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reconheça, à noite, na sala de aula, o mundo em que, durante o dia, ele


A CIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO: trabalha.
PROBLEMAS EPISTEMOLÓGICOS Essas polarizações (universidade/empresa, teoria/prática, atuação
profissional/formação acadêmica...) de que nos servimos aqui são evidentes
simplificações. Na verdade, o cotidiano é bem mais complexo do que esse
olhar dual e reducionista supõe. Esse modo de analisar o problema é
Claudemir Francisco Alves1 resquício de uma concepção epistemológica hoje problematizada, mas ainda
Belo Horizonte, agosto de 2012. fortemente presente tanto no ensino da Administração como no exercício
profissional do administrador. Trata-se de uma visão predominantemente
cartesiana, que, na tentativa de entender o mundo, o fragmenta. Com isso,
1. INTRODUÇÃO perde-se a compreensão do todo e dificulta-se – quando não se impede –
uma visão mais ampla da organização.
O presente texto nasce da necessidade de oferecer aos alunos que É em razão de tal mentalidade que se tornou comum os cursos de
ingressam no curso de graduação em Administração uma reflexão que administração distinguirem finanças, produção, gestão de pessoas e tantas
articule a necessária introdução a aspectos epistemológicos próprios das outras facetas. Muito raramente, no entanto, essas várias disciplinas são
ciências gerenciais, sem deixar de lado a discussão das práticas de gestão do reunificadas de modo a compreender a organização como um sistema
profissional administrador. Sendo uma ciência aplicada, a Administração funcionante. Frequentemente, espera-se do aluno o cumprimento dessa
exige ser compreendida como uma forma de se alcançar um saber tarefa de unificação, mas nem sempre este chega à universidade capacitado
consistente e confiável sobre os mundos das organizações e dos negócios. para fazê-lo e nem todos os currículos preparam o aluno para perceber a
Sendo uma ciência social, não pode ser reduzida a técnicas e métodos dos integração de todas as áreas temáticas em que o saber foi dividido. Essa
quais se esperem resultados invariavelmente previsíveis. A teoria e a prática, discussão, que deveria acontecer com o estudante desde os períodos iniciais
no campo da Administração, não podem ser bem compreendidas sem a de seu curso, é protelada. Se, por um lado, os livros destinados a essa etapa
referência ao complexo e pouco previsível ambiente social em que do ensino tendem à simplificação excessiva do argumento (quando não o
emergem. omitem), os artigos especializados exigem do leitor um repertório de
Dessas constatações decorre uma outra: a Administração exige a conhecimentos prévios que nem sempre o estudante de graduação possui.
articulação entre teoria e prática. Esses dois componentes – nunca ausentes É dessas reflexões que nasce o presente texto. Trata-se de uma
de qualquer conhecimento que pretenda ser científico – estão ainda mais reescritura do artigo publicado por Pedro Lincoln C. L. de Mattos (2009), na
fortemente presentes em uma ciência gerencial. A teoria, neste caso, deve Revista de Administração de Empresas, intitulado “Administração é ciência
necessariamente servir para repensar as práticas e as práticas devem ou arte” O que podemos aprender com este mal-entendido?. Os objetivos
problematizar e pôr em xeque as teorias que tentam compreendê-las. didáticos desta reescritura permitiram eliminar as abundantes referências
Embora essa relação entre teoria e prática seja aparentemente evidente, a que Mattos faz aos autores que, ao longo dos últimos séculos, deram
história da Administração, o cotidiano das empresas e, de modo particular, o importante contribuição no debate sobre o status do conhecimento
ensino superior das ciências gerenciais mostram que nada há de óbvio nessa científico. Foram obliterados também os limites entre disciplinas que
afirmação. Não é raro que o exercício profissional e a reflexão acadêmica conformam o painel da questão epistemológica (filosofia da linguagem,
estejam divorciados; que o ensino se distancie do cotidiano das filosofia da ciência, sociologia da ciência etc.). Omitiram-se, ainda, alguns
organizações; e que, em razão disso, o estudante de Administração não temas abordados por Mattos, que oferecem menor interesse para um
estudante das séries iniciais.
A releitura aqui proposta de Mattos (2009) se destina ao uso didático
1
Graduado em Filosofia pela PUC Minas; mestre em Teoria da Literatura e pelos alunos e professores do primeiro período do Curso de Administração
doutor em Literatura Comparada pela UFMG; professor de filosofia na da PUC Minas em Arcos, como parte do trabalho interdisciplinar
PUC Minas. desenvolvido ao longo de um semestre, cujo objeto é a formação acadêmica
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e a atuação profissional do administrador. O uso deste texto, no entanto, não ambiente da organização. Números ruins, por si só, podem não indicar um
impede nem dispensa discentes e docentes do acesso ao material original. mal desempenho quando se consideram determinados objetivos estratégicos
Espera-se ter alcançado maior simplicidade, apesar do inevitável prejuízo à ou quando são comparados aos obtidos por outras empresas do segmento ou
profundidade. da praça.
Há, ainda, um outro fator interessante. O trabalho de um advogado,
2. ADMINISTRAÇÃO: CIÊNCIA OU ARTE? por exemplo, pressupõe um bom domínio e um bom exercício do Direito,
embora outros aspectos desempenhem certamente algum papel. O mesmo
Administração é ciência ou é arte? Mattos (2009) parte dessa não se pode dizer de um administrador. O fato de ter um bom domínio sobre
pergunta que, às vezes, se ouve nas aulas e palestras introdutórias à os saberes consagrados pela ciências gerenciais não é garantia alguma do
Administração. Em tais situações, o debate se estende, primeiramente, sucesso do gestor. O mundo empresarial está repleto de exemplos de
porque se espera da plateia uma reação baseada no senso comum do que seja profissionais bem sucedidos, em termos de mercado, mas que desconhecem
Administração, ciência e arte. Porém, Mattos constata que essa questão não teorias da Administração.
é estranha tampouco à perspectiva crítica. Deve-se questionar, O sentido de se dedicar ao estudo da Administração parece residir no
primeiramente, por que, ao se fazer a referida pergunta, supõe-se que a fato de que o curso deve oferecer instrumentais para que o administrador
Administração seja ou ciência ou arte, ao invés de se dizer que é, ao mesmo formado possa lidar mais facilmente com os desafios cotidianos. Espera-se
tempo, ciência e arte. Mesmo que a oposição tenha intenções meramente desse profissional uma maior capacidade de previsão e de interpretação,
retóricas, tal disjunção (ou... ou) indica uma pré-compreensão tácita desses atitude que não se vê, predominantemente, em gestores que atuam
três conceitos e deve ser explicitada. baseando-se apenas em intuições, sem nunca ter se dado ao trabalho de
É preciso que se diga, de partida, que a pergunta sobre a natureza da compreender teoricamente os problemas com que se defronta no cotidiano.
Administração não é uma questão ociosa nem vazia. Na atividade do No entanto, o problema vai além dessa dificuldade de definir o que é,
administrador, percebe-se algo diverso do que se depreende do trabalho de propriamente, a ação do administrador. É preciso compreender os múltiplos
outros profissionais. Ao observar o trabalho de um mecânico ou de um sentidos que a própria pergunta – “Administração é ciência ou arte?” –
artesão pode-se dizer se ele desempenha satisfatoriamente suas funções, se implica: em que situações e com quais interesses alguém levanta essa
tem ou não a competência dele requerida. Isso se deve ao fato de se questão? O sentido da pergunta varia de acordo com o contexto em que ela é
considerar tal trabalho, em certa medida, como o exercício de uma proferida. É possível que quem faz a pergunta pretenda induzir seus
habilidade individual. Supõe-se haver clareza quanto ao resultado que se expectadores quanto à superioridade da ciência. Nesse caso, ser ciência seria
espera da ação do profissional em questão. melhor do que ser apenas arte. A própria entonação da voz ao pronunciar a
Algo bem diferente acontece em relação ao profissional denominado frase poderia trair essa pré-compreensão.
administrador. As tarefas que ele realiza individualmente dizem pouco sobre Com uma intencionalidade oposta, alguém poderia se valer dessa
seu trabalho. Não é esse o tipo de tarefa que melhor caracteriza sua polêmica para defender a administração como arte e, com isso, postular uma
profissão. Essas, aliás, poderiam ser executadas por qualquer pessoa, com dimensão estética e intuitiva da gestão, contrapondo-se àqueles que tratam
formação técnica. Aquilo que, talvez, pudesse distingui-lo como as decisões gerenciais como exclusivamente racionais.
administrador (o planejamento, a tomada de decisões complexas relativas à Quando se fala em arte da Administração surge uma outra
organização, a formação de estratégias de produção ou comerciais etc.) não ambiguidade, que se deve ao fato de não haver, na língua portuguesa, um
são tarefas que se possam atribuir a um indivíduo isolado. Algumas vezes termo que distinga a habilidade do artista e a habilidade do artífice. Essa
sequer é fácil correlacionar os resultados obtidos e o trabalho desse polissemia da palavra arte faz com que não se entenda exatamente o que se
profissional. Indivíduo e coletividade, nesse caso, se remetem quer dizer quando se pergunta se a Administração é arte. Pressente-se um
reciprocamente. senso de intuição, de deixar-se guiar pelo estético, mas que não se distingue
Quanto à avaliação dos êxitos do trabalho dele numa organização, de um certo jeito de se fazer algo.
dificilmente se pode definir um resultado, simplesmente, como bom ou Contudo, ao colocar lado a lado a ciência e a arte, a pergunta pela
ruim. Tal avaliação depende de muitos fatores, vários deles externos ao natureza da administração não parece pôr em foco a administração como
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prática, mas como saber. Mesmo fazendo essa redução, permanece ainda todo e, portanto, deve ser dividida em partes, simples o suficiente para
uma ambiguidade, pois não se distingue, na pergunta, de qual saber serem entendidas com clareza e certeza.
administrativo se está tratando: daquele que se faz na prática organizacional; É com essa perspectiva que Taylor pretende que, ao tratar
do que se ensina nas escolas, ou de ambos. De fato, não é raro que esse cientificamente a organização e os processos de trabalho, o administrador
debate coloque o ensino teórico (acadêmico) em oposição a uma seja capaz de observar, calcular, projetar e estruturar a ação com objetivos
aprendizagem prática (no trabalho). claros e hierárquicos. Desse ponto de vista, saber e trabalhar não são
Por fim, o caráter disjuntivo da pergunta: das duas, uma, ou é ciência distintos. A ação é eficaz quando segue o rigor que, naquele contexto, se
ou é arte. Está implicada, nessa separação, a ideia de que a Administração atribuía ao conhecimento científico. Essa pretensa objetividade excluía tudo
seria só uma ciência ou só uma arte. Parece estar subjacente uma interdição aquilo que não poderia ser apreendido pelo método científico. Tinha valor
que a impede de ser, simultaneamente, uma coisa e outra, ou de ser mais do apenas o que poderia ser observado, compreendido pela inteligência,
que ciência e arte. Ao elaborar-se a questão dessa maneira, atribui-se uma traduzido em números e racionalmente demonstrado.
certeza racional à ciência, que não é exigida da arte. O intuitivo e o estético Com isso, pretendia-se afirmar a certeza como fundamento da ação.
são associados à arte, mas não à ciência. Entendia-se que essa ciência ofereceria um retrato fiel da realidade. Tal
Entretanto, a separação entre arte e ciência não é assim tão radical. objetividade permitiria, então, entender as leis que presidem os
Mattos (2009) afirma uma “dimensão artesanal da ciência”, assim como acontecimentos e os processos dentro das organizações. Esse novo saber
algo do rigor científico subsiste na arte. A valorização da originalidade na aplicado seria capaz de tornar previsíveis os resultados de cada ação. A
produção acadêmica (uma pesquisa deve se basear em outras, mas não ciência estaria, enfim, sendo colocada a serviço do empreendimento
copiá-las) e a relação existente entre orientador e orientado nos trabalhos capitalista.
acadêmicos (repetindo a relação mestre-discípulo, ou artesão-aprendiz) são A ciência da Administração nasce, portanto, dentro do contexto de
aspectos que aproximam o cientista do artista/artesão. Embora a produção entusiasmo moderno em relação à capacidade da razão para abarcar uma
científica não seja isenta de interesses político-econômicos, a racionalidade realidade tratada como resultante de leis universais, passíveis de serem
utilitária não esgota a atividade do cientista. Ao contrário, há algo de conhecidas. Nesse contexto, algo é considerado válido quando segue os
prazeroso na produção científica, assim como na produção artística e, cânones da ciência. A grande transformação social, econômica, tecnológica
mesmo em um modelo teórico ou matemático, o cientista pode ter uma proporcionada por essa mentalidade gerou um tão grande otimismo que, de
percepção da beleza. Seguindo esse raciocínio, não se poderia tratar a modo geral, permaneceu subestimado o fato de que, para a ciência praticada
ciência da Administração como algo muito distante da arte da naquele momento, algo teria valor apenas quando fosse observável,
Administração. Ambas devem se desenvolver próximas à “experiência quantificável e calculável. Essa ciência, portanto, lida apenas com a parte da
pessoal da prática”. Citando Boaventura de Souza Santos, Mattos fala de realidade que pode ser compreendida com o uso de seus métodos.
uma “artefatualidade discursiva” e de uma “racionalidade estético- Desde a Antiguidade, a tradição ocidental se firmou sobre a
expressiva” como paradigma epistemológico. concepção platônica e aristotélica de que a razão humana, quando
empregada adequadamente, conduz à verdade. Contra os sofistas, que
3. LIMITES DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO defendiam que a verdade depende da boa argumentação, Platão (428/427 -
348/347 a.C.) supõe a existência da verdade em si mesma (nas ideias) e a
Falando-se em ciência da administração é inevitável a referência aos possibilidade de conhecê-la. Aristóteles (384-322 a.C.) formula a identidade
Princípios da administração científica, livro publicado por Fredrick entre a realidade das coisas e a do discurso, ambas reguladas pelos mesmos
Winslow Taylor, em 1911. A concepção de ciência que permeia o princípios. A episteme (ciência) é concebida como criação e conhecimento
pensamento taylorista é típica do racionalismo do século XIX que identifica de conceitos submetidos às leis da lógica.
ciência com a observação rigorosa e com o raciocínio lógico, dedutivo e Na Modernidade, buscam-se critérios para validar o conhecimento.
quantitativo. As raízes desse modelo remontam à mentalidade cartesiana do Oscilando entre um polo e outro até atingir uma síntese (por volta do século
século XVII, segundo a qual a realidade não pode ser compreendida em seu XVIII), a observação criteriosa do mundo e o raciocínio lógico-dedutivo se
tornam as ferramentas da ciência. René Descartes (1596-1650) surge como
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um dos principais expoentes dos que se esforçam para aplicar a lógica (1818-1883), a verdade depende intrinsecamente das condições materiais de
racional à busca da certeza (ainda que, neste caso, se tratasse de uma certeza produção da existência. Não existe, portanto, total objetividade. Nossa
subjetiva hipostasiada como universalmente válida). A matemática se torna mente, muitas vezes, se deixa enganar pela ideologia e toma como verdade
a mais valorizada expressão da razão humana e o modelo de exatidão, de aquilo que nos é apresentado como verdadeiro, sem que nos demos conta de
univocidade na explicação e de capacidade de previsão para quem quer tal falseamento. As descobertas de Sigmund Freud (1856-1939) mostram
compreender a realidade. que a racionalidade é apenas uma das partes da estrutura mental. O
Forma-se, a partir desses ingredientes, uma ideia de ciência que consciente é profundamente determinado por forças que lhe são
acaba por fundamentar aquilo que se passou a chamar de “racionalidade”. desconhecidas. Como afirma Freud, “o ego já não é senhor na sua própria
Podem-se destacar, dentre os princípios metafisicamente estabelecidos para casa” (FREUD, 1979, p. 176). Todas essas transformações apontam para os
a racionalidade ocidental moderna, a incontestabilidade do real, a limites da racionalidade e, por conseguinte, da ciência. Esta se torna um
racionalidade do sujeito e a naturalidade da relação entre a linguagem e as saber dependente de contingências históricas e sociais, e não mais um
coisas (ALVES, 2008). Esses fundamentos que se conjugam nessa ideia de conhecimento neutro, exclusivamente racional.
razão têm como objetivo garantir a univocidade do conhecimento, a Do ponto de vista dos resultados, a razão é, até certo ponto, capaz de
consecução de uma verdade considerada única e universalmente pôr a natureza a serviço do homem, tornando-a menos hostil. Graças ao
reconhecível e, por outro lado, a padronização de processos e de condutas. modelo moderno de racionalidade aumentou significativamente a duração
De modo particular, ao longo do século XIX, a ciência passa a arrogar para da vida humana, cresceu a produção de alimentos e a capacidade de superar
si o status de única detentora da verdade sobre o mundo. doenças. Ao mesmo tempo, porém, essa mesma racionalidade é responsável
Vários fatores contribuíram para pôr em xeque esse otimismo pouco pelo incremento do poder destrutivo das guerras. Chegou-se à real
crítico da razão ocidental moderna. Entre eles, podem-se enumerar os possibilidade de se destruir o Planeta e de se exterminar a vida. Em poucos
resultados inesperados que esses postulados acima descritos tiveram ao séculos de redescoberta da mentalidade científica, a Terra foi transformada
serem aplicados na nova organização do espaço, do tempo e dos processos em uma espécie de almoxarifado e vários de seus recursos podem estar à
produtivos. Contraditoriamente, a eficiência – objetivo maior desse beira da exaustão.
planejamento dito racional – gerou não só um aumento das riquezas, como
trouxe consigo o recrudescimento da exclusão social e da pobreza. A 4. CIÊNCIA E NÃO-CIÊNCIA
emancipação sonhada pelos iluministas mostrou faces perversas: as regras
criadas para presidir a nova ordem tornam-se prisão – uma “jaula de ferro”, A necessidade de traçar uma linha divisória entre ciência e não-
como diz Max Weber (1864-1920) a propósito da burocracia. Os impactos ciência surge a partir do momento em que a ciência moderna se tornou
ambientais das inovações tecnológicas mostraram a imprevisibilidade e a capaz de oferecer solução para os problemas cotidianos. Tradicionalmente, o
impossibilidade de se controlarem todas as variáveis de um processo. As modelo para se dizer o que é ciência foram as chamadas ciências duras
Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945), a Guerra Fria (1945-1991) e (física, química, biologia). As ciências aplicadas (engenharias, economia) e
tantos outros conflitos que ainda persistem se encarregam de reiterar os as ciências sociais tiveram que se adequar metodologicamente para
inelidíveis elementos de irracionalidade que contaminam a razão humana. A corresponder àquele ideal de cientificidade. Dava-se como certa a
própria ideia de evolução ou de progresso entra em crise à medida que vai se superioridade desse novo saber, porque, graças a ele, alcançavam-se
tornando patente a sua não linearidade ou, pelo menos, a pluralidade de soluções que o mero senso comum e alguns saberes antigos (alquimia,
vetores que a caracterizam. astrologia) não eram capazes de oferecer.
Uma das principais vozes que se erguem contra as pretensões da Entre os interesses que orientaram esse debate, estava a afirmação da
razão é o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900). Para ele, a arte se torna independência da ciência frente a questões de fé. Em especial, desejava-se
mais poderosa do que a ciência, porque a ciência não enxerga a vida, mas distinguir o conhecimento tido como válido (baseado na observação e na
apenas aquilo que seus métodos lhe permitem perceber. Segundo Nietzsche, razão), preterindo aqueles que pressupunham a revelação (baseados na
a arte, ao contrário, deseja a vida em sua totalidade. Vários outros nomes teologia cristã). Outro objetivo era o de combater as “pseudociências”, que,
vão surgir como críticos das aspirações da razão moderna. Para Karl Marx segundo o novo padrão de racionalidade, não tinham base empírica e nem
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aplicabilidade na solução dos problemas cotidianos. Isso significa, na humanas e das ciências sociais não garantem tal previsibilidade pelo fato de
verdade, que tais “conhecimentos” não tinham relevância econômica. não poderem ser testadas e de dependerem de contingências históricas. Há,
Desejava-se também estabelecer uma hierarquia entre aquelas teorias além disso, casos emblemáticos como o da meteorologia e o da medicina
mais adequadas ao padrão científico que vinha sendo estabelecido. Na que têm sido longamente testados, mas que podem falhar em suas previsões,
esteira desse processo, de canonização, certas escolas ou tradições foram pois são inúmeras as variáveis que podem interferir.
acolhidas e outras excluídas dos ambientes científicos. Como ciência social, a Administração possui um nível semelhante de
Por definição, o método científico – da maneira como, então, foi complexidade que dificilmente pode ser reduzida por meio de padrões e
entendido – se baseia na observação, isto é, na percepção por meio dos cinco modelos cujos resultados se possam predizer. Em particular, nas ciências
sentidos (visão, audição, olfato, paladar, tato). Essa percepção pode ser gerenciais, há uma dificuldade em se estabelecer o que é, propriamente, o
imediata (direta) ou mediata (por meio de equipamentos que ampliem sua “fato” que se torna objeto da pesquisa. Um dos problemas centrais consiste
capacidade, como, por exemplo, o microscópio ou o telescópio). Essas em separar aquilo que seria o fato em si (uma pura realidade), da
observações de “fatos” devem ser acumuladas de modo a fornecer uma base interpretação que dele faz o pesquisador e/ou as pessoas envolvidas em dada
confiável para se perceber (racionalmente) os padrões de funcionamento da situação convertida em objeto de pesquisa. Um risco frequente é o de que o
realidade e se chegar à proposição de leis, ou seja, relações constantes, resultado da pesquisa apenas confirme os preconceitos do pesquisador ou
universais, imutáveis que presidem um determinado fenômeno. que apenas repita, por carência de objetividade, aquilo que dizem as teorias
Uma das mais importantes contribuições nesse debate da demarcação já estabelecidas.
veio do filósofo Karl Raimund Popper (1902-1994). Ele tenta estabelecer O debate sobre a demarcação do que é propriamente científico
uma certa economia da verificação do fato científico. Primeiramente, ele conduz à consciência da impossibilidade de se separar, histórica e
afirma que há graus diversos de “refutabilidade”, isto é, uma teoria pode ser culturalmente, o saber científico de outros saberes. Não há como atribuir um
mais científica ou menos científica. Uma teoria cuja falsidade foi status diferenciado para o conhecimento científico. Isso significa que uma
demonstrada pode ser novamente aceita se puder ser adequadamente testada teoria é considerada válida ou inválida não apenas pelo emprego de um
outra vez. Portanto, poder-se-ia dizer que, em ciência, nunca haverá, a determinado procedimento de verificação e de demonstração, mas também
priori, um conhecimento definitivo. As verdades são sempre provisórias: por outros fatores (morais, políticos, econômicos...) de legitimação.
algo é aceito como fato somente até que se prove o contrário. Uma teoria De volta à questão que foi ponto de partida para o presente texto,
científica é legitimada pela aceitação e uso que dela faz um grande número somente se houvesse algo que distinguisse definitivamente o conhecimento
de cientistas em uma determinada época. Os testes contínuos, sob científico de outras formas de conhecimento é que seria razoável pôr-se a
circunstâncias que vão surgindo ao longo do tempo, confirmam ou não a pergunta pela natureza da Administração como ciência ou como arte. No
validade de uma teoria. Uma nova teoria científica pode se originar de outra. entanto, não parece haver nenhum acordo, ao longo da história da filosofia
Mas pode também ter como ponto de partida o senso comum ou o mito, da ciência, que sustente tal distinção entre ciência e outras formas de
desde que possa ser formulada e suficientemente testada. Para ter status conhecimento. Fora da evidência empírica ou conceitual pragmaticamente
científico, uma teoria deve ter base empírica. A teoria, em si, é apenas uma estabelecida, dificilmente se pode chegar a um critério de validação
conjectura. O critério definitivo de validação da teoria será a experiência universal de um conhecimento.
controlada. Se não pode ser demonstrado por meio da experiência, um
determinado saber não poderá ser reconhecido como conhecimento válido. 5. ALGUMAS CONCLUSÕES
No entanto, essa tentativa de demarcação feita por Popper sofreu
sérias críticas, pois há conhecimentos significativos e úteis que ficariam fora Ao invés de se buscar distinguir a ciência a partir de pressupostos
dessas estritas fronteiras do conhecimento científico. Isso ocorre quando se epistemológicos ou ontológicos, nas últimas décadas esta tem sido discutida
considera, por exemplo, a exigência de previsão na ciência. Quando se trata como práticas e produtos dependentes dos contextos sociais e culturais dos
das ciências exatas, estabelecida uma lei é possível fazer previsões sobre o atores envolvidos. Nesse sentido, todo problema de pesquisa nasce em meio
desenvolvimento de um dado fenômeno, ou estabelecer como algo se deu, a circunstâncias pessoais, histórico-sociais e culturais. É, igualmente,
mesmo num passado muito remoto. No entanto, as teorias das ciências sempre em meio a circunstâncias determinadas que um conhecimento vem a
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ser reconhecido e legitimado como tal. Regras de argumentação e critérios MATTOS, Pedro Lincoln C. L. de. “Administração é ciência ou arte?” O que podemos
aprender com este mal-entendido? RAE. São Paulo, v. 49, n. 3, p. 349-360, jul./set.
de verdade aceitos como racionais podem variar de uma sociedade para
2009.
outra e, numa mesma sociedade, em momentos históricos diferentes.
Refletir sobre o modo como se produz conhecimento científico, portanto, é NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
refletir sobre as regras que uma determinada sociedade aceita como
racionais. POPPER, K. Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge. 4th ed.
Perguntar-se, hoje, de forma dualista, se a Administração é ciência ou London: Routledge & Kegan Paul 1985.
arte implicaria, pois, ignorar mais de um século de reflexões sobre o que POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
significa, propriamente, fazer ciência. Tal pergunta esconde a pressuposição SANTOS, Boaventura S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
de que poderia haver alguma maneira de se atingir a perfeita experiência. v. 1. São Paulo: Cortez, 2000.
correspondência do real, seja por meio do conhecimento racional científico
TAYLOR, F. W. Princípios de administração científica. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1995.
ou da intuição artística. Ao invés disso, nas últimas décadas, conseguiu-se,
no máximo, chegar à constatação de que todo conhecimento depende das
condições em que é produzido e valorizado como tal.
Mattos conclui que o que explica o fato de alguém se fazer a referida
pergunta é um distanciamento que passou a existir entre a Administração
como prática linguística e a narrativa metalinguística que dela se faz. Falar
da Administração como prática linguística significa dizer que a
Administração não é algo que existe em si mesmo; não existe separada das
relações que são cotidianamente criadas pela e na organização. A narrativa
metalinguística é o discurso que, de modo particular, no meio reconhecido
como “científico” (universidades, publicações específicas...), se faz sobre os
mundos da Administração. Para Mattos (2009, p.359), esse hiato é um
problema que remete à fragmentação operada pela ciência moderna na
tentativa de simplificar a realidade que aparecia como excessivamente
complexa. Separando-se da prática cotidiana, o discurso conceitual “não é
capaz de reconhecer-se nela e por isso tem dificuldade de “falar” sobre ela”.

REFERÊNCIAS
ALVES, Claudemir Francisco. Antinarratividade e metafísica negativa na obra
crítica e literária de Giorgio Manganelli. 2008. 186f. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte.
BOURDIEU, P. O Campo Científico. In: Ortiz, R. (org.). Pierre Bourdieu. Sociologia.
São Paulo: Ática, 1983.
FREUD, Sigmund. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro:
Imago, 1976, p. 171-179.

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