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1 As Etapas Decisivas da Infância

SOBRE A INSEGURANÇA DOS PAIS NA EDUCAÇÃO

L 'Êcole des Parets¹, setembro-outubro de 1979.

Não se pode resolver a insegurança dos pais. De um lado, eles


têm tendência a dramatizar e, do outro, desejam que lhes
respondam imediatamente à sua pergunta com alguma receita:
"Que devo fazer?" A essa interrogação sou mesmo incapaz de
responder. Se pude fazê-lo algumas vezes no rádio, foi porque os
pais que me falavam já me haviam escrito longas, longuíssimas
cartas e porque, ao escreverem, já sugeriam uma solução, ou a
entreviam. Estava tudo pronto, mas eles não ousavam lançar-se
na direção em que haviam pensado, tinham necessidade de uma
voz abalizada que lhes dissesse: "Mas claro, por que não?" Para
todos os outros ouvintes, era a oportunidade de abordar e de
compreender uma dificuldade de relacionamento, e de transpô-
la para seu próprio clima familiar.
Essas dificuldades às vezes podem ser consideradas com um
pouco de humor. Pode-se, sobretudo, pensar que não durarão até
os vinte e cinco anos, se bem que os pais costumem imaginar que
elas vão agravar-se com a idade. Não se pode educar uma criança
sem que, num ou noutro momento, ela passe por um sintoma.
Para os pais, esse sintoma em geral é inquietante, a criança
investe nele uma energia que não é criadora e não é claramente
interpretada por eles. De seu lado, a criança alivia assim tensões
de que sofre, e o faz tanto melhor quanto menos os pais se
inquietem.

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O ciúme

O ciúme é uma enorme perda de energia para o indivíduo, seja


ele criança ou adulto. Há primeiro o ciúme do irmão mais novo,
depois o ciúme edipiano, em relação ao pai e à mãe. Se uma
criança supera esses dois ciúmes, ganha com isso uma segurança
que consegue fazer seus pais partilharem.
Nos grupos de crianças, assim como nas famílias grandes, o papel
dos pais e do educador não é fácil, em face desse problema do
ciúme não superado: deve-se responder a um, e todos os outros,
por ciúme, gostariam que se lhes respondesse da mesma forma,
o que seria um erro, já que cada qual está em seu grau de
resolução do problema. O pai, assim como o educador, deve
então, claramente e não "discretamente", proclamar seu direito
à injustiça: "Sou injusto e sempre o serei." Se essa proclamação
for feita, mesmo que, claro, o adulto tente, quanto a ele, não ser
injusto, a maior parte das reivindicações cairão por si sós, uma
vez que fracassarão em abalar a segurança do adulto que sabe
que age da melhor forma que "pode", pelo menos
conscientemente. Pois as crianças sabem muito bem onde aperta
o sapato, no adulto, e são peritas em pisar nesse lugar...
Os pais devem saber que, façam o que fizerem, sempre estarão
errados aos olhos do filho, e tudo isso dando o melhor de si. Num
ou noutro momento, mesmo os pais mais amorosos serão
responsáveis por um sofrimento do filho. Se o filho declara então:
"Eu não gosto de você", responde-se: "Isso não tem a menor
importância, você não nasceu para gostar de mim." Seis, sete
anos, já é tarde para criticar os pais. Os pais devem ouvir muito
as críticas dos filhos, mesmo que isso não deva, em muitos casos,
modificar-lhes o comportamento, pois eles têm de educar e não
de agradar aos filhos. Filhos que, ao crescer, continuam sempre
a querer agradar aos pais, que julgam que os pais sempre têm
razão e sempre são justos, são crianças de má saúde. Quanto mais
se pode mostrar hostilidade mesclada ou alternada com afeição
aos pais, melhor é a saúde moral de uma criança. Isso significa
que a relação do filho com os pais se libertou dos laços
incestuosos e de total dependência. É assim que cada criança
começa a ter sua individualidade. Uma mãe deveria poder dizer:
"Quanto a mim, eu

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estava pronta para que você nascesse, você nasceu. Agora, vire-
se com a vida, faço o que posso para sustentar você e para que
seja feliz, mas nem sempre é por minha causa se as coisas não
vão bem, se você não está feliz, se está doente... Quando você
estava dentro de minha barriga, você não sofria nada, agora você
nasceu e a vida nem sempre é como se queria. Seja como for,
você sairá dessa se souber levar as coisas pelo lado bom." Mas não
é fácil para os pais suportar criticas justas ou contestação de suas
opiniões, enquanto eles mesmos não se libertaram de sua longa
submissão a seus pais.

Autonomia e atraso na escola

Muito cedo, já aos três anos, a criança pode ter total liberdade
para tudo quanto se refere à alimentação, ao frio e ao calor, ao
sol e à chuva (e, logo, às roupas). Talvez, entretanto, não
inteiramente no que se refere à hora da ida à escola... E, ainda,
se os pais não se angustiarem com um atraso eventual, ela
aprenderá depressa a não fazer hora pela casa e a ritmar sua vida
pela dos outros de sua idade, se souber que se estiver atrasada a
professora "dará uma bronca" ou punirá a criança, mas que não é
um drama nem para ela nem para a mãe.
É já no maternal que se organizam os atrasos à escola e que as
mães devem, de um lado, nunca ser sua causa e, do outro, deixar
a responsabilidade disso às crianças em vez de apoquentá-las.
Elas ainda têm dois anos antes da escola obrigatória e para
habituar-se aos horários sociais que lhes concernem
pessoalmente.
Evidentemente, muitas vezes a criança ainda não pode ir sozinha
à escola, mas por que ir procurar uma escola a quilômetros, como
vi fazerem, para nela encontrar o "máximo" da educação, quando
há uma escola maternal a cem metros da casa? Acho que há pais
que se põem e põem os filhos em condição de insegurança, fonte
de conflitos permanentes que seriam realmente evitáveis. Por
que não tentar, primeiro, a escola mais próxima à qual a criança
pode rapidamente ir e voltar sozinha?
E, quando a criança deve ser acompanhada, não se deve obrigá-
la a ser quem pode fazer o pai ou a mãe, por causa dela, atra-

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sar-se ao trabalho. Isso é dar-lhe um poder grande demais sobre


a euforia dos adultos, sobre a tranqüilidade deles! Cada qual
deveria poder ser autônomo, sem que ninguém possa dizer: "Você
vai fazer seu pai (ou sua mãe) ficar atrasado." Conheci uma
família em que, toda manhã, todos ficavam "em ponto de bala", e
o filho acabava perdendo a escola. Um domingo, o pai decidiu-se:
"Se você se atrasar, isso não terá mais nenhuma importância para
sua mãe, já que você vai aprender a ir sozinho à escola." Um
sábado à tarde e um domingo, fizeram ambos, revezando-se, com
a criança, duas idas e voltas, ida de ônibus, volta a pé e vice-
versa (podem ser as duas viagens de ônibus se a escola for longe)
como um jogo, incentivando a criança a observar bem tudo, e
depois a ela mesma guiar os pais. "Desta vez você é que vai levar-
me..." Domingo à noite, a criança sabia seu caminho. E tudo
terminou; todas as manhãs, em segurança, ela saía na hora
sozinha. Isso foi • efeito radical de uma consulta comigo em que
compreendi que • que a criança desejava era fazer birra com a
mãe, mas também que não fora ensinada a ir sozinha à escola.
Inúmeras dificuldades poderiam ser cortadas pela raiz, se os dois
pais se ajudassem mutuamente para compreender o jogo que se
desenrola, e fizessem o necessário para pôr um termo nele
colocando a criança numa escola próxima, ou pegando um dia
para isso, como neste exemplo. É um prazer, para a criança, ser
compreendida nessa necessidade de segurança para ganhar sua
autonomia que, no dia-a-dia, é proporcionada por pais atentos e
verdadeiros educadores. E um prazer construtivo em vez do
prazer obtido em angustiá-los, em amolá-los, jogo perverso em
geral condicionado por uma organização familiar do tempo ou do
espaço a ser reconsiderada.

A autonomia

A interdependência entre os seres existe, é humana, seja ela


afetiva, intelectual ou espiritual, mas a interdependência que se
expressa em chantagem ou em ameaças destrói a confiança da
criança nos pais, e sua própria autoconfiança. Educar é tornar
autônomo. "Você faz o que tem de fazer, eu o que tenho de fazer,
falaremos nisso de novo à noite..." Impomos a nossos filhos mui-

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tos de nossos desejos totalmente inúteis, e sem nenhum valor


formativo moral. Deixemos a criança tão livre quanto possível,
sem lhe impor regras sem interesse. Deixemo-lhe somente o
âmbito das regras indispensáveis à sua segurança e ela perceberá
com a experiência, quando tentar transgredi-Ias, que elas são
indispensáveis e que não se faz nada "para amolá-la". Mas, por
exemplo, comer a sobremesa no início ou no fim da refeição, que
importância tem? Pôr o pulôver ou a calça pelo avesso, não
amarrar os sapatos... se rimos disso, chegará o dia em que isso a
incomodará.
O sofrimento é inevitável, por certo, às vezes pode ser inserido
muito cedo na vida dos seres humanos, por causa dos
acontecimentos que os rodeiam, por causa da história de seus
pais. Mas vemos tantas crianças que são contrariadas em suas
iniciativas, em suas atividades inocentes livres, perturbadas por
coisas imbecis, total e inutilmente importunadas por injunções
contínuas para fazer ou não fazer isto ou aquilo! Crianças
nascidas tão dotadas quanto as outras, se não mais, segundo o
que se sabe de seus cinco primeiros meses, e que ficam atrasadas
no momento de ir à escola, quando não o eram no início. Ficaram
assim por falta de liberdade de movimento, por falta de
experiências e de trocas para proteger-se de desejar. Para certos
pais, a criança sempre tem de fazer depressa, comer depressa,
obedecer imediatamente, apressar-se sempre. Por que a mãe faz
tudo para o filho, quando ele fica tão contente de agir por si só,
de passar a manhã vestindo-se sozinho, pondo os sapatos, tão
contente por pôr o pulôver pelo avesso, por atrapalhar-se todo
com suas calças, por brincar, por "bagunçar" em seu canto? Ele
não irá à feira com a mãe? Pois bem, tanto pior, ou melhor, tanto
melhor! A mamãe tem confiança nele. Que fique em casa, a
mamãe só tem de prestar atenção para que nada de perigoso
fique ao seu alcance. Ponto, e acabou. Ao voltar, é a alegria de
reencontrar-se, de falar do que se fez.
A cilada da relação pais-filho está em não reconhecer as
verdadeiras necessidades da criança, que incluem a liberdade.
Comeu-se bem ou mal, fez-se bem ou mal cocô, a família gira em
tomo disso... Mas o importante é que a criança seja segura,
autônoma, o mais cedo possível. A criança tem necessidade de
sentir que "gostam que ela se tome" segura de si no espaço, cada
dia mais livremente, que deixam que explore, que tenha
experiência

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pessoal e relações com as pessoas de sua idade. Agora, muito


depressa, já não há ninguém para proteger a criança na
sociedade. Portanto, ela deve saber, por experiência própria,
conhecer suas necessidades, proteger-se sozinha pelo
conhecimento dos perigos que a ameaçam. Ela deve
"automaternar-se" já aos dois anos, já aos três anos e, por volta
dos seis anos, autopaternar-se, ou seja, saber comportar-se em
casa em tudo que lhe concerne, assim como em sociedade. Entre
pais e filhos, a confiança deveria ser total e recíproca. Toda
criança tem confiança nos pais mas a recíproca é rara. Isso
começa já no berço e, sobretudo, já no saber pegar e
movimentar-se, pela atenta tolerância à sua autonomia
crescente, acompanhada de clima alegre e de explicações sobre
tudo que o adulto faz, e que a criança observa tanto e, depois,
quer imitar em tudo. São suas experiências assistidas que lhe
desenvolvem a motricidade. É amor, a ternura consoladora que
lhe permitem superar seus fracassos, não é nunca fazer tudo para
ela e em seu lugar e irritar-se assim que faz uma bobagem. O
espaço e o tempo de comportamento livre, a convivência com
outras crianças, a autonomia em suas brincadeiras e nos ritmos
de suas necessidades: alimentação, excreção, sono, essa é a arte
da educação das crianças e é também o que as incentiva a
respeitar o tempo e o espaço de ocupação livre dos pais.

Quando falta o terceiro

Toda criança deseja e almeja ser criada pelos dois progenitores.


A criança necessita de ambos os adultos para estruturar-se tanto
em sua inteligência como em sua afetividade. Entre três pessoas,
os pensamentos e os afetos circulam. Quando somos dois, isso
forma um espelho e cria uma fatal dependência recíproca.
Há sempre um terceiro que a criança supõe ser o eleito do pai, o
eleito da mãe, seu parente amado e indispensável. Graças a Deus,
geralmente é uma pessoa, e a criança naturalmente se modela a
partir de um desses dois interlocutores. Mas o terceiro pode ser
um animal ou uma máquina, daí muitos atrasos afetivos que
tornam a criança inadaptada à sociedade. Pode ser também um
ausente, desconhecido. A mãe (ou o pai) está triste e absorto em
si

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mesmo, quase mudo com a criança, sem companheiro. O outro,


o eleito da mãe, pode ser uma máquina de costura, por exemplo.
Vi uma criança que vivia sozinha com a mãe, a qual confeccionava
coletes no quarto. O dia inteiro, a máquina girava, girava. A
"máquina", essa tinha a sorte de monopolizar toda a atenção da
mãe, de brincar com o pé, com as mãos da mãe. "Essa máquina
que monopoliza a mamãe é, portanto, muito desejável; para
fazer-me amada pela mamãe, para que ela cuide de mim, tenho
de ser como a máquina." Claro, não era um raciocínio consciente.
E a criança se tornara como esse objeto parcial da mãe. Sozinha,
ela tinha continuamente um gesto estereotipado, girar seu braço
em círculo como a roda da máquina. Nisso, imitava "o outro" da
mãe. Por outro lado, na casa, suas mãos faziam como as mãos da
mãe. Silenciosa, de ar ausente, a criança punha e tirava a mesa
ou "fazia a limpeza da casa". Isso a ocupa, dizia a mãe. Quando a
criança foi à escola, não falava, não brincava. De ar ausente,
girava o
J braço. A mãe nunca lhe falava e saíam, a criança inerte em seu
carrinho, domingo à tarde, sem jamais brincar com outros. Aos
três anos, era incapaz de adaptar-se ao maternal. Sem
psicoterapia da relação mãe-filho, ele teria ficado insocial. Há
também crianças-gato, cachorro, coisa.
Há pais que criam sozinhos os filhos. Mas podem conviver com
outros solteiros ou outros casais que têm filhos. Têm a
oportunidade, aqui e ali, de falar de sua situação. Cumpre que a
razão da solidão seja falada diante dela e igualmente exposta à
criança. Podem ser razões pessoais, razões de abandono ou de
morte, mas razões que não inculpam o outro, o ausente. Se a
criança sentiu uma acusação, ela herda a culpa desse outro.
Deveriam dizer-lhe: "Quanto a mim, sim, eu posso não gostar dele
(dela), ele ou ela que eu amava me deixou, mas, quanto a você,
não, é seu pai (ou sua mãe). Você nunca teria nascido sem dois
progenitores. Ele (ou ela) deu-lhe a vida." Mesmo que a criança
"transfira" para outros adultos, é preciso que saiba bem que um
pai ou uma mãe de nascença só se tem um, só uma. Devemo-lhes
a vida. Cumpre que isso seja dito, com palavras. "Mamães" ou
"papais" podem ser um adulto qualquer que ela não tema, que
ame ou que compartilhe a vida de seu pai ou de sua mãe, com
quem ela brinca e sente-se aceita tal como é, que lhe serve de
modelo ou de educador.

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Assim, naquilo que a estrutura psiquicamente, a criança pode


guardar o outro, esse primeiro referente, embora ausente
fisicamente, em si de modo simbólico. Uma criança pequena que
é cortada do outro, do terceiro (o pai ou a mãe), que é criada
sozinha com um único adulto protetor que faz mistério do outro,
é como um hemiplégico em sua estrutura simbólica; somente uma
metade funciona como espelho do adulto de quem depende tudo
de sua vida. É preciso saber que nunca é cedo demais para falar
disso, mostrar fotos (jamais tarde demais, tampouco). É
preferível um sofrimento a uma omissão, a verdade a uma fábula,
e ela poderá questionar outros adultos, testemunhas desse
passado, sobre o início de sua vida.

A cama dos pais

Uma troca de carícias, de tempos em tempos, causa muito prazer


à criança e sobretudo aos pais. A ternura faz parte do amor
paternal e filial. Sem dúvida, mas não se pode tratar uma criança,
uma criança pequena, como um gatinho ou um aquecedor
portátil! E um homem, uma mulher a caminho, com toda a
sensualidade e as emoções de um homem ou de uma mulher em
devir. Então, tudo que é do corpo a corpo, sobretudo sem
palavras nem músicas, tudo que traz uma voluptuosidade
sobretudo muda, pode ser muito perigoso na vida imaginária de
uma criança. Aos três, quatro anos, a sensualidade é de uma
intensidade muito grande em comparação ao que se tornará mais
tarde, porque é generalizada e provoca emoções sexuais difusas,
às vezes muito violentas, que podem bloquear a evolução para a
sexualidade genital futura, pelo vínculo inconsciente que se
estabelece de forma irreprimível entre sensualidade e
representações imaginárias arcaicas. Certas crianças são muito
sensuais e são extremamente ciumentas do progenitor do mesmo
sexo que o outro prefere a elas. Seu ciúme é exacerbado pela
promiscuidade. Beijar-se diante delas para arreliá-las é muito
cruel. Acolhê-las na cama significa pôr-lhes diante dos olhos sua
impotência de criança de amar e de ser amada como os adultos
demonstram entre si. Muitos pais se divertem com os filhos,
brincam com seus sentimentos. Isso é perigoso e cruel.

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Claro, tudo depende do que acontece. Se tomam o café da manhã


todos juntos de pijama, na cama, e falam entre si, é muito
diferente. Mas penso nas crianças que se aninham contra o pai ou
a mãe, que têm com eles familiaridades carinhosas exclusivas.
Não se fala, fica-se junto como numa toca. Essa promiscuidade é
prejudicial. A cama dos pais representa, para as crianças, algo de
formidável. Mas elas sabem muito bem que não estão em seu
lugar. É por isso que, algumas vezes, começam a brincar nela,
colocam tudo de pernas para o ar: é realmente a bagunça. Esse é
um modo de traduzir o mal-estar da situação. Chega o momento
em que é preciso detê-las, estão excitadas até não poder mais e
deve ocorrer uma distensão. Isso termina com uma cena, uma
repreensão, fica-se zangado. Teria sido tão simples fazer
respeitar a cama e o quarto dos pais... e a sensibilidade das
crianças.
Certos pais são castos, mas outros não o são. E se se apresenta a
ocasião, ela é tentadora. Para o bebê, o corpo a corpo mãe-
criança é indispensável, mas, em dado momento, essas delícias
fusionais, imaginariamente canibalescas também no bebê, devem
cessar. É o desmame tão importante quanto o da mamadeira, que
só adquire todo o seu sentido se a criança sente que a mãe tem
um eleito mais importante do que ela, e que esse eleito dorme
com ela, à noite, que ele tem sobre seu corpo e ela sobre o dele
direitos que a criança, por sua vez, não tem e nunca terá (ela
nunca os teve, mas o imaginou e o deseja), mesmo que ainda
queira imaginar que mais tarde... ele e ela, ela e ele, eles se
casarão. Mas quando a mãe não tem um "homem à altura" para a
sua sexualidade pessoal, que tentação! Para o pai com relação à
filhinha também, se seu par não o satisfaz. Quantas crianças
foram freadas em seu desenvolvimento por essas carícias, pelo
encanto da voluptuosidade e da ternura compartilhada em
silêncio, por essa promiscuidade do corpo a corpo voluptuoso.
Encontramo-las depois com atrasos consideráveis de linguagem,
de psicomotricidade e de afetividade.
Uma ocasião realmente perigosa são as ausências, as "viagens" do
pai. A criança vem então, menina ou menino, para a cama da
mãe. Tudo pode arder em três semanas! Vi regressões, quedas
escolares nos maiores, espetaculares e repentinas, que não
tinham outras razões. E não se deve acreditar que as meninas
estejam fora de perigo: trata-se, para elas, de uma regressão
ainda

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mais arcaica, de uma volta às sensações de sua primeira infância,


quando ainda estavam no seio. Ceceios, xixi na cama, caprichos
se sucederam. E o pai, ao voltar, olhado como o intruso. Que
confusão!

Ser severo?

Sim, se proibir o que pode ser perigoso se chama ser severo, mas
com compaixão e sempre por respeito a essa criança, adulto em
devir.
Portanto, cumpre assumir a responsabilidade de proibir certas
coisas porque são perigosas psíquica ou fisicamente. Se não
somos severos, nós, os pais, a criança deve regredir por efeito de
nossa fraqueza, autocensurar-se ou tentar fazê-lo. Não há nada
de mais debilitante para uma criança, nisso ela perde toda a sua
energia. Ao passo que, se o pai ou a mãe diz: "Não, eu lhe proíbo
isso, não faça isso. Talvez eu mesmo gostasse de fazê-lo, mas eu
me proíbo e lhe proíbo isso. Meu marido (ou sua mãe, minha
mulher) não está aqui, você não tomará o lugar dele (dela) porque
eu gosto de você como meu filho, como minha filha." A criança
pode ficar furiosa, mas conserva toda a sua energia, em vez de
sentir um prazer ambíguo ou de se auto-impedir e se dividir
contra si mesma. Toda liberdade que é de fato uma licença é
"depressora".

Ser severo? Estabelecer interditos?

Tudo é questão de idade. Se falamos dos atos censuráveis no


espaço, não há nenhum interdito definitivo, afora o incesto. Há
o roubo e o homicídio, dir-me-ão vocês. Sim, mas o roubo se
ensina porque cada qual defende "seu bem". Por experiência e
identificação ele faz sua moral própria. Quanto à nocividade
física, à violência e ao homicídio na pouca idade, é somente pelo
exemplo que se ensina o respeito à vida. Com o tempo, ao
crescer, o que é proibido será permitido: "Quando você souber,
quando estiver suficientemente grande para fazer sem perigo isto
ou aquilo. Por ora, não o acho capaz. Se você se sente capaz,
faça-o, mas não quero ver." A criança necessita, enquanto não é
totalmente segura de si,

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da segurança do olhar do adulto, e, enquanto não estiver segura


de si, não cometerá imprudência. A interdição evita-lhe então
uma humilhação em face dos outros ou um perigo. Papai (ou
mamãe) me proibiu isso, ela pode dizer.
Mas, se ela transgride uma proibição, se não lhe acontece nada e
se ela vem depois se gabar disso (ou se ficamos sabendo), deve-
se felicitá-la: "É uma maravilha, eu não a achava capaz de fazer
isso, e você era!" A criança às vezes se surpreende, era proibido.
E justamente muito importante, pois, nesse dia, ela compreende
o senso educativo do adulto. Era "momentaneamente" proibido
para protegê-la, por uns tempos, de desejos que ainda não podia
assumir. E pode-se explicar-lhe isso. Com isso sua confiança no
adulto só fica maior. A partir desse momento, a proibição cai: as
proibições sempre são apenas temporárias, salvo a do incesto
entre pais e filhos, entre irmão e irmã. Todo interdito é
"prudencial" para a criança. Há também o interdito sexual entre
crianças e adultos, que as crianças devem conhecer: "O adulto
sabe que é proibido, então você só tem de dizer-lhe." As crianças
que são vítima de adultos (de educadores, por exemplo), o são
porque não sabem que os adultos não têm todos os direitos sobre
a pessoa delas. Cumpre dizer-lhes isso, preveni-Ias a tempo: "Os
adultos, por sua vez, sabem que não têm todos os direitos sobre
o sexo das crianças, abusam da ignorância delas." Se uma criança
calunia então um adulto - o que, infelizmente, acontece -' é
porque ela mesma era consentidora. E totalmente diferente.

O pai deitado

O pai deitado é o mundo às avessas para uma criança pequena.


Como o sol está no céu, e não desce à terra, o representante
masculino, o pai, está de pé. Pode-se observar isso nas praias:
por volta dos dois, três anos, as crianças pequenas fingem não
compreender, como se não vissem que é o pai delas que está lá,
deitado na areia. Depois, acabou-se, essa reação não aparece
mais: deitado ou em pé, o pai continua a seus olhos o pai. Ao
contrário da mãe. Todos conhecem a alegria das crianças que mal
andam sobre as próprias pernas e que, se a mãe está estendida
no chão, andam em cima dela com desenvoltura. Vá-se entender!

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O nudismo

Os pais podem passear nus pela casa se o fazem em presença de


um adulto amigo familiar. Nesse caso, não fazem com o propósito
de "mostrar-se" nus, bem como não são obrigados a fazê-lo, nem
obrigam os filhos a fazer a mesma coisa. Mas o nudismo, se
empregamos essa palavra, é vivido como uma religião em certas
famílias, é uma decisão inflexível, com intenção educativa, dizem
eles, sendo, então, para as crianças pequenas uma aberração.
Esses pais "naturalistas" dizem: "É tão bonito, é tão bom,
ensinamos assim à criança que nada é chocante. Que mal
haveria?" Pois bem, estão enganados. Não desconfiam que
cultivam sentimentos de inferioridade na criança diante da
sobrevalorização, já estupenda, do corpo vestido dos pais. De
fato, os pais não se dão conta da sedução que exercem. Para os
nossos filhos, somos verdadeiras maravilhas. Somos mais que
Adônis e Vênus, mesmo que sejamos feios de dar medo! As
crianças se sentem espezinhadas, incapazes de rivalizar com a
imponência do corpo nu de um adulto amado, seja qual for seu
sexo, com a beleza, aos seus olhos, do pai do mesmo sexo que o
delas, e esse sentimento às vezes perdura até a adolescência. Um
lindíssimo menino pode sentir-se um verdadeiro Quasímodo ao
lado de um pai qualquer. Da mesma forma que uma menina
lindíssima ao lado da mãe que ninguém nota. Por volta de sete ou
oito anos, chega o momento em que as crianças podem julgar-se
a si próprias, e julgar os pais no olhar dos outros, no espelho que
a sociedade lhes estende, mas até aí o imaginário prevalece. Os
pais são rei e rainha, mágico e fada, ou feiticeiros aos olhos das
crianças, deuses e deusas do lar. Mas, nus, os pais são
esplendorosos, deslumbrantes de poder, fascinantes (sobretudo
se se faz de conta que não se vê), o que pretendem os
naturalistas.
Antes de sete, oito anos, o nudismo sistemático é, para a criança,
destruidor, mas só se vê seus efeitos aos seis, sete anos. Nesse
momento, percebe-se que o pudor desapareceu nas meninas,
elas começam a "perseguir" qualquer menino e adulto que seja.
Sobretudo, perdem todo o interesse por tudo que diz respeito à
observação das coisas da vida, à memória dos fatos. Se bem que
inteligentes, não têm interesse pela amizade nem pela
escolaridade (por tudo a que os psicanalistas chamam
sublimações, orais e anais),

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pelas brincadeiras de sua idade, pela habilidade das mãos, pelo


saber adotar e o saber rejeitar, pelo sim e o não. São ávidas
apenas de sensualidade e de sexualidade que foram
inconscientemente exaltadas em excesso. Os meninos, por sua
vez, por volta de seis, sete anos, são o extremo oposto.
Aprenderam, por prudência natural nesses lares naturalistas, a
furtar-se aos olhares, tornam-se doentiamente pudicos. Toda a
sua curiosidade abandonou os olhos para ver os seres humanos, e
muitas vezes o prazer do tato, ignoram o sexo, para refugiar-se
no mental. São alunos muito dotados mas fechados, tímidos; não
os primeiros da classe, isso dá muito na vista, mas sempre
segundo ou terceiro, sem colegas e sem amigos do peito. Essas
crianças são, de uma maneira diferente conforme seu sexo,
neuróticas obsessivas, sendo difícil tirá-las daí. Foram pais
naturalistas que me ensinaram isso. Talvez fosse diferente se o
naturismo fosse generalizado, mas atualmente é assim.
Os pais pensam que, quando os filhos são pequenos, isso não tem
a menor importância. É justamente o contrário: aos dez, doze
anos, o naturismo em família já não tem nenhuma importância
sobre a evolução das crianças. Como explicar isso? O lactente, a
criança pequena torna seu tudo o que vê, ela "engole" tudo o que
vê, a beleza da mãe, a beleza do pai, usufrui-as com os olhos,
com o cheiro, com o toque passivo. Mas, tornada ativa, ela quer
mais. Carícias, beijos, afagos são-lhe provas de amor e de ternura
se são castos e acompanhados de palavras e de músicas. O olfato,
a vista, a audição são também órgãos sexuais, e ela ainda não
conhece a proibição do incesto. Chega um momento em que os
pais se esquivam às familiaridades genitais dos filhos. Estes ficam
então, nas famílias nudistas, presos na armadilha de um incesto
fusional como outrora, arcaico e sem palavras, lúdico, prazeroso,
e que, infelizmente, diverte os pais. Na idade em que a fala já
está construída, em que a criança conhece a interdição do
incesto, a nudez dos pais, por momentos entrevista e da qual se
pode falar, já é menos perigosa e, depois de dez, doze anos, isso
já não tem a menor importância. Cada qual é feito como é feito.
Entretanto, essa é a idade em que os pais já não ousam, em geral,
enfrentar a comparação que os filhos fariam da nudez deles com
a de outros adultos, no tocante tanto às formas aparentes quanto
à sedução. A interdição do incesto é assimilada à personalidade
humanizada.

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Na mesma área, os pais não deveriam fazer as crianças pequenas


entrarem enquanto estão tomando banho. Que se fechem! Que
deixem a criança ficar batendo na porta como uma louca: "Você
bem que entra e você me vê pelado. - Faço isso porque você não
sabe se lavar sozinho, mas, o dia que você tomar banho sozinho,
eu não me permitirei entrar." Mas, se um menino, ou uma
menina, pretende não saber lavar-se sozinho depois de cinco
anos, é porque a mãe (ou o pai) é cúmplice dessa impotência. É
preciso parar esse jogo que se toma perigoso.
Claro, a nudez das crianças entre si não tem conseqüências. O
perigo reside entre pais e filhos e quando o nudismo é princípio
sacrossanto de educação. Assim como a nudez ocasional,
acidental: "Eu vi você pelado, eu vi você peladinha! diz a criança.
- Está certo. E daí? Você viu o diabo?" Elas acreditavam ter feito
uma ação da maior audácia! Ri-se e não se fala mais nisso. Essa é
a mais educativa das atitudes referentes à nudez em família.

A criança no quarto dos pais

Os pais não imaginam que um bebê que assiste às relações sexuais


dos pais é, com todas as suas pulsões, enxertado no pai,
enxertado na mãe, sempre, e mormente quando está
adormecido. Pois a criança está em comunicação fusional pelo
inconsciente com aqueles que a rodeiam. Sabe-se bem, por
numerosas experiências, que adormecido, sob hipnose, pode-se
aprender tudo. Durante seu mero sono, alguns voluntários
puderam aprender idiomas estrangeiros gravados em discos... No
sono, somos ainda mais receptivos do que quando estamos
acordados. No caso do bebê, suas próprias pulsões são
superativadas no momento das relações sexuais dos pais.
Inconscientemente, ele entra em sintonia com os meios de
desejar que são os seus, e que desejam pacificamente no nível
em que ele sente esse desejo, seja de prazer fisico, seja de temo
corpo a corpo.
Por certo era a mesma coisa quando a criança estava no ventre
da mãe, in utero, pois o indivíduo humano já está lá, no feto,
presente com sua libido inteira, e dependente das reações
humorais e circulatórias de sua mãe que lhe ativam ou arrefecem
a vida vegetativa. Noutras civilizações, uma mulher, tão logo
grávida, já não

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15 As Etapas Decisivas da Infância

tem relações sexuais, e isso até que tenha acabado de


amamentar, mas trata-se de sociedades polígamas. Para nós, esse
tabu não existe ou não existe mais. Em que medida isso perturba
ou não a criança ainda por nascer e, mais tarde, o bebê, é dificil
de dizer. Para o bebê, pode-se, em todo caso, observar que,
quando os pais fazem amor em sua presença e ele está dormindo,
também ele fica faminto de desejo. Ele acorda, desejaria mamar,
tem uma micção, uma evacuação inabitual, àquela hora da noite,
chora, no mínimo tem necessidade de pequenos cuidados e de
uma palavra tranqüilizadora. Não é esquecido. E se ainda não
reage é porque, em seu sono, regride a um modo de ser arcaico,
afetivo, imaginário, como que fusional total com os pais, também
eles pouco diferenciados ainda, o adulto massa bicéfala
tranqüilizadora, o co-eu papai-mamãe, tríade originária de
desejos como em sua concepção.
Muito depressa as crianças sabem (sobretudo intuitivamente) o
que se passa: as crianças sabem tudo, inconscientemente. Mas, a
partir do momento em que as coisas são ditas em palavras que
respondem às perguntas delas, já são aceitas pela metade. A
criança fica um pouco incomodada: "Foi desse jeito que eu
nasci..." Não penso que uma experiência desse gênero - uma
criança que descobre os pais fazendo amor - seja por si só nociva,
se os pais não querem ludibriar a criança, fingir como o pai que
dizia: "Não é verdade, você não viu nada, ou está mentindo."
Cumpre mesmo que os pais compreendam que a criança é uma
testemunha que reage. Se ela não "compreende", interpreta o
que vê. É preferível evitar ter uma criança no quarto, e fechar a
porta quando se tem relações sexuais, mas às vezes isso acontece
de modo diferente. Em vez de repreender a criança porque ela
reagiu, é preferível fazer frente à situação que se criou. Pelo
menos respeitar sua tranqüilidade conjugal futura como se lhe
pede que respeite a dos pais: "Fique quieta e saia. Não somos
obrigados a dizer a você o que estamos fazendo. Quando você
tiver seu marido, quando tiver sua mulher, nem seu pai nem eu
iremos atrapalhar vocês."
Por vezes, a criança expressa suas fantasias: "É, eu bem sei,
quando estou dormindo, você dá de mamar ao papai, e papai faz
coisas no bumbum..." Nunca se deve nem zombar, nem se zangar,
nem deixar as crianças dizerem essas coisas. Aliás, elas não
sustentam o errado para saber a verdade? Deve-se dizer-lhes a
verda-

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16 As Etapas Decisivas da Infância

de, mesmo rindo: "Não, você está totalmente enganada, não é


desse jeito que as coisas acontecem. O sexo não tem nada a ver
com comer e fazer xixi ou cocô. Você verá mais tarde como é que
é."
A melhor solução, evidentemente, é não ter criança no quarto.
Nem sempre isso é possível. Certos casais se destinem porque
nunca estão tranqüilos, porque nunca têm um momento de
liberdade, sem os filhos por perto. Quantas mulheres me
contaram que alegavam a presença do filho para recusar-se ao
esposo! Evidentemente, é porque algo não vai bem com o casal,
mas o que é grave é que é em nome de sua paternidade que o
homem é desvirilizado pela esposa, que justifica a perda de sua
feminilidade com sua maternidade. A criança é posta, pela mãe,
na posição de intruso que manda. É mais sensato, quando é
possível materialmente, fazer, já no nascimento, a criança
dormir fora do quarto conjugal, e manter-se firme. A vigilância
materna permanece no sono, esteja o filho próximo ou não. Se a
criança necessita da mãe, esta o perceberá do mesmo jeito se
estiver noutro cômodo, e se, para ela, ir ao berço impõe que ela
ou o pai se levantem, para a criança é bem preferível. Aos três
meses, pais e filho só se incomodarão muito raramente, e ele se
desenvolverá melhor.

Reencontros na creche

Quando uma mãe põe o filhinho na creche, quase sempre é


porque é obrigada a isso, com o coração partido, para ir
trabalhar. E, quando volta para buscá-lo à tarde, ei-la que se joga
para a criança - em geral quase nua pois lhe tiraram todas as
roupas - como uma pantera para sua pequena "panterinha", e ela
a beija, e a beija... A criança fica completamente desnorteada.
Lá se vão oito horas que não vê a mãe, não está no cheiro da mãe,
não teve tempo de reconhecê-la em nenhuma outra parecida,
nem seu rosto, nem sua voz, nem seu cheiro. A mãe está tão
frustrada, é duro deixar o filho de dois ou três meses na creche.
Algumas até se acham más mães por abandoná-lo assim um dia
inteiro. Não é exato. Se a mãe fosse má, a criança não teria o que
lhe é preciso, não engordaria bem, não comeria bem. A creche
tem muitas vantagens, sobretudo a do convívio com outros bebês.
Mas isso não impede que se

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17 As Etapas Decisivas da Infância

tomem algumas precauções: quando entra na creche e vê o filho,


a mãe pode falar-lhe - assim os ouvidos de seu bebê são primeiro
acariciados por sua voz—, vesti-lo suavemente, calmamente,
falando-lhe da casa, do pai, dos irmãos e irmãs. Uma vez de volta
à casa, no âmbito conhecido da criança, pode-se fazer a festa e
beijar-se, trocar carinhos. Quatro, cinco meses mais tarde, é a
própria criança que, pelo ouvido, de longe, espreita e reconhece
a mãe, estende-lhe os braços. Então é totalmente diferente, os
beijos da mãe não a desnorteiam, ela os espera e arrulha de
prazer.
Não há apenas os beijos, os afagos, numa relação mãe-filho. É
muito fácil abusar de nossa força, lançar-nos sobre a criança e
devorá-la de beijos. Sem dúvida, sem chegar a excessos
excitantes, o que causa prazer à mãe causa igualmente prazer à
criança. Mas a linguagem está aí, e tudo que prepara para a
linguagem. A expressão do rosto do lactente começa muito cedo,
ele entra muito cedo em linguagem de troca com o outro, com
seu rosto. Sabe-se que, já nas primeiras horas de vida, ele imita
as caretas do pai ou da mãe, mostra a língua quando a mostram a
ele. Todas essas mímicas de relação são mais interessantes do
que simplesmente beijá-lo. A criança não é um objeto, um
animaLzinho cujo contato proporciona prazer. É um homem, uma
mulher em devir. Vêem-se às vezes certas mães que repreendem
o filho ou batem nele, depois o afagam para consolá-lo. Elas
retiram seu amor, tornam a dá-lo, a criança não compreende mais
nada, o código de comunicação fica caótico. A mãe pode dizer:
"Eu o amo e é porque o amo que estou brava, se o repreendo é
porque você fez alguma coisa que é desagradável para mim ou
perigosa para você." A fala, aí também, é mais importante do que
os beijos, os gritos e os tapas.

À mesa como gente grande

Algumas mães me dizem: "Não consigo fazer meu filho comer, ele
enrola, enrola, não tem fim." Tomemos uma dessas famílias: a
mãe almoça sozinha com seus dois meninos de seis e de quatro
anos. Ela deve dizer sem parar: "Coma, coma, está esfriando,
olhe tudo que está sobrando no seu prato." Mas como transcorre
a refeição? Foi ela que pôs a mesa, ela faz o vaivém entre as

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18 As Etapas Decisivas da Infância

panelas e a mesa, corta, serve a comida, a bebida, etc. Por que,


então, ela faz o serviço desses senhores? Basta um nível mental
e motor de vinte e dois meses, ponhamos de três anos, para fazer
o serviço de mesa. Já aos três anos, a criança pode pôr sozinha a
mesa, mudar os pratos, servir-se da travessa ao seu prato e servir
a bebida. Que cada qual faça seu turno, depois de ter-se sentado
juntos. Aos três anos, pode-se ser ainda um pouco desajeitado.
Precisa-se de ajuda e aprende-se, mas não se aprende nada se a
mãe faz tudo. Sua presença, em compensação, atenta e agradável
no clima que ela mantém, é muito importante para os jovens
comensais. Se ela assiste à refeição das crianças e espera o pai
para jantar com ele, a mãe pode contar histórias na refeição
delas, as dos alimentos que comem, por exemplo, e muitas
outras. A refeição se toma um bom momento. Quando o ambiente
é agradável, as crianças não se aborrecem e comem bem melhor.
Se, no final da refeição, quando todos terminaram, a criança não
terminou seu prato? Tanto pior. (Não é forçada a terminar.) Tira-
se a mesa. Quem está de serviço tira-o dela, como no vagão-
restaurante: "Meu prato, meu prato! - Pois bem, você acabará se
quiser, vá terminar na cozinha, vou acomodá-lo; nós tiramos os
pratos!"
Comer à mesa com os pais é uma promoção. Mas, para ter acesso
a ela, deve-se comer sem fazer sujeira, deve-se aceitar refeições
mais longas. Até uma certa idade, a criança não o consegue, e
fica triste depor isso ser posta de lado. Portanto, é preferível
fazê-la comer antes (melhor do que depois), e consolá-la por ser
ainda pequena, dando-lhe um pedaço de chocolate, por exemplo,
e sobretudo tomando parte, se ela o deseja, depois de sua
refeição, naquela dos adultos, lambiscando sentada à mesa ou
perto dela, estando presente sem atrapalhar. O acesso à mesa
dos grandes, quando sabe comportar-se, é sinal de que os pais
não aceitam, não querem aceitar qualquer coisa. Mas é também
sinal de que não impõem às crianças, que não podem sentir
prazer nisso ou não o querem, a contenção imposta pela
participação na refeição da família em seu todo. Assistindo a ela,
a pedido delas, elas aprendem a comportar-se à mesa, e, se
incomodam os adultos, pode-se afastá-las. Nada é pior para pais
e filhos que estragar o ambiente das refeições.
Certas crianças aprendem muito depressa a comer sem fazer
sujeira, vêm com os pais à mesa e, depois, bruscamente, um belo

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19 As Etapas Decisivas da Infância

dia... portam-se como porcalhões. Algo aconteceu, não se sabe


bem o quê. De nada adianta ser rigoroso, zangar-se, castigar. A
criança que se porta assim deixa a mesa dos adultos para as suas
refeições. "Você está vendo, é muito demorado e muito dificil
para você todos os dias." De novo, quando souber regularmente
comer sem fazer sujeira, voltará. Mas esses ajustes educativos
não precisam ser acompanhados de broncas e de repreensões. E
importante que a criança, se ela o deseja, esteja presente nas
refeições dos grandes e dos pais, mesmo que já tenha comido:
não é expulsa. Evitam-lhe uma contenção obrigatória cedo
demais. Assim, a aquisição da limpeza não é um esforço, segue o
ritmo da criança. Quando ela for convidada fora da família, não
terá necessidade de "prestar atenção". A civilidade autônoma e
desembaraçada à mesa será adquirida pelo exemplo. Isso terá
ocorrido sem dramas. As broncas cortam o apetite, que não pode
vir na angústia. O essencial para uma refeição é que ela seja, para
todos os comensais, um momento de descontração, um momento
alegre, que nem a mãe nem o pai fiquem espreitando o modo de
comer nem a quantidade de alimentos comida. É fácil demais para
a criança jogar com a ansiedade da mãe. Quando a criança sabe
comer sem fazer sujeira, eventualmente pode servir-se sozinha,
a quantidade de comida absorvida é indiferente, a criança come
conforme seu apetite, nem mais nem menos.
Só depois de seis, sete anos, é que uma criança se habitua a
refeições importantes e espaçadas. Até aí, teria mais vontade de
comer um pouco o dia todo. Se ela senta à mesa, deve ter seu
prato e aprender a servir-se sozinha, na proporção de seu
apetite. Isso não se aprende num dia. Mas uma criança ou um
adolescente jamais deveria deixar alguma coisa em seu prato se
serviu-se sozinho. "O que você pegar, você comerá, então preste
atenção. Você pegará mais depois, se quiser." Ou, quando a
servimos: "Você quer um pouco, é? Você quer mais ainda? Está
vendo, você poderia depois pegar mais um pouco." Certas
crianças, quando sabem falar, lembram-se de que perdiam a
vontade de comer quando seu prato estava cheio demais. Diziam-
no à mãe. Outras, ao contrário, gostam das porções abundantes.
O essencial é que nada seja desperdiçado, que a criança não veja
a mãe jogar um resto de comida. Está sobrando meio iogurte?
Fechamo-lo de novo e o pomos na geladeira. Assim ela aprende a
não desperdiçar.

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20 As Etapas Decisivas da Infância

Quanto à cozinha, bem como quanto à manutenção de suas


roupas, de seu quarto e também da casa, meninos e meninas
podem participar muito cedo, muito mais cedo do que pensam as
mães que guardam por muito tempo o hábito de "servir os filhos
em tudo". As crianças estão instrumentadas para a vida quando
são capazes de virar-se e quando, assim que podem, são
associadas à animação das tarefas cotidianas, sem espírito miúdo.

Aprender a "ser asseado" (na calça e na cama)

De um modo geral, as meninas aprendem a não molhar mais a


calça mais cedo do que os meninos. Por volta de dezenove, vinte
meses, a incontinência diurna desaparece. Para os meninos, isso
sucede - em média - um pouco mais tarde, por volta de vinte e
quatro meses. A continência de urina noturna aparece
definitivamente - se nunca lhe foi dado valor bom ou ruim - no
mais tardar três meses depois da continência diurna. Mas o asseio
completo se instala um pouco mais tarde para os meninos do que
para as meninas. Isso provém de que, para as meninas, o "asseio"
(continência esfincteriana) não tem relação com o genital, ao
passo que, para o menino, a confusão permanece por mais tempo:
ele não faz diferença entre uma micção e uma ereção. E é essa
por certo a razão de sua aquisição mais lenta. Ele confunde
necessidades e desejos localmente surgidos nessa zona.
No inverno, ouvem-se mães no jardim público que se
impacientam: "Você precisa fazer xixi, ou cocô? Você não sabe?
Sua irmã sempre sabe, e você não sabe!" Para a mãe, é muito
diferente abrir somente a braguilha ou tirar completamente
suspensórios e calça! O menino não tem, tão claramente como a
menina, a noção frente-atrás. Isso provém das ereções penianas,
compatíveis, nos menininhos, com a micção, e, do outro lado, de
ereções reflexas sem necessidade de urinar que muitas vezes
acompanham a repleção retal.
O vocabulário contribui muito para aclarar as coisas ou para
aumentar a confusão. Quando se troca um bebê, só lhe falar de
seu "bumbum" aumenta a confusão. Ou então dizem a um maior,
indiferentemente: "Vá lavar seu traseiro..." Bumbum são as náde-

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21 As Etapas Decisivas da Infância

gas e o ânus, a frente é o sexo ou a micção urinária, tanto para a


menina como para o menino. Deve-se, pois, muito cedo, pela
linguagem, fazer as crianças compreenderem que não falamos da
mesma forma dos funcionamentos xixi ou cocô, e das partes do
corpo, atrás: nádegas; na frente: pênis, vulva. Senão, é a
confusão total, por muito tempo inculcada pela mãe e por sua
indistinção de vocabulário.

A ansiedade escolar

Hoje, acho realmente dramática a importância que pais e


professores atribuem ao êxito e ao nível escolares. Como se a
escola fosse tudo para a criança! E como se não soubéssemos,
todos nós, que não é esse o caso! Houve uma época em que a
escola era tudo para a criança quanto à aquisição do saber. Mas
isso acabou mesmo. A escola é um lugar insubstituível de
encontro com os outros, mas a rua, o rádio, a televisão ou as
revistas são mediadores de saber. Hoje, os professores já não são
somente pedagogos, têm de fazer uma educação que a família
reduzida já não assegura e deveriam ser, mais do que professores
de saber, educadores para a vida pessoal de cada criança. Eles
recebem - às vezes - uma formação psicológica, mas não é com
cursos que se adquire o senso da relação criança-adulto que
tinham por instinto os professores primários de outrora, cujas
classes únicas no campo agrupavam crianças de seis a treze anos.
Eles tinham também sua experiência de crianças e depois de
adultos, numerosos no lar, mais do que hoje, sobretudo na
cidade. Agora, e na cidade, as crianças são classificadas segundo
sua idade civil, como ovos, mas a idade afetiva, não se preocupam
com ela. Numa classe de crianças da mesma idade, algumas têm
dois anos e meio de maturidade, e outras dez anos. Não é fácil.
Quando a criança está "indo mal na escola", esse é um sintoma
que se deve levar em consideração e apreciar conforme muitos
critérios, mas não censurar a criança por esse fato. Isso indica
que outra coisa não vai bem. Por que desanimar a criança e os
pais, prever o mais sombrio futuro? Fazer a criança perder a
confiança em si é retirar-lhe suas possibilidades. Isso nunca
estimula. O fra-

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22 As Etapas Decisivas da Infância

casso escolar é uma prova trágica para muitas crianças'. O caráter


e a sociabilidade, a inteligência do corpo, das mãos, o espírito de
iniciativa e de colaboração são indispensáveis para a vida. Estar
interessado pelo que se diz e faz na classe (e no recreio) é mais
importante do que as notas que se obtém. Intervêm muitos
fatores afetivos que provêm a um só tempo do passado e do
presente da vida da criança, assim como do ambiente da classe.

Irmãos e irmãs

O relacionamento entre irmãos e irmãs é muito importante para


a educação social e, a esse respeito, cumpre observar algumas
regras de ouro.
Quando um dos filhos é pequeno, deve-se, é claro, protegê-lo do
maior³ que não percebe que o outro não é capaz de fazer aquilo
que ele próprio tem vontade de fazer: "Ele ainda não pode
brincar com você, mas você verá, ele é muito inteligente, isso vai
acontecer." E, ao pequeno: "Ele é grande demais para você." É
por isso que as crianças necessitam estar, grande parte de seu
tempo, com crianças da mesma idade (como, aliás, conviver
também com algumas crianças mais novas ou mais velhas),
mesmo que tenham irmãos ou irmãs em sua família. O pequeno
tem tendência a só ver pelos olhos do maior, e o mais velho só se
interessa pelo irmão dois ou três anos mais moço ao cabo de certo
tempo. Ou então, se se interessa por ele, banca o matamouro e
quer ter responsabilidades em relação ao pequeno, o que não é
seu papel e prejudica o desenvolvimento individual de ambos.
Nunca se pretenda, junto de um primogênito, que é "para ele"
(ou ela) que os pais põem outro no mundo. Quantas crianças são,
assim, selvagemente tomadas responsáveis por um indesejável
irmão ou irmã que supostamente haviam reclamado, ao passo que
tinham necessidade de um companheiro de brinquedo de sua
idade.
Seja dito claramente: o pequeno tem pai e mãe, não tem
"necessidade" do maior. Não se peça ao maior bancar o papai ou
a mamãe. Se ele o faz espontaneamente, tanto melhor, tanto
pior! Sobretudo, nada de elogios! E se eles se amam, tanto
melhor. Se não se amam, tanto pior. É por isso que um irmão mais
velho nunca

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23 As Etapas Decisivas da Infância

deveria ser padrinho ou madrinha de um irmão mais moço. A não


ser que tenha dezesseis ou dezessete anos, idade em que não se
confunde direitos e deveres, responsabilidade e tomada
autoritária de poder abusivo... E olhe lá! Por que não garantir ao
recém-nascido uma relação com padrinho e madrinha exterior à
família?
Outra regra: não ouvir as "delações". Mesmo que se trate de algo
perigoso e proibido: "Tudo terminou bem? Ainda bem!" Em todo
caso, você, o adulto, não viu com seus próprios olhos. "Era
proibido porque era perigoso, e continuo a proibi-lo porque
continua a ser perigoso. - Você não vai ficar brava com ele? - Por
quê? Eu não vi. Mas proíbo você de fazer a mesma coisa. Ele
assumiu riscos, tanto pior ou tanto melhor para ele." Não castigar.
Não ficar bravo. Escutar tranqüilamente. "Verdade, aconteceu
isso?" Aliás, muitas vezes, não sucedeu nada. O maior contou
histórias ao pequeno, vangloriou-se, usou de truques para deixá-
lo bravo ou para assombrá-lo. O outro entrou. "Eu vou dizer para
a mamãe." Deve-se acabar imediatamente com essa chantagem.
Também com a maledicência.
Por vezes, irmãos e irmãs batem um no outro. Você não viu nada
e o pequeno chega chorando: "Ela me machucou!" Ele está
realmente machucado? Cumpre tratar dele, ficar com pena dele:
"Foi ela que lhe fez isso? Coitada, ela não se deu conta da força
dela e de que você era menor, mais fraco." Chega a atacante: "Ele
me aborrece, pega minhas coisas...!" Ficamos com pena dela
também: "É verdade que você não tem um irmão fácil de
conviver, uma irmã à sua altura, para brincar com você." De
qualquer modo, nunca dar razão nem a um nem ao outro.
Finalmente, tudo se arranja muito bem. "Eu não fiz de propósito",
diz o presumido fomentador de distúrbios. "Espero mesmo, só
faltava isso... Você exagerou um pouco..." Não se fala mais nisso.
Certas crianças vão "delatar" um companheiro, ou um "malvado"
para os pais, os seus ou o do outro. Maledicência ou calúnia? Vai-
se lá saber. As vezes é porque estão com ciúmes dele, gostariam
de ter a liberdade, a audácia de um, o pai ou a mãe de outro. Se
acontece isso, pode-se perguntar à criança: "Por que você vem
me dizer isso, para mim?" Ela responderá alguma coisa. "Você está
preocupado? Até as crianças podem ficar preocupadas por um
amigo que assume riscos. Você não se atreveria a

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24 As Etapas Decisivas da Infância

fazer como Jerônimo? Você tem razão de não fazer se ainda não
se sente forte ou se acha que não está certo. Mas você crescerá."
Em geral, essas crianças que "contam" a qualquer adulto que seja
o que aos seus olhos um outro fez de errado, de proibido ou de
imprudente, têm pais que não cuidam muito delas. Por vezes,
invejam amigos que recebem palmadas e contam as artes que
fizeram. "Por quê? Você está com vontade de levar uma palmada?
- Não, mas o pai dele o leva também ao futebol." Em suma, ela se
interessa pelas relações pais-filhos dos outros.
Para os pais, essa educação que devem dar aos filhos, a cada
criança que entra em relação com eles na sociedade, é muito
dificil de matizar. O essencial da educação é fazer crescer a
autonomia de cada qual e, no dia-a-dia, o senso critico referente
ao possível e ao impossível. Às vezes, uma criança faz uma arte,
como se diz, dá o mau exemplo. O irmão, a irmã, os companheiros
a imitam. E um líder. Trata-se de algo que poderia ter sido
perigoso, os pais que viram devem repreender, punir. Mas, se
punem, que punam mais o imitador do que o líder! "Ele, o que
tomou a iniciativa, eu o puno menos, porque ele assumiu o risco.
Quanto a você, 1° você sabia que era uma arte, 2° você o imitou:
dois erros! Reflita sempre antes de agir."
A imitação é o contrário da humanização. A imitação é simiesca,
nunca se deveria utilizar, como alavanca na educação, o termo
"mau exemplo", dado ou seguido. Infelizmente, tornou-se um
argumento, onipresente: "Olhe como seu irmãozinho é ajuizado",
ou "Olhe o filho de Fulano, as filhas de Sicrano..." Como se os pais
quisessem ter posto no mundo os filhos dos outros! "Meu filho é
um bom menino, mas deixou-se levar por um mau companheiro."
Isso não é uma desculpa. Entre irmãos e irmãs, a imitação pode
ser a causa de graves dificuldades. Uma criança pode tolerar
como modelo um irmão ou uma irmã mais velhos se os pais não
os individualizam muito cedo. "A primeira etapa para ficar como
papai, dizia um menino quinze meses mais moço do que a irmã
mais velha, é ser minha irmã!" Quando o sexo é diferente, os pais
costumam observar essa dependência e às vezes acabam logo
com ela. Há numa família duas espécies de primogênito, o
primogênito das meninas e o primogênito dos meninos, sem
nenhuma comparação possível. Mas, quando se trata do mesmo

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sexo, a imitação, a cópia, é igualmente perigosa, embora menos


visível. E, aí, os pais têm tendência a encorajar essas duplas
inseparáveis em família. Cumpriria falar claramente. A uma
segunda filha: "Você toma sua irmã por modelo, mas ela não pode
sê-lo. Vocês são muito diferentes, vocês se desenvolvem de modo
diferente. Se você quiser desenvolver-se 'como ela', você não se
desenvolverá tão bem como você tem de se desenvolver. É
melhor procurar uma amiga." Quando as coisas não são ditas,
pode ser muito dificil retomar o próprio caminho. Essas
associações ou essas duplas em família, esses inseparáveis entre
um dominado e um dominante são prejudiciais ao
desenvolvimento social de cada qual.
Mais uma palavra referente a um defeito de que se desejaria lue
a criança se corrigisse. Nunca é lutando contra ele que a criança
resolverá o problema. É apenas desenvolvendo suas qualidades.
Cumpriria sempre falar das qualidades em embrião em cada qual,
as que estão na natureza, e mostrar-lhe como, ao desenvolvê-las,
ela adquirirá domínio de si mesma, amigos e inserção social. E
depois tomar cuidado para não chamar de defeito o que iião é.
Por exemplo, a curiosidade, a gulodice, a tagarelice, a agitação
fisica. Conforme o modo como o adulto fala, a criança pode .ichar
ser um defeito uma atitude espontânea que deve ser
desenvolvida: a curiosidade, um desejo de saber, a gulodice, uma
agudeza discriminatória do paladar, uma habilidade para
cozinhar, a tagarelice, um desejo de comunicar-se ou a agitação
fisica, uma atitude para desenvolver sua motricidade nos jogos,
no esporte. (Sabem que Einstein vivia "no mundo da lua", era
atrasado na escola e só soube ler e escrever aos nove anos?) Nem
todas as naturezas de crianças são sempre de convívio cômodo
para seus familiares, mas isso não é uma razão para chamar
propensões naturais de defeitos por corrigir. Em inúmeros casos,
a educação para lutar contra defeitos só desenvolve o
desencorajamento, quando não a mentira ou a hipocrisia, e a
consciência pesada, o narcisismo infeliz. A criança tem
necessidade de sentir-se amada, primeiro como ela é, e apoiada
para desenvolver o que possui.
Todo desejo pode ser apoiado para sua utilização a serviço de e
dos outros. Estigmatizar um comportamento natural desvia uma
criança da harmonia de seu caráter. É possível e deve-se aju-

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26 As Etapas Decisivas da Infância

dá-Ia a tornar-se, com a ajuda de sua natureza, sociável e


criativa, industriosa ou tenaz. Se uma criança não foi, a tempo,
reconhecida desde pequena em seu valor potencial natural,
guiada a conhecer suas reais qualidades e a desenvolvê-las, não
saberá lutar por seu prazer, nem fazer amigos, nem cultivar suas
qualidades. A energia que a pessoa gasta para lutar contra seus
pretensos defeitos é inutilizável para desenvolver como
qualidades o que sua-natureza particular continha. Não nos
esqueçamos disso. É bom também dar a uma criança metas a
curto e médio prazo, em vez de um grande programa de vida
perfeita.
O coleguismo fora do círculo familiar também deve ser
favorecido. Toda vez que se sente numa criança uma atração por
uma outra, é bom encorajá-la a realizar o conhecimento dessa
outra na realidade, e a fazer ela própria a experiência de uma
amizade que deseja. Quantas crianças são impedidas, ou
desencorajadas de antemão, dessas experiências das coisas ou
das pessoas que as atraem, pela angústia dos pais de que o filho
seja decepcionado das esperanças que tem, ou pela idéia apriori
que fazem das boas ou más iniciativas (há crianças que não
perseveram, isso não importa), dos "bons" ou dos "maus"
companheiros (a pretexto de aparência verbal ou das roupas ou
de mau aluno na classe). As melhores ocupações e relações são,
para as crianças, as que as fazem-descobrir crianças diferentes
delas, e famílias diferentes das delas. É preciso encorajá-la a
jamais julgar bem ou mal de modo abstrato, absoluto, ou segundo
o critério dos adultos, e sim segundo sua própria experiência,
tanto nas atividades escolhidas como em suas relações com
aqueles com quem ela tem afinidades a priori. É perigoso, para a
sua personalidade, impor a uma criança a convivência com
crianças de quem ela não gosta, um esporte ou uma arte de que
não gosta. Agir para agradar aos pais (conscientemente) é
alienante.
Controlar uma criança é confiar nela, deixá-la experimentar o
que é possível e falar de tudo, com confiança, com os pais,
sobretudo das "diferenças" entre ela e os outros, entre sua família
e as outras famílias, o que pensa disso, ouvi-Ia falar sobre as
relações pais-filhos ou de casal que ela observa, ajudá-la a
refletir sobre tudo isso, com referência à história e às
experiências de cada qual. Já aos nove, dez anos, educados
assim, meninos e meninas

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27 As Etapas Decisivas da Infância

estão armados para a vida social sem antolhos, para a abertura


aos outros, sem perigo de decepções ou de sujeição, tendo já
uma autonomia que sustenta cada qual em sua confiança em si
próprios, enraizada na confiança na família, ao mesmo tempo que
em sua tolerância para com pessoas diferentes.
Claro que aos nove, dez anos, uma criança já não diz tudo o que
pensa ou faz aos pais, mas não é para esconder-se deles, isso é
assumir suas responsabilidades. E, se os pais não se mostrarem
curiosos e frustrados, se ela necessitar de ajuda num momento
dificil, ela saberá chamar à parte, o pai, se for um menino, a mãe,
se for uma menina, para fazer confidências, tanto mais que será
certo que nada do que for dito a um dos pais será repetido por
suas costas ao outro (outra regra de ouro em educação). Quando
muito um "você deveria falar também à sua mãe, ela seria boa
conselheira..." , ou "você deveria falar disso ao seu pai, você pode
confiar nele...". Nunca apoiada por um progenitor contra o outro,
nunca segredinhos para coisas importantes. E depois, também,
incentivar o jovem a confiar em vários adultos de bom alvitre, a
fim de ele próprio descobrir a decisão que tomar sem jamais
sujeitar-se ao conselho (desejo) de apenas um de seus
interlocutores, seja ele o pai ou a mãe. A partir de dez anos toda
criança - assim educada - está apta para traçar sozinha uma certa
linha de vida à qual ela refere seus projetos e seus atos.
Seja qual for a idade de uma criança ou de um pré-adolescente,
temos de perguntar-nos sempre - sem nem sempre poder,
infelizmente, achar-lhe a resposta certa - se o que eu lhe disse
ali, ou respondi aqui, ou incentivei ou obriguei a fazer em
determinada Situação, era realmente para ele (ou para ela), ou
não era para eu mesmo pondo-me em sua idade, em seu lugar,
atitude imaginária em geral irreprimível nos pais, mas não
realista e não educativa.
Nenhuma educação deixa de ter problemas. O importante é saber
isso e nunca culpar nossos filhos das dificuldades que
experimentam nem daquelas que nos causam, ou nos causaram.
Eles próprios têm tanto que nos perdoar as dificuldades que
inutilmente acrescentamos às deles!

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