Você está na página 1de 88

TALCO DE VIDRO V1

Adaptado da HQ homônima de Marcello Quintanilha


por
César Turim
OVER BLACK

NARRADOR (V.O.)
Quando o dia a acordou, Rosângela
pensou outra vez aquela coisa de
estar, assim... Ai! Não! É meio
difícil de explicar, pra falar a
verdade, porque o pensamento
dela... Não era bem pensamento. Era
mais assim, tipo, uma sensação,
entende?

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - DIA

Imediatamente após o sexo, as costas de um HOMEM nu saem de


quadro e revelam ROSÂNGELA (35) deitada em sua cama, com um
leve sorriso no rosto.

Ela olha para o lado que o Homem saiu e depois para o lado
oposto: a imensa janela de sua cobertura enquadra o mar, as
ruas e as árvores de Niterói acordando com o sol.

Suspira, satisfeita.

Rosângela se levanta, anda em silêncio até a porta do


banheiro e, sempre sorrindo levemente, assiste ao Homem tomar
uma ducha. É MÁRIO (40), seu marido.

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - DIA

Sentada na mesa com o café já servido, Rosângela se concentra


em seu celular com a testa levemente franzida.

Ouve passos correndo escada a baixo, guarda seu celular e vê


MANUELA (9) e TIAGO (7), com mochilas nas costas e celulares
em mãos, prontos para escola. Eles se juntam a ela na mesa.

ROSÂNGELA
Bom dia.

MANUELA E TIAGO
(focados nos celulares,
sem ânimo)
Bom dia...

Rosângela fica um pouco irritada.

ROSÂNGELA
Manuela. Tiago.

MANUELA
Hum?

TIAGO
Quê?
2.

ROSÂNGELA
Vocês lembram da conversa que a
gente teve sobre celular na mesa?

Constrangido, Tiago guarda seu celular, tentando evitar o


olhar da mãe.

Manuela continua digitando.

MANUELA
Pera, só um pouquinho...

ROSÂNGELA
Agora.

Manuela guarda o celular e levanta as mãos: “desculpa aê”.

Rosângela encara os dois comendo. Abre a boca para lhes


perguntar algo, mas não sabe o quê. Finalmente:

ROSÂNGELA (CONT’D)
Dormiram bem?

MANUELA
(sem olhar para a mãe)
Anran.

TIAGO
(concentrado na comida)
Sim.

ROSÂNGELA
Que bom... Eu também...

As crianças continuam comendo, sem ligar para a presença da


mãe.

Rosângela quer continuar a conversa, mas não sabe como.

Até que Tiago olha para ela com um sorriso malicioso.

TIAGO
Eu acho que a Manuela não dormiu
bem.

Imediatamente, Manuela para de comer e lança um olhar


aniquilador para o irmão.

ROSÂNGELA
Ah, é? Por que, Manuela? Pesadelo?

TIAGO
Não. Ela ficou jogando no
computador até bem depois da hora
de dormir.

Manuela dá um soquinho no braço do irmão.


3.

MANUELA
Cala a boca! Seu fedido--

ROSÂNGELA
Manuela!

Tiago começa a chorar.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Isso é verdade? Eu vou ter que
tirar seu computador de nov--

Tiago chora mais alto.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Tiago! Chega!

Tiago se cala, assustado.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(para Tiago)
Machucou de verdade?

TIAGO
Não...

ROSÂNGELA
Então não tem por que chorar, né?

Cabisbaixo, Tiago não responde.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Né?

TIAGO
É... desculpa...

ROSÂNGELA
E você, Manuela?

MANUELA
(para Tiago)
Desculpa.

ROSÂNGELA
E computador agora só de dia pra
fazer trabalho de escola durante
uma semana.

MANUELA TIAGO
Mas mãe, eu nem fiquei tanto Bem feito. Foi de uma hora!
tempo assim. Foi só um jogo Uma hora--
de vinte minutos. De dez
minutos--

Passos pesados descendo as escadas fazem os três ficarem em


silêncio e fixarem o olhar na porta da cozinha. Até que--
4.

Mário, vestido de terno, entra.

MÁRIO
Bom dia.

MANUELA
Pai!

Tiago abraça a cintura de Mário com força e os olhos fechados


enquanto ele e Manuela fazem seu aperto de mão “secreto”.

MÁRIO
Que gritaria toda foi essa?

MANUELA TIAGO
(envergonhada) (envergonhado)
Num foi nada... Nada...

Mário se senta ao lado de Rosângela e dá um selinho nela.

MÁRIO (CONT’D)
(para Rosângela)
Tá tudo bem, Rô?

ROSÂNGELA
Tá. É só a Manuela no computador de
noite de novo.

MÁRIO
(para Manuela, bravo, mas
amigável)
Pô, Manuela. Hora de dormir é hora
de dormir, né, cara?

MANUELA
É...

TIAGO
(baixinho, para Manuela)
Fedida.

Antes de Manuela dar um soquinho no braço dele novamente...

ROSÂNGELA
Vamos parar?

Manuela abaixa o muque.

MÁRIO
(olhando para um bolo na
mesa)
Opa...

Mário corta um pedaço de bolo.

MÁRIO (CONT’D)
A Madalena fez meu bolo de novo.
Cadê ela?
5.

ROSÂNGELA
Tá... lavando roupa. Na área de
serviço.

Mário estica o corpo para cima, em direção à área de serviço.

MÁRIO
(alto, com a boca cheia)
Tá uma delícia, Madá!

ROSÂNGELA
Escuta... Cê pode levar as crianças
hoje? Queria chegar mais cedo no
consultório.

MÁRIO
Claro.

MANUELA TIAGO
Oba! Eeeee!

Rosângela e Mário trocam um sorriso.

MÁRIO (CONT’D)
E quem vai dirigindo no meu colo
dessa vez?

As duas crianças imediatamente levantam a mão.

ROSÂNGELA
Escuta... Isso num é meio perigoso,
Mário?

MÁRIO
(condescendente)
Magina.
(rindo, para as crianças)
Tá. Hoje quem vai é...

Eles ficam na expectativa.

MÁRIO (CONT’D)
...A Manuela.

MANUELA
Yes!

TIAGO
Ah! Não vale. Ela que foi da última
vez. Era a minha vez.

MÁRIO
É verdade. Sinto muito, Manu. É a
vez do Tiago.

TIAGO
(imitando o Manuela)
Yes!
6.

MANUELA
Tudo bem. Eu vou na volta.

ROSÂNGELA
(para o Mário)
O Tiago, é melhor não.

MÁRIO
Não se preocupa, Rô. Eu tomo
cuidado.

ROSÂNGELA
Tá bom.

MÁRIO
Te vejo no almoço?

ROSÂNGELA
Claro.

Rosângela dá um selinho em Mário, se levanta e vai até a pia,


com alguma louça suja.

MÁRIO
(para os filhos)
Então, vamos acabar de comer que
está quase na hora.

Rosângela se vira em direção a área de serviço.

ROSÂNGELA
(alto)
Madalena. Num precisa se preocupar
com a louça que eu lavo, viu?

Enquanto Rosângela põe os pratos sujos no lava-louças, ela


assiste à sua família com seu sorriso leve, distante, não
completo.

EXT. PORTARIA DO PRÉDIO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela, bolsa e chave do carro em mãos, passa pelo


porteiro, MARINHO (55), tomando seu café em um copo
americano.

ROSÂNGELA
Marinho. Tudo bem? Bom dia.

MARINHO
Bom dia, D. Rosângela. Tudo bem. E
com a senhora?

ROSÂNGELA
Tudo. Escuta...

MARINHO
Tô escutando.
7.

ROSÂNGELA
Oi?

MARINHO
Tô escutando, D. Rosângela. Pode
falar.

ROSÂNGELA
(risadinha sem graça)
Ah, tá. Escuta...

MARINHO
Tô escutand--

ROSÂNGELA
Tá escutando, é verdade. Vai chegar
uma encomenda pra mim hoje, é um
pacote que é muito importante. E eu
não queria deixar ele aqui na
portaria.

MARINHO
Que isso, D. Rosângela? A senhora
pode ficar tranquila que eu cuido
direitinho das coisas aqui.

ROSÂNGELA
Eu sei, Marinho. Num é isso. Eu só
quero que o pacote vá direto pro
apartamento, entende?

MARINHO
A senhora que sabe.

ROSÂNGELA
Pois é. Mas como eu não vou estar
aqui, eu já instruí a Madalena para
assinar por mim. Não deve dar
problema nenhum.

MARINHO
Tá certo, D. Rosângela.

ROSÂNGELA
Então, quando a encomenda chegar,
cê toca lá e avisa ela, tá? Vocês
se entendem, né?

MARINHO
Pode deixar. Tenha um bom dia, D.
Rosângela.

ROSÂNGELA
Você também, Marinho. Bom dia.

Marinho, simpático, assente com a cabeça enquanto Rosângela


vai embora.
8.

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela, concentrada no trânsito, dirige seu Honda Civic


pelas ruas de Niterói.

NARRADOR (V.O.)
É... uma sensação, sabe? Assim, de
como se ela pertencesse a um
círculo... Digamos... Mais elevado.
E se não fosse assim, se não fosse
verdade, se não fosse sabido por
todos, pergunte ao porteiro do
prédio, dizendo ‘Bom dia, D.
Rosângela’ todo dia de manhã...

INT. SAGUÃO DE PRÉDIO COMERCIAL - DIA

Rosângela entra em um prédio, a RECEPCIONISTA (28) a


cumprimenta e o narrador continua:

NARRADOR (V.O.)
...ao moço do estacionamento; a
essa pá de gente olhando o carro
dela de rabo de olho, sem poder
comprar um igual...

INT. ELEVADOR DE PRÉDIO COMERCIAL - DIA

No elevador lotado, Rosângela e seu sorriso não completamente


satisfeito.

NARRADOR (V.O.)
Pergunte que você vai ver... É mais
ou menos como se você se visse na
pele de uma pessoa especial, que
sabe que existe miséria no mundo,
mas que... Não pode fazer nada, né?

Abrem-se as portas do elevador e Rosângela sai.

NARRADOR (V.O.)
É chato, é triste... Mas fazer o
quê?

INT. CORREDOR DO CONSULTÓRIO DE ROSÂNGELA

Rosângela se dirige ao se consultório, vasculhando sua bolsa.

NARRADOR (V.O.)
Onde é que ela deixou a chave, meu
deus?

Rosângela para na frente da porta de seu escritório com uma


placa que diz:
9.

“Dentista
Dra. Rosângela de Amaral”

NARRADOR (V.O.)
“Ah, tá aqui!”

Rosângela tira a chave da bolsa e abre a porta.

INT. SALA DE ESPERA DO CONSULTÓRIO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela entra em seu consultório e encontra sua assistente


IRMA (45).

ROSÂNGELA
Bom dia, Irma.

IRMA
Bom dia, Dra. Rosângela. O paciente
das oito desmarcou. Disse que
depois liga pra agendar outra hora.

ROSÂNGELA
Tudo bem... Mas você podia ter me
ligado avisando, né, Irma? Dava
tempo de eu levar meus filhos na
escola.

IRMA
Desculpa, Dra. Rosângela. Eu só num
avisei porque veio uma paciente sem
horário marcado, daí eu pensei que
senhora podia atendê--

ROSÂNGELA
A gente não atende sem horário
marcado.

IRMA
Mas ela disse que era sua prima.
Daniele.

Rosângela congela, tensa. Seu sorriso some do rosto.

IRMA (O.S.) (CONT’D)


Eu já até preparei ela na cadeira.
Eu posso mandar ela embora se a
senhora preferir.

Rosângela se aproxima lentamente do consultório.

Pega a maçaneta. Respira fundo.

Abre a porta e vê--

DANIELE (30), que imediatamente para de brincar com os


aparelhos odontológicos, pula da cadeira de dentista e sorri
para ela.
10.

Um sorriso pleno, cheio de vida.

Rosângela tenta forçar um sorriso de volta quando--

FLASHBACK: EXT. BARRETO - DIA/NOITE

Imagens da pequena cidade de Barreto. Vazia. Quase


assombrada.

NARRADOR (V.O.)
Daniele. A prima do Barreto. Sabe
aquela prima de primeiro grau do
Barreto? Essa mesmo. Elas tinham
mais ou menos a mesma idade. Mas
Daniele nunca fez parte do círculo.

FLASHBACK: INT. CASA DOS PAIS DE DANIELE - NOITE

A silhueta de uma menina assustada, Daniele, encostada em uma


parede.

NARRADOR (V.O.)
Ela sempre teve uma vida difícil.

A silhueta de Tio Wagner cambaleando bêbado e vomitando no


chão.

NARRADOR (V.O.)
Imagine o que é você ser criança e,
dia sim, dia não, ter que limpar o
chão do vômito do seu pai. Chega
uma hora que você só pensa em sumir
dali.

A silhueta do vômito de Tio Wagner escorre até o pé da


silhueta de Daniele menina.

FLASHBACK: EXT. PRÉDIO DE DANIELE - NOITE

Em uma das centenas de pequenas janelas do prédio, a silhueta


de Daniele mais velha e a de um HOMEM (28) discutindo.

NARRADOR (V.O.)
Que você só pensa em casar. Porque
você jura pra você mesma que não
vai ter que aguentar tudo o que sua
mãe aguentou. Mas o problema é que
quando Daniele se casou, ela apenas
trocou o vômito do pai pelo cuspe
do marido na cara.
11.

FLASHBACK: INT. SALA DE DANIELE - NOITE

A silhueta de Daniele adulta encostada na parede, limpando o


cuspe de seu marido da cara.

NARRADOR (V.O.)
E Rosângela que era calma, boa e
tranquila podia dizer que-- É, é
isso mesmo. Podia dizer que tinha
pena da prima, pronto!

VOLTA PARA:

INT. CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO DE ROSÂNGELA - DIA

De volta ao presente.

Rosângela tentando sorrir.

NARRADOR (V.O.)
Mas essa pena nunca era completa.
Por causa daquele sorriso no rosto
de Daniele.

E o sorriso inalcançável de Daniele.

NARRADOR (V.O.)
Que apesar do Barreto, do vômito e
do cuspe, não baixava a crista.
Aquele sorriso que fazia com que o
círculo elevado de Rosângela, de
repente, desaparecesse.

DANIELE
Tudo bem?

ROSÂNGELA
Oooi, e aí? Tudo bom?

Elas se cumprimentam com um beijo na bochecha.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Olha, cortou o cabelo? Ficou ótimo.

DANIELE
Eu pedi pra deixar picotadinho
assim, nas pontas assim, tipo como
se estivesse mal cortado.

ROSÂNGELA
Tá ótimo.

DANIELE
Ficou bom, né?
12.

ROSÂNGELA
Não. Ficou ótimo. E você tá aqui de
prima ou paciente?

Daniele tira uma obturação solta do bolso.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(rindo)
Que que aconteceu, menina?

Rosângela pega a obturação e a examina.

DANIELE
Num sei. Caiu enquanto eu tava
comendo bolacha.

ROSÂNGELA
Tem que escovar esses dentes três
vezes por dia.

DANIELE
Eu sei.

ROSÂNGELA
E passar fio dental.

DANIELE
Eu passo. É que essa eu fiz quando
era criança. Aquele dentista do
Barreto num era dos melhores.

ROSÂNGELA
A gente conserta pra você.

Rosângela começa a vestir seu uniforme. Daniele senta-se na


cadeira de operação de forma divertida, quase infantil.

ROSÂNGELA (CONT’D)
E a Tia Bel? Como anda?

DANIELE
Tá lá, né? Bem mais calma agora.

ROSÂNGELA
Tia Bel mais calma? Que que ela
fez? Aumentou a dose do calmante?

Daniele ri.

DANIELE
Ela mandou um beijo pra você.

ROSÂNGELA
Ah, brigada. Vou ver se eu ligo pra
ela essa semana.

DANIELE
Liga sim.
13.

ROSÂNGELA
Mas por que ela anda mais calma?

DANIELE
Quê?

ROSÂNGELA
Por que ela anda mais calma? Que
milagre é esse? O Tio Wagner parou
de beber?

DANIELE
Quem dera. Aí também acho que já é
milagre demais.

Rosângela ri com certo alívio, um pouco forte demais.

ROSÂNGELA
Tio Wagner não tem jeito mesmo...

DANIELE
Caso perdido, menina...

ROSÂNGELA
Mas pelo menos a Tia Bel anda mais
calma...

DANIELE
Tá sim. Muito mais.

ROSÂNGELA
Que bom. Pode deitar.

Daniele obedece. Rosângela se inclina sobre a prima.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Abre a boca.

Rosângela examina os dentes de Daniele.

Vai começar o procedimento, mas se detém.

Encara os dentes da prima, os dentes daquele sorriso.

Instintivamente, pega um martelinho e--

QUEBRA os dentes de Daniele.

Daniele levanta o torso da cadeira aos berros.

Litros de sangue escorrem da sua boca.

Ela olha para Rosângela confusa e--

IRMA (O.S.)
Dra. Rosângela?

Não, era só imaginação.


14.

Rosângela acorda do transe.

ROSÂNGELA
Oi. Diga, Irma?

IRMA
A senhora quer que eu prepare a
resina?

ROSÂNGELA
Não. Uma amálgama.

IRMA
Ué? Amálgama?

ROSÂNGELA
É.

IRMA
Mas resina não é mais estético?

ROSÂNGELA
É, só que amálgama deixa passar
menos sensibilidade. Tenho medo que
depois ela sinta dor com água
gelada, doce...

IRMA
Ah, bom...

NARRADOR (V.O.)
Mentira.

Rosângela aplica a amálgama.

NARRADOR (V.O.)
A cárie não era nem tão profunda,
nem tão escondida que não pudesse
ser tapada com resina. Mas como a
Irma e a Daniele iriam saber?
Ninguém nunca iria saber da sua
tentativa desesperada de sujar de
cinza o sorriso de Daniele.

Rosângela encara o cinza sujo da amálgama na boca de Daniele.

NARRADOR (V.O.)
Era para que a prima aprendesse,
para que de alguma maneira, a prima
não se atrevesse a ultrapassar a
linha divisória...

INT. SALA DE ESPERA DO CONSULTÓRIO DE ROSÂNGELA - DIA

As primas entram na sala.


15.

DANIELE
Deixa eu correr que senão eu chego
tarde e tenho que ficar depois da
hora.

ROSÂNGELA
Tá certo. E nada de comer até a
anestesia passar, hein?

DANIELE
Pode deixar...
(abrindo a bolsa)
E quanto ficou, Rô?

ROSÂNGELA
Deixa de ser boba, menina.

DANIELE
Ai, Rô...

ROSÂNGELA
E eu vou cobrar de você? Manda um
beijo pra Tia Bel.

DANIELE
Brigada, Rô. Dá um beijo nas
crianças, no Mário, em todo mundo,
tá?

ROSÂNGELA
Dou sim.

As duas se despedem com um beijo na bochecha.

DANIELE
Brigada, tá?

ROSÂNGELA
Que isso? E liga pra marcar um
horário pra gente dar uma olhada
nesse siso. Tô achando que vai ter
que arrancar.

DANIELE
(abrindo a porta)
Tá, eu ligo. Beijo, prima.

ROSÂNGELA
Beijos.

Daniele se volta para Rosângela com seu sorriso no rosto.

DANIELE
Beijo, beijo.

Rosângela força um sorriso, dá as costas para a prima e volta


para o consultório antes que Daniele saia.
16.

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela dirige, algo a incomoda.

Ela liga para Mário usando o viva-voz do carro. Ele atende.

MÁRIO (V.O.)
Tá chegando, Rô?

ROSÂNGELA
Tô, não, então... Na verdade, eu
não vou conseguir ir.

MÁRIO (V.O.)
Sério? Por quê? Aconteceu alguma
coisa?

ROSÂNGELA
Não, tá tudo bem. Foi só uma
confusão com os horários e não vai
dar tempo de eu ir praí.

MÁRIO (V.O.)
Que pena...

ROSÂNGELA
É, pena mesmo.

MÁRIO (V.O.)
Quer que eu leve comida pra você?

ROSÂNGELA
Oi? Não. Num precisa. Eu e a Irma
já pedimos um negócio aqui.

MÁRIO (V.O.)
Ué? Mas você num tá no carro?

ROSÂNGELA
É, tô. É que eu tô indo buscar. A
gente não pediu pra entregar.

MÁRIO (V.O.)
Entendi. Tá bom, Rô. Então até à
noite. Te amo.

ROSÂNGELA
Eu também.

MÁRIO (V.O.)
Beijo.

ROSÂNGELA
Beijo.

Ele desliga.
17.

Rosângela vê um buteco de esquina com a propaganda de vários


PFs baratos. Estaciona.

EXT. BUTECO - CONTÍNUO

Rosângela sai do carro e, com um misto de medo e excitação,


senta em uma mesa do lado de fora do buteco.

Um GARÇOM se aproxima e para ao lado dela esperando o pedido.


Ela o encara, esperando que ele a cumprimente.

GARÇOM
A senhora já decidiu?

ROSÂNGELA
(desconcertada)
É... Essa feijoada, é boa?

GARÇOM
Ninguém nunca reclamou, não.

ROSÂNGELA
E tem como fazer pra uma pessoa?

GARÇOM
Tem. É só pedir meia.

ROSÂNGELA
E o preço cai pela metade também?

GARÇOM
Isso. Vinte reais.

ROSÂNGELA
Tá bom, hein?

GARÇOM
Pois é. E pra beber?

ROSÂNGELA
É... cerveja?

GARÇOM
Qual?

ROSÂNGELA
Qual a mais barata?

GARÇOM
Tem Antartica, Skol e Brahma. Tudo
o mesmo preço.

ROSÂNGELA
Então... Traz a mais gelada.

O Garçom anota o pedido e sai.


18.

Rosângela fica sentada, olhando a rua e esperando a comida


com um frio na barriga.

INT. SALA DE ESPERA DO CONSULTÓRIO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela entra e vê Irma arrumando as revistas.

IRMA
Oi Dra. Como foi o almoço com o
marido?

ROSÂNGELA
Bom. Estava delícia.

Irma assente com a cabeça e volta para as revistas. Rosângela


olha para ela fixamente, com um sorriso no rosto.

IRMA
Tô jogando umas revistas velhas
fora. Tem coisa de 1998 aqui,
acredita?

Irma pega uma pilha de revistas e põe debaixo do braço.

Repara em Rosângela olhando e sorrindo para ela. Estranha.

IRMA (CONT’D)
A senhora está bem, Dra.?

ROSÂNGELA
Tô sim, Irma. Por quê?

IRMA
Tá com uma cara estranha. Tá
passando mal?

Rosângela fica séria.

ROSÂNGELA
Não. Joga logo essas revistas fora
e vamos preparar pro próximo
paciente, tá?

IRMA
Claro, Dra.

Rosângela entra no consultório.

INT. SALA DE ESTAR DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela, aérea, chega em casa e encontra seus carinhosos


filhos e marido jantando enquanto assistem TV.

Ela para atrás do sofá, em silêncio.

Mário finalmente nota sua presença.


19.

MÁRIO
Oi, Rô! Cê tá aí?

Ele estica a cabeça e eles se dão um selinho.

TIAGO
Oi, mãe.

MANUELA
Oi.

ROSÂNGELA
Oi...

MÁRIO
Cê tá cansada? Senta. Eu peço pra
Madá fazer um prato pra você.

ROSÂNGELA
Não. Num precisa. Deixa que eu
pego.

Mas ela senta em uma poltrona, distante.

MÁRIO
Como foi seu dia?

ROSÂNGELA
Como foi meu dia? Tudo bem. Tudo
igual. Que nem agora.

MÁRIO
Como assim?

ROSÂNGELA
Nada. E o seu?

MÁRIO
Bom. Só senti falta do nosso
almoço.

ROSÂNGELA
Pois é.
(para os filhos)
E o de vocês?

MANUELA
Legal. Teve filme na aula de
ciência, daí deu pra eu jogar um
pouquinho, já que eu num posso mais
jogar na minha própria casa.

Mário olha para Rosângela, achando graça na filha. Mas ela


não retribui.

ROSÂNGELA
(para Manuela, seca)
Muito bem.
(MORE)
20.
ROSÂNGELA (CONT'D)
Muito esperta, a senhora. Bem
malandra. Continue assim.

Ela vê o remorso tomar conta da filha. Mário estranha.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(para Tiago)
E você, filho?

TIAGO
Foi ótimo. Eu fiquei em terceiro
lugar.

Rosângela espera o filho dar mais detalhes, em vão.

ROSÂNGELA
(sem paciência)
Terceiro lugar em quê, Tiago?

TIAGO
Ah, num jogo de matemática que teve
lá.

ROSÂNGELA
Nossa, que específico. Parabéns.

TIAGO
(sem entender)
É...

Mário se aproxima de Rosângela, um pouco preocupado.

MÁRIO
Tá tudo bem mesmo, Rô?

ROSÂNGELA
Tá... É só cansaço mesmo...

Mário examina a esposa, até que se lembra de algo.

MÁRIO
Ah! Olha o que chegou.

Mário pega a encomenda na mesa de centro e mostra para


Rosângela. Ela olha o pacote sem interesse.

MÁRIO (CONT’D)
Num vai abrir?

Rosângela se levanta e anda em direção à cozinha.

ROSÂNGELA
Eu abro depois que eu comer.
21.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela se revira na cama sem conseguir dormir ao lado de


Mário, que ronca. Angustiada, ela encara o teto. Até que--

CLICK!

TUM TUM TUM!

Passos e um barulho na porta. Rosângela senta e vê a porta de


seu quarto semi-aberta, rangendo suavemente.

Estranho...

Ela se levanta e sai do quarto para o...

INT. CORREDOR DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

ROSÂNGELA
Manuela? Tiago:

Rosângela abre a porta do quarto de cada um deles, mas os


dois dormem tranquilamente.

TUM TUM TUM!

Rosângela se vira rapidamente em direção às escadas.

Os passos estão vindo do andar debaixo.

Tensa, ela desce as escadas até a...

INT. SALA DE ESTAR DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Ela escaneia a sala, procurando por alguém. Anda


cuidadosamente.

ROSÂNGELA
Madalena?

Silêncio. E--

TUM TUM TUM!

Lentamente, ela vai até a...

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Não há ninguém.

ROSÂNGELA
Madalena?

Nota a louça suja do jantar empilhada na pia.


22.

Continua andando até a...

INT. ÁREA DE SERVIÇO - CONTÍNUO

Ela vê a luz acesa embaixo da porta do quarto de Madalena.

Dá um passo em direção à porta.

Ouve um barulho de TV bem baixinho vindo do quarto.

Dá mais um passo.

Continua andando lentamente até à porta.

ROSÂNGELA
(sussurrando)
Madalena?

Ameaça pegar a maçaneta...

Mas desiste.

INT. SALA DE ESTAR DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela se joga no sofá e liga a TV. Passa por vários


canais.

Nota sua importante encomenda na mesa de centro. Pega e abre.

Tira de dentro um pequeno e delicado vaso de cristal púrpura.

Olha do vaso para uma estante do outro lado da sala com meia
dúzia de vasos de cristal idênticos que variam em cor.

Individualmente, os vasos são de bom gosto, mas como uma


coleção...

Rosângela larga o vaso no sofá e sobe para seu quarto.

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - DIA

Enquanto marido e filhos tomam café da manhã animadamente,


Rosângela encara a pilha de pratos sujos na pia.

MANUELA (O.S.)
(rindo)
Não, pai, joga esse aqui, ó.

MÁRIO (O.S.)
Esse?

TIAGO (O.S.)
(rindo)
Não! Ai, ai, ai...
23.

MÁRIO
É dificil, esse jogo.

MANUELA (O.S.)
Num é, é só ter as manha.

MÁRIO (O.S.)
Só ter as manha, né? Cê tem as
manha, Rô? Já jogou esse jogo?

Rosângela não responde.

MÁRIO (CONT’D)
Rô?

ROSÂNGELA
Oi? Não. Cê sabe da Madalena?

MÁRIO
Ela... foi no supermercado.

ROSÂNGELA
(reclamando)
Sério? E nem me perguntou se eu
precisava de alguma coisa.

MÁRIO
Eu posso ligar pra ela. Que que cê
precisa?

ROSÂNGELA
É... Deixa pra lá. Enfim...

Rosângela se junta a eles na mesa.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Escuta-- Eu sei, você tá escutando.

MÁRIO
(achando graça)
Oi?

ROSÂNGELA
Nada. Você pode levar as crianças
para escola de novo?

MÁRIO
Claro. Cê tá trabalhando demais,
hein, Rô?

ROSÂNGELA
Não, num é isso. É a Daniele. Ela
apareceu no consultório ontem do
nada, sem marcar horário.

Mário dá uma risadinha.


24.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Pois é... E ela num tava com uma
cara boa.

MÁRIO
Tio Wagner de novo?

ROSÂNGELA
Não. Acho que não. Era diferente
dessa vez. Parecia que ela tava...
cansada. De tudo, sabe?

MÁRIO
Sei. Dá pra ver que ela te deixou
bem preocupada.

ROSÂNGELA
Foi. E eu queria passar na casa da
Tia Bel pra conversar com ela, ver
se eu posso ajudar.

MÁRIO
Claro. Boa idéia.

Mário dá um selinho nela.

MÁRIO (CONT’D)
Te amo.

ROSÂNGELA
(levantando)
Também...

Rosângela pega um prato sujo da pia e vai pôr no lava-louças,


mas para e volta a colocar o prato em cima da pia.

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Concentrada, Rosângela dirige seu Honda Civic a um bairro


mais pobre de Niterói.

NARRADOR (V.O.)
O que Rosângela queria mesmo era
compreender a urgência com que
decidira visitar Tia Bel. Descobrir
algo que a reconfortasse, que desse
razão para ela querer tirar a limpo
o que havia naquele sorriso... que
ela podia não saber bem o que
era... mas que lhe dava a certeza
de ser precisamente o que estava
deixando Tia Bel mais calma. Ela
tinha que descobrir o que era.
25.

INT. SALA DE TIA BEL - DIA

Aflita, TIA BEL (60) abre a porta para Rosângela.

TIA BEL
Oi, Rosângela. Entra, entra...

ROSÂNGELA
Oi, tia. Tudo bem?

Elas se cumprimentam com beijo na bochecha. Rosângela entra.

TIA BEL
Você devia ter ligado antes, filha.
Pra me dar tempo de arrumar alguma
coisa pra comer.

ROSÂNGELA
Que isso, tia. Família num tem
dessas coisas. Que calor que tá lá
fora...

TIA BEL
Nem me fale. Eu, parece que tô
enrolada num saco plástico.

Rosângela ri.

TIA BEL (CONT’D)


O ventilador aqui tem que ficar
ligado o dia inteiro...

ROSÂNGELA
Mesma coisa lá em casa... com o ar-
condicionado...

TIA BEL
Imagino... Senta, senta...

Rosângela obedece.

Elas ficam um segundo em silêncio sorrindo uma para a outra.

ROSÂNGELA
A Daniele passou no consultório
ontem.

TIA BEL
Eu sei... Deu algum problema? Eu
mandei ela marcar horário antes.
Mas ela disse que você num ia
ligar, dava um jeito porque é prima
e amiga--

ROSÂNGELA
Não, não. Foi tudo bem.
26.

TIA BEL
(ainda se desculpando)
É que foi de última hora, sabe? A
obturação dela caiu aqui, comendo
as bolachas dela, vendo TV...

ROSÂNGELA
Imagina, tia. Não se preocupa.

Tia Bel suspira, olha para a sobrinha ternamente.

TIA BEL
Ela gosta muito de você, sabia?

ROSÂNGELA
(desconfortável)
Eu sei-- Eu também, tia.

Tia Bel dá uns tapinhas no ombro de Rosângela.

TIA BEL
Peraí que eu vou fazer um café pra
gente.

ROSÂNGELA
Num precisa--

TIA BEL
Deixa disso.

Tia Bel vai para a cozinha.

TIA BEL (O.S.) (CONT’D)


Eu mandei o Wagner pro supermercado
assim que você avisou que vinha...

Com uma leve expressão de pena no rosto, o olhar de Rosângela


para no ventilador enferrujado no canto da sala, no rack de
TV das Casas Bahia já machucado, no remendo do sofá onde está
sentada.

TIA BEL (O.S.) (CONT’D)


Mas deve estar fazendo as pesquisas
dele.

ROSÂNGELA
Pesquisas?

TIA BEL (O.S.)


É, você num sabe, ele vai de
supermercado em supermercado,
pesquisando onde tá mais barato e
acaba não comprando em lugar
nenhum.

Tia Bel ri.

Rosângela se levanta e se dirige à...


27.

INT. COZINHA DE TIA BEL - CONTÍNUO

Rosângela se encosta na porta.

ROSÂNGELA
Ah é?

TIA BEL
É... ele pensa que a gente não sabe
que é tudo desculpa pra ele sair
pra beber.

ROSÂNGELA
(rindo)
O Tio Wagner não tem jeito mesmo.

Tia Bel entrega um copo de requeijão com café para Rosângela.

TIA BEL
E a Manuela e o Tiago? Que andam
aprontando?

ROSÂNGELA
A Manuela é daquele jeito, né?
Implica com o irmão o dia inteiro.

TIA BEL
Ai, meu deus... Essas crianças são
fogo.

ROSÂNGELA
E o irmão com ela. Porque o Tiago
tem um geniozinho também.

TIA BEL
Ah é? Quem será que ele puxou? Você
ou o Mário?

ROSÂNGELA
Hmm... Acho que saiu mais pro avô.
O pai do Mário é muito turrão,
sabe?

TIA BEL
Não sabia, não.

ROSÂNGELA
É sim, seu Francisco é um homem
turrão.

TIA BEL
Olha que coisa... E o Mário é uma
pessoa tão doce, né? Tão calma.

ROSÂNGELA
Ah, é! Com Mário tudo é no tato,
tudo na conversa.
28.

TIA BEL
Até com os filhos?

ROSÂNGELA
Principalmente com os filhos! Ele é
todo meloso. A senhora precisa ver.
É que você vai pouco lá em casa...
Eu chamo tanto, mas vocês vão tão
pouco em casa...

TIA BEL
Ah, minha filha... É que o Wagner
com essa mania de bebida, eu fico
com vergonha de ir nos lugares...

ROSÂNGELA
Que isso, tia...

TIA BEL
Pois é. Num tô mais pra isso, sabe?
Num quero mais passar vergonha.

ROSÂNGELA
Bobagem, tia. A gente sabe como ele
é.

TIA BEL
E ainda tem esse negócio da
Daniele.

Isso desperta interesse em Rosângela.

ROSÂNGELA
Que negócio? Vamos sentar no sofá?

Enquanto elas voltam para a...

INT. SALA DE TIA BEL - CONTÍNUO

TIA BEL
Esse negócio da separação, né? Teve
que vir morar aqui de novo, aí...
Ela num tem mais paciência com as
coisas do Wagner. Aí, já viu, né?
Briga todo o dia...

Elas se sentam. Rosângela está muito atenta a cada palavra de


Tia Bel.

ROSÂNGELA
É... Sei como é... Se bem que a
Dani me disse que a senhora anda
mais calma de uns tempos pra cá.

TIA BEL
Mais ou menos.
29.

ROSÂNGELA
Como assim, tia? Mais pra mais ou
mais pra menos?

TIA BEL
Assim, mais ou menos... Às vezes eu
dou uma acalmada...

ROSÂNGELA
Sei... Aumentou a dose de calmante,
por acaso, foi?

TIA BEL
Não, não. Eu já tô com o Lexotan lá
em cima.

Rosângela ri.

Tia Bel se levanta e volta para a cozinha.

TIA BEL (CONT’D)


Deixa eu botar mais leite aqui no
café. Quer leite, filha?

ROSÂNGELA
Não, brigada.

Tia Bel entra na cozinha.

TIA BEL (O.S.)


Eu prefiro café puro, sabe? Mas o
médico disse que não era bom tomar
puro...

ROSÂNGELA
(maquinando)
Sei...

TIA BEL (O.S.)


Eu é que me faço de besta e às
vezes tomo puro, mas no dia a
dia...

ROSÂNGELA
Tia?

Tia Bel volta com uma caixa de leite na mão.

TIA BEL
...Eu sempre dou pelo menos uma
pingadinha--

ROSÂNGELA
Tia!

TIA BEL
Hum?
30.

ROSÂNGELA
Não será porque... o Tio Wagner
parou de beber?

Tia Bel ri.

TIA BEL
Quem dera, minha filha, quem
dera...

Tia Bel vai até a mesa do outro lado da sala para deixar o
leite.

TIA BEL (CONT’D)


O leite tá aqui, ó, se você
quiser... Essa é boa... O Wagner
parar de beber..

ROSÂNGELA
Tia?

TIA BEL
Diga.

ROSÂNGELA
Então é por quê?

Tia Bel fica em silêncio, pensativa.

A ansiedade no rosto de Rosângela. E--

TIA BEL
Mas você é danada, hein, menina?
Bem que sua mãe fala: num dá pra
esconder nada de você!

ROSÂNGELA
Esconder o quê, tia?

Tia Bel se aproxima de Rosângela.

TIA BEL
Olha, não era pra eu te contar
porque a Daniele pediu segredo. Ela
não queria que ninguém soubesse.

ROSÂNGELA
(nervosa)
Ah, é?

TIA BEL
É... Eu até falei: “nem a
Rosângela?” “Nem a Rosângela.”

ROSÂNGELA
O que é, tia? Pode falar.

Tia Bel se senta ao lado dela.


31.

TIA BEL
Olha, mas vê lá, hein? Se ela não
te contou, eu não podia estar
contando... E se alguém ficar
sabendo, foi você que contou--

ROSÂNGELA
(se levantando)
Deixa pra lá, então. É melhor nem
me falar. Prefiro não saber--

TIA BEL
Não, não, não. Eu falo. Não tem
problema, não. É que...

Rosângela volta a se sentar.

TIA BEL (CONT’D)


É que...

Rosângela se inclina em direção à Tia Bel.

TIA BEL (CONT’D)


Olha, não comenta com ninguém, tá?
Mas é que...

Toda expectativa do mundo no rosto de Rosângela e--

MATCH CUT TO:

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

O rosto atribulado de Rosângela em seu carro, parado no


trânsito.

Buzinas e o celular tocando.

Ela finalmente se dá conta do que está acontecendo, sobe o


carro na calçada e atende o celular no viva-voz do carro.

É Mário.

MÁRIO (V.O.)
Alô?

Rosângela respira fundo.

MÁRIO (V.O.)
Alô? Rô? Cê tá aí?

ROSÂNGELA
Oi, oi... tô aqui. Fala.

MÁRIO (V.O.)
Oi amor, cê tá bem? Que voz é essa?
32.

ROSÂNGELA
Oi. Tô, tô bem. Eu só... acabei de
subir na calçada, mas tá tudo bem.

MÁRIO (V.O.)
Ué? Cê tava na sua tia até agora?

ROSÂNGELA
Pois é. Foi uma longa conversa.

MÁRIO (V.O.)
Ô, Rô... Cuidado aí, hein? Se
assustou?

ROSÂNGELA
É... mais ou menos.

MÁRIO (V.O.)
Cuidado, tá?

ROSÂNGELA
Pode deixar.

MÁRIO (V.O.)
Você... separou a camisa que eu
pedi?

ROSÂNGELA
Camisa?

MÁRIO (V.O.)
É, pra hoje de noite.

ROSÂNGELA
Hoje de noite?

MÁRIO (V.O.)
Ô, Rô, pra festa do Raposo.

Rosângela não responde, seu olhar fixo em seu dedo indicador


puxando a cutícula de seu dedão.

MÁRIO (V.O.)
Rô?

ROSÂNGELA
Oi, tô ouvindo.

MÁRIO (V.O.)
Separou a camisa?

ROSÂNGELA
Claro, Mário, acha que eu ia
esquecer?
33.

MÁRIO (V.O.)
Vê lá, hein? Vou passar em casa
rapidinho, nem vou tomar banho. Te
pego e a gente vai.

ROSÂNGELA
E as crianças?

MÁRIO (V.O.)
Eu busco. Beijo

ROSÂNGELA
Tchau.

Rosângela desliga. Cria coragem e vira a chave do carro.


Volta para a rua.

O olhar dela pula entre os emaranhados da cidade:

O trânsito--

As folhas das palmeiras--

Os fios elétricos.

NARRADOR (V.O.)
Aquela frase, a frase da Tia Bel,
era uma linha que havia se tornado
um emaranhado de fios, cada um a
mesma frase, impossíveis de serem
separados, indecifráveis. Era
preciso que alguém colocasse a mão
de leve em sua cabeça... Alguém...
Mário, não... E separasse cada um
desses fios, pacientemente, um a
um. Até chegar ao único e primeiro
fio. O original. O puro e
cristalino som da frase:

FLASHBACK: INT. SALA DE TIA BEL - DIA

E o rosto de Tia Bel dizendo a frase em uníssono com o


Narrador:

TIA BEL NARRADOR (V.O.)


Daniele está namorando. Daniele está namorando.

INT. ELEVADOR DA FESTA - NOITE

Mário ajeita seu cabelo no espelho do elevador enquanto


Rosângela encara os números dos andares aumentando.

ROSÂNGELA
Acho que tá na hora da gente mandar
a Madalena embora.
34.

Mário se vira para Rosângela, surpreso.

MÁRIO
Sério? Por que, Rô?

ROSÂNGELA
Porque sim. Num tá mais dando
certo.

MÁRIO
Mas ela fez alguma coisa? Quebrou
um dos seus vasos, foi isso?

ROSÂNGELA
Não. É só que... A comunicação
entre a gente não está mais
funcionado.

MÁRIO
(rindo)
Quê?

ROSÂNGELA
É isso mesmo.

MÁRIO
O que que isso quer dizer?

ROSÂNGELA
Você sabe do que eu tô falando,
Mário.

PIM!

O elevador abre dentro de uma cobertura elegante cheia de


gente.

RAPOSO (40) abre um sorriso quando avista seus novos


convidados.

RAPOSO
Olha quem chegou!

Rosângela e Mário rapidamente forçam um sorriso de volta e


saem do elevador.

MÁRIO
Oi, Raposo, meu querido!

INT. COBERTURA - NOITE

Em meio ao burburinho da festa, Rosângela, Mário, Raposo,


GARCIA (43) e uma MULHER ELEGANTE (36) em uma roda.
35.

GARCIA
...Daí eu só num mandei ele
praquele lugar porque tinha uma
menininha bonitinha do lado.

Eles riem.

RAPOSO
Êe, Garcia, Garcia... Garcia “fundo
de investimento. Garcia
“Fininveste”!

GARCIA
Tá vendo? Tipo de cara que não sabe
receber convidados.

A Mulher Elegante se dirige à Rosângela enquanto os homens


continuam conversando.

MULHER ELEGANTE
E como estão aqueles lindos?

ROSÂNGELA
Tudo ótimo. Ficaram em casa.

Ao lado:

RAPOSO (O.S.)
Cuidado que ele ainda não vendeu
nenhum fundo do banco dele essa
noite.

GARCIA (O.S.)
Ô, Raposo, o banco não é meu, é dos
clientes.

Eles riem.

ROSÂNGELA
Olha.

Rosângela mostra fotos de seus filhos no celular.

MULHER ELEGANTE
Como eles cresceram...

ROSÂNGELA
Pois é.

Rosângela olha para os homens ao lado:

GARCIA
E a bolsa, Marião, topas?

RAPOSO
Quando esse cara começa com
“Marião”, sai de baixo!
36.

MÁRIO
(rindo)
Hoje, não...

Ela volta para a Mulher Elegante.

ROSÂNGELA
Cresceram, né?

MULHER ELEGANTE
É. Você recebeu o email que eu te
mandei?

ROSÂNGELA
Recebi. Ainda não tive tempo de
respond--

CRIS (O.S.)
Oi, Rô, tudo bem?

Rosângela olha para trás e encontra CRIS (35), sua amiga


cheia de uma energia um tanto agressiva.

CRIS (CONT’D)
Quanto tempo, hein?

Elas se abraçam.

ROSÂNGELA
Aaai, Cris! Que ótimo! Tá boa?

CRIS
Tudo bom.

Cris afasta a amiga carinhosamente e a olha de cima a baixo.

CRIS (CONT’D)
Menina, cê tá um arraso.

ROSÂNGELA
Ah, nem tanto, nem tanto... Fala
“oi” pro Mário--

Elas olham para o grupo de homens conversando ao lado.

RAPOSO
Só falta dizer que essa ultima
subida na bolsa foi o Rubão mexendo
os pauzinhos.

Eles riem.

Cris revira os olhos, pega a mão de Rosângela e a puxa em


direção ao terraço.

CRIS
Vem, vamos dar o fora dessa
espelunca..
37.

GARCIA
O cara tem que jogar sereno, na
moita, senão azeda a jogada...

Rosângela vê Mário olhando questionador para ela saindo para


o terraço. Ela dá de ombros.

EXT. TERRAÇO DA COBERTURA - NOITE

Rosângela e Cris encostadas na grade do terraço.

CRIS
...Eu quase num vim, mesmo. Porque
o falecido era assim com o Raposo.
Mas aí o Raposo me ligou dizendo
que o falecido não vinha porque
tava com medo de dar de cara comigo
aqui! Pode?

Elas riem.

ROSÂNGELA
Mas você nunca sente falta dele?
Ficaram tanto tempo juntos...

CRIS
Eu, hein? Deus me livre! Num me
arrependo de nada. Mesmo morando
naquele apartamentinho. É pequeno,
mas pelo menos eu durmo com o
barulhinho das ondas e não com o
ronco daquele animal.

ROSÂNGELA
(rindo, incomodada)
É... O Mário não ronca.

CRIS
Olha que bom...

ROSÂNGELA
É... ele é muito bom. Pai
presente... Incapaz de dar um grito
com as crianças.

Enquanto Rosângela fala, ela pega o olhar de Mário dentro da


sala. Ele sorri ternamente para ela.

ROSÂNGELA (CONT’D)
E é um homem muito apaixonado, né?
Modéstia à parte.

CRIS
Claro. Totalmente diferente do
falecido.
38.

ROSÂNGELA
(não muito segura)
Anran.

CRIS
Porque aquele, nossa! Tinha tudo
que era desvio psicológico.

ROSÂNGELA
É eu lembro, a primeira vez que
você disse como ele era, eu fiquei
assim: “quê?!”

CRIS
Psicopata, sociopata, egomaníaco,
codependente, bipolar-- Fazia
chantagem emocional até com
atendente de telemarketing!

Rosângela dá uma risadinha. Volta a olhar para Mário rindo


alto com seus amigos.

CRIS (CONT’D)
Mas chega. Não é educado falar mal
dos mortos, não é mesmo?

Cris ri sozinha.

CRIS (CONT’D)
Mas, então, menina... Aparece lá em
casa. Conhecer meu cafofo novo.

ROSÂNGELA
Vou sim. Eu tô meio ocupada agora,
mas quando der, te ligo.

CRIS
Liga mesmo. E pode trazer seus
filhos. Eles não enchem muito o
saco, né?

ROSÂNGELA
Oi? Não! Eles são ótimos.

CRIS
Desculpa falar assim. Mas a gente
tem que ter noção, né? Porque tem
criança chata a rodo. Cê acha que o
Garcia não sabe que os filhos dele
são insuportáveis?

MÁRIO (O.S.)
(longe)
A idéia era comprar uma casa e
montar um consultório misto. Ter a
parte de cardiologia e ginecologia,
assim separado.
39.

A voz de Mário chama a atenção de Rosângela.

CRIS
Tô falando a verdade ou tô falando
a verdade?

ROSÂNGELA
(concentrada em Mário)
É... Verdade...

Rosângela estuda os movimentos de seu marido.

MÁRIO
Mas aí meu sócio deu pra trás e eu
fui tirar satisfação com ele.

Aos poucos, a boca de Mário vai se transformando em algo


grotesco.

MÁRIO (CONT’D)
E ele: “Não, não, sabe o que é? É
que isso, que aquilo, que minha
mãe, meu cachorro, meu papagaio”...

CRIS (O.S.)
Mas vem, sim, Rô.

Quando Mário ri, expõe seus dentes podres, sua baba gosmenta
grudada entre os lábios.

Rosângela começa a ficar enojada.

MÁRIO
Aí eu falei: “caceta!” E eu tive
que assumir a casa sozinho. Ficou
tudo pra cardiologia. Foi a melhor
coisa que me aconteceu. Como é que
é que fala? Males que vêm pra bem?

CRIS (O.S.)
A gente vai se divertir.

Enquanto o Mário-monstro ri de novo com seus amigos,


Rosângela fecha os olhos, põe a mão na boca e--

Sai em disparada!

INT. COBERTURA - CONTÍNUO

Corre, esbarrando nos convidados que, assustados, começam a


segui-la.

Finalmente chega no...


40.

INT. BANHEIRO DA COBERTURA - CONTÍNUO

E VOMITA.

Na frente de todos.

Ela dá o último cuspe na privada, se levanta e encontra seu


grupo de amigos encarando ela, preocupados.

Ela não sabe como reagir.

Mário a abraça.

MÁRIO
Que que houve, Rô? Num foi o vinho,
foi?

Rosângela franze a testa, com nojo.

Ela está sentindo o cheiro de Mário.

INT. APARTAMENTO DE ROSÂNGELA / VÁRIOS LUGARES

Sobre imagens das silhuetas de Mário dormindo;

do casal discutindo;

dos filhos chorando e sendo abraçados;

de Rosângela dormindo no sofá;

e de Mário fazendo as malas:

NARRADOR (V.O.)
Era o cheiro de Mário. O cheiro
azedo de Mário e sua imundície.
Como é que ela nunca reparou antes?
Como é que ninguém nunca avisou ela
antes? Um cheiro mais asqueroso do
que o da pústula dental. Não
adianta mais. “Porque nem fingindo
eu consigo.” “Porque é com esse
cheiro que você me ama.” E aí ela
discutindo a guarda dos filhos no
meio da noite. Com a vontade de
dizer que ela abre mão de tudo,
viu, Mário? Até dos filhos! Até dos
filhos, ouviu bem?! Desde que seja
para ficar longe da tua sujeira.

O rosto de Rosângela e o Narrador dizendo em uníssono:

ROSÂNGELA NARRADOR (V.O.)


Não. Dos meus filhos eu não Não. Dos meus filhos eu não
abro mão. abro mão.
41.

NARRADOR (V.O.)
Não ri, não, porque foi assim mesmo
que ela falou. Eu sei que parece
engraçado, assim... Igual na
novela.

INT. SHOPPING - DIA

Rosângela e Cris caminham pelos corredores não muito cheios


de um shopping chique.

ROSÂNGELA
...Por isso eu resolvi abrir mão
de algumas coisas também. Pra
acelerar o processo. Sabe lá o que
é um litigioso.

CRIS
Então? Tá pensando que o falecido
me deu facilidade? Tudo, mas tudo a
gente tinha que discutir. Parece
até que fazia de sacanagem!

ROSÂNGELA
Claro que era de sacanagem, né,
Cris? Graças a deus que com o Mário
não foi assim... Então eu pensei,
“pra quê?”, sabe?

Elas chegam em um buffet do Fogo de Chão (ou algo parecido) e


começam a se servir.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Aí concordamos com tudo numa boa.
Ele também não queria disputa
judicial, disse que não suportava
nada disso...

CRIS
E a guarda dos filhos?

ROSÂNGELA
Ficou comigo.
(pausa)
Mas que culpa eu tenho se eles
preferem passar mais tempo com o
pai?

CRIS
Claro. Você num tem culpa de nada.

ROSÂNGELA
É... e o pior é que eu nem sei
explicar direito o que aconteceu...
É que... Bom, o Mário sempre foi
muito apaixonado. E eu... sei lá...
me sentia meio sufocada, sabe?
42.

Elas pagam a comida e se dirigem à praça de alimentação.

CRIS
Ah, menina, quem me dera... Com o
falecido não era assim, não. Eu é
que sufocava ele num mar de amor...
Até o chinelo eu ia buscar pra ele.

ROSÂNGELA
Aaah! Cris! Você não fazia isso!

Elas acham uma mesa e se sentam.

CRIS
Se fazia!

ROSÂNGELA
Que horror...

CRIS
É, hoje eu também acho, né? Mas,
assim, naquela época--

ROSÂNGELA
O amor bastava.

CRIS
(rindo)
E como bastava. Você nem imagina.
Até que eu disse: “quer saber de
uma coisa, cansei!” Quero viver
minha vida, sabe? Quero curtir um
pouco, sei lá... quero--

ROSÂNGELA
Viver.

CRIS
É viver.

Um grupo de jovens barulhentos, claramente de uma classe


social mais baixa, senta na mesa ao lado com suas bandejas de
McDonald’s.

Silêncio tenso.

Elas olham para o grupo, depois uma para a outra, trocam um


sorriso que diz “tá tudo bem...”

Rosângela tira seu celular da bolsa e mostra para Cris.

ROSÂNGELA
Olha o que eu baixei.

CRIS
Tinder! Adoro.
43.

ROSÂNGELA
Sério? Tava meio com vergonha.

CRIS
Magina, boba. Eu adoro, baixo
todos. Um dia baixei até o Grindr.

Cris ri, Rosângela não entende.

ROSÂNGELA
Que isso?

CRIS
É o Tinder das gay. A loca... “Toca
uma pras gay!”
(rindo)
Adoro a Narcisa...

ROSÂNGELA
É... eu também

Elas continuam comendo.

INT. CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela faz uma limpeza de dentes em um PACIENTE.

Seu celular toca.

ROSÂNGELA
(concentrada no trabalho)
Atende pra mim, Irma.

Irma obedece.

IRMA
Alô... Ah, sim. Só um segundo.
(para Rosângela)
Dra. Rosângela, é um homem chamado
Bruno.

Rosângela para de trabalhar, segurando sua empolgação.

ROSÂNGELA
Tá. Só um minutinho, Irma.

Ela respira fundo e pega o celular da mão de Irma.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(para Irma)
Você continua pra mim?

Irma assente e assume a limpeza.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(no celular)
Oi, tudo bem? ...
(MORE)
44.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Claro, eu também adoro Charitas...
Você passa aqui pra me buscar? ...
Ótimo, que horas? ... Tá, beijo.

Rosângela desliga o celular. Um olhar de excitação contida.

IRMA
A senhora quer terminar aqui, Dra?

ROSÂNGELA
Sim.

Rosângela volta para o paciente. Examina seus dentes.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Bom trabalho, Irma.

Irma sorri, orgulhosa.

INT. RESTAURANTE - NOITE

Rosângela e BRUNO (37) jantam em um restaurante clean e


elegante.

ROSÂNGELA
Eu sempre preferi frutos do mar à
carne, sabia?

BRUNO
Ah é?

CORTA PARA:

UM POUCO MAIS TARDE

BRUNO
Meu negócio sempre foi marcas e
patentes. Meu pai queria que eu
fosse pra vara de família, mas eu
nunca me interessei muito.

ROSÂNGELA
Olha, interessante.

CORTA PARA:

UM POUCO MAIS TARDE

ROSÂNGELA
Num é que eu não goste dela... Só
não me sinto muito confortável
perto dela. Faz sentido?

BRUNO
Anran.
45.

ROSÂNGELA
Você conhece alguém assim?

BRUNO
Não.

CORTA PARA:

UM POUCO MAIS TARDE

Rosângela e Bruno forçam uma risada.

EXT. RESTAURANTE - NOITE

Rosângela e Bruno saem do restaurante.

BRUNO
Boa a comida, né?

ROSÂNGELA
Uma delícia. Pena que a nossa
conversa foi meio chata?

BRUNO
(surpreso)
Oi?

ROSÂNGELA
Você também achou. Eu sei.

BRUNO
(um pouco insultado)
Tá certo, então. Vamos logo pra eu
te levar pra casa?

ROSÂNGELA
Não.

BRUNO
Nossa, tá... Cê quer que eu espere
seu uber chegar?

ROSÂNGELA
Não, não. Quero que você me leve
pra outro lugar.

Rosângela sorri.

INT. MOTEL - NOITE

Bruno come Rosângela de quatro. Ela geme.

Ela deita na cama de bruços, trazendo Bruno com ela. Vira ao


contrário, deitando-se sobre ele.
46.

Senta e começa a cavalga-lo, assumindo o controle de seu


prazer.

COMEÇA MONTAGEM

BAR

Rosângela bebe e flerta com um HOMEM.

NARRADOR (V.O.)
Quem diz que ela está fazendo força
pra se sentir leve...

RESTAURANTE

Rosângela levanta da mesa de forma sensual e um HOMEM 2 se


apressa para pagar a conta e a segue.

NARRADOR (V.O.)
Quem diz isso... É porque jamais
arcou com o peso que ela teve que
arcar a vida inteira.

MOTEL

Rosângela faz sexo com um ALMOFADINHA.

NARRADOR (V.O.)
O peso do porteiro dizendo “Bom
dia, dona Rosângela”, desse povo
olhando o carro dela, do “obrigada,
Dra. Rosângela, você é um amor.”

FESTA

Rosângela conversa e ri exageradamente com Cris e alguns


homens. Se diverte muito.

NARRADOR (V.O.)
Então tudo bem se ela estivesse até
fazendo uma força no começo. Às
vezes a gente demora pra se
acertar.

MOTEL

Rosângela faz sexo com um HOMEM TATUADO.

NARRADOR (V.O.)
Mas agora, ela tem certeza... Ela
jura por tudo que é mais sagrado,
que ela não precisa mas fazer força
pra se sentir leve... pra...
47.

FLASHBACK: CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO DE ROSÂNGELA

O sorriso inalcançável de Daniele.

DANIELE NARRADOR (V.O.)


Tudo bem? Pra sorrir.

BOATE

Rosângela dança como se não houvesse amanhã. Um sorriso


imenso no rosto.

NARRADOR (V.O.)
Basta olhar pra ela. Olha, que você
vai ver. Ela tá pronta pra
encontrar a Daniele de novo. Porque
o sorriso dela, a essa altura, já
é, assim, praticamente igual ao da
prima.

Cansada e ofegante, o sorriso de Rosângela gradualmente some.

TERMINA MONTAGEM

INT. GARAGEM DO PRÉDIO DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela estaciona o carro e sai um pouco bêbada de uma de


suas noitadas.

Seus passos cambaleantes ecoam até ela chegar na frente do


elevador.

Ela chama o elevador social, mas nada acontece.

Aperta o botão de novo.

Nada.

Chama o elevador de serviço.

Está funcionando.

INT. ÁREA DE SERVIÇO - NOITE

Rosângela entra.

Está tudo escuro.

Procura o interruptor mas não consegue achar.

Pega seu celular para iluminar o lugar.

Começa a se dirigir à cozinha quando de repente--

CLINK! TUM! CLINK!


48.

Ela para, assustada. O som está vindo da cozinha.

Receosa, ela lentamente anda até a...

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Rosângela para na porta e escaneia o lugar. Não encontra nada


até que--

A SILHUETA de um homem agachado perto da pia.

A silhueta se levanta. Uma luz vindo da cabeça dele cega


Rosângela.

A silhueta está segurando uma ferramenta.

Fica imóvel, olhando para ela.

A silhueta dá um passo em sua direção.

Rosângela cambaleia para trás...

ROSÂNGELA
(com medo)
Não!

E--

As luzes se acendem.

Rosângela vê Marinho usando uma lanterna de cabeça, parado na


sua frente, segurando uma chave de fenda e com a outra mão no
interruptor.

Marinho desliga a lanterna.

MARINHO
Oi, Dona Rosângela. Se assustou,
foi?

ROSÂNGELA
Claro, né, Marinho. Que que cê tá
fazendo aqui?

MARINHO
Desculpa, Dona Rosângela. É que a
pia da senhora tava vazando e
começou a molhar o andar debaixo
todinho. Daí eu pedi pros filhos da
senhora pra subir.

ROSÂNGELA
Mas por que cê tá fazendo isso
nessa escuridão?
49.

MARINHO
Desculpa, Dona Rosângela. É que
como eu tava com a lanterna embaixo
da pia, nem reparei como tava
escuro. A senhora quer um copo
d’água?

Rosângela suspira.

ROSÂNGELA
Não, Marinho. Num precisa.

Ela se aproxima de Marinho e põe a mão em seu ombro.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Muito obrigada, viu, Marinho? Ó...

Rosângela tira uma nota de cinquenta da bolsa e entrega a


Marinho.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Quando terminar tranca a porta, tá?

MARINHO
Obrigado, Dona Rosângela.

Rosângela se dirige à escada.

ROSÂNGELA
Boa noite, Marinho.

MARINHO
Boa noite...

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela não consegue dormir. Ela olha de sua janela para o


banheiro vazio.

Acende um cigarro.

NARRADOR (V.O.)
Vocês vão ver. Vocês finalmente vão
poder comparar uma com a outra.
Porque essas lágrimas, essa
sucessão de namorados, essas multas
no carro... “É pra mostrar pra
vocês o quanto eu sou feliz”.

Rosângela apaga o cigarro e se vira de lado. Abre um sorriso


desafiador e fecha os olhos.

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela e seus filhos terminam de tomar café e se preparam


para sair.
50.

ROSÂNGELA
Pegaram tudo?

TIAGO
(vestindo a mochila)
Sim.

MANUELA
(no celular)
Anran.

ROSÂNGELA
Estão felizes que as férias estão
chegando?

MANUELA E TIAGO
Sim!

TIAGO
E que o papai vai levar a gente pra
Eurodisney!

MANUELA
E pra Europa.

ROSÂNGELA
(incomodada)
Ah, é... ele falou.

Rosângela veste a mochila em Manuela.

ROSÂNGELA (CONT’D)
E vai ser bem divertido passar um
tempo na casa da vovó e do vovô
comigo também, né?

TIAGO
(sem muito entusiasmo)
É...

MANUELA
É, eu só num quero ir na praia todo
dia, tá?

ROSÂNGELA
Tudo bem. A gente pode jogar
videogame juntos. Que cês acham?

MANUELA
Legal.

ROSÂNGELA
Legal, né?
(pausa)
Vamos embora?

Eles estão quase saindo quando Rosângela se lembra de algo.


51.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Peraí. Quase que a gente esquece.

Rosângela pega dois sacos plásticos com o lanche das


crianças.

MANUELA
Num precisa, mãe.

TIAGO
A gente trouxe o lanche que a
Madalena fez da casa do papai.

ROSÂNGELA
(insultada)
Ah é? Deixa eu ver.

Manuela e Tiago tiram suas lancheiras da mochila e entregam


para Rosângela.

Ela examina a comida de Madalena.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Não, não, não. Isso aqui num dá.
Olha o tanto de maionese. Ela quer
que vocês fiquem gordos que nem
ela.

Os filhos riem.

Rosângela joga a comida de Madalena no lixo, enfia o lanche


que ela fez nas lancheiras dos filhos e devolve-as para eles.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Pronto. Comida da mamãe é mais
gostosa, né?

TIAGO
É!

MANUELA
Às vezes...

ROSÂNGELA
É sim. Vamos que a gente tá
atrasado.

Eles saem.

INT. MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA DE NITERÓI - DIA

Rosângela e Cris andam pelo terraço do museu.

ROSÂNGELA
...É, mas com o Rodrigo, a gente...
É... eu pedi um tempo porque, sei
lá...
(MORE)
52.
ROSÂNGELA (CONT'D)
diretor de agência de publicidade,
minha filha, não dá mais, não.

CRIS
A-mém!

ROSÂNGELA
E depois, ele... cheira muito!

CRIS
Ah, é? E você? Nunca cheirou, não?

ROSÂNGELA
Eu, não! Tá maluca? Por quê? Você
já cheirou?

CRIS
Ah, assim... De vez em quando, né?
Só de brincadeira.

ROSÂNGELA
Como assim “de brincadeira”?

CRIS
Assim, ué? Dá uma cheiradinha, toma
um expressinho.

Elas riem.

ROSÂNGELA
Credo... E eu nem me importava
muito dele morar no Rio, sabe? Só
que... não dava mais.

CRIS
Se num dá, num dá. O importante é
que você deu.

ROSÂNGELA
(rindo)
Exato. E que... I’m available.

CRIS
Again, né, menina?

Elas riem.

ROSÂNGELA
(com certa tristeza)
And again, and again... ai, ai...

CRIS
Para com isso. Eu, quando fico
muito tempo sozinha, que bate
aquele desespero, me viro mesmo com
a internet.
53.

ROSÂNGELA
Ai, que isso, Cris.

CRIS
Verdade, menina. Você nunca entrou,
não?

ROSÂNGELA
Entrei, mas entrei assim... Pouco,
né? Não sou muito de computador,
não.

CRIS
Ah, mas tem que ser. Hoje em dia...
Vou te passar umas páginas que você
vai ver.

ROSÂNGELA
É?

CRIS
Não é sempre, mas às vezes é um
santo remédio.

Elas riem.

INT. SALA DE ESPERA DO CONSULTÓRIO DE ROSÂNGELA - DIA

Vestida em seu uniforme, mas sem a máscara, Rosângela se


despede de uma PACIENTE.

ROSÂNGELA
Tenta mastigar de só do lado
esquerdo, pelo menos até você
voltar na semana que vem.

PACIENTE
Obrigada, Dra. Rosângela. Você é
uma amor.

Rosângela força um sorriso. Estende a mão para cumprimentar a


Paciente mas muda de idéia no meio do caminho e a abraça, sem
jeito.

PACIENTE (CONT’D)
Opa...

Ela solta o abraço.

Pausa constrangedora.

Rosângela estende a mão novamente e aperta a mão da Paciente.

ROSÂNGELA
Até semana que vem.
54.

PACIENTE
Até...

A Paciente sai.

ROSÂNGELA
Quem é o próximo, Irma?

Irma abre a porta do consultório.

IRMA
O Sr. Raposo.

ROSÂNGELA
Afe.

IRMA
Disse que vai atrasar um pouco.

ROSÂNGELA
Lógico. Que saco! Vai estragar todo
meu horário...

IRMA
Não, não... Vai dar certo. Sua
prima acabou de ligar cancelando.

Rosângela congela, irada.

ROSÂNGELA
Como assim? Por quê?

IRMA
Disse que tinha um compromisso.

ROSÂNGELA
Ela não disse mais nada? Será que
aconteceu alguma coisa?

IRMA
Acho que não--

ROSÂNGELA
Cadê meu celular?

Irma entrega o celular pra Rosângela.

Ela liga para a prima. Logo desliga.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Caixa postal.

IRMA
Ah...

Rosângela respira fundo, abalada.


55.

INT. SALA DE TIA BEL - NOITE

Tia Bel abre a porta para Rosângela.

TIA BEL
Essa sua mania de vir sem avisar,
minha filha... Só fiz janta pra
mim. Mas acho que tem uma lasanha
congelada--

Rosângela entra.

ROSÂNGELA
Num precisa, tia. Já comi.
(pausa)
Tudo bem com a senhora?

Elas se cumprimentam com um beijo no rosto.

TIA BEL
Tudo indo, né?

ROSÂNGELA
(apressada)
Que bom. E a Daniele? Tá bem? Ela
tá aqui? Ligou desmarcando a
consulta hoje.

Tia Bel anda lentamente até o sofá.

TIA BEL
Pois é, minha filha, a Dani tá em
São Paulo.

ROSÂNGELA
São Paulo? Fazendo o quê?

Tia Bel senta.

TIA BEL
Foi com o namorado. De uma hora pra
outra. Só me avisou quando tava na
estrada já. Naquele Celta azul
caindo aos pedaços dele. Eu fico
preocupada, sabe? Acidente, essas
coisas...

ROSÂNGELA
Que coisa... Celta azul, é?

TIA BEL
Pois é. Tá toda, toda. Pulando pra
lá e pra cá com esse novo namorado.

Rosângela começa a morder seu lábio inferior.


56.

TIA BEL (CONT’D)


E as crianças? Tá tudo bem depois
da separação?

ROSÂNGELA
(automática, sem olhar
para a tia)
Eles estão bem. São maduros pra
idade deles, entenderam tudo. Eu e
o Mário continuamos amigos. Amor
demais às vezes atrapalha. Mas eu
tô aproveitando bastante.

TIA BEL
Ai, que bom, coisa boa de ouvir.

Rosângela se volta abruptamente para Tia Bel.

ROSÂNGELA
E quando ela volta?

TIA BEL
Quem?

ROSÂNGELA
A Daniele, tia!

TIA BEL
Ah! Num sei. Acho que nem ela sabe.
Ela nem sabia que ia pra São Paulo
quando foi. Essa aí, viu? Tá cheia
de surpresas. Agora resolveu voltar
a estudar, acredita?

Mais um baque em Rosângela.

ROSÂNGELA
Estudar? Estudar o quê, tia?

TIA BEL
Lá na faculdade que ela trancou.
Arquitetura, lembra?

ROSÂNGELA
(distante)
Lembro. Era uma faculdade
particular, né?

TIA BEL
Isso. Com uma bolsa do governo.

ROSÂNGELA
É... eu fiz pública.

TIA BEL
(sem entender)
Foi...
57.

Rosângela volta ao mundo.

ROSÂNGELA
(simpática)
Bom, que bom, tia. Que boa notícia.
O máximo. Eu tenho que ir que as
crianças estão sozinhas sem jantar.

TIA BEL
(levantando)
Tá certo, minha filha.

Rosângela impede que Tia Bel se levante e dá um beijo na


testa dela.

ROSÂNGELA
Não, fica aí, tia. Deixa que eu
fecho a porta.
(indo embora)
E vê se aparece lá em casa. Pode
levar o Tio Wagner que lá tem o
uísque que ele gosta.
(fechando a porta da
frente)
Tchau, tia. Beijo.

Tia Bel dá um leve tchauzinho com a mão.

TIA BEL
(confusa.)
Tchau, minha filha...

Rosângela fecha a porta.

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela levando seus filhos para a escola.

ROSÂNGELA
Só mais duas semanas de aula, hein?

TIAGO
É! E depois, Eurodisney.

ROSÂNGELA
Ah, é... Tem essa história.

MANUELA
(para Tiago.)
A gente vai pra Eurodisney e
Europa. Seu burro.

ROSÂNGELA
Manuela! Não fala assim com sua
prima.
58.

MANUELA
Prima?

ROSÂNGELA
Que prima?

MANUELA
Você que disse “sua prima”.

ROSÂNGELA
Irmão. Não fala assim com seu irmão-
- Olha, o Mário é que vai buscar
vocês hoje, viu?

MANUELA
A gente sabe.

TIAGO
O papai é médico do coração, sabia,
mãe?

ROSÂNGELA
É verdade.

MANUELA
Cala a boca, seu idiota.

ROSÂNGELA
Manuela! Que que eu acabei de
falar?

MANUELA
É que ele acha que o papai ajuda as
pessoas a se apaixonarem.

ROSÂNGELA
É... Isso não é verdade. E vocês?
Já sabem o que querem ser quando
crescer?

MANUELA
Não.

TIAGO
Psicólogo.

Rosângela se surpreende.

ROSÂNGELA
(rindo)
Ah, é? Por quê?

TIAGO
Porque eu gosto de conversar.

Rosângela ri.
59.

ROSÂNGELA
E arquitetura? É bem legal também.

MANUELA
Ah, não.

TIAGO
Que isso?

MANUELA
Num disse que era burro.

ROSÂNGELA
Chega, Manuela.
(desafiadora)
Explica pra ele o que é, então.

MANUELA
É tipo, de desenhar... Casa e
prédio... Não é?

ROSÂNGELA
É, mais ou menos.

TIAGO
Eu quero, mãe!

Manuela revira os olhos pra Tiago.

MANUELA
(baixo)
Puxa-saco do caralho...

Rosângela ouve mas ignora a filha.

ROSÂNGELA
Legal, filho.

Ela estaciona em frente a escola

Os dois dão um beijo em Rosângela ao saírem do carro.

MANUELA E TIAGO
Tchau, mãe.

ROSÂNGELA
Tchau, amo vocês.

MANUELA E TIAGO
Nós também.

ROSÂNGELA
Até semana que vem.

Manuela fecha a porta do carro.


60.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela vê pornografia na internet. Começa a se masturbar.

Sobre as imagens de sexo pixeladas e o gradual crescente


prazer de Rosângela:

NARRADOR (V.O.)
Só agora Rosângela se dava conta do
quão magnífica, altaneira e
maravilhosa é a arquitetura. Sem a
arquitetura, o que seria da cidade?
A arquitetura cuida das pessoas. E
ela só cuida dos dentes das
pessoas. A arquitetura nos salva,
nos resguarda. Não é nada. Não é
nada não, viu? Não se preocupe. Só
que agora, Rosângela tinha que
estar ainda mais preparada para
quando a prima marcar uma nova
consulta.

INT. CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela cuida de um PACIENTE 2.

Distraída, ela machuca a gengiva dele.

PACIENTE 2
Ai, ai! Que cê tá fazendo?

A gengiva do Paciente 2 começa a sangrar bastante.

ROSÂNGELA
Desculpa, eu... Peraí, deixa eu...
Vai ficar tudo bem.

Rosângela entrega um copinho com água para o Paciente 2.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Bochecha e cospe.

O Paciente 2 obedece. Seu cuspe com sangue escorre pelo ralo


da pia odontológica.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Abre a boca.

Rosângela põe um algodão na ferida do Paciente 2.

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela voltando para casa e o sol se pondo.

De repente, ela para o carro ao lado da praia.


61.

Olha o mar e o céu rosado.

NARRADOR (V.O.)
Por que não? Ela também sabia ser
espontânea. Ela também conseguia
agarrar todos os momentos que a
vida oferece.

Rosângela desce do carro.

EXT. PRAIA - CONTÍNUO

Rosângela pisa com seu salto-alto na praia.

NARRADOR (V.O.)
Rosângela tinha que viver no
presente...

Ela atrapalhadamente tira o salto.

NARRADOR (V.O.)
...sentir a areia nos pés
descalços...

Anda, envergonhada, em direção ao mar, sempre checando se há


alguém por perto.

NARRADOR (V.O.)
...abraçar o mar...

Rosângela chega na beira do mar e começa a tirar a blusa


timidamente.

NARRADOR (V.O.)
...se tornar uma com o mundo.

Quando ela avista um casal correndo a certa distância, para e


marcha de volta para seu Honda Civic.

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Antes de dar partida, Rosângela vê do outro lado da calçada


um HOMEM BONITO (30) entrar em um CELTA AZUL e arrancar.

Ela imediatamente liga o carro e começa a persegui-lo.

O carro entra em um bairro mais pobre.

Rosângela sorri, certa de que o novo namorado de Daniele


moraria lá.

O Celta estaciona.

Ela também, logo atrás dele.

E se apressa a sair do carro.


62.

EXT. RUA - NOITE

Rosângela quase corre ao encontro do Homem Bonito.

Para ofegante na frente dele.

Ele a olha, confuso.

ROSÂNGELA
(recuperando o ar)
Oi.

HOMEM BONITO
(receoso)
Oi...

Rosângela se recompõe.

ROSÂNGELA
(simpática)
Tudo bem?

HOMEM BONITO
Tudo. E com você? Tá tudo bem?

ROSÂNGELA
Sim. Mais ou menos, na verdade. É
que eu tô perdida. Você sabe onde
fica a rua... Daniel Bonfim?

HOMEM BONITO
Sei, sim. Você num tá muito longe,
não.

ROSÂNGELA
Ai, que bom! Tô dirigindo há horas.
E acabou a bateria do meu celular.

HOMEM BONITO
Sei.

O Homem Bonito se posiciona ao lado de Rosângela e indica o


caminho com a mão.

HOMEM BONITO (CONT’D)


É só você continuar nessa rua e
virar a terceira direita.

ROSÂNGELA
(sedutora)
Tá, terceira direita...

HOMEM BONITO
Isso. Daí logo a primeira esquerda,
assim que você virar.

Rosângela vira a cabeça em direção ao rosto do Homem Bonito,


está muito perto dele.
63.

ROSÂNGELA
(ainda sedutora)
Primeira esquerda... logo que eu
virar.

HOMEM BONITO
E continua nessa rua até você ver a
placa da Bonfim.

Rosângela deixa cair um ombro de sua blusa. Ele nota de


soslaio.

ROSÂNGELA
Até achar a placa...

O Homem Bonito olha para ela. Seus rostos a centímetros de


distância.

HOMEM BONITO
Entendeu?

ROSÂNGELA
Entendi.

HOMEM BONITO
(suspirando)
Que bom...

Eles se olham por um segundo cheio de tensão sexual.

HOMEM BONITO (CONT’D)


Você... não quer tomar alguma coisa
antes? Num tem nada legal por aqui,
mas a gente pode voltar pro
centro... Ou ir pra minha casa que
é mais perto.

ROSÂNGELA
Nossa! Calma... Eu nem sei seu
nome.

HOMEM BONITO
É Saulo. E o seu?

Rosângela hesita, mas finalmente:

ROSÂNGELA
Daniele.

Ela espera a reação dele.

HOMEM BONITO
Muito prazer, Daniele. E aí, não
quer relaxar um pouco depois de
dirigir tanto?

Rosângela não responde, um pouco decepcionada pela falta de


reação de Saulo.
64.

HOMEM BONITO (CONT’D)


Ou a gente pode achar um buteco por
aqui, se você preferir. Pode ser?

ROSÂNGELA
Meu nome é Daniele.

HOMEM BONITO
Oi? É, eu ouvi. Então, o que você
prefere fazer?

Rosângela imediatamente muda de postura. Cobre seu ombro com


a blusa.

ROSÂNGELA
Nada.

HOMEM BONITO
Nada? Que isso, Dani? Eu falei
alguma coisa errada?

Rosângela marcha até seu carro.

ROSÂNGELA
É isso. Muito obrigada pela ajuda.

HOMEM BONITO
(confuso)
De nada...
(para si mesmo)
Sua doida...

Rosângela entra no carro e vai embora.

INT. SALA DE ESTAR DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela assiste pornografia no computador sem interesse.


Fecha-o.

NARRADOR (V.O.)
Ela precisa gritar com alguém.
Porque, de novo.... Foi enganada de
novo. Não era o namorado da Daniele
no Celta azul.

Olha para os vasos delicados na prateleira. Anda até eles e


lentamente empurra-os para o chão.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela olha fixamente para o teto.

NARRADOR (V.O.)
Foi enganada quando ninguém avisou
ela do cheiro de Mário.
65.

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela toma café da manhã sozinha.

NARRADOR (V.O.)
Quando mentiram para ela do lugar
subalterno que sempre ocupou ao
lado da prima.

INT. CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela e Irma cuidam de um paciente.

NARRADOR (V.O.)
Quando disseram “Bom dia, dona
Rosângela” e deixaram ela andar em
seu Honda Civic para distrai-la de
sua pequenez, de sua mediocridade e
do quanto ela é ridícula...

FLASHBACK: INT. CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO DE ROSÂNGELA - DIA

O sorriso de Daniele.

DANIELE
Tudo bem?

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela dirige de volta para casa.

NARRADOR (V.O.)
Que mais? Ela precisa gritar com
alguém? Que mais?!
(pausa)
Ah, é! A Eurodisney.

Rosângela liga para Mário pelo viva-voz do carro.

MÁRIO (V.O.)
Oi, Rô. Tudo bem?

ROSÂNGELA
Oi. Não, num tá tudo bem, não.

MÁRIO (V.O.)
Por quê? O que aconteceu?

ROSÂNGELA
Que história é essa de você levar
meus filhos pra fora do país sem me
avisar?!
66.

MÁRIO (V.O.)
Como assim, Rô? Eu te mandei email,
deixei mensagem no seu celular.

ROSÂNGELA
É. Mas eu não concordei.

MÁRIO (V.O.)
É verdade. Desculpa.
(passivo-agressivo)
Eu posso levar meus filhos pra
viajar nas férias?

ROSÂNGELA
Não fala assim comigo. Odeio quando
você fala assim comigo.

MÁRIO (V.O.)
Assim como, Rô?

ROSÂNGELA
Desse jeito. Como se eu-- Você sabe
muito bem o que você tá fazendo!

MÁRIO (V.O.)
Tá bom! Posso ou não posso?

ROSÂNGELA
Não.

MÁRIO (V.O.)
Não?! Num faz isso com as crianças,
Rô.

Rosângela tenta se acalmar.

MÁRIO (V.O.)
(para sua secretária)
Não, não. O outro prontuário.

ROSÂNGELA
Mário? Cê ainda tá no trabalho?

MÁRIO (V.O.)
Sim.

ROSÂNGELA
Então é melhor você se apressar pra
sair daí. Tá quase na hora de
buscar as crianças na escola.

MÁRIO (V.O.)
Eu... A Madalena tá indo buscar
eles.

ROSÂNGELA
(indignada)
O quê? Cê tá louco?
67.

MÁRIO (V.O.)
O que foi agora, Rô?

ROSÂNGELA
Tá mandando a empregada buscar seus
filhos?! Que tipo de pai é esse?

MÁRIO (V.O.)
A Madalena é quase da família.

ROSÂNGELA
Não é, não. Quase da família... Ela
é sua funcionária, Mário!
Péssimo... Péssimo pai.

MÁRIO (V.O.)
Calma, Rô--

Rosângela desliga o celular.

Vira o carro na direção contrária, cantando pneu.

EXT. ESCOLA DAS CRIANÇAS - DIA

Rosângela para o carro na frente da escola e avista seus


filhos.

Eles correm para ela, felizes com a surpresa.

TIAGO
Oi, mãe!

MANUELA
Ué? Num era a Madalena que vinha
buscar a gente hoje?

ROSÂNGELA
Você não prefere vir com a mamãe,
Manuela?

MANUELA
Prefiro.

Rosângela olha para os lados, checando se Madalena está lá.

ROSÂNGELA
Então, entrem logo. Vamos, vamos...

INT. CARRO DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Antes de Rosângela dar partida, Manuela olha para trás, enfia


a cabeça para fora do carro e dá tchau.

MANUELA
Tchau, Madá!
68.

Nervosa, Rosângela liga o carro e acelera.

MANUELA (CONT’D)
Num é melhor avisar a Madá que a
gente vai pra sua casa, mãe?

TIAGO
Num precisa.

MANUELA
É que ela tava com cara de não
estar entendendo nada.

ROSÂNGELA
Prestem bem atenção no que eu vou
falar. Num é pra vocês nunca irem
pra casa com ninguém além de mim e
do seu pai. Entenderam?

TIAGO
Nem com a Madalena?

ROSÂNGELA
Nem com a Madalena. Só eu e o
papai. Certo?

MANUELA
Certo.

TIAGO
Por quê?

ROSÂNGELA
Porque... eu tô mandando. Entendeu,
Tiago?

TIAGO
Entendi.

ROSÂNGELA
Que bom. Eu vou deixar vocês na
casa do Mário. A mamãe tem umas
coisas pra fazer.

TIAGO
Mas quem vai cuidar da gente até a
Madalena chegar?

MANUELA
Eu num preciso de ninguém cuidando
de mim.

ROSÂNGELA
É. Vocês já estão bem crescidinhos,
né, Tiago?

TIAGO
É.
69.

ROSÂNGELA
É só não fazer nada errado. Tá?

TIAGO
Anran.

MANUELA
Vou tentar.

Rosângela acha graça em Manuela.

INT. CASA NOTURNA - NOITE

Rosângela rapidamente cheira uma carreirinha de cocaína de


cima de sua carteira em um canto da boate.

Ela se vira para trás e dá o pó e sua carteira pra Cris.

Ela fala alguma coisa para Cris, mas não ouvimos por causa da
altura da música no lugar.

Cris toma o lugar de Rosângela no canto e também dá um tiro.

As duas dançam freneticamente.

Em pouco tempo, três HOMENS se aproximam, dançando.

Eles formam um círculo ao redor delas, ficando cada vez mais


perto.

Quando um deles toca a cintura de Rosângela, ela cochicha


algo para Cris e escapa do círculo.

Rosângela luta contra a multidão da casa noturna para chegar


ao banheiro.

INT. BANHEIRO DE CASA NOTURNA - NOITE

Em frente à pia, Rosângela lava o rosto e se olha no espelho.

Sorri.

E passa um tempo estudando seu sorriso.

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - DIA

Manuela e Tiago sentados sozinhos esperando Rosângela.

MANUELA
(gritando)
Manhê! Tá quase na hora da escola.

TIAGO
Num grita...
70.

MANUELA
Cala a boca.

Os passos lentos e pesados de Rosângela descendo a escada.

Ela entra na cozinha, claramente de ressaca.

ROSÂNGELA
Bom dia...

MANUELA
Vamos, mãe. A gente tá atrasado.

TIAGO
(para Manuela)
Para! Num tá vendo que ela tá
doente.

MANUELA
(irônica)
Tá, doente, sim...

Rosângela senta-se à mesa, acabada.

ROSÂNGELA
Eu... num posso levar vocês hoje.

MANUELA
Quê? Ah, não! Toma café e vamos.

ROSÂNGELA
Fica quieta, menina...

Rosângela pega seu celular e liga para Mário.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(no celular)
Oi, Mário. Você vai ter que levar
as crianças pra escola hoje. ... Eu
sei, mas eu tô doente. Não tô em
condições pra dirigir. ... Então dá
meia volta e vem buscar seus
filhos. ... Não, Mário, eu não
posso, entendeu?!

Rosângela levanta, alterada.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(no celular)
Você vem sim! ... Claro que vem!
Porque se eu entrar num carro agora
eu posso acabar matando seus
filhos. É isso que você quer?!
(mais calma)
Ótimo. Eles te esperam lá embaixo.

Rosângela desliga o celular e vê seus dois filhos assustados,


olhando para ela.
71.

Ela beija os dois na testa.

ROSÂNGELA (CONT’D)
O pai de vocês tá vindo. Podem
descer.

E volta para o seu quarto.

INT. SALA DE ESPERA DO CONSULTÓRIO DE ROSÂNGELA - DIA

Ainda de ressaca, Rosângela entra no consultório e encontra


Irma e um PACIENTE 3 na sala de espera.

IRMA
(para o Paciente 3)
Olha ela aí...
(para Rosângela)
Bom dia, Dra. Rosângela. Vamos
começar?

Ela suspira.

Aproxima-se do paciente.

ROSÂNGELA
Abre a boca.

PACIENTE 3
(confuso)
O quê?

ROSÂNGELA
Abre a boca. Deixa eu dar uma
olhada.

Sem entender nada, o Paciente 3 obedece.

Irma não sabe o que fazer.

Rosângela, sem luvas e com alguma brutalidade, examina os


dentes do Paciente 3 na sala de espera mesmo.

O paciente mostra desconforto.

Irma assiste à cena, horrorizada.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(ainda escavando a boca do
paciente com o dedo)
Num é nada... Só precisa de uma
limpeza. É simples.
(para Irma)
Você cuida disso, tá, Irma?
72.

IRMA
(gaguejando)
Eu? Não, Dra. Rosângela. Eu num
posso. Num sou dentista ainda.

Rosângela tira o dedo da boca do Paciente 3.

ROSÂNGELA
Mas vai fazer, sim. Como parte do
seu treinamento.

IRMA
Mas, Dra--

Rosângela leva um dedo à boca: “shhh”.

ROSÂNGELA
(saindo)
E cancela os outros pacientes.

IRMA
(preocupada)
Dra. Rosângela, a senhora não quer--

ROSÂNGELA
Irma!

Rosângela volta a por o dedo em frente à boca, dessa vez uma


pouco mais agressiva: “shhh”.

E vai embora.

EXT/INT. RUA / CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Indo em direção ao seu Honda Civic, Rosângela começa a olhar


para as pessoas a sua volta, paranóica.

Parece que estão todos olhando para ela de soslaio.

Ela entra e liga o carro, mas não sai.

Um GARI para ao lado do carro dela e a encara, ameaçador.

Uma VENDEDORA AMBULANTE se junta a ele.

Logo, uma pequena multidão de pessoas está em volta do carro,


imóveis, encarando Rosângela.

Aterrorizada, Rosângela sua, engole seco.

Com a mão tremendo, ela engata o carro e acelera pelas ruas e


Niterói.

Mas, ainda se sente que todas as pessoas por quem passa estão
observando ela.
73.

NARRADOR (V.O.)
Foi só dar uma olhadela em volta
e... E foi como se Rosângela
percebesse que todos que antes a
olhavam como... sacrossanto
objetivo da perpetrada vida
inalcançável, estivessem todos...
Todos e cada um deles estivessem ao
alcance da mão. Ao alcance do seu
carro. Quase como se, de repente,
eles não apenas pudessem adquirir
um carro, mas também como se o
carro que eles pudessem adquirir...
Fosse literalmente o dela.

INT. PORTARIA DO PRÉDIO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela passa apressada por Marinho.

NARRADOR (V.O.)
Como se o...

NARRADOR (V.O.) MARINHO


... “Bom dia, Dona Bom dia, Dona ROsângela.
Rosângela”...

Marinho levanta a mão para falar algo com ela, mas Rosângela
não para.

NARRADOR (V.O.)
Quisesse dizer: “Aí, dona, toma
conta da portaria aqui pra mim, que
eu vou tomar um café ali fora”.

Ela entra no...

INT. ELEVADOR DO PRÉDIO DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Rosângela aperta o botão da cobertura e se encosta na parede.

NARRADOR (V.O.)
Como se ela não estivesse mais no
seu devido, assentado e
sacramentado lugar no mundo. Como
se o vidro rompesse, como se a
represa rachasse. Como se... Como
se ela varrer a calçada fosse tão
natural quanto o gari dirigir seu
carro.

As portas do elevador abrem e Rosângela entra na...


74.

INT. SALA DE ESTAR DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Assim que Rosângela põe os pés em seu apartamento, ela para,


estupefata.

Em frente dela--

Daniele... sorrindo.

DANIELE
Tudo bem?

Rosângela não responde, não consegue se mexer.

Ela se sente tonta.

Tenta respirar.

E finalmente:

ROSÂNGELA
(fria)
Que que você tá fazendo aqui?

DANIELE
Surpresa!

Daniele anda em direção a Rosângela com seu sorriso


destruidor.

ROSÂNGELA
(fria)
Como você entrou aqui?

DANIELE
Tudo bem, Rô? Quanto tempo, né?
Tenho um monte de novidade pra te
contar.

Quando Daniele vai dar um beijo no rosto de Rosângela:

ROSÂNGELA
(gritando)
Como você entrou aqui?!

Daniele dá um passo para trás.

DANIELE
(assustada)
Seu porteiro deixou eu entrar--

ROSÂNGELA
O que você tá fazendo aqui?! Na
minha casa!

DANIELE
(apavorada)
É... uma surpresa...
(MORE)
75.
DANIELE (CONT'D)
Minha mãe falou que você sempre
reclama que a gente não vem visit--

ROSÂNGELA
Sai daqui!

Rosângela não sai do lugar.

DANIELE
Calma, Rô... Desculpa--

ROSÂNGELA
Sai da minha casa agora!

Aterrorizada, Daniele corre para pegar sua bolsa no sofá.

DANIELE
Desculpa, eu pensei--

ROSÂNGELA
Vai embora! Sai daqui! Sai daqui!
Sai daqui! Sai-da-qui!

Daniele pega sua bolsa e voa para fora da cobertura.

DANIELE
(quase chorando)
Desculpa, Rô. Eu não queria
incomodar...

Rosângela não se vira.

DANIELE (CONT’D)
(chorando)
Desculpa.

Daniele vai embora e fecha a porta.

Rosângela permanece imóvel por um tempo.

Fecha os olhos.

Anda em direção à escada e começa a subir até o...

INT. CORREDOR DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Como uma máquina, Rosângela segue até o...

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Ela deixa sua bolsa cair no chão, senta-se na cama e...

Se encolhe, escondendo o rosto atrás das pernas.


76.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela deitada na cama, apática.

Seu celular toca. É Tia Bel.

Ela ignora.

Tia Bel liga de novo. Rosângela vira para o lado, deixando o


celular tocar.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela praticamente na mesma posição, deitada na cama,


ignora a chamada de Mário.

Respira fundo e volta a dormir.

Logo, uma chamada de seu consultório.

Ela não se mexe.

INT. BANHEIRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela faz xixi.

Uma chamada de Cris. Ignorada.

Rosângela mal se seca, não lava as mãos e volta para o


quarto.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela dorme, completamente coberta pelo lençol.

A porta de seu quarto se abre lentamente.

É Mário.

MÁRIO
Rô?

Nenhuma resposta.

Mário senta-se ao pé da ex-cama deles e chacoalha suavemente


a perna de Rosângela.

MÁRIO (CONT’D)
Rô.

Ela acorda. Leva um tempo para reconhecer Mário.

ROSÂNGELA
(sonolenta)
Mário? Como você entrou aqui?
77.

MÁRIO
O Marinho...

ROSÂNGELA
(sem energia)
Claro... Vai embora. Num tô com
cabeça pra você.

MÁRIO
Rô. Eu tava preocupado. Você não me
atende mais.

ROSÂNGELA
Num precisa se preocupar. Eu tô
bem.

Pausa.

MÁRIO
As crianças estão aqui. A gente vai
viajar amanhã...

Rosângela se cobre novamente.

ROSÂNGELA
Tá. Pode ir. Tá autorizado.

MÁRIO
Tem certeza? Num é melhor a gente
ficar por aqui?

ROSÂNGELA
Não. Vai. Eu quero ficar sozinha.

Escondidinhos atrás da porta do quarto, com expressões


preocupadas:

TIAGO MANUELA
Mãe? Cê tá bem. Tá tudo bem?

Rosângela senta na cama.

ROSÂNGELA (CONT’D)
(fraca)
Tá, sim, filhotes. O papai só veio
se despedir antes de vocês
viajarem. Vai ser muito divertido.
Tirem bastante fotos, tá?

MANUELA
(vozinha)
Tá bom...

TIAGO
Eu vou te mandar uma por dia.
78.

ROSÂNGELA
Isso mesmo, filho.
(para Mário)
Vai, lá. Eu só preciso ficar um
pouco quietinha.

MÁRIO
(se levantando, não
convencido)
Tá bom.

Mário se junta às crianças e põe as mãos nos ombros delas.

MÁRIO (CONT’D)
Vamos terminar de fazer as malas?

Manuela e Tiago começam a ir embora sempre olhando para mãe.

TIAGO
Tchau, mãe.

MANUELA
Tchau... Te amo.

Eles fecham a porta e Rosângela volta a dormir.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - NOITE

Rosângela acorda com barulhos vindo da sala no andar debaixo.

Com muito esforço, ela levanta da cama e se arrasta até o...

INT. CORREDOR DE ROSÂNGELA - CONTÍNUO

Ela segue para a escada.

ROSÂNGELA
Mário. Eu já falei que quero ficar
sozinha.

Ela desce a escada até a...

INT. SALA DE ESTAR DE ROSÂNGELA - NOITE

E para em um degrau quando vê--

A MÃE (64) e o PAI (66) de Rosângela, olhando para ela,


preocupados.

PAI
Oi, filha.

MÃE
Tá tudo bem? O Mário ligou pra
gente--
79.

ROSÂNGELA
Oi pai. Oi mãe. Tá tudo ótimo...
(começando a chorar)
Eu tô muito feliz.

Rosângela cai aos prantos.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Eu juro que eu tô feliz. Eu to
muito feliz.

Seus pais se apressam para abraçá-la.

PAI
Ô, minha filha...

MÃE
Tá tudo bem. A gente tá aqui.

Eles permanecem abraçados.

INT. QUARTO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela dormindo.

Batidas na porta.

A Mãe entra com uma bandeja de café da manhã.

MÃE
Bom dia, luz do dia.

Rosângela geme, reclamando.

A Mãe senta na cama e põe a bandeja em cima de Rosângela.

MÃE (CONT’D)
Vamos levantando que o dia já
começou.

Contrariada, Rosângela senta na cama.

MÃE (CONT’D)
Ó, torradinha com manteiga e
geléia, café moído na hora e suco
de cajá.

Rosângela dá uma mordida na torrada.

MÃE (CONT’D)
Tá gostoso?

ROSÂNGELA
(com a boca cheia)
Anran.
80.

MÃE
É o carinho

ROSÂNGELA
Sei... Cadê o papai?

MÃE
Saiu pra fazer compras. Sua
geladeira tava vazia.

ROSÂNGELA
É...

Rosângela continua comendo.

MÃE
Tá melhor, filha?

ROSÂNGELA
Sei lá...

MÃE
Tá sim. Cê vai ver. Cada dia fica
mais fácil. E quando as crianças
voltarem, a gente fica o dia
inteiro com eles. Vai te fazer bem.

ROSÂNGELA
Tá bom...

Elas ouvem um barulho no andar de baixo.

MÃE
Olha seu pai aí.

ROSÂNGELA
Mãe.

MÃE
Quê?

ROSÂNGELA
Desculpa...

MÃE
Que isso, filha. Num tem nada que
se desculpar.

Algumas lágrimas escorrem no rosto de Rosângela.

Elas ouvem o Pai subindo a escada.

ROSÂNGELA
Tem sim. Eu pensei que fosse culpa
sua também, mas era tudo coisa da
minha cabeça.

A Mãe abraça ela.


81.

MÃE
(mesmo sem entender)
Não se preocupa, filha. Tá tudo
bem, agora.

O Pai abre a porta.

PAI
Que que é isso? Já tão chorando?
Num são nem onze horas.

Elas se desfazem do abraço. Rosângela limpa suas lágrimas.

PAI (CONT’D)
Eu sei o que vai te animar.

O Pai joga um mini chocolate, Diamante Negro, em cima da


cama. Rosângela abre e morde na hora.

ROSÂNGELA
Diamante Negro. Oba.

PAI
Num é o seu preferido?

ROSÂNGELA
Anran.

PAI
Gostou?

ROSÂNGELA
Delícia...

PAI
Então, toma.

O Pai joga outro Diamante Negro.

E outro.

E outro.

Rosângela começa a sorrir.

PAI (CONT’D)
E só mais um...

O Pai tira um punhado de Diamantes Negros do bolso e joga pra


cima, fazendo chover chocolate na cama.

Rosângela ri.

INT. COZINHA DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela toma café da manhã com os pais à mesa. Rosângela


está comendo muito.
82.

A Mãe levanta pra por louça na máquina.

MÃE
Olha que apetite. Tô gostando de
ver, hein?

O Pai toca no braço de Rosângela, sério.

PAI
Rô.

ROSÂNGELA
Hum?

PAI
Eu tô muito feliz de te ver
melhorando. Mas...

Rosângela para de comer.

PAI (CONT’D)
Se você precisar... se você quiser,
saiba que a gente tá aqui pra te
ajudar.

ROSÂNGELA
Eu sei, pai.

PAI
Não, num é só isso. Se você quiser
começar tudo de novo. Se mudar pro
Rio pra ficar mais perto da gente,
ou mais longe disso tudo aqui... A
gente te ajuda. Eu até já dei uma
olhada em uns imóveis comerciais...
perfeitos pra consultório de
dentista. E tem um apartamento a
venda num prédio não muito longe do
nosso... mas também não tão perto.
Porque você precisa da sua
privacidade também, né--

Rosângela põe a mão no braço do pai, ternamente.

ROSÂNGELA
(sorrindo)
Brigada, pai.
(para a Mãe)
Por falar nisso, mãe. Cê marca uma
consulta com o Charles pra mim?
Queria cortar o cabelo.

MÃE
Claro, filha.

ROSÂNGELA
Brigada, mãe. Faz tempo que eu não
vou lá. Copacabana é tão longe, né?
83.

MÃE
Nem tanto...

A família volta a comer.

INT. CABELEIREIRO - DIA

Rosângela se encara no espelho, examinado seu novo corte de


cabelo curtíssimo.

ROSÂNGELA
Aaai, Charles! Adorei! Ficou lindo
de mais!

CHARLES (60), o cabeleireiro, faz uns últimos ajustes no


cabelo de Rosângela com a mão.

CHARLES
Mas também, querida, sendo filha de
quem é. A beleza se herda, é ou não
é?

ROSÂNGELA
Não fala isso que a mamãe vai ficar
toda boba, hein?

CHARLES
Se eu falei, é porque é verdade.

Rosângela se levanta e eles se despedem com um beijo no


rosto.

ROSÂNGELA
Brigada, Charles. Você continua
divino.

CHARLES
Que isso, querida, imagina... Sua
beleza é que ajuda. Manda
lembranças pra sua mãe.

ROSÂNGELA
(a caminho da saída)
Pode deixar. Tchau, um beijo.

CHARLES
Tchau, querida. Vai com deus.

Rosângela sai.

EXT. PRAIA DE COPACABANA - DIA

Uma confiante Rosângela passeia na praia com seu novo cabelo.

Quando ela senta na areia, três MENINAS barulhentas se


aproximam dela carregando caixas de chiclete.
84.

MENINA 1
Tia, compra chiclete?

MENINA 2
Quer chiclete, tia?

MENINA 3
Aqui, tia. Não compra delas não.
Compra esse aqui que é sem açúcar.

Rosângela titubeia para trás, ameaça se levantar e ir embora,


mas se detém.

ROSÂNGELA
Ah, é? Sem açúcar é melhor, é?

MENINA 3
É melhor porque aí num dá cárie.

ROSÂNGELA
Olha só... Muito bem!

MENINA 3
Aqueles outros ali, tudo dá cárie.

MENINA 1
É nada.

MENINA 2
Compra esse aqui que é muito mais
gostoso.

ROSÂNGELA
Tá bom, tá bom... Me dá um de cada.
Eu quero ver qual é o mais gostoso.

Cada uma das meninas dá um pacote de chiclete para Rosângela.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Pronto. Quanto é?

MENINA 1
Dois reais.

MENINA 2
Três.

MENINA 3
Quatro.

Rosângela pega sua carteira.

ROSÂNGELA
Tá aqui, ó: um, dois, três, quatro.

As meninas estendem as mãos para pegar o dinheiro. Mas


Rosângela não entrega.
85.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Peraí. Antes...

Rosângela tira três cartões da carteira e entrega para elas


com o dinheiro.

MENINA 1
Que isso, tia?

ROSÂNGELA
É o cartão do meu consultório pra
vocês entregarem pras mães de
vocês.

MENINA 2
(para as outras meninas)
Ela é dentista...

ROSÂNGELA
Fala pra elas ligarem lá e marcarem
uma consulta que a tia vai fazer
uma revisão nos dentes de cada uma,
tá? De graça.

MENINA 3
Tá, brigada, tia.

As meninas começam a ir embora.

ROSÂNGELA
Peraí.

Rosângela tira mais cinco reais da bolsa.

ROSÂNGELA (CONT’D)
Aqui ó. Me dá mais um de cada.

Elas obedecem e começam a ir embora.

MENINAS
Brigada, tia. Tchau!

Rosângela assiste elas correndo com um sorriso de orgulho no


rosto.

EXT/INT. PONTE RIO-NITERÓI / CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela dirige admirando a paisagem.

NARRADOR (V.O.)
De repente, a vida de Rosângela
parecia feita só de luz e brilho.
Só de carinho e puro sentimento.
Porque agora, o mundo dela... era
com se fosse... como se ela se
sentisse um pouco... mãe daquele
mundo.
86.

Rosângela abaixa a cabeça para ligar o rádio.

NARRADOR (V.O.)
E foi só abaixar os olhos um
instante para sintonizar o rádio.
Só o meio segundo de abaixar e
levantar os olhos.... Para que o
mundo que Rosângela encontrasse ao
mirar novamente a ponte diante de
si... fosse completamente...

Rosângela levanta a cabeça e olha para o lado. Seus olhos se


arregalam...

NARRADOR (V.O.)
Diferente.

O sorriso de Daniele passando no carro ao lado.

NARRADOR (V.O.)
Cruel instante. Um sorriso tão
puro... mais puro que o dia... Mais
puro que:

FLASHBACK: INT. CONSULTÓRIO ODONTOLÓGICO DE ROSÂNGELA - DIA

O sorriso de Daniele.

DANIELE
Tudo bem?

VOLTA PARA:

EXT/INT. PONTE RIO-NITERÓI / CARRO DE ROSÂNGELA - DIA

Rosângela e seu olhar aflito.

NARRADOR (V.O.)
Um sorriso tão puro que Rosângela
poderia jurar que a prima estava...
grávida. E pior, ela estava em um
Honda Civic Azul.

Rosângela pisa no acelerador.

NARRADOR (V.O.)
“Claro que Tia Bel não sabia a
diferença entre um Celta e um Honda
Civic”. E diante da gravidez da
prima, todo o ventre seca, tudo que
vive seca...

Rosângela acelera cada vez mais.


87.

NARRADOR (V.O.)
E Rosângela pensou... Não, pensou,
não... Sentiu. Ela sentiu com
orgulho o quão leve era o seu
volante e quão macio era o seu
acelerador.

Cada vez mais rápido e--

Joga o carro da ponte Rio-Niterói.

FIM

Você também pode gostar