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AS ORIGENS DO ZEN: HINDUÍSMO

ILUSÃO (MAYA) E LIBERTAÇÃO (MOKCHA)


Boletim Zen - janeiro/ 2005 - nº 22 - órgão de difusão do Grupo Zen Hui-neng - grupozenhuineng@yahoo.com.br - cx postal
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O mito que descrevemos no número anterior de nosso boletim (purucha)


não é a expressão de uma filosofia formal, mas de uma experiência ou estado
de consciência, chamado mokcha ou «libertação». No conjunto, é mais
seguro dizermos que a filosofia indiana é, primeiramente, esta experiência;
só muito secundariamente se volve num sistema de idéias que tenta traduzir
a experiência para a linguagem convencional. Assim, basicamente, a filosofia
só se torna inteligível ao compartilhar da experiência que consiste no mesmo
tipo de conhecimento não convencional, encontrado no Taoísmo. Ê também
chamada atma-jnana (auto-conhecimento) ou atma-bodha (auto-despertar),
visto que pode ser tida como a descoberta de quem, ou daquilo que sou,
quando me não identifico já com qualquer função ou definição convencional
da pessoa. A filosofia indiana não descreve o conteúdo desta descoberta
senão em termos mitológicos, usando a frase «Eu sou Brâmane» (aham
brahman) ou «Tu és aquilo» (tat tvam asi) para sugerir que o auto-
conhecimento é uma compreensão da identidade original com Deus.
Mas isto não implica que este «proclamar-se Deus» tenha o mesmo
significado que num contexto hebraico-cristão, onde a linguagem mítica
geralmente se confunde com a linguagem factual, pelo que não existe uma
distinção clara entre Deus, tal como é descrito em termos de pensamento
convencional, e Deus tal como ele é na realidade. Quando um Hindu diz «eu
sou Brâmane» não implica que esteja pessoalmente encarregado de todo o
universo e informado, até ao último pormenor, do seu funcionamento. Por
um lado, ele não fala de identidade com Deus ao nível da sua personalidade
superficial. Por outro, o seu «Deus» — Brâmane— não está incumbido do
universo de um modo «pessoal»; ele não conhece nem age à maneira de uma
pessoa, uma vez que não conhece o universo em termos de fatos
convencionais nem age sobre ele através de deliberação, esforço e vontade.
Pode ser significativo o fato de a palavra «Brâmane» derivar da raiz brih —,
«crescer», dado que a sua atividade criadora, tal como a do Tao, está na
espontaneidade própria do crescimento, como distinta da deliberação
própria do fazer. Além disso, embora se diga que Brâmane se «conhece» a si
próprio, este conhecimento não é produto de informação, um conhecimento
como o que se tem de objetos, distintos de um sujeito. Segundo as palavras
de Shankara,

Pois Ele é o Conhecedor, e o Conhecedor apenas pode conhecer outras coisas,


mas não pode tornar-se Ele próprio objeto do Seu pessoal conhecimento,
tal como o fogo pode queimar outras coisas mas não pode queimar-se a si
próprio.(1)

Para a mentalidade ocidental o quebra-cabeças da filosofia indiana reside


em ter ela tanto a dizer sobre o que a experiência do mokcha não é, e pouco
ou nada sobre o que ela é. Isto é naturalmente desorientador, pois que se a
experiência não tem realmente conteúdo, ou se é tão falha de relações com as
coisas que consideramos importantes, como se poderá explicar a imensa
estima em que é tida no esquema de vida indiano?
Ora a classificação é precisamente maya. A palavra deriva da raiz
Sânscrita matr-, «medir, formar, construir ou esboçar um plano», a mesma
raiz de onde obtemos palavras greco-latinas tais como metro, matriz,
material e matéria. O processo fundamental da medida é a divisão, quer seja
desenhando uma linha com o dedo, delimitando círculos com o palmo ou
com compassos, ou distribuindo grãos e líquidos por medidas. Assim a raiz
Sânscrita dva- de onde nos vem a palavra «dividir», é também raiz do Latim
duo (dois) e do Inglês (e Português) «dual».
Portanto, dizer que o mundo dos fatos e acontecimentos é maya significa
que os fatos e acontecimentos são antes termos de medida que realidades de
natureza. Devemos, contudo , expandir o conceito de medida até à inclusão
do estabelecimento de limites de qualquer espécie, quer pela classificação
descritiva quer pelo enquadramento seletivo. Ser-nos-á assim mais fácil ver
que os fatos e acontecimentos são tão abstratos como linhas de latitude, ou
como decímetros e centímetros. Considere-se por um momento que é
impossível isolar, por si só, um único fato. Os fatos vêm, pelo menos, aos
pares, pois que um único corpo é inconcebível se o separarmos do espaço
que ocupa. Definição, estabelecimento de limites, delineamento — são estes
sempre atos de divisão e portanto de dualidade, dado que assim que um
limite é definido logo apresenta dois lados.
Este ponto de vista é um tanto assustador, e mesmo bastante difícil de
compreender, para aqueles de há muito habituados a pensar que coisas,
fatos e acontecimentos são os próprios blocos constituintes do mundo, a mais
sólida das sólidas realidades. Contudo, uma compreensão capaz da doutrina
maya é um dos fundamentais requisitos prévios para o estudo do Hinduismo
e do Budismo, e ao tentar apreender o seu significado deverão ser postas de
lado as várias filosofias «idealistas» do Ocidente com que tantas vezes é
confundida — mesmo pêlos modernos Vedantistas indianos. Porque o
mundo não é uma ilusão da mente no sentido de — aos olhos do homem
libertado (juvanmukta) — nada se ver senão um vácuo sem caminhos. Ele vê
o mundo que nós vemos; mas não o marca, não o mede, não o divide do
mesmo modo. Não o encara como real ou concretamente dividido em coisas
e acontecimentos separados. Ele vê que a pele tanto pode ser encarada como
aquilo que nos une ao que nos rodeia, como o que dele nos separa. Ele vê,
além disso, que a pele só será encarada como aquilo que une se foi
primeiramente considerada como o que separa, ou vice-versa.
Portanto o seu ponto de vista não é monístico. Ele não pensa que todas as
coisas são na realidade Uma porque, na verdade, nunca houve quaisquer
«coisas» para serem consideradas Uma. Unir é tanto maya como separar.
Por esta razão, tanto os Hindus como os Budistas preferem falar da
realidade como «não-dual» do que como «uma», dado que o conceito de um
estará sempre em relação com o de muitos. A doutrina de maya é pois uma
doutrina de relatividade. É dizer que coisas, fatos e acontecimentos são
delineados, não pela natureza, mas pela descrição humana, e que o modo
pelo qual os descrevemos (ou dividimos) é fruto da variedade dos nossos
pontos de vista.

texto de Alan Watts, em "O Budismo Zen"


(1) Bachya no Kena Upanichade. «Não pode» é susceptível de Implicações equivocas dado
que a palavra é, em geral, privativa. A questão é que, tal como a luz não necessita de brilhar
sobre si própria pois já é luminosa, também não há vantagem nem sentido em Brâmane ser
objeto do seu próprio conhecimento.

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