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CAPíTULO

Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no


processo da Abolição brasileira

Li I ia Moritz Schwa rcz

Em 10 de junho de 1887, a condessa de Barral escrevera a Isabel: "Não


lhe dou parabéns da Regência que vai ter de exercer, mas fiada no seu juízo e nos bons
conselhos de seu marido, espero em Deus que tudo ande bem durante essa ausência";'
Nessa carta premonitória, Barral, talvez inspirada pela própria situação francesa, temia
pelo governo de sua protegida. No Brasil, a situação política complicava-se com o avan-
ço dos republicanos, mas era sobretudo a pressão pela abolição da escravidão que cha-
mava o grosso das atenções.
Assim, se a Lei Rio Branco, de 1871, arrefecera os ataques e fizera com
que a campanha pela Abolição entrasse momentaneamente em colapso, já a partir
da década de 1880, e dividida em duas grandes correntes - moderados (cujo gran-
de ideólogo era Joaquim Nabuco) e radicais (entre os quais se destacavam Silva Jar-
dim, Luis Gama e Antonio Bento) -, o abolicionismo ressurgia como o tema do
mornento.ê Por mais que o governo tentasse recorrer a táticas reformistas - como a
promulgação da Lei dos Sexagenários -, o resultado, nesse contexto, parecia ser o
oposto." Nada detinha o movimento que agora indicava - tardiamente, se compa-
rado ao restante do mundo - o final da escravidão no Brasil.

1 Cal~on, 1975:1398.
2 Os jornais antiescravistas surgiram nessa época em larga escala: A Onda, A Abolição, Oitenta e
Nove, A Redenção (dirigido por Antônio Bento, líder dos caifases), A Vida Semanária, Vila da Re-
denção, A Liberdade, O Alliot, A Gazeta da Tarde (dirigido por José do Patrocínio), A Terra da
~edenção, O Amigo do Escravo, A Luta, O Federalista, bem como dezenas de panfletos e pasquins.
Essa lei favorecia de tal maneira aos latifundiários escravistas que até os abolicionistas mais
moderados a ela se opuseram. Previa o pagamento de indenização aos proprietários de escra-
vos por sua libertação. Além disso, estabelecia que os escravos de 60 anos deveriam dar mais
três anos de trabalho gratuito ao senhor; além de instituir uma multa de 500 a míl-réis aos
que ajudassem escravos fugitivos.
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QUASE.CIDADÃO
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cariocas da região do vale do Paraíba divorciaram-se, a partir de então, de seu anti-
Por outro lado, enquanto a Abolição de fato não vinha, avolumavam-se as go aliado.
libertações realizadas pelos próprios escravos ou por proprietários, que, cientes da Comemorada no estrangeiro como a "vitória" do governo imperial, a lei de
iminência da promulgação e querendo se adiantar ao inevitável, promoviam as fa- 13 de maio foi recebida no Brasil, após a explosão inicial de júbilo, com muita ex-
mosas "festas de abolição". Os registros oficiais revelam uma redução drástica no pectativa, por mais que falas eufóricas, como as de Joaquim Nabuco, parecessem
número de escravos da década de 1870 para a de 80, conforme mostra a tabela a desmentir a apreensão:
seguir, elaborada por Mattos (1987:69) para a província do Rio de Janeiro.
23 de maio de 1888. Meu caro barão [de Penedo]. Está feita a abolição!
Ninguém podia esperar tão cedo tão grande fato e também nunca um fato
Ano N2 de escravos nacional foi comemorado tanto entre nós. Há vinte dias vive esta cidade
um delírio. Suspende-se tudo e portanto também a correspondência entre
1819 146.060 .
os amigos. Mas é tempo de voltar (...) Isabel ficou como a última acoitado-
1821 173.775 ra de escravos que fez do trono um quilombo (...) A monarchia está mais
1823 150.549 popullar do que nunca ... 5
1840 224.850

1851 229.637
Trata-se de pensar no que se chamava de popular. O ato foi, sim, popular e
1872 301.352
conferiu, por extensão, popularidade a Isabel e à monarquia. No entanto, politica-
289.239
1873 mente, a estabilidade do Império se desorganizou de maneira definitiva.
268.881
1880 Mais do que perdas materiais, a Abolição levou ao desprestígio de uma mino-
1882 218.000 ria política muito ativa, extremamente ligada ao trono e que rapidamente se bandeou
1885 162.421 para o lado dos republicanos. Por mais que a monarquia premiasse os proprietários ru-
rais com títulos de baronato e alegasse o caráter inevitável da medida, a falta de indeni-
zação - ainda sonhada por muitos senhores - selara o rompimento com o Estado.
O fato é que a partir da década de 1880 o abolicionismo tomou as ruas e Dessa forma, apesar da versão oficial, que atribuiu a Isabel o título de ''A
os jornais da época, assim como ficaram evidentes as falácias dessa sociedade escra- Redentora", e do clima de euforia que os órgãos oficiais procuravam demonstrar-
vocrata, que mantinha um discurso liberal como fachada. com a emissão de moedas festivas, com muitos negros e índios, e condecorações
Da parte do governo parecia não haver outra saída senão antecipar-se ao ilustres -, esse pareceu ser mesmo o último ato do teatro da monarquia. No entan-
inevitável, mesmo porque a abolição já se realizava à revelia dos governa~tes.4 Os to, muitas vezes o último é também o primeiro. A partir do fato consumado e em
cativos fugiam em massa, afluíam às cidades, e as autoridades eram incapazes de meio a essa sociedade das marcas pessoais e do culto ao personalismo, a Abolição
conter movimentos de tal monta. E o ato final veio em 1888, um ano antes do final foi entendida e absorvida como uma dádiva, um belo presente que merecia troco e
da monarquia, que perdeu com ele seus últimos apoios e esteios. Mas essa já é outra devolução. Por isso mesmo Isabel converteu-se em ''A Redentora" e o ato da Aboli-
história, e a que estou tentando analisar aqui refere-se antes ao ambíguo processo ção transformou-se em mérito de "dono único" e não no resultado de um processo
coletivo de lutas e conquistas.
de abolição que tomou quase toda a década de 1880. Voltemos ao ato. Redigido de
maneira simples, o texto da lei era curto e direto: "Fica abolida a escravidão no Bra- Divorciaram-se, portanto, nesse momento, duas instâncias de represen-
sil. Revogam-se as disposições em contrário". O 13 de Maio redimiu 700 mílescra- tação. A monarquia, decadente e falida como sistema, recuperou o imaginário ao
vos, que representavam, a essa altura, um número pequeno em comparação com o vincular-se ao ato mais popular do Império: a Abolição. A "realeza política" se as-
total da população, estimada em 15 milhões de pessoas. Como se vê, a libertação socíou a uma "realeza mitificada", quase mágica e, nesse caso, senhora da justiça
e da segurança.
demorou demais e representou o fim do último apoio à monarquia: os fazendeiros

5 Biblioteca Nacional, col. Tobias Monteiro.


4Além disso, não se pode esquecer que a escravidão já havia sido abolida em províncias co-
mo o Ceará (março de 1884) e o Amazonas (julho de 1884).
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Afastada das elites e do próprio jogo político, a monarquia ganhou, por ca-
minhos tortuosos, uma nova representação e inaugurou uma maneira complicada de nesse sentido, algo bem diferente da noção de mudança e alteração. É antes resig-
lidar com a questão dos direitos e da cidadania. Longe da marca do indivíduo e de sua nação, acomodação e mudança sem alteração.
luta pela própria Abolição, ficamos mesmo com o complicado jogo das relações e de- Por isso mesmo, ante a evidência das fugas - em massa ou individuais -,
veres, da chave do personalismo e do próprio clientelismo. O ato, como que adicionou nos periódicos da época tornou-se corriqueira a tentativa de ressaltar "o mando
uma nova versão a uma estrutura antiga, que sempre revelou como as relações priva- branco" e sua autonomia na gestão da conturbada situação. Vejamos, então, os rela-
das, nesse país, acabam por se impor às esferas públicas de atuação. tos de alguns desses jornais, partindo do pressuposto de que, nesses veículos, agluti-
O objetivo deste capítulo é, portanto, refletir sobre uma interpretação par- navam-se representações dispersas, valores comuns, que, em seu conjunto, foram
ticular da Abolição brasileira, feita nos momentos anteriores ao ato de 13 de maio formando uma espécie de dialeto local, uma teia densa de cosmologias e concep-
de 1888 ou no contexto imediatamente posterior, que tendeu a associar a realeza ções. O fato é que, em vez de retratarem um clima tenso, paradoxalmente, vários
com a libertação da escravidão ou viu no ato um mérito exclusivo dos antigos pro- jornais relatavam fatos ocorridos em diferentes localidades, sempre passando a im-
~ prierários. Como se fôssemos avessos à representação da violência e da luta, no Bra- pressão de calmaria.
sil a Abolição foi entendida como uma dádiva, um presente que merecia atos
recíprocos de obediência e submissão. Aos escravos recém-libertos só restava, pelo
Tietê
menos na visão das elites, a resposta servil e subserviente, reconhecedora do tama-
nho do "presente" recém-recebido. Diferentemente, dessa maneira, do processo vi- Não tem procedência a notícia publicada pelo Liberal Paulista sobre uma
venciado em outros países, onde a libertação foi absorvida como uma conquista, passeata pelas ruas da cidade de 500 escravos que abandonaram as fazen-
aqui ela representou continuidade e a reposição de hierarquias que, de tão assenta- das. Não há dúvidas de que houve no dia primeiro do mês uma passeata
das, pareciam legitimadas pela própria natureza. dos negros ultimamente libertados, mas na melhor ordem possível, com con-
sentimento prévio do honrado delegado de polícia. Finda a passeata, os negros
retiraram-se na melhor ordem para as suas fazendas, onde continuaram no
Em ordem6 serviço de seus senhores mediante salário mensal e empreitada. O delegado
tem sido infatigável no cumprimento de seu dever, pois é sabido que ele
Na década de 1880, a questão da abolição se tornou o tema da vez. Nos não admite vagabundagem na cidade, forçando a organização do trabalho
do liberto (Correio Paulistano, 9 jan. 1888).7
jornais, em particular, o assunto era de fato central, sendo tratado de duas maneiras
paralelas: se, por um lado, parecia preciso afirmar a ordem e o controle por parte
das elites brancas, diante da libertação iminente dos escravos; por outro, estabele-
Uma série de elementos destacam-se nesta matéria. Primeiro, foi publica-
cia-se de forma peremptória a necessária submissão e lealdade dos cativos que co-
da no Correio Paulistano, órgão conservador, que procurava sempre incluir artigos e
meçavam a ganhar a liberdade. Os imigrantes europeus, que aqui chegaram para
casos delatando "as falácias" de uma libertação feita às pressas ou com violência.
resolver a: tão comentada "questão da mão-de-obra", aos poucos escapavam das fa-
Nesse caso específico, o relato aglu tina vários sinais reveladores. Há um certo "pano
zendas, ganhavam as cidades e passavam a executar os trabalhos urbanos para os
de fundo" na matéria demonstrando a existência de uma grande "boataria" a respei-
quais estavam mais preparados. Já dos ex-escravos parecia se esperar o oposto: a
to de fugas e manifestações, que começavam a ocorrer com maior freqüência. No
total transparência, ou uma atitude pacífica, que implicava ficar nas fazendas, sob
início de 1888, a tentativa parecia sei contrabalançar a incerteza com um punhado
um regime muito pouco alterado. Eis os dois lados da mesma moeda que caracteriza
de boas certezas: se uma passeata ocorreu, ela foi ordeira e, sobretudo, autorizada
uma faceta singular da Abolição brasileira: distante da noção de revolução, nosso
pelo delegado de polícia. Melhor ainda: a passeata não resultou em desordem, uma
processo de libertação escravocrata era representado como pacífico, gradual e, so-
bretudo, como um "presente dos senhores e do Estado". Aos cativos restava a lealda- vez que todos os libertos voltaram às suas fazendas, dando continuidade a seu anti-
de e a posição submissa de quem ganha uma dádiva. A liberdade parece representar, go regime de prestação de serviços. Nada como assegurar a continuidade, como se o
cativo de ontem fosse o trabalhador de hoje. Para coroar a reflexão, surge o conceito
de "vagabundagem", que, nesse contexto, começava a se juntar à representação dos
6 Nas próximas duas seções utilizei fartamente artigos retirados de -urna série de jornais pau-
listanos. Mas como eles se referem a localidades diversas, pensei que tal insistência em jor-
7A . d '
nais de uma só província não traria maiores problemas para a análise de representações. parnr aqui, os trechos em itálico são destaques meus. E preciso esclarecer ainda que atua-
lizei a grafía para facilitar a leitura dos diferentes documentos citados.
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libertos. A saída para os ex-escravos, nessa medida, não era a autonomia, mas a in- Assim, apesar das diferenças de interesses - que dividiam as próprias eli-
serção nas antigas fazendas, suas velhas conhecidas. tes brancas -, a abolição surge como um processo de uma só mão, conduzido por
Mas esse não foi, por certo, um caso isolado. Vários relatos contam e re- brancos "benfeitores", cujo papel é trazer os negros para a civilização, com ordem e
contam a mesma ladainha, alterando-se apenas locais e nomes. muita tutela: era preciso "preparar a libertação". Aí está uma versão fundamental do
que, em meados dos anos 1930, seria nosso "mito da harmonia racial", mais conhe-
cido a partir dos escritos de Gilberto Freyre. Depois da libertação pacífica viria um
Capivari - Um benemérito
padrão mais igualitário de convivência. Contudo, a igualdade não estava presente
Há fatos honrosos, tão dignos de louvor e imitação que o maior elogio que na troca, e a falta de hierarquia não seria padrão de relação em períodos futuros.
se lhes pode fazer é publicá-Ios simplesmente sem comentários. O excelen- Mas não devemos ir tão longe. O fato é que, já nessa ocasião, se procurava separar a
tíssimo sr. barão de Almeida Lima, depois de ter feito vários benefícios ao idéia de libertação de noções como conflito ou violência, indicando que o processo
município de Capivari, tais como dois altares da Igreja da Matriz, um ele- seria pacífico, próprio e sinônimo de uma alentada "índole brasileira".
gante edifício onde funciona uma das escolas públicas, tes declarado todos
os escravos livres por sua morte, acaba de fundar uma escola primária para
ingênuos escravos. Edificou uma casa espaçosa e com todas as comodida-
des precisas para a escola. Contratou como professor o sr. Francisco José
c..) o senhor brasileiro nunca considerou seu escravo como animal, nem me-
tamorfoseou-se em caçador. Nós brasileiros não d,istinguimos raças. O escravo
Vaz do Amaral Júnior, que com toda a educação rege a escola.
de hoje será, por seus futuros talentos e com estudo, igual ao senhor de ontem, e
No dia 4 do corrente foi inaugurada e aberta às aulas; durante o dia é fre- confundidos ambos na qualidade de cidadãos colaborarão ambos na grande
qüentada pelos ingênuos e, à noite, pelos adultos em número superior a 40. obra da prosperidade da pátria (Província de São Paulo, 19 jan. 1881).
Reina a boa ordem e a disciplina recomendada pelo exmo. barão e executa-
da com todo o cuidado pelo digno professor. É bonito e comovente quando,
à tarde, os escravos voltam do trabalho, trocam de roupa e com todo o asseio O escravo de hoje seria, com estudo (é claro), o senhor de ontem, e assim
apresentam-se às aulas! Sente-se um grande prazer quando se entra no sa- se afirmava uma mentalidade ao mesmo tempo evolutiva e "otimista", nos termos
lão onde funciona a aula, todo iluminado, e aí vê-se uns 40 homens de tra- de época. Destaque-se a maneira tutelar como a Abolição ia sendo compreendida. A
balho que, tendo largado a enxada e a machada, empunham a pena e o livro! "civilização" era uma meta a ser alcançada também por essa população "dada a pro-
Nota-se no semblante de todos um ar risonho, cheio de prazer, e com todo va de barbáries". 8
o silêncio e atenção ouvem as explicações do professor. Terminadas as au-
las, vão fazer suas refeições e descansar até o outro dia.

Oxalá todos os fazendeiros imitassem o exmo. sr. barão, preparando seus Os povos não alcançam repentinamente a civilização, conquistam-na aos pou-
míseros escravos para, gozarem de sua libertação quando raiar o dia da reden- cos, lentamente; já mantendo uma fábrica e destruindo um preconceito, hoje
ção. Parabéns ao exmo. barão de Almeida Lima, parabéns à humanidade, adquirindo uma fórmula científica, amanhã perdendo um hábito tradicional,
parabéns ao municipio de Capivari por um grande feito. Assinado: Um ad- aqui fundando uma escola, além destruindo uma casa velha, porque a civili-
mirador (Província de São Paulo, 5 maio 1888). zação consiste no câmbio da vida simples e patriarcal. C..) Da civilização de-
corre historicamente para a sociedade democrática niveladora C..) mesmo no
tempo da escravidão, em que ainda coexistem duas classes internamente desi-
Mesmo partindo de um jornal considerado progressista, a matéria tem ca- guais perante a lei e perante a natureza, os escravos sentam-se ao lado do se-
nhor ... (A Redempção, 4 jan. 1888).
racterísticas semelhantes à anterior. Vamos por partes. Já no início do texto, há a
lógica da afirmação pela cçntraposição. O autor (sempre anônimo, como se a falta
de personalização fosse garantia de veracidade) afirma não querer comentar, mas Como se pode notar até mesmo nos periódicos mais radicais como A Re-
comenta, avalia e elogia o tempo todo, e sempre, o barão. Por sinal, há uma clara dempção, órgão do grupo dos caifases de Antônio Bento." o discurso evolucionista
dicotomia expressa em. dois lados absolutamente desiguais. Em uma parte está o ba-
rão, um grande benfeitor: construtor de escolas, de uma igreja, um libertador em
potencial e, sobretudo, aquele que traz civilização aos "míseros escravos". Na outra 8 Mais à frente, neste capítulo, teremos a oportunidade de recorrer às teorias deterministas
estão os cativos - elementos por certo inferiores -, que só se assenhoreando do ~aciais que estavam em voga local, bem no contexto da abolição da escravidão.
conhecimento dos brancos, e portanto negando o que "era seu", podiam conviver Para uma leitura mais atenta sobre as tendências políticas dos diferentes periódicos citados,
com a libertação. sugiro, entre outros, Schwarcz, 1987.
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parece se coadunar à lógica da libertação defendida pelas elites nacionais. De um Assim, enquanto o "preto" é o escravo comumente representado, violento
~ lado estariam a escravidão, o preconceito, os hábitos tradicionais, uma casa velha. por vezes, mas dependente e vinculado à sua condição; o "negro" é antes de tudo
um fugitivo, perigoso e pouco confiável. Por outro lado, "preto" é, acima de tudo,
I De outro, a própria civilização, com suas fábricas, fórmulas científicas, escolas e a
aquele que perdeu sua "humildade", característica que parecia predominar pelo me-
\ democracia. Tal qual dois blocos monolíticos e separados entre si, assim estariam se-
nos no discurso oficial sobre a escravidão.
parados cativos e senhores, só igualados por um processo lento, ordeiro e "civiliza-
do", cujo ápice aguardado seria a Abolição. Em um momento em que os negros começavam a lutar por sua libertação
é no mínimo revelador perceber a insistência na condição submissa do escravo _
A civilização, que consistiria "no câmbio da vida simples", era o grande
assim como do liberto - e o caráter de exceção dos negros que se amotinavam.
fim, já alcançado pela sociedade branca e que a população de cor devia "conquistar Nesse particular, uma matéria publicada no Correio Paulistano, em 13 de maio de
lentamente". Essa conquista não se faria, porém, sem a destruição de elementos 1895, portanto após a abolição da escravidão, é absolutamente reveladora:
considerados "bens capitais" da civilização africana. Assim, os negros, perdendo seus
"preconceitos" ou, em outros termos, sua cultura e religião, ganhariam o direito de
acesso à "verdadeira civilização", marcada pelos muitos símbolos de progresso da O que eles dizem e o que eles fazem
época. A escalada de tal degrau se daria, é claro, de forma lenta e gradual, da mes- C ..) e a boa raça africana, tão dócil, tão afetiva, tão amiga, fator de riqueza
ma maneira morosa que se considerava ser o acesso ao conhecimento científico ou à nacional, a velha raça de Caim, em cujas tetas submissas bebemos, grande
economia e à cultura nos países civilizados. parte de nossa vida nacional está aí a nosso lado, humilde e sempre boa, ho-
Mas a matéria não remetia apenas à teoria evolucionista social; repassava nesta, moderada, serviçal, proliferando em paz, entregue a si mesma, sem in-
comodar os brancos. Que simpatia por essa velha pária da existência! Que
e introduzia a já estabelecida representação do "paraíso da harmonia racial". Nele,
beleza no seufetichismo, na sua aflição primitiva, no amor que tem aos filhos
todos se sentam juntos, apesar das distâncias culturais e de formação, e nada impe- dos brancos! Incorporada ao povo brasileiro, ela que não nos incomoda vive
de um futuro pacífico, como se queria prever com a libertação. conosco à parte, sentindo conosco as coisas que sentimos ...
Talvez seja por isso que, também nesse contexto, uma clara divisão lin-
güística começou a se afirmar, opondo termos tão próximos como "preto" e "negro".
Essa discussão parece ser correlata ao debate sobre os famigerados quilombos, que, Terrível em sua descrição, a matéria condensa representações dispersas.
de tão freqüentes, amedrontavam as elites locais. Nos jornais, uma distinção clara se Mesmo alguns anos após a Abolição oficial da escravidão prevalecia a idéia de uma
impôs aos poucos: na grande maioria das matérias, o escravo, homem de cor ou li- libertação pacífica, fruto de algumas "qualidades" negras: submissão, humildade,
moderação, caráter serviçal e amor pelos filhos brancos. Como um "outro", um "ou-
berto descrito como "preto" passou a ser chamado de "negro" quando se tratava de
tro" a quem se destina um lugar inferior e tutelado, era assim que se delineava nos-
notícias sobre insurreições ou quilombos. Ou seja, "preto" era o escravo submisso -
so modelo de libertação e de convivência.
alvo das propagandas brancas de libertação - e "negro" era o quilombola ou o "fu-
jão", que não se conformava com as regras da sociedade de senhores de terras. Veja- As conseqüências foram imensas, não só porque representações desse tipo
são muitas vezes partilhadas e fazem parte de um idioma comum - relido a partir
mos como esse tipo de diferenciação se dava por vezes em uma mesma matéria,
de várias chaves -, mas ainda porque lhes foi adicionado um outro elemento, que
mostrando como se manipulavam, no nível da linguagem, qualidades presentes na
faz par com essa noção de ordem e graduação. A idéia de que a Abolição era um
lógica social:
presente, uma dádiva, que merecia reconhecimento e submissão.

Assalto Com lealdade


Anteontem às 10 horas da manhã na antiga estrada de Itatiba foi assaltado
por dois negros fugidos um camarada de nome Antonio Godoi C.. ) foi quan- Nos jornais da época, e sob a forma de faits divers, uma série de matérias
do apareceu outro e os dois negros se evadiram. Há dias deu-se na estrada o (~uitas vezes, por certo, inventadas) ia saciando a curiosidade dos leitores com vá-
seguinte fato: tendo ido catar cipó a mando de seu senhor um preto de uma nos "causos" que não se referiam apenas à violência advinda do sistema escravocra-
fazenda, que trabalhava tranqüilamente, foi apanhado por diversos negros ta; pelo Contrário, muitos pequenos relatos descreviam eventos "maravilhosos" e,
fugitivos e quilombolas que despediram-no e deram-lhe uma valente sova. O ~omo tal, exemplares de libertações feitas por particulares, como atos de vontade
preto teve de esperar a noite para voltar para a fazenda (Correio Paulistano, Individual,
120ut. 1887).
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DOS MALES DA DÁDIVA 33
Neles, algumas reiterações se faziam presentes. Primeiro, o "merecedor"
de tal prêmio era sempre "um preto leal" que respondia ao gesto com demonstra- ava resignação. Na verdade, o tema era tudo menos neutro. A situação interna
ções de "extrema gratidão". Além disso, os "donos da ação" eram os senhores, que ~ornava-se cada vez mais tensa em função das agitações em prol da abolição da es-
pareciam ser os únicos a quem cumpria tal responsabilidade. Dessa maneira, nas cravidão e do final da monarquia. Basta um breve olhar na "agenda" de fatos para
notícias que relatam "festas de libertação", encontra-se uma série de reafirmações se ter uma idéia da situação: em 1880, foi fundada a Sociedade Brasileira contra a
de ordem, hierarquia, postura e lugar, e "o negro ainda é preto", fiel e dependente. Escravidão e, em 1883, a Confederação Abolicionista. Também nesse ano, Castro Al-
No Correio Paulistano, por exemplo, havia uma seção especialmente dedí- ves publicou O escravo e Joaquim Nabuco, O abolicionismo, duas obras cujos autores
lideravam o movimento de emancipação e que passaram a ser - na literatura e na
cada ao tema intitulada Movimento Emancipador, a exemplo do que vinha ocorren-
ciência política - livros de referência sobre a questão. Em 1884, a escravidão foi
do em outros jornais. O mesmo senhor que oferecia tutela aos "pretos dependentes"
extinta no Ceará e no Amazonas e em 28 de setembro de 1885 foi promulgada a Lei
ou que condenava seus atos violentos era aquele que "concedia - por sua mera
dos Sexagenários - a Saraiva Cotegipe -, apenas acirrando ainda mais os ânimos.
vontade - a liberdade". Para tanto, qualquer ocasião parecia igualmente válida:
O caráter conservador da medida era tão evidente que as reações não se
mortes, casamentos, formaturas, batizados, nascimentos, novos cargos, venda de
fizeram esperar. Afinal, da época da Lei do Ventre Livre (1871) à Lei dos Sexagená-
imóveis ou outra data comemorativa. Libertava-se até "por amor à arte": em 13 de
rios, a composição e a distribuição dos escravos no país havia mudado radicalmente.
julho de 1880, a Província noticiou que um escravo passara a ser chamado de Fran- Segundo o Relatório de 1886, desde 1873, entre manumissões e mortes, o número
cisco Camões em homenagem ao escritor que seu ex-senhor tanto apreciava. de escravos sofrera uma redução de 412.468 indivíduos. Dessa maneira, as estimati-
Esse tipo de notícia tinha estilos e enunciados muitos similares. A liberta- vas para 1886 apontavam para uma população escrava de 1.133.228, e as matrícu-
ção era sempre entendida como um "ato voluntário", uma dádiva exclusivamente las de 1887 revelavam a existência de 723.419 cativos. Além dessa redução geral, a
ofertada pelo senhor branco, que concedia a manumissão a seus cativos. Por outro distribuição desigual acelerara-se: não só os cativos haviam sido deslocados do Nor-
lado, a libertação parecia ser, nesse momento, um assunto essencialmente privado, te para o Sul do país, como as libertações eram muito mais evidentes na região se-
que fazia parte dos direitos zelosamente guardados pelos senhores e proprietários, tentríonal.l ' Mas, apesar do claro perfil paliativo da medida, ela não deixava de
uma vez que o Estado aparentemente mantinha-se alheio, e bastante acomodado, só sinalizar o fim próximo da escravidão. A tática era ganhar tempo e evitar o que mais
agindo em momentos de crise.IO Quanto aos ex-escravos, cabia-Ihes exclusivamente se temia: rebeliões de escravos.
o papel de receptores humildes, gratos e dependentes, que deviam se contentar, na De longe, até a Barral escrevia a d. Pedro, temendo o processo. O impera-
maioria das vezes, em permanecer nas fazendas, ou praticamente nas mesmas con- dor, em resposta à carta aflita, reagia:
dições, ou como assalariados, ou ainda fiados apenas na promessa de "virem a ser".

Petrópolis, 28 de dezembro de 1886, (...) Aqui tem chovido bastante (...)


Campinas. O sr. Silveriano Pedroso reuniu toda a sua escravaria e explicou- fi questão da emancipação vem progredindo e espero ao longe vê-Ia reali-
lhe a nova lei que se regulamentou. Separou os escravos maiores de 60 zada sem maiores abalos. Meus filhos partem a 5 de janeiro (...) Minha
anos, declarando que os considerava como desobrigados do serviço de três vida é a mesma e quando passo pelo Challet Miranda não imagina que
anos e dois meses se eles se comportassem exemplarmente. O sr. Pedroso fa- saudades tenho.12
lou em seguida aos seus escravos dos emissores de revolta que tanto ele co-
mo a sua família há muitos anos viviam entre eles sem um só empregado
livre e confiando unicamente na justiça com que sempre os trataram, Os escra- Sem maiores abalos e de longe ... assim era tratada a questão pelo Estado,
vos comovidos declararam que estavam prontos a morrerem se morressem seus que deixava cada vez mais aos particulares a condução da Abolição. Dessa maneira,
senhores (Correio Paulistano, 10 jan. 1886). lidos nesse contexto, matérias como as descritas acima parecem ganhar novo senti-
do e função. Em vez da tensão das últimas horas, esse tipo de notícia trazia um esti-
. Nesse caso, a matéria remete à polêmica Lei dos Sexagenários, que liber- lo e um tom bastante particulares: a libertação era uma concessão, um presente sob
tou escravos com mais de 60 anos, os quais, mesmo assim, deviam trabalhar ainda Controle, seja do Estado, seja do proprietário branco, que concedia o benefício a
mais três anos para lograr a emancipação. Longe da imagem de calmaria que a ma- seus escravos, que em troca lhe deviam fidelidade, mesmo quando a liberdade fosse
téria procura passar, o ambiente era conturbado e tal lei mais provocava do que ge- comprada pelo cativo por altas somas.

-
11 Carvalho,1996b:291.
10 Muitas obras mostram o total alheamento do Estado nesse momento de crise. 12 B'bj' "
1 lOtecaNacional,col. Tobias Monteiro,
DOS MALES DA DÁDIVA 35
34 QUASE-CIDADÃO

Seguindo a mais tradicional maneira de "bem festejar", as janelas surgiam


Liberdade
ornadas, as ruas decoradas com tapetes de flores, fazendo da ocasião motivo para
o sr. Manoel Joaquim da Costa e Silva concedeu carta de liberdade a sua "celebrar". De um lado, "as pessoas gradas", de outro, os libertos.
escrava Luiza de 38 anos de idade mediante a quantia por ela oferecida de
200$000 (Província de São Paulo, 27 ago. 1886).
Sorocaba - Na tarde de um do corrente teve lugar a entrega das cartas de
liberdade pela comissão emancipadora. Por essa ocasião houve sinceras ma-
nifestações de regozijo por aquele acontecimento percorrendo os libertandos
Assim, diante do alheamento do Estado, a libertação se transformava em em seguida, as ruas, precedidos da comissão e de uma banda de música, sendo
"contrato privado" entre duas partes, evidentemente desiguais. Por isso mesmo abun- nessa ocasião levantados entusiásticos vivas (Correio Paulistano, 5 jan. 1888).
dam verbos como "conceder, dar, oferecer ... ", referentes ao senhor, e qualificativos co-
mo "lealdade, obediência, servidão, dedicação ...", no caso dos escravos. Além disso, o Expostos ao olhar, desfilando pelas ruas, os libertos não eram entendidos
clima dos artigos era sempre o mais paternalista possível. Grandes discursos revela- como "sujeitos" da Abolição, mas antes "como objetos"; felizes contemplados com
vam a "boa alma" do senhor e eram sempre recebidos com a resposta amiga e comovi- esse troféu que pedia em troca a gratidão. Na verdade, o outro lado dos festejos e
da dos escravos. desfiles revelava uma questão cada vez mais presente: o problema da manutenção
dos negros nas fazendas, uma vez que já se anunciava a atitude pouco intervencío-
nista do Estado e desmentia-se a possibilidade de pagamentos aos senhores que se
Batatais. No dia 11 do corrente o senhor Candido Ferreira da Rocha, agri- considerassem lesados. Ou seja, durante longo tempo esperou-se do Estado uma ati-
cultor do município de Batatais, reuniu em sua fazenda vários amigos e em tude mais firme, que implicasse ou o ressarcimento, ou a organização da mão-de-
presença deles por ocasião de um jantar em que banqueteava com seus ami- obra; esperança que logo se desfez e que resultou no rompimento de vários simpati-
gos ao lado de seus escravos declarou que dava liberdade a estes em número de zantes dos partidos Conservador e Liberal, que passaram a engrossar as fileiras do
nove e que esperava que os novos cidadãos tivessem dessa data em diante o movimento republicano.
mesmo comportamento, a mesma dedicação ao trabalho que tinham manifes- Dessa maneira, os rituais privados de libertação eram antes a afirmação da
tado no cativeiro. Depois fizeram mais discursos, soltaram foguetes e a ale- propriedade ou pelo menos de que "algo deveria mudar para que tudo permaneces-
gria era grande por parte quer dos escravos quer dos benfeitores quer dos se como estava". Nesse sentido, buscando dar uma aparência "natural" a esse pro-
convidados presentes ... (Correio Paulistano, 17 mar. 1888). blema complexo - que se referia ao assentamento dos escravos em suas antigas
propriedades, mesmo que em regime assalariado -, os proprietários caprichavam
nos festejos, tentando passar uma imagem de celebração para o que era, no mínimo,
Assim, pouco antes do ato oficial que aboliu a escravidão, uma série de inseguro e passível de temor.
matérias fazia da libertação um ritual: uma grande festa, na qual desfiles, comícios
e festejos celebravam a "boa e meritosa" ação dos senhores brancos, com a partici-
Ação filantrópica. É sabido que nosso amigo comendador Joaquim B. do
pação quase passiva dos negros. Além disso, se os antigos proprietários eram sem- Amaral comprou uma grande fazenda aos herdeiros do finado Neto dos
pre nomeados (e devidamente descritos e identificados), seus ex-escravos ficavam Santos incluindo nas transações os escravos. O prazo findava-se em abril se-
no anonimato. Ou melhor, sua condição de escravos ou libertos já definia sua inser- guinte, mas o comendador Amaral dísse-lhes que se os servissem, os despa-
charia em dezembro, cumprindo religiosamente a palavra. No último dia
ção na sociedade e lhes bastava. Aos futuros "cidadãos" não se dava identificação,
do mês de dezembro, findo a um toque de sino, fez saber a toda aquela por-
uma vez que sua situação de "ex-escravos" lhes conferia estatuto, lugar e posição. ção de homens que findava o estigma do cativeiro. O honrado lavrador veio
a perder alguns contos de réis, mas ficou amplamente recompensado nos
gozos da consciência e nos aplausos da alma c...) Ele ainda fez mais: brindou
Emancipação - Foi solene a festa que houve em Angra dos Reis no dia 15 os libertos com grande e lauto jantar em que se deram cenas animadíssimas
para a entrega de carta de liberdade aos escravos. As janelas da comarca de gratidão e fervorosos sentimentos por parte daqueles rudes corações. Assim,
estavam ornadas de colchas, tremulavam bandeiras nacionais e estava o por exemplo, um dos pretos levantou-se com este brinde, seguindo-se de ou-
tros. A liberdade? Ao nosso senhor de ontem! Ao nosso patrão de hoje! À exce-
chão alcatifado de folhas e flores. O juiz de órfãos, rodeado de pessoas gra-
ção de dois ou três deles, que alegaram motivo justo, os outros ficaram
das, tendo à sua frente sentados os libertos a dirigir-Ihes comoventes discur-
empregados a salário (Correio Paulistano, 8 jan. 1876).
sos (Correio Paulistano, 5 jan. 1888).
36 QUASE·CIDADÃO
DOS MALES DA DÁDIVA 37

Mais uma vez a matéria reitera estruturas semelhantes. O senhor - o dr, Como se vê, o senhor Silva Prado estava libertando apenas os escravos
Amaral - é sempre "nosso amigo", "um honrado lavrador", alguém conhecido e ais ídosos. que, a essas alturas, representavam mais gasto do que ganho, mas mes-
respeitado que entende a libertação como uma questão pessoal: de consciência e de mo assim vangloriava-se do gesto.13 Além do mais, nessa como em outras matérias,
alma. Em contrapartida, os escravos têm "corações rudes" e respondem ao ato com ~rcebe-se a intenção implícita de garantir o estabelecimento dos cativos nas fazen-
"cenas animadas de gratidão". ~as. Para isso, valia utilizar uma série de justificativas, a fim de referendar que esse
Por fim, a liberdade. A liberdade? Essa aparece sempre como uma questão era o "caminho natural", assim como a melhor maneira de o escravo se inserir em
menor, cuja resolução se dá por meio de um procedimento contratual. "Ao senhor de uma sociedade para a qual "não se encontrava preparado". Apelar para termos co-
ontem, o patrão de hoje" ... a intenção parece ser mostrar controle e alegar continui- mo desordeiros, vagabundagem, despreparo moral e intelectual era sempre válido
dade sem rupturas. A conseqüência também se supunha natural: todos os escravos quando se queria segurar "os pretos na fazenda".
- gratos - optariam por permanecer nas fazendas e só não o fariam aqueles que
alegassem "motivo justo". Ia assim se delineando, no privado, as condições de liber-
tação e os salários contratuais. Por outro lado, na medida em que as representações O sr. capitão Pedra Alcantara enviou-nos para ser publicada a carta de li-
são "produtos" mas também acabam por produzir a realidade, percebe-se o impacto berdade que concedeu à escrava Eva, de 48 anos mais ou menos. Põe co-
mo condição unicamente que viva em qualquer uma de suas fazendas, sendo
dessas falas na compreensão da própria libertação. Emaranhados na mesma teia que
esta condição imposta para que não ande a vagabundar (Correio Paulista-
teciam, nas palavras do antropólogo Clifford Geertz (1976:23), mas em posições- no, jul. 1876).
por certo - desiguais, senhores e escravos vivenciavam o ritual e faziam dele o que
se apresentava.
A libertação vinha, assim, repleta de obrigações - pressupostas e não di-
tas - e era coercitiva em sua efetivação. A preocupação com a mão-de-obra expres-
o sr. ElisárioAlvaro de Souza veio a seus escravos dizendo que a contar de sava-se, portanto, na tentativa de guiar os libertos nas zonas agrícolas e obrigá-los
janeiro de 1891 ficarão livres. Os que se comportarem bem e derem provas
ao trabalho. Era esse o espaço que a libertação dos brancos permitia e previa para
de amor ao trabalho e perfeita observação do serviço começarão a ganhar
os ex-escravos.
500 mensais desde janeiro de 1888 (Correio Paulistano, dez. 1887).
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (1985:73) nos oferece uma série
de argumentos nesse sentido, demonstrando primeiramente como uma grande per-
Ao que parece, o senhor Elisário foi pego de "calças curtas" e a Abolição centagem de alforrias era, já de partida, condicional, prevendo vários anos de serviço
oficial veio antes de seu contrato individual, previsto para 1891. Destarte, e de toda antes do gozo da liberdade. A autora explicita ainda que o liberto da zona rural que
maneira, o texto é interessante em si e mostra a tentativa de controle por parte dos fosse "alforriado pelo fundo de emancipação era obrigado a um domicílio de cinco
senhores e seu discurso tutelar.
.
Pela reiteração e insistência, essas matérias construíram a imagem da an-
anos no município onde houvesse sido alforriado (...) e da mesma maneira os proprie-
tários que se propusessem implantar trabalhos livres em seus estabelecimentos teriam
terioridade dos senhores que libertavam seus escravos - ou acenavam com a liber- o incentivo do Estado e direito ao trabalho de seus libertos por cinco anos".
tação -, sempre em troca de sua permanência nas fazendas e "natural" submissão. Assim, a Abolição era entendida como uma espécie de "redenção da mão-
de-obra", um caminho "protetor e tutelar", que visava impedir os "descaminhos"
próprios a esse grupo, que, conforme começavam a afirmar as teorias deterministas
Ação louvável. Comunicam-nosque o sr. dr. Moutinho da Silva Prado orde-
nou a seu filho, o sr. dr. Martin Prado Júnior, que declarasse inteiramente raciais da época, carecia de condições para a vida em civilização.
livres todos os seus escravos de 65 anos, em número de 17, que desistissem Nas notícias de libertação é sempre a velha imagem do "preto humilde, fiel
do serviço que deveriam prestar os de 60, em número de 14, devendo tra- e_trabalhador", e aliada a ela há uma concepção específica de libertação: uma ques-
balhar somente até o fim da colheita 13 da mesma idade e de 46 anos, um tao entre brancos.
de 57, um de 50, um de 41, sendo concedida liberdade imediata a dois de
48 anos e 38 anos. Essas declarações foram feitas em presença de todos os
escravos (...) Todos declararam desejar permanecer na fazenda, sendo ajusta- 13K'~'---------------------------------------------------------
do o salário aos válidos e distribuído serviço aos escravos que o requisita- de 2~tlaMattoso (1982) mostra que a média de vida dos escravos do campo, no trabalho, era
ram com o fim de adquirir recursos para libertar-se (Correio Paulistano, 13 go anos. Dessamaneira, os escravos que atingiam a barreira dos 50 eram antes um encar-
jan. 1886). , um peso a carregar e a alimentar.
38 QUASE-CIDADÃO

DOS MALES DA DÁDIVA 39


A Avalanche. O Oeste e o Sul voluntariamente, jubilosamente, quebram os
milheiros a cada dia das algemas da escravidão (...) Não é só a opinião pú- . evidente da imigração européia, devia ficar restrito ao "não-lugar". Era absolu-~
blica que os move; são os sentimentos mais nobres, o reconhecimento do di- mais
tamente transparente qu~, com a a b o l'içao,
- e 1e nao
-
encontrana.. posiçao -
segura e es-
reito postergado, a simpatia pelos valentes trabalhadores das fazendas. A
, 1na nova lógica política que se montava. -"
negrada do eito. Dão-se singulares festas nas fazendas. Os fazendeiros reú- tave , .
nem os escravos, proclamam-nos livres C .. ) então eles, os pobres e generosos Na verdade, essas noticias, c . -
que se tornaram a reiçao o fi'era 1 e 1eginma
,. de
trabalhadores, fazem de tudo e ao clarão das chamas das fogueiras num sam- Abolição eram antes "representações do Estado" e surgiam no lugar dele,
nossa , . ., d lib - O .
bafrenético esquecem dos martírios, inauguram o regime de liberdade aos gri- ferindo afetividade e pertença ao espaço inocuo a I ertaçao. u seja, se tomar-
tos de viva sinhô. Sim, vivam os senhores. Viva a sacrossanta liberdade co~s o conceito de representação de Carlo Ginzburg (2001:85), veremos que esse,
(Província de São Paulo, 30 dez. 1887). oor um lado, "faz as vezes da realidade representada e, portanto, evoca a ausência;
Por outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a presença. Mas
~ contraposição poderia ser facilmente invertida: no primeiro caso, a representação
o ato é dos senhores, assim como as homenagens ao gesto "voluntarioso". é presente, ainda que como sucedâneo; no segundo, ela acaba remetendo, por con-
Aos ex-escravos resta a representação da simpatia, cada vez mais associada a um
traste, à realidade ausente que pretende representar".
discurso determinista racial e biológico, que desautoriza a igualdade, justamente
Os rituais de libertação viriam, assim, no lugar do Estado, ou de uma re-
apregoada nesse contexto. Aliás, uma série de cientistas, reunidos sobretudo na
presentação oficial, na falta do Estado e na presença excessiva dos senhores de escra-
Bahia e em Pernambuco, começaram a defender a adoção de teorias deterministas
vos. Teatralizam dessa maneira a presença e a ausência e seriam "semióforos", no
raciais, que estabeleciam diferenças ontológicas entre as raças e que passavam desi-
sentido de que comportariam muitos significados. Tal qual uma imagem reiterada, a
gualdades culturais para o domínio da natureza. Autores como Nina Rodrigues, Síl-
libertação era um presente de brancos, que ofereciam ao mesmo tempo a manurnis-
vio Romero e tantos outros aplicavam modelos produzidos alhures e transformavam
são e o trabalho. O negro que mostrava autonomia estava fora dessas falas, assim
a igualdade numa utopia legal ou até mesmo numa fala sem chão promovida pelos
como da representação oficial que se fazia da nossa Abolição, tão singular em seu
discursos jurídicos.
processo. Ou melhor, era um pano de fundo oculto, presença sugerida pela constan-
"Os homens nascem iguais", diria Nina Rodrigues nessa época, como a de- te reiteração da ordem e do controle. Já o preto, o bom escravo, o negro de alma
sautorizar a libertação jurídica que recém se afírmara.l" Tal discurso determinista, branca, era, sim, o objeto passivo desse tipo de representação.
por sua vez, se casava com o modelo tutelar de libertação, como a indicar que não Na égide do discurso oficial, a libertação era entendida de forma unívoca,
havia abolição sem o necessário controle. sendo apãgãcfas as nuanças e ambigüidades: era uma dádiva de um lado só. Nada
Nessas matérias de jornal estabeleciam-se de imediato, e logo após a liber- de prever ressarcimentos, ou de falar em merecimento ou sacrifício. Como um fardo
dade, vínculos estreitos entre o senhor e os ex-escravos. Estes últimos tornavam-se branco, uma meta "quase que humanitária", essa "abolição à brasileira" fazia-se co-
eternos credores, dando origem inclusive às relações de clientelismo tão presentes mo representação: escondendo a violência e inflacionando a tutela e o caráter tran-
em toda a República Velha. Nesse sentido, segundo Manuela Carneiro da Cunha qüilo das libertações.
(1985:49-50), as alforrias traziam consigo "fórmulas reveladoras de expectativas Mas parece pouco ficarmos restritos à desconstrução do caráter meramen-
ideológicas", já que "supunham em particular que laços entre senhores e escravos te ideológico do discurso das classes dirigentes. É preciso levar a sério a eficácia
existiam e não deveriam terminar com a manumissão". simbólica desses gestos políticos. Os rituais, ao teatralizar a libertação - esse tipo
Havia, portanto, toda uma aposta na transformação do escravo em cliente, de libertação -, ao mesmo tempo em que moldavam as condições de vida em con-
num agregado, ou num elemento ligado a seu senhor por laços de dependência ain- son.ância com a realidade existente, acabavam por "fazê-Ia acontecer", tornavam-na
da mais estreitos. As festividades que acompanhavam tais atos de libertação, assim mais e mais real.
como os desfiles, comícios, banquetes e discursos, pareciam representar o outro la- d Como mostra o antropólogo Clifford Geertz, em Negara (s.d.:l71), os l
do da realidade, que opunha essas celebrações pacíficas e controladas ao fenômeno ramas do Estado-teatro balinês, "miméticos de si mesmos, não eram, ao fim e ao
do "negro quilombola e insubmisso". Além disso, elas reafirmavam o novo lugar "do cabo, nem ilusões nem mentiras, nem prestidigitação nem faz de conta. Eles eram
preto", que, nesses momentos finais da monarquia, e já com a presença cada vez ~' q~e e~istia". C0lI! efeito, diferentemente da definição tradicional, que opõe o
d~m 010_ a realidade, quem sabe valha a pena insistir um pouco mais nessa outra
mensao que encontra eficácia nas estruturas simbólicas. Afinal, como mostra Ge-
ertz os ' b 1
14 Em O espetáculo das raças (1993), tive a oportunidade de desenvolver uma análise mais ror '1 . Sl~ o os representam tudo que denota, descreve, representa, exemplifica,
cuidadosa da entrada das teorias raciais no Brasil a partir da década de 1870. sig U.;'Illdlca, evoca, retrata, exprime - tudo o que de uma maneira ou de outra
ru Ica, vindo daí sua dimensão pública. A eficácia de qualquer símbolo está vín-
40 QUASE-CIDADÃO
DOS MALES DA DÁDIVA 41

culada à condição de ser partilhado e compreensível pela comunidade onde se in- Sabe-se que a ligação entre abolicionistas e republicanos nunca fora dire-
sere, o que sinaliza para uma análise que contemple, mas vá além, da idéia da pura as de toda maneira, vindo do político mais carismático do Império, esse tipo
ideologia e da manipulação. ta, m , , . . . da vi .
d itação causa impacto. Na memona, a monarquia estava am a VIva, aSSImcomo
Esses senhores manipulavam, sim, mas estavam também emaranhados nas e .certo sentimento de remorso. Era talvez a idéia da dádiva - e de dívida - que
redes que procuravam tecer e acreditavam no discurso que faziam. Mais ainda, ao um arecia, agora vinculada ao destino da própria realeza.
reproduzirem a realidade, acabavam também por criá-Ia nas formas simbólicas que
reap Por sinal, Nabuco e outros autores da epoca
' - como L' ima Barreto - atn-.
,)
elegiam. Afinal, seu discurso não parecia fazer sentido só para eles mesmos, uma buíam à "decepção" com a nova República uma série de elementos que permanece-
vez que era exposto numa comunidade de significação que alcançava aqueles que ram sem solução, ou melhor, sem resposta adequada, entre eles a complexa questão
ouviam e reconheciam "o texto". Por isso mesmo, não basta entender essas notícias do final da escravidão.
apenas como "mentirosas"; suas conseqüências foram mais profundas, na medida É certo que o saudosismo e a idéia de que um "plebiscito sincero" faria
em que não podiam ser consideradas absolutamente externas àqueles que delas de- com que os ex-escravos, em nome do final da monarquia, abrissem mão da liberda-
pendiam: diante de tamanho presente, só parecia restar espaço para a retribuição de encerram uma visão no mínimo complicada e paternalista. No entanto, ficar nes-
sa chave exclusivamente política e ideológica não resolve a questão.
na forma de gratidão.
Nosso "risco" aqui é supor que Nabuco falava em nome, e bem no meio, de
uma "comunidade de sentidos", e que seu depoimento individual ecoava no interior
Má consciência de uma série de valores partilhados por essa 'jaula flexível" que, nas palavras de Ginz-
burg (1987:27), é a cultura. Não quero com isso negar que o local da fala de Nabuco
Nos jornais encontramos, portanto, uma série de notícias dispersas, faits e desses faits divers que citei à exaustão não fosse parte de um imaginário das elites
divers referentes a várias localidades, que, como por insistência, vão tecendo uma locais, que dominavam os espaços da escrita e os instrumentos de divulgação.
teia de "causos" e exemplos, que refletem, mas também buscam comprovar, e mes- No entanto, seria simplismo supor que as representações produzidas pelos
mo produzir, o caráter ambíguo - excepcional e pacífico - da libertação brasileira. grupos dominantes só fizessem sentido para eles. A cultura se define sobretudo pela
Mas não só nos periódicos afirmava-se essa imagem complexa de nossa circularidade, e é o dialogismo que permite entender como os valores são relidos,
abolição. Também os grandes autores desviavam-se de seus temas diletos para refle- sim, mas também partilhados com refluxos constantes.
tir sobre a libertação dos escravos e seus vínculos com o final da monarquia. Este é Nabuco lamenta aquilo que chama de "racionalidade" da República e faz
o caso do famoso texto de Joaquim Nabuco, que em Minha formação, livro publica- de seu livro um acerto de contas. Faltaria ao novo momento, segundo ele, a "emo-
ção, o sentimento de pertença e o caráter simbólico da nação" presentes no sistema
do na virada do século, em 1900,lS registraria:
ideologicamente falido da monarquia. E é por isso mesmo que a escravidão aparece
como um fato social total, profundo em sua inserção, que não se apaga com um me-
A abolição no Brasil me interessou mais do que todos os outros fatos ou sé- ro ato e uma única sentença. Citemos mais uma vez Nabuco (1949:153):
ries de fatos de que fui contemporâneo; a expulsão do Imperador me aba-
lou mais profundamente do que todas as quedas de trono ou catástrofes
nacionais que acompanhei de longe (...) No Brasil a monarquia foi o que A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional
vimos, uma magistratura popular. Depois da recepção que dom Pedro II te- do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade;
ve nos Estados Unidos da América em 1876, não era mais lícito duvidar de seu Contatofoi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e
que para a inteligência culta do país a monarquia constitucional era um go- foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e
verno muito superior às chamadas repúblicas latino-americanas (...) Tenho viva; com seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua
alma infantil, suas tristezas, suas lágrimas sem amargar, seu silêncio sem
convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria de-
~oncentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte (...)
sistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessa-
E ela o suspiro indefinívelque exalam ao luar as nossas noites do Norte...
vam por ela e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de
novembro lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio C.. ) A queda do Império
pusera fim à minha carreira. . Sugiro, assim, que tomemos Joaquim Nabuco como um "mediador", como
um Indivíduo afastado, mas também perto de nós. Um exemplo isolado em seu uni-
~erso,mas que também traz consigo as constrições de sua época. E afinal do que
15 VerNabuco, 1949:29, 129, 174-173,210. a a Nabuco? Tomado como um texto meramente ideológico, o trecho acima apenas
42 QUASE-CIDADÃO

DOS MALES DA DÁDIVA


43

reforçaria O lado paternalista de nossa Abolição. Mas o texto faz mais: revela uma
"estrutura profunda da escravidão", ou melhor, uma série de valores, costumes e Milão, 10 dias após a promulgação da Abolição, o imperador tomou conhecimento
símbolos, que teriam vindo para ficar, a despeito do sistema escravocrata que se des- da nova situação. E~ 22 de maio, após ter sido co?siderada s~tisfatória a saúde do
montava. onarca, a imperatnz resolveu ler o telegrama enviado pela pnncesa Isabel. O texto
:meçava de forma intimista: "13 de maio de 1888. Petrópolis. Meus queridos e
bons pais. Não sabendo por qual começar hoje: Mamãe, por ter tanto sofrido esses
Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira dias; Papai, pe Io día
Ia cue
que e, escrevo a am b os juntamente.i.
é . " . 16 Boa parte d as biiogra-
vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita com sua solução obrigatória.
fias destaca a resposta "serena" do imperador, que, diante da nota, teria apenas dito
Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora como a ti-
nham até o fim abençoado. A gratidão estava ao lado de quem dava. Eles "Graças a Deus", o que mais se parece com uma peça de cultura política do que com
morreram acreditando-se os devedores (...) seu carinho não teria deixado ger- um comentário daquele que durante pelo menos 50 anos teria evitado - apesar de
minar a mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obrigação para sempre dizer o contrário - terminar com a escravidão. O tema era complexo e pa-
com eles que lhe pertenciam (...) Deus conservara ali o coração do escravo, co- recia demandar respostas ambíguas por parte do monarca.
mo o animal fiel, longe do contato com tudo que o pudesse revoltar contra a D. Pedro Augusto, que se encontrava em Aix-Ies-Bains, junto com o avô,
sua dedicação. Esse perdão espontâneo da dívida do senhor pelos escravosfigu-
deixou uma pequena nota que revela uma reação um pouco diversa por parte da
rou-se-me a anistia para os países que cresceram pela escravidão, o meio de
escaparem a um dos piores taliões da história ... família:

A escravidão, pensada nesses termos, não se resumiria à imagem da viti- o Imperador adoeceu a 3 de maio e achamos que ia morrer. Quando o Im-
perador melhorou um pouco, nesse dia 22, deram pressa em anunciar a ele
mização. Ao contrário, teria produzido uma rede tensa de cultura, um idioma local,
a grande lei da abolição. O telegrama de felicitações foi redigido (...) "Feli-
cujas implicações e reverberações continuariam presentes e não se acomodariam à
cito a princesa Regente pela feliz medida." Mandei dois telegramas. O pri-
lei. Assim, na fala de um dos grandes pilares do abolicionismo brasileiro, a questão meiro: Faço votos que tudo termine a contento geral. O segundo: Parabéns
desenhava-se com toda a sua complexidade. Mais do que o problema eminentemen- pelo triunfo da Casa Real.!7
te político, que se resolve com o ato exemplar, tratava-se de lidar com a "questão
moral" da escravidão e com os estratos mais profundos legados pelo sistema e por
sua própria desmontagem rápida; entre eles o tema da "gratidão" e de uma íntima Começavam assim o regresso de d. Pedro ao Brasil e o início do final da
dependência. monarquia, que se enlaçava com a própria Abolição. Era a imagem do "bom pai"
Nesse caso em particular, Nabuco trata - no famoso capítulo intitulado que se ia aos poucos construindo e agora se associava à doença do monarca e ao
"Massangana"- das suas primeiras lembranças da escravidão e da relação de fideli- culto e à divulgação de uma certa atitude sempre serena e comedida. Por outro la-
dade que teria se estabelecido da parte do cativo para com seu senhor= E meu obje- do, o imperador, que já partira com uma imagem fragilizada, voltava enfermo. Mais
tivo é justamente nomear tal relação, ou melhor, pensar na sua penetração, para do que isso, a representação da realeza estava doente.
além de uma leitura exclusivamente calcada na lógica da conjuntura e da política Mas os ânimos ficariam momentaneamente serenados. Por sinal, o ano de
local. Algumas estruturas se mostram pouco afeitas à diacronia e insistem em, tei- 1889 pareceu começar bem. Para quem vivia da arte da dissimulação, era como se
mosamente, perpassá-Ia; e esse é, quem sabe, o caso aqui. um belo texto tivesse o poder de ser mais e estar acima da realidade. Com efeito,
Talvez seja essa a maneira de entender como, finda a monarquia enquanto em 28 de fevereiro de 1889, Levasseur comunicou que dera o último retoque no
sistema político, ela ressurgiu popularmente como representação e associada cres- grande ensaio que seria publicado na Grande encyclopédie sobre o império. O texto,
centemente ao ato da Abolição, mais uma vez representada como dádiva. Para tan- que originariamente tinha 15 páginas, com a ajuda de Rio Branco passou a ter 51,
to, basta entender a importância de um fenômeno como a Guarda Negra, que se que, ~~mo dizia o barão, "em letras grandes, poderia representar bem umas 200 ou
mostrou leal ao culto de "Isabel, a Redentora", ou da releitura popular da própria 300". O espaço que o Brasil ganhou nessa publicação era digno de nota. Só perdia
figura de d. Pedro lI. Enfrentemos esses dois fenômenos, a fim de entender suas co- para a Alemanha e, além disso, vinha acrescido de um prefácio de Rio Branco.
nexões com o tema da dádiva, mote central desta reflexão.
Por um lado, a imagem do monarca foi lentamente se construindo de ma- 16
neira paradoxal: se o Império entrava evidentemente em decadência, d. Pedro res- Apud Calmon, 1975:1415.
17 Bib - ._
18 I hoteca Nacional, col. Tobias Monteiro.
surgia como símbolo popular, cada vez mais associado à libertação dos escravos. Em
Calmon,1975:1504.
44 DOS MALES DA DÁDIVA
45

Também em 1889 foi editada a biografia de d. Pedro II, feita pelo rabino se estes últimos fossem os verdadeiros algozes.é" Os primeiros choques se de-
mo
de Avignon, Benjamim Mossé. Escrita em tom laudatório, a obra era antes uma ho- co d rante uma conferência de Silva Jardim e foram incentivados por José do Pa-
menagem a esse imperador do Novo Mundo, que era um cultor das línguas clássicas ram ,. u para quem parecia norma 1 que o governo se d eren c d esse d"as VlO. IAencias
.
e um estudioso do "hebraísmov.l" trOCIlllO, . b d "G d N "R' B b
blicanas". Não paravam de surgir oatos acerca a uar a egra. Ul ar 0-
Em 1889, o Brasil também participou da importante Exposição Universal repu chamou de "um troço de maltrapilhos entoando vivas à monarquia e ao Partido
saa
íb 1" uma "capoeiragem autonza . d"Ca. omentava-se que o grupo reuma. maisis d e
de Paris. Cavaicanti, Rio Branco, Eduardo Prado esmeraram-se na construção de Li era '. . .
um pavilhão grandioso, num estilo híbrido dos palácios de fantasia. Contava Com 800 negros libertos amotmados, que marchavam para a Cidade a fim de lutar contra
uma torre majestosa de 40 metros e uma cúpula envidraçada e chamativa. Em um republicanos. Quão confiáveis são esses números não se sabe. O fato é que ne-
quiosque ao lado, vendia-se café a 10 cêntimos a xícara. Enormes telas do pintor osos e abolicionistas reconhecidos, como Patrocínio, tornaram-se leais à monarquia
brasileiro Estevão da Silva, apresentando frutas tropicais, enfeitavam as salas mais _gr e sobretudo a Isabe 1"-, seus antigos opositores, e encontraram nos repu bliicanos
vazias. Seis estátuas colossais representavam os rios do Brasil e numa enorme ba- inimigos mais palatáveis. Por outro lado, como a lei era divulgada de maneira pes-
soal, as benesses do ato ficaram associadas a Isabel e não ao regime político, clara-
cia flutuava, romanticamente, uma típica vitória-régia. Enquanto a Holanda pre-
senteava o aniversário francês com uma bela tulipa, a vitória-régia, uma espécie mente falido.
Construíram-se, assim, dois mitos paralelos: o de "Isabel, a Redentora" e
selvagem e exótica, representava as excentricidades do Brasil. O café, a fúria de
o de d. Pedro II como "o grande pai de todos". E essas imagens pareceram se asso-
nossos rios e de nossa vegetação e até mesmo a África no Brasil adornavam o civi-
ciar de tal modo que, por ocasião da República, um evidente "constrangimento" se
lizado e grandioso edifício.
impôs, assim como não faltaram demonstrações de "lealdade", não tanto à realeza
"Para fora", portanto, tudo ia muito bem; mas os símbolos e representa- que acabava - totalmente enfraquecida e desacreditada -, mas às figuras dos
ções não se impõem exclusivamente por pura emissão. Em momentos de crise, a uti- antigos governantes.é '
lização do imaginário e de emblemas nacionais é particularmente visível e o Brasil Não é o caso de refazer a história da proclamação da República e os últi-
não escapou à regra. Ao mesmo tempo em que o império ia à França homenagear a mos meses da monarquia. Interessa mais mostrar como logo após a queda do regi-
revolução, a campanha republicana ganhava força no Brasil, tomando como pretex- me reorganizaram-se representações dispersas e, sobretudo, associou-se à figura do
to as mesmas comemorações do centenário da República Francesa. O exemplo da monarca o ato mais popular do Segundo Reinado: a abolição da escravidão. Em no-
França, que derrubara os privilégios da aristocracia, passou a ser invocado com in- tas, artigos, matérias, na atuação do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro
sistência, obliterando-se o fato de que aquele país comemorava só 18 anos de vida (lHGB), a realidade virou mito e vice-versa, e a figura da antiga monarquia se asso-
republicana e não 100, como indicava a data festiva. Tudo se passava como se a mo- ciou a um caldo de cultura de mais longa duração. Mas não foi só na esfera pública
narquia estivesse garantida exclusivamente em função da imagem ainda simpática q~e essas mudanças se fizeram sentir. O monarca começou a ser recordado nas re-
leituras populares, que, ao lado dos distantes heróis republicanos, elegeram um im-
do imperador.
perador popular, relido em função das festas, selecionado a partir de símbolos
Mas os ânimos mudavam rapidamente e, a cada dia, as posições se radica- compatí~eis com determinado ideário e esquecido em outros. Nas trovas populares,
lizavam mais. No governo liberal de Ouro Preto tomou impulso uma idéia já presen- -.antenores e sobretudo posteriores à proclamação da República -, ele era, a des-
te na época de João Alfredo, que pretendeu criar uma força paralela ao Exército, peito de sua intenção ou não, um herói da gente, um filho da terra:
para atuar como protetora da monarquia. A "Guarda Negra" nascera de uma idéia
de André Rebouças e revelava até que ponto os militares se opunham ao novo regi-
me que se montava, embora uma das primeiras preocupações de seu idealizador Morreu Dom Pedro Primeiro
ficou Dom Pedro Segundo
fosse evitar o enfrentamento direto, devido à especificidade de sua composição -
batendo com as pestanas
dizia-se que era formada pela "ralé carioca e por maltas de capoeiras". governando sempre o mundo (Nordeste, 1834).
A situação era de fato paradoxal e, mais uma vez, revelava os caminhos
ambíguos que o processo de libertação tomava no Brasil. Os ex-escravos guardavam
lealdade à monarquia e se opunham aos republicanos, chamados de "os paulistas", 20 Muito se tem dito sobre o papel do Partido Republicano paulista na proclamação da Repúbli-
ca. De fato, desde a década de 1870 São' Paulo assumira uma posição de destaque no cenário
econômico d ' ' _ ,.
21 E o pais, sem no entanto contar com uma representaçao política correspondente.
19 Ao que parece, apesar da autoria formalmente pertencer a Mossé, a biografia teria sido c m ~ barbas do imperador. .. (1998a) tive a oportunidade de desenvolver esse argumento
orn mats vagar.
escrita pelo próprio barão do Rio Branco.
DOS MALES DA DÁDIVA 47
46 QUASE-CIDADÃO

Essa talvez seja mais uma das muitas manifestações que acompanharam,
Atirei um limão n'água
de pesado foi ao fundo
durante algum tempo, boa parte da população negra brasileira, que ligou o final da
os peixinhos responderam escravidão aos ícones da realeza: Isabel, "a Redentora", e seu pai de barbas brancas.
Viva Dom Pedro Segundo! E mais uma vez o modelo só reafirmava a mesma representação e vice-versa: a Abo-
Quem põe governança lição era um presente "dado" pelos monarcas ou pelos próprios proprietários de ter-
na mão da criança, ras, e todos pediam em troca lealdade e submissão. _
põe geringonça
no papo da onça. Vimos, assim, até aqui, não só o lado ritual da afirmação da Abolição -'
nas tantas festas de libertação - como a criação de um argumento que vinculou a
O til pode ser pequenino
monarquia à abolição, seja no depoimento isolado de Nabuco, exemplar em sua
contém um prazer jocundo;
relógio para baiano posição e local, seja na análise da idealização quase mítica da realeza no Brasil.
é mais que Pedro Segundo; Resta pensar na dádiva como "um fato social total", que, nos termos de Marcel
botina e chapéu de sol Mauss, tem derivações não só econômicas e políticas, mas sociais, culturais, jurídi-
são as grandezas do mundo (Mato Grosso). cas, religiosas, técnicas e familiares. O social só é real quando apreendido como
Ó raio, ó sol! ' sistema, e é nesse sentido que vale a pena insistir não tanto nas implicações exter-
Suspende a lua! nas da Abolição - que levaram à exclusão e à marginalização da população ne-
Bravos ao Velho gra, sem espaço na nova ordem republicana que se montava -, mas na apreensão
que está na rua (Rio de Janeiro). interna e em suas repercussões.
A mãe do Deodoro disse:
- Este filho já foi meu;
agora tá amaldiçoado Concluindo: dar, receber e retribuir
de minha parte e de Deus (São Paulo).
Saiu D. Pedro Segundo É hora de pensar nas decorrências desse processo, que gestou uma repre-
para o reino de Lisboa. sentação dadivosa da Abolição brasileira, como se essa se resumisse a um imenso
Acabou-se a monarquia presente, merecedor de uma quase que eterna e "natural" retribuição. Para tanto,
o Brasil ficou à toa. nada como pedir auxílio ao modelo clássico do antropólogo francês Marcel Mauss,
Este povo está perdido, em seu consagrado "Ensaio sobre a dádiva".
está sem arrumação, Publicado pela primeira vez em 1922, o estudo pretendia, a partir do mé-
e o culpado disso tudo
todo comparativo, entender por que a dádiva, aparentemente voluntária, era, na
é o chefe da nação (Canudos, Bahia).22
verdade, um ato compulsório. Em outros termos, tratava-se de investigar o que fazia
com que o presente recebido fosse obrigatoriamente retribuído.
D. Pedro era, portanto, apresentado como herói popular, e reintroduzido Para responder a tal indagação, o etnólogo descreve formas de troca e de
aos poucos como herói oficial. João do Rio, na crônica ''A tatuagem no Rio", faz um
contrato em sociedades, à época, consideradas arcaicas em relação a nossa própria
pequeno tratado sobre essa prática, primeiro pelo mundo afora, depois no Brasil.
sociedade. Sistemas semelhantes e regras de reciprocidade obrigatórias podiam ser
Passa então a descrever os diversos motivos e as especificidades nacionais. Quando
encontrados em sociedades melanésias, como as de Fiji, Nova Guiné e parte da Ásia
chega aos negros, o cronista dandy das ruas do Rio refere-se às marcas mais recor-
meridional, mas também na Polinésia e no noroeste americano. Segundo esse mode-
rentes entre eles: o crucifixo e a coroa imperial.
lo, a troca instauraria uma estrutura comum, que implicaria três obrigações recípro-
cas: "dar, receber e retribuir".
Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial Utilizando-se de uma amostragem ampla - que abarcava casamento, nas-
hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num cimento, puberdade, morte e comércio -, Mauss mostrou como, na troca de pre-
arranco mil vezes secular e inconsciente: - Eh! Eh! Pedro II não era dono?23
sentes, estariam incluídos elementos como honra, prestígio e mana, que confeririam
riqueza mas também a obrigação de retribuir a dádiva recebida. O autor obteve, as-
sim, uma grande síntese, ao propor que se podia provar que nas coisas trocadas
22 Apud Souza, 1997.
existia uma virtude que forçaria as dádivas a circularem, a serem ofertadas, a serem
23 Kosmos,n. 11, novo 1904.
48 QUASE.CIDADÃO 49

retribuídas. A troca seria, portanto, um edifício complexo - uma síntese dada pelo Receber é dar e retribuir, e essa devolução seria coercitiva por princípio.
pensamento simbólico -, construído a partir de obrigações recíprocas. to o que se revela por meio da análise é o próprio estatuto da dádiva, que, no
Determinadas sociedades, como a dos Maori, teriam chegado a tal grau de Portan ,ileiro se aSSOCIa ., ao carater m
. divid
IVI ua 1 que a l'bI ertaçao- teve no Brasil
rasu, uma
caso bras '
sofisticação que incluiriam em seu vocabulário um termo para designar a coercivida_ z que o ato do Estado tardou.
de da troca. Hau seria o "espírito da coisa dada", o ''vento que flui", mostrando co- ve É como se fosse refeita a máxima que mostra como, no Brasil, "privado"
mo, junto com o presente, ia muito mais do que a dádiva material. O presente _ é uma categoria imediatamente contraposta a "público", pelo menos no sentido
conteria a força mágica, a moral religiosa ou mesmo espiritual. Por isso mesmo, a nao
adicional do termo. Ante uma concepçao - fráragt'1 d e Esta d o e um uso d e'b'lI d as msn-
. .
retribuição seria impelida pelo hau do presente, o que implicaria a própria devolu- tr ições públicas, no país a esfera privada parece referir-se à família extensa e não ao
ção. A troca é antes uma obrigação, uma vez que a "coisa recebida" não é entendida ~~diVíduo,que permanece distante das leis. Os escravos teriam sido libertados por
como um objeto inerte e abandonado pelo doador; é parte dele e faz com que o doa- um ato particular, seja de Isabel; seja de seus proprietários, e não é a esfera pública
dor adquira ascendência sobre o beneficiário. que parece estar em evidência. E como se o ato da Abolição virasse um tema da inti-
A retribuição não é, assim, só coercitiva, deve ser equivalente, criando um midade e das relações pessoais, fugindo da agenda pública e do próprio exercício da
vínculo mais do que material entre as diferentes partes envolvidas. Presentear alguém cidadania. Dos escravos esperava-se "gratidão" e a permanência nas fazendas, não a
é doar algo de si, e é preciso retribuir aquilo que é parcela da natureza ou sua própria cidadania, propalada pela nova República.
substância. Aceitar um presente significa aceitar algo que carrega uma certa essência Por sinal, não foram poucos os pensadores que atentaram para essa compli-
espiritual e gera uma tríade de obrigações: o famoso "dar, receber, retribuir". cada relação entre esferas pública e privada no Brasil. Sérgio Buarque de Holanda, em
A troca como dádiva teria, dessa maneira, uma vasta extensão e levaria a 1936, chamava atenção para um traço definido da cultura brasileira, conhecido pela
pensar, por meio da alteridade, em nossa própria sociedade, que, apesar de tão mar- expressão de Ribeiro Couto, que afirmava que daríamos ao mundo "o homem cor-
cada por uma lógica econômica, carrega estruturas simbólicas, cuja eficácia é essen- dial". Para Holanda, porém, cordialidade não significava "boas maneiras e civilidade".
cial a sua própria constituição. Na civilidade, dizia ele, "há qualquer coisa de coercitivo (...) é justamente o contrário
de polidez. Ela pode iludir na aparência't.é" Na verdade, o famoso historiador estava
Também nós utilizamos expressões do tipo "dar uma recepção" (que impli-
mais interessado em entender como a cordialidade vinha do "coração", ou melhor, fa-
cam o dar e o receber), assim como fazemos de nossos rituais momentos supremos
lava das relações pautadas pela intimidade e pela afetividade, e que, portanto, desco-
de troca. Mas nosso exemplo aqui é outro. Trata-se de testar o modelo e pensar nas
nheciam o formalismo. Tal qual uma ética de fundo emotivo, no Brasil imperaria "o
decorrências da concepção da Abolição como dádiva, presente. Por certo, não é o culto sem obrigação e sem rigor, intimista e familiar".25
caso de retomar o ensaio em sua minúcia, mas interessa entender, em nosso caso, se
Raízes do Brasil traz, assim, um alerta ao apego irrestrito aos "valores da
existiriam princípios de moral e de economia regendo as diferentes trocas, fazendo
personalidade" numa terra em que o liberalismo impessoal seria caraterizado ape-
delas modelos de reciprocidade coercitivos.
nas como um "mal-entendído't.é? Em questão estava, dessa maneira, a possível -
Ora, se Marcel Mauss tem razão no modelo racionalista e urtiversal que e desejável - emergência de instâncias de representação que se sobrepusessem às
constrói, pode-se ampliar o exercício a fim de refletir sobre uma certa lógica interna, persistentes estruturas intimistas. É nesse sentido que se podem traçar paralelos,
e perversa, contida nesse modelo da reciprocidade coercitiva, que instaura uma de- pO,r~xemplo, com a expressão "dialética da malandragem", elaborada em ensaio
sigualdade entre o doador e o beneficiário e vice-versa - de maneira a manter o clássico de Antonio Candido (1993). Por meio da figura do bufão, que aparece
círculo sempre em atividade. O pressuposto é que sempre se dá mais do que se rece- com certa regularidade na literatura brasileira, e tendo como base o romance de
be (e mesmo o contrário), o que faz com que a desigualdade - e não a igualdade Manuel Antonio de Almeida - Memórias de um sargento de milícias - Candido
- seja fundamental nessa lógica alargada da troca. alcança uma estrutura específica uma certa dialética da ordem e da desordem na
l' ,
Voltemos ao caso da Abolição brasileira, que nos interessa mais de perto. qua tudo seria lícito e ilícito, burla e sério, verdadeiro e falso. Nesse local, a inti-
Se os exemplos que dei já são muitos, poderia multiplicá-los se incluísse a iconogra-
fia da época, as imagens de medalhas cunhadas por ocasião da Abolição (como a
24
que fez o IHGB), ou as estátuas de gosto duvidoso em homenagem a Isabel, como a 25H~landa, 1936:107.
existente no Museu Imperial de Petrópolis. Em comum há sempre uma postura rei- Ibíd, p. 101. Diz o historiador: "É que nenhum desses vizinhos soube desenvolver a tal extre-
terada: .se ao branco cabe a atitude altiva e honrada, do negro - ex-escravo - só se mo essa.cultura da personalidade que parece constituir o traço decisivo dessa evolução, desde
espera a postura submissa e "agradecida". A Abolição abriria uma dívida sem fim, ~~mp.oslmemoriais" (p. 32).
Ibld, p. 119.
uma grande dependência e a correlata servitude impagável por essência e definição.
50
QUASE-CIDADÃO
DOS MALES DA DÁDIVA 51

midade seria a moeda principal e o malandro reinaria, senhor dessa estrutura


avessa ao formalismo que leva à "vasta acomodação geral, que dissolve os extre- Dessa maneira, para a autora, o favor seria uma espécie de ideologia, já
mos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração dos grupos, das que parte de uma premissa falsa: a suposta igualdade entre as partes oculta a reali-
idéias e das atitudes mais díspares (. ..)".27 dade da hierarquia do poder. Por fim, a relação de favor camuflaria a possibilidade
Também Roberto DaMatta (1981) retomou o tema, mostrando a existên- de o trabalhador livre perceber como o fazendeiro manipula a situação com vistas à
cia no Brasil de uma sociedade dual, na qual conviveriam duas formas de conceber dominação.
o mundo. Um mundo de "indivíduos" sujeitos à lei e outro de "pessoas", para as É justamente pautada nesse tipo de reflexão que Maria Sylvia desautoriza-
quais os códigos seriam apenas formulações distantes e destituídas de sentido. ria o uso das idéias liberais no Brasil, dizendo que estas teriam sido absorvidas tal
qual ideologia, uma vez que as noções de igualdade e de liberdade obscureceriam as
Talvez seja por isso mesmo que a Abolição, no Brasil, foi tratada, durante
verdadeiras relações de dominação, baseadas na troca de favores.
longo tempo, como um tema discutido "entre pessoas" e fora do estatuto da lei:
Estaríamos, assim, retomando apenas a idéia da manipulação ideológica,
uma questão de foro íntimo, negociada diretamente entre os senhores e seus escra-
presente na dádiva e na falsa troca? É justamente opondo-se a essa concepção mera-
vos. Até mesmo o grande ato de 13 de maio de 1888 foi percebido, nos primeiros
mente ideológica e política do favor que Roberto Schwarz desenvolve uma contra-
anos, como associado a uma personagem e não ao Estado, como se fosse proprieda-
argumentação, mostrando como as idéias liberais de igualdade e cidadania jurídica
de privada, ou nos termos que temos usado, "dádiva de um lado só". Por isso, o cul-
foram traduzidas no Brasil como favor. Tal "tradução" não servia para encobrir a ci-
to de Isabel e a releitura de seu pai, tal qual um sábio ancião.
dadania, uma vez que o próprio conceito de cidadania seria diferente daquele con-
Vamos recorrer pela última vez ao relato de Joaquim Nabuco: formado pelas revoluções burguesas européias do século XVIII. Assim, a idéia de
favor e de privilégio se sobreporia, por aqui, ao conceito de cidadania e seria, mais
propriamente, sua versão local. Por isso, "as idéias estariam fora do lugar", uma vez
A gratidão estava ao lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se deve-
dores (...) seu carinho não teria deixado germinar a mais leve suspeita de que transportadas de outro contexto teriam sido ressignificadas, e adquirido, em um
que o senhor pudesse ter uma obrigação para com eles, que lhe pertenciam ... contexto diferente, sentidos distintos. O favor não diluiria a hierarquia - ao contrá-
rio, a reporia -, mesmo porque todos parecem saber e reconhecer a hierarquia, que
passa a ser peça internalizada nesse jogo.
A dádiva levava, dessa maneira, a uma balança desequilibrada e colocava Não se trata, dessa maneira, de apenas desconstruir discursos na chave
no lado dos ex-escravos o peso da "obrigação". política e ideológica, mas, antes, entender por que esses "textos" continuavam a fa-
Esse tipo de discussão nos conduz de volta ao já clássico debate entre Ma- zer tanto sentido. No limite, é fácil rir do passado, mais difícil é compreendê-Ia. Os
ria Sylvia de Carvalho Franco e Roberto Schwarz, travado na década de 1970.28 A rituais de libertação, a fala saudosista de Nabuco, as imagens de Isabel, a Redento-
autora analisa, entre outras questões, a importância do favor nas relações entre fa- ra, e do pai dos brancos - que resistiam à própria falência do sistema - parecem
zendeiros e homens livres na ordem escravocrata. Maria Sylvia (1975 :63) mostra compor versões de uma partida mais profunda. A abolição da escravidão aparecia
como o fato de o tropeiro usufruir da hospitalidade do fazendeiro - que cedia pas- antes como um "grande favor", que se inseria nesse linguajar comum, introjetando a
tagens para a sua tropa - tinha conseqüências perversas: "se esta prática aumenta- hierarquia a partir dessa troca sempre - e por definição - desigual. Como um fe-
lhe o ganho, o preço inconscientemente pago por isto não é pequeno, pois atinge nômeno social total, a dádiva articulava elementos soltos, dando sentido a uma for-
sua própria pessoa, colocando-o na situação de retribuir com seus serviços os bene- ma de sociabilidade que não se resumia a uma dicotomia composta por dois blocos
fícios recebidos". Cria-se assim, nesse exemplo, uma relação de dependência que im- monolíticos, com seus direitos e deveres: senhores e escravos. Ela articula, amplia e
plicaria trocas constantes de favores, e é aí que entramos em terreno comum. Diz tende a constituir a própria sociedade. Afinal, a troca nunca foi sinônimo de ausên-
Maria Sylvia que a troca pressupõe igualdade entre as partes e ocorre, aparente- cia de hierarquias. Ela é antes sua afirmação, sua interiorização.
mente, entre pessoas livres e iguais. No entanto, a lógica interna é outra: na mesma Mais do que analisar as especificidades do processo brasileiro de abolição
medida em que o fazendeiro enriquece mais rápido que o tropeiro, também aumen- da escravidão, interessa insistir nas decorrências. De tão rotinizada, a libertação co-
ta a dependência do segundo em relação ao primeiro. mo que não existiu. De tão tranqüila, não deveria nem ao menos ser sentida. De tão
naturalizada, parecia um desígnio dos céus. De tão inserida, passou rapidamente
para a ordem do passado mais passado. E afinal, que espaço sobra para a população
27 Candido, 1993:5l. que foi efetivamente libertada? Apenas uma grande e quase inominável falta.
28 Franco, 1975; e Schwarz, 1977. Talvez seja por isso que no Hino à República, composto apenas dois anos
após a Abolição, já se tenha imprimido a "versão oficial" que fazia da Abolição re-
52 QUASE.CIDADÃO
53
DOS MALES DA DÁDIVA

cente um tema da "antigüidade", jogando com tempos e modelos que não respeitam GEERTZ, C. Negara: o Estado teatro no século XIX. Lisboa: Difel, s.d.
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lha. "Nós nem cremos que escravos outrora tenham havido em tão nobre país (...) GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes; o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pe-
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SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra,1968.

SOUZA, lara Lis Franco Schiavinatto Carvalho. Pátria coroada: o Brasil como corpo político
autônomo, 1780-1831. 1997. Dissertação (Mestra do) - Unicamp, Campinas, 1997.

O senhor Cândido de Oliveira (o interrompe):


- Não há mais libertos, são cidadãos brasileiros.
O senhor barão de Cotegipe:
- São libertos, mas direi, se quiser, até que são ingleses (risadas).
Eu uso o termo próprio.

Com a extinção do tráfico africano em 1850, os últimos cativos das Améri-


cas concentraram-se nas áreas rurais do Sudeste, através do recrudescimento do trá-
fico interno de escravos. Este capítulo reúne resultados de duas pesquisas que, de
forma paralela e em momentos diferenciados, exploraram a questão da inserção so-
cial dos libertos no mundo rural do Sudeste após a Abolição. A comunicabilidade
dos resultados de ambos os trabalhos torna as conclusões aqui apresentadas mais
abrangentes que a simples soma de suas partes, fazendo ressaltar a relevância de se
expandir, no Brasil, a discussão historiográfica sobre as especificidades do mundo
do trabalho nas sociedades pós-emancipação; e suas relações estreitas com os confli-
tos em torno dos significados de cidadania e do acesso aos direitos civis e políticos
nas antigas sociedades escravistas.

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A abolição da escravidão no Brasil, sem indenização, em 13 de maio de


1888, foi uma experiência especialmente traumática para os senhores de escravos das
províncias cafeeiras do Império, que concentravam em suas fazendas os últimos cati-
vos das Américas. Apenas em 1887 cessaram os negócios com escravos nessas provín-

* ~ste texto revisita o tema da inserção social dos libertos no mundo rural do Rio de Janeiro
pos-emancipação, com base em material empírico analisado em Mattos, 1987 e 1997; e Rios,
2001. .

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