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G E O C I Ê N C I A S

TEM ALGUÉM

Zonas habitáveis
na Via Láctea
Há quem diga que a maior descoberta
científica de todos os tempos seria a resposta
afirmativa ao intrigante questionamento:
‘Há vida em outros planetas?’ A notável expansão
dos conhecimentos sobre o sistema solar
reavivou essa pergunta: conhecem-se,
hoje, mais de 350 planetas extrassolares
na Via Láctea. Estariam eles em zonas habitáveis?
Ou a Terra é o único planeta com vida na galáxia?
Nas próximas páginas, veremos
o que a ciência tem a dizer sobre o tema.

Flávia Requeijo e Celso Dal Ré Carneiro


Programa de Pós-Graduação em Ensino e História de Ciências da Terra,
Instituto de Geociências, Universidade Estadual de Campinas (SP)

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G E O C I Ê N C I A S

AÍ? Desde a descoberta de Plutão, em 1930, a concepção de sistema solar passou a


incluir o Sol, nove planetas, dezenas de satélites e milhares
de cometas e asteroides. Embora a ideia sobre o que é um
‘planeta’ pareça bem estabelecida, esse conceito não era de-
finido. Em agosto de 2006, astrônomos reunidos na 26a As-
sembleia Geral da União Astronômica Internacional, em
Praga (República Tcheca), votaram as ‘regras’ para definir
se um corpo celeste é ou não um planeta e excluíram desse
grupo Plutão, que passou a ser denominado planeta-anão.
Para um corpo celeste ser denominado ‘planeta’, deve
atender aos seguintes requisitos: i) orbitar em torno de uma
estrela; ii) ter forma aproximadamente esférica; iii) ser
grande o suficiente para dominar sua órbita, eliminando
objetos menores de sua vizinhança.
O sistema solar foi o único sistema planetário conhecido
por muito tempo. As descobertas dos primeiros planetas a
orbitarem outras estrelas foram anunciadas nos anos 1990.
Eram planetas gigantes, como Júpiter, com massas equiva-
lentes ou superiores a 300 vezes a da Terra. O desenvolvi-
mento de instrumentos mais sensíveis, porém, permi­-
tiu detectar planetas menores, e, em 2006, foram descober-
tos planetas do tipo terrestre, ou seja, com massa inferior a
oito vezes a da Terra.
Poderiam esses planetas oferecer condições favoráveis
ao estabelecimento da vida, como a conhecemos?
Para estudar a possibilidade de vida em um exoplaneta
(ou planeta extrassolar), a astrobiologia usa o conceito de
zona habitável, definida como a região ao redor da estrela
onde as condições físicas favorecem a existência de água
no estado líquido na superfície do planeta.
A zona habitável depende do tipo de estrela e, portanto,
de parâmetros estelares, como luminosidade e temperatura.
Depende ainda das condições planetárias, dadas pela dinâ-
mica do planeta, como taxas de intemperismo, concentra­-
ção atmosférica de gases de efeito estufa, bem como a razão
entre a área continental e a área oceânica.
A recente descoberta de exoplanetas potencialmente ha-
bitáveis ao redor da estrela Gliese 581 produz futuros alvos
para missões de detecção de sinais de vida fora da Terra e
nos oferece um novo olhar sobre o nosso planeta. 

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Figura 1. O mais usado


dos métodos indiretos
para encontrar
exoplanetas baseia-se
em como varia a luz
emitida por uma

Flavia Requeijo
estrela ao aproximar-se
ou afastar-se
de um referencial
(no caso, a Terra)

Caçando exoplanetas gura 1 ilustra o uso das linhas de absorção para


saber se a estrela está afastando-se ou aproximan­-
Além de instrumentos na Terra, os astrônomos vêm do-se de nós, na Terra.
analisando dados de dois satélites recentemente
colocados em órbita para detectar exoplanetas: o
CoRoT, da ESA (agência espacial europeia), e o Ke-
pler, da Nasa (agência espacial norte-americana).
De anãs a gigantes
Há diversos métodos para detectar planetas ex- Muitos pensam ser o Sol a maior e mais luminosa
trassolares. A maioria é indireta, pois só se obser­- estrela do universo. Ele é, na realidade, uma estrela
vam diretamente esses planetas em raríssimas oca- mediana, tanto em tamanho quanto em temperatura
siões (ver ‘Planetas extrassolares: a busca por ou­- e luminosidade. A luminosidade estelar compara-se
tras Terras’, CH nº 263). Os métodos indiretos ba- à potência de uma lâmpada: é a quantidade de ener-
seiam-se em medições de variações na estrela (de gia emitida, por segundo, pela superfície da estrela,
seu brilho ou seu movimento) que poderiam ocor­- grandeza diretamente proporcional aos diâmetros
rer devido a um planeta ali presente. e às temperaturas estelares.
O mais usado dos métodos indiretos examina se Em um sistema estrela-planeta, a luminosidade
há movimento da estrela pela observação do efeito estelar e a distância entre esses corpos determinam
Doppler, a variação da frequência da radiação emi- a quantidade de energia incidente no planeta. Estre-
tida por uma estrela. A luz da estrela é decomposta las interessantes do ponto de vista da astrobiologia
e registrada na forma de espectro, que é o conjunto precisam manter-se estáveis por longos intervalos
das radiações emitidas por ela. O olho humano en- de tempo, para fornecer condições favoráveis ao
xerga uma pequena fração dessas radiações, o ‘es- desenvolvimento da vida. Estrelas anãs amarelas,
pectro visível’. Nele, surgem várias cores, que va­- como o Sol, mantêm a luminosidade estável por
riam continuamente do violeta ao vermelho. Há, bilhões de anos, tempo suficiente para a evolução
porém, faixas estreitas e escuras. Estas últimas re- de formas complexas de vida.
presentam as frequências (‘cores’) que a atmosfera Muito quentes e luminosas, as estrelas gigantes
estelar absorve. As chamadas linhas de absorção azuis e brancas consomem mais rapidamente seu
ajudam os astrônomos a saber quais elementos quí- combustível interno. Assim, ao atingirem idades
micos formam uma estrela. de milhões de anos, ‘explodem’, gerando eventos
Mas a análise das linhas de absorção tem outra chamados supernovas e liberando radiação de altas
função: se a estrela estiver afastando-se da Terra, energias (principalmente, ultravioleta, raios X e ra-
essas linhas escuras deslocam-se, no espectro, para diação gama), altamente prejudiciais à vida.
a região do vermelho (frequências mais baixas); Uma estrela anã vermelha, fria e pouco lumino­-
caso contrário, deslocam-se para a região do azul sa, poderia manter sua luminosidade estável por
(frequências mais altas) – em tempo: um observa­- trilhões de anos. Mas um eventual planeta habitável
dor na Terra não verá a estrela mudar de cor. A fi- deveria localizar-se muito próximo dela, a cerca de

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Figura 2. Representação do Sol e outros tipos de estrelas

Figura 3. Representação
da Via Láctea e da localização

JPL/NASA
do Sistema Solar
NASA

um terço da distância Sol-Mercúrio. Nesses casos, sistema solar onde se encontram os cometas. Isso
estima-se que o planeta ganhe rotação síncrona, poderia alterar a órbita desses objetos e levá-los a
manten­do sempre a mesma face voltada para a es- colidir com a Terra.
trela. Os geocientistas ainda não conseguem prever Menos de 5% das estrelas da Via Láctea estão
como seria o comportamento da atmosfera de pla- em órbitas dotadas de condições favoráveis à ma­
netas nessas condições. A figura 2 compara as mas- nutenção da vida, como o Sol.
sas de vários tipos de estrelas.
Poderia a vida surgir e desenvolver-se em um
planeta que tivesse uma face mergulhada na escu­
ridão e outra em claridade constante?
Três sistemas
Para determinar se um exoplaneta pode oferecer
condições adequadas para existência de água no
No braço de Órion estado líquido, é necessário produzir um modelo
de como ele ‘funciona’. Consideremos um planeta
O Sol é apenas uma das estrelas entre as 100 bi­- semelhante à Terra. Os estudos do sistema Terra
lhões delas presentes na Via Láctea. A maioria das buscam compreender como seus diversos compo­
estrelas concentra-se em um ‘disco’ com estruturas nen­tes interagem para determinar o clima global,
denominadas braços espirais. O Sol está no bra­- sob in­fluência da dinâmica interna.
ço de Órion (figura 3), a aproximadamente 30 mil A geologia considera que o sistema Terra é sub-
anos-luz do centro da Via Láctea (cada ano-luz dividido em três sistemas: i) climático; ii) das placas
equivale a 9,5 trilhões de km). tectônicas; iii) do geodínamo interno. As interações
O sistema solar demora 225 milhões de anos para dos geossistemas terrestres têm como fontes de
realizar uma rotação ao redor do centro galáctico e energia o Sol e o calor interno da Terra (figura 4).
já teria completado 20 voltas desde sua formação. Os processos do sistema clima estão diretamente
O movimento de rotação do Sol acontece em um ligados ao estabelecimento da zona habitável. Os
raio de ‘corrotação’ em que a velocidade angular fatores que determinam as condições gerais do sis-
das estrelas da região equivale à dos braços espirais tema clima e condicionam o desenvolvimento de
– em outras palavras, nossa estrela gira em torno vida são: i) a radiação proveniente da estrela central
do centro da galáxia com a mesma velocidade da- (a fonte de energia do sistema); ii) a forma da órbita
quelas que habitam o braço de Órion. Isso faz com do planeta ao redor da estrela; iii) a inclinação do
que o sistema solar não atravesse com frequência eixo de rotação em relação ao plano orbital. Visan­-
os braços da Via Láctea, onde há intensa formação do a entender tantas interações, elaboram-se e exe-
estelar e maior incidência de supernovas (o que nos cutam-se modelos teóricos do sistema Terra, na
exporia a radiações de altas energias). forma de simulações numéricas. O resultado das
A passagem do Sol através dos braços espirais simulações é comparado aos dados observados, e
também perturbaria a nuvem de Oort, região do assim se aprimoram os modelos. 

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Figura 4. Componentes do sistema Terra

que permanecem no local onde se formam, e os

Baseado em Press et al. Para Entender a Terra. Porto Alegre: Bookman, 2006
sedimentos, que são movimentados pelos agentes
de erosão;
iii) a composição química da atmosfera – as rela-
ções entre dióxido de carbono atmosférico, intem-
perismo e clima determinam a existência de água
líquida. O elemento químico carbono, fundamental
para a vida, é a base das moléculas orgânicas. Na
fotossíntese, plantas e micro-organismos usam ener-
gia solar para converter gás carbônico atmosférico
em carboidratos. O processo libera moléculas de
oxigênio (O2), posteriormente consumidas pelos
Importante característica que determinará a seres vivos na respiração, processo que reintroduz
presença de água líquida é a temperatura média gás carbônico no ar.
global, que depende de variáveis como albedo, taxas
de intemperismo e composição química da atmos-
fera. Vejamos brevemente cada um desses tópicos:
i) o albedo – razão entre a quantidade de radiação
Gás carbônico
que o planeta recebe e a quantidade de radiação
emitida em certo intervalo de tempo. Na Terra, a
na atmosfera
quantidade de luz recebida do Sol varia de ponto a O gás carbônico representa apenas 0,036% das mo-
ponto, pois a inclinação dos raios solares altera-se léculas de nossa atmosfera, mas exerce grande in­
segundo a latitude. É também desigual a quantidade fluência no ambiente (figura 5). Juntamente com
de energia refletida pela superfície terrestre: em o vapor de água e o metano, é um gás do efeito es-
regiões cobertas por neve ou com grande quanti- tufa. Esses gases mantêm as temperaturas da su­
dade de nuvens, o albedo excede 80%, enquanto perfície em níveis adequados à nossa sobrevivên­-
em zonas que apresentam rochas ou solos escuros, cia. Se eles não existissem, as temperaturas seriam
pode ficar abaixo de 10%; altas de dia e baixíssimas à noite.
ii) o intemperismo – compreende processos que Quando plantas e animais morrem, a decompo-
provocam a decomposição mecânica, química ou sição da matéria orgânica libera gás carbônico para
bioquímica das rochas expostas ao tempo. São efei­ a atmosfera. Parte desse gás pode permanecer soter-
tos permanentes que produzem materiais total­men­- rada, dando origem a carvão mineral, petróleo e gás
te distintos entre si e da rocha original: os solos, natural, ou pode ainda ser transportada para o fundo
dos oceanos, onde pode formar rochas sedimenta­-
res, como calcário (CaCO3). O carbono fixado em re-
Figura 5. Ciclo do carbono, mostrando reservatórios e fluxos de gás servatórios geológicos pode retornar à atmosfera tan­-
carbônico entre eles. A sigla GtC equivale a 1 bilhão de toneladas de carbono
to pelas erupções vulcânicas quanto pelo intemperis­-
mo de rochas que7.contenham
Figura. A presença dacarbonato
planária de cálcio.
Antes do aparecimento
Geoplana quagga em áreasda de
espécie humana na
intervenção
humana,
história da mas
Terra, não emlongos
houve matas próximas,
períodos em que
parece indicar que o ser humano
o planeta foi mais quente ou mais frio do que as
influenciou sua distribuição geográfica
médias atuais. As causas desses fenômenos e das
implicações do gás carbônico introduzido na at-
mosfera pela queima de combustíveis fósseis ainda
geram intensos debates.
Embora o tema ultrapasse o escopo deste artigo,
convém registrar que o intemperismo e a concentra-
Fonte: GSFC/NASA

ção de gás carbônico na atmosfera estão estreitamen­-


te relacionados com os climas terrestres. Um aumen­
to da quantidade de gás carbônico gera aumento de
temperatura, que, por sua vez, intensifica as taxas
de intemperismo. Taxas altas de intemperismo re­-
duzirão a quantidade de gás carbônico na atmosfera
e, consequentemente, a temperatura. A figura 6 mos-
tra como esses parâmetros alteram-se ciclicamente.

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Figura 6. Relação entre


dióxido de carbono
atmosférico,
intemperismo e clima
Baseado em Press et al. Para Entender a Terra. Porto Alegre: Bookman, 2006

Uma superterra maio de 2007, não será possível afirmar que esse
planeta abriga formas de vida. O primeiro exopla­-
Uma vez definidas as taxas de intemperismo e con- neta em zona habitável seria uma ‘superterra’, com
centração de gás carbônico na atmosfera, bem co­- massa oito vezes superior à terrestre, em órbita ao
mo calculadas a luminosidade estelar, a distância redor da estrela anã vermelha Gliese 581, a cerca
estrela-planeta e a massa do planeta por meio de de 20 anos-luz do Sol.
técnicas astronômicas, os geocientistas podem es- Será mesmo a Terra o único planeta habitável da
timar a variação da temperatura média global do galáxia?
planeta. Os resultados serão favoráveis à vida caso O fato de não encontrarmos tão facilmente ou­­-
as temperaturas permitam a existência de água em tros mundos potencialmente habitáveis talvez deves­-
estado líquido e permaneçam estáveis por bilhões se incentivar os humanos a querer preservar o nos-
de anos. so planeta, até onde for possível, algo que parece ser
Mas, mesmo que os cálculos revelem um planeta tão raro: um conjunto de condições muito específi­-
extrassolar em zona habitável, como anunciado em cas que tem, por ora, permitido nossa existência. 

Educação, divulgação e pesquisa Sugestões para leitura

Os autores deste artigo fazem pesquisas em geologia, geociências e astronomia. WARD P.; BROWNLEE, D. Sós no universo?
Requeijo, astrônoma, desenvolve estudos sobre a inserção de temas Por que a vida inteligente é improvável fora
do planeta Terra. São Paulo: Campus (2000).
de astronomia na educação básica, e Carneiro, geólogo, sobre o uso de recursos
didáticos no ensino de geologia e na divulgação das ciências da Terra. Na internet:
SAGAN, C. Nós estamos aqui:
Ambos publicaram livros ou capítulos de livros e têm trabalhos publicados O pálido ponto azul (versão legendada)
em revistas científicas do Brasil e do exterior. http://www.youtube.com/watch?v=EjpSa7umAd8

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