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Rio de Janeiro
Dezembro - 2012
MONIK NOWOTNY GOMES
Rio de Janeiro
Dezembro – 2012
Gomes, Monik Nowotny.
xii, 88f. ; 30 cm
da criança. 5. Cultura. 6. Ciganos. I. Silva, Leila Rangel da. II. Universidade Fede-
CDD – 610.73
SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS DE MULHERES EM UM ACAMPAMENTO
CIGANO NO BRASIL – CONTRIBUIÇÕES PARA A ETNOENFERMAGEM
_____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Leila Rangel da Silva
Presidente
_____________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Cristiane Rodrigues da Rocha
1ª Examinadora
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
______________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Inês Maria Meneses dos Santos
2ª Examinadora
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
_______________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Marialda Moreira Christoffel
Suplente
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida de Luca Nascimento
Suplente
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Rio de Janeiro
Dezembro - 2012
Orientadora
Professora Doutora
À minha mãe Regina Célia que sempre me deu suporte, e mesmo com a sua saúde
abalada, faz parte deste momento por assumir tantas vezes minhas ausências e
responsabilidades.
À cunhada Rosângela e a prima Choi por todo o auxílio e apoio durante o estudo.
À querida equipe do IEDE: Ana Lúcia, Ana Amélia, Janete, Fatima Batista,
Fatima Arruda, Luísa Nascimento, Maria Ivanete, Dora, Maristela, Maria Lucia,
Neide e Joana, por todo o apoio durante os plantões de sábado e suas orações.
Aos queridos amigos do HUGG pelas ajudas recebidas, em especial a Flavictha e seu
esposo Marcelo, à Luzia Sueli, Wiliam, Monica Fadul, Marcia Andrea, Mara,
Milena, Janeide, Leda, Marcia Pacheco, Cleyde Jane, Georgina, Marcia Vidal,
Verônica, Vanilda, Ercília, Carmem, Priscilinha, Erika, Luzia de Guadalupe e
Claudia.
Aos amigos do Mestrado: Lilian, Maíra, Díbulo, Maria Eliza, Fátima Cristina,
Fábio e Antônio todos os participantes do NUPEEMC.
A todos que contribuíram para a realização deste prazeroso estudo com sua torcida,
incentivo e carinho.
Hino cigano em romaní.
RESUMO........................................................................................................................x
ABSTRACT...................................................................................................................xi
RESUMEM...................................................................................................................xii
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS .........................................................1
Motivação para o estudo............................................................................................... 1
Contexto Histórico.........................................................................................................2
Questões Norteadoras....................................................................................................8
Objetivos do Estudo .....................................................................................................8
CAPÍTULOII - ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓLICA............................9
A Coleta de Dados ......................................................................................................11
Cenário do Estudo.......................................................................................................14
Autorização da pesquisa..............................................................................................17
Trabalho de Campo.....................................................................................................19
Caracterização das depoentes .....................................................................................19
Análise dos Dados.......................................................................................................35
Unidades Temáticas.................................................................................................36
Categoria Analítica - O cuidado popular e o cuidado profissional das crianças
e mulheres ciganas: modos de vida e transgeracionalidade..................................37
CAPÍTULO III – DISCUSSÃO DOS DADOS...........................................................39
Subcategorias
1.1 - A transgeracionalidade do cuidado materno com as crianças ciganas..................40
1.2 - A transgeracionalidade da saúde da mulher cigana na fase reprodutiva...............63
CAPÍTULO IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................77
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................80
APÊNDICES ................................................................................................................83
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido...........................................................84
Formulário do perfil sócio-econônico-cultural ..........................................................85
ANEXOS........................................................................................................................86
Autorização do Presidente da União Cigana do Brasil...............................................87
Aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIRIO.......................................88
GOMES, Monik Nowotny. Saberes e Práticas Culturais de Mulheres em um Acampamento
Cigano no brasil – Contribuições para a EtnoEnfermagem. Rio de Janeiro. 2012. 88 fls. xii.
Dissertação (Mestrado em Enfermagem). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro -
UNIRIO.
RESUMO
ABSTRACT
This is a qualitative study, the method ethnonursing, having as object the study the
knowledge and the practices of women about reproductive health and maternal care in a
gypsy camp in Brazil. The objectives were: to know the meanings, expressions, patterns and
life experience of gypsy women during the reproductive period and care for the newborn and
the child and discuss the knowledge and cultural practices of the gypsy woman concerning the
care during the reproductive period and care of the newborn and child and the influence on
health and on disease. The theoretical and methodological framework was Cultural Care
Theory Madeleine Leininger. The research scenario was a gypsy camp located in the
municipality of Tanguá, in the State of Rio de Janeiro. The key informants were five gypsy
women and the general informants were six, three gypsy camp residents and three visitor
gypsies. The data collection period was from July to September 2012. We used five Leininger
enablers: Model stranger-friend, observation-participation-reflection (OPR), model Sunrise,
open interview and profile form socio economic cultural . The statements were based on data
analysis of ethnonursing, resulting in a category: The popular care and the professional care of
gypsy children and gypsy women: lifestyles and transgenerationality, and split into two
subcategories: The transgenerationality of maternal care with Gypsy children and the
transgenerationality of gypsy women’s health of gypsy woman in the reproductive phase. The
study enabled the design of a profile and the understanding of the knowledge and the cultural
practices related to caring for gypsy women and children. It is noteworthy that early weaning
management maneuvers with the umbilical stump and the tendency of tilting option for
cesarean birth comes as proposals for an intersection between popular care and professional
nursing, allowing the projection of future strategies for promoting cultural care and the
implementation of new studies ethnonursing.
Keywords: ethnonursing transcultural nursing, women's health, child health, culture, gypsy.
GOMES, Monik Nowotny. Conocimientos y Prácticas Culturales de las Mujeres en un
campamento de gitanos en Brasil - Contribuciones etnoenfermería. Río de Janeiro. 2012. 88
fls. xii. Dissertação (Mestrado em Enfermagem). Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro - UNIRIO.
RESUMEN
Se trata de un estudio cualitativo, método etnoenfermería, que tiene como objeto de estudio el
conocimiento y las prácticas de las mujeres acerca de la salud reproductiva y la atención
materna en un campamento de gitanos en Brasil. Los objetivos fueron: conocer los
significados, expresiones, modelos y experiencias de vida de las mujeres gitanas en la
reproducción, el cuidado del recién nacido, el niño y discutir los conocimientos y las prácticas
culturales de la mujer gitana en relación con las fases de la atención período reproductivo y el
cuidado del recién nacido, del niño, y la influencia en la salud y la enfermedad. El marco
teórico y metodológico fue la Teoría Cuidado Culturales Madeleine Leininger. El escenario
de la investigación fue un campamento gitano ubicado en el municipio de Tanguá, en el
Estado de Río de Janeiro. Los informantes clave fueron cinco mujeres gitanas y los
informantes generales fueron seis, tres residentes de los campamentos gitanos y tres visitantes
gitanos. El período de recolección de datos fue de julio a septiembre de 2012. Utilizamos
cinco facilitadores Leininger: Modelo extraño amigo, la observación-participación-reflexión
(OPR), el modelo de Sunrise, la entrevista abierta y cuestionario del perfil socioeconómico
cultural. Las declaraciones se basan en el análisis de datos de etnoenfermería, lo que resulta
en una categoría: la atención popular y la atención profesional de los niños y las mujeres
gitanas: estilos de vida y intergeneracionalidad, y se dividen en dos categorías: El cuidado
materno intergeneracionalidad con niños gitanos y intergenaracionalidad de la salud de la
mujer gitana en la fase reproductiva. El estudio permitió el diseño de un perfil y la
comprensión de los conocimientos y prácticas culturales relacionadas con el cuidado de las
mujeres y los niños gitanos. Es de destacar que el destete precoz maniobras de manejo con el
muñón umbilical y la tendencia de la opción de inclinación para un parto por cesárea se
presenta como propuestas para un cruce entre la atención popular y profesional de
enfermería, lo que permite la proyección de futuras estrategias para la promoción de
cuidados culturales y la aplicación de nuevo estudios etnoenfermería.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A questão cultural sempre foi muito marcante em minha vida. Essa inclinação
acontece desde a infância por conta de uma convivência diária com meu avô – um austríaco
que fugiu da II Grande Guerra com apenas sete anos de idade. Assim é que seus relatos não só
sobre os episódios em torno da fuga – comendo basicamente os ratos encontrados no porão do
navio usado para escapar – mas a respeito dos modos de vida e da cultura de seu país de
origem tiveram um peso considerável na minha visão de mundo. Desnecessário dizer, essa
verdadeira odisseia marcou a vida de meus bisavôs, dos cinco filhos que com eles vieram para
o Brasil e enriquece a história de nossa família. A filha mais velha, minha tia avó, por
exemplo, havia sido enfermeira de guerra (em território brasileiro, prestou juramento à
bandeira nacional e ganhou dupla nacionalidade). Cresci, assim, em permanente contato com
costumes e hábitos distintos, relacionados à outra cultura. E paralelamente ao crescimento
físico, na medida em que os anos foram passando, aumentava, dia após dia, o interesse
intelectual e o fascínio pela diversidade. Inclinação, aliás, que até hoje me acompanha.
Assim é que hoje, graduada em enfermagem, ciência fundamentada pelo cuidado com
o ser humano, tenho interesse em temas relacionados a valores culturais e modos de vida do
ser humano. O cuidado, sabemos, é a essência natural e fundamental, que embasa e afirma a
ciência da enfermagem. O tema, ao longo dos tempos, vem sendo focalizado como alvo de
estudos, pesquisas e produções científicas que se propõem a investigar tal fenômeno e
enquadrá-lo como a pedra fundamental desta profissão (a Enfermagem).
A enfermeira e teórica Madeleine Leininger se debruçou sobre o tema e, após intensa
investigação, estabeleceu uma relação entre a cultura e o cuidado e publicou o trabalho a
Teoria do Cuidado Cultural Diversidade e Universalidade. Esta teoria tem sido usada como
ferramenta em várias culturas para trazer à luz as necessidades do cuidado e saúde.
Contexto histórico
De acordo com a literatura existente, não se sabe muito sobre a origem dos ciganos e
sua história porque eles possuem um idioma ágrafo (sem escrita), o que impossibilitou o
registro de acontecimentos ao longo dos tempos. Os ensinamentos, assim, foram e são
transmitidos por meio da oralidade, geração após geração, até os dias de hoje. Alguns
estudiosos desta cultura, após análises linguísticas, acreditam que os ciganos sejam oriundos
da Índia.
Para Godwin (2001), somente no século XIX, através de pesquisas linguísticas e
antropológicas e graças a indícios encontrados nos vários dialetos de seu idioma - o romani –
concluiu-se que os ciganos procedem da região norte da Índia e que dali migraram para o
Oriente Médio há cerca de mil anos.
De acordo com Torres (2004), os maiores estudiosos afirmam que os ciganos teriam
nascido na Índia devido às semelhanças existentes entre a linguagem indiana, o “sânscrito”, e
o “romani”, em português “romanês” (a linguagem ágrafa falada pelos ciganos). Apesar de o
“romani” ser uma língua sem forma escrita, explica o autor, a transmissão oral de uma
geração para outra, de pais para filhos, perpetuou sua existência e não existem dados
impressos ou livros que façam referência ao ensinamento desta linguagem. “Os ciganos mais
velhos transmitem a herança de seus ensinamentos, modos de vida para os mais jovens”,
sublinha Torres.
O romani, no entanto, não é o dialeto presente em todos os grupos de ciganos, pois
grupos diferentes possuem dialeto próprio. O grupo de ciganos Calon, por exemplo, se
comunica através do dialeto calon, linguagem também ágrafa transmitida oralmente entre as
gerações.
Segundo Somma (2007), os ciganos são encontrados em várias partes do mundo,
divididos em culturas, religiões e línguas diferentes. Alguns têm o dialeto, a profissão ou
apenas a opção pela vida itinerante. A população, estimada em cerca de 12 milhões de
pessoas, espalhadas pelos cinco continentes, tem em comum uma longa história pautada pelo
preconceito. Que continua ainda hoje.
O número de ciganos existentes no Brasil não é conhecido, mas alguns estudiosos do
tema produziram estimativas. É difícil levantar um número exato porque muitos deles
preferem ocultar sua origem. Essa “invisibilidade” (como vamos chamar o fenômeno) é
fomentada pelo medo do preconceito e da discriminação. Assim é que possível levantamento
estatístico sobre a população cigana no Brasil, na visão dos próprios ciganos, pode representar
uma ameaça. Alguns, então, optam por não assumir a identidade cigana.
Segundo reportagem exibida pela Folha de São Paulo (17/07/2008), “a Cruz
Vermelha começou nesta quinta-feira, em um povoado de ciganos de origem bósnia, o
processo de identificação das dez mil pessoas que vivem em assentamentos ilegais em
Roma”. O censo está entre as medidas incluídas no decreto do governo italiano para reforçar a
segurança e combater a imigração ilegal. O texto foi baixado em 21 de maio pelo Executivo
conservador liderado pelo primeiro ministro Silvio Berlusconi. Depois que o pacote foi
aprovado, o ministro do Interior italiano, Roberto Maroni, disse que "todos os assentamentos
ilegais" seriam destruídos. Cerca de 50 ciganos do assentamento ilegal de Corviale, na
periferia de Roma, receberam visita da Cruz Vermelha, que pediu documentos de identidade,
tirou fotos e fez perguntas sobre nacionalidade e possíveis doenças. Em 25 de junho, cerca de
um mês depois, o governo anunciou que tiraria as impressões digitais de todos os ciganos,
inclusive dos menores de idade, para criar um censo dos que vivem em assentamentos. No
entanto, ninguém teve sua digital tirada, e todos receberão um cartão com seus dados na
próxima segunda-feira (21). Como o processo de identificação fosse voluntário, vários dos
moradores do campo de Corviale se isolaram quando a Cruz Vermelha chegou ao local, de
modo que muitos não foram identificados.
Segundo Torres (2004), muitos ciganos, pela necessidade de sobrevivência, omitem
sua origem para fugir do preconceito, só exercendo sua “ciganidade” em casa e nas festas do
clã, do qual jamais se separam, pois ainda há hoje, no mundo inteiro, uma prova evidente do
preconceito contra os ciganos.
O preconceito imputado ao povo cigano não é uma realidade exclusiva da história
contemporânea. Muito pelo contrário. De acordo com as informações disponíveis, o estigma
vem se perpetuando ao longo dos tempos. Antes da chegada deste povo ao Brasil, a
discriminação já existia em países europeus onde, não raro, culminava em atos de
perseguições, genocídio e deportação.
Para Melo e Berocan (2010), os ciganos são a minoria étnica mais vulnerável à
discriminação nos 27 Estados membros da União Europeia, de acordo com agências
internacionais. Considerados "hóspedes indesejados" em diferentes países e continentes, os
ciganos convivem secularmente com o preconceito, a estigmatização e a exclusão social,
sobretudo por sua recalcitrante mobilidade e por seu modo de vida particular.
Já na opinião de Torres (2004), o deporto para as terras brasileiras (Brasil - Colônia),
se deu pelo preconceito e pura conveniência por parte da corte. Era interessante, à época,
enviar para a colônia portuguesa grupos que desenvolvessem atividades afins que iam ao
encontro dos interesses e necessidades das demandas colonizadoras.
Quando nos reportarmos àqueles episódios que marcaram a História por sua
intolerância racial, social, cultural e pela discriminação social, a primeira lembrança é aquela
que culminou no extermínio de milhares de pessoas classificadas como sub-raças. Referimo-
nos, aqui, ao holocausto.
Segundo Souza (2012), o holocausto foi uma prática de perseguição política, étnica,
religiosa e sexual estabelecida durante os anos de governo nazista de Adolf Hitler. Segundo a
ideologia nazista, a Alemanha deveria superar todos os entraves que impediam a formação de
uma nação composta por seres superiores. Segundo essa mesma ideia, o povo legitimamente
alemão era descendente dos arianos, um antigo povo que – segundo os etnólogos europeus do
século XIX – tinha pele branca e deu origem à civilização europeia. Para que a supremacia
racial ariana fosse conquistada pelo povo alemão, o governo de Hitler, então, passou a pregar
o ódio contra aqueles que impediam a pureza racial dentro do território alemão. Segundo o
discurso nazista, os maiores obstáculos ao processo de eugenia étnica eram os ciganos e –
principalmente – os judeus.
Além do antissemitismo, citamos aqui também outros exemplos nos quais o
preconceito foi usado premeditadamente, aliás, como sempre acontece nestes casos. Falamos
dos regimes de escravidão, que passavam pelo tráfico de seres humanos e sua submissão a
trabalhos forçados e castigos. Essa prática dizimou grandes contingentes do continente
africano para o enriquecimento de poucos. O fato impressionante é que as populações
dizimadas e escravizadas não se resumiram aos judeus e negros. Ao contrário. Vários
estudiosos da cultura cigana afirmam que os ciganos estavam inseridos nestes que são os
episódios históricos marcados pelo mais alto grau de crueldade.
Quando faz referência ao nazismo, Vaz (2005) afirma que os ciganos tiveram um
tratamento similar ao dos judeus: muitos deles foram enviados aos campos de concentração,
onde foram submetidos às experiências de esterilização, usados como cobaias humanas.
Calcula-se que 500 mil ciganos tenham sido eliminados durante o regime nazista.
No século passado, uma abordagem centrada na questão biológica, sem considerar os
aspectos culturais, contribuiu para legitimar o arbitrário conceito de que determinados grupos
de pessoas seriam consideradas biologicamente inferiores aos outros. A afirmação é de
Helman (2009), segundo quem tal abordagem serviu para justificar a perseguição, a
colonização e a exploração de vários grupos de pessoas em diversas partes do mundo.
Para Fonseca (1996), a cultura cigana é marcada pela exclusão, intolerância, injustiças
e preconceitos que a castigam há séculos. A dispersão dos ciganos pelo mundo foi iniciada há
mil anos, quando eles saíram da Índia rumo à Europa e o Oriente Médio. Escravos na
Romênia no período da Idade Média, ao longo de 400 anos, perseguidos pelos nazistas,
assassinados nos campos de concentração, eternos estrangeiros, povo sem pátria, ladrões de
galinhas e criancinhas, os ciganos seriam, segundo este autor, os “novos judeus”.
Decorridas quase cinco décadas após o holocausto, hoje, estas atitudes são
consideradas inaceitáveis. Cabe aqui refletir como a sociedade caminha vagarosamente rumo
a uma organização social pautada nos valores humanísticos.
Campos (1999), citado por Medeiros, afirma que o termo genérico “cigano” na
verdade designa um grupo bastante heterogêneo. Segundo ele, a principal subdivisão, com
base na provável origem, divide este povo em dois grandes grupos, os Rom e os Calom. Os
Rom encontram-se mais dispersos e teriam origem extra ibérica. É considerado o grupo
cigano mais autêntico e tradicional. Já os Calom são chamados ciganos ibéricos, devido a sua
maior concentração naquela região. Estes últimos também possuem representantes nas
Américas em virtude de deportações e emigrações. Outras divisões se dão com base nas
profissões exercidas por eles: caldeiros, comerciantes de animais, ferreiros, amestradores de
animais, acrobatas, músicos, artesões, ambulantes e outros.
Segundo Santos (2002), os grupos ciganos estão historicamente muito divididos no
Brasil por terem trajetórias diferenciadas, formas e estilos de vida diversos. Provavelmente, os
primeiros ciganos Calons chegaram ao Brasil no século XVI deportados da Península Ibérica.
Chegados ao Brasil, os Calons logo se espalharam pelas diversas capitanias. No século XVIII
já se faziam numerosos, tanto quanto a intolerância dos governantes, que em várias capitanias
lançavam mão de provisões e leis com o intuito de expulsá-los de suas áreas de controle.
Para Torres (2004), desde 1526, Portugal já fazia leis preconceituosas contra os
ciganos, e algumas dessas leis podem ser encontradas em antigos documentos e livros que
fazem parte do acervo do Real Gabinete Português de Leitura, situado no Rio de Janeiro. Os
ciganos que chegavam ao Brasil, mas ainda estavam sob o domínio dos portugueses, eram
proibidos de falar o romani. Esta lei só caiu em desuso em 1900.
Segundo o Presidente da União Cigana do Brasil Mio Vacite tal proibição em falar a
linguagem romani, determinada pelos portugueses, acabou diferenciando os grupos Calon dos
Rom. Esta diferenciação deve-se ao fato de que os ciganos Calons, à época, eram proibidos de
falar e ensinar a linguagem romani a seus filhos, sob fortes penas de punição e risco de
aprisionamento em calabouços. Embora proibidos de falar a linguagem romani plena, estes
ciganos proferiam palavras soltas nesta linguagem. Esta prática alternativa desencadeou a
assimilação de uma nova linguagem denominada dialeto calon. Ainda para Mio Vacite, uma
das maneiras de exterminar uma cultura é a eliminação de seu idioma, já que este vem a ser
um forte determinante cultural. Já os ciganos Rom mantiveram a linguagem romani até os
dias de hoje, sendo obrigatória a transmissão desta linguagem de pai para filhos.
Segundo Torres (2004), os ciganos degredados pelos portugueses eram destinados a
trabalhar na forja e fabricavam ferraduras e ferramentas, além de apetrechos domésticos como
panelas, alambiques e outros. Conhecidos como andarilhos em todo mundo, eram nomeados
meirinhos da corte e levavam notícias e comunicados do Reino a todas as terras brasileiras.
Trabalharam mais tarde como bandeirantes e serviram ao exército brasileiro.
Para Mio, ser meirinho da corte era considerado uma atividade de risco, semelhante às
funções atuais dos oficiais de justiça. Estes últimos, na época do Império, entregavam
intimações e corriam inclusive o risco de serem mortos.
O povo cigano depreende-se dos relatos, não possui características homogêneas,
mesmo pertencendo a uma única etnia. É que o processo de migração para o Brasil, em
diferentes épocas e maneiras, contribuiu para a diversidade dos grupos e subgrupos que ao
longo dos tempos mantiveram suas tradições em maior ou menor escala.
No Brasil, a cultura cigana ainda é desconhecida pela sociedade em geral. Suas
tradições e modos de vida são passadas a cada geração. O nascimento de uma criança cigana
sempre é motivo de festa porque alimenta a esperança de continuidade das tradições culturais
deste povo. Leininger tem definido cultura como "aprendidos, partilhados e transmitidos os
valores, crenças, normas e modos de vida de uma cultura em particular, que orienta o
pensamento, decisões e ações, de modo padronizado e frequentemente entre gerações."
(LEININGER 1991 a/b, 1997 a). O nascimento das crianças ciganas é acompanhado por
vários rituais próprios desta cultura, assim como outros ritos de passagem que envolvem este
povo. Para Bernardi (1989), rito é simultaneamente um modo de expressar a crença mística e
de manifestar a adesão a um sistema cultural.
Por apresentar peculiaridades místicas, a cultura cigana é rodeada por lendas que
geram preconceitos e discriminação. A sociedade cultural cigana vem se organizando e
lutando por seu espaço na sociedade, através de participações nas Conferências Nacionais de
Direitos Humanos. Suas mobilizações são marcadas por denúncias e propostas que são
discutidas durante estas reuniões.
O estudo aqui apresentado buscou identificar, por meio do discurso de mulheres
ciganas, como os valores, saberes e expressões culturais são capazes de influenciar o cuidado
materno infantil nos acampamentos ciganos. Destacamos desta forma, o modo de vida dessas
mulheres A metodologia adotada foi de natureza qualitativa e seguiu a Teoria do Cuidado
Cultural e o Método de Etnoenfermagem, elaborados pela enfermeira Madeleine Leininger.
Foram utilizados recursos facilitadores relacionados ao método e as entrevistas foram
direcionadas para as depoentes. Estas últimas são chamadas aqui de informantes culturais
porque detêm uma visão interna da cultura.
Por se tratar de uma cultura enredada em questões discriminatórias e preconceituosas e
com características tão peculiares, foi necessário um estudo cultural que visasse conhecer
como são os costumes e hábitos que envolvem o período reprodutivo. Da mesma maneira,
investigou-se também como é realizado o cuidado com as crianças após o nascimento, a partir
das seguintes indagações: Conhecer como ocorre o pré-natal, onde nascem as crianças
ciganas? Em domicílio ou em instituições? Quem realiza os partos? Quais os cuidados com o
recém-nascido? O cuidado puerperal e o acompanhamento das crianças são realizados nas
unidades de saúde, sob uma perspectiva transcultural?
1. Quais são os significados, expressões, padrões e experiência de vida das mulheres ciganas
durante o período reprodutivo e o cuidado com o recém-nascido e a criança?
Objetivos
2. Discutir os saberes e as práticas culturais da mulher cigana com relação ao cuidado nas
fases do período reprodutivo e cuidado do recém-nascido e criança, e a influência na saúde e
na doença.
CAPÍTULO II
A coleta de dados
O Capacitador Sunrise
É um guia de estudo que se apresenta como um diagrama visual e serve como mapa
cognitivo para descobrir os fatores embutidos e múltiplos relacionados à teoria enquanto se
coleta e analisa resultados.
– Modelo de Sunrise da
1 2 3 4
Para Leininger (1980), a descoberta dos fenômenos exige do pesquisador que este
busque as histórias dos informantes sobre sua saúde e modos de viver culturais. Os
pesquisadores, argumenta ela, devem visitar a cidade, instituição ou comunidade dos
informantes. Por este motivo, a coleta de dados demandou visitas aos representantes da União
Cigana do Brasil e a um acampamento cigano no Estado do Rio de Janeiro designado pela
instituição. A finalidade foi conhecer os informantes chave. O acampamento cigano
designado como cenário de estudo está localizado em Tanguá, município localizado na região
metropolitana do Rio de Janeiro. A principal rodovia que dá acesso ao município é a BR-
101. Pelo município de Tanguá também passa a ferrovia EF-103, que pertence à Ferrovia
Centro-Atlântica. (vide mapa abaixo).
Na primeira visita, o acampamento, era composto por duas barracas nas quais
residiam duas famílias. Na segunda visita, encontrei uma terceira barraca. Na primeira
barraca, no entanto, encontrei uma nova família, composta pela filha do líder com seu cônjuge
e seu bebê.
Na visita subsequente notei que a terceira barraca havia sido afastada e instalada a uma
distância de aproximadamente 150 metros do acampamento. Ao questionar esta modificação,
fui informada de que o morador cigano desta barraca foi convidado a se retirar do
acampamento porque não se enquadra aos ditames das normas de convivência vigentes. Este
morador comportou-se de maneira inadequada e não foi tolerado por seus pares. Por isso, foi
afastado pelo Chefe.
Vale ressaltar que o campo de estudo aqui trabalhado é bastante mutável. Isso
acontece porque os ciganos são nômades e não se prendem a uma localidade. Some-se a isso o
fascínio pela liberdade e o costume de viajar, visitar e acampar em outros locais. O
acampamento está assentado na localidade há quinze anos e foi doado à época pelo Prefeito
em exercício. Situado em um bairro residencial ao lado de uma igreja evangélica, beirando a
linha férrea que cruza a cidade, em logradouro de barro, o assentamento tem endereçamento
postal, sistema de abastecimento de água, energia elétrica e sistema de coleta de lixo
estruturada.
Foto autorizada
Fotos autorizadas.
Figura 5 - Animais de estimação circulando livremente entre o interior das barracas, o
quintal e a rua.
A galinha não como não, bota ovo, eu criei galinha de estimação, aí eu vendo ovo,
eu como ovo, dou ovo pra quem chega aqui. Não, nós não comemos não, não
comemos nunca. Quando a gente quer comer, aí nos compra e mata. Essas daqui
eu não mato porque são tudo minha, são tudo criada aqui as minhas galinhas.
Esses bichinhos, esses daqui são criado aqui, aí eu não mato não. (Prama)
As barracas são feitas de madeira e lona e no lugar de portas têm cortinas coloridas
que são fechadas durante a noite.
Fotos autorizadas.
Figura 7 - Barracas de madeira e lona, não há portas, apenas cortinas. Logradouro e
endereçamento.
Autorização da Pesquisa
Eu não sei escrever, porque minha mãe não deixou eu ir na escola, entendeu? O
meu pai, por ele talvez eu até ia, mas por não, pra não deixar nós menina mulher
se misturar com pessoas que não era cigana na escola; pra não aprender coisa
que não precisava, que é assim que ela fala, aí eu não aprendi a ler e não aprendi
a escrever e não fui na escola. Aí, dizer, hoje eu só sei assinar meu nome e o
básico, mas estudar, estudar mesmo eu não estudei. (Prama)
Vale destacar que a quantidade de depoentes foi da ordem de cinco informantes chave.
A estratégia seguiu o método da etnoenfermagem, que considera o número de seis a oito
informantes chave para configurar um estudo mini (pequena escala em etno-enfermagem).
Segundo Leininger, a duração de tempo com os informantes chave pode variar, de acordo
com a obtenção do ponto da saturação. Saturação refere-se a recolher as ocorrências e
significados até quando há uma redundância de informações. Ou seja, o pesquisador
consegue a mesma informação em vários momentos e as depoentes não tem mais nada a
oferecer, pois disseram e compartilharam tudo (LEININGER, 1991).
As entrevistas foram gravadas com recurso digital, transcritas na íntegra, arquivadas
em computador e permanecerão armazenadas por um período de cinco anos.
Com a finalidade de garantir a privacidade das depoentes, os nomes das participantes
foram substituídos por codinomes ciganos na linguagem Romani, idioma utilizado por alguns
segmentos da comunidade cigana. Conforme a grande veneração com que os ciganos
reverenciam a natureza, aos codinomes foram atribuídas palavras análogas.
Quadro 02: Codinomes em romani e tradução em português.
Trabalho de campo
Para efetuar a coleta de dados foram necessárias várias visitas ao acampamento. Para
garantir a observação e estreitar a convivência com os ciganos, levou-se em consideração o
modo de vida nômade da comunidade, uma característica do grupo em estudo. Durante
algumas visitas, as depoentes não foram encontradas no acampamento, pois estavam viajando.
Durante essas viagens, que podem durar meses, as barracas permanecem fechadas e sob a
vigilância de outra família de ciganos residentes em outra barraca do acampamento.
A coleta de dados demandou um período de dois meses nos quais foram realizadas
visitações espaçadas e participações em eventos. Um deles foi a missa de Primeira Eucaristia
dos ciganos do acampamento, realizada em quinze de agosto de 2012, na Paróquia de Nossa
Senhora do Amparo. Neste dia, inclusive, vigora um feriado católico no município.
Fotos autorizadas.
Shon 39 Paraíba 20 04 - - -
Prama 36 Minas 15 03 - 01 -
gerais
Thierain 16 Minas 15 01 - - -
gerais
Kambulim 20 Minas 18 02 - - -
gerais
Nazar 40 Minas 13 02 - - -
gerais
Fonte: Entrevistas realizadas em 2012.
Uma das depoentes tem um filho adolescente adotivo, que reside em sua barraca,
seguindo os costumes e a tradição cigana. Percebemos, à luz do depoimento aqui reproduzido,
o processo de aculturação da criança que passa a conviver no ambiente cigano.
Aquele moreninhozinho ali não é cigano, é meu porque eu peguei pra criar,
peguei aqui em Tanguá, entendeu? Peguei grande já, mas é um amor de menino;
não gostava de ir pra escola, não gostava de estudar, não gostava de nada; tem
que ir, eu faço ir à força, fica rebelde mas vai, tem que ir. (Prama)
O acampamento cigano em estudo, como já foi dito, está fixado há cerca de quinze
anos em Tanguá. O número de mulheres encontradas no acampamento é variável e não
obedece a parâmetros estáticos. Muito pelo contrário, a presença feminina se caracteriza pelo
dinamismo, devido à prática de deslocamento para outros acampamentos. Essa mobilidade,
por sua vez, é motivada por encontros familiares ou pela procura de localidades propícias ao
sustento.
De acordo com o depoimento aqui reproduzido, o tempo de permanência em cada
localidade é definido pela oportunidade de trabalho local e a consequente possibilidade de
obter renda. A aceitação social daí advinda também surge como um requisito de análise, tanto
para a escolha quanto para a permanência no local.
O tempo que tá dando dinheiro aqui tá dando dinheiro; a gente fica dois, três,
quatro anos; se não dá, vamos dizer assim, se a gente chegou e viu que o lugar é
ruim, levanta a lona semana que vem. E vai pra outro lugar. A gente vai,
primeiro analisa, os homens procuram, levam as mulheres; se tá bom aí, a gente
fica, se ali não for legal por problemas, até de problemas de pessoas trazer
problemas com a gente, a gente já parte pra outra, entendeu? Vai pra outro,
entendeu? (Shon)
Foto autorizada.
As depoentes de nosso estudo não são naturais do Rio de Janeiro. Quatro delas são de
Minas Gerais e uma é natural da Paraíba. A idade das mulheres variou entre 16 e 39 anos.
Devido ao modo de vida cigano, podemos observar a presença de três gerações, configurando
ao estudo um caráter transgeracional.
Quadro 04: Fatores Tecnológicos.
P N Carro Ônibus G F F A T D L F M V C T
Poço Água Rede Animal
r s v e l G c
P Mi En cavalo
Shon X - X X X - X X X X X X X - - - - X X X
Prama X - X X X X X X X X X X X X X X X X X X
Thierain X - X X X - X X X X X X X - X X X - - X
kambulim X - X X X - X - X X - - X - - - - - - -
Nazar X - X X X X X - X X X X X X X X X - - X
Legenda: E: elétrica; P: possui; NP: não possui; Mi: mineral; En: encanada; G: geladeira; F: fogão; Fr:
forno; As: aparelho de som; Tv: televisão; D: DVD; L: liquidificador; Fe: ferro de passar roupa; Ml:
máquina de lavar roupa; VG: vídeo game; C: computador; Tc: telefone celular.
É possível perceber que as depoentes de idade mais elevada, de gerações anteriores,
dispõem de mais aparelhos eletrodomésticos e utensílios em suas barracas. As ciganas mais
novas têm menos objetos.
Um fato significativo identificado no acampamento diz respeito ao ato de cozinhar das
mulheres. Ainda que possuam fogão a gás, elas dão preferência ao cozimento dos alimentos
em fogão a lenha. A preferência se dá porque, segundo elas, existe uma diferença no sabor do
alimento preparado pelo método mais tradicional. As depoentes informaram ainda que a lenha
utilizada consiste de gravetos encontrados no chão da própria localidade.
Fotos autorizadas.
Fotos autorizadas.
Nós somos ciganos, mas somos pessoas que acreditam em imagem de santo, não
barraca,
tem seuacreditar
como não manto porque
foi colocado sob
nós somos a cabeça
católicos, da
entendeu? (Prama)
imagem
Aí de algo,
nós quer Jesusnós
Cristo.
pede a Deus. Aí, vamos botar, eu tenho uma imagem ali de
Jesus Cristo e de Nossa Senhora Aparecida; aí, o que acontece se eu preciso de
algo que tá me aborrecendo, eu preciso de que algo bom aconteça? E que não tá
acontecendo. O que eu faço? Eu vou pedir a Deus e vou pedir aquela imagem pra
me ajudar, entendeu? (Prama)
Os ciganos gostam muito de cumprir promessa; “olha minha santa, se você me
ajudar nisso e se isso acontecer, vou visitar os seus pés em Aparecida do Norte,
vou andar de joelho, vou subir escada”. O cigano sempre cumpre as suas
promessas, entendeu? E sempre quando a gente pede, a gente também recebe,
entendeu? (Prama)
Indicadores de Indicadores
Estranho como um Amigo
(amplamente Estável (visões
éticos ou visões de Dados Anotados largamente Dados Anotados
estranhos) “emic” ou
interiores)
Informante (s) ou pessoas são: Informante (s) ou pessoas são:
1. Ativo para Apresentaram certa resistência 1. Menos ativo Com o passar dos dias consegui
proteger-se e a quanto a minha presença no para proteger-se. autorização para entrada no
outros. Eles são acampamento. Eu só era Mais confiante acampamento, após observação da
“guardiões de autorizada a comparecer na nos pesquisadores minha postura enquanto visitante.
portão” e protegem companhia de representantes da (seu “guarda-
contra intrusões de União Cigana do Brasil. Com portão é baixo ou
fora. Desconfiado e requisitos exigidos de normas de nenhum”). Menos
questionador. convivência. As precauções desconfiado e
alegadas estavam relacionadas menos
com o comportamento questionador do
inconveniente de visitantes que ali pesquisador
foram com finalidades de estudo,
mas, posteriormente,
demonstraram outras intenções
fazendo afirmações pejorativas.
2. Observador ativo Todos os ciganos posicionaram-se 2. Menos No decorrer das visitas as
e atento às coisas relativamente próximos ao observador às entrevistas já ocorriam de forma
que o pesquisador entrevistador e das depoentes, palavras do livre; alguns maridos inclusive
faz e diz. Sinais demonstrando exercer certa pesquisador e saíam a serviço ou para fazer
limitados de relação de proteção para com a suas ações. compras, deixando-me a só com a
confiança no entrevistada. Maiores sinais de depoente.
pesquisador ou confiança e de
estranho. aceitação de um
amigo novo.
3. Cético quanto Questionamentos frequentes sobre 3. Menos Já respondiam as entrevistas, sem
aos motivos e os motivos da pesquisa. questionador dos questionamentos, aguardando minha
trabalho do motivos ou razões chegada ansiosos.
pesquisador. Pode do pesquisador.
questionar como Sinais de
serão usados os solidariedade e
resultados pelo ajuda ao
pesquisador ou pesquisador como
estranho. se fosse um
amigo.
4. Relutante em Falas mais evasivas, certo temor 4. Disposto a Revelaram alguns segredos
partilhar segredos de serem mal interpretados. partilhar os culturais, demonstram confiança no
culturais e visões Ficavam mais à vontade no segredos culturais pesquisador.
como decorrer das entrevistas. e do mundo
conhecimento particular, Falam mais do que o esperado,
privado. Protetor informações e partilham estórias que ensinam
de modos de vida experiências. valores morais.
locais, valores e Oferece as
crenças. Provação maiores visões
de desgostos pelo locais, valores e
pesquisador ou interpretações,
estranho. espontaneamente,
ou sem
comprovação.
5. Desconfortável Uma depoente negou-se a ser 5. Sinais de estar Fui convidada a participar da missa
em tornar-se amigo entrevista, nem todos os ciganos e confortável, de primeira eucaristia dos ciganos
ou confiar em um adolescentes falaram comigo, apreciar os na paróquia de Nossa senhora do
estranho. Pode observei certo distanciamento. amigos e Amparo, em Tanguá, realizada no
chegar tarde, estar compartilhar dos dia 15 de agosto, sendo este dia
ausente ou até relacionamentos. feriado católico no município.
mesmo retirar-se, Estar presente, na
às vezes, do hora, pontual, e
ambiente onde demonstrar ser
interage com o um amigo
pesquisador. verdadeiro.
6. Tende a oferecer Não podia ter acesso aos ciganos 6. Quer pesquisar No final da coleta de dados eu
dados inexatos. sozinha, sendo esta a primeira “verdades” para recebia ligações informando que
Modifica regra de convivência. Só com a observação mais uma cigana tinha acabado de
“verdades” para presença da UCB. Estratégia acurada, crenças, chegar ao acampamento e estava
proteger-se, a funcionou como uma forma de pessoas, valores e disposta a participar da entrevista.
família, a proteção aos ciganos que, até modos de viver.
comunidade e os então, não tinham identificado Explica e
modos de vida tanto meus reais interesses quanto interpreta ideias
culturais. Os meu respeito pela comunidade. “emic” de modo
valores “emic”, que o pesquisador
crenças e práticas tenha dados
não são partilhados acurados, exatos.
espontaneamente.
Fonte: Diário de campo.
Unidades Temáticas
1. Passar necessidade de fome
2. Valorização do idoso
3. Cuidado profissional
4. Cuidado com a criança
5. Cuidado com a mulher
6. Crenças, misticismo e superstição
7. Cuidado popular
8. Transgeracionalidade
9. Longevidade
10. Diferenças culturais
11. Segredos culturais
12. Amamentação e desmame
13. Preconceito
14. Educação
15. Castigo e disciplina aos filhos
16. Modernização
17. Distanciamento cultural
18. Vestimentas e decotes
19. Religiosidade
20. Festividades
21. Gênero e perpetuidade da raça
22. Casamento
23. Essência cigana
24. Relação sexual
25. Liderança
26. Civilidade
27. Modos de vida
Após a síntese das unidades temáticas procedemos à fase de sua codificação nos
seguintes núcleos temáticos:
Cuidado da criança
Cuidado da mulher
Cuidado popular x profissional
Modos de vida
Aspectos transgeracionais
Com base nos núcleos temáticos foi possível, então, desenvolver a seguinte categoria
analítica:
O cuidado com a criança cigana neste estudo caracteriza-se por ser um conjunto
de ações que envolvem o cuidado popular e o profissional. Após meu contato com esta
cultura, observei que, dentro do seu contexto de vida, a criança cigana recebe o cuidado,
sendo assistida pela família e, principalmente, pela mãe.
Chrisman, citado por Helman (2009), afirma que entre a maioria das populações
as mulheres são as principais provedoras de serviços de saúde, e normalmente são as mães
ou as avós que diagnosticam a maior parte das enfermidades comuns e as tratam com os
materiais disponíveis. Isto foi observado durante o período de coleta de dados, uma vez
que o cuidado com a saúde no grupo fica a cargo das mulheres, sendo a mãe a figura
central no cuidado prestado às crianças. A mãe recebe em algumas ocasiões a ajuda das
bisavós, avós e tias, dentro de uma visão transgeracional. Afinal de contas, trata-se de uma
cultura voltada para a manutenção de suas tradições, saberes e práticas em geral.
Setor informal – É neste setor que se dá o cuidado primário à saúde de fato. Afinal, a principal
arena da assistência à saúde é a família. No seu âmbito, a maior parte das situações de falta de
saúde é identificada e tratada.
Setor popular – É composto por curandeiros que não pertencem ao sistema médico oficial e
ocupam uma posição intermediária entre os setores informal e profissional. Tais indivíduos se
especializam em formas de cura sagradas ou seculares, ou em uma mistura de ambas. Existem
variações entre os curandeiros e estes podem ser especialistas puramente seculares como
parteiras, pessoas que tiram dentes e até curandeiros espiritualistas e clarividentes. A maioria
dos curandeiros populares compartilha os mesmos valores culturais e a mesma visão de
mundo. (Helman, 2009)
De acordo com a fala da depoente aqui reproduzida, percebe-se que os partos de sua mãe
foram realizados por sua avó dentro das barracas.
Os partos da minha mãe foram tudo feito com parteira que foi minha avó lá no
interior da Paraíba, dentro da barraca, então era feito assim. (Shon)
Reza é tipo com ervas, geralmente e uma pessoa, mais velha no acampamento
que têm esse dom né, reza a criança pra quebranto pra essas coisas assim,
barriga ruim né, diarreia, pra isso, entendeu. (Shon)
Para Helmam (2009), na maioria das sociedades, as pessoas que sofrem de algum
desconforto físico ou emocional contam com diversas formas de ajuda, seja por conta própria
ou por meio de outras pessoas. Desta forma, variados modos terapêuticos coexistem e podem
estar baseados em premissas completamente diferentes podendo, assim, se originar de
diferentes culturas. Denominamos então de pluralismo o fenômeno em que há uma variedade
de opções terapêuticas disponíveis em uma sociedade.
Tal pluralidade mencionada por Helmam (2009) é percebida no modo de vida das
depoentes naquilo que diz respeito aos comportamentos, padrões e expressões de cuidados
relacionados à saúde. É possível afirmar, assim, que as questões relacionadas ao processo
saúde e doença, de acordo com a avaliação cultural das mulheres cuidadoras, circulam pelos
três segmentos sugeridos por Kleinman (1978). No entanto, a maior parte da assistência à
saúde no setor informal se dá entre pessoas que já estão ligadas entre si por laços de família,
amizade ou vizinhança ou porque pertencem a organizações religiosas e profissionais. Ou
seja, tanto o enfermo quanto a pessoa que cura compartilham pressupostos semelhantes sobre
saúde e doença. Aliás, a ocorrência de equívocos e desenvolvimentos entre essas pessoas é
relativamente rara.
A gente cuida assim pra caso de falta de imunidade; a gente não tem contato
assim com muita doença, perto de pessoas, muito perto, entendeu; pra gente, já
tem uma certa proteção. (Shon)
A gente coloca quase todas as crianças recém-nascidas; a gente não tem aquele
cuidado assim de proteger muito porque eles têm que ter contato direto com a
natureza, entendeu? Tipo andar a pé, lidar com bicho no quintal pra pegar
imunidade, a gente não protege muito não, até porque vive no tempo né?
Tempestade, enchente quando meus filhos vieram pra cá. (Shon)
Foto autorizada.
Uma experiência vivida por uma depoente ilustra bem a situação. Seu filho
prematuro necessitou de intervenção hospitalar, de onde se depreende nitidamente a inter-
relação entre os valores e a busca do cuidado profissional associado ao cuidado popular e
informal.
Ele nasceu prematuro demais, meu filho maior, mais velho nasceu muito
prematuro, nasceu em coma, ficou em coma, teve quatro doenças graves; que
entrou em quatro vezes em coma também, foi horrível, então teve que ter toda
atenção né? Então quando ele foi liberado pelo médico, das medicações que o
médico passava a gente começou a tratar com ervas entendeu? Então foi tomado
ervas pro pulmão dele pra fortalecer o pulmão, foi pra cicatrizar um hematoma
que ele teve devido há muito tempo ficar de cama, entendeu? Tudo isso ligado a
ervas que era, a gente usava muito, é aroeira né? Pro pulmão, a gente usava
muito é leite com saião essas coisas toda, tudo pra tirar a secreção de dentro, ele
teve uma pneumonia muito grave e uma septicemia, depois da septicemia ele teve
meningite, aquela bacteriana, entendeu? Tudo isso. Foram quatro comas
quando recém-nascido. A minha primeira gravidez foi muito complicada, do meu
primeiro filho né? Eu tive varias complicações, eu tive que, eu parti pra um
hospital, eu tive risco de morte né, e ele nasceu prematuro demais, meu filho
maior, mais velho nasceu muito prematuro nasceu em coma (Shon).
Doenças mais simples assim, tipo normais. Verme né, que a gente trata, febre que
é normal também, uma hora ou outra que acontece um câncer né? Meu filho
tem, tá tratando, já se recuperou, mas tá fazendo tratamento de outro tipo de
câncer, que é leucemia, mas aí só no médico mesmo. (Shon)
As crianças cigana, quando nascia com icterícia, ficava com icterícia, aquele
amarelão, a gente usava muito era cabelo de milho, era muito usado no banho e
chá de picão, entendeu? Até meu filho, quando ele tava internado na UTI,
recém-nascido, ele teve esse amarelão que não curava, os médicos não
conseguiam curar e colocava ela na luz NE; mas não conseguia. Aí minha mãe fez
um chazinho e mandou eu levar pra maternidade, eu dava escondido pra ele e ele
se recuperou, mas o médico nem sabe que foi o chá que minha mãe mandou. A
gente fazia escondido né? (Shon)
Todo mundo faz, a gente leva, às vezes atrasa um pouquinho, mas vai lá, acerta
tudinho, não deixa as crianças sem vacina não. (Shon)
Vacina eu vacino no posto, tem todas; mas, sábado, ele tem outra pra tomar, todo
mês eu levo ele no posto; pediatra, vacino direitinho. (Thierain)
Para Queiroz (2003), o uso de espécies vegetais com a finalidade de tratar doenças
é tão antigo quanto o homem e o tem acompanhado por muitos milênios em todas as
sociedades e culturas conhecidas. Com o desenvolvimento do paradigma positivista
mecanicista da medicina, o foco dirigido ao mundo vegetal, enquanto possibilidade
terapêutica foi diminuindo progressivamente. E esse fenômeno se deu na razão exata em que
crescia, na ciência, uma atitude contrária à natureza e a qualquer tipo de saber popular.
Um estudo desenvolvido por Barata (1997) aponta que o Brasil comporta a maior
flora do mundo, concentrada principalmente na Amazônia e na Mata Atlântica. Há cerca de
55 mil espécies vegetais, sendo 33 mil só na Amazônia, amplamente inexploradas. Destas, 10
mil seriam medicinais. O autor afirma que a população rural brasileira, em geral, e os
indígenas, em particular, conhecem e utilizam muitas centenas de plantas. Com o processo de
aculturação, diz ele, passou a ser um empreendimento de suma importância resgatar esse
conhecimento. “A lógica popular, muitas vezes, não reconhece os componentes naturais,
sobrenaturais, sociais e individuais contidos em cada ação terapêutica”, assinala Barata.
Já para Queiroz (2003), o uso de fitoterápico ocorre por meio de um saber que não pode ser
dissociado da cultura popular e da tradição milenar que os povos trazem em seu modo de
vida. Esse saber empírico, inclusive, é fundamental para o desenvolvimento científico da área.
As ervas que a gente usava seria assim: pro pulmão o que a gente usou pra ele,
pra fortalecer era saião, leite de vaca pura! Não podia ser esses industrializados
não e foi cuidado também muito com leite de cabra, por muito tempo ele usou
leite de cabra. (Shon)
Pra gripe é hortelã, é casca de limão, é mel pra poder fazer chá, aí mistura tudo e
faz aquela xaropada, aí dá pra criança tomar aí a criança melhora. (Thierain)
A gente usava muito erva passarinho que é pra verme; fazia isso pras crianças,
pra quando quiser expulsar verme, erva passarinho. (Shon)
Se você acha na rua, por acaso, a ferradura de um animal, cê conta, se ela tiver
sete buracos, cê não deixa ela lá não, cê pega ela, leva e bota lá na sua casa, por
que é muito raro uma ferradura de sete buracos. Seis não vale, tem que ser sete,
nem se passar de sete também não vale. (risos) (Prama)
Pra nós, a ferradura que tem sete buraco significa a ferradura da sorte; então,
todos os pingentes que faz e bota no cordão, se for ferradura de cavalo, aí faz ,
manda fazer de sete buraco. (Prama)
Fotos autorizadas
Figura 14 - Uso de cordão com pingente de ferradura com sete buracos, brinco com
estrela e ferradura também com sete buracos.
Segundo Helman (2009), algumas culturas possuem manobras ritualísticas que
surgem em momentos de infortúnios inesperados, tais como acidentes ou problemas graves de
saúde. Tais rituais de cura ocorrem, normalmente, em público, em contraste marcante com a
privacidade e o caráter confidencial que caracterizam a consulta médico-paciente no mundo
ocidental. “O objetivo desses rituais públicos é restabelecer, de maneira visível, a harmonia
nos relacionamentos entre os homens, dos homens com as deidades e dos homens com o
mundo natural”, assinala o autor.
A gente evita muito também que os males das crianças vêm de alguma energia
negativa né, a gente acredita nisso, então quando meu filho tava internado, a
madrinha, isso é muito feito por madrinha, a madrinha vai, ela a madrinha da
criança né, vai pro hospital, vamos dizer assim, no sétimo dia, vamos dizer assim;
tem sete dias que ele tá internado, são várias madrinhas, mas a principal que
coloca no colo, ela leva nove ovos pra maternidade; aqueles ovos é passado na
criança, depois daquilo a gente vai para uma estrada bem longe e que faz um
ritual pra poder a doença ir embora, é bater e valer, certinho. Tirei um filho de
dentro de um CTI assim. (Shon)
Helman (2009) faz observações interessantes no contexto das teorias leigas. O autor
considera que as causas das enfermidades podem estar ligadas ao mundo social no qual o
indivíduo vive. Tais causas, segundo ele, são atribuídas a pessoas que são culpadas pelos
problemas de saúde das outras. O mau-olhado, por exemplo, é uma condição em que
algumas enfermidades e outras formas de infortúnio são atribuídas a malevolências
interpessoais, sejam elas conscientes ou inconscientes.
O mau-olhado faz parte de culturas de grupos europeus, africanos e asiáticos, e tem
sido relatado como etiologia de algumas enfermidades, sendo conhecido também por olho-
grande, olho-gordo, ou simplesmente olho.
Spooner, citado por Helman (2009), também define as principais características do
mau-olhado. De acordo com ele, o fenômeno “tem a ver com o medo da inveja que está
contida no olho do observador, sendo que a influência é evitada ou contra-atacada por meio
de artifícios que distraiam a atenção deste olho observador, por magia de simpatia. O mau-
olhado, assim, pode causar vários tipos de problemas de saúde, sendo que o emissor (a pessoa
que o lança) geralmente prejudica os outros sem a intenção de fazê-lo. Ele muitas vezes
ignora seus poderes e é incapaz de controlá-los”, explica o autor.
O depoimento reproduzido na sequência evidencia a crença de que possíveis danos
podem ser causados às crianças ciganas em decorrência do mundo social em que elas vivem.
E, como já foi visto, a causa desses danos está centrada em outras pessoas. Chamamos
atenção também para a descrição dos artifícios utilizados para afastar e eliminar o agente
causador, o chamado “olho”.
Quebranto é olho, né, às vezes a criança assim muito bonita né, às vezes até o pai
e a mãe mesmo põe o quebranto. Reza muito com ervas, com terço, com ervas,
entendeu? A gente cospe no chão pra mandar algum mal pra fora, geralmente a
gente cospe muito no chão até quando a gente vai admirar uma criança a gente
faz assim: (neste momento, a entrevistada demonstrou e soprou duas vezes) pra
não botar olho grande nela, tipo assim a gente, se a gente vê uma criança muito
bonita ne? Na mão de outra cigana, a gente fala assim: benza a Deus pra não
botar quebranto nela, são superstições, no rosto da criança. Qualquer criança
que a gente admira, de cigano. Ou então faz assim na orelha também (neste
momento ela também gesticulou), é um ritual, isso aí pra poder tirar o
quebranto. (Shon)
Botamos fita vermelha nas crianças, nos cabelos entendeu? Pra tirar o olho
grande fita vermelha, tanto menino quanto menina, tá. Geralmente, menino com
trança a menina fica amarrado o cabelo. (Shon)
Uma outra questão foi observada na fala a seguir. Ao ser questionada sobre o
número de filhos que têm, a cigana nunca fornece a resposta certa. A entrevistada, neste caso,
acrescenta números interpostos entre o numero de filhos que, em sua concepção, representam
cachorros. De acordo a sua crença, se algum infortúnio vier a acontecer com um de seus
filhos, o cachorro imaginário será atingido, preservando, assim, a vida de seu filho.
O número de filhos a gente sempre bota o cachorro no meio porque se tiver que
levar leva o cachorro entendeu? Então toda cigana quando você perguntar, toda
cigana fala quatro filhos e quatro cachorros no meio entendeu? É uma
superstição nossa. (Shon)
Tudo feito na hora com reza; quando a criança virava na barriga, a minha avó
fazia uma reza, tocando a barriga da minha mãe ou de umas das minhas irmãs; a
criança virava na mesma hora e o parto tava feito; e, geralmente, quando as
crianças ciganas, quando ela nasce laçada, a gente dá o nome de um santo
entendeu? A criança, tá laçada, né, com cordão, então corre o risco de morrer
né? (Shon)
Então, quando consegue tirar, quando consegue tirar da barriga, a criança,
quando nasce roxa, a gente dá o nome de um santo; no caso, meu irmão
aconteceu isso, então a minha mãe colocou o nome dele de Inácio, Santo Inácio;
pro resto da vida dele, ele tem dois nomes: o nome verdadeiro e o nome que
colocou o nome dele de Inácio, então nós crescemos com nome dele de Inácio, na
verdade o nome dele não é esse. (Shon)
Quando uma criancinha cigana tem alguma... Aconteceu com meu irmão, meu
irmão era pequeno tinha uns sete anos, assim era muito danado, né? Meu irmão,
muito levado, subiu numa árvore muito alta pra pegar uns cocos lá, né? A minha
mãe não tava vendo não, minha mãe tinha saído e tava voltando; ele caiu de
cabeça, quando ele caiu assim abriu, caiu massa cefálica do meu irmão assim no
chão; as galinhas que a minha mãe criava foi tudo salpicando e picou a cabeça
dele aí na mesma hora, até hoje a cabeça dele é funda, minha mãe fez um negoço
na hora. Aí ele teve convulsão na hora. Aí ele com a convulsão, aí minha mãe foi
rasgou a roupa dele todinha, na hora rasgou, chamou o nome dele de um santo e
tocou fogo ali, ele aqui tendo convulsão e o fogo ali tocando, nunca mais meu
irmão teve uma doença dessa. Hoje ele é casado, é pai de família e tudo. (Shon)
É reza, bota fogo na roupa e muda o nome da criança, chama de um santo, aí a
gente passa a chamar com o nome daquele santo e não mais o nome verdadeiro
dele. (Shon)
Torres é um dos poucos autores que se debruçam sobre o tema. Ao dar a primeira
mamada ao filho, a mãe cigana sopra no ouvido da criança seu nome mais secreto. Mais tarde,
a mãe apresenta um nome com o qual a criança será conhecida pelos clãs. Há, ainda, um
terceiro nome que ela irá usar somente no mundo dos gadjos (não ciganos). O segredo do
primeiro nome é mantido até que ela complete a idade apropriada. De acordo com Torres
(2004), caso a mãe morra antes, o segredo é levado com ela, garantindo a segurança do filho
contra magias malignas que possam atingi-lo.
Ciganos têm dois, três nomes. O nome que ele usa é popular. O nome que
divulga. O nome que só eu que sei, só sei eu e minha mãe. Porque na hora do
parto é pra trazer uma proteção assim pros ciganos, né? Assim que o neném
nasce a mãe sopra um nome no ouvido dele, né? Aquele nome só fica entre ele e a
mãe (Shon)
Meu nome só sabe eu e minha mãe, nem o marido sabe. (Shon)
O nome que a gente soprou no ouvido é prá proteção deles então eles só sabem
quando faz dezoito anos; eu só vou passar (aos filhos) aos dezoito anos, entendeu?
é coisa antiga, muito antigo né? (Shon)
O nome de segredo entre mãe e filho na hora do parto. A mãe sopra no ouvido na
hora do nascimento, e diz quando tem dezoito anos. (Shon)
Na minha família tinha, todo filho da minha mãe que nascia era apresentada a
lua; todos eles, eu não sei porque que cargas d’água foi que minha mãe falou que
eu fui a única filha que fui apresentada a lua e ao fogo, porque no dia em que eu
nasci era dia de são João então era acostumado na minha família, todo ano, todos
os ciganos tem devoção com algum um santo né? (Shon)
Então na minha família é Nossa Senhora Aparecida, São Jorge e São João
Batista, e justamente no dia que eu nasci então eu fui batizada na fogueira dele,
entendeu? Isso é um ritual que eles faziam lá no nordeste. Entendeu? (Shon)
Ainda segundo Torres (2004), quando o neném nasce, o ritual do primeiro banho
é esperado e preparado com ansiedade. A cerimônia é chamada de “Banho de Prosperidade” e
é realizada depois do banho de higiene normal. O bebê é colocado em outra banheira com
água limpa, onde são colocadas pétalas de rosa brancas, jóias de ouro em grande número e
gotas de mel. Este banho tem um simbolismo importante de sorte, prosperidade e serenidade.
Com relação ao tema, percebemos durante as entrevistas que o banho pode ser
utilizado para várias finalidades. Observamos nele uma re-significação. No grupo aqui
estudado este ato corriqueiro não tem apenas fins higiênicos. Ao contrário, o banho se
apresenta com um caráter curativo e protetor. Ele representa votos de sorte e desejo de bons
presságios e bom temperamento.
Quando é menina moça, é sempre bom você botá uma rosinha branca, uma rosa
vermelha, é sempre bom entendeu? É bom, é bom pra dá sorte, se for menina é
bom pra ter uma sorte boa; pra ser uma menina calma quando tiver maior,
porque as meninas mulher elas são muito regateira, vamos dizer assim. Você
bota rosa, um perfume que você gosta muito, você coloca uma gotinha de
perfume que seja de rosa, uma pedrazinha de cravo também junto. Aí cê dá o
banho da menina moça, ela vai crescer uma menina de sorte. (Prama)
Vai ser uma menina calma, meiga, entendeu? (Prama)
Tem gente que até os trinta dias, quando o bebê tá, o neném tá bem novinho, não
coloca roupa amarela, nem enrola no cobertor amarelo, pra não pegar tirícia. Aí
não coloca roupa amarela, nem coberta amarelo, pra não pegar tirícia. Se pegar
tirícia, cuida com picão, dá banho no picão, um pouquinho dá pro bebê e coloca
na água pra dá banho. (Kambulim)
O seio da cigana fica sempre de fora, por quê? A cigana prá muita gente aí fora,
prá muita gente aí fora, eles acham que o peito de fora significa assim.... como é
que eu vou dizer, é sexo, que todo muito gosta de olhar. Nós não nos importamos
com isso, pra nós significa é você dar alimento pros seus filhos, então nós não tem
pudor de tirar o peito em qualquer lugar que nós esteja e botar na boca do filho
pra mamar, entendeu? Prá nós não tem disso, o mundo lá fora já não pensa
assim, mas prá nós, nós não importa, é por isso que tá usando sempre com o peito
de fora.(Prama)
Algumas depoentes, por exemplo, são obrigadas a sair de suas barracas para ir às ruas
em busca de sustento ainda no período puerperal. Esse componente de ordem sócio
econômica dificulta a prática de aleitamento preconizada pela Organização Mundial de Saúde.
Além disso, estimula o desmame precoce e a consequente introdução de outros alimentos na
dieta dos bebês ciganos.
Segundo Helman (2009), o número de mulheres que amamenta diminuiu na maioria
dos países do mundo no século XX. Essa diminuição do aleitamento materno já foi descrita,
inclusive, como uma das maiores crises nutricionais do mundo contemporâneo. Diversas
razões foram alegadas para a mudança do seio para a mamadeira. As mais costumeiras são a
urbanização, o desmantelamento da família extensa e o crescente número de mulheres que
trabalham fora de casa. A experiência relatada na sequência confirma a avaliação.
Ainda de acordo com Helman (2009), o cuidado com a alimentação dos bebês é uma
das preocupações centrais de qualquer grupo humano. Contudo, existem grandes diferenças
nas técnicas de alimentação dos bebês, na utilização do seio materno, da mamadeira ou de
alimentos artificiais. Assim como em termos da idade e da técnica de desmame.
Amamentação a gente fica um pouco em casa, vamos dizer assim, um mês dois
meses em casa. Depois a gente vai prá rua, entendeu? Quando pode levar a
criança, a gente leva. Quando não, não tem como deixar, né? Aí tem que ficar
mesmo. Leite materno, logo cedo. A criança começa a comer muito cedo, começa
a comer comida mais sólida com três, quatro meses, entendeu? (Shon)
No primeiro mês, só leite, só leite materno, dependendo se a criança tiver
problema; porque tem criança que rejeita leite materno né? A gente passa dar
leite de cabra, essas coisas toda; industrializado também, se precisar a gente dá.
(Shon)
Helman (2009) afirma ainda que, em qualquer país ou comunidade, existe sempre uma
gama de fatores – sociais, culturais, pessoais e econômicos – que influenciam a mulher a
amamentar ou não seus bebês e por quanto tempo. Essas variantes influenciam também como
ela explica para si própria e para os outros um fracasso na amamentação e como ela desmama
o seu bebê.
A busca das mulheres ciganas por fonte de renda se caracteriza pelo oferecimento, ao
público em geral, da leitura de mãos, adivinhações e previsões em troca de quantia em
dinheiro. Como essas práticas ocorrem nas ruas, as depoentes sinalizaram que esta luta pela
sobrevivência é encarada de forma discriminatória pela sociedade e até por autoridades
policiais. Isso acontece, na opinião delas, porque muitas vezes as mulheres necessitam levar
consigo seus filhos por conta do cuidado materno. Ainda por conta da amamentação, em local
público, sobrevém o preconceito e elas acabam sendo confundidas com pedintes que se
aproveitam de crianças para praticar atos de mendicância. Considerando os aspectos judiciais
que permeiam esta questão – até porque esta atitude pode implicar na perda da guarda da
criança – é possível entender porque as mulheres deixam seus filhos sob o cuidado de outras
mulheres e interrompem a amamentação saudável.
Para Natasha (2005), muitas ciganas já não vão mais às ruas para cumprir um ritual
cigano passado de geração em geração – a leitura das mãos. De acordo com a autora, elas
estão vivendo em um novo tempo e tiveram de se adaptar à evolução dos costumes.
Mama até hoje, ele mama no peito e come comida. Com três meses eu comecei a
dar comida a ele, foi porque meu leite tava muito ralo e ele não bebia aquele leite
de criança, leite ninho que fala. (Thierain)
Aí eu fui e comecei a dar caldo de feijão prá ele com três meses, ele aceitou a gora
ele tá comendo. Come danoni, come comida, come qualquer coisa. Quem me
ensinou a dar comida com três meses foi a tia do meu marido. Agora eu vivo lá
em Minas Gerais com a família dele. (Thierain)
Foto autorizada
Figura 15 - Cigana amamentando
seu filho com 1ano.
A literatura oficial é rica sobre o tema. Segundo o Ministério da Saúde, o gasto médio
mensal com a compra de leite, para alimentar um bebê nos primeiros seis (6) meses de vida
no Brasil, em 2004, variou de 38% a 133% do salário-mínimo, dependendo da marca da
fórmula infantil. Acrescente-se, ainda, a esse gasto, os custos com mamadeiras, bicos, gás de
cozinha, além de eventuais gastos decorrentes de doenças, que são mais comuns em crianças
não amamentadas. Não amamentar pode significar sacrifícios financeiros para a família,
sendo que essa economia nos gastos poderia ser utilizada em outras despesas do núcleo
familiar, proporcionando, assim, um maior bem estar social. (BRASIL,2012)
Para contemplar esse padrão de qualidade, as equipes de saúde devem, entre outras
coisas, conhecer os dez passos para a alimentação saudável de crianças menores de dois (2)
anos. São eles: promover o aleitamento materno e a introdução de outros alimentos saudáveis;
recomendar o aleitamento materno exclusivo até os seis (6) primeiros meses de vida da
criança e, a partir do sexto mês acrescentar a alimentação complementar, compreendendo esse
processo em seu contexto sociocultural e familiar.
Vou pegando, se é mais velha a gente vai aprendendo, vai ensinando e a gente vai
aprendendo. (Thierain)
Meu pai! vocês não vão acreditar, teve um problema também quando nasceu, do
pulmão; ele tomava o leite de jumenta, era dado a ele leite de jumenta, e ele viveu
até noventa e nove anos e nunca teve problema de saúde. Só quando nasceu.
Minha avó tratava ele com leite de jumenta, engraçado né? Ninguém usa isso
hoje em dia! (risos) (Shon)
Ah, e outra coisa! O umbigo também é tratado com ervas. A gente faz, minha
avó faz um preparado de fumo de rolo, preparado de fumo de rolo, com algumas
ervas do mato, né? O umbigo caía com três dias e não tinha infecção. (Shon)
Aí, quando ela foi embora pra casa dela, o neném dela já tava com um mezinho;
aí já tava com o imbigo caído, aí imbigo do neném a gente não cura como o
médico manda. Nós cura com azeite e pó de fumo. (Prama)
Nós não bota álcool iodado, como o médico manda, ele manda, mas nós não põe
não. (Prama)
Ela (sua mãe) me ensinou a cuidar do neném. Ela me ensinou a dar banho, que
eu não sabia. Ela me ensinou cuida do imbigo, que eu não sabia. É com álcool 70,
limpa com álcool 70, coloca a moeda e enrola a faixinha, que ela me ensino, prá
poder não fica prá fora o imbigo, prá fica bonitinho. O imbigo é, nós lavamos
com álcool 70, né? e a mãe pegou moeda e enrolou aquele gás que compra prá
colocar em machucado, prá
colocar no imbigo e enrolar a faixa, prá quando chorar, o imbigo não saí pra fora
e não fica grande, tipo uma bola pra fora, aí fica bonitinho, redondinho, pra não
ficar feio. (Thierain)
Aí ela (a tia do marido) me ensinou a dar comida a ele; e quando ele fica doente,
que precisa, que fica gripado ela faz remédio. Ela faz, coloca alecrim, coloca
hortelã, coloca mel, coloca folha de laranja, coloca casca de limão, isso tudo prá
gripe... (Thierain)
Febre é costume dela colocar , molhar o pano com álcool e colocar debaixo do
subaco, aí disse que miora a febre. . (Thierain)
Tipo assim que coloca no ouvido, quando tá com dor de ouvido, ela coloca óleo
quente, um pouquinho de óleo morno, coloca aquela folha de abóbora, esquenta
na colher, tira aquele sumo e coloca dentro do ouvido, pra melhora a dor de
ouvido. . (Thierain)
A erva doce, ela torrou, colocou água, depois ela coou, pegou só aquele sumo e
deu pra ele tomar. . (Thierain)
Tipo um chá, só que torrou a erva doce e deu pra ele, pra poder melhorar a dor
de cólica. Quando ele tava dos dois meses, até cinco meses ela deu prá ele. Até
cinco meses ele sentiu dor de cólica. . (Thierain)
Quando tava assado colocava maisena, ela mandou colocar maisena pura, prá
poder melhorar a assadura. . (Thierain)
Miiller, citado por Moraes e Rabinovich (2010), considera que são os processos
cotidianos no cuidado com o bebê que garantem a continuidade intergeracional. Afinal,
diferentes pessoas, com diferentes conhecimentos, garantem o bem estar e o desenvolvimento
da criança.
Por fim, o nível primário é tido como o mais profundo. Nele, as regras são
conhecidas e obedecidas por todos, mas dificilmente, declaradas. Estas regras são implícitas.
Enquanto o nível terciário pode ser facilmente observado, mudado e manipulado, os níveis
mais profundos são os mais ocultos, estáveis e resistentes à mudança.
Por isso que tem muitas coisa que às vezes vocês vêm fazer uma pesquisa ou uma
pessoa quer fazer uma entrevista aí perguntam, aí tem coisas que a gente enrola e
não fala nada porque são coisas que passou de família pra família, entendeu? De
idade para idade e assim vai indo. Aí não pode falar, aí cê fica quieta, a gente
enrola, fala outra coisa, porque tem coisa que não pode ser dita, é porque já vem
de antigamente, não pode ser explicada nem falada. (Prama)
Tem remédio que é do próprio cigano, entendeu? Tem remédio que é do próprio
cigano, que cura muita das coisas, muitos tipos de doença, mas é o remédio que
não pode ser revelado, porque já é coisa antiga e não tem permissão prá isso,
entendeu?
A gente tem remédio que cura uma ferida que ela tá numa perna de um ser
humano há trinta anos, da natureza. Não tem essas pessoas assim que tem uma
ferida crônica, que ela não sara? A gente tem remédio que cura esse tipo de
machucado. Só que é um remédio da gente, não é permitido a gente dizer: oh! é
essa erva , é essa, é essa, é essa! Porque como a gente passou de geração prá
geração e nunca foi permitido dizer, porque prá muita gente lá de fora, médico
isso e aquilo, isso faz mal, aquilo faz mal, só que prá nós não faz , entendeu?
Então nós prefere não ensinar prá pessoa não fazer e, se mais tarde acontecer
alguma desgraça, foi fulana que ensinou, fez isso, fez aquilo. Aí só fica prá nós.
(Prama)
Ovos brancos todos brancos, mas cru. Aquilo é passado no corpo da criança e
estourado numa estrada com as palavras que a gente fala na hora entendeu?
Que a gente não pode divulgar. (Shon)
Quando tô perto da minha família, mas isso só uma vez por ano, a gente se reúne
uma vez por ano, mas esse ritual a gente não pode falar é uma coisa muito
fechada, não pode falar. .(Shon)
Após analisar os dados colhidos na pesquisa é possível afirmar que o cuidado com a
criança cigana é um conjunto de ações impulsionadas pelo modo de vida, compartilhados
pelas mulheres do grupo. A figura central do cuidado é a mãe e, em seguida, vêm as mulheres
da família. O cuidado é permeado por valores, crenças e práticas transmitidas
transgeracionalmente. Como já foi dito, há uma complementação da assistência entre os
setores informal, popular e profissional. E as crenças nos fatores causadores do infortúnio
podem estar relacionadas ao mundo natural, individual, social e sobrenatural. É possível
ainda enxergar, através das gerações, algumas modificações no modo do cuidado. Isso decorre
de processos de aculturação. Muito embora as tradições sejam preservadas com a manutenção
de alguns segredos culturais.
Subcategoria 1.2 A transgeracionalidade da saúde da mulher cigana na fase
reprodutiva.
Na cultura cigana os limites entre as classes etárias são determinados por questões
culturais como, por exemplo, a separação entre as fases de adolescência e adulta. Nesta fase, a
menina, ao entrar na adolescência, já começa a ser preparada para exercer plenamente os
papéis femininos. Os casamentos entre ciganos ocorrem nesta fase. James, citado por Helman
(2009), salienta que as definições de infância são “socialmente construídas” e, por isso,
tendem a variar bastante em diferentes grupos humanos.
As meninas casam cedo. Eu tenho duas casadas; uma casou com onze anos, a mais
nova. A outra casou com catorze anos, a mais velha. Tá casada há cinco anos.
(Prama)
Porque é assim: casa com onze anos, mas só vai ficar junto com o marido depois que
já tem catorze, quinze anos. Convive junto, vive junto, todo mundo junto. Mas, só
que como é cigano, aí tem o respeito; tanto faz de um lado como do outro, que já
casa sabendo tudo certinho, entendeu? Porque é muito novinha, aí realmente o
casamento, como se diz, o casamento só é consumado depois que ela tem quatorze,
quinze anos. (Prama)
Ainda segundo Helman (2009), assim como a velhice, a definição de infância não
é algo fixo e finito, com base somente em critérios biológicos. Cada uma das classes etárias
compreende mais do que apenas um estágio biológico da vida. “Seu inicio e fim também são
definidos pela cultura, assim como o são os eventos esperados em cada classe”, esclarece o
autor.
A cigana tem a barraca dela no dia em que ela é entregue ao noivo. Naquele dia ela
passa a ser mulher dele, vamos dizer assim. São cinco dias de casamento; no terceiro
dia ela casa, mas ela ainda não dorme com o marido. Ela só dorme no dia da entrega
da noiva. Aí ela passa a ser da família do marido. (Prama)
Casamento acontece com cigano muito novinho, né? Não existe namoro, não existe
nada entre os dois ciganos que estão pra casar. Geralmente as festas acontecem, os
rapazes conhecem as moças de longe; assim aí, chama o pai, se se interessa por
aquela moça pro filho dele, conversa os pais e já marca um casamento daqui um
mês. Aí fazem as festas, entendeu? Não tem namoro não, não existe namoro, não.
Onze, doze, catorze anos, são cinco dias de festa. (Shon)
Já Torres (2004) refere que, na maioria das vezes, o casamento cigano é escolhido
e combinado pelos pais. São levados em conta muitos fatores importantes, como a capacidade
de ganhar dinheiro da noiva e o caráter do homem. A moça, após o casamento, passa a
pertencer à família do marido.
Segundo Moraes e Rabinovich (2010), mulheres que vivem em uma mesma época
tendem a praticar uma cultura coletiva que, de algum modo, aproxima experiências.
É, filha de cigano, mulher, não pode ir em escola, aí porque filha de cigano não usa
namorar, entendeu? Só casa, noiva, casa, e durante esse tempo não pode namorar.
Aí cigana evita de ir prá escola, prá poder não arrumar namorado, aí então, a gente,
filha mulher não vai prá escola. Filha mulher de cigano não vai prá escola, só
homem que pode ir. (Thierain)
Agora tá mudando um pouquinho! Agora já vai. (Shon)
Agora já vai, agora o mundo tá evoluindo, eu não ia, só agora que pode ir. É todo
cigano, entendeu? Aí, minha mãe também não deixava eu ir. (Thierain)
Eu não sei escrever, porque minha mãe não deixou eu ir na escola, entendeu? O meu
pai, por ele, talvez eu até ia, mas por não, prá não deixar nós menina mulher se
misturar com pessoas que não era cigana na escola, prá não aprender coisa que não
precisava, que é assim que ela fala. Aí eu não aprendi a ler e não aprendi a escrever
e não fui na escola. Aí dizer, hoje eu só sei assinar meu nome e o básico, mas
estudar, estudar mesmo eu não estudei. Aí, quer dizer, como eu não fui, agora eu
quero que meus filhos vão bem na escola.(Prama)
Durante os depoimentos notamos que as mulheres das gerações mais antigas
temiam os processos de aculturação. E como estratégia de preservação cultural, lançavam
mão do distanciamento entre crianças ciganas e não ciganas. O motivo é simples: é nesta fase
da vida que o indivíduo está mais propenso a introjetar valores e delinear sua formação
cultural.
Saber ler e escrever prá poder se defender. Hoje em dia é exigido isso. Agora, de ir
prá faculdade é raro o que vai, né? Raro o que vai. (Shon)
Sinto muito, eu quero que meu filho, vai. (Risos) Agora, só resta saber se ele vai
querer, por que ele não gosta de estudar. Mas eu quero que ele vá, sabe por causa
de que? O mundo evolui muito. Não é porque a gente tem uma tradição, não é
porque você ir pra uma faculdade, que você estudar, que você vai deixar de ser o
que você é, entendeu? Por que você não pode ser o que você é e incluir um pouco
mais do mundo lá fora? Então eu quero que ele vai. (Prama)
Segundo Larraia (2001), a cultura tem um caráter dinâmico porque os homens têm
a capacidade de questionar os seus próprios hábitos e modificá-los. No entanto, é possível
entender que as sociedades mais isoladas têm um ritmo de mudança menos acelerado do que
os de uma sociedade complexa, atingida por sucessivas inovações tecnológicas. Esse ritmo
decorre do fato de que a sociedade não está satisfeita com muitas de suas respostas ao meio e
que não são resolvidas por suas soluções tradicionais.
Aí meu filho hoje tá na escola e eu faço questão que ele vá. Se ele não quer ir eu faço
ele ir à força. Aí as meninas hoje também vão pra escola, só que a gente pede prá
não se misturar muito, prá não aprender muita coisa. Nós temos nossa tradição, eles
têm outra. Cada um com a sua vida, claro, cada um com seu modo de viver. Cê vai
brincar, vai conviver com as crianças, nada do que você aprender lá você não vai
trazer prá aqui. O que você vai trazer prá aqui é o seu lápis e o seu caderno, seu
dever de casa. O que você ouviu lá, porque na escola ouve muita coisa, fala muita
coisa, aprende muito palavriado diferente, então eu falo oh! Isso vai ficar lá, não
vem prá aqui não, as crianças vão aprendendo, vão aprendendo a conviver
entendeu?(Prama)
Antigamente, as meninas não iam prá escola, nem os meninos, entendeu? No meio
dos meninos era difícil de acontecer. No meio de trinta crianças tinha dois que ia,
entendeu? Porque aquela família brigava prá poder aquele filho ir porque não era
permitido. Aí hoje, como o mundo evoluiu muito, os meninos sempre estão na
escola, hoje pra nós é lei a criança tá na escola, entendeu? Ela eu não deixei, chegou
ir, porque eu não fui, minha mãe não deixou eu ir e quando eu ganhei também eu
era nova, então eu fui pela decisão da minha mãe.(Prama)
Aí hoje ela não vai mais porque também ela não quer mais; casou, tem filho, não
quer ir mais, mas se ela tivesse solteira hoje eu queria ela na escola; só que o que
passou prá mim eu achei que tinha que criar ela assim. Só que o tempo vai mudando
e cê vai pensando diferente. (Prama)
Prá fazer assim alguns trabalhos espirituais tipo assim, fazer algum trabalho prá
reza de criança, também não é feito, entendeu? Que é um dia que a gente tá
impura mesmo, é uma coisa negativa prá mulher. O homem também não encosta
na gente, tem repulsa. (Shon)
Segundo Larraia (2001), a maior parte das sociedades humanas permite uma
participação mais ampla na vida cultural aos elementos do sexo masculino.
De acordo com Torres (2004), em qualquer grupo cigano, é grande a alegria
contida no nascimento de uma criança porque, como já foi dito, ela é considerada a
continuação do povo. Para a família, é da maior importância quando o primogênito do casal é
homem, pois com ele o pai ganha autoridade e prestígio.
Os meninos são mais bem vistos dentro do acampamento cigano. Quer dizer,
todo homem gosta quando a mulher tá esperando um filho homem né?
Geralmente faz uma festa, a menina já não é tão bem aceita, né? A gente gosta,
eu jamais por filho nenhum, mas geralmente quando nasce um filho homem a
festa é maior. (Shon)
Ao dar à luz um filho primogênito homem, a mulher cigana muda sua posição
dentro do clã, deixando de ser considerada nora, e ganha privilégios iguais aos das ciganas
mais velhas.
A saúde da mulher cigana, por sua vez, também é um complexo que envolve o
cuidado popular e cultural. No que se refere ao período gravídico gestacional, observa-se uma
mudança no modelo de assistência com o passar das gerações.
Geralmente, como é que a gente sabe que tá grávida? Eu senti que eu tava
grávida do meu primeiro filho, tinha certeza que eu tava grávida. Um mês depois
eu fui fazer exame, foi bater e valer, eu senti de alguma forma, não sei te dizer
como, mas descobri. Geralmente a gente sente pelo mal estar, né? Mal estar
normal como qualquer mulher. (Shon)
Depois, confirma gravidez no médico. Porque os ciganos agora estão fazendo pré-
natal. Antigamente não fazia não, minha mãe nunca fez um pré-natal. Mas hoje
em dia, até porque têm muita cigana tendo problema de parto, né? (Shon)
Antigamente era com boa alimentação; a cigana comia bem tudo, comia de tudo,
hoje em dia não é mais, com médico mesmo. (Shon)
A mulher cigana, quando ela tá grávida, ela tem muito mal estar e enjoo; na
minha família, a gente costuma cruzar o homem dormindo, ele dormindo no
chão, eu fiz assim ó! (neste momento demostrou dando um passo como se
estivesse dando um passo por cima do marido); todo negócio que eu sentia, enjoo,
passa tudo pra ele. Toda vez que eu senti enjoo passou tudo pra ele, é bater e
valer. Ele falou “eu tô passando mal,” não sei o quê. Eu dizia “eu não tô sentido
nada” (risos). (Shon)
O episódio mais rico no dia a dia das mulheres ciganas é a participação das
gerações anteriores na assistência ao parto. Essas mulheres, que têm vínculo familiar com a
gestante, são reconhecidas como parteiras.
Segundo Torres (2004), a organização hierárquica dos clãs designa que as avós,
enquanto membros da família, sejam responsáveis pela transmissão de ensinamentos sobre
magia, uso de ervas e pelo cuidado das mulheres grávidas. As gestantes ciganas são cercadas
de cuidados místicos para que a mãe tenha uma boa hora (parto), a criança nasça bonita e a
mulher fique bela após o parto.
Os partos da minha mãe foram tudo feito com parteira que foi minha avó,
lá no interior da Paraíba; dentro da barraca, então era feito assim: os homens
saíam todos do lugar, ficavam só as mulheres, né? Nisso é feito. (Shon)
Na opinião de Araújo e Moura (2004), o papel da mãe, o processo de gravidez e o
parto são construídos social e historicamente.
Estudos realizados por Zola, citados por Helmam (2009), buscam compreender as
razões pelas quais os indivíduos procuram assistência profissional médica. Denominado de
“Caminhos que conduzem ao médico”, o trabalho alinhava uma série de fatores relacionados
a esta procura – entre ele a disponibilidade da assistência, a capacidade financeira de arcar
com custos, o fracasso ou sucesso de tratamento nos setores familiar ou popular e a maneira
como o paciente e as outras pessoas ao redor percebem o problema.
No processo saúde e doença, a definição de quais sintomas são considerados normais e
anormais é arbitrária e escapa ao controle do paciente e de seus familiares. Para Zola, tais
definições dependem de quão comumente determinado sintoma ocorre na sociedade e de
como ele se encaixa nos principais valores daquela sociedade ou grupo.
Ao abordarmos as questões relativas ao parto das depoentes podemos observar
mudanças ocorridas de uma geração para outra, na escolha do tipo de parto. Tais alterações
ocorreram desde a primeira geração, quando os partos eram realizados por ciganas parteiras
dentro das barracas.
A segunda geração optou pelo ambiente de parto hospitalar em unidades de saúde.
Já na geração atual, chamada neste estudo de terceira geração, duas ciganas
programaram o parto cesariana na rede privada. A escolha vai ao encontro dos fatores
apontados por Zola: a grande disponibilidade de assistência em rede privada e a opção do
parto cesariana, a disponibilidade financeira do pai e da família e a percepção que a gestante e
familiares têm de que o sintoma de dor é ocasionado pelo processo de parturição.
Segundo Vadeboncoeur (2012), no Brasil, cada vez mais mulheres dão à luz por
cesariana. Em 2010, mais de uma mulher a cada duas foram submetidas a este procedimento
(taxa em 2010 52%). Isso transformou nos transformou em um dos países que têm as taxas
mais altas de cesarianas. Acredita-se que, muitas das vezes, isso ocorre porque as mulheres
brasileiras pedem, em sua maioria, para realizar uma cesariana. A autora cita uma pesquisa
segundo a qual fatores não obstétricos têm sido, há muito tempo, amplamente associados à
cesariana, seja aqui ou no resto do mundo. No Brasil, estes fatores estão particularmente
presentes no setor privado. O levantamento indica ainda que o número cada vez maior de
mulheres que fazem cesariana em nosso país contribuiu para um efeito geracional.
Helman (2009) afirma que, especialmente na sociedade ocidental, muitos dos
marcos do ciclo vital (puberdade, menstruação, gravidez, parto, menopausa e até mesmo a
morte) tornaram-se gradativamente mais medicalizados e foram transformados em estados
patológicos em vez de naturais.
Vadeboncoeur (2012) acrescenta que nos últimos anos, algumas mulheres manifestam
o desejo de fazer cesariana porque não passaram pela experiência e tem medo de dar à luz.
Segundo Pimenta e Portinari (1999), citados por Gualda, valores, crenças, atitudes e
comportamentos relativos à dor são adquiridos no processo de aculturação. A família e os
métodos de educação infantil exercem papel fundamental no desenvolvimento de condutas e
expectativas em relação a dor. O aprendizado social e a influência dele decorrente ocorrem
desde a infância na unidade familiar. Quando a criança chora, acusando a dor, esse estímulo
leva a mãe, ou outra pessoa, a procurar uma resposta para atenuar o sofrimento.
Esses autores ressaltam, ainda, que o limiar de dor e sua tolerância são influenciados
por aspectos culturais. Isso se dá na medida em que grupos étnicos distintos podem apresentar
comportamentos semelhantes de expressão da dor, embora os fatores determinantes desta
sensação sejam de natureza diversa dentro de um mesmo grupo. Os indivíduos podem alterar,
assim, seus padrões de comportamento em consonância com o grupo a que pertencem.
Segundo Gualda (2004), a dor de parto, como as demais, é um sintoma que possui um
caráter altamente subjetivo. Por isso, sua avaliação é igualmente problemática para as
mulheres. Estudo realizado na cidade de São Paulo identificou um tema pautado na busca
pela supressão ou, no mínimo, o alívio da dor na assistência obstétrica. A autora ressalta que,
na situação do parto, a dor vivenciada pela mulher tem sua dimensão cultural. “Dar à luz uma
criança nunca é um simples ato fisiológico, mas um evento definido e desenvolvido num
contexto cultural determinado”, argumenta.
De acordo com Ferreira, citado por Gualda (2004), as palavras dor e doença no latim
possuem uma raiz etimológica comum. Isso reforça a “íntima relação que existe entre a dor e
o reconhecimento de um estado mórbido”. A situação de parto, no entanto, é uma das poucas,
se não a única, em que a presença da dor não é indicativo de enfermidade.
Apesar da dor de parto ser um sintoma fisiológico das contrações uterinas, as mulheres
recebem informação deste evento de forma pejorativa e estas informações induzem
sentimentos de medo.
Gualda (2004) faz referencia a um estudo em que as expectativas das mulheres em
relação a dor de parto e as lembranças das puérperas sobre o tema datavam não apenas de suas
experiências, mas do período da infância, adolescência ou, no máximo, do período
gestacional. O acesso a informações sobre o tema, durante a infância e a adolescência no
contexto da experiência de dar à luz, na prática potencializa a intensidade das sensações
dolorosas.
Para Gualda (2004), a gestação é a fase durante a qual a mulher recebe uma maior
carga de informações sobre o parto. A dor de parto, então, ganha destaque e essa sensação, é
reforçada por outras mulheres com quem ela mantém laços de parentesco ou amizade. As
informações dadas às gestantes são passadas com alta carga de negatividade e geram
sentimentos igualmente de temor, ansiedade, incredulidade e, principalmente, de medo.
O pai não queria que ela sentisse dor (risos). Ela ficou grávida lá em Minas, aí o
meu marido foi lá, buscou ela e o marido dela, trouxe prá aqui; aí aqui a gente
pagou cesárea, pagou o quarto particular, tudo certinho prá ela, porque ela é
uma criança, é de menor, nós fica com medo dela sentir dor porque ela é muito
medrosa.(Prama)
Eu tenho medo e eu não gosto de sentir dor não, eu tenho medo de sentir dor, aí a
cesárea a gente não sente dor não; corta a barriga, toma remédio aí melhora
rapidinho, aí eu quis ter cesárea. Eu pedi pro meu pai, que eu não queria ter
normal, eu queria ....(pausa), meu pai desembolsar um bocado de grana , prá
fazer cesárea. (Thierain)
É, mediu a barriga quando eu fui ter neném; a Shon mediu minha barriga com a
fita, mediu prá poder colocar nos pés da Nossa Senhora Aparecida, que a gente
tem muita fé nela prá poder dá tudo bem na gestação, na hora de ganhar lá tá
tudo bem. (Thierain)
Segundo Torres (2004), a avó ensina a magia, o uso de ervas e cuida das mulheres
grávidas do clã.
Nos depoimentos que vêm a seguir encontramos a utilização das ervas como
tratamento para complicações obstétricas e para infertilidade.
Aí, no caso, eu né? Que eu tive algumas inflamações depois porque eu não tive
um resguardo direito por causa até da doença dele; eu fui tratada com quixaba,
durante três meses, quixaba, a gente toma ela e aplica, né! isso prá colocar o
útero no lugar, prá cicatrizar, porque eu tive um parto com ferro, tirado a ferro,
então rasgou o útero todinho; eu tive uma ferida que tomava o útero todo.
(Shon)
Tem uma que é prá ficar grávida, tem uma que a gente toma prá gestação vir
mais rápido; a mulher que tem dificuldade de pegar filho aí pega mais rápido; eu
vou lembrar, e vou passar tudo prá vocês, que a gente usa, toma durante um mês,
aí a mulher engravida, entendeu? (Shon)
E geralmente é difícil uma mulher cigana não engravidar; todas elas são férteis,
né? Raramente cê vê uma cigana sem filho, não existe né, praticamente não tem,
entendeu? (Shon)
Segundo Natasha (2005), a tradição do povo cigano orienta que os mais velhos sempre
ensinem suas doutrinas e seus rituais para os mais novos.
Aí minha avó falou assim: não, cê vai ser tratada com quixaba, então fazia.
(Shon)
Até hoje minha mãe só lida com ervas, minha mãe tá com 88 anos, até hoje ela só
toma ervas, entendeu? Ela hoje é diabética e todo tratamento dela é feito com
ervas e ela nunca amputou um dedo; pata de vaca que ela toma que é pra
diabete né, pata de vaca, tem vários. (Shon)
Minha mãe, ela tem 88 anos, nunca fez um pré-natal e, até hoje, ela tem o útero;
nunca teve mioma, nunca teve nada dessas doenças normais que os brasileiros
têm aí; ela não tem não, tudo dela é direitinho, com 88 anos, só se tratando com
ervas. (Shon)
Eu tinha uma ferida que tava circulando o útero; você é enfermeira, cê sabe disso
né? circulava e o médico falou assim que, se não fosse tratado, poderia dar
câncer, tratei durante três meses certinho; a ferida saiu tudinho, inteirinha
assim, pela vagina assim, saiu um calor muito grande, depois aquilo é expulso e
depois eu fui fazer uma ultrassonografia e tava tudo ok; não tive mais nada.
(Shon)
Não tomava nada, quando eu tava doente ela me dava remédio, chá de mato prá
eu poder tomar. (Thierain)
Quando eu tava com dor de dente, ela colocava alho pra puxar a dor de dente,
prá poder parar de doer, que não pode dor de dente quando tá grávida.
(Thierain)
Quando tá grávida não pode tomar anestesia de dente, aí ela me dava, colocava
alho para poder puxar a dor. Quando o neném tava sentindo dor de cólica ela
deu tipo erva doce, erva doce torrada, ela torrou, e deu pra ele tomar, pra dor de
cólica. (Thierain)
A minha mãe me passou e eu passei pra elas: uma cigana, quando ela tá grávida,
prá nós, cá pra nós, ela não pode passar vontade das coisas senão o neném não
nasce bem; nasce fraco, não nasce com saúde, se a mãe passar vontade de comer
as coisas. Passar necessidade de comer, vamos dizer assim. Se quando ganha o
neném, a cigana que ganha o neném tem certas comidas que não come; não come
peixe durante dois meses, não come peixe, não come cebola, não come pele de
galinha e não chupa laranja, não come. (Prama)
Ainda de acordo com Helman (2009), em algumas sociedades, as dietas especiais são
vistas como forma de remédio para certas doenças ou certos estados psicológicos. Para o
autor, a comida não é apenas uma fonte de nutrição. Em todas as sociedades humanas ela tem
muitos papéis e está profundamente entrelaçada aos aspectos sociais, religiosos e econômicos
do dia-a-dia.
A minha mãe disse prá mim que faz mal, disse que a laranja faz o rosto ficar
cheio de manchinha; a pele de galinha faz o corpo ficar cheio de caroço; o bife de
fígado faz o rosto ficar cheio de mancha preta, a testa fica preta, tudo preto,
aquelas mancha que dá quando as mulheres ganham neném, porque as cigana
em si são muito vaidosa. (Prama)
Entendeu? Mesmo que elas não estão bonitas, mas elas acham que estão, então
elas querem assim, entendeu? Aí, as ciganas quando parem, bebe quando têm
parto normal claro, aí tem um próprio chá que as ciganas fazem com cachaça,
com gengibre, com açúcar prá poder elas tomar, prá poder limpar por dentro;
quando elas têm neném no parto normal, mesmo que ganhe no hospital, mas
quando chega em casa, da família quem é mais velha, ela já faz, pode ser a mãe
ou a sogra faz aquele remédio; tem uma outra garrafinha de água assim, também
que eu esqueci, que essa cê já compra na farmácia, entendeu, uma água inglesa;
aí, cigana sempre bebe depois que tem neném, prá poder limpar por dentro que
as cigana fala que isso é muito bom, que ajuda; aí, quando faz cesárea, aí bebe
chá de algodão prá poder melhorar por dentro, prá poder dá limpeza que não
deixa dar infecção. (Prama)
Você já viu um pé de algodão? É uma árvore que dá algodão. Aí pega aquela
folha daquela árvore e põe prá cozinhar, prá poder tomar banho, prá beber e
tira a infecção, tira tudo, é um chá, folha de algodão, é um chá, ele é antibiótico,
pra infecção, tira toda infecção; prás mulheres que parem é muito bom porque
limpa tudo por dentro; aprendi isso com a minha mãe e ensinei prá minha filha,
tudo o que a minha mãe fez pra mim eu fiz pra elas. (Prama)
No que se refere à saúde da mulher (no período reprodutivo), observamos que esta
fase é cercada por comportamentos e modos de vida baseados em crenças que perpassam
pelos setores popular, informal e profissional. Um ponto a destacar é o período menstrual da
mulher cigana, durante o qual não é a ela permitido executar funções domésticas e se
relacionar sexualmente. É que neste período a mulher é considerada impura. Já com relação
ao diagnóstico de gestação das ciganas, observa-se, notadamente nas gerações anteriores, que
a gravidez era identificada de forma empírica. A comunidade baseava-se em sintomas comuns
a este período. Não havia pré-natal ou qualquer outra assistência profissional. Os cuidados
com as gestantes e os partos eram restritos aos setores informal e popular. Constatamos, no
entanto, com o decorrer dos anos, o surgimento da interferência profissional. Essa
transformação pode ser vista com clareza no comportamento da geração atual. Hoje em dia,
tanto o diagnóstico da gestação, as rotinas pré-natais e o parto ocorrem no âmbito
profissional. Até mesmo entre os grupos mais tradicionais, depositários da tradição,
encontramos membros da geração atual submetendo-se ao parto cirúrgico cesáreo. Outro
ponto a destacar no setor popular e informal é a preservação do uso de ervas para o
tratamento do trato ginecológico - principalmente na fase de puerpério. Exemplo claro de uma
perspectiva transgeracional baseada nos ensinamentos transmitidos pelas mulheres mais
velhas do grupo.
CAPÍTULO IV
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foto autorizada
Figura 16 - Família hospitaleira se despedindo ao final de um dia de coleta de dados.
Percebemos também um certo receio inicial, por parte dos ciganos, quando
procuramos fazer as entrevistas. Uma reação natural. A receptividade, no entanto, mudou
significativamente tão logo eles perceberam os objetivos de nosso estudo. Tal sentimento de
desconfiança, sabemos, está relacionado às ações discriminatórias e preconceituosas vividas
por seus antepassados e que acompanham os ciganos até os dias atuais.
Foi possível notar, aliás, que o grupo social estudado, dada sua instabilidade, tem
medo de passar fome. Não é por outro motivo que o uso de adornos de ouro é muito comum.
O metal, de acordo com sua cultura, contém o potencial simbólico de atrair uma vida farta e
provida. Assim como o banho de prosperidade, constituído de água, mel, flores e peças de
ouro, realizado nas crianças logo após seu nascimento. Aqui, ao ouro é atribuído o poder de
trazer bons presságios às crianças. Paralelamente, e na contramão das tradições, observou-se
alguns processos de aculturação no acampamento visitado. O principal deles é o afastamento
cultural da mais recente geração em relação às mais antigas no que diz respeito à proibição
das crianças frequentarem a escola. O costume antigo contribuiu inclusive para o alto índice
de analfabetismo entre as mulheres ciganas. Hoje, no entanto, uma mudança comportamental
significativa estimula a ida delas ao colégio. Desde que mantenham suas tradições.
Detectou-se uma predominância do cuidado dentro dos setores popular e informal nas
gerações anteriores e a presença do cuidado profissional ganhando maior proporção nas
gerações atuais. Deste confronto dialético floresceu uma tendência clara de procura pelo setor
profissional publico e até privado. Isso é percebido diante do comportamento das mulheres
mais jovens. Atualmente, a opção de parto escolhida pelas mulheres e a família é a cesariana,
ainda que elas vivam num contexto cultural crivado pela preservação de suas tradições.
É interessante aqui não só localizar o ponto de partida deste estudo, mas rever nossos
objetivos. Ele se originou de um olhar respeitoso e desprovido de preconceito sobre o
encontro de uma cultura tradicional e outro grupo com diferentes modos de vida. Foi
gratificante identificar aspectos sociais preservados por um grupo étnico – como os ciganos
aqui investigados – que não mantém registros escritos de sua cultura e a transmite sempre por
meio da fala. Isso sem levar em conta o fascínio contido nesta prática social de transmitir
apenas verbalmente valores elevados como o cumprimento de normas, o cuidado humano e o
respeito ao idoso e a criança. Conhecer os saberes e as práticas culturais das mulheres ciganas,
e relacioná-los ao processo saúde e doença, nos permite antever a possibilidade de uma nova
prática social no futuro. Abre-se no horizonte, assim, uma janela para um cuidado
culturalmente mais coerente.
O levantamento de algumas questões a serem consideradas relevantes, como o
desmame precoce, as manobras de manejo com o coto umbilical e a tendência da inclinação a
opção pelo parto cesáreo, surgem, portanto, como propostas de uma interseção entre os
cuidados popular e profissional do enfermeiro. E essa convivência saudável pode viabilizar
novos estudos de Etno-Enfermagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Esc. Enf. USP, 1997. V.31, n.3, p. 498-516, dez.
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MEDEIROS, C. M. de. Uma análise da cultura cigana e sua influência no processo de saúde e
adoecimento: contribuições para a estratégia saúde da família.2011 Especialização em
Atenção Básica em Saúde da Família. Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais.
NATASHA, A.C. Ciganos do passado, espíritos do presente. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Pallas
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PLANTAS MEDICINAIS. Escola Superior de Agronomia “Luiz de Queiroz” da
Universidade São Paulo (ESALQ/USP). [online]. Acesso em 2012.
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para a enfermagem. 2009. Dissertação [Mestrado em Enfermagem]. Escola de Enfermagem
Alfredo Pinto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
SOMMA, I. Sem Destino (uma história dos ciganos). Aventuras na História, São Paulo.
2007. P. 34-39.
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Assinatura da Depoente
Tanguá, de de Hora:
Nome: Idade:
Naturalidade:
Nº filhos vivos:
Nº filhos adotivos:
Idade no primeiro parto:
Nº abortos:
Quem cuida do filho?
Perfil Sócio-Econômico-Cultural
Possui luz na residência?
Possui água na residência?
Qual a forma de transporte?
Possui eletrodomésticos?
Como é feita a coleta de lixo na comunidade?
Religião e filosofia
Em que religião foi criada?
Qual religião pratica agora?
Companheirismo e sociais
Vive com alguém? Há quanto tempo?
Modos de vida
Quem mora na sua casa?
Como é a casa?
Possui banheiro dentro de casa?
Local onde dorme?
Hábito diurno?
Hábito noturno?
Possui animal de estimação?
Políticos e legais
Qual o líder político?
Sistema de escolha de liderança local?
Econômicos
Você trabalha? Fonte de renda?
Educacionais?
Você estudou?
Frequentou a escola até quando?
Interrompeu os estudos por quê?
ANEXOS