do [grupo] Outubro quanto a ênfase dada à pintura de
cavalete que ainda não havia sido expurgada da AKhR. Ela se concentrava na
pintura de murais figurativos (em acordo com o plano de Lenin para propaganda
monumental) executados por brigadas de artistas – um método alicerçado pela
crença no valor do trabalho coletivo.

(...) O alicerce teórico do [grupo] Outubro havia sido enfraquecido na medida em


que as ideias do historiador Pokrovsky se tornaram descreditadas diante da iniciativa
de Stalin, por volta de 1930, em reescrever a história do Bolchevismo às suas
próprias maneiras. Em fins de 1931, muitos dos ex-membros do [grupo] Outubro,
incluindo figuras reconhecidas como Deineka, foram incorporados aos quadros da
489
RAPKh .

Os grupos OST e Oktyabr, acima apresentados e discutidos, representam os dois


maiores esforços de conciliação empreendidos por membros da vanguarda soviética diante do
novo direcionamento artístico estatal observado oficialmente a partir de 1928. Em ambos os
casos o que se observa é uma conciliação parcial, por um lado demonstrativa do diagnóstico
de Timasheff relativo ao “Grande recuo” cultural observado durante o período, por outro lado
também demonstrativa da relutância de tais artistas em abrir mão da exploração ou, ao menos

487
RAPKh (Rossiyskaya Assotsiatsiya Proletarskikh Khudozhnikov): Associação Russa de Artistas Proletários.
488
OKhS (Obshchestvo Khudozhnikov samouchek): Sociedade de Artistas autodidatas.
489
BOWN, 1991, p.68.
263

da excelência, no campo formal, bem como de oferecer maiores indícios de submissão ao


partido em relação ao conteúdo de suas obras.

Para além destes grupos, pode-se observar esforços semelhantes de adequação entre
outros artistas anteriormente vinculados à vanguarda. Tal esforço conciliatório se observa
especialmente entre aqueles artistas que, a despeito de suas propostas utilitaristas,
demonstraram menor interesse em transpor os limites da produção artística em prol de sua
integração industrial. Tais artistas voltaram a produzir primariamente pinturas de cavalete,
porém não adotaram completamente a abordagem realista, encontrando na verdade uma
espécie de meio termo em suas novas produções, não mais abstratas, mas também
formalmente menos conservadoras do que aquela de seus pares. Pode-se observar na produção
de Malevich, por exemplo, um dos fundadores da noção de pintura não-objetiva na Rússia e
fundador do Suprematismo, um nítido retorno à produção pictórica representativa, em obras
como a série Camponeses (1928-32), gradualmente intensificando o realismo de suas
produções culminando em obras como os retratos de sua esposa (1934) e Nikolai Punin
(1933), os quais demonstram um grau de detalhe que não se observa em sua produção
posterior a 1911. Dentre outros artistas que se enquadraram em tal tendência, produzindo
obras mais condizentes com o novo direcionamento adotado pela liderança partidária, pode-se
também mencionar Natan Altman, Ivan Klyun, David Shterenberg, Nadezhda Udaltsova e
Aleksandr Drevin.

4.5 – Kazimir Malevich – Camponeses, 4.6 – Kazimir Malevich – Retrato


1928-1932 de um homem [Nikolai Kulbin],
1933
264

Em contrapartida, a minoria de artistas que a partir de 1928 enveredou por outros


caminhos de produção externos ao campo artístico tradicional era composta de forma geral
por aqueles em cuja produção previamente se observava maior preocupação com a produção
de objetos cotidianos e com a utilização de materiais industriais – como a já discutida
produção de Rodchenko, Stepanova, El Lissitzky, Klutsis, Ioganson entre outros. Após o
fechamento do Vkhutein e a nítida desqualificação da proposta construtivista no início da
década de 30, os esforços de tais artistas se voltariam predominantemente para novos nichos,
mais adequados às suas produções, e sobre os quais a postura intervencionista estatal não se
aplicava com a mesma intensidade – como a fotografia, o design e ilustração de livros e a
produção de pôsteres. Notável exceção aqui se faz a Tatlin, que revelaria o protótipo
finalizado de sua Letatlin em 1932, e posteriormente retornaria ao campo de produção
artístico stricto sensu, trabalhando com design de cenário para peças teatrais e com pintura de
cavalete, o que não fazia – ou ao menos não expunha – desde 1915.

Enfim, a despeito da relativa variedade que se observa nos caminhos perseguidos por
tais artistas diante do crescente estreitamento do escopo de produção artística entre 1925 e
1932, observa-se como generalizado o esforço conciliatório predominantemente forçado dos
mesmos, seja na aceitação de tais parâmetros ou na migração para campos produtivos afins.
Dentre todos esses exemplos, entretanto, seria a trajetória de Mayakovsky que mais chocaria o
público da União Soviética, adquirindo depois de 1930 proporções inigualáveis se
comparadas a quaisquer outros artistas construtivistas.

Até 1928 Mayakovsky fora um dos mais conhecidos e aguerridos membros da


vanguarda russa. Desde suas reflexões poéticas pré-revolucionárias vinculadas ao Futurismo
(era, afinal, membro do grupo Hiléia), passando por suas atividades pós-revolucionárias,
como sua participação no IZO Narkompros, Inkhuk e ROSTA (no qual liderara a produção
das Janelas ROSTA), bem como pela produção de textos nacionalmente conhecidos, como
Mistério-Bufo (1918) e 150.000.000 (1921), figurando frequentemente nas páginas da Lef e
assumindo papel de liderança no corpo editorial da Novyi Lef, Mayakovsky sempre defendera
a importância da inovação formal e do experimentalismo no campo artístico e literário. Ainda
que não tenha empreendido experimentos tão ambiciosos quanto aqueles de seus colegas
transracionais Kruchenykh e Khlebnikov, seus poemas e escritos em geral demonstram
comprometimento com as propostas que apresentava em seus manifestos, frequentemente
questionando cânones estabelecidos em questões de métrica, uso de espaço físico da página,
tipografia e mesmo de linguagem poética. Fora, ao fim das contas, o artista soviético de maior
265

renome nacional e internacional associado à vanguarda. Fora um choque de semelhante


magnitude, portanto, quando Mayakovsky se suicidou em 1930490.

A morte de Mayakovsky motivara o ensaio de Jakobson “A geração que esbanjou seus


poetas”, escrito poucos meses após o evento, que segundo o próprio Jakobson “o abalou até
os ossos”491. Neste ensaio, o formalista e membro do Círculo linguístico de Moscou discute a
produção de Mayakovsky e, ao fazê-lo, verbaliza os aspectos do contexto artístico soviético
contemporâneo que julgava responsáveis não apenas pela morte de seu colega, mas de tantos
outros poetas, culpando o Estado por tal esbanjamento, lançando mão de citações de outros
escritores, os quais, dentre outras coisas, afirmam a indiferença e negligência estatal diante
deste esbanjamento de talentos literários decorre do não entendimento pleno dos objetivos ou
a magnitude do talento de tais indivíduos. Afirma:

O fuzilamento de Gumiliov (1886-1921); a longa agonia espiritual e as insuportáveis


torturas físicas que levaram Blok (1880-1921) à morte; as privações cruéis e a morte
desumana de Khlebnikov (1885-1922); os suicídios anunciados de Iessienin (1895-
1925 e Maiakovski (1893-1930). Assim pereceram, no curso dos anos 20 deste
século, na idade de 30 a 40 anos de idade, os inspiradores de toda uma geração. E
cada um deles teve a nítida e insuportável consciência do irremediável. Não apenas
os que foram mortos ou se suicidaram, mas também aqueles que, como Blok e
492
Khlebnikov, ficaram presos ao leito pela doença e acabaram por morrer .

Como se observa nas reflexões promovidas por Jakobson em seu ensaio retrospectivo,
a morte de Mayakovsky é vista primeiramente como emblemática da encruzilhada enfrentada
por todos os vanguardistas acima discutidos, assim como do conflito interno enfrentado pela
maioria – ou até pela totalidade – destes artistas, confrontados com a exigência de submissão
a diretrizes estatais basicamente opostas àquelas que propunham. Em 1930 ele se associou à
RAPP, que a esta altura alcançara dimensões quase hegemônicas no contexto soviético,
porém proponente de uma orientação literária completamente contrária àquela defendida por
Mayakovsky e seus colegas até então. Dois meses depois, suicidou-se, deixando nenhuma
explicação, pedindo apenas que “não atribuam a ninguém a responsabilidade pela minha
morte, e, por favor, não fofoquem (...). Camaradas da RAPP, não me acusem de falta de
caráter. Em toda seriedade, não há nada a ser feito. Adeus” 493.

490
MARKOV, 2006, p.316.
491
JAKOBSON, 2007, p. 77.
492
Ibid., p.11-12.
493
LAWTON, 1988, p.48.
266

Em suas repercussões imediatas, a morte de Mayakovsky adquirira dimensões


consideráveis, porém em termos semelhantes àqueles utilizados na caracterização de seus
colegas vanguardistas. Criticado como formalista e futurista, seria apenas em 1935, após a
carta enviada por Lilya Brik a Stalin, que Mayakovsky seria publicamente reabilitado, e
alçado a novas alturas de importância cultural pela chancela de Stalin, como descreve
Markov: “Em 1935, dez palavras de louvor vindas de Stalin contribuíram mais para a
reputação de Mayakovsky do que todos os treze volumes de suas obras completas. Um
resultado foi que agora há mais estátuas de Mayakovsky na Rússia do que de Garibaldi na
Itália” 494.

O vilipêndio de Mayakovsky imediatamente após a sua morte, bem como sua eventual
reabilitação aqui introduzem a discussão da Resolução de 1932495, a qual formalizou o
controle estatal sobre a produção artístico-literária, resultando no fim do construtivismo
enquanto manifestação artística independente, e na subsequente concessão de monopólio da
produção artística ao que se denominaria em 1934 Socialismo Realista.

A resolução, que sequer menciona o construtivismo ou qualquer vertente artístico-


literária exceto a vertente proletária, justifica a decisão de dissolver todas as organizações
literárias por considerar que, em sua multiplicidade, autonomia e competitividade, as mesmas:

(...) estão se tornando demasiadamente restritivas e estão impedindo o


desenvolvimento sério da criação artística. Este fator cria um perigo: estas
organizações podem deixar de ser um instrumento para a mobilização máxima dos
escritores e artista soviéticos em prol da construção socialista e se tornarem um
instrumento de cultivo de elitismos e perda de contato com as tarefas da
contemporaneidade e com importantes grupos de escritores e artistas que são
496
colaboradores da construção do socialismo” .

Como solução para esta situação tal decreto determina “a união de todos os escritores
que apoiam a plataforma do poder soviético e que se desejam participar na construção
socialista em uma única União [soyuz] de Escritores Soviéticos”, a qual seria parte integrante
da estrutura estatal e centralizaria toda a produção literária soviética, bem como a “execução
de mudanças análogas nas políticas referentes a outras modalidades artísticas”, sob a direção
do Orgburo. Ainda que a nível nacional as diretrizes delineadas por essa resolução seriam
realizadas apenas alguns anos depois, permitindo em certas partes da URSS algumas

494
MARKOV, 2006, p.316.
495
A resolução pode ser encontrada na íntegra em BOWLT, 1988, p.288-290.
496
Ibid., p.289.
267

manifestações artísticas ainda contrastantes com essa determinação, já em 1932 seria formada
em Moscou a MOSSKh, que seria a Seção de Moscou da União de Artistas a ser criada pelo
Orgburo497.

O silêncio relativo a outras orientações artísticas em um decreto estatal no qual se


propõe a centralização de toda a produção artística sob supervisão estatal é sintomático
daquilo que se entendia por “colaboradores da construção do socialismo”. Durante o Primeiro
Congresso de Escritores Soviéticos da União, realizado apenas em 1934 – e no qual se
discutira questões artísticas de forma ampla, não apenas relativas à produção literária498 –
observa-se silêncio semelhante, dada a ausência de diversos artistas previamente associados à
vanguarda soviética, como Tatlin e Malevich499. Observa-se também a maioria hegemônica de
artistas e escritores voltados à produção realista, não apenas em decorrência da previamente
estabelecida maioria numérica daqueles que apoiavam tal vertente, como da influência estatal
sobre as artes durante estes dois anos, bem como do presidente do congresso, Maksim Gorky
– considerado, em decorrência disso, fundador do Realismo Socialista.

Este congresso, portanto, longe de representar um fórum de escritores e artistas a


decidir os caminhos da União de Escritores [artistas] Soviéticos a ser formada ao seu término,
apenas formalizara a adoção do Realismo Socialista como manifestação única da arte da
Revolução, a partir dos discursos de Gorky, bem como de líderes do Partido, como Andrey
Zhdanov500, cujas palavras indicam com clareza a todos os ouvintes presentes as diretrizes
artísticas que alicerçariam esta União – assim como seu uso do imperativo indicaria a origem
de tais diretrizes:

Camarada Stalin chamou nossos escritores de “engenheiros das almas humanas”. O


que isso significa? Que obrigações este título nos impõe?

Em primeiro lugar, significa que nós precisamos conhecer a vida de modo a retratá-
la verdadeiramente em nossas obras de arte – ao invés de retratá-la academicamente,
sem vitalidade, ou meramente enquanto uma “realidade objetiva”; nós precisamos
retratar a realidade em seu desenvolvimento revolucionário.

497
BOWN, 1991, p.86-88.
498
BOWLT, 1988, p.291.
499
Ibid., p.291.
500
Andrey Zhdanov fora nomeado líder da seção de Leningrado do Partido Comunista poucos meses após o
discurso aqui reproduzido, de modo a substituir Sergey Kirov, assassinado em dezembro de 1934. Seria o mesmo
Zhdanov a figura central do período de intensa vigilância e repressão no campo cultural que seria denominado
Zhdanovshchina. Cf. BOWN, op.cit., p.204-207.
268

Ser um engenheiro de almas humanas significa plantar ambos os pés ao chão da vida
real. E isso, por sua vez, indica um rompimento com o antigo romantismo que
retratava uma vida inexistente a partir de heróis inexistentes e que carregava o leitor
para longe das contradições e da opressão da vida, em direção a um mundo irreal,
um mundo de utopias. Romantismo não pode ser alheio à nossa literatura, a qual se
apoia com ambos os pés sobre o firme alicerce do materialismo; porém é necessário
um novo tipo de romantismo, um romantismo revolucionário.

A literatura soviética precisa ser capaz de nos mostrar os nossos heróis, precisar ser
capaz de vislumbrar o nosso amanhã. Este não será uma utopia, pois o nosso amanhã
está sendo preparado hoje através de nossos esforços sistemáticos e conscientes...

Criem obras com alto grau de habilidade, e com elevado conteúdo artístico e
501
ideológico!

Agora podemos retornar, portanto, à morte de Mayakovsky, à sua reabilitação e aos


cinco anos que as separam. O suicídio do poeta ocorrera durante o ápice da popularidade da
RAPP, em um período no qual se pode constatar intensa virulência do discurso deste grupo e
daqueles a este afins contra todas as vertentes literárias divergentes. Tal discurso, como se
observara, era crescentemente amplificado pela posição estatal, que entendia a organização
proletária como um instrumento de unificação da produção literária que poderia acelerar o
desígnio final centralizador formalizado em 1932. Nesta bipolaridade, neste momento de
exacerbação do discurso “Nós x eles”, não havia espaço para exceções, para “vejamos por
outro lado”, para moderação: tal como os demais, Mayakovsky fora levado pela enxurrada
anti-formalista para a ignomínia reservada à vanguarda literária soviética.

O ano de 1935 transcorrera em um contexto diferente. Fora um período que seguira a


afirmação do controle estatal sobre as artes estabelecido em 1932 e da formalização do
Realismo Socialista em 1934. Tal fora o período no qual a liderança soviética parecia em
busca de grandes ícones e heróis do socialismo, em especial de modo a substituir aqueles que
seriam removidos durante Grande Expurgo, que não pouparia figuras previamente célebres no
campo artístico, como o próprio fundador do Realismo Socialista, Maksim Gorky. Fora nesse
contexto que Mayakovsky, referido como um poeta revolucionário e não caracterizado pelo
futurismo que previamente o maculara, fora alçado ao mais alto patamar do panteão literário
soviético. Nesta reabilitação e ascensão meteórica post mortem – para o Estado, a mais
confortável de todas! – seria exaltado do futurismo de Mayakovsky não o seu
experimentalismo formal, ou a convicção de suas interpretações ideológicas, mas a sua
capacidade de vislumbrar e exaltar o futuro, o “amanhã” ao qual se referira Zhdanov. A
estação de metrô de Moscou em seu nome, Mayakovskaya, iniciada em 1935 e aberta em

501
BOWLT, 1988, p.293-294.
269

1938, bem o demonstra: uma estação que exemplifica em sua arquitetura o que se entenderia
por “neoclássico stalinista”502, mas que no topo de cada uma de suas abóbodas contém
mosaicos realistas de temas que fazem alusão à modernidade e ao progresso soviético –
acompanhadas, é claro, pela foice e martelo, bem como pela estrela que viria também a
simbolizar a revolução [em um só país] – em uma hibridização desmemoriada que seria, até
certo ponto, característica da produção artística da década de 1930.

4.11 – Plataforma de embarque da estação Mayakovskaya, em Moscou

502
BOWN, 1991, p.73-77.
270

4.12 – Detalhe superior da estação 4.13 – Detalhe superior da estação


Mayakovskaya, em Moscou. Mayakovskaya, em Moscou.

Esta estação e outras que seriam construídas durante a década de 1930 bem
simbolizam os critérios que norteariam a produção artística soviética até a morte de Stalin em
1953. Um “templo para as massas” um dia me disse uma russa, cujas características formais
seguem amplamente os parâmetros observados em muitas das demais construções
arquitetônicas presentes no cenário urbano, de modo a não causar estranhamento, e sim
admiração, aos transeuntes; uma estação de alusões simples e diretas, predominantemente
voltadas para indivíduos ou grupos (como as estações Komsomolskaya, de 1935, ou
Mayakovskaya e Gorkovskaya, de 1938) ou lugares (como Kievskaya, Kurskaya ou Ploshchad
Revolyutsii)503. Em tais estações, o conteúdo disposto é claro, direto e propriamente em
acordo com as diretrizes reproduzidas por Zhdanov.

A reabilitação de Mayakovsky, por um lado, e as 76 estátuas de bronze da estação


Ploshchad Revolyutsii, por outro, indicam os contornos básicos do Realismo Socialista, bem
como a inviabilidade de conciliação entre as expectativas estatais que o impusera e as
diferentes teorizações que compunham o construtivismo. Por um lado, durante toda a sua
503
As informações referentes ao metro de Moscou foram extraidas do sítio oficial da instituição:
http://www.metro.ru/. (acessado em 02/01/2014)
271

existência revolucionária o construtivismo demonstrou simultaneamente grande convicção em


suas interpretações artísticas e ideológicas e considerável ingenuidade política. Como o
próprio manifesto do grupo Oktyabr demonstrou, mesmo quando a aspereza social e estatal às
propostas construtivistas pareciam alcançar o seu auge, seus proponentes julgaram viável a
elaboração de uma plataforma artística sobre tais bases; diferentemente de seus rivais, os
construtivistas encontraram enormes dificuldades em apropriarem-se dos novos parâmetros
culturais que acompanharam os desdobramentos políticos destes quinze anos, e de adequarem
seus discursos e produções de forma semelhante. Até seu derradeiro fim – que já se pode
observar em 1930 – a grande maioria dos construtivistas parecia convicta de seu status
vanguardista, e da semelhança que partilhavam com os revolucionários vitoriosos de 1917
nesse sentido; sempre se puseram, portanto, como líderes revolucionários, e não como
vassalos da direção estatal, que julgavam exercer uma competência diversa. Mayakovsky,
afirma Markov, era talvez um dos mais ingênuos, um poeta de incrível talento, mas que
necessitava de supervisão de seus colegas mais centrados – como Burliuk ou Brik504.
Enquanto vivo, Mayakovsky seria provavelmente um dos piores candidatos a serem
escolhidos para representarem o papel de poeta da revolução, a despeito de sua celebridade –
simplesmente não era confiável o suficiente para isso, oferecendo sua lealdade apenas à
Revolução em si, e não aos seus agentes. Silenciado pelas próprias mãos, por outro lado, e em
um contexto no qual o passado passava cada vez mais a ser monopolizado pelo crescente
aparato estatal soviético, o “mal vestido jovem gigante, desarrumado, de olhos penetrantes e
uma grave voz de barítono” que era Mayakovsky505, juntamente com o apreço popular ímpar
entre vanguardistas que desfrutara, o tornaria uma figura que, como desejava a liderança
estatal, poderia ser usada como instrumento de mobilização social – neste caso, literária. Sua
obra poderia se tornar um repositório de citações, como a de Lenin, a serem usadas de
maneira corroborante quando a situação as exigissem.

No extremo oposto deste espectro combativo e resoluto que Mayakovsky partilhara com
tantos de seus colegas pode-se observar a estação Ploshchad Revolyutsii – ou “Praça da
Revolução”. Suas estátuas representam todos os arquétipos sociais que compunham o
proletariado, como aviadores, camponesas, soldados, trabalhadores fabris, milicianos, leitoras,
marinheiros, banhistas, idosos, crianças etc.; alguns destes são inclusive acompanhados por

504
MARKOV, 2006, p.316.
505
Descrição da primeira impressão que Davi Burliuk teve de Mayakovsky ao conhecê-lo pela primeira vez,
apud. MARKOV, 2006, p.32.
272

cachorros, as estátuas aparentemente mais populares da atualidade devido ao polimento


incomum de seus focinhos, os quais brilham mais do que todo o resto do conjunto. Até hoje,
estas estátuas atraem os olhares, as fotos e o toque de transeuntes, locais ou não, bem como
enseja sorrisos, olhares ao redor e, em geral, admiração. Este era o efeito desejado – e, ao se
observar pela recepção de hoje, alcançado – quando estas estações foram construídas, e
contradiz completamente com as mais básicas aspirações do construtivismo, bem como do
futurismo que o antecedera. O que a estação oferece – além, é claro, do acesso ao metrô – são
efígies da vida cotidiana com as quais todos os que as veem podem se relacionar; são efígies
realistas, não só em relação às suas anatomias, mas até em relação às suas emoções; acima de
tudo, são prontamente reconhecíveis e admiráveis, permitindo mesmo ao mais apressado
trabalhador moscovita, que só dispõe de tempo para um breve relance involuntário, acesso à
mensagem aparente dessas estátuas: “você é um de nós, nós somos como vocês, e essa estação
nos representa”.

4.14 – Estátua na estação Ploshchad 4.15 – Estátua na estação Ploshchad


Revolyutsii , em Moscou Revolyutsii , em Moscou
273

4.16 – Plataforma principal da estação Ploshchad Revolyutsii , em Moscou

No entendimento construtivista, entretanto, estas estátuas são meros acessórios,


vestígios de um tempo em que efígies eram consideradas artisticamente válidas, de um
período em que a arte era responsável pela experiência estética, a qual era naturalmente
desvinculada da vida prática cotidiana, e, portanto, durante o qual seria obviamente desejável
um arranjo espacial que contemplasse tanto o aspecto prático da estação – o acesso ao metrô –
quanto o aspecto estético. No fim das contas, estas estátuas são acessórios, completamente
supérfluas para que a estação cumpra a sua função; ademais, limitam-se a veicular um
conteúdo – e um conteúdo banal, ainda por cima – de forma previamente digerida e incapaz
de causar emoções e reflexões diversas àquelas que, durante o dia, o indivíduo já
experimentaria.

Enquanto acessórios, todas as estátuas são feitas do mesmo material (bronze). São
todas de dimensões semelhantes, de modo a caberem nos nichos uniformes que compõem os
arcos desta estação perfeitamente simétrica – como as demais mencionadas, construídas
durante esse período. Em sua composição, estas estátuas se assemelham em todos os aspectos,
exceto em seu conteúdo político, às esculturas em bronze do século XIX, podendo em muitos
274

casos ser consideradas tecnicamente inferiores, inclusive; em termos construtivistas seria


difícil distinguir o valor de uma destas estátuas do valor de Trabalhador e Kolkhoznitsa
(1938), talvez a mais célebre escultura soviética do período.

As ambições do construtivismo eram consideravelmente maiores – e com tais


expectativas, também eram maiores os riscos e custos envolvidos, assim como eram mais
longas as expectativas de fruição destes esforços. O construtivismo visava fomentar a
fundição entre estas esferas prática e estética; que o artista contribuísse com a funcionalidade
da estação, e não que se limitasse a adereçá-la, agora que o desenvolvimento industrial
alcançava novos patamares e, segundo tais artistas, permitia tal integração. Tal como urgiam
os futuristas, o construtivismo também buscava ter o artista como um fomentador de reflexão,
de estranhamento, a partir da premissa de que indivíduos que gravitavam em direção às artes
o faziam em decorrência de sua criatividade acima da média, o que os tornariam ótimos
candidatos à revisão e reformulação de parâmetros, bem como criadores de novas formas e
paradigmas506.

Em suma, esta contraposição é apenas uma das diversas possíveis comparações que
permitem ilustrar o abismo que gradualmente se formara entre as propostas artísticas do
construtivismo e o direcionamento revolucionário ditado pela liderança do Partido Comunista
da União Soviética. Para este, o artista era um especialista à sua própria maneira, e tal como
os demais, esperava-se dele que utilizasse seus conhecimentos na sua esfera de ação
específica, sob a liderança e supervisão estatal, para garantir que os planos organizados e
impostos de cima fossem bem sucedidos em alcançar todas as suas expectativas. Diante desta
demanda, os construtivistas em geral se apresentariam como candidatos problemáticos por
demonstrarem dois traços que contrastavam essencialmente com as expectativas estatais: 1)
não viam o artista apenas como um especialista que deveria se verticalizar em seu campo, mas
sim um indivíduo que poderia contribuir para avanços em outros campos – nos quais, como
vimos, ele não era especializado; e 2) não demonstravam o desejado grau de aceitação da
hierarquia estatal desejada pelo Partido.

506
DOUGLAS, 1987, p. 263-264.
275

Conclusão

Quando confrontado com as propostas construtivistas, tal como delineadas em seus


manifestos e expressas em suas obras, é necessário sempre lembrar o papel vanguardista
presente nas reflexões de seus proponentes. A aplicação posterior deste termo não foi
escolhida por acaso, e se prova especialmente adequada quando utilizada para designar a
produção construtivista soviética. É o papel da vanguarda o desbravamento do desconhecido e
a descoberta daquilo que está à frente; esta é uma operação de risco presumido, e
necessariamente exercida por um grupo reduzido, capaz de mobilidade e organização em
graus incompatíveis com grandes grupos, caracteristicamente mais propensos à dispersão.
O construtivismo era ambicioso e radical em seus objetivos. Seus proponentes
almejavam nada menos do que uma transformação completa daquilo que se entendia por arte,
partindo da constatação de que este campo de produção havia se tornado demasiadamente
antiquado diante das inúmeras transformações pelas quais atravessava o mundo ao seu redor,
e consequentemente necessitava de uma revolução capaz de romper com tal cenário de
estagnação. Esta revolução, alguns afirmavam, resultaria na mais extrema das consequências,
a extinção daquilo que entendia por arte: porém somente devido à obsolescência desta prática
diante da nova configuração social que se formava, e do imperativo decorrente de adequar-se
à mesma.
Na medida em que presumiam assumir o papel de liderança revolucionária no campo
artístico, tais artistas entenderiam a sua revolução como uma faceta autônoma da mais ampla
revolução de outubro, na qual observariam diversos pontos programáticos afins às suas
intenções transformadoras.Tal como os bolcheviques, os construtivistas também queriam
sobrepujar as forças que continham o progresso histórico, em seu respectivo campo de ação.
Tal como Marx, vislumbravam uma realidade artística sem profano ou sagrado, livre de
cânones considerados antiquados, na qual a inventividade humana pudesse ser usada para
criar e revolucionar, ao invés de se submeter às tarefas reprodutivas exigidas pela academia
Para que estes objetivos fossem alcançados no campo artístico, postulavam, era
necessário que uma vanguarda de artistas ideologicamente direcionada tomasse as medidas
consideradas necessárias, de modo a promover a revolução a qualquer custo. Neste aspecto,
os construtivistas se assemelharam aos bolcheviques, e visaram emular em seu respectivo
campo a abordagem que resultara na vitória do partido em 1917. Tal postura se demonstrou
com clareza durante a guerra civil. Do interior do Narkompros visaram frequentemente a
276

imposição de suas diretrizes sobre as demais, não como um reflexo vingativo oriundo de sua
marginalização antes de 1917, mas por considerarem que a grande maioria dos artistas em
atividade eram em maior ou menor grau comprometidos com a prévia configuração do campo
artístico, tornando-os contrarrevolucionários.
Não se trata aqui de uma conspiração; não se presume afirmar aqui a existência de um
plano geral de dominação construtivista no âmbito estatal, não somente porque o
construtivismo não dispunha de adeptos suficientes para tal empreitada, mas pura e
simplesmente porque não há qualquer indicio de organização que envolvesse a maioria ou
totalidade destes artistas antes de 1921 – organização esta que seria necessária para qualquer
empreendimento deste escopo. Observamos, pelo contrário, que tais artistas visaram a
formação de vínculos organizacionais mais nítidos e uma formalização programática em
1921, quando estavam sendo excluídos de tal estrutura administrativa, e como um reflexo
defensivo diante de um processo de marginalização que adotaria dimensões especialmente
opressoras após 1928. Afirma-se, no entanto, que na execução de suas prerrogativas
administrativas estes artistas de forma recorrente buscaram favorecer as representações de
suas propostas por as considerarem o caminho para a revolução artística que buscavam
promover.
No entanto, se tornaria cada vez mais claro que o papel de liderança que estes artistas
procuraram exercer durante os primeiros anos da guerra civil não decorrera de uma
consensual delegação desta autoridade a tais artistas por parte da liderança partidária
soviética. Pelo contrário, era esperado que a despeito das orientações artísticas que
defendessem, quaisquer artistas que integrassem o Narkompros respondessem à autoridade do
comissário Lunacharsky, e as recorrentes transgressões cometidas por estes artistas em
relação à postura conciliatória de Lunacharsky resultariam em crescentes críticas ao
comissário, responsabilizado por tal insubordinação. No entanto, pelo decorrer da guerra civil,
a postura vanguardista adotada por tais artistas foi tolerada devido a questões que
demandavam atenção prioritária, e não ativamente encorajada por qualquer membro do mais
alto escalão do partido.
Os acontecimentos pós-1921 demonstrariam os diversos fatores que contribuíram para
os reveses enfrentados pelos construtivistas. Alguns, como a negativa recepção de suas
produções por parte da maioria de seus espectadores da produção construtivista, precedem o
fim da guerra civil; outros, como as dificuldades de ordem técnica enfrentadas por estes
artistas em suas iniciativas industriais, se tornariam evidentes durante o período que a
sucedeu.
277

Dentre todos estes fatores, o maior obstáculo contra o qual se defrontaram os


proponentes do construtivismo foi o próprio partido comunista. A despeito do alinhamento
ideológico acima mencionado, o construtivismo se tornaria inaceitável à liderança soviética
devido a sua premissa vanguardista. A adoção desta postura “autônoma” como ponto
programático construtivista contrastava fundamentalmente com a postura centralizadora que
fora desde o início uma característica do novo Estado soviético. Este contraste resultaria em
crescentes divergências entre ambas as partes, e um crescente descompasso que as tornaria
ainda mais evidentes.
A principal divergência entre as reflexões construtivistas e os desígnios partidários
durante todo este período resume-se à definição das diretrizes que deveriam guiar a produção
artística revolucionária. Por um lado o construtivismo debruçou-se primariamente sobre a
“questão artística” em si, formulando estratégias e projetos que haveriam de ser aplicados
para que se promovesse a revolução artístico-cultural soviética, a qual era vista como um
passo crucial para a formação de um novo cidadão soviético, livre de constrangimentos
culturais pré-revolucionários.
O partido, por outro lado, adotou uma linha mais pragmática em relação à “questão
artística”. Decerto a liderança partidária reconhecia a importância de questões culturais para o
sucesso da revolução, ainda que não tenha necessariamente conferido ao âmbito artístico a
mesma proeminência que se observa entre os construtivistas. Entretanto, confrontados com
ameaças diretas à sobrevivência da revolução, as quais incluíam não apenas a guerra civil,
mas a crise econômica que dela decorrera e a sempre presente ameaça de invasão
internacional, durante a sua primeira década o partido promoveu uma política de conciliação e
satisfação popular que se opunha quase totalmente à postura delineada pelos construtivistas,
voltada para o experimentalismo e investigação formal. Esta política, como vimos, alocava à
produção artística um papel subsidiário, desprovido de autonomia, e voltado às necessidades
imediatas da revolução.
A produção artística, portanto, deveria se preocupar primariamente com questões
como cooptação popular, motivação das massas, reafirmação e educação ideológica, entre
outras. Ao invés de “fechar-se em si mesma” através de produções experimentais e abstratas,
ou em projetos de longo prazo. Diante deste contraste, é compreensível a predileção do
Estado pelas produções oferecidas por grupos como AKhRR e RAPP, as quais se
demonstravam mais acessíveis e concretas às massas, melhor cumprindo o papel alocado pelo
Estado à produção artística.
278

Os anos subsequentes à NEP demonstrariam, no entanto, que a postura pragmática


adotada pelo Estado durante a primeira década que seguiu a revolução não decorreu apenas de
circunstâncias excepcionais. Após 1927, em meio à adoção de uma política de
industrialização acelerada, o partido reafirmou e ampliou gradualmente sua postura
centralizadora, que negaria aos construtivistas – e após 1932, aos demais artistas – qualquer
pretensão de autonomia no campo artístico; reafirmara, também, a sua postura de priorização,
reafirmando o papel da produção artística como subserviente às demandas da revolução, de
acordo com o entendimento do partido.
Os reveses enfrentados pelos proponentes do construtivismo não decorreram, portanto,
do conteúdo teórico que defendiam, mas principalmente da inadequação de parte considerável
de sua produção às expectativas estatais – o que se evidencia pelo contrastante sucesso de
certos empreendimentos, notavelmente no campo do design gráfico, que decorreram da
satisfação de tais expectativas, e se mantiveram como possibilidades profissionais para estes
artistas mesmo após 1932.
Talvez de forma mais abrangente do que qualquer outra proposta artística
vanguardista, o construtivismo se propôs a radicalmente transformar o papel da arte e do
artista na sociedade contemporânea. Em seu iconoclasmo destrutivo e ardor revolucionário,
esperar-se-ia que sua luta pela demolição de cânones e práticas acadêmicas seria facilitada
pela revolução de 1917, a qual promovia uma luta semelhante em proporções
consideravelmente mais amplas. A luta bolchevique, entretanto, não contemplaria mais do
que uma vanguarda, e os construtivistas, definidos fundamentalmente em seu papel
desbravador, se provariam indesejáveis enquanto executores das diretrizes determinadas pela
“verdadeira” vanguarda revolucionária.
279

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286

ANEXO
287

Porque nós nos pintamos: Um Manifesto Futurista

À frenética cidade de postes arqueados, às ruas cobertas de corpos, às casas


amontoadas, nós trouxemos nossas caras pintadas. Foi dada a largada e a pista aguarda seus
corredores.
Criadores, nós não viemos para destruir construções, mas para glorificá-las e afirmá-
las. A pintura de nossos rostos não é nem uma ficção absurda, nem um relapso – é
indissoluvelmente ligada ao caráter de nossa vida e de nosso ofício.
O hino do amanhecer ao homem, como um corneteiro antes da batalha, clama por
vitórias sobre a terra, escondendo-se sob as rodas até que chegue o momento de vingança; as
armas adormecidas acordaram e cuspiram no inimigo.
Uma nova vida requer uma nova comunidade e uma nova forma de propagação.
Nossa auto-pintura é a primeira linguagem que encontrou verdades desconhecidas. E
as conflagrações causadas por ela mostram que os criados da terra não perderam ainda as
esperanças de salvar os velhos ninhos, mas sim reuniram todas as suas forças em defesa dos
portões, se amontoaram sabendo que após apenas um êxito seremos nós vitoriosos.
O caminho da arte e um amor pela vida têm sido nossos guias. Fé em nosso ofício nos
inspira, os lutadores. O caráter resoluto dos poucos resulta em forças que não podem ser
sobrepujadas.
Nós juntamos a arte à vida. Depois de um longo isolamento dos artistas, nós em
convocamos a vida e a vida invadira a arte; é o momento para que a arte invada a vida. O
pintar de nossos rostos é o início da invasão. É o motivo pelo qual nossos corações batem
dessa maneira.
Não aspiramos uma forma estética única. A arte não é apenas um monarca, mas
também um jornalista e um decorador. Nós apreciamos o que é impresso e o que é novo. A
síntese da decoração e da ilustração é a base da nossa auto-pintura. Nós decoramos a vida e
pregamos – é por isso que nos pintamos.
Auto-pintura é uma das novas posses valiosas que pertencem ao povo, como todas as
outras em nossa época. As antigas eram incoerentes e foram esmagadas pelo dinheiro. Outro
era valorizado como um ornamento e se tornou caro. Nós jogamos para fora de seus pedestais
ouro e pedras preciosas e os declaramos sem valor. Cuidado, vocês que as colecionam e as
acumulam – em breve se tornarão pedintes.
288

Tudo começou em ’05. Mikhail Larionov pintou um nu em pé à frente de um tapete e


estendeu os detalhes deste sobre aquela. Mas não houve proclamação alguma. Agora
parisienses estão fazendo o mesmo ao pintarem as pernas de suas dançarinas, e damas se
empolam com maquiagem marrom e, como as egípcias, alongam seus olhos. Mas isso é
antiguidade. Nós, entretanto, unimos contemplação com ação e nos lançamos em direção à
multidão.
À frenética cidade de postes arqueados, às ruas cobertas de corpos, às casas
amontoadas, nós não trouxemos o passado: flores inesperadas desabrocharam na estufa, e elas
nos excitam.
Citadinos vêm por muito tempo envernizando suas unhas, usando sombras de olho,
maquiando seus lábios, bochechas, cabelo – mas tudo que estão fazendo é imitar a terra.
Nós, criadores, não temos nada em comum com a terra; nossas linhas e cores surgiram
conosco. Se nos fosse dada a plumagem de papagaios, nós arrancaríamos suas penas e as
utilizaríamos como pincéis e gizes de cera.
Se nos fosse dada beleza imortal, nós a borraríamos e a mataríamos – nós, que não
conhecemos meias medidas.
Tatuagens não nos interessam. Pessoas se tatuam de uma vez por todas. Nós nos
pintamos por uma hora, e uma experiência determinada clama por uma mudança de pintura,
tal como se mesclam as imagens, quando do outro lado do pára-brisa do carro velozmente
passam as imagens das vitrines, uma em direção a outra: estas são as nossas caras. A tatuagem
é bela mas diz pouco – apenas sobre uma determinada tribo e seus feitos. Nossa pintura é o
noticiador.
Expressões faciais não nos interessam. Isto porque pessoas se acostumaram a entendê-
las, de tão tímidas e feias que são. Nossas faces são como o ranger do carrinho que avisa sua
passagem aos transeuntes apressados, como os sons bêbados de um grande tango. Mímica é
expressiva mas desprovida de cor. Nossa pintura é o decorador.
Motim contra a terra e transformação das faces em um projetor de experiências.
O telescópio discerniu constelações perdidas no espaço; a pintura falará de idéias
perdidas.
Nós nos pintamos porque uma face limpa é ofensiva, porque nós queremos apresentar
o desconhecido, rearranjar a vida, e erguer a múltipla alma do homem aos limites superiores
da realidade.
M. Larionov e I. Zdanevich.
289

Lista de personagens a serem contemplados pelo Plano de Propaganda


Monumental (1918).

I. Revolucionários e ativistas sociais

Spartacus Marat Khalturin


Tibério Graco Robespierre Plekhanov
Brutus Danton Kalyaev
Babeuf Garibaldi Volodarsky
Marx Stepan Razin Fourier
Engels Pestel Saint-Simon
Bebel Ryleev Robert Owen
Lasalle Herzen Zhelyabov
Lafargue Bakunin Sofia Perovskaya
Valyan Lavrov Kibalchich

II. Escritores e Poetas

Tolstoy Ogarev Nekrasov


Dostoevsky Chernyshevsky Shevchenko
Lermontov Mikhailovsky Tyuchev
Pushkin Dobrolyubov Nikitin
Gogol Pisarev Novikov
Radischev Gleb Uspensky Koltsov
Belinsky Saltykov-Shchedrin

III. Filosofos e Eruditos

Skovoroda Lomonosov Mendeleev


290

IV. Pintores

Rublev Vrubel Kazakov


Kiprensky Shubin
Aleksandr Ivanov Kozlovsky

V. Compositores

Mussorgsky Scriabin Chopin

VI. Atores

Komissarzhevskaya Mochalov
291

Resolução do Politburo do Comitê central do Partido Comunista (Bolchevique)


Russo

A respeito da Política Partidária na Esfera da Literatura Artística (1925).

1. A melhora do bem-estar material das massas nos ultimos anos, acompanhada da


transformação ensejada pela revolução sobre a mentalidade da população, da intensificação
das atividades de massa, da colossal expansão de sua visão de mundo etc., criam um tremendo
crescimento das exigências e necessidades culturais. Dessa forma, nós entramos no campo da
Revolução Cultural, que serve como pré-requisito para desenvolvimentos posteriores em prol
de uma sociedade comunista.

2. Parte deste crescimento cultural maciço está presente na literatura: proletária e camponesa
em um primeiro momento, iniciada com suas formas embrionárias, as quais ao mesmo tempo
são incrivelmente amplas em seu escopo, e resultando em produção artístico-literária
ideologicamente fundamentada.

3. Por outro lado, a complexidade do processo econômico; o crescimento simultâneo de


configurações econômicas contraditórias ou explicitamente hostis; a formação e o
fortalecimento de uma nova burguesia como resultado destes processos; a inevitável, ainda
que nem sempre imediatamente reconhecível atração a esta por parte da velha e da nova
intelligentsia; a secreção quase química decorrente da ação dos novos agentes ideológicos
desta burguesia: tudo isso deve ser inevitavelmente revelado na superfície literária da vida
social.

4. Portanto, haja visto que a luta de classes não cessou de forma geral entre nós, também não
cessou no front literário. Em uma sociedade de classes não há e não pode haver uma arte
neutra, ainda que manifestações de classe na arte em geral e na literatura em particular são
infinitamente mais variadas do que, por exemplo, manifestações de classe na política

5. No entanto, seria errôneo ignorar o mais básico fato de nossa vida social, basicamente a
conquista do poder por parte da classe trabalhadora e a existência de uma ditadura do
proletariado em nosso país. Enquanto antes da tomada de poder o partido proletário tenha
intensificado a luta de classes e empregado uma política voltada à destruição dessa sociedade
como um todo, durante o período de vigência desta ditadura do proletariado o partido do
proletariado se confronta com a questão de como coexistir com o campesinato enquanto
lentamente o transforma; com a questão de como promover certa cooperação com a burguesia
292

enquanto lentamente a elimina; e com a questão de como alocar a intelligentsia técnica e de


outros tipos ao serviço da revolução enquanto as afasta ideologicamente da burguesia.

Desse modo, ainda que a luta de classes não tenha cessado, a maneira através da qual ela
ocorre mudara, porque o objetivo do proletariado era um antes da tomada de poder, e agora é
outro, em termos teóricos. No lugar de uma meta destrutiva, há agora uma meta de construção
positiva para a qual – sob a liderança do proletariado – uma camada cada vez mais abrangente
e diversa da sociedade deve contribuir.

6. Enquanto preserva, fortalece e continuamente expande sua liderança, o proletariado deve


ocupar uma série de posições nos diversos novos setores do front ideológico. O processo de
penetração do materialismo dialético em esferas totalmente novas (biologia, psicologia, e nas
ciências naturais como um todo) já se iniciou. Da mesma forma, a conquista de posições na
esfera artístico-literária deve se concretizar, mais cedo ou mais tarde.

7. É necessário lembrar, entretanto, que este problema é infinitamente mais complexo do que
os demais problemas solucionados pelo proletariado, pois sob os constrangimentos impostos
pela sociedade capitalista a classe trabalhadora pode se preparar para uma revolução vitoriosa,
criando quadros de combatentes e líderes e desenvolvendo uma magnífica arma ideológica a
serviço da luta política. A classe trabalhadora, no entanto, não pode se aventurar por questões
relativas às ciências naturais ou à tecnologia; e também, do mesmo modo, a classe
culturalmente reprimida não pode desenvolver sua própria literatura artística, sua própria
forma artística, seu próprio estilo.. Enquanto o proletariado já tem em suas mãos os critérios
infalíveis para guiar o conteúdo de qualquer obra literária, ele ainda não possui respostas
definitivas para todas as questões relativas à forma artística.

8. O que foi afirmado acima deve determiner a política do partido que lidera o proletariado na
esfera artístico-literária. Neste aspecto, acima de tudo, devemos considerar as seguintes
questões: a relação entre os escritores camponeses e proletários e aqueles denominados
“companheiros de viagem” e outros; a política do partido em relação aos escritores proletários
em si; questões de crítica; questões sobre o estilo e a forma das obras e os métodos através
dos quais novas formas artísticas podem ser desenvolvidas; e, finalmente, questões de ordem
organizacional.

9. A relação entre diferentes grupos de escritores – em termos de sua classe social – é


determinada por nossa política geral. Entretanto, devemos aqui nos alertar para o fato de que a
liderança na esfera literária pertence à classe trabalhadora como um todo, com todos os seus
293

recursos materiais e ideológicos. Ainda não há uma hegemonia de escritores proletários, e o


partido deve auxiliar estes escritores a conquistar por si próprios seu direito histórico à
hegemonia. Escritores camponeses devem ser aceitos de forma amigável e garantidos nosso
apoio incondicional. Nossa tarefa se resume a guiar seus crescentes números em direção à
ideologia proletária enquanto, e simultaneamente evitar qualquer tentativa de destruir as
imagens artístico-literárias camponesas presentes em seu trabalho criativo, imagens estas que
são um pré-requisito necessário para que se influencie o campesinato.

10. Em relação aos “companheiros de viagem”, precisamos ter em mente: 1) sua


diferenciação; 2) a importância de muitos deles enquanto “especialistas” qualificados em
técnica literária; 3) a presença de hesitação neste segmento de escritores. A diretriz geral aqui
deveria ser a de assumir uma postura cautelosa e delicada em relação a eles, uma postura que
estabeleceria as condições necessárias para que eles se transferissem para o lado da ideologia
comunista assim que possível. Enquanto desencoraja elementos anti-proletários e
contrarrevolucionários (que atualmente são insignificantes) e combate a ideologia de uma
nova burguesia que está tomando forma em um segmento dos “companheiros de viagem”, o
partido deve lidar de forma tolerante com formas ideológicas provisórias, auxiliando
pacientemente as numerosas formas a se desenvolverem em um processo de constante
aproximação e cooperação com as forças culturais do comunismo.

11. Quando lidar com escritores proletários, o Partido deve assumer o seguinte
posicionamento: enquanto auxilia o seu desenvolvimento de todas as formas possíveis e
tomando todas as medidas possíveis para apoiá-los, o Partido deve fazer tudo que puder para
evitar a emergência de uma arrogância comunista entre eles, um fenômeno de grande
perniciosidade. O Partido – precisamente porque vê nesses escritores proletários os futuros
líderes ideológicos da literatura soviética – deve lutar de todas as maneiras contra uma postura
ligeira e rancorosa diante da velha herança cultural, assim como aos especialistas da palavra
artística. Contra o entreguismo, de um lado, e contra a arrogância comunista do outro – esta
deve ser o slogan do Partido. O Partido deve cambém combater quaisquer tentativas de se
estabelecer uma literatura proletária alieanada. Entendimento de fenômenos em toda a sua
complexidade; não apenas limitado aos confins da fábrica; que seja não apenas uma literatura
da oficina, mas de uma grande classe combativa, liderando milhões de camponeses – tal deve
ser o escopo de conteúdo da literatura proletária.

12. Tudo que foi mencionado acima determina – em geral e em particular – as tarefas diante
da crítica, que é uma das principais ferramentas educacionais nas mãos do Partido. Sem fazer
294

qualquer concessão, mesmo por um minuto, relativo à postura comunista, sem recuar de
forma alguma da ideologia proletária, desvendando objetivamente o aspecto classista de
diversas obras literárias, a crítica comunista deve combater impiedosamente as manifestações
contrarrevolucionárias na literatura e expor expose "Change-of-Landmark" liberalism etc.,
enquanto simultaneamente demonstrar o maior tato, cautela e tolerância a todos os grupos
literários que podem ou pretendem se unir ao proletariado. A crítica comunista deve extinguir
o tom de comando de sua abordagem. Apenas assim esta crítica terá uma importância
educacional profunda, quando for guiada por sua própria superioridade ideológica. A crítica
marxista deve peremptoriamente extinguir de seu meio qualquer forma de arrogância
comunista, pretensiosa, semialfabetizada e vaidosa. A crítica marxista deve adotar “aprender”
como seu slogan e rechaçar qualquer forma de charlatanismo ou improviso em seu próprio
meio.

13. Enquanto inexoravelmente identifica o conteúdo classista de diversas tendências literárias,


o Partido como um todo não pode de forma prematura se afiliar a uma tendência no interior
do campo formal literário. Liderando a literatura como um todo, o Partido certamente não
pode apoiar uma única facção literária (classificando essas facções de acordo com suas
diferenças formais e estilísticas), assim como realisticamente não pode instituir resoluções
voltadas para a solução de questões formais ainda que, em termos gerais, o Partido
indubitavelmente lidere e deva liderar a construção a construção de um novo estilo de vida.
Um estilo apropriado à sua época será criado, mas o será por outros meios, e a solução para
esta questão ainda não tomou forma. Na atual fase do desenvolvimento cultural, todas as
tentativas de atrelar o partido neste sentido devem ser rechaçadas.

14. Portanto, o Partido precisa se declarer a favor da livre competição entre as diversas
tendências e os diversos grupos nesta área de atividade. Qualquer outra solução oferecida a
esqta questão seria uma pseudo-solução, burocrática e oficial. Da mesma forma, é
inadmissivel que se confira através de um decreto ou resolução partidária um monopólio
legalmente justificado sobre a publicação literária a qualquer grupo ou organização literária
específica. Enquanto oferece apoio moral e material à literatura proletária e proletária-
campesina e auxilia “companheiros de viagem” etc., o Partido não pode oferecer um
monopólio a qualquer grupo específico, mesmo àquele que se demonstre o mais proletário em
seu conteúdo ideológico. Fazê-lo significaria a destruição da literatura proletária em si.

15. O Partido precisa, de toda forma possível, eliminar quaisquer tentativas de interferência
administrativa incompetente e inconstante sobre assuntos literários. O Partido precisa se
295

preocupar com a seleção cautelosa de quadros para os estabelecimentos que tenham


autoridade sobre publicação e impressão, de modo a garantir liderança genuinamente reta,
sensivel, e útil para nossa literatura.

16. O Partido precisa evidenciar a todos os trabalhadores envolvidos com a produção


artístico-literária a necessidade de existência de uma separação de funções entre críticos e
escritores artísticos. Os últimos devem transferir o centro de gravidade de seus trabalhos à
produção literária, no sentido exato do termo, fazendo uso de seu vasto repositório de material
oriundo da sociedade contemporânea . Maior atenção deve ser direcionada ao
desenvolvimento de literatura nacional nas diversas repúblicas e regiões administrativas
[oblasti] de nossa União.

O Partido precisa reforçar a necessidade de criação de uma literatura artística voltada


para a leitura em massa por trabalhadores e camponeses; nós precisamos romper de forma
mais audaz e decisiva com as concepções de gentilidade na literatura e, utilizando todas as
conquistas técnicas dos velhos mestres, delinear uma forma que será compreensível a milhões
de pessoas. Apenas quando este grande problema for solucionado a literatura soviética e sua
futura vanguarda proletária poderá completar sua missão cultural e histórica.

Pravda, 1º de julho de 1925.


296

Um ano de Grandes Transformações

Na ocasião do Décimo Segundo aniversário da Revolução de Outubro

O ultimo ano foi um ano de grande transformação em todos os fronts de construção


socialista. O ponto central desta transformação foi, e continua a ser, a resoluta ofensiva do
socialismo contra os elementos capitalistas na cidade e no campo. A principal característica
dessa ofensiva é que já nos trouxe numerosos sucessos decisivos nas principais esferas da
reconstrução socialista de nossa economia nacional.

Nós podemos concluir, portanto, que nosso Partido foi bem-sucedido em fazer bom
uso de nosso recuo durante os primeiros estágios da Nova Política Econômica de modo a, nos
estágios subsequentes, organizar a transformação e lançar uma ofensiva bem-sucedida contra
os elementos capitalistas.

Quando a NEP foi introduzida Lenin disse

“Nós estamos recuando no momento, voltando ao que era; mas estamos fazendo isso
para que, ao recuarmos, possamos posteriormente tomar impulso e promover um
grande salto à frente. Foi apenas sob essa condição que nós permitimos o retorno
que significa a Nova Política Econômica... Para que possamos dar início a um
avanço persistente após o nosso recuo” (Vol. XXVII, pp. 361-62).

Os resultados do ultimo ano demonstram para além de qualquer dúvida que em seus
esforços o Partido está executando com sucesso essa decisiva diretriz de Lenin.

***

Se recorrermos aos resultados do último ano no campo de construção econômica, que


é de suma importância para nós, observaremos que os sucessos de nossa ofensiva nesse front,
nossas conquistas durante este último ano podem ser resumidas sob três principais categorias

I
Em relação à produtividade do trabalho
297

Não pode haver qualquer dúvida de que um dos mais importantes fatos relativos ao
nosso trabalho de construção durante o último ano foi o nosso sucesso em promover uma
mudança decisiva em relação à produtividade no trabalho. Esta mudança se demonstra no
crescimento da iniciativa criativa e no intenso entusiasmo presente no trabalho das vastas
massas da classe operária no front de construção socialista. Este foi a nossa principal
conquista durante o último ano.

A expansão da iniciativa criativa e do entusiasmo no trabalho das massas foi


estimulado em três principais direcionamentos:

a) na luta – através de auto-crítica – contra a burocracia, a qual constrange a iniciativa


do trabalhador e as atividades de trabalho das massas;

b) na luta – através da emulação socialista – contra aqueles que buscam se esquivar do


trabalho e perturbar a disciplina de trabalho do proletariado;

c) na luta – através da introdução da semana de trabalho ininterrupta – contra a rotina e


a inércia na indústria.

Em consequência disso nós alcançamos uma grande conquista no front do trabalho na


forma de entusiasmo trabalhista e emulação entre as vastas massas da classe operária em
todas as partes de nosso imenso país. A importância desta conquista é realmente inestimável,
pois apenas o entusiasmo e o zelo das vastas massas na atividade de trabalho pode garantir o
progressivo crescimento da produtividade de trabalho sem a qual a vitória final do socialismo
sobre o capitalismo em nosso país é inconcebível.

“Em uma análise geral”, diz Lenin, “a produtividade de trabalho é o mais importante, o principal fator
para a vitória de um novo sistema social. O capitalismo promoveu níveis de produtividade de trabalho
desconhecidas durante o período de servidão. O capitalismo pode ser totalmente derrotado, e será totalmente
derrotado, quando o socialismo criar uma nova e muito superior produtividade de trabalho”. (Vol. XXIV, p.
342).

Partindo desse ponto, Lenin concluiu que:

“Nós precisamos nos imbuir com entusiasmo pelo trabalho com o desejo por
trabalhar, com a persistência sobre a qual a rápida salvação dos trabalhadores e
camponeses. A salvação da economia nacional agora depende” (Vol. XXV, p. 477).

Essa foi a tarefa estabelecida por Lenin para o nosso Partido.

O último ano demonstrou que o Partido está executando esta tarefa com sucesso e de
forma resoluta está superando todos os obstáculos que a ele se interpõem.
298

Esta é a situação relativa à primeira grande conquista realizada pelo nosso Partido no
último ano.

II
Em relação à construção industrial

Indissociável da primeira conquista do Partido está sua segunda. Esta segunda


conquista do Partido consiste no fato de termos praticamente solucionado, durante o último
ano, o problema de acumulação de capital para a construção da indústria pesada. Nós
aceleramos o desenvolvimento da produção de meios de produção e criamos os pré-requisitos
necessários para transformarmos nosso país em um país de metal

Esta foi a nossa segunda conquista fundamental realizada durante o último ano.

O problema da indústria de bens de consumo não apresenta quaisquer dificuldades


especiais. Nós solucionamos esse problema há anos. O problema da indústria pesada é mais
desafiador e mais importante.

É mais desafiador porque sua solução exige investimentos colossais, e como a história
de países industrialmente subdesenvolvidos demonstrou, a indústria pesada não pode se
sustentar sem que se recorra a imensos empréstimos de longo prazo.

É mais importante porque, a não ser que desenvolvamos a indústria pesada, não
podemos desenvolver a indústria como um todo, não podemos nos industrializar.

E como nós não recebemos, nem vamos receber, empréstimos de longo prazo, a
agudez desse problema se torna a nós mais do que evidente.

É precisamente por esse motive que os capitalistas de todos os países nos recusam
empréstimos e crédito, pois presumem que não podemos através de nossos próprios esforços
lidar com o problema de acumulação, que estamos fadados a naufragar em nossa empreitava
em busca da reconstrução de nossa indústria pesada, e que nos veremos forçados a nos
submeter à eles, como escravos.

Mas o que os resultados de nosso trabalho durante o último ano demonstram em


relação a isso? A importância dos resultados do último ano é que eles despedaçaram as
expectativas dos Messieurs, os capitalistas.

O último ano mostrou que, a despeito do explícito e do disfarçado bloqueio financeiro


imposto à URSS, nós não nos vendemos aos capitalistas como servos, mas sim demonstramos
299

através de nossos próprios esforços que solucionamos com sucesso o problema da


acumulação e construímos os alicerces para a indústria pesada. Mesmo os inimigos mais
inveterados da classe operária não podem mais negá-lo.

De fato, na medida em que, em primeiro lugar, investimentos de capital na indústria


em larga escala no ano passado somaram 1.600.000.000 rublos, dos quais por volta de
1.300.000.000 rublos foram investido na indústria pesada, enquanto investimentos de capital
na indústria em larga escala nesse ano vão somar mais de 3.400.000.000 rublos, dos quais
mais de 2.500.000.000 rublos serão investidos na indústria pesada; e na medida em que, em
segundo lugar, a produção bruta da indústria em larga escala no ano passado demonstrou um
crescimento de 23 por cento, incluindo um crescimento de 30 por cento na produção da
indústria pesada, enquanto o crescimento de produção bruta da indústria em larga escala neste
ano deveria ser de 32 por cento, incluindo um crescimento de 46 por cento na produção da
indústria pesada – não se torna claro que o problema de acumulação para o desenvolvimento
da indústria pesada não mais representa um problema insuperável para nós?

Como alguém pode duvidar que estamos avançando em um ritmo acelerado em


direção ao desenvolvimento de nossa indústria pesada, excedendo nossa velocidade prévia e
deixando para trás o nosso subdesenvolvimento “ancestral”?

Após esta explanação, surpreende que as metas do plano quinquenal foram excedidas
durante o último ano, e que a mais ambiciosa versão do plano quinquenal, a qual o burguês
descreve como uma “louca fantasia”, e que causa horror aos oportunistas da direita (o grupo
de Bukharin), na verdade se mostrou ser a mais modesta versão?

“A salvação da Rússia”, diz Lenin, “jaz não apenas em boas colheitas nas fazendas
dos camponeses – isso não é o suficiente; e não apenas com uma indústria de bens
de consumo em bom estado, que ofereça ao campesinato o que consumir – isso,
também, não é suficiente; nós também precisamos de indústria pesada... A não ser
que salvemos a indústria pesada, a não ser que a recuperemos, nós não seremos
capazes de desenvolver qualquer forma de indústria; e sem ela nós estaremos
condenados totalmente enquanto um país independente... A indústria pesada
necessita de subsídios estatais. Se nós não os oferecermos, então estamos
condenados enquanto um estado civilizado – quem dirá enquanto um estado
socialista” (Vol. XXVII, p. 349).

Com tal clareza Lenin formulou o problema da acumulação e a tarefa do Partido em


desenvolver a indústria pesada.

O último ano demonstrou que o Partido está executando esta tarefa com sucesso e de
forma resoluta está superando todos os obstáculos que a ele se interpõem.
300

Isso não significa, é claro, que a indústria não se defrontará com outras sérias
dificuldades. A meta de desenvolver a indústria pesada não envolve apenas a questão de
acumulação. Envolve também o problema de seus quadros, o problema:

a) de selecionar dezenas de milhares de técnicos e especialistas ideologicamente


confiáveis para a tarefa de construção socialista, e

b) de treinar novos técnicos vermelhos e especialistas vermelhos oriundos da classe


operária.

Enquanto o problema da acumulação pode de forma geral ser considerado superado, o


problema relativo aos quadros ainda requer solução. E o problema dos quadros é, no momento
– na medida em que estamos engajados na reconstrução técnica da indústria – o principal
desafio diante da construção socialista.

“Aquilo que mais nos faz falta”, diz Lenin, “é a cultura, a habilidade de
administração... Economicamente e politicamente, a NEP nos permite a
possibilidade de construir os alicerces de uma economia socialista. Resta ‘apenas’ a
iniciativa das forças culturais do proletariado e de sua vanguarda” (Vol. XXVII, p.
207).

Nitidamente aqui Lenin se refere primariamente à questão das “forças culturais, o


problema de quadros para o desenvolvimento econômico em geral, e a administração e
organização da indústria em particular.

Disso se pode extrapolar que, a despeito das importantes conquistas em relação a


acumulação, que foram de importância vital para a indústria pesada, a questão relativa à
construção da indústria pesada não pode ser considerada plenamente resolvida até que nós
tenhamos solucionado a questão dos quadros. Portanto se demonstra a tarefa do Partido de
abordar este problema com total seriedade e conquistar esta fortaleza a todo custo.

Esta é a situação relativa à segunda grande conquista realizada pelo nosso Partido no
último ano.

III
Em relação ao desenvolvimento agrícola
301

Finalmente, em relação à terceira conquista do Partido durante o último ano, uma


conquista organicamente atrelada às duas anteriores. Estou me referindo à mudança radical no
desenvolvimento de nossa agricultura, do cultivo pequeno, subdesenvolvido e individual à
agricultura em larga escala, desenvolvida e coletiva, ao cultivo conjunto da terra, às estações
de máquinas e tratores, aos artéis, às fazendas coletivas, baseadas em técnicas modernas e,
finalmente, às gigantes fazendas estatais, equipadas com centenas de tratores e colheitadeiras.

A conquista do partido se resume ao fato de em um grande número de áreas termos


conseguido guiar a maior parte da massa campesina para longe da antiga rota capitalista de
desenvolvimento – a qual beneficia apenas um pequeno grupo de ricos, os capitalistas,
enquanto a grande maioria dos camponeses permanece fadada à ruína e à pobreza completa –
em direção ao novo caminho socialista de desenvolvimento, que despoja os ricos e os
capitalistas, e reequipa os camponeses pobres e médios de acordo com novas diretrizes,
equipando-os com instrumentos modernos, com tratores e maquinário agrícola, de modo a
permiti-los a sair da pobreza e da escravidão que sofriam sob os kulaks em busca de uma
nobre proposta de cultivo cooperativo, coletivo, da terra.

A conquista do partido resume-se em nosso sucesso ao realizar esta mudança radical


no âmago do campesinato em si, e em garantir o apoio de grandes massas de camponeses
pobres e médios a despeito de incríveis dificuldades, a despeito da resistência desesperada de
forças retrógradas de todo tipo, de kulaks e padres a filisteus e oportunistas de direita.

Aqui estão alguns dados.

Em 1928, a área total de cultivo de fazendas estatais era de 1.425.000 hectares com
uma produção de grãos para comercialização de mais de 6.000.000 tsentnerov (mais de
36.000.000 pudov), e a área total de cultivo de fazendas coletivas era de 1.390.000 hectares
com uma produção de grãos para comercialização de aproximadamente 3.500.000 tsentnerov
(mais de 20.000.000 pudov)

Em 1929, a área total de cultivo de fazendas estatais era de 1.816.000 hectares com
uma produção de grãos para comercialização de mais de 8.000.000 tsentnerov (mais de
47.000.000 pudov), e a área total de cultivo de fazendas coletivas era de 4.262.000 hectares
com uma produção de grãos para comercialização de aproximadamente 13.000.000 tsentnerov
(mais de 78.000.000 pudov).

No próximo ano, 1930, a área total de cultivo de fazendas estatais, de acordo com o
nosso plano, chegará provavelmente a 3.280.000 hectares com uma produção de grãos para
comercialização de mais de 18.000.000 tsentnerov (mais de 110.000.000 pudov), e a área total
de cultivo de fazendas coletivas certamente chegará a 15.000.000 hectares com uma produção
302

de grãos para comercialização de aproximadamente 49.000.000 tsentnerov (mais de


300.000.000 pudov).

Em outras palavras, no próximo ano, 1930, a produção de grãos para comercialização


de fazendas estatais e fazendas coletivas totalizará mais que 400.000.000 pudov ou mais de 50
por cento de toda a produção de grãos para comercialização da agricultura como um todo.

Deve se admitir que tal ímpeto de desenvolvimento é sem precedentes mesmo se


comparado ao de nossa indústria socializada de larga escala, a qual em termos gerais se
caracteriza pela notável rapidez de seu crescimento.

É nítido que nossa jovem agricultura socialista de larga escala (as fazendas coletivas e
as fazendas estatais) tem um grande future à sua frente e que seu desenvolvimento será
verdadeiramente miraculoso.

Esse sucesso sem precedentes no desenvolvimento do cultivo coletivo decorre de uma


série de causas, das quais no mínimo as seguintes devem ser mencionadas.

Deve-se, em primeiro lugar, ao fato de o partido ter realizado a política de Lenin


relativa à educação das massas ao buscar insistentemente guiar a massa campesina em direção
ao cultivo coletivo através da implementação de uma vida comunal e cooperativa. Deve-se ao
fato de o Partido ter combatido com sucesso aqueles que buscaram se antecipar a este
movimento e forçar o desenvolvimento de cultivo coletivo por meios de decretos (os
demagogos “esquerdistas”) assim como aqueles que tentaram puxar o Partido para trás de
modo a permanecerem à frente do movimento (os idiotas direitistas). Se tal política não fosse
executada o Partido não teria sido capaz de transformar o movimento de cultivo coletivo em
um verdadeiro movimento de massas liderado pelos próprios camponeses.

“Quando o proletariado de Petrogrado e os soldados da guarnição de Petrogrado


tomaram o poder”, diz Lenin, “eles perceberam claramente que nosso trabalho de
construção no campo encontraria grandes obstáculos; que seria necessário proceder
de forma gradual; que uma tentativa de introduzir o cultivo coletivo da terra por
decretos, por legislação, seria de grande insensatez; que um número insignificante de
camponeses instruídos poderia concordar com isso, mas que a vasta maioria de
camponeses não teriam isso como um objetivo. Nós, portanto, nos limitamos àquilo
que era absolutamente essencial para o desenvolvimento da revolução: em momento
algum tentamos antecipar o desenvolvimento das massas, mas esperar ate que, como
resultado de sua própria experiência e de seus próprios embates, um movimento
progressivo se desenvolvesse”. (Vol. XXIII, p. 252).

O Partido alcançou uma grande vitória no front do desenvolvimento de fazendas


coletivas porque executou exatamente esta diretriz estratégica de Lenin.
303

Em segundo lugar, este sucesso sem precedentes no desenvolvimento agrícola decorre


do reconhecimento por parte do Partido das crescentes necessidades dos camponeses por
novos instrumentos, por uma técnica moderna; ele reconheceu que as velhas formas de cultivo
deixariam o campesinato em uma posição fadada ao fracasso e, levando isso em consideração,
veio ao seu auxílio no momento certo ao organizar estações de aluguel de máquinas, colunas
de trator e estações de máquinas e tratores; ao organizar o cultivo coletivo da terra, ao
estabelecer fazendas coletivas e, finalmente, ao direcionar as fazendas estatais a oferecer toda
e qualquer assistência necessária ao cultivo camponês.

Pela primeira vez na história da humanidade surgiu um governo, tal como o dos
sovietes, que provou por meio de suas ações sua prontidão e sua habilidade de conferir às
massas trabalhadoras do campesinato duradoura e sistemática assistência no campo produtivo.

Não é óbvio que as massas trabalhadoras do campesinato, sofrendo de uma antiga falta
de equipamento agrícola, estavam fadadas a aceitarem avidamente esta assistência e se unir ao
movimento de cultivo coletivo?

Seria surpreendente se de agora em diante o velho slogan dos trabalhadores, “volte-se


ao campo” fosse agora suplementado, como parece provável, por um novo slogan dos
camponeses de fazendas coletivas, “volte-se para a cidade”?

Por ultimo, este sucesso sem precedentes no desenvolvimento de fazendas coletivas


decorre de tal questão ter sido abordada pelos trabalhadores mais motivados de nosso país.
Estou me referindo às brigadas de trabalhadores, dezenas e centenas das quais estão
espalhadas pelas principais regiões do nosso país. Deve ser reconhecido que de todos os
possíveis e existentes propagandistas do movimento de coletivização entre as massas
camponesas, propagandistas operários são os melhores.O que pode haver de surpreendente no
fato de os trabalhadores terem conseguido convencer os camponeses quanto às vantagens
inerentes ao cultivo coletivizado em larga escala em comparação ao cultivo de pequeno porte,
especialmente na medida em que fazendas coletivas e estatais que já existem são exemplos
tão claros de tais vantagens?

Esta foi a base de nossas conquistas no desenvolvimento de fazendas coletivas, uma


conquista que, na minha opinião, foi a nossa mais importante e decisiva conquista nos últimos
anos.

Todas as objeções levantadas pela “ciência” contra a possibilidade e a conveniência de


se organizarem grandes fábricas de grãos entre 40.000 e 50.000 hectares se esmigalharam em
304

pedaços. A prática refutou as conclusões da “ciência”, e novamente demonstrou que não


apenas a prática deve aprender com a “ciência”, mas que a “ciência” também deve aprender
com a prática.

Grandes fábricas de grãos não se firmaram em países capitalistas. Mas nosso país é
socialista. Esta “pequena” diferença não deve ser ignorada.

Em países capitalistas grandes fábricas de grãos não podem ser organizadas sem que
previamente se compre diversos lotes de terra ou sem que se pague um grande valor de
aluguel, o que não pode deixar de onerar a produção com gastos colossais, pois em tal
contexto a propriedade privada é permitida. Em nosso país, por outro lado, nem o aluguel da
terra, nem a compra e venda de terra existem, o que resulta na criação de condições
favoráveis para o desenvolvimento de grandes fazendas produtoras de grãos, na medida em
que em nosso país não á posse privada de terra.

Em países capitalistas grandes fazendas produtoras de grãos almejam obter o máximo


de lucro, ou no mínimo, um lucro equivalente ao que se chama grau médio de lucro, sem o
qual, em termos gerais, não haveria incentivo para o investimento de capital na produção de
grãos. No nosso país, pelo contrário, as grandes fazendas produtoras de grãos, por serem
empreendimentos estatais, não necessitam maximizar seus lucros, ou almejar por um grau
médio de lucro. Elas podem se limitar a um lucro mínimo, e por vezes até sem lucro, o que
novamente cria condições favoráveis para o desenvolvimento de grandes fazendas produtoras
de grãos.

Por fim, sob o capitalismo grandes fazendas produtoras de grãos não gozam de
privilégios especiais relacionados a impostos ou crédito, enquanto no sistema soviético, que é
voltado para o setor socialista, tais privilégios existem e continuarão a existir.

A prezada “ciência” esqueceu isso tudo. Se esmigalharam as afirmativas dos


oportunistas de direita (grupo de Bukharin) de que:

a) os camponeses não ingressariam nas fazendas coletivas,

b) o desenvolvimento acelerado de fazendas coletivas causaria descontentamento


generalizado e afastamento entre o campesinato e a classe operária,

c) o caminho ideal do desenvolvimento socialista no campo não estava na fazenda


coletiva, mas no estabelecimento de cooperativas,
305

d) o desenvolvimento de fazendas coletivas e a ofensiva contra elementos capitalistas


no campo poderiam privar o país de grãos.

Tudo isso se esfacelou como lixo burguês liberal

Em primeiro lugar, os camponeses estão ingressando em fazendas coletivas; vilarejos,


volosti, distritos inteiros.

Em segundo lugar, o movimento de coletivização em massa não está enfraquecendo, e


sim fortalecendo o vínculo entre campesinato e operários ao coloca-lo sobre um novo alicerce
de produção. Agora até mesmo os cegos podem ver que qualquer descontentamento mais
sério entre a maioria da massa camponesa não decorre da política de coletivização do governo
soviético, mas porque o governo soviético é incapaz de acompanhar o ritmo de crescimento
do movimento de coletivização em relação ao suprimento de máquinas e tratores aos
camponeses.

Em terceiro lugar, a polêmica relativa ao “caminho ideal” para o desenvolvimento do


socialismo no campo é uma polêmica acadêmica, digna de liberais pequeno-burgueses como
Eichenwald e Slepkov. É óbvio que, enquanto não havia forma alguma de coletivização em
massa, o “caminho ideal” consistia das formas inferiores de movimento cooperativo –
cooperativas de suprimento e comercialização; porém quando uma forma mais elevada de
movimento cooperativo – a fazenda coletiva – surgiu, esta se tornou o “caminho ideal” para o
desenvolvimento

O caminho ideal (sem aspas) para o desenvolvimento do campo é o plano cooperativo


de Lenin, que encompassa todas as formas de cooperação agrícula, desde a mais baixa
(cooperativas de suprimento e comercialização) à mais alta (cooperativas de fazendas
coletivas). Contrapor-se às fazendas coletivas em prol de cooperativas equivale a zombaria do
Leninismo e ao reconhecimento de sua própria ignorância.

Em quarto lugar, mesmo o cego é capaz de ver que sem essa ofensiva contra os
elementos capitalistas no campo, e sem o desenvolvimento de fazendas coletivas e estatais,
nós não teríamos conquistado as vitórias decisivas deste ano em relação à requisição de grãos,
tampouco poderia o Estado ter acumulado, como o fez, uma reserva de emergência de grãos
equivalente a dez milhões [de] pudov

Mais do que isso, pode-se agora afirmar com convicção que, graças ao crescimento
das fazendas coletivas e estatais, estamos definitivamente nos recuperando, ou já o fizemos,
da crise de grãos. E se o desenvolvimento de fazendas estatais e coletivas for acelerado, não
306

há motivo para se duvidar que em torno de três anos nosso país se tornará um dos maiores
produtores de grãos no mundo, senão o maior.

Qual é a nova característica do atual processo de coletivização? A nova e decisiva


característica do atual processo de coletivização é que os camponeses estão ingressando nas
fazendas coletivas não como grupos separados, como antes era o caso, mas em vilarejos,
volosti, distritos e mesmo okrugs inteiros

E o que isso significa? Significa que agora o camponês de médio porte está se unindo
à fazenda coletiva. Este é o aspecto fundamental do desenvolvimento da agricultura que
constitui a conquista mais importante do governo soviético durante o último ano.

A “concepção” menchevique trotskista de que a classe operária é incapaz de angariar o


apoio da massa campesina como um todo em busca do trbaalho para a construção do
socialismo está ruindo e sendo destruida em pedaços. Agora até os cegos podem ver que o
camponês de médio porte se voltou para a fazenda coletiva. Agora é nítido para todos que o
plano quinquenal da indústria e da agricultura é um plano quinquenal para a construção de
uma sociedade socialista, e que aqueles que não acreditam na factibilidade de
desenvolvimento pleno do socialismo em nosso país não tem o direito de celebrar nosso plano
quinquenal.

A última esperança dos capitalistas de todos os países, que sonham em restaurar o


capitalismo na URSS – “o princípio sagrado da propriedade privada” – está se esfacelando em
poeira. Os camponeses, que são considerados como o material que fertiliza o solo aos olhos
do capitalismo, estão abandonando maciçamente o celebrado estandarte da “propriedade
privada” e estão se unindo às noções do coletivismo, do socialismo. A última esperança para a
restauração do capitalismo está se esfacelando.

Isso explica, diga-se de passagem, os esforços desesperados dos elementos capitalistas


de nosso país em instigar todas as forças do velho mundo contra o avanço do socialismo –
esforços que estão levando a uma intensificação da luta de classes. O capital não quer “se
tornar” socialismo.

Isso também explica os furiosos brados contra o Bolchevismo que foram recentemente
levantados pelos cães de guarda do capital, pelos Struves e Hessens, pelos Milyukovs e
Kerenskys, pelos Dans e Abramoviches e afins. A última esperança para a recuperação do
capitalismo está desaparecendo – isto para eles não é uma piada.

Que outra explicação pode haver para a violenta fúria de nossos inimigos de classe e
para este frenesi de indignação por parte dos aduladores do capital, exceto pelo fato de que
307

nosso partido de fato conquistou uma vitória decisiva no front mais desafiador da construção
capitalista?

“Apenas se conseguirmos demonstrar na prática”, diz Lenin, “aos camponeses as


vantagens do cultivo comum, coletivo, cooperativo do solo, apenas se conseguirmos
auxiliar o camponês através do cultivo cooperativo, a classe operária, que detém o
poder estatal em suas mãos conseguira demonstrar ao camponês a validade de sua
política e de fato assegurar o apoio real e a longo prazo das vastas massas do
campesinato”. (Vol. XXIV, p. 579).

Dessa maneira Lenin delineou os caminhos através dos quais a classe operária seria
capaz de cooptar as vastas massas camponesas, capaz de atrair os camponeses ao
desenvolvimento de fazendas coletivas.

O último ano demonstrou que o Partido está executando esta tarefa com sucesso e de
forma resoluta está superando todos os obstáculos que a ele se interpõem.

“Em uma sociedade comunista”, diz Lenin, “os camponeses de médio porte passarão
ao nosso lado apenas quando nós mitigarmos e aprimorar suas condições
econômicas. Se amanhã nós pudéssemos oferecer 100.000 tratores de primeira linha,
oferece-los com combustível, oferece-los com operadores (vocês sabem muito bem
que no momento isso é uma fantasia), o camponês de médio porte diria: ‘eu sou a
favor da comuna’ (portanto, a favor do comunismo). Mas para realizar isso nós
precisamos primeiro derrotar a burguesia internacional, nós precisamos compeli-la a
nos entregar estes tratores, ou precisamos desenvolver nossa produtividade a um
grau que nos permita produzi-los pode conta própria. Esta é a única maneira
adequada de se enfrentar esta questão” (Vol. XXIV, p. 170).

Dessa forma Lenin delineou a questão relativa à tarefa de reequipar tecnicamente o


camponês de médio porte, relativa às maneiras de o atrair para o comunismo.

O ultimo ano demonstrou que o partido também está lidando de forma bem-sucedida
com esta tarefa. Nós sabemos que até a primavera do próximo ano, 1930, teremos mais de
60.000 tratores nos campos, e um ano depois teremos mais de 100.000 tratores, e dois anos
após este, mais de 250.000 tratores. Nós somos agora capazes de realizar e até superar aquilo
que era considerado “fantasia” há anos atrás.

É por isso que o camponês de médio porte está se voltando para a comuna.

Esta é a situação relativa à segunda grande conquista realizada pelo nosso Partido no
último ano.

Estas foram as conquistas fundamentais do nosso Partido durante o último ano.


308

Conclusões

Nós estamos progredindo em velocidade máxima pelo caminho da industrialização –


rumo ao socialismo, deixando para trás o ancestral atraso “russo”.

Nós estamos nos tornando um país de metal, um país de automóveis, um país de


tratores.

E quando nós tivermos colocado a URSS no automóvel, e o muzhik no trator, que os


valorosos capitalistas, que tanto se gabam de sua “civilidade”, tentem nos alcançar”! Então
nós veremos quais países serão “classificados” como atrasados, e quais serão considerados
avançados.

J. V. Stalin

3 de novembro, 1929
309

Resolução do Politburo do Comitê central do Partido Comunista (Bolchevique)


Russo

A respeito da Reestruturação das organizações literárias e artísticas, 1932.

O Comitê Central afirma que durante os últimos anos, baseado nos sucessos
significativos da construção socialista, houve uma considerável expansão, tanto
qualitativamente quanto quantitativamente, nas esferas da literatura e da arte.

Há alguns anos, quando ainda existia forte influência de elementos alheios na


literatura, que floresceram particularmente durante os primeiros anos da NEP, e quando os
quadros da literatura proletária ainda eram pequenos, o Partido, de todas as maneiras
possíveis, auxiliou na criação e no fortalecimento de certas organizações proletárias nas
esferas da literatura e das demais formas artísticas, de modo a consolidar as posições dos
escritores proletários e trabalhadores artísticos.

Agora, na medida em que os quadros da literatura e da arte proletária tiveram tempo


para se desenvolver e na medida em que novos escritores se apresentaram advindos das
fábricas, usinas e fazendas coletivas, os parâmetros das organizações artístico-literárias
existentes (VOAPP, RAPP, RAPM etc.) se tornaram em demasiado estreitas e estão
impedindo o contínuo desenvolvimento da criação artística.

Esta situação cria a perigosa possibilidade de transformar tais organizações, que


atualmente servem como meios de mobilização de escritores e artistas soviéticos às tarefas da
construção socialista, em grupos isolados, alheios às tarefas políticas do presente, bem como
aos grandes grupos de escritores e artistas que contribuem com a construção do socialismo.

Destas ciscunstâncias decorre a necessidade de reestruturação das organizações


artístico-literárias e a expansão das bases sobre as quais estas atualmente trabalham

Portanto, o Comitê Central do PCR(b) decide:

1. Liquidar a Associação de Escritores Proletários (VOAPP, RAPP);

2. Unir todos os escritores que apoiam a causa do poder soviético e que desejam
participar na construção do socialismo em uma única União de Artistas Soviéticos
contendo uma facção comunista em seu interior;

3. Executar medida análoga em relação às demais formas artísticas;


310

4. Delegar ao Orgburo a tarefa de tomar as medidas práticas necessárias para a


implementação desta decisão

23 de Abril, 1932

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