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CURRÍCULO: TEORIA E PRÁTICA

ATOS DO CURRÍCULO

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Olá!
Ao final desta aula, você será capaz de:

1. Conceituar “atos de currículo” a partir das contribuições teóricas críticas e pós-críticas do currículo;

2. analisar os diversos aspectos que constituem os atos do currículo, compreendidos como eixo central do

processo curricular: os conteúdos selecionados, a forma como são abordados, organizados, traduzidos em

atividades e avaliados;

3. refletir sobre as conexões entre os atos de currículo e o multiculturalismo, assim como sobre a importância

desses atos na prática docente e na formação das identidades dos alunos, seja pelo seu papel transformador ou

reprodutor da sociedade.

"O currículo é um território em que se travam ferozes competições em torno dos significados. currículo não é um

veículo que transporta algo a ser transmitido e absorvido, mas sim um lugar em que, ativamente, em meio a

tensões, se produz e se reproduz a cultura. Currículo refere-se, portanto, à criação, recriação, contestação e

transgressão".

Antonio Flavio Moreira e Tomas Tadeu Silva (1994)

(...) os/as educadores não poderão ignorar, no próximo século, as difíceis questões do multiculturalismo, da raça,

da identidade, do poder, do conhecimento, da ética e do trabalho que, na verdade, as escolas já estão tendo que

enfrentar. Essas questões exercem um papel importante na definição do significado e do propósito da

escolarização, do que significa ensinar e da forma como os/as estudantes devem ser ensinados/as para viver em

um mundo que será amplamente globalizado, ‘high tech’ e racialmente diverso que em qualquer outra época da

história.”

Henry Giroux (1995)

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Figura 1 - Henry Giroux

Quais os desafios que se colocam na sociedade contemporânea em relação ao papel da escola e do currículo na

perspectiva de uma educação de qualidade para todos e todas, pautada nos princípios democráticos e

multiculturalmente orientada?

Que conhecimentos são relevantes nos tempos pós-modernos?

O que a escola deve ensinar e por quê?

Quais as relações entre o conhecimento escolar, a cultura e o poder?

Nesta aula, aprofundaremos o olhar sobre os novos desafios que se impõem na sociedade contemporânea, pós-

moderna, e sobre a importância da cultura nos processos de controle e mudança social que se configuram na

instituição escolar, tentando esboçar respostas, mesmo que provisórias, para estas questões.

Para isso, começaremos nossa reflexão retomando alguns pontos analisados na aula anterior e ampliando a

discussão sobre a abordagem multiculturalista, de forma a subsidiar o debate sobre os atos de currículo.

1 Tempos pós-modernos: novos desafios para a prática


educativa
A clássica compreensão de que a escola é um espaço social onde se ensina e se aprende, parece estar, nos tempos

atuais, a exigir com urgência ressignificações.

Se orientarmos a discussão para refletir e ou definir sobre o que a escola deve ensinar (para citarmos apenas um

dos aspectos que esta compreensão pode envolver), encontraremos posicionamentos e formulações teóricas

bastante distintas, algumas delas complementares e outras excludentes ou contraditórias, que se revelam,

também, na formulação das propostas curriculares.

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Contudo, a reflexão sobre o papel dos conhecimentos escolares e a relevância e centralidade da cultura nos

processos de construção das identidades dos alunos/as tem caracterizado o debate acerca do tema e nos

impulsionam a analisar de que forma as modificações que vêm ocorrendo na sociedade, seja no âmbito da

economia, da política, da cultura, das interações sociais, é significada e trabalhada nas salas de aula.

Portanto, a reflexão sobre o que a escola deve ensinar está profundamente vinculada ao debate sobre como as

transformações sociais vêm interferindo na construção das identidades dos sujeitos e de que forma a cultura

assume um papel central nesse processo.

Tais evidências, inseridas na complexidade que caracteriza as transformações sociais do mundo contemporâneo,

nos remetem a Forquin (1993) que, ao abordar as relações entre escola, cultura e modernidade, referenciado por

dois outros autores - Paul Lengrand e Joffre Dumazedier - observa:

“(...) que o mundo muda sem cessar: eis aí certamente uma velha banalidade. Mas para aqueles que

analisam o mundo atual, alguma coisa de radicalmente nova surgiu, alguma coisa mudou na própria

mudança: é a rapidez e a aceleração perpétua de seu ritmo, e é também o fato de que ela se tenha

tornado um valor enquanto tal, e talvez o valor supremo, o próprio princípio da avaliação de todas as

coisas (...). Em quê o mundo muda, por quê, em quais direções? (1993, p. 18,19)

Mais especificamente, coloca-nos a emergência de buscarmos resposta para uma questão colocada inicialmente,

e que neste contexto pós-moderno se amplia, se complexifica:


• Qual deve ser, então, a natureza dos conteúdos que a escola deve ensinar?
• O que eles devem contemplar?
• Ou, mais elementarmente: afinal, o que deve ser ensinado nas escolas?
Responder a essas indagações implica desvendar a natureza dessa “aceleração perpétua” que tem produzido

tantos dilemas e incertezas, neste conturbado tempo em que vivemos. Exige o enfrentamento do desafio de

encontrar caminhos, possíveis e realizáveis, para redefinirmos o papel social que a escola deve ocupar, nesse

contexto em que se deslocam para outros espaços sociais a difusão da cultura e a incorporação do conhecimento

socialmente produzido.

2 No que se refere ao ensino fundamental no Brasil:


A partir da Conferência de Jontiem e da elaboração do Plano Decenal de Educação para Todos do MEC, que tem

como prioridade a universalização da oferta de ensino e a melhoria da qualidade da escola básica, a definição

sobre os conteúdos que devem constituir os currículos de 1ª à 4ª série tem sido motivo de muita polêmica, e de

muitas tentativas de respostas a essas questões.

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Secretarias de Educação, sejam estaduais ou municipais, têm produzido inúmeras versões de propostas

curriculares nos últimos anos. Assim como, a exemplo de outros países, foi feito a nível federal, pela Secretaria

de Educação Fundamental do MEC, a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Da mesma forma, estudos produzidos no campo do currículo vêm apresentando contribuições que alimentam o

debate e revelam a complexidade do tema.

Ganha terreno, nesta área, uma diversidade de estudos que busca estabelecer relações entre o currículo e

diferentes aspectos que caracterizam as discussões sobre cultura, educação e reformas do sistema educativo.

3 Na linha dessas reflexões, podemos ressaltar os estudos


sobre:
• A cultura que a escola seleciona e privilegia - o conhecimento escolar;
• as diferenças culturais dos grupos sociais;
• as culturas de grupos minoritários ou excluídos;
• as relações entre a cultura do aluno e a cultura mais ampla;
• a ênfase na prática participativa, sobretudo de professores e alunos, na construção do currículo;
• os processos de elaboração de propostas curriculares no âmbito das políticas de reformas educacionais.
• os processos de elaboração de propostas curriculares no âmbito das políticas de reformas educacionais.

4 Alternativas para o currículo: multiculturalismo e


diversidade cultural
Ao se referir às relações existentes entre cultura e escola, Silva (1995) denuncia o enorme distanciamento “entre

as experiências atualmente proporcionadas pela escola e pelo currículo e as características culturais (...),”

próprias da realidade social. Para ele:

“no novo mapa cultural traçado pela emergência de uma multiplicidade de atores sociais e por um

ambiente tecnicamente modificado, a educação institucionalizada e o currículo continuam a refletir,

anacronicamente, os critérios e os parâmetros de um mundo social que não mais existe.” (p. 185)

A desconstrução dos discursos e das narrativas hegemônicas e dominantes pela afirmação de narrativas e

discursos alternativos dos grupos subjugados socialmente, devem ser, segundo o autor, um compromisso

incorporado pela escola.

Para isso, indica quatro componentes centrais representativos das novas configurações culturais e sociais que

devem constituir-se como objeto de reflexão para a pedagogia e o currículo.

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5 Componentes Centrais
• Caráter dominante masculino e patriarcal

O primeiro refere-se ao caráter predominantemente masculino e patriarcal que atravessa as várias

instâncias sociais e suas implicações para as relações que se estabelecem na escola e a expressão disso

corporificada pelo currículo. Para ele, é central que se desestabilize essa situação. E, apesar de

considerar que esta questão nos coloca uma série de dilemas e dificuldades, aponta para a importância

de pensarmos seriamente formas de introduzir o ponto de vista e a experiência feminina na escola e no

currículo.

• Relação cultural entre povos e nações

Outro componente trata da relação cultural entre povos e nações dominantes e povos e nações

dominadas e se insere na perspectiva crítica denominada pós-colonialismo. Para o autor, os processos de

reprodução e perpetuação de relações de poder determinados pela hegemonia de uma determinada

cultura sobre a outra devem ser desestabilizados e dasalojados pela escola e pelo currículo. Neste

sentido, Silva (1995) argumenta que: “Num mundo como este, no qual conhecimento e poder estão

intimamente entrelaçados e no qual os saberes subjugam, é extremamente importante uma perspectiva

educacional e curricular que permita o desenvolvimento de visões alternativas das relações de

dominação e subordinação entre culturas e nações.” (p. 194).

• Novo cenário cultural

Um terceiro aspecto destacado pelo autor aponta a necessidade de a escola rever posições para lidar com

o novo cenário cultural representado pela difusão e generalização das novas mídias. Para ele, tais

transformações:

“não podem ser interpretadas no registro conservador do pânico moral e da visão patologizante que vê a

ampliação da influência da cultura popular e o predomínio dos novos meios e conteúdos culturais como

uma ameaça a tradicionais valores e capacidades supostamente mais universais, humanos e superiores.”

(p. 198)

• Estudos culturais

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Como último componente, o autor evidencia as contribuições de trabalhos desenvolvidos no campo dos

Estudos Culturais, colocando em destaque a ideia do multiculturalismo. Nessa direção, sublinha que os

diferentes aspectos do debate sobre o multiculturalismo, movimentos e identidades sociais devem ser

incorporados ao processo de reflexão sobre a prática educativa, pois tal perspectiva

“pode ser imediatamente transportada ao âmbito da escola e do currículo, pois as relações aí envolvidas

não são abstratas e removidas do âmbito da prática. Elas estão presentes, manifesta e diretamente, no

cotidiano de todos nós e no cotidiano da escola e do currículo.” (p.197).

Da mesma forma, Candau ao discutir os conceitos de Multiculturalismo e Interculturalismo e suas implicações no

campo educacional da América Latina, analisa as origens e os avanços destas correntes, assinalando que tais

perspectivas, embora venham ocupando um espaço “crescente no nível internacional”, no contexto da América

Latina, permanecem sendo “um desafio”.

Como destaca a autora, muito embora possamos reconhecer que, desde o início do século, em alguns países

latino-americanos tenham se desenvolvido experiências educativas “orientadas a atender de modo mais

adequado a diferentes grupos sociais e culturais marginalizados”, como no caso das populações indígenas.

O que pode nos indicar a “hipótese de que a preocupação por uma educação que respeite a diversidade cultural

emerge de modo original na América Latina e é muito anterior ao atual movimento de valorização desta

perspectiva que se desenvolve no plano internacional.”- nossas escolas ainda permanecem cultivando uma

cultura de “caráter monocultural”.

Basta observar, como nos assinala a autora, que

“o sistema público de ensino em nosso país (...), além de estar longe de garantir a democratização

efetiva do direito à educação e ao conhecimento sistematizado, terminou por criar uma cultura

escolar padronizada, ritualística, formal, pouco dinâmica (...) e está referida à cultura de

determinados atores sociais, brancos, de classe média, de extrato burguês e configurados pela

cultura ocidental, considerada como universal.”

Outra questão discutida pela autora diz respeito à diferença que é preciso estabelecer entre o significado dos

termos multiculturalismo e interculturalismo, “muitas vezes utilizados como sinônimos”.

Tal concepção deve refletir inúmeros aspectos envolvidos nos processos de interação que ocorrem em sala de

aula.

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Nesses processos professores e alunos entrecruzam “crenças, aptidões, valores, atitudes e comportamentos.” (p.

88) - conferindo ao que se aprende ou ao que se deixa de aprender uma dimensão real que não se limita aos

conteúdos propostos e expressos no currículo escrito.

Assim considerado, “um currículo multicultural no ensino implica mudar não apenas as intenções do que

queremos transmitir, mas os processos internos que são desenvolvidos na educação institucionalizada.” (p.88).

É preciso, dessa forma, reorientar a formação docente para evitar que se perpetuem visões e atitudes de não

valorização de grupos sociais diversos e socialmente excluídos, considerar criticamente a utilização de materiais

pedagógicos e, particularmente, dos livros didáticos que se apresentam carentes de uma visão multicultural,

assim como levar em conta o conhecimento prévio dos alunos, obtido pelas experiências cotidianas e

extraescolares, como alternativas necessárias e inerentes à viabilização de uma educação multicultural.

Neste sentido, é fundamental aprofundar a reflexão sobre o papel dos atos de currículo neste processo de busca

por uma educação mais democrática, na qual as diferentes representações sociais possam ser contempladas.

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6 Atos de currículo: o currículo corporificado na práxis
• O que são atos de currículo?
• Qual o seu significado e importância numa perspectiva multirreferencial e intercrítica de currículo?
• Quais os seus pontos de contato com a abordagem intercultural?
Estas questões nos ajudam a pensar no currículo em uma das principais instâncias onde ele se corporifica: a sala

de aula.

O termo Atos de currículo é um conceito que vem sendo desenvolvido pelo professor e pesquisador brasileiro

Roberto Sidnei Macedo, no Grupo de Pesquisa em Currículo, Complexidade e Formação / UFBA - Bahia, a partir

de uma perspectiva não formal, multirreferencial e intercrítica de currículo.

ara compreendermos os aportes fundantes deste conceito, procuraremos sintetizar o que se entende por uma

abordagem multirreferencial e intercrítica, segundo Macedo.

Os conceitos de multirreferencialidade e intercrítica encontram-se, nas formulações de Macedo (2007),

dialogicamente interligados, representando uma perspectiva que rompe com a ideia de disciplinaridade, tão

presente nas abordagens modernas e estruturalistas de currículo.

A partir das contribuições de Edgar Morin e de Jacques Adorno, e suas críticas radicais à rigidez prescritiva da

lógica disciplinar, Macedo propõe uma “virada multirreferencial” como alternativa para a compreensão dos

complexos processos curriculares. Quer dizer que olhar o currículo por uma perspectiva multirreferencial e

intercrítica implica, segundo Macedo:

“em trabalhar os saberes como referências constituídas na dialógica da diferenciação, na

referenciação/desreferenciação, sem nenhuma pretensão unificante, nos permite pleitear de forma

muito mais fecunda e coerente a intercriticidade nos âmbitos dos atos de currículo.” (2007, p. 82)

Trabalhar o currículo nesta perspectiva é entender o currículo de forma heterogênea, não centrado nas

categorias disciplinares, mas incluindo como referências, os múltiplos e diferentes saberes nele implicados, nele

presentes.

É conceber o caráter híbrido do currículo, no sentido de que nele podem coexistir e se confrontarem múltiplas

significações, fecundadas num debate intercrítico e radicalmente democrático (MACEDO, 2007). Significa abrir

espaço para um “diálogo” possível sobre e com a realidade curricular, contemplando diferentes pontos de vista.

Os atos de currículo, entendidos como toda ação socioeducacional através da qual o currículo é corporificado,

têm um papel central nos processos elencados, vistos no texto que você acabou de ler, pois é através deles que os

processos de produção e negociação cultural ocorrerão na escola: na escolha dos conhecimentos que comporão o

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currículo e estarão presentes nas aulas (os conteúdos, as imagens, os textos, as músicas, as artes, o corpo, as

linguagens);

nas formas como os conhecimentos serão organizados e abordados (o que e como estará presente nos cadernos,

nos livros didáticos, nos murais e em outros espaços); no modo como serão tratadas as diferenças (que valores e

visões de mundo serão contemplados); na organização dos espaços e tempos escolares; nas expectativas

positivas ou negativas que projetamos sobre a escola, os alunos, os grupos sociais, sobre nós mesmos.

Um desafio que tem como protagonistas as culturas e suas interfaces.

O que vem na próxima aula


Na próxima aula, você vai estudar:
• Competências e habilidades: as distinções e a complementaridade entre estes conceitos;
• convergências e divergências entre diferentes concepções de currículo por competências, suas
características e implicações para a prática pedagógica.

CONCLUSÃO
Nesta aula, você:
• Compreendeu a centralidade da cultura nos processos educativos da sociedade contemporânea;
• conheceu as contribuições das abordagens multiculturalistas/interculturalistas para a prática
pedagógica;
• conceituou atos de currículo compreendendo sua inserção na abordagem multirreferencial e intercrítica
e sua relevância para a prática educativa.

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