Você está na página 1de 2

Era uma vez o parapeito de uma janela.

Todo mundo que morava naquela casa gostava de ficar ali. Vira e mexe alguém
passando olhava pro lado, via a paisagem, e era impossível não parar, se recostar um pouco,
ficar ali o tempo todo observando o mundo lá fora, viajando, pensando em qualquer coisa.
Parecia que a janela, o vidro e o cimento separavam os moradores de tudo o que viam, a casa
dava pra eles uma distância daquilo que queriam, como se eles próprios não fossem a natureza
que invejavam.
Mas, na verdade, quem ficou mais tempo parado ali foi um inseto. Tem gente que acha
um negócio horrível, um alienígena, aquelas perninhas, as antenas. Curioso é que na sua
insetice ele se enfeitiçava com o pessoal que morava naquela casa. Ficava fascinado. Um dia,
numa quinta-feira, chovia o mundo. Ele vinha voando numa boa, quando caiu o toró, não tinha
árvore ou um lugar mais perto pra se esconder, e o vento o empurrou pra janela, ficou ali no
parapeito, era uma Esparançazinha, verdinha brilhante, pequena. Ninguém deu conta.
Esperando a chuva passar, ficou admirando tudo lá dentro, viajando, pensando em qualquer
coisa. Ficou tão encantada com o que viu que decidiu imitar o pessoal da casa. Nasceu o desejo
de ser como eles.
Quando a chuva passou, vieram abrir a janela, e ela se escondeu no ar-condicionado do
vizinho de cima. Uma garota chegou, parou no parapeito com o celular, digitando, falando com
o namorado. Ria à toa. E a Esperança vendo tudo, copiava as caras da garota, os risinhos, os
áudios que ela mandava, até os suspiros. Mas Esperanças não suspiram, então o que ela podia
fazer era só bater as asinhas fazendo um barulho mal-parecido.
Veio a noite, o pessoal foi cada um pra sua cama, e a nossa amiguinha observando eles
dormirem. Pousou em cima da barriga do moço, subindo e descendo, tentando ficar deitada do
mesmo jeito, com as patinhas pro alto, e subia e descia todas as seis, no mesmo ritmo, sem
sono nenhum.
Quando amanheceu, saiu voando e se escondeu num santinho que tinha no alto da
cozinha. Mãe, filha, pai, avó, vizinha, um tomando café, outro leite, comendo um pão na chapa,
ou um bolinho de bolo. A outra correndo pro trabalho, o outro pra fazer compras, e a Esperança
admirando tudo, toda boba. A avó arrumava a casa, meio cabisbaixa, passando um pano,
guardando a louça, e cantando uma musiquinha: se essa rua, se essa rua fosse minha, eu
mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, para o meu,
para o meu amor passar.... Insetos não cantam, mas a pequenininha tentava marcar o compasso
com as patinhas, tec, tec, tec, toda errada. Ficou maluca com o cheiro do café, imaginava como
seria gostoso mergulhar na caneca, mas sobrou pra ela o bico molhado e frustrado no orvalho
de umas flores do jarro.
Os dias foram passando, e ela deixou de ser visitante pra já se achar moradora da casa.
Ficava se alimentando dos restos de comida que caíam da mesa, que ficavam no lixo. Ela não
se sentia mal com essa vida, afinal a Esperança era humana. Visitava os quartos, o banheiro,
sugava da pia a pasta de dente, cuspia com a gotinha que sobrava no ralo. Pousava certinho na
borda do copo, e bebia a raspinha dos sucos. Se protegia do frio embaixo de qualquer papel,
como se fosse um cobertor. Brincava com o gato da família, voando em cima do focinho,
fugindo de ser comida. Assistia até televisão, beliscando as migalhas jogadas no sofá, e tirava
uma soneca depois do almoço do lado do santinho da família. Quando podia, escondida, fingia
relaxar, dia a dia, sobre o corpo dormente de cada morador.
E essa vida emulada era cada vez mais aperfeiçoada, alcançada pela nossa
Esperancinha.
Num domingo de Páscoa, Jesus morreu pelos pecados do mundo, ressuscitou e se
ouviram os cantos dos anjos no céu. A insetinha não entendia nada disso, mas ficou doida
quando provou uma sujeirinha de chocolate na pia da cozinha, nunca tinha ingerido tanto
açúcar. Voava acelerada, cantando com as patas, brincando com o gato, se escondendo e
bebendo qualquer gota que caía no chão, buscando a si mesma, a Esperança, cada vez mais
humana.
Resolveu ser mais ousada. Não ia mais voar, só andar. Ia usar as asas só pra suspirar,
as patas pra dançar e andar, ia dormir à tarde como o povo preguiçoso. Podia demorar um
tempão, não importava, ia andando.
Depois que o pessoal chegou da missa, veio o almoço, o pessoal cochilando, e a garota
beijando o namorado na janela. A Esperança, que passou um bocado pra sobreviver na casa
movimentada do feriado, com as perninhas cansadas, fez mais um esforço pra descansar no
parapeito. Subiu, como um atleta, e ficou orgulhosa por ter dominado a coisa. Em breve, o
mundo dos humanos seria dela. Ficou olhando pra fora, admirando o pôr do sol, no ápice da
sua humanidade esperançosa.
Ficou tão emocionada que mal cabia no próprio corpinho. Se pudesse, choraria, diante
de tanta beleza. Ficou pensando como seria maravilhoso estar lá fora, voando como os pássaros,
passando pelas nuvens, cantando como os grilos, no farfalhar das árvores... como era bom ser
humana... sobrava a ela só suspirar por tudo isso, e num impulso que nem se deu conta ela
bateu as asinhas num barulho mal-parecido.
O rapaz ouviu o som e se assustou. A namorada esmagou o inseto, jogou pra fora da
janela. E juntos, os dois, entre a casa e a natureza, se agarraram com mais tesão.

Você também pode gostar