Boletim Zen - janeiro/ 2005 - nº 22 - órgão de difusão do Grupo Zen Hui-neng - grupozenhuineng@yahoo.com.br - cx postal 16192 CEP 03402-970-SP
O mito que descrevemos no número anterior de nosso boletim (purucha)
não é a expressão de uma filosofia formal, mas de uma experiência ou estado de consciência, chamado mokcha ou «libertação». No conjunto, é mais seguro dizermos que a filosofia indiana é, primeiramente, esta experiência; só muito secundariamente se volve num sistema de idéias que tenta traduzir a experiência para a linguagem convencional. Assim, basicamente, a filosofia só se torna inteligível ao compartilhar da experiência que consiste no mesmo tipo de conhecimento não convencional, encontrado no Taoísmo. Ê também chamada atma-jnana (auto-conhecimento) ou atma-bodha (auto-despertar), visto que pode ser tida como a descoberta de quem, ou daquilo que sou, quando me não identifico já com qualquer função ou definição convencional da pessoa. A filosofia indiana não descreve o conteúdo desta descoberta senão em termos mitológicos, usando a frase «Eu sou Brâmane» (aham brahman) ou «Tu és aquilo» (tat tvam asi) para sugerir que o auto- conhecimento é uma compreensão da identidade original com Deus. Mas isto não implica que este «proclamar-se Deus» tenha o mesmo significado que num contexto hebraico-cristão, onde a linguagem mítica geralmente se confunde com a linguagem factual, pelo que não existe uma distinção clara entre Deus, tal como é descrito em termos de pensamento convencional, e Deus tal como ele é na realidade. Quando um Hindu diz «eu sou Brâmane» não implica que esteja pessoalmente encarregado de todo o universo e informado, até ao último pormenor, do seu funcionamento. Por um lado, ele não fala de identidade com Deus ao nível da sua personalidade superficial. Por outro, o seu «Deus» — Brâmane— não está incumbido do universo de um modo «pessoal»; ele não conhece nem age à maneira de uma pessoa, uma vez que não conhece o universo em termos de fatos convencionais nem age sobre ele através de deliberação, esforço e vontade. Pode ser significativo o fato de a palavra «Brâmane» derivar da raiz brih —, «crescer», dado que a sua atividade criadora, tal como a do Tao, está na espontaneidade própria do crescimento, como distinta da deliberação própria do fazer. Além disso, embora se diga que Brâmane se «conhece» a si próprio, este conhecimento não é produto de informação, um conhecimento como o que se tem de objetos, distintos de um sujeito. Segundo as palavras de Shankara,
Pois Ele é o Conhecedor, e o Conhecedor apenas pode conhecer outras coisas,
mas não pode tornar-se Ele próprio objeto do Seu pessoal conhecimento, tal como o fogo pode queimar outras coisas mas não pode queimar-se a si próprio.(1)
Para a mentalidade ocidental o quebra-cabeças da filosofia indiana reside
em ter ela tanto a dizer sobre o que a experiência do mokcha não é, e pouco ou nada sobre o que ela é. Isto é naturalmente desorientador, pois que se a experiência não tem realmente conteúdo, ou se é tão falha de relações com as coisas que consideramos importantes, como se poderá explicar a imensa estima em que é tida no esquema de vida indiano? Ora a classificação é precisamente maya. A palavra deriva da raiz Sânscrita matr-, «medir, formar, construir ou esboçar um plano», a mesma raiz de onde obtemos palavras greco-latinas tais como metro, matriz, material e matéria. O processo fundamental da medida é a divisão, quer seja desenhando uma linha com o dedo, delimitando círculos com o palmo ou com compassos, ou distribuindo grãos e líquidos por medidas. Assim a raiz Sânscrita dva- de onde nos vem a palavra «dividir», é também raiz do Latim duo (dois) e do Inglês (e Português) «dual». Portanto, dizer que o mundo dos fatos e acontecimentos é maya significa que os fatos e acontecimentos são antes termos de medida que realidades de natureza. Devemos, contudo , expandir o conceito de medida até à inclusão do estabelecimento de limites de qualquer espécie, quer pela classificação descritiva quer pelo enquadramento seletivo. Ser-nos-á assim mais fácil ver que os fatos e acontecimentos são tão abstratos como linhas de latitude, ou como decímetros e centímetros. Considere-se por um momento que é impossível isolar, por si só, um único fato. Os fatos vêm, pelo menos, aos pares, pois que um único corpo é inconcebível se o separarmos do espaço que ocupa. Definição, estabelecimento de limites, delineamento — são estes sempre atos de divisão e portanto de dualidade, dado que assim que um limite é definido logo apresenta dois lados. Este ponto de vista é um tanto assustador, e mesmo bastante difícil de compreender, para aqueles de há muito habituados a pensar que coisas, fatos e acontecimentos são os próprios blocos constituintes do mundo, a mais sólida das sólidas realidades. Contudo, uma compreensão capaz da doutrina maya é um dos fundamentais requisitos prévios para o estudo do Hinduismo e do Budismo, e ao tentar apreender o seu significado deverão ser postas de lado as várias filosofias «idealistas» do Ocidente com que tantas vezes é confundida — mesmo pêlos modernos Vedantistas indianos. Porque o mundo não é uma ilusão da mente no sentido de — aos olhos do homem libertado (juvanmukta) — nada se ver senão um vácuo sem caminhos. Ele vê o mundo que nós vemos; mas não o marca, não o mede, não o divide do mesmo modo. Não o encara como real ou concretamente dividido em coisas e acontecimentos separados. Ele vê que a pele tanto pode ser encarada como aquilo que nos une ao que nos rodeia, como o que dele nos separa. Ele vê, além disso, que a pele só será encarada como aquilo que une se foi primeiramente considerada como o que separa, ou vice-versa. Portanto o seu ponto de vista não é monístico. Ele não pensa que todas as coisas são na realidade Uma porque, na verdade, nunca houve quaisquer «coisas» para serem consideradas Uma. Unir é tanto maya como separar. Por esta razão, tanto os Hindus como os Budistas preferem falar da realidade como «não-dual» do que como «uma», dado que o conceito de um estará sempre em relação com o de muitos. A doutrina de maya é pois uma doutrina de relatividade. É dizer que coisas, fatos e acontecimentos são delineados, não pela natureza, mas pela descrição humana, e que o modo pelo qual os descrevemos (ou dividimos) é fruto da variedade dos nossos pontos de vista.
texto de Alan Watts, em "O Budismo Zen"
(1) Bachya no Kena Upanichade. «Não pode» é susceptível de Implicações equivocas dado que a palavra é, em geral, privativa. A questão é que, tal como a luz não necessita de brilhar sobre si própria pois já é luminosa, também não há vantagem nem sentido em Brâmane ser objeto do seu próprio conhecimento.