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A terceira

Dezembro ~() 11 62
OPÇÃO LACANIANA
ISSN 1519-3128

Opção Lacaniana é uma revista psicana11rica brasileira internacional


Editada por Edições Eolia
Rua Albuquerque Lins 902/212 01230-000
São Paulo - SP - Brasil - Fax: (5511) 3826 9731

Colaboração: Fundação do Campo Freudian o e Associação Mundial de Psicanálise


Acordos com uLa Leme Mensuelle" da École de la Cause freudienne

Integra a rede Scilicet III que reúne ao Lado de Omicar? as seguintes publicações:
Clique, Belo Horizonte; Cuademos de Psicoanálisis, Bilbao; EL Psicoanálisis, Madrid;
Freudiana, Barcelona; La Cause Freudiene, Paris; La Psicoanalisi, Roma,
La Psychanalyse, Acenas; Mental, Paris-Bruxelas; Opção Lacaniana, São Paulo;~arto, Bruxelas

FUNDADORES: Antonio Beneri, Angelina Harari, Bernardino Horne, Luiz Henrique Vidigal

DIRETOR: Jacques-Alain Miller

EDITORA: Angelina H arari


COORDENAÇÃO: Teresinha N. Meirelles do Prado
COLABORAÇÕES: Cynthia Nun es de Freitas, H eloisa Caldas (Tradução),
Jovica Carneiro Lima, Marcus André Vieira (Clássicos), Rosa Maria Rodrigues dos Santos,
Teresinha N. Meirelles do Prado (Distribuição e Revisão Técnica}
DIAGRAMAÇÃO: Angda Mendes e Fabiane Sandes
IMAGEM DA CAPA: Jacques Lacan, publicada com a gentil
autorização de Judith Miller

O s colegas que desejarem receber Opção Lacaniana


por correio ou desejarem difundi-la, podem dirigir-se à
redação pelo e-mail oplacan iana@gmail.com.
S"óJoo
~

OPÇAO LACANIANA
R ev i s t a Br as il ei r a Int er n ac i ona l d e P s i ca n á li se

ED IÇÃO E SPECI AL - 30 A NOS COM L ACAN

62

EDITOlllAIS
Cristiane Alberti - Lacan, homem de revistas 3
Teresinba N M. Prado - Editorial, 9

LACAN E SUA LETRA


Jacques Lac,:;,,n - A Terceira, 11

ORI EN TA1ÇÃO LACA NIA NA


Jacques-Alain Mille - O demônio de Lacan, 37
Judith Miller - A reco quista do Campo Freudiano, 71

A PSICANÁ LI SE NA CONTEMPORA NEIDADE


Eric Laurent - A or em simbólica no século XXI,
consequência para o tratamento, 81

O PASSE NA EjS COLA DE LACAN HOJE


Angelina Harari - /Jm certo saber de passe ..., 93
Ana Lydia SanJtiago - CoGp de foudre, 97
Sérgio de Campo{-" - Amar sem compreender, 105

HOMENAGEM A LACAN : 30 ANOS
Elisa Alvarenga - Porque Lacan está vivo, m
Pascale Pari - O obscuro objeto do texto, 115
Nora Gonçalves - Lacan lógico, 121
Cristina Vidigal - Lacan e a etologia, 125
Jésus Santiago - Lacan e a filosofia, 129
Sérgio Laia - Um (inusitado) Lacan freudiano, 135
Jorge Forbes - Jacques Lacan e suas duas clínicas, 149
Bernardino Horne - Lacan topológico, 151
Rómulo F Siltl.'J. - Lacan, supervisor, 155
Antonio Beneti - A inconsistência do Outro, 159
Sandra Grostein - A transmissão da psicanálise: entre a refundação
lacaniana e a invenção própria de cada um, 163
Simone Souto - Lacan e o 0bjeto a, em três tempos, 167
Jordan Gurgel - Lacan, psiquiatra, 173
Ram Mandil - Latan joyceano, 177
Francisco Paes Barreto - Lacan e a apresentação de pacientes, 181
Celso Rennó Lima - Lacan e til mestre Clérambault, 185
Marcelo Veras - Um dizer sem palavras, 189
Marcus André Vieira - O resto e o riso, 193
Ana Lucia Lutterbacb - O gozo feminino e o Um, 201
Stella Jimenez - Lacan n1atemático, 209
Luiz Henrique Vidigal - O outro encontro: Lacan e a Escola, 213
Romildo do Rêgo Barros - Lacan e o ,acontecimento de corpo, 217
Carlos Augusto Nicéas - Lacan e a formação do analista:
um ensino ímp;1.r, 221
Sérgio de Mattos - Ciêni.:ia, religião e o
feminino no discurso hipermoderno, 225
Maria do Rosário do Rêgo Barro - Lacan e a criança, 227

ABST R AC T S, :31
OPÇÃO LACANIANA
Revista Brasileira Internacional de Psicanálise

62

EDITORIAIS

UCAN, HOMEM DE REVISTAS*


CHRISTIANE ALBERT! (TOULOUSE)
a!berti2@wanadoo.fr

Jacques Lacan, homem de revistas? Sim, em um primeiro sentido, se considera-


mos que a obra propriamente escrita de Lacan inicialmente se apresentou, até 1966, em
grande parte sob a forma de artigos curtos, calibrados para revistas. Suas únicas obras
escritas são a recensão destes. Efetivamente Lacan não era urn autor apressado e seus
trabalhos são geralmente circunstanciais ou feitos sob encomenda. Sim, também em um
segundo sentido, se alguém evoca a "sua'' revista Scilicet.
O endereçamento privilegiado a revistas visa ainda responder à atualidade de
seu tempo. Sua contribuição para revistas como Le Minotaure, Cahiers d'art, Cahiers
Renau.lt-Barraull, Les Tcmps modernes, Critique ... , que tiveram um papel decisivo na vida
artística e intelectual na tradição das revistas francesas, marca seu desejo de manter vivos
esses lugares privilegiados para a análise crítica e a criação literária. Segundo Barthes,
fazer ou participar de uma revista representava "um ato inteiramente social" 1 . O silên-
cio eloquente de Lacan durante toda a guerra se insere nessa escolha ética. Quanto à
publicação de artigos ou de comunicações em revistas de psicanálise (La Ps_)/chanalyse,
L'Évolution psycbiatrique, la Revue française de psycbanalvse... ), ela importa por sua
vontade de restaurar o decisivo da experiência freudiana e de seu combate pela trans-
missão da psicanálise, o único que deu continuidade à descoberta de Freud.

Opção L:tcaniana nº 62 3 Dezembro 2011


Transformar seus leitores

Lacan mantém o endereçamento de cada contribuição escrita a um argumento fun-


damental da publicação. Frequentemente ela figura no título de modo explícito, às vezes
jogando com o mal-entendido. Deste modo, seu "Prefácio à edição inglesa do Seminário
11", para além dos leitores ingleses, se dirige aos psicanalistas da ECF, como nos mostrou
Jacques-Alain Miller em seu curso. Esses escritos, vale sempre a pena esclarecê-los por
seu contexto, de tal modo que cada um testemunha a conversação contínua que Lacan
manteve com os psicanalistas de seu tempo (até o final de sua vida).
"A direção do tratamento ... " ou "Variantes da cura-tipo", que são artigos polêmicos
de ponta a ponta, citam e visam aurores da tradição analítica. J.-A. Miller destaca assim
a incidência desse endereçamento: "A leitura de lacan certamente transformou seus
leitores" 2 •
Jamais sistemática, sempre justificada e ajustada aos meios de difusão, a publicação
em Lacan provém de uma política precisa. Em um primeiro tempo, conforme ele anuncia
em seu "Pequeno discurso no ORTF" para introduzir os Escritos lançados em 1966, Lacan
buscou restringir o endereçamento de seus textos "àqueles que podem funcionar com"3
eles, e preconizou um método que não deixa ao leitor outra saída senão entrar no texto:
convidando cada um a fazer-se o seu destinatário e nele "colocar algo de si'>4. Aos seus
Escritos, "só há como se deixar envolver ou largá-los de lado"5 Pois convocando à en-
tendimento6, mais do que à compreensão, que não comporta consequências subjetivas.
Nesse sentido, para Lacan, a leitura é clínica e o despertar só pode ser singular7. Entre
seus enunciados corre um desejo ao qual o leitor pode se enganchar. A dimensão da
enunciação é, portanto essencial nesse caso. A definição do "desafio, feito para tentar o
desejo"8, segundo a feliz fórmula escolhida por J.-A. Miller, convém aqui exatamente ao
método de leitura promovida por Lacan.
É preciso destacar incessantemente a natureza antitética dos escritos de Lacan.
Pertencentes a um "ensino", segundo o termo deliberadamente escolhido por Miller, eles
atestam sobretudo uma contínua abertura de caminhos, pois destinam-se a articular o
que da experiência se deposita.

Pequenos fragmentos de escrita para aproximar o real

Por que Lacan privilegiou o formato "revista" para seus escritos? Mais do que autor,
ele foi um homem de ensino crítico assíduo, destinado a justificar uma prática. A prio-
ridade conferida a esse seminário, que por muito tempo foi semanal, e a uma prática
bastante intensa não lhe deixou tempo para publicar mais, conforme indica Miller9•

Opçào Lacaniana nº 62 4 Dezembro 2011


EDITORIAIS

Muitos desses escritos não o são propriamente aos seus olhos, pois Lacan os situa
'no meio do caminho entre o escrito e a fala' 10 , tratando-se particularmente de comu-
nicações em colóquios de psiquiatria ou de psicanálise. Lacan reserva o termo 'escrito'
àqueles em que prevalece a dimensão do texto, como lugar de um estreitamento. Assim
como os artigos de Freud, os textos de Lacan são "pedras de espera"11 que traçam so-
bretudo o que ex-siste de seu ensino: "Cada um dos escritos de Lacan - nos indica J.-A.
Miller - é para ele o memorial de uma dificuldade especial de seu auditório para entrar
em seu ensino. Era realmente quando algo travava em seu ensino que um escrito se de-
positava ali-"' 12 . Lacan nos convida portanto a atravessar o texto a fim de circunscrever de
mais perto a falta que o causa.
O trabalho de redução que opera desse modo, de longos desenvolvimentos falados
a textos calibrados, por outro lado corresponde ao formato da produção científica. Em
virtude de sua abordagem racionalista do inconsciente freudiano, sem nenhuma com-
placência com o obscuro ou o inefável, Lacan prefere escritos pouco loquazes, calcados
nos usos do campo da crítica.
A escolha desse formato se inscreve no movimento que conduz Lacan a sempre
desvencilhar a psicanálise da consistência imaginária para encontrar no próprio jogo
do escrito o ponto de orientação: "é por meio desses pedacinhos escrita que, histori-
camente, entramos no reaJ" 1 :i. Foi com a referência do materna que Lacan afirmou seu
desejo de transmissão de um saber literalizável. Lacan via na matemática "o paradigma
da transmissibilidade integral", com a condição de precisar, conforme faz Milner 14, que
ele retoma da matemática tudo dessa referência à letra e ao cálculo, com exceção da
dedução que supõe o encadeamento das ideias.
Compreenderemos, a partir disso, por que lacan levou tão a sério a fónnula do
projeto bourbakista, e nele encontrou uma resposta para a pergunta: "O que é uma re-
vista para a psicanálise?'', entre materna e Scilicet.

Scilicet: uma ética das consequências

Em sua introdução à revista Scilicet, Lacan registra o fracasso de um ensino que


durante doze anos só se endereçara a psicanalistas, nas sociedades psicanalíticas exis-
tentes. Desse novo órgão de publicação ele faz um dos meios para superar os obstáculos
que as resistências encontradas por sua "Proposição ... " de 1967 na EFP lhe fizeram temer
ver ressurgir: "Tal é o remédio cavalar, o Jorcing, ou até fórceps, cuja inspiração me
ocorreu como a única apropriada para desatar a contorção pela qual, em psicanálise, a
experiência se condena a nunca dar passagem a nada que possa modificá-la." 15
A quem se dirige Scilicet? Ela se endereça a um "Você, que eu busco". Ao bachelor,

Opção I..acaniana nº 62 5 Dezembro 2011


"para te lembrar teu lugar nesse império de pedantismo'·, ao bache/01; ainda não casado.
Lacan está em busca de um "novo leitor" 16 , para além do círculo de sua Escola. Essa
mudança de endereçamento começou em 1964. O interesse dos normalistas 17 da época,
além do público intelectual que afluiu à ENS, modificou o foco do discurso, tornando-se
ensino, de Lacan.
O projeto de Scilicet repousa no princípio do texto, não anônimo (incógnito sem-
pre em relação ao seio de uma "comunidade de analistas"), mas não assinado.
Lacan sustenta que o fato de certificar, selar uma produção ou uma tese com o
nome do autor, em certo sentido obstaculiza um ensaio rigoroso. Em suma: apresentar
uma tese "para validar um senhor" se produz necessariamente em detrimento do esfor-
ço de articular uma proposição verdadeira. A esse respeito, ele nos lembra que durante
séculos o "não assinado" em nada feriu a produção e a transmissão de um discurso rigo-
roso, E, para citar, há o exemplo de Dideror, cujo texto O sobrinho de Rameau, até 1891,
só circulou sob a forma de sua retradução a partir da tradução alemã feita por Goethe,
vendo aí o exemplo adequado para demonstrar que a obra e seus efeitos sobrepujam de
longe o que sabemos do autor, Foi com a finalidade de propagação do discurso, mais do
que da promoção do autor que, no campo da psicanálise, Lacan teve a ideia de lançar
textos não assinados em Scilicet, a bem nomeada.
No seminário O avesso da psicanálise, lacan se detém um momento sobre as leis
da tese universitária. A ordem discursiva que obriga tal produção tem "sempre relação
com o significante-mestre" 18 , ou seja, precisamente um nome de autor. A tese vem lastrar
o nome do autor - por meio da produção alguém "advém ao nome" - ao passo que seu
conteúdo será obrigatoriamente relacionado às qualidades do autor. A remissão recíproca
do nome à tese e da tese ao autor se basta, e se sobrepõe, definitivamente, ao conteúdo
da tese. Por conseguinte, o sujeito não está ligado às consequências do que diz. Trata-
-se, portanto, de uma configuração que vale inteiramente para o papel do significante-
-mestre.
Ao caracterizar o autor por sua natureza de identidade fictícia, Lacan faz uma ad-
vertência àqueles que tratariam seus Escritos como produto de um autor. Deste modo
esse projeto revista está em consonância com a posição afirmada de Lacan, que consiste
em preservar a ordem que vai do discurso ao saber. Essa ordem basta para arruinar a
possibilidade de um saber que buscaria seu fundamento em uma cabeça pensante. Se o
sujeito está implicado aí, é como "composto de uma relação com o saber", mais do que
autor suposto ao saber.
Contribuir com Scilicet é, definitivamente, colocar em jogo o título de "aluno de
Lacan". Scilicet entende assegurar a esse respeito um estatuto de "não negociável'·, "um
futuro menos especulativo''. É por isso que o nome próprio de Lacan é "inescamoteável
no programa". Longe de fazer de Lacan um autor, trata-se, para cada redator, na condi-

Opçào Lacaniana nº 62 6 Dezembro 2011


ção de psicanalista, de extrair as consequências do que Lacan diz no plano da práxis
psicanalítica.

Tradução: Teresinha N. Meirelles do Prado.

Notas

Texto publicado originalmente em la Cause Jreudienne, (79): 83-87, outubro 2011.


"Fazer uma revista, mesmo literária, é um ato inteiramente social: é decidir que se vai, de certa forma, institucionalizar a
atualidade". Barthes, R. (2007). Crítica e Verdade. (Col. Debates). São Paulo: Perspectiva, p.74.
2 Miller, ).-A. (nov, 1981). "Entretien sur la lccture de Lacan'·. Litura, (4/5): 3.
3 Lacan, J. (2003[1966}). "Pequeno discurso no ORTF". ln Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.229.
4 Lacan, J. (1988[19661). ~Abertura desta coletfinea". Tn Escritos. Rio de Janeiro: 7..ahar, p.11.
5 1,acan, J. (1970/2003). "Prefácio a uma {ese". ln Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.389.
6 N.T. É preciso recorrer à etimologia para entender a oposição feita pela autora nesse trecho. Em um primeiro momento,
entendement e compréhension são sinônimos. Mas se consideramos que a primeira e.\pressào vem do latim inteudere (no
sentido de consentimento, de dar atenção, de 'tender a') e a segunda vem de comprebensio (no sentido de conceber por
meio da inteligência, do juízo).
7 A formulação exata de Lacan: "Do qual só existe despertar particular". Lacan, J. 0975/2003). "Talvez em Vinccnncs ...n.
ln Outros escritos. RJ: Zahar, p.318. Esse trecho não deixa de ecoar pelo parentesco que um Kant valoriza entre sonho e
dogmatismo. Cf. Kant, I. (1988[17831). Prolegômenos a toda metafísica futura. Lisboa: Edições 70.
8 Miller, J.-A (2003). [Texto da 4• capa]. ln Lacan, J. (2003). Outros escritos. RJ: Zahar.
9 Cf. Miller, J.-A. (1985). Entretien sur le Séminaire avec François Ansermet. Paris : N:warin, p.13.
10 Cf. Lacan, J. 0998). ~A inslância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud". ln Escritos. RJ: Zahar, p.496.
11 Cf. Lacan, J. 0981 [1955-561). O Seminário, li11ro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.123.
12 Millcr,j.-A. (nov, 1981). Op.cit., p.12.
13 Lacan, J. ( 2007 [1975-761). O Seminário, livro 23: O Sintboma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.66.
14 Milner, j.-C. 0992). "Jacques Lacan, pensée et savoir". ln Con11aissez-vous Lücan? [co!I.). Paris : Seuil, p.197.
15 Lacan, J. 0968/2003). "Introdução de Sci/icet no título da revista da Escola Freudiana de Paris''. ln Outros escritos. RJ:
Zahar, p.289.
16 Lacan, J. (1998). ~Abertura desta coletânea·. ln Escritos. RJ: Zahar, p.10.
17 N.T. Alunos da École Normale Supéricurc; centro de excelência nas ãreas de Letras e Filosofia da França.
18 Lltcan, J. 0991 11969-70]). O Seminário, /foro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.182.

Opção Lacaniana nº 62 7 Dezembro 2011


EDITORIAIS

EDITORIAL

TERESINHA N. M. PRADO (SÃO PAULO)


tmprado@gmail.com

É com grande satisfação que apresento esta edição especial de Opção Lacaniana,
concluindo uma série de eventos que marcaram esse momento especial dos 30 anos ela
morte de Jacques l.acan.
Por que comemorar o aniversário do desaparecimento de alguém? Uma primeira
resposta, óbvia, é que toda situação é um bom motivo para render homenagem a um
nome que marcou uma época. Uma segunda resposta diz respeito especificamente ao
'acontecimento' lacan para a psicanálise.
Muitos dentre nós (é o meu caso, inclusive) não conheceram a pessoa de Lacan.
Mas todos tivemos acesso aos seus textos, em grande parte graças ao trabalho incansá-
vel de Jacques-Alain Miller, não só pelo empenho em publicar os seminários e escritos,
mas por um desejo decidido pela transmissão da psicanálise tal como as formulações de
Lacan permitem conceber, a ponto de fazer prosperar uma Escola de psicanálise, apesar
das dificuldades que isto implica.
Hoje, o que podemos falar de Lacan e sua Escola? Em um especial momento de
maturidade, vemos a transferência de trabalho .impulsionar o desejo de psicanalistas em
vários países, sem, contudo, eliminar as singularidades.
Entender a Escola como lugar que acolhe as diferenças sem uniformizá-las, apos-
tando no modo de cada um haver-se com seu sintoma e colocar seu traço singular a ser-
viço de uma causa, é considerar, na sua radicalidade, a potência da subversão realizada
por Lacan na psicanálise.
Em outras palavras, é justificar a existência de uma instituição psicanalítica não
como um reduto de identificações grupais, mas um lugar de encontro a partir do furo,
cio traumatismo em relação ao qual, de algum modo, o encontro com a letra, o 'aconte-
cimento' Lacan mantém, para cada um, certo ponto de consonância. Acerca desse pomo,
talvez pudéssemos dizer, parodiando o famoso adágio lacaniano sobre a psicose (toman-
do-o como condição necessária, mas não suficiente): 'não é lacaniano quem quer·.

Opção Lacaniana nº 62 9 Dezembro 2011


Esta edição especial de Opção Lacaniana traz depoimentos e textos de colegas
do Campo Freudiano, textos cujo mote principal foi a relação particular que estabelecem
com a psicanálise e com o ensino de Lacan.
Para completar esta homenagem, trazemos ao leitor brasileiro a primeira edição
estabelecida de "A terceira", de Jacques Lacan, um texto instigante e provocador, que
estou certa de que produzirá entre nós muitos e produtivos debates.
Como dizia Jorge Luiz Borges, "Um livro é um objeto físico num mundo de objetos
físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras
- ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos
- saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra." 1

Viva Lacan!

Nota
1 Borges, J. l. (2000). Esse ofício do verso. SP: Companhia das letras, p.12.

Opção lacaniana nº 62 10 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

A TERCEIRA*

JACQUES LACAN

Roma, 1° de novembro de 1974


Intervenção no VII Congresso da Escola Freudiana de Paris

A terceira. Ela retorna, é sempre a primeira, como diz Gérard de Nerval. Faremos
a objeção de que isso faça disca1? Por que não, se isso diz isto?
É preciso ainda ouvi-lo, por exemplo, como o Diz-co-urso de Roma 2
Se injeto assim uma ponta a mais de onomatopeia em lalíngua, isto não quer dizer
que esta não esteja à altura de me retorquir dizendo que nfto existe onomatopeia que
não se especifique previamente por seu sistema fonemático, o de lalíngua.
Vocês sabem que, para o francês, Jakobson a calibrou - é grande assim [Lacan
aponta com o dedo a palma de sua mão]. Dizendo de outro modo, é por ser francês que
o Discurso de Roma pode ser ouvido como Diz-co-urd'roma:1i_
Atenuo isto ao destacar que urd'roma é um rom-rom que admitiria outras lalínguas,
se agrado as orelhas de alguns de nossos vizinhos geográficos, isto se extrai naturalmen-
te do jogo de matriz4 de Jakobson que especifiquei há pouco.
Como não devo falar por muito tempo, vou lhes passar uma coisa.
Esse urd'roma simplesmente me permite colocar a voz sob a rubrica dos quatro
objetos por mim chamados de a, de esvaziá-la da substância que poderia haver no ruído
que ela faz, quer dizer, de recolocá-la na conta da operação significante, aquela da qual
especifiquei os ditos efeitos de metonímia. De tal modo que a partir disto a voz está livre
de ser outra coisa além de substância.
Mas trata-se de outro delineamento que entendo indicar ao introduzir a minha
Terceira.

Penso, logo go(z)sou'

A onomatopeia que me ocorreu de maneira um pouco pessoal me favorece - bate

Opção Lacaniana nº 62 11 Dezembro 2011


na madeira' - com o fato de que o rom-rom é sem dúvida o gozo do gato. Se isto se
passa em sua laringe ou outro lugar, não faço ideia. Quando os acaricio, parece vir do
corpo inteiro, e é isto que me permite entrar no ponto do qual quero partir.
Parto daí. Isto não lhes dá necessariamente a regra do jogo, mas ela virá depois.
'Penso, logo Se goza'. Isto rejeita o 'logo' usual, aquele que diz "Eu go(z)sou".
Faço aqui uma pequena brincadeira. 'Rejeitar' deve ser entendido aqui como o que
eu disse acerca da foraclusào - rejeitado, o go(z)sou reaparece no real.
Isto poderia passar por um desafio na minha idade, no qual, há três anos, como
se diz às pessoas quando se quer quebrar-lhes a cara, Sócrates estava morto. Mas, ainda
que eu de/untasse em seguida - isto poderia me acontecer, aconteceu com Merleau-Pon-
ty, assim, na tribuna-, Descartes jamais entendeu dizer, através de seu go(z)sou, que ele
gozava da vida. Não se trata disso de modo algum. Que sentido tem isso, seu go(z)sou?
Exatamente o meu tema específico, o Eu [fel da psicanálise.
Naturamente ele não sabia disso, pobrezinho. Ele não sabia é claro, é preciso que
1 1

eu interprete isto nele - é um sintoma. Pois antes de concluir que ele segue6 - segue o
1

quê? A música do ser, sem dúvida - a partir do que será que ele pensa? Ele pensa sobre
o saber da Escola, com o qual os jesuítas, seus mestres, lhe encheram as orelhas. Ele
constatou que era superficial.
Certamente ele teria sido melhor sucedido, evidentemente, se vislumbrasse que seu
saber ia muito mais longe do que ele acreditava, depois da Escola. Há óleo na água, se
posso dizer, pelo simples fato de que ele fala, pois ao falar lalíngua, ele tem um incons-
ciente, e é miserável, como cada um que é digno de respeito. É o que eu chamo de um
saber impossível de reintegrar pelo sujeito, enquanto este. o sujeito, só tem um signifi-
cante que o representa diante desse saber. É um representante comercial, se posso dizer,
com esse saber - saber constituído, para Descartes, como era de uso na sua época, por
sua inserção no discurso em que nasceu, quer dizer, aquele que chamo de discurso do
mestre, o discurso do fidalgote. É exatamente por isso que ele não se sai bem com seu
Penso. logo go(z)sou.
Ainda assim é melhor do que o que diz Parmênides. A opacidade da conjunção
do noei'n e do efnar, do pensamento e do ser, ele não se sai bem com ela, esse pobre
Platão. Sem ele, o que saberíamos de Parmênides? Mas isto não impede que não tenha
se saído bem. Se ele não nos transmitisse a histeria genial de Sócrates, o que é que se
extrairia dele?
Durante essas peudo-férias eu me debrucei sobre O Sofista. Devo ser muito sofista,
provavelmente, para que isto me interesse. Deve haver ali algo em que fiquei detido. Não
aprecio isso. Faltam-nos coisas para apreciar, falta-nos saber o que era o sofista nessa
época, falta-nos o peso da coisa.
Voltemos ao sentido do go(z)sou.

Opção Lacaniana nº 62 12 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

Não é simples o que na gramática tradicional se coloca na qualidade de conjugação


de certo verbo 'ser'. Em latim, todo mundo percebe isso - fui não se soma a sum -, sem
contar o resto do bricabraque. Passo-o a vocês. Passo-lhes tudo o que aconteceu quando
os nativos, os Gauleses, tiveram de se livrar de uns maus bocados com isso - eles fizeram
o est deslizar para o lado do stat. Inclusive eles não foram os únicos - na Espanha me
parece que aconteceu a mesma coisa. A linguisteria se livra de tudo isso como pode.
Não vou agora repetir-lhes o que faz a festa de nossos estudos clássicos.
Não obstante possamos nos perguntar qual carne esses seres - que sào inclusive
seres de mito, mitemas, nós os inventamos propositalmente - cujo nome escrevi no
quadro-negro, os Undoiropeus 7, poderiam colocar em sua cópula, para todo lado além
de nossas línguas, qualquer coisa serve de cópula 8 . Eles colocavam ali algo como a pre-
figuração do Verbo encarnado, diremos isto - aqui!
IA sala de Santa Cecília contém inúmeros símbolos.]
Isso me chateia. Acreditaram que me agradariam ao trazer-me a Roma, não sei por
que, há lugares demais para o Espírito Santo. O que é que o Ser tem de supremo se não
é por meio dessa cópula?
Eu me diverti ao interpor aí o que chamam de pessoas, e cheguei a algo que me
agradou - m'es-/u me, mais tu me tues9 - isto faz enrrascar-se - m.'aimes tu? me-me? Na

realidade, é a mesma coisa, a história da mensagem que cada um recebe de forma inver-
tida. Digo isto há bastante tempo, e já provocou muitos risos.
Na verdade, é a Claude Lévi-Strauss que devo essa expressão. Ele se virou para
uma de minhas excelentes amigas que é sua mulher - Monique, para chamá-la pelo
nome - e lhe disse, a respeito do que eu falava, que era isso, que cada um recebia sua
própria mensagem de forma invertida. Monique a repetiu para mim. Eu não poderia
encontrar fórmula mais feliz para o que eu queria dizer naquele momento. Mesmo
assim foi ele quem a passou para mim. Vejam que me aproprio do meu bem onde o
encontro.
Passo para outros tempos, nas escoras do pretérito imperfeito - "Eu era". - Ah, o
que é que tu e(sco)ras10 ? - e depois, o resto. O subjuntivo é engraçado. "Que seja!" -
Casualmente, assim ..
Passemos, pois é preciso que eu avance.
Descartes, por sua vez, não se engana quanto a isso - Deus é o dizer. Ele vê muito
bem o deuzer, é o que faz com que seja a verdade o que decide a esse respeito, na sua
cabeça. Basta deuzer como eu. É a verdade, não há como fugir dela. Se Deus me engana,
tanto melhor, é a verdade pelo decreto do deuze1; a verdade perfeita.
Faço aí algumas observações sobre pessoas que arrastaram a crítica do outro lado
do Reno para acabar beijando o traseiro de Hitler. Isto me faz ranger os dentes.
Isto é o número um. Então, agora, o simbólico, o imaginário e o real.

Opção Lacaniana nº 62 13 Dezembro 2011


O simbólico, o imaginário e o real

O inaudito é que isto ganhou sentido - e se deu arrumado de qualquer jeito. Nos
dois casos foi por minha causa, do que chamo de vento - em relação ao qual sinto que
não posso sequer prever-, aquele com o qual se inflam as velas em nossa época.
É evidente que não falta sentido para isso no início. É nisto que consiste o pensa-
mento - palavras introduzem no corpo algumas representaçàes imbecis.
Aí está, vocês têm a coisa - vocês têm aí o imaginário, que além do mais nos regur-
gita (rend gorge). Isto não quer dizer que ele nos emproa (rengorge). Ele nos re-vomita
(re-dégueule). Como é que é? - assim, casualmente, uma verdade, uma verdade a mais.
É o cúmulo.
Que o sentido se aloje no imaginário, isto nos dá, ao mesmo tempo, os dois outros
como sentido. O idealismo, cuja imputação todos repudiaram, está por trás disso. As
pessoas só pedem isso. Isso lhes interessa, uma vez que o pensamento é o que há de
mais cretinizante a agitar o guizo do sentido.
Como tirar-lhes da cabeça o emprego filosófico de meus termos, quer dizer, seu
emprego chulo - quando, por outro lado, é preciso que isso entre? Mas seria melhor
que entrasse alhures. Vocês imaginam que o pensamento se nrnntém nos miolos. Não
vejo por que dissuadi-los disso. De minha parte, estou certo - certo assim, isto é assunto
meu - de que se mantém no músculo subcutâneo da testa, no ser falante exatamente
como no ouriço.
Adoro os ouriços. Quando vejo um, coloco-o em meu bolso, em meu lenço. Natu-
ralmente, ele mija - até que o coloco sobre a grama em minha casa de campo. E então,
adoro ver se produzir esse dobramento dos músculos subcutâneos da resta, e em segui-
da, assim como nós, se enrola como uma bola.
Se vocês podem pensar com os músculos subcutâneos da testa, podem também
pensar com os pés. E é aí que eu gostaria que a coisa entrasse - pois afinal de contas o
imaginário, o simbólico e o real, são feitos para que aqueles desse tropel que me segue,
possam trilhar o caminho da análise.
Essas rodelas de barbante cujos desenhos eu me extenuei ao tentar traçar, não se tra-
ta de fazer ronrom para elas. Isto teria que servir-lhes, e justamente na velocidade ela qual
lhes falava este ano - que isto sirva para que vocês distingam a topologia que isso define.
Esses termos não são tabus. O que é preciso é que vocês os captem. Eles estão aí
desde antes daquela que implico ao dizê-la primeira - a primeira vez em que falei em
Roma. Depois de ter cogitado bastante eu os saquei, esses três, muito cedo, muito antes
de me haver colocado em meu primeiro Discurso de Roma.
Que esses termos sejam essas rodelas do nó borromeano, ainda assim não é mo-
tivo para que vocês metam o pé aí. Não é isto que chamo de "pensar com seus pés".

Opção Lacani:uw nº 62 14 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

Do ser ao semblante

Tratar-se-ia de que vocês deixassem aí - falo dos analistas - algo muito diferente
de um membro, a saber, esse objeto insensato que especifiquei pelo a.
É isto que se apanha no bloqueio do simbólico, do imaginário e do real como nó.
É ao pegá-lo em cheio que vocês poderão responder ao que é sua função - oferecê-lo
como causa de seu desejo a seu analisante.
É o que se trata de obter. Mas se você metem a pata nisso, também não é terrível.
O importante é isto seja feito às suas custas.
Depois desse repúdio ao go(z)sou, vou me divertir em dizer-lhes que esse nó, é
preciso sê-lo. E acrescento o que vocês sabem acerca dos quatro discursos a partir do
que articulei durante um ano sob o título O Avesso da psicanálise- não é menos verdade
que do ser é preciso que vocês somente façam o semblante. Isto é sábio! É tanto mais
sábio que não basta ter uma ideia dele para fazer-se o seu semblante.
Não imaginem que eu tenha tido uma ideia dele. Escrevi objeto a. É completa-
mente diferente. Isto o aparenta à lógica, quer dizer1 isto o torna operante no real como
o objeto do qual justamente não há ideia. É preciso dizer que o objeto do qual não há
ideia era justamente, até agora, um furo em qualquer teoria que fosse.
Isto justifica as reservas com relação ao pré-socratismo de Platão que manifestei
há pouco. Não é que ele não tenha tido o sentimento disso, pois o semblante, ele aí se
deleita sem o saber. Isto o obsedia, ainda que não o saiba. Isto quer dizer apenas uma
coisa: é que ele o sente, mas não sabe por que é assim. Disso decorre esse insupnrte,
esse insuportável que ele propaga.
Não há nenhum discurso em que o semblante não conduza o jogo. Não vejo por
que o mais recente, o discurso analítico, escaparia a isso. Mesmo assim não é uma razão
para que, nesse discurso, sob pretexto de que é o mais recente, vocês se sintam pouco
à vontade, a ponto de fazer dele, segundo o uso no qual se enrolam seus colegas da
Internacional, um semblante mais semblante do que natureza, exposto.
Mesmo assim, lembrem-se de que o semblante daquele que fala desse modo está
sempre lá, em qualquer espécie de discurso que o ocupe. É até uma segunda natureza.
Então, sejam mais descontraídos, mais naturais, quando receberem alguém que vem lhes
demandar uma análise. Não se sintam forçados a se dar ares de importantes. Mesmo
como bufões, vocês estão justificados de o ser.
Basta ver a minha Televisão. Eu sou um clown. Peguem exemplo aí, e não me imi-
tem! O sério que me anima é a série que vocês constituem, vocês não podem ao mesmo
tempo ser e pertencer.

Opção l.acaniana nº 62 15 Dezembro 2011


Sobre o real

O simbólico, o imaginário e o real são o enunciado do que opera definitivamente


na sua fala quando se situam a partir do discurso analítico, quando analistas vocês são.
Mas esses termos só emergem realmente por e para esse discurso. Não tive de
colocar aí intenção, também eu só fiz segui-lo. Isto não quer dizer que não esclareça os
outros discursos, mas também não os invalida.
O discurso do mestre, por exemplo, seu fim é que as coisas caminhem no passo de
todos. Bom, isto não é de modo algum a mesma coisa que o real, pois este, justamente,
é o que não caminha, é o que cruza a frente da charrete, e mais, o que não cessa de se
repetir para impor um entrave a essa marcha.
Eu disse isso inicialmente sob esta forma: "o real é o que retorna sempre ao mesmo
lugar". O acento deve ser colocado sobre o "retorna··. É o lugar que ele descobre, o lugar
do semblante. É difícil instituí-lo meramente a partir do imaginário, como a noção de
lugar parece inicialmente implicar. Felizmente nós temos a matemática topológica para
nos dar um suporte. É o que estou tentando fazer.
Em um segundo momento, ao definir esse real, tomei-o como o impossível de
uma modalidade lógica que busquei demarcar. Suponham, com efeito, que não houvesse
nada de impossível no real - os cientistas fariam uma careta, e nós também. Mas quanto
caminho foi preciso percorrer para se ver isso! Durante séculos acreditou-se que tudo
era possível.
Talvez alguns dentre vocês tenham lido Leibniz. Ele só se saía bem por meio do com-
passível. Deus fizera o melhor que pôde, era preciso que as coisas fossem possíveis juntas.
O que há de combinado e mesmo de combinação por trás disso tudo não é imaginável.
Talvez a análise nos introduzirá a considerar o mundo como o que ele é - imagi-
nário. Isto só pode ser feito ao reduzir a função dita de representação, a situá-la onde
está, ou seja, no corpo.
Há muito tempo se espera por isso. É nisto que consiste o idealismo filosófico.
O idealismo filosófico chegou a esse ponto. Só que, enquanto não havia ciência, só se
podia calá-lo, não sem uma pequena farpa - resignando-se, eles esperavam os sinais do
além, do noumeno, que é como chamam isso. É por isso que há sempre algum bispo
envolvido no assunto, o bispo Berkeley especialmente, que em sua época era imbatível,
e isto era muito conveniente.
O real não é o mundo. Não há nenhuma esperança de alcançá-lo por meio da
representação. Não vou me rneter a arguir aqui a teoria dos quanta, nem ela onda e elo
corpúsculo. Mesmo assim, é melhor que vocês estejam informados a respeito, ainda que
isto não lhes interesse. Mas, colocar-se a par disto, façam-no por si próprios, basta abrir
alguns livrinhos de ciência.

Opção Lac.-mbna n" 62 16 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

Ao mesmo tempo, o real não é universal, o que quer dizer que ele só é "todo" no
sentido estrito de que cada um de seus elementos seja idêntico a si mesmo, mas sem po-
der dizer pántes, todos. Não há 'todos os elementos', há apenas conjuntos a determinar
em cada caso - e não vale a pena acrescentar 'é tudo'. Meu S1 tem apenas o sentido de
pontuar esse algo, esse significante - letra que escrevo como S1 - que só se escreve ao
fazê-lo sem nenhum efeito de sentido. Em suma, é o homólogo do que acabo de dizer-
lhes sobre o objeto a.
Quando penso que me diverti por um momento a brincar com esse Si - que levei
à dignidade do significante Um - e o a, enlaçando-os por meio do número de ouro! Essa
vale por mil' Quero dizer que isto adquire o alcance de escrevê-lo. De fato, era para
ilustrar a vanidade de todo coito com o mundo, quer dizer, do que até aqui se chamou
de consequência. Pois não há nada mais no mundo que um objeto a, bosta ou olhar, voz
ou teta, que refende o sujeito, caracteriza-o nesse dejeto que ex-siste ao corpo.
Para fazer semblante dele é preciso talento. É particularmente difícil. É mais difícil
para uma mulher do que para um homem, ao contrário do que se diz.
Que a mulher seja objeto a do homem no caso, isto não quer dizer de modo al-
gum que ela goste de sê-lo. Mas, enfim, acontece. Acontece de ela parecer-se com isso
naturalmente. Não há nada mais parecido com uma bosta de mosca do que Ana Freud.
Isto deve lhe servir.
Sejamos sérios. Voltemos a fazer o que estou tentando.

O sintoma vem do real

Tenho que sustentar esta Terceira pelo real que ela comporta, e é por isso que
lhes coloco a questão em relação à qual vejo que as pessoas que falaram antes de mim
conjecturam um pouco. Não apenas conjecturam, mas até disseram - que elas tenham
dito é signo de que o supõem. A psicanálise é um sintoma?
Vocês sabem que quando faço perguntas é porque tenho a resposta. Mas, enfim,
mesmo assim seria melhor que fosse a resposta certa.
Chamo de sintoma ao que vem do real.
Isto se apresenta como um pequeno peixe cujo bico voraz só se fecha ao colo-
car-se sentido sob o dente. Então, das duas uma. Ou isto o faz proliferar - "Crescei e
multiplicai-vos", disse o Senhor. Este emprego do termo multiplicação é mesmo assim
algo um pouco forte, que deveria nos provocar tiques, pois o Senhor sabe o que é uma
multiplicação, não é o crescimento do peixinho. Ou então, ele padece disso.
O que seria melhor, e em relação ao que deveríamos nos esforçar, é que o real do
sintoma padeça disso. E aí está a questão: como fazer?

Opção Lacaniana nº 62 17 Dezembro 2011


Em uma época na qual eu me espalhava pelos serviços de medicina - não vou
nomeá-los, ainda que faça alusão a eles no papel, isto será impresso, é preciso que eu
pule um pouco - para tentar fazer entender o que era o sintoma, eu não o dizia inteira-
mente como agora, mas mesmo assim - talvez seja um Nachtrag - acho que já o sabia,
mesmo que não tivesse ainda feito surgir o imaginário, o simbólico e o real.
O sentido do sintoma não é aquele com o qual o nutrimos para sua proliferação
ou extinção. O sentido do sintoma é o real, na medida em que ele se põe de través para
impedir que as coisas caminhem, no sentido em que elas garantam a si mesmas de modo
satisfatório - satisfatório pelo menos para o mestre, o que não quer dizer que o escravo
sofra com isso se algum modo, longe disso.
O escravo, de sua parte, ele é sossegado, muito mais do que imaginamos. É ele
quem goza, ao contrário do que diz Hegel, que mesmo assim deveria dar-se conta disso,
pois é justamente por esse motivo que o escravo se deixa levar pelo mestre. Então, Hegel
ainda lhe promete o futuro~ ele está empanturrado!
Isto também é um Nacbtrag, mais sublime do que em meu caso, se posso dizer,
pois prova que o escravo tinha a felicidade de já ser cristão no momento do paganismo.
É evidente, mesmo assim é curioso. Realmente, aí está o benefício total. Tudo para ser
feliz! Nunca mais se encontrará isso.
Agora que não há mais escravos, estamos reduzidos a sorver o quanto pudermos
as comédias de Plauto e Terêncio, para termos uma ideia do que eles eram exatamente.
Eu me disperso. No entanto, não o faço sem perder a corda /o acorde (la carde)
do que essa dispersão prova.

A psicanálise é um sintoma

O sentido do sintoma depende do futuro do real - portanto, conforme eu disse na


conferência para a imprensa, do sucesso da psicanálise.
O que lhe demandamos é que nos livre do real e do sintoma. Se ela bem sucede,
se tem sucesso nessa demanda, podemos esperar qualquer coisa - digo isso assim, vejo
que há pessoas que não estavam nessa conferência para a imprensa, é para elas que digo
-, a saber, um retorno da verdadeira religião, por exemplo, que, como vocês sabem, não
tem ares de quem definha. A verdadeira religião nâo é louca, todas as esperanças lhe são
boas, se posso dizer, ela as santifica. Então, é claro que isto as permite a ela.
Se, então, a psicanálise tiver sucesso, ela se apagará, por não passar de um sintoma
esquecido. Ela não deve se deslumbrar com isso, é o destino da verdade tal como ela
mesma o coloca no princípio - a verdade se esquece. Portanto, tudo depende de o real
insistir. Para isso, é preciso que a psicanálise fracasse.

Opção l..acaniana nº 62 18 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

É preciso reconhecer que ela toma esse caminho e, portanto, que tem grande
chance de permanecer um sintoma, de crescer e multiplicar-se. Psicanalistas não mortos,
carta/letra segue (suit)!
Mesmo assim, desconfiem - talvez seja a minha mensagem de forma invertida.
Talvez eu também me precipite. É a função da pressa, que valorizei para vocês.
No entanto, o que acabo de dizer-lhes pode ter sido mal-entendido, de modo a ser
tomado no sentido em que a psicanálise seria um sintoma social. Só existe um sintoma
social - cada indivíduo é realmente um proletário quer dizer não há nenhum discurso
1 1

com o qual fazer laço social, dito de outro modo, semblante. Foi isto que Marx remediou
de modo inacreditável. Dito e feito. O que ele emitiu implica que não há nada a mudar.
É inclusive por isso que tudo continua exatamente como antes.
A psicanálise, socialmente, tem uma consistência diferente dos outros discursos.
Ela é um laço a dois. É nisto que ela se encontra no lugar da falta de relação sexual. Isto
não basta de modo algum para fazer dela um sintoma social, pois uma relação sexual
falta em todas as formas ele sociedades. Está ligado à verdade que faz a estrutura de todo
discurso.
É por isso, inclusive, que não há uma verdadeira sociedade fundada no discurso
analítico. Há uma Escola, que justamente não se define por ser uma Sociedade. Ela se
define pelo fato de que nela ensino alguma coisa.
Por mais divertido que isto possa parecer quando falamos da Escola Freudiana,
é algo do gênero do que fizeram os estoicos, por exemplo. Os estoicos tinham uma
espécie de pressentimento do lacanismo - foram eles que inventaram a distinção entre
o signans e o signatum. Por outro lado, eu lhes devo respeito pelo suicídio - não por
suicídios fundados em um gracejo, mas por essa forma de suicídio que é, em suma, o ato
propriamente dito. Não se deve perdê-lo, claro, senão ele não será um ato.
Em tudo isso, portanto, não há problema de pensamento. Um psicanalista sabe
que o pensamento é aberrante por natureza, o que não impede que seja responsável
por um discurso que solda o analisante a quê? - não ao analista, mas ao par analisante-
analista.
Alguém disse isso muito bem esta manhã, vou exprimi-lo de outro modo, mas é
exatamente a mesma coisa, estou feliz que isto convirja.

A angústia dos cientistas

O mordaz de tudo isso é que seja o analista quem dependa cio real nos anos que
virão, e não o contrário.
Não é de modo algum do analista que depende o advento do real. O analista tem

Opção Lacaniana nº 62 19 Dezembro 2011


por missão contrariá-lo. Apesar de tudo, o real poderia tomar as rédeas", sobretudo de-
pois que passou a ter o apoio do discurso científico.
É até um dos exercícios do que chamamos de ficção-científica, que, devo dizer,
nunca leio, mas muitas vezes, nas análises, contam-me o que há dentro. É inimaginável!
- o eugênico, a eutanásia, enfim, todo tipo de eu-pilhérias (d'euplaisanteries) diversas.
Isto só se torna engraçado quando os próprios cientistas são pegas, não pela ficçào-
científica, evidentemente, mas por uma angústia.
Isto é instrutivo. É o sintoma-tipo de todo acontecimento do real.
Quando os biólogos - para nomear esses cientistas - impõem-se o embargo de um
tratamento laboratorial das bactérias sob pretexto de que, se as tornássf'mos muito fortes
e resistentes, elas poderiam escapolir por debaixo da porta e eliminar no mínimo toda
experiência sexuada ao eliminar o falasse,; mesmo assim, isto é algo bastante mordaz.
Esse ataque de responsabilidade é formidavelmente cómico. Toda a vida enfim reduzida
à infecção que ela realmente é segundo qualquer verossimilhança. é o cúmulo do ser
pensante. O incômodo é que eles não se dão conta de que a morte se localiza ao mesmo
tempo no que em lalíngua, tal como a escrevo, acena para isso.
Seja como for, os "eu" acima destacados de passagem. nos colocariam enfim na
apatia do Bem universal. Eles fariam suplência à ausência da relação que eu disse ser
para sempre impossível, por meio dessa conjunção de Kant com Sade na qual acreditei
dever destacar em um escrito o futuro que paira sobre nossas cabeças, ou seja, o mes-
mo em que a análise tem de certa forma o seu futuro assegurado. "Franceses, ainda um
esforço para sermos republicanos", caberá a vocês responder a esta objurgação, mesmo
que eu não saiba ainda se este artigo lhes será indiferente - há apenas um sujeitinho que
se debruçou sobre ele, e isto não deu grande coisa.
Quanto mais 'como o meu Dasein', conforme escrevi no final de um de meus Se-
minários, menos sei sobre o tipo de efeito que ele produz em vocês.

O inconsciente, um saber que se articula com lalingua

Esta Terceira, leio-a, quando vocês talvez possam se lembrar de que A Primeira
que aqui retorna, eu acreditara dever colocar ali a minha falância, uma vez que a im-
primiram depois, sob o pretexto de que vocês todos teriam o texto distribuído. Se hoje
não faço senão urd'roma, espero que isto não lhes seja um obstáculo excessivo para
entender o que leio. Peço desculpas se esta leitura é excessiva.
A Primeira, então, aquela que retorna para que não cesse de se escrever, necessá-
ria, Função e campo... , eu disse ali o que era preciso dizer. A interpretação, emiti, não
é interpretação de sentido, mas jogo com a equivocidade, foi por isso que coloquei o

Opção Lacaniana nº 62 20 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

acento sobre o significante na língua. Designei-o como instância da letra, isto para me
fazer entender por seu pouco de estoicismo.
Disso resulta, acrescentei depois, sem mais efeitos, que é em lalíngua que opera
a interpretação - o que não impede que o inconsciente seja estruturado como uma lin-
guagem, uma dessas linguagens nas quais é justamente assunto dos linguistas convencer
de que lalíngua é animada. A gramática, como eles geralmente chamam isso, ou quando
é Hjelmslev, a forma. Isto não se dá isoladamente, mesmo que alguém que me deve a
abertura desse caminho colocou o acento na gramatologia.
Lalíngua é o que permite que o 'voto' (voeu), aspiração, consideremos que não é
por acaso que seja também o 'quero' (veut) de querer, terceira pessoa do indicativo -
que o 'não' (11011) negando e o 'nome' (nom) nomeando, também não é por acaso - que
'deles' (d'eux), de antes desse 'eles' (eux) que designa aqueles (ceux) dos quais falamos,
sejam feitos da mesma forma que o algarismo dois (deux), isto não é aí puro acaso, nem
arbitrário tampouco, como diz Saussure. O que é preciso conceber aí é o sedimento, o
aluvião, a petrificação que é marcada pelo manejo, por um grupo, de sua experiência
inconsciente.
Lalíngua não deve ser dita viva porque está em uso. É sobretudo a morte do signo
que ela veicula. Não é porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem que
lalíngua não vai jogar (jouer) contra seu gozar (jouir), pois ela se constituiu a partir desse
próprio gozar.
O sujeito suposto saber que é o analista na transferência não é suposto errone-
amente se sabe em que consiste o inconsciente, em ser um saber que se articula com
lalíngua, o corpo que aí fala só está enlaçado a ele pelo real do qual se goza,

O corpo na economia do gozo

O corpo deve ser compreendido ao natural como desenlaçado desse real que, para
ex-sistir a ele na qualidade ele fazer seu gozo, não lhe é menos opaco.
Ele é o abismo menos notado do que quer que seja lalíngua que, esse gozo, a civi-
liza, se ouso dizer. Entendo com isto que ele a conduz a seu efeito desenvolvido, aquele
pelo qual o corpo goza de objetos.
O primeiro dentre eles, aquele que escrevo com o a, é, eu dizia, o objeto do qual
não há ideia como tal, a não ser ao quebrá-lo, esse objeto - caso em que estes pedaços
são identificáveis corporalmente e, como estilhaços do corpo, identificados, e isto so-
mente pela psicanálise. É nisto que esse objeto constitui o nó elaborável do gozo. Mas
ele só se mantém pela existência cio nó, nas três consistências de toros, de rodelas de
barbante que o constituem.

Opção Lacaniana nº 62 21 Dezembro 2011


O estranho é esse laço que faz com que um gozo, qualquer que seja, suponha esse
objeto, e deste modo, o mais-de-gozar, pois foi assim que acreditei poder designar seu
lugar, seja, em relação a algum gozo, sua condição.
Se este é o caso no que diz respeito ao gozo do corpo, na medida em que é gozo
da vida, a coisa mais espantosa é que o a separe esse gozo do corpo e o gozo fálico.
Para apreendê-lo, é preciso que vocês vejam como é feito o nó borromeano. Fiz
um pequeno esquema.

Sentido
Simbólico

Corpos

@ Real Real

Que o gozo fálico se torne anômalo ao gozo do corpo, isto já foi percebido mil e
uma vezes. Não sei quantos caras aqui estão um pouco por fora dessas histórias feitas
nas coxas 12 que nos vêm da Índia - parece que chamam isso de Kundalini. Eles de-
signam desse modo essa coisa que escala toda a sua medula espinhal, como dizem. E
explicam isso de uma forma que diz respeito à coluna - eles imaginam que é a medula,
e que ela sobe até os miolos. Depois, fizeram alguns progressos em anatomia.
Como entender o fora do corpo do gozo fálico'
Nós o ouvimos esta manhã graças a meu caro Paul Mathis, que é também aquele
a quem felicitei pelo que li dele sobre a escrita e a psicanálise. Esta manhã ele nos deu
um formidável exemplo disso. Esse Mishima não é uma sumidade. E para nos dizer que
foi São Sebastião quem lhe deu a oportunidade de ejacular pela primeira vez, realn1ente
essa ejaculação tinha que tê-lo espantado.
Vemos isso todos os dias, caras que nos contam que sempre se lembrarão de sua
primeira masturbação, pois isto rouba a cena.
Compreende-se bem por que isso rouba a cena: porque não vem de dentro da cena.

A preferência pela imagem

O corpo se introduz na economia do gozo pela imagem. Foi daí que parti. A
relação do homem, do que chamamos por esse nome, com seu corpo, se há algo que
destaca que ele é imaginário, é o alcance que a imagem aí adquire.

Opção Lacaniana nº 62 22 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

De início destaquei que para isso era preciso haver uma razão no real. Só a pre-
maturação o explica. Isto não é meu, é de Bolk - nunca busquei ser original, sempre
busquei ser lógico. Essa preferência pela imagem vem do fato de que o homem antecipa
sua maturação corporal, com tudo o que isso comporta, a saber, que ele não pode ver
um de seus semelhantes sem pensar que de toma o seu lugar - então, naturalmente, ele
o vomita.
Por que o homem é tão subserviente à sua imagem? Quanto esforço fiz certa época
para explicar isso! Naturalmente, vocês nem se deram conta. Eu quis absolutamente dar
a essa imagem não sei que protótipo em certo número de animais, a saber o momento
em que a imagem assume um papel no processo germinal. Fui buscar o gafanhoto, o
peixe-espinho, a pomba, e não se tratava de modo algum de um prelúdio, de um exercí-
cio. Será que vão nos dizer agora que tudo isso estava fora da obra? Que o homem goste
tanto de olhar sua imagem, aí está, resta apenas dizer - "É assim".
O que há de mais espantoso é que isso permitiu o deslizamento do mandamento
de Deus. Mesmo assim o homem é mais próximo de si mesmo em seu ser do que em
sua imagem no espelho. Então, que história é essa do mandamento: "amarás ao teu pró-
ximo como a ti mesmo" - se isso não se funda nessa miragem, que ainda assim é algo
divertido?
Mas, como essa miragem é justamente o que o leva a odiar, não o seu próximo,
mas seu semelhante, é um troço que passaria um pouco pela tangente se não pensásse-
mos que, ainda assim, Deus deve saber o que diz, e que há para cada um algo que se
ama ainda mais do que sua imagem.

Vida implica gozo?

Se há algo que nos dá uma ideia do "se gozar" é o animal. Não se pode dar ne-
nhuma prova disso, mas isto parece estar implicado no que se chama de corpo animal.
A questão se torna interessante a partir do momento em que a ouvimos, e em que,
em nome da vida, nos perguntamos se a planta goza.
Essa questão tem um sentido, pois n1esmo assim foi aí que me deram o golpe do
lírio dos campos. "Eles não tecem nem fiam", acrescentaram. É certo que agora não
podemos nos contentar com isso, pela simples razão de que 1 justamente, é o caso deles,
de tecer e de fiar. Para nós que vemos isso com rnicroscópio, não há exemplo mais ma-
nifesto do que o do fio da tecedura. Então, talvez seja disso que eles gozem, de tecer e
de fiar. Mas, mesmo assim isso deixa o conjunto da coisa completamente boiando.
Resta a definir a questão de saber se vida implica gozo. Se a resposta permanece
duvidosa para o vegetal, isto só faz valorizar mais o fato de que não o seja para a fala.

Opção I.:icaniana nº 62 23 Dezembro 2011


Como eu disse, lalíngua, na qual o gozo constitui sedimento, não sem mortificá-la, não
sem que ela se apresente como madeira morta, testemunha, mesmo assim, que a vida
da qual uma linguagem constitui a rejeição, nos dá a ideia de que é algo da ordem do
vegetal.
É preciso observar isso de perto.

O significante-unidade é a letra

Há um linguista que muito in.si.stiu .sobre o fato de que o fenômeno jamais faz
sentido. O incômodo é que a palavra também não faz sentido, apesar do dicionário. De
minha parte, faço o esforço de produzir qualquer sentido com qualquer palavra em uma
frase. Então, se fazemos qualquer palavra produzir qualquer sentido, onde interromper
a frase? Onde encontrar a unidade-elemento?
Já que estamos em Roma, tentarei dar-lhes uma ideia do que eu queria dizer, sobre
o que acontece com essa ideia de unidade significante a buscar, a partir do fato de que
há, vocês sabem, as famosas três virtudes, ditas justamente teologais.
Aqui, nós as vemos apresentar-se às muralhas, exatamente por todo lado, sob a
forma de mulheres planturosas. O mínimo que podemos dizer é que, depois disso, ao
tratá-las como sintomas, nào estamos forçando a barra. De fato, definir o sintoma como
eu fiz, a partir do real, é dizer que as mulheres também exprimem muito bem o real,
uma vez que, justamente, insisto sobre o fato de que as mulheres são não-todas.
A fé (la foi), a esperança e a caridade, denominá-las como a feira (la foire), dei-
xesperança13, a partir de lasciate ogni speranza - é um metamorfema como outro, já
que há pouco vocês me passaram urd'roma - para acabar arquirateado 14, a rata tipo,
parece-me que é uma incidência mais efetiva para o sintoma dessas três mulheres. Isto
me parece mais pertinente do que o que se formula, por exemplo, quando alguém se
mete a racionalizar tudo, como essas três questões de Kant, das quais tive que me livrar
na televisão. São, a saber: "o que posso fazer?"; "o que me é permitido esperar?" - é
realmente o cúmulo - e "o que devo fazer?".
Mesmo assim é bastante curioso que estejamos nesse ponto. Não que eu considere
que a fé, a esperança e a caridade sejam os primeiros sintomas a colocar na berlinda.
Não se trata de maus sintomas, mas enfim, isto distrai muito bem a neurose universal.
Isto quer dizer que isso permite que afinal de contas as coisas não caminhem tão mal, e
que estejamos todos submetidos ao princípio de realidade, isto é, ao fantasma. A Igreja
está aí a velar. E uma racionalização delirante como a de Kant é o que ela tampona.
Tomei esse exemplo para não me atrapalhar no que comecei por lhes dar como
exemplo do que é preciso para tratar um sintoma.

Opção l.acaniana nº 62 24 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

A interpretação deve sempre ser - como disse, graças a Deus, ontem mesmo, Tos-
tain - o ready made de Marcel Duchamp. Que pelo menos vocês entendem alguma coisa
dele. Nossa interpretação deve visar o essencial no jogo de palavras para não ser aquela
que alimenta o sintoma com sentido.
Vou confessar-lhes tudo, por que não' Esse troço, o deslizamento da fé, esperança
e caridade para a feira - digo isto porque alguém na conferência para a imprensa achou
que eu peguei um pouco pesado nesse assunto da fé e da feira -, é um de meus sonhos.
Mesmo assim tenho o direito, tal como Freud, de participar-lhes meus sonhos. Contraria-
mente aos de Freud, eles não são inspirados pelo desejo de dormir. É sobretudo o desejo
de acordar que me agita. Mas, enfim, é particular.
O significante-unidade é fundamental. Podemos estar seguros de que o materialis-
mo moderno não teria nascido se muito tempo antes isto já não atormentasse os homens.
Nesse tormento, a única coisa que se mostrava a seu alcance era sempre a letra.
Quando Aristóteles, como qualquer um, exatamente como nós, se põe a dar uma
ideia do elemento, é preciso sempre uma série de letras) RSI.
Não há nada que dê inicialmente a ideia de elemento como o grão de areia - eu
evocava isso em uma dessas partes que pulei, pouco importa - sobre o qual eu disse
que não se podia senão contar. Nada nos detém nesse gênero - por mais numerosos que
sejam os grãos de areia, nós sempre chegaremos a calibrá los, um Arquimedes já disse
isto. Tudo isto só nos vem a partir de algo que não tem suporte melhor do que a letra.
Mas não existe letra sem lalíngua. É este inclusive o problema - como pode lalín-
gua precipitar-se na letra? Nunca se fez algo realmente sério sobre a escrita, entretanto
isto valeria a pena, pois aí está realmente uma articulação.
Entào - como alguém observou há pouco, de certo modo abrindo o caminho para
o que posso lhes dizer - que o significante seja colocado por mim como representando
um sujeito para outro significante, é a função que só se constata no deciframento, que é
de tal forma que necessariamente retornamos à cifragem. Este é o único exorcismo do
qual a psicanálise é capaz.
O deciframento se resume ao que faz a cifra, ao que faz o sintoma, é algo que, a
partir do real, sobretudo, não cessa de se escrever.
Chegar a domesticá-lo até o ponto em que a linguagem possa com ele produzir
equivocidade, é por aí que se ganha o terreno que separa o sintoma do gozo fálico.

A insistência do "isso se goza"

Vou mostrar-lhes em meus pequenos desenhos que o sintoma não se reduz ao


gozo fálico.

Opçào Lacaniana nº 62 25 Dezembro 2011


O meu "goza-se" introdutório, o que para vocês é o testemunho disso é que
seu analisante presumido se confirma como tal pelo fato de que ele retorna. Por que,
pergunto-lhes, ele retornaria, tendo em vista a tarefa em que vocês o metem, se isto não
lhe produzisse um prazer doido' - além do fato de que, pra completar, muitas vezes
ele confia em que é preciso que cumpra ainda outras tarefas para satisfazer sua análise.
"Ele se goza" de algo, e de modo algum "go(z)sou", pois tudo indica, tudo deve
lhes indicar que vocês não lhe demandam, simplesmente, de daseinar, por estar ali,
como eu estou agora - mas sobretudo, e muito pelo contrário, colocar à prova essa li-
berdade da ficção de dizer qualquer coisa. Em contrapartida, esta se revelará impossível.
Dizendo de outro modo, o que vocês lhe demandam, é que abandone essa posição
que acabo de qualificar como de Dasein. Para dizê-lo de modo simples, essa posição é
aquela com a qual ele se contenta, e justamente por queixar-se dela, a saber, por não
ser conforme ao ser social. Ele se queixa de haver algo que se coloca no caminho. E
justamente, esse algo que se coloca no caminho, é isto que ele vislumbra como sintoma,
como tal sintomática do real.
Além do mais, há a aproximação que ele faz ao pensar isso. Mas isto é o que cha-
mamos de benefício secundário, em toda neurose.
Tudo o que digo aqui não é necessariamente verdadeiro no eterno. Inclusive isto
me é completamente indiferente. É a própria estrutura do discurso que vocês só fundam
ao reformar, e até reformar os outros discursos, na medida em que ex-sistem ao seu. E
é no discurso de vocês que o falasser esgotará essa insistência que é a sua, e que nos
outros discursos permanece limitada.
Então, onde se aloja esse "isso se goza" nos meus registros categóricos de imagi-
nário, simbólico e real?

A via do nó

Para que haja nó borromeano, não é necessário que minhas três consistências
fundamentais sejam todas tóricas.
Como talvez lhes tenha chegado aos ouvidos, vocês sabem que se pode considerar
que uma reta morde sua extremidade ao infinito.
Então, dentre o imaginário, o simbólico e o real, pode aí haver um dos três, o real
certamente, que seja uma reta infinita. Efetivamente, conforme eu disse, ele se caracteri-
za por não fazer um todo, quer dizer, por não se fechar.
Suponham até que ocorra o mesmo no caso do simbólico. Basta que o imaginário,
a saber, um de meus três toros, se manifeste como o lugar em que seguramente giramos,
para que, com duas retas, um nó borromeano se faça.

Opção Lacaniana nº 62 26 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

Real

Imaginário

Simbólico - -

O que vocês vêem aí, talvez não seja por acaso que se apresente como o entrccru-
zamento de dois caracteres da escrita grega. Talvez seja absolutamente digno de entrar
no caso do nó borromeano. Decomponham tanto a continuidade da reta quanto a do
círculo. O que resta, seja uma reta e um círculo, sejam duas retas, é totalmente livre: esta
é a definição do nó borromeano.
Ao dizer-lhes tudo isto, tenho o sentimento - até anotei isto em meu texto - de que
a linguagem só pode realmente avançar ao se torcer e enrolar, ao se contornar de modo
que, afinal de contas, não posso dizer que não dou o exemplo aqui.
Retirar a luva para a linguagem, marcar em tudo o que nos diz respeito a que pon-
to dependemos disso, não se deve acredicar que eu o faça de bom grado. Preferiria que
fosse menos tortuoso. O que me parece cômico é simplesmente que não vislumbremos
que não há nenhum outro modo de pensar, e que psicólogos, em busca do pensamento
que não seria falado, isto implica que considerern 1 de certo modo, que o pensamento
puro, se ouso dizer, seria melhor.
No que de cartesiano adiantei há pouco, o "Penso, logo sou'', nomeadamente, há
nele um erro profundo. O que inquieta o pensamento é imaginar que faz extensão, se as-
sim se pode dizer. Mas é exatamente isso que demonstra que não há outro pensamento,
por assim dizer, puro, não submetido às contorções da linguagem, a não ser justamente
o da extensão.
Isto em que eu queria introduzir-lhes hoje, e, após duas horas, afinal de contas,
não faço senão fracassar, rastejar, é isto - a extensão que supomos ser o espaço, aquele
que nos é comum, a saber, as três dimensões, por que diabos isto nunca foi abordado
por meio do nó?
Farei um pequeno desvio, uma evocação citatória do velho Rimbaud e de seu efei-
to ele "barco bêbado", se posso dizer - "Eu não me semi mais guiado pelos rebocadores".
Mas não há nenhuma necessidade de rimbarco: nem de poato, nem de Etiopoato 15 para
se colocar a seguinte questão.
Há pessoas que incontestavelmente talhavam pedras - e isto é a geometria de Eu-
clides. Em seguida, eles tinham que içá-las até o alto das pirâmides, e não o faziam com

Opçilo L:acaniana nº 62 27 Dezembro 2011


cavalos, que não puxavam grande coisa, cada um sabe disso, uma vez que não haviam
inventado o cabresto - essas pessoas puxavam, elas mesmas, todos esses troços. Então,
por que não foi primeiro a corda - e igualmente o nó - que veio para o primeiro plano
de sua geometria?
Como eles não viram o uso do nó e da corda?
Em relação ao nó, as matemáticas mais modernas perdem a corda 16 · é o caso de
dizer. Não se sabe como formalizar o que está em jogo nesse nó. Há um monte de casos
em que se perdem as estribeiras.
Aliás, este não é o caso do nó borromeano - o matemático discerniu que se trata
de uma trança, e o tipo de trança dos mais simples.
O nó que desenhei por último nos mostra de modo surpreendente que não temos
que fazer todas as coisas dependerem da consistência tórica. Basta-lhe ao menos uma.
Esse "ao-menos-uma", se vocês o encolhem indefinidamente, pode lhes dar a ideia frágil
do ponto.
De fato, se não supomos que o nó se manifesta pelo fato de que o toro imaginá-
rio que situei ali se encolhe, se remaneja continuamente, não temos nenhuma ideia do
ponto.
As duas retas, tais como venho de indicar a vocês, e às quais atribuo os termos
simbólico e real, deslizam uma sobre a outra, se posso dizer, a perder de vista. Por que
duas retas em uma superfície, em um plano, se cruzariam, se interceptariam? Pergun-
tamo-nos: onde vimos o que quer que seja parecido com isso - a nào ser ao manejar a
serra e ao imaginar que o que faz aresta em um volume basta para desenhar uma linha?
Fora desse fenômeno da serração, como podemos imaginar que o que faz um ponto é o
encontro de duas retas? Parece-me que é preciso haver pelo menos três.
Isto nos leva um pouquinho mais longe. Vocês lerão este texto que vale o que vale,
mas que pelo menos é divertido. Ainda assim, é preciso que eu lhes mostre.
Isto designa o modo como, afinal de contas, o nó borromeano reúne essas famosas
três dimensões que imputamos ao espaço, sem nos impedir de imaginá-lo tanto quanto
queiramos. Um nó borromeano se produz exatamente quando o situamos nesse espaço.

Opção tacaniana nº 62 28 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

Vocês vêem agora uma figura à esquerda. É, evidentemente, fazendo deslizar de


certo modo esses três retângulos - que, além disso, fazem nó perfeitamente sozinhos-,
que vocês obtêm a figura da qual parte tudo o que está em jogo no que há pouco mos-
trei sobre o que constitui um nó borromeano, tal como acreditamos dever desenhá-lo.

Mal-estar no imundo

Tratemos ainda assim de ver do que se trata. Nesse real se produzem corpos or-
ganizados e que se mantêm em sua forma. É isto que explica que corpos imaginam o
universo.
Não há nenhuma prova ele que, fora do falasser, os animais pensem além de
algumas formas às quais supomos que sejam sensíveis, pelo que respondem de modo
privilegiado. Isto não é razão para imaginarmos que o mundo é mundo, o mesmo para
todos os animais, se posso dizer. Eis o que não vemos e que, coisa bastante curiosa, o
que os etólogos, as pessoas que estudam os modos e costumes dos animais, colocam
entre parênteses.
Em contrapartida não nos faltam provas de que o mundo, mesmo que a unidade
de nosso corpo nos force a pensá-lo como universo, ele não é mundo, é i-mundo.
Mesmo assim é do mal estar, que em algum lugar Freud registra como o mal estar
na civilização, que procede toda a nossa experiência.
O que há de espantoso é que o corpo contribui para esse mal estar, e de uma
forma pela qual sabemos muito bem animar os animais, se posso dizer, quando os ani-
mamos com nosso medo. Do que temos medo? Isto não quer apenas dizer: a partir do
que temos medo? Do que temos medo? De nosso corpo.
É o que manifesta esse fenômeno curioso sobre o qual fiz um Seminário durante
todo um ano, e que denominei A angústia.

Opção Lacaniana n" 62 29 Dezembro 2011


A angústia se situa em lugar diferente do medo em nosso corpo. É o sentimento
que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzir a nosso corpo. É muito curioso
que a debilidade do falasser tenha conseguido chegar a esse ponto - até discernir que a
angústia não é o medo do que quer que possa motivar o corpo. É um medo do medo.
Isto se situa muito bem em relação ao que ainda assim eu gostaria de poder lhes
dizer. Há sessenta páginas que tive a babaquice de produzir para vocês. Não vou me
meter a falar ainda indefinidamente, mas gostaria de mostrar-lhes pelo menos isto.

O gozo fálico é fora do corpo

Imaginei identificar para vocês cada uma dessas consistências como sendo as do
imaginário, simbólico e real. O que aí substitui o gozo fálico é esse campo que na figura
em duas dimensões do nó borromeano se especifica pela intersecção que vocês vêem
aqui.

Sentido
Simbólico

Imaginário ~I\
Corpo )

ô Real

Tal como aparecem as coisas no desenho, essa intersecção tem duas partes, uma
vez que há a intervenção do terceiro campo que origina esse ponto cuja constrição cen-
tral define o objeto a. Conforme lhes disse há pouco, é a esse lugar cio mais-de-gozar
que se conecta todo gozo.
Cada uma dessas três intersecções é externa a um campo. O gozo fálico, que es-
crevi com o Jcp, está aqui, externo ao campo dito do corpo - o que nele define o que
qualifiquei como seu caráter fora do corpo.
A relação é a mesma para o sentido no círculo da esquerda, no qual se aloja o real.
Foi por isso que insisti, especialmente na conferência para a imprensa, no fato de que
ao alimentar o sintoma, ou seja, o real, com sentido, não fazemos senão dar-lhe conti-
nuidade de substância.
Pelo contrário, é na medida em que algo no simbólico se restringe pelo que chamei
de jogo de palavras, a equivocidade, a qual comporta a abolição do sentido, que tudo o
que diz respeito ao gozo, e particularmente o gozo fálico, pode igualmente se restringir.

Opção Lacaniana nº 62 30 Dezembro 201 I


LACAN E SUA LETRA

O sintoma e sua interpretação

Para isto é fundamental que vocês distingam o lugar do sintoma nesses diferentes
campos. Aí está, tal como se apre~enta na representação bidimensional do nó borromeano.

Imaginário

Corpo
Ics
JA
Ciência~,,--

Representação

Simbólico

Morte
Real
Sintoma

O sintoma é irrupção dessa anomalia na qual consiste o gozo fálico, na medida em


que aí se desdobra, se expande essa falta fundamental que qualifico de não-relação sexual.
É na medida em que, na interpretação, é unicamente sobre o significante que inci•
de a intervenção analítica, que algo do campo do sintoma pode recuar.
É no simbólico, na medida em que é lalíngua que o suporta, que o saber inscrito
de lalíngua, que, falando propriamente, constitui o inconsciente, se elabora, ganha do
sintoma.
Isto não impede que o círculo marcado com o S não corresponda a algo desse
saber que jamais será reduzido. Isto é, a saber, a Urverdriingt de Freud, ou seja, o que do
inconsciente jamais será interpretado.

Nada é mais real do que a vida

Em que medida escrevi, no círculo do real, a palavra "vida"?


É que, da vida, exceto esse termo vago que consiste em enunciar o "gozar da vida",
incontestavelmente não sabemos mais nada.
Essa construção química que, a partir de elementos repartidos no que quer que
seja, e de algum modo que queiramos qualificá-lo, se teria posto, de repente, a edificar,
pelas leis da ciência, uma molécula de DNA, como isto pôde ter início? Tudo isto em que

Opção Lacaniana nº 62 31 Dezembro 2011


a ciência nos introduz, mostra que nào há nada mais real do que isto, o que quer dizer:
nada é mais impossível de imaginar.
Muito curiosamente, faço-lhes esta observação, já vemos aí a primeira imagem de
um nó. Se há algo que deveria nos surpreender, é que tenhamos percebido tão tarde
que algo no real, e não é qualquer coisa, a própria vida, se estrutura a partir de um nó.
Como não se impressionar com o fato de que, a partir disso, não encontremos em lugar
nenhum, nem na anatomia, nem nas plantas trepadeiras que pareceriam ser feitas ex-
pressamente para isto, nenhuma imagem natural de nó?
Vou sugerir-lhes algo - não haveria aí um certo tipo de recalcamento, de Urverdrdngt'
Enfim, não sonhemos demais. Temos bastante coisa a fazer com nossas marcas.

O gozo do Outro é fora da linguagem

A representação, até e inclusive o pré-consciente freudiano, separa-se, portanto,


completamente do gozo do Outro (IA).
O gozo do Outro, na condição de parassexuado - para o homem, gozo da suposta
mulher, a mulher que não temos que supor, já que "A' mulher não existe, mas por outro
lado, para uma mulher gozo do Homem, que, este, infelizmente, é todo, ele é todo gozo
fálico - esse gozo do Outro parassexuado não existe, não saberia existir, a não ser por
intermédio da fala - fala de amor, especialmente, que, devo dizer, é a coisa mais para-
doxal e espantosa.
De fato, é evidentemente perceptível e compreensível que Deus nos aconselhe a
amar nosso próximo, e de modo algum nos limitarmos a amar nossa próxima, pois se
nos dirigíssemos à nossa próxima, iríamos simplesmente para o fracasso. Este é o prin-
cípio do que chamei há pouco de arquirateada 11 cristã.
Tanto o gozo fálico está fora do corpo, quanto o gozo do Outro está fora da lin-
guagem, fora do simbólico.
É a partir daí, a saber, a partir do momento em que captamos o que há - como
dizer? - de mais vivo ou de mais morto na linguagem, a saber, a letra, é unicamente a
partir daí que temos acesso ao real.

Do gozo do Outro ao nascimento da ciência

Esse gozo do Outro, cada um sabe a que ponto é impossível.


Contrariamente ao mito evocado por Freud, a saber, que o Eros seria fazer um,
é justamente disso que se padece. Em nenhum caso dois corpos podem fazer um, por

Opção Lacaniana nº 62 32 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

mais estreitamente que se abracem. Não cheguei a colocá-lo em meu texto, mas o que de
melhor podemos nesses famosos apertos, é dizer: "abrace-me bem forte!" Mas não abra-
çamos tão forte que o outro acabe sufocando - de modo que não há nenhuma espécie
de redução ao Um. Esta é a piada mais formidável.
Se há algo que faz Um é mesmo assim o sentido do elemento, o sentido do que
provém da morte.
Digo tudo isto porque, por causa de certa aura em torno do que conto, fazem sem
dúvida muita confusão sobre o tema da linguagem. Não acho de modo algum que a
linguagem seja a panaceia universal. Não é porque o inconsciente está estruturado como
uma linguagem - é o que ele tem de melhor - que, para tanto, ele não dependa estreita-
mente de lalíngua, quer dizer, do que faz com que toda lalíngua seja uma língua morta,
mesmo que ela ainda esteja em uso.
Somente a partir do momento em que algo se desencapa é que podemos encontrar
um princípio de identidade de si para si. Isto não se produz no âmbito do Outro, mas da
lógica. É na medida em que alguém consegue reduzir todo tipo de sentido, que chega a
essa sublime fórmula matemática de identidade de si a si, que se escreve x==x.
Quanto ao gozo do Outro, só existe uma forma de preenchê-lo, e é, falando pro-
priamente, o campo em que nasce a ciência. Como todo mundo sabe, como um peque-
no livro feito por minha filha mostra bem, só a partir do momento em que Galileu fez
pequenas correspondências de letra a letra com uma barra no intervalo, por meio das
quais definiu a velocidade como relação entre espaço e tempo, foi que se pôde sair de
tudo o que havia de intuitivo e de travado na noção de esforço, para chegar ao primeiro
resultado que era a gravitação.
Desde então fizemos alguns pequenos progressos. mas qual o saldo disso, da ci-
ência, afinal de contas? Isto nos dá algo com que nos contentarmos, no lugar do que nos
falta na relação de conhecimento, o que para a maior parte das pessoas, em particular
todos os que estão aqui, se reduz a bugigangas - a televisão, a viagem para a lua.. E
ainda, a viagem para a lua vocês não fazem, apenas uns poucos selecionados 1 mas vocês
os vêem na televisão.
A ciência parte da letra. É por essa razão que deposito alguma esperança no fato
de que, passando sob toda representação, talvez cheguemos a ter alguns dados mais
satisfatórios sobre a vida.

O futuro da psicanálise depende do real

Aqui o círculo se fecha no que acabo de dizer - o futuro da psicanálise depende


do que advirá desse real.

Opçdo Lacaniana nº 62 33 Dezembro 2011


As bugigangas, por exemplo, será que realmente tomarão a dianteira? Chegaremos
a nos tornar nós mesmos realmente animados pelas bugigangas? Isto me parece pouco
provável, devo dizer.
Não chegaremos realmente a fazer com que a bugiganga não seja um sintoma. Por
ora ela o é, absolutamente evidente. É certo que alguém tenha um carro como uma falsa
mulher. As pessoas cuidam definitivamente para que isto seja um falo, mas só tem rela-
ção com o falo pelo fato de que é o falo que nos impede de ter uma relação com algo
que seria nosso correspondente sexual, e que é nosso correspondente parassexuado.
O "para\ cada um sabe disso, consiste em que cada um fique do seu lado, que
cada um permaneça ao lado do outro.
Resumo-lhes o que havia nas minhas sessenta e seis páginas.
Minha decisão inicial era ler. Eu o fazia com certa disposição - monopolizar a
leitura seria igualmente desincumbi-los, e talvez fazer com que pudessem ler algo. É o
que desejo.
Se vocês realmente chegarem a ler o que está na figura bidimensional do nó bor-
romeano, penso que estaria ao alcance de suas mãos topar alguma coisa que pode lhes
ser tão útil quanto a simples distinção do real, do simbólico e do imaginário.
Peço desculpas por ter estendido tanto a minha fala.

Tradução: Teresinha N. Meirelles do Prado

Opção Lacaniana nº 62 34 Dezembro 2011


LACAN E SUA LETRA

Algumas observações

• Como Lacan não enviou para publicação o texto de sessenta e seis páginas ao
qual faz alusão, sua intervenção no Congresso foi objeto de uma transcrição anônima,
surgida em 1975 no boletim Lettres de !Éco!e.freudienne, nº 16, p,177-203; ocupei-me em
estabelecer essa versão. Os esquemas foram aqui refeitos por Gilles Chatenay, e a re.lei-
tura do conjunto foi feita por Pascale Pari.
• A intervenção propriamente elita era precedida de algumas frases, que aqui es-
tão: "Falo esta tarde somente porque ouvi coisas excelentes ontem e esta manhã. Não
vou me meter a nomear pessoas porque isto constitui um palmarés 18 . Esta manhã, em
particular, ouvi coisas excelentes. Advirto-os de que li, depois vocês entenderão por quê.
Explico isto no interior de meu texto".
• A conferência para a imprensa mencionada nessa intervenção aconteceu no dia
29 de outubro desse mesmo ano: no Centre Culturel Français de Rome; estabeleci esse
texto para o volume O triunfo ela religião (Zahar, 2005).
• Normalmente Lacan atribuía :-1 fórmula da mensagem invertida a Benveniste, e
nüo a Lévi Strauss,
• Paul Mathis, René Tostain aos quais Lacan faz uma homenagem, são os membros
da EFP que apresentaram trabalhos durante o Congresso, o primeiro sobre Mishima, o
segundo sobre Marcel Duchamp.
• O que Lacan designa como "um pequeno livro feito por minha filha" é um artigo
de Judith Miller publicado na revista Cahiers pour l'anal)'se, nº9, Seuil, 1968, intitulado,
"Metafísica da física de Galileu", (J-AM)

Tradução: Teresinha N, Meirelles do Prado

Notas

TexlO estabelecido por Jacques-Alain Miller (ver nota explicaliva no final do texto). Publicado cm f ranct's na Revue de la
Ca11sefreudie1111e, (79): 11-33.
N.T. Em francês, disque (disco) é homofônica :1 dit ce que (diz isto)
2 N.T. Cf nota anterior, lacan acrescenw outra homofonia. entre Disque-ours, dit ce qu' ours (Disco-urso, diz que urso) e
discours (discurso). fazendo referência ,10 "Discurso de Roma", redigido cm 1953 e publicado nos Escritos com o título:
"Função e campo da fala e da linguagem em psic.inálise". Urso, em francês, também tem a conotação de homem pouco
sociável.
3 N.T. Nessa expressão düque-ourdrome, :1parece outra homofonia, desta vez cm um jogo de pal:ivras com uma expressão
cm alemão que fora muito uülizada por Freud: en1rc ours, urso em francês, e Ur. originário em alemão. Se juntássemos
os jogos de palavras. teríamos algo como: 'o [texto] originário de Roma diz isco·.
4 N.T. Nesta expressão aparece outro jogo de palavras: matrice (matriz) e ma"itrise (domínio).

Opção Lacaniana nº 62 35 Dezembro 2011


5 N.T. No original:je pense, dane je souis. Jogo de palavras com a famosa expressão cartesiana, entre as expressões 'je suis'
(sou) e je jouis' (gozo).
6 N.T. Aqui Lacan faz mais um trocadilho, entre suis, je s11is (sou) e suit, il suir (ele segue)_
7 N.T. No original: Undeuxropéens, um trocadilho com a expressão "indo-europeus".
8 N.T. Cópula: além da acepção corrente ele ato sexual, a expressão designa os verbos de ligação em uma frase.
9 N.T. Dois jogos de palavras com grafias diferentes mas de sonoridade muito próxima, sem correspondência exata em por-
tuguês: m"es-tu me. mais lU me tues (a tradução literal dessa primeira expressão seria: "me és tu mim, mas Ili me matas·):
e a expressão seguinte, continuando o jogo homofônico, m'aimes tu? me-me? (tu me arnas?/Mas me mata? Mesmo?/Me
ama?). As duas expressões estão em continuidade e aproximam ·eu·. 'tu·, ·o mesmo', 'mesmo', 'amar· e 'matar'.
10 N.T. Em francês. alicerce é étayage. O verbo "ser"" na segunda pessoa do singular do mexia imparfait (equivalente ao
pretérito imperfeito em português) se conjuga de forma homofõnica a alicerce: "tu étaies". Deste modo. o "tu eras·· se
aproxima de um "!u escoras··.
11 N.T. Em francês: prendre /e mors au dent. Em uma tradução literal. seria: morder o cabresto.
12 N.T. Em francês: à la mords-moi !e doigl.
13 N.T. No original: l'aissepérogne. Neologismo sem correspondência exata em português, essa expressão faz um trocadilho
com ·a esperança· (/'espérance). Lacan acrescenta ali duas outras palavras que, juntas, são homofônicas a essa expressão·
!aisse e rogne. A tradução literal seria "deixa-ronhaM, que ele associa à expressão latina que refere em seguida (/usciate
ogni speranza), e cuja tradução seria: "deixe toda esperança''.
14 N.T. Em francês: arcbiraté_ Em uma tradução literal, seria arquifalho. Para aproximar da sonoridade original, evoco uma
forma aportuguesada dessa expressão: rata. ratear (falha, falhar).
IS N.T. Nes1e parágrafo lacan cita um verso do poema de Arthur Rimbaud, ·'O barco bêbado", e faz alguns trocadilhos:
rimbateau (rimbarco), pela junção do nome do poeta e do poema: poâte (poato), pela junção en!re poete (poeta) e hâte
(pressa). Como não há um equi\'alente homófono em português, optei pela palavra '·ato··, que em sua especificidade na
psicanálise se constitui pela pressa por concluir. O terceiro jogo de palavras é Éthiopoâte (Etiopoato). que acrescema o
prefixo ~Etio'·. de Etiópia ou etiópia, ao primeiro trocadilho.
16 N.T. Em francês há um jogo de palavras entre "perder a cord:( (perdre la corde) e "entrar em desacordoM (perdre /'accord).
17 N.T. Aqui novamente Lacan faz um trocadilho com caridade: charité/archiraté.
18 N.T. Em francês: palmares. Palavra com equivalente em português de Portugal, mas sem uso no Brasil. Refere-se a um
quadro de honras, com a listagem de alunos ou desportistas premiados

Opção Llcaniana nº 62 36 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

Ü DEMÔNIO DE UCAN (ENTREVISTA)

jACQUES-ALAIN MILLER (PARIS)


fam@lacanian.net

Os membros do comitê de mdação do "Diable p.-ohablement" encontraram Jac-


ques-Alain Miller em 12 de março de 2011, nas dependências da Escola da Causa Freu-
diana, das 20:30h à 0L15h.

"PROVE!"

ANAELLE LEBOVITS-OUENEHEN: Você ocupa um lugar totalmente particular na transmissão do


enslno de Lacan, e isto especialmente porque Lacan o escolheu. Por que você? Por que tê-
-lo escolhido para estabelecer seus seminários, e depois, o que continuou por sua própria
iniciativa?
JACOUES-ALAIN MILLER: Sim, ele me escolheu, mas eu mesmo o escolhi. A partir do momen-
to em que comecei a ler Lacan, para expô-lo aos meus amigos e a falar com Lacan, tive
a ideia delirante de que o compreendia melhor do que ninguém. E tive de convencer
o próprio Lacan disso, não sei muito bem como. Apesar de tudo, eu não tinha, de jeito
nenhum, a ambição de redigir seu ensino oral. Outros tentavam isso havia muito tempo.
Um dia, Lacan me pergunta o que eu pensava ela última tentativa que havia sido feita
neste sentido. Li o texto, e disse: "Não é boa. Ele corta passagens inteiras, reescreve
tudo no estilo dele, não se compreende absolutamente nada. É necessário arrumar as
frases uma a uma, não acrescentar nada, a não ser um título para cada uma das lições,
escandir em três ou quatro partes o desenvolvimento da reflexão, mas restituí-las como
ocorreram. Eis aí como é preciso fazer." Lacan me disse: "Prove!" Esta era a palavra que
ele tinha que me dizer, a palavra irresistível, já que me lançava ao desafio, e ao desafio
de demonstrar. Então, isto me tocava ao mesmo tempo o lado duelista e o lado lógico.

Opção tacaniana nº 62 37 Dezembro 2011


Eu lhe respondi imediatamente, e no mesmo tom: "Em um mês estará feito". E, um mês
mais tarde, eu lhe levei o Seminário 11.

A.L.-0.: Por que este?


J.-A.M.: Lacan me deixou escolher, e era o primeiro ao qual eu assistira. Eu tinha ido de
férias para a Itália. No meu retorno, dediquei um mês inteiro ao sem.inário, sem parar. O
re.<:iultado lhe agradou. Então, fiz o acabamento. Naquele momento, não se tratava de re-
digir outros. Mas as Éditions du Seui( François \Vahl em particular, queriam que houvesse
uma continuidade. E, como essa também era a minha opinião, um domingo eu liguei para
o Doutor Lacan, que estava no campo. Ele disse que passaria para me ver, quando voltasse
de lá. Na minha maneira de ver, era preciso encontrar outras pessoas com o mesmo espí-
rito, para fazer esse trabalho. Eu pensava que, uma vez publicado, esse Seminário daria a
todo mundo a ideia de que era possível fazer o mesmo com os outros. Assim, dei a L'ican
nomes de pessoas jovens, dentre seus alunos, que me pareciam inteligentes, capazes, e,
a cada vez que ele respondia com uma careta, eu argumentava; ele dizia não. Isto durou
bem uma meia-hora. Eu não aguentava mais. Após um longo período, já era o suficiente,
e eu lhe disse: "Bom, escuta, eu os farei todos." Então, ele se levantou alegre. Acho que
ele não disse nada; colocou a mão sobre meu ombro e partiu. Fiquei com isso nas mãos.

A.L.-0.: No início, era para você redigir apenas um Seminátio.


J.-A.M.: Eu não tinha avaliado o tempo e o cuidado que isso demandaria. Além disso,
quando me engajei no estabelecimento dos Seminários, não era analista, nem imaginava
me tornar um - o que mudou alguma coisa em minha existência.

A.L.-0.: E você? Por que escolheu Lacan?


J.-A.M.: Eu o escolhi imediatamente. Esta foi a surpresa. O ponto de vista de Lacan sobre
todas as coisas suscitava em mim uma extrema satisfação ... Adorei. nele, a mistura de
elementos refinados, sofisticados, complexos, e expressões familiares. Além do mais, seu
uso das referências .. No primeiro texto que li dele, "Função e campo da fala e da lin-
guagem'', encontram-se ecos de Sartre, Lévi-Strauss, Braudel, de toda a cultura daquele
tempo, e até mesmo do marxismo, das matemáticas, muito da linguística, e tudo isso
tomado com uma disposição completamente inédita. A Antropologia estrutural de Lévi-
-Strauss, a lógica formal etc., tudo que me parecia contar no pensamento daquela época
eu via ali se confrontar, se comunicar. Lacan tinha uma concepção do pensamento e da
linguagem com a qual, de saída, tive afinidade. Todo mundo dizia: "Não se compreende
nada", e eu, pelo contrário, tinha o sentimento de compreender. E, enfim, eu compre-
endia Freud, do qual adorava a clínica, mas seus escritos teóricos tinham ficado opacos
para mim, nas traduções daquele tempo.

Opção Lacaniana nº 62 38 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

AURÉLIE PFAUWADEL: Corno você veio a ler Lacan?


J.-A.M.: No seminário de Althusser, onde fazíamos exposições alternadas. A minha, que
se baseava em Lacan, se prolongou por três reuniões, de duas horas. Consegui passar
alguma coisa de maneira que isso se mantivesse. Eu tinha à minha disposição, no entan-
to, apenas os textos que estavam publicados nos números de 1 a 6 da revista La psycha-
nalyse. E imaginava, ainda, que os termos empregados por Lacan tivessem o mesmo
sentido de um texto para outro. Mas não era bem assim. Eu fizera esquemas para fazê-los
compreender Lacan. Foi assim que ganhei a reputação de ser aquele que compreendia
Lacan entre os estudantes. Naquele momento, Althusser nos avisou que Lacan viria en-
sinar na Escola, na sala Dussane. Para muitos de nós, ele tinha se tornado tão mítico em
três meses, somente a partir de seus textos, que tínhamos dificuldade de imaginar que
ele existia em carne e osso. Nós já o representávamos como um personagem fabuloso.

ALICE DELARUE: E, justamente, quando você o encontrou pela primeira vez?


J.-A.M.: Na primeira aula de seu seminário que, mais tarde, intitulei "A excomunhão". Foi
lá que vi esse personagem, que chegava como Temístocles, se instalar no centro da Es-
cola. Ele soube, admiravelmente, não levar essa posição tão a sério.

CAROLINE LEDU: Você fala dele quase como de um homem de teatro?


J.-A.M.: Não. Apenas, ele era tão demonstrativo, passional, não era de forma alguma
distante de seus afetos, mas era também um analista ... Estava numa posição totalmente
singular na época. O establishment médico não simpatizava com ele, pois já tinha tido
uma querela com eles em 1953, e isso recomeçou dez anos mais tarde. Ele também não
tinha o habitus universitário. Nenhuma arrogância burguesa, atento, urgente, não exigin-
do que se respeitassem as formalidades, conversando de igual para igual... Lacan era um
pescador de homens. Ele soube nos apanhar, mas não era do tipo manipulador.

A.L.-0.: Essa figura de homem rejeitado, então, contou.para você.


J.-A.M.: Claro' O grande homem que vem solicitar uma espécie de asilo intelectual, e que
diz: "Eu tive que suspender tudo que fiz. É você quem julgará se mereço ser chamado
de psicanalista". E depois, ele se comparou a Spinoza, que era tido pelos althusserianos
como um herói do pensamento, disse estar como ele, sob o golpe de uma excomunhão.
Ele soube tocar este ponto. O encontro foi feito nessa base.

MARTIN OUENEHEN: Qual a ligação que Louis Althusser tinha corn Lacan?
J.-A.M.: Ele lhe ofereceu a possibilidade de utilizar essa sala, colocando-se como seu por-
ta-voz junto à direção da Escola Normal (Éca/e Norma/e Supérieure), da qual era secretá-
rio geral. Ele redigiu um artigo expondo com consideração, em uma revista comunista, o

Opção Lacaniana nº 62 39 Dezembro 2011


que compreendera de Lacan, o que teve um papel muito importante no apoio que Lacan
recebeu dos comunistas. Mas ele nunca trabalhou com Lacan, não seguia seu seminário.
Althusser lia muito poucas coisas sobre tudo, seu talento para exposição é que era ex-
traordinário. Ele não tinha a menor ideia do que era a linguística, não conhecia nada da
lógica, pouco de Heidegger, nada de Wittgenstein, e muito mal o idealismo alemão ou
a filosofia antiga, mas pegava as coisas, e falava de tudo que ignorava ou conhecia mal
com um talento, um charme louco, que dava vontade de saber mais daquilo, E o que ele
conhecia, conhecia muito bem, Ele se interessava essencialmente pela filosofia política
francesa do século XVJJI, Mas era um formidável ''J)exeur1", como se dizia.

M.O.: Naquela época, existiam os freudo-marxistas. Você foi um /acano-marxista?


J.-A.M.: Oh, nós fomos muitas coisas' Entrei na Escola em 1962, e tive a sorte ele encontrar
ali um Althusser, que estava bem, cheio de vitalidade, nos ensinava coisas interessantes.
Eu frequentara Marx sozinho, nós o estudamos a partir de suas indicações, a maneira
estruturalista como ele lia Marx me prendeu.

DEBORAH GUTERMANN-JAOUET: Então, você foi a/thusseriano antes de se tomar /acaniano?


J.-A.M.: Althusser dava a impressão de viver por nós, de ter necessidade de nós. Ele esta-
va entre as paredes da Escola, fazia parte dos móveis. Ele vivia na Escola. Atrás de sua
grande escrivaninha, tinha sua cama. Nós lhe demos isso, em troca - enfim, eu, em todo
caso. Mas isso não ia mais longe. Num dado momento, quando não imaginávamos, nem
por um segundo, aderir ao Partido comunista, nem à União dos estudantes comunistas,
Althusser me convocou para que incitasse meus amigos, que não estavam inscritos na
UEC, a fazê-lo, para sustentar suas ideias. Robert Linhart, Jean-Claude Milner, Jacques
Ranciêre e eu, então reunidos, em quatro, num sótão. Isso não me entusiasmava muito,
mas queríamos dar prazer a Althusser. Seu pedido explícito nos colocou, efetivamente,
num certo circuito. Mas, quando o Partido comunista dissolveu os círculos dos estudan-
tes comunistas de Paris, eu deixei isso 1 sem nenhuma intenção de voltar. Ser althusse-
riano era ler Marx, sem grandes consequências políticas. aliás, e adotar um ponto de
vista racionalista, neo-estruturalista, sobre o mundo. Quando Lacan chegou, alguns de
nós fomos reconhecidos como "lacano-althusserianos". Foi com eles que fiz Les Cahiers
pour l'Ana{vse. De fato, para mim, esse althusserianismo não podia manter-se ao lado do
ensino de Lacan. Então, eu via cada vez menos Althusser. Ele esperava por isso.

BEN01T DELARUE: Você obsemou também que a leitura do texto "Função e campo da fala e
da linguagem em psicanáUse''/ora para você um acontecimento.
J.-A.M.: Sim. Evocou-se o charme da pessoa de Lacan, que parecia que olhava as pessoas
de um modo tão intenso, que elas se derretiam como manteiga. Eu não conheci isso, e

Opçio Lacaniam nº 62 40 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

não foi por aí que cheguei até Lacan. Também não foi pela sua voz. Cheguei até ele por
intermédio de Louis Althusser. Ele me convocou em seu escritório e me disse: "Gostaria
que você participasse do seminário que vou fazer sobre Lacan." Respondi que não tinha
lido sequer uma linha ele Lacan. Ele me disse: "Leia lacan, vai te agraciar muito." E ele
estava certo, já que cinquenta anos depois eu ainda estou aqui.

A.P.: Na época, você já se interessava por psicanálise?


J.-A.M.: Não, ele jeito nenhum.

A.L.-0.: Mas o que fez- para além do encontro com esse texto, que se entende bem que te-
nha sido determinante- com que Lacan te pegasse e nunca mais soltasse? Você leu Sartre
antes de Wcan, você o encontrou.. Por que Lacan?
J.-A.M.: Não é ele forma alguma comparável. Sartre estava em todo lugar na época. Eu
nem saberia citar o primeiro texto que li de Sartre, talvez suas quatro páginas sobre a
intencionalidade, ou seu artigo sobre Mauriac. Ele era renomado, na época, na crença
popular, por ser o maior filósofo vivo. Quando terminei meu segundo ano do ensino mé-
dio (classe de premiere), e passei por meu primeiro exame nacional (hacca/auréat), antes
de começar a cursar filosofia, uma velha amiga da família queria me dar um presente,
pedi O ser e o nada. Eu o li do começo ao fim, com muito interesse, mas sem relação
especial. Eu o li como li as Meditações de Descartes. Eu respeitava em Sartre um grande
filósofo francês. Mas não me tornei sartriano.

A.L.-0.: DijiJrentemente, o que fez a Stimmung de seu encontro com Lacan?


J.-A.M.: Pareceu-me a coisa mais séria que eu encontrara até então. Parecia-me que existia
na filosofia contemporânea um elemento de semblante. Do lado de Lacan, pelo con-
trário, apesar de tudo que disseram ele seu lado teatral, eu tinha o sentimento de uma
poderosa autenticidade.

C.L.: Esta autenticidade não está ligada ao fato de que a psicanálise produz uma teoria
articulada a uma prática?
J.-A.M.: Sem dúvida. Mas esta prática não era a minha. Eu tinha exatos vinte anos quando
encontrei Lacan. Sob as repercussões do impacto de Maio de 68 eu entrei em análise,
não por motivos teóricos, mas porque sentia necessidade subjetiva. E me voltei para a
Escola de Lacan pensando que tinha alguma coisa a fazer nesse movimento. Ao mesmo
tempo, fiquei bastante estupefato ao ver Lacan cercado por uma espécie de reverência,
aureolado por um efeito de culto. Jsto, imediatamente, me colocou em conflito com a
maioria dos membros da Escola Freudiana. Eles não conheciam nada de Lacan, cio Lacan
teórico) eles eram beatos. Participei de um seminário durante um ano nessa Escola, por

Opção Lacaniana nº 62 41 Dezembro 2011


volta de 1973, e, na última reunião, lembro-me de ter dito: "O problema desta Escola é
que o Dr. Lacan não tem a maioria ideológica.'' Esse era um modo político de dizer que,
de fato, os membros dessa Escola não trabalhavam nem compreendiam Lacan. Evidente-
mente, se isso me criou oponentes, também reagrupou ao meu redor aqueles que que-
riam compreender alguma coisa daquilo. Então, comecei a ensinar no Departamento de
psicanálise de Paris VIII, para alguns que queriam apreender Lacan, e sentia que podia
ajudá-los a fazer isso, na medida do que eu mesmo tinha acesso,

A.P.: Como você se encontrou com a clínica?


J.-A.M.: Primeiramente, foi com a minha, a do meu "interior". Não me voltei para a clínica
antes de fazer, eu mesmo, apelo a um analista. Talvez eu já tenha começado minha análise
desde antes, a partir de minha transferência com o texto. Em todo caso, através do texto,
eu encontrara Freud bem antes de Lacan. Eu lera as "Cinco lições de psicanálise" de um só
fôlego, aos 14 anos, no primeiro ano do ensino médio (classe de seconde), Eu lia o caso do
Pequeno Hans querendo saber o final, conhecer a causa da fobia, como o culpado da Aga-
tha Christie, que eu lia na mesma época, e onde aprendia inglês. O texto sobre o Presidente
Schreber me parecia digno de um conto fantástico. E o Homem dos ratos, com seu fantas-
ma atroz, realmente sinistro. Também gostei muito dos primeiros livros, dos sonhos anali-
sados em "A interpretação de sonhos", "Psicopatologia da vida cotidiana", "Os chistes", com
suas histórias judias. Mas, outros textos como a "Metapsicologia", tal como era traduzida,
me pareciam ser uma filosofia muito ruim, um balaio de gatos. Um pouco mais tarde, en-
contrei muito melhor a psicanálise existencial em O ser e o nada. Por isso, o que me deteve
no meu freudismo foi a teoria, tal como era acessível em francês - eu não era germanista
- nas traduções, que impediam o acesso ao pensamento de Freud. Mas eu experimentara
o grande prazer, a excitação, da pesquisa clínica freudiana. Quando li Lacan, subitamente,
descobri um outro Freud quer dizer, o mesmo, mas com uma teoria que colava.
1

A.D.: Lacan, que passou muito tempo lendo Freud e comentando-o, dizia que tinha uma
transferência negativa por ele.
J.-A.M.: Sim, no final de sua vida ele disse, finalmente, que escrutava Freud, vigiava-o,
ficava de olho nele e, em contrapartida, sentia sobre si o olhar de Freud. Note-se bem
que as pessoas que amavam Lacan, que ficavam boquiabertas, soltando gritinhos: "Ma-
ravilhoso! Maravilhoso!", suas transferências positivas as imbecilizavam. Um pouco de
transferência negativa, do tipo: "ele diz isso, mas precisaria ainda saber por que", ajuda
a continuar a pensar.

A.L.-0.: E você com Lacan?


J.-A.M.: Não posso dizer que tenha uma transferência negativa em relação a ele. Quan-

Opção L:!caniana nº 62 42 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

cio conheci Lacan, imediatamente quis protegê-lo. Ele chegou como um proscrito e, no
fundo, tinha necessidade de forças vivas para defendê-lo. Isso me evocava "Aymerillot",
o belíssimo poema de A lenda dos séculos. Carlos Magno é velho, quer conquistar Nar-
bonne, e todos os seus cavaleiros se esquivam. Um diz: "Não 1 eu sou velho e meus
joelhos estalam"; o outro: 'Não, tenho minha mulher, meus filhos, minha televisão ... "
Enfim, não tem ninguém para ajudar o pobre Carlos Magno. Nesse momento, chega o
jovem Aymerillot, com sua voz de menina, voz esta que ainda não mudou. Ele se dirige
a Carlos Magno e diz:

Eu venho lhe pedir o que ninguém quer


A honra de ser, ô meu rei, se Deus não me abandonar
o homem de quem se dirá: "Foi ele quem tomou Narbonne ..
1.1
Carlos, mais radiante que o arcanjo celeste.
exclamou: "Você será, por esta declaração altiva,
Aymery de Narbonne e conde paladino
E as pessoas falarão com você de modo civil
Vai, filho". No dia seguinte Aymery toma a cidade.

Portanto, eu sempre me vi sob a proteção desse homem mais velho, que chegava
a dar a impressão de sofrer de uma falta. É um pouco o que eu dizia, agora mesmo, a
propósito de Althusser. Com uma dimensão maior com Lacan. Pois, para que exista Ay-
merillor, é preciso que já exist~t Carlos Magno.

A.L.-0.: Lacem sempre foi aracado, lanlo em vida, quanlo hoje. A doxa desconfia, habiru-
almente, do lacanismo. Isso contribui para que você continue lacaniano?
J.-A.M.: Sim, é verdade. Eu gostava muito quando a Universidade rejeitava Barthes, quan-
do considerava que Banhes não era possível, e eu, justamente em 1962. queria demais
conhecê-lo, porque eu tinha lido seu pequeno livro sobre Michelet, extraordinário. Isso
era tudo que lera dele, na época, e perguntei se ele dava aula. Ele estava começando seu
seminário na Escola de Altos Estudos (llco/e des Hautes Études). Eu fui lá me inscrever.
Éramos vinte, em torno de uma mesa com ele. Na época, ele fora considerado um anáte-
ma pela Universidade, e é verdade que fiquei decepcionado quando constatei, após sua
morte, que ele se transformara no papa, que o citavam em todo lugar, pois eu conhecera
o tempo em que raros eram os "valentes" de Roland Barthes. Quando ele passou à pos-
teridade, isso mudou alguma coisa para mim, sem dúvida.

A.L.-0.: Portanto há uma chance de que Lacan não passe para a doxa?
1

Opção Lacaniana nº 62 43 Dezembro 2011


J.-A.M.: De todo modo. ele já passou muito para a doxa. Mas a maioria não o compreen-
de, ou o utiliza para fins medíocres.

A.L.-0.: Resultado, isto faz dele um autor para se defender sem parar?
J.·A.M.: Quando eu relia essa manhã algumas páginas cio Seminário 11, para o seminário
desta tarde, não as relia com a ideia de me colocar diante das coisas que lera, e mesmo
redigira, mas para fazer, realmente, uma nova leitura. Percebia coisas que não percebera
escutando, lendo ou redigindo, relendo, trabalhando Lacan. É como diz Mahler, a respei-
to do que deve ser uma sinfonia, uma obra: "Se podemos alcançá-la com um olhar, é que
ela perdeu sua magia." O texto de Lacan tem facetas. Muitos fios são tecidos ao mesmo
tempo. Para mim, o natural é fiar apenas um fio de cada vez. Lacan, ele, tece muitos fios,
que se cruzam, e isso em cada texto. Segundo o fio que se segue, não se tem exatamente
a mesma leitura. Isso é muito forte. Há ali uma lógica poderosa, articulada, e a resistência
que Lacan provoca não se deve somente à incompreensão do público. É a própria ma-
neira como Lacan procede que suscita isso. Enquanto O ser e o nada, que é uma grande
obra, da qual o próprio lacan celebra, na ocasião, a elegância, é mais unívoco. Eu não
releio O ser e o nada como releio Lacan, porque Sartre é como as autoestradas traçadas,
com sinalização indicadora a cada dez metros. Lacan é: vira à esquerda, vira à direita,
passa por cima, por baixo, dá uma volta sobre você mesmo, volte para trás!

A.L.-0.: Sua ideia sobre Lacan mudou desde que o encontrou pela primeira vez?
J.-A.M.: Não, eu continuo a estar numa posição protetora para com ele. Tive essa atitude
de proteger Lacan um pouco como Guilherme D'Orange, dos Países-Baixos. Chamavam-
-no de "o Grande Protetor". Jamais havia desenvolvido esse traço de minha relação com
Lacan, antes desta noite, nunca o havia formulado assim. No fundo, eu não era sim-
plesmente o cavaleiro do velho rei, mas seu protetor. Fiz o que pude, realmente, para
protegê-lo, e até o fim, quando ele estava velho e doente. E, em seguida, me esforcei
para impedir que se deteriorasse demais a transmissão de seu ensino. De fato, eu não
vivi, de jeito nenhum, sob a sujeição de Lacan. Sempre me senti livre como o ar, aliás,
com o respeito que merecem seu trabalho e sua pessoa. E isso parece inverossímil, já
que eu tinha 20 anos quando ele tinha mais de sessenta. Para ser protetor, por qual qua-
lidade se é superior a quem se protege? Então, pela juventude, de início! Eu lhe trazia o
apoio de um braço.

A.L.-0.: E seu gosto pronunciado pela clareza também pode ser?


J.-A.M.: Sim, sem dúvida, ele era um pouco obscuro; tinha o espírito complicado. Todo
mundo notava este traço com seus charutos. Mas, me lembro do momento em que per-
cebi isso. Dois ou três meses após nosso encontro, ele me indicava como ir de carro para

Opção Lacaniana nº 62 44 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

sua casa de campo: "Tem uma grande descida, e depois uma grande subida, e depois
você vai ver uma grande casa vermelha. Neste momento aí você saberá que se enganou.
Você volta ... " [risos] É inacreditável! Mas é muito próximo das questões do Seminário,
quando Lacan lhes indica um caminho ... Isso me surpreende, essa questão de proteção!
Eu o coloquei debaixo das minhas asas, das minhas duas asas, que estão em A1iller como
em Aymerillot.

A.L.-0.: Você contava, em uma de suas aulas passadas, que, quando criança, não hesita-
va em enfrentar os adultos para denunciar uma injustiça e proteger...
1

J.-A.M.: Proteger, é isso' Está claro que meu gosto por Robespierre vem daí. O que me
tocava e emocionava quando eu tinha 13 anos era o início do livro de Jean Massin sobre
Robespierre, que começava: "Robespierre não tem rua em Paris." Jean Massin, aliás, re-
negou esse Robespierre, mas não eu. Esse livro começa com a injustiça de Robespierre.

A.L.-0.: Não as injustiças de Robespierre, mas aquelas das quais ele foi vítima'
J.-A.M.: Quais injustiças de Robespierre'! [risos] Robespierre era um tipo formidável! Mas
a grande questão que me coloquei a seu respeito é: como um homem tão exemplar, o
Incorruptível, pôde acabar com a cabeça cortada'

A.L.-0.: E, ele mesmo, fazendo muitas cabeças rolarem?


J.-A.M.: Será que alguém pode ser um homem formidável sem acabar tendo a cabeça cor-
tada? Onde ele se enganou? Esta foi a mesma pergunta que me fiz, mais ou menos com a
mesma idade, lendo Júlio César de Shakespeare. Vou explicar-lhes isto. Encontramo-nos
diante dos discursos de Brutus e .Marco Antônio. Brutus fala nos seguintes termos: "Eu
amava César, era próximo de César, mas César quis destruir a República, e como a Repú-
blica representava para mim mais do que César, eu matei César." Ele fala durante cinco
minutos, e todo mundo o aplaude. Não se podia dizer de forma melhor. Eu achava isso
impecável. Acerca disso, chega Marco Antônio, que diz: "César está morto, e eu era seu
amigo ... '' Ele fala durante vinte minutos, na maior desordem, diz tudo e o contrário de
tudo, e muda completamente a opinião da assistência. No fim do discurso, todo mundo
está a favor de Marco Antônio, e quer evitar Brutus. E eu me perguntava: "Mas como
ele fez isso?" Seu discurso não é coe.rente nem lógico, o do outro é impecável... Por que
Brutus perde e Marco Antônio ganha? E, um dia, eu entendi.

A.L.-0.: Então?
J.-A.M.: Ah, ahl [risos]. Não cortaram minha cabeça! Eu entendi os limites de Brutus. O
limite do "portanto". A lógica é conveniente, irrefutável, de certa maneira, mas a retórica
das paixões é outra coisa. Eu não era bom nisso no departamento. E, além do mais, eu

Opção Lacaniana nº 62 45 Dezembro 2011


devo sempre me esforçar. Para mim, o "sim" é o "sim'', e o "nào" é o "nào". É sempre um
esforço para eu admitir que o "nào" pode querer dizer "sim", e, inversamente.

A.L.-0.: No entanto, sobre Robespierre..


J.-A.M.: Sim, mas você tem preconceitos ..

A.L.-Q.: Ele.fez muitas cabeças rolarem!


J.-A.M.: Mas não, mas não! [risos} Os sanguinários foram os enviados da Convenção, que,
em seguida, fizeram Robespierre cair. São eles, os anti-robespierristas, esses tipos hor-
ríveis como Carrier, que colocavam as pessoas nos barcos para Nantes, para afogá-las.
Ou, Fouché, em Lion. Eles tiveram medo, justamente, do julgamento de Robespierre, e
fizeram com que ele fosse executado. A Contra-revolução que se seguiu foi bem pior.
Saint-Just aconselhara Robespierre a se tornar Bonaparte e por antecipação tomar o po-
der. Ele não quis, nào pôde, não soube, ele pereceu.

B.D.: Para ficar na esfera política como você caracterizaria a "política" lacaniana?
1

J.-A.M.: Lacan era um político muito fino em seus negócios. Ele tinha as proteções que
precisava, quando precisava. Se se tornava insuportável para alguns, é difícil reprová-
-lo. Mas soube cair nas graças de Jean Delay, por exemplo, quando era seu anfitrião em
Sainte-Anne. Até o final de sua vida, ele soube ir até o fim com o que queria fazer, e
encontrava os meios para tal. Ele tinha intermediários em todos os tipos de domínios, eu
era um dentre tantos outros. Aqueles que imaginam que Lacan me fez seu herdeiro na
psicanálise, se enganam. Lacan especializava as pessoas: tinha seu advogado, seu ma-
temático, seu linguista, e, eu me ocupava de fazer dos seus seminários livros, era como
seu carpinteiro literário. O resto, Lacan não me entregou de bandeja. Durante dez anos,
antes de seu desaparecimento, eu pude mostrar a toda uma geração como eu compre-
endia Lacan, a noção que eu tinha da experiência analítica, de tal modo que, uma vez
dissolvida a Escola de Lacan, muitos permaneceram comigo, se reagruparam em torno
de mim, e, outros, menos próximos, vieram se aglutinar a esse núcleo. É como com os
Seminários: de certa maneira, eu me escolhi.

B.D.: Tem esta epigrafe concernente a você em "Televisão": ':Aquele que me interroga sabe
também me ler''...
J.-A.M.: Ah, sim! .Isso me deu muito prazer! Lembro-me da maneira como aconteceu. Eu
tinha convidado Lacan para reler as anotações que eu fizera para "Televisão", à margem,
como uma manuductio, segundo o termo medieval. E, ao mesmo tempo, querendo pro-
teger Lacan, sugeri que tomasse distância das minhas anotações, exatamente como ele
fizera com o índice cios conceitos dos B'scritos, escrevendo-o, aproximadamente, assim:

Opção l..::icmiana nº 62 46 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

"É um índice que se pretende chave, e que nos vem de alguém que é exterior." Ele situ-
ara meu lugar, e isso me convinha dessa maneira. Sentamo-nos lado a lado 1 trabalhamos
uma meia-hora, três quartos de hora, eu lhe mostrei as anotações uma a uma, e lembro-
-me ainda muito bem de Lacan, de pé diante de sua escrivaninha, já com o sobretudo
nos ombros, e eu lhe disse que ele deveria tomar distância dessas anotações. Digo-lhe
isso, ele pega sua caneta no bolso e, sempre de pé, escreve: "Aquele que me interroga
sabe também me ler." Eu ainda devo ter "Televisão'', batida a máquina, com esta menção
manuscrita.

D.G.·J: Ele validou alguma coisa de sua posição.


J.·A.M.: Não é que eu compreendesse tudo, mas estava no rastro. Quando ele diz, no fim
de "Televisão": "Pela primeira vez, e com você especialmente, eu percebia ser ouvido por
outros ouvidos não carrancudos", é preciso reconhecer que fui em direção a Lacan com
certo entusiasmo. Não desrespeitoso, nem impressionado, uma vez que Lacan suscitava
já uma espécie de paralisia. Eu tomara esse encontro do seguinte modo: "Raciocinemos
juntos. Para alguns você é um mago, para nós, você é um teórico que podemos interro-
gar... " O que me marcou, em contrapartida, é que Lacan aceitou essa maneira de proce-
der. Ele não me disse: "Meu jovem, toma um pouco de sopa e veremos mais tarde ... " É
algo como ser acolhido por alguém mais velho que se admira. Minha atitude não variou,
sempre tive com ele certa forma de intimidade, sempre respeitosa. Ele era animado por
um gênio especial...

A.L.·O.: Uma espécie de daimon?


J.·A.M.: Um daimon. Uma desconfiança em relação ao senso comum, às falsas evidências.
Incluindo aí seus analisantes. Ele não era analista o tempo todo, mas enfim, sentíamos
que estávamos lidando com alguém um pouco diferente. Isto não impedia que nos diver-
tíssemos. Ele era alegre até 1975-76. Ria-se muito. Ele adorava anedotas, os rumores da
cidade. Isto ele escutava mais do que as outras coisas e até mesmo solicitava. Tínhamos
à mesa, em família, conversas sobre todo tipo de coisas, fazia-se, digamos assim, como
Macróbio e Aulo Gélio. Ele nunca interpretava os mais próximos - quando os analistas
fazem isso, é uma devastação - mas, ele era analista por uma cerra reserva, certa defasa-
gem em relação à rotina do blá-blá-blá. O que era extraordinário é que ele nunca falava
do passado. O passado parecia ter desaparecido. O futuro é sempre nebuloso. Restava 1
portanto, o presente, vivido intensamente a cada segundo. Nunca vi ninguém fazer as-
sim, nada do passado em sua conversação. O futuro mobilizava nele um cuidado infinito
e tortuoso pelo detalhe, como quando ele explicava o itinerário, visando prevenir sobre
qualquer mal-entendido, mas tendendo mais a multiplicá-los. Por outro lado, nunca lem-
branças, e jamais nostalgia. Mais tarde, eu quis recolher os papéis sobre a cisão de 53, e

Opção Lacaniana nº 62 47 Dezembro 2011


sobre os conflitos com a IPA em 63, para saber alguma coisa. Conheci Lacan em janeiro
de 1964, nunca ele me falou do que se passara três meses antes' Isso era para mim um
tempo antigo. Duas ou três vezes eu lhe perguntei sobre sua juventude, ao que respon-
deu com uma frase. Ele parecia achar essas perguntas incongruentes.

B.D.: Justamente, sobre esse período, você já evocou essa famosa fala que Lacan te dirigiu
quando da entrevista com François Regnault: "Vbcê é esquerdista, meu caro, então seja
Lêninl''., quer dize0 mais um teórico do que um guerrilheiro. Você disse que releu fre-
quentemente essa entrevista, após a morte de Lacan, e, toda vez, com lágrimas nos olhos.
J.-A.M.: Agora que ela foi publicada, estou liberado. Era, realmente, no momento mais
vivo do esquerdismo, quando existia certa atração pela violência. Houve, então, as pala-
vras de Lacan, que foram importantes para mim.

M.O.: Lacan tarnbém é apresentado como um homem audacioso. Faço referência a esse
episódio ocorrido por volta de 68, Pierre Goldman tentara, um dia, agredir Lacan, e ele
não permitiu. Tem, aliás, uma testemunha no 'Qui sont vos psychanalystes?· que repre-
senta Lacan tirando um soco inglês de seu paletó para mostrá-lo a um analista que viera
lhe pedir um conselho, porque ele havia sido empurrado, maltratado por um paciente.
J.-A.M.: Eu não sei se é um notícia sensacionalista, mas de fato o Dr. Lacan tinha sempre
um soco inglês no bolso de seu paletó.

M.O.: Além de um soco inglê.s~ Lacan tinha um revólver?


J.-A.M.: De jeito nenhum. Ele tinha a ideia de que não vale a pena possuir esse tipo ele
coisas porque se acaba servindo-se delas. O soco inglês é um negócio diferente de uma
pistola. Não basta puxar o gatilho, é preciso brigar, pagar com sua pessoa, é outra história.

CLARA SAER: E isso lhe agradava, enquanto antigo esquerdista, que não lhe faltasse cora-
gem?
J.-A.M.: Na minha frente, ele não se serviu disso . .Mas me lembro que, um dia, ele ia par-
tir para algum lugar com seu soco inglês, dizendo: "Eu vou lhe quebrar a cara." Nós o
detivemos. [risos] Ele mesmo me disse, e, creio que é verdade: a coragem física lhe era
fácil. Ele não se continha por causa da barreira imaginária que impede de bater em seu
semelhante, e acreditava na sua sorte, eu penso. No entanto, ele nunca imaginou dar
uma de herói. Ele não tinha nada a provar nesse registro.

O.G.-J.: Será que se pode colocar a coragem física em relação com o que você disse, no
último ano, no seu curso, a saber: que Lacan tinha sido marcado pelo desejo de nunca
ser um sábio?

Opção Lacaniana nº 62 48 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

J.-A.M.: Sim, certamente. Ele nunca fez o papel do sábio indiferente aos golpes da sorte.
Aliás, evocava jocosamente aqueles que aconselhavam a elevar a alma, quer dizer, a
renunciar a tudo.

OLIVIER PUTOIS: Ele não era estoico'


J.-A.M.: Ele não era estoico; tinha o estoicismo como um masoquismo, e desconfiava das
sabedorias que convidavam a ultrapassar a si mesmo, que faziam deixar para trás o que
importava mais verdadeiramente. Aluno do Liceu, eu era fascinado pelas antigas sabe-
dorias filosóficas, e, ao mesmo tempo, não as achava praticáveis. O Freud de Lacan me
ajudou a compreender por que. Lacan fez cair sobre esta ética filosófica as consequências
da descoberta de Freud.

A.D.: Para voltar à mlação que Lacan mantinha com o tempo, ele dizia ter 5 anos de idade
mental. Talvez não fosse totalmente estranha a urgência na qual ele parecia viver.
J.-A.M.: Sim, é isso, ele vivia no imediato; não adiava nada para o dia seguinte, nem para
um minuto depois. Ele tr,.msmitia um sentimento de urgência. Não queria esperar, queria
tudo imediatamente, e não amanhã. Amanhã, estaremos mortos! Tanto que se ele não
obtivesse o que queria, ficava infeliz. Desde que o tivesse, voltava a ser encantador. Ele
tinha um lado primário, no sentido caracterológico do termo - no que diz respeito aos
seus afetos, em todo caso. Ele desmontava todos os pretextos, as impossibilidades, os
embaraços cio obsessivo. Ele ajudava as pessoas para não deixá-las afundar na sua me-
diocridade, debilidade, covardia.
Eu me lembro da história do índice dos EScritos. Eu lhe sugeri um índice dos
conceitos, o índice dos nomes não me parecendo muito interessante. "Então, faça-o!",
ele me disse. lrisos] Eu faço o índice dos conceitos, as primeiras provas saem, está tudo
ali - 900 páginas! Eu o faço notar que, na ordem em que estão os textos, que é crono-
lógica, dever-se-ia esperar duzentas páginas antes de lê-los no seu estilo atual, e então,
sugiro abrir a coletânea com um texto destacado: "A carta roubada", nomeadamente.
Por consequência, toda a paginação muda. É preciso refazer todo o índice! Não exis-
tia computador! Naquele momento, eu disse a mim mesmo: "Não!" Confeccionar esse
índice me tomara uma semana inteira, passei todo o meu tempo nisso, dia e noite. Eu
estava totalmente decidido a não refazê-lo. Contentar-nos-íamos com esse índice. Chego
à Rua de Lille, Glória me abre a porta e me diz, "Ele está num estado horrível." E, de
fato, vejo o Dr. Lacan agitado, descabelado, sufocado, ainda de penhoar, percorrendo o
apartamento, visivelmente fora de si. Eu me aproximo e lhe digo: "Senhor, eu lamento,
mas ... " - "Pouco importa!" Eu chegara muito tranquilo, bem preparado, me dizendo: "Eu
não posso, estou totalmente no limite, não o farei, o que quer que ele diga." Fui recebido
com gritos. {risos] Enfim, ele me dava a impressão de que eu estava disposto a matá-lo!

Opção Llicaniana n"' 62 49 Dezembro 2011


Então, irritado, e para fazê-lo calar-se, eu lhe disse: "Bom, eu vou fazer!" [risos] Logo,
tudo entrou em ordem! Ele estava, certamente, muito infeliz um segundo antes, mas, no
instante seguinte, ele não estava mais. Eu lhe trouxera a felicidade! Por que ele, então,
continuaria a se fazer de infeliz?

A.L.-0.: A impressão que ele podia passar de um certo capricho irresistível, não tem algu-
ma coisa de feminino, no sentido em que se diz: "o que a mulher quer, Deus quer".
J.-A.M.: Lacan só tinha alguma coisa de feminino na exata medida pela qual ele era ho-
mem o bastante para não ter necessidade de jogar, de representar a virilidade. Há mais
de uma nuance entre se fazer de homem, onde existe sempre indeterminação e mas-
carada, e a tranqüilidade de ser um homem, graças à qual você não se priva de pegar
emprestado do outro sexo alguns de seus meios, seus truques.

FRÉDÉRIOUE LEBOVITS: A infelicidade dele, então, o impressionou!


J.-A.M.: Saí dizendo para mim mesmo que ele me arrancara alguma coisa que ninguém
nunca havia arrancado. Eu tive essa experiência que, talvez, seus pacientes tenham tido:
num instante, ele te toma alguma coisa que nunca ninguém tinha tomado. Isto é, quando
ele me extorquiu a redação dos Seminários foi um pouco da mesma ordem. De certa
maneira, eu dissera sim, para fazê-lo se calar. Em 66, foi o grito. Em 73, foi a recusa
sistemática dos nomes que eu lhe propunha. Com o índice, me aborreci um pouco com
ele, naquele momento, por arrancar-me algo que não queria lhe dar. De fato, eu tinha 22
anos e, graças à sua insistência, eu estava presente no volume dos seus E<;critos, e Lacan
tinha o sentimento de que aquela pessoa ali, que era eu, o compreendia; à sua maneira,
certamente, mas de um modo que ele reconhecia a coerência. E isso determinou certo
número de coisas para mim, o fato de ele ter esse reconhecimento e essa sustentação.

B.D.: Por outro lado, há um reconhecimento que você não quis: o de figurar com seu nome
nos Seminários.
J.-A.M.: É verdade que ele me disse: "Nós o assinaremos juntos." Isso me pareceu excessi-
vo. Eu não tinha necessidade de me colocar na frente. Mas isso não foi tão bem pensado
da minha parte, pois, mesmo se nossos nomes tivessem sido colocados juntos por uma
conjunção aditiva, ninguém estaria enganado, e a prudência teria sido aceitar a ideia de
Lacan. Todavia, nos contratos, eu apareço como co-autor, o que protege juridicamente
o negócio.

A.P.: Você levou um certo tempo antes de ter interesse clínico pelo ensino de Lacan?
J.-A.M.: Inicialmente, encontrei o Lacan teórico. No ano seguinte, tirei meu diploma, para
escrever sobre John Locke. No ano seguinte, foi a agrégation de filosofia. Depois disso,

Opçào Lacaniana nº 62 50 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

tive um "ano suplementar", como se dizia na Escola, durante o qual eu estava mais livre.
Essa história do índice aconteceu no começo desse ano aí. Em 67-68, vivendo em Paris,
fui ensinar em Besançon, onde havia um posto de assistente, E, depois, chegou maio de
68. Ali, no seu Seminário, Lacan me comparou - sem dizer meu nome, mas era de mim
que ele falava - a São Paulo, caindo de seu cavalo a caminho de Damasco. Ele pensava
que tinha me perdido, Esta comparação com São Paulo não era ruim, Muito mais tarde,
quando comecei a propagar a boa palavra através do mundo, cheguei à cidade de São
Paulo, e evoquei essa comparação. Após minha escapada de 1968, que durou três anos,
voltei para perto dele. Por não poder entrar em análise com ele, comecei uma análise
com um de seus alunos, que funcionou para mim como substituto, pois minha transfe-
rência se dirigia a Lacan. Eu só comecei a praticar a psicanálise um mês ou dois após
sua morte.

M,O,: O que, finalmente, fez você decidir abrir um consultório'


J.-A.M.: O comportamento miserável, inclusive, em certos casos, abjeto, dos analistas de
sua Escola, que se voltaram contra ele quando ele começou a enfraquecer. Eu tinha
diante dos meus olhos o espetáculo do que eles eram capazes de fazer, de dizer. Decidi-
-me a ser analista quando vi que, se eu não me aprofundasse, o ensino de Lacan ia para
o ralo. Teve um que disse, então, em 1981: 'Jacques-Alain Miller terá desaparecido da
psicanálise em quinze dias." O pobre coitado desapareceu antes de mim.

A,L-0,: Um desafio, de novo'


J.-A.M.: Exatamente. Mas, essa decisão brusca, eu a antecipara, de algum modo. Eu havia
lido a psiquiatria clássica, o Freud todo - várias vezes - e todos os "pós-freudianos", e
dava aula disso. Eu seguira as apresentações de pacientes de Lacan e, como elas aconte-
ciam quinzenalmente, organizara um pequeno grupo de trabalho clínico, para discutir o
assunto no intervalo. Após ter ido parar no esquerdismo, eu já havia saído do discurso
universitário para entrar no discurso da psicanálise, mas sem ser analista. Essa situação
não podia durar. Eu precisava inventar alguma coisa. Eu buscava. O que me fez decidir
foi que alguns alunos de Lacan quiseram me derrubar, um pouco como na Convenção!
[risos] Resisti, posso dizer assim, porque na idade de 13 anos eu já havia refletido bas-
tante sobre essa história.

A,P,: Você abordou com Lacan a possibilidade de se tornar psicanalista?


J.-A.M.: Pfiouuuu, jamais! Nào era problema dele. Nós sempre guardamos um do outro
uma distância respeitosa. Ele se dirigia à sua filha na segunda pessoa do singular, mas
me tratava na segunda pessoa do plura12. Um dia, no meio de uma conversa, ele deixou
escapar um "tu" para mim. Eu o olhei assim [JAM faz um olhar furioso], e ele nunca

Opção Lacaniana nº 62 51 Dezembro 2011


mais recomeçou. Num certo plano, no plano do discurso, eu queria que guardássemos
nossas distâncias.

A.L.-0.: Você ressaltou que Lacan tinha o dom de arrancar uma coisinha a mais que não
queríamos lhe ceder. Seus analisantes testemunhara-m isso, efetivamente.
J.-A.M.: Era um talento especial que ele tinha. A força do desejo, como em Verdi, a força
do destino. Isso permitiu a pessoas ultrapassarem a si mesmas. N* conta que, quando
disse a Lacan que iria estudar medicina, ele dobrou o preço de suas sessões. Então en-
tendeu que não poderia fazer seus estudos de medicina. Isso lhe fechou uma porta, mas
lhe abriu outra. Lacan aconselhara Laplanche, em seu tempo, a fazer medicina, mas N*,
filho de médico, tinha outra coisa a fazer. Ele era do tipo: "Você tem tempo livre demais?
Bem, você deverá ganhar o dobro." Provavelmente, isso estava fundado nas grandes
exigências que Lacan tinha em relação a si mesmo. Era ainda a cultura do esforço, ao
passo que agora vocês são moles, todos! (risos] Bom, estou brincando, mas então, podia-
-se sentir melhor, sem dúvida, a alavanca sobre a qual se apoiar. Não é evidente que se
possa imitá-lo, fazer um método. Essa maneira de fazer repousa sobre certa densidade
do ser do analista. É especial, como forma de ajudar as pessoas [risos].

A.D.: Aliás, existem analisantes que não suportam, provavelmente, essa exigência' Mas
Pierre Rey contava que o preço de suas sessões era tão elevado, num dado momento, que
ele começou a escrever mais para poderpagá-las.
J.-A.M.: Ele precisava ter detectado que a pessoa tinha esse talento! Eles podem agradecê-
-lo por essa espécie de resgate terapêutico, sem o que eles teriam continuado, por muito
tempo, na mediocridade, no conforto.

A.L.-0.: Sem o desconforto_. fica-se uma vida em análise'


J.-A.M.: Oh, mas ficava-se muito tempo com Lacan! N*, em todo caso, ficou até o fim. Mas
eu não quero fazer para vocês as confidências dele. [risos]. Lacan pedia às pessoas para
irem, até tocar o ponto de seu impossível. É o princípio de toda ética. Mas ele nunca fez
propaganda disto, nunca erigiu essa maneira de fazer como um método, não constituiu
uma ortopraxia. Ele mesmo falou apenas uma vez da sessão curta, exatamente no início
de seu ensino, em "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". Sua prática
da sessão ultracurta concerne, essencialmente, aos três últimos anos de sua vida, quan-
do, efetivamente, lhe restava pouco tempo de vida. Ele ia até o osso da sessão. Quantas
vezes os próprios analisantes têm o sentimento de que jogam conversa fora? Aliás, quan-
to mais eles avançam, mais se dão conta de que jogam conversa fora, e se satisfazem
contando isto ou aquilo, às vezes porque pensam que é o que o analista espera. Bem,
Lacan lhes mostrou que não esperava isso, esperava outra coisa.

Opção Lacaniana nª 62 52 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

A.L.-0.: A prática de Lacan mudou, sem dúvida, ao longo do tempo.


J.-A.M.: Lacan não esteve sempre nesse nível de densidade de seu ser. Victoria Ocampo o
descreve aos 30 anos como não parando de falar. Ele tentava seduzi-la, sem dúvida. As
sessões curtas) e as sessões muito curtas são, na realidade, o resultado de certa história,
de um trabalho sobre si mesmo também. O Lacan dos anos 50, tal como o descrevem,
não é exatamente aquele que eu conheci. Ele era mais alegre, mais confiante; não tinha
tido ainda a experiência da traição. Ele gostava muito de Serge Leclaire e de seus ami-
gos. Ele gostou menos dos psicanalistas depois de 1963; considerava que eles eram mal
conduzidos, certamente. E diz isso em alguns textos.

B.D.: Lacan dá a impressão de não ser tão interessado no poder...


J.-A.M.: Até seus 62 anos, ele foi enxotado em toda parte. Após a excomunhão de 1963,
quando tinha acabado de fazer, por dez anos, os Seminários, conseguia reunir cem
pessoas, no máximo, dentre elas alguns jovens de 20 anos, que ele conhecia havia seis
meses, como eu. Eis aí o poder de Jacques Lacan! E depois, evidentemente, isso começou
a crescer em 68 e depois de 68. Que poder ele rinha sobre aqueles que o cercavam' A
sedução do que ele ensinava. Afora isso, ele admitia muito facilmente novos membros,
de tal modo que essa Escola cresceu muito rapidamente. Ele não construiu nenhum
aparelho de poder, além de continuar a falar, a ensinar, e a dar àqueles que o seguiam
um lugar, um abrigo. Sua Escola nunca foi mais do que isso. Os estatutos da Escola da
Causa Freudiana fui eu quem os pensou: seus conselhos, funcionamentos, jornadas
anuais. Coloquei tudo isso em ordem. Primeiramente, porque não gosto da desordem
nesses negócios. E depois, para permitir que essa Escola resistisse ao tempo, e, para criar
seis outras no mundo, precisava disso. Para mim o poder também não interessa. Criar
instituições me interessava. Uma vez que começa, tchau! Eu não dirijo mais nada. Mas
precisava fazer isso para que a psicanálise de orientação lacaniana não se apagasse, se
difundisse e continuasse a existir sob a forma de uma comunidade de trabalho.

D.G.-J.: Que relação tinha Lacan com a posteridade'


J.-A.M.: Isso também não o obcecava. A posteridade é um fantasma. Ele não tinha nem
a postura do grande homem nem a vontade de eternizar o que quer que fosse, nem de
construir uma instituição que atravessasse as eras. Foi por pouco que ele tomou as dis-
posições testamentárias, dois anos antes de morrer ou alguma coisa assim, para que eu
pudesse continuar o trabalho que eu começara com seus seminários. E ainda, foi Sylvia,
sua esposa, quem o lembrou de fazê-lo. Nào era absolutamente: "Depois de mim, o di-
lúvio", mas ele tinha a ideia, apesar de tudo, eu creio, de que a vida após a morte, sob
a forma que fosse, a do senhor Valdemar ou outra, era uma coisa tào absurda quanto
pouco apetitosa. A ideia de se prolongar, de estar sem defesa na mão dos vivos, não

Opção Lacaniana nu 62 53 Dezembro 201 ·1


tinha nada para encantá-lo. Os homens jamais trataram os mortos decentemente, por
que iriam começar com Lacan? Ele nunca sonhou em se prolongar. Aliás, o fato de que
dissolvesse sua Escola pouco tempo antes de morrer, dá um exemplo disso. Certamente,
ele a reconstituiu, mas por pouco, porque ficaram ao redor dele pessoas que tinham
necessidade disso.

D.G.-J.: No seu curso do ano passado, você apresentou uma "vida de Lacan", que fugia à
biografia. Vi:>eê nào gostaria, então, de colocar-se como o "biógrc,fo" de Lacan.
J.-A.M.: Não posso fazer a biografia de Lacan. Não tenho nem os elementos para tal nem
tempo nem o gosto. Biógrafo, esta posição é para mim impensável, não tenho o menor
interesse por isso. Pelo contrário, gostaria muito de ler uma boa biografia de Lacan,
no estilo ela de Plutarco, ou como aquela de Massin sobre Robespierre, ou mesmo
no estilo americano, como a ele David Me Cullough sobre Truman, por exemplo, mas
não existe nenhuma até o presente momento. Os biógrafos, frequentemente, caem na
armadilha de escrever a história do grande homem, ou cio homem mau. Para Lacan é
mais o homem mau.

M.O.: O que o preocupava, jimdamentalmente'


J.-A.M.: Acredito que o essencial para ele era resistir, e avançar na via em que estava enga-
jado. Não vejo outros princípios de sua existência. Eu lhe disse - num dia em que Sylvia
se recusara a lhe fazer o almoço, e nós fomos os dois para um restaurante japonês: "Ah,
as mulheres lhe terão dado muita preocupação!" E ele me respondera lentamente, após
um tempo, olhando-me com um canto do olho, a cabeça inclinada: "Oh.. não tanto".
Antes de 1964, ele fora um pouco mundano, frequentava os Rothschild, Marie-Laure de
Noailles, e foi lançado em Paris a certo nível de mundanidade, conhecia Agnelli, certo
número de pessoas que contavam socialmente. Inteirei-me disso pelos seminários, ou
pela família, pois ele nunca falava disso. Mas, tal como o conheci em 1964, ele não or-
ganizava mais jantares. Houve uma vez, na casa ela Sylvia, um jantar com Lévi-Strauss,
que, aliás, nào soltava uma palavra, sentado diante de seu prato de legumes - ele era
vegetariano. Quando Jakobson vinha a Paris, ele se hospedava na casa de Sylvia, então
nos víamos, almoçávamos ou jantávamos juntos, bebíamos. Mas ele não organizava mais
nada no plano mundano. Ele fazia algumas viagens, mas passando todos os fins de se-
mana no campo, se concentrava em seu ensino.

D.G.-J.: Voltemos a Robespierre' (riso,1}


J.-A.M.: Expliquei a vocês a maneira pela qual eu me interrogava aos 13 anos. Como
ser alguém de bem, do gênero impecável, severo, sem acabar vencido? Adquiri a ideia
de que não é preciso levar as pessoas muito longe. O poder puro do significante - "2

Opção Lacaniana nº 62 54 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

+ 2 = 4, Jogo, é necessário que você faça isso"- que se impunha, então, a mim, eu
compreendi que não precisava impor aos outros, senão isso acaba por voltar na sua
cara. Portanto, a lógica funciona muito bem no papel, mas sua aplicação requer certa
dosagem. Justamente, existem as circunstâncias. Como dizia Monsenhor Dupanloup,
há a tese e a hipótese. A tese é, a todo vapor: "Não há dúvida de que isto seja de outro
modo." A hipótese, sob a tese, é: "Talvez, ainda que, considerando as circunstâncias ... "
Um pouco ele jesuitismo na lógica. Espontaneamente, eu gostava ele Pascal e dos jan-
senistas. Gosto sempre de Pascal, mas compreendo muito melhor os Jesuítas, ainda
que, jesuíta, eu não seja.

A.L.-0.: Você evoluiufrente a seus primeiros princípios.


J.-A.M.: Com as Escolas que eu tive que conduzir ou criar, certamente, apliquei princí-
pios, mas a ordem da aplicação é distinta daquela cios princípios. A aplicação supõe
evoluir com relação aos princípios. É preciso ajustar a aplicação às circunstâncias, não
procurar obter uma aplicação plenamente adequada aos princípios. É preciso perguntar
bastante, sabendo sempre que só se obterá alguma pequena coisa que passe pelo bom
senso. Se eu não tivesse adquirido esse tato, isso teria sido inviável. Primeiramente, por
mim, pessoalmente, mas, principalmente, eu nâo teria podido fazer o que fiz na ordem
institucional. É preciso dar espaço, margem, fazer exceções, e mesmo ter em mente que
todo mundo é uma exceção, não sacrificar a variedade, a diversidade, pelos princípios.
Se pude construir o Campo Freudiano, é porque não fui nem Brutus nem Robespierre,
ou melhor, porque, de um lado, mantive alguma coisa de Brutus e Robespierre, mas, de
outro, havia lido Baltasar Gracián e Lacan.

A.L.-0.: Então você tem um lado protetor e outro intratável?


J.-A.M.: Sim. Robespierre é o Incorruptível. Aquele que não se pode ganhar com balas
nem comprar com vantagens.

A.L.-0.: Existe uma violência inerente ao incorn1ptível.


J.-A.M.: Sim, eu tenho essa violência.

A.L.-0.: Um lado protetor e um lado incorruptível?


J.-A.M.: Ser intratável a serviço de uma causa, e cuidar para não fazer dela uma causa
perdida.

A.L.-0.: Você tem também a latitude própria para acolher o real de cada um.
J.-A.M.: Tenho princípios e uma orientação 1 mas o que me interessa é ver pessoas que
avancem! Em minha opinião, as pessoas não avançam o bastante nas nossas institui-

Opção Lacaniana n" 62 55 Dezembro 2011


ções. As Escolas do Campo Freudiano, a ECF na França, as outras, não vão tão mal. São
verdadeiras instituições, que se mantêm sem que eu gire a manivela. Elas são dignas, e
dão os meios àqueles que querem ter acesso ao saber psicanalítico e aos psicanalistas
competentes. Os fundamentos últimos desta política institucional, por si, estão ali. Na
sua prática, Lacan procurava ser mais exigente, seu lado transgressivo, seus excessos,
ajudava verdadeiramente as pessoas, evitava que elas ronronassem, e lhes permitia en-
contrar uma zona de si mesmas que não conheciam.

B.D.: Lacan tem, realmente, esta reputaçâo de ter tido encontros de manhã muito cedo
com os matemáticos com os quais ele trabalhava, de tel~fonar a Cheng, por exemplo, a
qualquer hora da noite, quando estava em plena atividade, no trabalho.
J.-A.M.: Quando você telefona para as pessoas a qualquer hora, você lhes mostra o quan-
to são importantes para você! E ele mostrava a que ponto, efetivamente, o outro tinha
alguma coisa importante para lhe dar. Ele não telefonava para qualquer um, e as pessoas
para as quais ele ligava ficavam muito contentes. Eram aqueles para quem ele não tele-
fonava que ficavam chateados ...

M.O.: lacan se interessou por muitos domínios! mas ele era cinéfilo?
J.-A.M.: Não. Lacan considerava o cinema como sombras tremulando sobre a parede
- ele me disse alguma coisa assim. Isto não o cativava. Certamente, ele tinha ido ao
cinema, visto Bufiuel, Renoir, A regra do jogo, e ainda outros filmes, ele falara disso.
No tempo em que o conheci, ele nào ia mais ao cinema, salvo quando saía um filme
de Fellini. Ele evocou A doce vida em um seminário. Tendo sido convidado, foi ver
O impérlo dos sentidos. Mas não era cinéfilo nem melômano. Ele ia ao ópera, ocasio-
nalmente. Fomos ver Donjuan, montada por Giorgio Strehler, no Opéra de Paris, por
exemplo. Ele, aliás, jamais escreveu sobre a ópera. Eram a pintura e os livros que o
interessavam. Ele lia muito. E leu muito psiquiatria, a bibliografia de sua tese é con-
siderável, e ele dizia ter lido tudo. Era curioso por tudo, desejoso de ter noções de
tudo, ele tinha, parece-me, o espírito matemático: colocava questões, compreendia,
questionava tudo, cansava seus interlocutores matemáticos. Ele sabia o grego, o latim,
o alemão, lia em inglês, tinha noções de chinês, hebreu, egiptologia. Isso o excitava;
ele não se obrigava a isso.

C.S.: Lacan era bon vivant? Você tem lembranças de fazer r~feiçôes em sua companhia?
J.-A.M.: Ele não era exigente nesse aspecto, comia o que tinha. Ele descia do seu escritó-
rio às 13 horas, todos os dias, do nº 5 para ir ao nº 3 da Rua de Lille, na casa da Sylvia,
onde lhe serviam uma refeição que não tinha verdadeiramente nada de extraordinário:
comida caseira. À noite, era frequentemente no restaurante La Caleche, do outro lado

Opção Lacani:lna nº 62 56 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

da rua, depois num restaurante no Quai do Louvre. Sábado e domingo, era Alicia quem
cozinhava no campo. No início, ela não sabia cozinhar, mas chegou a ser, com o tempo,
unia excelente cozinheira, por afeição a ele, creio. E as bebidas, isso também não era al-
guma coisa com a qual ele se ocupasse. Lembro-me de que, num determinado momento 1
quis organizar uma cave: ele a delegou a mim ...

M.O.: Você tem algum conhecimento particular na matéria'


J.-A.M.: Nenhum. Na época. eu gostava dos vinhos da Borgonha, interpelei o sommelier
de um grande restaurante, que nos abasteceu de Louis Jadot.

LAURA SOKOLWSKY: Você nunca imaginou fazer análise com Lacan?


J.-A.M.: Escuta, eu casei com sua filha. Não se pode fazer tudo. [risos]

O.P.: Voltemos a esta locução: "Ser lacaniano". O que se entende por isso?
J.-A.M.: Concluindo: cada um é responsável por sua maneira de ser lacaniano. O Dr. Lacan
não era lacaniano, ele era Lacan. As pessoas imaginam o lacanismo que lhes convém,
das têm, portanto, versões muito diferentes dele. Na sua Escola, muitos consideravam
que o maximu.m era se lixar para o vizinho, uma lição de cinismo. Havia, certamente,
cinismo em Lacan, mas ele dizia também: nesta Escola é preciso ser bom camarada.
Então, tinham outros que acentuavam este ponto. Por outro lado, se existiam doze Jesu-
ítas na Escola Freudiana de Paris é que eles pensavam que era bom para a Companhia.
Portanto, cada um com seu lacanismo.

A.L.-0.: E o seu?
J.-A.M.: Aquele que eu difundi pelo mundo comportava certo saber clínico, com os mar-
cadores perfeitamente explícitos. Por exemplo, a prática do passe - que foi abandonada
por todos os alunos de Lacan, por considerarem que o passe destrói necessariamente
uma instituição. Então, a partir cio ensino de Lacan, eu talhei certo lacanismo, operatório
institucionalmente. Isto comportava também ter uma certa doutrina para a Escola. Assim,
a permutação. Nunca teve permutação na Escola de Lacan. Mas me apeguei a isso de
tal maneira que, nas Escolas lacanianas que pude fundar, isto se tornou a regra. E, todo
mundo considera que isso veio de Lacan. E é verdade, é lacaniano - mesmo que isso
nunca tenha sido praticado quando Lacan estivesse vivo. Era a tese, mas as circunstân-
cias se opuseram a isto na época. E depois, fundar uma Escola com duração, Lacan não
estava preocupado com isso.

Opção l.acaniana nº 62 57 Dezembro 2011


O SEMINÁRIO

C.L.: Na sua maneira de estabelecer o texto dos seminários, você mudou de método ao
longo do tempo?
J.-A.M.: Sim. No início, em vida, Lacan recebia o manuscrito e o relia - talvez muitas vezes
de viés, mas com certa atenção em várias passagens. Eu mesmo podia pedir sua opinião
para umas vinte ou trinta passagens difíceis. Isto dava uma garantia: e facilidades que,
evidentemente, eu perdi com seu desaparecimento. Mas, ao mesmo tempo, ele mesmo
não detinha o saber absoluto sobre seus próprios Seminários. Lembro-me no Seminário
1, do esquema em espiral no fim, que não cheguei a recompor. Eu me abri com Lacan,
que também não via por qual lógica ele devia proceder. Ele não se lembrava mais do es-
quema. Por outro lado, lembrou-se de que Sr. Bejarano, que seguia seus semfriários, to-
mava notas. Ele encontrou seu endereço e nós fomos, os dois, à casa dele ver se existia,
nestas anotações, o esquema em questão. Ele não estava lá. Então inventei um esquema
a partir dos elementos que tinha e o apresentei a Lacan. Ele me disse: "Pois bem, está
bem assim." Portanto, tudo era tanto quanto possível verificado, mas, ao mesmo tempo,
eu redigia sem imaginar que tudo pudesse ser reconstituído de modo idêntico a todos
os pontos do discurso. Há coisas que se pode, e não é por isso que se desmaia. Trata-se
de dar uma versão legível, como eu disse de início. Se alguns querem esquadrinhar as
diversas estenografias que existem é completamente possível, e isto permite ver a ampli-
tude e a delicadeza do trabalho que é o meu. Então, se minha orientação permaneceu a
mesma, eu perdi ao longo do tempo a voz de Lacan. Durante uns dez anos, ainda tinha
sua voz nos meus ouvidos. E estabelecia o texto em função dessa voz ali. Eu me apresso
a dizer que não é uma voz alucinatória, não sou a Joana D'Arc da psicanálise! [risos]
Era simplesmente sua cadência, sua maneira de escandir, e seu jeito à moda alemã de
colocar o termo mais significativo no fim da frase, o que em francês obriga a grandes
circunvoluções. Também não é a voz das gravações - que eu não tenho - era alguma
coisa que de algum modo me era própria. Geralmente, Lacan anuncia o termo importan-
te por circunvoluções: "blá-blá-blá ... a saber..." e ele solta um pedaço. E continua assim.
Às vezes, esse termo é um verbo, em geral um substantivo, e a frase toda é construída
para levar até o termo capital e pontuá-lo. Para mim, era impensável não respeitar isto,
porque o próprio texto falava assim. Essa voz se perdeu, num determinado momento, o
que me levou a restituir uma ordem das palavras mais conforme ao espírito do francês,
e, portanto, mais legível.

8.0.: Fora "a voz perdida''., se eu posso dizer assim, sua abordagem do Seminário se mo-
dificou, por outro lado?
J.-A.M.: Sentia que o público tinha mudado, que certo número de referências de Lacan

Opç;io Lacaniana nº 62 58 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

se distanciavam. Foi com uma preocupação de clareza que não pus mais o grego em
caracteres gregos e os transcrevi em caracteres latinos. Comecei a destorcer suas frases
pela mesma razão. Até então, eu precisava fazer acrobacias para que isso fosse gram~Iti-
calmente possível. Coloquei-me, ao contrário, a remeter as palavras à ordem que a língua
francesa exige.

C.L.: Você se lembra disso a par/ir de qual Seminário?


J.-A.M.: Isso foi progressivo, mas em todo caso, no momento da redação De um Outro
ao outro, eu o fiz claramente. E acredito que isso permite entrar mais facilmente no Se-
minário. Dizendo isso, esta manhã mesmo, relendo a passagem do Seminário 1.1 sobre
"O olho e o olhar", eu encontrava claramente isto: redigido por mim, com o esforço de
sinalizar os termos mais significativos, o que permite localizar melhor.

D.G.-J.: Esta mudança de estilo que você evoca o coloca em relaçâo a um momento preciso
de sua abordagem do ensino de Lacan?
J.·A.M.: Não. Tenho a impressão de que o tempo pedia para eu fazer um esforço ele trans-
mitir a originalidade e o caráter estranho do que Lacan pode trazer. Para se confronrar
com o que é verdadeiramente difícil não há nenhuma necessidade de complicações inú-
teis. Nunca fui a favor de multiplicar os obstáculos. Pelo contrário, tentei sempre transmi-
tir este ensino da maneira mais clara possível. Isso posto, é algo muito relativo. Nos seus
últimos Seminários. Lacan fazia frases muito mais curtas, cuja sintaxe não tinha que ser
mudada. O problema se coloca mais no começo de seu ensino, em que suas frases er:-1m
frequentemente muito longas, às vezes inacabadas e com uma coerência gramatical du-
vidosa, como ocorre com aqueles que estão expondo. O problema é diferente de acordo
com os períodos do Seminário.

A.D.:A publícaçâo dos Seminários segue uma lógica particular?


J.-A.M.: Não. O Seminário J 1 foi o primeiro que eu acompanhei. Em seguida, decidi fazer
o primeiro, depois o último. Depois disso, o segundo, o terceiro, o quarto. O quinto,
eu o redigi após sua morte: ele era muito complicado de se recompor, e me demandou
um trabalho enorme. Ele comporta um grande número de esquemas, cujo detalhe não
era límpido, e a estenografia não era clara, longe disso. Eu precisei pensar muito e me
ligar aos menores detalhes para conseguir colocá-lo em ordem, do jeito que está agora.
Com os seguintes, dependia dos materiais que eu tinha à minha disposição, daqueles
que eu conseguia reunir, porque, após a morte de Lacan, não podia mais pedi-los a ele.
Por outro lado, eu não tinha o hábito de controlar isto com uma ou outra anotação. Ora,
percebi, após ter publicado A transferência, que as notas manuscritas do Dr. Lemoine
permitiam recuperar erros da estenografia que haviam me escapado. Então, fiz uma

Opçào Lacaniana nº 62 59 Dezembro 201 J


segunda edição corrigida. Depois disso, foi preciso que eu reunisse outros documentos.
A publicação dos Seminários se faz assim, em função da documentação reunida e da
conclusão da minha reflexão sobre tal ou tal Seminário.

C.L.: Você tem alguma ideia do próximo a ser publicado?


J.-A.M.: As segundas provas cio Seminário 19 estão na Seuil. Isto sairá este ano.

F.L.: Como uocê encontra o equilíbrio, no seu trabalho de escrita dos Seminários, entre o
fato de querer tornar audível a fala de Lacan, sem, por isso torná-la transparente?
J.-A.M.: Não é que eu queira torná-la transparente, mas nos seus Seminários Lacan diz
coisas que é necessário respeitar. No início, eu pensava que as leituras se arranjariam
com seus equívocos 1 com os quais me defrontava, eu mesmo, sem cessar. Se me permito
intervir mais na sintaxe das frases: é para obter um tom mais francês, sempre respeitando
a articulação conceituai. Trata-se de facilitar o acesso do leitor, e que ele não tenha que
sofrer para encontrar o relativo, o antecedente do relativo etc. Trata-se de minimizar a
dificuldade sintática para deixar aparecer, se for o caso, a sutileza ou a dificuldade con-
ceitual, em nenhum caso para reduzi-la. As dificuldades inerentes ao texto permanecem.

F.L.: Existe então uma tensão entre o ensino de Lacan, difícil, às vezes opaco, e seu gosto
pronunciado pela clareza.
J.-A.M.: É justamente por isso que eu pude me interessar por Lacan! Eu não ia me interes-
sar por alguém que fosse claro por si mesmo!

M.O.: Você diz que é o mais sério que você encontrou, mas é o mais dffícil?
J.-A.M.: Não. As matemáticas são incomparavelmente mais difíceis para mim, a partir ele
um certo nível. Minha cabeça não funciona no nível superior das matemflticas, e lamen-
to isto. Eu nunca li Lacan em termos de dificuldade, mas sempre com a ideia: "Ali, eu
alcancei. Ali, eu alcancei. Ali, eu continuo a compreender." Bom. Evidentemente, quebro
muitas vezes a cabeça. Posso passar seis horas, sem perceber, sobre um parágrafo, e
dizer a mim mesmo que não conseguirei nunca. Eventualmente, isso tem uiri lado egip-
tológico: a estenografia é incompreensível, então pego um pequeno pedaço compreen-
sível, reservo-o, tento ver com o que isso pode colar, retomo isso dez a quinze vezes e,
passo a passo, reconstituo um mundo. Estou encantado que as versões da estenografia
original estejam difundidas na Internet, porque quando as comparamos, podemos ver
a diferença. O texto que estabeleço dá outra respiração, temos uma chance de sair das
nuvens e apanhar as articulações.

F.L.: Nos momentos de dificuldade, você se apoia em quê?

Opção Lacaniana nº 62 60 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

J.·A.M.: Sobre a consistência. Lacan, eu confio nele, que o que ele adianta não é dito ao
acaso nem para preencher o tempo. Certas passagens são menos equilibradas ou acaba-
das do que outras, e é verdade que ele às vezes muda de opinião de uma semana para
outra. Mas me dei conta de que era preferível confiar nele. Lacan tem base, o que não
é o caso de todos.

C.S.: No ensino de Lacan, o que permite que você se defenda dos ataques de que é objeto,
às vezes?
J.-A.M.: Sua densidade. É um ensino que nâo se deixa facilmente corromper, se posso
dizer assim. Lacan se gabava, aliás, ele mesmo: do que ele chamava de seu "poder de
ileitura". E isso protege enormemente. Quando se lê Lacan, não é somente para se deli-
ciar, frequentemente se faz careta.

B.D.: Lacan tem uma língua que não se parece com nenhuma outra_, mas como ele traba-
lhava seus textos, seus escritos, seu Seminário? Você sabe?
J.-A.M.: Primeiro: ele não falava da mesma forma que escrevia. Certamente, ele falava
como se escreve, mas enfim, ele escrevia de um modo muito mais conciso. Aliás, ele
considerava "A instância da letra" como um semi-escrito porque não está suficiente-
mente conciso. "Quando eu escrevo, não quero deixar ao meu leitor outra saída senão
a boa", ele dizia para justificar que seus textos fossem tão densos. Portanto, a ideia de
deixar um caminho muito estreito para o leitor, e de restringi-lo, desacelerá-lo também,
às vezes, supõe um regime de escrita especial. Quando se lê Sartre, em comparação,
pode-se ir a cem por hora. Se nós perdemos alguma coisa, sabemos que dez páginas
adiante ele repetirá a mesma coisa. Isso dá uma chance ao leitor desatento, principal-
mente àqueles que foram formados à moda francesa, quer dizer, com a arte da disser-
tação. Nos escritos de Lacan, é preciso prestar atenção à menor vírgula. Esta conden-
sação, esta densidade é, sem dúvida, de natureza a preservar o texto por muito tempo.
Ele perde em audiência imediata, mas ganha em duração. Sollers, cuja pena é leve,
rápida e harmoniosa, considera que Lacan escrevia mal. Por que não? Em todo caso,
Lacan não escreve como Sollers. Ele não busca a harmonia, ele foge dela, ele pratica
a dissonância, isso range. Ele relaxa às vezes o clima com um sarcasmo, uma ataque
maldoso, mas abre um sulco, e deixa ao leitor fórmulas que permanecem. Lacan não
é um homem de letras e, se é isso que Sollers quis dizer, ele tem razão. Mas Lacan é,
contudo, um mestre da língua.

M.O.: Você que frequentou Lacan, qual a imagem que aceitaria nos dar dele traha/bando,
escrevendo?
J.-A.M.: Quando foi que eu o vi escrevendo?

Opção Lacaniana nº 62 61 Dezembro 2011


M.O.: Você falou de Lacan visitando Heidegge,; que tinha prazer em recebê-lo em seu
escritório ..
J.·A.M.: Prazer' Isto é você quem diz! Eu nào estou certo de que Heidegger ficasse
encantado em receber Lacan. Penso que Lacan tinha vontade de ver Heidegger, e :Hei-
degger lhe abria as portas porque era bem educado. [risos] A única coisa que eu o vi
escrever - isto me ocorre 1 porque você me pergunta - foi "O aturdito", no qual ele dá
suas fórmulas da sexuaçào. Ele fazia isso no campo, no mês de agosto, de calção de
banho, perto da piscina, sobre uma mesa branca. Eu lhe perguntei: "Você escreve?"
Ele respondeu: "Sim. O que prova que eu penso é que meus pés incharam." [risos] Ele
retirara seus sapatos, porque seus pés inchavam à medida que seu pensamento se in-
tensificava. Aliás, ele disse em seu Seminário que pensava com seus pés. Jean-Jacques
Rousseau não podia pensar sem passear. O Dr. Lacan era alguém sério, quer dizer, que
não se levava de jeito nenhum tão a sério. É precisamente o grupo de pretensiosos e
esnobes que viam em Lacan um terrível, porque com eles, sem dúvida, ele era assim.
Mas quando se lidava com ele com simplicidade, era outra coisa: ele era gentil como
tudo ...

A.P.: Era um não-analista que, finalmente, compreendia melhor o que ele escrevia.
J.-A.M.: Sim, que compreendia da sua maneira. Ler Lacan supõe um nível ele coerência
discursiva, significante, e para aceder a isso não há necessidade de ser analista. Isto é:
existem valores cios quais não poderemos nos servir da mesma forma se somos ou não
analistas. Quando ele diz "aquele que me interroga sabe também me ler", ele constatava
que eu sabia lê-lo por causa das minhas pequenas inscrições que lhe foram bem conve-
nientes. Quanto a mim, eu não tentara, em "Televisão'', fazer-lhe perguntas inteligentes.
Minhas questões, como "O inconsciente - palavra engraçada!", não era para ffle fazer
de interessante, eu queria perguntar no nível de todo mundo. Ele é que não conseguia
responder neste nível. Ele disse isso, aliás. Tentamos três ou quatro vezes, sem chegar ao
que quer que seja, e eu lhe disse: "Você deve escrever.'' Ele escreveu. É preciso saber ler
para ser psicanalista, mas pode-se saber ler sem ser psicanalista.

A.P.: O.falo de ser seu genro teve consequências na relação de vocês?


J.-A.M.: Nossas relações se situavam, essencialmente, num nível em que o laço de família
não contava. Eu me entendia bem com ele, bem antes de entrar na sua família.

A.L.·O.: Sua tese é dedicada a seuspais.


J.-A.M.: Era mais clássico para a época. Felizmente ela não foi dedicada ao seu capelão.
Sua tese é dedicada a M.T.B. Ele mantinha uma fidelidade a esta mulher. Eles estavam
juntos na época de sua tese, em 1933, quando Lacan era interno. Eu sinto que ela contou

Opção LtGJ.niana nº 62 62 Dezembro 20"l l


ORIENTAÇÃO LACANIANA

para ele, ela deve ter lhe aberto algumas vias para a feminilidade. Foi ela que teria dito:
"O amor é dar o que não se tem ...

A.L.-0.: .. a alguém que não quer."


J.·A.M.: Esta não é a versão original, eu creio.

C.L.: Como você descreveria o principal objeto e movimento geral do Seminário?


J.-A.M.: A fala tem efeitos de significação, e tudo que no homem é desse registro, pode-
-se modificar, passando pela fala. Isto vai muito longe. Mas o que se faz com o que está
fixado nos programas de gozo de cada um? Como se arranjar com isso que resiste à
mudança? É a grande questão. Lacan começou com a maior confiança nos poderes da
fala e é isto que dá o ar pretensioso ao seu primeiro ensino. Naquele momento, há a
ideia de que, se manejamos bem a fala, ela pode tudo, ou quase tudo. Mas, nem tudo
das pulsões passa pela dialética simbólica. Há as fixações libidinais. Ele lhes dá um lu-
gar cada vez mais importante. Elas são efeitos de significação de um tipo especial? Elas
podem ser dissolvidas? Elas podem cair? Ou têm "restos sintomáticos", como dizia Freud,
que não são elimináveis?

A.P.: A respeito de seus cursos agora, por que razões você não os publica em francês?
J.-A.M.: Eu dou um curso sobre a psicanálise, sem parar, desde 1970, cada vez diferente.
A quarta parte está publicada em espanhol, o resto está para ser feito. São meus amigos
argentinos que fazem isso, a partir das estenografias. Fazem isso com muito cuidado,
competência e gentileza. É publicado pelo editor Paidós, que publica também os Semi-
nários de Lacan. Em francês, é outra coisa. O fato de que não seria meu francês, que
teria que ser reescrito, até agora não consigo assumi-lo. Depois que tiver terminado de
publicar os Seminários de Lacan, talvez me decida a isso. Enquanto isso, ele é publicado,
parcialmente, nas revistas.

SARTRE, DELEUZE, FOUCAULT, DERRIDA E LACAN

A.L.-0.: Abordemos, se você desejar, a questão da relação que Lacan mantinha com a filo-
sofia. Quais filósofos ele encontrou?
J.-A.M.: Sartre e Lacan se cruzaram. Lacan tinha certa admiração por Sartre, não resta
dúvida. O ser e o nada foi importante para ele, bem antes de seu artigo de 1936 sobre "A
transcendência do ego", que comentei no meu curso. Ao mesmo tempo, ele reconhecia
em Sartre alguma coisa do espírito falso.

Opção Lacaniana nº 62 63 Dezembro 2011


C.L.: Você mesmo o encontrou.
J.-A.M.: Eu o entrevistei quando estava na turma de filosofia, para a revista do meu liceu.
Ele me recebeu muito gentilmente em seu gabinete, que se situava em Saint-Germain-
-des-Prês, durante uma hora e meia. Eu queria aprender coisas, mas queria principal-
mente acuá-lo sobre sua política. "Você acha que sua política está mais do lado do gesto
que do ato?", eu lhe perguntei. Ele me respondeu muito gentilmente, nem um pouco
ofendido: "Sim, é possível." lsto foi publicado na época na revista do liceu Louis-le-
-Grand e retomado, em parte, na 1:.Xpress. E, justamente, Lacan era o ato e não o gesto.
Sartre tinha esse lado: "Ah, bom, é possível que tudo que faço esteja no gesto ..." É ele-
gante, mas não é sério. Para mim, ser sério é ir até o fim com o que se afirma e fazer o
que se diz, não é representar uma cena.

A.L.-0.: Talvez muitosJilósofos tenham a ideia de que pensar pode estar disjunto das con-
sequências deste pensamento. Isto é impossível em psicanálise já que a teoria indexa
1

uma prática.
J.-A.M.: No entanto, o psicanalista não é um grande condutor do povo. Sua fala tem uma
incidência pelas vias individuais, e, efetivamente, isso dá uma certa responsabilidade:
não se pode dizer absolutamente qualquer coisa, não se pode fazer absolutamente qual-
quer coisa - enquanto Sartre, no seu prefácio ao livro Os condenados da terra de Franz
Fanon, publicado em 1961, diz dos colonos alguma coisa assim: "Mate-os todos''" Ele
esbravejava em sua cama, e, aliás, contra si mesmo, contra o burguês que havia nele.
Tinha alguma coisa de incongruente. Simplesmente, isso só era lido pelos estudantes de
filosofia, que o liam dizendo, "Ah, ele lhes deu um golpe' Ele é formidável'" Isso não
teve outras consequências. O realismo exige, contudo, se perguntar: para que servem as
teorias? O homem que falava seriamente, pensando que a palavra tinha um peso, uma
incidência, era Lacan.

A.L.-0.: Como Lacan, que dec!amva fazer antijilosqfia, foi recebido entre os filósofos'
J.-A.M.: Existiram vários tempos nessa relação com a filosofia. No começo, os filósofos
ficavam estupefatos com Lacan. Nos anos 50, ele participava de não poucos colóquios,
era conhecido e conhecia esse mundinho. Alguns filósofos o respeitavam, o seguiam,
inspiravam-se mais ou menos ern seu trabalho, como Foucault ou Deleuze. No fundo,
Foucault não compreendia Lacan, e ele dizia isto, em todo caso, mas havia uma influên-
cia de Lacan sobre ele. Sobre Derrida, é evidente. E depois, houve o período em que eles
se voltaram todos contra Lacan, após 68. Deleuze e Foucault, prontamente; Derrida, em
um texto em que ele acredita poder dar aula a Lacan sobre "a carta roubada". O grande
impulso anti-fi.losófico de Lacan se situa nesse momento.

Opção Lacaniana nº 62 64 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

M.O.: Ele foi afetado por esta reviravolta.'


J.-A.M.: Não é dessa ordem. Ele apreciara muito A história da loucura, ou o prefácio de
Deleuze para A Vênus das peles, de Sacher Masoch. E depois, ele não gostou de O anti-
-Édipo. A mim, isso fazia rir.

M.O.: Você encontrou Deleuze'


J.-A.M.: Sim, várias vezes, em Vincennes, e nas ações pós-esquerdistas dos anos 70. Não
fui seu aluno 1 mas o li. Gostava muito dele.

A.P.: E Foucault?
J.-A.M.: Foucault, eu conhecia de muito mais perto. Quando tinha 20 anos, Barthes me
convidava muitas vezes para jantar após seu seminário, e Foucault se juntava a nós no
restaurante chinês, quando voltava de Clermont-Ferrand. Lembro-me de ter falado com
Barthes sobre Derrida, de quem eu seguia o curso na Sorbonne, era a primeira vez
que ele escutava seu nome. Foucault fora seu mentor na Escola Normal (École Norma/e
Supérieure).

A.P.: Houve uma grave discussão entre Den•ida e Foucault.


J.-A.M.: Sim. Quando A história da loucura foi publicada, Derrida fez uma conferência no
Colégio de Filosofia - a qual, aliás, eu assisti com meu amigo Duroux - para explicar
que Foucault não tinha verdadeiramente compreendido o Cogito. Tive que perguntar a
Foucault o que ele pensava disso, e compreendi que não precisava: ele estava furioso.
No seu prefácio à edição de bolso, ele responde a Derrida, maldosamente. Eu lamentara
que eles se zangassem um com o outro. Gostava muito deles. Eu os via no ataque às for-
talezas do bom senso. Por volta de 1966, quando os Escritos saíram, todas essas pessoas
estavam de acordo e vinham publicar no Cahiers pour !Analyse. Sempre me esforcei para
ficar, eu mesmo, bem com eles - exceto Derrida, que em certo momento foi desagradável
comigo. Eu publicava, por partes. o Seminário de Lacan no Cahiers pour l'Analyse. Lacan,
nele, mostrava desprezo por Derrida, e eu não queria publicar isto sobre alguém que eu
respeitava e que fora meu professor. Então, não publiquei esta tal passagem. Dois anos
mais tarde, em um texto, Derrida reclamou que eu havia retirado justamente a passagem
na qual Lacan falava dele! [risos] foi bem feito para mim e minhas boas intenções!

A.L.-0.: Em que temws você ficou com eles?


J.-A.M.: Com Barthes era uma velha amizade. Foucault permaneceu sempre agradável,
amigável, generoso. Ele protegeu o departamento de Psicanálise de Paris VIII, deu sua
assinatura quando foi necessário, assim como Barthes. Deleuze, eu o conheci menos,
e nós estivemos em conflito quando ele se opôs à reforma desse departamento. Houve

Opção Lacaniana nº 62 65 Dezembro 2011


todo um debate perante uma assembleia universitária: Deleuze e Lyotard, de um lado,
com o tema "Lacan não é um universitário, ele não tem nada a dizer sobre o que se passa
aqui", e eu, que os atacava violentamente. A assembleia me deu razão contra eles, com
uma forte maioria.

ATUALIDADE

A.L.-0.: Diz-se, habitualmente, no meio, que Lacan é "um visionário", que ele foi suficien-
temente próximo do real em jogo para poder anunciar um certo número de coisas que
foram verificadas em seguida, tal como o aumento do racismo. Você compartilha esta
ideia?
J.-A.M.: Para Lacan, isso gira em círculo. Logo, existem coisas que não são tão fáceis de
predizer. O que existiu na história não desaparece assim. A propósito das religiões, acre-
ditou-se, no fim do século XIX, que elas tinham acabado. Ele não acreditava que com
a ciência, chegar-se-ia ao fim das religiões. Vemos que, por outro lado, os Estados de
inspiração marxista-leninista, que pareciam tão poderosos e instalados para sempre, não
se mantiveram por setenta anos. Desapareceram sem deixar traço, ou quase nenhum tra-
ço. As religiões, pelo contrário, têm uma vitalidade certa. Entào, em Lacan, essa relação
com o futuro está fundada sobre a ideia de uma certa remanescência: "Vocês pensam
que conquistaram sua liberdade? Esperem um pouco para ver." Quando eu lhe fazia o
elogio do que se passava na China, sua resposta foi: "Sim, mas por quanto tempo'" É o
que há, se somos razoáveis.

A.L.-0.: O que dizer nesse sentido das revoluções recentes na 7imísia, no Egito, na Líbia,
e da revolta síria?
J.-A.M.: Vamos esperar para ver. É a lição de Lacan. Existe um tempo lógico da revolta. Ama-
-se tanto o tempo 1, que não se quer pensar no tempo 2 nem no tempo 3, quando vem a
conclusão. As pessoas querem se regozijar com os jovens insurgentes? Elas têm esse direi-
to. Querem fazer a festa? Que seja feita a sua vontade. Mas o que vai mudar exatamente?
Não que não tenha nunca nada de novo, mas o fundo da novidade é a remanescência.
Lacan ressaltava maliciosamente que uma revolução, no sentido próprio do termo, é uma
rotação que leva ao ponto de partida. O século XX ensina muito a esse respeito: vejam a
revolução russa, vejam a China, para não falar do Camboja. É o nervo da demonstração
de Tocqueville: existe a Revolução Francesa, uma revolução bem sucedida, nela foi dado
o máximo, sacudiu-se o planeta, cortaram-se cabeças para criar a igualdade de condi-
ções, mas é também a conclusão do Antigo Regime. Robespierre e Saint-Just herdaram de
Philippe-Auguste, de Luiz XI, de Richelieu, de Luiz XIV, e abriram a via para Bonaparte,

Opção Lacaniana n" 62 66 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

depois para o reinado de Monsieur Homais. A História é irônica e a razão astuciosa. Fala-
-se da resistência, do programa do CNR, muito bem, mas quem ganhou, definitivamente?
Lacan via isso tal como era, e me disse, na presença de François Regnault, que escreveu e
publicou: pela Liberação, grande festa pela Mutualidade, belos discursos inflamados cios
resistentes, e agora quem vai subir no palco? O Orfeão da Polícia, "que os ferrava, todos."
É Brecht e Genet, ao mesmo tempo. A ordem social, em sua essência, é a Polícia. É o que
observa Hegel em sua Filosofia do direito. Basta levá-lo a sério.

A.L.·O.: Nenhum otimismo beato!


J.-A.M.: A posição de Lacan consistia em dar um passo para trás, para tentar ver o relevo
do que se passava sob seus olhos. Ele se interessava muito pelo que acontecia. Desde
que acontecesse alguma coisa, Lacan estava no seu objetivo. Em maio de 68, ele assim
convocou Cohn-Benclit na Escola Freudiana, para explicar aos psicanalistas o que verda-
deiramente queria. Cohn-Bendit não disse grande coisa, passou o chapéu para recolher
contribuições financeiras destinadas a sustentar o movimento, e dizem que com a soma
embolsada eles foram jantar, ele e seus companheiros! Eu não estava, e prefiro assim. O
Dr. Lacan não insu'ltou o movimento de 68, diferentemente de outros de sua geração, ele
compreendia a revolta da juventude. Ele também pensava, como Mao: "Tem-se sempre
razão para se revoltar." É verdade, as razões não faltam. Trata-se, no entanto, de saber o
que se faz com essa revolta legítima, o que se espera dela, o que se pode obter com ela.
O objetivo cio psicanalista não é convidar as pessoas a se despedaçarem contra a pare-
de em nome de suas esperanças. Então, sim, tem-se razão para se revoltar, mas, talvez,
não completamente a ponto de perecer. Entre a revolta e a pulsão ele morte, a margem
é estreita. A boa posição deve ser encontrada nessa linha divisória. Lacan encontrou a
maneira de dizer e de se fazer escutar; Raymond Aron, não: ele era ofendido pelo mo-
vimento ele maio, e se fez odiar pela juventude revoltada. Em que medida Lacan e Aron
estavam em muitos pontos distanciados um do outro? Mas, não era o mesmo desejo.
Aron se resignava, ali onde Lacan era um revoltado.

A.L.-0.: Como se dar conta das diferentes maneiras pelas quais uns e outros recebem essas
revoluções.?
J.-A.M.: Tem gente que diz: "Isso vai acabar mal, vai acabar no Islã fundamentalista!", e
há aqueles que objetam: "Mas, de jeito nenhum, todas as esperanças são permitidas, eles
vão se tornar totalmente como nós!" A esperança daqueles que querem que eles se tor-
nem "como nós" é de que eles sejam conquistados pela quantificaçào e pelo consumo.
E, uma vez que eles consumirão, esperarão pelo próximo iPad como a um Messias, se
assim posso dizer, eles cessarão de se curvar cinco vezes por dia, pensa-se, farão fila em
frente às lojas. A confiança que temos em nossos lixos para dar cabo elos grandes valores

Opçào Lacani:ma nº 62 67 Dezembro 2011


da humanidade expressos nas grandes religiões etc, tem fundamento? Ou será que se
considera que as religiões são lixos piores, e tanto melhor se elas morrem sufocadas por
uma chuva de gadgets' E será que se acha que esses lixos têm o poder de dar cabo dos
grandes lixos? Os caras que fizeram desmoronar as torres gêmeas nadavam de braçada
nas tecnologias de ponta. Eles aprenderam as lições que os americanos lhes deram:
ensinando-os a pilotar grandes aviões. Contudo, seus professores não perceberam que
os caras não procuraram aprender como se aterrissa! [risos] É verdade, foi assim! Com
relação a essas revoluções, encontrei, posteriormente, dois livros americanos sobre o
Egito, um que foi publicado há dois anos, e o outro em dezembro último. O primeiro de
um jornalista, Bradley, se chamava lnside Egyt.· The Land of the Pharaohs 011 the Brink of
a Revolution. Bom' E, The Coming Revo/ution, de Walid Phares, um americano, libanês
de origem, e também analisava em detalhe por que isso tinha explodido. Tem-se mais
confiança naqueles que souberam prever o que ia acontecer do que em todos os espe-
cialistas ruins, que agora nos explicam o que acontece em cores pastel.

A.L.-0.: O que você pensa das reações eufóricas?


J.-A.M.: Elas dào prazer. Não é ganhei, o "um homem = uma mulher = uma voz". Mas, a
democracia é ainda o menos grave, como pensava Churchill. Portanto, ele preferia isso.
Mas, pode-se apostar que o dinheiro permanecerá rei.

A.L.-0.: Lacan não era progressista, mas também não era reacionário.
J.-A.M.: Ele não era progressista, não. E não era reacionário, também não. Ser reacionário
é querer voltar para trás. De Gaulle fizera uma advertência aos franceses da Argélia, em
uma entrevista privada - mas a frase é célebre -: "O que eles querem é que lhes devol-
vamos a Argélia do papai, mas a Argélia do papai está morta, e se não se compreende
isso, se irá morrer com ela", ele dizia, essencialmente. Não havia nada de nostálgico em
Lacan, eu lhes disse. Eu nunca o escutei dizer que estava melhor antes. Ele considerava
sem dúvida que o mundo sempre foi repugnante, e o será sempre ...

A.L.-0.: Quando você diz isso, poderíamos pensar em cinismo. 1l1as não foi exatamente
isso, não é?
J.-A.M.: Digamos que o homem não trabalha para o seu bem. E, na realidade, preferimos
que isso aconteça da melhor forma possível. Um princípio moral mínimo ao qual todo
mundo possa aderir, e que não seja ingênuo, seria, por exemplo, o de Richard Rorty, que
dizia: "Nenhuma crueldade".

C.L.: Fiquemos na atualidade. O que você diz do fenômeno mais ocidental da feminiza-
ção da comunidade analítica?

Opção l.acaniana nº 62 68 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

J.·A.M.: De todo modo, não pediram minha opinião. [risos] A posição do analista, Lacan
a considerava como uma posição essencialmente feminina. Não se analisa a partir das
fórmulas da sexuação masculina, por exemplo, não se analisa o "sim" ou o "não". É "sim"
e é "não", e é também nem um nem outro. O analista não pode se ater ao binarismo.
Uma interpretação, isto já é outra coisa. Escuta-se o que há por detrás do que se diz. Para
retomar uma fórmula de Lacan: "escuta-se o desejo que passa sob". Nada, além disso.
Isto pertence mais à posição feminina.

A.L.-0.: Dito isso, todas as esferas da sociedade sefeminizam.


J.·A.M.: Eu sou a favor. Tenho três netas, espero que tudo lhes seja aberto. A igualdade
dos sexos se explica sem dúvida pela tomada cada vez maior do significante "Um" em
todas as atividades do mundo. Qual é o princípio da democracia? "Um homem (no sen-
tido genérico) = uma voz". André Gide nunca pôde admitir isso. Não é de modo algum
natural e não o foi ao longo dos séculos.
1

C.L.: Para continuar na atualidade, no.fim de seu ensino, Lacan entitiu várias vezes dúvi-
das quanto à perenidade da psicanálise. O que ele queria dizer co,n isso, segundo você?
J.-A.M.: Não se pode dizer que a psicanálise seja levada pelo espírito do tempo. A psica-
nálise está mesmo na contracorrente. Ela tem seu fluxo, mas fica na contracorrente.

C.L.: A época atual nâo reseroa o mesmo acolhimento à psicanálise como no tempo de
Lacan. A1as você pensa que Lacan já Jazia referência aos ataques que a psicanálise so-
freria'
J.-A.M.: Existe uma exacerbação das coisa. Quando Lacan era vivo, a psicologia nos
parecia ser um horror. Esta disciplina era ensinada no seio da filosofia, e, num dado
momento, ela ganhou autonomia. Os filósofos eram contra essa autonomia, sabendo
que ela iria dar no pior. Foi aí que Canguilhem escreveu seu célebre artigo "O que é
a psicologia?", que publiquei outrora, que Lacan adorara. Um indivíduo se apresentou
um dia como psico-sociólogo 1 e dizíamos entre nós: "Oh, não é verdade, essas pessoas
existem ... ?!" Ele presumia, além do mais, contribuir para as campanhas de publicidade!
Perguntava-se: a psicologia tem no entanto, suas cartas de recomendação da filosofia,
1

como ousam se servir delas para fazer publicidade? Isso nos parecia, em 1962, o cú-
mulo da abjeção.

B.D.: Tudo isso entâofoifeito sem preveni,·.


J.-A.M.: Nós não sabíamos então que tudo isso procedia dos anos 20, do sobrinho de
Freud, Edward Bernays, o pai do "spin" e das relações públicas. Tudo isso se tornou
nosso pão de cada dia, pode-se dizer. A erva daninha invadiu o campo. Mas foi também

Opção l.acaniana nº 62 69 Dezembro 2011


a psicanálise que semeou isto. Como diria Esopo, foi a melhor e a pior das coisas. A me-
lhor, no filão de Lacan. E senão .. É 0lhl5min, vamos parar por aqui, se vocês permitem.
Obrigado.

TODOS: Obrigado a você!

Texto traduzido por Ana Paula Sartori Lorenzi.

Notas

NT: Jogo de palavns envolvendo: pécheur"" pecador; e a letra x. de marxista.


2 N.T. Tutoyer- se endereçar a alguém na segunda pessoa do singular (tu), o que indica que há certa intimidade ou liber-
dade de tralamenlo. Vou~yer- se endereçar a alguém na segunda pessoa do plural (vós), geralmente os desconhecidos,
superiores, ou pessoas com as quais não se tem intimidade.

Opção L-lcaniana nº 62 70 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

A RECONQUISTA DO CAMPO FREUDIANO


( ENTREVISTA)

}UDITH MILLER (PARIS)


judithm@champfre11dien.org

Entrevista realizada por Anai!lle Lebovits-Quenehen, Caroline Leduc e Aurélie


Pfauwade/.

ANAELLE LEBOVITS-OUENEHEN: Você é, desde 1981, presidente da Associação da Fundação


do Campo Freudiano que foi aiada e presidida por Jacques Lacan, em 1979, e é a esse
respeito que nós gostaríamos de falar com você, do estado da psicanálise lacaniana no
mundo. Mas, primeiramente, nos diga - eu lhe peço - o que é o Campo Freudiano.
JUDITH MILLER: O Campo Freudiano é um vasto conjunto que diz respeito a milhares de
praticantes lacanianos no mundo. Sob este significante Campo Freudiano se inscreve a
comunidade de trabalho referida ao ensino de Jacques Lacan, ainda que existam também
analistas "lacanianos" que trabalhem fora, ou mesmo contra o Campo Freudiano. Todas
as Escolas de psicanálise de orientação lacaniana reunidas na Associação Mundial de
Psicanálise se construíram e se consolidam a partir dos Seminários do Campo Freudiano 1
onde são lidos, ilustrados, referidos às suas respectivas práticas pelos participantes, os
textos de Lacan. Também fazem parte do Campo Freudiano todas as Seções e Antenas
clínicas, todos os Institutos do Campo Freudiano, com suas diversas redes, instituições
de cuidados e uma Federação Internacional de Bibliotecas de orientação lacaniana. Você
pode ver que o Campo Freudiano sozinho constitui um pequeno mundo, decidido a
reconquistar permanentemente a si mesmo, para não cair na rotina e responder às sur-
presas - boas ou más - que o mundo contemporâneo nos reserva.

A.L.-0.: De onde vem este termo?


J,M.: Este nome "Campo Freudiano" foi inicialmente dado por Jacques Lacan, em 1966.
a uma coleção que ele dirigia na Seuil. Foi nesta coleção que ele publicou seus Escritos,
e que Jacques-Alain Miller reuniu os Outros escritos. Não era a primeira vez que Lacan

Opção l.acaniana nº 62 71 Dezembro 2011


usava este sintagma, presente particularmente na "Ata de fundação" de sua Escola, em
1964. Ele designava, então, por este significante o espaço conceituai e a nova prática que
Freud inaugurou inventando a psicanálise. ;'Campo" é aqui para se entender no sentido
de campo magnético ou elétrico, indica que o sujeito não é mais livre que o elétron, mas
responde à contingência da qual seu percurso resulta, e a leis, as da linguagem.

A.L.-0.: A Escola da Causa Freudiana, criada em 1982, é a escola francesa de psicanálise


lacaniana a partir da qual você começou a difúsão da psicanálise de orientação /aca-
niana no mundo.
J.M.: A ECF tem o privilégio de ser a escola do país onde Lacan ensinou e praticou, e me
dou conta, falando com você 1 que ela é a única em que não existem Seminários do Cam-
po Freudiano .. Em 1982, nós já tínhamos por trás de nós o apoio ela viagem de Lacan
a Caracas, que determinou a série dos "Encontros Internacionais do Campo Freudiano".
Lacan tinha marcado ali um encontro com seus leitores para um segundo Encontro, em
Paris. Ele nos deixou no dia 9 de setembro de 1981, mas tivemos este segundo Encontro
Internacional do Campo Freudiano em Paris, em fevereiro de 1982. Muitos apaixonados
pelo ensino de Lacan vieram. Este encontro foi um guarda-chuva que protegeu a ECF,
então muito jovem. Lembro-me que quando cheguei a Caracas em 1980, estava um pou-
co assustada, pois os analistas que eu não conhecia bem vinham até mim e me pediam
que lhes explicasse o que era o passe, para executá-lo entre eles ... Era delicado, pois
estes analistas não tinham Escola. Eu não podia desencorajá-los nem encorajá-los a pra-
ticar o passe sem escola, quer dizer, sem uma estrutura que permitisse, minimamente,
estabelecer tal dispositivo. Como encontrar o tom apropriado para temperar o entusias-
mo, sem apagá-lo'

AURÉLIE PFAUWADEL: Eles vinham de toda parte do mundo'


J.M.: Este encontro de Lacan era essencialmente dirigido aos latino-americanos, e, para
muitos argentinos, depois de um primeiro seminário realizado por Jacques-Alain Miller,
em Caracas em 1979, com um pequeno número de analistas - aliás, eles ficaram quase
todos no Campo freudiano e nas Escolas que foram criadas posteriormente. Jacques-
-Alain Miller trabalhou sem descanso durante anos, para que todos os grupos latino-
-americanos - que certamente eram entusiastas, mas também impedidos de estudar de
maneira séria, por causa do culto à pequena diferença - constituíssem o que eu chamo
das comunidades de trabalho e se reagrupassem em escolas, para fazer isso.

A.L.-0.: Então, foi preciso tempo para apaziguar as tensões e essas "pequenas diferenças\
que impediam os analistas de trabalhar juntos, apesar de uma mesma orientação?
J.M.: Isso tomou tempo, na realiclacle, perto ele dez anos, cios dois lados cio Atlântico.

Opçào Lacaniana nº 62 72 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

Acredito que a EEP, a Escola Europeia (que compreendia, em sua origem, os grupos
espanhóis e os grupos italianos, que nâo tinham ainda Escola 1 naquele momento) e a
EEP-desenvolvimento (que englobava os outros países europeus, à exceção da França')
foram criadas em 1990, como a Escola de Orientação Lacaniana, a Escola argentina.
Depois, foi uma após a outra, a criação da Escola espanhola, Escola italiana, Escola bra-
sileira e a New Lacanian Scbool, que agrupa as instâncias de orientação lacaniana nos
países que ainda não têm Escola.

CAROLINE LEOUC: Como Lacan considerava a expansão geográfica de seu ensino?


J,M,: Ele foi muito elogioso em relação às pessoas que encontrou em Caracas, Quanto
aos analistas, estavam literalmente encantados com Lacan. Ele ficou totalmente surpreso
ao ver a que ponto seus leitores não somente eram numerosos, como também estavam
prestes a se multiplicar. Ele lhes disse que os considerava como seus alunos, mesmo que
não tivessem sido formados por ele, na Rua de Lille, 5. Alguns 1 certamente 1 vieram vê-
-lo ao passar por Paris, mas como adivinhar o que alguém que vem lhe dizer sobre sua
admiração, ao passar, vai fazer depois que voltar? E havia, mesmo assim, analistas da
EFP - facola Feudiana de Paris, fundada em 1964 por Lacan - que tinham viajado para
o estrangeiro, eles não tinham dado a Lacan o sentimento de que fosse possível sequer
pensar em Escolas de psicanálise de orientação lacaniana na Argentina ou em outros lu-
gares! Lacan tinha considerado isto na Itália ... Se os alunos de Lacan viajavam, na época 1

como mestres, um pouco como universitários, sem desejo de formação e transmissão da


psicanálise, Lacan, quando falava fora da França, perseguia sua reflexão e sua invenção,
não abrindo mão ele sua exigência de dar testemunho de sua prática de analista.

C.L.: Havia a transferência pela pessoa de Lacan e, além disso, era preciso a transferência
pela causa analítica, para que o ensino de Lacan pudesse conJinuar a existir, uma vez
que ele desapareceu,
J.M.: Certamente, um analista produz uma tranferência, como outros, aliás, mas um ana-
lista não se identifica com aquele que sabe, ele sabe que a transferência se endereça ao
sujeito-suposto-saber. Quando ele quer dar um passo a mais na transmissão, é preciso
que encontre como essa transferência pode ir até a própria psicanálise de orientação
lacaniana. Esta passagem é às vezes problemática, pois é necessária uma presença en-
carnada - a presença de um analista é indispensável -, é necessário também um além
desta presença para que a transferência pela psicanálise se produza efetivamente. É isso
que observo nos seminários que os ensinantes do Campo Freudiano mantêm.

A,L-0,: As Escolas são o lugar da transferência-pessoal-ultrapassada, se podemos dizer


assim.

Opção Lac:rniana nº 62 73 Dezembro 201 J


J.M.: É isto. Pode acontecer que alguém faça uma análise, tenha uma transferência com
seu analista, leia Freud e Lacan, as revistas de psicanálise, mas uma Escola pressupõe
um passo suplementar, o de sentir-se concernido pelo futuro da própria psicanálise e
trabalhar para sua transmissão. Constato que esta operação depende, ao mesmo tempo,
dos colegas que constituem o grupo e dos analistas que vêm ali ensinar. É isto que, por
exemplo, Jacques-Alain Miller trabalhou para criar na EOL, fazendo com que a paixão
pelos pequenos grupos, preexistentes à vinda de Lacan à América latina, pudesse co-
nhecer uma Aufhebung na Escola, quer dizer, um lugar de formação para os analistas a
partir do qual irradiasse a psicanálise.

A.L.-0.: Contudo, isto não quer dizer que não possa haver tensões dentro de uma Escola.
J.M.: Claro! Uma Escola conhece, quando é o caso, as tensões, mas ela as atravessa de
maneira diferente dos grupos. A unanimidade é bastante preocupante em uma comuni-
dade de trabalho, mas justamente uma Escola é um lugar em que o debate pode acon-
tecer melhor quando se está ali para trabalhar e não para se digladiar e trabalhar para
sua própria promoção.

A.L.-0.: A Associação Mundial de Psicanálise, a AMP, é a maior instituição internacional


de psicanálise depois da IPA_. fundada por Freud há cem anos atrás. Como ela foi criada?
J.M.: A AMP foi criada e modelada por Jacques-Alain Miller em 1992, ou seja, onze anos
após a morte de Lacan. Esta associação reunia, inicialmente, quatro Escolas. Jacques-
-Alain Miller foi seu delegado geral por uma década, para em seguida passar a atividade
a outros, assim que ele pôde.

A.L.-0.: Isto que você chama de "Escolas" abriga a vida institucional de analistas laca-
níanos em um dado país (assim, há a Escola italiana, a espanhola, a francesa, a argen-
tina, ... ) Mas tem também as Escolas para onde convergem grupos vindos de diferentes
países.
J.M.: Sim, um grupo como o de Havana - composto de praticantes decididos, e não sei
por que milagre, lacanianos inabaláveis' - que data de 1991. tornou-se, por exemplo,
componente da Nova Escola Lacaniana. Esta Escola, fundada em julho de 2000, reune
alguns países da América Latina que não têm sua própria Escola, como Peru, Venezuela,
Cuba, Bolívia, Colômbia, Miami - EUA, México e Chile.

A.P.: Há alguma semelhante na Europa?


J.M.: Ultrapassam-se amplamante os limites geográficos da Europa com a New Lacanian
Scbool, que reúne entidades ativas na Grã-Bretanha, Suíça, Israel, Grécia, Polônia, Dina-
marca, Portugal, Austrália, Canadá, Alemanha, Irlanda, e vetoriza o trabalho elos grupos do

Opção Lacaniana nº 62 74 Dezembro 201 I


ORIENTAÇÃO LACANIANA

Leste Europeu. Antes de fazer parte de uma Escola, é preciso conseguir criar uma trans-
ferência própria para que uma comunidade de trabalho efetiva e autônoma possa nascer.

A.P.: É assim em Israel?


J.M.: Eu suponho ... Não me ocupei muito de Israel. As primeiras notícias que tive de lá
foram em 1982, por ocasião do Encontro Internacional em Paris. Recebemos uma carta
com um selo de Israel. Grande explosão ele alegria. Na realidade, eram argentinos que
haviam imigrado para Israel. Depois, segunda carta de Israel. Precipitamo-nos de novo,
ainda era um argentino. Tem quatro ou cinco assim. Hoje, o grupo israelita faz parte da
New Lacanian School, cujo próximo congresso será em Tel-Aviv. Alguns textos de Lacan
estão traduzidos em hebraico - o que é formidável. Estou certa de que Lacan estaria
muito animado. Na Grécia também, aliás; Lacan pouco a pouco é traduzido em todos os
países da NLS; é indispensável para o Campo Freudiano, eu o constato especialmente na
Rússia, onde estamos particularmente atentos, num ritmo constante.

C.L.: As Escolas Europeias são todas preexistentes ã criação da AMP'


J.M.: Não, a Escola Italiana, por exemplo, a Seu.ola Lacaniana di Psicoanalisi foi criada
após a criação da AMP. Assim como a Escola Espanhola, a EScuela Lacaniana de Psico-
análisis dei Campo freudiano, aliás. No entanto, Lacan esteve muito presente na Itália
quando vivo. Aliás, durante muito tempo fiquei chateada com os italianos por não terem
uma Escola, apesar da generosidade de Lacan para com eles. Agora, essa Escola existe,
e devo dizer que, para minha alegria, é muito ativa; ela até participa da reconquista do
Campo Freudiano na Europa do Leste, já faz alguns meses.

A.L.-0.: Os italianos no Leste Europeu?


J,M.: Acontece que a Albânia é um país que capta muito bem a rádio italiana de Berlus-
coni - é lamentável, mas é assim - e então, a segunda língua, na Albânia, é o italiano.
Logo, recorri aos membros italianos quando se tratou de ir a Tirana. Assim, consegui
fazer com que os colegas italianos se alternassem no Seminário do Campo Freudiano na
Albânia, e espero que perseveremos nesta via.

A.P.: Qual é a mola propulsara de uma Escola, segundo você?


J.M.: Há, sem dúvida, várias coisas, especialmente o fato de que na Itália, como na Escola
argentina e na Escola espanhola, os Seminários de Lacan estejam traduzidos em italia-
no e espanhol, pouco depois de serem estabelecidos por Jacques-Alain Miller. Dispor
de boas traduções dos Escritos, dos Outros escritos e dos Seminários de Lacan dá uma
grande força a uma Escola. Hoje, traduz-se muito em italiano - não somente Lacan, mas
também Jacques-Alain Miller. Em espanhol também - essencialmente, graças aos argen-

Opção Lacaniana nº 62 75 Dezembro 2011


tinos, aliás. Jacques-Alain Miller é, paradoxalmente, mais publicado em espanhol do que
em francês, graças a eles.

A.P.: Então, justamente, como você encontrou os argentinos?


J.M.: Meu encontro com os argentinos aconteceu na Venezuela 1 onde alguns argentinos
estavam exilados. Encontrei ali Graciela Brodsky, Alicia Arenas, que vive agora em Mia-
mi, Dudy Bleger e Diana Rabinovitch. Quando deixam seu país - às vezes constrangidos
e forçados - 1 os argentinos são ativos e tentam transmitir o de que se trata na orientação
lacaniana.

C.L.: Como Lacan chegou até eles>


J.M.: Chegou através de dois homens que tiveram um grande papel histórico e que Lacan
conheceu: Enrique Pichon Riviere e Oscar .Masotta, que era um filósofo, althusseriano,
eu acho, e que era apaixonado por Lacan. Ele fez Lacan ser conhecido não apenas pelos
argentinos, mas pelos catalães e andaluzes.

A.L.-0.: Lacan, ele mesmo_, teve contato com os analistas argentinos?


J.M.: Lacan os conheceu. Encontrei na biblioteca de meu pai um livro de Gcrmán Garcia
que ele lhe trouxera, mas também livros de Masotta e publicações argentinas. No fun-
do, Lacan não fazia tantas confidências a esse respeito. Viajava-se muito menos naquela
época. Mas, a primeira vez que cheguei à Argentina, eu tinha meu nome ele solteira no
meu passaporte e na aduana me perguntaram se eu era a "hija de Lacan"! A psicanálise
é, verdadeiramente, algo familiar, presente na Argentina: toda pessoa que pode, vai ver
um psi num mornemo ou em outro de sua vida, parece-me.

A.P.: Meio-século após o combate de Lacan contra a egop,,ychology, o mundo anglo-saxão


parece muito difkil de penetrar.
J.M.: Não sei, de fato, a que isto se deve. Talvez ao puritanismo anglo-saxão. Os univer-
sitários americanos tomaram Lacan sem se interessar pela clínica, o que limita enorme-
mente a intenção deles.

A.P.: Nas universidades, Lacan é, efetivamente, conhecido através dos estudos de French
Theo1y, de Queer Theory, e Cultural Studies, ou ainda nos departamentos de cine-ma,
onde se utilizam muito as teorias de Lacan sobre o olhar. Trata-se sempre de estudos des-
conectados da clínica.
J.M.: A maioria dos psicanalistas americanos não é lacaniana, na realidade. Tem alguns
que vieram fazer análise na França - aliás, frequentemente em inglês - com os membros
da Escola da Causa Freudiana. Mas, para se difundirem lá, não sei o que conta realmente.

Opção Lacaniana nº 62 76 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

Penso que a psicanálise é verdadeiramente corroída pelo cientificismo anglo-saxào. No


entanto, foi graças ao empirismo que a ciência emergiu.

A.L.-0.: Contudo, Lacan é considerado pela Lacanían lnk, a revista novaiorquina, dirigi-
da por Josefina Ayerza e na qual Jacques-Alain Miller, como também Gérard V7ajcman,
ou .filósofos como Badiou e Zizek escrevem ...
J.M.: Josefina Ayerza é argentina, aliás. Todavia, tem um verdadeiro grupo no Canadá,
que se chama "Pont Freudien", em Montreal, há uma década. Mas lá a avaliação devasta
violentamente, ela é mais mundializada que a psicanálise. Nós devemos lutar contra a te-
rapia comportamental aqui, mas lá é pior ainda. A legislação sobre a deontologia do olho
absoluto é terrível lá. Ela deve ser do mesmo gênero nos Estados Unidos: um analista
tem que ser rápido e, talvez, tenha de dar informações sobre seus analisantes! É difícil.

A.L.-0.: Então, no fundo, entre a América Latina ou francófona e a Europa latina (Fran-
ça, Espanha, Itália), a psicanálise lacaniana teria sido aceita primeiramente pelos pouos
latinos?
J.M.: Realmente, Lacan foi muito bem recebido no Congresso de línguas romanas, en-
quanto não era bem recebido na IPA, que já estava muito americanizada. É verdade que
a Escola brasileira, a Escola Brasileira de Psicanálise, que foi criada depois da Escola
argentina, da qual nós ainda não falamos, é de um dinamismo extraordinário: eles têm
uma revista formidável, muitas coleções, Lacan é traduzido em português - e bem tra-
duzido - num prazo muito curto. Há almas que animam a coisa, concretamente. Eu me
abstenho de citar nomes aqui, mas todos sabem quem é a alma da tradução, e da revista
brasileira. Então, sim, a psicanálise é mais desenvolvida nos países latinos do que nos pa-
íses anglo-saxões, incontestavelmente. Tem-se, contudo, um excelente tradutor de Lacan
em inglês na Austrália. Ele trabalha no seu ritmo, ffias traduz muito bem.

A.L.-0.: Na Europa do Leste, você evocou, bá pouco, a Albânia.


J.M.: O ensino de Lacan se difunde, de fato, na Albânia, na Rússia, na Ucrânia e na
Bulgária. Nós trabalhamos nestes países há quase onze anos. É necessário dizer que a
psicanálise não pode encontrar seu lugar em todos os países da Europa do Leste com
a mesma facilidade. Na Rússia, por exemplo, como falar de "associação livre'·, quando a
liberdade de expressão e de associação não existe para os russos? Para dar um estatuto
jurídico ao grupo do Campo Freudiano na Rússia, fizemos uma associação de direito
francês. Na Bulgária, pelo contrário, pudemos fazer um grupo de direito búlgaro porque
a Bulgária faz parte da Comunidade Europeia.

A.L.-0.: O regime soviético impedia a entrada da psicanálise na Europa do Leste'

Opção Lacaniana nº 62 77 Dezembro 2011


J.M.: Certamente! Desde que houve a Perestroika, os analistas foram para lá. Era um
momento especial, de grande esperança 1 de grande ilusão também sobre o que era o
capitalismo. Alguns acreditavam que ele permitiria "amarrar o cachorro com a linguiça",
como se diz. Os colegas da primeira onda, que foram tanto para a Rússia quanto para a
Ucrânia, voltaram emocionados porque tiveram auditório lotado, os jovens tinham uma
avidez real pelas publicações psicanalíticas. Tudo isso produziu certa alegria, e depois,
mais nada. Quando se chega ao deserto, pode haver ali multidões, mesmo assim se trata
de deserto, puro lifting de intelectuais que conseguiram permanecer no lugar...

C.L.: Como isto que você chama de "reconquista do Campo Freudiano" tem sido encami-
nhado, concretatnente?
J.M.: Quase fazendo um porta-a-porta, após o primeiro falso-semblante. Encontraram-se
alguns psicólogos quase por acaso, pelo fato de cu ter uma sobrinha que vivia em Mos-
cou, onde ela aprendia teatro. Seu professor de esgrima leu o pequeno volume bilíngue
de "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" que eu dera a ela, e que ela
lhe emprestou, sem tê-lo lido! Este senhor ficou muito interessado. Sua mulher, psicóloga
num grande hospital de Moscou, nos apresentou a pessoas passíveis de se interessar pela
leitura de Lacan. Freud recomeçava a ser traduzido - frequentemente de maneira duvido-
sa-, e o primeiro Seminário do Campo Freudiano na Rússia começou de forma precária.
Ele cresceu como uma bola ele neve. E a bola de neve se estendeu como mancha de
óleo, graças àqueles que ensinam nos Seminários do Campo Freudiano, em cada um dos
países que vetorizam a NLS. As traduções de lacan continuam sendo nossa melhor arma.
Mais de vinte colegas da Europa cio Leste começaram uma análise na França, e um na
Espanha. São os pioneiros.

A.P.: Na China, existem psicanalistas lacanianos?


J.M.: Não, não estamos presentes lá. Devem existir dois ou três textos ele Lacan traduzidos
em chinês: "O estágio do espelho" e "Função e campo ela fala e ela linguagem". Tem-se
algum contato com os chineses, mas tudo está para se desenvolver!

A.L.-0.: E no Japão?
J.M.: As relações com o Japão datam da época do Lacan vivo. Senhor Takatsusu Sasaki,
um homem impressionante, traduziu os Escritos. Ele não é psicanalista, mas tinha uma
paixão, tanto pelos Escritos quanto por Lacan. Ele trabalhava com um cuidado extraor-
dinário. Outros começaram a traduzir os Seminários de Lacan. Alguns iniciaram uma
análise na França. Tem também traduções de Lacan em coreano, em que uma senhora,
que eu encontrei, uma feminista bastante impressionante, se dedica a elas.
C.L.: Eu vi no Tzoitter que na Índia tem um professor que leu Lacan- eu não sei exatamen~

Opção Lacaniana n" 62 78 Dezembro 2011


ORIENTAÇÃO LACANIANA

te em qual língua - e o ensina. Um de seus alunos, uma jovem indiana, virá em breve à
França para se formar e fazer uma análise.
J.M.: Quem sabe? Ela se tornará, pouco a pouco, o pilar de um grupo indiano, como a
senhora do Irã se tornou em seu país .. A partir do momento em que há alguém decidi-
do, não precisa hesitar em ir fundo. É uma aposta. Na Albânia, eu encontrei uma jovem
mulher verdadeiramente decidida, que sabia a quem se dirigir, e, portanto, ela reuniu,
de saída, uns bons cinqüenta "psis" no primeiro Seminário do Campo Freudiano. Eles
estão descobrindo a psicanálise porque mesmo os textos de Freud não são traduzidos
pelos albaneses. Começa-se.

C.L.: A Eurofederaçâo reagrupa todas as Escolas e grupos europeus que fazem parte da
AMP, assim como as associações que gravitam em torno das Escolas ou grupos sem fazer
parte da AMP. É isso'
J.M.: Sim, a Eurofederação de Psicanálise federa todas as associações e grupos existentes.

A.P.: Onde você acha que vão eclodir as próximas Escolas de psicanálise lacaniana do
Campo Freudiano?
J.M.: Não vamos colocar o carro na frente dos bois! Como você pontuou, a reconquista do
Campo Freudiano está para ser feita na China, na Índia e, quem sabe, na África ... Onde
nós não fazemos grande coisa, nem no mundo muçulmano. Nós teremos que lutar, não
somente contra a avaliação, a quantificação, as terapias comportamentais, mas também
contra os integristas. Como articular charia e psicanálise?

A.L.-0.: Para termina1; e já que temos uma ideia dos lugares onde Lacan está vivo no
mundo, trinta anos após sua morte, eu lhe pediria, de hom grado, uma anedota, uma
pequena história que caracterize o homem Lacan, segundo você, que o conheceu tão bem
e por uma razão evidente.
J.M.: Anedotas, todos me pedem isto. Ao Diable: vocês admiram Lacan porque o lêem e o
estudam. E vocês fazem bem, na minha maneira de ver. Permitam-me não satisfazer este
pedido. Vocês são jovens e eu gostaria que existissem Diables em todos os países onde
existe o Campo Freudiano e nos países onde ainda não existe. O mundo mudou muito
desde Lacan. Estou convencida de que o melhor que posso fazer é me consagrar ao seu
ensino e ao desejo que ele testemunha para que, ambos, continuem a se transmitir: é
uma verdadeira escolha de civilização, uma aposta essencial no futuro. O futuro, claro,
me parece preocupante, mas este desejo e este ensino permanecem como uma bússola
fiável, e que supõem que cada um coloque aí algo de seu.

Tradução: Ana Paula Sartori Lorenzi

Opç:"10 Lacaniana n" 62 79 Dezembro 2011


Nota

Em 2008, a Escola Europeia se tornou a Federação Europeia das Escolas de Psicanálise que integrava a ECF. Depois, ela
mesma se transformou, em 2010. em Eurofederação de Psicanálise, que compreende todas as escolas europeias e nume-
rosos grupos trabalhando em ligação com estas Escolas.

Opção I.acaniana nº 62 80 Dezembro 2011


A PSICANÁLISE NA CONTEMPORANEIDADE

A ORDEM SIMBÓLICA NOSÉCULO XXI


CONSEQUÊNCIAS PARA O TRATAMENTO*

ERIC LAURENT (PARIS)


erida11rent@lacanian.net

De onde vem o título do próximo Congresso de 2012? A o,-dem simbólica no século


XXI. Não é mais o que era. Consequências para o tratamento. Como se inscreve na série
dos títulos dos congressos? Há dois anos, em Buenos Aires, Jacques-Alain Miller colocou
sob forma lógica a série cios títulos e retraçou a história de um programa maravilhoso,
bem pensado desde o começo. Ele o fez com a ajuda de ternários. Os três últimos Con-
gressos constituem um ternário particular. Em primeiro lugar, em 2006, em Roma, os
Nomes-do-Pai ou, mais exatamente, O Nome do pai, prescindir_. senJir-se dele. Depois, o
objeto a: Os objetos a na eJ.7Jeriência psicanalítica, em Buenos Aires, em 2008. E hoje,
em Paris. em 2010, o binário: Semblantes e Sinthoma. Como retomar agora? Pareceu-
-nos que devemos retomar a partir de um ternário sólido. Deste modo, depois de haver
alcançado este ponto de real que é o Sinthoma, a solução que se impunha era retomar
a partir do simbólico, ou ela ordem simbólica. Dado que, com o ternário precedente,
já havíamos mostrado o quanto esta ordem simbólica está desarticulada, tratava-se de
desenvolver as consequências disso. Portanto, vamos trabalhar em torno desta tarefa e
centrar nossas palavras nas consequências, para o tratamento, da particularidade desta
ordem simbólica.
Centrar, trabalhar em torno de, implica também a repetição, a circularidade. Reto-
maremos os elementos de "Uma fantasia" 1 , de Comandatuba, em 2004, o que por sua vez
remete a elementos cio curso "O Outro que não existe e seus comitês de ética". Esta cir-
cularidade é, precisamente, o que nos permite aprofundar nossa posição. Esta posição é
dupla. Por um lado, constatamos a fragilidade das ficçôes que constituem nosso mundo.
Hoje, precisamente, há uma ficção que nos dá um duro golpe, uma ficção que estrutura
todo um mundo. O Euro, o agente da cifragem econômica de um continente, levou um
duro golpe com nossos amigos gregos. Esta questão só pode interessar a todo o mundo,
uma vez que há vários anos nossos colegas do outro lado do Atlântico sofrem o peso

Opção Lacaniana nº 62 81 Dezembro 2011


desta moeda supervalorizada. Por meio de que artimanhas vão restabelecer a confiança?
Ninguém parece sabê-lo de fato, e o Concílio esperado se depara com as contradições
do Significante mestre. Não há um lugar a partir do qual se poderia ler verdadeiramente
a situação.
No entanto, apesar desta incerteza angustiante, mostraremos, por outro lado, em
que sentido é possível fazer o elogio do déficit do simbólico. Este déficit simbólico, estes
impasses fazem com que sejamos todos débeis. É por isto que a psicanálise e seu dis-
curso podem nos auxiliar.

Elogio da desordem simbólica

A disfunção do simbólico se inscreveu no início do século XX. Lacan soube va-


lorizar a contemporaneidade de Freud e de Russell. Frege permitiu pensar logicamente
objetos tão vastos quanto a lista de todas as listas. Ao distinguir as que contêm e as que
não contêm a si mesmas, Russell mostrou uma variante dos paradoxos do infinito que
ia engendrar um mundo. Este seria mais instável do que tudo o que sonhara a escritura
conceitua} de Frege. A revolução lógica do século vinte é geralmente descrita sem fazer-
-se o vínculo com o escrito de Freud que introduz o século: a Traumdeutung. No en-
tanto, Lacan mostrou sua profunda articulação. O sonho pode enumerar todos os traços
pelos quais o sonhador retoma as descrições finitas de seu mundo, o que chamamos de
"restos diurnos". Por isso, o conjunto do sonho contém a si mesmo? Contém o sonhador
por meio de uma representação definida? O sonhador contém a si mesmo? Freud intro-
duz um paradoxo particular. O sonhador está por toda parte e em lugar algum. Está em
"todos os lugares", mas em nenhum em particular. E, sobretudo, qualquer que seja o
sonho, o sonhador não pode estar ali sob a forma da "consciência do sonho". Está ali sob
a forma inventada por Freud, do "desejo inconsciente do sonho". Digamos com Jacques-
-Alain Miller, o sujeito freudiano, lido por Lacan, está estruturado como um conjunto de
Russell. Está tomado em um paradoxo fundamental. Não alcançará jamais uma descrição
definida do gozo que possa contê-lo.
Lacan opõe o sonho da consciência e o mundo do sonho propriamente dito. No
sonho, qualquer que seja a vivacidade das percepções, ou até por causa de sua inten-
sidade ou de sua deformação, podemos dizer, ao mesmo tempo, que o sonhador está
em todos os lugares, inclusive considerar que o sonhador pode dizer no sonho "isto não
passa de um sonho". Nos momentos de angústia, o sonhador pode sonhar um pouqui-
nho mais longe, por um breve momento, dizendo "isto não passa de um sonho", mas,
como assinala Lacan, nunca se diz "apesar ele tudo, sou a consciência deste sonho''. "É
um sonho" não implica "sou a consciência deste sonho". Uma vez que o sonhador está

Opção Lacaniana nº 62 82 Dezembro 2011


em todos os lugares, não pode enunciar um "eu sou", pois o próprio sonho é um "eu sou,
eu sou o sonho''_ A experiência do sonho, por sua articulação entre visível e invisível,
pela impossibilidade desta consciência de estar ali, justamente, se aproxima do que se
produz no encontro sexual.
Lacan dirá, inclusive, no texto sobre "o despertar da primavera'', de Weclekind,
que os meninos não teriam nenhuma relação com as meninas se não tivessem os so-
nhos a guiá-los. É preciso atrever-se a enunciar tal proposição na época da chamada
"liberação sexual", e repeti-la na época da hipermodernidade, em que os garotos vêem
filmes pornográficos desde os doze anos. Eles têm todas as informações. Lacan, no
entanto, tem a ideia de que, qualquer que seja a democratização da pornografia, o fato
de colocar corpos femininos em todas as vestimentas e posições à disposição geral das
populações, não corresponde à experiência da sexualidade. Se não houvesse o sonho,
para além da jovem parca pornográfica, não haveria ligação entre os dois sexos. Ao
abolir a distfmcia entre a percepção e o sonhador, o sonho introduz um mundo do qual
poderia se aproximar o que seria o emaranhado cios corpos. No sonho ganha forma o
que é um modo de articulação entre "o gozo é invisível" e o mundo da representação.
Ele designa uma passagem do invisível ao que é enfonna, que designa o que não é
justamente "a" forma do corpo.
Lacan utiliza o esquema da pulsão e da distinção, em Freud, entre a borda, a zona
erógena e a direção do movimento pulsional, para legitimar o trajeto pulsional, por meio
do qual a borda alcança a si mesma. O objeto é apenas o percurso, a pulsação que
permitirá que a borda satisfaça a si mesma, que a boca satisfaça a si mesma, e o desvio
pela enforma que vem marcar a distância, a pulsação, o tempo necessário para que o
próprio sujeito se afete e encontre seu gozo. Lacan dirá depois, considerando cada uma
das três consistências, o Real, o Simbólico e o Imaginário, RSI, que o objeto a está no
entrecruzamento dos três. O objeto a é esta eiforma sustentada também entre as con-
sistências RSJ. Vocês podem colocar estas três consistências na forma ele triângulo ou na
forma de nós. O objeto encerrado no centro é esta enforma estreita que se situa antes
de toda forma possível, para marcar um semblante. Não se trata de um semblante de ser.
Ele arruína toda perspectiva do ser. O objeto a é uma experiência que não tem essência.
Aquele que o experiencia é um sujeito que, como no sonho, está em todos os lugares.
A impossibilidade de marcar seu lugar como consciência do sonho, faz do sonhador um
sujeito que não está no lugar de ninguém. É o avesso da fixação almejada pelo cerimo-
nial perverso, no qual o sujeito busca, por todos os meios, manter-se como consciência
de gozo, manter um cenário e realizá-lo, havendo-o escrito até a última linha. O sujeito
trata, então, de evitar encontrar-se na zona do "não há ninguém". O estofo do sujeito
que se produz então, não é a representação, mas seu limite, que implica o irredutível do
gozo. Este irredutível se reparte entre os restos autoeróticos no sujeito masculino, e o

Opç::to Lacaniana nº 62 83 Dezembro 2011


"não todo" na função fálica no sujeito feminino. Citarei um sonho de fim de análise em
um sujeito feminino: um buraco negro com uma faixa que o barra.
Nessa faixa está escrito: "o que é invisível é o que não se pode ver". Eis uma tau-
tologia. É a última palavra, um ponto final. Aponta na direção da "tautologia singular".
Manifesta-se aí uma dimensão sinthomática, que não entra facilmente nos parêntesis dos
discursos estabelecidos e não se presta mais ao remédio proposto para atenuar a insufi-
ciência dos discursos: a cifragem.
A ordem do discurso está marcada por uma falha, é isto que, segundo a psicaná-
lise, não cessa de se escrever. É por isso que, conforme havia sido colocado como epí-
grafe por ocasião do Congresso da AMP, em Comandatuba, em 2004, nossa civilização é
consoante com o discurso analítico. Seja pela falha na ordem da relação entre os sexos
ou pelos impasses da civilização, o discurso psicanalítico aborda a ordem simbólica por
seu defeito que nem a poesia pode recompensar.
Diante da falha nos semblantes que se aprofunda, emerge um duplo desejo, se-
gundo a lei implacável do Supereu. Por um lado, um invasivo chamado à segurança e
seu corolário: a instalação de uma sociedade de vigilância com seu panóptico louco. Por
outro, a fascinação para viver como uma máquina finalmente liberada dos semblantes.
Uma lógica implacável vai do "acéfalo" de Bataille ao "homem neuronal" de Changeux.
São etapas, com a ajuda do discurso da ciência, da regulagem do homem "liberado". É
também um fantasma, na medida em que resolveria o mal estar na relação sexual. A
consequência desta "liberação" da relação com o Outro e seus semblantes, é que por
meio disso o papel e o lugar do princípio de autoridade em geral e, especialmente, no
tratamento, foi atingido. Na psicanálise, não se pode escapar com um suplemento de
ordem, nem com semblantes pomposos. A questão se coloca duplamente para o discurso
da psicanálise. "Como um psicanalista que não soubesse orientar-se na sociedade em
que vive e trabalha, nos debates que a agitam, estaria apto a se encarregar dos destinos
da instituição psicanalítica? 2
Nada mais atual do que a grande ideia que Lacan tinha sobre o psicanalista em
1953, e a injunção que lhe endereça,

Que conheça bem a espira a que sua época o arrasta na obra continuada de Babel e que sai-
ba sua função de intérprete n:1 discórdia das linguagens". (. .. ) Porque a psicanálise no século
XXI é uma questão de sociedade, um problema de civilização, há uma escolha forçada (. .. ).
Isto quer dizer testemunhar em ato sobre nossa posição, como psicanalistas, não apenas "no
tratamento~, mas também "na cidade"3 .

É a partir de sua ancoragem na nova ordem simbólica que o analista saberá fazer
uso dos significantes mestres, para poder ocupar o lugar de um parceiro que tenha a

Opção L3caniana nº 62 84 Dezembro 2011


A PSICANALISE NA CONTEMPORANEIOADE

oportunidade de responder. Deverá levar em conta os impasses da civilização, o que


Lacan chama, em 1953, de discórdia das linguagens.
O discurso da psicanálise se singulariza a respeito do que Lacan chamava de
"política da neurose". Enquanto os outros discursos, especialmente a religião, conta-
ram apenas com o Nome-do-Pai, a psicanálise agregou o falo. Isto desloca o lugar do
pai. Ora, "se há algo que caracteriza o falo (é) ser seguramente isso de onde não sai
nenhuma palavra". E, no seio da equivalência entre Falo e Nome-do-Pai, quando a
histérica contemporânea chama o Pai: "o de que se trata é de que alguém fale". Assim
definida, esta função do pai se torna "produto do discurso analítico". Se a psicanálise
souber inventar, na discórdia da ordem simbólica contemporânea, um modo de conti-
nuar sendo o parceiro que tem a possibilidade de responder no tratamento, então terá
cumprido o seu plano.

O saber-gozo, tampão do tratamento

A falha no saber encontra no século XXI uma forma particular acentuada pela de-
terminação da contribuição por parte da ciência. Assim uma socióloga descreve a falha
da subjetivação do saber: "O homem democrático quer submeter toda verdade e toda
decisão à sua crítica, mas, ao mesmo tempo, está condenado a crer (. .. ) em milhões de
coisas sobre a fé do próximo". Nossa autonomia intelectual nunca esteve tão afirmada,
mas, ao mesmo tempo, nossos juízos repousam cada vez mais na confiança que estamos
obrigados a conceder ao próximo. Não se trata apenas da investigação científica e de
sua crescente especialização. O progresso técnico-científico rapidamente torna obsoleta
a organização da vida cotidiana e supera as capacidades ele compreensão da maioria de
nós. De tal modo que, mais do que nunca, dependemos estreitamente dos outros, ao
mesmo tempo em que não cessamos de afirmar nossa irredutível individualidade e nosso
direito absoluto ?1 autonomia intelectual''4.
A via do igualitarismo contemporâneo com sua exigência de transparência afe-
tou especialmente o estatuto do sujeito suposto saber na experiência da psicanálise.
Diante da concorrência do modelo cognitivo-comportamental, que reduz o terapeuta a
um técnico a serviço da cura de seu "cliente", a psicanálise americana pretende reno-
var os semblantes da psicanálise, propondo um tratamento estritamente democrático,
recíproco, liberado de qualquer autoridade suposta. Judith Beck, filha do fundador das
terapias cognitivo-comportamentais, faz a seguinte apresentação da relação terapêutica.
"Os terapeutas colaboram com seus clientes (tomam decisões comuns, como sobre o
planejamento cio uso do tempo de sessão), pedem uma devolutiva ("O que você achou
da sessão? Quer que seja diferente da próxima vez?"). A aliança é reforçada quando

Opção Lacaniana nº 62 85 Dezembro 2011


os clientes vêem que seu terapeuta é útil, quer dizer, quando os clientes se vêem, eles
mesmos, resolvendo seus problemas e se sentem melhor" 5
Encontramos uma versão clínica do igualitarismo californiano em Owen Renik. A
construção de uma ordem simbólica se dá a partir de um saber explícito verificado por
uma experiência de gozo. O ganho de saber está em continuidade com o mais-de-gozar.
O analista interpreta para sua analisante, deprimida crônica, uma recordação infantil
como "autocrítica de maneira não necessária, pessimista na sua interpretação das intera-
ções sociais, subestimando o interesse que as pessoas têm por ela."
Ele lhe explica as razões de sua interpretação, o que ela critica. O analista é como
seu pai 1 "incapaz de respeitar seu ponto de vista, necessitando ter razão". O analista con-
testa a interpretação da analisante e lhe pergunta se ela pensa "realmente" isso, uma vez
que ele "a considera como a expert sobre sua infância, e não ele". Analista e analisante
discutem em seguida este ponto: quem é o expert? A analisante é sarcástica, diz não ter
realmente vontade de falar e se cala. Ela continua: "Pensa que é importante para um
analista, ser aberto e não autoritário, como procuro ser com ela, e que isso a ajuda. Mas,
por outro lado, ela pensa que tenho um interesse pessoal em não ser percebido como
dominante e parcial. Isto pode interferir algumas vezes em minha capacidade de escuta
e conduzir-me, finalmente, a fazer aquilo que tento evitar". O analista escuta esta tirada
da analisante e responde que "é muito interessante e um pouco incômodo". Encantada
por ser escutada, a analisante confirma seus sentimentos transferenciais positivos para
com o analista: "Está nervosa por estar sozinha na sala comigo, sentindo que sou um
cara legal (nice guy) e que me quer muito bem. Sabe que há algo sexual nisso". Constata-
mos que o que põe termo à rivalidade imaginária nessas sessões é que elas se concluem
com um modo de satisfação.
Renik fala aí de uma "prova de realidade'' entre o analista e a analisante e desen-
volve uma crítica da realidade única e objetivável, enquanto a realidade da sessão deve
ser construída. É necessário, então, obter o consenso e o acordo do analisante: "o ponto
crucial da prova de realidade é que o paciente possa decidir, a partir de seu ponto de
vista, sobre o que é a realidade. (. .. ) Um paciente leva em conta o ponto de vista do
analista, mas não deve submeter-se a isto como se constituísse uma autoridade (. .. )"
A instalação "da prova de realidade'' no tratamento como processo construído, permi-
te também reconciliar a transferência repetição e a transferência atualizada na sessão.
Inclusive ele faz referência a um processo quase hegeliano para sair do imaginário e
alcançar uma dimensão simbólica "analista e analisante encontram seu caminho intera-
gindo um com outro, respondendo como tese e antítese, caminhando por meio de um
processo de negociação"6 .
Outro exemplo clínico está construído segundo o mesmo método, mas vai ainda
mais longe com a encenação da transparência analítica. "Ann teve uma mãe amorosa,

Opção Lacaniana nº 62 86 Dezembro 2011


A PSICANÁLISE NA CONTEMPORANEIDADE

mas que a controlava e não tolerava as manifestações de independência e a contradi-


ção por parte de seus filhos. Então, Ann e eu discutimos sobre a possibilidade de que
sua dificuldade para criticar seu marido tivesse relação com um sentimento de perigo
apreendido de sua mãe ( ... ) Um dia em que seu marido estava desinteressado dela,
Ann suspeitou que tinha algo a ver com isso". O analista lhe diz: "Estou surpreso. O
que lhe faz pensar que foi sua maneira de falar que fez com que seu marido se distan-
ciasse?" Ann responde com uma ligeira irritação: "Não acho que você esteja surpreso 1
Owen. Acho que tem uma ideia do que ocorre. Por que não dizer o que você pensa?"
Minha hipótese era que Ann, uma vez mais, havia experimentado a necessidade de se
criticar em lugar de criticar seu marido (. .. ). Ela refletiu: "É coerente, posso compre-
ender sua maneira de proceder. Mas, por que não me explicou sua preocupação? Pelo
contrário, você se apresentou como confuso e isso não era realmente verdade - sem
mencionar que é contra as regras que você me expôs tornar explícito o seu pensa-
mento, de modo que possamos discutir sobre isso, se necessário. Não façamos disso
um problema, mas por que desatinar desse jeito?". "No outro dia, Ann começa dizen-
do o quanto lhe havia sido útil a sessão anterior. .. O que lhe interessava realmente,
por mais que refletisse a respeito, era que eu havia sido intimidado por ela - suficien-
temente implicado por sua desaprovação para me explicar." Ann prosseguiu com sua
elaboração sobre o modo como lhe havia sido útil reconhecer que podia, inadverti-
damente, intimidar a outras pessoas (. .. )" Ela e seu marido falaram longamente essa
noite e depois fizeram amor com mais intimidade e paixão do que nunca em muitos
anos. Este exemplo termina tamhém com uma satisfação. Vemos bem o aspecto de
intercâmbios imaginários e o empowerment do sujeito se verifica pela experiência de
satisfação. Nessa perspectiva, o sujeito suposto saber não deixa, por isso, de existir.
Ele é vivido como um sujeito suposto saber como maximizar melhor os embaraços de
sua relação com o gozo.
A intersubjetividade se libera da "tradição'' e consoa com o ar dos tempos. Ela
é revisionista, não admite as vacas sagradas nem os grandes anciãos. É pós-moderna,
democrática, tem espírito de conversação. Distanciada dos conflitos teóricos ligados
ao estatuto da metapsicologia, é orientada pela avaliação de um resultado a obter.
Ela avança como a-teórica. Uma corrente dessas tem referências profundamente ame-
ricanas. Ela restaura uma identidade aos praticantes submetidos a fortes ataques na
civilização contemporânea desconfiada de todos os saberes e de qualquer diferença
de status atribuída aos experts. O sujeito ao qual se dirige a experiência tem expec-
tativas racionais. Busca maximizar seu saber sobre si mesmo e o mundo. Tem desejo
de aprender, o need to know. É isto que substitui, nessa perspectiva, o sujeito suposto
saber. Esse saber se reconhece como meio de gozo, pois através dele o sujeito busca
também maximizar seu ganho libidinal, melhorar a sua satisfação sexual ou a autoesti-

Opçiio L:1caniana nº 62 87 Dezembro 2011


ma. Digamos que busca maximizar ganhos reais, simbólicos e imaginários. É um homo
economicus /ibidina/is.
A felicidade utilitarista e funcional que aparentemente O. Renik admite como
hipótese, está de acordo com uma fibra de nossa civilização. O nivelamento do terre-
no que se realiza já foi interpretado por um de seus colegas como fazendo parte do
Zeitgeist. Com efeito, isto promove a ideia de que a única justificativa de uma escolha
provém da vontade de uma eficácia maior. Em contrapartida, nossa perspectiva ques-
tiona a própria ideia de Zeitgeist. Não há mais Zeitgeist, pois o Zeit rompeu com o Sein.
Já não há Um. Na globalização, temos que nos haver com um mundo fragmentado,
com o não todo.

Os restos de identificação e o irredutível do sinthoma

Seguindo nosso caminho, tal como testemunham aqueles que se expressaram no


Congresso, apresentando seu caminho em direção ~1 psicanálise, será que não fomos
mais longe cio que nossos colegas da IPA, separando a posição cio analisante-psicana-
lista1 do próprio tratamento? Segundo a concepção que temos do final do tratamento,
a posição do analista diverge. A travessia do luto cio pai e cio irredutível ela castração
define o pessimismo ativo de Freud.
A separação cio objeto bom permite, segundo Melanie Klein, suportar a separa-
ção do parceiro particular que é o psicanalista; atravessamento da posição depressiva,
pensa ela.
Nosso horizonte é o de um analista vazio, que está advertido de seu gozo, mas
que sabe, para além do furo na ordem simbólica, instalar-se na posição daquele que
pode perturbar a defesa. É dizendo-lhe isso com muita delicadeza que podemos pen-
sar o psicanalista como psicanalista trauma. É uma ascese. Tão grande quanto a de
bancar o morto ou de não ter nenhuma recordação, interesse ou memória. É a ascese
de ser o que excede a representação e o sujeito estratificado da língua. A neutralidade
analítica deriva do princípio de precaução. O psicanalista trauma, em contrapartida, é
uma posição do psicanalista na qual ele aceita correr riscos, calculados, certamente 1
e não se submeter inteiramente às interdições protetoras ou mortificantes, sem por
isso, cair no ativismo terapêutico. O psicanalista que se atribui a meta de "perturbar a
defesa", fazer "trauma'', experimenta o rechaço de considerar seu espaço de discurso
como o de uma "norma sem força". Ele aceita entrar no jogo e não é sem risk adverse,
com a condição de que recuse, pelo mesmo movimento, o poder dos semblantes. E
sabe, pela experiência de uma psicanálise conduzida ao seu termo, que não há "ordem
simbólica". Este não é um dado. Aquilo que a "desordem simbólica" manifesta é o real

Opçào Lacaniana nº 62 88 Dezembro 2011


A PSICANÁLISE NA CONTEMPORANEIDADE

de "lalíngua". É a partir do desnudamento desse real que uma ordem simbólica pode
se restabelecer.
O percurso de uma psicanálise se inaugura pela instalação do Inconsciente trans-
ferencial pelo laço associativo de dois significantes S1---.s2 • E termina com um horizonte
no qual os significantes mestres do sujeito se isolam dos múltiplos laços que haviam
tecido. Eles adquirem uma dimensão real. Seu retorno às cadeias identificatórias se torna
impossível 1 S1 se encontra apartado de S2 •
Nesta perspectiva, sempre ficarão significantes que não estarão sozinhos o bas-
tante e não esperamos que todos os significantes mestres de um sujeito se produzam
deste modo; basta que alguns o sejam suficientemente. Um sujeito, depois das primei-
ras sessões, evoca as três gerações de desejo que provocaram o embaraço no qual se
encontra. Primeiro o mau matrimônio do avô, cujos filhos incomodam a família. De-
pois uma mãe que maltrata seus próprios filhos. Finalmente, ele, o filho que se divorcia
aos quarenta anos, com a firme intenção "de não fazer sua mulher sofrer", enquanto se
produz, claro, exatamente o inverso. Será necessário, no curso da análise, desenrolar
esse novelo emaranhado.
Os significantes mestres circulam entre as gerações, para além dos indivíduos. La-
can podia falar da transmissão de uma bofetada por várias gerações7. Produzi-los consis-
te em liberar o sujeito de sua ingenuidade e de sua perplexidade e percorrer o labirinto
de gozo no qual a repetição, a culpa, a agressividade, a depressão e a agitação desvai-
rada se enlaçam. Será preciso isolar os significantes familiares que, na sua contingência,
contribuem com a formação e a estabilização dos modos de satisfação que constituem o
fantasma. Deste modo, passamos do desenvolvimento da cadeia significante às relações
do sujeito com os objetos de seu gozo %• a.
A passagem se dá graças à dupla função do psicanalista. Por um lado, ele é o en-
dereço das demandas do sujeito; por outro, lugar do objeto que deteria a chave do gozo
impossível a-%.
A identificação de um modo de gozar não é idenrificação a um modo de gozar. É o
que nos ensina o final do texto "A direção do tratamento ... '*. Enquanto a psicanálise da
época visava a identificação do sujeito com seu fantasma, Lacan mostra como o sujeito
é remetido pela pulsão, à contingência do amor. O fantasma pode "ser atravessado". A
identificação de um modo de gozo modifica o que entendemos por identificação. Con-
forme mostra o seminário de mesmo nome, o desenvolvimento de uma série na qual se
misturam significantes e valor ele gozo: (l+(a)), permite definir um valor de gozo para
toda a série. Foi deste modo que Lacan esclareceu os debates nos quais a psicanálise
se atolava entre a transferência como repetição da cadeia significante e a transferência
no presente. articulada à exposição do fantasma na realidade da sessão. Ela não se dá
sem restos.

Opção Lacaniana nº 62 89 Dezembro 2011


O movimento da psicanálise é duplo. Por um lado, autoriza o afrouxamento da
identificação com os significantes mestres, S1, e, por outro lado, permite o contorno de
um buraco. Tomemos o exemplo de um sujeito marcado pela cena em que surpreende
atividades eróticas dos pais. Ele conserva a recordação de uma frase enigmática da mãe
"voltarás quando o céu estiver violeta". Os recursos da equivocidade da frase deixaram-
-no errar por muito tempo, do enamoramento de jovens andróginas à contemplação
fascinada de sexos descobertos de modo pornográfico. Quanto tempo a fixação escópica
do sintoma o manterá ao abrigo da constatação de que nunca retornou dessa atribuição
pela mulher proibida, inacessível' A passagem do significante mestre ao furo na lingua-
gem não se dá sem restos.
À medida que o sujeito desenrola as diferentes identificações que tramaram sua
história, revela-se que a identificação não apenas é múltipla, mas impossível. Ninguém
pode identificar-se a seu próprio inconsciente. O sujeito pode sonha isolar a fórmula.
Sabemos, desde a tentativa feita por Serge Leclaire, dos limites dessa empreitada9. Ele
tentou reduzir seu inconsciente à raiz "Poordjeli" e, deste modo, sair da alienação'º. A
separação virá do lado do objeto a como furo da letra na mediocridade do sentido, no
sentido de "Televisão"' 1 . O furo na língua do sujeito se produz no tratamento analítico
por sua vertente de experiência lógica. Lacan isola a função lógica da letra como argu-
mento de uma função, F(x), como a de um furo na linguagem. Ele evoca o poder de
"insuflamento" do escrito. Se em '"Todos os animais são mortais' vocês sussurram os
animais e colocam no lugar o cúmulo do escrito, isto é, uma simples letra." 12
Esta concepção da escrita não é nem a de uma escrita como impressão nem a de
una homologia das duas dimensões, da fala e da linguagem. É preciso começar por di-
zer, para que se possa cavar o furo pela repetição. Não podemos começar por escrever
no sentido da literatura. Em suas conferências americanas, Lacan pode dizer "a autoa-
nálise de Freud era uma writíng-cure e creio que foi por isso que fracassou. Escrever é
distinto de falar. Ler é distinto de escutar""
O furo cavado deste modo nos enunciados do sujeito não é suficiente, ainda é ne-
cessário que o sujeito mergulhe no furo aberto no e pelo inconsciente. Lacan fala nesta
ocasião, de furo do insuflador. Depois de ter evocado o ato analítico, Lacan assinala "Só
há passagem ao ato como um mergulho no furo do soprador, sendo o soprador, certa-
mente, o inconsciente do sujeito." 1,1. O analista, no tratamento, marca o lugar desse furo
e o vela: a>){
A operação lógica no tratamento não pode se reduzir a uma escrita das funções de
gozo como em uma espécie de Begrifjschrift psicanalítico''·
Certamente, esta escritura faz aparecer o furo nos enunciados ... x à maneira
daquele que produz o argumento da função, mas o sujeito pode permanecer na borda.
Em sua série de vinte conferências na France Culture, Jacques-Alain Miller explorava o

Opção lacaniana nº 62 90 Dezembro 2011


A PSICANÁLISE NA CONTEMPORANEIDADE

que se produz "quando os tratamentos duram muito tempo", mas em que o sujeito não
"submerge" no furo do soprador. Ele condensava o obstáculo com o qual se chocaram os
testemunhos de passe. Aquele que era o filho da mamãe, quando .se tornou homem com
mulheres, continuava querendo seduzir a Escola no procedimento cio passe. Aquela que
era a filha de seu pai e rechaçava a mãe, havia gostado do passador homem e detestado
a passadora mulher. O homem marcado pelo segredo familiar transporta consigo uma
atmosfera ele clandestinidade no dispositivo. Aquela que foi marcada pela solidão na in-
fância quer ser adotada pela Escola e encontrar ali sua nova família 16 . Esta declinação dos
restos mostra a presença cio fantasma em profundidade. Como pode, então, se produzir
a imersão? Lacan dá uma indicação bastante precisa: é preciso que o sujeito descomplete
o sintoma cio Outro. "l~ necessário haver sido formado como analista. Somente quando
está formado é que 1 de tempos em tempos, isso lhe escapa; formado é ter visto como
o sintoma, isco se completa"n. É pela incompletude que se produzirá o salto no furo.
Isto supõe que sejam franqueados os restos ele identificação fantasmática e os restos ele
identificação com o analista.
O princípio da falha do ato analítico reside, em última instância, na identificação
com o analista. Ele se dá sob duas formas distintas. Por um lado 1 existe a identificação
com o analista como aderência ao psicanalista que foi o instrumento da operação analí-
tica. O sujeito se torna analista como o seu analista quer, ou como ele é.
A identificação com o analista se faz na sombra desses jogos narcisistas onde um
está conforme à imagem do outro. Identificações fantasmáticas e narcisistas se recobrem
como nos "jogos ela orelha com as ondas com os quais se encarnavam os poetas manei-
ristas"18, nos dizia Lacan.
A identificação com o analista leva também à marca da aderência a um .ideal ou a
uma norma do que seria o analista. Ela impede o abandono dessa perspectiva. O esforço
ela comissão do Passe é deixar de conceber a existência de um analista como exceção a
uma regra, mas, a partir da exceção, decifrar uma faceta do que é um analista. Partimos,
então, não cio que é comum ou corrente, mas antes do que é inabitual. É adotando esse
ponto ele vista que podemos dizer que "Cromwell foi julgado o Inglês mais típico de seu
tempo, simplesmente porque foi o mais bizarro?" 19 . Esta lógica da singularidade é aquela
em que se colocam em jogo o vazio e o gozo, para além dos significantes mestres que
fazem a lei para cada um.
É mantendo uma topologia que diferencie os verdadeiros e os falsos furos, que
pode ficar aberta a singularidade do modo de gozo, fundamento da ordem simbólica de
Lalíngua, corpo por corpo. O modo de gozar se refere ao corpo, sem por isso reduzir-se
a ele. Ao responder à angústia que nos captura, temos uma oportunidade de responder
ao convite que faz Demócrito na leitura que Lacan nos propõe em Mais, ainda e em "O
aturdido". O átomo de Demócrito, como o sinthoma de Lacan, é, ao mesmo tempo, cor-

Opção Lacaniana nº 62 91 Dezembro 2011


po e "elemento de significância voadora". O gozo do corpo é, ao mesmo tempo, corpo
e vazio, "nào mais corpo do que vazio" 2º. Isto não é a última palavra, mas a articulação
de uma topologia a produzir, a cio lugar cio "nào há ninguém".

Paris, 22 ele julho ele 2010.

Tradução: Mª Cristina Maia Fernandes.


Revisão da tradução: Teresinha N. M. Prado.

Notas
Texto publicado originalmente no boletim Papers, (]): Boleti11 Electrónico de! Comité de Acció11 de la Esc11ela Una - Sei-
/icei. Versión 2011-2012.
Miller, J.-A. (fev-2005). ''Uma fantasia". Opçào Lacaniana, (42): 7-18.
2 Miller,J-A. (2010).joumal desjoumés, (78).
3 l.acan, _1. 0998). F.scn'fos. Rj: Zahar, p.321 (Ed. Fr).
4 Schnapper, D. [14/07/2010). Extrato da Lição Inaugural dos Enconlros de Petrarca. ln www.femondefr.
5 Beck, J. (12 Juillet 2010). Cog11itive Behauior 71Jerapy: ll(Wbs cmd Realities.
6 Renik, O. (1996). The Perils of Neutrality Psycboana(vlic Quaterfr, I.XV. p.495-517, traduzido por G. I.e Gaufey, et al.
7 Lacan, J. 0957/1966). •la psychanalyse et son enseignement•. ln Escrits Paris: Le Seuil, p.448-449.
8 Lacan,J (1979). -La Dirección de la Cura y los princípios de su poder,. ln F_Krilos 1.Siglo XXI, p.270-274.

9 Ledairc, S. (1968). •le rêve à la licorne•. ln Psychoana/yJer. Paris: I.c Seuil, p.116.
10 lacan, J.{1964/1966). •Position de ]'Inconsdcnc,. ln Ecrits. Paris: Le Scuil. p.842.
11 Lacan, J. (2001). •Télévision•. ln Azttres Ecrits. Paris: Lc Seui!, p.544.
12 Lacan, J. (2009 [1970-711). O Seminán·o, livm 18: De um discurso que 11âu fosse semb{allle. Rio de J:meiro: Jorge Zahar,
p.76.
13 Lacan, J. 0975/1976). Yale University, 24 de Noviembre 1975. Sei/icei (7) : 35 ; 361.
14 !d., ibid., p.35.
15 Lacan, J. [1968]. Le Séminaire, Livre XV, L'ade psychanalitiquc, 31 janvier,1968, inédit.
16 Miller, J.A. [20081. • Conférences en france Culmre •. Historias de Psicoanálisis, inédilas.
17 Lacan, J. 0966). Ecrits. p.681. Tomemos o seguinte exemplo no qual vemos que junco et sonhos estão cm espelho: •A
sombra dess:1 flor vermelha/ e aquela dos juncos pensos/ pareciam estar ali dentro/ os sonhos da água que adormece•.
Tristan L'Hermitte. Promenoir de deux amants. ln Les amours. 0938).
18 Lacan, _1. 0975). Yale University, 24 de novembre 1975. Op.cit., p.35.
19 Geem.. 0973). Bali, interprétation d'1me cu/ture. Paris: Gallin1:1rd, p.45.
20 Demócrito, fragmento BI56 DK. As querelas da interpretação ''Dcnos" de Demôcrito e sua import:'incia são valorizados
por Bárbara Cassin na parte em que ela redigiu "li n'y a pas de rapport scxuel. Deux leçons sur 'l'é1ourditº de Lacan'',
Alain Badiou e Barbara Cassin, Fayard, p.62 e seguinles.

Opção Lacaniana nº 62 92 D<c:zcmbro 2011


O PASSE NA ESCOLA DE LACAN HOJE

UM CERTO SABER DE PASSE


Ü "PREFÁCIO À EDIÇÃO INGLESA DO SEMINÁRIO 11 ',.

ANGEUNA HARARI (SÃO PAULO)


angelina.harari@gm.ai/. com

Jacques Lacan não se deteve diante do que ele mesmo nomeou como um "fra-
casso" de sua primeira "Proposição ... " sobre o passe; aí reside para mim o interesse do
"Prefácio à edição inglesa do Sen1inário 1r1. Esse texto mostra que ele não cessou de
perseverar em sua pesquisa quanto ao fim de análise, sempre ancorado em sua prática,
pois recebeu seus analisantes até o fim de sua viela. Trinta anos após sua morte, nós
ainda nos debruçamos sobre os resultados de seus trinta anos de prática analítica, expe-
riência da qual ele extraiu a matéria de seu ensino.

A psicanálise só se escreve ao barrar O

Esse texto nos revela também sua paixão por esmiuçar a posição feminina, a tal
ponto que acabará por escrever seu matema, que ele nos legou. Levar adiante seu sonho,
o mais longe possível, mais longe do que Freud, aresta uma posição subjetiva deterrnina-
da, a sua, que o conduziu a defrontar-se com "o insuportável da questão feminina para
um homem"2 • Uma das implicações de tal defrontação é que "a posição do analista é por
excelência uma posição feminina" 3 .
No meu caso, o passe permitiu encontrar um modo singular de viver a feminilida-
de para além da via normalizadora elo casamento. Fazer-me responsável por essa posição
passou menos pela questão de saber como decidir pelo lado do Um ou do Múltiplo em
relação ao parceiro, do que pela assunção do gozo das línguas no plural. Sob a plura-
lidade dos parceiros, subsistia uma e somente uma modalidade de relação, fixando a
mesma, ao passo que em relação a cada parceiro, tratava-se de fazer par diferentemente
- o fato de que essa modalidade seja única permite, inclusive, que outras singularidades
se instituam e renovem sua relação com um mesmo parceiro, por exemplo. Se Uno,

Opç:io Lacaniana nº 62 93 Dezembro 2011


deste modo, em diferentes pares, foi a fórmula adequada para preservar o enigma da
feminilidade para cada um cios parceiros, inclusive eu, mas também o homem que se
endereça à parceira e fala com ela. Esta foi, e continua sendo, a maneira de objetar-se
a fazer consistir A mulher, De fato, "não há mais O psicanalista do que há A mulher, Há
apenas psicanalistas, a serem tomados um a um no procedimento do passe"4.

Da proposição ao relatório

Assim, esse texto, o último do volume dos Outros Escritos, tal como Jacques-Alain
Miller o concebeu em 2001 5 , nos ensina sobre a nomeação do Analista da Escola, o AE,
de modo discreto, mas talvez mais seguramente do que a "Proposição de 9 de outubro
de 1967 sobre o psicanalista da Escola",
Trata-se antes, nos diz Mil[er, de algo da ordem de um "relatório" da experiência
de passe, uma vez lançada a proposiçf10, em que a atenção se focaliza entre recalque e
transferência, para reconhecer um estatuto transferencial do inconsciente e constarar,
1

a favor do advento do fim, e sob a égide de uma inegável satisfação, que esse estatuto
mudou e se tornou real.
Todavia, e porque o ensino contido nesse último escrito se prolonga na "Orienta-
ção lacaniana", devemos registrar que a transferência nos abra outra perspectiva sobre
o inconsciente real: "como exterior ao sujeito-suposto-saber, exterior à máquina signifi-
cante que produz sentido'". Lacan situa essa perspectiva no lugar em que se produz uma
"disjunção entre o inconsciente e a interpretação" 7.

AE, "profissão recém-chegada"

Como boa lógica lacaniana, era preciso submeter essa profissão, recém-chegada na
histoeria, à prova da verdade com a qual sonha a função dita inconsciente. 'É assim que
Lacan faz aparecer o passe nesse último escrito: como uma miragem, uma miragem da
verdade, certamente, "mas que não é menos mentirosa com relação ao gozo impossível
de negativar''8 . Cito-o: "A miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira, [... ]
não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise" 9 .
A experiência do passe nos mostra que há um além da metamorfose, e que ele
não se modifica; foi o que Lacan marcou com o nome de sinthoma: o ser de gozo que
permanece rebelde ao saber. A relação entre o gozo e o sentido não se presta a uma
travessia, resta "um gozo opaco, que exclui o sentido" 10 •
O último dos Outros escritos de Lacan, portanto, coloca maior acento "sobre a ver-

Opção tacaniana nº 62 94 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA DE LACAN HOJE

dade do que sobre o saber, e mesmo sobre a verdade mentirosa, ou seja, sobre a ficção
do passe, enquanto antes !.J o passe aparecia mais como um fato" 11 . Esta expressão foi
pinçada como tema do colóquio que aconteceu em Strasbourg em dezembro de 1993:
"O passe, fato ou ficção" 12 .
Mas esse deslocamento do fato do passe à ficção do passe encontra seu funda-
mento em uma proposição - desta vez de ].-A. Miller - sobre os dois regimes do passe,
distintos conforme os ordenamos com relação ao saber ou à verdade, pois esse último
escrito evoca mais uma experiência de satisfação do que uma demonstração de saber.
Assim, o passe do sinthoma resulta mais do vivenciado na experiência do que a
ideia da "Proposição ... ", e o legado desse "Prefácio... " é proveniente dos últimos desen-
volvimentos do ensino de Lacan, particularmente a partir do seminário O sinthoma, em
que se elabora a doutrina dos nós.
Se o passe na EFP foi efetivamente um fracasso em termos de elaboração de sa-
ber, podemos colocar na conta da ECF um certo forçamento no sentido em que o saber
de passe foi ali colocado à prova com uma obrigação atribuída aos AEs (Analistas da
Escola) e aos membros do júri de produzir e ensinar. No entanto, o fracasso não deteve
Lacan e seus alunos não renunciaram a ele; a experiência prossegue na ECF e em outras
Escolas da Associação Mundial de Psicanálise, a AMP, em que o ensino do passe em
curso continua a produzir efeitos sobre os analistas. Recentemente vimos se confirmar
o que podemos chamar de política da enunciação analisante, tal como ela se inscreve
na continuidade do legado particular que constitui esse último texto dos Outros escritos.
O inconsciente real nomeia; diante disso, a ficção se torna verdade mentirosa; uma
tese radical se deduz disso: "O real é o excluído do sentido, inclusive do 'sentido-goza-
do'. Essa tese, discutida em seu último ensino oral, não foi retomada por Lacan em ne-
nhum de seus escritos: ela confere a essa coletânea seu ponto de fuga" 13 , nos diz Miller.
Lacan concebeu e quis que a nomeação de AE acontecesse fora de qualquer ava-
liação de um percurso institucional e profissional - para o reconhecimento deste último,
ele inventou outro título, o de AME, Analista Membro da Escola.
Se fosse preciso colocar essa profissão de AE, recém-chegada na histoeria, à prova
da miragem da verdade, não seria o caso de demonstrar um saber proveniente da expe-
riência com outros, mas de fazê-lo a partir de um ponto de satisfação singular. É por isso
que o procedimento não se impõe a todos. Para Lacan, não há 'todos', há apenas "espar-
sos disparatados". Assim, escreve ele, logicamente: "Eu o deixei à disposição daqueles
que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa" 14 •

Tradução: Teresinha N. M. Prado.

Opção l.ac:i!;niana nº 62 95 Oe7,cmbro 2011


Notas

lcxto puhlicado originalmente em Revue de la Cause freudienne (79): 183-186.


Lacan, J. (200311976]). "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11". ln Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
2 Laurenr, É. (setembro, 2011). "Lacan analisante". Opçào Lacanfana, (60): 65-70.
3 Miller, J.-A. (novembro, 2009). "Como alguém se toma psicanalista na orla do século XXI". Opção Lacaniana, (55): 19.
4 Idem, ibidem.
5 Miller,j.-A. [2000-01]. ·•curso de orientação lacaniana: O lugar e o laço". Ensino proferido no âmbito do departamenlo de
psicanálise aplicada da Universidade Paris VIII, aula de 23 de maio de 2001. Inédito.
6 Miller, ).-A. (2006-071. ªCurso de orientação lacaniana". Ensino proferido no âmbito do departamento de psicanálise apli-
cada da Universidade Paris VIII, aula de 15 de novembro de 2006. Inédito.
7 Idem, ibidem.
8 Miller, J.-A. {2008-091. "Curso de orientação lacaniana: Coisas de fineza em psicanálise. Ensino proferido no funbito do
departamento de psicanálise :1plicada da Universidade Paris VIII, aula de 06 de maio de 2009. Inédito.
9 Lacan, J. (2003(19761). "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11". ln Op.cit., p.568.
10 Miller, J.-A. [2008-09]. Op.cit., lição de 06 de maio de 2009.
11 Miller, J.-A. {março, 2011). "Haveria passe!". Opção Lacaniana, {59): 68.
12 Miller, j.-A. (mai. 1994). "La passe, fait ou fiction?". la Cause freudiennC', (2i).
13 Miller, J.-A. (2003). "Prólogo·. ln Lacan, J. (2003). Outros escrito.,. Op.cit., p.13.
14 lacan, J. (20030976]). "Prefácio à edição inglesa do Seminário 1r. ln Op.cit., p.569.

Opção Lacaniana nº 62 96 Dezembro 201 J


O PASSE NA ESCOLA DE LACAN HOJE

CoúP DE FOUDRE*

ANA LYDIA SANTIAGO (BELO HORIZONTE)


Ana!ydia.bhe@terra.com.br

Para mim, o português é a língua materna e o francês, a língua do Outro. E por


que não considerá-lo como esse Outro estrangeiro que é o inconsciente? Durante os 20
anos em que transcorreu minha experiência analítica, antes do passe - oito anos, com
o primeiro analista; dois anos de interrupção; e outros 10 anos com o segundo analista
-, produziram-se lapsos, trocadilhos e expressões por meio de sonhos, que exploravam
riquezas semânticas e equívocos que o trânsito do materno ao estrangeiro da língua
tornou possíveis. Pergunto-me, inclusive, se, no meu caso, levar adiante a experiência
da análise na língua do Outro não foi o que levou o sujeito do inconsciente a se mostrar
1nais suscetível ao encontro com os equívocos da língua.

Aprender a falar

É no contexto dessa passagem de uma língua a outra que o sintoma analítico se


inscreve, traduzido por um "não saber falar". A dificuldade com a fala, que caracteriza
o ponto de partida da análise, destaca, de preferência, a vertente da inibição presente
no sintoma. Evidentemente, esse sintoma emerge banhado por meu contato, pouco fa-
miliar, com estilos e modos de vida dos franceses. Ao chegar a Paris, onde iria morar
por um período de quatro anos, experimento, em um primeiro momento, o apagamento
radical do domínio fluente da língua inglesa 1 seguido da forte impressão de não saber
falar francês. Esse embaraço não se desvincula dos usos e dos costumes de uma cultura
com o nome próprio. Em contraste com o que é corrente em nosso país, não há como
negligenciar o privilégio conferido, pelos franceses, ao patronímico.
Assim, vivencio maritalmente, em regime de concubinagem, era identificada como
"madame", porém designada pelo sobrenome paterno. E, independentemente das oca-

Opção Lacaniana nº 62 97 Dezembro 2011


siões em que me foi assinalado que eu me comunicava bem no idioma francês, a difi-
culdade para falar, que apontava o incompreensível do amor do pai, instalou-se no meu
corpo e manteve-se presente, na experiência analítica, sessão após sessão, durante toda
a trajetória da análise.
A primeira demanda de análise é endereçada a um analista do Campo Freudiano -
uma mulher - que, em intervenções e cursos na Escola da Causa Freudiana, atrai minha
atenção pelo uso frequente de uma joia brilhante. Esse objeto precioso associa-se, no
meu íntimo, ao que se transmite de mãe para filha. Da mesma forma, o que está em jogo
na última análise é algo da ordem do saber e do bem dizer. Contudo, o entrelaçamento
entre a joia e a palavra estalieleceu-se bem precocemente, a partir da imagem ilustrativa
de uma fábula - As três cabeças de ouro-, que eu escutava, quando criança, pela boca
de minha avó paterna, antes de haver adquirido a prática da leitura.
Pode-se inferir que nessa fábula, o Outro está encarnado na voz de três cabeças
1

de ouro, que surgem no caminho de duas meninas e, muito exigentes, decidem o seu
destino. Elas surgem de dentro do buraco de uma cisterna, em cuja borda cada uma das
meninas, em tempos diferentes, senta-se para descansar e fazer uma refeição, após uma
longa jornada na busca da própria sorte. As cabeças pedem para ser alimentadas, pen-
teadas e ninadas com música. A primeira menina, considerada uma boa filha, bastante
afetuosa com o pai, atende prontamente às solicitações de cada uma das três cabeças, e
é, por via de consequência, beneficiada com o dom da bondade e com um hálito suave,
o que lhe possibilita, ao falar, lançar pedras preciosas pela boca. A segunda menina, filha
caprichosa, mais ligada à mãe, recusa-se a prestar favores às três cabeças, que, entào,
reservam-lhe uma vida difícil - literalmente, um caminho de espinhos, que ferem sua
pele e tornam sua aparência pouco atraente - e, ainda, um hálito horrível, que a leva, ao
falar, a lançar cobras e lagartos pela boca.
Como a primeira menina, desde muito cedo, eu estava marcada pelo amor ao pai,
em função do desejo deste de ter uma filha a quem daria o mesmo nome de sua esposa.
O uso do nome da mãe na filha é incomum e não se encaixa na perspectiva de afirma-
ção de uma transmissão, como é o caso quando se batiza o primogênito com o nome do
pai ou do avô. Esse ato de nomeação não se fez sem consequências sobre o lugar que
passei a ocupar junto à minha mãe, bem como junto à minha avó paterna, que morava
com a família e era responsável pela educação das crianças. Por ter como miragem o
destino da primeira menina da fábula, tornei-me uma observadora atenta dos indícios
do que melhor convinha ao outro, para me encaixar e ser reconhecida como uma filha
modelo e de comportamento exemplar. O destino da segunda menina, contudo, perma-
neceu dúbio e em aberto, causando preocupação e medo.
Um equívoco da língua, que insiste em se apossar do nome do primeiro analista,
acaba por de_stacar o significante "cólera", designador, ou nome, do gozo sem sentido

Opçào Lac:miana nº 62 98 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA OE LACAN HOJE

das mulheres de minha família - notadamente minha mãe e avó paterna. Manifestada
na relação con1 a fala, a cólera, que em minha mãe é apreendida no falar denegridor e
depreciativo a respeito do pai e, em minha avó, é expressa em dizeres hostis formulados
contra minha mãe, sua única nora, pois é a esposa de seu filho único. Com efeito, minha
mãe é a própria encarnação desse Outro mal, algo inerente à subjetividade de minha
avó. Desde muito cedo, por conseguinte, não me passou despercebido o deslocamento
cio ódio que minha avó alimentava contra a nora, minha mãe, e era projetado sobre a
neta de mesmo nome. A posição que se configura par~ o sujeito nessas circunstâncias,
é de ser uma tela na qual o outro projeta um elemento insuportúvel de si próprio, estra-
nhamento perturbador que interfere na maneira como é visto.
O primeiro modo do saber sujeito, que é o do objeto a, começa por mostrar-se
como imputado ao Outro. No laço transferencial, há o objeto agalmático - a joia com
tudo que esta representa - e o equívoco sobre o nome, ambos situados do lado do
Outro. O que pode ser dito a propósito do mal-estar advindo da palavra e circunscrito
na cólera diz respeito tanto aos impropérios e atos, julgados injustos, da mãe e da avó,
quanto à exaltação de ambas ao filho e neto primogênito, do sexo masculino. Ao mesmo
tempo, percebe-se a manifestação de algo da ordem do impossível de dizer: a cólera
frequenta a cena dos sonhos do sujeito. Em seguida, à medida que a análise prossegue,
a cólera corporifica-se e, à revelia do sujeito, encena-se em episódios breves de crises ele
cólera - especialmente diante da desorganização cios objetos em casa -, e de crises de
ciúmes, episódicas, relativas a seu parceiro. A cólera e os ciúmes, que emergem no pro-
cesso de análise, são considerados efeitos de desinibição em relação ao sintoma inicial.
São afetos contraditos para a menina que quer ser uma menina modelo e almeja o bem
dizer. Por isso mesmo podem ser situados, preferencialmente, na vertente do sintoma.
Conclui-se, então, que as soluções elo amor e da doação, bem como as identifica-
ções que destacavam habilidades das mulheres da família e, por isso, traziam certo re-
conhecimento ao sujeito, sào impotentes para apaziguar o humor explosivo e desrnedido
das mulheres, em geral. Tendo como suporte o amor de transferência, o sujeito acredita
em uma reconciliação com o Outro pela instalação do novo par mfte/filha, constituído
com o analista. Essa via, no entanto, em vez de mobilizar o sintoma - ou seja, "ensinar
a falar" -, acentua a exclusão característica da fantasia, cujos elementos já começavam
a se esboçar. O termo dessa análise é determinado pela ruptura do analista com a co-
munidade analítica em que eu desejava me inserir. Nesse momento, o sentimento que
predomina ~ e, também, inquieta - é uma certa tendência ao isolamento - reaparece,
portanto, uma das manifestações da inibição, como medida para evitar o turbilhão de
gozo próprio ao universo do feminino.

Opção Lacaniana n" 62 99 Dezembro 2011


Aprender a ler

Retomar a análise só foi possível a partir de um comentário fortuito 1 do segundo


analista, que fez reaparecer o saber relativo ao objeto olhar, imputado ao Outro. Esse
objeto, já assinalado como objeto da falta na relação com o Outro materno, ao se mostrar
do lado do analista, vai reinaugurar o inconsciente transferencial.
O que se destaca, desde então, é o olhar fascinado do pai pela filha, olhar que se
faz acompanhar, geralmente, de um sorriso silencioso. O "ser amada", do lado do pai,
desenha-se em função desse traço, que me convoca a ser a sua parceira em diversas oca-
siões, sobretudo quando se encontra só e se sente descontente, ou quando está ocupado
pela satisfação oral. O sorriso é acolhedor, porém obscuro, e faz enigma, o que me leva a
decifrar o sentido do valor particular da menina para ele. Esse valor assume proporções
da equivalência gir/ = falo, tendo-se em vista as circunstâncias particulares da morte do
próprio pai. Após o falecimento precoce de sua filha, meu avô paterno decide dar um
fim à sua vida. A passagem ao ato suicida, justificada pelo amor cio pai pela filha, uma
paixão mortal do avô por sua filha de dois anos, que acontece antes de ele saber da
concepção de uma segundo criança - esta criança, meu pai, nasce, portanto, órfão de
pai. O suicídio é o choque que ecoa no romance familiar do sujeito. O destino desse luto
impossível de suportar do avô, faz com que a filha deste pai, concebido entre a morte
da irmã e a morte do próprio pai, seja herdeira do drama. A filha torna-se para o pai um
objeto fascinante, um objeto fálico. E a identificação gir/=falo serve ele identificação e de
defesa, de um lado, contra uma certa mortificação e, de outro, contra a ausência do olhar
por parte do Outro materno.
Traçada a trama da história do sujeito, as primeiras fraturas da fantasia não cons-
tituíram tarefa fácil: implicaram uma separação com relação ao olhar fascinado do pai,
que recobria a ausência do olhar do lado da mãe e uma perda do lugar de exceção, que
fornecia segurança para enfrentar o campo obscuro do que me era oferecido, de um lado
por minha mãe e, de outro, por minha avó paterna. Esse lugar de exceção, por sua vez,
era o que desencadeava a hostilidade de outras mulheres, em geral. E constituía, assim,
o ponto onde "o que eu sou se afoga" - ou, ainda valendo-me da poesia de Caetano
Veloso, em uma de suas músicas - "meu Zen, meu bem e meu mal".
Experimento, na transferência, o medo de existir. No processo da análise, após de-
limitar o nível da inibição e o do sintoma, emerge, com efeito, o terceiro elo, o da angús-
tia. Cada sessão marcada prenuncia um encontro com o objeto fóbico - o medo é meu
companheiro no trajeto para a sessão, ao entrar no consultório, no divã. Tenho medo de
falar, medo de não saber o que dizer. Medo de tudo, como se eu tivesse cometido uma
falta muito grave, de que não tinha mais lembrança. Trata-se, mais precisamente, de um
fundo fóbico sobre todas as minhas ações, que, contudo, nfto me paralisa. E prossigo.

Opçfto L1caniana nº 62 100 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA OE LACAN HOJE

Uma angústia apreendida no plano da imagem e outra no plano da voz, ambas


concernentes ao Outro materno, modificam o corpo do sujeito, causando horror. A ex-
periência do sujeito concernindo o inconsciente e sua repetição estimula a atividade
onírica, sobretudo no tocante a sonhos de angústia, que se colocam a serviço da locali-
zação e ela consequente recolocação de seu modo ele gozo. É o momento da experiência
em que o analisante pode fazer a leitura de seus sonhos. A via do sonho, no meu caso,
desempenha um papel importante no processo de extração da libido do objeto, que se
faz sob transferência.
Esse trabalho sobre sonhos acentua o medo - que se materializa como medo de
ser engolida por um buraco negro, medo de restar só no mundo, medo de não sobrevi-
ver. O afeto que sobressai do inconsciente é o desânimo: uma vontade de nada fazer, de
nada dizer. Trata-se ele um período difícil da análise, que contrabalança com mudanças
subjetivas e realizações positivas e importantes. A cólera situa-se como uma resposta à
impotência do pai, uma resposta do sujeito ao pai, é um grito, frente à renúncia, deste,
a ser uma voz capaz de conter os excessos das duas mulheres - mãe e avó - sobre a
menina.
Um sonho: encontro-me à beira do buraco negro de um elevador; olho para o bu-
raco e, contudo, não tenho medo. O analista observa: "il nefaut pas rester au bord\ ou
seja, não fique à beira, tão próximo da borda. Escuto essa observação como um convite
a eu me introduzir, com o cuidado de me manter a uma boa distância em relação a esse
buraco - ou seja, em relação à opacidade que o semblante fálico contém, ocultando o
vazio. O brilho do objeto é o que escamoteia o vazio, o negro, o buraco negro.
Dois acontecimentos de corpo assinalam a perda do brilho do objeto. No primeiro,
ao atravessar a Pont Royal, mirando a Concorde, no horizonte, não vejo mais Paris como
antes. De repeme, este lugar considerado como uma das mais belas paisagens urbanas
do mundo, perde todo o seu deslumbramento e, aos meus olhos, sua beleza deixa de ter
o esplendor exuberante de antes. O desinvestimento escópico é correlato à inscrição do
vazio no objeto olhar. No segundo, já do outro lado da ponte, olho para a vitrine ele uma
padaria e, nela, a pequena tarte auxfraises não mais me convida ao deleite, pois perdeu
seu caráter irresistível. Isto parece incompreensível para alguém que, por anos a fio, ao
deixar a sessão de análise, se rendia a uma tortinha de morangos, a fim de recuperar o
afeto perdido. Depois desses dois acontecimentos, só posso guardar os doces de uma
festa no bolso: olhar o objeto desperta lembrança, resgata o paladar, mas não implica
mais a mesma vontade de comer. "C'est /e petit a dans la pocbe" ~ É o pequeno a, no
bolso -, sinaliza o analista. O objeto, antes aprisionado em sua face imaginaria, perde
o brilho; opera-se, então, a redução do real do gozo cio objeto escópico. Considera-se
que o imaginário é o corpo1, e o corpo é impensável sem o gozo, afirma Lacan. Freud,
em Mal-estar na civilização, observa que a beleza é a do corpo humano. O que se vê

Opção L-lcaniana nº 62 101 Dezembro 2011


na paisagem é a própria beleza. A interpretação do analista sinaliza a retirada do objeto
de seu esconderijo e a instauração, para o sujeito, da separação entre o valor de gozo do
objeto e seu valor de semblante.

A inexistência do desejo de saber

Uma frase destaca-se do texto de uma conferência proferida pelo analista e afeta
o corpo do sujeito: ele diz, "la voix va au-delà de l'objet". Desencadeia-se uma crise ele
choro, um choro interno, como um grito engolido. No mesmo dia, o corpo é invadido
por uma dor que se manifesta em todas as articulações e deforma até o jeito de andar. Na
sequência, um sonho me permite lembrar de um clube onde passei muitos dias de mi-
nha infância, sobretudo durante as férias, quando meus irmãos e eu éramos deixados lá,
pela manhã, e buscados no final da tarde, depois ela jornada ele trabalho de minha màe.
Esse clube situava-se em frente a um quarteirão de casas construídas por meu bisavô e
onde ele morava, assim como a maior parte de seus filhos. Um quarteirão de casas que
se comunicavam pelos fundos, já que todas desembocavam em uma grande área central.
Nessa área, havia uma horta e árvores frutíferas de todo tipo. Meus primos, irmãos
e eu brincávamos nesse espaço durante o intervalo de três horas em que o clube fechava
para o almoço. Eu passava perto do centro dessa área, sempre um pouco assombrada:
porque sabia que fora naquele local meu avô paterno tinha interrompido sua vida com
um tiro ele fuzil. É da morte no centro do "Jardim do Éden" que advém o desejo do
analista. À procura de um saber, o sujeito se coloca, desde muito cedo, na função de
um pesquisador incansável do que se encontra, para além do pai e da mãe, no limite do
dizer, no desejo que enlaça o trauma da morte com o amor.
Do outro lado da rua, a piscina representa o buraco negro, em função de uma
advertência constante da avó paterna, que sinalizava o perigo de rnorte por afogamento,
repetindo uma frase que soava enigmática: "A água exige os que sabem nadar, porque os
que não sabem já são dela". O espaço enorme do clube é decifrado e as zonas de perigo
delimitadas. Realiza-se 1 assim, um trabalho de organização em prol da vida. Integro-me
à equipe de natação. Aluna aplicada, alcanço certa harmonia na reprodução dos movi-
mentos, que não passa despercebida ao treinador. Então, este me solicita frequentemente
reproduzir algum tipo de nado para a observação dos demais alunos, o que me leva a
imaginar-me sendo vista - o corpo toma a forma do falo.
Os sonhos vão colocar em cena um corpo esvaziado e coberto por véus - o sem-
blante do falo - e o sujeito bem posicionado em relação ao olhar, ele forma a poder ver.
Um desses sonhos causa surpresa: crianças são atingidas por tiros de fuzil - "coup de
fusil" -, vindos de toda parte; os corpos gingam para se defender e acabam caindo no

Opçfo Lacaniana nº 62 102 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA OE LACAN HOJE

chão, um após outro. Pergunto-me: "Que é isso? Corpos de crianças caídos, atingidos por
tiros de fuzil'" E a resposta que se formula é: "Coup de foudre'" Essa resposta também
causa surpresa pelo inesperado da substituição - "coup de .fusi/" por "coup de .foudre".
Trata-se de algo inteiramente novo, sobre que não há saber. É preciso lidar com isso.
Se não há desejo de saber, isso se explica porque, na experiência analítica, não se
pretende achar alguma coisa. Minha trajetória de análise revela o lado idílico cio desejo
de saber - ou seja, uma obstinação que gera, de modo especial, inibição quanto ao sa-
ber. Assim, não se trata de descobrir um 'saber', mas de curar-se dele. E, para tanto, é
preciso inventá-lo sob a égide do 'fazer'. No meu caso, a obstinação em extrair um saber
do real promoveu o encontro contingencial com o coup de jàudre - acontecimento de
amor súbito, arrebatamento, trovão, semblante da fúria dos deuses ou tudo isso no modo
de gozo do meu olhar, único capaz de circunscrever a causa e o horror de saber.

Notas

Testemunho de passe apresentado nas Jornadas da EBP-SP: "O gozo feminino no século XXI". São Paulo, 26 de novembro
de 2011.
J,acan 1 J. (2007[1975-19761). O semináriu_. livro 23.- o sinthoma. Rio de Janeiro: JZE, p. 64

Opção L1caniana nº 62 103 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA OE LACAN HOJE

AMAR SEM COMPREENDER•

SÉRGIO DE CAMPOS (BELO HORIZONTE)


sergiodecampos@uol.com.br

Certa vez, ainda jovem, quando me dirigia ao analista, deparei-me com uma picha-
ção em forma de coração: Marcos e Rose. Reparei que o nome de Marcos estava pintado
com uma tinta com tonalidade diferente e borrava outro nome - João - que, originalmen-
te, fazia par na pichação amorosa com a cal Rose. Fiquei imaginando, meio admirado, o
quanto Marcos ousara ao dar conhecimento público, no muro, de que ele agora era o novo
parceiro de Rose naquele coração pichado. Por outro lado, fiquei pensando na humilhação
de João, sendo substituído, assim, por Marcos e, certamente, no coração de Rose.
Solidário a João, pus-me a conjecturar sobre as possíveis razões do romance entre
João e Rose ter fracassado. Àquela altura da vida me sentia sem perspectivas de futuro,
sem projeto, meio ridículo e patético. Experimentava uma realidade pouco favorável.
Penava no amor, considerando a amada sempre como extraordinária e, portanto, rece-
bendo dela sempre de menos. Mas, existe uma alíquota irredutível de gozo, uma parcela
mínima que não se pode declinar e que não pode ser sublimada, sob o risco de morte,
como bem assinalou Freud com o cavalo de Schilda 1 • Trata-se do traço sexual indomável
a serviço da dignidade do homem.
Considero essa passagem um apólogo de meu final de análise. Pode-se dizer a pos-
teriori que na entrada em análise antevi o final nesse apólogo do coração pichado. Em
comentário sobre meu testemunho de passe, Miller ressalta que houve uma mudança do
regime de gozo sem a troca do objeto de amor2 . Portanto, destaca-se que, se antes havia
um gozo João, na medida em que amava o pai e, em vão, tentava compreender a mulher;
já no fim da análise esse gozo migrou para o gozo Marcus, como aquele que ama uma
mulher sem compreender e compreende o pai sem, contudo, amá-lo.
Extraí de anos de minha análise um grão. De uma forma bem humorada, posso
dizer que, mediante o esvaziamento de sentido, uma montanha pariu uma semente.
Nomeei esse rescaldo analítico de passema: "Amar uma mulher sem compreender". Esse

Opç-Jo Lacaniana nº 62 105 Dezembro 2011


passema, sob o ponto de vista topológico, detém seu avesso pelos desígnios de "com-
preender o pai sem amá-lo". Para superar os impasses com a figura paterna foi preciso
perdoar o pai, pois 1 via de regra, ele não sabe o que faz. Para ir além do pai, foi preciso
compreender suas falhas, sem, contudo, amá-lo, já que amar o pai é estar submetido
ao ideal pela vertente do amódio. Em contrapartida, as tentativas de compreender uma
mulher são a justa razão dos mais árduos e extenuantes conflitos da convivência de um
casal. Portanto, o erro que promove esse descontentamento está calçado na concepçf10
de que é preciso compreender o amor. Contudo, amar sem compreender uma mulher,
não quer dizer que para amá-la é preciso ser confundido por ela.
O axioma analítico que extraí de minha análise, hoje resulta numa pragmática
que se destina a conviver melhor com uma fulana. Com efeito, "Amar uma fulana sem
compreender" é usar do sintboma com a possibilidade de amar a mulher como Outro.
O sintboma facultou-me a experiência de viver com uma mulher, junto e separado. Se,
por um lado, o sentido nos oferece a ilusão de estarmos juntos; por outro, a não relação
sexual promove a condição de estarmos separados. Contudo, apenas o acaso rege as
contingências cio encontro de um amor sem paradigmas.
O pensamento masculino está voltado para uma mulher. Assim, para achar um
homem, basta procurar por sua mulher, porque ela detém sua verdade 3 . A mulher na
vida de um homem é algo em que ele crê, mesmo porque ninguém pode acusá-la de
não ser autêntica. Porém, se ele tem sicranas ou beltranas, é porque ele não consegue
acreditar numa fulana só4. Assim, considero que é melhor crer, sem compreender uma
mulher. Portanto, crer significa amar uma mulher. Aludo à tese de Nicolau de Cusa so-
bre a Douta ignorância, que alega que o conhecimento de Deus só se alcança pela via
negativa, quando se descarta todos os conhecimentos anteriores5. Na impossibilidade de
compreender Deus, só resta crer nele. Se a mulher não-toda, entre a centelha e a opaci-
dade, não chega ser um Deus, ela é - como diz Michelet - uma religiào6 .
Com efeito, acreditar é crer em seres que podem enunciar algo como uma verdade
ou uma mentira. Crê-se em santos, em figuras do folclore e em fantasias. Lacan assinala
que o objeto da crença tem algo a dizer e que ele vem sempre precedido pela conjun-
ção 'em'7 . Se alguém procura um analista é porque acredita que seu sintoma possa dizer
alguma coisa, que ele porta um enigma a ser decifrado. A única fragilidade da crença
em uma mulher é a não relação sexual. Assim, é preciso estar amando para acreditar
em fulana 1 já que o amor vem em suplência à relação sexual que não há. Portanto 1 o
desafio do amor está em ser capaz de constituir a suplência da inexistência da relação
sexual. De omro modo, consideramos que devemos entender que o amor tudo crê, e
por consequência, o homem como amante justamente por crer em fulana, está abrigado
1

de qualquer engano. Destarte, crer não é nada mais do que a certeza subjetiva de que a
mulher se inscreve como Outro no plano da diferença.

Opção Lacaniana nn 62 106 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA DE LACAN HOJE

Em virtude de sua diversidade, a mulher, ao ultrapassar os limites do homem, faz


com que ele amplie seus horizontes. Se, por um lado, a mulher é o enredo da vida de
um homem, por outro, ela é a razão ele seus tropeços. Se a mulher é um sintoma para o
homem - e não o contrário-, cabe a ele a crença no sintoma e certo savoiry faire com o
amor, para que se estabeleça o enlace da parceria. Há quem diga que não se deve acre-
ditar em mulher, por causa da possibilidade de engano. Todavia, se toda mulher porta
o real em si como não-toda, não há engano quanto a amar uma mulher se ela se inclui
nas malhas do real. É preciso confiar no real. Com efeito, amar o real que está contido
na mulher, é amá-la sem levar em conta seus caprichos. É preciso amar uma mulher, in-
clusive assumindo compromissos, contudo, sem levar tão a sério as suas demandas. Crer
em uma mulher não é crer em tudo. Isto seria muito limitado e até perigoso. Contudo,
o amor pela mulher tudo crê.
Ao dar dinheiro a alguém não se contrai uma dívida. Pelo contrário, quem o recebe
é quem se torna devedor. Em geral, se diz que quem é amado contrai uma dívida, assim
como os filhos contraíram uma dívida para com os pais porque foram antes amados.
Entretanto, no que tange ao amor por uma mulher, é diferente. Como se sabe, amar é dar
o que não se tem. Portanto, o homem na qualidade ele amante e a mulher na de amada,
isto faz com que ele - ao dar o que não tem - estabeleça uma dívida para com ela. É
estranho dizer, mas nào adquirimos uma dívida ao sermos amados; contudo, contraímos
uma dívida quando amamos uma mulher. Aliás, é impossível saldar a dívida infinita para
com uma mulher não-toda que se ama, uma vez que dar o que se não tem, aqui significa
tornar-se devedor permanente.
Destarte, quanto mais o homem terna amortizar a dívida com mais amor, mais de-
vedor se torna. O interessante é que ele reconhece essa dívida apenas enquanto crê no
amor, visto que se paga sempre por aquilo em que se acredita - o sacrifício, o dízimo e a
oferenda verificam essa tese. Contudo, o amor é infinito enquanto dura, segundo o poeta.
Decretado o fim do amor - e os litígios de separações judiciais estão aí para provar-, o
homem rechaça seu status de devedor.
Aprendi na análise que para amar é preciso dizer, falar com uma mulher. A obra do
amor consiste em endereçar à mulher o elogio ao amor. Dizer do amor está ao alcance de
qualquer um, pois não se trata de nenhuma arte da retórica 8 . O privilégio da arte em si é
resultado do aca.so do talento, mas dizer do amor à mulher é acessível a qualquer mortal,
pois é fruto de um fazer, resultado de um investimento libidinal no objeto a. Entretanto,
no contemporâneo, quando a mulher abandona o amor narcísico e sua posiçào ele objeto
para elogiar o amor e o amante, ela acaba por deixar seu homem de saia justa.
Para amar uma mulher e que a obra do amor chegue a um bom termo, é preciso
ser um homem aplicado ao seu objeto a. Contudo, no elogio ao amor, o desempenho
deve ser mais importante do que o resultado. Porque, por mais que eu faça por fulana,

Opção Lacaniana nº 62 107 Dezembro 2011


não a tenho. Se um dia tiver a convicção de que ela já era minha há tempos, será sinal de
que jamais a tive. Pois, amar uma mulher não-toda é viajar pelo território desconhecido
do Outro, por um país sem cercanias no qual se desconhece a língua nativa. Mas o amor
não é apenas poesia, já que existe o ato de amor. No momento em que o homem toma
a mulher como objeto a, mediante a perversão polimorfa do macho, o estilo da pegada
faz existir um abismo entre o ato e a poesia 9 .
Há algo de extravio no gozo feminino, por não adotar a lógica fálica. Esse extravio
é resultado de um gozo não-todo que se revela para ambos, homem e mulher, como dis-
perso e enigmático. Não obstante senti-lo, a mulher pouco ou nada pode esclarecer sobre,
pois não há nele nada de compartilhável. Esse gozo está relacionado exclusivamente ao
amor; mas, por ser difuso e sem limites, não tem essencialmente conexão com o ato sexu-
al. Os enunciados paternos de que "toda mulher quer casar, inclusive as casadas", ou ainda,
ao responder ao cumprimento "como vai?", dizendo ao filho - "Como elas querem", deno-
tam a presença do desvario do não-todo e de como o pai escava submetido às mulheres.
Com uma mulher, o homem se prepara para cantar o amor ou a guerra, pois a bela
também é fera. Com efeito, a guerra que a mulher evoca não é fruto da inveja do pênis
ou do desejo insatisfeito, mas porque ela é a hora da verdade do homem. Portanto, ele
prefere enfrentar qualquer inimigo a uma mulher como suporte dessa verdade 10 . Meus
pais, separados e distantes um cio outro, permaneceram unidos no amor e na discórdia
por toda uma vida. na qual o gozo não-todo não estava excluído da história. Ambos,
já casados novamente - um em seu silêncio e outro em suas demandas - expressaram,
cada um a seu modo, que um amor inesquecível não foi suficiente para sanar os impas-
ses da não relação sexual.
Os mais prudentes aconselham que não se deve brigar com gente que usa saia:
padre, juiz e mulher. Se o poder dos dois primeiros é oriundo das insígnias fálicas, o
poder da mulher emana do gozo não-todo. Esse gozo escandaloso, excessivo e sem refe-
rências simbólicas que pudessem capturá-lo ou circunscrevê-lo, é algo que amedronta os
homens e torna alguns precavidos, sinal do desejo advertido ou do desejo impedido na
neurose obsessiva. Las mujeres alteradas nas vinhetas de .Maitena, cartunista argentina_,
é uma tentativa ele ilustrar esse desvario e o consequente temor que afeta os homens.
No amor, a mulher se entrega ao homem, não-toda. Ela entrega o seu amor de
maneira ilimitada ao Outro, para além de seu parceiro. Talvez, seja a razão das letras
das músicas e das poesias cantarem mais o desencontro no amor do que a felicidade da
união. Esse gozo feminino endereçado ao Outro - e não ao seu homem - é um gozo
suplementar ao gozo fálico que, por sua vez, a mulher também detém. Entretanto, o não-
todo como contraste é um atrativo ao falo e seu mistério serve de encanto que quero
penetrar, de maneira que a estranheza e a diversidade que deveria distanciar-me, crava
no objeto a o aguilhão do desejo.

Opção L:icaniana nn 62 108 Dezembro 201 ·1


O PASSE NA ESCOLA OE LACAN HOJE

Ao fim e ao cabo, a psicanálise permitiu-me saber que a mulher exige tudo do


homem para obter o nada, visto que a demanda de amor não é a demanda de sentido,
tampouco de compreensão. No amor, a mulher deseja que seu parceiro lhe ofereça o
dom do nada, na medida em que apenas ele responde de alguma forma a essa demanda
em que amar é dar o que não se tem 11 . Em suma, na qualidade de desconhecedor das
mulheres, a tese que defendo é a ele que, diante da impossibilidade de compreender
quem se ama, há que se crer na amada e no amor.

Notas

lexto inspirado nas passagens de Lacan,J. [1974-75]. Seminário 22: "HSJ"', aula de 21 de Janeiro de 1975, inédito, e Kierke-
gaard, S. (2007). Obras do Amor. Petrópolis: Editora Vozes
2 Lacan, J. (2009 [1970-71]). O Semínário, livro 18: De um disrnrso que não Jo.,;,se semblante. Rio de Janeiro: Jorge Z,1har.
p.122. Comentário acerca da passagem em Freud, S. (1910/1990). "Cinco lições de psicanálise''. ln Obras completas psi-
cológicas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: Imago editora, p.50.
3 Miller, J.-A. (2010). "Comentários sobre o testemunho de Sérgio de Campos-. Opção lacaniana, (58): 67.
4 l.acan, J. (2009 f1970-71]). Op.cit., p.34.
5 lacan, J [1974-75]. Op.cit., aula de 21/01/1975.
6 Mora, F. (2001). !Vicolau de Cusa. Sào Paulo: Edições Loyola, p.2085.
7 Michelec, J. (1859/1995). ~A mulher no casamento··. .ln la F-emme. São Paulo: Editora Martins Fontes, p.80.
8 Lacan, J. {1974-751. Op.cit., aub de 21/01/1975
9 Kierkegaard, S. (2007). "A obra do amor que consiste em fazer o elogio do amor'". Op.cit., p.401.
10 1..acan, J. 0985 [1972-731). O Seminário, livro 20: mais. ainda. Rio ele Janeiro: Jorge Zahar., p. 98.
11 Lllcan, J. (2009 11970-71})_ Op.cit .. p.33.
12 Miller, J.-A. (2010). los didnos detalles. /,os c11rsos psícoanalílicus dejacq11es-Alai11 ,Willer. Buenos Aires: Paidós, p.170.

Opção tacanian:1 nº 62 109 Dezembro 201 l


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

PORQUE UCAN ESTÁ VNO

ELISA ALVARENGA (BELO HORIZONTE)


e!isaalv@terra.com.br

Nesta homenagem a Jacques Lacan, por ocasião do aniversário de 30 anos cio seu
desaparecimento, celebramos, não a morte de Lacan, mas o fato de que ele esteja bem
vivo entre nós. Ao publicar, nesta ocasião, Vida de Lacan, Jacques-Alain Miller faz reviver
a pessoa de Lacan, resíduo do seu Curso de Orientação Lacaniana, onde nos transmite
o pensamento ele Lacan; o que não deixa de ser um paradoxo, já que o próprio Lacan
teria expressado o voto de que sua pessoa não fizesse mais obstáculo ao seu ensino
após sua morte'.
Sabemos que não é de hoje que nos anunciam a morte de Freud e da psicanálise.
Não apenas nos Estados Unidos, para onde, em 1909, Freud teria levado "a peste", mas
na própria França, não faltou alguém para difamar Freud e escrever O crepúsculo de um
ído/0 2 • Para os psicanalistas de orientação lacaniana, Lacan veio tornar Freud vivo e atu-
al em um momento em que os pós-freudianos corriam o risco de apagar a descoberta
freudiana do inconsciente. Desde 1914, Freud defendeu-se cios desvios que ameaçavam
a psicanálise, mostrando como os caminhos seguidos por Jung e Adler se afastaram do
seu 3• Sem nunca ter desistido de reformular a teoria psicanalítica a partir da experiência
recolhida pela clínica, Freud registrará novas ideias e conceitos até o fim de sua vida.
Lacan, cabe aqui dizer, não lhe ficou atrás. A ambição de seu ensino, nas pala-
vras de Miller, era repercutir o traumatismo freudiano. Se Freud escandalizou o mundo,
trazendo à luz a sexualidade infantil, e os psicanalistas, inventando a pulsão de morte,
Lacan pôde dizer que o real talvez fosse sua resposta sintomática à descoberta de Freud4.
Nesse sentido, ele não apenas ensinou-nos a ler Freud e recuperou a importância de sua
descoberta do inconsciente, mas introduziu o real como furo no simbólico, situando-o
no avesso daquilo que funciona. Dizer que o real é o sinthoma de Lacan, é dizer que
ele tinha uma afeição especial por aquilo que rateia, recolhendo, dos últimos textos de
Freud, o indomável da pulsão e os restos sintomáticos de uma análise. Assim 1 se Freud

Opção Lacaniana nº 62 111 Dezembro 2011


terminou sua vida deparando-se em sua doutrina com o impasse da castração, Lacan
interessou-se, sobretudo, de acordo com Eric Laurent, pela sexualidade feminina e pela
feminização determinada pela posição do analista5. Lacan foi além de Freud ao propor
aos psicanalistas de sua Escola aquilo que chamou de passe, incitando cada analista.
como analisante que fo( a trazer-lhe seu grão de sal, ou ainda, seu incurável, ou seja,
sua relação com a pulsão, com o real que o habita.
Jacques-Alain Miller nos explica porque não se trata de fazer uma biografia de
Lacan, pretensão incansável de Elisabeth Roudinesco, a ponto de ser apontada por nossa
colega Nathalie Jaudel como plagiaria de si mesma. Na psicanálise. diz Miller, a vida é
uma vida contada, e por isso um psicanalista não tem biografia. Não que outros a te-
nham: mas 1 para o analista há, para além da vida, o discurso do inconsciente. Seria, por-
tanto, interessante que, no lugar da biografia, um analista expusesse sua análise, como se
faz no passe. Lacan dizia que passava a vida fazendo o passe, e suponho que se referia
ao seu ensino, no qual sua enunciação ia cada vez mais além de si mesma, em busca de
uma resposta para a questão, inúmeras vezes colocada por Lacan, sobre as relações entre
o significante e o gozo. Ao escrever Vida de Lacan, Miller não faz um relato cronológico,
mas pesca, na viela ele Lacan, aquilo que nos interessa saber do seu desejo e seus avata-
res. Lacan, diz Miller, era muito vivo, alerta, sempre à espreita de oportunidades. Era um
pescador de homens, e sabia falar a eles para trazê-los para perto. Tal qual o persona-
gem de Woody Allen, Zelig, que ia se transformando, à semelhança de cada interlocutor,
Lacan ensinou-nos a encarnar o objeto, o semblante que convém, com cada um que nos
pede tratamento. Assim, penso que Lacan está vivo por intermédio dos semblantes que
destacou e nos transmitiu, verdadeiros operadores clínicos que orientam nossa análise e
nossa prática: o Nome-do-Pai, o falo, extraídos da teoria freudiana, mas também o objeto
a, os discursos, os nós, invenções lacanianas propriamente ditas.
Eu diria ainda que Lacan esrá vivo entre nós pela maneira como soube rebelar-se
contra o tédio e a repetição, depois de reconhecer sua existência. E aí temos o Lacan ini-
mitável, impaciente, ácido, irônico, obstinado. Homem de desejo incansável, inquieto. não
desistia, conta Miller, enquanto não conseguia o que queria. lacan foi buscar na filosofia,
na lingüística, nas matemáticas, na lógica, instrumentos para pensar o impensável, para
dizer o que ninguém jamais teria dito. Paradoxalmente, Lacan podia também ensinar aos
rebeldes de 1968 que Revoluçào significa voltar sempre ao mesmo lugar. Se prosseguia, a
despeito de tudo e de todos, como propõe Elisabeth Rouclinesco6, era o primeiro a pen-
sar contra si mesmo, colocando à prova seus próprios enunciados. Depois de querer ser
Outro apesar da lei, teria Lacan consentido em ser Outro como todo mundo?7
No seu último ensino, Lacan toma James Joyce como encarnação do sinthoma,
desabonado do inconsciente. Ele meciona, no seu Seminário 23, a ambição de Joyce de
ocupar os Universitários por trezentos anosª. Miller se pergunta se a simpatia de Lacan

Opç~o Lac:aniana nº 62 112 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

por Joyce iria ao encontro do sonho de Joyce de acabar com a literatura, o que, para La-
can, seria acabar com uma certa psicanálise 9· Miller chega a dizer que, se Lacan o insta-
lou na posição de redigir seus Seminários, era porque Miller via nele uma faceta: "depois
de mim, o dilúvio" 1º. Lacan inventou o neologismo ;'lituraterra" e deslocou a psicanálise
para o registro do Um, do sinthoma, para além de todo o blábláblá do sentido, mas Miller
não deixa de dizer que ainda chegará o dia em que haverá na Universidade lacanianos
como há joycianos, onde ser lacaniano vai querer dizer ser amante do texto". No en-
tanto, o traço singular do dizer de lacan, sempre amortecido pela "dizência" 12 , também
toca, de outra maneira, o Outro. Pois Lacan sabia fazer ouvir sem dizer, nas entrelinhas,
de modo a ser ouvido apenas por aqueles que devem ouvir.
Quem seriam, então, os que devem ouvir? Posto que estou entre os que não tive-
ram o privilégio ele encontrar Lacan "ao vivo", penso que são aqueles que fizeram a ex-
periência do inconsciente e que, ao deparar-se com seus restos sintomáticos, tornam-se
parceiros ele seu sinthoma, fazem bom uso dele. A partir da minha experiência, eu diria
que é impossível ler Lacan sem passar por uma análise, a não ser que se o leia como um
universitário. Para os que fazem parte, de algum modo, de sua Escola, Lacan está vivo
em seus Escritos e Seminários, e na transmissão que Miller faz deles. Também está vivo
na transmissão que faz cada um do que pode subjetivar do seu ensino, na sua prática e
na inquietação que o toma diante do real de uma clínica que, muito além de qualquer
indicação ou contra-indicação da psicanálise, se serve do ensino de Lacan como bússola.
Lacan está vivo porque nos ensinou a nos orientar pelo real, acreditando poder mudar
o rumo das coisas ao seu redor.

Notas

Cf. entrevista de Jacques-Alain Miller com Martin Quenehen. no programa de rádio Matin d'Été, em 10/08/2011, e Lacan,
J. /15/01/1980]. " D111tre manque ·•: "S'i/ arríve que Je m'en ai/e, dites-vous q11e c"est afin d'ê/re Autre enjin ".
2 Cf. Onfray, M. (2010). le crépuscule d'1111e ido/e. Paris: Grassct.
3 Cf. Freud, S. 0974). "A História do Movimento Psicanalítico", in ESBOPS!~ vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago.
4 Miller, J.-A. (2009). Perspectivas do Seminán·o 23 de Lacan. O Sinthuma. Rio de Janeiro: Zahar, p.17
5 Laurent, E. (2011). "Lacan analisante". Opção Laca11iana. (60): p.68.
6 Cf. o título do livro publicado por Elisabeth Roudinesco por ocasião dos 30 anos da morte de Lacan: Laca11 cnvers et
con/re tou/, traduzido em português como Lacan, a despeito de tudo e de todos. (201 l). Rio de Janeiro: Zahar.
7 Cf. Lacan, J. (15/01/1980]. "L'Autre manque ": "On peu/ se contenter d'êtrc Aulre comme tout /e mo11de_. aprês une vie
passée à vo11/oir /'être malgfP la Loi k.

8 l.acan, J. (2007 [1975•76}). O Seminário, livro 23: O Sinlhoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.16-17.
9 Miller, J.-A. (2009). Perspectivas do Seminário 23 de Laca 11, o Sinthoma, op. cit., p. 142.
10 Miller, ).-A. (2011). Vida de Lacan. Silo Paulo: Litur.uerra, p.18.
11 Miller, J.-A. (2009). "Nota passo a passo". in O Seminán'o. livro 23: o Sinthoma. Op. cit., p.214.
12 Cf. Miller, J.·A. (2009). Per.1pecti1:as do Seminário 23 de J,acan. o Sinthonw. Op. cit., p.9.

Opç-do Lacaniana nº 62 113 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA DE LACAN HOJE

Ü OBSCURO OBJETO DO TEXTO

PASCALE PARI (PARIS)


pfari@bboxfr

"Eu sou um traumatizado do mal-entendido. Como não me acostumo com


ele, me canso para di.ssolvê-lo. E por isso, eu o alimento. É o seminário perpétuo.''
Jacques lacan, "O mal-entendido"

"Impenetrável, obscuro, ilegível..." Jacques Lacan não para de atrair mal-entendidos


imbecis e duros. E depois, têm os incondicionais, os mordidos por seu texto, denso, ci-
zelado, com sonoridade inimitável. Aflcionados cegos? Sectários impertinentes?
Meu encontro com o texto de Lacan marcou um corte na minha existência: houve
um antes e um depois. Um real encantamento. Depois, eu certamente teria precisado
renunciar um pouco ao encanto, mas também de-cantar1• Minha leitura se matizou 1 e a
brecha é sempre palpitante. A contingência virou o necessário: a leitura de Lacan mudou
minha vida e permanece, para meus ouvidos, insubstituível. "Amor", dir-se-á. Sem dúvi-
da, mas ele um gênero particular: como explicar isto?
O próprio Lacan repetia incessantemente que seus escritos eram difíceis. A que se
deve esta obscuridade tão frequentemente criticada? Imprecisão? Incoerência? Inconsis-
tência? Trata-se de seu estilo ou do objeto com o qual ele lida? Ou ainda, uma resistência
oculta do leitor tocado em sua intimidade? Partamos, de preferência, de uma hipótese
racional: a obscuridade em questão se trama nas sombras particulares de cada um. Quais
sào, para mim, as figuras? Como eu as contornei, até mesmo recusei? Que usos pude
fazer delas'

Arcanos preliminares para uma leitura possível

Não era, portanto, a primeira vez que eu abria seus Escritos; raras incursões ti-
nham inicialmente me confortado, com a ideia recebida de que era prolixo e inutilmente

Opção Lacaniana nº 62 115 Dezembro 201 l


complicado. Para que minha leitura fizesse ato, ela teve de encontrar lugar em condições
subjetivas precisas. Após alguns anos de análise, quando eu apenas começava a balbu-
ciar que alcance os significantes "fala", "linguagem" e "psicanálise" tinham para mim,
"Função e campo ... " me abriu um mundo.
Para além dos clichês sobre o estilo cerrado e sinuoso ele Lacan, que surpresa
descobrir que suas chicanas estavam incrustadas numa construção de um rigor e de
uma precisão inacreditáveis! Eu entrevia que cada uma tinha sua razão de ser no fio de
seu propósito: qualquer que fosse o número e a extensão delas, o estilo é tudo menos
loquaz. Eu não estava em relação com um texto caprichoso, mas em relação com a
busca obstinada do que faz a particularidade do humano, do que o causa. 'O que falar
quer dizer' não tem nenhuma medida comum de um sujeito para outro, o 'dizer' é irre-
dutivelmente singular. O inaudito era que Lacan fizesse disso a base de sua arquitetura,
destacando referências estruturais e princípios operatórios para esta prfüica - única - da
fala que é a praxis analítica.
Ali, tomou corpo minha suposição de saber, minha transferência em relação a
Lacan.

Rochedos/colheitas' do saber

Uma vez a transferência instalada, tentações diabólicas espreitam o leitor: se agar-


rar aos seus aforismos cortantes, luminosos, aqueles que gostaríamos (após um trabalho
árduo) de ter, enfim, pegado de uma vez por todas; ou ainda, fazer uma síntese deles
(fosse ela dialética) do tipo universitário. Marcel Proust pinça muito bem e.sta doce ilusão
em acreditar que a verdade se colheria passivamente, tal uma coisa "depositada entre as
folhas cios livros como um mel todo preparado para os outros [... ]. Que felicidade, que
repouso para um espírito cansado de buscar a verdade em si mesmo, de se dizer que ela
está situada fora dele'', e que ela poderia se deixar "copiar sobre um cliário''3• Acreditar
que a verdade revelada estaria depositada em um livro é, além cio mais, desembocar na
idolatria (que frequentemente se entende bem com o prêt-à-pense,).
Se da aventura o leitor rebaixa o texto aos seus enunciados, aos significantes-mes-
tres, aos ritornelos cristalizados, ele "se embaraça - conclui Proust - em sua forma intac-
ta, que, no lugar de ser para ele um elemento assimilável, um princípio ele vida, é se não
um corpo estrnnho, um princípio de morte". O saber se presta à lógica, ao materna, não
à soma - salvo se for para acabar com ele, ironiza Lacan. Pode-se, efetivamente, alinhá-lo
por quilômetros sem que ele tenha utilidade nenhuma: "O saber vale justo quanto ele
custa, ele é custoso, ou gustoso, pelo que é preciso para tê-lo, empenhar a própria pele,
pois que ele é difícil, difícil [... ] - menos de adquiri-lo do que ele gozar dele. [...] Pois a

Opção L1caniana n" 62 116 Dezemhro 2011


O PASSE NA ESCOLA DE LACAN HOJE

fundação ele um saber é que o gozo cio seu exercício é o mesmo do ela sua aquisição. L..]
Não há informação que fique, senão na medida de alguém formado no uso:"

Antídoto contra a idiotia e a preguiça

... lizmente, a bela é manhosa: com sua complexidade, suas sinuosidades, o texto
de Lacan é um antídoto poderoso contra a idiotia. Seus "argumentos - observa Jacques-
-Alain Miller - têm sempre alguma coisa ele singular, de retorcido"; ele mina "a posição
do autor como aquele que sabe o que diz de tal maneira que perdura esta dimensão de
suposição, para que, em lugar de verdade, haja precisamente este saber suposto, e não
o autor idêntico a si mesmo". E ele acrescenta: "Lacan pensou continuamente contra
Lacan." 5
Ali onde eu esqueceria que a iluminação não está numa fórmula mágica, mas num
clarão (fulgurante), que ela bagunçou o que eu acreditava saber, no instante brevíssimo
ele abertura no qual, de repente, as coisas se reordenam de outro jeito, o texto me pro-
voca, ele me exorta ao de-lírio 6 e a reler de novo e - na minha vez - contra mim.
Ali onde eu gostaria de me fechar com o mesmo, com a miragem da identidade
de si para si, me abrigar sob a proteção ele um bem-pensar lacaniforme, de um sentido
psicanalítico comum, fui infalivelmente desencaminhada e atraída pelos conceitos em
permanente revisão. Lacan nos entrega generosamente seu métoda7: pensar "contra um
significante. [. ..] Apoia-se contra um significante para pensar"; levar "os conceitos origi-
nais necessários para atacar e ordenar o novo campo", que ele deslinda depois de Freud;
tomar apoio no enigma - cada um de seus escritos é um "texto problemático, de tal
modo que ler Freud [e Lacan] é reabrir as questões".

Tratamento radical da angústia

Em virtude dessas propriedades absolutamente originais, a leitura de Lacan consti-


tui o melhor ansiolítico cio mundo, longevidade incomparável, poder de açào que desafia
toda adaptação, benefícios secundários incalculáveis (mas, sem perigo para o organis-
mo) e, principalmente, conformação sem igual a cada caso particular.
Sim, o texto é "desangustiante". Porque ele não é um monólito. Porque ele pre~erva
sua própria incompletude. Porque ele é eminentemente articulado ao redor da falta. É,,
aí mesmo que ele põe de mãos ao alto todos os produtos de consumo, que visam, pelo
contrário, arrolhar, ocultar de uma só vez a falta e a angústia que resulta desse preen-
chimento.

Opção Lac:miana nº 62 117 Dezembro 2011


Um tratamento radicalmente Outro, logo: não para erradicar ou tamponar a angús-
tia, mas para saber quem ela é e como fazer com essa borda que assinala a impossível
reconciliação entre o desejo e o gozo. Em perpétuo devir, a elaboração de Lacan não
obtura o furo no saber, ela traça sua borda', sempre movediça.
Pelo fato desse deslocamento ininterrupto - observa ].-A. Miller - "a intenção de
formalização", presente ao longo de todo seu ensino 1 é "continuamente frustrada por
uma inconsistência remanente e persistente" 9• Por um lado, Lacan talha e afina as refe-
rências estruturais necessárias para ler a clínica e responder ao desafio ele uma prática
digna cio inconsciente e da causa analítica. Por outro lado o saber se apresenta sempre
1

em um impasse: por mais refinadas que sejam suas construções, elas vacilam diante de
um real que são impotentes para reabsorver. Longe de retroceder, Lacan se serve dessas
construções de saber para continuar a avançar.
Como vai aí todo tipo de material, a consistência de seu texto não se deve apenas
f1 sua coerência interna, deve-se também à resistência que ele nos oferece - da mesma
forma que os acessórios, desvios e digressões que fazem o estofo da fala cio analisante.
Veja-nos aí, reenviados a uma questão que atormentou muito Lacan: como formalizar
uma consistência que não fosse imaginária e que conviesse ao real? 10

Se des-alfabetizar

Mas, o que ele nos quer fazer entender, insistindo sobre o fato de que um escrito
não é 'para ser lido'? Primeiramente, que ele recusa sacrificar à compreensão: "Vocês não
entendem estenescrita [stécriture]. Tanto melhor, será uma razão para que a expliquem."
Em seguida e principalmente, que a arte analítica não jaz no 'ler', mas no 'se ler': trata-se,
mais exatarnente, 'do que não se lê' na fala, do que, nela, se lê mal, de travé0, ou somente
nas entrelinhas. "É a título de lapso que aquilo que significa alguma coisa, quer dizer,
que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes [:] ao que se enuncia
de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa."ll
Pois - será preciso lembrar? - a interpretação não opera pela compreensão, mas
pelo equívoco. Se uma existência humana se deve, no final das contas a pouca coisa,
dito de outro modo, a alguns significantes maiores, reabri-los ao equívoco, à contingên-
cia e ao absurdo cio fora de sentido é permitir ao sujeito jogar com eles, reintroduzindo-
-os em um discurso, gozar deles de outra maneira, separando-se deles um tanto, seja de
um pouco de seu peso, da ficção que eles fazem consistir. Assim, ter a chance de tocar
o real do sintoma 1 observa J.-A. Miller, implica passar "da escuta cio sentido à leitura do
fora de sentido." 12
A exemplo de Joyce, Lacan encaixa, força os significantes, os decompõe e recom-

Opção Lacaniana n" 62 118 Dezembro 2011


O PASSE NA ESCOLA DE LACAN HOJE

põe, mostrando-nos "como a linguagem se aperfeiçoa quando se trata de jogar com a


escritura." 13 Prestar-se ao jogo sem abandoná-lo diante do enigma do texto, é aproveitar,
com felicidade'\ uma grande lição de leitura. Desentupimento de ouvidos e higiene
mental garantidos. A cada vez tocante, essa visada sobre 'o que ler pode querer dizer' é
também um gozo, já que esta, segundo Rolancl Barthes, deve-se às falhas, às rachaduras
do texto, ao 'desconforto' do leitor diante de um escrito que "põe em crise sua relação
com a linguagem" 15 - que o faz lembrar o quanto sua relação com a linguagem nunca
deixou de ser crítica, no mais íntimo de sua língua.

Obscuras claridades, de uma consistência a outra

Ad augusta per augusta ... " Como todo escrito digno deste nome, o texto ele Lacan
não se penetra pela força 1 só fala se o interrogamos, entrega seus segredos apenas à
solidão do leitor abalado por uma busca singular. Impossível conhecê-lo pela simples
exterioridade.
Para Lacan 1 "a originalidade, a contorção própria de seu pensamento foi durante
muito tempo uma espécie de maldição. Então, I. .. ] ele fez uso dela, principalmente a re-
colocou e utilizou o que era sua obscuridade para elevá-la a um paradigma." 17 Analisante
de seu ensino, durante trinta anos ele se serviu de sua própria obscuridade para incisar,
imprensar a opacidade do gozo que agita o falasse,:
Minha leitura de seu tex10 se tece com o trajeto de meu tratamento. No mundo
aberto peh1 "função e campo da fala e da linguagem", foi-me preciso situar 'Acção' e
'canto' em um lugar mais justo e me render àquele do i-mundo (im-monde) 18 . Renunciar
à_fi:>t.âo de um discurso pleno, para aproximar "os limites, os pontos de impasse, de sem-
saída" da fala - nào tem consistência que valha sem furd 9 • Recobrir com tinta as bordas
do inarticulável para suportá-lo.
Se as virtudes encantadoras de sua escritura ficaram comprometidas, a força de
sua enunciação ainda me entusiasma, e a maneira que o silêncio ressoa nela sempre
me toca. Resta esta prenda, bem delicada, sem parar de repetir, alegre também: ser um
pouquinho mais a mesma para admitir e confrontar suas obscuridades e seus enigmas.
Entretanto, uma coisa é clara: a leitura é um exercício solitário, mas não autista; ela
não se inventa e:x nihilo, a despeito da leitura que outros puderam fazer, negando seus
comentários e interpretações. Sem o começo do meu trabalho na Escola da Causa Freu-
diana, este lugar de endereço que escolhi para seu rigor, sua precisão e sua preocupação
pelo mais singular, minha leitura não seria a mesma; talvez ela nem fosse.
O texto de Lacan interpreta o leitor que consente em engajar-se nele; confrontado
com sua própria obscuridade, a do real sem forma, inarticulável que o habita, está a

Opção l.acaniana nº 62 119 Dezembro 2011


contrapelo de seu ;;eu não quero saber nada disso" que ele arranca, do inominável. um
fragmento de saber. Desses trapos sem igual que ele teria podido extrair de sua análise,
ele terá matéria para ''reinventar a psicanálise\ para que ela possa durar 2º.

Texto traduzido por Ana Paula Sartori Lorenzi

Notas

N.T. Jogo de palavras envolvendo os verbos: décanter = decantar = clarificar. depurar, purificar, depositar (como em
português); e, canter = galope de ensaio de um cavalo de corrida.
2 N.T. No original: É(-)cuei/(/e)s, palavra com a qual a autorJ faz o seguinte jogo de palavras: érneil = rochedo; recife:
banco de areia: um obstáculo perigoso. Cueille = colho (1' pessoa do singular do presente do indicativo do \·erbo colher);
cueilles = colhes (na 2' pessoa do singular); cueil/ette = colheita.
3 Proust. M. (1988). Sur la /ecture. Arles: Actes-sud, p.37-38. 40 & 41.
4 lacan, J (1985 11972-73)). O Semh1ário1 livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro Jorge Zahar, p.130-131.
Miller, J-A. (2009). Semblants et sinthome. Paris: ECF, p.17 e Miller, J.-A. (1985). Entretien sur le Séminaire awc François
Ansermel. Paris: Navarin, p.44 & 64-65.
6 N.T. Seguinte jogo de palavras: dé-/ire = délire: delírio; dé-lfre: de-ler.
7 lacan, J. (2005[1975-761). LeSéminaire. !iure XXlll. f,e sintbome. Paris: Seuil, p.155. E Lacan, J. (1981 11955-56]). O Seminá-
rio. livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.123.
8 CJ especialmente Lacin, J (2003). "lituraterra . ln Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Ed., p.18.
9 Miller, J-A. (1985). Op.cit., p.44-45.
10 Cf especialmente Lacan, J 11974-75]. Seminário 22: ·'RSI". Inédito.
11 Cf Lacan J (2003). "Posfácio ao Seminário Ir. Op.cit., p.505 & lacan. J 0985 11972-73]). Op.cit., p.51-52.
12 Miller J-A. (junho, 2011). "Lire um symptômc". Mental_ (26):57.
13 Lacan, J. 0985 [1972-73]). Op.cit., p.51.
14 N.T. A autora faz um jogo de palavras com bon-beurt: bonbeur = felicidade; bon hcurt = bom encontro; beurt = choque;
encontrão; topada.
15 CJ Barthes R. (1973). Leplais(rdu texte. Paris: Seuil. Coll. Poirns, p.20-23. especialmente.
16 N.T. ~A resultados sublimes por vias estreitas". Cf Dicionário Koogan l.arousse. 0979).
17 Miller, J-A. 0985). Op.cit., p.25.
18 CJ Lacan J (2003). ·•o aturdito". ln Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Ed., p.461. E ';A terceira . nesta edição de Opção
Lacaniana.
19 tacan. J (1985 !1972-73)). Op.cit .. & Lacan, J. 11974-75]. Op.cil .. especialmente a liçilo de 11 de fevereiro de 1975. in Orni-
car?, (4):98.
20 Cf Lacan J (junho. 1979). "Conclusions''. IX CongrCS de !'((cole freudicnne de Paris sur La Transmission. ln l.ettres de
l"EFP, (25\219.

Opção Lac.aniana nº 62 120 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

LAcAN LóG1co

NORA PESSOA GONÇALVES (SALVADOR)


noragoncalves@11nl.com. br

"Eu nunca busquei ser original, busquei ser lógico."


Lacan, A Terceira, 1974.

Lacan lógico, um traço

Nesta homenagem a Lacan feita por Opção Lacaniana trinta anos após sua morte,
quero trazer um traço singular de um psicanalista que esteve à altura de sua época, que
viveu e apreendeu plenamente o que era sua contemporaneidade.

O que é ser lógico?

A palavra lógica vem do grego clássico logos - que quer dizer palavra, pensamen-
to, ideia, argumento, razão lógica, et cetera. A lógica foi definida como o estudo formal
sistemático dos princípios ele inferência válida, portanto considerada uma ciência for-
mal, - um conjunto de axiomas e regras de inferência que representam formalmente o
raciocínio válido.
Pode-se remontar a Aristóteles, às raízes da lógica. Por 2000 anos ainda existe o
modo aristotélico de pensar a lógica embutida em nossa linguagem. É a chamada lógica
clássica. A lógica moderna é atribuída a Frege, já no século 19, e outros. Eles modificaram
a lógica, diferenciando-a de Aristóteles, criando símbolos e operações que constituem
as proposições, como o f(x), por exemplo, a função proposicional de Frege, que teve a
preocupação ele formalizar as regras de demonstração do raciocínio e criou a lógica de
predicados. O período atual da lógica começa com Russel e Whiteheacl 1 . Muitos contri-
buíram para o progresso da lógica, inclusive temos grandes nomes ainda vivos, como o
brasileiro Newton da Costa, criador da lógica paraconsistente que admite a contradição
e que deu uma contribuição original à lógica deôntica.

Opção Lacaniana nº 62 1Z1 Dezembro 2011


A lógica provém da filosofia, como filosofia da linguagem, embora tenha se ligado
à matemática. Ela nasce de se pensar o raciocínio na linguagem escrita e falada, o ar-
gumento, a validade, o verdadeiro e o falso, as evidências etc. Em tudo que diz respeito
à nossa linguagem, escrita e falada, está a lógica. Podemos dizer que para Lacan é um
modo de raciocínio, de tratar as estruturas em um espaço, para que hajam as operações
de mudança de discurso.

O que é, então, existir como lógico?

Falar do Lacan lógico obriga-nos a referir um traço singular desse psicanalista


que 'não buscava ser original, buscava ser lógico' e que, no entanto, teve a originali-
dade de, desde o princípio de seu ensino, em 1953, introduzir as categorias de Real,
Imaginário e Simbólico, tomando suas posições na psicanálise, de modo a pensar as
coisas do mundo. São termos que emergem para e pelo discurso analítico. Para Lacan,
R, S e I, isto é o número Um. Um aparelho de linguagem matemática. Mais tarde, La-
can coloca a categoria de Real para tratar do sintoma, Real este que é definido como
impossível e inalcançável. Aquilo que nào anda, e a psicanálise se ocupa do que nào
anda, como ele diz em sua Conferência de imprensa em Roma, em outubro 19742, 21
anos depois de ter introduzido suas categorias na psicanálise. Esse homem que buscou
ser lógico também introduz a noção de espaço na psicanálise junto com suas categorias
de R, S e I, cujas especificidades referiam-na ao 'verbo'. O espaço em Lacan está nos
discursos, nos nós, faz parte de sua teorização da psicanálise. Como ele diz, ainda na
"Terceira": "a extensão que supomos ser o espaço, aquele que nos é comum, a saber,
as três dimensões, por que diabos isto nunca foi abordado por meio do nó? [... ]o nó
borromeano reúne essas famosas três dimensões que imputamos ao espaço L.l Um
nó borromeano se produz exatamente quando o situamos nesse espaço. [...] no real, e
não é qualquer coisa, a própria vida, se estrutura a partir de um nó"3. Lacan diz que
é a partir daí que se capta o que há de mais vivo ou de mais morto na linguagem, a
letra, e é a partir dela que temos acesso ao Real.
Com o desejo de ser lógico, Lacan se apossa do modo lógico de tratar as estruturas,
as expressões, as proposições e se utiliza destas dando tratamento a questões da experi-
ência analítica. Com isso formalizou a experiência analítica. Além de se ter utilizado de
distintas lógicas, introduziu mudanças nas lógicas utilizadas. Isto pela própria especifi-
cidade da psicanálise lacaniana, tão singular, tão anti standard. Traço marcante esse de
Lacan. Caminho buscado e percorrido por ele, evidente em todos os seus Seminários e
em seus Escritos, nos quais se verifica, por sua leitura, que a própria noção de incons-
ciente na psicanálise depende dessa dimensão lógica.

Opção Lacaniana nº 62 IZZ Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Como opera Lacan com a lógica

Seguindo as definições da lógica procuraremos entender esse modo de Lacan ope-


rar na psicanálise, as condições para querer ser um lógico - sair da clínica do conflito,
freudiana, para uma clínica formalizada, e a amplitude que com isso deu à experiência
analítica, passando do plano ontológico (do ser) para o plano óntico (da existência) - da
forma S é P para a forma do sintoma, f(x), da função proposicional para o nó borromea-
no1 das fórmulas para a topologia, fizeram com que ele se utilizasse de diferentes lógicas,
assim como de diferentes lógicos: Aristóteles, Frege, Peirce, Quine e outros, a cada mo-
mento de teorização em seu ensino, uma fundamentação para o que pretendia elaborar.
Passou de uma lógica binária para uma lógica quaternária, trabalhou com quantificado-
res nas fórmulas da sexuação, modificou o quadrante de Peirce, saiu ela lógica deôntica,
usa a lógica modal alética, a lógica intuicionista etc.
Se o sintoma em Lacan vem elo Real, se o Real tem afinidades com o que não anda
no sintoma, então a lógica que ele vai buscar para a experiência analítica, para dar conta
dessa experiência, é para alcançar o Real. Com isso chega ao impossível como uma mo-
dalidade lógica. Com a sustentação lógica e a topologia, Lacan foi avançando, pois ambas
lhe abriram novas perspectivas.
O que é um psicanalista ter essa dimensão nova, do real do sintoma? E o que isto
tem a ver com o materna? Podemos falar do Real do matema? Pois se há um materna
para representar o Real, o Real não se alcança. Lacan queria o materna, provavelmente
porque desejava - além de maternizar a psicanálise - a transmissão direta. Um modo de
raciocinar, particular a um indivíduo e que pudesse transmitir sem palavras a estrutura
e operações do pensamento. Uma sintaxe reduzida ao mínimo. Transmitir para muitos e
ao mesmo tempo um mínimo a que se pôde reduzir o que se quer transmitir.

A formalização

Um instrumento evidente que sustenta o psicanalista em sua prática. É uma carac-


terística do ensino de Lacan e de seu modo de praticar a psicanálise querer a formaliza-
ção e com isso ampliar, abrir, abranger o campo da experiência analítica. 'A formalização
matemática é nosso fim, nosso ideal [... ], é a escrita, mas que só subsiste se eu emprego,
para apresentá-la, a língua que uso', disse ele no Seminário 204·
A formalização é essencial, presta-se a argumentar, porém na psicanálise há uma
parte do saber analítico que fica fora da formalização do materna e Lacan recorre aos
nós borromeanos.

Opção l.acaniana n" 62 123 Dezembro 2011


O impasse de formalização

É como um impossível, um impasse de formalização que Lacan define o Real. Mas


é um momento específico de seu ensino, pois esse impossível ainda tem relaçào com a
ordem simbólica. Tomemos o denominado por Jacques-Alain Miller 'derradeiro Lacan', e
tomemos o necessário cio sintoma. Se seguirmos a lógica modal alética trazida por Lacan,
o necessário é concebível pela ordem simbólica. 'Ê um não cessa', como diz J-AM em
"Coisas de fineza", 'assegurado por uma fórmula, sem efeito de verdade variável'. Um não
cessa de escrever-se. E o Real como impossível deduz-se daí, como o avesso da ordem
simbólica, se inscreve no negativo, 'não cessa de não escrever-se'.

Do impossível à contingência

E o Real que não é deduzido a partir ela ordem simbólica? Esse que Lacan cerca
em seu último ensino? Miller o define a partir da contingência. 'Se abstrairmos a ordem
simbólica descobriremos a dimensão da contingência'. 'O Real é o que cessa de ser im-
possível, é o que cessa de não escrever-se' 5. A fórmula milleriana: 'o real é bem mais
contingente cio que impossível', aproxima o real do inconsciente. Isto fala do modo de
surpresa através da qual o inconsciente se manifesta. Nesse ponto a suposição endereça-
da ao analista, como uma manifestação do inconsciente em ato, também é contingente.
Uma contingência que vai se inscrever na análise por meio do significante que faz supor,
fazer seu percurso como necessário, e depois das operações analíticas, lógicas, voltar a
ser contingente. O efeito surpresa cio qual falava Freud, diz respeito a essa contingência
do não se sabe o que se enganchará no analista. A surpresa é outro nome para a con-
tingência.

Notas

Noli. J. e Hohatyn, D. (1991). Lógica. São Paulo: McGraw-Hill e Makron Books do lir.tsil Edi1ora.
2 Lacan,J. [outubro, 19741. "Conferência de imprensa em Roma·'.
3 Cf. tradução publicada neste volume de Opção Lacaniana.
4 Lacan. J. 0985 [1972-73]). O Seminário, livro 20: mais, ai rida. Rio de Janeiro· Jorge Zahar.
5 Miller. J.-A., Perspectivas dos E-:critos e Outros escritos de Lacan. Z.1har editores. RJ, 2011.

Opção Lacaniam nº 62 124 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UCAN E A ETOLOGIA

CRISTINA VIDIGAL (BELO HORIZONTE)


crvidigaf@gmail.com

Para compreendermos a relação de Lacan com a etologia precisamos inseri-la em


um quadro maior de referências que ele utiliza no início de seu ensino. Podemos marcar
a este respeito a leitura dos trabalhos de Saussure sobre linguística, os Seminários de
Kojéve sobre Hegel e a convivência com o movimento surrealista. Destacamos também
três questões que Lacan se esforçará para elaborar: como se constitui a realidade para o
.sujeito, como compreender o Eu no qual o sujeito se reconhece, e como o sexual advém
para ele.
A etologia funciona como um contraponto para estas questões, já que Lacan não
tem interesse em dialogar com a psicologia de sua época. No Seminário sobre As Psi-
coses1 Lacan fala do etológico como um conjunto de comportamentos do indivíduo,
biologicamente falando, nas suas relações com o meio natural. Ele traz isso para afirmar,
em contraposição, que tudo no comportamento humano está submetido a anomalias tão
profundas e paradoxos tão evidentes, que é preciso saber o que introduzir aí para dar
tratos à bola.
Se em Hegel encontramos a dialética do desejo a partir da ideia que o desejo do
homem é o desejo do Outro, e no surrealismo temos a célebre frase de Rimbaud: "Eu
é outro", a etologia oferece a Lacan um contraponto nesse lugar onde aparentemente
os efeitos do Outro nf10 se fariam sentir. Como se Lacan pudesse dispor de um funcio-
namento do imaginário em uma espécie de estado puro ou primário, exatamente para
contrapô-lo ao funcionamento no homem.
Há, pois, uma primeira ideia de certa harmonia no ani1rial, entre o Innenwelt e o
Umwelt, com a qual, no homem, encontraríamos uma discordância. É assim que em um
primeiro momento de elaboração vemos um esforço de Lacan para estabelecer a relação
cio organismo com sua realidade a partir da função da imagem. Aqui são feitas algumas
referências à etologia animal, como a maturação da gónada na pomba, que tem como

Opção Lacaniana nº 62 125 Dezembro 2011


condição necessária a visão de um congênere, e da transição da forma solitária para a
forma gregária do gafanhoto migratório. 2 Estas referências são utilizadas para que Lacan
possa teorizar sobre um ponto singular no homem.
A primeira elaboração de Lacan fala da prematuração específica do nascimento no
homem. Ele trabalha aqui com uma fase do espelho na qual o sujeito se constitui como
identidade ao identificar-se com a imagem do outro. Lacan nos fala então de uma anteci-
pação que cativa no sujeito o sentimento de si. Temos, assim, uma primeira abordagem
do desconhecimento do parceiro sexual.
Se nos animais temos o macho e a fêmea, para os quais o espetáculo da imagem
do parceiro leva ao desencadeamento do comportamento sexual, no caso do homem a
existência do conhecimento antecipado de si mesmo induz no indivíduo uma espécie de
prevalência de uma necessidade de domínio que caminha no sentido contrário à escolha
instintual do objeto. Temos aí o germe de uma importante fórmula que irá ordenar o
último ensino de Lacan: "não há relação sexual".
Em um segundo momento, temos o sujeito enfim em questão. A partir de 1953, é
o simbólico que marcará a singularidade do homem. No Seminário 1, Os escritos técnicos
de Freud, falando do comportamento sexual, Lacan faz uma comparação entre o homem
e o animal. Nos dois casos a possibilidade de deslocamento e o caráter ilusório estão
presentes. Entretanto, no animal, por exemplo, se apresentamos a título experimental
uma falsa imagem de um parceiro sexual, muitas espécies produzem um comportamento
sexual, mesmo que a imagem seja apenas uma pequena sombra provida de suas carac-
terísticas principais. Há, pois, aqui, uma prevalência da imagem. No homem se passa
o mesmo? É claro que a imagem cumpre também aqui um papel fundamental, mas no
homem a função sexual se caracteriza por uma desordem eminente e um dos pontos
dessa desordem é uma espécie de jogo de esconde-esconde entre a imagem e o objeto.
Vemos Lacan utilizar seu famoso esquema óptico do espelho côncavo para mostrar que a
imagem só aparece ao homem a partir de um lugar que o sujeito possa ocupar no campo
simbólico. Para que a imaginação possa cumprir sua função no jogo sexual, é preciso
que o sujeito esteja em um determinado lugar.
A referência à etologia em Lacan serve para destacar e apontar a função da ima-
gem especular na constituição da realidade, da sexualidade e do reconhecimento de si
mesmo. A intrusão do simbólico no campo imaginário pode ser então trabalhada por
Lacan a partir da referência à etologia. Para isso, Lacan precisará da invenção do objeto
a. O imaginário, tomado próximo da etologia, é uma ordem pela qual o real de um or-
ganismo se completa por um umwelt. O trabalho de Lacan nesse período marca o efeito
do simbólico que traz para o ser humano, no domínio vivido, uma exceção: "O fato de
contar tem, no âmbito imaginário, o efeito de fazer aparecer ali o que chamo de objeto
a." 3 As relações entre o i(a) e o objeto a passam então a ser o ponto vivo do interesse

Opção Lacaniana nº 62 126 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

da psicanálise. Se, a partir ela etologia animal, a realidade pode ser dominada pela ima-
gem, no homem temos que supor, ele toda realidade, que ela seja fantasmática. Se para
o animal o imaginário é uma articulação do real 1 para o homem temos a ação do objeto
a (como algo que cai do Outro) sobre o campo subjetivo, que determina toda realidade
e mapeia os campos de gozo com possibilidades e impossibilidades.
Podemos então falar de um terceiro momento da elaboração de Lacan, na medida
em que há uma função do semblant que passa a ser decisiva no seu raciocínio, não
somente em relação à imagem, mas articulada também aos outros dois registros. O con-
traponto com a etologia perde a força e deixa de ser esclarecedor, na medida em que aí
a função da aparência se articularia especialmente ao imaginário. Passo a passo Lacan
irá abandonar a etologia como um contraponto da experiência humana, na medida em
que o objeto a torna-se uma referência central das articulações seja do imaginário, do
real ou do simbólico.

Notas

Lacan, J 0981 [1955-561). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.16.
2 lacan, J. 0998119491) "O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência
analítica" [n facrilm. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.99
3 lacan, J. [1%8.169] ''O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro", lição de 7 de maio de 1968.

Opção Lacaniana n" 62 127 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UCAN E A FILOSOFIA

]ÉSUS SANTIAGO (BELO HORIZONTE)


Santiago. bhe@terra.com.br

Os inúmeros exemplos do recurso de Jacques Lacan à tradição do saber filosófico


constituem, sem dúvida, um dos maiores pilares de seu ensino. Cabe assinalar, no en-
tanto, que esse recurso singular não se depreende da filosofia tomada como um sistema
conceituai e interpretativo das coisas do mundo, mas como os restos desse saber que
afetam o real com o qual lida o psicanalista. Ao contrário desses restos, o sistema traz em
si uma vocação para a totalidade, suscetível de transformar-se em uma Weltanchauung.
É preciso considerar, com efeito, que a conexão com os restos da filosofia está a serviço
do avanço da própria psicanálise e não do co,pus de problemas e soluções que tradi-
cionalmente pertencem ao campo do saber filosófico. Em outros tennos, as conexões da
psicanálise com a fi.losofia existem com a condição de admitir que sua finalidade última
é contribuir para o campo da psicanálise como um saber desconexo dos outros saberes.
A prova disto é que a apropriação desses restos que, pouco a pouco, se depositaram ao
longo da elaboração de Lacan, assume a designação de antifilosofia.
A esse propósito, podem-se relacionar os exemplos mais clássicos desse vasto cam-
po, como é caso, da teoria do encontro (lykhé) e da repetição (automaton), presente na
}lsica de Aristóteles,- o Cogito} em Descartes, assimilado ao sujeito do inconsciente em
sua divisão entre o saber e a verdade; todo o desenvolvimento do desejo e ela lei, em
Kant, em A crítica da 1-azào prática_; a dialética do senhor e do escravo como revelação
do reconhecimento do desejo e da alienação, em Hegel; e, finalmente, a elaboração sobre
a teoria da repetição, em Kierkegaard, em oposição à ela reminiscência, em Piarão.

A função do Um na relação entre os sexos

Destaca-se, dentre esses exemplos, a retomada, pela antifilosofia de Lacan, desse

Opção bicaniana nº 62 129 Dezembro 2011


tema eterno da filosofia e das sabedorias concernente à questão do amor. Como se sabe,
um dos momentos cruciais do Banquete de Platão, referente a essa questão, diz respeito
à fábula presente no discurso de Aristófanes. Pela boca de Aristófanes, Platào exprime,
de maneira contundente, as razões pelas quais os sexos se procuram. Essa fábula trata
do enigma crucial da relação entre os sexos, à qual a libido freudiana quer responder.
De início, a narrativa mítica evoca a esfericidade da postura e do andar dos pri-
meiros homens. Por essa razão, eram dotados de uma força e de um vigor prodigiosos,
bem como de uma grande presunção. Consequentemente, atacaram os deuses e, conta
Aristófanes, empreenderam uma escalada para o céu. Incomodado com isso 1 mas tam-
bém por ciúme, Zeus decide intervir, em um segundo momento, dividindo-os, a fim de
enfraquecê-los e atingi-los em sua autonomia. Com o corpo partido em dois, cada um
deles, saudoso de sua outra metade, só podia, então, aspirar a encontrá-la "num desejo
de se unir, tornando-se um" 2 •
Em resumo, Platão criou o mito da funçào do Um, que poderia fundar a relação
entre os sexos: os seres falantes estariam obrigados a procurar, no amor, seu complemen-
to original. Segundo seus próprios termos, cada indivíduo é o "complemento de um ser
humano, por ter sido dividido e, de um, ter-se tornado dois" 3. Eis o elemento trágico da
construção mítica de Platão: o sujeito, dividido pela vontade e raiva de Zeus, torna-se um
ser completamente impotente. A castração que ele sofre é tão radical e tão absoluta, que
nada lhe resta senão a morte. Para escapar dela, o que pode fazer é procurar recobrar
seu estado esférico original.
Nem mesmo a solução final do remanejamento dos órgãos genitais, que torna pos-
sível, em certo sentido, a conjunção e a disjunção do sujeito com seu parceiro, parece
capaz de oferecer uma resposta ao desfecho trágico da castração. Essa solução não chega
a evitar a captura imaginária do ideal da forma esférica na relação sexual. A conseqüên-
cia é uma tal exacerbação do imaginário do falo, a partir do órgão sexual 1 que a única
saída é a busca do outro hemisfério, dada pela crença na existência do Um da relação
sexual. Os órgãos genitais permanecem no registro estrito do órgão e funcionam como
preenchimento da falta primordial, em uma positividade que ignora o fato de que toda
forma de presença só subsiste sobre o fundo de uma ausência. Sabe-se que o falo é o
símbolo apropriado, por excelência, para encarnar esse jogo de presença e ausência,
com base na castração primordial.

O mito da lâmina

A entrada pitoresca do "homelete", na formulação do 'mito da lâmina', por Lacan,


constitui, certamente, um desvio importante da dimensão trágica da castração na fábula

Opçiio Lacaniana nº 62 130 Dezembro 201 t


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

de Aristófanes, em que a divisão se realiza sem nenhum resto 4• Esse mito é, portanto,
uma resposta à concepção do amor tomado como complementaridade entre os sexos,
presente no Banquete ele Platão. O essencial desse mito é inverter a vertente freudiana da
libido como substância, introduzindo, no seu seio, o elemento da perda inicial do sujeito.
A lâmina funda a libido, apoiada na castração; e institui a perda e seus restos como um
traço que lhe é inerente.
Por meio desta concepção mitificada da libido, Lacan recusa, radicalmente, a pro-
cura de um complemento na imagem patética e enganadora de uma metade que teria de
ser encontrada na relação sexual. É também por essa via que se preconiza a inexistência
de relação sexual entre os seres falantes. A lâmina é, justamente, o signo da impossibili-
dade de reconstituiçào da unidade do ser no amor, concebido como o resgate ela perda
que incide sobre a constituição dos objetos libidinais. Ela equivale, portanto, ao objeto
a, objeto considerado como o complemento anatômico, irremediavelmente perdido pelo
sujeito, por causa da reproduçào sexuada. Para o ser falante, o objeto a é o resultado
da perda de uma parte de si mesmo, que, no entanto, permanece, como resto e como a
cicatriz da castração.
Nesses termos, o amor nào tem nada a ver com a figura esférica da "boa forma"
humana, que se instituiria no encontro de un1 complemento. Desde o Livro 20, do Semi-
nário, Mais ainda, Lacan apresenta uma lógica que constitui uma contribuição inestimá-
vel para a psicanálise: a escritura da lógica ela não-complementaridade entre os sexos.
Graças à função lógica da castração para os dois sexos, lacan acaba por estabelecer que
a paixão entre eles se escreve sob a égide do impossível do gozo, do gozo que bu.sca res-
tituir a parte perdida de si me.smo. Com fundamento na escrita desse impossível, pode-se
afirmar que a invenção ela psicanálise, no âmbito do amor, é o "novo amor'' ou o "amor
mais digno'' 5 que, paradoxalmente, é aquele que inscreve os efeitos da lfunina sobre o
sujeito, a saber: a indignidade pulsional referida ao modo de gozo particular de cada um.

O amor mais digno

Nada equivalente ao que, em Fundamentação da metaft:-.;ica dos costumes, Kant


preconiza no que concerne à dignidade [Würde], considerando que cada ser humano é
dotado desse atributo em virtude da sua natureza racional 1' . Para ele, ao se conferir um
valor supremo à formação e ao uso da capacidade racional, dá-se ao homem o domínio
e a superação de avaliações parciais e míopes suscitadas por suas inclinações naturais
e pela opinião do Outro (Deus). Nesses tern1os, Kant privilegia não o que diferencia os
indivíduos, mas o que lhes é comum: a possibilidade de fazerem uso da sua razão em
julgamentos e condutas que dependem deles. Tal concepção da dignidade reduz-se,

OpÇto Lacaniana nº 62 131 Dezembro 2011


portanto, ao ideal relativo ao universal da razão, que, para esse filósofo, apenas existe
pelo sacrifício e pela rejeição peremptória de tudo o que é patológico ou, em termos
psicanalíticos, de tudo que se refere à dimensão pulsional. Em suma, a ética kantiana
leva às últimas consequências a salvação, concebida como autônoma, portanto, de uma
salvação sem Deus, pois, consuma-se pela via do ideal expresso pelo princípio universal
da vontade legisladora no tocante a excessos das paixões do corpo.
Na psicanálise, não há como destituir as bases da dignidade como resolução cio
que se institui como a "tendência centrífuga" própria à "degradação'' ela vida amorosa
característica da sexualidade masculina. Nesses termos, a referência ao "amor mais dig-
no" não encontra qualquer contrapartida possível na "máxima [kantiana] da vontade,
concebida como legisladora universal, a toda outra vontade(. .. )"7 . Ao contrário, por meio
da experiência da análise abrem-se, para todo homem, um por um, as chances ela digni-
dade do amor sobre a base cio tratamento singular desse pulsional "indigno" concernente
à vida amorosa degradada. O amor mais digno é, portanto, "a salvação pelos dejetos",
pelo que "é rejeitado, especialmente rejeitado ao cabo de uma operação de que só retém
a substância preciosa a que ela (salvação) leva" 8 •
Como se constata, o ponto ele partida da postulação da "salvação pelos dejetos"
é o mito da lflmina. Trata-se de "salvar-se pelo que cai, pelo que tomba quando, por
outro lado, algo se eleva", como esclarece Jacques-Alain Miller. De outro modo, o im-
perativo da tendência centrífuga da satisfação se afrouxa e deixa como re.sto a elevação
ela condição amorosa marcada pela forma própria em que se processou tal queda. Com
efeito, a dignidade calcada na aquisição da lei imperativa da razão é uma coisa; e, outra,
é a dignidade baseada no "informe do dejeto", próprio ela satisfação pulsional que se
depreende ela experiência do final da análise. Se o universal da razão resplandece nos
ideais do sujeito, o dejeto é o que se evacua desta luminosidade e, por consequência,
faz desaparecer a reverberação do brilho da fantasia na sua montagem pulsional. Para
Lacan 1 o amor mais digno apenas sobrevive onde surge a "significação de um amor sem
limite'' 9 , do amor que ultrapassa o limite próprio da lei universal da vontade, cujo intuito
é proscrever as tendências pulsionais do sujeito. Enfim, é a elevação cio dejeto que preva-
lece, assim,"sobre uma totalidade da qual torna-se um pedaço" 10 do real que se vê, assim,
reduzido a ser uma peça avulsa, produto da salvação alcançada pelo amor mais digno.

Opção l.acaniana nº 62 132 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Notas

Platão. (1986). O Simpósio 011 do amor. Lisboa· Guimarães Edi1ores, p.49.


2 !d., ibid., p. 52.
3 !d., ihid., p.53
4 Lacan, J. (198511963-64]). O seminário, livro l.1: os quatro conceitos Jundamellfais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
7-1har. p.186.
5 Lacan. J. (2003/1973) "Nota itaUana''. ln: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.309.
6 Kant, I. 0994117971). Metaphysique des moeurs /. Fondation et introduction. Paris: Flammarion. p.115-116.
7 ld, ibid
8 Miller, J.-A. (2011[2010]). "A salvação pelos dejetos~. ln: Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacem. Enlre desejo
e gozo. Rio de Janeiro: Zahar, p.228.
9 Lacan,J (19851l963-641) Op.ál., p.260.
10 Miller. J.-A. (2011[2010]). Op.cit., p.228.

Opção L.caniana nº 62 133 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UM (INUSITADO) UCAN FREUDIANO


A SATISFAÇÃO EM TODAS AS PARTES

SÉRGIO LAJA (BELO HORIZONTE)


laia. bhe@terra.com. br

No seu Curso de 1997-1998, intitulado E/ partenaire-síntoma, Miller parece iniciar


todo um trajeto que ainda hoje se faz presente e que, naquela ocasião, designou como
uma "mudança de perspectiva" no ensino de Lacan 1 • Como toda mudança digna desse
nome, ela não é muito fácil de ser manejada e sustentada e, por isso, parece-me interes-
sante e esclarecedor retornar ao momento em que foi inicialmente destacada por Mil-
ler. A propósito da dificuldade para manejá-la e sustentá-la, pode-se observar que, por
exemplo, fora da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), há vários grupos lacanianos
que não têm qualquer registro dessa mudança de perspectiva, embora já tenhamos po-
dido levá-la em conta há mais de dez anos.
Essa outra perspectiva, a ser abordada ao longo deste texto, é a de que a satisfa-
ção se encontra em todas as partes. Sirvo-me aqui dela para abordar o convite que me
fez Angelina Harari para escrever, neste número especial de Opção Lacaniana sobre o
1

que designou como "Lacan freudiano" 2 • De início, essa designação me faria tomar mais
facilmente o caminho do primeiro Lacan, sobretudo daquele que se consagrou, inclusive
para além dos meios lacanianos, como o do "retorno a Freud". Entretanto, ao privilegiar
aqui a "mudança de perspectiva" destacada por Miller, eu me coloco mais no rumo do
que ele também pôde chamar de "O ultimíssimo ensino de Lacan"3, em um percurso em
que Lacan, efetivamente, é mais lacaniano do que propriamente freudiano.
Se ouso, então, nesse Lacan lacaniano, encontrar um Lacan freudiano, é por duas
razões. Primeiro porque quando Lacan passa a considerar que 1 como veremos, a sa-
tisfação está em todas as partes, este me parece ser um modo de ele se haver com o
que Freud concebeu como "economia libidinal" e com o que, já em 1894, ou seja, nos
primórdios da psicanálise, foi localizado como "alguma coisa - uma quota de afeto ou
soma de excitação - que apresenta todas as características de uma quantidade (embora
não disponhamos de meios para medi-la), capaz de crescimento, diminuição, desloca-

Opção Lacaniana nº 62 135 Dezembro 2011


mento e descarga, e que se espalha sobre os traços de memória das ideias, tal como uma
carga elétrica se expande na superfície de um corpo"4. Por sua vez, a segunda razão se
vale de uma afirmaçào de Lacan, feita em Caracas, e que, muito tempo depois do seu
"retorno a Freud", não deixa de continuar marcando sua pertinência ao que ele mesmo
nos legou como "campo freudiano": "cabe a vocês serem 1acanianos, se o quiserem, eu
sou freudiano"S.
Trabalhar com essa nova perspectiva de que a satisfação encontra-se em todas as
partes me parece decisivo para respondermos a questões que permeiam a experiência
psicanalítica, particularmente nos nossos dias: Como fazer valer uma satisfação que não
se dilua na exigência contemporânea de que a satisfação tenha que se apresentar sob
qualquer preço? Como dar lugar aos diferentes modos de gozo sem que resvalemos na
posição relativista encontrada no cinismo com que hoje se pretende justificar as mais
diversas (e por vezes obscuras) formas de satisfaçào? Como sustentar uma orientação
frente ao imperativo atual de uma satisfação a qualquer preço, sem que sejamos acusa-
dos de conservadores? Como lidar com o incurável, com o que Freud chamou de "restos
sintomáticos6 " e com os modos como a satisfação pulsional surpreendentemente os per-
passa se somos procurados para "curar" e ternos de dar mostras da eficácia da psicanáli-
se? Essas perguntas me parecem oportunas porque evidenciam o desafio cotidianamente
enfrentado pelos analistas de orientação lacaniana para manejar e sustentar a mudança
de perspectiva em jogo na concepção de "parceiro-sintoma", assim como seus efeitos
em nossas Escolas, em nossos consultórios e em nossas intervenções no corpo social
constituído por instituições de saúde, educacionais, jurídicas etc.

A capa que não pôde ser escolhida

Em O parceiro-sintoma, ao apresentar o então recém-lançado Seminário 5 de La-


can, consagrado ao que Freud chamava de "formações do inconsciente". Miller indica
que "chegou in extremis" à capa desse livro 7. Afinal, a capa é um detalhe do quadro de
Paolo Ucello, intitulado "A batalha de São Romano" e pintado no século XV mas, antes
de definir-se por ela, Miller visava um desenho de Saul Steinberg: publicado na capa de
um número do dia 17 de maio de 1993 da célebre revista The New Yorker". A troca de
Steinberg por Ucello teve que ser feita porque o primeiro nào autorizava que as capas
desenhadas para essa revista nova-iorquina fossem publicadas como capas de livros.
Assim, o detalhe do quadro de Ucello pode ser tomado como uma espécie de
palimpsesto porque, sob ele e graças à informação fornecida por Miller, podemos fazer
perfilar um desenho que Steinberg chamou de "O sapato". É um sapato feminino, de
salto alto. Como psicanalistas, sabemos o quanto esse objeto aparece com frequência

Opção lacaniana nº 62 136 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

como um "fetiche" e que um fetiche, segundo Freud, é um objeto com que se tenta
desmentir a castração feminina, um objeto com que se procura fazer existir o que é
realmente inexistente, ou seja, o "pênis da mãe"9. Porém, do desenho de Sreinberg não
podemos inferir apenas o objeto fetiche como equivalente cio falo. Nele, encontramos
ainda o objeto olhar e o objeto oral (porque "O sapato" tem um olho e uma boca), como
também o objeto voz (não apenas por sua relação com a boca, mas sobretudo porque a
parte superior desse desenho tem a forma ele uma orelha), e ainda me parece possível
extrair desse sapato o objeto anal (graças a um deslocamento metonímico do nariz que
é também nele encontrado). Além disso, tal desenho de Steinberg tem a forma ele um
"semblante" feminino, e não apenas porque se trata de um sapato de mulher: ele evoca a
face que eu, sabendo do quanto seu criador gostava do cubismo, qualificaria de cubista
e que diz respeito a uma mulher, ou seja, cio que, segundo Lacan vai mostrar no final de
seu ensino, faz as vezes do que é "um sinthoma para todo homem" 10 •
"O sapato" cairia como uma luva na capa do Seminário 5. Afinal: a capa que temos
- e na qual encontramos, pintado por Ucello, um guerreiro a cavalo - evoca um chiste,
ou seja, uma dessas "formações'' em que Freud soube ler uma espécie de manifestação
"do inconsciente". Trata-se de um chiste que Lacan escutou ele Raymoncl Quenau 11 • As-
sim, no detalhe de Ucello, temos uma transposição ele uma trama significante para uma
imagem enquanto que, com "O sapato", teríamos uma espécie de agregação (ao estilo
de um Arcimboldo contemporâneo) das "formas do objeto a" 12 e, portanto, uma versão
do que eu chamaria de dimensão libidinal (e não apenas significante) do inconsciente.
Sem dúvida, essa dimensão libidinal do inconsciente também está incluída no chiste
que, por sua vez, não é só um jogo de palavras 1 mas um jogo de palavras que provoca
riso, ou seja, satisfação, gozo. Então 1 para encontrarmos a conexão entre o detalhe de
Ucello e o chiste contado por Queneau, é necessário lermos a aula seis do Seminário
5 e cotejá-la com a aula dezoito de E/ partenaire-síntoma, mas, de um modo que mais
direto, "O sapato" provoca o riso já com sua própria apresentação, como uma espécie
de chiste gráfico.
Portanto, não é sem razão que Miller só pôde escolher in extremis a imagem para
a capa do Seminário 5. Efetivamente, o desenho de Steinberg, por ser uma agregação de
objetos muito valiosos na economia libidinal, a evocaçf10 cubista do rosto de uma mulher
e uma espécie de chiste gráfico, ilustra muito mais diretamente que o detalhe extraído
do quadro de Ucello o inconsciente como aparelho de satisfação produzida pelo gram-
peamento dos significantes nos corpos, ou seja, a mudança de perspectiva que, segundo
Miller 13 , será antecipada nas considerações de Lacan, no Seminário 5, sobre o Outro
como "sujeito real", mas que vai se efetivar apenas no Seminário 20.
Sabemos que Freud concebia o "isso" como uma instância onde "toda a libido está
ainda acumulada" e que luta "pelo imediato atendimento e satisfação [Befriedigung] dos

Opção Lacaniana nº 62 137 Dezembro 2011


anseios sexuais diretos" e ainda, "de forma bem mais abrangente", para o ';atendimento
[Befriedigung] a um tipo ele exigência pulsional que reúne uma série ele demandas par-
ciais"1~. Ressalto que, nessa citação extraída de Freud, o termo alemão que designa o que
o isso promove com relação tanto aos "anseios sexuais diretos", quanto às "demandas
parciais" ela exigência pulsional é Bqfriedigung, ou seja, a satisfação - essa é uma elas
referências em que Freud me parece anunciar o que, bem mais tarde, será a "mudança de
perspectiva" operada no ensino ele Lacan. No Seminário 20, em uma aula cuja epígrafe
é: "onde isso fala, isso goza e nada sabe", encontro o que me autoriza a propor aqui
como um (inusitado) Lacan freudiano aquele que amalgama o inconsciente e o isso, a
trama cios significantes e a satisfação pulsional quando, cinco parágrafos após essa epí-
grafe, formula uma frase que Miller cita e comenta como um marco da nova perspectiva
em jogo no ensino ele Lacan a partir ele 1972-1973: "o inconsciente é que o ser, falando,
goza" 15 .
Assim, se ao longo de sua vida, Freud sempre procurou atualizar, com notas e
novos parágrafos, dois livros - A interpretação dos sonhos e Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade - em que encontramos tematizadas, respectiva e paralelamente, a trama
significante nas manifestações do inconsciente e a satisfação das pulsões, o Seminário
20 me parece poder ser lido como um encontro dessas duas paralelas freudianas. Este
encontro me parece operar o que Miller chama de "mudança de perspectiva" no ensino
ele Lacan.

Duas tensões e nenhuma solução

Com a leitura da aula dezoito de E! partenaire-síntoma, já não é tão fácil sustentar


uma proposição que o próprio Miller ajudou a consagrar, mas que ele mesmo convoca-
nos a transformar, na medida em que se mosrra insuficiente para cingir o modo como o
gozo toca os corpos dos seres tomados pelas palavras, pelos significantes. Essa proposi-
ção é a seguinte: "o gozo não é o prazer" 16 •
A diferença (ou mesmo oposição) entre gozo e prazer se inscrevia até então porque
o primeiro era situado como um "extremo de tensão", "uma excitação" compatível com a
dor, enquanto o segundo era apresentado como ;'harmonia'', "temperança", "homeostase
do corpo e, por que não, da alma", ou seja, "o nível mais baixo da tensão'' 1;_ Por isso,
Miller mostra que Lacan, inicialmente, correspondeu ao par oposto "gozo" e "prazer'' ou-
tra oposição, entre "desejo" e "prazer", pennitindo-nos então aproximar, agora, "gozo" e
"desejo", uma vez que o desejo também "participa de um excesso, de uma perturbação,
no que se refere à homeostase que governa o prazer" 18 . Assim, retomando a conhecida
tensão freudiana entre "prazer" e "mais além do princípio do prazer", teríamos:

Opção Lacaniana nº 62 138 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Mais além do prazer versus Prazer


Gozo
Desejo

Se a sobrevivência do que é vivo implicasse uma circunscrição a essa zona agra-


dável do prazer, a vida não valeria muito a pena porque o gozo e o desejo não seriam
acessíveis. Contudo, como elucida Miller, o acesso ao 'mais além' do prazer1 ou seja, ao
gozo e ao desejo que fazem a vida valer a pena de ser vivida, não se processa sem o
encontro com o horror: trata-se de uma experiência perturbadora e que ameaça a tran-
quilidade própria do prazer. Então, um problema se impõe ao que é vivo: é insuficiente
viver no conforto do prazer (embora se busque isso), mas é inquietante aproximar-se da
zona cio desejo e do gozo. Uma solução para esse problema, segundo esclarece Miller,
é a fantasia, essa máquina na qual o desejo e o gozo tornam-se compatíveis com o pra-
zer. A fantasia, então, é uma espécie de recurso do que é vivo para viver 'mais além' do
prazer sem se horrorizar demasiadamente, fazendo um grande esforço para manter-se
em equilíbrio. Por isso, no lugar do versus que indicava a tensão entre o 'mais além' do
prazer e o prazer, temos a fantasia e, assim, a tensão parece não ter mais vez:

Mais além do prazer < fantasia > prazer

Porém, outra tensão se impõe, segundo Miller, entre o gozo e o que Lacan chamou
de mais-de-gozar. Essa outra tensão me pareceu, a princípio, diferente da operação da
fantasia de tran.sformar gozo em prazer. Mas é importante determinar que essa diferença,
efetivamente: não se sustenta. O rnais-de-gozar pode ser considerado outro modo de
nomear a operação que a fantasia faz funcionar e esta última, como "máquina'', mesmo
rnovida por esse excesso libicli'nal corporificado como mais-de-gozar, não faz com que o
que vive aceda ao gozo. Primeiro, porque no âmbito da própria famasia, intrínseco a sua
lógica, aparece uma carência de gozo, uma mortificação, um desinvestimento libidinal
que, com Lacan, escrevemos como%, sublinhado por Miller como um sujeito mortificado
pelo significante e alijado do gozo. Sem dúvida, é justamente na fantasia que esse sujeito
deslibidinizado (Jf) se aproxima do mais-de-gozar (a), ou seja, das zonas do corpo que
apresentam "um suplemento de investimento", assim como dos objetos ;'onde o ganho
libidinal se concentra'', mas a experiência da fantasia, embora marcada por zonas corpo-
rais e por objetos repletos de gozo, acaba por deixar o sujeito sempre sedento de algo
mai.s e que, no entanto, não se alcança pela via do mais-de-gozar.
Por isso, se a fantasia parece inicialmente resolver a tensão entre gozo e prazer,
acabamos notando que, de fato, essa tensão não é assim solucionada. Na fantasia, o
encontro com o gozo é sempre falho, tal como Lacan, lendo Sade 19 , já nos ensinava, na

Opção Lacaniana nº 62 139 Dezembro 2011


contramão do sentido comum e mesmo das concepções psicológicas e psiquiátricas: o
perverso não goza. Por essa mesma razão, fazendo valer a concepção freudiana de que
a sexualidade humana é perversa, Lacan autoriza-nos a afirmar que fantasia perversa
compõe a sexualidade do sujeito neurótico e, como é frequente em alguns casos nos
quais se tenta fazer tal composição sem que ela seja efetivamente subjetivada nos termos
de uma fantasia, como um modo de suplência nas psicoses. Em outras palavras: o gozo
que a fantasia promove é sempre um gozo parcial (a) no que se refere realmente ao gozo
que 1 com o Seminário 20, passa a ser designado, conforme veremos mais adiante, com
a letra J, de Jouissance (Gozo).
No ritmo da fantasia em que o sujeito deslibidinizado e mortificado (}!) procura
conectar-se a seu mais-de-gozar (a), a psicanálise de orientação lacaniana permite-nos
escutar sempre a promessa de um gozo que está ainda por aparecer, mas que não parece
chegar nunca. Então, o mais-de-gozar com frequência esconde, se posso dizê-lo assim,
um menos-de-gozo que, por sua vez, impulsiona a busca por um mais-de-gozar ainda
n1aior, mas que acaba por fazer aumentar a experiência de que o gozo seria como o
Godot de Beckett: ele é esperado, buscado sem que, no entanto, apareça. Assim, é co-
mum existir sempre um tom decepcionante na vivência repetitiva de uma fantasia e essa
decepção pode ser encontrada, em suas diferentes gamas, no início de algumas análises
de sujeitos neuróticos cansados com certas formas de satisfação que lhes atravessam a
vida, na conexão de um toxicômano com a droga e sobretudo, de modo mais depurado 1
nos momentos em que uma análise se aproxima de seu fim.

A solução por uma mudança de perspectiva

Em Cursos mais recentes e que tiveram algumas de suas aulas publicadas em Pers-
pectivas do seminário 23 de Lacan e Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan,
Miller me parece ao mesmo tempo insistir e apresentar ainda mais o que é a outra pers-
pectiva inaugurada com o Seminário Jl1ais, ainda 2º. De fato, na aula desse Seminário
intitulada "O saber e a verdade", Miller vai destacar o gozo assinalado pela letra J (inicial
de Jouissance) envolvida por um círculo que, por sua vez, encontra-se dentro de uma
espécie de saco aberto rumo ao que aparece escrito como "Real". Sem pretender elucidar
todos os termos desse esquema, gostaria de destacar que nele também aparece a letra a,
com a qual se designa o objeto a ou o que é ainda evocado como "mais-de-gozar". Logo
acima do a e bem isolado da letra J que designa o gozo, podemos ler: "semblante''. Então,
é possível concluir por que o mais-de-gozar (a) não se volta realmente para o gozo: ele
é semblante, encontra-se no meio do vetor que vai do Simbólico para o Real, mas não
é propriamente real, enquanto o gozo (J), embora fechado sobre si mesmo, encontra

Opção I..acaniana n" 62 140 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

alguma abertura para o Real. Mas o que significa o gozo estar fechado sobre si mesmo
e voltado para o Real'

Imaginário

S (A)
verdadeiro realidade

Simbólico
8 Real

Semblante, aparência, a

A mudança de perspectiva localizada no Seminário 20 implica que o gozo não se


encontra mais em oposição nem ao prazer, nem ao mais-de-gozar, nem a nada: "o gozo
não tem oposição" - é o que sustenta Miller dizendo que Lacan nos ensina a abordar
desde então o gozo que "está em todas as partes" 21 . Podemos dizer que, de fato, o gozo
é uma substância incrivelmente invasiva e que, sem ter uma forma definitiva, costuma
tomar, em sua fluidez, qualquer forma, sem se deter em nenhum formato, em nenhum
padrão ou standard. Além disso, podemos dizer também que o gozo, a partir dessa mu-
dança de perspectiva promovida pelo Seminário 20, é uma substftncia sutil e que torna a
forma dos mais variados objetos, dos mais diversos significantes, das mais surpreenden-
tes zonas do corpo, enfim, ele tudo o que pode trazer-nos satisfação.
Nessa nova perspectiva de uma satisfação que se estende para todas as partes e
não encontra obstáculos para impedi-la, inclusive o "reino do princípio do prazer" - que
Freud havia inicialmente situado como próprio ao aparelho psíquico e Lacan, mais vol-
tado para o que Freud chamou de "mais além do princípio do prazer", havia a princípio
desvalorizado frente à sua concepção do gozo - passa a ser "revelado, revalorizado" no
que o Seminário 20 denomina "a outra satisfação". Esta, segundo Miller, é a que se satis-
faz com o blábláblá, "a satisfação que se sustenta na linguagem" 22 .
Sem dúvida, a perspectiva em que Lacan separava gozo e prazer, pulsão e incons-
ciente, libido e linguagem rnodifica-se porque essa outra satisfação, transmitida no blá-
bláblá, não é exclusiva do campo da linguagem, não se restringe ao que, por exemplo,
no Semfnário 5, era apresentado como o jogo significante promovido por um chiste ou
um ato falho. Referindo-se literalmente a termos extraídos do Seminário 20, Miller subli-
nha que "a razão de ser da significância" já não vai ser simplesmente buscada no efeito

Opção Lacrniana nº 62 141 Dezembro 201 l


significante que ultrapassa um sujeito despojado ou mortificado pelas palavras porque
se torna reconhecida "no gozo do corpo"23 . Trata-se, então, de "efeitos de gozo sobre o
corpo" 24 , promovidos pelos significantes.
O prazer produzido pelos significantes adquire um estatuto de gozo porque, segun-
do Miller, no caso do ser falante, diferente de outros animais, o corpo não busca pura e
simplesmente o nível mais baixo da tensão para aceder ao prazer. Para aqueles tomados
pela palavra, "o funcionamento, ainda homeostático, do princípio do prazer supõe que
haja intervenção da inscrição significante, do símbolo" e, assim, "há sempre, inclusive no
nível homeostático, algo que não funciona" 25 . Miller detalha que, para o ser falante, o que
"não funciona'' é a "relação sexual'' e me parece possível esclarecer isso mais um pouco
acrescentando que. para quem o "ser da significância" é reconhecido "no gozo do corpo",
não há encontro dos corpos sem palavras, mas as palavras tampouco vão garantir-lhe al-
gum tipo de proporção com urn corpo que lhe seja diferente ou como seu próprio corpo.
O prazer obtido com as palavras que tomam os corpos aparece, então, como uma
espécie de gozo suplementar à inexistência da relação sexual. Por isso, é também no
Seminário 20 que Lacan afirma que o amor cortês - promovido somente com palavras e
não sem prazer - é "uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência ela relação
sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculo", é "a única maneira de se
sair com elegância ela ausência da relação sexual"26 - Assim, parafraseando Paul Valéry,
evocado por Lacan 27 , eu diria que a ausência da relação sexual poderia tornar vão o
universo se não fosse pelo empuxo do ser falante para extrair o gozo das marcas que as
palavras deixam no corpo. Por fim, nos termos da aula dezoito de E/ partenaire-síntoma,
podemos dizer também o seguinte: "o destaque que Lacan dá à fórmula 'não há relação
sexual' implica precisamente outra perspectiva para o princípio do prazer, implica que
ele seja visto como um regime do gozo'', "o gozo do corpo permanece unido, e até se
confunde, com o gozo do significante'' 28 • Essa união - que é também confusão - vai fazer
Miller sustentar que, com a mudança de perspectiva, "gozo do corpo e gozo do signifi-
cante ... não passam ele dois aspectos do gozo" 29 , isto é, o gozo é um única substância, mas
desdobrável - sem oposição ou tensão - como gozo corporal e gozo do significante 3()_
Significfmcia e gozo - que, antes do Seminário 20, com exceção do qu~ acontecia
com o significante nomeado como "falo", estavam isolados - vão se tornar então conec-
tados, amalgamados. Nesse contexto, a mudança de perspectiva promovida pelo ensino
de Lacan acaba por "estender a todos os significantes essa propriedade do significante fá-
lico"31 que, permito-me evidenciar, devido à sua associação com o órgão viril, se conecta
com a substância gozo, se engancha a uma marca corporal envolvida em uma satisfação.
Logo, não é sem razão que, mais recentemente, radicalizando ainda mais a mudança de
perspectiva iniciada com o Seminário 20, Miller ressalta o falo inscrito como <D como o
valor de uma satisfação a que se chega no fim de uma análise-~2 •

Opção Lacaniana nº 62 142 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

As outras faces do sujeito e do Outro

Tal mudança de perspectiva implica, também, segundo Miller, uma mudança no


que se concebia, até o Seminário 20, como sujeito e como Outro.
Antes dessa mudança, uma grande contribuição de Lacan para diferenciar a psi-
canálise da psicologia e da psiquiatria foi sua concepção do sujeito como um efeito
significante, isto é, como diferente do que é nomeado como "pessoa", "ser humano",
"indivíduo". Houve, assim, uma formalização do sujeito que não nos permite, por exem-
plo, lidar com nossos analisantes sem resvalar para qualquer tipo de subjetivismo ou
sentimentalismo, sempre apostando no poder da palavra, na experiência de que sempre
se fala muito mais do que se pensa ou se quer falar e que é nessa superposição dos
significantes que se encontra a verdade do sujeito.
Sem dúvida, é muito importante essa concepção formal do sujeito e não se tra-
ta propriamente de eliminá-la de nossa clínica. Porém, tampouco devemos deixar de
responder aos problemas que ela nos coloca porque, segundo esclarece-nos um jogo
de palavras feitos por Miller, esse "sujeito formalizado" como $ é também um sujeito
"formalizado" e, embora aqueles que nos procuram estejam muitas vezes tomados por
impulsões mortíferas, seus corpos ainda não estão imersos no formol. Em outros termos,
é comum que nossos pacientes estejam mortificados por seus modos de gozo, mas não
estão mortos de modo algum e, inclusive por isso, nos procuram ou, em outros casos, se
deixam conduzir ou atuam para acabar chegando, direta ou indiretamente, nos nossos
consultórios ou nas instituições em que trabalhamos.
Considerando, então, que o significante provoca gozo e que não há gozo sem
um corpo vivo e sexuado, Lacan, a partir cio Seminário 20, vai acrescentar tal corpo ao
sujeito e passa, assim, conforme elucida Miller, a nomear como "falasser" (parlêtre) essa
conjunção de corpo e sujeito. Porém, esse acréscimo não faz do falasser uma "pessoa",
um "ser humano" ou um "indivíduo" porque a substância que é introduzida assim no
sujeito é o gozo e o gozo não lhe confere propriamente uma identidade, urna consciência
de si ou uma natureza. Ele lhe impõe, sobretudo uma dispersão, um querer o que não
se sabe muito bem o que é, uma propulsão à satisfação.
A noção de Outro é também modificada a partir cio Seminário 20: Miller nos rnos-
tra que Lacan passa a concebê-lo não apenas como possuidor de um "corpo mortificado"
ou como "o Outro do significante", porque tanto o gozo como a sexuação vão afetar o
Outro, dando-lhe um corpo. Esse Outro que tem o corpo marcado pela conjunção cio
significante com o gozo ganha outro nome. :É precisamente esse nome que o curso ele
Miller dos anos 1997-1998 procura elucidar, tomando-o inclusive como seu título: o Ou-
tro com corpo é equivalente ao parceiro-sintoma. No Seminário 5, Lacan - interessado
no acolhimento que o Outro dá ao chiste para que este se realize como produção signi-

Opçio Lacaniana nº 62 143 Dezembro 2011


ficante passível de fazer-nos rir - vai recorrer a Bergson dizendo que 1 para que um chiste
se efetive, "é necessário .. que o Outro seja da mesma 'paróquia"'33 porque é apenas com
uma tal pertinência que se pode conhecer as metonímias e os sentidos em jogo em um
dito que produz risos. Então, verifica-se que, já em 1957-1958, Lacan antecipa a impor-
tância de que o Outro não fosse apenas um lugar simbólico: a noção de "paróquia" con-
voca-nos a uma comunhão, a uma reunião de corpos reais, a uma pertinência que será,
quinze anos depois, melhor cingida com o estatuto do Outro como parceiro-sintoma.
O Outro é parceiro porque acolhe criações significantes, por exemplo, por ocasião
de um chiste, mantendo 1 assim, com o sujeito, uma relação pautada pelos efeitos da pa-
lavra no corpo: o chiste é um dito (indução significante) que, acolhido pelo Outro, faz
rir (efeito corporal). Porém, o Outro é, sobretudo, um parceiro-sintoma porque o gozo
corporificado por um riso tende a suprir a relação que não existe no âmbito cios corpos
sexuadas, ou seja, a inexistência da relação sexual.

O rochedo e o sinthoma

No linal da aula dezoito de El partenaire-síntoma, Miller evoca um escrito que é


a pedra fundamental do ensino de Lacan e no qual podemos ler o seguinte poema de
Antoine Tudal 34 :

Entre o homem e o amor,


Existe a mulher.
Entre o homem e a mulher,
Existe um mundo.
Entre o homem e o mundo,
Existe um mt1 ro.

Nesse poema 1 nota-se que não apenas há sempre um elemento que se coloca
como uma espécie de obstáculo entre os dois outros, mas também que os dois primeiros
que impedem uma relação acabam aparecendo de novo para tentar formar um novo par,
uma nova relação: a mulher é obstáculo na relação entre o homem e o amor, mas surge
ainda como uma parceira do homem; um mundo se interpõe entre o homem e a mu-
lher, embora apareça como outro par do homem. Contudo, no final, um muro assinala a
impossibilidade da relação. Com Miller, permito-me dizer que, até o Seminário 20, esti-
vemos diante ou em torno desse muro e que ele pôde tomar, por exemplo, a forma mais
extensa do campo da linguagem ou a forma mais reduzida do falo, sempre como um
elemento de impasse no que concerne à relação. A concepção do Outro como parceiro-

Opção Lacaniana n" 62 144 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

sintoma é uma mudança nessa perspectiva porque, graças a ela, será possível verificar
que, entre os seres sexuadas, "não só há um muro" que marca a inexistência da relação
sexual, "como também há o sintoma'' e, assim, "a relação de casal, no nível sexual, supõe
que o Outro se converta no sintoma do falasser, em um meio de seu gozo"35 .
Se ';um muro", bem como "um mundo" e ainda "a mulher", no poema de Antoine
Tudal ainda evocam o "rochedo da castração" com que Freud demarcava os impasses
que, apresentados mesmo com os términos das análises, tendiam a fazer da análise uma
experiência "interminável''36 , o sintoma - particularmente a partir do Seminário 20 e com
sua reescrita como sinthoma no Seminário 23 - fará com que mesmo um (inusitado)
Lacan freudiano torne-se, mais do que nunca e de modo exclusivo, Lacan, reinventando,
como antes apenas Freud pôde inventar, a psicanálise.
Assim, onde a ausência da relação sexual tende a convocar um deserto de gozo, o
sintoma pode armar-se como:

investimento libiclinal da articulação significante no corpo ... um modo de gozar, e de maneira


dupla. Por um lado, é um modo de gozar do inconsciente, do saber inconsciente, da arlicu-
laçào significanle .. E, por outro lado, é um modo de gozar do corpo do Oulro [concebido]
ao mesmo tempo [como] o corpo próprio, que tem sempre uma dimensão de alteridade, mas
também do corpo do próximo como um meio de gozo do corpo próprio 37

Se recordamos que, na fantasia, um sujeito se faz, inclusive mortificando-se cor-


poralmente, instrumento do gozo do Outro ainda que sem conseguir realmente gozar,
verificamos que o Outro como parceiro-sintoma do falasser apresenta uma perspectiva
diferente porque, nesse novo contexto, já não é o sujeito que, buscando uma satisfação,
se oferece ao Outro. A partir do Seminário 20, é o Outro que, com seu corpo, é tomado
como meio de gozo para um sujeito assolado também por um corpo.
Em E! partenaire-síntoma, lemos que o falasser, diferentemente do conceito de
sujeito dividido, "presta-se menos a formalização", assim como a própria noção de "par-
ceiro-sintoma" implica "uma nova definição do Outro como meio de gozo" e requer
também todo um trabalho a ser efetivado38 • Por isso, como dizia no início deste texto, a
mudança de perspectiva destacada nesse Curso de Miller não é muito fácil de sustentar,
nem de manejar. De fato, essa mudança implica um work in progress até nossos dias e,
mais recentemente, levou Miller a nos propor Um esforço de poesia e Coisas de fineza
em psicanálise - tanto a "poesia" quanto a "fineza", presentes nos títulos desses dois ou-
tros Cursos de Miller, são recursos para lidar com essa substância chamada gozo e que,
imiscuída nos corpos sem se deixar propriamente formalizar, não é por isso menos real,
nem menos tomada pelas palavras.
A aula dezoito de .E! partenafre-síntoma esclarece como a mudança de perspectiva

Opção Lacaniana nº 62 145 Dezembro 201 1


na relação do sujeito com o Outro, na junção do significante com o gozo, na articulação
do incorporal e do corpo modifica também as concepções sobre o fim de análise exis-
tentes até então. Esse fim passa a ser abordado não somente na via de um desinvesti-
mento libidinal promovido por um franqueamento do Imaginário (registro no qual Lacan
inicialmente situava o que Freud chamou de "libido"), pela queda das identificações
(também comprometidas com algumas formas de satisfação) ou pelo atravessamento da
fantasia (essa máquina que fixa uma satisfação que tende a ser decepcionante). O fim
de análise passa a estar implicado também com o que não pode ser franqueado, nem
cair, nem atravessar, pelo que insiste como modo de gozo com o qual "se deve viver"39 _
Nesse modo de gozo, um analisante acaba por descobrir a boa maneira de afirmar
"sou como gozo"4° e, assim, separar-se desse parceiro-sintoma que um analista, como
semblante, soube ser para ele. Em outras palavras, em um fim de análise, o analista cai
como um parceiro até então envolvido na economia libidinal do falasser porque quem
passa de analisante a analista poderá ler - não sem ser sensível ao que há ainda de ile-
gível - o sinthoma com o qual realmente faz parceria.

Notas

Miller, J.-A. (1997-1998): E/ partenaire-síntoma. Texto estabelecido por Sílvia Elcna Tendlarz. Buenos Aires: Paidós, 2008,
p. 400-401.
2 Esclareço que este texto deriva de minha participação no Seminario Itinerante Clínico, promovido pela Nueva Escuela
L'lcaniana (NEL) entre março de 2009 e março de 2010. Minha apresentação, intitulada "La satisfacción en todos los
rincones~ foi realizada no dia 13 de fevereiro de 2010 em Medellín, Colômbia e .se encontra originalmente publicada em:
Alvarenga, E., Gorostiza, L., Laia, S., Medina, N. G., Pérez, J. F., Spurrier_ P. O.. Tarrab. M. y Udenio, B. Discussión sobre E/
partenaire-síntoma: Seminario Itinerante Clínico. Bogotá, NEL, p. 149-169. Coube-me, naquela ocasião, abordar as aulas
dezoito e dezenove de E/ partenaire-síntoma, Curso ministrado por Jacques-Alain Miller cm 1997-1998. Para o texto aqui
publicado em Opção Lacaniana. traduzi uma boa parte do que apresentei em Medellín. mas também procurei articulá-lo
mais claramente ao tema "Lacan freudiano" e, no que concerne a essa articulaçào, introduzi algumas considerações que
não se encontravam no texto original espanhol e retirei algumas partes que tinham uma relaçào mais direta com a aula
dezenove de E/ partenaire-síntoma.
3 Le tout dernierenseignement de Lacan foi o CÍtulo original que Jacques-Alain Miller deu a seu Curso de 2006-2007.
4 Freud. S. (1894). "As neuropsicoses de defesa··. ln: Edição standard brasileira das obras psicológicas completes de Sig-
mund Freud, v. lII. Rio de Janeiro: Imago. 1976, p. 73.
5 Lacan. J. 0980). "Sêminaire de Caracas". LÂne. Paris. n. 1, avril-mail 1981, p. 30.
6 Freud. S. (1937). Análise terminável e interminável. ln: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. v. XX!Il, p. 247-287.
7 Miller,J.-A. 0997-1998). E/ partenarie-síntoma .. ., p. 389. Para a capa do Seminário 5. ver: Lacan, J. (1999[1957-1958]). O
seminário. Lívro 5: as formações do inconsciente. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro.
Revisão: Marcus André Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
8 Esse desenho pode ser encontrado no site desta revista: hnp://www.newyorkcr.com/magazine/covers/1993 (consultado
em 10 de fevereiro de 2010).
9 Freud, S. 0927/2007). "O fetichismo-. Tn: F.scritos sobre a psicologia do inconsciente. Tradução de Cláudia Dornbusch.

Opção Lacaniana nº 62 146 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Helga Araujo, Elza V. K. P. Susemi!hl, Maria Rita Salzano e Lui7. Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, p.159-liO.
LO tacan, J. (2007[1975-1976]) O Seminário. Livro 23: osi11tboma. Tradução: Sérgio Laia. Revisão: André Telles. Rio ele Janei-
ro: Jorge Zahar, p.98.
11 Para este chiste, ver a aula seis de: Lacan, J. 0999[1957-19581). Op.cit., p.106-125. Ele também é retomado por Miller em:
Miller, J.-A. (1997-1998). Op. cit., p.389-391.
12 ]Momo, do título dado por Miller à última parte do Seminário 10. a expressão "formas do objeto a": Lac-,rn, J. (2005
(1962-63]). O seminário. Livro 10: a ar1gústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Versão
Final: Angclina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 235-366.
13 Miller, ).-A. (1997-1998). 1:1 partenaire-síntoma ... , p. 400-416.
14 Freud, S. (1923). O Eu e o Id. ln: F.scn·tos sobre a psicologia do i11co11sciente, v. lll .. , p. 5S.
15 Lacan, J. 0985 [1972-731). Oseminário. Livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: M.
D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.142 e 143. Por sua vez, Miller cita e comenta essa frase em: Miller. J.-A.
0997-1998). Op.cit., p.400.
16 Mille,, J.-A. (1997-1998) Op.cit., p.392.
17 Idem, ibidem, p.392.
18 Idem, ibidem. p.392.
19 Lacan, J. (1962/1998). ''Kant com Sade''. ln: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Joge Zahar, p.776-803.
20 Miller, J. -A. (2009[2006-2007]). Perspectivas do Seminário 23 de lacan: o sinthoma. Revisão do texto: Tercsinha Prado.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Miller,J-A. (2011[2008-20091). Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Tradução:
Vera Avellar Ribeiro. Prcp:1raçào do texto: Carlos Augusto Nlcéas. Versão final e subtítulos: Marcus André Vieir;1. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
21 Miller, J.-A. (1997-1998). Ef purtenaire-síntoma .. ., p. 396.
22 Miller, J.-A. 0997-1998). E/ partenaire-síntoma .. ., p. 396. Para a noçiio de ~outu satisfa~•fo"", recomendo. no Seminárío 20,
a aula intitulada "Aristóteles e Freud: a outra satisfação'": J.ac:.m. J. 0972-1973). OS('llliniirio. Livro 20: mais, ainda ... , p.
70-86.
23 Miller, J.-A. (1997-1998). F.! partenaire-síntoma ... p. 396. No Seminário 20, esses termos citados por Miller se encontram
em: Lacan. J. (1972-1973). O seminário. Livro 20: mais, ainda .... p. 96.
24 Miller, ).-A. (1997-1998). E! parrenaire-síntoma ... p. 400.
25 Miller, J.-A. 0997-1998). E/ ptmenaire-síntoma . ., p. 397.
26 I.acan. J. (1972-1973). O seminário. Liuro 20: mais, ai11da .. , p. 94.
27 Trata-se dos versos de um poema Intitulado "Ébauchc d'un serpeme .. (1921): '·Que l'univcrs n·est qu·un défaut/ Dans la
pureté du Non-être". No Brasil, o poeta Augusto de Campos os traduziu assim: ~Que o mundo é apenas um defeito/
Ante a pureza do Niio-Ser"; cf.: CAMPOS, A. (1984). Paul Valé,y: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, p. 29. Por
sua vez. Lacan cita esses dois versos em: Lacan. J. 0960). ·'Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano". ln: Escritos ... , p. 834.
28 Miller,j.-A. 0997-1998). Elparte11aire-síllfoma ... p. 397.
29 Miller,J.-A. 0997-1998). Hlpartenaire-síntoma .. , p. 398 (grifos meus).
30 Em seu aspecto de gozo do significante, o gozo desdobra-se ainda em "gozo da palavra" e ·'gozo da escrita··. mas nfo
vou desenvolver aqui essas duas versões do gm:o do significante Cf. Miller, J.-A. 0997-1998). Fl partenaire-símoma ..
p. 400.
31 Miller, ).-A. 0997-1998). E/ partenaire-síntoma ... , p. 397.
32 Esse novo valor do falo foi aludido por Miller nas aulas 13 e 14 de seu curso Coisas deji11eza em psicanálise. Essas aulas
podem ser lidas em: MIU.ER, ).-A. (2008-2009). Perspectioas dus Escritos e Outros escritos de Lacan ... , p. 171-190

33 Miller. ).-A. 0997-1998). E! parrenaire-síntoma ... p. 401-402. Ver, também: l.acan, J. 095i-1958). Oseminário. Livro 5: as
formações do inconscien/e.. ., p. 119-125.
34 Lacan,j. 0954). "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". ln: F.scn'tos .. , p. 290.
35 Miller, _l. 0997-1998). El parlenaire-síntoma ... p. 408.
36 rreud, S. 0937). Análise terminável e interminável. .. p. 284-287.

Opção Llcmiana nº 62 147 Dezembro 201 l


37 Miller,]. 0997-1998). Elpartenaíre-síntoma ... , p. 408-409.
38 Miller, J. (1997-1998). E/ par/e11aire-síntoma .. , p. 409. Nesta mesma página, Miller diz claramente o seguinte: "quando
falo de parcc:iro-sintoma, cswu indicando- não concluindo, não considero que o trabalho já esteja prontÜ- a necessida-
de de uma nova definição do Outro, do grande Outro de Lacan como meio de gozo'".
39 Miller, J. (1997-1998). El partenatre-síntoma .. , p. 409.
40 Miller, J. (1997-1998). El partenaire-s(ntoma .. , p. 409.

Opção l..acaniana nº 62 148 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

JACQUES UCAN E SUAS DUAS CLÍNICAS*

JORGE FORBES (SÃO PAULO)


jorgeforbes@11ol.com.br

Destacamos no ensino de Jacques Lacan duas clínicas, cada uma respondendo a


um tempo diferente da organização do laço social: vertical e horizontal.
A primeira clínica, que se estende do início ele seu ensino, em 1953, até por volta
dos anos 70, se caracteriza pelo que Lacan chamou de "retorno a Freud". Retorno porque,
à época, Lacan entendeu que os primeiros discípulos haviam desvirtuado a psicanálise,
transformando-a em seu oposto, em um método adaptativo à realidade.
Foi aí que criou o conceito de "inconsciente estruturado como uma linguagem". Tal
conceito abriu quase um abismo na clínica psicanalítica entre os que "sentiam" o que o
paciente quereria dizer e não conseguia, por medo de suas fantasias primitivas e atemo-
rizantes, uma vez que concebiam o inconsciente como uma caixa de fantasias; e os que
"escutavam" o que o paciente dizia, na associação livre, ou na cadeia de significantes,
como ele preferia nomear. O ';sentir" o que o paciente quereria dizer, mas não conseguia,
foi muito criticado por Lacan.
No texto "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud", de 1957,
Lacan critica a noção de que o inconsciente seria uma caixa de fantasias, escrevendo:
"Desde a origem, desconheceu-se o papel constitutivo do significante [não das fantasias]
no status que Freud fixou de imediato para o inconsciente, e segundo as mais precisas
modalidades formais'' 1 .
A primeira clínica é baseada na leitura estrutural do conceito freudiano de Comple-
xo de Édipo. O complexo de Édipo pode ser pensado como um software de computador
que faz a ligação entre o usuário e a máquina. No caso, a estrutura edípica faria a ligação
entre o homem e o mundo, mundo entendido como a civilização. Bem melhor que os
softwares atuais - se fosse possível comparar - que envelhecem no espaço de um ano,
quando muito, o software freudiano foi válido por quase todo o século XX.
O sucesso do modelo edípico se deu, assim o compreendemos, pelo fato de ser co-
erente com o laço social estabelecido na modernidade, ou no Iluminismo. O laço social

Opção L.icaniana nº 62 149 Dezembro 2011


na modernidade se organizava em referência a padrões maiores, gerando uma distribui-
ção piramidal e vertical da sociedade, exatamente em torno desses padrões.
Nosso mundo organizava-se por um eixo vertical das identificações - um homem que-
ria ser igual a seu pai, ou a seu superior no trabalho, por exemplo. Padrões ideais orientavam
as formas de satisfação, ele amor, de trabalho, de aproximação e separação, ele ter e educar
filhos, de fazer política. Havia uma predeterminação de modelos nesse mundo vertical.
A estrutura edípica foi uma fotografia feliz dessa situação, a ponto ele se chegar
a confundir a fotografia com o fotografado, Ainda hoje, para muitos, parece que o ser
humano é "naturalmente" edípico. Bastante do que tem sido dito sobre psicanálise ainda
está no registro da compreensào ancorada no complexo de Édipo. Ao contrário disso,
defendemos a ideia de que considerar o real impede uma derrapagem no conhecimento
desbussolado atual e serve para nào cairmos em um relativismo cínico, conforme apre-
sentamos no livro A invenção do Futuro.
A pós-modernidade começa, nas últimas décadas do século XX, com a quebra do
padrão vertical de organização do laço social representada no Édipo,
O trabalho analítico não é o mesmo. Se na primeira clínica, a mais conhecida,
o trabalho se caracterizava por interpretar o não sabido, passível de ser transformado
pela significação; na segunda, o trabalho se caracteriza pelo enfrentamento a um não
sabido radical, pela mudança necessária na pessoa quanto à sua expectativa de guiar
sua vida pelo clássico: "primeiro pensa, depois age". Se há um furo inexorável na razão,
não existe, a partir daí, nenhum agir que seja totalmente justificado racionalmente. Por
conseguinte. nenhum agir sem risco. Por isso escrevemos anteriormente que passamos
do "Freud explica", para o "Freud implica",
O trabalho cio analista passa a ser o de dar consequência ao que o paciente diz, mais
do que esperança em um ilusório conhecimento escondido da felicidade. Entendemos que
a segunda clínica de Lacan é o melhor método para tratar a emoção dos pacientes, por
exemplo, afetados por alterações genéticas, pela coincidência epistemológica: por mais que
o conhecimento avance, uma sombra de desconhecimento o acompanha, e é nela, por
vestirem com expressões ele sofrimento prêt-à-porter essa sombra, que as pessoas adoecem.
Bem melhor que curativos ilusórios de resignação compadecida, acreditamos na
cura pela invenção de soluções singulares e na decorrente responsabilidade do paciente
por essas soluções. É a clínica que temos praticado.

Notas
Extraio da tese que fez. jus ao título de "Dou1or em Ciências'", ou1org:1do pela USP - Universidade de São Paulo (Neuro-
logia): "Desautorizando o sofrimento sociahnentc padroniwdo, em pacientes afe1ados por doenças neuromusculareÇ_
Lacan, J. (199811957]). "A instância da letra no inconsciente ou a r.t7..io desde Freud'·. ln Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,
p.516. Comentário nosso.

Opção lacaniana nº 62 150 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

LAcAN ToP01óG1co

BERNARDINO HORNE (SALVADOR)


horneba@terra.com. br

Lacan foi topológico do início ao fim de seu ensino. A topologia contém um ele-
mento singular das respostas que Lacan dá à pergunta de Freud sobre qual é a estrutura
do aparato psíquico e como funciona. Na primeira intervenção de seu ensino, em julho
de 1953, Lacan 1 propõe ler os fundamentos dos textos de Freud a partir dos três Regis-
tros, que, diz) são constitutivos da experiência humana: o Simbólico, o Imaginário e o
Real. O número três faz de Lacan um pensador topológico e 1953 é um salto do "a dois"
para o três que, como na trindade, três fazem um. Na clínica, o Sujeito-suposto-saber
introduz o terceiro elemento que é de veia 2 • De estrutura.
Freud dá partida às respostas com o "Projeto"3 . Uma estrutura, os neurônios, e
uma quantidade que circula ou se fixa, fi:xierung. Seu mmor é a nostalgia de um gozo
perdido, das Ding, causa última do desejo. Em "A interpretação dos sonhos'" Freud se
preocupa em deixar muito claro que esse lugar que descreve não tem referência na ma-
téria nervosa, na anatomia. Isto lhe facilita colocar o foco no escópico e no imaginário.
Seu modelo: o microscópio. As imagens, as imago, as Imagem Rainha. A outra cena.
Inclui-se aí a perspectiva da transmissão luminosa, a luz, que Lacan retoma em sua ideia
do ato analítico, que joga luz5, e a constituição da imagem no estádio do espelhd;. Cada
sonho tem seu umbigo, o Real que o fixa.
O último ensino de Lacan tem como centro de gravidade a passagem do A (outro)
para o Um7. Do Ser ao existir. Isto cem a ver com a mudança radical que sofre sua teoria
ao passar da linguagem para lalíngua. Do (A) Outro ao Um - se coloca em primeiro
plano o gozo. O Significante Um produz uma espécie de encarnação do significante no
corpo vivo. Assim, os significantes de lalíngua entram no falasser, produzindo gozo no
corpo. São significantes de signo positivo que vivificam o corpo8 • Nessa substância go-
zante9, o simbólico faz furos.
Em um segundo momento, lalíngua, estruturando-se como linguagem, se articula

Opç::to Lacaniana nº 62 151 Dezembro 2011


segundo a gramática e a sintaxe. É a lei da linguagem que funciona como Nome do Pai,
produzido perda ele gozo juntamente com novas formas de gozar. É então que algo ele
uma torção inicial ganha forma. A desordem das pulsões se organiza em torno dessa
substituiçào, organizando-se as associações de forma metonímica e metafórica. As coisas
ganham seu lugar. Essa torção, vista sob a perspectiva de lalíngua, mostra que, embora o
Significante venha do Outro, como o gozo é do Um, o significante é do Um. Isto implica
um simbólico em disjunção com o (A) Outro, um simbólico referido ao Um. Trata-se ele
um ponto de ancoragem para a rede sutil que se vai entretecendo com o Real, o Simbó-
lico e o Imaginário. O Nome do Pai como um simbólico que penetra o real, mas não a
serviço cio Outro (A), e sim cio Um. Com a linguagem entra o Outro, que traz consigo a
tendência gozosa para o laço social. Para isso, os três registros, que são heterogêneos,
nada têm em comum, devem manter-se juntos.
Lacan 10 afirma que o nó é real, não é uma metáfora ou modelo, e que o número é
seu suporte. Ele indica, como marca do real no simbólico, que nem tudo é possível, há
impossibilidades. Apesar disso, a clínica do nó borromeano permite entender qual é, em
cada um, a solução ou nó absolutamente singular para cada sujeito. Cada um tem seu
nó, embora haja tipos de nós: na neurose o nó é borromeano, nas psicoses há interpe-
netração dos registros.

Hepresentação
Pcs

Angústia
Inibição

ks

Desenho 1- Nó borromeano
de três, com as nominações: R s
Inibição, Sintoma e Angústia.
<I>
Fonte: Freud (19761 Ex-sistênda

Em "RSI"", lição ele 10 ele dezembro ele 1974, Lacan 0974-1975) toma seu nó e o
articula com Freud em "lnibiçâo, sintoma e angústia" 12 . Destaca ali a função de nomear.
A nomeação ganha um lugar essencial em seu ensino porque o nome enlaça. Por isso a
ideia de que o pai dá nome traz a força do Nome do Pai. A nomeação do imaginário é
a inibição, que é necessariamente a primeira, pois é a que pode deter, ao dar sentido, a
metonímia que tende ao infinito próprio do mecanismo da linguagem. A segunda nome-
ação é pelo simbólico, constituindo o sintoma. A angústia é a nomeação do Real, algo
que fica totalmente fora do sentido. Ex-siste 13 , diz LaGm. Nesse mesmo desenho, que traz

Opção Lac.iniana nº 62 152 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

o nó borromeano planificado, Lacan formaliza formas de gozo. O gozo do Outro (A) se


estabelece entre Real e Imaginário, toma o corpo, o gozo fálico se dá entre Simbólico e
Real e o gozo-sentido entre Imaginário e Simbólico.
O Real, o Simbólico e o Imaginário têm consistência de cordas que se vão trançan-
do, obedecendo a diversas circunstâncias e contingências. Lacan 14 elege três elementos
como o mínimo para entender esse espaço. Continua a sua insistência inicial no núme-
ro três e em criticar a clínica dos pós-freudianos, "à deux egos", o tratamento por dois
iguais e sua expressão clínica, a contratransferência 15 . O nó borromeano implica que há
sempre um terceiro mediando os outros dois. Entre Real e Simbólico há o Imaginário, e
assim sucessivamente. Quando se corta uma das três cordas, todas se soltam. Esta é uma
propriedade do nó borromeano. O humano tem seus registros separados, uns sobre os
outros. Posteriormente, Lacan passa a conceber o nó formado por quatro elementos. Os
três registros e um quarto, que os enoda borromeanamente.

R R
s

Desenho 2 - Nó borromeano enodado pelo sintoma


Desenho 3 - Osintoma desdobrado em Simbólico e Sintoma

O Sintoma é a nomeação pelo Simbólico, é resultado da incidência do Simbólico


sobre o Real. Trata-se de um furo que conduz ao nó. O Sintorna tem um elemento de
Real que ex-siste ao Inconsciente; desdobra-se em um elemento Simbólico e um ele-
mento Real. No início da análise o Real é de maior quantidade ou extensão. O gozo é
opressivo: G (++), ao passo que no final de uma análise ele é G (+-). Isto decorre das
reduções e redistribuições do Gozo, que produzem mudanças nos modos de enlace en-
tre Real, Simbólico e Imaginário. Estas mudanças configuram um novo fflodo de enlaçar
esses registros, resultado de uma Pi:!reversion. Um giro do nome do Supereu ao Nome
do Pai: "Há que supor tetraédico o que torna o laço borromeano, que perversão só quer
dizer versão do pai, que, em suma, o pai é um sintoma ou um sinthoma" 16 .
As .identificações também são enodamentos fortes que na análise deverão ser atra-
vessados. A identificação primeira é uma identificação canibalística ao pai, que exige,
para sua realização, uma dose de amor e admiração. Essa ancoragem selvagem, do cor-
po, no pai, contribui para fazer da função Nome do Pai um nó estável.

Opção Lacaniana n" 62 153 Dezembro 2011


Desenho 4 - Nó de Joyce. Fonte: Lacan (2007)

O nó de Joyce, que Lacan propõe no Seminário 23, consegue manter o registro


Imaginário junto aos outros dois registros que, por sua vez, se interpenetram. Se não
fosse deste modo, o registro Imaginário ficaria solto. É um Sinthoma, diz Lacan, que
funciona como suplência e consegue manter juntos os três registros ainda que não bor-
romeanamente. O Sinthoma tem função de enlaçar os três registros 17•

Texto traduzido por Teresinha N. M. Prado.

Notas

Lacan, J. (1963/2005). Des Noms-du-Pere. Paris: Seuil.


2 Lacan, J (2003). "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista <la escola". ln: Olltros Escritos. Rio de Janeiro:
J. Zahar, p.248-264.
3 Freud, S. (1895/1992). "Projeto de uma psicologia para neurólogos". ln OPCSF, vol.!V. Rio de Janeiro: Imago
4 Freud, S. {1900/1976). ªA imerpretaçào dos sonhos". ln Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard
Brasileira, vai.IV. Rio de Janeiro: Imago.
5 Lacan, J. (2003). "O ato psicanalítico". ln: Outros escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, p.371-379.
6 lacan, J. 0949/1998). "O estádio do espelho como formador da função do eu". ln: Escritos. Rio de Janeiro J. Zahar, p.96-
103.
7 Mi!ler,J-A. [2011-12]. E/ sery el imo. Curso dei 18 de mayo 2011. Inédito.
8 Miller, J.-A. 0998). ~o osso de uma análise". Agente: Revista de Psicanálise. EBP-BA. p.107-116.
9 lacan, J. 0985 (1972-731). O Seminário, livro 20: mais. ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
10 l.acan, J. 0974-751. ~RSI". Seminário 22. Inédito.
11 Idem, ibidem, lição de 10 de dezembro de 1974 Inédito.
12 Freud, S. (192611976). "Inibição, sintoma e angústia"'. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, vai.XX. Rio de Janeiro: Imago, p.95-201
13 Lacan, J [1974-751. Op.cit.
14 Idem. ibidem.
15 Lacan, J. (1998). ~A direção do tratamento e os princípios do seu poder". ln: F..scn·tos. Rio de Janeiro: J. Zahar, p.591-652.
16 lacan, J. ( 2007 11975-761). O Seminán·o, livro 23: O Simhoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.21.
17 Schejtman, F. (2010). ~Encadenamientos y desencadenamientos". Anela: Psicoanálisis y Psicopatología: Revista de la
Cátedra II de Psicopatología de la UBA, (3).

Opção Lacaniana nº 62 154 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UCAN SUPERVISOR

RôMULO FERREIRA DA SILVA (SÃO PAULO)


rom11/ofs@110/.com. br

No texto "Situação ela psicanálise e formação cio analista em 1956", lacan expõe
e critica a formação do analista na IPA. Ainda fazendo parte desta instituição, coloca-se
contra outras visões defendidas pelos grupos dominantes. Inaugura, de certa maneira,
sua proposta ele formação que se apresentará em 1964, no texto "Ato ele Fundação'.
Em sua reconquista do campo freudiano, na ocasião ela fundação ele sua Escola,
Lacan retoma as palavras de Freud quando propõe "que se restaure a sega cortante
de sua verdade'' 1 , reconduzindo, sob o nome de psicanálise, a uma crítica assídua e à
denúncia dos desvios que degradam o emprego ele seu nome. Ele propõe um controle
interno e externo da prática psicanalítica. Toda inovação será remetida à Escola a par-
tir de então. Lacan propõe que a Escola assegurará o controle ela prática daqueles que
se vincularem a ela. O controle se impõe desde o .início da formação e a preocupação
recai também sobre o paciente que se submete ao tratamento analítico. É interessante
notar que se trata de um controle no sentido forte do termo. A Escola toma para si uma
responsabilidade mais do que moderna no que tange a uma espécie de 'proteção ao
consumidor', já que se ocupa de controlar se o que está sendo realizado no tratamento
merece o nome de psicanálise. Ele aponta que esta exigência já está, nessa época, 'na
ordem do dia em todos os lugares'.
A transferência é ponto privilegiado para Lacan nesta prática, porém, a Escola se
abstém de propor uma .lista de didatas e supervisores que seriam propostos aos candi-
datos. A transferência é o que orienta a escolha do analista e do controlador/supervisor.
Os seminários de formação teórica, ela mesma forma, obedecem à lógica da transferência
na constituição da formação dos analistas.
Em 1967, em sua "Proposição de 9 de outubro ... ", Lacan amplia sua proposta de for-
mação do analista, criando o gradus. Ele diz que o analista só se autoriza por si mesmo.
Propõe o gradus ele AME, dado pela Escola, através do reconhecimento do percurso reali-

Opção Lacaniana nº 62 155 Dezembro 2011


zado pelo praticante que deu provas de manter sua prática dentro do que foi proposto por
Freud como psicanálise. O título de AE, solicitado pelo praticante/analisante, e consenti-
do pela Escola a partir do dispositivo do passe, garante a relação do analista com o real
que se apresenta em sua prática clínica. Ele introduz o desejo do analista em oposição
à contratransferência, e baseia a relação do controlador/controlante na relação analista/
analisante. O agalma do analista reveste seu desejo, e é isto que se apresenta como uma
espécie de lista que a Escola pode oferecer. A atividade de controle/supervisão escapa à
busca de um olhar mais amplo e recai sobre a possibilidade de uma voz mais eficaz. "O
controle das capacidades nào mais é inefável, por requerer títulos mais justos".
Não mais uma posição burocrática e estática de uma lista fixada, mas uma possi-
bilidade viva de trabalho a partir de um desejo que a alimenta.
"Assim, é inútil que alguém, por se acreditar figura de ponta, nos ensurdeça com
os direitos adquiridos de sua 'escuta', com as virtudes de sua 'supervisão' e com seu
gosto pela clínica, ou que assuma o ar entendido daquele que detém algo mais do que
qualquer um de sua classe". 2
Em sua "Carta de Dissolução", de 05 de janeiro de 1980, Lacan 'persevera'' em sua
proposta de formação do analista para que o vivo que Freud criou não seja engolido por
uma prática religiosa, tornando-se a instituição psicanalítica, uma igreja.
A supervisão ultrapassou as barreiras da prática psicanalítica padrão. Ela se colo-
cou também no âmbito do trabalho institucional e fez história.
A história da 'psicoterapia institucional' pode ser localizada em suas origens, nos
séculos XVIII e XIX, se tomarmos as experiências dos eminentes psiquiatras dessa época
que propunham que o hospital psiquiátrico poderia ser tomado como formas de trata-
mentos das doenças mentais. Muitas são as referências nesse setor. Destacam-se Pinel e
Esquirol como os grandes questionadores e promotores dessa discussão.
François Tosquelles, em Saint-Alban, promoveu uma grande revolução na institui-
ção hospitalar, baseado no que leu na tese de doutorado de Jacques Lacan. Ele propunha
uma terapêutica mais ativa com os pacientes, e que houvesse uma responsabilização dos
mesmos nos tratamentos empregados. A respeito dessa experiência, Lacan comenta em
seu texto "Alocução sobre o ensino" que, apesar de sua tese de medicina ter sido o fio
com que Tosquelles deslindou o labirinto do hospital em que trabalhava, sua bela tese
dormia. Ou seja, Lacan reconhece sua influência nos rumos que a supervisão institucio-
nal tomava, não sem criticar a leitura simplista que Tosquelles fazia de seu ensino. Até
hoje, a experiência de Saint-Alban ecoa, porém, há retoques ainda necessários.
Bion e Rickmann foram importantes na consideração que Lacan fez sobre o traba-
lho institucional, levando para o seio da comunidade analítica a experiência ele trabalho
em pequenos grupos, que se consolidou como o Cartel na Escola de Lacan.
O Cartel, célula da Escola de Lacan, não deixou de ter influência nas experiências

Opção Lacaniana nº 62 156 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

de supervisão institucional que continuam ocorrendo em todo o mundo. A posição do


supervisor institucional ou do supervisor na instituição segue a orientação lacaniana de
saber não saber. De fazer surgir do lado do supervisionando a sua maneira de conduzir
o caso e de confrontá-lo com o desejo do analista.
Temos acesso a relatos de analistas que passaram por ~upervisão com Jacques
Lacan. O mais surpreendente, no meu entender, é aquele em que ele marca uma supervi-
são para um analisante que não recebia pacientes. O analisante titubeia, não sabe o que
levar para a supervisão, praticamente se recusa à supervisão, e Lacan insiste. Através da
imposição da prática da supervisão, Lacan força a passagem da posição de analisante à
posição de analista. A meu ver, trata-se de uma exigência de ato. Uma precipitação para
que o analisante faça seu passe, pelo menos o clínico.

Notas

Lacan, J. (2003), "Ato de fundação". ln Outros escritos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge 7.ahar.
2 Lacan, J. (2003). "Discurso na Escol.i Freudiana de Paris". Ibidem, p.265.
3 Pere sévêre - homofonia utilizada por l.acan para dizer que persevera, como pai severo, em sua proposição de manter a
"sega cortante da \'Crdade freudiana". Cf Lacan, J. (2003). "Carla de dissolução". ln Op.cit., p.320.

Opçào Lacaniana n" 62 157 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

A INCONSISTÊNCIA DO ÜUTRO

ANTONIO BENETI (BELO HORIZONTE)


aabeneti. bhz@gmail.com

O conceito de inconsistência do Outro é conseqüência da mudança do estatuto


teórico do Outro no ensino de Lacan. Jacques-Alain Miller, em "Iluminações profanas",
lição 18, assinala 7 referências distintas no conceito de Outro: como lugar da verdade;
como lugar do código lingüístico; como tesouro dos significantes; como bateria signi-
ficante fonológica; como inconsistente: como S (A) (Outro que não existe Todo-Sim-
bólico; desde que o real faz obstáculo a isso); como Suposto Saber; topológico - que
opera em relação a um objeto a que não é o objeto do fantasma. Outro de "estrutura
folheada", repetido muitas vezes sob formas diversas, como envelopes indefinidamente
repetidos de parênteses ((( ))). Estrutura que integra a repetição (gozo) e coincidirá
com o objeto a.
Para a elucidação desse conceito, partiremos da grande questão de Lacan: a forma-
lização do conceito freudiano de libido.
Lacan começa situando a libido na dimensão imaginária, nos seus casos "Aimée" e
das "Irmãs Papin". E, por exemplo, em "Agressividade e psicanálise".
O esquema Z nos elucida sua localização no eixo imaginário (a - a') com a ero-
tomania (eras) e sua vertente persecutória pulsional mortífera (tânatos). Nos anos 50,
em seu "retorno a Freud", com o "Discurso de Roma", até a teoria dos quatro Discursos,
com seu axioma fundamental - O inconsciente está estruturado como uma linguagem -
introduz a dimensão simbólica, na qual o conceito de estrutura é fundamental. O Outro
é tomado como lugar do inconsciente (onde se dá a conjunção entre significante e sig-
nificado) e estrutura simbólica da relação analítica. Assim, o par analítico é tomado, no
esquema Z, em seu eixo simbólico (S-A).
Temos, nesse momento, uma operação de redução simbólica, de significantização
da libido, de castração simbólica do sujeito do inconsciente em suas relações com a libi-
do e o Outro da linguagem como comunicação, operação que produz uma mortificação

Opção La.caniana nº 62 159 Dezembro 2011


da libido: o simbólico é a morte da coisa, e o operador da castração é um significante
especial, o Nome-do-Pai.
Essa construção teórica trouxe a necessidade de um desdobramento do Outro em
seu interior: como estrutura (Outro como tesouro dos significantes) e como ponto de
estofo (Outro da Lei, o Nome-do-Pai como tal no interior do próprio Outro do signifi-
cante). Nesse momento o Outro existe. O Outro do Outro é o Outro da Lei, "garantia" da
intenção de significação e ponto de estofo do primeiro como estrutura. Trata-se de um
Outro Todo-simbólico, semblante de consistência.
A estrutura simbólica é o que diz respeito ao ser falante desde que ele habita a
linguagem, submetido à lógica do significante e à ordem simbólica. Isso coloca, de forma
intrínseca e fundamental, um defeito, um buraco no seu universo, o da linguagem como
comunicação. A estrutura é uma organização topológica desse buraco - que o faz não-
todo simbólico - no Outro.
Mas, e a relação da libido com o corpo mortificado por sua significantização'
Surge aí um problema teórico que tem consequências na experiência psicanalítica:
essa operação simbólica, de absorção da Coisa no Outro, na qual a linguagem apaga o
gozo e o absorve. é inexata (tal como uma divisão de 10 por 3). Ela deixa um resto de
libido, um resto pulsional, inominável, irredutível a um significante. Um mais-de-gozar
que escapa a essa significantização e ficará evidente, por exemplo, na reação terapêutica
negativa.
A libido corre na cadeia significante, 'entre', mortificada pelo significante, e viva,
nesse resto, nessa consistência real, o objeto a.
A estrutura é o que dá conta dessa tomada do corpo vivo no simbólico e sustenta
a forma como se articulam o sujeito, o Outro e o objeto a, a partir desse defeito no uni-
verso simbólico (A).
Nela, o sujeito está em exclusão interna com relação ao seu objeto. Desde que
representado por um significante para outro significante, estará sempre fora. excluído
da cadeia significante. Aí a libido como desejo e o corpo, ambos como simbólicos,
encontram-se mortificados.
Em exclusão interna de seu objeto, o sujeito falta a ser. Na operação de castração
simbólica, esse resto de gozo, vivo, lhe escapa. Nessa posição de exclusão da cadeia
significante (entre dois), o sujeito está desenlaçado desse resto de mais-de-gozar a serre-
cuperado por ele, em um esforço de vivificação desse corpo mortificado simbolicamente,
que só se enlaçará como falasser (parlêtre): (S 1.a). Aí se enlaçam, borromeanamente (por
RSI), linguagem (não como comunicação e sim como lalíngua) e gozo, reintroduzindo
o resto pulsional (objeto a).
Com o conceito de objeto a, o Outro será 'não-todo simbólico', com seu buraco
central, resistente à operação de castração simbólica, e organizado ao redor de um va-

Opção Laainiana nº 62 160 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

cúolo de gozo que se aloja em um ponto de 'extimidade', no ponto 'o mais íntimo' do
ser, que permanece, entretanto, radicalmente heterogêneo, irremediavelmente incomple-
to, em falta, inconsistente, na medida em que contém um elemento real, diferente dos
outros, que são simbólicos. Então, permanece 'inexistente' como 'Todo-simbólico', para
sempre com um buraco central, lugar do significante da falta simbólica nesse Outro,
que Lacan escreve, nesse lugar, S (A:), marcado pela falta do gozo como significante.
Significante da falta no Outro, diferente dos outros significantes e que, solitário, não faz
par com outro significante, aquele sem o qual os outros não representariam nada, só
podendo ser ele mesmo concebido como éxtirno em relação ao Outro.
Significante a ser inventado pelo sujeito, causa de gozo, nome de gozo do sujeito,
do mais íntimo do seu ser: o sinthoma. Libido localizada na sua dimensão real, enlaçada
ao simbólico, corpo vivificado.
Por isso o Outro só pode ser inconsistente, marcado pela incompletude, pelo fato
de que apenas um elemento heterogêneo pode vir no lugar de sua falta.
Então, "o Outro não existe", "não há Outro do Outro": o defeito no universo sim-
bólico é fundante. O que resta, consequentemente, como Outro do Outro, o que funda
a alteridade do Outro é o objeto a como resto não simbolizado da Coisa.
A topologia do nó borromeano surge, então, para reformular o conceito de estru-
tura e exclusivamente a partir das categorias ela experiência analítica que são RSI: o nó
borromeo, como esforço para pensar a estrutura, o simbólico, fora de uma referência ao
Outro, como condição de possibilidade da experiência analítica.
Lacan, então, circunscreve o Um, o gozo, a partir das 3 dimensões heterogêneas:
RSI. Com o ser falante, o falasser se sustentando nesses 3 registros, circunscrevendo aí
algo de um gozo fixado a partir de um quarto termo, solução sinthomática.
É ao redor da falta central que a lógica do significante funcionará. Como o signifi-
cante é diferencial, não existe o todo possível do significante, sempre faltará um (parado-
xo de Russel, na sua teoria dos conjuntos, pelo qual sempre haverá um elemento faltante
ou que torna o conjunto incompleto, paradoxo de 'demonstração' da inconsistência do
Outro).
Para formar um Todo é preciso um a mais, que não está incluído, que faz exceção
(S (A:), S1 sozinho, que não faz par). A é então incompleto, comporta uma falta e nesse
lugar, o que faz consistir o A é esse significante exterior, suplementar, que faz uma bor-
da, S (.A), que vem completar o Outro. Então, quando é introduzido um elemento, hete-
rogêneo, isto mostra que o Outro é inconsistente). Incompleto ou inconsistente, o Outro
só existe barrado. "A marca ela incompletude é como o brasão do Outro "1.
Na questão ela nomeação, o sujeito tentará designar um significante por si mesmo,
para vir ocupar esse lugar lógico do ponto de inconsistência. É no ponto mesmo da fal-
ta do Outro, onde falta o significante que poderia nomeá-lo, que o sujeito se encontra

Opção Lacaniana nº 62 161 Dezembro 2011


suspenso, excluído. Na falta de ser nomeado, ele só pode ser representado na cadeia
significante. O sujeito, primeiramente dividido pelo objeto, nós o reencontramos aqui,
dividido pelo significante. Portanto, esse furo central, íntimo, será o lugar vazio da causa
do desejo, com o objeto a como consistência real colocado extimarnente.
Temos então uma causalidade estrutural a partir desse lugar vazio, real, do S (A).
A estrutura do Outro, sempre incompleta, não se fecha jamais sobre si, comportando
sempre um resto, sempre fora dela. A causalidade estrutural repousa então sobre uma
exclusão interna da causa na estrutura. Portanto, duas vertentes cio objeto a: de pura
ausência, objeto como causa do desejo (divisão do sujeito para além cio fantasma), e de
'rolha' (sutura fantasmática), objeto como resto, agalma e dejeto. O objeto a, como corre-
lato da falha no Outro, é consistência lógica que vem completar a inconsistência do Outro
que não existe.

ÜUTRAS REl'ERÉNCIAS

Lacan, j. (200811968*69]). O seminán'o, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Miller, J.-A {18/12/961. "O Outro que não ex.iste e seus comitês de ética~. Inédito.
Skriabine, P. (abr/dez 2001). "O defeito no universo"/ "Clínica do nó Borromeano". ln Phenix, (1/2).
Rev.Del.PR/EBP.

Nota

1 Miller, J.-A. [2005-061. "Iluminações profanas". Curso de Orientação Lacaniana, lição 9. (Inédito)

Opção Lacaniana nº 62 162 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

A TRANSMISSÃO
DA PSICANÁLISE:
ENTRE A REFUNDAÇÃO LACANIANA E A
INVENÇÃO PRÓPRIA DE CADA UM

SANDRA ARRUDA GROSTEIN (SÃO PAULO)


sgrostein@uof.com. br

O que passa - o que fica

É sobejamente conhecido, mas, de ten1pos em tempos, vale a pena relembrar que


a transmissão da psicanálise só se apresenta como uma questão a partir do momento em
que não se utiliza mais o protocolo proposto pela IPA, com as regras ele formação do
analista bem estabelecidas.
O protocolo, através da análise e da supervisão didáticas, e do estudo cios con-
ceitos, supostamente seria capaz de trans111itir o que interessa em psicanálise, ou seja,
formar analistas.
Ao romper com a proposta de análise didática, Lacan rompe com esse protocolo e
apresenta a Escola como lugar alternativo ao das Sociedades, e o passe como dispositivo
de verificação, em vez da suposição de saber no analista didata.
Estas duas substituições visavam diluir o "encantamento pernicioso" que, de acor-
do com Lacan, se exerce sobre a prática e sobre a produção teórica em uma relação
solidária e de cumplicidade quando aquele que se apresenta se confunde com o público.
Quando, ao se apresentar perante uma plateia, o psicanalista só pretende fazer "boa fi-
gura", paga por seu staL'us de analista com o preço do esquecimento do ato que o funda,
sugere Lacan.
Transmitir, transferir, transportar, comunicar através de contágio, fazer passar si-
nônimos ou sentidos diferentes dos que podemos encontrar nos dicionários - a função
de recuperá-los é explicitar que todos estão incluídos quando falamos de transmissão da
psicanálise. Vou privilegiar dois para os propósitos deste texto: o de comunicar através
de contágio e o de fazer passar sentidos diferentes, metaforicarnente.
Podemos chamar de refundação lacaniana 1• com Jacques-Alain Miller, o apoio, ne-

Opção lacaniana nº 62 163 Dezembro 2011


cessário, da psicanálise no campo da linguagem e na função da fala, no discurso, suge-
rindo um deslocamento do foco do que era então objeto de interpretação - os aspectos
afetivos. O alvo da Didática - conjunto de teoria e técnicas relativas à transmissão do
conhecimento - era acompanhar o não analista até que estivesse apto a exercer a psica-
nálise. validado no contexto institucional; buscava-se a transmutação de uma posição de
ignorância à de saber, adquirido pela experiência.
Para Lacan, no entanto, não se ensina a ser psicanalista. A transmissão da psicaná-
lise se confunde com a própria psicanálise, o que faz dela uma disciplina muito particu-
lar, em que aparentemente o saber e o fazer não estão dissociados.
Segundo Jacques-Alain Miller, em seu Curso Silet, transmissão é o termo utilizado
para nos referirmos ao materna, às escrituras, ou seja, há algo na psicanálise suscetível de
se transmitir integralmente, isto é, a transmissão fica assegurada por ter sido reproduzida
tal qual na escritura, nas regras de funcionamento, sendo portanto passível de verifica-
ção. Com esse objetivo lacan propõe o dispositivo do passe. Ao seguirmos essa ideia,
constatamos que a vertente de transmissão integral, ou ainda o aspecto de finitude, em
psicanálise, alcança seu limite na formalização, no passe.
No entanto, é preciso admitir que há algo resistente à formalização, "um compo-
nente tradicional, não eliminável da psicanálise, um aspecto que poderíamos qualificar
como iniciático"2, devido ao fato de se transmitir na prática do um a um. Tal qual na
metáfora utilizada por Freud, ela é comparável à peste, isto é, funciona como uma via
de comunicação pelo contágio. A psicanálise resiste a ser integralmente transmitida: "se
a psicanálise fosse toda transmissão, a supervisão se faria pelo materna", por exemplo.
Logo, podemos identificar nisso que sobra, resistente a ser transportado através da aná-
lise, o fator de impasse entre repetir e inventar ou inovar, evidentemente respeitando
certos limites na invenção, uma vez que se deve permanecer no quadro da psicanálise.

"afreudisíaco introjetado na galáxia de lalíngua"

Como consequência, poderíamos afirmar que, no que diz respeito à transmissão


da psicanálise, o "materna e a teoria vão na contracorrente da prática" 3 . Trata-se de um
desencontro, pois a vertente através da qual ela se apresenta como sem fim - sem finali-
dade e sem final - é a que se desprega da outra vertente, que visa um fim. Nesse sentido,
descrevendo a psicanálise como um artifício cujos componentes Freud forneceu, Lacan
lhes acrescenta a Escola - o passe e o ensino como prolongamentos necessários para dar
conta do desencontro.
Logo, se Lacan completa a experiência analítica com o passe - "uma nova forma
de dizer como o sujeito conta ter escapado da repetiçâo'>4, inclui-se aí o novo como estilo

Opção Lacaniana nº 62 164 Dezembro 201 I


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

próprio de cada um. Para abordar a questão do estilo é preciso apelar para os poetas, e
Haroldo de Campos nos ajuda na tarefa: em texto publicado no Correio em 1998, Harol-
do de Campos elucubra sobre o estilo Lacan, iniciando com uma digressão sobre a pró-
pria palavra estilo: "Passe metonímico, o transpasse de significantes que o instrumento
manual da escrita (stylo) passou a designar a marca escriturai mesma: o estilo" 5•
No desenvolvimento do texto localizamos os limites ela fala e sua recuperação no
escrito, e como estes participam do estabelecimento de un1 estilo:

"Esta preocupação ou ocupação com o estilo, de parte de um psicanalista, não causa espécie
a um escritor - a um poeta-. esta ocupação, no sentido latino, de ob capire, de tomar posse
do terreno vacante para outros seguidores menos criativos e que somente no retorno a Freud,
o percurso de volta ao precursor se faz por uma radicalização do discurso analítico. É o que
me proponho chamar de afreudisíaco Lacan. O que outra coisa não é senão um exponenciar
em princípio obsessivo de estilo, um elevar até a extrema potência de linguagem aquilo que,
em Freud, era sobretudo um dispositivo de leitura analítica (ainda quando rastreável nos
paradigmas dispersos de uma indubitável predisposição escriturai). Por isso mesmo chamei
a intervenção do "estilo" Lacan na formação cio analista e no evolver do discurso analítico
a partir do lado microtonal de Freud, um "afreudisíaco introjetado na galàxia de lalíngua,,6.

"Vou lê-lo, ou melhor, vou dá-lo, de seu escrito, a ouvir" 7•

A experiência não dá passagem a nada que possa modificá-la

Para concluir, a transmissão da psicanálise, em sua parte resistente, pede o comen-


tário permanente, mais exatamente o próprio ensino. Lacan entendia o seu ensino como
prosseguimento da análise por outros meios, transferência de falas, a fala do analisante
se tornando fala que ensina 8 ou, ainda, o fato de que se retorna sempre à posição de
analisante quando se ensina.
Lacan, com seu estilo, não cessou de criar diferentes estratégias para articular o
que passa e o que resiste na transmissão da psicanálise. Em seu texto sobre Scilicef9,
Lacan justifica mais esse artifício ao criar uma revista na qual os artigos não eram assi-
nados:
A proposta - inspiração que me ocorreu corno a única apropriada para desfazer a
contorção pela qual, em psicanálise, a experiência se condena a nunca dar passagem a
nada que possa modificá-la, é que o nó está no fato de que é da natureza dessa expe-
riência que quem dela dá conta a seus colegas não possa fixar para sua literatura outro
horizonte senão o de fazer boa figura.

Opção Lacaniana nº 62 165 Dezembro 2011


Atualmente, não utilizamos o mesmo artifício, pelo contrário, a assinatura em um
texto de psicanálise é bastante valorizada, mas o princípio deveria ser mantido se enten-
demos que a continuidade da psicanálise no mundo depende do tipo de transmissão,
que articula o que passa de analisante a analista e, concomitantemente, mantém o lugar
de analisante: quando um psicanalista se apresenta em sua prática ele sustenta o lugar
do desejo analista; por outro lado, enquanto ensina ele ocupa o lugar de analisante10 •
Para tanto, é preciso abrir mão de buscar fazer boa figura entre seus pares com sua
pequena diferença, tirar consequências do ato que ali o posicionou e, com seu estilo,
sustentar a diferença absoluta 11 .

Notas

Expressão utilizada por Jacqucs-Alain Miller cm seu curso Sifet.


2 Miller, J.-A. (2005). "Entre tradição e transmissão da psininálise". ln: Sílet: Os paradoxos da pulsâo de Freud a Laca 11. Rio
de Janeiro: Zahar, p.90-102.
3 lbid
4 Ibid.
5 Campos. H. de. (1998). "O Afrcudisíaco Lacan na G:li:íxüi da lalíngua. (Freud, l.ac:10 a Escritura)'' ln: CorrC'io nº 18/19.
Belo Horizonte: Escobi BrJsilcira de Psicanálise cio Campo Freudiano, p. 136-158.
6 Ihid.
7 Ihid.
8 Miller. J.-A. (2005). ;.Entre tradição e transmissão da psicanálise" ln: Silet: Os paradoxos da pulsào de Freud a Laetm. Rio
de Janeiro: Zalrnr, p. 90-102.
9 Lacan, J. (2003). "lntroduç)o de Scilicet no título da revista da Escol:! Freudiana ele Paris". ln: Ou/ros &cri/os. Rio de
Janeiro: Zahar, p. 288-298.
10 l.acan J. (2006). Meu Ensino. Rio de Janeiro: Zahar.
11 lacan J. (2011). Esto11Ja/a11do com as paredes. Rio de Janeiro: Zahar.

Opção L:icaniana nº 62 166 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

LAcAN E o OBJETO a, EM TRÊS TEMPOS

SIMONE SOUTO (BELO HORIZONTE)


ssouto.bhe@terra.com.br

O objeto a é uma invenção de Lacan. Esta invenção, é preciso situá-la em seu lugar,
isto é, na tentativa de Lacan de capturar o gozo em sua vertente real, no esforço de Lacan
para, no percurso de seu ensino, escrever o real através de um materna. Nesse percurso,
nesse caminho para o real, constatamos que a natureza desse objeto será modificada.
Conforme nos mostra Miller\ antes de Lacan inventar o objeto a, o gozo era apre-
sentado como maciço, inalcançável, tal como o encontramos no Seminário 7 (A ética da
psicanálise), sob a forma de das Ding - a Coisa, A invenção do objeto a permitirá uma
abordagem do gozo mais modesta, mais reduzida e, ao mesmo tempo, mais manejável
do que a Coisa, na medida em que esse objeto faz surgir um gozo fragmentado, par-
cializado, condensado, um gozo que é o resultado do desbaste da Coisa pela operação
significante2. O objeto a surge, portanto, como um elemento de gozo, um elemento que
dará ao gozo um caráter múltiplo, verificável não somente na multiplicação desse objeto
(uma vez que Lacan, ao inventá-lo, adiciona novos objetos - olhar e voz - à lista dos
objetos freudianos, seio e fezes) mas, também, nas diferentes maneiras como esse objeto
será abordado no trajeto de seu ensino.
Pretendo situar, neste texto, três tempos desse trajeto que marcaram o meu próprio
percurso com relação ao que essa invenção de Lacan pôde me transmitir.

O objeto da transferência

De início, privilegiarei o objeto a tal qual apresentado por Lacan pela via da trans-
ferência. No Seminário 8, encontramos o objeto a como agalma, ou seja, um objeto
precioso que é, em última instância, o que seria visado no ser amado3 •
O objeto a, nesse contexto, aparece como sendo a mola do amor de transferência

Opção Lacaniana nº 62 167 Dezembro 2011


e o que sustenta a suposição de saber. Lacan o define como aquilo que a psicanálise
descobriu sob o nome de objeto do desejo, objeto parcial, na medida em que é "o pivô,
o centro, a chave do desejo humano''-\. Mas esse objeto valioso acaba por mostrar sua
natureza e, também, sob que condições pode se tornar o ponto de sustentação da trans-
ferência, ao surgir como um vazio, um nada que causa a suposição de saber. Partindo
do exemplo de Sócrates, no Banquete de Platão, Lacan demonstra que um analista só é
suposto saber por abrigar esse nada, esse vazio a partir do qual uma significação pode
ser suposta.
Assim, ao situar o objeto a, em sua função de agalma, Lacan o relaciona com o
enigma do desejo do Outro, que diz respeito à posição que o próprio analista ocupa
com relação ao desejo constitutivo da análise e a partir do qual o analisante se engaja
na produção de um sentido. Por outro lado, esse objeto é relacionado, também, com a
falta-a-ser do sujeito, na medida em que é requerido como aquilo que do Outro poderia
satisfazer o desejo e curar essa falta. Nessa relação do sujeito com o objeto, é possível
reconhecer a estrutura daquilo que Lacan nomeou como fantasia.
Dessa forma, no contexto do Seminário 8, no que concerne à tentativa de Lacan de
apreender o gozo pelo objeto a, podemos dizer que ela se realiza por meio da fantasia,
cuja notação $<>a aparece formalizada no texto "Subversão do sujeito e dialética do de-
sejo no inconsciente freudiano'' (1960)', contemporâneo a esse Seminá,•io (1960-61). Na
fantasia, o gozo é apresentado como a realização de um desejo proibido, um gozo que
só pode ser experimentado através da transgressão. Assim, como demonstra Lacan em
"Kant com Sade" (1962), a fantasia é ao mesmo tempo vontade de gozo e defesa contra o
gozo6 . Na fantasia, o objeto a é capturado por um sentido que busca suas coordenadas
no desejo do Outro. Trata-se do objeto que se é para o Outro. É, portanto, um objeto
que se situa na ordem do ser. É desde esse lugar que o objeto a certamente localiza um
gozo, mas um gozo através do qual o sujeito se defende do real.

O objeto e a angústia

No Seminário 10 (1962-63), Lacan. perseverando na via do objeto a como uma


possibilidade de acesso ao real, escolhe o tema da angústia. Seu interesse se volta, então,
para outra vertente do objeto a, distinta daquela do agalma. O que importa agora não é
mais o objeto no que ele pode ter de valor, mas, pelo contrário, o objeto na dimensão de
resto, do resto como absolutamente distinto de toda significação. Nesse Seminário, Lacan
nos alerta para o fato de que o objeto a não é exatamente um objeto próprio da angústia.
O que ele nos diz é que a angústia tem relação com o objeto, ou seja, é porque existe
objeto que existe angústia. A angústia existe como sinal da presença do objeto. Portanto,

Opção Lacaniana nº 62 168 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

o que move Lacan no Seminário 10 é, sobretudo, o real e o objeto, sendo a angústia o


recurso que ele utiliza para apreendê-los.
Como nos esclarece Miller, até então o real era abordado a partir do significante,
mais precisamente, pelo 'falo' que, ao significantizar o gozo, promovia uma mortificação
do corpo 7• De forma distinta, nesse Seminário, Lacan tenta encontrar uma estrutura não
significante para abrigar o gozo. Trata-se daquilo que, na economia de gozo de cada
um, não participa do gozo fálico. Trata-se dessa parte do gozo que resta, um resto que
permanece rebelde a toda significação, a parte viva do gozo impossível de negativizar.
No Seminário 10, conforme precisa Miller, "a positividade do gozo se desprende do sig-
nificante e é expressa pelo objeto a" 8 .
Assim, o objeto a aparece como um órgão, a libra de carne, em que apresentações
do real se fazem de uma maneira um tanto material através do seio, das fezes, do olhar
e da voz, ou seja, de objetos que se ligam às zonas erógenas e aos orifícios do corpo.
Miller chama nossa atenção para o fato de que essa emergência do objeto a como um
órgão de gozo abre a via para outra concepção da castração, que aparece não mais como
uma ameaça vinda do pai e inscrita na trama edípica, mas como extração do gozo) ou
seja, como perda, como separação do objeto a, na medida em que ele presentifica esse
órgão que condensa o gozo9 .
No entanto, mesmo que no Seminário 10 o objeto a se aproxime muito mais
do real ao apresentar-se como uma unidade de gozo que não é afetada por nenhuma
negatividade, sua positividade só encontra seu lugar como um excedente de gozo que
vem suprir a castração e, em última instâncía, como Lacan demonstrará mais tarde, a
inexistência ela relação sexual. É, portanto, com relação à inexistência do Outro e à con-
sequente falta-a-ser do .sujeito que esse objeto é inlroduzido para preencher uma perda
de vida. Assim, o objeto a, nesse contexto, continua cativo da fantasia e é ainda uma
defesa contra o impossível, uma objeção ao real.

O objeto é semblante

No Seminário 20, Lacan promove uma distinção radical entre o objeto a e o reaJIº·
Ele situa o objeto a no caminho que se dirige do simbólico para o real e diz que, nesse
caminho, a verdadeira natureza do objeto a se demonstra. Portanto, é somente após um
longo percurso de seu ensino, no decorrer do qual o próprio Lacan sustenta essa direção
do simbólico ao real, que ele, depois de ter inventado o objeto a, pôde situar o que diz
respeito à sua verdadeira natureza. Como sublinha Miller, a verdadeira natureza do obje-
to a, ainda que ele se encontre no caminho para o real, está relacionada ao ser, ao sem-
blante, e não ao real' 1 . Retomando Lacan no capítulo 7 do Seminário 20, Miller afirma:

Opção Lacaniana nº 62 169 Dezembro 2011


"chamamos de objeto a ao que, nesse desastre do sujeito que se denomina falta-a-ser,
parece-nos dar o suporte do ser"12. Conclui-se, então, que apesar de ser uma notação
positiva, o objeto a só encontra sua função como obturador da falta-a-ser. Ao apresen-
tar-se em relação à falta-a-ser do sujeito como um ser, o objeto a "nos leva a confundi-lo,
de modo abusivo, com o real" 13 . Contudo, Lacan conclui que o objeto a "só se resolve,
no fim das contas, em seu fracasso, em não poder sustentar-se na abordagem do real" 14 •
No Seminán·o 20, Lacan finalmente consente com a natureza de semblante do ob-
jeto a e demonstra que, no percurso de seu ensino, assim como na experiência analítica,
o objeto a só permitirá um acesso ao real ao distinguir-se deste, ou seja, ao revelar-se
em sua natureza de semblante, ao mostrar que o sentido que ele abriga como ser, que a
verdade da qual participa, não se sustenta na abordagem do real.
No caminho para o real, esse ser, esse semblante que é o objeto a, fracassa e, ao
fracassar, faz existir o real como aquilo que, do gozo, não se pode fazer ser15 · É a partir de
um impossível, determinado pelo caminho dos semblantes, que o real pode distinguir-se
e constituir-se como uma existência para além dos semblantes.
Abre-se aqui outra dimensão, na qual o que existe de positivo, de inegável, de não
negativizável, isto é, de real, com relação ao gozo, pode achar seu lugar, não mais como
obturador da falta-a-ser, mas como existência de uma satisfação singular e incurável,
que nada deve ao ser, e cuja substância é suportada, não pela função do objeto a, do
semblante, mas pela função do que, mais tarde, no Seminário 23, Lacan chamará de sin-
thoma16. Será a partir dessa mutação na escrita do sintoma que Lacan poderá corporificar
o real que, em sua vida, "existia em abundância" 17

Notas

Miller,J.-A. (abril, 2000[1999]). "Os seis paradigmas do gozo". Opçãol.acaniana, (26/27):87-105.


2 Idem. ibidem.
3 Lacan, J. 0992[1960-1961]). O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
4 Idem_. ibidem, p.147.
5 Lacan. J. 0998/19601). "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente. freudiano'". ln: Escritos. Rio de Janeiro·
Jorge Zahar Editor, p.807-842.
6 Lacan. J 0998[1960]). "Kant com Sade . ln: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p.776-803.
7 Miller, J.-A. (2007). La angustia lacaniana. Buenos Aires: Paidós.
8 Idem, ibidem.
9 Idem, ibidem.
10 Lacan, J. (1985[1972-1973]). O $emi11ário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

11 Miller, ).-A. (2001[1991-1992]). De la natureza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós, p.115.
12 Idem. ibidem, p.116.

Opção Lacaniana nº 62 170 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

13 Idem, ibidem, p.115.


14 Lacan, J. (1985[1972-19731). Op.cit., p.128.
15 Miller, J.-A. [2010-20111. ''l'être et l'Un". Aula 12 do Curso de Orientação l.acaniana (inédito).
16 Lacan, J. (2007[1975-1976]). O seminário. Livro 2).- o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
17 Miller, J.-A. (2011). Vida de l,aca11. São Paulo: J,ituraterra, p.24.

Opção Lacaniana nº 62 171 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UCAN, PSIQUIATRA

JORDAN GURGEL (SALVADOR)


i.gurgel@uol.com.br

"Todos levamos um grau de loucura, sem o qual é imprudente viver"


Federico Garcia Lorca

A psicanálise, que se consolidou com uma clínica própria, é uma herança da psi-
quiatria. O discurso analítico, consequente com a psiquiatria de Kraepelin e de Bleuler,
modificou a nosografia psiquiátrica: a passagem da demência precoce à esquizofrenia
foi produzida pelo discurso da psicanálise. Assim, a psicanálise começou a modificar a
psiquiatria, esclarecendo-a principalmente em relação ao diagnóstico, que estava basea-
do nas formas sintomáticas, ao tomar como referência a posição do sujeito, considerando
a estrutura.
Durante o longo período de sua formação médico-psiquiátrica, merecem destaque
especial três momentos do Lacan psiquiatra que terão consequências na sua formação
de psicanalista e no desenvolvimento da psicanálise:
1928: Trabalha como interno da Enfermaria Especial para alienados da Chefatura
de Polícia. dirigida por Gaetan Gatian Clérambault.
1932: Defende a sua tese de doutorado, Da psicose paranóica em suas relações com
a personalidade.
1936: Sua comunicação sobre o estádio do espelho, durante congresso da Associa-
ção Internacional de Psicanálise (IPA) em Marienbad.
Já em 1931, quando ainda preparava sua tese de doutorado em medicina, o caráter
subversivo da psicanálise já despertava seu interesse, começava a ser uma referência e
se manifestou com a tradução do texto de Freud Acerca de alguns mecanism.os neuró-
ticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade, que publicou na Revue Jrançaise
de psychanalyse.
Mas, é em seu texto "De nossos antecedentes" que vamos encontrar as referências
mais explícitas sobre a formação psiquiátrica de Lacan e sua passagem para a psica-
nálise. Ao reconhecer a formação kraepeliana de Clérambault, de quem transforma o

Opçào Lacaniana nº 62 173 Dezembro 2011


conceito de automatismo mental pelo de estrutura, Lacan percorreu o caminho que o
levou a Freud, como o da "fidelidade ao invólucro formal do sintoma" 1demonstrando as-
sim o lugar da clínica psiquiátrica no seu percurso. Longe estava Lacan de se nutrir dos
conhecimentos da neurobiologia e da endocrinologia para conceber o comportamento
humano, mesmo quando ainda era psiquiatra. Foi nesta condição que ele começou a
questionar a concepção materialista organo-neuronal dos fenômenos mentais, especial-
mente quanto ao conceito de sujeito.
Em sua tese de doutorado, Da psicose paranóica em suas rei.ações com a perso-
nalidade, Lacan associou o conhecimento paranoico ao conhecimento humano e o
fenômeno elementar - a base das psicoses - como fenômeno de linguagem ligado à pre-
cariedade do simbólico. Nesse contexto, também se distanciou do modelo psiquiátrico,
que concebia o tratamento como adaptação do homem ao mundo e consolidou a ideia
de que a entrada na orden1 simbólica era a condição de singularidade do sujeito. Estes
questionamentos alicerçam sua decisão pela psicanálise e definem seu estilo de não re-
troceder frente aos impasses e às novas descobertas, lendo, relendo e revisando não só
a obra de Freud, mas, durante seu percurso, a sua própria.
Desde essa época Lacan já flertava com a psicanálise, onde encontrou as mo-
tivações e referências para suas elaborações sobre o delírio e a passagem ao ato de
sua paciente Aimée. Muitas são as referências que apontam nesta direção e merecem
destaque. Por exemplo, quando se refere à reação homicida na série das psicoses e faz
referência ao delírio paranoico que não revela nenhuma estrutura autopunitiva 1 evoca a
teoria freudiana da homossexualidade recalcada como presente nos delírios paranoicos 2 •
Ele se refere ao clínico P. Guiraud, que não era psicanalista, mas em seu estudo sobre os
assassinatos imotívados enfatizava a doutrina freudiana para distinguir os crimes do .t.go
1

(os ditos de interesses) e os crimes do .!d (estes pulsionais, imotivados, característicos das
esquizofrenias). A estes agrega os crimes do superego, àqueles os delírios dos querelan-
tes e os de autopunição. Na sequência, Lacan alude a "um impulso homicida primordial
no psiquismo humano", tomando como referência o livro de Freud Totem e Tabu, destaca
as influências das técnicas da psicanálise na psiquiatria e a importância do conceito de
resistência do sujeito (a reação agressiva como seu limite) para o acompanhamento do
progresso do tratamento com medicamentos3.
Sobre as indicações terapêuticas antes e depois da psicose (ele se refere às indica-
ções profiláticas), indica a psicanálise em primeiro plano, mas destaca a prudência dos
analistas para tratar casos já desencadeados por considerarem que essa técnica ainda
não está madura, apesar de alguns autores terem relatado e publicados tratamentos exi-
tosos. No final do capítulo II, Lacan diz que a omissão da não aplicação da psicanálise
ao caso Aimée não foi por sua vontade. Hoje, podemos deduzir que, já na escolha da
paciente e seu método de investigação do caso na preparação de sua tese - ao contrário

Opção Lacaniana nº 62 174 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

da corrente psiquiátrica de então, que privilegiava a história do sintoma - Lacan se dedi-


ca a investigar a motivação inconsciente da paranoia, demonstrando que ainda psiquiatra
já era psicanalista.
Com a publicação de sua tese em 1932, que chama a atenção não só por seu estilo,
mas principalmente pelo conteúdo inovador', que extrapola o campo psiquiátrico, Lacan
se torna um especialista em paranoia, que ganha status de insígnia - a clínica das psico-
ses lhe é instrutiva - tanto quanto a histeria foi para Freud.
Para construir o caso Aimée, em torno do conceito de personalidade, Lacan utiliza
o método descritivo visando o testemunho da verdade do sujeito. Sua passagem para a
psicanálise faz com que abandone esse método exaustivo e parta para a coerência do
nível formal, em que o sintoma se estabelece. À medida que torna lógico o conceito de
inconsciente, a construção do caso clínico vai se formalizando em direção ao sintoma,
que é concebido como uma matriz lógica.
A partir dos ensinamentos de Clérambault, que isolou o sintoma da erotomania
psicótica, Lacan empregou o termo erotomania feminina para falar da demanda de
amor feminina - 'que o Outro me ame'. É isso que vai desencadear na psicose o efeito
empuxo-à-mulher e também foi o que levou Lacan a dizer que todas as mulheres são
loucas, considerando que têm por parceiro o Outro barrado5•
Mas, foi durante o congresso da IPA em Mariembad, 31 de julho de 1936, que
Lacan fez sua primeira intervenção na teoria psicanalítica com o texto "Estádio do Es-
pelho"6, no qual situa o Eu como instância de desconhecimento, de ilusão de alienação,
sede do narcisismo. O Eu como imaginário, lugar das identificações, da alienação e do
narcisismo, não se confunde com o sujeito do inconsciente, dividido e autônomo em re-
lação ao Eu. Nesse texto em que constata uma antecipação das funções psicológicas em
relação às biológicas e situa o corpo em relação ao psíquico, Lacan demonstrou que o
sujeito é constituído a partir do Outro e não de uma base neuronal e ou hormonal. Essa
ideia .inicial do Lacan psiquiatra vai desembocar posteriormente na noção que articula o
significante com o corpo e o conceito de gozo. Surge assim o conceito de corpo libidinal
diferente do de organismo. Esse texto, segundo o próprio Lacan, antecipou a inserção do
inconsciente na linguagern7 e consolidou a noção da linguagem como causa do sujeito.
A participação ativa de Lacan na psicanálise, sem abandonar a psiquiatria, se faz
a passos largos. O seu "retorno a Freud" e o relatório "O discurso de Roma" são contri-
buições relevantes que testemunham sua entrada na psicanálise, que se dá a partir da
leitura crítica dos textos freudianos, de sua aproximação com os surrealistas e por sua
experiência como analisante, que começa no ano de 1932. Seus seminários, que se ini-
ciam em 1951, e as apresentações de pacientes que desenvolveu durante toda a sua vida
profissional, expressam seu estilo crítico e assertivo, que vai se consolidando junto aos
seus destinatários preferenciais: psiquiatras e psicanalistas.

Opção l.acaniana nº 62 175 Dezembro 2011


Lacan não rompeu com a psiquiatria, colocando-a sempre à prova desde a elabo-
ração de sua tese de doutoramento, em 1932. Se grande parte de sua obra foi marcada
pelo signo de um retorno a Freud - em oposição ao desvio dos pós-freudianos que enal-
teciam os aspectos adaptativos do ego - e se considerarmos que o Real e o objeto a são
suas criações mais importantes, podemos concluir que estes conceitos começaram a ser
formalizados quando ainda era psiquiatra.
Enfim, Lacan, para ser freudiano, não precisava ter sido psiquiatra, mas foi!

Notas

Lacan, J. 0998). "De nossos antecedentes". ln Bcritos. RJ: JZE, p.69.


2 Lacan, J. 0987). Da P.çicose Paranóica em suas relaçôes com a personalidade. RJ: Ed. Forense-Universitária, p.305.
3 idem. p.306-308.
4 Paul Nizan prevê que com a lese de lacan se abre um combate científico importante.
S Miller, J-A. 0998). "O osso de uma análise~. Biblioteca-Agente (Revista da Escola Brasilcirn de Psicanálise- HA), p.111.
6 Lacan, J. (1998). Op. cit., p.71.
7 Lacan,J. (1998). Op. cit., p.75.

Opção lacaniana nº 62 176 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UCAN JOYCEANO

RAM MANDIL (BELO HORIZONTE)


mandil.bhe@terra.com. br

Ainda estamos sob o impacto do que Lacan procurou extrair da leitura da obra de
Joyce, sobretudo aquela desenvolvida ao longo do Seminário 23: o sinthoma.
Esta não foi a primeira vez que Lacan se referiu a Joyce ao longo do seu ensino. Já
no Seminário sobre 'A carta roubada', incluído nos E,cn·tos, faz menção à expressão "a
letter, a litter", "uma letra/carta, um lixo" sobre a qual se apoia para nos dizer da mate-
rialidade do significante. Mais adiante, em "O engano do sujeito suposto saber", faz nova
referência a Joyce, desta vez para inseri-lo em uma série a princípio estranha, que inclui,
além dele, Moisés, Mestre Eckhart e Freud, como representantes de uma "diologia", a
se opor à apreensão ontológica de Deus que toda teologia pressupõe. Mais adiante, no
Posfácio ao Seminário Os quatro conceitos.fundamentais da psicanálise, Lacan atribui a
Joyce a introdução da dimensão do "escrito para não ser lido", na qual inclui seus pró-
prios Escritos e pela qual nos incita a reconsiderar o ato de leitura.
1

Essa atenção com a leitura na dimensão do discurso analítico já estava presente


na lição "A função do escrito", do Seminário livro 20: mais, ainda, proferida na mesma
semana em que redige seu Posfácio. Nesta lição encontramos nova referência a Joyce.
Para Lacan, o ato de leitura do inconsciente a partir do discurso analítico coincide com
o esforço de leitura de Finnegans \flake.
Mas é no Seminário livro 23 que vem à tona, com toda força, a figura de um Lacan
joyciano. Joyciano não no sentido de uma especialidade. Lacan frequentava a indústria
joyciana de textos e estudos sobre o escritor, mas não se reconhecia nela. Preferiu buscar
em Joyce as razões que levaram o escritor a se instalar na posição de objeto de decifra-
ção para gerações de universitários.
Lacan joyciano tem uma dimensão clínica imprescindível. Ele nos prepara para
acompanhar as experiências psicanalíticas do século XXI, aquelas que, tanto quanto
Joyce, testemunham modos singulares de inscrição na cultura, servindo-se de seus ele-

Opção Lacaniana nº 62 1n Dezembro 2011


mentas quando estes não mais tomam a forma de discursos estabelecidos. Na conferên-
cia ''.foyce le symptôme", Lacan chega a dizer que o escritor alcançou o melhor que uma
análise pode oferecer. Não por ter sido propriamente um escritor, mas por ter criado
uma obra a partir de um savoirfaire com o seu sinthoma, o que permitiu, inclusive, que
ele pudesse encontrar um lugar na literatura, ainda que sentado à beira de seu abismo.
Do que padecia Joyce' Porque sua obra evoca a loucura?
Lacan debruça-se sobre seus livros, sobre sua biografia, sobre o anedotário que o
cerca e convoca Jacques Aubert, grande leitor das obras de Joyce, para acompanhá-lo no
labirinto dedaliano. Desse percurso Lacan reconhece em Joyce um Nome do Pai forjado de
modo distinto da configuração edipiana. Constata no escritor uma inquietação permanente
com a língua, que não se apazigua através da conjugação entre significante e significado,
tal como reconhecemos na linguagem. Há algo na língua que permanece perturbador e
o ataque joyciano à língua inglesa - a "língua dos invasores" - toma a direção de fazê-la
adormecer, ao preço de criar, paradoxalmente, uma obra que para ser lida exigirá "um
leitor ideal, acometido de uma insônia ideal". É o próprio núcleo da língua que é atingido
pelo procedimento joyciano: ela é desarticulada, desmontada, rearranjada de um modo
inédito. A separação fundadora entre significante e significado é atingida em seu cerne.
Significantes absorvem significados a tal ponto que se torna impossível distingui-los. Lacan
ilumina o procedimento de Joyce através do facho de luz da sua topologia dos nós, de suas
elucubrações sobre os enlaces entre Real, Simbólico e Imaginário. Lacan demonstra que
em Joyce o Simbólico e o Real se acham suturados de tal forma que nos obrigam a supor
que haveria ali algum lapso a ser corrigido. Sinal dessa falha, prosseguirá Lacan, pode ser
detectado na relação de Joyce com o Imaginário, com seu corpo: corte do oxigênio das
imagens em sua obra final; desvanecimento do corpo em passagens da vida/obra do es-
critor quando era convocado a responder com a consistência corporal, como no clássico
episódio da surra em Stephen Dedalus de Um retrato do artista quando jovem.
Desse modo, o sinthoma de Joyce pode ser encarado não apenas como o que per-
mitiu ao escritor fazer-se um Nome, de ser "bimse{f bis own father'', mas também o que
pode assegurar-lhe um corpo, sustentado por um ego obrigado a buscar outro ponto de
apoio que não o ela imagem de seu próprio corpo.
Nesse sentido é que podemos entender a evocação por Lacan de urna ';heresia"
em Joyce, recuperando aqui o sentido etimológico de "escolha". O alcance dessa here-
sia é amplo. Se o termo faz referência àqueles que escolhem caminhos que se desviam
da ortodoxia religiosa, ele também pode ser reconhecido como um dos componentes
singulares do sinthoma, tal como depurado ao final de uma experiência analítica. O
analisante poderá, por fim, não apenas reconhecer, mas também valer-se da heresia
de seu sinthoma, impossível de ser inteiramente absorvido por qualquer discurso com
pretensão universal.

Opção Lacaniana nº 62 17B Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Não podemos deixar de mencionar um Lacan joyciano naquilo que mais comu-
mente os aproxima: a ilegibilidade de seus escritos. Tema amplo, do qual Lacan não se
furtou a enveredar. A experiência analítica exige repensar o ato de leitura em seus funda-
mentos. Desde Freud a leitura do inconsciente caminhou no sentido de uma interpreta-
ção como modalidade de decifração do sentido aprisionado na retórica do inconsciente.
A hipótese lacaniana de um "inconsciente leitor" - renovada por Jacques-Alain Miller
com sua concepção de um "inconsciente intérprete" - coloca em questão o estatuto da
interpretação como decifração) para remetê-la à altura da potência significante da língua:
seus equívocos, suas homofonias, suas escansões, seus paradoxos.
Pensar a prática psicanalítica como leitura implica reconhecer o sinthoma como
um escrito, ou mais precisamente, como uma letra. O estatuto de sinthoma da escrita
de Joyce, tal como depreendido por Lacan, abre assim duas perspectivas. Uma primeira,
caminha na direção do que poderia ser chamado de uma teoria da letra a ser depreendi-
da do discurso analítico. Será através de Joyce que Lacan irá, decididamente, considerar
a letra para além de sua dimensão significante, estabelecendo sua condição de "litoral":
de um lado, suas afinidades com o sentido; de outro, sua dimen.sâo fora do sentido, sua
materialidade, capaz de tornar-se "receptáculo ele gozo".
Por fim, é como joyciano que Lacan poderá situar o que talvez tenha sido o grande
tema do seu chamado último ensino, a saber1 o de considerar o que, em uma experiên-
cia analítica, poderá constituir um saber fazer com o gozo opaco ao sentido. Em outras
palavras, com o gozo em sua dimensão de ilegibilidade.
O que de melhor uma experiência analítica poderá produzir deve ser avaliado a
partir desta perspectiva: o modo como cada um foi capaz de ler o ilegível de seu sintho-
ma, na medida em que essa ilegibilidade deriva do que "não cessa de não se escrever";
e a maneira como foi possível derivar daí uma nova satisfaçào 1 que criou condições para
o sujeito inscrever-se ele modo inédito na ficção do Outro.

Opção Lacaniana nº 62 179 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UCAN E A APRESENTAÇÃO DE PACIENTES

FRANCISCO PAES BARRETO (BELO HORIZONTE)


paes.barreto@globo.com

A apresentação de pacientes provém de uma longa tradição psiquiátrica e o Dr.


Lacan continuou a praticá-la durante toda a vida, todas as semanas, até 1980, no Hospital
Sainte-Anne; inicialmente no serviço de Delay, e depois no de Daumezon.t
Nos moldes da tradição psiquiátrica, a apresentação de pacientes era uma forma de
transmissão que se inscrevia no discurso universitário, com o apresentador no lugar do
saber e o paciente no lugar do objeto. Daí a crítica dos antipsiquiatras a essa "dissecção
pública do mental, para o único benefício de uma assistência, no contexto de um certo
racismo psiquiátrico". Maud Mannoni, por exemplo, expressou-se nos seguintes termos
a propósito das apresentações no Sainte-Anne: "Assim Lacan levava sua garantia a uma
prática psiquiátrica tradicional em que o paciente serve de matéria prima para o discur-
so, e na qual o que se lhe pede é que venha ilustrar um ponto da teoria, sem que essa
ilustração sirva minimamente para os seus interesses". 2
Não se reconheceu que, no exercício lacaniano da apresentação, havia simulta-
neamente continuidade e ruptura com a clínica psiquiátrica. O objetivo deixou de ser
identificar, descrever e classificar as enfermidades mentais. Pelo contrário, para Lacan
não havia sentença mais sem remédio do que "É alguém perfeitamente normal". 3
Como situar o aspecto crucial da ruptura? Recorro às palavras de Laurent: "Todos
testemunhavam a surpresa que tinham em ouvir Lacan interrogar alguém que não era
mais um doente, mas que se tornava um sujeito; Lacan tentava tocar o sujeito no doen-
te".4 Definido este objetivo, estamos no discurso analítico, mas talvez seja mais prudente
di~er que a apresentação de pacientes é, por excelência, um lugar onde se experimentam
os limites do discurso analítico, ou onde se exercitam as condições de entrada nesse
discurso.
Sim, é, ainda, o lugar de uma verdadeira transmissão. Pela parte do entrevistador,
de um saber como fazer com o doente mental. A transmissão, de longe a mais importan-

Opção Lacaniana nº 62 181 Dezembro 2011


te, porém, é a de um saber que o paciente detém. De que se trata? Trata-se de um saber
sobre a relação íntima do sujeito com a linguagem, do sujeito com o significante. Como
é que se pode alcançar esse objetivo' A fórmula lacaniana "deixar falar muito tempo" é
uma indicação, que pressupõe uma escuta. Outras indicações: precisar as circunstâncias
do desencadeamento e pesquisar os fenômenos elementares.
Em muitos aspectos a psicanálise é herdeira da clínica psiquiátrica. E a apresen-
tação de pacientes, experiência que ocorre uma única vez, é uma tyche que se situa no
entrecruzamento da entrevista psicanalítica com a clínica psiquiátrica. Quando se consi-
deram as psicoses, por exemplo, as referências mais seguras são tomadas da psiquiatria.
Entre elas está o automatismo mental, síndrome descrita por Clérambault, que Lacan
avalia como o "mais próximo do que se pode construir de uma análise estrutural do que
qualquer esforço clínico na psiquiatria francesa". 5 Um aspecto do automatismo mental
será agora destacado: os fenômenos xenopáticos. O sujeito tem a impressão de que seu
pensamento está sendo objeto de uma espécie de manobra e penetrado por ideias estra-
nhas, que sua linguagem interior está sendo repetida, e que suas palavras e seus atos são
impostos e comentados. Fenômenos tão singulares ressoam em seu íntimo como ideias
totalmente alheias, impossíveis de reconhecer como algo próprio. 6 Como aponta Miller,
não há como não visualizar aí o prenúncio "da grande 'xenopatia' que Lacan fundou no
campo da linguagem com seu materna do Outro".7 Pouco mais adiante, Miller pergunta:
"Por que o sujeito dito normal, que não está menos afetado pela fala, que não é menos
xenopata que o psicótico, não se dá conta disso?" Ou seja, a partir de então, a questão
já não é "O que é um louco?", mas "Como é possível não estar louco?" É nesse sentido
que o louco é "perfeitamente normal"; fórmula que vai muito mais longe do que, por
exemplo, dizer que a norma é social.
Quando a apresentação ele paciente tem êxito, contribui para esclarecer o diagnós-
tico, localizar o desencadeamento ou orientar a direção do tratamento. Por esse motivo,
além de aprendizado, serve para fins terapêuticos.
Na atualidade, Miller comenta que ela nüo se ordena pelo diagnóstico de psicose,
tributário de uma clínica universalizante que traça uma demarcação intransponível entre
neurose e psicose. Seu esforço é focalizado na singularidade da invenção do sujeito em
questão, alguma coisa que sustenta a função paterna para ele, e que lhe permite regular
sua experiência, seu mundo. 8
A apresentação de pacientes é uma experiência tensa, e que pode fracassar quanto
aos seus objetivos. Por outro lado, tem seus riscos, pois seus efeitos nem sempre são
positivos. Ao que tudo indica, todavia, os resultados compensam os riscos, e o agalma
dessa experiência continua atraindo o público, em uma tradição que já caminha para
dois séculos de existência.

Opç.1o Lacaniana n" 62 182 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Notas

Laurem, E. (1989). "Entrevista sobre a apresentação de pacientes~. Clínica lacaniana (3):149.


2 Miller. J.-A. 0981). "Ensei'lanzas de la presentación de enfermos". Ornicar? (3):51-52.
3 Idem, ibidem, p.49.
4 Laurent, E. (1989). Op. cit., p.151.
5 Lacan, J. (1998) 11955]. "De nossos antecedentesn. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p.69.
6 Poro!, A. 0967). Dicionan·o de Psiquialria. Barcelona: Labor, p.82.
7 Miller. J.-A. 0981). Op. cit., p.58.
8 Miller, J-A. [20111. ~L'f!tre et l'Un". Orientation lacanienne, III, 13. Cours nº 11, mercredi 4 mai 2011 (inédito).

Opção Lacaniana nº 62 183 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

lACAN E O MESTRE CLÉRAMBAULT*

CELSO RENNÓ LIMA (BELO HORIZONTE)


renno@lifecenter.com. br

É de conhecimento de todos que Lacan sempre afirmou ser Gaetan Gatian de Clé-
rambault seu "único mestre em psiquiatria" 1• Foi com ele que aprendeu e tomou gosto
pela "fidelidade ao invólucro formal do sintoma, o verdadeiro traço clínico".
Nesta passagem do texto "De nossos antecedentes'', última vez que Lacan mencio-
na o nome do mestre, ele aponta o passo seguinte: o seu encontro com Freud ao acres-
centar que, no limite: o sintoma "se reverte em efeitos de criação".
Lacan toma como ponto de partida o ensino deste "homem de olhar", este clínico
que valorizava o olhar como instrumento para avaliar e dominar o espaço que circuns-
creve geometricamente o objeto de sua percepção, de seu saber.
Henri Ey' - discípulo de Clérambault e colega de sala de plantão de Lacan - escre-
ve que G. de Clérambault foi, como pessoa, por toda a sua vida, esse homem, menos de
'escuta' do que de 'olhar'. Por isto, talvez, "esse homem de olhar" tenha escolhido acabar
com sua vida depois que seu olhar se apagou, sentado em uma poltrona frente a um
grande espelho, cercado pelos manequins de cera que lhe serviram para seus estudos
ele drapeado. 3
Percorrendo os escritos de Lacan de seu período como interno em Sainte-Anne,
encontra-se uma menção ao mestre que nos chama a atenção por ser uma nota de ro-
dapé inserida para justificar o uso da descrição de uma estrutura delirante presente em
um caso clínico que descreve: "um anelídeo, não um vertebrado". "Esta imagem utilizada
no texto foi emprestada do ensino verbal de nosso mestre M. G. de Clérambault, a quem
tanto devemos em substância e método. Assim o fazemos para não nos arriscar a ser
plagiário e lhe render homenagem com cada um desses termos. 4 ''
O que parece uma simples referência assume outra proporção ao acrescentar-lhe
o que está escrito no pequeno texto de Henri Ey já citado acima, quando ele, referindo-
se à "fria indiferença" com que o mestre lhe tratava, assinala que os "amigos e grandes

Opção Lacaniana nº 62 185 Dezembro 2011


admiradores do Mestre", sofriam acusações de plágio por terem abraçado suas ideias.
Como se pode perceber nos escritos e seminários de Lacan, estes pequenos deta-
lhes nunca eram negligenciados e essa simples nota de rodapé indica a forma peculiar
com que Lacan tratava os sintomas daqueles que admirava: com uma ironia fina.
Outro fato chama a atenção nesta pesquisa em torno da relação de Lacan com o
mestre Clérambault: tendo sido o superior de Lacan no período de 1928 a 1929, este lhe
dirigia, sempre, um julgamento severo, ao qual Lacan, paradoxalmente, respondia enga-
nando-se, sistematicamente, ao falar o nome de Clérambault, chamando-o de Georges.
O próprio Lacan5 define a importância que teve o Mestre Clérambault em sua for-
mação:

"Seu automatismo mental, com sua ideologia mecanicista de metáfora, por certo bastante
criticável, parece-nos, em seus enfoques do texto subjetivo, mais próximo do que se pode
construir de uma análise estrutural do que qualquer esforço clínico na psiquiatria francesa.
Fomos sensíveis ali ao toque de uma promessa, percebida pelo contraste que faz com o que
se marca de decadente numa semiologia cada vez mais comprometida com os pressupostos
da razão. Clérambault realiza, por seu ser de olhar, por suas parcialidades de pensamento,
como que uma recorrência do que recentemente nos descreveram na figura datada do Nas-
cimento da clínica.·''

Clérambault, referência maior de Lacan na sua formação como psiquiatra, foi quem
lhe imprimiu a marca estruturalista com a elaboração da "síndrome do automatismo
mental\ como muito bem nos demonstra Angelina Harari6 : "nesta síndrome ele isola
um grupo de fenômenos elementares e estruturais que apontam a entrada na psicose: a)
conteúdo essencialmente neutro (ao menos, em seu início); b) caráter não sensorial; c)
função primária no decurso da psicose".
A ruptura de Lacan com a psiquiatria acontece a partir do momento em que seu
método clínico e mesmo suas apresentações de pacientes deixam "de contribuir para o
avanço" 7, daquela ciência, e passam a ter como objetivo servir à psicanálise.
Pode-se assim concluir, contrapondo a clínica psiquiátrica de Clérambault à clínica
psicanalítica de Lacan com as psicoses: a de Clérambault, como uma clínica do olhar, e a
de Lacan, como uma clínica da escuta. Segundo Angelina Harari, a orientação lacaniana
do tratamento da psicose se faz pela via dos "desdobramentos do conceito de gozo". Em
outras palavras, pelo que escapa ao simbólico e deixa o imaginário à mercê de um real
que não se apreende nas malhas de um discurso.

Opção Lacaniana nº 62 186 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Notas

• Gaetan Henri Alíred Edouard léon Marie Gatian de G11!ramba11lt é o nome completo de Clérambault.
I.acan, J. (1998). ''De nossos antecedentes''. ln Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
2 Ey, H. 0977). "Gaetan Gatian De Clérarnbault A l'infirmerie spedal du dépot~. Omicar?, (12/13).
3 Wikipédia.
4 Lacan, J. [07/07/19311. "Structures des psychoses parano"iaques·. ln'· Pas-to11t lacan ".
5 Lacan, J. 0998). ·'De nossos antecedentes". Op.cit.
6 Harari, A. {2006). Clínica lacaniana da psicose- de Cléramhault à i11co11sisté11cia do Outro. Rio de Janeiro: Ed. Contra
Capa, p.14.
7 Idem, ibidem, p.24.

Opção Lacaniana nº 62 187 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UM DIZER SEM PALAVRAS

MARCELO VERAS (SALVADOR)


marcelofveras@gmail.com

A distinção que fez Lacan entre o discurso do mestre e o discurso do analista


permitiu situar a psicanálise distante das marcações do tempo impostas pelos ideais da
época. Não surpreende 1 portanto, que a pensemos como um discurso que nunca contará
com o apoio das massas, estas sempre propensas a seguir a marca cio Outro, como nos
fala Freud desde 19211. O desafio é redobrado para Lacan, pelo fato de que o próprio
ato analítico faz do ofício do analista uma profissão impossível2. Assim como governar
e educar, psicanalisar é um dos impossíveis que não deixam de persistir no século XXI.
A promessa de governabilidade das sociais democracias, como afirma Laurent 1 caducou
junto com o fim das utopias liberalistas3, o 11 de setembro é o maior exemplo. Com
relação à educação, os fracassos na aprendizagem, elevados à categoria do DSM, nos
mostram que sua psiquiatrização foi a resposta da ciência ao impossível de educar. Do
mesmo modo, a bulimia dos cursos de Psicologia por uma psicologia científica não cessa
de catapultar as TCC ao ranking de única psicologia possível, deixando a psicanálise sob
a suspeição dos sistemas, ditos estatísticos, de avaliação.
Com efeito, a perspectiva de uma avaliação quantitativa tenta tornar a Psicaná-
lise dócil ao sistema de falseabilidade científica. Porém, o real em jogo no objeto da
psicanálise torna impossível o crivo do verdadeiro ou falso. Daí que não é do discurso
universitário, tampouco, que se deve esperar um desejo que faça perdurar o discurso
analítico. Surge então a importância do ato de Lacan de fundar sua Escola como meio de
sustentação da causa analítica.
A Escola de Lacan é o prolongamento de um dizer que ecoa trinta anos após sua
morte. É na Escola que é possível pensar o dispositivo do passe, que tem como finalida-
de zelar, secularizar o desejo do analista, que Lacan situava acima mesmo de sua obra,
esta destinada, como ele mesmo evocava, à poube/lication:4. Não se trata, portanto, de
criar uma Escola para defender sua obra, estas se sustentam por si mesmas, mas de man-

Opção Lacaniana nº 62 189 Dezembro 2011


ter vivo um dizer sobre esse desejo. Sejamos claros, a única possibilidade de sustentar
a psicanálise no século XXI é mantendo vivo o desejo do analista. Contudo, dizer que
esse desejo é o desejo de um objeto sem nome implica na separação desse objeto de boa
parte dos ideais que presidem nossa época.
Nossa época é nominalista e tem horror ao indizível. A Coisa tem que .ser nomeada
em toda a sua plenitude. Nesse sentido, o que traz problema não é o avanço das descober-
tas científicas, mas as expectativas que são depositadas nestas descobertas. Espera-se da ci-
ência que ela possa recobrir saber e real sem restos. Busca-se um real totalmente recoberto
pela lei. Assim surgem as leis do universo, da biologia, da física, da cognição etc. Não pode-
mos afirmar que estas leis são válidas para todos. Lacan não se afastou da falseabilidade de
Popper, o que muda é a apreensão do real. Somente podemos falar de lei onde é possível
aplicar o critério de verdadeiro ou falso. Porém, somente podemos falar do real em Lacan
quando vamos além da possibilidade de aplicar o princípio da falseabilidade. Ou seja, o real
em Lacan é fora da lei, pois esta é uma ficção do Jàlasser. Se a humanidade desaparecesse,
o universo permaneceria, mas não suas leis, pois estas precisam ser lidas para existir.
O sinthoma de Lacan contém precisamente esse paradoxo de ser uma lei que vale
apenas para um. Ele implica uma lei singular que não se confunde com o real - pois este,
como dissemos, é sem lei - mas que, ao enodar real, simbólico e imaginário, é válida
enquanto durar uma existência. É a passagem dos efeitos da lei universal, a lei edípica,
ao sinthoma que uma análise deve promover. Para além do mar de ditos de uma análise,
busca-se um dizer dofa!asserque seja fora da lei do Outro. Um dizer que sempre necessite
uma boca que o profira de modo singular. Esta é a condição para que possa emergir o
discurso do analista, um discurso que inclui o corpo e o gozo de um dizer que se satisfaz
com o brincar da /alíngua, para além dos efeitos de sentido inerentes à cadeia significante.
Esse dizer, se não fosse a psicanálise, estaria condenado ao esquecimento.

O discurso de uma análise

Uma análise é bem mais do que a rememoração dos fatos e frases marcantes, ela
não se faz sem a inquietante lembrança de um dizer cujo destino é ser esquecido. Lacan
não fala de recalque e sim de esquecimento em uma de suas formulações mais conheci-
das. Em mais de uma ocasião ele a propôs à sua audiência:

Qu'on dise reste oublié derriere ce que ce dit dans ce que s'entend.

Esta frase é usada tanto para abrir seu texto "O aturclito" 5 quanto para encerrar seu
Seminário ... ou pior'. Em português podemos traduzir do seguinte modo:

Opção L1caniana nº 62 190 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Que se diga fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se ouve.

Nesses dois textos, Lacan promove uma dissecação entre dito e dizer. Eles se incluem
nos três anos consecutivos em que Lacan aborda os discursos e que, com a publicação
do seminário ... ou pire, tornam possível ver os seminários 171 18 e 19 como uma espécie
de trilogia dos discursos. É verdade que em seu ensino é fundamental o fato de sermos
seres habitados pela linguagem, mas a frase "Que se diga ... " de Lacan tem um espectro
maior. Ela vincula a própria existência ao dizer que faz da linguagem um discurso. Assim 1
a ênfase não recai sobre os ditos e sim sobre o dizer que ex-siste a esses ditos. Um dizer
que apenas é possível devido ao seu suporte corporal, que não tem nada a ver com a sig-
nificação e sim com o fato de que "na praça, tudo que é dito faz gozar"7.
Se o inconsciente é estruturado como linguagem, é preciso uma psicanálise para
que ele se torne um discurso. "Que se diga ... comporta em si a fratura lacaniana entre
aquilo que é singular e se modaliza como discurso a partir da enunciação do falasser, e
o que é da ordem do para-todos, do universal.
Sem o discurso do analista, não seria possível perenizar o dizer de Lacan. Sua
Escola seria reduzida a uma associação em torno das palavras do pai. Contudo, a orien-
tação lacaniana está longe de ser nostálgica e capturada pela repetição, o que reduziria
a Escola a um campo de linguagem e não de discurso.
A presença dos AE's na Escola seria inconcebível se a lógica fosse outra. O AE
não faz uma doutrina, tampouco é testemunha de uma revelação. Ele traz para o seio
da Escola um dizer singular e o modo como, em sua análise, operou esse corte entre o
dizer e os ditos. Ou seja, como o dizer, que não cessava de ser esquecido, emerge em sua
relação com o Outro. Isto porque o "Que se diga ... " não pode existir sem Outro.

O esquecimento do gozo

"O aturdito" retoma questões bastante exploradas por Lacan nos anos 50. A partir
desse texto, é possível fazer uma nova leitura do esquema L e explorar a tensão gerada
da oposição entre o plano das relações humanas, onde impera a dimensão do dito sub-
metido à verdade, do eixo a-a', e a diagonal do sujeito em relação à alteridade, onde se
situa o dizer como experiência de gozo, a ex-sistência 8 • O que muda entre o primeiro
e o segundo ensino de Lacan é precisamente o estatuto dessa alteridade. Enquanto no
primeiro ensino o Outro é o próprio simbólico, garantido pelo Nome-do-Pai, no segundo
ensino trata-se do Outro sexo, ou seja, a ex-sistência de um dizer sem palavras.
É possível identificar, a partir do esquema L, o esquecimento da relação com o Ou-
tro. Ele surge na vetor que liga o es(S) ao Outro, e que se torna pontilhado precisamente
quando este vetor encontra a diagonal da realidade.

Opção Lacaniana nº 62 191 Dezembro 2011


es (S) (a)'utre
~
' ":-~'<.,
-:,.,~
'
"-'º~
'
'
'

(moi) a
~ (A)utre

Proponho assim uma leitura da frase de Lacan a partir do esquema dos Seminários
iniciais. Ele nos dá a pista desse movimento no próprio texto "Aturdito" ao afirmar que,
em 56, se foi possível introduzir o Nome-do-Pai no campo das psicoses, foi graças ao
consentimento do discurso analítico.9
Que se diga Por cr,ís do que se diz

Naquilo que se ouYe ~Outrn


Da linguagem (primeira clínica)
Outro sexo (segunda clínica)

Quando seguimos os passos dos homens de exceção 1 percebemos que, por mais
prolíficos que eles sejam, sempre é possível encontrar um traço de inovação genial, uma
intuição ou revelação que acompanha sua obra por toda a vida. Não surpreende, por-
tanto, que o discurso analítico estivesse presente desde o momento em que Lacan, para
além da poubellication, iniciou seus Seminários, fazendo destes o seu maior legado. Para
além do que se lê nos textos, seus Seminários não nos deixam esquecer o seu dizer.

Notas
1 Massenpsychologic und Jcb-Ana~vse.
2 Lacan, J. 0991). J.'envers de la p!sychcma~vse, Le Sémí11aire livre XVH. Ed du Scuil, Paris, p.194.
3 Laurent, E., O Supereu sob medida, Agente Digital: http://agente.institutopsicanaliscbahia.eom.br/entrcvisrn.html, Revista
Eletrônica da EBP-Bahia
4 Lacan, J. (201111971-72]) . ... ou pire, Le Séminaíre livre XIX Paris: Éditions du Seuil, p.219 .
5 Lacan. J. (2001). • L't'tourdí! •. In Autres Écrits. Paris: Ed. du Seuil, p.449.
6 Lacan, J (2011(1971-/21). Op.cít., p.221.
7 Idem, p.230 - Par-dessus le marché, tout ce q11í est difait jouír, lí3.dução nossa.
8 l..acan. J. (2001). Op.cil. p.452.
9 Id. lbid., p.458.

Opção L1caniana nº 62 192 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

o RESTO E o ruso*

MARCUS ANDRÉ VIEIRA (RIO DE}ANEIRO)


mav@litura.com.br

Em seu sétimo Seminário, Lacan introduz uma nova ferramenta para o analista: a
1
ética O termo é de manuseio delicado, especialmente para os ouvidos de hoje, treina-

dos a tachar de obscurantismo tudo o que não se possa colocar em números.


É preciso definir. Para começar, ética e moral não serão sinônimos. Lacan abre o
Seminário com esta distinção, que faz da moral o conjunto das prescrições de conduta
admitidas em uma época ou espaço coletivo determinado, e da ética uma reflexão sobre
a açàd, sem necessariamente definição prévia de valores.
A promoção da ética em detrimento da moral é sustentada pela própria expe-
riência analítica, em muitos aspectos, segundo Lacan, um "retorno ao sentido da açào"3,
retorno ao significado do que fez o Outro conosco e como agimos sobre isto, para refor-
mulá-lo, renegá-lo, ou endossá-lo, de modo a tornar possível, enfim, uma nova relação
com nossas ações. Não é trabalho realizado no céu das ideias, sem relação com a vida
prática. Como toda ação humana se situa em um contexto simbólico, não há o agir puro,
todo feito ganha inevitavelmente significado. Mais ainda no contexto de uma análise, na
qual só há ações narradas. Toda definição sobre o sentido de uma ação será, ainda mais,
decisão, tomada de posição.
Uma reflexão sobre nossa ação deve ser entendida aqui, portanto, já como ação,
sempre com consequências, mesmo quando não conscientes. A ação está embutida no
próprio pensamento ético ou, como diz Lacan, há ação nos dois lados da definição de
ética.
É necessário deslocar o foco, da moral quotidiana para a reflexão ética 1 por mais
uma razão, de longe a mais importante: uma análise se desenrola lidando necessaria-
mente com coisas amorais ou, como diz Lacan, "fora do campo da moral".
A moral está necessariamente articulada ao consciente, o campo do eu, pois visa
o melhor para o indivíduo dentro de uma comunidade; já uma análise lida "no primeiro

Opção Lacaniana nº 62 193 Dezembro 2011


plano" com "um campo muito grande do que para nós constitui o corpo de desejos se-
xuais" em seus aspectos menos confessáveis. É exatamente o que Aristóteles, paradigma
para Lacan do conjunto de regras de conduta articuladas ao campo egoico, coloca "lite-
ralmente, fora do campo da moral," "dentro da dimensão das anomalias monstruosas'>t_
Monstruoso? O termo precisa ser situado. Em tempos vitorianos, quando era, em
princípio, monstruoso tudo do campo da sexualidade excedendo o espaço matrimonial
e da reprodução, talvez fosse mais fácil perceber a posição extremada ela psicanálise. Os
tempos mudaram, mas sua radicalidade é a mesma, pois sempre há algo monstruoso no
desejo de cada um. Pode ser insignificante ou terrível, mas em cada caso será aquilo que
não se tem como "assumir" por ser incompatível com o ego e, por isso, foi parasitar, a
partir do inconsciente, a cena da consciência.
Admitir termos todos esqueletos no armário não é a verdadeira novidade. O revo-
lucionário na prática freudiana é ser a morada de nossos monstros, necessariamente, o
campo da sexualidade. Assim indica Freud quando distingue, neste grande campo, ele
um lado a reprodução, apanágio do eu e do coletivo, a serviço ela raça; e do outro o
gozo, morada daquilo que no indivíduo resiste a seu papel de transmissor do gérmen5 e
exige um lugar para si no mundo. Somos, dessa forma, sempre um eu, pronto para inte-
ragir alegremente no mundo, e um isso, em nós o mais vibrante e que, por isso mesmo,
leva à perdição da nossa parte "comunitária". No sexo, bocas, pernas e mãos se confun-
dem, não há relação, não há mãos dadas e coletividade. O sexual, no sentido freudiano,
espaço de diferença absoluta, sempre carrega consigo violência e morte. Vai contra as
regras de vicia do individual e força o eu no sentido de sua dissolução.
O perigo não é o excesso em si. Freud acrescenta um elemento qualitativo ao ex-
cesso energético. Por isso Lacan o define como gozo, no qual se apresenta uma excitação
à qual é imperativo dar destino subjetivo. Devemos acrescentar esse aspecto monstruoso
da pulsão ao que costumamos nomear como singularidade e que surge, em uma análise,
sempre marcado pela violência de um desejo.
A legitimação ele toda e qualquer monstruosidade pode hoje ser requerida, caso se
obtenha para ela a inclusão pelo consenso. A maioria e seu consenso é o ideal moral de
nossos tempos, tanto mais quanto mais a expressão desta maioria for anônima - milhões
de votos computados em tempo real informam, a cada momento, o pensamento do Ou-
tro. Em sua marcha inclusiva, o consenso flerta com tudo a ele ainda externo, mas só
inclui aquilo que jogar seu jogo, que consinta em trocar sua singularidade pelos papéis
propostos. Decide-se, dessa forma, quem ganhará o prêmio maior do reality show, assim
como o próximo demitido de uma empresa.
E uma análise, como trabalha com os monstros em nosso desejo? Para começar,
exige levá-los a sério. A única coisa de que se pode ser culpado em uma análise é de
"ceder em seu desejo", sintetiza Lacan. Caracterizado o desejo como monstruosidade, ele

Opção Lacaniana nº 62 194 Dc7.t:mbro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

é deslocado e radicalizado, aproximando-se do excesso pulsional. Dessa forma, Lacan


reserva para o termo 'demanda' a parte bem definida de nossas vontades, congruente
com o ego. Isto previne contra a leitura de sua exortação como a promoção de um hedo-
nismo desenfreado. Pelo contrário, o desejo é articulado a coisas estranhas, fragmentos
de um gozo fora do eu, restos sem unidade o bastante sequer para constituir objetos em
si, razão pela qual Lacan lhes reserva apenas uma letra, "a". Não são objetos de cobiça,
são 'restos'6, mas têm insuspeitados poderes ele verdade e certeza.
Uma análise avança topando com estes estranhos seres . .Mais a chupeta do que a
mamadeira, mais o diário da adolescência do que os grandes livros, eles compõem uma
aglomeração heteróclita em alguma gaveta perdida da memória, incluindo fotos amare-
ladas, bilhetes, rabiscos, mechas de cabelo e dentes-de-leite. São testemunhas silenciosas
daquilo que em uma história concentrou o que, do gozo, não houve como subjetivar,
integrar no vivido comum e, exatamente por isso, foi deixado de lado.
Por definição, os objetos "a" são fragmentos angustiantes, pois fazem parte daquilo
que gravita em torno do eu, mas o tira do centro e dissolve. Por isso, uma análise não é a
descoberta de uma erótica pessoal, por mais específica que seja. Ela não define práticas
envolvendo objetos de desejo, mas sim, segundo Lacan, uma erotologia7, uma exploração
do modo como nossos objetos "a" coordenam os possíveis e os impossíveis de nosso ser
sexuado. Eles desenham, para cada sujeito, uma esquina só dele, onde, invariavelmente,
topou (e topará) com a indizível surpresa do gozo. Leia-se o "Porquinho da índia" de
Manuel Bandeira:

Porquinho-da-índia
Quando eu tinha seis anos/ Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava/ Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala/ Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas
ternurinhas ...
- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada 8 •

É um monstro tornado bichinho que, apesar disso, mantém seus poderes de ruptu-
ra, causando surpresa. O poema demonstra como a lida com a libido, tomada como ob-
jeto, pode produzir efeitos impensáveis. "Porquinho-da-índia" é a libido tornada objeto
graças a essa nomeação, localizando um gozo que não é apenas perigo e excesso, mas
eventualmente presença companheira, mesmo se apenas sob o fogão.
Alguém poderia argumentar que o procedimento de Bandeira nada tem a ver com
a sexualidade, pois pouco poderia haver de encontro sexual com um porquinho do pas-
sado. O mesmo efeito se encontra, porém, neste poema:

Opção Lacaníana nº 62 195 Dezembro 2011


Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.9

Há algo nos "olhos que nasceram dez anos antes do corpo" guardando o que é de
Teresa e de mais ninguém. Este grão de singularidade ganha a forma de um resto, fora
do corpo, mas intimamente a ele vinculado, exatamente como lacan define seu objeto
a. O poema transmite o modo como o Outro nos afeta e, creio, marca como o impos-
sível da relação é ao mesmo tempo o lugar onde se desencontram sujeito e Outro, no
exercício da sexualidade.
A proeza do poeta é conseguir passar a público o monstruoso de sua singularida-
de e ela passar a tomar parte de sua vida. É uma "inclusão" muito distinta da moral em
vigor nos estudos culturais, por exemplo, mas é ainda assim inclusão, que ganharia em
ser distinguida do conceito de sublimação. Não poderemos fazê-lo aqui, basta assumir
que para manter a analogia da operação de Bandeira com o processo analítico é preciso
ter em mente que uma análise irá tão longe, na direção da singularidade dos fragmentos
significantes, a ponto destes só terem valor para quem os leva consigo. Tais e quais, nos
confins do sentido compartilhado, não servirão a nenhuma criação poética ou artística.
O porquinho-da-Índia de Bandeira. ou seus laços com os olhos de Teresa. não
constituem nenhuma prática erótica alternativa, mas são operações "erotológicas" que
fazem um objeto a ganhar lugar no Outro, reorganizando o campo do desejo.
Por esta razão, Lacan, ao final de seu seminário sobre a ética, coloca o desejo
bem próximo, neste contexto do que tendemos a chamar de pulsão, no centro da ética
psicanalítica; mas apenas ao preço de um paradoxo. Ele só pode ser parâmetro de nossa
ação como uma "medida infinita'' 10 • Dez anos depois, porém, em "Televisão", encontra
maneira de afastar o paradoxo, ao deixar o desejo em segundo plano e definir a psica-
nálise como uma ética do 'bem-dizer'.
Não é 'dizer o Bem', instaurar o ideal no discurso, como se houvesse cura para o
irremediável da linguagem com relação ao real. Tampouco é 'dizer bem', instaurar um
discurso ideal, buscando o melhor possível a cada vez, na obrigação de ser o melhor
sempre. É 'dizer', pois ele é quem conta, não há como elevar-se acima dele. Somos o que

Opção Gtcaniana nº 62 196 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

dizemos. E é 'bem' porque, dentro das coordenadas significantes de uma existência, é o


dizer que dá ao desejo o seu lugar, pequenos monstros cheios de vida, sempre insistin-
do, nunca consistindo.
Com relação a esta ética, por erigir estes objetos como objetos para sempre perdi-
dos, a tristeza é um pecado, na conhecida referência que situa a tristeza como covardia.
A ética do bem dizer, porém, não apenas delimita pecados, mas ao menos uma virtude,
definida por Lacan como gato íssaber{gay sçavoir]1 1 em referência a Nietzsche, certamen-
te, mas também a Espinosa. O vigor dançarino de Dionísio e a alegria - como paixão do
que nos aumenta a potência de agir - poderiam ser caminhos para nos aproximarmos
do indicado por Lacan. Seguirei, porém, outra via, com o contra-exemplo de Dante,
fornecido por ele. Quando viu Beatriz, uma única vez, apaixonou-se pelo resto da vida.
Bastou um detalhe, um olhar, um "batimento de pálpebra", para sua paixão durar nesse
e noutros mundos (ela chega a aparecer no inferno para ajudá-lo, quando em sua Divina
Comédia se vê perdido).
No extremo oposto da fixação de Dante no objeto de sua paixão, o gaio issaber é,
segundo Lacan, deixar-se fisgar pelo sentido, sem nele se "envisgar". Em lugar de erigir
para nossos objetos a um sentido maior, com a força cio divino pode-se retroceder aos
limites do sentido, às raízes contingentes desses elementos significantes e construir com
eles, tal como Bandeira e seu fogão, a 'cena primária' de suas coordenadas de gozo. Não
haverá libertação de seu tracejado em nós constituindo o que Lacan chamou de fantasia
fundamental, mas apenas esta inclusão erotológica, outro modo de dizer, talvez, "saber
lidar" [sauoir y faire] com seu gozo.
O gaio saber de Lacan afasta-nos ela divinização do vazio, de uma ética do elcva-
mento, sublimatório, da promoção de um fora do sentido etéreo, e põe nossos pés no
chão por deixar evidente: o nonsense do riso afasta a apologia do indizível por eviden-
temente ser impossível sem as palavras.
Não é uma técnica. É percorrer as arestas da vida, pronto para pegar alguma coisa
em uma ação por Lacan caracterizada como piquer - cujo significado é "roubar", mas
também "furar", "espetar" - afinado com o "senso da oportunidade" 12 , definido por J.-
A. Miller como a principal qualidade do analista. Esse trabalho ele construção pode ser
vivido com o sentido do divino, do escândalo, da vergonha ou do horror. Com seu gaio
saber, Lacan nos lembra: nisso pode-se também rir.
Estamos sempre às voltas com o grandioso e o ridículo de nossas ações e preten-
sões. Afora essa comédia humana básica, as formações do inconsciente exploradas por
Freud demonstram como somos capazes de viver algo mais: dos erros cometidos aos
absurdos de que somos capazes, do nonsense com o qual flertamos aos chistes que nos
dizem. Lacan distribui este algo mais da experiência analítica na manifestação de algo
que em nós sonha, ri e fracassa [ça rêve, ça rit, ça rate].

Opção Llcaniana nº 62 197 Dezembro 2011


Os sonhos balançam as certezas apoiadas no "pão-pão, queijo-queijo" da realida-
de quotidiana por apresentar um real que) mesmo ensandecido, às vezes vale mais. Os
tropeços e seus fracassos nos guardam das curas e soluções onipotentes e conduzem ao
estilo, que só desponta quando em nossas obras os vícios são coautores. Finalmente, o
risa1 3 assinala como a lida com os restos ele nossas fantasias pode ser divertida. Com ele,
quero concluir.
Não me refiro à gargalhada provocada pela comédia. Mesmo em sua versão pas-
telão, caricata e reduzida, da torta no rosto do chefe, ela sempre deve sua força a um
triunfo. É descarga resolvendo um acúmulo de tensão, mas invariavelmente tomada em
um contexto épico, de opressão e libertação. Já o riso de que fala Freud é o de um gozo
liberado da epopeia, que economiza o dra1na e apenas se diverte.
Ele só é possível graças à liberdade com relação ao cristal da língua, que carac-
teriza as formações cio inconsciente. Estas nito são constituídas pelo comovente das
significações, mas pela argamassa invisível do discurso, os significantes. São tributárias
do que Freud chamou de processo primário, em nada primitivo, apenas mais afeito à
matéria-prima da linguagem do que às abstrações cômicas por ela sustentadas.
A exigência ética a presidir o dispositivo analítico é fazer caber a satisfação de
uma fantasia fundamental, até então apenas vislumbrada, na vida que se leva. Surpresa:
levada a sério: esta exigência descobre a certeza de gue 1 só espremida nas entrelinhas
do viver, esta satisfação se oferece. O risa1'1 é inevitável, irônica constatação do fora de
esquadro da existência, necessariamente composta, como lembra Lacan, em verdadeira
colagem surrealista 15-

Notas

Este texto retoma boa parte do desenvolvido na última aula do curso "Paixões em análise", ministrado na EBP-Rio em
2010. O restante do curso, cm seus aspectos mais diretamente relacionados ao tema dos afetos, foi retomado de forma
resumida em ·A letra e o elà". Latusa. (15). Rio de Janeiro, EHP-Rio, 2010.
Lacan, J. (1988 11959-60)). O Semi11ârio, livro 7: a ética d:1 psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge 7.,ahar Editora, p.10.
2 Idem, ibidem, p.372.
3 Idem, ibidem. p.374.
4 Idem, ibidem, p.14.
5 Freud, S. (197611920l) "Além do princípio do prazer", vol. XVII!, 17-89. Ediçào Swndard Brasileira Completa das Ohras
Psicológicas de Sigmu11d Freud. Rio de Janeiro: Imago, p.219.

6 Vieira, M. A. (2008). Restos, uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise, Rio de Janeiro, Contra Capa, p.18. 24.
7 L1c.1n, J. (2005(1962-63)). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, p
8 Bandeira, M. (1986). Poesia completa e prosa. lfo de Janeiro: Nova Aguilar. p.208.
9 Idem, ibidem, p.214.

Opção L-icaniana nº 62 198 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

10 Lacan, J, 0988 [1959-601). Op.cu. p.385-386.


11 Lacan, J. (2003). Outros Escritos. Rio de Janeiro JZE, p.508;543.
12 Miller, J.-A. (setembro, 2003). ~A 'formação' do analista". Opçào lacaniana, (37):15.
13 Lacan, J. (200611968]). Meu ensino, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, p.92.
14 Lacan, J.(2003) Op.ci!., p.524.
15 Lacan, J 0988[1963-64]). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p.161.

Opção Lacaniana nº 62 199 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Ü GOZO FEMININO E O UM

ANA LUC/A LVTTERBACH HOLCK (RIO DE}ANEIRO)


al11l11ho@gmail.com

Ao situar o fim de análise e a experiência com o feminino no espaço trágico, La-


can, no término do Seminário 7, A Ética da Psicanálise, 1 deixa em suspensão as relações
do desejo com a pulsão de morte, levantando questões que só serão consolidadas alguns
anos mais tarde. A purificação do desejo é tão bem sucedida que admite a dedução que,
ao transpor um certo limite, aquele que conclui sua análise, o analista, dispensaria o
semblante e a fantasia e se transformaria em uma espécie de herói do real.
Mesmo o esclarecimento de Lacan 2 : "Não os distingo [o herói e o homem comum]
como duas espécies humanas-, em cada um de nós há a via traçada para um herói, e é
justamente como homem comum que ele a efetiva\ não foi o bastante para evitar uma
interpretação do final de análise pela pura via trágica.
Depois disso, Lacan formaliza o objeto a e a função da fantasia em sua relação
com o desejo, mas no final do Seminário 11 verificamos que a suspensão da Ética ainda
se mantinha. Depois de quatro anos sem mencionar o desejo puro, não foi em vão que
Lacan ainda se lembrou de fazer uma advertência, como um refrão que insistisse: "O
desejo do analista não é um desejo puro"3 . Ele só diz isso: "não é puro".

Mais, ainda

A ética não cessa de persistir. As primeiras palavras de Mais, ainda, o seminário


20, são uma referência literal ao seminário da ética: "Me aconteceu não publicar A Ética
da psicanálise. [...] Com o tempo, aprendi que podia dizer sobre isso um pouco mais. E,
depois, percebi que o que constituía meu caminhar era da ordem do "não quero saber
nada disso". 4 Lacan se dá conta aí do porquê a suspensão que se mantinha, como ele
mesmo diz, era algo da ordem do "não querer saber".

Opção Lacaniana nº 62 201 Dezembro 2011


Ele não queria saber da substância do corpo como aquilo que goza, que a inci-
dência da linguagem sobre o corpo não é só mortificação, mas produz gozo. E constata,
assim, que havia valorizado o corpo mortificado pelo significante, um corpo esvaziado
de sua dimensão de ser vivo. No Seminário 20, trata-se de um corpo vivo, sexuado:

"Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? - a substância do corpo,


com a condição de que ela se defina apenas como aquilo que goza. Propriedade do corpo
vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar Yivo, senão apenas isso, que um corpo,
isso goza. Isso só se goza por corporificá-lo de maneira significanre 5•

O desejo puro é puro porque é sem o corpo. O gozo no Seminário 7, através da


sublimação ou transgressão, é o gozo sem corpo ou puro encontro com a morte.
No Seminário 20 o gozo ganha corpo, a sublimação não é sem o corpo, a lingua-
gem é gozo e perde a utilidade, isto é, não visa a comunicação. No Seminário 7; Lacan
associa o amor cortês à sublimação como um modo de não fugir da Mulher, não fugir
desse vazio cruel e enlouquecedor, mas girar em torno dele, cercando-o através da arte
de dizer e de cantar. No Seminário 20, ele o situa como "uma maneira refinada de suprir
a ausência da relação sexual, fingindo que somos nós que lhe impomos obstáculo':6. A
transgressão é a que a linguagem realiza no corpo, subvertendo seu uso e suas qualida-
des, criando ilhas de gozo onde não deveria.
Lacan quer reduzir a proliferação de sentido na análise que, de certa maneira, sua
teoria do significante propiciou. Ele quer uma transmissão que não autorize interpreta-
ções múltiplas, nem a unidade dogmática, mas algo que produza corte e descontinui-
dade: ".Minha topologia não é uma substância que situe além do real aquilo que motiva
sua prática. Não é teoria. Mas ela deve dar conta de que haja cortes do discurso tais que
modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente" 7•
Ele deseja transmitir a psicanálise em fórmulas precisas, concisas, uma psicanálise
que não despeje sentido aos borbotões, mas que desate os nós significantes e permita a
emergência do real, segundo ele se expressa em "Televisão"8 . Para realizar essa opera-
ção ele imprime modalizações psicanalíticas à lógica e à topologia, fazendo destas seus
principais instrumentos de articulação:

"A formalização matemática é nosso fim, nosso ideal. Por quê? - porque só ela é materna,
isto é, capaz de se transmitir integralmente. A formalização matemática é a escrita, mas que
só subsiste se eu emprego ao apresenr.á-la a língua que eu uso. Eis aí a objeção - nenhuma
formalização da língua é transmissível sem o próprio uso da língua. É por meu dizer que esta
formalização, ideal metalinguagem, eu a faço ex-xistir"9 .

Opção Lacaniana nº 62 202 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

No Seminário 7, Lacan já havia se insinuado no campo da lógica e da topologia.


O feminino, elevado ·à dignidade de Coisa, é um vazio desprovido de consistência, real
situado para além do significante e da significação, definindo um gozo impossível. É em
torno de das Ding, esse objeto vazio que se encontra no centro e, ao mesmo tempo, ex-
cluído, na mais radical exterioridade, que se organiza o espaço trágico constituído pelo
limite imposto pelas barreiras.
Bordas e limites definem campos diferentes em um mesmo plano, e o que está em
jogo são os desvios, transgressões e ultrapassagens para se alcançar ou evitar o objeto.
Já está aí o esboço de uma topologia. No entanto, este desenho ainda está mais próximo
de uma cartografia.
No Seminárfo 20: mais, ainda, Lacan introduz um espaço de gozo sexual, esta-
belecendo uma relação ao infinito específica para cada sexo, cuja topologia define os
lugares em termos de limite, convergência e infinito: "Neste espaço de gozo tomar algo
1

limitado, fechado, é um lugar, e falar disso é uma topologia''°.


Com o gozo impossível temos, por um lado, a erótica do amor cortês, uma erótica
masculina que coloca a dama no lugar de das Ding como um objeto ideal, só alcançável
através da sublimação; e por outro lado a erótica do trágico, mais característico de um
gozo feminino, o abandono heroico do simbólico e do imaginário e encontro com das
Ding, além do princípio do prazer, pura pulsão de morte.
Em Mais, ainda, o paradigma do gozo, segundo nos propõe Miller, é a não-relação,
isto é, o gozo sustentado pelo significante Um, um gozo sem o Outro. Sob esse paradig-
ma e com a expectativa de fazer aparecer algo de novo do lado das damas, o verdadeiro
tema de Lacan será a elaboração do nãotodo (pas tout), uma estrutura correlativa à face
real do Outro, do Outro que não existe:

Essa questão da relação sexual, se há um ponto de onde isto poderia se esclarecer, é justa-
mente do lado das damas, na medida em que é da elaboração do nãotodo que se trata de
romper o caminho. É meu verdadeiro tema deste ano, por trás desse Mais, ainda. e é um
dos sentidos do meu título. Talvez assim eu chegue a fazer aparecer algo de novo sobre a
sexualidade feminina 11 .

O Outro não existe - há algo d'Um (Yad'lUn)

Em seus cursos, há algum tempo, Miller se dedica a explorar as consequências


clínicas do último ensino de Lacan. Como ele mesmo diz na lição 6 (09/03/2011), No
ensino de Lacan, nada desaparece, "como em Roma, as igrejas são construídas no lugar
dos antigos templos do deus Mithra, são camadas sedimentadas. [... ] Portanto, não são

Opção Lacaniana nº 62 203 Dezembro 2011


anuladas, nem tampouco ultrapassadas à maneira hegeliana". No entanto, para Miller
não se trata de reencontrar as construções de Lacan no momento em que ele as fez, mas
encontrar "a dinâmica de sua reflexão que nos levou até onde estamos", e ele não faz isso
sem o seu próprio saber retirado da prática clínica e seus impasses atuais.
Nestas aulas de março, Miller torna a ler alguns conceitos essenciais para a clínica
e os efeitos sobre o passe, a partir cio gozo feminino como ponto inaugural cio último
ensino de Lacan. Tomo aqui algumas reflexões propostas nessas aulas para verificar suas
consequências na prática. Com este ponto inaugural e referência, todos os outros con-
ceitos vão sofrer transformações e suas funções serão alteradas.
Depois de todo o seu percurso servindo-se da linguística saussureana para nos
demonstrar o surgimento do sujeito a partir de um significante roubado do tesouro ele
significantes cio Outro, no final de seu ensino Lacan nos surpreende dizendo que o
Outro não existe. Na aula ele 16 ele março, Miller vai explorar esse "não existe" a partir
da afirmação enigmática ele Lacan no Seminário 19 - há algo cl'Um (Yad'lUn). Ele vai
explicar o "não existe", distinguindo-o do "não é", o Outro se inscreveria no âmbito do
ser que se distingue da existência. O ser se sustenta no discurso, no que é dito e a exis-
tência se apoia na lógica, no que é verdadeiro. Miller separa, assim, a ontologia (ser) ela
henologia (um), antes ele tudo que possa ser dito há algo (Yad'/Un). O ser é semblante
e a existência concerne ao real. O Outro não existe quer dizer exatamente que é o Um
que existe: Y a d'lUn, antes de tudo existe só o significante Um, real, e só a partir deste
Um é que se pode pensar toda marca, toda falta.
O Um é o existente cujo único elemento é o vazio, ou o zero. O Um é o outro
mínimo do zero, ele inscreve que zero existe. Inscrever o conjunto vazio Como o zero
inicial da sequência de números é um equívoco da existência, como nos diz Miller. Os
outros números são deduzidos a partir do zero e do um. O zero é, assim, a exceção a
partir ela qual se funda a série dos números naturais.
Como o Outro que não existe, em Lacan, no real não existe a relação sexual, só
existe o significante Um. Em Freud o "existe" foi chamado de fixação, pontos em que a
libido se fixa. Para Lacan, durante todo o seu ensino, a constante, o que permanecia fixo,
estava cio lado do objeto a, enquanto o significante com seus efeitos de significação era
sempre considerado variável, dialetizável, poderia dizer tudo e seu contrário. No segun-
do movimento de seu ensino, o significante age separado de sua significação e o objeto
a, que estava no lugar da significação, no lugar do efeito de sentido, o que do gozo era
determinado, cingido, transparente ao sentido, desaparece. Com o significante Um, há
supremacia da lógica sobre a ontologia e a dialética perde seus direitos. Nesse movimen-
to, o objeto a desaparece e o que se inscreve é o gozo opaco ao sentido.
Na aula seguinte, 23 ele março ele 2011, Miller esclarece mais ainda a diferença en-
tre ser e existência ao situar o ser do lado das ficções, cujas entidades só sustentam seu

Opção Lacaniana n" 62 204 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

ser por serem enunciadas. A existência não nos faz sair da linguagem, mas para aceder
à existência é preciso tomar a linguagem em um nível diferente do ser, é preciso tomá-la
pela escritura. Uma escritura que não é a escritura da fala, mas a escritura pura, manejo
da letra, do traço, onde o significante opera cortado da significação. Sendo assim, não
se trata mais de escuta, mas de leitura. O que se escuta são significações que evocam
compreensão, onde há sempre um gozo implicado. A leitura é outra coisa, a leitura parte
do significante e, eventualmente, pode até dar lugar a significações, pode-se passar da
escuta à leitura e para passar de uma à outra é preciso passar pelo escrito.
Este significante primeiro, Lacan diz que é como uma substância, mas Miller adver-
te, substância não quer dizer gênese, ele é primeiro, chega ao mundo com a linguagem,
há Um, e este Um não pode ser deduzido. É na medida em que se coloca como um dado
primeiro, "há um", que se é conduzido a isolar o gozo como outra substância.
Neste sentido, poderíamos dizer que Lacan abandona as ficções pelas .fixões do
gozo. Ali onde reinava os efeitos de sentido, passa a prevalecer o gozo sem sentido.
A substância gozante é atribuída ao corpo, mas com a condição, diz Lacan, segun-
do Miller, de que se defina só como aquilo de que se goza, ou seja, o corpo de que se
trata aqui não se define pela imagem ou pela forma, como o corpo do estádio do espe-
lho. Dizer substância implica um corpo que goza de si mesmo, não o corpo que seria o
da relação sexual, mas um corpo existente em que a linguagem se imprime produzindo
efeito de gozo: o Um se imprime sobre o corpo e faz dele um aparelho de gozo e "a
repetição do Um comemora uma irrupção de gozo inesquecível". O sujeito se encontra
desde então, nas palavras de Miller, ligado a um ciclo de repetições que as instâncias não
se adicionam e as experiências não lhe ensinam nada, são as adições.
A generalização do gozo feminino seria, então, essa repetição de um gozo mudo,
opaco, fora do sentido, chamado de feminino, que nem todas as mulheres experimentam
e que um homem pode experimentar.
Podemos reconhecer esse gozo em algumas passagens da literatura e aqui me lem-
bro de duas. Uma refere-se ao livro de Aharon Appelfeld - Histoire d'une vie - no qual
ele relata o período, durante a segunda guerra, em que fugiu de um campo de concen-
tração aos cinco anos, e viveu sozinho, durante três anos, em uma floresta. Ele escreve
justamente para tentar falar de uma experiência para a qual não há palavras e nos relata,
por exemplo, uma umidade que o remete a uma experiência de corpo inusitada. Ele sabe
que essa experiência de corpo tem relação com esse período em que viveu abandonado,
mas por mais que conte a história e tente se lembrar dos acontecimentos, resta uma ilha
de gozo sem nome que ele revive a cada vez que entra em contato com essa umidade.
Ele nos diz que sua escrita é para isso, se nào pode dizer, ele tenta cernir.
Bem diferente dessa experiência, Proust, Em Busca do tempo perdido, conta uma
história cheia de sentido e lembranças, mas só para demarcar ilhas de gozo mudo e sem

Opção Lacaniana nª 62 205 Dezembro 2011


sentido, biografemas, como expressa Barthes: a espera do beijo da mãe, o sabor das
madalenas, as torres de Combray vistas ao longe na chegada, a espera por Odette, são
alguns destes pontos que permeiam seu texto.
Proust, depois de provar as madalenas molhadas no chá, tenta, inutilmente, tradu-
zir o gozo em palavras:

Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tor-
nara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastre, ilusória sua brevidade, tal
como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava
em mim, era eu mesmo. [. .. ] De onde vinhaí Que significava? Onde apreendê-la? 12

E na mesma página:

É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa
inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e ele seu alcance, em
algum objeto material (na sensação que no.s daria esse objeto material) que nós nem suspei-
tamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes ele morrer, ou que não o
encontremos nunca.

O testemunho do passe, para Lacan, seria a via para tentar dizer sobre essa ex-
periência e Miller pontua dois momentos do passe no ensino de Lacan: a travessia da
fantasia e o sinthoma. Em um primeiro momento, o passe era a revelação ela verdade
com consequências sobre o real, a travessia da fantasia e a queda do objeto a. A fantasia,
como significação dada ao gozo mediante um cenário, mesmo quando essa significação
é esvaziada, o gozo permanece. Com o sinthoma, a revelação da verdade pode ter uma
incidência sobre o real, mas o real como tal permanece intocado, resta o incurável que
continua sua repetição, indiferente ao esforço de tentar domesticá-lo ou limitá-lo. O ver-
dadeiro impossível, como observa Miller, é o real. Portanto, com o sinthoma não se trata
de transgredir, trata-se de poder cingir um certo número de pontos de impossível e a
tentativa de demonstrar o impossível, em uma via além da verdade mentirosa.

Notas

Lican, J. (1988 [1959-60)). O Seminário. livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
2 Idem, p.383.
3 L'\can, J. (1985 [1963-641). O Seminário. livrol l: os quatro co11ceitosfundame11tais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, p.260.
4 L1can, J. (1985 11972-731). O Seminário, livro 20: mais. ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.9.

Opç-Jo Lacanlana nº 62 206 Dezembro 201]


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

5 Idem, p.35.
6 Idem. p.94.
7 Lacan, J. (1972/2003). ·'O Aturdito''. ln Outros Escrilos. RJ: JZE. p.479.
8 Lacan, J. (1972/2003). "Televisão". ln Outros Escritos. R_I: JZE, p.515.
9 Lacan, J. 0985 \1972-731). Op.cit., p.161.
10 Idem, p.171.
11 Idem, p.78.
12 Proust, M. (2006). Em busca do tempo perdido. Volume l. Traduç;io Maria Quintana. Rio de Janeiro: Ed. Globo, p. 71.

Opção Lacaniana nº 62 207 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

LACAN MATEMÁTICO

STELLA}IMENEZ (RIO DE]ANEIRO)


Jtjimenez@terra.com.br

Quase da mesma forma que Freud nutria uma paixão pela verdade e a perseguia
com perigosa ousadia, Lacan nutria uma paixão pela matemática, girava em torno dela,
a convocava ... E a matemática respondeu a esse amor de diferentes maneiras, mas rara-
mente esteve à altura dessa paixão.
Por que ele a cortejava? Ele deu algumas explicações no Seminário 20, em duas
exaltadas frases. Na primeira, na aula 8 desse seminário, disse que a formalização ma-
temática poderia dar o modelo do Real, por ela ser a elaboração mais avançada da sig-
nificância ao contrário do sentido, quase a contra-senso. Significância, nesse seminário,
é aquilo que tem efeito de significado. Ou seja, o real, por só poder se inscrever como
impasse na formalização, poderia encontrar seu modelo na formalização matemática
que, sendo um nonsense, aparece como uma elaboração avançada de efeitos de signifi-
cados. Ele o disse assim:

É aí que o real se distingue. O real só se poderia inscre\'er por um impasse da formalização.


Aí é que eu acreditei poder desenhar seu modelo a partir da formalização matemática, no
que ela é a elaboração mais avançada que nos tem sido dado produzir de significância. Essa
formalização matemática da significância se faz ao contrário do sentido, eu ia quase a dizer
a contra-senso... , é o que dizem, em nosso tempo, os filósofos das matemáticas, sejam eles
próprios matemáticos, como Russell. 1

E na aula 10 desse seminário, disse que a formalização matemática é seu ideal,


já que pensa que só o materna permite uma transmissão integral. Nessa época, ele já
tinha criado o conceito de materna para formalizar os termos psicanalíticos de maneira
algébrica e dar conta de suas relações. Ele teria derivado o termo da palavra mito de
Lévi-Strauss e da palavra grega "mathema" (conhecimento).

Opção Lacaniana nº 62 209 Dezembro 2011


A formalização matemática é nosso fim, nosso ideal. Por que? Porque só ela é materna, quer
dizer, capaz de transmitir integralmente. A formalização matemática é escrita, mas que só
subsiste se eu emprego, para apresentá-la, a língua que uso. Aí que está a objecção - nenhu-
ma formalização da língua é transmissível sem uso da própria língua. 2

Nessas citações, Lacan denunciou o que procurava na matemática: o agalma que


o movia era o Real. Ou seja, como disse ].-A. Miller no seu seminário "O ser e o Um",
Lacan se perguntava como chegar ao Real por meio das palavras e qual é a relação
entre linguagem e Real. Questão fundamental para os psicanalistas, já que o trabalho
com palavras deve tocar o Real. lacan percebia que a matemática poderia ser a chave.
Nesses parágrafos do Seminário 20 ele mostrou que via na formalização matemática
caraterísticas do Real: o nonsense e a possibilidade de ser integralmente transmissível.
Mas, novamente, encontra o obstáculo de que é necessária a linguagem para fazer essa
transmissão, e mais uma vez, percebe o hiato entre Real e Simbólico.
Acho que essa paixão pela matemática chegou a um final feliz quando, nos seus
últimos textos, lacan encontrou o que procurava. Ele teorizou que a cifra, sendo cifra de
gozo, é uma articulação direta entre linguagem e real. Ele usou esse termo no "Autoco-
mentário" e na "Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos", onde
define a cifra como o que funda a ordem do signo. 3 ].-A. Miller reencontra essa cifra na
letra, letra de gozo.
Mas vou contar esse romance a partir de seu começo ...

A Carta roubada

A questão de Lacan nesse momento era a compulsão à repetição4 . A relação, cha-


mada por Freud de demoníaca, entre o aparente acaso e os acontecimentos que se re-
petem. Se a determinação é simbólica, como ele pensava nessa época, como isso incide
no Real do destino de um sujeito? De fato, essa questão sempre o acompanhou. Pode
ser que seja a questão da psicanálise, a compulsão à repetição e a sua versão atenuada,
a repetição do sintoma.
Assim sendo, ele se interessou pela teoria dos jogos, que parecia dar as leis do
acaso. Como ele diz no Seminário 1, excluindo a intersubjetividade essa teoria supõe
uma "quantidade de dados numéricos, como tais, simbólicos". 5
A queda de uma moeda de um lado ou do outro - cara ou coroa -, absolutamente
aleatória e do registro do Real, é organizada primeiramente pelo universo significante,
pelo simbólico, como o par significante básico presença-ausência. A partir daí os signos
se agrupam, se organizam, apresentam suas leis. Essas agrupações formam outras e a

Opçào Lacaniana nº 62 210 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

lei do significante passa a imperar. Essa lei do significante ignora a impossibilidade ele
se prever de que lado a moeda cairá. Ou seja, essa ordem significante estabelece leis e
organiza simbolicamente aquilo que, no Real, continua não sendo organizáveL Mas essas
leis parecem tão convincentes que fazem esquecer que o Real, como já dizia Lacan nesse
momento, é o que retorna sempre ao mesmo lugar e continuará sendo imprevisível se
vai dar cara ou coroa. 6
Mas, assim como os leitores apressados desse texto tendem a pensar que o próprio
acaso poderia ser previsível, os sujeitos tendem a confundir as leis simbólicas com a
ideia de que essas leis poderiam valer no real. Por isso as pessoas compram sequências
numéricas que prometem prever, por exemplo, que número vai cair na roleta.
Lacan percebe isso, e na conferência proferida em 22 de junho de 1955 diz:

O joguinho simbólico ao que se resumem os sistemas de Newton e o de Einstein tem, afinal,


pouquíssimo a ver com o Real. Esta ciência que reduz o real a umas poucas letrinhas, a um
pacotinho de fórmulas, aparecerá sem dúvida com o recuo dos tempos como uma espantosa
epopeia, e talvez se tornará delgada, como uma epopeia de circuito um tanto curto.7

Ou seja, a questão permanece: como é que, no sujeito, a determinação simbólica


consegue alterar o real dos acontecimentos, se os jogos simbólicos não tem nada a ver
com o Real? ].-A. Miller pensa que Lacan nesse momento apostava na eficácia simbólica,
dando ao simbólico quase um poder de Real. Então o simbólico de um determinado
sujeito modificaria o real, com a sua eficácia.
Enfim, como todo primeiro flerte, esse com a matemática só mostrou o descami-
nho que cega o homem quando ele acredita na ciência, a questão da relação Simbólico-
Real continuou trabalhando em lacan. Em toda a sua obra, ele continuou se interro-
gando sobre a possibilidade de chegar ao Real a partir do simbólico, motivado por
estas questões: como é possível mexer com o real na nossa prática, e como entender a
repetição do sintoma.
Em "Televisão", Lacan inverte os termos: já não se trata mais de que por meio do
simbólico se chegue ao Real mas sim de como o Real chega ao simbólico.
1

Assim ele fala da alunissagem como o Real impossível chegando ao pensamento,


isto é, ao discurso científico, mas por intermédio do discurso do Mestre, ou seja, ela
política. Por mais obscura que seja essa observação ern se tratando da chegada à lua,
ela antecipa o que ele vai dizer a seguir: que o real nos chega através de um discurso."
J.-A. Miller conclui que a relação entre Real e Simbólico é estabelecida pela letra,
letra que seria a cifra de gozo. Essa letra, equivalente ao Sinthoma, acontecimento de
corpo, seria a forma como teria ficado escrito o traumatismo e produziria adição. Ele
sugere que essa letra deve ser lida, e que esta seria a maneira de agir a partir do Real.9

Opç.io Lacaniana nº 62 211 Dezembro 2011


Notas

Lacan, J. 0985 [1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p.125.
2 [dern, p.161.
3 Lacan, J. 0973/2003). "lntrcxlução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos" in Outros escritos. Rio de Janeiro.
Jorge Zahar Ed., p.551.
4 Lacan, J. 097911953-19541). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p.256.
5 Só é possível verificar isso tendo a paciência de refazer a rede simbólica que Lacan mostra nesse texto. Miller, em O osso
de uma análise, demostra essas séries de mancir:1 mais compreensível.
6 Lacan, J. (1978 [1954-19551). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., p.373.
7 Lacan, J. 0973/2003). "Televisão· in Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed .. p.535.
8 Miller J.· A. [20111. Seminário "O ser e o Um", aulas de 14 e 25/05/2011. Inêdito.
9 Miller J.· A. [20111. Seminário "O ser e o Um", aulas de 14 e 25/05/2011. Inédito.

Opção Lac:.miana nº 62 Z1Z Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Ü OUTRO ENCONTRO: UCAN E A ESCOLA

LUIZ HENRIQUE VIDIGAL (BELO HORIZONTE)


l11izhenriq11evidigal@gmail.com

Quando me foi proposto escrever sobre "Lacan e a Escola", lembrei-me de um


pequeno acontecimento de 32 anos atrás. Em 1979, estávamos em Paris, três jovens
analistas de futuro incerto, mas cheios de desejo. Célia Garcia nos orientava, falava das
tendências da psicanálise. Em determinado momento ele nos disse:
Célia: Talvez pudéssemos tentar agendar uma visita ao Dr. Lacan.
Eu: Seria ótimo!
Célia: É preciso que vocês tenham alguma coisa a dizer.
Esta marcação demonstrou o quão desproporcional seria para nós tal visita. Ainda
assim passamos horas discutindo o que falar, até que a inibição tomou conta e Célia
desistiu do projeto. Confesso que especialmente em mim i.sso causou um desconforto,
um sentimento de fracasso.
De volta ao Brasil, escrevi a Jacques-Alain Miller uma longa carta manuscrita, na
qual lhe falava do movimento psicanalítico em minha cidade e das dificuldades e impas-
ses de um psicanalista lacaniano naquela época. Miller não me respondeu. Anos depois,
quando me encontrava em análise, falei desta carta e ele exclamou:
Miller - Ah! Então foi você quem escreveu? (Como quem liga então o nome ã
pessoa).
Em 1981 Lacan veio a falecer, e o sonho de um encontro acabou.
Acabou????
Há um personagem de Jorge Luis Borges, Pedro Damián, de um conto denomina-
do "A Outra Morte". No momento de sua morte, Damián pôde reviver a batalha na qual
tinha sido um covarde. Trazendo-a na forma de delírio, ele então se conduziu como um
homem e encabeçou o ataque final. Assim, em 1946, Damián morreu na batalha que
ocorreu em 1904. Ao que Borges acrescenta: "já os gregos sabiam que somos as sombras
de um sonho".

Opção Lacani.tna nº 62 213 Dezembro 201 I


Seria possível "Um Outro Encontro", que sobreponha 20Jl a 1979'
Nem verdade 1 nem mentira, ficção.

Lacan - Bem ... Estava esperando por você! Fale'


Eu - Sou um psicanalista, brasileiro e sou um leitor de ...
Lacan - Não, não .. fale sobre o que você quer!!!
Eu - Não sei ... o que eu quero ....
Lacan - Hum!!!
Eu - Para mim se trata de pensar a relação com a Escola e de ..
Lacan - Não! Não se trata de uma relação com a Escola. Minha Escola, eu a fundei
tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa analítica. A causa ana-
lítica foi o que me levou a fundar a Escola! Ali deveria realizar-se um trabalho indissoci-
ável de uma formação. Aqueles que viessem para a Escola se comprometeriam a realizar
uma tarefa e em troca lhes seria assegurado que tudo o que fizessem de válido teria
repercussão. Para a execução do trabalho propus o princípio de uma elaboração apoiada
em um pequeno grupo, o Cartel, que após certo tempo de funcionamento, permutaria
seus componentes.
Na época, não precisava de uma lista numerosa de adesões, mas de trabalhadores
decididos como, desde então, eu era. Era necessário um movimento de reconquista do
Campo freudiano.
Eu - Retornar a Freud? Dizer a verdade de sua proposta?
Lacan - Há grandes obstáculos para que a verdade se diga. A verdade tem a ver
com o Real e o Real está dobrado, se assim se pode dizer, pelo Simbólico. Em 1964 eu
falei em restaurar a sega cortante da verdade de Freud. Há aí o aspecto de um dever que
nos leva a uma crítica assídua. O verdadeiro é uma conquista. Não há nenhum aparelho
doutrinário, por mais propício que seja, que garanta este ato. O ensino da psicanálise só
pode se transmitir de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho.
Meus seminários, que se desenvolveram fora da Escola, para uma plateia que nunca
tomou, propriamente dito, sua medida, só fundaram algo na medida em que remeteram
a esta transferência.
Eu - A transferência é a garantia?
Lacan - Se falamos de transferência não se exclui o engano, pelo contrario, é isto
que impulsiona o sujeito ao trabalho. Então não há garantia. Cada um deve descobrir as
promessas, os obstáculos e colocar algo de seu.
Eu - Bem ... o que o senhor queria de sua Escola?
Lacan - Em 1956, por ocasião do centenário do nascimento de Freud, fiz uma
conferência na qual, tentando causar riso, criei uma alegoria e nomeei alguns papéis: as
suficiências, os pés de chinelo e até as beatitudes. É claro que ninguém riu, pois esta-

Opção I..J.cani:tn<t nº 62 214 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

vam nesse sistema. Em 1967 fiz uma proposição à minha escola, partindo do ponto em
que, por haver dado conta de sua análise, do lugar que o psicanalista ocupara em seu
percurso, no momento de sua 'dessuposição', alguém dá o passo de ocupá-lo. Chamei
isso de passe e constatei que o analista, dessa operação, dessa passagem, não sabia coi-
sa alguma. Propus um procedimento para que as pessoas pudessem testemunhar sobre
esse ponto, criando assim a função de analista da Escola. Entre outras coisas, ele poderia
detectar como os analistas têm tão somente uma produção estagnada, sem saída teórica.
Talvez se possa até recrutar analistas a partir deste ponto. Propus isto aos italianos.
Eu - Então o passe é um desejo de Lacan'
Lacan - Você é insistente' Há um real em jogo na própria formação do psicanalista.
As Sociedades se fundam sobre o desconhecimento desse real, ou mesmo sua negação
sistemática. Uma sombra espessa encobre esta juntura, esta passagem, do psicanalisando
ao psicanalista. A Escola pode se empenhar em dissipá-la, particularmente na medida
em que seus analistas testemunham sobre esse ponto. Se em 1964 eu precisava de tra-
balhadores decididos, a partir desta proposição eu precisava de analistas à altura desta
tarefa.
Eu - E... foi bem sucedido?
Lacan - Bem, na Escola Freudiana de Paris a experiência do passe foi marcada
pelo fracasso. Tentamos por quase treze anos e não tive outra saída senão a dissolução.
Na Escola Freudiana não entravam em acordo a não ser quanto a isso; amam-me. Essa
Escola era sintoma, como qualquer outra 1 mas não o bom. Temi que num momento em
que eu não tivesse mais voz na Escola, isto é, no momento em que eu finalmente me
transformaria em Outro, e este momento se aproximava, minha Escola não se sustenta-
ria. Não se tratava de uma autodestruição, a Escola não era eu, nunca pensei ou disse
isso. Tratava-se sim, de uma proposta para a psicanálise.
A dissolução foi necessária para que a experiência do passe não fosse abandona-
da e para que eu desse ao psicanalista, que tem horror ao seu ato, a oportunidade de
enfrentá-lo.
Fundei, então, a Escola da Causa Freudiana.
Eu - E o senhor pensa em Escolas em outros lugares 1 na América Latina, por
exemplo?
Lacan - Em 1980 estive na Venezuela, com pessoas que nunca tinham me visto
nem me escutado. Eram meus leitores, e o fato de não serem meus alunos não os impe-
dia de serem lacanianos. A eles pude dizer que se quisessem poderiam ser lacanianos,
mas que eu, de minha parte, era freudiano. Penso que o futuro está aí, e para tratar da
relação com esses grupos, criei a Fundação do Campo freudiano.
Eu - E a Escola'
Lacan - Bem, para haver Escola é preciso que haja formação, análises, e isto leva

Opçiio Lacaniana nº 62 215 Dezembro 2011


tempo. De toda forma pode ser que a existência de outras Escolas produza uma nova
chance para o passe, na medida em que ele implica uma acumulação da experiência,
sua compilação e elaboração, uma seriação de sua variedade, e uma notação de seus
graus. Então, se quiserem, podem colocar na conta do desejo de Lacan esta seriação,
variedade e notação.
Eu - Faríamos então um bom sintoma?
Lacan - Bem, estamos no momento de concluir nossa conversa __ Você devia ter
vindo me ver em 79.
Eu - Sim .. acho que foi uma covardia ... Era tudo grande demais e ..
Lacan - Hum!!!
Eu - Bem .. Não seria uma conversa como esta ...
Lacan - Hum!!!
Eu - Talvez eu quisesse mesmo era me analisar...
Lacan - E você encontrou um caminho para isso?
Eu-Sim!
Lacan - Sabe .. A Escola pode fazer parte do caminho. Pode ajudar o analista a
suportar o mal entendido. Eu sempre tive que lidar com isso e nunca me acostumei, se
assim se pode dizer'
Eu -Ahnn???
Lacan - Você sabe, o homem nasce mal entendido!

Opção Llcaniana nº 62 216 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

UCAN E O ACONTECIMENTO DE CORPO

RoMILDO DO RÊGO BARROS (RIO DE}ANEIRO)


romildorbarros@terra.com.br

Em um pequeno texto feito em homenagem a um escritor que se deu a tarefa de


forçar a língua até o limite do sentido\ Lacan nos deixou esta afirmação: o sintoma é um
acontecimento de corpo.
Por que falar do corpo nessa conferência' Por que falar do corpo em uma home-
nagem a James Joyce'
É até certo ponto surpreendente que um artista que nunca passou pela experiên-
cia analítica - e a questão sequer podia ser levantada, comentou de passagem Jacques-
Alain Miller - sirva de exemplo, ou, mais do que exemplo, de modelo para uma nova
abordagem do sintoma, para o qual Lacan chegou inclusive a propor uma nova escrita:
sinthoma. Era certamente preciso que fosse alguém situado fora da decifração e fora da
hipótese do inconsciente.
Uma frase semelhante poderia sem dúvida ter sido pronunciada por Freud, que
cuidava de pessoas cujas queixas, talvez em sua maioria) diziam respeito aos mal-estares
do corpo. Eram patologias estranhas, é bem verdade, que se expressavam através de
queixas incongruentes e deixavam sem saída o saber médico. Para que Freud pronun-
ciasse a frase, seria no entanto preciso que fosse acrescida de um complemento, que já
é uma criação freudiana: o sintoma é um acontecimento de corpo ... que expressa um
conflito psíquico.
A queixa de um sofrimento diretamente psíquico, de um mal estar suposto no
pensamento, somente aos poucos foi se tornando objeto de tratamento, e sem dúvida
como efeito da própria existência da psicanálise. Forçando um pouco, quase diria que o
sofrimento psíquico como objeto de ciência é um efeito da interpretação que a psicanáli-
se forneceu à histeria. Vem do reconhecimento prático de que "o que distingue o corpo
do ser falante é que o seu gozo sofre a incidência da fala" 2 •

Opç-Jo Lacaniana nº 62 217 Dezembro 2011


Freud nos ensinou a procurar na origem do sofrimento incompreensível um fato,
uma fantasia, ou, mais claramente, um desejo, que lhe servirá de explicação. Para isso,
chamou de inconsciente uma nova instância psíquica, que opera como alteridade interna
ao sujeito: dado tal sintoma, e desde que há inconsciente, pode-se produzir uma narra-
tiva que inclua o reconhecimento de um desejo não sabido.
A partir daí, o sofrimento humano encontrou a sua lógica, porquanto teria no
horizonte -horizonte mítico, é preciso que se diga - a sua bamartia, o erro necessário
cometido em referência aos cenários extremos do parricídio e do incesto. Freud criou
com isso, entre outras coisas, uma nova acepção da história centrada no futuro anterior:
tem-se desde então o passado, o presente, o futuro.. e mais o passado freudiano, que
está por assim dizer na dependência do futuro: cada um de nós "terá sido" aquilo que a
interpretação freudiana anuncia.
A explicação freudiana tem um aspecto necessário: todos "teremos passado" pelo
erro fundador, e nossos sintomas são testemunhos desse erro. Isso dá uma certa regu-
laridade à teoria, bem como ao tratamento: desde então, os sintomas são passíveis de
distribuição em classes, e os diagnósticos podem ser comunicados a outros. O aspecto
contingente fica basicamente por conta das condições do encontro traumático: quando,
como, através de quem ..
Lacan, pelo contrário, fala-nos de um acontecimento de corpo singular e contin-
gente, que está ligado a uma redução ou ruptura do sentido. Não quer dizer simples-
mente que algo ocorre 'no' corpo, mas que o que aí ocorre se dá como e.xceção, fora
de qualquer regularidade. É algo que ocorre ao arrepio da continuidade, e que escapa à
simples repetição. O acontecimento de corpo é contingente e singular à maneira de cada
sujeito sofrer e gozar.
Contrariamente à conversão histérica, que Freud fez falar desde que ofereceu a si
próprio como interlocutor, o acontecimento de corpo assinalado por Lacan é mudo. Ou
então fala aos gritos, sem direção precisa e fora dos códigos, "isso goza onde não fala,
isso goza onde não faz sentido".' Não é a relação do sujeito com um saber não sabido -
que ficará esclarecido a partir do momento em que é submetido ao código do Outro e
expresso em palavras -, mas um encontro sem precedente e impossível de se formular
como história. Segundo Miller, trata-se de uma butée no processo de decifração, um obs-
táculo que surge quando o sujeito esbarra em um ponto fora-de-sentido, e não de uma
recusa ou resistência à decifração. 4
Essa nova maneira de ver tem consequências, além de ser ela própria uma imposi-
ção de transformações na cultura 5 e do surgimento de sintomas inéditos. Já não se trata
de incluir o sujeito em um protocolo de saber6, mas, pelo contrário, de extraí-lo daí, o
que provocará, pelo menos provisoriamente, uma vacilação nas categorias gerais, como
'O' neurótico, 'O' psicótico etc. .. Penso não estar muito longe de uma definição dada anos

Opção Lacaniana nº 62 218 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

atrás por François Rcgnault: "a psicanálise, por sua dialética cio caso clínico, é o campo
no qual o singular e o universal coincidem sem passar pelo particular''7•
Cada sujeito, a partir daquilo que o faz sofrer, dará coma do seu caminho singular
na revelação de uma satisfação que lhe seja própria.

Notas

Lacan, J. (2003). "Joyce, o sintoma~ ln Ou1ros escritos. Rio de janeiro: JZE. p.565. Na versão brasileira, a tradução para
é11é11eme1Jt de co,ps é '·evento corporar. Ultimamente. vem se turnando usual a expressão "acontecimento de corpo".
2 Miller, J.-A. ''Ler um sintoma". Texto estabelecido por Dominique Helrnet, não revisado pelo autor. Tradução de Maria
CrL~tina Maia Fernandes. Edição e revi:;ão: Maria Angela Maia.
3 Miller, ).-A. (2008). "Coisas de fineza em psicanálise , aula de Ii/12/2008, publicado na revista !.a Causefreudienne.(il).
4 Idem, ibidem, p.78.
5 Ver, por exemplo, este trecho de uma conferência de Lacan: "A realid:1de física se mostra dora\·ame impenetrávd a roda
analogia rnm um ripo qualquer de homem universal. Ela é plenamente, totalmente inumana. O problema que se coloca
para nós não é mais o problema cio co-nascimento (co-naissance). de um conhecimento de uma conatural idade pela qual
se abre para nós a amizade das aparências."' l.acan, J. (2005). O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos.
RJ: Jorge Zahar Editor. p.40.
6 Miller, J.-A. Op. cit.: "... o que eu creio mais propriamente psicanalítico: o ponto de vista anti-diagnóstico. O diagnóstico
vem por acréscimo".
7 Regnauh. F. (2001). Em /omo do vazio. RJ: Contracapa. p.10.

Opção Lac::miana nº 62 219 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

lACAN E A FORMAÇÃO DO ANALISTA:


UM ENSINO ÍMPAR

CARLOS AUGUSTO NICÉAS (RIO DE}ANEIRO)


caniceas@terra.com.br

"Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", relatório de Lacan ao


Congresso de Roma em setembro de 1953, é prefaciado por ele nos Escritos'. As pri-
meiras linhas desse prefácio nos dizem: "O discurso que se encontrará aqui merece ser
introduzido por suas circunstâncias. Porque, delas, ele traz a marca".
As circunstâncias: o tempo da crise instalada por ocasião da criação do Instituto
de Psicanálise da SPP até a fundação da SFP. E1 em Roma, Lacan se propõe a tarefa de
renovar na psicanálise os fundamentos que ela retira da linguagem, rompendo com o
"o estilo tradicional que situa o "relatório" entre a compilação e a síntese, para lhe dar o
estilo irônico de um questionamento dos fundamentos desta disciplina".
Uma primeira denúncia sobre a maneira de se ensinar a psicanálise em 1953: La-
can nos diz que as formas iniciáticas e organizadas por Freud ao criar a IPA, acreditando
que o analista formado por elas defenderia a causa da psicanálise contra uma prática
selvagem reduziram-se a um puro formalismo: "As regras técnicas assimilaram-se a re-
ceitas, fechando à experiência todo o alcance de conhecimento e mesmo todo critério
de realidade''. Daí a urgência da ;<tarefa de resgatar nas noções que se amortizaram num
uso rotineiro, o sentido que elas reencontram tanto num retorno à sua história quanto
numa reflexão sobre seus fundamentos subjetivos". O que faz Lacan concluir que somen-
te assim tem-se definida a função daquele que ensina, função "da qual todas as outras
dependem".
Um ensino, o seu, durante os primeiros 10 anos, pôs Lacan, semanalmente, retor-
nou, então, ao sentido de Freud.
Com Freud, a psicanálise se aprendia na experiência mesma da análise do analista,
sua formação conjugando, assim, a convicção da existência do inconsciente e trocas ver-
bais ou epistolares a partir dos ensinamentos do mestre. Transmitiam-se, dessa maneira,
os conceitos fundamentais da psicanálise.

Opção Lacaniana nº 62 221 Dezembro 2011


Na abertura do livro Ido seminário, lição inaugural de 18/ll/532 , Lacan evoca um
mestre budista aplicando ao seu ensino a técnica zen de interromper o silêncio "com
qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé". A seus alunos de procurar as respostas para
suas questões porque esse mestre "nào ensina ex-cathedra uma ciência acabada, ele traz
1

a resposta quando os alunos estão no ponto de encontrá-la". Para Lacan: "este ensino é
uma recusa de todo sistema. Ele descobre um pensamento em movimento - preparado,
no entanto, para o sistema, porque ele apresenta necessariamente uma face dogmática''.
E evocando Freud: "O pensamento de Freud é o mais perpetuadamente aberto à revisão.
É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Cada noção, nele, possui sua vida própria. Ê o que
se chama precisamente de dialética".
Dedicando-se, então, a comentar os escritos técnicos de Freud, Lacan se endereça
a seu grupo de alunos para adverti-los: "Se vocês não vêm aqui para pôr em causa toda
a atividade de vocês, eu não vejo porque vocês estão aqui. Aqueles que não perceberiam
o sentido dessa tarefa, por que permaneceriam ligados a nós em vez de irem se juntar a
uma forma qualquer de burocracia?".
A Lacan interessava, portanto, desde a abertura do seu ensino, denunciar, antes de
tudo, um primeiro efeito da burocratização da formação do analista, reduzindo as regras
standard da psicanálise, não as tratando, como o fez Freud, à maneira de um instrumen-
to que se tem bem firme na mão.
Membro já da comissão do ensino da SPP, desde 1951 começara a dar um semi-
nário de leitura de textos freudianos em sua casa. Entre o primeiro deles consagrado
a Dora, e o último sobre o Homem dos lobos, dado no momento da crise, um grande
número de analistas em formação o ouviam. Para aqueles que recebiam o seu ensino ele
destinou, privilegiadamente, o seu discurso de Roma.
Em 1953, ano da primeira cisão na comunidade psicanalítica francesa, um projeto
de emenda aos estatutos do Instituto de Psicanálise deu a Lacan, então diretor provisório
do Instituto, a ocasião para dar ao ensino da psicanálise um órgão no qual exercê-lo.
Existente desde antes, mas fechada depois da declaração da segunda Guerra mundial,
a SPP era a instituição garantidora do ensino da psicanálise na França ajustando-se às
1

exigências da formação do analista. Entre as novas exigências que se apresentavam aos


responsáveis pelo ensino da psicanálise na França, depois da guerra, "a passagem das
psicoterapias para a escala dos fenômenos sociais" impunha, já, distinguir os princípios
da disciplina desfigurada por sua difusão e as regras que orientavam sua prática usur-
pada. Nesse projeto de Instituto é possível ler a insistência de Lacan em garantir uma
transmissão ela experiência, do analista formador para o analista em formação 1 trans-
missão que "faz a virtude do gradus psicanalítico". Garanti-la sob a vigilância ele uma
comissão de ensino autônoma e livre da incidência de toda política pessoal da direção
do Instituto, era tão importante para ele quanto a não-formalização, nele, dos estudos.

Opção Lacaniana nº 62 222 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

Estes, deveriam ser "rão liberalmente concebidos quanto aqueles que conduzem a uma
ciência que merece entre todas ser qualificada de humanista". O ensino teórico da psica-
nálise não poderia, sobretudo, "limitar-se a um ciclo de conhecimento que a gente fecha
de uma vez por todas". Enfim, para Lacan, em 1953, a formação do analista participa das
pesquisas que fundam as categorias de uma experiência analítica e que ele resume em
número de quatro.
A primeira delas, ele a traz de sua própria experiência ensinando a psicanálise: o
comentário dos textos originais de Freud, "a mais segura via e a mais racional" para se
ter e manejar os conceitos fundamentais da psicanálise. Lacan reafirma, no entanto 1 a
exigência de que as noções freudianas tenham sempre o seu valor ressituado no contex-
to em que elas surgiram, isto é, quando se fizeram "indispensáveis a Freud porque elas
traziam uma resposta a uma questão que ele tinha formulado antes em outros termos".
Isso ele já diz na abertura do seu primeiro seminário.
A segunda categoria funda a experiência do analista em formação em um apren-
dizado supervisionado "onde o estudante pode reconhecer a função criadora da práxis
e o valor da análise como ciência do particular, pondo à prova, na duração de uma ex-
periência a relação das regras com seus efeitos no caso".
A terceira categoria é a crítica que, subordinada aos dados analíticos, questiona
"tanto as normas da psicopatologia clássica, quanto o valor efetivo da intervenção técni-
ca, ela mesma".
Finalmente, uma quarta categoria elege para a formação analítica a psicanálise
com crianças, uma clínica ainda por ser definida, segundo ele, em 1953, mas segura-
mente se apresentando como "a fronteira onde se oferece à psicanálise o que de mais
desconhecido existe a se conquistar".
Em seu projeto, Lacan vê principalmente uma vantagem essencial na formação
que um Instituto oferece aos seus analistas: "não participar das exigências formais de
assiduidade e de exames que, por se exercerem talvez um pouco em demasia nos nossos
dias nos estudos superiores, mostram suficientemente que elas degradam o estilo sem
elevar o nível''.
O intento de Lacan não foi o de assentar a teoria psicanalítica sobre outros sabe-
res reconhecidos, mas, no início do seu ensino, foi o de reuni-los e questioná-los para
torná-los afins à psicanálise. Como ele o fazia? Pela via indicada por ele como "a única
formação que nós possamos entender transmitir": um estilo.
Anos depois, a solidariedade entre a enunciação de Lacan e a receptividade e a
realização do seu ensino pelos ouvintes do seu seminário, cumpriu-se nos maternas e
na formalização dos quatro discursos. Antes, porém, ainda em 1964, tendo já acontecido
a segunda cisão na comunidade dos analistas franceses, o livro 10 do seu seminário Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, reafirma que seu ensino permanece ten-

Opção Lacaniana nº 62 ZZ3 Dezembro 2011


do como finalidade formar analistas. Perseverar à frente do seu seminário, ensinando a
psicanálise como ele o fez, equivaleu a oferecer ao seu auditório um ensino verdadeiro
que produziu, em permanência, "efeitos de formação", e não a fixação a um ideal de
forn1ação acabada. Mas sua maneira de ensinar a psicanálise não deixou a formação do
analista sem uma referência formalizada. Em sua Escola, fundada por ele depois de sua
excomunhão pela IPA, na qual cada um pode ensinar por sua conta e risco, ele também
afirmou que a Escola dispensa uma formação. Ou seja, fundando-a para garantir uma
formação, no seminário 11 ele vai usar de um argumento de autoridade para finalmente
proclamar que a própria formação do analista depende do seu ensino.
Assim, depois de se autorizar a falar dos fundamentos da psicanálise pelo fato de
ter feito durante 10 anos "o que se chamava um seminário, que se dirigia a psicanalis-
tas", ele estabelece enfim a relação do seu ensino com a formação do analista: "Quanto
aos fundamentos da psicanálise, meu seminário, desde seu início, estava, se eu puder
dizer, implicado neles. Ele era um elemento deles, uma vez que contribuía para fundá-
la, in concreto, uma vez que ele fazia parte da práxis ela mesma, pois ele estava em seu
interior, pois ele estava dirigido para aquilo que é um elemento dessa práxis, a saber a
formação de psicanalistas".
Depois da excomunhão, depois da censura a seu ensino, proscrito pela IPA como
nulo para a habilitação de um analista, e exigido que para sempre fosse banido da for-
mação de analistas, ele se pôs, uma vez mais, na posição de dever responder em perma-
nência à mesma questão: "o que é a psicanálise"?
Os que exigiam que se mantivessem separados ensino e formação acusaram-no,
por ensinar a seus analisantes. Mas na Escola ele manteve a formação do analista atrela-
da, pela transferência, ao desejo do analista na análise, e à investigação analítica com o
público ouvinte do seu seminário. A questão, que depois dele se fez nossa, a cada vez
que nos dispomos a interrogar a formação do analista, é: É verdadeiro reafirmar que na
Escola a formação do analista mantém sempre sua estreita dependência com o ensino
de Lacan, cuja finalidade, no mesmo seminário 11, ele qualificou justamente como trans-
ferencial'

Notas

Lacan, J. (1966/1998) "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". ln F.scritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
2 L:lcan, J. (1979 ll953-541). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Opção Lacaniana nº 62 224 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

CIÊNCIA, RELIGIÃO E O FEMININO NO


DISCURSO HIPERMODERNO

Sérgio de Mattos (Belo Horizonte)


sergioecmattos@hotmail.com

Esta questão se coloca no âmbito da nossa orientação, na qual o gozo feminino -


mudo, excessivo, infinito - é o substrato fundamental de todo ser falante. Ao articular o
gozo feminino ao séc. XXI, dizemos que este é o tempo de sua irrupção liberada pelo
declínio da função paterna. O fator causal saliente são a ciência e a técnica, desregu-
ladores das grandes ordens: Natureza, Religião e, paradoxalmente, a da imanência e
razão moderna. O esquema é vetorizável: Ciência .... desregulação .... irrupção do gozo
feminino.
Contudo, há outro vetor compondo o esquema acima. Como um contragolpe, nele
é a emergência do gozo feminino que afeta o modo do simbólico ordenar-se. Se no
primeiro esquema a civilização ocidental conduz à exacerbação do gozo feminino; no
outro, nota-se que ordens simbólicas foram ao longo do tempo, levadas a reordenar-se,
movidas por essa força liberada: Gozo feminino -+- simbólico -+- reordenamentos.
Como não associar nossas invenções a esse anseio por uma satisfação infinita?
Desde Freud essa busca relaciona-se à pulsão de morte, cuja força disjuntiva parece tam-
bém impulsionar a criação e a correção de erros como um antídoto. As relações em jogo
são complexas e refletem no modo de vida hipermoderno. Linhas de força desenham um
diversificado cenário, estruturalmente não todo delimitável em um espectro de arranjos:
dos queers aos fundamentalismos; adicionam-se soluções sincréticas; nossas relações
com "híbridos" produzem um sujeito hiper-conectado em um mundo sem fronteiras;
euforia da comunicação total, estamos em toda parte, talvez fora dos corpos, e o tempo
se acelera em um triunfo infomaníaco. A situação põe em risco o amor. Novas figuras
do feminino ganham o palco.
Nosso diagnóstico da situação tende a ver ruínas empilhando nobres estandartes
e, arrisca a seduzir-nos ao perigoso prazer de nos definirmos como uma civilização em
declínio. Mas tamanha é a dinâmica do momento e tão largos os horizontes, que pode-

Opção Lacaniana nº 62 225 Dezembro 2011


mos, justificadamente, supor que desta desorientação e excesso pode nascer algo novo,
um antídoto, tanto para a desagregação atual como para as antigas soluções baseadas em
modelos que originaram totalitarismos e segregações igualmente mortíferas.
Apostando sem garantias, mas com alguma razoabilidade, em uma dinâmica be-
néfica, recorro a uma referência lacaniana sobre o gozo feminino e seu paradigma: os
escritos dos místicos. Interessa-nos a tensão criadora entre aspectos conservadores e
o excessus - termo da mística -, bem como o ultrapassamento das soluções binárias.
Místicos estão sempre enchendo odres velhos com vinho novo. Se quanto mais intenso
é o contato com Deus menos definível é a experiência, no momento de formulá-la, não
podem deixar de interpretá-la segundo uma estrutura de símbolos recolhida de sua
moldura cultural. O âmago indefinível da experiência leva-os a inovar, mas é o que
também os empurra para uma dissolução de toda forma, como ocorre no caso do cha-
mado místico niilista. A maioria, entretanto, ao retornar de suas experiências, escorifica
os textos sagrados, doutrinas e rituais de sua tradição religiosa ou secular, dando a elas,
como em uma anamorfose, uma nova dimensão e profundidade. Uma lição poderia ser
tirada desse percurso para obtermos ainda uma resposta: a lição sobre reordenamentos
vitais provocados pelo encontro com essa região não fálica vivida pelos místicos, onde
morte e vida se encontram. E a resposta à nossa pergunta inicial. Sob a perspectiva da
mística no gozo feminino se colocam ao mesmo tempo pulsão de morte e antídoto.
Mais precisamente, o místico frequenta uma região da experiência humana em que essa
dicotomia é ultrapassada. Nela, ordem e exagero convergem, quase sempre em obras e
escritos criativos que enlaçam Outro e singularidades: gozo destrutivo - noite escura do
espírito - e experiência vivificante, como demonstram Santo Inácio ou Tereza d'Ávilla,
que reinventaram a espiritualidade do seu tempo.
Poderíamos transportar alguns desses aspectos para a configuração que caracteri-
za nossa época? Supondo que se uma analogia é possível, não deve haver incompatibi-
lidade estrutural entre as partes comparadas; seria interessante fazê-lo. Tal analogia po-
deria, por exemplo, introduzir na discussão atual ideias como a da função humanizante
dos "Horizontes de plenitude" e a de um "Pensamento do jogo", termos com afinidades
místicas e uteis para pensar a atualidade sob uma possível perspectiva ética e epistêmica.
O paralelo pode ainda nos servir para notar que como antídoto da morte, nosso insólito
mundo feito de redes e excessos, traz em si a semente de uma solidariedade maior, de
um enfraquecimento dos modelos identitários, cerne de todo microfascismo, e a per-
cepção de uma interconexão global e interdependências, que certamente implicam um
maior senso de responsabilidade pessoal, cujo princípio é o coletivo e o amor.

Opção Lacaniana nº 62 226 Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

U.CAN E A CRIANÇA

MARIA DO ROSÁRIO DO RÊGO BARROS (RIO DEjANEIRO)


mrcollier@terra.com.br

A criança é feita para aprender, diz Lacan', aprender a fazer o nó a partir do que
fracassa. Com isso, ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui
a ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um.
Essa indicação de Lacan nos orienta a ser parceiros da criança em seu trabalho
de construção, com os elementos ao seu alcance, para não ser deixada cair como obje-
to- dejeto da família e da civilização atual, que não quer saber do fracasso próprio ao
falasser.
A disjunção entre o infantil e a criança tem consequências que devem nos orientar
hoje, para não fazer a criança encarnar o infantil que a infantiliza, e permitir resgatar na
dimensão inconsciente do infantil freudiano sua função de alienação e separação.
Lacan continua dizendo, nessa mesma aula de seu Seminário 21, que a criança
deve aprender alguma coisa para que o nó se faça bem e ela não seja não-tola. Em ou-
tras palavras, para que ela possa ser tola do que é possível construir para se orientar no
mundo imprevisível dos humanos. Lembremo-nos do título do seminário "Os não tolos
erram". Com essa indicação somos levados a acompanhar as crianças em suas constru-
ções para lidar com um real opaco, que se presentifica de forma cada vez mais avassa-
ladora em relação às origens, que ficam sob o controle das ofertas da ciência a serviço
da injunção de "criança para todos" que alimenta o mercado de genes e de embriões.
Torna-se cada vez mais difícil decifrar o desejo em jogo a partir do mal-entendido entre
os sexos, e enlaçar simbólico e imaginário a partir do elemento terceiro que Lacan de-
signa como real. Pois o real opaco é um buraco negro não esvaziado, de forma que os
fios não conseguem passar e se entrelaçar. Lacan, na parte final do seu ensino, abre para
a dimensão do furo no buraco negro, na opacidade presente em todo desejo. Com isso,
ele faz valer a chance que as crianças têm para lidar com sua posição de objeto à mercê
dos cuidados ou do abandono por parte dos que a introduzem no mundo.

Opção Lacaniana nº 62 227 Dezembro 2011


Uma criança, em análise com Angélica Bastos2, chamou de "buraco negro" algo
indecifrável na origem, que dizia respeito a um laço incestuoso, no qual a diferença não
podia existir para incluí-la na família a partir do corte entre as gerações, que lhe permi-
tiria viver sua infância. Na escola, oscilava entre uma atitude de errância e passagens ao
ato, desacatando os adultos e não podendo aprender nem fazer laço com os colegas. Ti-
nha, no entanto, um saber prêt-à-porter construído pelas informações da internet, com o
qual se defendia cio seu horror ele saber, que pudemos entender como o motor elas pas-
sagens ao ato. Em análise, o menino pôde produzir um esvaziamento do buraco negro
com um reator criado por ele, que lhe pérmitia sair do buraco. A partir dessa construção
que fez, ele pode lidar com um elemento novo que apareceu em suas brincadeiras, "a
desconhecida", que encarnava na transferência o enigma da feminilidade e dava chance
à inclusão da diferença em suas questões relativas à origem do universo.
É na posição de objeto que a criança experimenta, de forma traumática, o encontro
cio significante com o gozo. O choque produzido nesse encontro exige um trabalho para
permitir que o acontecimento de corpo por ele produzido venha a orientar a construção
do sintoma. Quando isso não acontece, o que prevalece é o imperativo de gozo sem
sentido. A marca inicial que produziu uma satisfação, que não é mítica, se reitera fora do
alcance da repetição, que se alimenta da falta por ela produzida no diferencial entre o
procurado e o encontrado. Essa indicação de Lacan em seu último ensino, que destacou
J-A Miller em seu curso sobre A obra de Lacan, nos orienta a apreender como a criança
hoje pode ficar à mercê de imperativos sustentados pela civilização que promove a pres-
sa e a satisfaçào imediata. Os imperativos dirigidos à criança a deixam vulnerável ao seu
próprio capricho, e presa fácil das paixões mortíferas da família e da civilização. Mas é
também nesse contexto que temos podido apreciar o trabalho delas para introduzir o
menos no real e não sucumbir aos imperativos mortíferos.
O diálogo entre pai e filho, publicado na revista ele domingo cio Jornal "O Globo",
nos permite situar a pressa. A criança diz ao pai: "Traz um copo d'águan. O pai responde,
esperando um "por favor": "Qual é a palavrinha mágica?" A criança diz prontamente:"Já 1".
O imperativo dificulta à criança viver a pulsão no circuito que passa pela introdu-
ção da falta, e assim vemos cada vez mais intensa a emergência da angústia, que fica, no
entanto, escamoteada por não encontrar quem possa lê-la. Por não poder ser reconhe-
cida, desorienta, e não consegue cumprir sua função de orientação e de convocação ao
trabalho. A leitura introduz a pergunta sobre a função do sintoma em relação à angústia,
que, ao ser escutada como sinal, coloca em jogo o enigma, abre caminho para um traba-
lho visando extrair o objeto da saturação que perturba e se mantém como elemento de
uma fixação que reitera sem fim.
Para concluir, lembremos que Lacan articulou a criança à questão do feminino. O
furo que permite sair do buraco trouxe à criança em análise com Angélica a questão da

Opção Lacaniana nº 62 ZZB Dezembro 2011


HOMENAGEM A LACAN: 30 ANOS

"desconhecida". Esse elemento desconhecido na mulher, que a mãe pode presentificar


em sua face de capricho, pode ser, no entanto, a via pela qual a criança encontra o lugar
para sua singularidade. É também a via pela qual se poderá extrair do declínio do pai o
limite da função paterna, e dar aos homens a chance de não abrir mão de sua respon-
sabilidade em relação a essa função, e de não recuar diante do não todo do feminino.

Notas

Lacan, J [1973-741. ~Lcs non-dupes errent". Semi11ãrio 21, Os não tolos erram. Inédito, aula de 2 de dezembro de 1973.
2 Caso Clínico apresentado por Angélica Bastos no núcleo Curumim(ICP-RJ), no dia 22 de novembro de 2011.

Opção Lacaniana n" 62 ZZ9 Dezembro 2011


ABSTRACTS

ABsTRACTS

JACQUES·ALAIN MILLER - psicanalista, diretor-presidente da Universidade Popular Jacques Lacan, AME


da EBP, da ECF, da ELP, da EOL, da NEL, da NLS e da AMP.
O demônio de Lacan (entrevista)

Resumo: Entrevista com Jacques-Alain Miller, realizada pelos membros do comitê de redação da
revista /..e Diable probablement. Nela, Miller relaLa situações inéditas sobre Lacan, assim como
revela, sobre si mesmo, o fato espantoso de ter tomado Lacan como seu "protegido". Fala da
relação do psicanalista francês com a filosofia e com os grandes pensadores da época, tais
como: Sartre, Deleuze, Foucault, Derrida, assim como com a doxa. Miller fala dos Seminários
de Lacan, e, sobretudo, do lacan psicanalista, aquele que, com a força de seu desejo, tirava
seus analisantes da confortável mediocridade. Mostra, exatamente, como o estilo de Lacan não
deixa ninguém indiferente ou impassível.
Palavras chave: psicanálise; Lacan; Seminários; Miller; escrita; clínica psicanalítica; posteridade.

Abstract: lnterview with Jacques Alain Miller, performed by members of the editorial board of

the magazine Le Diable probablement. ln it, Miller reports on Lacan new situations, as well as
reveals about himself, the astonishing fact of Lacan have taken as his "protectect··. He speaks
about the relationship of the French psychoanalyst with philosophy and with the great thinkers
of that time, such as Sartre, Deleuze, Foucault, Derrida, as \Vell as the doxa. Miller speaks ahout
Lacan's seminars and ahove ali the psychoanalyst Lacan, who, with the strength of his desire,
took his analysands off their comfortable mediocrity. He shows exaclly how Lacan's style leaves
no one indifferent or impassive.
Keywords: psychoanalysis; Lacan; Seminar; Miller; writing; clinic; posterity.

Opção Lacaniana nº 62 231 Dezembro 2011


JUDITH MILLER - psicanalista, presidente da ACF, AME da EBP, da ECF, da EOL, da NEL. da NLS e da AMP.
A reconquista do Campo Freudiano (entrevista)

Resumo: Judith Miller concede uma entrevista para a revista Le Diable probablement. A pre-
sidente da Associação da Fundação do Campo Freudiano, filha de Lacan, que há décadas
consagra-se ao ensino de seu pai conta a história do nascimento do Campo Freudiano, sua
difusão pelo mundo e seu trabalho de "reconquista permanente". Ela ressalta ainda a impor-
tância das traduções dos livros e artigos de Lacan, por ser este um dos pilares da transmissão
do seu ensino, possibilitando a formação de psicanalistas pelo mundo afora.
Palavras-chave: Campo Freudiano; Escolas lacanianas; formação; ensino; desejo

Abstract: Judith Miller gives an interview to the magazine Le Diahle probablement. The presi-
dent of the Foundation of the Freudian Field, daughter of Lacan, who for decades devoted to
the teaching of his father tells the story of the birth of the Freudian Field, spread around the
world and his work of "permanent conquest." She also emphasizes the importance of trans-
lations of Lacan's books and articles once this is one of the pillars of the transmission of his
teaching, enabling the training of psychoanalysts throughout the world.
Keywords: Field Freudian; Lacanian schools; training; teaching; desire

ERIC LAURENT - psicanalista, diretor-presidente da Universidade Popular Jacques Lacan, AME da EBP, da
ECF. da ELP, da EOL, da NEL, da NLS e da AMP.
A ordem simbólica no século XXI, consequências para o tratamento

Resumo: Texto publicado originalmente em Papers nº 1, publicação online preparatória para


o VIII Congresso da AMP. De onde surge o título do próximo Congresso de 2012? A ordem
simbólica no século XXI. Não é mais o que era. Consequências para a cura. Como se inscreve
na série dos títulos dos congressos? Há dois anos, em Buenos Aires, Jacques-Alain Miller pôs
em uma forma lógica, a série dos títulos e traçou a história de um programa maravilhoso, bem
pensado desde o começo. Pôs em forma com a ajuda de ternários. Os três últimos Congressos
formam um ternário particular.
Palavras-chave: psicanálise; congresso da AMP; gozo; simhoma.

Abslract: Text originally published in Papers No. 1, published online preparation for the Eighth
Congress of the AMP. Where does the title of the next Congress in 2012? The symbolic order in
the XXI century. It is no longer what it was. Consequences for the cure. As part of the titles in
the series of conferences? Two years ago, in Buenos Aires, Jacques-Alain Miller put in a logical
fashion, the series of titles and traced the history of a wonderful program, well thought out

Opção Lacaniana nº 62 232 Dezembro 2011


ABSTRACTS

from the beginning. Placed in shape with the help of ternary. The last three Congresses form
a ternary particular.
Keywords: psychoanalysis; congress of AMP; joy; sinthome.

PASCALE FARI - psicanalista, membro da ECF e da AMP.


O obscuro objeto do texto

Resumo: Pascale Fari escreve como sua transferência a Lacan se inscreveu a partir de seu encon-
tro com o texto do psicanalista francês. Texto este que lhe serviu de antídoto contra a angústia
e permitiu-lhe trabalhar sua relação com o saber, até que se abrisse a possibilidade de saber
fazer com o furo real, sem que fosse apenas pela consistência imaginária e pela formalização
corrente do simbólico.
Palavras-chave: texto de lacan; saber; mal-entendido; angústia; furo real

Abstract: Pascale Fari writes how his transfer to Lacan was ascribed to his encounter with the
French psychoanalyst's text. Text that served heras an antidote to anxiety, allowed him to work
his relationship with the knowledge, until it was available some know-how with the actual
hole instead of dealing with uniquely by means of imaginary consistency and a symbolic chain
formalization.
Keywords: Lacan's text; knowledge; misunderstanding; anxiety; real hole

ANGELINA HARARI - psicanalista; AME e AE da EBP e da AMP.


Um certo saber de passe..

Resumo: Relato de passe. Jacques Lacan não se deteve diante do que ele mesmo nomeou como
um "fracassoM de sua primeira "Proposição ..." sobre o passe; aí reside para mim o interesse do
"Prefácio à edição inglesa do Seminário 11". Esse texto mostra que ele não cessou de perseve-
rar em sua pesquisa quanto ao fim de análise, sempre ancorado em sua prática, pois recebeu
seus analisantes até o fim de sua vida. Trinta anos após sua morte, nós ainda nos debruçamos
sobre os resultados de seus trinta anos de prática analítica, experiência da qual ele extraiu a
matéria de seu ensino.
Palavras-chave: passe; transmissão; saber; analista.

Abstract: Jacques Lacan was not arrested before he even named as a "failure" of his first "pro-
position ... " on the go, for me there Iies the interest of the "Preface to the English edition of
Seminar 11.M This text shows that he did not cease to persevere in his research on the arder of

Opção Lacaniana n" 62 233 Dezembro 2011


analysis, anchored in his practice, having received his analysands unril the end of his life. Thir-
ty years after his death, we still, we studied the results of his thirty years of analytic pracrice,
experience from which he drew the matter of his teaching.
Keywords: pass; transmission; know; analyst.

ANA LYDIA SANTIAGO - Psicanalista, AP e AE da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial


de Psicanálise, presidente da Escola Brasileira de Psicanálise.
Coúp de foudre

Resumo: Relato de passe. Para mim, o português é a língua materna e o francês, a língua do
Outro. E por que não considerá-lo como esse Outro estrangeiro que é o inconsciente? Durante
os 20 anos em que transcorreu minha experiência analítica, antes do passe - oito anos, com
o primeiro analista; dois anos de interrupção; e outros 10 anos com o segundo analista -,
produziram-se lapsos, trocadilhos e expressões por meio de sonhos, que exploravam riquezas
semânticas e equívocos que o trânsito do matemo ao estrangeiro da língua tornou possíveis.
Palavras-chave: passe, língua, lalíngua, feminino.

Abstract: To me, Portuguese is the mother tongue and French,the language of the Other. And
why not consider it as this other foreigner who L') unconscious? During the 20 years I spent my
analytic experience, before the pass - eight years with the first analyst, two-year break, and ano-
ther 10 years with the second analyst - were produced slips, puns and expressions through
dreams, exploiting semantic richness and misconceptions that the transit of foreign mo-
ther tangue beca me possible.
Keywords: pass, language, lalangue, female.

SÉRGIO PASSOS RIBEIRO DE CAMPOS - AE da EBP eda AMP, Coordenador da Residência de psiquiatria do
IRS/FHEMIG, Doutorado pela FM-UFMG.
Amar sem compreender

Resumo: Resumo: O texto é um relato de passe no qual o sujeito testemunha sobre a crença no
amor e na mulher. Ademais, o autor ilustra com um apólogo a mudança do regime de gozo no
final de análise sem, contudo, a troca de objeto de amo. Assinala que quando se ama se crê
na mulher e em consequência de tal condiç.1o, o homem se torna devedor até o momento em
que finda o amor.
Palavras-chave: Apólogo, amor, crença, não-todo, depoimento, final de análise.

Opção Lacaniana nº 62 234 Dezembro 2011


ABSTRACTS

Abstract: The text is an account of which the subject passes rhe witness about the belief in love
and women. Moreover, the author illustrates with a parable regime change with joy at the end
of analysis, but without the exchange of object love. Notes that when it is believed the woman
he loves and as a result of such condition, the man becomes debtor to the time when the !ove
ends.
Keywords: an apology, love, belief, not-all, testimony, final analysis.

ELISA ALVARENGA - psiquiatra e psicanalista, AME da EBP e da AMP, ex-AE (2000-2003). Doutorado em
Psicanálise pela Universidade de Paris VIII.
Porque Lacan está vivo

Resumo: o texto fala do momento atual, em que celebramos, por ocasião dos 30 anos da morte
de Lacan, a publicação de Vida de Lacan, livro de Jacques-Alain Miller que o torna mais vivo
entre nós. Se Lacan recuperou a experiência freudiana do inconsciente, a orientação lacaniana
da psicanálise torna vivo e operante o ensino de Lacan, que convida cada analisante a contri-
buir com a sua experiência.
Palavras-chave: Freud, Lacan, vida, inconsciente, real.

Abstract: the text talks about the actual moment, when we celebrate, in the ocasion of the 30
years of Lacan's death, the publication of Lacan's life, Jacques-Alain Miller book which makes
Lacan alive among us. As well as Lacan has recovered the freudien experience of the uncons-
cious, the lacanian orientation of psychoanalysis makes lively and operating the teachings of
Lacan, who invites each analysand to contribute avec his own experience.
Keywords: Freud, Lacan, life, unconscious, real.

NORA GONÇALVES - AME da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.


Lacan lógico

Resumo: Esse texto versa sobre a fundamentação lógica do ensino de Lacan, o recurso que ele
faz a diversos lógicos para formalizar a sua teoria.
Palavras-chave: Lacan; lógica; traço; formalização; Real, sintoma.

Abstract: This work presents the fundamentals of logic in Lacan's studies and the mention of
several logic and mathematic theories from different authors to formulate his own theory.
Keywords: Lacan; feature; logic; formulation; Real; Sintam.

Opção Lacaniana nº 62 235 Dezembro 2011


CRISTINA VIDIGAL - psicanalista. membro da EBP e da AMP.
Lacan e a etologia

Resumo: As referências de Lacan à etologia são usadas como o contraponto da desordem do


sexual no homem, criando uma abordagem do desconhecimento do parceiro sexual, isto é, um
prenuncio de sua elaboração da não-relação sexual. Um dos pontos dessa desordem é uma es-
pécie de jogo de esconde-esconde entre a imagem e o objeto. As relações entre o i(a) e o obje-
to a irão desembocar na sua elaboração da função do semhlant e do objeto a nos três registros.
Palavras-chave: etologia; parceiro sexual; imagem; semblant.

Abstract: Lacan's references of ethology are used as the counterpart of the sexual disorder in
rhe humankind, creating an approach of its ignorance of the sexual partner, this is, an anteci-
pation of his late development of the non-sexual relation. One of the points of this disorder
in men is a kind of game of hide and seek between the image and the object. The construc-
tion of relations between i(a) and the object will result in the development of the function of
the semblant and also of the object in the three registers.
Keywords: ethology; sexual partner; image; semblant.

JÉSUS SANTIAGO - psicanalista. doutor em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII, professor adjunto
da UFMG, AME da EBP e da AMP.
Lacan, filósofo

Resumo: O intuito desse artigo é mostrar a modalidade singular do emprego que Jacques Lacan
faz do saber filosófico. Salienta-se que o recurso ao campo da filosofia não se depreende da
filosofia tomada como um sistema conceituai e interpretativo, mas com os restos desse saber
que afetam o real com o qual lida o psicanalista. Considera-se, assim, que a conexão com os
diversos restos da filosofia está a serviço do avanço da própria psicanálise e, não, do corpus
de problemas e soluções que tradicionalmente pertencem ao campo filosófico. As conexões da
psicanálise com a filosofia apenas existem com a condição de se admitir que sua finalidade úl-
tima é contribuir para a psic.análise como um saber autônomo e desconexo dos outros saberes.
A prova disto é que a apropriação desses restos que, pouco a pouco se depositaram, ao longo
da elaboração de Lacan, assume a designação explícita de antifilosofia. Finalmente, o artigo
intenciona demonstrar essa apropriação da antifilosofia dos mais diversos restos da filosofia
por meio do tema eterno do amor tal como ele aparece no Banquete de Platão.
Palavras-chave: Lacan, filosofia, anti-filosofia, amor, salvação, real.

Abstract: This article's objective is to show the singularity of the philosophical knowledge made

Opção Lacaniana nº 62 236 Dezembro 2011


ABSTRACTS

by Jacques Lacan. The resource of the philosophical field does not come from philosophy as a
conceptual and interpretative system but as the remains of this knowledge which affects the re-
alism that the psychoanalyst <leais with. This way, the connection to many parts of phylosophy
works in favor of the psychoanalysis, and not of the body of problems and solutions that tradi-
tionally belong to the philosophical field. The connections of psychoanalysis with philosophy
only exist when admitring that it acknowledges psychoanalysis as autonomous from the other
areas of knowledge. The proof is in Lacan's elaboration of the antiphylosophy term. Finally, the
article demonstrares the use of antiphylosophy in diverse remains of philosophy by using the
eternal !ove theme as lt is seen in Plato's Banquet.
Keywords, Lacan, Phylosophy, antiphilosophy, !ove, salvation, real.

SÉRGIO LAIA-Analista Membro da Escola (AMEI, pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mun·
dia! de Psicanálise (AMP); Professor do Curso de Psicologia da Universidade FUMEC (fundação Mineira de Edu·
cação eCultura); Pesquisador do Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da Universidade FUMEC (ProPIC) e
com Bolsa de Produtividade Nível 2pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico eCientífico (CNPQ).
Um (inusitado) Lacan Freudiano- a satisfação em todas as partes

Resumo: Neste texto, as influências que Lacan teve de Freud são abordadas para além do seu cé-
lebre "retorno a Freud''. Assim, orientado por elaborações de Miller em El partenaire-síntoma,
este texto procura esclarecer como urna mudança na concepção de Lacan sobre as relações
entre significante e gozo altera suas noções anteriores de "sujeito", "Outro" e "fim de análise".
Palavras-chave: satisfação; gozo; falasser; sintoma; sinthoma; fim de análise.

Abstract: ln this text, the influences of Freud on Lacan are presented beyond his acclaimed
"return to Freud". Oriented in direct line with Miller's elaborations in Et partenaire-síntoma,
this text aims clarify how a changing in Lacan conception about the relations between signifier
andJouissance transforrns his forrner notions about "subject", "Other" and "the end of analysis".
Keywords: satisfaction, enjoyment, speakingbe; symptom; sinthome; end of analysis.

JORGE FORDES - psicanalista, AME da EBP e da AMP.


Jacques Lacan e suas duas clínicas

Resumo: Extrato da tese que fez jus ao título de "Doutor em Ciências", outorgado pela USP·-
Universidade de São Paulo (Neurologia): "Desautorizando o sofrimento socialmente padroniza-
do, em pacientes afetados por doenças neuromusculares".
Palavras-chave: Lacan, segunda clínica, real, responsabilizar.

Opção l.acaniana nº 62 237 Dezembro 2011


Abstract: Extract from the thesis that lived up to its title of "Doctor of Science", granted by the
USP - Universidade de São Paulo (Neurology): "disallowing suffering socially patterned, in
patients affected by neuromuscular diseases."
Keywords: Lacan, the second clinic, real, responsibility.

BERNARDINO C. HORNE - Psicoanalista, Miembro de la EBP y la AMP. Analista Membro da Escola (AME) y AE
1995. Miembro de la Escuela Europea de Psicoanálisis.
Lacan topológico

Resumo: Lacan responde, no final de seu ensino, à pergunta inicial de Freud sobre como é a
estrutura e o funcionamento do sistema mental por meio da topologia. Os registros essenciais
da experiência humana são 3: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Eles se enlaçam borromea-
namente por meio de um quarto elemento nas neuroses, e não borromeanamente nas psicoses.
Esta última elaboração tem a ver com a virada radical na reoría, ao passar o eixo da relação do
Sujeito com o (A) Outro para o Uno.
Palavras·chave: Borromeo; Nó; Sinthoma; Sintoma; Uno.

Abstract: Topology is the answer that gives Lacan, during the last period of his teaching, to the
starting question of Freud about the structure and function of the mental system. The Real, the
Symbolic and the Imaginary are essential for the human experience they tie trough a fourth
element in a borromean way in the neuroses and non borromean way in the psychoses. All
this as to do with the passage from the (A) to the One.
Keywords: Borromean; Knot; Sinthome; Symptorn; One.

RÔMULO FERREIRA DA SILVA - AME da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP. Membro do Conselho da EBP
e da EBP·SP. Psiquiatra e Doutorando da Universidade de Paris 8.
Lacan, supervisor

Resumo: O texto retoma o percurso de Lacan em relação à formação do analista, dando ênfase
na supervisão como um dos três pontos fundamentais dessa formação.Ressalta ainda a impor-
tância que teve Lacan na história da supervisão institucional.
Palavras·chave: supervisão; formação analítica.

Abstract: The text takes the pathway of Lacan for the training of the analyst, with emphasis on
supervision as one of the three key points of the psychoanalytical training. The text emphasi-
zes the importance that Lacan has had in the history of institutional supervision.
Keywords: Supervision; psychoanalytical training.

Opção Lacaniana nº 62 238 Dezembro 2011


ABSTRACTS

ANTONIO BENETI - psicanalista, AME da EBP e da AMP, docente do IPSMMG.


A inconsistência do Outro

Resumo: O texto trata da elaboração do conceito de inconsistência do Outro a


partir da formalização do conceito freudiano de libido proposta por Lacan.
Palavras-chave: libido; linguagem; castração; objeto a; inconsistência do Outro.

Abstract: The text <leais with elaboration of the concept of inconsistency of the Other
from the formalization of the Freudian concept of libido proposed by Lacan.
Keywords: libido; langage; castration; object a; inconsistency of the Other.

SANDRA GROSTEIN - psicanalista, AME da EBP e da AMP.


A transmissão da psicanálise: entre a refundação /acaniana e a invenção de cada um

Resumo: Este texto visa abordar a questão da transmissão da psicanálise como proposta por
Lacan a panir de sua ruptura radical com o modo protocolar e o ritualístico de tr,rnsmitir a
herança freudiana. A transmissão da psicanálise visa então, fazer passar de um a um o que
já está estabelecido no seu campo - da fala e da linguagem- ao mesmo tempo favorecer que
algo novo possa surgir neste transporte considerando, no entanto, que nesta transferência algo
se perca para sempre. Ou seja, a transmissão em psicanálise não é integral e, portanto não
está garantida - sua presença no mundo - depende do desejo do psicanalista em sustentá-la.
Palavras-chave: Transmissão da psicanálise, desejo do psicanalista, passe, materna.

Abstract: This text aims to approach the transmission of psychoanalysis as per Lacan's pro-
posai, from its radical break with the protocol and ritualistic way of transmitting the freudian
heritage. The transmission of psychoanalysis aims to transfer from one to another , what
has already been established in its field - from speech and language - and at the sarne time
favours that something new could arise in this transport, considering however, that in this
transfer, something gets lost forever. ln other words, the transmission of psychoanalysis is not
integral, and therefore is not totally guaranteed - its presence - depends on the desire of the
psychoanalyst in sustaining it.
Keywords: Transmission of psychoanalysis, desire of the psychoanalyst, transfer, matheme.

SIMONE SOUTO - psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial
de Psicanálise (AMP).
Lacan e o objeto a, em três tempos

Opção Lacaniana nº 62 Z39 Dezembro 2011


Resumo: Este texto discute a formulação do objeto a por Lacan em três circunstâncias: na expe-
riência da transferência, na relação com a angústia e como semblante.
Palavras-chave: objeto a; transferência; angústia; semblante; real; gozo.

Abstract: This text discusses the formu1ation of objecc a by Lacan on three occasions: in the
experience of transference, in its relationship with anguish and its presentation as semblanr.
Keywords: object a; transference; semblant;jouissance.

IORDAN GURGEL - psiquiatra, psicanalista, AME da EBP e da AMP.


Lacan, psiquiatra

Resumo: A psicanálise, que se consolidou com uma clínica própria, é uma herança da psiquia-
tria. O discurso analítico, consequente com a psiquiatria de Kraepelin e de Bleuler, modificou
a nosografia psiquiátrica: a passagem da demência precoce à esquizofrenia foi produzida pelo
discurso da psicanálise. Assim, a psicanálise começou a modificar a psiquiatria, esclarecendo-
-a principalmente em relação ao diagnóstico, que estava baseado nas formas sintomáticas, ao
tomar como referência a posição do sujeito, considerando a estrutura.
Palavras-chave: psicanálise; psiquiatria; diagnóstico; Lacan.

Abstract: Psychoanalysis, which was consolidated with a clinic itself is a legacy of psychiatry.
The analytic discourse, resulting in psychiatry ofKraepelin and Bleuler changed the psychiatric
terminology: the passage of dementia praecox to schizophrenia has been produced by the dis-
course of psychoanalysis. Thus, psychoanalysis, psychiatry began to change, clarifying particu-
larly in relation to diagnosis, which was based on symptomatic forms, by taking as reference
the position of the subject, considering the structure.
Keywords: psychoanalysis, psychiatry, diagnostic, lacan.

RAM MANDIL - psicanalista, membro da EBP e da AMP.


Lacan, joyceano

Resumo: O texto procura traçar os momentos de encontro do ensino de Lacan com a obra de
James Joyce, visando extrair o que desse encontro nos prepara para a experiência analítica do
século xxi.
Palavras-chave: Lacan; Joyce; letra; legível; ilegível.

Opção Lacaniana nº 62 240 Dezembro 2011


ABSTRACTS

Abstract: This paper seeks to trace the moments of meeting of Lacan's teaching with the work
of James Joyce in order to draw this meeting which prepares us for the analytic experience of
the twenty-first century.
Keywords: Lacan; Joyce; letter; readable; unreadable.

FRANCISCO PAES BARRETO - A.M.E. Analista Membro da EBP e da AMP, preceptor da residência em psi·
quiatria do Hospital Galba Veloso e do Instituto Raul Soares (FHEMIG) entre 1968 e1993.
Lacan e a apresentação de pacientes

Resumo: A apresentação de pacientes é uma experiência que o Dr. Lacan praticou durante toda
a vida, até 1980. Existe, porém, continuidade e ruptura entre o que ele fez e o que provem da
tradição psiquiátrica: eis a linha mestra do presente trabalho.
Palavras-chave: apresentação de pacientes; psicanálise e psiquiatria; automatismo mental.

Abstract: The Presemation of Patiems is a experience that doctor Lacan practiced during all his
life, until 1980. There is both continuity and rupture between what he did and what proceed
from psychiatric tradition: this is the axis of this work.
Keywords: presentation of patients; psychoanalysis and psychiatry; mental automatism.

CELSO RENNÓ LIMA • médico psiquiatra, AME da Escola Brasileira de Psicanálise e ex·AE da Associação
Mundial de Psicanálise (no Período de 1977-2000).
Lacan e o mestre Clérambault

Resumo: Um pequeno histórico da importância que teve De Clérambault na formação de Jac-


ques Lacan, marcando passagens curiosas deste relacionamento onde o reconhecimento do
Mestre é o eixo principal.
Palavras-chave: psiquiatria; psicanálise; Clérnmbault; Lacan.

Abstract: A brief history of the importance that had De Clérnmbault in the formation of Jac-
ques Lacan, curious passages marking the recognition of this relationship where the axis is rhe
recognition of the Master.
Keywords: psychiatry; psychoanalysis; Clérambault; Lacan.

Opção Lacaniana nº 62 241 Dezembro 2011


MARCELO VERAS - AME da Escola Brasileira de Psicanálise; Diretor da Escola Brasileira de Psicanálise
Seção Bahia; Psiquiatra, Mestre em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII; Doutor em Psicologia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Um dizer sem palavras

Resumo: A recente publicação do Seminário XIX de Lacan nos permite fazer uma releitura das
propostas sobre o dito e o dizer, classicamente associadas às formulações de seu texto o Atur~
dito, tendo como base as considerações dos primeiros seminários, sobretudo o esquema L,
introduzido no Seminário III. Nossa proposta é verificar a pertinência da distinção entre dito
e dizer levando em conta o discurso do analista como um discurso que leva em conta o gozo
intrínseco a própria enunciação do ser falante.
Palavras-chave: Discurso do analista, dito, dizer, esquema L.

Abstract: The recent publication of Lacan's Seminar XIX allows us to reconsider the proposals
on the "said" and the "saying", classically associated with the formulation of your L'etourdit text,
based on considerations of the first seminars, especially the L scheme, introduced in Seminar
III. Our proposal is to check the relevance of this distinction between saying and what was said
taking into account the analyst's discourse as a discourse that takes into account the intrinsic
enjoyment of the very utterance of the speaking being.
Keywords: Speech of the analyst, said, to say, Scheme L.

MARCUS ANDRÉ VIEIRA - AME da EBP, Professor da PUC·Rio, Diretor do ICP-RJ, autor, entre outros, de
Restos (Contra Capa, 2008).
O resto e o riso

Resuma: Este artigo resume a teoria lacaniana do objeto "a" como resto da constituição subjeti-
va, tal como proposto em seus Seminários 10 e 11. No entanto, em lugar de fazê-lo com base
nas operações de alienação e separação, introduzidas por Lacan nestes seminários, optamos
por trazer a função do objeto-resto a partir da distinção entre moral e ética empreendida em
seu Seminário 7. O desejo, tal como Lacan o entende é sempre incompatível com o ego e por
isso sempre, em seus termos, monstruoso. O texto se apoia a seguir em dois poemas de Ma-
nuel Bandeira para demonstrar como é possível dar lugar aos monstros do desejo sem recorrer
à sua interdição ou à sua inclusão por domesticação.
Palavras-chave: desejo, gozo, ética, moral, objeto "a", resto, riso.

Abstract: This paper explains the lacanian theory of the • a ~ object. It's definition by Lacan
approaches it to the wastes of everyday life and a fundamental waste within de subject cons-

Opção lacaniana nº 62 Z42 Dezembro 2011


ABSTRACTS

titution as Lacan pointes out in his eleventh seminar. ln this text we choose to bring out this
theory form his seventh seminar, the one who put the relationship between ethic and moral
into perspective. Our desire is full of little ~ rnonsters •, meaning the part of our fantasies that
are impossible to put together with our ego. Finally, we comment two poems of Manuel Ban-
deira to demonstrate what has been explained.
Keywords: desire, jouissance, ethics, moral, • a • object, waste, laghter.

ANA LUCIA LUTTERBACH - Membro da Seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise; AME da Associação
Mundial de psicanálise: AE durante o período de 2007 a 2010; Doutora em Teoria Psicanalítica UFRJ.
O gozo feminino e o Um

Resumo: A autora parte da referência de Lacan no Seminário 20 sobre o seminário da Ética para
falar sobre a relação entre o gozo feminino e o Um, explorada por Miller em seu curso de
2011. Se no Seminário 7 havia a ideia do fim de análise como uma purificação do desejo, isto
é, desejo sem corpo, no Seminário 20 o gozo ganha corpo, a própria sublimação não é sem o
corpo. Passa-se de uma cartografia a uma topologia, e do amor cortês e da erótica do trágico
à não relação sexual e à elahoraçào do nãotodo, uma estrutura correlativa à face real do Outro
que não existe. Uma vez que o Outro não existe, não existe a relação sexual, só existe o sig-
nificante Thn_ É na medi<la que -se coloca como um dado primeiro .há um• que se é conduzido
a isolar o gozo como uma outra substância. E substância implica um corpo existente onde a
linguagem se imprime produzindo efeito de gozo: o Um se imprime sobre o corpo e faz dele
um aparelho de gozo.
Palavras-chave: gozo feminino, corpo, topologia, Outro que não existe, YAD'Um, substância.

Abstract: Lacan's 20th Seminar refers directly to the Ethics seminar. The author starts from there
to talk about the relationship between feminine enjoyment and the One, exploited by Miller
in his course in 2011. If the 7th Seminar had the idea of the end of analysis as a purification
of desire, that is, desire without body, in the 20th Seminar enjoyment takes shape, sublimation
is not without the body. We go from the mapping to the topology, and from courtly lave and
the tragic erotics to the non sexual relationship and the formulation of the nona!{, a structure
corresponding to the real face of the Other that does not exist. Once the Other does not exist,
there is no sexual relationship, there is only the significam One. When "that is one" arises as a
primary fact it conducts to isolate the enjoyment as another substance. And substance means
the existing body where language is printed producing effect of enjoyment: the One is printed
over the body and makes it an apparatus of enjoyment.
Keywords: feminine enjoyment, body, topology, Other that does not exist, One, substance.

Opção Lacaniana nº 62 243 Dezembro 2011


STELLA JIMENEZ - médica psicanalista, AME da AMP e da EBP.
Lacan, matemático

Resumo: Lacan pensava que a matemática seria a chave que permitiria a articulação direta entre
Simbólico e Real, importante para nossa clínica na qual o Real do gozo deve ser tocado com
palavras. Importante também para poder pensar como o real do trauma, que foi fixado como
acontecimento corporal, se repete na palavra.
Palavras-chave: matemática, real, simbólico, cifra.

Abstract: Lacan thought that mathematic would be the key to a direct articulation between the
Real and the Symbolic, which is important to our clinic where the Heal of joy must be touch
with words. It is also important to think how the real of trnuma, which was setas a body event,
repeats in the word.
Keywords, mathematic, Real, Symholic, , chypher

LUIZ HENRIQUE VIDIGAL - membro da Escola Brasileira de Psicanálise, da Associação mundial de Psicaná-
lise e AME da Escola Brasileira de Psicanálise.
Lacan e a Escola

Resumo: Trata-se da ficção de um breve encontro e um diálogo com Lacan sobre a Escola que
poderia ter ocorrido em 1979. Todas as falas de Lacan foram retiradas de seus seminários ou
escritos. A literalidade, do que poderia ser apenas um conjunto de citações, é rompida pela
reorganização das palavras, pela ênfase, na medida em que é preciso dar a sensação de um
diálogo, de uma história contada. Nem verdade, nem mentira, ficção.
Palavras-chave: Escola; formação; cartel; asse.

Abstract: This is the fiction of a brief encounter and dialogue with Lacan about the • Éco/e •
that could have occurred in 1979. Ali lines have been drawn from Lacan,s Seminars and his
Writings.The literalness of what could be just a collection of quotations, is disrupted by the
rearrangement of words, for emphasis, to the extent that it is necessary to give the impression
of a dialogue, a story told. Neither truth or false, fiction.
Keywords: School; formation; cartel; passe.

ROMILDD DO RÊGO BARROS - psicanalista, AME da EBP e da AMP.


Lacan e o acontecimento de corpo

Opção lacaniana nº 62 244 Dezembro 2011


ABSTRACTS

Resumo: Em um pequeno texto feito em homenagem a um escritor que se deu a tarefa de forçar
a língua até o limite do sentido, Lacan nos deixou esta afirmação: o sintoma é um aconteci-
mento de corpo. Por que falar do corpo nessa conferência? Por que falar do corpo em uma
homenagem a James Joyce? É até certo ponto surpreendente que um artista que nunca passou
pela experiência analítica - e a questão sequer podia ser levantada, comentou de passagem
Jacques-Alain Miller - sirva de exemplo, ou, mais do que exemplo, de modelo para uma nova
abordagem do sintoma, para o qual Lacan chegou inclusive a propor uma nova escrita: sin-
thoma.
Palavras-chave: acontecimento de corpo; sintoma; gozo; falasser.

Abstract: ln a small text made in honor of a writer who has the task of forcing the language
to the limit of sense, Lacan gave us this staternent: the symptom is an event of the body. Why
speak of the body at this conference? Why speak of the body in an homage to James Joyce?
It is somewhat surprising that an artist who never went through the analytic experience - and
the question could be raised even commented in passing Jacques-Alain Miller - serve as an
example, or more than example, a model for a new approach to the symptom, for which Lacan
has even proposed a new script: sinthome.
Keywords: event of the body; symptom; joy; speakingbeing.

CARLOS AUGUSTO NICtAS - psicanalista; AME da EBP e da AMP.


Lacan e a inexistência da relação sexual

Resumo: Um ensino, o seu, durante os primeiros 10 anos, pôs Lacan, semanalmente, retornou,
então, ao sentido de Freud. Com Freud, a psicanálise se aprendia na experiência mesma da
análise do analista, sua formação conjugando, assim, a convicção da existência do inconscien-
te e trocas verbais ou epistolares a partir dos ensinamentos do mestre. Transmitiam-se, dessa
maneira, os conceitos fundamentais da psicanálise. A Lacan interessava, desde a abertura do
seu ensino, denunciar, antes de tudo, um primeiro efeito da burocratização da formação do
analista, reduzindo as regras standard da psicanálise, não as tratando, como o fez Freud, à
maneira de um instrumento que se tem bem firme na mão.
Palavras-chave: ensino; Lacan; transmissão; psicanálise.

Abstract: Teaching, his, during the first 10 years, put Lacan, weekly, returned, then the sense of
Freud. With Freud, psychoanalysis has learned the sarne experience of the analyst's analysis,
combining their training, so the conviction of the existence of the unconscious and verbal and
epistolary exchanges from the teachings of the master. It is transmitted in this way, the fun-
damental concepts of psychoanalysis. The Lacan interest, since the opening of his teaching,

Opção LaClil.iana nº 62 245 Dezembro 2011


report, first of all, a first effect of the bureaucratization of training analyst, reducing the stan-
dard rules of psychoanalysis, not the case, as did Freud, in the manner of an instrument that
is firmly in hand.
Keywords: teaching, Lacan; transmission; psicanálise.

MARIA DO ROSÁRIO DO RÊGO BARROS - psicanalista; AME da EBP e da AMP.


Lacan e a Criança

Resumo: A criança é feita para aprender, diz Lacan , aprender a fazer o nó a partir do que
fracassa. Com isso, ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui a
ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um. Essa
indicação de Lacan nos orienta a ser parceiros da criança em seu trabalho de construção, com
os elementos ao seu alcance, para não ser deixada cair como objeto- dejeto da família e da
civilização atual, que não quer saber do fracasso próprio ao falasser.
Palavras-chave: criança; infantil; objeto; civilização.

Abstract: The child is made to learn, says Lacan, learning to do from the node that fails. Thus,
he distinguishes the child from the child as a return of the repressed, and assigns it a work of
construction which can be determined uniquely in each. This indication of Lacan tells us to
be partners in their child's construction work, with the elements at your fingertips, not to be
dropped as object-waste and the family of modero civilization, he does not want to know the
failure itself to speaking being.
Keywords: child, child; object; civilization.

Opção Lacaniana nº 62 ZA6 Dezembro 2011


CONTEÚDO DAS ÚLTIMAS EDIÇÕES

52 SETEMBRO/OS
EDITORIAIS
Silvia Tendlarz, Do objeto a ao sintoma e o semblante § Ana Lydia Santiago, Editorial
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, Semblantes e sinthomas; A imagem do corpo em psicanálise; Psicanálise e conexões;
O desbaste da formação analítica
FELICIDADE NO SINTHOMA
Samyra Assad, Da varieté dos sintomas ao sinthoma § Laura Rubião, O patrocínio de Stela:sobre a função
da escrita na psicose § Teresinha N M. Prado, O nada como causa em Clarice Lispector § Luis Francisco
Espíndola Camargo, Modulação e extracão no tratamento das psicoses § Eliana Bentes Castro, Um trabalho
de nomeação
OPASSE NAS ESCOLAS
Carmelo Licitra Rosa, Viver. .. depois do passe § Ana Lucia L. Ho!ck, Mulheres e objetos § Céline Mengui, Uma
raspa de voz ao nível do osso § Luis Dario Sa/amone, Mais que um truque § Bernard Seynhaeve, Escrita de
uma borda § Massimo Termini, O que acontece § Antoni Vicens, Testemunho
MODALIDADES DO PASSE NO SÉCULO XXI
Elisa Alvarenga, Modalidades do passe na EBP §Hilán·o Cid Vivas, Intervenção na plenária § Li/ia Mabjoub,
A formação do psicanalista § Maurício Tarrab, Uma nova volta § Rose-Paulo Vfnctguerra, O passe, con-
tingente
OLUGAR DOS CPCTs NO DISCURSO ANALITICO
Paula Kalfus, Fale comigo § Monique Kusnierek, Um passo para o lado § Lucia Grossi, O objeto e o tempo
§ Antoni Vicens, Um caso ordinário § Pascale Fan·, Dar lugar ã própria voz § Domenico Cosenza, Entre um
suicídio bem sucedido e um falido: o caso de Filippo, o fotórafo
AOBJETALIDADE DA CIÊNCIA, DA ARTE EA POLÍTICA
François Ansermet, Traço e objeto, entre neurociências e psicanálise § Jorge Forbes, Maktoub? A influência
da psicanálise sobre a expressão dos Genes §Jean-Claude Ma/eva/, Os autistas "ouvem muitas coisas", mas
será que alucinam? § Marie-Héli!ne Brousse, O objeto de arte na época do fim do Belo: do objeto ao abjeto
§ Samuel Basz, Uma política da psicanálise
ALEITURA DO ALGORITMO DA TRANSFERÊNCIA A PARTIR DO OBJETO a
Graciela Brodsky, Hic et nunc § Marco Focchi, Glitch § Pierre-Gilles Guégen, A captura do objeto a na
transferência

Opção Lacaniana n" 62 247 Dezembro 2011


OPARCEIRO·SINTOMA
Serge Cottet, Nomeação e transmissão sob um ponto de vista pragmático § Sérgio Laia, Os sujeitos objetaliza-
dos e o analista como "parceiro-sintoma~§ Diana Wolodarsk, Pragmática do tratamento - Parceiro-sintoma:
com quem se joga a partida?

53 JANEIR0/09
EDITORIAIS
Jacques-Alain Miller, Qual política lacaniana para 2009? § Perspectivas de política lacaniana § Rômulo Fer-
reira da Silua, Editorial §
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, Conferência no Teatro Coliseo
HLICIDAOE ESEMBLANTE
Lêda Guimarães, Felicidade no sintoma pós-analítico §Jorge Pimenta, A felicidade tem um pouco de tristeza
ou é melhor morrer com dignidade, em casa? § Ondina Machado, Sexo, mentiras e semblante
PONTUAÇÕES
Maria Isabel Lins, O objeto de arte em Marcel Duchamp § Reinaldo Pamponet, Sobre o gozo lacaniano §
Marcos Bulcão Nascimento, As duas verdades: Descartes com Lacan
PRÁTICA LACANIANA EM INSTITUIÇÃO
Freden·co Feu de Caroalbo, Surpresa e vergonha - resultados terapêuticos de uma apresentação de paciente
§ Maria Inês Lamy, Urgência subjetiva: um caso clínico § Man·a Luiza Mota Miranda, Eu sou borderline,
doutora
AMULHER ENTRE A MÃE EA CRIANÇA
Maria Luiza Rangel, Maternidade perversa? § Simone Bianchi, Ao encontro do parceiro: identificar-se ao
sinthoma do Outro § Suzana Ban-oso, Uma contribuição dos Lefort à psicanálise: a dínica da criança sem
o Outro

54 MAI0/09
EOITORIAIS
Leonardo Gorostiza, Felicidade ou alegria §Jésus Santiago, Em defesa de um psicanalista,
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, As prisões do gozo
MENTIRAS DA FELICIDADE
Eric Laurent, O tecido da fantasia§ Eric Laurent, O real do sinthoma

Opção Lacaniana nº 62 Dezembro 2011


FELICIDADE
Heloisa Galdas, Encontro e felicidade § Ana Lydia Santiago, Imagem, artifício e felicidade § Jorge Forhes,
Felicidade não é bem que se mereça § Jordan Gurgel, Os objetos de que não preciso para ser feliz!
DO ENSINO DA PSICANÁLISE
Enric Berenguer, Testemunho: ensino irônico§ Antônio Teixeira, O gaio ensinamento da psicanálise§ Tânia
Coelho dos Santos, Do saber exposto ao saber suposto e retorno
PSICANÁLISE NA CIDADE
Guillermo Belaga, Leituras e testemunhos da prática da psicanálise no hospital§ Elisa Alvarenga, A satisfação
dos efeitos terapêuticos rápidos § Bernardino Horne, Efeitos terapêuticos rápidos na psicanálise
FINAIS DE ANÁLISE
Carlos Augusto Nicéas, Finais de análise § Ana Lúcia Lutterbach-Holck, Reavida e escrita § Luis Darío Sala-
mone, Uma felicidade sem esperança § Eric Laurent, Comentários

55 NOVEMBRO/O9
EDITORIAIS
Alicia Arenas, O inconsciente-utensílio § Marcus André Vieira, Editorial
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, O passe e as E.5colas § Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI § "São
os acasos que nos fazem ir a torto e a direito" § O inconsciente e o sinthoma
OANALISTA SEMBLANTE
Eric Laurent, O analista, semblante do objeto a
OANALISTA EOS SEMBLANTES
Ana Lydia Santiago, O analista e o semblante de saber § Leonardo Gorostiza, O arco-íris do gozo § Jorge
Forbes, Não tenho a menor ideia
PASSE ESEMBLANTE
Ana Lucia Lutterbach Holck, O analista, a mulher e o arco-íris
FINS DE ANÁLISE
Antoni Vicens, Do cinismo à ironia § Lilany Vieira Pacheco, Miséria banal, ao final de uma análise?
TRAÇOS DA CONTEMPORANEIDADE
José Rambeau, Clíi1.ica das periculosidades § Cristiana Pitel/a de Mattos, Anorexia: dois problemas, duas so-
luções § Sandra Espinha, Transferência e responsabilidade § Mónica Bueno de Camargo, "Pai, não vês que
estou queimando?"

Opção Lacaniana nº 62 249 Dezembro 2011


56/57 JULH0/10
EDITORIAIS
Oscar Zack, Reflexões induzidas pelo Seminário .18 § Simone Souto, Conversação sobre semblantes e sin-
thoma

ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, O homem dos lobos (1ª.parte) § A palavra que fere

ENAPAOL
En·c Laurent, O semblante, a causa e a relação sexual § Romildo do Rêgo Barros, Como fazer escutar o sinto-
ma na instituição? § Gracie/a Brodsky, Dizer não SGracie/a Musachi, A pretensão universal dos protocolos:
angústia e sintomatização § Enric Berenguer, Nossa orientação diante nova Carte du Pays de Tendre
SEMINÁRIO INTERNACIONAL EBP
lordan Gurgel, De semblantes e bigodes! § Francisco Paes Barreto, O homem e a mulher, a lógica e a psi-
canálisea
ESTILO ESEMBLANTE
Gilson lannini, O estilo não é o homem: estilo, dessubjetivaçào e fim de análise § Mareio Peter de Souza
Leite, UnbewuSt, poesia e psicanálise § Jésus Santiago, A semblantização não é nominalista § Eduardo Ria-
viz, Adeus ao além? "Uma homeostase de nível superior~§ Angela de Andrade Pequeno, O estrangeiro e os
semblantes § Gisella Sette Lopes - A magia: verdade e gozo sintomático

58 OUTUBR0/10
EDITORIAIS
Marie-/Jéli!ne Brousse, Brainstorming, §Jésus Santiago, A ordem simbólica no séc. XXI
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, O passe do falasser
TESTEMUNHOS DOS AE NO VII CONGRESSO DA AMP
Jacques-Alain Miller, Abertura da plenária § Angelina Harari, Parceiros no singular § Jacques-Alain Miller,
Comentários § Sérgio de Campos, Túnica intima §Jacques-Afain Miller, Comentários § Jacques-Alain Milfer,
Abertura da plenária § Gustavo Stlglitz, Bom dia, Escola Una § Jacques-Alain Miller, Comentários § Sergio
Caretlo, O homem reto§ Patrícia Bosquin, Uma a-paixonada § Si/via Salman, Ânimo de amar§ Éric Laurent,
Comentários§ Anne lysy, 'Tem que ir!~§ Éric Laurent, Comentários§ Leonardo Gorostiza, A solidez de um
vazio § !lric Laurent, Comentários
CARTEL DO PASSE NA EBP
Graciela Brodsky, Alguns ensinamentos do passe
SINTOMA ESEMBLANTE
Pierre-Gilles Guéguen, O que não se pode dizer § Tânia Coelho dos Santos, Lá onde o inconsciente
falassério, o real morre de rir

Opção Lacaniana nº 62 250 Dezembro 2011


59 MARÇ0/11
EDITORIAIS
Graciela Brodsky - Cinco decorrências da nova ordem simbólica para a direção do tratamento § Elisa Alva-
renga - AMP América uma comunidade no século XXI
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, O Homem dos Lobos (2ª parte e final); Haveria passe?; Despedida
SINTOMA ESEMBLANTE
]Marie-Hélime Brousse - O laço social: seu lado sintoma e seu lado semblante § Sandra Viola - Função e
particularidade dos semblantes em um caso de melancolia § Ruth Helena Cohen - O susto: uma nomeação
na parceria sintomática § Nobemf Brown- Dalí: Salvador da pintura em parceria com Gala § cn·suano Alves
Pimenta - A generalização do real § Fernando Prata - Litugravura § Gise/la Sette Lopes - A magia, verdade
e gozo sintomático

60 SETEMBRO/li
EDITORIAIS
Jorge Chamarro - O analista suposto § Ana Lydia Santiago - Discurso de posse
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, Seminário sobre os caminhos da formação de sintomas
SOIRÉE DA AMP (31/01/11)
Eloisa Alvarenga - Falar a Língua do Outro§ Leonardo Gorostiza - O passe e as línguas na Escola Una § Guy
Bn"ole - Contingências das línguas § Angelina Hararl - O passe, as línguas e !alíngua § Erlc Laurent - O
passe entre as línguas ou "Dire Baber
LACAN ANALISANTE
Eric Laurent - Lacan analisante
CARTÉIS DO PASSE DA ECF
Serge Cottet - Relatório conclusivo d cartel A9 § Miquel Basso!s - Relatório conclusivo do cartel 89 § Eric
Laurent - Reflexões sobre os relatórios dos cartéis do passe da ECF
TESTEMUNHOS DE PASSE
Leonardo Gorostiza - Quando a cópula se abre § Angelina Harari - Topologia, vta de acesso ao real § Gus-
tavo Stiglitz - Tem gato na tuba. Sobre o fenômedo psicossomático § Sérgio de Campos - Três amarrações
do passe

Opção Lacaniana nº 6i 251 Dezembro 2011


61 NOVEMBRO/11
EOITORIAIS
Maurício Tarrab - As ficções contemporâneas e a indiferença do vulcão § Cristina Drwnmond - Dar lugar
às insignificâncias
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller- Lógicas do não-saber em psicanálise §Jacques-Alain Miller- O parndoxo de um saber
sobre a verdade
SINTOMAE ARTE
Eric Laurent - Políticas do sintoma na arte, na ciência e na clínica psicanalílica §Joseph Attié - O crime que
Dostoievski não cometeu
OS LIMITES DO SIMBÓLICO NA EXPERIÊNCIA ANALÍTICA HOJE
Leonardo Gorosfiza - Os confins da caridade freudiana § Angelina Harari - A incidência dos limites do sim-
bólico § Jésus Santiago - A fantasia como um nome dos limites do simbólico (comentários)

PASSE EM TIRADENTES
Sérgio de Campos - Loucura masculina diante do não-todo da mulher § Si/via Salman - O significante de-
sanimado
IX ENCONTRO BRASILEIRO
Leonardo Gorostiza - O sintoma na clínica do delírio generalizado § Bernardino Horne - O delírio generali-
zado das ne\.1roses -da via Romana à via de Vincennes §Jésus Santiago-A intromissão compulsiva do olhar
na época da permissividade delirante §

OPASSE NA AMP
Araceli Fuentes - Um corpo, duas escrituras § Guy Bn"ole - fasa cicatriz, aqui
INCONSCIENTE ERESPONSABILIDADE
Jorge Forbes - Inconsciente e responsabilidade, psicanálise do século XXI (extratos)

Opção Lacaniana nº 62 Z52 Dezembro 2011


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acompanhado da proposta de assinatura preenchida.
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(p/ os n°52, 56/7, 58 e 59), e R$2,BO para os demais volumes encomendados.

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o nº 1ao nº 4: esgotados.
o nº 5 ao nº 7/B: Revista Brasileira de Psicanálise - esgotados.
o nº 9 ao nº 54: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (já estão esgotados os nºs: 9, 10, 11, 12, 13, 17,
20, 2B, 29 e 30). Antes de efetuar pagamento, favor entrar em contato para conferir disponil>ilidade em
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Opção Lacaniana nº 62 253 Dr:zcmbro 2011


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D 34 IRS 25,00) D 35 IRS 25,00) D 36 (RS 25,00) D 37 IRS 25,00) D 38 IRS 25,00) D 39 (RS 25,00)
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D 46 (RS 30,00) D 471RS 30,00) D 48 IRS 30,00) D 49 IRS 30.00) D 50 (RS 50,00) D 51 IRS 30,00)
D 52 IRS 40,00) D 53 IRS 30,00) D 54 IRS 30,00) D 55 IRS 30,00) D 56/57 IRS 40,00) D 58 IRS 40,00)
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Resumo/palavras-chave e descritores (abslract/keywords)
• Uma breve apresentação do artigo, com aproximadamente 70 palavras. em português e em inglês, seguida pelos
descritores nos dois idiomas.
Referências bibliográficas
As referências bibliográficas devem aparecer como notas, exclusivamente das obras ciladas/mencionadas no
texto, no final do trabalho. Os títulos de artigos ou capítulos devem ser referidos entre aspas e os títulos de
livros em itálico (não utilizar negrito ou sublinhado). Exemplos:
1
Lacan. J. (1966/1998). ·oe um sujeito enfim emquestão". lnEscntos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p234.
2
Freud. S.(1940/1996) "Esboço de Psicanálise". ln Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.XXIII. Rio de Janeiro: Imago.
3
Lacan, J. (2005Q962·1963]). OSeminário. livro 10: aangústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
Citações
Citações com até 3 linhas, no corpo do texto, entre aspas, seguidas pela nota de referência.
• Citações com mais de 3 linhas, em novo parágrafo com recuo de 4 cm, espaço simples, tamanho de letra um
ponto menor, sem itálico, seguidas pela nota de referência.
Empregar itálico somente para títulos de obras.
Ilustrações/Gráficos/Fotografias/Desenhos
Comtítulo conciso. Os autores devem enviar um arquivo do texto com as ilustrações, gráficos, fotografias e
desenhos inseridos nos pontos exatos de suas apresentações, além do envio separadamente dos seus arquivos
originais. As fotografias devem oferecer boa resolução.
Responsabilidade e alterações
Acomissão editorial reserva-se o direito de introduzir correções referentes ao uso da língua portuguesa (por
exemplo. uso incorreto de crase. tempo verbal inadequado à frase, problemas de regência etc.) ou erros de
digitação, mantendo o estilo e as idéias do(s) autor(es).

Associação Mundial de Psicanálise: 74 Rue d'Assas, 75006 Paris· France • Fax (33·1) 4548·7938
École de la Cause freudienne: l Rue Huysmans, 75006 Paris· France • lei. (33·1) 4549·0268 • Fax (33·1) 4284·2976
Escuela dei Campo Freudiano de Caracas: Ateneo de Caracas, Aptodo. Postal 662, Caracas l010·A· Venezuela · Fax (58·2) 573-7812
Escola Européia de Psicanálise: 74 Rue d'Assas 75006 Paris· France • Fax (33·1) 4548·7938
Escuela de la Orientación Lacaniana: Callao 1033, piso 5, Buenos Aires • Argentina · l el. (54·1) 881·2707 · Fax (54·1) 815·4300
Escola Brasileira de Psicanálise: Rua Felipe dos Santos, 588 - 30180·160 - Lourdes · Belo Horizonte MG. lei/ Fax 313292 7563
ISSN 1s1,-J12a

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