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Talco de Vidro v1
Talco de Vidro v1
NARRADOR (V.O.)
Quando o dia a acordou, Rosângela
pensou outra vez aquela coisa de
estar, assim... Ai! Não! É meio
difícil de explicar, pra falar a
verdade, porque o pensamento
dela... Não era bem pensamento. Era
mais assim, tipo, uma sensação,
entende?
Ela olha para o lado que o Homem saiu e depois para o lado
oposto: a imensa janela de sua cobertura enquadra o mar, as
ruas e as árvores de Niterói acordando com o sol.
Suspira, satisfeita.
ROSÂNGELA
Bom dia.
MANUELA E TIAGO
(focados nos celulares,
sem ânimo)
Bom dia...
ROSÂNGELA
Manuela. Tiago.
MANUELA
Hum?
TIAGO
Quê?
2.
ROSÂNGELA
Vocês lembram da conversa que a
gente teve sobre celular na mesa?
MANUELA
Pera, só um pouquinho...
ROSÂNGELA
Agora.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Dormiram bem?
MANUELA
(sem olhar para a mãe)
Anran.
TIAGO
(concentrado na comida)
Sim.
ROSÂNGELA
Que bom... Eu também...
TIAGO
Eu acho que a Manuela não dormiu
bem.
ROSÂNGELA
Ah, é? Por que, Manuela? Pesadelo?
TIAGO
Não. Ela ficou jogando no
computador até bem depois da hora
de dormir.
MANUELA
Cala a boca! Seu fedido--
ROSÂNGELA
Manuela!
ROSÂNGELA (CONT’D)
Isso é verdade? Eu vou ter que
tirar seu computador de nov--
ROSÂNGELA (CONT’D)
Tiago! Chega!
ROSÂNGELA (CONT’D)
(para Tiago)
Machucou de verdade?
TIAGO
Não...
ROSÂNGELA
Então não tem por que chorar, né?
ROSÂNGELA (CONT’D)
Né?
TIAGO
É... desculpa...
ROSÂNGELA
E você, Manuela?
MANUELA
(para Tiago)
Desculpa.
ROSÂNGELA
E computador agora só de dia pra
fazer trabalho de escola durante
uma semana.
MANUELA TIAGO
Mas mãe, eu nem fiquei tanto Bem feito. Foi de uma hora!
tempo assim. Foi só um jogo Uma hora--
de vinte minutos. De dez
minutos--
MÁRIO
Bom dia.
MANUELA
Pai!
MÁRIO
Que gritaria toda foi essa?
MANUELA TIAGO
(envergonhada) (envergonhado)
Num foi nada... Nada...
MÁRIO (CONT’D)
(para Rosângela)
Tá tudo bem, Rô?
ROSÂNGELA
Tá. É só a Manuela no computador de
noite de novo.
MÁRIO
(para Manuela, bravo, mas
amigável)
Pô, Manuela. Hora de dormir é hora
de dormir, né, cara?
MANUELA
É...
TIAGO
(baixinho, para Manuela)
Fedida.
ROSÂNGELA
Vamos parar?
MÁRIO
(olhando para um bolo na
mesa)
Opa...
MÁRIO (CONT’D)
A Madalena fez meu bolo de novo.
Cadê ela?
5.
ROSÂNGELA
Tá... lavando roupa. Na área de
serviço.
MÁRIO
(alto, com a boca cheia)
Tá uma delícia, Madá!
ROSÂNGELA
Escuta... Cê pode levar as crianças
hoje? Queria chegar mais cedo no
consultório.
MÁRIO
Claro.
MANUELA TIAGO
Oba! Eeeee!
MÁRIO (CONT’D)
E quem vai dirigindo no meu colo
dessa vez?
ROSÂNGELA
Escuta... Isso num é meio perigoso,
Mário?
MÁRIO
(condescendente)
Magina.
(rindo, para as crianças)
Tá. Hoje quem vai é...
MÁRIO (CONT’D)
...A Manuela.
MANUELA
Yes!
TIAGO
Ah! Não vale. Ela que foi da última
vez. Era a minha vez.
MÁRIO
É verdade. Sinto muito, Manu. É a
vez do Tiago.
TIAGO
(imitando o Manuela)
Yes!
6.
MANUELA
Tudo bem. Eu vou na volta.
ROSÂNGELA
(para o Mário)
O Tiago, é melhor não.
MÁRIO
Não se preocupa, Rô. Eu tomo
cuidado.
ROSÂNGELA
Tá bom.
MÁRIO
Te vejo no almoço?
ROSÂNGELA
Claro.
MÁRIO
(para os filhos)
Então, vamos acabar de comer que
está quase na hora.
ROSÂNGELA
(alto)
Madalena. Num precisa se preocupar
com a louça que eu lavo, viu?
ROSÂNGELA
Marinho. Tudo bem? Bom dia.
MARINHO
Bom dia, D. Rosângela. Tudo bem. E
com a senhora?
ROSÂNGELA
Tudo. Escuta...
MARINHO
Tô escutando.
7.
ROSÂNGELA
Oi?
MARINHO
Tô escutando, D. Rosângela. Pode
falar.
ROSÂNGELA
(risadinha sem graça)
Ah, tá. Escuta...
MARINHO
Tô escutand--
ROSÂNGELA
Tá escutando, é verdade. Vai chegar
uma encomenda pra mim hoje, é um
pacote que é muito importante. E eu
não queria deixar ele aqui na
portaria.
MARINHO
Que isso, D. Rosângela? A senhora
pode ficar tranquila que eu cuido
direitinho das coisas aqui.
ROSÂNGELA
Eu sei, Marinho. Num é isso. Eu só
quero que o pacote vá direto pro
apartamento, entende?
MARINHO
A senhora que sabe.
ROSÂNGELA
Pois é. Mas como eu não vou estar
aqui, eu já instruí a Madalena para
assinar por mim. Não deve dar
problema nenhum.
MARINHO
Tá certo, D. Rosângela.
ROSÂNGELA
Então, quando a encomenda chegar,
cê toca lá e avisa ela, tá? Vocês
se entendem, né?
MARINHO
Pode deixar. Tenha um bom dia, D.
Rosângela.
ROSÂNGELA
Você também, Marinho. Bom dia.
NARRADOR (V.O.)
É... uma sensação, sabe? Assim, de
como se ela pertencesse a um
círculo... Digamos... Mais elevado.
E se não fosse assim, se não fosse
verdade, se não fosse sabido por
todos, pergunte ao porteiro do
prédio, dizendo ‘Bom dia, D.
Rosângela’ todo dia de manhã...
NARRADOR (V.O.)
...ao moço do estacionamento; a
essa pá de gente olhando o carro
dela de rabo de olho, sem poder
comprar um igual...
NARRADOR (V.O.)
Pergunte que você vai ver... É mais
ou menos como se você se visse na
pele de uma pessoa especial, que
sabe que existe miséria no mundo,
mas que... Não pode fazer nada, né?
NARRADOR (V.O.)
É chato, é triste... Mas fazer o
quê?
NARRADOR (V.O.)
Onde é que ela deixou a chave, meu
deus?
“Dentista
Dra. Rosângela de Amaral”
NARRADOR (V.O.)
“Ah, tá aqui!”
ROSÂNGELA
Bom dia, Irma.
IRMA
Bom dia, Dra. Rosângela. O paciente
das oito desmarcou. Disse que
depois liga pra agendar outra hora.
ROSÂNGELA
Tudo bem... Mas você podia ter me
ligado avisando, né, Irma? Dava
tempo de eu levar meus filhos na
escola.
IRMA
Desculpa, Dra. Rosângela. Eu só num
avisei porque veio uma paciente sem
horário marcado, daí eu pensei que
senhora podia atendê--
ROSÂNGELA
A gente não atende sem horário
marcado.
IRMA
Mas ela disse que era sua prima.
Daniele.
NARRADOR (V.O.)
Daniele. A prima do Barreto. Sabe
aquela prima de primeiro grau do
Barreto? Essa mesmo. Elas tinham
mais ou menos a mesma idade. Mas
Daniele nunca fez parte do círculo.
NARRADOR (V.O.)
Ela sempre teve uma vida difícil.
NARRADOR (V.O.)
Imagine o que é você ser criança e,
dia sim, dia não, ter que limpar o
chão do vômito do seu pai. Chega
uma hora que você só pensa em sumir
dali.
NARRADOR (V.O.)
Que você só pensa em casar. Porque
você jura pra você mesma que não
vai ter que aguentar tudo o que sua
mãe aguentou. Mas o problema é que
quando Daniele se casou, ela apenas
trocou o vômito do pai pelo cuspe
do marido na cara.
11.
NARRADOR (V.O.)
E Rosângela que era calma, boa e
tranquila podia dizer que-- É, é
isso mesmo. Podia dizer que tinha
pena da prima, pronto!
VOLTA PARA:
De volta ao presente.
NARRADOR (V.O.)
Mas essa pena nunca era completa.
Por causa daquele sorriso no rosto
de Daniele.
NARRADOR (V.O.)
Que apesar do Barreto, do vômito e
do cuspe, não baixava a crista.
Aquele sorriso que fazia com que o
círculo elevado de Rosângela, de
repente, desaparecesse.
DANIELE
Tudo bem?
ROSÂNGELA
Oooi, e aí? Tudo bom?
ROSÂNGELA (CONT’D)
Olha, cortou o cabelo? Ficou ótimo.
DANIELE
Eu pedi pra deixar picotadinho
assim, nas pontas assim, tipo como
se estivesse mal cortado.
ROSÂNGELA
Tá ótimo.
DANIELE
Ficou bom, né?
12.
ROSÂNGELA
Não. Ficou ótimo. E você tá aqui de
prima ou paciente?
ROSÂNGELA (CONT’D)
(rindo)
Que que aconteceu, menina?
DANIELE
Num sei. Caiu enquanto eu tava
comendo bolacha.
ROSÂNGELA
Tem que escovar esses dentes três
vezes por dia.
DANIELE
Eu sei.
ROSÂNGELA
E passar fio dental.
DANIELE
Eu passo. É que essa eu fiz quando
era criança. Aquele dentista do
Barreto num era dos melhores.
ROSÂNGELA
A gente conserta pra você.
ROSÂNGELA (CONT’D)
E a Tia Bel? Como anda?
DANIELE
Tá lá, né? Bem mais calma agora.
ROSÂNGELA
Tia Bel mais calma? Que que ela
fez? Aumentou a dose do calmante?
Daniele ri.
DANIELE
Ela mandou um beijo pra você.
ROSÂNGELA
Ah, brigada. Vou ver se eu ligo pra
ela essa semana.
DANIELE
Liga sim.
13.
ROSÂNGELA
Mas por que ela anda mais calma?
DANIELE
Quê?
ROSÂNGELA
Por que ela anda mais calma? Que
milagre é esse? O Tio Wagner parou
de beber?
DANIELE
Quem dera. Aí também acho que já é
milagre demais.
ROSÂNGELA
Tio Wagner não tem jeito mesmo...
DANIELE
Caso perdido, menina...
ROSÂNGELA
Mas pelo menos a Tia Bel anda mais
calma...
DANIELE
Tá sim. Muito mais.
ROSÂNGELA
Que bom. Pode deitar.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Abre a boca.
IRMA (O.S.)
Dra. Rosângela?
ROSÂNGELA
Oi. Diga, Irma?
IRMA
A senhora quer que eu prepare a
resina?
ROSÂNGELA
Não. Uma amálgama.
IRMA
Ué? Amálgama?
ROSÂNGELA
É.
IRMA
Mas resina não é mais estético?
ROSÂNGELA
É, só que amálgama deixa passar
menos sensibilidade. Tenho medo que
depois ela sinta dor com água
gelada, doce...
IRMA
Ah, bom...
NARRADOR (V.O.)
Mentira.
NARRADOR (V.O.)
A cárie não era nem tão profunda,
nem tão escondida que não pudesse
ser tapada com resina. Mas como a
Irma e a Daniele iriam saber?
Ninguém nunca iria saber da sua
tentativa desesperada de sujar de
cinza o sorriso de Daniele.
NARRADOR (V.O.)
Era para que a prima aprendesse,
para que de alguma maneira, a prima
não se atrevesse a ultrapassar a
linha divisória...
DANIELE
Deixa eu correr que senão eu chego
tarde e tenho que ficar depois da
hora.
ROSÂNGELA
Tá certo. E nada de comer até a
anestesia passar, hein?
DANIELE
Pode deixar...
(abrindo a bolsa)
E quanto ficou, Rô?
ROSÂNGELA
Deixa de ser boba, menina.
DANIELE
Ai, Rô...
ROSÂNGELA
E eu vou cobrar de você? Manda um
beijo pra Tia Bel.
DANIELE
Brigada, Rô. Dá um beijo nas
crianças, no Mário, em todo mundo,
tá?
ROSÂNGELA
Dou sim.
DANIELE
Brigada, tá?
ROSÂNGELA
Que isso? E liga pra marcar um
horário pra gente dar uma olhada
nesse siso. Tô achando que vai ter
que arrancar.
DANIELE
(abrindo a porta)
Tá, eu ligo. Beijo, prima.
ROSÂNGELA
Beijos.
DANIELE
Beijo, beijo.
MÁRIO (V.O.)
Tá chegando, Rô?
ROSÂNGELA
Tô, não, então... Na verdade, eu
não vou conseguir ir.
MÁRIO (V.O.)
Sério? Por quê? Aconteceu alguma
coisa?
ROSÂNGELA
Não, tá tudo bem. Foi só uma
confusão com os horários e não vai
dar tempo de eu ir praí.
MÁRIO (V.O.)
Que pena...
ROSÂNGELA
É, pena mesmo.
MÁRIO (V.O.)
Quer que eu leve comida pra você?
ROSÂNGELA
Oi? Não. Num precisa. Eu e a Irma
já pedimos um negócio aqui.
MÁRIO (V.O.)
Ué? Mas você num tá no carro?
ROSÂNGELA
É, tô. É que eu tô indo buscar. A
gente não pediu pra entregar.
MÁRIO (V.O.)
Entendi. Tá bom, Rô. Então até à
noite. Te amo.
ROSÂNGELA
Eu também.
MÁRIO (V.O.)
Beijo.
ROSÂNGELA
Beijo.
Ele desliga.
17.
GARÇOM
A senhora já decidiu?
ROSÂNGELA
(desconcertada)
É... Essa feijoada, é boa?
GARÇOM
Ninguém nunca reclamou, não.
ROSÂNGELA
E tem como fazer pra uma pessoa?
GARÇOM
Tem. É só pedir meia.
ROSÂNGELA
E o preço cai pela metade também?
GARÇOM
Isso. Vinte reais.
ROSÂNGELA
Tá bom, hein?
GARÇOM
Pois é. E pra beber?
ROSÂNGELA
É... cerveja?
GARÇOM
Qual?
ROSÂNGELA
Qual a mais barata?
GARÇOM
Tem Antartica, Skol e Brahma. Tudo
o mesmo preço.
ROSÂNGELA
Então... Traz a mais gelada.
IRMA
Oi Dra. Como foi o almoço com o
marido?
ROSÂNGELA
Bom. Estava delícia.
IRMA
Tô jogando umas revistas velhas
fora. Tem coisa de 1998 aqui,
acredita?
IRMA (CONT’D)
A senhora está bem, Dra.?
ROSÂNGELA
Tô sim, Irma. Por quê?
IRMA
Tá com uma cara estranha. Tá
passando mal?
ROSÂNGELA
Não. Joga logo essas revistas fora
e vamos preparar pro próximo
paciente, tá?
IRMA
Claro, Dra.
MÁRIO
Oi, Rô! Cê tá aí?
TIAGO
Oi, mãe.
MANUELA
Oi.
ROSÂNGELA
Oi...
MÁRIO
Cê tá cansada? Senta. Eu peço pra
Madá fazer um prato pra você.
ROSÂNGELA
Não. Num precisa. Deixa que eu
pego.
MÁRIO
Como foi seu dia?
ROSÂNGELA
Como foi meu dia? Tudo bem. Tudo
igual. Que nem agora.
MÁRIO
Como assim?
ROSÂNGELA
Nada. E o seu?
MÁRIO
Bom. Só senti falta do nosso
almoço.
ROSÂNGELA
Pois é.
(para os filhos)
E o de vocês?
MANUELA
Legal. Teve filme na aula de
ciência, daí deu pra eu jogar um
pouquinho, já que eu num posso mais
jogar na minha própria casa.
ROSÂNGELA
(para Manuela, seca)
Muito bem.
(MORE)
20.
ROSÂNGELA (CONT'D)
Muito esperta, a senhora. Bem
malandra. Continue assim.
ROSÂNGELA (CONT’D)
(para Tiago)
E você, filho?
TIAGO
Foi ótimo. Eu fiquei em terceiro
lugar.
ROSÂNGELA
(sem paciência)
Terceiro lugar em quê, Tiago?
TIAGO
Ah, num jogo de matemática que teve
lá.
ROSÂNGELA
Nossa, que específico. Parabéns.
TIAGO
(sem entender)
É...
MÁRIO
Tá tudo bem mesmo, Rô?
ROSÂNGELA
Tá... É só cansaço mesmo...
MÁRIO
Ah! Olha o que chegou.
MÁRIO (CONT’D)
Num vai abrir?
ROSÂNGELA
Eu abro depois que eu comer.
21.
CLICK!
Estranho...
ROSÂNGELA
Manuela? Tiago:
ROSÂNGELA
Madalena?
Silêncio. E--
Não há ninguém.
ROSÂNGELA
Madalena?
Dá mais um passo.
ROSÂNGELA
(sussurrando)
Madalena?
Mas desiste.
Olha do vaso para uma estante do outro lado da sala com meia
dúzia de vasos de cristal idênticos que variam em cor.
MANUELA (O.S.)
(rindo)
Não, pai, joga esse aqui, ó.
MÁRIO (O.S.)
Esse?
TIAGO (O.S.)
(rindo)
Não! Ai, ai, ai...
23.
MÁRIO
É dificil, esse jogo.
MANUELA (O.S.)
Num é, é só ter as manha.
MÁRIO (O.S.)
Só ter as manha, né? Cê tem as
manha, Rô? Já jogou esse jogo?
MÁRIO (CONT’D)
Rô?
ROSÂNGELA
Oi? Não. Cê sabe da Madalena?
MÁRIO
Ela... foi no supermercado.
ROSÂNGELA
(reclamando)
Sério? E nem me perguntou se eu
precisava de alguma coisa.
MÁRIO
Eu posso ligar pra ela. Que que cê
precisa?
ROSÂNGELA
É... Deixa pra lá. Enfim...
ROSÂNGELA (CONT’D)
Escuta-- Eu sei, você tá escutando.
MÁRIO
(achando graça)
Oi?
ROSÂNGELA
Nada. Você pode levar as crianças
para escola de novo?
MÁRIO
Claro. Cê tá trabalhando demais,
hein, Rô?
ROSÂNGELA
Não, num é isso. É a Daniele. Ela
apareceu no consultório ontem do
nada, sem marcar horário.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Pois é... E ela num tava com uma
cara boa.
MÁRIO
Tio Wagner de novo?
ROSÂNGELA
Não. Acho que não. Era diferente
dessa vez. Parecia que ela tava...
cansada. De tudo, sabe?
MÁRIO
Sei. Dá pra ver que ela te deixou
bem preocupada.
ROSÂNGELA
Foi. E eu queria passar na casa da
Tia Bel pra conversar com ela, ver
se eu posso ajudar.
MÁRIO
Claro. Boa idéia.
MÁRIO (CONT’D)
Te amo.
ROSÂNGELA
(levantando)
Também...
NARRADOR (V.O.)
O que Rosângela queria mesmo era
compreender a urgência com que
decidira visitar Tia Bel. Descobrir
algo que a reconfortasse, que desse
razão para ela querer tirar a limpo
o que havia naquele sorriso... que
ela podia não saber bem o que
era... mas que lhe dava a certeza
de ser precisamente o que estava
deixando Tia Bel mais calma. Ela
tinha que descobrir o que era.
25.
TIA BEL
Oi, Rosângela. Entra, entra...
ROSÂNGELA
Oi, tia. Tudo bem?
TIA BEL
Você devia ter ligado antes, filha.
Pra me dar tempo de arrumar alguma
coisa pra comer.
ROSÂNGELA
Que isso, tia. Família num tem
dessas coisas. Que calor que tá lá
fora...
TIA BEL
Nem me fale. Eu, parece que tô
enrolada num saco plástico.
Rosângela ri.
ROSÂNGELA
Mesma coisa lá em casa... com o ar-
condicionado...
TIA BEL
Imagino... Senta, senta...
Rosângela obedece.
ROSÂNGELA
A Daniele passou no consultório
ontem.
TIA BEL
Eu sei... Deu algum problema? Eu
mandei ela marcar horário antes.
Mas ela disse que você num ia
ligar, dava um jeito porque é prima
e amiga--
ROSÂNGELA
Não, não. Foi tudo bem.
26.
TIA BEL
(ainda se desculpando)
É que foi de última hora, sabe? A
obturação dela caiu aqui, comendo
as bolachas dela, vendo TV...
ROSÂNGELA
Imagina, tia. Não se preocupa.
TIA BEL
Ela gosta muito de você, sabia?
ROSÂNGELA
(desconfortável)
Eu sei-- Eu também, tia.
TIA BEL
Peraí que eu vou fazer um café pra
gente.
ROSÂNGELA
Num precisa--
TIA BEL
Deixa disso.
ROSÂNGELA
Pesquisas?
ROSÂNGELA
Ah é?
TIA BEL
É... ele pensa que a gente não sabe
que é tudo desculpa pra ele sair
pra beber.
ROSÂNGELA
(rindo)
O Tio Wagner não tem jeito mesmo.
TIA BEL
E a Manuela e o Tiago? Que andam
aprontando?
ROSÂNGELA
A Manuela é daquele jeito, né?
Implica com o irmão o dia inteiro.
TIA BEL
Ai, meu deus... Essas crianças são
fogo.
ROSÂNGELA
E o irmão com ela. Porque o Tiago
tem um geniozinho também.
TIA BEL
Ah é? Quem será que ele puxou? Você
ou o Mário?
ROSÂNGELA
Hmm... Acho que saiu mais pro avô.
O pai do Mário é muito turrão,
sabe?
TIA BEL
Não sabia, não.
ROSÂNGELA
É sim, seu Francisco é um homem
turrão.
TIA BEL
Olha que coisa... E o Mário é uma
pessoa tão doce, né? Tão calma.
ROSÂNGELA
Ah, é! Com Mário tudo é no tato,
tudo na conversa.
28.
TIA BEL
Até com os filhos?
ROSÂNGELA
Principalmente com os filhos! Ele é
todo meloso. A senhora precisa ver.
É que você vai pouco lá em casa...
Eu chamo tanto, mas vocês vão tão
pouco em casa...
TIA BEL
Ah, minha filha... É que o Wagner
com essa mania de bebida, eu fico
com vergonha de ir nos lugares...
ROSÂNGELA
Que isso, tia...
TIA BEL
Pois é. Num tô mais pra isso, sabe?
Num quero mais passar vergonha.
ROSÂNGELA
Bobagem, tia. A gente sabe como ele
é.
TIA BEL
E ainda tem esse negócio da
Daniele.
ROSÂNGELA
Que negócio? Vamos sentar no sofá?
TIA BEL
Esse negócio da separação, né? Teve
que vir morar aqui de novo, aí...
Ela num tem mais paciência com as
coisas do Wagner. Aí, já viu, né?
Briga todo o dia...
ROSÂNGELA
É... Sei como é... Se bem que a
Dani me disse que a senhora anda
mais calma de uns tempos pra cá.
TIA BEL
Mais ou menos.
29.
ROSÂNGELA
Como assim, tia? Mais pra mais ou
mais pra menos?
TIA BEL
Assim, mais ou menos... Às vezes eu
dou uma acalmada...
ROSÂNGELA
Sei... Aumentou a dose de calmante,
por acaso, foi?
TIA BEL
Não, não. Eu já tô com o Lexotan lá
em cima.
Rosângela ri.
ROSÂNGELA
Não, brigada.
ROSÂNGELA
(maquinando)
Sei...
ROSÂNGELA
Tia?
TIA BEL
...Eu sempre dou pelo menos uma
pingadinha--
ROSÂNGELA
Tia!
TIA BEL
Hum?
30.
ROSÂNGELA
Não será porque... o Tio Wagner
parou de beber?
TIA BEL
Quem dera, minha filha, quem
dera...
Tia Bel vai até a mesa do outro lado da sala para deixar o
leite.
ROSÂNGELA
Tia?
TIA BEL
Diga.
ROSÂNGELA
Então é por quê?
TIA BEL
Mas você é danada, hein, menina?
Bem que sua mãe fala: num dá pra
esconder nada de você!
ROSÂNGELA
Esconder o quê, tia?
TIA BEL
Olha, não era pra eu te contar
porque a Daniele pediu segredo. Ela
não queria que ninguém soubesse.
ROSÂNGELA
(nervosa)
Ah, é?
TIA BEL
É... Eu até falei: “nem a
Rosângela?” “Nem a Rosângela.”
ROSÂNGELA
O que é, tia? Pode falar.
TIA BEL
Olha, mas vê lá, hein? Se ela não
te contou, eu não podia estar
contando... E se alguém ficar
sabendo, foi você que contou--
ROSÂNGELA
(se levantando)
Deixa pra lá, então. É melhor nem
me falar. Prefiro não saber--
TIA BEL
Não, não, não. Eu falo. Não tem
problema, não. É que...
É Mário.
MÁRIO (V.O.)
Alô?
MÁRIO (V.O.)
Alô? Rô? Cê tá aí?
ROSÂNGELA
Oi, oi... tô aqui. Fala.
MÁRIO (V.O.)
Oi amor, cê tá bem? Que voz é essa?
32.
ROSÂNGELA
Oi. Tô, tô bem. Eu só... acabei de
subir na calçada, mas tá tudo bem.
MÁRIO (V.O.)
Ué? Cê tava na sua tia até agora?
ROSÂNGELA
Pois é. Foi uma longa conversa.
MÁRIO (V.O.)
Ô, Rô... Cuidado aí, hein? Se
assustou?
ROSÂNGELA
É... mais ou menos.
MÁRIO (V.O.)
Cuidado, tá?
ROSÂNGELA
Pode deixar.
MÁRIO (V.O.)
Você... separou a camisa que eu
pedi?
ROSÂNGELA
Camisa?
MÁRIO (V.O.)
É, pra hoje de noite.
ROSÂNGELA
Hoje de noite?
MÁRIO (V.O.)
Ô, Rô, pra festa do Raposo.
MÁRIO (V.O.)
Rô?
ROSÂNGELA
Oi, tô ouvindo.
MÁRIO (V.O.)
Separou a camisa?
ROSÂNGELA
Claro, Mário, acha que eu ia
esquecer?
33.
MÁRIO (V.O.)
Vê lá, hein? Vou passar em casa
rapidinho, nem vou tomar banho. Te
pego e a gente vai.
ROSÂNGELA
E as crianças?
MÁRIO (V.O.)
Eu busco. Beijo
ROSÂNGELA
Tchau.
O trânsito--
Os fios elétricos.
NARRADOR (V.O.)
Aquela frase, a frase da Tia Bel,
era uma linha que havia se tornado
um emaranhado de fios, cada um a
mesma frase, impossíveis de serem
separados, indecifráveis. Era
preciso que alguém colocasse a mão
de leve em sua cabeça... Alguém...
Mário, não... E separasse cada um
desses fios, pacientemente, um a
um. Até chegar ao único e primeiro
fio. O original. O puro e
cristalino som da frase:
ROSÂNGELA
Acho que tá na hora da gente mandar
a Madalena embora.
34.
MÁRIO
Sério? Por que, Rô?
ROSÂNGELA
Porque sim. Num tá mais dando
certo.
MÁRIO
Mas ela fez alguma coisa? Quebrou
um dos seus vasos, foi isso?
ROSÂNGELA
Não. É só que... A comunicação
entre a gente não está mais
funcionado.
MÁRIO
(rindo)
Quê?
ROSÂNGELA
É isso mesmo.
MÁRIO
O que que isso quer dizer?
ROSÂNGELA
Você sabe do que eu tô falando,
Mário.
PIM!
RAPOSO
Olha quem chegou!
MÁRIO
Oi, Raposo, meu querido!
GARCIA
...Daí eu só num mandei ele
praquele lugar porque tinha uma
menininha bonitinha do lado.
Eles riem.
RAPOSO
Êe, Garcia, Garcia... Garcia “fundo
de investimento. Garcia
“Fininveste”!
GARCIA
Tá vendo? Tipo de cara que não sabe
receber convidados.
MULHER ELEGANTE
E como estão aqueles lindos?
ROSÂNGELA
Tudo ótimo. Ficaram em casa.
Ao lado:
RAPOSO (O.S.)
Cuidado que ele ainda não vendeu
nenhum fundo do banco dele essa
noite.
GARCIA (O.S.)
Ô, Raposo, o banco não é meu, é dos
clientes.
Eles riem.
ROSÂNGELA
Olha.
MULHER ELEGANTE
Como eles cresceram...
ROSÂNGELA
Pois é.
GARCIA
E a bolsa, Marião, topas?
RAPOSO
Quando esse cara começa com
“Marião”, sai de baixo!
36.
MÁRIO
(rindo)
Hoje, não...
ROSÂNGELA
Cresceram, né?
MULHER ELEGANTE
É. Você recebeu o email que eu te
mandei?
ROSÂNGELA
Recebi. Ainda não tive tempo de
respond--
CRIS (O.S.)
Oi, Rô, tudo bem?
CRIS (CONT’D)
Quanto tempo, hein?
Elas se abraçam.
ROSÂNGELA
Aaai, Cris! Que ótimo! Tá boa?
CRIS
Tudo bom.
CRIS (CONT’D)
Menina, cê tá um arraso.
ROSÂNGELA
Ah, nem tanto, nem tanto... Fala
“oi” pro Mário--
RAPOSO
Só falta dizer que essa ultima
subida na bolsa foi o Rubão mexendo
os pauzinhos.
Eles riem.
CRIS
Vem, vamos dar o fora dessa
espelunca..
37.
GARCIA
O cara tem que jogar sereno, na
moita, senão azeda a jogada...
CRIS
...Eu quase num vim, mesmo. Porque
o falecido era assim com o Raposo.
Mas aí o Raposo me ligou dizendo
que o falecido não vinha porque
tava com medo de dar de cara comigo
aqui! Pode?
Elas riem.
ROSÂNGELA
Mas você nunca sente falta dele?
Ficaram tanto tempo juntos...
CRIS
Eu, hein? Deus me livre! Num me
arrependo de nada. Mesmo morando
naquele apartamentinho. É pequeno,
mas pelo menos eu durmo com o
barulhinho das ondas e não com o
ronco daquele animal.
ROSÂNGELA
(rindo, incomodada)
É... O Mário não ronca.
CRIS
Olha que bom...
ROSÂNGELA
É... ele é muito bom. Pai
presente... Incapaz de dar um grito
com as crianças.
ROSÂNGELA (CONT’D)
E é um homem muito apaixonado, né?
Modéstia à parte.
CRIS
Claro. Totalmente diferente do
falecido.
38.
ROSÂNGELA
(não muito segura)
Anran.
CRIS
Porque aquele, nossa! Tinha tudo
que era desvio psicológico.
ROSÂNGELA
É eu lembro, a primeira vez que
você disse como ele era, eu fiquei
assim: “quê?!”
CRIS
Psicopata, sociopata, egomaníaco,
codependente, bipolar-- Fazia
chantagem emocional até com
atendente de telemarketing!
CRIS (CONT’D)
Mas chega. Não é educado falar mal
dos mortos, não é mesmo?
Cris ri sozinha.
CRIS (CONT’D)
Mas, então, menina... Aparece lá em
casa. Conhecer meu cafofo novo.
ROSÂNGELA
Vou sim. Eu tô meio ocupada agora,
mas quando der, te ligo.
CRIS
Liga mesmo. E pode trazer seus
filhos. Eles não enchem muito o
saco, né?
ROSÂNGELA
Oi? Não! Eles são ótimos.
CRIS
Desculpa falar assim. Mas a gente
tem que ter noção, né? Porque tem
criança chata a rodo. Cê acha que o
Garcia não sabe que os filhos dele
são insuportáveis?
MÁRIO (O.S.)
(longe)
A idéia era comprar uma casa e
montar um consultório misto. Ter a
parte de cardiologia e ginecologia,
assim separado.
39.
CRIS
Tô falando a verdade ou tô falando
a verdade?
ROSÂNGELA
(concentrada em Mário)
É... Verdade...
MÁRIO
Mas aí meu sócio deu pra trás e eu
fui tirar satisfação com ele.
MÁRIO (CONT’D)
E ele: “Não, não, sabe o que é? É
que isso, que aquilo, que minha
mãe, meu cachorro, meu papagaio”...
CRIS (O.S.)
Mas vem, sim, Rô.
Quando Mário ri, expõe seus dentes podres, sua baba gosmenta
grudada entre os lábios.
MÁRIO
Aí eu falei: “caceta!” E eu tive
que assumir a casa sozinho. Ficou
tudo pra cardiologia. Foi a melhor
coisa que me aconteceu. Como é que
é que fala? Males que vêm pra bem?
CRIS (O.S.)
A gente vai se divertir.
Sai em disparada!
E VOMITA.
Na frente de todos.
Mário a abraça.
MÁRIO
Que que houve, Rô? Num foi o vinho,
foi?
do casal discutindo;
NARRADOR (V.O.)
Era o cheiro de Mário. O cheiro
azedo de Mário e sua imundície.
Como é que ela nunca reparou antes?
Como é que ninguém nunca avisou ela
antes? Um cheiro mais asqueroso do
que o da pústula dental. Não
adianta mais. “Porque nem fingindo
eu consigo.” “Porque é com esse
cheiro que você me ama.” E aí ela
discutindo a guarda dos filhos no
meio da noite. Com a vontade de
dizer que ela abre mão de tudo,
viu, Mário? Até dos filhos! Até dos
filhos, ouviu bem?! Desde que seja
para ficar longe da tua sujeira.
NARRADOR (V.O.)
Não ri, não, porque foi assim mesmo
que ela falou. Eu sei que parece
engraçado, assim... Igual na
novela.
ROSÂNGELA
...Por isso eu resolvi abrir mão
de algumas coisas também. Pra
acelerar o processo. Sabe lá o que
é um litigioso.
CRIS
Então? Tá pensando que o falecido
me deu facilidade? Tudo, mas tudo a
gente tinha que discutir. Parece
até que fazia de sacanagem!
ROSÂNGELA
Claro que era de sacanagem, né,
Cris? Graças a deus que com o Mário
não foi assim... Então eu pensei,
“pra quê?”, sabe?
ROSÂNGELA (CONT’D)
Aí concordamos com tudo numa boa.
Ele também não queria disputa
judicial, disse que não suportava
nada disso...
CRIS
E a guarda dos filhos?
ROSÂNGELA
Ficou comigo.
(pausa)
Mas que culpa eu tenho se eles
preferem passar mais tempo com o
pai?
CRIS
Claro. Você num tem culpa de nada.
ROSÂNGELA
É... e o pior é que eu nem sei
explicar direito o que aconteceu...
É que... Bom, o Mário sempre foi
muito apaixonado. E eu... sei lá...
me sentia meio sufocada, sabe?
42.
CRIS
Ah, menina, quem me dera... Com o
falecido não era assim, não. Eu é
que sufocava ele num mar de amor...
Até o chinelo eu ia buscar pra ele.
ROSÂNGELA
Aaah! Cris! Você não fazia isso!
CRIS
Se fazia!
ROSÂNGELA
Que horror...
CRIS
É, hoje eu também acho, né? Mas,
assim, naquela época--
ROSÂNGELA
O amor bastava.
CRIS
(rindo)
E como bastava. Você nem imagina.
Até que eu disse: “quer saber de
uma coisa, cansei!” Quero viver
minha vida, sabe? Quero curtir um
pouco, sei lá... quero--
ROSÂNGELA
Viver.
CRIS
É viver.
Silêncio tenso.
ROSÂNGELA
Olha o que eu baixei.
CRIS
Tinder! Adoro.
43.
ROSÂNGELA
Sério? Tava meio com vergonha.
CRIS
Magina, boba. Eu adoro, baixo
todos. Um dia baixei até o Grindr.
ROSÂNGELA
Que isso?
CRIS
É o Tinder das gay. A loca... “Toca
uma pras gay!”
(rindo)
Adoro a Narcisa...
ROSÂNGELA
É... eu também
ROSÂNGELA
(concentrada no trabalho)
Atende pra mim, Irma.
Irma obedece.
IRMA
Alô... Ah, sim. Só um segundo.
(para Rosângela)
Dra. Rosângela, é um homem chamado
Bruno.
ROSÂNGELA
Tá. Só um minutinho, Irma.
ROSÂNGELA (CONT’D)
(para Irma)
Você continua pra mim?
ROSÂNGELA (CONT’D)
(no celular)
Oi, tudo bem? ...
(MORE)
44.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Claro, eu também adoro Charitas...
Você passa aqui pra me buscar? ...
Ótimo, que horas? ... Tá, beijo.
IRMA
A senhora quer terminar aqui, Dra?
ROSÂNGELA
Sim.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Bom trabalho, Irma.
ROSÂNGELA
Eu sempre preferi frutos do mar à
carne, sabia?
BRUNO
Ah é?
CORTA PARA:
BRUNO
Meu negócio sempre foi marcas e
patentes. Meu pai queria que eu
fosse pra vara de família, mas eu
nunca me interessei muito.
ROSÂNGELA
Olha, interessante.
CORTA PARA:
ROSÂNGELA
Num é que eu não goste dela... Só
não me sinto muito confortável
perto dela. Faz sentido?
BRUNO
Anran.
45.
ROSÂNGELA
Você conhece alguém assim?
BRUNO
Não.
CORTA PARA:
BRUNO
Boa a comida, né?
ROSÂNGELA
Uma delícia. Pena que a nossa
conversa foi meio chata?
BRUNO
(surpreso)
Oi?
ROSÂNGELA
Você também achou. Eu sei.
BRUNO
(um pouco insultado)
Tá certo, então. Vamos logo pra eu
te levar pra casa?
ROSÂNGELA
Não.
BRUNO
Nossa, tá... Cê quer que eu espere
seu uber chegar?
ROSÂNGELA
Não, não. Quero que você me leve
pra outro lugar.
Rosângela sorri.
COMEÇA MONTAGEM
BAR
NARRADOR (V.O.)
Quem diz que ela está fazendo força
pra se sentir leve...
RESTAURANTE
NARRADOR (V.O.)
Quem diz isso... É porque jamais
arcou com o peso que ela teve que
arcar a vida inteira.
MOTEL
NARRADOR (V.O.)
O peso do porteiro dizendo “Bom
dia, dona Rosângela”, desse povo
olhando o carro dela, do “obrigada,
Dra. Rosângela, você é um amor.”
FESTA
NARRADOR (V.O.)
Então tudo bem se ela estivesse até
fazendo uma força no começo. Às
vezes a gente demora pra se
acertar.
MOTEL
NARRADOR (V.O.)
Mas agora, ela tem certeza... Ela
jura por tudo que é mais sagrado,
que ela não precisa mas fazer força
pra se sentir leve... pra...
47.
BOATE
NARRADOR (V.O.)
Basta olhar pra ela. Olha, que você
vai ver. Ela tá pronta pra
encontrar a Daniele de novo. Porque
o sorriso dela, a essa altura, já
é, assim, praticamente igual ao da
prima.
TERMINA MONTAGEM
Nada.
Está funcionando.
Rosângela entra.
ROSÂNGELA
(com medo)
Não!
E--
As luzes se acendem.
MARINHO
Oi, Dona Rosângela. Se assustou,
foi?
ROSÂNGELA
Claro, né, Marinho. Que que cê tá
fazendo aqui?
MARINHO
Desculpa, Dona Rosângela. É que a
pia da senhora tava vazando e
começou a molhar o andar debaixo
todinho. Daí eu pedi pros filhos da
senhora pra subir.
ROSÂNGELA
Mas por que cê tá fazendo isso
nessa escuridão?
49.
MARINHO
Desculpa, Dona Rosângela. É que
como eu tava com a lanterna embaixo
da pia, nem reparei como tava
escuro. A senhora quer um copo
d’água?
Rosângela suspira.
ROSÂNGELA
Não, Marinho. Num precisa.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Muito obrigada, viu, Marinho? Ó...
ROSÂNGELA (CONT’D)
Quando terminar tranca a porta, tá?
MARINHO
Obrigado, Dona Rosângela.
ROSÂNGELA
Boa noite, Marinho.
MARINHO
Boa noite...
Acende um cigarro.
NARRADOR (V.O.)
Vocês vão ver. Vocês finalmente vão
poder comparar uma com a outra.
Porque essas lágrimas, essa
sucessão de namorados, essas multas
no carro... “É pra mostrar pra
vocês o quanto eu sou feliz”.
ROSÂNGELA
Pegaram tudo?
TIAGO
(vestindo a mochila)
Sim.
MANUELA
(no celular)
Anran.
ROSÂNGELA
Estão felizes que as férias estão
chegando?
MANUELA E TIAGO
Sim!
TIAGO
E que o papai vai levar a gente pra
Eurodisney!
MANUELA
E pra Europa.
ROSÂNGELA
(incomodada)
Ah, é... ele falou.
ROSÂNGELA (CONT’D)
E vai ser bem divertido passar um
tempo na casa da vovó e do vovô
comigo também, né?
TIAGO
(sem muito entusiasmo)
É...
MANUELA
É, eu só num quero ir na praia todo
dia, tá?
ROSÂNGELA
Tudo bem. A gente pode jogar
videogame juntos. Que cês acham?
MANUELA
Legal.
ROSÂNGELA
Legal, né?
(pausa)
Vamos embora?
ROSÂNGELA (CONT’D)
Peraí. Quase que a gente esquece.
MANUELA
Num precisa, mãe.
TIAGO
A gente trouxe o lanche que a
Madalena fez da casa do papai.
ROSÂNGELA
(insultada)
Ah é? Deixa eu ver.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Não, não, não. Isso aqui num dá.
Olha o tanto de maionese. Ela quer
que vocês fiquem gordos que nem
ela.
Os filhos riem.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Pronto. Comida da mamãe é mais
gostosa, né?
TIAGO
É!
MANUELA
Às vezes...
ROSÂNGELA
É sim. Vamos que a gente tá
atrasado.
Eles saem.
ROSÂNGELA
...É, mas com o Rodrigo, a gente...
É... eu pedi um tempo porque, sei
lá...
(MORE)
52.
ROSÂNGELA (CONT'D)
diretor de agência de publicidade,
minha filha, não dá mais, não.
CRIS
A-mém!
ROSÂNGELA
E depois, ele... cheira muito!
CRIS
Ah, é? E você? Nunca cheirou, não?
ROSÂNGELA
Eu, não! Tá maluca? Por quê? Você
já cheirou?
CRIS
Ah, assim... De vez em quando, né?
Só de brincadeira.
ROSÂNGELA
Como assim “de brincadeira”?
CRIS
Assim, ué? Dá uma cheiradinha, toma
um expressinho.
Elas riem.
ROSÂNGELA
Credo... E eu nem me importava
muito dele morar no Rio, sabe? Só
que... não dava mais.
CRIS
Se num dá, num dá. O importante é
que você deu.
ROSÂNGELA
(rindo)
Exato. E que... I’m available.
CRIS
Again, né, menina?
Elas riem.
ROSÂNGELA
(com certa tristeza)
And again, and again... ai, ai...
CRIS
Para com isso. Eu, quando fico
muito tempo sozinha, que bate
aquele desespero, me viro mesmo com
a internet.
53.
ROSÂNGELA
Ai, que isso, Cris.
CRIS
Verdade, menina. Você nunca entrou,
não?
ROSÂNGELA
Entrei, mas entrei assim... Pouco,
né? Não sou muito de computador,
não.
CRIS
Ah, mas tem que ser. Hoje em dia...
Vou te passar umas páginas que você
vai ver.
ROSÂNGELA
É?
CRIS
Não é sempre, mas às vezes é um
santo remédio.
Elas riem.
ROSÂNGELA
Tenta mastigar de só do lado
esquerdo, pelo menos até você
voltar na semana que vem.
PACIENTE
Obrigada, Dra. Rosângela. Você é
uma amor.
PACIENTE (CONT’D)
Opa...
Pausa constrangedora.
ROSÂNGELA
Até semana que vem.
54.
PACIENTE
Até...
A Paciente sai.
ROSÂNGELA
Quem é o próximo, Irma?
IRMA
O Sr. Raposo.
ROSÂNGELA
Afe.
IRMA
Disse que vai atrasar um pouco.
ROSÂNGELA
Lógico. Que saco! Vai estragar todo
meu horário...
IRMA
Não, não... Vai dar certo. Sua
prima acabou de ligar cancelando.
ROSÂNGELA
Como assim? Por quê?
IRMA
Disse que tinha um compromisso.
ROSÂNGELA
Ela não disse mais nada? Será que
aconteceu alguma coisa?
IRMA
Acho que não--
ROSÂNGELA
Cadê meu celular?
ROSÂNGELA (CONT’D)
Caixa postal.
IRMA
Ah...
TIA BEL
Essa sua mania de vir sem avisar,
minha filha... Só fiz janta pra
mim. Mas acho que tem uma lasanha
congelada--
Rosângela entra.
ROSÂNGELA
Num precisa, tia. Já comi.
(pausa)
Tudo bem com a senhora?
TIA BEL
Tudo indo, né?
ROSÂNGELA
(apressada)
Que bom. E a Daniele? Tá bem? Ela
tá aqui? Ligou desmarcando a
consulta hoje.
TIA BEL
Pois é, minha filha, a Dani tá em
São Paulo.
ROSÂNGELA
São Paulo? Fazendo o quê?
TIA BEL
Foi com o namorado. De uma hora pra
outra. Só me avisou quando tava na
estrada já. Naquele Celta azul
caindo aos pedaços dele. Eu fico
preocupada, sabe? Acidente, essas
coisas...
ROSÂNGELA
Que coisa... Celta azul, é?
TIA BEL
Pois é. Tá toda, toda. Pulando pra
lá e pra cá com esse novo namorado.
ROSÂNGELA
(automática, sem olhar
para a tia)
Eles estão bem. São maduros pra
idade deles, entenderam tudo. Eu e
o Mário continuamos amigos. Amor
demais às vezes atrapalha. Mas eu
tô aproveitando bastante.
TIA BEL
Ai, que bom, coisa boa de ouvir.
ROSÂNGELA
E quando ela volta?
TIA BEL
Quem?
ROSÂNGELA
A Daniele, tia!
TIA BEL
Ah! Num sei. Acho que nem ela sabe.
Ela nem sabia que ia pra São Paulo
quando foi. Essa aí, viu? Tá cheia
de surpresas. Agora resolveu voltar
a estudar, acredita?
ROSÂNGELA
Estudar? Estudar o quê, tia?
TIA BEL
Lá na faculdade que ela trancou.
Arquitetura, lembra?
ROSÂNGELA
(distante)
Lembro. Era uma faculdade
particular, né?
TIA BEL
Isso. Com uma bolsa do governo.
ROSÂNGELA
É... eu fiz pública.
TIA BEL
(sem entender)
Foi...
57.
ROSÂNGELA
(simpática)
Bom, que bom, tia. Que boa notícia.
O máximo. Eu tenho que ir que as
crianças estão sozinhas sem jantar.
TIA BEL
(levantando)
Tá certo, minha filha.
ROSÂNGELA
Não, fica aí, tia. Deixa que eu
fecho a porta.
(indo embora)
E vê se aparece lá em casa. Pode
levar o Tio Wagner que lá tem o
uísque que ele gosta.
(fechando a porta da
frente)
Tchau, tia. Beijo.
TIA BEL
(confusa.)
Tchau, minha filha...
ROSÂNGELA
Só mais duas semanas de aula, hein?
TIAGO
É! E depois, Eurodisney.
ROSÂNGELA
Ah, é... Tem essa história.
MANUELA
(para Tiago.)
A gente vai pra Eurodisney e
Europa. Seu burro.
ROSÂNGELA
Manuela! Não fala assim com sua
prima.
58.
MANUELA
Prima?
ROSÂNGELA
Que prima?
MANUELA
Você que disse “sua prima”.
ROSÂNGELA
Irmão. Não fala assim com seu irmão-
- Olha, o Mário é que vai buscar
vocês hoje, viu?
MANUELA
A gente sabe.
TIAGO
O papai é médico do coração, sabia,
mãe?
ROSÂNGELA
É verdade.
MANUELA
Cala a boca, seu idiota.
ROSÂNGELA
Manuela! Que que eu acabei de
falar?
MANUELA
É que ele acha que o papai ajuda as
pessoas a se apaixonarem.
ROSÂNGELA
É... Isso não é verdade. E vocês?
Já sabem o que querem ser quando
crescer?
MANUELA
Não.
TIAGO
Psicólogo.
Rosângela se surpreende.
ROSÂNGELA
(rindo)
Ah, é? Por quê?
TIAGO
Porque eu gosto de conversar.
Rosângela ri.
59.
ROSÂNGELA
E arquitetura? É bem legal também.
MANUELA
Ah, não.
TIAGO
Que isso?
MANUELA
Num disse que era burro.
ROSÂNGELA
Chega, Manuela.
(desafiadora)
Explica pra ele o que é, então.
MANUELA
É tipo, de desenhar... Casa e
prédio... Não é?
ROSÂNGELA
É, mais ou menos.
TIAGO
Eu quero, mãe!
MANUELA
(baixo)
Puxa-saco do caralho...
ROSÂNGELA
Legal, filho.
MANUELA E TIAGO
Tchau, mãe.
ROSÂNGELA
Tchau, amo vocês.
MANUELA E TIAGO
Nós também.
ROSÂNGELA
Até semana que vem.
NARRADOR (V.O.)
Só agora Rosângela se dava conta do
quão magnífica, altaneira e
maravilhosa é a arquitetura. Sem a
arquitetura, o que seria da cidade?
A arquitetura cuida das pessoas. E
ela só cuida dos dentes das
pessoas. A arquitetura nos salva,
nos resguarda. Não é nada. Não é
nada não, viu? Não se preocupe. Só
que agora, Rosângela tinha que
estar ainda mais preparada para
quando a prima marcar uma nova
consulta.
PACIENTE 2
Ai, ai! Que cê tá fazendo?
ROSÂNGELA
Desculpa, eu... Peraí, deixa eu...
Vai ficar tudo bem.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Bochecha e cospe.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Abre a boca.
NARRADOR (V.O.)
Por que não? Ela também sabia ser
espontânea. Ela também conseguia
agarrar todos os momentos que a
vida oferece.
NARRADOR (V.O.)
Rosângela tinha que viver no
presente...
NARRADOR (V.O.)
...sentir a areia nos pés
descalços...
NARRADOR (V.O.)
...abraçar o mar...
NARRADOR (V.O.)
...se tornar uma com o mundo.
O Celta estaciona.
ROSÂNGELA
(recuperando o ar)
Oi.
HOMEM BONITO
(receoso)
Oi...
Rosângela se recompõe.
ROSÂNGELA
(simpática)
Tudo bem?
HOMEM BONITO
Tudo. E com você? Tá tudo bem?
ROSÂNGELA
Sim. Mais ou menos, na verdade. É
que eu tô perdida. Você sabe onde
fica a rua... Daniel Bonfim?
HOMEM BONITO
Sei, sim. Você num tá muito longe,
não.
ROSÂNGELA
Ai, que bom! Tô dirigindo há horas.
E acabou a bateria do meu celular.
HOMEM BONITO
Sei.
ROSÂNGELA
(sedutora)
Tá, terceira direita...
HOMEM BONITO
Isso. Daí logo a primeira esquerda,
assim que você virar.
ROSÂNGELA
(ainda sedutora)
Primeira esquerda... logo que eu
virar.
HOMEM BONITO
E continua nessa rua até você ver a
placa da Bonfim.
ROSÂNGELA
Até achar a placa...
HOMEM BONITO
Entendeu?
ROSÂNGELA
Entendi.
HOMEM BONITO
(suspirando)
Que bom...
ROSÂNGELA
Nossa! Calma... Eu nem sei seu
nome.
HOMEM BONITO
É Saulo. E o seu?
ROSÂNGELA
Daniele.
HOMEM BONITO
Muito prazer, Daniele. E aí, não
quer relaxar um pouco depois de
dirigir tanto?
ROSÂNGELA
Meu nome é Daniele.
HOMEM BONITO
Oi? É, eu ouvi. Então, o que você
prefere fazer?
ROSÂNGELA
Nada.
HOMEM BONITO
Nada? Que isso, Dani? Eu falei
alguma coisa errada?
ROSÂNGELA
É isso. Muito obrigada pela ajuda.
HOMEM BONITO
(confuso)
De nada...
(para si mesmo)
Sua doida...
NARRADOR (V.O.)
Ela precisa gritar com alguém.
Porque, de novo.... Foi enganada de
novo. Não era o namorado da Daniele
no Celta azul.
NARRADOR (V.O.)
Foi enganada quando ninguém avisou
ela do cheiro de Mário.
65.
NARRADOR (V.O.)
Quando mentiram para ela do lugar
subalterno que sempre ocupou ao
lado da prima.
NARRADOR (V.O.)
Quando disseram “Bom dia, dona
Rosângela” e deixaram ela andar em
seu Honda Civic para distrai-la de
sua pequenez, de sua mediocridade e
do quanto ela é ridícula...
O sorriso de Daniele.
DANIELE
Tudo bem?
NARRADOR (V.O.)
Que mais? Ela precisa gritar com
alguém? Que mais?!
(pausa)
Ah, é! A Eurodisney.
MÁRIO (V.O.)
Oi, Rô. Tudo bem?
ROSÂNGELA
Oi. Não, num tá tudo bem, não.
MÁRIO (V.O.)
Por quê? O que aconteceu?
ROSÂNGELA
Que história é essa de você levar
meus filhos pra fora do país sem me
avisar?!
66.
MÁRIO (V.O.)
Como assim, Rô? Eu te mandei email,
deixei mensagem no seu celular.
ROSÂNGELA
É. Mas eu não concordei.
MÁRIO (V.O.)
É verdade. Desculpa.
(passivo-agressivo)
Eu posso levar meus filhos pra
viajar nas férias?
ROSÂNGELA
Não fala assim comigo. Odeio quando
você fala assim comigo.
MÁRIO (V.O.)
Assim como, Rô?
ROSÂNGELA
Desse jeito. Como se eu-- Você sabe
muito bem o que você tá fazendo!
MÁRIO (V.O.)
Tá bom! Posso ou não posso?
ROSÂNGELA
Não.
MÁRIO (V.O.)
Não?! Num faz isso com as crianças,
Rô.
MÁRIO (V.O.)
(para sua secretária)
Não, não. O outro prontuário.
ROSÂNGELA
Mário? Cê ainda tá no trabalho?
MÁRIO (V.O.)
Sim.
ROSÂNGELA
Então é melhor você se apressar pra
sair daí. Tá quase na hora de
buscar as crianças na escola.
MÁRIO (V.O.)
Eu... A Madalena tá indo buscar
eles.
ROSÂNGELA
(indignada)
O quê? Cê tá louco?
67.
MÁRIO (V.O.)
O que foi agora, Rô?
ROSÂNGELA
Tá mandando a empregada buscar seus
filhos?! Que tipo de pai é esse?
MÁRIO (V.O.)
A Madalena é quase da família.
ROSÂNGELA
Não é, não. Quase da família... Ela
é sua funcionária, Mário!
Péssimo... Péssimo pai.
MÁRIO (V.O.)
Calma, Rô--
TIAGO
Oi, mãe!
MANUELA
Ué? Num era a Madalena que vinha
buscar a gente hoje?
ROSÂNGELA
Você não prefere vir com a mamãe,
Manuela?
MANUELA
Prefiro.
ROSÂNGELA
Então, entrem logo. Vamos, vamos...
MANUELA
Tchau, Madá!
68.
MANUELA (CONT’D)
Num é melhor avisar a Madá que a
gente vai pra sua casa, mãe?
TIAGO
Num precisa.
MANUELA
É que ela tava com cara de não
estar entendendo nada.
ROSÂNGELA
Prestem bem atenção no que eu vou
falar. Num é pra vocês nunca irem
pra casa com ninguém além de mim e
do seu pai. Entenderam?
TIAGO
Nem com a Madalena?
ROSÂNGELA
Nem com a Madalena. Só eu e o
papai. Certo?
MANUELA
Certo.
TIAGO
Por quê?
ROSÂNGELA
Porque... eu tô mandando. Entendeu,
Tiago?
TIAGO
Entendi.
ROSÂNGELA
Que bom. Eu vou deixar vocês na
casa do Mário. A mamãe tem umas
coisas pra fazer.
TIAGO
Mas quem vai cuidar da gente até a
Madalena chegar?
MANUELA
Eu num preciso de ninguém cuidando
de mim.
ROSÂNGELA
É. Vocês já estão bem crescidinhos,
né, Tiago?
TIAGO
É.
69.
ROSÂNGELA
É só não fazer nada errado. Tá?
TIAGO
Anran.
MANUELA
Vou tentar.
Ela fala alguma coisa para Cris, mas não ouvimos por causa da
altura da música no lugar.
Sorri.
MANUELA
(gritando)
Manhê! Tá quase na hora da escola.
TIAGO
Num grita...
70.
MANUELA
Cala a boca.
ROSÂNGELA
Bom dia...
MANUELA
Vamos, mãe. A gente tá atrasado.
TIAGO
(para Manuela)
Para! Num tá vendo que ela tá
doente.
MANUELA
(irônica)
Tá, doente, sim...
ROSÂNGELA
Eu... num posso levar vocês hoje.
MANUELA
Quê? Ah, não! Toma café e vamos.
ROSÂNGELA
Fica quieta, menina...
ROSÂNGELA (CONT’D)
(no celular)
Oi, Mário. Você vai ter que levar
as crianças pra escola hoje. ... Eu
sei, mas eu tô doente. Não tô em
condições pra dirigir. ... Então dá
meia volta e vem buscar seus
filhos. ... Não, Mário, eu não
posso, entendeu?!
ROSÂNGELA (CONT’D)
(no celular)
Você vem sim! ... Claro que vem!
Porque se eu entrar num carro agora
eu posso acabar matando seus
filhos. É isso que você quer?!
(mais calma)
Ótimo. Eles te esperam lá embaixo.
ROSÂNGELA (CONT’D)
O pai de vocês tá vindo. Podem
descer.
IRMA
(para o Paciente 3)
Olha ela aí...
(para Rosângela)
Bom dia, Dra. Rosângela. Vamos
começar?
Ela suspira.
Aproxima-se do paciente.
ROSÂNGELA
Abre a boca.
PACIENTE 3
(confuso)
O quê?
ROSÂNGELA
Abre a boca. Deixa eu dar uma
olhada.
ROSÂNGELA (CONT’D)
(ainda escavando a boca do
paciente com o dedo)
Num é nada... Só precisa de uma
limpeza. É simples.
(para Irma)
Você cuida disso, tá, Irma?
72.
IRMA
(gaguejando)
Eu? Não, Dra. Rosângela. Eu num
posso. Num sou dentista ainda.
ROSÂNGELA
Mas vai fazer, sim. Como parte do
seu treinamento.
IRMA
Mas, Dra--
ROSÂNGELA
(saindo)
E cancela os outros pacientes.
IRMA
(preocupada)
Dra. Rosângela, a senhora não quer--
ROSÂNGELA
Irma!
E vai embora.
Mas, ainda se sente que todas as pessoas por quem passa estão
observando ela.
73.
NARRADOR (V.O.)
Foi só dar uma olhadela em volta
e... E foi como se Rosângela
percebesse que todos que antes a
olhavam como... sacrossanto
objetivo da perpetrada vida
inalcançável, estivessem todos...
Todos e cada um deles estivessem ao
alcance da mão. Ao alcance do seu
carro. Quase como se, de repente,
eles não apenas pudessem adquirir
um carro, mas também como se o
carro que eles pudessem adquirir...
Fosse literalmente o dela.
NARRADOR (V.O.)
Como se o...
Marinho levanta a mão para falar algo com ela, mas Rosângela
não para.
NARRADOR (V.O.)
Quisesse dizer: “Aí, dona, toma
conta da portaria aqui pra mim, que
eu vou tomar um café ali fora”.
NARRADOR (V.O.)
Como se ela não estivesse mais no
seu devido, assentado e
sacramentado lugar no mundo. Como
se o vidro rompesse, como se a
represa rachasse. Como se... Como
se ela varrer a calçada fosse tão
natural quanto o gari dirigir seu
carro.
Em frente dela--
Daniele... sorrindo.
DANIELE
Tudo bem?
Tenta respirar.
E finalmente:
ROSÂNGELA
(fria)
Que que você tá fazendo aqui?
DANIELE
Surpresa!
ROSÂNGELA
(fria)
Como você entrou aqui?
DANIELE
Tudo bem, Rô? Quanto tempo, né?
Tenho um monte de novidade pra te
contar.
ROSÂNGELA
(gritando)
Como você entrou aqui?!
DANIELE
(assustada)
Seu porteiro deixou eu entrar--
ROSÂNGELA
O que você tá fazendo aqui?! Na
minha casa!
DANIELE
(apavorada)
É... uma surpresa...
(MORE)
75.
DANIELE (CONT'D)
Minha mãe falou que você sempre
reclama que a gente não vem visit--
ROSÂNGELA
Sai daqui!
DANIELE
Calma, Rô... Desculpa--
ROSÂNGELA
Sai da minha casa agora!
DANIELE
Desculpa, eu pensei--
ROSÂNGELA
Vai embora! Sai daqui! Sai daqui!
Sai daqui! Sai-da-qui!
DANIELE
(quase chorando)
Desculpa, Rô. Eu não queria
incomodar...
DANIELE (CONT’D)
(chorando)
Desculpa.
Fecha os olhos.
Ela ignora.
É Mário.
MÁRIO
Rô?
Nenhuma resposta.
MÁRIO (CONT’D)
Rô.
ROSÂNGELA
(sonolenta)
Mário? Como você entrou aqui?
77.
MÁRIO
O Marinho...
ROSÂNGELA
(sem energia)
Claro... Vai embora. Num tô com
cabeça pra você.
MÁRIO
Rô. Eu tava preocupado. Você não me
atende mais.
ROSÂNGELA
Num precisa se preocupar. Eu tô
bem.
Pausa.
MÁRIO
As crianças estão aqui. A gente vai
viajar amanhã...
ROSÂNGELA
Tá. Pode ir. Tá autorizado.
MÁRIO
Tem certeza? Num é melhor a gente
ficar por aqui?
ROSÂNGELA
Não. Vai. Eu quero ficar sozinha.
TIAGO MANUELA
Mãe? Cê tá bem. Tá tudo bem?
ROSÂNGELA (CONT’D)
(fraca)
Tá, sim, filhotes. O papai só veio
se despedir antes de vocês
viajarem. Vai ser muito divertido.
Tirem bastante fotos, tá?
MANUELA
(vozinha)
Tá bom...
TIAGO
Eu vou te mandar uma por dia.
78.
ROSÂNGELA
Isso mesmo, filho.
(para Mário)
Vai, lá. Eu só preciso ficar um
pouco quietinha.
MÁRIO
(se levantando, não
convencido)
Tá bom.
MÁRIO (CONT’D)
Vamos terminar de fazer as malas?
TIAGO
Tchau, mãe.
MANUELA
Tchau... Te amo.
ROSÂNGELA
Mário. Eu já falei que quero ficar
sozinha.
PAI
Oi, filha.
MÃE
Tá tudo bem? O Mário ligou pra
gente--
79.
ROSÂNGELA
Oi pai. Oi mãe. Tá tudo ótimo...
(começando a chorar)
Eu tô muito feliz.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Eu juro que eu tô feliz. Eu to
muito feliz.
PAI
Ô, minha filha...
MÃE
Tá tudo bem. A gente tá aqui.
Rosângela dormindo.
Batidas na porta.
MÃE
Bom dia, luz do dia.
MÃE (CONT’D)
Vamos levantando que o dia já
começou.
MÃE (CONT’D)
Ó, torradinha com manteiga e
geléia, café moído na hora e suco
de cajá.
MÃE (CONT’D)
Tá gostoso?
ROSÂNGELA
(com a boca cheia)
Anran.
80.
MÃE
É o carinho
ROSÂNGELA
Sei... Cadê o papai?
MÃE
Saiu pra fazer compras. Sua
geladeira tava vazia.
ROSÂNGELA
É...
MÃE
Tá melhor, filha?
ROSÂNGELA
Sei lá...
MÃE
Tá sim. Cê vai ver. Cada dia fica
mais fácil. E quando as crianças
voltarem, a gente fica o dia
inteiro com eles. Vai te fazer bem.
ROSÂNGELA
Tá bom...
MÃE
Olha seu pai aí.
ROSÂNGELA
Mãe.
MÃE
Quê?
ROSÂNGELA
Desculpa...
MÃE
Que isso, filha. Num tem nada que
se desculpar.
ROSÂNGELA
Tem sim. Eu pensei que fosse culpa
sua também, mas era tudo coisa da
minha cabeça.
MÃE
(mesmo sem entender)
Não se preocupa, filha. Tá tudo
bem, agora.
PAI
Que que é isso? Já tão chorando?
Num são nem onze horas.
PAI (CONT’D)
Eu sei o que vai te animar.
ROSÂNGELA
Diamante Negro. Oba.
PAI
Num é o seu preferido?
ROSÂNGELA
Anran.
PAI
Gostou?
ROSÂNGELA
Delícia...
PAI
Então, toma.
E outro.
E outro.
PAI (CONT’D)
E só mais um...
Rosângela ri.
MÃE
Olha que apetite. Tô gostando de
ver, hein?
PAI
Rô.
ROSÂNGELA
Hum?
PAI
Eu tô muito feliz de te ver
melhorando. Mas...
PAI (CONT’D)
Se você precisar... se você quiser,
saiba que a gente tá aqui pra te
ajudar.
ROSÂNGELA
Eu sei, pai.
PAI
Não, num é só isso. Se você quiser
começar tudo de novo. Se mudar pro
Rio pra ficar mais perto da gente,
ou mais longe disso tudo aqui... A
gente te ajuda. Eu até já dei uma
olhada em uns imóveis comerciais...
perfeitos pra consultório de
dentista. E tem um apartamento a
venda num prédio não muito longe do
nosso... mas também não tão perto.
Porque você precisa da sua
privacidade também, né--
ROSÂNGELA
(sorrindo)
Brigada, pai.
(para a Mãe)
Por falar nisso, mãe. Cê marca uma
consulta com o Charles pra mim?
Queria cortar o cabelo.
MÃE
Claro, filha.
ROSÂNGELA
Brigada, mãe. Faz tempo que eu não
vou lá. Copacabana é tão longe, né?
83.
MÃE
Nem tanto...
ROSÂNGELA
Aaai, Charles! Adorei! Ficou lindo
de mais!
CHARLES
Mas também, querida, sendo filha de
quem é. A beleza se herda, é ou não
é?
ROSÂNGELA
Não fala isso que a mamãe vai ficar
toda boba, hein?
CHARLES
Se eu falei, é porque é verdade.
ROSÂNGELA
Brigada, Charles. Você continua
divino.
CHARLES
Que isso, querida, imagina... Sua
beleza é que ajuda. Manda
lembranças pra sua mãe.
ROSÂNGELA
(a caminho da saída)
Pode deixar. Tchau, um beijo.
CHARLES
Tchau, querida. Vai com deus.
Rosângela sai.
MENINA 1
Tia, compra chiclete?
MENINA 2
Quer chiclete, tia?
MENINA 3
Aqui, tia. Não compra delas não.
Compra esse aqui que é sem açúcar.
ROSÂNGELA
Ah, é? Sem açúcar é melhor, é?
MENINA 3
É melhor porque aí num dá cárie.
ROSÂNGELA
Olha só... Muito bem!
MENINA 3
Aqueles outros ali, tudo dá cárie.
MENINA 1
É nada.
MENINA 2
Compra esse aqui que é muito mais
gostoso.
ROSÂNGELA
Tá bom, tá bom... Me dá um de cada.
Eu quero ver qual é o mais gostoso.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Pronto. Quanto é?
MENINA 1
Dois reais.
MENINA 2
Três.
MENINA 3
Quatro.
ROSÂNGELA
Tá aqui, ó: um, dois, três, quatro.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Peraí. Antes...
MENINA 1
Que isso, tia?
ROSÂNGELA
É o cartão do meu consultório pra
vocês entregarem pras mães de
vocês.
MENINA 2
(para as outras meninas)
Ela é dentista...
ROSÂNGELA
Fala pra elas ligarem lá e marcarem
uma consulta que a tia vai fazer
uma revisão nos dentes de cada uma,
tá? De graça.
MENINA 3
Tá, brigada, tia.
ROSÂNGELA
Peraí.
ROSÂNGELA (CONT’D)
Aqui ó. Me dá mais um de cada.
MENINAS
Brigada, tia. Tchau!
NARRADOR (V.O.)
De repente, a vida de Rosângela
parecia feita só de luz e brilho.
Só de carinho e puro sentimento.
Porque agora, o mundo dela... era
com se fosse... como se ela se
sentisse um pouco... mãe daquele
mundo.
86.
NARRADOR (V.O.)
E foi só abaixar os olhos um
instante para sintonizar o rádio.
Só o meio segundo de abaixar e
levantar os olhos.... Para que o
mundo que Rosângela encontrasse ao
mirar novamente a ponte diante de
si... fosse completamente...
NARRADOR (V.O.)
Diferente.
NARRADOR (V.O.)
Cruel instante. Um sorriso tão
puro... mais puro que o dia... Mais
puro que:
O sorriso de Daniele.
DANIELE
Tudo bem?
VOLTA PARA:
NARRADOR (V.O.)
Um sorriso tão puro que Rosângela
poderia jurar que a prima estava...
grávida. E pior, ela estava em um
Honda Civic Azul.
NARRADOR (V.O.)
“Claro que Tia Bel não sabia a
diferença entre um Celta e um Honda
Civic”. E diante da gravidez da
prima, todo o ventre seca, tudo que
vive seca...
NARRADOR (V.O.)
E Rosângela pensou... Não, pensou,
não... Sentiu. Ela sentiu com
orgulho o quão leve era o seu
volante e quão macio era o seu
acelerador.
FIM