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Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor

Antigamente, este se chamava “Domingo de Ramos”, mais recentemente passou a ter a denominação
acima, porque se celebram as duas coisas: a primeira, com o breve relato ao início da Missa da entrada
triunfal de Jesus em Jerusalem, montado num jumentinho e depois a leitura do Evangelho, que neste
domingo é bastante longo: o relato da Paixão de Jesus desde a instituição da Eucaristia até a sua morte
na cruz.
Estamos diante de um mistério tremendo. A narrativa da paixão nos faz muito bem espiritualmente, se
a lermos e/ou meditarmos devagar. Aliás, pelo Brasil afora, os “sermões das sete palavras”,
principalmente nas cidades menores, menos poluídas pela civilização materialista em que vivemos,
ainda são bastante populares. Cada um dos pregadores, sempre leigos, frequentemente pessoas de
destaque na sociedade civil, passa usualmente cerca de três horas comentando cada “palavra”, isto é,
uma das frases de Cristo na cruz. A paixão de Cristo é um fato tão profundo e tão dramático, que nos
deixa “sem palavras”: qualquer comentário parece antes uma profanação. Jesus, que “passou fazendo o
bem”, termina sua vida terrena desta maneira tão absurda e revoltante. Observe-se que, para nos
salvar, bastaria um ato da Misericórdia de Deus, que é infinita. Sobre isso, assim se expressa São Tomás
de Aquino: “Se Deus quisesse libertar o homem do pecado sem qualquer reparação [satisfação
sacrifical], não procederia contra a justiça” [1]. Mas Deus quis que sua Misericórdia fosse manifestada
de modo palpável aos homens; o meio excogitado por Ele foi a Encarnação da Segunda Pessoa da Ssma.
Trindade, arrostando a morte dolorosíssima na Cruz. Para nos convencermos da Misericórdia de Deus,
Ele quis mostrá-la desta forma. Certamente não se pode excogitar forma mais eloquente. Catecismo da
Igreja Católica: “do maior mal moral jamais praticado, que foi o repúdio e a morte do Filho de Deus, [...]
Deus, pela superabundância da sua graça, tirou o maior dos bens: [...] a nossa redenção” [2].
O que terá levado Judas ao que fez? Decepção com o Mestre? Influenciado possivelmente pelo
“establishment” judaico, com o qual tinha contactos, tanto que negociou com eles o preço para
entregar Jesus? Seu arrependimento, tão diferente do de Pedro! Um arrependimento que fechou as
portas à misericórdia de Deus. Pedro – tudo indica – torna-se um homem profundamente humilde
depois do episódio da negação de Cristo. Ele, que era todo arrebatado, do tipo “deixa que eu chuto”,
parece que esta prova por que passou o preparou para a grande missão que teria na Igreja. O processo
de Jesus foi uma farsa, uma manipulação vergonhosa. Como os judeus não podiam condenar à morte –
afinal de contas, a Palestina pertencia aos domínios Romanos – Pilatos se prestou ao papel iníquo de
condenar à pior pena o Justo por excelência. Pilatos, que fazia carreira no corrupto Império Romanano,
bem que poderia ser considerado o “patrono” dos políticos. Dos maus políticos, bem entendido.
Quanto ao sofrimento atroz de Cristo na cruz, vale observar que Ele sofreu tudo aquilo sem a mínima
consolação interior. Na história de muitos mártires, vários sofreram penas terríveis, mas no meio de
grandes consolações interiores, confortados que foram pela graça de Deus. Mas Cristo não teve estas
consolações no seu martírio. Muito pelo contrário, sentiu-se completamente abandonado por Deus. Sua
desolação interior está patente no relato da sua oração no Horto do Getsêmani, quando ele pede ao seu
Pai que afastasse aquele “cálice” [Mt 26, 39]. Mas aceitou plenamente a vontade de Deus: “não como
eu quero, mas como tu queres”. E na cruz, alem de seu sofrimento físico, o ápice da “noite escura”, o
abandono por Deus, seu Pai, ao dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? [Mt 27, 48]”.
Mas a última palavra de Cristo na cruz não foi essa, mas sim o “Em tuas mãos entrego meu espírito” [Lc
23, 46].
Há uns versos famosos, muito bonitos, atribuídos frequentemente a Santa Teresa de Ávila, sobre a
Paixão de Cristo e amor a Deus que transcrevo parcialmente:
“No me mueve, mi Dios, para quererte / El cielo que me tienes prometeido, / Ni me mueve el infierno
tan temido / para dejar por eso de ofenderte. / Tu me mueves, Señor; mueveme el verte / Clavado en
esta cruz y escarnecido; / Mueveme ver tu cuerpo tan herido […]” [3].
São Boaventura comenta com palavras admiráveis a paixão de Cristo: “Quem olha [...] contemplando-o
suspenso numa cruz, com fé, esperança e caridade, com devoção, [...] com veneração [...], realiza com
ele a páscoa, isto é, a passagem. E [ouve] aquilo que foi dito pelo próprio Cristo ao ladrão [...]: ‘Ainda
hoje estarás comigo no Paraíso’ [Lc 23, 43]. Nesta passagem [...] é preciso deixar todas as operações
intelectuais, e que o ápice de todo o afeto seja transferido e transformado em Deus. Estamos diante de
uma realidade mística e profundíssima: ninguém a conhece a não ser quem a recebe; ninguém a recebe
se não a deseja; nem a deseja se não for inflamado, até a medula, pelo fogo do Espírito Santo [...]. Se
portanto queres saber como isso acontece, interroga a graça e não a ciência; o desejo e não a
inteligência; o gemido da oração e não o estudo dos livros; o esposo e não o professor; Deus e não o
homem; a escuridão e não a claridade. Não interrogues a luz, mas o fogo que tudo inflama. [...] Esse
fogo é Deus; a sua fornalha está em Jerusalém. [...]. Morramos, pois, e entremos na escuridão;
imponhamos silêncio às preocupações, paixões e fantasias. Com Cristo crucificado passemos deste
mundo para o Pai”[9].
[1] S. Th., III, q. 46, a. 2, ad 3.
[2] Cat. Igr. Cat., n. 312.
[3] Autor anônimo do século XVI, ap. Jayme Santos Neves, A outra História da Companhia de Jesus, p. 50.
[4] São Boaventura, Itinerarium mentis ad Deum, Cap. 7, 1.2.4.6: Opera omnia, 5, 312-313, apud Liturgia das Horas,
Segunda Leitura do Ofício do dia de São Boaventura (15 de julho).

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