Você está na página 1de 15

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/321683415

Para uma história conceitual crítica do Brasil: recebendo a Begriffsgeschichte

Chapter · December 2007

CITATIONS READS

2 85

1 author:

Joao Feres Jr.


Rio de Janeiro State University
216 PUBLICATIONS 1,187 CITATIONS

SEE PROFILE

All content following this page was uploaded by Joao Feres Jr. on 09 May 2019.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


História dos conceitos:
debates e perspectivas
Reitor
Pe. Jesus Hortal Sánchez, S.J.

Vice-Reitor
Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J.

Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos


Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho

Vice-Reitor para Assuntos Administrativos


Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo

Vice-Reitor para Assuntos Comunitários


Prof. Augusto Sampaio

Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento


Pe. Francisco Ivern, S.J.

Decanos
Profª Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH)
Profª Gisele Cittadino (CCS)
Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC)
Prof. Francisco de Paula Amarante Neto (CCBM)
História dos conceitos:
debates e perspectivas

Organização
Marcelo Gantus Jasmin e João Feres Júnior
 Editora PUC-Rio
Rua Marquês de S. Vicente, 225 – Projeto Comunicar
Praça Alceu Amoroso Lima, casa Editora
Gávea – Rio de Janeiro – RJ – CEP 22453-900
Telefax: (21)3527-1760/3527-1838
Site: www.puc-rio.br/editorapucrio
E-mail: edpucrio@vrc.puc-rio.br

Conselho Editorial
Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Danilo Marcondes de Souza Filho,
Maria Clara Lucchetti Bingemer, Fernando Sá, Gisele Cittadino,
Reinaldo Calixto de Campos, Miguel Pereira.

Revisão de Originais
Felipe Gomberg

Capa e Projeto Gráfico


José Antonio de Oliveira
(fragmento do quadro O Juramento da sala de tenis (1791) de Jacques Louis David e detalhe de foto do
congresso da seção francesa da Internacional dos Trabalhadores, 1920)

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida
ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo foto-
cópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Editora.

ISBN:
 Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2006.
Sumário

Sobre os Autores............................................................................. 7

Introdução.................................................................................... 13
Marcelo Gantus Jasmin e João Feres Júnior

Avaliando um clássico contemporâneo:


o Geschichtliche Grundbegriffe e a
atividade acadêmica futura....................................................... 43
Melvin Richter

Otto Brunner e as origens ideológicas


da Begriffsgeschichte..................................................................... 59
James van Horn Melton

Nas margens da Begriffsgeschichte............................................. 75


Donald R. Kelley

A intuição de Koselleck sobre o tempo na história............... 81


Gabriel Motzkin

Conceitos e discursos: uma diferença na cultura?


Comentário sobre o paper de Melvin Richter......................... 87
John G. A. Pocock

Uma resposta aos comentários sobre o


Geschichtliche Grundbegriffe...................................................... 101
Reinhart Koselleck

Entrevista com Melvin Richter............................................... 115

Entrevista com Kari Palonen................................................... 129

Entrevista com Reinhart Koselleck........................................ 139


Para uma história conceitual crítica do Brasil:
recebendo a Begriffsgeschichte

João Feres Júnior

O objetivo principal deste artigo é refletir sobre alguns aspectos teóricos e metodoló-
gicos-chave da história dos conceitos e de sua recepção e, a partir daí, pensar a possibili-
dade de se fazer uma história dos conceitos do Brasil.
Por recepção, refiro-me aqui não só à multiplicação de projetos de história conceitual
em países europeus como Espanha, Itália, França, Holanda e Finlândia, mas também à
maneira como o projeto teórico fundador da Begriffsgeschichte foi lido por autores de
fora da academia germânica. Esse exercício preliminar cumpre o papel de auxiliar na
avaliação crítica da possibilidade de uma história dos conceitos no Brasil, possibilidade
essa que deve ser pensada, em um momento subseqüente, com relação à especificidade
do caso brasileiro.
Como pretendo mostrar, tal projeto deve se basear em uma posição programática dife-
rente daquela da Begriffsgeschichte original, e que é em grande parte compartilhada pelos
outros projetos nacionais. Refiro-me aqui a uma posição que pode muito bem ser cog-
nominada de história conceitual crítica. Primeiramente, o adjetivo “crítica” aqui sinaliza
a adaptação da Begriffsgeschichte à posição programática da teoria crítica, que é a de um
engajamento com o presente visando à sua transformação. Mas isso não é tudo. Por meio
de uma contribuição teórica substantiva de um adepto da teoria crítica, Axel Honneth, re-
examinarei os pressupostos da história conceitual sobre a relação entre conceitualização e
experiência, ou entre história dos conceitos e história social, a fim de propor uma agenda
de pesquisa mais adequada ao caso brasileiro, senão a outros contextos nacionais.
Gostaria de apontar, primeiramente, para um problema crucial presente tanto nos
escritos de Koselleck sobre a teoria e metodologia da Begriffsgeschichte como em sua re-
cepção por parte de autores de fora da Alemanha. Ele diz respeito à posição hermenêutica
fundamental da Begriffsgeschichte em relação ao presente. Refiro-me aqui às conseqüên-
cias que a relação reflexiva do intérprete com seu tempo trazem para a concepção dessa
empreitada intelectual como um todo. Existem basicamente duas leituras díspares acerca
desse tema.

101
História dos Conceitos: Diálogos Transatlânticos

A primeira, que podemos chamar de hermenêutica fraca, coloca a Begriffsgeschichte so-


mente como um método de se conduzir o estudo histórico de conceitos, e que, portanto, po-
deria ser aplicado a qualquer período histórico e/ou comunidade de falantes de uma língua.
Essa parece ser a posição que o próprio Koselleck toma em sua resposta aos comentários
de Pocock, Kelley, Motzkin e Melton, feitos em 1992, quando do simpósio promovido pelo
German Historical Institute em Washington [Lehmann & Richter, 1996]. Repetindo a lição
de Otto Brunner, Koselleck diz que “podemos estudar melhor qualquer período passado
se reconstruímos, primeiramente, a linguagem usada pelos seus membros para conceituar
os seus arranjos e, então, traduzimos esses conceitos passados para nossa própria termino-
logia”. Nesse mesmo texto, Koselleck define “a tarefa da Begriffsgeschichte” simplesmente
como a procura por permanência e câmbio nas camadas de significado dos conceitos.
Essa posição se torna ainda mais clara quando Koselleck explica a noção de Sattelzeit
da seguinte maneira:

O que foi dito até aqui responde parcialmente às interrogações sobre o Sattelzeit
[o período de transição entre o início da modernidade e a modernidade propria-
mente dita na Alemanha, aproximadamente entre 1750 e 1850]. Inicialmente
concebida como uma palavra-chave num projeto elaborado para obter recursos
para o léxico, este conceito acabou por obscurecer, mais do que fazer avançar,
o projeto. Talvez Schwellenzeit [o período liminar (threshold period)] tivesse
sido uma metáfora menos ambígua. De qualquer modo, hipóteses sobre a exis-
tência de tal período não desempenham nenhum papel no método empregado
na Begriffsgeschichte. O Sattelzeit não é nem uma noção ontológica, nem está
amarrada a uma única linguagem nacional. Esta periodização é somente um meio
de estreitar o foco do Geschichtliche Grundbegriffe e de tornar seus objetivos mais
exeqüíveis [Lehmann & Richter, 1996].

Quero chamar a atenção para as conseqüências que essa posição tem para uma
(re)avaliação da importância de uma reflexão sobre a modernidade, como tempo pre-
sente, dentro do projeto da Geschichtliche Grundbegriffe. Pois, se aceitamos a versão de
Koselleck no texto do German Historical Institute, a fratura entre espaço de experiência e
horizonte de expectativa, e os processos de temporalização, politização, ideologização e
democratização dos conceitos aparecerão, antes de tudo, como resultados da pesquisa em-
preendida na Geschichtliche Grundbegriffe, e não como problemas cruciais do presente
que justificariam a escolha obrigatória do Sattelzeit como objeto da empreitada.
A posição hermenêutica fraca em relação ao presente também é partilhada por al-
guns dos principais agentes da recepção dos escritos de Koselleck nos meios acadêmicos
extragermânicos. Baseando-se na Introdução à Geschichtliche Grundbegriffe escrita por
Koselleck, Melvin Richter defende que, além de prover boas análises da maneira como
linguagem e ação interagiram na história alemã e de disseminar citações de textos impor-
tantes, o propósito da Geschichtliche Grundbegriffe é
1
Essa mesma interpretação da importância relativa da noção de Sattelzeit é feita por Keith Tribe em sua intro-
dução à versão em língua inglesa de Futuro Passado [Koselleck, 1985].

102
Para uma história conceitual crítica do Brasil: recebendo a Begriffsgeschichte

aguçar nossa consciência (awareness) no tempo presente de como usamos lin-


guagens políticas e sociais e de que alternativas aos usos do presente existiram no
passado. Ao entendermos a história dos conceitos que hoje estão à nossa dispo-
sição, podemos melhor perceber como eles nos levam a pensar de determinadas
maneiras, e assim concebermos modos de ação menos limitados pelas definições
de nossa situação [Richter, 2003].

Ou seja, a finalidade da Geschichtliche Grundbegriffe seria contribuir para o esclare-


cimento do público leitor, inclusive proporcionando-lhe instrumentos de conhecimento
capazes de resistir à ideologização de conceitos do presente. Devemos notar que essa
posição hermenêutica em relação ao presente se aproxima bastante daquela adotada por
Quentin Skinner e James Tully ao defenderem o enfoque collingwoodiano (Escola de
Cambridge) das acusações de antiquarismo levantadas por autores de extração gadame-
riana [Tully, 1983; 1988].
Há, contudo, na recepção do projeto da Begriffsgeschichte, uma posição hermenêuti-
ca forte em relação ao presente. Essa posição é forte na história conceitual hoje produzida
na Itália, e pode ser vista, por exemplo, em um artigo recente de Sandro Chignola [2002]
para a revista History of political thought. Fazendo um paralelo entre os projetos teóricos
de Koselleck e Max Weber, Chignola argumenta que é a perspectiva do historiador, sua
antecipação teórica [Vorgriff], que dá sentido à história. Essa antecipação seria necessaria-
mente anacrônica, pois se constitui em hipóteses e questões do presente projetadas sobre
o passado. As fontes são, portanto, “forçadas a falar conosco”, pois, se a representação
historiográfica tem um sentido, esse só pode ser um sentido para nós, intérpretes do
presente. Chignola escreve:

Cada Begriffsgeschichte começa com uma forte antecipação teórica. Somente assim
um determinado interesse e um sentido forte do presente podem ser desenvolvi-
dos e a porosidade da experiência coletiva do tempo e a falta de equilíbrio entre o
espaço de experiência e o horizonte de expectativa podem ser articuladas. O histo-
riador é, portanto, compelido a conceituar sua consciência do tempo por meio da
elaboração de uma construção cultural do presente (...) [Chignola, 2002].

Segundo Chignola, esse compromisso forte com o presente é a contribuição episte-


mológica específica de Koselleck à Geschichtliche Grundbegriffe. Contribuição essa que
altera o projeto inicial concebido por Otto Brunner e Wener Conze.
Mas qual seria a problematização do presente a informar o projeto koseleckiano?
Segundo Chignola, esta seria a gestação da modernidade, cuja especificidade consiste na

2
A leitura de Chignola parece ser parcialmente equivocada, pelo menos no tocante à posição epistemológica
de Otto Brunner em sua obra maior, Land und Herrschaft, cuja antecipação teórica, na primeira edição do
livro, era clara. Tratava-se de, a partir de um presente no qual o nacional-socialismo tinha sobrepujado o libe-
ralismo, dissipar as distorções interpretativas introduzidas pelos historiadores liberais alemães sobre o estudo
do medievo germânico e resgatar o sentido contextual daquelas instituições e costumes. Ver a introdução de
Howard Kaminsky e James van Horn Melton para a tradução alemã [Brunner, 1992].

103
História dos Conceitos: Diálogos Transatlânticos

presença estrutural da fratura entre espaço da experiência e horizonte de expectativa. O pró-


prio Koselleck corrobora essa leitura ao definir, em “Begriffsgeschichte and social history”,
“a história dos conceitos políticos” como a disciplina que “abarca aquela zona de convergên-
cia na qual o passado e seus conceitos penetram os conceitos modernos” [Koselleck, 1985].
Portanto, a antecipação teórica [Vorgriff] da Begriffsgeschichte seria, necessariamente, e não
de maneira contingente, a questão da transição ou constituição da modernidade. Nas pa-
lavras de Chignola: “Traçar a história dos conceitos significa identificar as continuidades e
transformações que, dentro da perspectiva de uma imersão definitiva no mundo moderno,
constituem os eixos de longa duração da experiência política do Ocidente.”
Chignola identifica o projeto intelectual de Koselleck com o de Max Weber. Se a ques-
tão que organiza a obra de Weber é a gênese do racionalismo ocidental moderno, para
Koselleck esse Vorgriff é a gênese da consciência histórica ocidental moderna.

II

Uma vez feita essa breve exposição das duas leituras da obra de Koselleck, importa agora
verificar que conseqüências elas teriam para um projeto de história crítica dos conceitos.
A posição hermenêutica fraca vê na Begriffsgeschichte uma finalidade pedagógica e
desideologizadora do presente. Se praticada, essa versão de historiografia seria, em si,
um grande avanço em relação a trabalhos de história ainda presos a noções idealistas ou
puramente presentistas. Ademais, ela aponta para a produção de léxicos e dicionários de
conceitos que teriam grande utilidade para a pesquisa acadêmica em história e ciências
humanas. Por outro lado, não requer um compromisso forte com a leitura crítica do pre-
sente e, portanto, não serve inteiramente ao propósito que almejamos aqui.
A posição hermenêutica forte apresenta problemas de outra ordem. Ela afirma um
compromisso com o presente, mas esse presente é, contudo, reduzido histórica e so-
cialmente aos seus componentes estruturais, movimento que na verdade subtrai sua
especificidade espaço-temporal. A reflexão “crítica” dessa posição se limita a definir a
modernidade como uma fratura na relação entre espaço de experiência e horizonte de
expectativas, mas se furta à tarefa de identificar claramente em que espaço geográfico essa
ruptura ocorre e qual o sujeito histórico específico a experimentá-la. É como se a posição
do presente fosse transcendentalizada. De fato, contudo, quando lemos a historiografia
produzida pela Begriffsgeschichte, notamos que esse sujeito aparece aqui e acolá, mas
nunca de maneira inteiramente explícita. Às vezes ele é a comunidade de fala germânica,
às vezes, a própria nação alemã, outras vezes parece ser a Europa e, por fim, aparece
também como o Ocidente. Como James van Horn Melton notou, para “desnazificar” [de-
nazify] o projeto da Begriffsgeschichte, originalmente desenhado por Brunner, Koselleck
trocou sua finalidade política por uma atitude hermenêutica. Contudo, o esforço de apa-
gar a questão nacional da superfície do discurso cumpriu exatamente o papel de salvar a
nação alemã de seu passado inglório, redefinindo-a como partícipe pleno no processo de
desenvolvimento da modernidade ocidental. Em termos práticos, a ênfase na gênese da
3
Chignola adverte o leitor de que esse pressuposto teórico não parece ser compartilhado pela maioria dos
autores que contribuíram para o Léxico [Chignola, 2002].

104
Para uma história conceitual crítica do Brasil: recebendo a Begriffsgeschichte

modernidade levou a Geschichtliche Grundbegriffe a priorizar o liberalismo do século xix


e a dar uma importância bem menor ao nazi-fascismo do século XX [Melton, 1996]. Será
que a segunda fratura histórica, a que gerou o terceiro Reich, é realmente de importância
secundária? Essa pergunta, para que seja respondida no presente, requer um ponto de
vista político que nem sempre é claro nos escritos da Begriffsgeschichte.
Há ainda uma questão de importância crucial que deve ser feita à posição hermenêuti-
ca forte: afinal de contas, o que é a modernidade senão um conceito dos mais contestados
nos dias de hoje? Seria ela o advento do capitalismo ou seu último estágio, a economia de
mercado ou a intervenção estatal na economia, ou, ainda, o advento do Estado nacional,
da esfera pública, da sociedade de massas, da colonização da política pela economia, do
surgimento do self-pontual etc.? Ora, não só o significado de modernidade é contestado,
como também sua aplicação: estamos na era moderna ou na pós-modernidade? Como
bem notou Elias Palti, a famosa tese de Karl Löwith [1949] sobre a ruptura entre experiên-
cia e expectativa, adotada por Koselleck, tem sua cronologia contestada mesmo dentro da
própria academia alemã, por exemplo, por Hans Blumenberg [1974].
Em suma, não há nenhuma posição óbvia no presente, nenhum ponto arquimediano,
nenhuma questão imperativa que se coloque para um sujeito fora do espaço, nenhum
Zeitgeist imediato que possa definir uma antecipação teórica que esteja acima de posições
políticas. E posições políticas só existem em contexto, dentro de uma comunidade polí-
tica ou de relações de poder específicas. Essas posições são necessariamente formuladas
a partir de leituras contraditórias do próprio presente e de construções também contra-
ditórias dos passados que o precederam. Em suma, o uso do termo modernidade parece
criar mais problemas do que soluções.

III

Além de servir para reformular sua posição epistemológica, a teoria crítica tem uma
contribuição substantiva importante a fazer para a história dos conceitos. Trata-se de um
insight teórico específico que, penso eu, uma vez reconhecido dentro de um projeto de
história conceitual, terá conseqüências metodológicas profundas. Esse insight foi formu-
lado pelo filósofo alemão Axel Honneth em seu debate com Nancy Fraser acerca da teoria
do reconhecimento [Fraser & Honneth, 2001]. Fraser propõe que o reconhecimento seja
pensado como um “folk concept”, a partir dos significados reais que assume nas deman-
das dos movimentos sociais do presente, abandonando-se, assim, a matriz psicológica
da filosofia de Hegel e do pragmatismo de George Herbert Mead, que são a base dos
tratamentos ao tema dispensados por filósofos como o próprio Honneth e Charles Taylor
[Honneth, 1995; Taylor, 1992]. Honneth responde ao desafio de Fraser argumentando
que ela, ao privilegiar os discursos articulados pelos movimentos sociais, estaria despre-
zando as formas mais cruéis e agudas de negação do reconhecimento, que muitas vezes
sequer são articuladas na forma de movimentos sociais coerentes e organizados. Ou seja,
é comum que pessoas e grupos humanos que sofrem da negação do reconhecimento
não consigam transformar seu sofrimento em contestação pública ou mesmo articulá-lo
verbalmente na forma de conceitos ou ideologias.

105
História dos Conceitos: Diálogos Transatlânticos

Mesmo que não tenha sido articulado com esse fim, o argumento de Honneth coloca
em questão a relação entre história dos conceitos e história social, tema do qual Koselleck
se ocupou com atenção. Esse autor define conceitos como elos de ligação entre a lingua-
gem e a experiência [Koselleck, 1996]. Mas a tese de Honneth aponta para o fato de que
uma parte importante da experiência social carece de elos que a conecte ao uso público
da linguagem, algo que coloca em xeque o lugar central que Koselleck atribui à história
dos conceitos em sua teoria histórica.
Penso, contudo, que há uma saída possível para a história conceitual nesse impasse,
mesmo que isso implique uma alteração metodológica significativa do projeto inicial. Tal
saída é sugerida a partir de uma reflexão sobre a estrutura história semântica de contra-
conceitos assimétricos. Usarei como base dessa reflexão meu trabalho sobre a história do
conceito de Latin America nos EUA [Feres Júnior, 2003; 2004a; 2004b]. Por quase dois
séculos, Latin America foi sistematicamente definida como o contrário de uma auto-ima-
gem coletiva altamente positiva de America [EUA]. Identifiquei no campo semântico do
conceito de Latin America a presença de três regiões de significado: cultural, temporal e
racial. Se olharmos para a longa duração da história desse conceito, notamos que seu cam-
po semântico não se alterou expressivamente. Esse achado corrobora, ainda que de ma-
neira negativa, a tese de Koselleck sobre os conceitos-chave [Grundbegriffe], pois é por se
tornarem palco de contestação e de conflito político que esses conceitos têm seu campo
semântico alargado por definições não raro conflitantes e contraditórias. Contraconceitos
como Latin America, por exemplo, ao contrário, não sofrem esse processo de contesta-
ção, pois são usados para denominar grupos humanos que ou estão fora dos limites da
comunidade política dominante ou são subalternos dentro dessa comunidade e, portan-
to, não têm acesso à contestação pública dos termos que os definem. Contudo, isso não
quer dizer que esses conceitos não tenham eficácia social, pois contraconceitos e outros
conceitos sociais que não são contestados dentro do debate público – isto é, que não se
tornam conceitos-chave – são instrumentos cruciais na manutenção da opressão e exclu-
são de grupos humanos. Portanto, tais conceitos, e não somente Grundbegriffe, deveriam
integrar qualquer projeto de história conceitual que tenha um compromisso crítico com
a sociedade na qual se insere: ainda que de maneira complexa, a Begriffsgeschichte revela
um certo pendor Whig.
Em outras palavras, na história conceitual praticada segundo o modelo da
Begriffsgeschichte há uma sobrevalorização do político entendido como aquilo que é passí-
vel de contestação, e uma conseqüente sobrevalorização da mudança conceitual, tendências
que contribuem para a rejeição do estudo de conceitos que permanecem à margem do
debate público, mas são altamente eficazes no controle social de grupos humanos.
As conseqüências metodológicas não param por aí. O estudo do conceito de Latin
America nos EUA também mostra que, mesmo sem fraturas semânticas radicais, a história
de um contraconceito não é destituída de mudança [Feres Júnior, 2005]. Essa mudança
se dá pela recepção, geração após geração, de contraconceitos e outros conceitos so-
ciais, por parte de novos atores sociais, com novos discursos, teorias e projetos. Nesse
processo, o horizonte de expectativas projetado a partir do conceito se altera. No caso
específico de Latin America o conteúdo semântico não se alterou expressivamente, mas

106
Para uma história conceitual crítica do Brasil: recebendo a Begriffsgeschichte

os projetos que incorporaram o conceito foram muitos e diversos: anexação territorial,


colonização, tutela, controle geopolítico [modernização, repressão autoritária], benign
neglect etc. Esse tipo de recepção, portanto, perfaz grande parte da história do contra-
conceito Latin America, pois em cada momento sua semântica foi usada para projetar
um horizonte diferente de ação futura, ou para justificar diferentes modalidades de ação
presente. Intuitivamente, podemos inferir que o mesmo deve se dar para outros conceitos
sociais usados dentro de contextos nacionais ou transnacionais.
Por fim, gostaria de adicionar um outro insight metodológico. A história semântica de
Latin America nos EUA mostra uma diferença crucial entre seu emprego na linguagem
comum e sua apropriação pelos discursos especializados das ciências sociais. Enquanto
na linguagem comum as oposições temporal, cultural e racial permanecem fortes, no
discurso técnico da academia a oposição racial quase desaparece [Feres Júnior, 2005].
Tal fato chama a nossa atenção para a variação semântica que conceitos sofrem ao serem
apropriados pelas modalidades técnicas de discurso que proliferam nos dias de hoje e que
gozam de grande poder e prestígio social, principalmente por aqueles que têm por objeto
os seres humanos: as várias ciências sociais, o direito, a administração pública, a medicina
etc. Ou seja, qualquer história conceitual que chegue ao presente não pode se limitar a
examinar as discussões dos filósofos políticos e pensadores ilustres. Portanto, a pesquisa
em história conceitual deve necessariamente evitar essa “mitologia” dos grandes pensado-
res e localizar as modalidades discursivas politicamente eficazes em cada contexto.

IV

Por fim, chegamos ao Brasil. Como isso que foi dito até agora pode ser aplicado a um
projeto de estudo crítico da história conceitual brasileira? O primeiro passo é assumir ex-
plicitamente a posição de se tomar o Brasil como unidade de análise. Se o esforço acadê-
mico busca ter significância política, é necessário que ele identifique o contexto no qual a
política adquire significado. Nesse caso, a escolha da sociedade brasileira me parece óbvia.
Mas a constituição do Brasil como nação, como sociedade ou Estado-nacional, não pode
constituir por si a questão organizadora de uma história conceitual crítica. Proponho,
portanto, que o projeto seja pensado a partir de uma tríplice problemática fundamental
que se coloca para a sociedade brasileira do presente. O primeiro problema é de natureza
socioeconômica: o Brasil chega ao ano 2004 sendo a segunda economia que mais cresceu
no mundo durante o século passado e o país que tem a pior distribuição de renda desse
mesmo mundo. O segundo problema é de natureza político-institucional: paralelamente
a esse processo de crescimento e exclusão, assistimos à consolidação, ainda que cheia
de reveses e idas e vindas, das instituições da democracia liberal. E, por fim, temos um
paradoxo de natureza político-cultural: apesar da carga de excepcionalismo que caracte-
riza todo discurso nacional, o “Brasil” se imagina como uma nação ocidental, como um
povo herdeiro de valores, religião e cultura europeus, mas é ao mesmo tempo visto por
europeus e americanos como um país não ocidental, exótico, não branco. Reformulando
o ditado de Groucho Marx, o Brasil pensa pertencer a um clube que, na verdade, não o
aceita como sócio – fomos barrados no baile do grande Ocidente.

107
História dos Conceitos: Diálogos Transatlânticos

Cada um desses problemas define uma região conceitual própria, com modalidades
discursivas particulares e espaços institucionais privilegiados de circulação lingüística. A
seguir, proponho uma organização preliminar do projeto de acordo com cada problema:
1. A adoção e consolidação institucional do regime republicano-democrático – trata-se
aqui da história do debate legal e político que se implanta no Brasil principalmente a par-
tir do processo que levou à Proclamação da República em 1889. Nesse item predominam
conceitos-chave como república, bem comum, Estado, democracia, liberdade, direitos,
cidadania etc. Temos aqui um conjunto complexo de traduções de conceitos de fontes
francesas, inglesas, americanas e alemãs, além, é claro, da rearticulação de conceitos do
império e do Brasil como colônia portuguesa.

Modalidades discursivas: debate constitucional e legislativo, debate político, mídia, dou-


trina legal.
2. A construção de uma identidade nacional brasileira – a partir de sua origem durante
período monárquico, esse processo ganhou alguma força com a Proclamação da República
e atingiu seu auge após a Revolução de 1930. Aqui temos um grande número de conceitos-
chave, como Brasil, brasileiro, nação, interesse nacional, mas também conceitos menos con-
testados, como português, americano, latino-americano, europeu, negro, mulato etc. Nessa
região temos também um grande número de traduções, mas, ao mesmo tempo, uma grande
necessidade de criar conceitos ou redefini-los como algo genuinamente local, ou melhor,
nacional. Exemplos: democracia racial, luso-tropicalismo, antropofagia, morenidade etc.
Modalidades discursivas: discursos oficiais, literatura e crítica literária, ciências so-
ciais, mídia.
3. A revolução econômica e demográfica do Brasil do século xx – além do crescimento
vertiginoso da economia brasileira, tivemos nesse século uma mudança demográfica radical.
Na época da libertação dos escravos em 1888, a população era composta por uma maioria
de negros e mestiços e uma minoria de brancos. Como resultado da política ativa de impor-
tação de imigrantes europeus para trabalharem como assalariados na nascente economia
cafeeira do Sudeste e da contínua discriminação dos elementos negros e africanos da popu-
lação, hoje a maioria da população brasileira se declara branca. Ao mesmo tempo, os antigos
centros econômicos baseados na produção agrária e extrativista entraram em decadência,
enquanto o sudeste se industrializou, atraindo um contingente enorme de migrantes. Nessa
configuração encontram-se conceitos sociais, espaciais e econômicos que raramente alcan-
çam o status de conceitos-chave. Exemplos: negro, preto, mulato, branco, caipira, paraíba,
baiano, nordestino, indigente, malandro, favela, periferia, subúrbio etc.
Modalidades discursivas: políticas públicas, cultural popular, discursos oficiais, lite-
ratura, ciências sociais, mídia.
Essa proposta é altamente esquemática e necessita de maior aperfeiçoamento.
Contudo, espero que essa reflexão teórico-crítica contribua para um projeto de história
conceitual no Brasil que não se torne nem mais uma narrativa Whig nem outra versão
“fracassomaníaca” de nosso processo de consolidação nacional. Por fim, penso que tal
reflexão pode servir também para se repensar a prática de história conceitual em outros
contextos políticos nacionais e transnacionais.

108
Para uma história conceitual crítica do Brasil: recebendo a Begriffsgeschichte

Bibliografia
BLUMENBERG, H. [1974]. On a lineage of the idea of progress. In: Social research, n.41, pp. 5-
27.
BRUNNER, O. [1992]. Land and lordship: structures of governance in medieval Austria. Filadélfia:
University of Pennsylvania Press.
CHIGNOLA, S. [2002]. History of political thought and the history of political concepts: Koselleck’s
proposal and Italian research. In: History of political thought XXIII(3), pp. 517-541.
FERES JÚNIOR, J. [2005]. A história do conceito de Latin America nos EUA: negação do reconhe-
cimento e o discurso das ciências sociais. Rio de Janeiro: PUC-Rio.
__________ [2004]. Latin America como conceito: a constituição de um outro americano. In:
Teoria e sociedade 2(11), pp. 97-110.
__________ [2004]. Spanish America como o outro da America. In: Lua nova (62).
__________ [2006]. The history of counterconcepts: ‘Latin America’ as an example. In: History of
concepts bulletin, n.6, pp.14-19.
FRASER, N.; HONNETH, A. [2001]. Redistribution or recognition?: a philosophical exchange.
Londres: Verso.
HONNETH, A. [2001]. Invisibility: on the epistemology of “recognition”. In: Aristotelian society
supplementary 75(1), pp.111-126.
__________ [1992]. Integrity and disrespect: principles of a conception of morality based on the
theory of recognition. In: Political theory 20(2), pp.187-202.
__________ [1995]. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts.
Cambridge, UK/Oxford/Cambridge, MA: Polity Press-Blackwell.
KOSELLECK, R. [1996]. A response to comments on the Geschichtliche Grundbegriffe. In:
LEHMANN, H.; RICHTER, M. The meaning of historical terms and concepts: new studies on
Begriffgeschichte. Washington, D.C.: German Historical Institute 15, pp. 59-70.
__________ [1985]. Begriffsgeschichte and social history. In: Futures past: on the semantics of
historical time. Cambridge/Londres: The MIT Press, pp. 73-91.
__________ [1985]. Futures past: on the semantics of historical time. Cambridge/Londres: The
MIT Press.
LEHMANN, H.; RICHTER, M. [eds.] [1996]. The meaning of historical terms and concepts: new
studies on Begriffgeschichte. Washington, D.C.: German Historical Institute.
LÖWITH, K. [1949]. Meaning in history. Londres/Chicago: Phoenix Books/The University of
Chicago Press.
MELTON, James van Horn [1996]. Otto Brunner and the ideological origins of Begriffgeschichte.
In: The meaning of historical terms and concepts: new studies on Begriffgeschichte. LEHMANN,
H.; RICHTER, M. (eds.). Washington D.C.: German Historical Institute, pp. 7-21.
__________ [2003]. Assigning Begriffsgeschichte (the history of concepts) its proper place in
the writing of the history of political philosophy. V Conference of the History of Concepts, Bilbao,
Espanha.
TAYLOR, C. [1992]. The politics of recognition. In: TAYLOR, C.; GUTMANN, A. Multiculturalism:
examining the politics of recognition. Princeton, N.J.: Princeton University Press, v. XI, p. 112.
TULLY, J. [ed.] [1988]. Meaning and context: Quentin Skinner and his critics. Cambridge: Polity.
__________ [1983]. The pen is a mighty sword: Quentin Skinner’s analysis of politics. In: British
journal of political science 13(inverno), pp. 489-509.

109

View publication stats

Você também pode gostar