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Uma Potência Regional em Construção? O Brasil na América do Sul durante os anos Lula
(2003 – 2010)
O presente artigo investiga as relações do Brasil com a América do Sul durante o governo
Lula pela perspectiva teórica das potências regionais. O objetivo do estudo é traçar um
perfil do Brasil como potência sul-americana. Para tanto, fundamenta-se num conjunto de
critérios analíticos que definem requisitos e expectativas de comportamento das potências
regionais. Adicionalmente, apresenta uma discussão sobre liderança e hegemonia como
estratégias disponíveis a tais países em suas vizinhanças. Respaldados pelas propostas
teórico-conceituais de diversos autores, estuda-se o caso do Brasil na América do Sul. O
artigo conclui que o país preenche parcialmente os critérios para ser considerado uma
potência regional, mas encontrou dificuldade de converter suas vantagens de poder em
liderança na região.
ABSTRACT
A Regional Potency in Development? Brazil in South America during Lula years (2003 –
2010)
The article investigates the relationship between Brazil and South America during Lula’s
administration using the theoretical perspective of regional powers. The goal is to draw a
profile of Brazil as a South American regional power. To achieve that result, the study bases
itself on a set of analytical parameters that define requirements and expectations of region-
al powers’ characteristics and behavior. Additionally, it presents a discussion of leadership
and hegemony as strategies available to these countries in their neighborhoods. Supported
by these theoretical and conceptual propositions of several authors, it investigates the case
of Brazil in South America. The article concludes that the country partially meets the cri-
teria to be considered a regional power, but faced difficulties to translate its power advan-
tages into leadership in the region.
INTRODUÇÃO
O argumento sustentado pelo presente artigo é que o Brasil é uma potência regional par-
cial. Essa ideia sugere que o país não se compatibiliza perfeitamente a todos os requisitos
e expectativas da categoria – isto é, o país não possui todas as características necessárias
e não age exatamente conforme o comportamento esperado de uma potência regional.
Defende-se que as singularidades da política externa brasileira e as peculiaridades de suas
relações com sua vizinhança ajudam a explicar essa dissonância. De um lado, a prevalência
da orientação universalista na diplomacia e a implantação do novo desenvolvimentismo
durante o governo Lula ajudam a explicar parte da inadequação. Do outro, a fragmentação
dos projetos políticos na América do Sul completa o quadro.
O artigo é dividido em três partes. Na primeira, expõe-se uma reflexão sobre as noções de
liderança e de hegemonia no estudo das potências regionais. São apresentados os conceitos
de hegemonia cooperativa e de hegemonia consensual que oferecerão bases teóricas para
pensar o caso do Brasil. Na segunda parte, verifica-se a adequação do Brasil aos critérios
para ser classificado como uma potência regional. As características e as relações do país
são escrutinadas de acordo com os parâmetros definidos. Por último, propõe-se uma re-
flexão sobre as singularidades do Brasil e da América do Sul. As particularidades da políti-
ca externa brasileira e do contexto regional são apresentadas como justificativas para as
inadequações do Brasil aos critérios de classificação de uma potência regional.
O que distingue uma potência média de uma potência regional é a aspiração de liderança
(NOLTE, 2010, p.883). A fim de entender as relações de uma potência regional com vizin-
hos é necessário compreender melhor o processo de liderança nas relações internacionais.
Considera-se aqui que a essência da liderança é composta por três elementos: a) ação cole-
tiva; b) propósito; c) poder. Cada uma será analisada em seguida para conferir inteligibili-
dade a esse tipo de interação.
A liderança é necessariamente um processo social coletivo. Não existe líder sem seguidores.
Nesse sentido, liderar é agir em conjunto. Segundo Jones (2011, p. 16), “o teste da liderança
não é chegar em primeiro lugar, mas conseguir que os outros o sigam”. Se a liderança é a
ação coletiva, o líder é aquele capaz de mobilizar os demais. A opção pela via da ação coor-
denada passa a ser cogitada quando existe a crença de que ela poderá aumentar as chances
de conseguir os resultados desejados (OLSON, 2011). A ação conjunta costuma ser a es-
tratégia padrão das potências médias – justamente por lhes faltar os recursos para alcançar
seus interesses sozinhos (BRANDS, 2010, p.4). Ao mesmo tempo, a liderança exige legiti-
midade. Um mau líder perde seus seguidores e, portanto, deixa de ser líder (IKENBERRY,
1996, p.396). Nesse sentido, a essência da liderança está nos seguidores.
Se a liderança é uma ação coletiva, é necessário que ela tenha também uma direção. O
segundo elemento constitutivo do processo de liderança é a existência de um propósito.
Liderar também significa orquestrar a ação de um grupo em direção a um fim coletivo
(IKENBERRY, 1996; NYE, 2011). É o objetivo que dá unidade à coletividade. Em outras
palavras, a ação coletiva só faz sentido quando existe um propósito compartilhado pelas
partes que justifique a ação coordenada. Entretanto, isso não implica necessariamente que
as preferências do grupo sejam idênticas. Os interesses do líder talvez não correspondam
aos dos seguidores. Nesse caso, a construção da liderança pode representar um processo de
mudança de preferências (NABERS, 2011), barganha para construir uma posição comum
(SCHIRM, 2010) ou criação de incentivos para compensar as perdas de poder dos países
mais fracos (PEDERSON, 2002).
Por último, o terceiro elemento da liderança é o poder. Mas os instrumentos de poder são
limitados pela exigência de manutenção da legitimidade. Portanto, liderar é influenciar por
meio da atração ou da aquiescência. Ao líder, estão disponíveis formas de convencimento
e de sedução, seja por meio da criação de incentivos positivos (acesso a mercado, trans-
ferências unilaterais, investimentos), pela persuasão (por meio de uma visão particular da
ordem ou de justiça) ou pela inspiração (por meio da prosperidade ou excelência) (DES-
DRADI, 2010). No processo de liderança, o poder é exercido nas duas direções. Do líder
em relação aos seguidores e destes sobre o líder. O ato de seguir (followship) não significa
passividade e submissão. O poder dos seguidores – ou “constituintes” do processo de lider-
ança – está na capacidade de se opor, resistir ou influenciar as metas e os caminhos a serem
percorridos (HERMANN, 1995, p.156).
Etimologicamente, hegemonia significa liderança (GRAU, 2011). Porém, o termo ganhou
significados diferentes em diversos campos de estudo e perspectivas teóricas ao longo do
tempo. Tradicionalmente, a palavra remetia às noções de dominação e de assimetria de
poder e costumava ser aplicado à superpotência do sistema internacional2. No entanto, ao
ser retomada no estudo das potências regionais, a expressão recuperou o significado orig-
inal de liderança. A condição de ter outros países tão ou mais fortes que eles próprios faz
com que as potências regionais busquem ampliar seu poder por meio da associação com
outros Estados (PEDERSON, 2002). Isso as leva a buscar atrair e mobilizar os Estados de
seu entorno regional em volta de um projeto comum que seja atrativo e legítimo aos viz-
inhos.
Nesse sentido, há dois conceitos importantes no estudo das potências regionais. O primeiro
é a noção de Hegemonia Cooperativa entendida como uma estratégia de construção de
“um tipo de ordem regional” fundamentada no diálogo e na coordenação política do país
mais poderoso da região com seus vizinhos (PEDERSON, 2002, p.683). Essa estratégia
contrastaria com a hegemonia unilateral – definida como a ação independente da potência
regional sem considerações sobre os interesses dos demais. Cada uma tem suas vantagens
relativas (ver Quadro 1). Por um lado, a hegemonia cooperativa agrega poder, diminui os
custos de free-riding, e garante um maior grau de estabilidade e de previsibilidade – mas
tem como contrapartida a necessidade de compartilhar poder, oferecer pagamentos laterais
e firmar um compromisso de longo prazo. Do outro lado, a hegemonia unilateral preserva
a autonomia do país e permite a influência direta sobre os vizinhos – mas envolve maiores
custos de free-riding e incentiva o balanceamento regional. Os dilemas da potência regional
sobre qual estratégia perseguir envolvem as peculiaridades do seu entorno e da leitura de
mundo dos formuladores políticos do país.
2 Uma das definições clássicas é oferecida por Robert Keohane (1984). Segundo o autor, hegemonia refere-se
à “preponderância de recursos materiais” de um país sobre os demais. Esse se conceito é coerente com a Teoria da
Estabilidade Hegemônica e com a Teoria da Transição de Poder. Alternativamente, há também a noção de hegemonia
inspirada no pensamento de Antonio Gramsci. Para o filósofo italiano, hegemonia era compreendida como uma ordem
ideológica/discursiva instaurada pelas elites a fim de perpetuar seus interesses e gerar aquiescência das classes dominadas.
A fim de responder tal questão, adota-se como ponto de partida os parâmetros analíticos
elaborados por Detlef Nolte (2010, p.893). O autor sugere diversos critérios para se identi-
ficar uma potência regional. A fim de verificar se o Brasil se encaixa na categoria, deve-se
avaliar se o país: i) desenvolveu uma autoconcepção de liderança regional; ii) apresentou
uma superioridade de recursos em sua região; iii) manteve um elevado grau de interconec-
tividade com seu entorno; iv) participou da construção da região; v) foi largamente re-
sponsável pela definição da agenda de segurança regional; vi) ajudou a construir uma iden-
tidade internacional comum; vii) participou ativamente na governança regional; viii) atuou
fornecendo bens públicos regionais; ix) recebeu reconhecimento como potência regional;
x) e se atuou representando os interesses da região nos fóruns multilaterais3. Cada um dos
3 É necessário levantar algumas ressalvas em relação ao modelo. Os critérios desenvolvidos por Nolte
(2010) apresentam alguns pontos frágeis. Apesar de cumprirem a função positiva de delimitar conceitual-
mente a noção de potências regionais, tais critérios podem tornar-se excessivamente restritivos. Se pensar-
mos de forma ampla sobre o conjunto de países a quem geralmente se remete a ideia de potências regionais
(e.g China, Índia, Rússia, Brasil, África do Sul, Turquia), quantos deles preenchem perfeitamente todos os
critérios indicados pelo autor? As singularidades das realidades regionais de alguns desses países poderiam
ser suficientes para descaracterizá-los como potências regionais, ainda que na prática sejam reconhecidos
generalizadamente como tais. Ao mesmo tempo, a noção de região não é tão clara quanto se desejaria. A
mo regional continuou como um dos traços mais distintos da política exterior do período
(VAZ, 2003).
Do ponto de vista dos recursos de poder, o Brasil expressou a ambiguidade de ser um país
de proporções gigantescas, mas com fraquezas e vulnerabilidades notáveis. O Brasil corre-
sponde a cerca de 50% do PIB de toda a América do Sul. Seus 8,5 milhões de quilômetros
quadrados de extensão e quase 200 milhões de habitantes o fazem o quinto maior território
e população do mundo. As forças armadas brasileiras são numericamente superiores que as
de seus vizinhos. Economicamente, a região é destino de quase um quinto das exportações
brasileiras – em que se destaca o comércio de manufatura – enquanto o Brasil absorve
sozinho quase um sexto das exportações da América do Sul. Na última década, o país se
tornou um importante investidor regional por meio da internacionalização das empresas
nacionais e de mecanismos que impulsionaram a integração física na vizinhança (VEIGA;
RIOS, 2011).
Entretanto, dois fatores relativizaram a preponderância material do Brasil na região: i) a
presença da superpotência americana no continente; ii) e a persistência das mazelas do
subdesenvolvimento. No primeiro caso, percebe-se com clareza duas assimetrias no con-
tinente americano. A primeira é a dos países sul-americanos em relação ao Brasil. O país
é perceptivelmente um gigante entre pequenos, e assim é percebido pela vizinhança. A se-
gunda é a da América do Sul frente aos Estados Unidos. O poder estrutural da superpotên-
cia seria capaz de ofuscar qualquer aspiração de poder que contrarie diretamente seus in-
teresses. No segundo caso, os desafios domésticos do Brasil dificultaram o consenso em
torno da decisão de assumir os custos da liderança (DANESE, 2009). Uma análise qualita-
tiva demonstra que o país está atrás de diversos vizinhos em indicadores sócio-econômicos
como o IDH8, Doing Business, Economic Freedom Index e Global Competitiveness Index
– o que torna difícil justificar moralmente a transferência de recursos aos países da região.
Isso impõe sérias restrições em termos dos recursos disponíveis ao Brasil. Essa condição
fez com que o país fosse caracterizado como “um tigre sem dentes” (BURGES, 2006), um
monster country não-assustador (LAFER, 2009, p.76) e mais recentemente, como “um gi-
gante sem altura, uma potência sem poder”9.
Em termos da interconectividade, a própria geografia do Brasil o coloca no centro das
interações na região. O país tem uma fronteira territorial de 15 mil quilômetros com dez
dos Estados sul-americanos e há intensas relações transnacionais como sugerem os fluxos
migratórios, os desafios compartilhados no combate ao narcotráfico, o gerenciamento da
Amazônia e os diversos pontos focais de cooperação nas áreas de infraestrutura, energia,
meio ambiente e clima. O comércio do Brasil com a América do Sul mostrou-se relevante,
mas não demonstrou grande dinamismo na última década. Segundo dados da ALADI, a
América do Sul recebeu 19% das exportações do Brasil entre 2008/2009 – mantendo-se
praticamente inalterado em termos percentuais desde o início da década – enquanto pres-
enciou uma queda no percentual de importações de 18% no início da década para 14% em
2009. A região manteve sua importância como um dos principais mercados importadores
didato do Sul no sistema internacional e conseguiu elevar sua visibilidade externa – mas
encontrou dificuldades de conquistar o reconhecimento em sua própria região. A políti-
ca externa de Lula cultivou uma autoimagem de país-ponte entre os países periféricos e
centrais (GUIMARÃES, 2005). Isso é ilustrado pelas diversas vezes que o presidente Lula
compareceu, no mesmo ano, ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, e ao Fórum So-
cial Mundial, em Porto Alegre10. A retórica da busca pela democratização das relações in-
ternacionais foi apresentada como defesa de valores universais pela diplomacia brasileira.
Nesse sentido, a inclusão dos novos países influentes nos centros da governança global
elevaria o grau de legitimidade das organizações internacionais (AMORIM, 2011).
Entretanto, os países sul-americanos não aquiesceram à ideia do Brasil como por-
ta-voz ou representante da região. As candidaturas brasileiras para cargos de relevância nas
instituições internacionais – a citar, o assento no Conselho de Segurança da ONU, a candi-
datura ao cargo de diretor-geral da OMC em 2005 e à presidência do BID no mesmo ano
– não receberam apoio dos países sul-americanos. A diplomacia brasileira encontrou-se
em mais de uma ocasião competindo com candidatos da própria região que aspiravam
os mesmos cargos – demonstrando uma falta de coordenação e diálogo interno. Por vez-
es, as ambições externas do Brasil geraram ressentimento na vizinhança. A dificuldade de
receber reconhecimento regional provinha em larga medida da indisposição dos vizinhos
em aceitarem ser liderados e da diversidade de projetos e visões de mundo existentes na
América do Sul. A convivência de governos de inclinações nacionalistas e globalistas na
região inviabilizou a criação de um projeto comum que tivesse legitimidade e apelo aos viz-
inhos (SORJ; FAUSTO, 2013, p.9). Essa condição peculiar fez com que Andrés Malamud
(2011) afirmasse que o Brasil teria sido um “líder sem seguidores”.
A falta de reconhecimento dos países sul-americanos contrastou fortemente com o au-
mento do prestígio internacional do Brasil. A imagem externa brasileira ganhou uma forte
projeção internacional no segundo mandato do governo Lula. A União Europeia definiu
o Brasil como parceiro estratégico em 2007 como gesto de reconhecimento do novo pa-
pel que o país vinha exercendo nas relações internacionais11. Simultaneamente, a contínua
melhora das contas externas brasileiras e a transição da posição de devedor para credor
cooperou para que a agência Standard and Poor’s conferisse ao Brasil o grau de investi-
mento (investment grade) em 200812. Em 2009, a revista britânica The Economist publicou
uma edição especial em tom otimista sobre o Brasil, em que reconhecia o novo papel do
país no mundo13. Em 2010, a revista Foreign Policy atribuiu a sexta colocação ao ministro
Celso Amorim em uma lista dos 100 maiores pensadores globais do ano14. A justificativa da
escolha era categórica: “por haver transformado o Brasil em um global player”. Além disso,
o país também recebeu importantes reconhecimentos simbólicos. A eleição do Brasil para
10 THE ECONOMIST. Lula’s message for two worlds. January 30th 2003. Disponível em: <http://www.
economist.com/node/1560049>
11 BARBOSA, Rubens (2007), “Parceria estratégica com a União Europeia”, Estadão. Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,parceria-estrategica-com-a-uniao-europeia,24126,0.htm>
12 BLOOMBERG. Brazilian Debt Raised to Investment Grade by S&P. April 30, 2008. Disponível em:
<http://www.bloomberg.com/apps/news?pid=newsarchive&sid=a86v4f6_W2Jg>
13 THE ECONOMIST. Brazil takes off. November 12th 2009. Disponível em: <http://www.economist.
com/node/14845197>
14 FOREIGN POLICY. The Foreign Policy Top 100 Global Thinkers. December 2010. Disponível em:
<http://www.foreignpolicy.com/articles/2010/11/29/the_fp_top_100_global_thinkers?page=0,5>
ser o anfitrião da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas Mundiais de 2016 foi como
uma coroação da nova imagem externa brasileira.
Em síntese, o Brasil preenche grande parte dos critérios objetivos para ser consid-
erado uma potência regional, mas não se enquadra na maior parte dos critérios subjetivos
(ver Quadro 2). Por um lado, o país se destaca regionalmente por seus recursos e mantém
um grau considerável de interdependência com os países sul-americanos. Ainda que se
possam levantar ressalvas em relação a tais aspectos – como a proximidade da superpotên-
cia americana, as debilidades internas ou o baixo nível relativo do comércio intra-regional
– o Brasil certamente se destaca regionalmente por suas enormes proporções. A exceção
entre os critérios objetivos é a dificuldade brasileira de fornecer bens coletivos regionais.
Os desafios socioeconômicos do país criam empecilhos à capacidade do Brasil de oferecer
incentivos econômicos aos países vizinhos e de arcar com os custos do processo de inte-
gração regional. No geral, a proeminência do país na região certamente denota o potencial
brasileiro de exercer um papel de relevância na América do Sul. Mas suas disfunções inter-
nas criam obstáculos para que assuma essa posição.
Quadro 2 - Adequação do Brasil aos critérios de classificação de uma potência regional
Critérios Adequação
Sim – Anúncio da aspiração de liderança no início do governo (com
Pretensão de liderança
posterior recuo retórico).
Sim, com ressalvas – Preponderância regional. Porém é relativizada
Recursos pela comparação com outros países e pelos profundos problemas soci-
oeconômicos.
Sim, com ressalvas – Existência de problemas transnacionais e au-
Interconectividade mento da integração física e produtiva. Porém, baixo nível relativo de
comércio intra-regional
Sim – Construção de instituições comuns (Mercosul e Unasul) que
Construção da região
aprofundaram as interações e os fluxos regionais.
Estruturas de governança re- Parcial – Apesar das iniciativas, as instituições regionais continuaram
gional com baixa efetividade normativa.
Sim – Difusão da ideia de uma identidade internacional comum,
Identidade regional comum porém não houve identificação de objetivos ou projetos de inserção
internacional.
Parcial – Atuou de forma inconstante para resolver crises regionais;
Fornece bens coletivos
Investiu pouco nos vizinhos; Mercado doméstico ainda muito fechado.
Define a agenda de segurança Sim – Incentivou a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano para
regional aumentar a coordenação no combate aos problemas transnacionais.
Reconhecimento de dentro e
Parcial – Reconhecimento externo, mas contestado na região.
fora da região
Representação dos interesses Parcial – A diversidade de projetos regionais dificultou a definição de
regionais interesses regionais claros.
Por outro lado, o Brasil não se preenche completamente os critérios subjetivos e relacio-
nais com os países sul-americanos. A heterogeneidade de projetos e de visões de mundo
existente na América do Sul dificultou que a política externa brasileira conseguisse rep-
resentar os interesses regionais. Apesar disso, a diplomacia do país buscou cultivar uma
retórica universalista – associando seus próprios objetivos aos interesses coletivos dos
países mais fracos. Com isso, a ação externa brasileira conseguiu garantir o aumento de seu
prestígio nas relações internacionais. O país logrou reverter sua imagem negativa e recebeu
importantes reconhecimentos simbólicos. Entretanto, não foi capaz de acumular apoio dos
seus vizinhos para as suas aspirações internacionais. A exceção entre os critérios subjetivos
é a constituição de uma identidade internacional comum. O Brasil conseguiu consolidar a
ideia da América do Sul e deu substância a ela criando instituições que instauraram uma
face política da região no mundo.
O Brasil não se encaixa perfeitamente em todos os critérios definidos pelo modelo de De-
tlef Nolte (2010). Diversas dimensões são apenas preenchidas parcialmente pelo país em
suas relações com a América do Sul. As inadequações podem ser resumidas em três aspec-
tos: i) falta de reconhecimento dos vizinhos; ii) instituições fracas; iii) insatisfações com os
investimentos na regional. Entretanto, o país é muitas vezes referenciado como potência
regional na literatura das Relações Internacionais. Essa condição ambígua – de imperfeição
conceitual, mas com reconhecimento social – demanda a reflexão sobre as peculiaridades
do caso brasileiro. Considera-se aqui que estas também podem ser sintetizadas em três
aspectos: i) a vocação universalista do Brasil; ii) o modelo de desenvolvimento do gover-
no Lula; iii) e a fragmentação política da região durante o período. Essas forças ajudam a
dar inteligibilidade às inadequações conceituais do Brasil. Cada uma delas será tratada em
seguida.
Em primeiro lugar, a vocação universalista da política externa brasileira conteve o aprofun-
damento do ativismo regional do Brasil. A visão predominante no governo Lula era de que
havia uma relação de complementaridade entre as estratégias de aspirar a liderança region-
al e de se consolidar como global player (GUILHON ALBUQUERQUE, 2010). Segundo
essa visão, as duas estratégias envolveriam temas e agendas diferentes e, portanto, não in-
terfeririam diretamente nas metas específicas de cada. Não haveria sentido em privilegiar
uma sobre a outra na medida em que se referem a esferas de ação política distintas, po-
dendo ser conciliáveis ou até mesmo se reforçarem mutualmente (LIMA; SANTOS, 2008,
p.3). As noções de democratização das relações internacionais e a criação de uma nova
geografia comercial foram apresentadas como metas universais que beneficiariam todos
os países fracos e marginalizados do sistema internacional (BRANDS, 2010). Esperava-se
que a defesa de tais valores e a lógica de solidariedade conquistasse o apoio da região e
reforçasse a voz do Brasil no mundo. No entanto, a crescente frustração com os resultados
alcançados nas relações com a América do Sul e o maior sucesso da projeção internacional
do Brasil redirecionaram as prioridades do país no segundo governo de Lula (SARAIVA,
2010; MALAMUD, 2011).
Nesse sentido, a Cooperação Sul-Sul – expressa pelos vetores da diversificação de parce-
rias e pela formação de coalizões – se firmou como principal diretriz externa do país (VI-
GEVANI; CEPALUNI, 2011). A maior aproximação com o Oriente Médio e a África, assim
como o envolvimento do Brasil na crise em Honduras (2009) e nas negociações sobre o
programa nuclear iraniano (2010) ilustram esse ajuste. Adicionalmente, o substancial au-
mento do comércio com a Ásia e a maior relevância dos BRICS nos assuntos de governança
global – especialmente a partir da crise financeira de 2008 – reforçaram essa mudança de
prioridades da política externa brasileira. Tal ajuste criou empecilhos ao aprofundamento
Conclusões
Durante o governo Lula, o Brasil foi uma potência regional parcial. A política externa bra-
sileira demonstrou traços das estratégias de hegemonia regional – porém, de forma im-
perfeita. Conforme a hegemonia cooperativa, o país buscou agir coletivamente com os
países sul-americanos – dando continuidade ao regionalismo iniciado durante a década
de 1990. No primeiro mandato, o país assumiu explicitamente a aspiração de liderança
regional. A política externa brasileira incentivou a construção de instituições regionais
(CASA, UNASUL, CDS), consolidou uma identidade internacional sul-americana, par-
ticipou da mediação de tensões domésticas nos países vizinhos (Venezuela, 2003; Bolívia,
2003 e 2005; Equador, 2005) e tolerou contestações relacionadas às assimetrias regionais
(Perfurações da TEC, salvaguardas e regimes de exceção no Mercosul, nacionalização dos
hidrocarbonetos – 2006, renegociação de Itaipu – 2009). Isso tudo é um indício da existên-
cia da vontade política de aprofundar o engajamento do país nos assuntos regionais.
No entanto, o ativismo regional do Brasil foi limitado. Os investimentos brasileiros na região
foram minguados, as regras e os acordos comerciais foram desrespeitados ou afrouxados,
e o país hesitou em assumir integralmente o papel de mediador em dois conflitos entre
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