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A terceira
Dezembro ~() 11 62
OPÇÃO LACANIANA
ISSN 1519-3128
Integra a rede Scilicet III que reúne ao Lado de Omicar? as seguintes publicações:
Clique, Belo Horizonte; Cuademos de Psicoanálisis, Bilbao; EL Psicoanálisis, Madrid;
Freudiana, Barcelona; La Cause Freudiene, Paris; La Psicoanalisi, Roma,
La Psychanalyse, Acenas; Mental, Paris-Bruxelas; Opção Lacaniana, São Paulo;~arto, Bruxelas
FUNDADORES: Antonio Beneri, Angelina Harari, Bernardino Horne, Luiz Henrique Vidigal
OPÇAO LACANIANA
R ev i s t a Br as il ei r a Int er n ac i ona l d e P s i ca n á li se
62
EDITOlllAIS
Cristiane Alberti - Lacan, homem de revistas 3
Teresinba N M. Prado - Editorial, 9
ABST R AC T S, :31
OPÇÃO LACANIANA
Revista Brasileira Internacional de Psicanálise
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EDITORIAIS
Por que Lacan privilegiou o formato "revista" para seus escritos? Mais do que autor,
ele foi um homem de ensino crítico assíduo, destinado a justificar uma prática. A prio-
ridade conferida a esse seminário, que por muito tempo foi semanal, e a uma prática
bastante intensa não lhe deixou tempo para publicar mais, conforme indica Miller9•
Muitos desses escritos não o são propriamente aos seus olhos, pois Lacan os situa
'no meio do caminho entre o escrito e a fala' 10 , tratando-se particularmente de comu-
nicações em colóquios de psiquiatria ou de psicanálise. Lacan reserva o termo 'escrito'
àqueles em que prevalece a dimensão do texto, como lugar de um estreitamento. Assim
como os artigos de Freud, os textos de Lacan são "pedras de espera"11 que traçam so-
bretudo o que ex-siste de seu ensino: "Cada um dos escritos de Lacan - nos indica J.-A.
Miller - é para ele o memorial de uma dificuldade especial de seu auditório para entrar
em seu ensino. Era realmente quando algo travava em seu ensino que um escrito se de-
positava ali-"' 12 . Lacan nos convida portanto a atravessar o texto a fim de circunscrever de
mais perto a falta que o causa.
O trabalho de redução que opera desse modo, de longos desenvolvimentos falados
a textos calibrados, por outro lado corresponde ao formato da produção científica. Em
virtude de sua abordagem racionalista do inconsciente freudiano, sem nenhuma com-
placência com o obscuro ou o inefável, Lacan prefere escritos pouco loquazes, calcados
nos usos do campo da crítica.
A escolha desse formato se inscreve no movimento que conduz Lacan a sempre
desvencilhar a psicanálise da consistência imaginária para encontrar no próprio jogo
do escrito o ponto de orientação: "é por meio desses pedacinhos escrita que, histori-
camente, entramos no reaJ" 1 :i. Foi com a referência do materna que Lacan afirmou seu
desejo de transmissão de um saber literalizável. Lacan via na matemática "o paradigma
da transmissibilidade integral", com a condição de precisar, conforme faz Milner 14, que
ele retoma da matemática tudo dessa referência à letra e ao cálculo, com exceção da
dedução que supõe o encadeamento das ideias.
Compreenderemos, a partir disso, por que lacan levou tão a sério a fónnula do
projeto bourbakista, e nele encontrou uma resposta para a pergunta: "O que é uma re-
vista para a psicanálise?'', entre materna e Scilicet.
Notas
EDITORIAL
É com grande satisfação que apresento esta edição especial de Opção Lacaniana,
concluindo uma série de eventos que marcaram esse momento especial dos 30 anos ela
morte de Jacques l.acan.
Por que comemorar o aniversário do desaparecimento de alguém? Uma primeira
resposta, óbvia, é que toda situação é um bom motivo para render homenagem a um
nome que marcou uma época. Uma segunda resposta diz respeito especificamente ao
'acontecimento' lacan para a psicanálise.
Muitos dentre nós (é o meu caso, inclusive) não conheceram a pessoa de Lacan.
Mas todos tivemos acesso aos seus textos, em grande parte graças ao trabalho incansá-
vel de Jacques-Alain Miller, não só pelo empenho em publicar os seminários e escritos,
mas por um desejo decidido pela transmissão da psicanálise tal como as formulações de
Lacan permitem conceber, a ponto de fazer prosperar uma Escola de psicanálise, apesar
das dificuldades que isto implica.
Hoje, o que podemos falar de Lacan e sua Escola? Em um especial momento de
maturidade, vemos a transferência de trabalho .impulsionar o desejo de psicanalistas em
vários países, sem, contudo, eliminar as singularidades.
Entender a Escola como lugar que acolhe as diferenças sem uniformizá-las, apos-
tando no modo de cada um haver-se com seu sintoma e colocar seu traço singular a ser-
viço de uma causa, é considerar, na sua radicalidade, a potência da subversão realizada
por Lacan na psicanálise.
Em outras palavras, é justificar a existência de uma instituição psicanalítica não
como um reduto de identificações grupais, mas um lugar de encontro a partir do furo,
cio traumatismo em relação ao qual, de algum modo, o encontro com a letra, o 'aconte-
cimento' Lacan mantém, para cada um, certo ponto de consonância. Acerca desse pomo,
talvez pudéssemos dizer, parodiando o famoso adágio lacaniano sobre a psicose (toman-
do-o como condição necessária, mas não suficiente): 'não é lacaniano quem quer·.
Viva Lacan!
Nota
1 Borges, J. l. (2000). Esse ofício do verso. SP: Companhia das letras, p.12.
A TERCEIRA*
JACQUES LACAN
A terceira. Ela retorna, é sempre a primeira, como diz Gérard de Nerval. Faremos
a objeção de que isso faça disca1? Por que não, se isso diz isto?
É preciso ainda ouvi-lo, por exemplo, como o Diz-co-urso de Roma 2
Se injeto assim uma ponta a mais de onomatopeia em lalíngua, isto não quer dizer
que esta não esteja à altura de me retorquir dizendo que nfto existe onomatopeia que
não se especifique previamente por seu sistema fonemático, o de lalíngua.
Vocês sabem que, para o francês, Jakobson a calibrou - é grande assim [Lacan
aponta com o dedo a palma de sua mão]. Dizendo de outro modo, é por ser francês que
o Discurso de Roma pode ser ouvido como Diz-co-urd'roma:1i_
Atenuo isto ao destacar que urd'roma é um rom-rom que admitiria outras lalínguas,
se agrado as orelhas de alguns de nossos vizinhos geográficos, isto se extrai naturalmen-
te do jogo de matriz4 de Jakobson que especifiquei há pouco.
Como não devo falar por muito tempo, vou lhes passar uma coisa.
Esse urd'roma simplesmente me permite colocar a voz sob a rubrica dos quatro
objetos por mim chamados de a, de esvaziá-la da substância que poderia haver no ruído
que ela faz, quer dizer, de recolocá-la na conta da operação significante, aquela da qual
especifiquei os ditos efeitos de metonímia. De tal modo que a partir disto a voz está livre
de ser outra coisa além de substância.
Mas trata-se de outro delineamento que entendo indicar ao introduzir a minha
Terceira.
eu interprete isto nele - é um sintoma. Pois antes de concluir que ele segue6 - segue o
1
quê? A música do ser, sem dúvida - a partir do que será que ele pensa? Ele pensa sobre
o saber da Escola, com o qual os jesuítas, seus mestres, lhe encheram as orelhas. Ele
constatou que era superficial.
Certamente ele teria sido melhor sucedido, evidentemente, se vislumbrasse que seu
saber ia muito mais longe do que ele acreditava, depois da Escola. Há óleo na água, se
posso dizer, pelo simples fato de que ele fala, pois ao falar lalíngua, ele tem um incons-
ciente, e é miserável, como cada um que é digno de respeito. É o que eu chamo de um
saber impossível de reintegrar pelo sujeito, enquanto este. o sujeito, só tem um signifi-
cante que o representa diante desse saber. É um representante comercial, se posso dizer,
com esse saber - saber constituído, para Descartes, como era de uso na sua época, por
sua inserção no discurso em que nasceu, quer dizer, aquele que chamo de discurso do
mestre, o discurso do fidalgote. É exatamente por isso que ele não se sai bem com seu
Penso. logo go(z)sou.
Ainda assim é melhor do que o que diz Parmênides. A opacidade da conjunção
do noei'n e do efnar, do pensamento e do ser, ele não se sai bem com ela, esse pobre
Platão. Sem ele, o que saberíamos de Parmênides? Mas isto não impede que não tenha
se saído bem. Se ele não nos transmitisse a histeria genial de Sócrates, o que é que se
extrairia dele?
Durante essas peudo-férias eu me debrucei sobre O Sofista. Devo ser muito sofista,
provavelmente, para que isto me interesse. Deve haver ali algo em que fiquei detido. Não
aprecio isso. Faltam-nos coisas para apreciar, falta-nos saber o que era o sofista nessa
época, falta-nos o peso da coisa.
Voltemos ao sentido do go(z)sou.
realidade, é a mesma coisa, a história da mensagem que cada um recebe de forma inver-
tida. Digo isto há bastante tempo, e já provocou muitos risos.
Na verdade, é a Claude Lévi-Strauss que devo essa expressão. Ele se virou para
uma de minhas excelentes amigas que é sua mulher - Monique, para chamá-la pelo
nome - e lhe disse, a respeito do que eu falava, que era isso, que cada um recebia sua
própria mensagem de forma invertida. Monique a repetiu para mim. Eu não poderia
encontrar fórmula mais feliz para o que eu queria dizer naquele momento. Mesmo
assim foi ele quem a passou para mim. Vejam que me aproprio do meu bem onde o
encontro.
Passo para outros tempos, nas escoras do pretérito imperfeito - "Eu era". - Ah, o
que é que tu e(sco)ras10 ? - e depois, o resto. O subjuntivo é engraçado. "Que seja!" -
Casualmente, assim ..
Passemos, pois é preciso que eu avance.
Descartes, por sua vez, não se engana quanto a isso - Deus é o dizer. Ele vê muito
bem o deuzer, é o que faz com que seja a verdade o que decide a esse respeito, na sua
cabeça. Basta deuzer como eu. É a verdade, não há como fugir dela. Se Deus me engana,
tanto melhor, é a verdade pelo decreto do deuze1; a verdade perfeita.
Faço aí algumas observações sobre pessoas que arrastaram a crítica do outro lado
do Reno para acabar beijando o traseiro de Hitler. Isto me faz ranger os dentes.
Isto é o número um. Então, agora, o simbólico, o imaginário e o real.
O inaudito é que isto ganhou sentido - e se deu arrumado de qualquer jeito. Nos
dois casos foi por minha causa, do que chamo de vento - em relação ao qual sinto que
não posso sequer prever-, aquele com o qual se inflam as velas em nossa época.
É evidente que não falta sentido para isso no início. É nisto que consiste o pensa-
mento - palavras introduzem no corpo algumas representaçàes imbecis.
Aí está, vocês têm a coisa - vocês têm aí o imaginário, que além do mais nos regur-
gita (rend gorge). Isto não quer dizer que ele nos emproa (rengorge). Ele nos re-vomita
(re-dégueule). Como é que é? - assim, casualmente, uma verdade, uma verdade a mais.
É o cúmulo.
Que o sentido se aloje no imaginário, isto nos dá, ao mesmo tempo, os dois outros
como sentido. O idealismo, cuja imputação todos repudiaram, está por trás disso. As
pessoas só pedem isso. Isso lhes interessa, uma vez que o pensamento é o que há de
mais cretinizante a agitar o guizo do sentido.
Como tirar-lhes da cabeça o emprego filosófico de meus termos, quer dizer, seu
emprego chulo - quando, por outro lado, é preciso que isso entre? Mas seria melhor
que entrasse alhures. Vocês imaginam que o pensamento se nrnntém nos miolos. Não
vejo por que dissuadi-los disso. De minha parte, estou certo - certo assim, isto é assunto
meu - de que se mantém no músculo subcutâneo da testa, no ser falante exatamente
como no ouriço.
Adoro os ouriços. Quando vejo um, coloco-o em meu bolso, em meu lenço. Natu-
ralmente, ele mija - até que o coloco sobre a grama em minha casa de campo. E então,
adoro ver se produzir esse dobramento dos músculos subcutâneos da resta, e em segui-
da, assim como nós, se enrola como uma bola.
Se vocês podem pensar com os músculos subcutâneos da testa, podem também
pensar com os pés. E é aí que eu gostaria que a coisa entrasse - pois afinal de contas o
imaginário, o simbólico e o real, são feitos para que aqueles desse tropel que me segue,
possam trilhar o caminho da análise.
Essas rodelas de barbante cujos desenhos eu me extenuei ao tentar traçar, não se tra-
ta de fazer ronrom para elas. Isto teria que servir-lhes, e justamente na velocidade ela qual
lhes falava este ano - que isto sirva para que vocês distingam a topologia que isso define.
Esses termos não são tabus. O que é preciso é que vocês os captem. Eles estão aí
desde antes daquela que implico ao dizê-la primeira - a primeira vez em que falei em
Roma. Depois de ter cogitado bastante eu os saquei, esses três, muito cedo, muito antes
de me haver colocado em meu primeiro Discurso de Roma.
Que esses termos sejam essas rodelas do nó borromeano, ainda assim não é mo-
tivo para que vocês metam o pé aí. Não é isto que chamo de "pensar com seus pés".
Do ser ao semblante
Tratar-se-ia de que vocês deixassem aí - falo dos analistas - algo muito diferente
de um membro, a saber, esse objeto insensato que especifiquei pelo a.
É isto que se apanha no bloqueio do simbólico, do imaginário e do real como nó.
É ao pegá-lo em cheio que vocês poderão responder ao que é sua função - oferecê-lo
como causa de seu desejo a seu analisante.
É o que se trata de obter. Mas se você metem a pata nisso, também não é terrível.
O importante é isto seja feito às suas custas.
Depois desse repúdio ao go(z)sou, vou me divertir em dizer-lhes que esse nó, é
preciso sê-lo. E acrescento o que vocês sabem acerca dos quatro discursos a partir do
que articulei durante um ano sob o título O Avesso da psicanálise- não é menos verdade
que do ser é preciso que vocês somente façam o semblante. Isto é sábio! É tanto mais
sábio que não basta ter uma ideia dele para fazer-se o seu semblante.
Não imaginem que eu tenha tido uma ideia dele. Escrevi objeto a. É completa-
mente diferente. Isto o aparenta à lógica, quer dizer1 isto o torna operante no real como
o objeto do qual justamente não há ideia. É preciso dizer que o objeto do qual não há
ideia era justamente, até agora, um furo em qualquer teoria que fosse.
Isto justifica as reservas com relação ao pré-socratismo de Platão que manifestei
há pouco. Não é que ele não tenha tido o sentimento disso, pois o semblante, ele aí se
deleita sem o saber. Isto o obsedia, ainda que não o saiba. Isto quer dizer apenas uma
coisa: é que ele o sente, mas não sabe por que é assim. Disso decorre esse insupnrte,
esse insuportável que ele propaga.
Não há nenhum discurso em que o semblante não conduza o jogo. Não vejo por
que o mais recente, o discurso analítico, escaparia a isso. Mesmo assim não é uma razão
para que, nesse discurso, sob pretexto de que é o mais recente, vocês se sintam pouco
à vontade, a ponto de fazer dele, segundo o uso no qual se enrolam seus colegas da
Internacional, um semblante mais semblante do que natureza, exposto.
Mesmo assim, lembrem-se de que o semblante daquele que fala desse modo está
sempre lá, em qualquer espécie de discurso que o ocupe. É até uma segunda natureza.
Então, sejam mais descontraídos, mais naturais, quando receberem alguém que vem lhes
demandar uma análise. Não se sintam forçados a se dar ares de importantes. Mesmo
como bufões, vocês estão justificados de o ser.
Basta ver a minha Televisão. Eu sou um clown. Peguem exemplo aí, e não me imi-
tem! O sério que me anima é a série que vocês constituem, vocês não podem ao mesmo
tempo ser e pertencer.
Ao mesmo tempo, o real não é universal, o que quer dizer que ele só é "todo" no
sentido estrito de que cada um de seus elementos seja idêntico a si mesmo, mas sem po-
der dizer pántes, todos. Não há 'todos os elementos', há apenas conjuntos a determinar
em cada caso - e não vale a pena acrescentar 'é tudo'. Meu S1 tem apenas o sentido de
pontuar esse algo, esse significante - letra que escrevo como S1 - que só se escreve ao
fazê-lo sem nenhum efeito de sentido. Em suma, é o homólogo do que acabo de dizer-
lhes sobre o objeto a.
Quando penso que me diverti por um momento a brincar com esse Si - que levei
à dignidade do significante Um - e o a, enlaçando-os por meio do número de ouro! Essa
vale por mil' Quero dizer que isto adquire o alcance de escrevê-lo. De fato, era para
ilustrar a vanidade de todo coito com o mundo, quer dizer, do que até aqui se chamou
de consequência. Pois não há nada mais no mundo que um objeto a, bosta ou olhar, voz
ou teta, que refende o sujeito, caracteriza-o nesse dejeto que ex-siste ao corpo.
Para fazer semblante dele é preciso talento. É particularmente difícil. É mais difícil
para uma mulher do que para um homem, ao contrário do que se diz.
Que a mulher seja objeto a do homem no caso, isto não quer dizer de modo al-
gum que ela goste de sê-lo. Mas, enfim, acontece. Acontece de ela parecer-se com isso
naturalmente. Não há nada mais parecido com uma bosta de mosca do que Ana Freud.
Isto deve lhe servir.
Sejamos sérios. Voltemos a fazer o que estou tentando.
Tenho que sustentar esta Terceira pelo real que ela comporta, e é por isso que
lhes coloco a questão em relação à qual vejo que as pessoas que falaram antes de mim
conjecturam um pouco. Não apenas conjecturam, mas até disseram - que elas tenham
dito é signo de que o supõem. A psicanálise é um sintoma?
Vocês sabem que quando faço perguntas é porque tenho a resposta. Mas, enfim,
mesmo assim seria melhor que fosse a resposta certa.
Chamo de sintoma ao que vem do real.
Isto se apresenta como um pequeno peixe cujo bico voraz só se fecha ao colo-
car-se sentido sob o dente. Então, das duas uma. Ou isto o faz proliferar - "Crescei e
multiplicai-vos", disse o Senhor. Este emprego do termo multiplicação é mesmo assim
algo um pouco forte, que deveria nos provocar tiques, pois o Senhor sabe o que é uma
multiplicação, não é o crescimento do peixinho. Ou então, ele padece disso.
O que seria melhor, e em relação ao que deveríamos nos esforçar, é que o real do
sintoma padeça disso. E aí está a questão: como fazer?
A psicanálise é um sintoma
É preciso reconhecer que ela toma esse caminho e, portanto, que tem grande
chance de permanecer um sintoma, de crescer e multiplicar-se. Psicanalistas não mortos,
carta/letra segue (suit)!
Mesmo assim, desconfiem - talvez seja a minha mensagem de forma invertida.
Talvez eu também me precipite. É a função da pressa, que valorizei para vocês.
No entanto, o que acabo de dizer-lhes pode ter sido mal-entendido, de modo a ser
tomado no sentido em que a psicanálise seria um sintoma social. Só existe um sintoma
social - cada indivíduo é realmente um proletário quer dizer não há nenhum discurso
1 1
com o qual fazer laço social, dito de outro modo, semblante. Foi isto que Marx remediou
de modo inacreditável. Dito e feito. O que ele emitiu implica que não há nada a mudar.
É inclusive por isso que tudo continua exatamente como antes.
A psicanálise, socialmente, tem uma consistência diferente dos outros discursos.
Ela é um laço a dois. É nisto que ela se encontra no lugar da falta de relação sexual. Isto
não basta de modo algum para fazer dela um sintoma social, pois uma relação sexual
falta em todas as formas ele sociedades. Está ligado à verdade que faz a estrutura de todo
discurso.
É por isso, inclusive, que não há uma verdadeira sociedade fundada no discurso
analítico. Há uma Escola, que justamente não se define por ser uma Sociedade. Ela se
define pelo fato de que nela ensino alguma coisa.
Por mais divertido que isto possa parecer quando falamos da Escola Freudiana,
é algo do gênero do que fizeram os estoicos, por exemplo. Os estoicos tinham uma
espécie de pressentimento do lacanismo - foram eles que inventaram a distinção entre
o signans e o signatum. Por outro lado, eu lhes devo respeito pelo suicídio - não por
suicídios fundados em um gracejo, mas por essa forma de suicídio que é, em suma, o ato
propriamente dito. Não se deve perdê-lo, claro, senão ele não será um ato.
Em tudo isso, portanto, não há problema de pensamento. Um psicanalista sabe
que o pensamento é aberrante por natureza, o que não impede que seja responsável
por um discurso que solda o analisante a quê? - não ao analista, mas ao par analisante-
analista.
Alguém disse isso muito bem esta manhã, vou exprimi-lo de outro modo, mas é
exatamente a mesma coisa, estou feliz que isto convirja.
O mordaz de tudo isso é que seja o analista quem dependa cio real nos anos que
virão, e não o contrário.
Não é de modo algum do analista que depende o advento do real. O analista tem
Esta Terceira, leio-a, quando vocês talvez possam se lembrar de que A Primeira
que aqui retorna, eu acreditara dever colocar ali a minha falância, uma vez que a im-
primiram depois, sob o pretexto de que vocês todos teriam o texto distribuído. Se hoje
não faço senão urd'roma, espero que isto não lhes seja um obstáculo excessivo para
entender o que leio. Peço desculpas se esta leitura é excessiva.
A Primeira, então, aquela que retorna para que não cesse de se escrever, necessá-
ria, Função e campo... , eu disse ali o que era preciso dizer. A interpretação, emiti, não
é interpretação de sentido, mas jogo com a equivocidade, foi por isso que coloquei o
acento sobre o significante na língua. Designei-o como instância da letra, isto para me
fazer entender por seu pouco de estoicismo.
Disso resulta, acrescentei depois, sem mais efeitos, que é em lalíngua que opera
a interpretação - o que não impede que o inconsciente seja estruturado como uma lin-
guagem, uma dessas linguagens nas quais é justamente assunto dos linguistas convencer
de que lalíngua é animada. A gramática, como eles geralmente chamam isso, ou quando
é Hjelmslev, a forma. Isto não se dá isoladamente, mesmo que alguém que me deve a
abertura desse caminho colocou o acento na gramatologia.
Lalíngua é o que permite que o 'voto' (voeu), aspiração, consideremos que não é
por acaso que seja também o 'quero' (veut) de querer, terceira pessoa do indicativo -
que o 'não' (11011) negando e o 'nome' (nom) nomeando, também não é por acaso - que
'deles' (d'eux), de antes desse 'eles' (eux) que designa aqueles (ceux) dos quais falamos,
sejam feitos da mesma forma que o algarismo dois (deux), isto não é aí puro acaso, nem
arbitrário tampouco, como diz Saussure. O que é preciso conceber aí é o sedimento, o
aluvião, a petrificação que é marcada pelo manejo, por um grupo, de sua experiência
inconsciente.
Lalíngua não deve ser dita viva porque está em uso. É sobretudo a morte do signo
que ela veicula. Não é porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem que
lalíngua não vai jogar (jouer) contra seu gozar (jouir), pois ela se constituiu a partir desse
próprio gozar.
O sujeito suposto saber que é o analista na transferência não é suposto errone-
amente se sabe em que consiste o inconsciente, em ser um saber que se articula com
lalíngua, o corpo que aí fala só está enlaçado a ele pelo real do qual se goza,
O corpo deve ser compreendido ao natural como desenlaçado desse real que, para
ex-sistir a ele na qualidade ele fazer seu gozo, não lhe é menos opaco.
Ele é o abismo menos notado do que quer que seja lalíngua que, esse gozo, a civi-
liza, se ouso dizer. Entendo com isto que ele a conduz a seu efeito desenvolvido, aquele
pelo qual o corpo goza de objetos.
O primeiro dentre eles, aquele que escrevo com o a, é, eu dizia, o objeto do qual
não há ideia como tal, a não ser ao quebrá-lo, esse objeto - caso em que estes pedaços
são identificáveis corporalmente e, como estilhaços do corpo, identificados, e isto so-
mente pela psicanálise. É nisto que esse objeto constitui o nó elaborável do gozo. Mas
ele só se mantém pela existência cio nó, nas três consistências de toros, de rodelas de
barbante que o constituem.
Sentido
Simbólico
Corpos
@ Real Real
Que o gozo fálico se torne anômalo ao gozo do corpo, isto já foi percebido mil e
uma vezes. Não sei quantos caras aqui estão um pouco por fora dessas histórias feitas
nas coxas 12 que nos vêm da Índia - parece que chamam isso de Kundalini. Eles de-
signam desse modo essa coisa que escala toda a sua medula espinhal, como dizem. E
explicam isso de uma forma que diz respeito à coluna - eles imaginam que é a medula,
e que ela sobe até os miolos. Depois, fizeram alguns progressos em anatomia.
Como entender o fora do corpo do gozo fálico'
Nós o ouvimos esta manhã graças a meu caro Paul Mathis, que é também aquele
a quem felicitei pelo que li dele sobre a escrita e a psicanálise. Esta manhã ele nos deu
um formidável exemplo disso. Esse Mishima não é uma sumidade. E para nos dizer que
foi São Sebastião quem lhe deu a oportunidade de ejacular pela primeira vez, realn1ente
essa ejaculação tinha que tê-lo espantado.
Vemos isso todos os dias, caras que nos contam que sempre se lembrarão de sua
primeira masturbação, pois isto rouba a cena.
Compreende-se bem por que isso rouba a cena: porque não vem de dentro da cena.
O corpo se introduz na economia do gozo pela imagem. Foi daí que parti. A
relação do homem, do que chamamos por esse nome, com seu corpo, se há algo que
destaca que ele é imaginário, é o alcance que a imagem aí adquire.
De início destaquei que para isso era preciso haver uma razão no real. Só a pre-
maturação o explica. Isto não é meu, é de Bolk - nunca busquei ser original, sempre
busquei ser lógico. Essa preferência pela imagem vem do fato de que o homem antecipa
sua maturação corporal, com tudo o que isso comporta, a saber, que ele não pode ver
um de seus semelhantes sem pensar que de toma o seu lugar - então, naturalmente, ele
o vomita.
Por que o homem é tão subserviente à sua imagem? Quanto esforço fiz certa época
para explicar isso! Naturalmente, vocês nem se deram conta. Eu quis absolutamente dar
a essa imagem não sei que protótipo em certo número de animais, a saber o momento
em que a imagem assume um papel no processo germinal. Fui buscar o gafanhoto, o
peixe-espinho, a pomba, e não se tratava de modo algum de um prelúdio, de um exercí-
cio. Será que vão nos dizer agora que tudo isso estava fora da obra? Que o homem goste
tanto de olhar sua imagem, aí está, resta apenas dizer - "É assim".
O que há de mais espantoso é que isso permitiu o deslizamento do mandamento
de Deus. Mesmo assim o homem é mais próximo de si mesmo em seu ser do que em
sua imagem no espelho. Então, que história é essa do mandamento: "amarás ao teu pró-
ximo como a ti mesmo" - se isso não se funda nessa miragem, que ainda assim é algo
divertido?
Mas, como essa miragem é justamente o que o leva a odiar, não o seu próximo,
mas seu semelhante, é um troço que passaria um pouco pela tangente se não pensásse-
mos que, ainda assim, Deus deve saber o que diz, e que há para cada um algo que se
ama ainda mais do que sua imagem.
Se há algo que nos dá uma ideia do "se gozar" é o animal. Não se pode dar ne-
nhuma prova disso, mas isto parece estar implicado no que se chama de corpo animal.
A questão se torna interessante a partir do momento em que a ouvimos, e em que,
em nome da vida, nos perguntamos se a planta goza.
Essa questão tem um sentido, pois n1esmo assim foi aí que me deram o golpe do
lírio dos campos. "Eles não tecem nem fiam", acrescentaram. É certo que agora não
podemos nos contentar com isso, pela simples razão de que 1 justamente, é o caso deles,
de tecer e de fiar. Para nós que vemos isso com rnicroscópio, não há exemplo mais ma-
nifesto do que o do fio da tecedura. Então, talvez seja disso que eles gozem, de tecer e
de fiar. Mas, mesmo assim isso deixa o conjunto da coisa completamente boiando.
Resta a definir a questão de saber se vida implica gozo. Se a resposta permanece
duvidosa para o vegetal, isto só faz valorizar mais o fato de que não o seja para a fala.
O significante-unidade é a letra
Há um linguista que muito in.si.stiu .sobre o fato de que o fenômeno jamais faz
sentido. O incômodo é que a palavra também não faz sentido, apesar do dicionário. De
minha parte, faço o esforço de produzir qualquer sentido com qualquer palavra em uma
frase. Então, se fazemos qualquer palavra produzir qualquer sentido, onde interromper
a frase? Onde encontrar a unidade-elemento?
Já que estamos em Roma, tentarei dar-lhes uma ideia do que eu queria dizer, sobre
o que acontece com essa ideia de unidade significante a buscar, a partir do fato de que
há, vocês sabem, as famosas três virtudes, ditas justamente teologais.
Aqui, nós as vemos apresentar-se às muralhas, exatamente por todo lado, sob a
forma de mulheres planturosas. O mínimo que podemos dizer é que, depois disso, ao
tratá-las como sintomas, nào estamos forçando a barra. De fato, definir o sintoma como
eu fiz, a partir do real, é dizer que as mulheres também exprimem muito bem o real,
uma vez que, justamente, insisto sobre o fato de que as mulheres são não-todas.
A fé (la foi), a esperança e a caridade, denominá-las como a feira (la foire), dei-
xesperança13, a partir de lasciate ogni speranza - é um metamorfema como outro, já
que há pouco vocês me passaram urd'roma - para acabar arquirateado 14, a rata tipo,
parece-me que é uma incidência mais efetiva para o sintoma dessas três mulheres. Isto
me parece mais pertinente do que o que se formula, por exemplo, quando alguém se
mete a racionalizar tudo, como essas três questões de Kant, das quais tive que me livrar
na televisão. São, a saber: "o que posso fazer?"; "o que me é permitido esperar?" - é
realmente o cúmulo - e "o que devo fazer?".
Mesmo assim é bastante curioso que estejamos nesse ponto. Não que eu considere
que a fé, a esperança e a caridade sejam os primeiros sintomas a colocar na berlinda.
Não se trata de maus sintomas, mas enfim, isto distrai muito bem a neurose universal.
Isto quer dizer que isso permite que afinal de contas as coisas não caminhem tão mal, e
que estejamos todos submetidos ao princípio de realidade, isto é, ao fantasma. A Igreja
está aí a velar. E uma racionalização delirante como a de Kant é o que ela tampona.
Tomei esse exemplo para não me atrapalhar no que comecei por lhes dar como
exemplo do que é preciso para tratar um sintoma.
A interpretação deve sempre ser - como disse, graças a Deus, ontem mesmo, Tos-
tain - o ready made de Marcel Duchamp. Que pelo menos vocês entendem alguma coisa
dele. Nossa interpretação deve visar o essencial no jogo de palavras para não ser aquela
que alimenta o sintoma com sentido.
Vou confessar-lhes tudo, por que não' Esse troço, o deslizamento da fé, esperança
e caridade para a feira - digo isto porque alguém na conferência para a imprensa achou
que eu peguei um pouco pesado nesse assunto da fé e da feira -, é um de meus sonhos.
Mesmo assim tenho o direito, tal como Freud, de participar-lhes meus sonhos. Contraria-
mente aos de Freud, eles não são inspirados pelo desejo de dormir. É sobretudo o desejo
de acordar que me agita. Mas, enfim, é particular.
O significante-unidade é fundamental. Podemos estar seguros de que o materialis-
mo moderno não teria nascido se muito tempo antes isto já não atormentasse os homens.
Nesse tormento, a única coisa que se mostrava a seu alcance era sempre a letra.
Quando Aristóteles, como qualquer um, exatamente como nós, se põe a dar uma
ideia do elemento, é preciso sempre uma série de letras) RSI.
Não há nada que dê inicialmente a ideia de elemento como o grão de areia - eu
evocava isso em uma dessas partes que pulei, pouco importa - sobre o qual eu disse
que não se podia senão contar. Nada nos detém nesse gênero - por mais numerosos que
sejam os grãos de areia, nós sempre chegaremos a calibrá los, um Arquimedes já disse
isto. Tudo isto só nos vem a partir de algo que não tem suporte melhor do que a letra.
Mas não existe letra sem lalíngua. É este inclusive o problema - como pode lalín-
gua precipitar-se na letra? Nunca se fez algo realmente sério sobre a escrita, entretanto
isto valeria a pena, pois aí está realmente uma articulação.
Entào - como alguém observou há pouco, de certo modo abrindo o caminho para
o que posso lhes dizer - que o significante seja colocado por mim como representando
um sujeito para outro significante, é a função que só se constata no deciframento, que é
de tal forma que necessariamente retornamos à cifragem. Este é o único exorcismo do
qual a psicanálise é capaz.
O deciframento se resume ao que faz a cifra, ao que faz o sintoma, é algo que, a
partir do real, sobretudo, não cessa de se escrever.
Chegar a domesticá-lo até o ponto em que a linguagem possa com ele produzir
equivocidade, é por aí que se ganha o terreno que separa o sintoma do gozo fálico.
A via do nó
Para que haja nó borromeano, não é necessário que minhas três consistências
fundamentais sejam todas tóricas.
Como talvez lhes tenha chegado aos ouvidos, vocês sabem que se pode considerar
que uma reta morde sua extremidade ao infinito.
Então, dentre o imaginário, o simbólico e o real, pode aí haver um dos três, o real
certamente, que seja uma reta infinita. Efetivamente, conforme eu disse, ele se caracteri-
za por não fazer um todo, quer dizer, por não se fechar.
Suponham até que ocorra o mesmo no caso do simbólico. Basta que o imaginário,
a saber, um de meus três toros, se manifeste como o lugar em que seguramente giramos,
para que, com duas retas, um nó borromeano se faça.
Real
Imaginário
Simbólico - -
O que vocês vêem aí, talvez não seja por acaso que se apresente como o entrccru-
zamento de dois caracteres da escrita grega. Talvez seja absolutamente digno de entrar
no caso do nó borromeano. Decomponham tanto a continuidade da reta quanto a do
círculo. O que resta, seja uma reta e um círculo, sejam duas retas, é totalmente livre: esta
é a definição do nó borromeano.
Ao dizer-lhes tudo isto, tenho o sentimento - até anotei isto em meu texto - de que
a linguagem só pode realmente avançar ao se torcer e enrolar, ao se contornar de modo
que, afinal de contas, não posso dizer que não dou o exemplo aqui.
Retirar a luva para a linguagem, marcar em tudo o que nos diz respeito a que pon-
to dependemos disso, não se deve acredicar que eu o faça de bom grado. Preferiria que
fosse menos tortuoso. O que me parece cômico é simplesmente que não vislumbremos
que não há nenhum outro modo de pensar, e que psicólogos, em busca do pensamento
que não seria falado, isto implica que considerern 1 de certo modo, que o pensamento
puro, se ouso dizer, seria melhor.
No que de cartesiano adiantei há pouco, o "Penso, logo sou'', nomeadamente, há
nele um erro profundo. O que inquieta o pensamento é imaginar que faz extensão, se as-
sim se pode dizer. Mas é exatamente isso que demonstra que não há outro pensamento,
por assim dizer, puro, não submetido às contorções da linguagem, a não ser justamente
o da extensão.
Isto em que eu queria introduzir-lhes hoje, e, após duas horas, afinal de contas,
não faço senão fracassar, rastejar, é isto - a extensão que supomos ser o espaço, aquele
que nos é comum, a saber, as três dimensões, por que diabos isto nunca foi abordado
por meio do nó?
Farei um pequeno desvio, uma evocação citatória do velho Rimbaud e de seu efei-
to ele "barco bêbado", se posso dizer - "Eu não me semi mais guiado pelos rebocadores".
Mas não há nenhuma necessidade de rimbarco: nem de poato, nem de Etiopoato 15 para
se colocar a seguinte questão.
Há pessoas que incontestavelmente talhavam pedras - e isto é a geometria de Eu-
clides. Em seguida, eles tinham que içá-las até o alto das pirâmides, e não o faziam com
Mal-estar no imundo
Tratemos ainda assim de ver do que se trata. Nesse real se produzem corpos or-
ganizados e que se mantêm em sua forma. É isto que explica que corpos imaginam o
universo.
Não há nenhuma prova ele que, fora do falasser, os animais pensem além de
algumas formas às quais supomos que sejam sensíveis, pelo que respondem de modo
privilegiado. Isto não é razão para imaginarmos que o mundo é mundo, o mesmo para
todos os animais, se posso dizer. Eis o que não vemos e que, coisa bastante curiosa, o
que os etólogos, as pessoas que estudam os modos e costumes dos animais, colocam
entre parênteses.
Em contrapartida não nos faltam provas de que o mundo, mesmo que a unidade
de nosso corpo nos force a pensá-lo como universo, ele não é mundo, é i-mundo.
Mesmo assim é do mal estar, que em algum lugar Freud registra como o mal estar
na civilização, que procede toda a nossa experiência.
O que há de espantoso é que o corpo contribui para esse mal estar, e de uma
forma pela qual sabemos muito bem animar os animais, se posso dizer, quando os ani-
mamos com nosso medo. Do que temos medo? Isto não quer apenas dizer: a partir do
que temos medo? Do que temos medo? De nosso corpo.
É o que manifesta esse fenômeno curioso sobre o qual fiz um Seminário durante
todo um ano, e que denominei A angústia.
Imaginei identificar para vocês cada uma dessas consistências como sendo as do
imaginário, simbólico e real. O que aí substitui o gozo fálico é esse campo que na figura
em duas dimensões do nó borromeano se especifica pela intersecção que vocês vêem
aqui.
Sentido
Simbólico
Imaginário ~I\
Corpo )
ô Real
Tal como aparecem as coisas no desenho, essa intersecção tem duas partes, uma
vez que há a intervenção do terceiro campo que origina esse ponto cuja constrição cen-
tral define o objeto a. Conforme lhes disse há pouco, é a esse lugar cio mais-de-gozar
que se conecta todo gozo.
Cada uma dessas três intersecções é externa a um campo. O gozo fálico, que es-
crevi com o Jcp, está aqui, externo ao campo dito do corpo - o que nele define o que
qualifiquei como seu caráter fora do corpo.
A relação é a mesma para o sentido no círculo da esquerda, no qual se aloja o real.
Foi por isso que insisti, especialmente na conferência para a imprensa, no fato de que
ao alimentar o sintoma, ou seja, o real, com sentido, não fazemos senão dar-lhe conti-
nuidade de substância.
Pelo contrário, é na medida em que algo no simbólico se restringe pelo que chamei
de jogo de palavras, a equivocidade, a qual comporta a abolição do sentido, que tudo o
que diz respeito ao gozo, e particularmente o gozo fálico, pode igualmente se restringir.
Para isto é fundamental que vocês distingam o lugar do sintoma nesses diferentes
campos. Aí está, tal como se apre~enta na representação bidimensional do nó borromeano.
Imaginário
Corpo
Ics
JA
Ciência~,,--
Representação
Simbólico
Morte
Real
Sintoma
mais estreitamente que se abracem. Não cheguei a colocá-lo em meu texto, mas o que de
melhor podemos nesses famosos apertos, é dizer: "abrace-me bem forte!" Mas não abra-
çamos tão forte que o outro acabe sufocando - de modo que não há nenhuma espécie
de redução ao Um. Esta é a piada mais formidável.
Se há algo que faz Um é mesmo assim o sentido do elemento, o sentido do que
provém da morte.
Digo tudo isto porque, por causa de certa aura em torno do que conto, fazem sem
dúvida muita confusão sobre o tema da linguagem. Não acho de modo algum que a
linguagem seja a panaceia universal. Não é porque o inconsciente está estruturado como
uma linguagem - é o que ele tem de melhor - que, para tanto, ele não dependa estreita-
mente de lalíngua, quer dizer, do que faz com que toda lalíngua seja uma língua morta,
mesmo que ela ainda esteja em uso.
Somente a partir do momento em que algo se desencapa é que podemos encontrar
um princípio de identidade de si para si. Isto não se produz no âmbito do Outro, mas da
lógica. É na medida em que alguém consegue reduzir todo tipo de sentido, que chega a
essa sublime fórmula matemática de identidade de si a si, que se escreve x==x.
Quanto ao gozo do Outro, só existe uma forma de preenchê-lo, e é, falando pro-
priamente, o campo em que nasce a ciência. Como todo mundo sabe, como um peque-
no livro feito por minha filha mostra bem, só a partir do momento em que Galileu fez
pequenas correspondências de letra a letra com uma barra no intervalo, por meio das
quais definiu a velocidade como relação entre espaço e tempo, foi que se pôde sair de
tudo o que havia de intuitivo e de travado na noção de esforço, para chegar ao primeiro
resultado que era a gravitação.
Desde então fizemos alguns pequenos progressos. mas qual o saldo disso, da ci-
ência, afinal de contas? Isto nos dá algo com que nos contentarmos, no lugar do que nos
falta na relação de conhecimento, o que para a maior parte das pessoas, em particular
todos os que estão aqui, se reduz a bugigangas - a televisão, a viagem para a lua.. E
ainda, a viagem para a lua vocês não fazem, apenas uns poucos selecionados 1 mas vocês
os vêem na televisão.
A ciência parte da letra. É por essa razão que deposito alguma esperança no fato
de que, passando sob toda representação, talvez cheguemos a ter alguns dados mais
satisfatórios sobre a vida.
Algumas observações
• Como Lacan não enviou para publicação o texto de sessenta e seis páginas ao
qual faz alusão, sua intervenção no Congresso foi objeto de uma transcrição anônima,
surgida em 1975 no boletim Lettres de !Éco!e.freudienne, nº 16, p,177-203; ocupei-me em
estabelecer essa versão. Os esquemas foram aqui refeitos por Gilles Chatenay, e a re.lei-
tura do conjunto foi feita por Pascale Pari.
• A intervenção propriamente elita era precedida de algumas frases, que aqui es-
tão: "Falo esta tarde somente porque ouvi coisas excelentes ontem e esta manhã. Não
vou me meter a nomear pessoas porque isto constitui um palmarés 18 . Esta manhã, em
particular, ouvi coisas excelentes. Advirto-os de que li, depois vocês entenderão por quê.
Explico isto no interior de meu texto".
• A conferência para a imprensa mencionada nessa intervenção aconteceu no dia
29 de outubro desse mesmo ano: no Centre Culturel Français de Rome; estabeleci esse
texto para o volume O triunfo ela religião (Zahar, 2005).
• Normalmente Lacan atribuía :-1 fórmula da mensagem invertida a Benveniste, e
nüo a Lévi Strauss,
• Paul Mathis, René Tostain aos quais Lacan faz uma homenagem, são os membros
da EFP que apresentaram trabalhos durante o Congresso, o primeiro sobre Mishima, o
segundo sobre Marcel Duchamp.
• O que Lacan designa como "um pequeno livro feito por minha filha" é um artigo
de Judith Miller publicado na revista Cahiers pour l'anal)'se, nº9, Seuil, 1968, intitulado,
"Metafísica da física de Galileu", (J-AM)
Notas
TexlO estabelecido por Jacques-Alain Miller (ver nota explicaliva no final do texto). Publicado cm f ranct's na Revue de la
Ca11sefreudie1111e, (79): 11-33.
N.T. Em francês, disque (disco) é homofônica :1 dit ce que (diz isto)
2 N.T. Cf nota anterior, lacan acrescenw outra homofonia. entre Disque-ours, dit ce qu' ours (Disco-urso, diz que urso) e
discours (discurso). fazendo referência ,10 "Discurso de Roma", redigido cm 1953 e publicado nos Escritos com o título:
"Função e campo da fala e da linguagem em psic.inálise". Urso, em francês, também tem a conotação de homem pouco
sociável.
3 N.T. Nessa expressão düque-ourdrome, :1parece outra homofonia, desta vez cm um jogo de pal:ivras com uma expressão
cm alemão que fora muito uülizada por Freud: en1rc ours, urso em francês, e Ur. originário em alemão. Se juntássemos
os jogos de palavras. teríamos algo como: 'o [texto] originário de Roma diz isco·.
4 N.T. Nesta expressão aparece outro jogo de palavras: matrice (matriz) e ma"itrise (domínio).
"PROVE!"
MARTIN OUENEHEN: Qual a ligação que Louis Althusser tinha corn Lacan?
J.-A.M.: Ele lhe ofereceu a possibilidade de utilizar essa sala, colocando-se como seu por-
ta-voz junto à direção da Escola Normal (Éca/e Norma/e Supérieure), da qual era secretá-
rio geral. Ele redigiu um artigo expondo com consideração, em uma revista comunista, o
BEN01T DELARUE: Você obsemou também que a leitura do texto "Função e campo da fala e
da linguagem em psicanáUse''/ora para você um acontecimento.
J.-A.M.: Sim. Evocou-se o charme da pessoa de Lacan, que parecia que olhava as pessoas
de um modo tão intenso, que elas se derretiam como manteiga. Eu não conheci isso, e
não foi por aí que cheguei até Lacan. Também não foi pela sua voz. Cheguei até ele por
intermédio de Louis Althusser. Ele me convocou em seu escritório e me disse: "Gostaria
que você participasse do seminário que vou fazer sobre Lacan." Respondi que não tinha
lido sequer uma linha ele Lacan. Ele me disse: "Leia lacan, vai te agraciar muito." E ele
estava certo, já que cinquenta anos depois eu ainda estou aqui.
A.L.-0.: Mas o que fez- para além do encontro com esse texto, que se entende bem que te-
nha sido determinante- com que Lacan te pegasse e nunca mais soltasse? Você leu Sartre
antes de Wcan, você o encontrou.. Por que Lacan?
J.-A.M.: Não é ele forma alguma comparável. Sartre estava em todo lugar na época. Eu
nem saberia citar o primeiro texto que li de Sartre, talvez suas quatro páginas sobre a
intencionalidade, ou seu artigo sobre Mauriac. Ele era renomado, na época, na crença
popular, por ser o maior filósofo vivo. Quando terminei meu segundo ano do ensino mé-
dio (classe de premiere), e passei por meu primeiro exame nacional (hacca/auréat), antes
de começar a cursar filosofia, uma velha amiga da família queria me dar um presente,
pedi O ser e o nada. Eu o li do começo ao fim, com muito interesse, mas sem relação
especial. Eu o li como li as Meditações de Descartes. Eu respeitava em Sartre um grande
filósofo francês. Mas não me tornei sartriano.
C.L.: Esta autenticidade não está ligada ao fato de que a psicanálise produz uma teoria
articulada a uma prática?
J.-A.M.: Sem dúvida. Mas esta prática não era a minha. Eu tinha exatos vinte anos quando
encontrei Lacan. Sob as repercussões do impacto de Maio de 68 eu entrei em análise,
não por motivos teóricos, mas porque sentia necessidade subjetiva. E me voltei para a
Escola de Lacan pensando que tinha alguma coisa a fazer nesse movimento. Ao mesmo
tempo, fiquei bastante estupefato ao ver Lacan cercado por uma espécie de reverência,
aureolado por um efeito de culto. Jsto, imediatamente, me colocou em conflito com a
maioria dos membros da Escola Freudiana. Eles não conheciam nada de Lacan, cio Lacan
teórico) eles eram beatos. Participei de um seminário durante um ano nessa Escola, por
A.D.: Lacan, que passou muito tempo lendo Freud e comentando-o, dizia que tinha uma
transferência negativa por ele.
J.-A.M.: Sim, no final de sua vida ele disse, finalmente, que escrutava Freud, vigiava-o,
ficava de olho nele e, em contrapartida, sentia sobre si o olhar de Freud. Note-se bem
que as pessoas que amavam Lacan, que ficavam boquiabertas, soltando gritinhos: "Ma-
ravilhoso! Maravilhoso!", suas transferências positivas as imbecilizavam. Um pouco de
transferência negativa, do tipo: "ele diz isso, mas precisaria ainda saber por que", ajuda
a continuar a pensar.
cio conheci Lacan, imediatamente quis protegê-lo. Ele chegou como um proscrito e, no
fundo, tinha necessidade de forças vivas para defendê-lo. Isso me evocava "Aymerillot",
o belíssimo poema de A lenda dos séculos. Carlos Magno é velho, quer conquistar Nar-
bonne, e todos os seus cavaleiros se esquivam. Um diz: "Não 1 eu sou velho e meus
joelhos estalam"; o outro: 'Não, tenho minha mulher, meus filhos, minha televisão ... "
Enfim, não tem ninguém para ajudar o pobre Carlos Magno. Nesse momento, chega o
jovem Aymerillot, com sua voz de menina, voz esta que ainda não mudou. Ele se dirige
a Carlos Magno e diz:
Portanto, eu sempre me vi sob a proteção desse homem mais velho, que chegava
a dar a impressão de sofrer de uma falta. É um pouco o que eu dizia, agora mesmo, a
propósito de Althusser. Com uma dimensão maior com Lacan. Pois, para que exista Ay-
merillor, é preciso que já exist~t Carlos Magno.
A.L.-0.: Lacem sempre foi aracado, lanlo em vida, quanlo hoje. A doxa desconfia, habiru-
almente, do lacanismo. Isso contribui para que você continue lacaniano?
J.-A.M.: Sim, é verdade. Eu gostava muito quando a Universidade rejeitava Barthes, quan-
do considerava que Banhes não era possível, e eu, justamente em 1962. queria demais
conhecê-lo, porque eu tinha lido seu pequeno livro sobre Michelet, extraordinário. Isso
era tudo que lera dele, na época, e perguntei se ele dava aula. Ele estava começando seu
seminário na Escola de Altos Estudos (llco/e des Hautes Études). Eu fui lá me inscrever.
Éramos vinte, em torno de uma mesa com ele. Na época, ele fora considerado um anáte-
ma pela Universidade, e é verdade que fiquei decepcionado quando constatei, após sua
morte, que ele se transformara no papa, que o citavam em todo lugar, pois eu conhecera
o tempo em que raros eram os "valentes" de Roland Barthes. Quando ele passou à pos-
teridade, isso mudou alguma coisa para mim, sem dúvida.
A.L.-0.: Portanto há uma chance de que Lacan não passe para a doxa?
1
A.L.-0.: Resultado, isto faz dele um autor para se defender sem parar?
J.·A.M.: Quando eu relia essa manhã algumas páginas cio Seminário 11, para o seminário
desta tarde, não as relia com a ideia de me colocar diante das coisas que lera, e mesmo
redigira, mas para fazer, realmente, uma nova leitura. Percebia coisas que não percebera
escutando, lendo ou redigindo, relendo, trabalhando Lacan. É como diz Mahler, a respei-
to do que deve ser uma sinfonia, uma obra: "Se podemos alcançá-la com um olhar, é que
ela perdeu sua magia." O texto de Lacan tem facetas. Muitos fios são tecidos ao mesmo
tempo. Para mim, o natural é fiar apenas um fio de cada vez. Lacan, ele, tece muitos fios,
que se cruzam, e isso em cada texto. Segundo o fio que se segue, não se tem exatamente
a mesma leitura. Isso é muito forte. Há ali uma lógica poderosa, articulada, e a resistência
que Lacan provoca não se deve somente à incompreensão do público. É a própria ma-
neira como Lacan procede que suscita isso. Enquanto O ser e o nada, que é uma grande
obra, da qual o próprio lacan celebra, na ocasião, a elegância, é mais unívoco. Eu não
releio O ser e o nada como releio Lacan, porque Sartre é como as autoestradas traçadas,
com sinalização indicadora a cada dez metros. Lacan é: vira à esquerda, vira à direita,
passa por cima, por baixo, dá uma volta sobre você mesmo, volte para trás!
A.L.-0.: Sua ideia sobre Lacan mudou desde que o encontrou pela primeira vez?
J.-A.M.: Não, eu continuo a estar numa posição protetora para com ele. Tive essa atitude
de proteger Lacan um pouco como Guilherme D'Orange, dos Países-Baixos. Chamavam-
-no de "o Grande Protetor". Jamais havia desenvolvido esse traço de minha relação com
Lacan, antes desta noite, nunca o havia formulado assim. No fundo, eu não era sim-
plesmente o cavaleiro do velho rei, mas seu protetor. Fiz o que pude, realmente, para
protegê-lo, e até o fim, quando ele estava velho e doente. E, em seguida, me esforcei
para impedir que se deteriorasse demais a transmissão de seu ensino. De fato, eu não
vivi, de jeito nenhum, sob a sujeição de Lacan. Sempre me senti livre como o ar, aliás,
com o respeito que merecem seu trabalho e sua pessoa. E isso parece inverossímil, já
que eu tinha 20 anos quando ele tinha mais de sessenta. Para ser protetor, por qual qua-
lidade se é superior a quem se protege? Então, pela juventude, de início! Eu lhe trazia o
apoio de um braço.
sua casa de campo: "Tem uma grande descida, e depois uma grande subida, e depois
você vai ver uma grande casa vermelha. Neste momento aí você saberá que se enganou.
Você volta ... " [risos] É inacreditável! Mas é muito próximo das questões do Seminário,
quando Lacan lhes indica um caminho ... Isso me surpreende, essa questão de proteção!
Eu o coloquei debaixo das minhas asas, das minhas duas asas, que estão em A1iller como
em Aymerillot.
A.L.-0.: Você contava, em uma de suas aulas passadas, que, quando criança, não hesita-
va em enfrentar os adultos para denunciar uma injustiça e proteger...
1
J.-A.M.: Proteger, é isso' Está claro que meu gosto por Robespierre vem daí. O que me
tocava e emocionava quando eu tinha 13 anos era o início do livro de Jean Massin sobre
Robespierre, que começava: "Robespierre não tem rua em Paris." Jean Massin, aliás, re-
negou esse Robespierre, mas não eu. Esse livro começa com a injustiça de Robespierre.
A.L.-0.: Não as injustiças de Robespierre, mas aquelas das quais ele foi vítima'
J.-A.M.: Quais injustiças de Robespierre'! [risos] Robespierre era um tipo formidável! Mas
a grande questão que me coloquei a seu respeito é: como um homem tão exemplar, o
Incorruptível, pôde acabar com a cabeça cortada'
A.L.-0.: Então?
J.-A.M.: Ah, ahl [risos]. Não cortaram minha cabeça! Eu entendi os limites de Brutus. O
limite do "portanto". A lógica é conveniente, irrefutável, de certa maneira, mas a retórica
das paixões é outra coisa. Eu não era bom nisso no departamento. E, além do mais, eu
B.D.: Para ficar na esfera política como você caracterizaria a "política" lacaniana?
1
J.-A.M.: Lacan era um político muito fino em seus negócios. Ele tinha as proteções que
precisava, quando precisava. Se se tornava insuportável para alguns, é difícil reprová-
-lo. Mas soube cair nas graças de Jean Delay, por exemplo, quando era seu anfitrião em
Sainte-Anne. Até o final de sua vida, ele soube ir até o fim com o que queria fazer, e
encontrava os meios para tal. Ele tinha intermediários em todos os tipos de domínios, eu
era um dentre tantos outros. Aqueles que imaginam que Lacan me fez seu herdeiro na
psicanálise, se enganam. Lacan especializava as pessoas: tinha seu advogado, seu ma-
temático, seu linguista, e, eu me ocupava de fazer dos seus seminários livros, era como
seu carpinteiro literário. O resto, Lacan não me entregou de bandeja. Durante dez anos,
antes de seu desaparecimento, eu pude mostrar a toda uma geração como eu compre-
endia Lacan, a noção que eu tinha da experiência analítica, de tal modo que, uma vez
dissolvida a Escola de Lacan, muitos permaneceram comigo, se reagruparam em torno
de mim, e, outros, menos próximos, vieram se aglutinar a esse núcleo. É como com os
Seminários: de certa maneira, eu me escolhi.
B.D.: Tem esta epigrafe concernente a você em "Televisão": ':Aquele que me interroga sabe
também me ler''...
J.-A.M.: Ah, sim! .Isso me deu muito prazer! Lembro-me da maneira como aconteceu. Eu
tinha convidado Lacan para reler as anotações que eu fizera para "Televisão", à margem,
como uma manuductio, segundo o termo medieval. E, ao mesmo tempo, querendo pro-
teger Lacan, sugeri que tomasse distância das minhas anotações, exatamente como ele
fizera com o índice cios conceitos dos B'scritos, escrevendo-o, aproximadamente, assim:
"É um índice que se pretende chave, e que nos vem de alguém que é exterior." Ele situ-
ara meu lugar, e isso me convinha dessa maneira. Sentamo-nos lado a lado 1 trabalhamos
uma meia-hora, três quartos de hora, eu lhe mostrei as anotações uma a uma, e lembro-
-me ainda muito bem de Lacan, de pé diante de sua escrivaninha, já com o sobretudo
nos ombros, e eu lhe disse que ele deveria tomar distância dessas anotações. Digo-lhe
isso, ele pega sua caneta no bolso e, sempre de pé, escreve: "Aquele que me interroga
sabe também me ler." Eu ainda devo ter "Televisão'', batida a máquina, com esta menção
manuscrita.
B.D.: Justamente, sobre esse período, você já evocou essa famosa fala que Lacan te dirigiu
quando da entrevista com François Regnault: "Vbcê é esquerdista, meu caro, então seja
Lêninl''., quer dize0 mais um teórico do que um guerrilheiro. Você disse que releu fre-
quentemente essa entrevista, após a morte de Lacan, e, toda vez, com lágrimas nos olhos.
J.-A.M.: Agora que ela foi publicada, estou liberado. Era, realmente, no momento mais
vivo do esquerdismo, quando existia certa atração pela violência. Houve, então, as pala-
vras de Lacan, que foram importantes para mim.
M.O.: Lacan tarnbém é apresentado como um homem audacioso. Faço referência a esse
episódio ocorrido por volta de 68, Pierre Goldman tentara, um dia, agredir Lacan, e ele
não permitiu. Tem, aliás, uma testemunha no 'Qui sont vos psychanalystes?· que repre-
senta Lacan tirando um soco inglês de seu paletó para mostrá-lo a um analista que viera
lhe pedir um conselho, porque ele havia sido empurrado, maltratado por um paciente.
J.-A.M.: Eu não sei se é um notícia sensacionalista, mas de fato o Dr. Lacan tinha sempre
um soco inglês no bolso de seu paletó.
CLARA SAER: E isso lhe agradava, enquanto antigo esquerdista, que não lhe faltasse cora-
gem?
J.-A.M.: Na minha frente, ele não se serviu disso . .Mas me lembro que, um dia, ele ia par-
tir para algum lugar com seu soco inglês, dizendo: "Eu vou lhe quebrar a cara." Nós o
detivemos. [risos] Ele mesmo me disse, e, creio que é verdade: a coragem física lhe era
fácil. Ele não se continha por causa da barreira imaginária que impede de bater em seu
semelhante, e acreditava na sua sorte, eu penso. No entanto, ele nunca imaginou dar
uma de herói. Ele não tinha nada a provar nesse registro.
O.G.-J.: Será que se pode colocar a coragem física em relação com o que você disse, no
último ano, no seu curso, a saber: que Lacan tinha sido marcado pelo desejo de nunca
ser um sábio?
J.-A.M.: Sim, certamente. Ele nunca fez o papel do sábio indiferente aos golpes da sorte.
Aliás, evocava jocosamente aqueles que aconselhavam a elevar a alma, quer dizer, a
renunciar a tudo.
A.D.: Para voltar à mlação que Lacan mantinha com o tempo, ele dizia ter 5 anos de idade
mental. Talvez não fosse totalmente estranha a urgência na qual ele parecia viver.
J.-A.M.: Sim, é isso, ele vivia no imediato; não adiava nada para o dia seguinte, nem para
um minuto depois. Ele tr,.msmitia um sentimento de urgência. Não queria esperar, queria
tudo imediatamente, e não amanhã. Amanhã, estaremos mortos! Tanto que se ele não
obtivesse o que queria, ficava infeliz. Desde que o tivesse, voltava a ser encantador. Ele
tinha um lado primário, no sentido caracterológico do termo - no que diz respeito aos
seus afetos, em todo caso. Ele desmontava todos os pretextos, as impossibilidades, os
embaraços cio obsessivo. Ele ajudava as pessoas para não deixá-las afundar na sua me-
diocridade, debilidade, covardia.
Eu me lembro da história do índice dos EScritos. Eu lhe sugeri um índice dos
conceitos, o índice dos nomes não me parecendo muito interessante. "Então, faça-o!",
ele me disse. lrisos] Eu faço o índice dos conceitos, as primeiras provas saem, está tudo
ali - 900 páginas! Eu o faço notar que, na ordem em que estão os textos, que é crono-
lógica, dever-se-ia esperar duzentas páginas antes de lê-los no seu estilo atual, e então,
sugiro abrir a coletânea com um texto destacado: "A carta roubada", nomeadamente.
Por consequência, toda a paginação muda. É preciso refazer todo o índice! Não exis-
tia computador! Naquele momento, eu disse a mim mesmo: "Não!" Confeccionar esse
índice me tomara uma semana inteira, passei todo o meu tempo nisso, dia e noite. Eu
estava totalmente decidido a não refazê-lo. Contentar-nos-íamos com esse índice. Chego
à Rua de Lille, Glória me abre a porta e me diz, "Ele está num estado horrível." E, de
fato, vejo o Dr. Lacan agitado, descabelado, sufocado, ainda de penhoar, percorrendo o
apartamento, visivelmente fora de si. Eu me aproximo e lhe digo: "Senhor, eu lamento,
mas ... " - "Pouco importa!" Eu chegara muito tranquilo, bem preparado, me dizendo: "Eu
não posso, estou totalmente no limite, não o farei, o que quer que ele diga." Fui recebido
com gritos. {risos] Enfim, ele me dava a impressão de que eu estava disposto a matá-lo!
A.L.-0.: A impressão que ele podia passar de um certo capricho irresistível, não tem algu-
ma coisa de feminino, no sentido em que se diz: "o que a mulher quer, Deus quer".
J.-A.M.: Lacan só tinha alguma coisa de feminino na exata medida pela qual ele era ho-
mem o bastante para não ter necessidade de jogar, de representar a virilidade. Há mais
de uma nuance entre se fazer de homem, onde existe sempre indeterminação e mas-
carada, e a tranqüilidade de ser um homem, graças à qual você não se priva de pegar
emprestado do outro sexo alguns de seus meios, seus truques.
B.D.: Por outro lado, há um reconhecimento que você não quis: o de figurar com seu nome
nos Seminários.
J.-A.M.: É verdade que ele me disse: "Nós o assinaremos juntos." Isso me pareceu excessi-
vo. Eu não tinha necessidade de me colocar na frente. Mas isso não foi tão bem pensado
da minha parte, pois, mesmo se nossos nomes tivessem sido colocados juntos por uma
conjunção aditiva, ninguém estaria enganado, e a prudência teria sido aceitar a ideia de
Lacan. Todavia, nos contratos, eu apareço como co-autor, o que protege juridicamente
o negócio.
A.P.: Você levou um certo tempo antes de ter interesse clínico pelo ensino de Lacan?
J.-A.M.: Inicialmente, encontrei o Lacan teórico. No ano seguinte, tirei meu diploma, para
escrever sobre John Locke. No ano seguinte, foi a agrégation de filosofia. Depois disso,
tive um "ano suplementar", como se dizia na Escola, durante o qual eu estava mais livre.
Essa história do índice aconteceu no começo desse ano aí. Em 67-68, vivendo em Paris,
fui ensinar em Besançon, onde havia um posto de assistente, E, depois, chegou maio de
68. Ali, no seu Seminário, Lacan me comparou - sem dizer meu nome, mas era de mim
que ele falava - a São Paulo, caindo de seu cavalo a caminho de Damasco. Ele pensava
que tinha me perdido, Esta comparação com São Paulo não era ruim, Muito mais tarde,
quando comecei a propagar a boa palavra através do mundo, cheguei à cidade de São
Paulo, e evoquei essa comparação. Após minha escapada de 1968, que durou três anos,
voltei para perto dele. Por não poder entrar em análise com ele, comecei uma análise
com um de seus alunos, que funcionou para mim como substituto, pois minha transfe-
rência se dirigia a Lacan. Eu só comecei a praticar a psicanálise um mês ou dois após
sua morte.
A.L.-0.: Você ressaltou que Lacan tinha o dom de arrancar uma coisinha a mais que não
queríamos lhe ceder. Seus analisantes testemunhara-m isso, efetivamente.
J.-A.M.: Era um talento especial que ele tinha. A força do desejo, como em Verdi, a força
do destino. Isso permitiu a pessoas ultrapassarem a si mesmas. N* conta que, quando
disse a Lacan que iria estudar medicina, ele dobrou o preço de suas sessões. Então en-
tendeu que não poderia fazer seus estudos de medicina. Isso lhe fechou uma porta, mas
lhe abriu outra. Lacan aconselhara Laplanche, em seu tempo, a fazer medicina, mas N*,
filho de médico, tinha outra coisa a fazer. Ele era do tipo: "Você tem tempo livre demais?
Bem, você deverá ganhar o dobro." Provavelmente, isso estava fundado nas grandes
exigências que Lacan tinha em relação a si mesmo. Era ainda a cultura do esforço, ao
passo que agora vocês são moles, todos! (risos] Bom, estou brincando, mas então, podia-
-se sentir melhor, sem dúvida, a alavanca sobre a qual se apoiar. Não é evidente que se
possa imitá-lo, fazer um método. Essa maneira de fazer repousa sobre certa densidade
do ser do analista. É especial, como forma de ajudar as pessoas [risos].
A.D.: Aliás, existem analisantes que não suportam, provavelmente, essa exigência' Mas
Pierre Rey contava que o preço de suas sessões era tão elevado, num dado momento, que
ele começou a escrever mais para poderpagá-las.
J.-A.M.: Ele precisava ter detectado que a pessoa tinha esse talento! Eles podem agradecê-
-lo por essa espécie de resgate terapêutico, sem o que eles teriam continuado, por muito
tempo, na mediocridade, no conforto.
D.G.-J.: No seu curso do ano passado, você apresentou uma "vida de Lacan", que fugia à
biografia. Vi:>eê nào gostaria, então, de colocar-se como o "biógrc,fo" de Lacan.
J.-A.M.: Não posso fazer a biografia de Lacan. Não tenho nem os elementos para tal nem
tempo nem o gosto. Biógrafo, esta posição é para mim impensável, não tenho o menor
interesse por isso. Pelo contrário, gostaria muito de ler uma boa biografia de Lacan,
no estilo ela de Plutarco, ou como aquela de Massin sobre Robespierre, ou mesmo
no estilo americano, como a ele David Me Cullough sobre Truman, por exemplo, mas
não existe nenhuma até o presente momento. Os biógrafos, frequentemente, caem na
armadilha de escrever a história do grande homem, ou cio homem mau. Para Lacan é
mais o homem mau.
+ 2 = 4, Jogo, é necessário que você faça isso"- que se impunha, então, a mim, eu
compreendi que não precisava impor aos outros, senão isso acaba por voltar na sua
cara. Portanto, a lógica funciona muito bem no papel, mas sua aplicação requer certa
dosagem. Justamente, existem as circunstâncias. Como dizia Monsenhor Dupanloup,
há a tese e a hipótese. A tese é, a todo vapor: "Não há dúvida de que isto seja de outro
modo." A hipótese, sob a tese, é: "Talvez, ainda que, considerando as circunstâncias ... "
Um pouco ele jesuitismo na lógica. Espontaneamente, eu gostava ele Pascal e dos jan-
senistas. Gosto sempre de Pascal, mas compreendo muito melhor os Jesuítas, ainda
que, jesuíta, eu não seja.
A.L.-0.: Você tem também a latitude própria para acolher o real de cada um.
J.-A.M.: Tenho princípios e uma orientação 1 mas o que me interessa é ver pessoas que
avancem! Em minha opinião, as pessoas não avançam o bastante nas nossas institui-
B.D.: Lacan tem, realmente, esta reputaçâo de ter tido encontros de manhã muito cedo
com os matemáticos com os quais ele trabalhava, de tel~fonar a Cheng, por exemplo, a
qualquer hora da noite, quando estava em plena atividade, no trabalho.
J.-A.M.: Quando você telefona para as pessoas a qualquer hora, você lhes mostra o quan-
to são importantes para você! E ele mostrava a que ponto, efetivamente, o outro tinha
alguma coisa importante para lhe dar. Ele não telefonava para qualquer um, e as pessoas
para as quais ele ligava ficavam muito contentes. Eram aqueles para quem ele não tele-
fonava que ficavam chateados ...
M.O.: lacan se interessou por muitos domínios! mas ele era cinéfilo?
J.-A.M.: Não. Lacan considerava o cinema como sombras tremulando sobre a parede
- ele me disse alguma coisa assim. Isto não o cativava. Certamente, ele tinha ido ao
cinema, visto Bufiuel, Renoir, A regra do jogo, e ainda outros filmes, ele falara disso.
No tempo em que o conheci, ele nào ia mais ao cinema, salvo quando saía um filme
de Fellini. Ele evocou A doce vida em um seminário. Tendo sido convidado, foi ver
O impérlo dos sentidos. Mas não era cinéfilo nem melômano. Ele ia ao ópera, ocasio-
nalmente. Fomos ver Donjuan, montada por Giorgio Strehler, no Opéra de Paris, por
exemplo. Ele, aliás, jamais escreveu sobre a ópera. Eram a pintura e os livros que o
interessavam. Ele lia muito. E leu muito psiquiatria, a bibliografia de sua tese é con-
siderável, e ele dizia ter lido tudo. Era curioso por tudo, desejoso de ter noções de
tudo, ele tinha, parece-me, o espírito matemático: colocava questões, compreendia,
questionava tudo, cansava seus interlocutores matemáticos. Ele sabia o grego, o latim,
o alemão, lia em inglês, tinha noções de chinês, hebreu, egiptologia. Isso o excitava;
ele não se obrigava a isso.
C.S.: Lacan era bon vivant? Você tem lembranças de fazer r~feiçôes em sua companhia?
J.-A.M.: Ele não era exigente nesse aspecto, comia o que tinha. Ele descia do seu escritó-
rio às 13 horas, todos os dias, do nº 5 para ir ao nº 3 da Rua de Lille, na casa da Sylvia,
onde lhe serviam uma refeição que não tinha verdadeiramente nada de extraordinário:
comida caseira. À noite, era frequentemente no restaurante La Caleche, do outro lado
da rua, depois num restaurante no Quai do Louvre. Sábado e domingo, era Alicia quem
cozinhava no campo. No início, ela não sabia cozinhar, mas chegou a ser, com o tempo,
unia excelente cozinheira, por afeição a ele, creio. E as bebidas, isso também não era al-
guma coisa com a qual ele se ocupasse. Lembro-me de que, num determinado momento 1
quis organizar uma cave: ele a delegou a mim ...
O.P.: Voltemos a esta locução: "Ser lacaniano". O que se entende por isso?
J.-A.M.: Concluindo: cada um é responsável por sua maneira de ser lacaniano. O Dr. Lacan
não era lacaniano, ele era Lacan. As pessoas imaginam o lacanismo que lhes convém,
das têm, portanto, versões muito diferentes dele. Na sua Escola, muitos consideravam
que o maximu.m era se lixar para o vizinho, uma lição de cinismo. Havia, certamente,
cinismo em Lacan, mas ele dizia também: nesta Escola é preciso ser bom camarada.
Então, tinham outros que acentuavam este ponto. Por outro lado, se existiam doze Jesu-
ítas na Escola Freudiana de Paris é que eles pensavam que era bom para a Companhia.
Portanto, cada um com seu lacanismo.
A.L.-0.: E o seu?
J.-A.M.: Aquele que eu difundi pelo mundo comportava certo saber clínico, com os mar-
cadores perfeitamente explícitos. Por exemplo, a prática do passe - que foi abandonada
por todos os alunos de Lacan, por considerarem que o passe destrói necessariamente
uma instituição. Então, a partir cio ensino de Lacan, eu talhei certo lacanismo, operatório
institucionalmente. Isto comportava também ter uma certa doutrina para a Escola. Assim,
a permutação. Nunca teve permutação na Escola de Lacan. Mas me apeguei a isso de
tal maneira que, nas Escolas lacanianas que pude fundar, isto se tornou a regra. E, todo
mundo considera que isso veio de Lacan. E é verdade, é lacaniano - mesmo que isso
nunca tenha sido praticado quando Lacan estivesse vivo. Era a tese, mas as circunstân-
cias se opuseram a isto na época. E depois, fundar uma Escola com duração, Lacan não
estava preocupado com isso.
C.L.: Na sua maneira de estabelecer o texto dos seminários, você mudou de método ao
longo do tempo?
J.-A.M.: Sim. No início, em vida, Lacan recebia o manuscrito e o relia - talvez muitas vezes
de viés, mas com certa atenção em várias passagens. Eu mesmo podia pedir sua opinião
para umas vinte ou trinta passagens difíceis. Isto dava uma garantia: e facilidades que,
evidentemente, eu perdi com seu desaparecimento. Mas, ao mesmo tempo, ele mesmo
não detinha o saber absoluto sobre seus próprios Seminários. Lembro-me no Seminário
1, do esquema em espiral no fim, que não cheguei a recompor. Eu me abri com Lacan,
que também não via por qual lógica ele devia proceder. Ele não se lembrava mais do es-
quema. Por outro lado, lembrou-se de que Sr. Bejarano, que seguia seus semfriários, to-
mava notas. Ele encontrou seu endereço e nós fomos, os dois, à casa dele ver se existia,
nestas anotações, o esquema em questão. Ele não estava lá. Então inventei um esquema
a partir dos elementos que tinha e o apresentei a Lacan. Ele me disse: "Pois bem, está
bem assim." Portanto, tudo era tanto quanto possível verificado, mas, ao mesmo tempo,
eu redigia sem imaginar que tudo pudesse ser reconstituído de modo idêntico a todos
os pontos do discurso. Há coisas que se pode, e não é por isso que se desmaia. Trata-se
de dar uma versão legível, como eu disse de início. Se alguns querem esquadrinhar as
diversas estenografias que existem é completamente possível, e isto permite ver a ampli-
tude e a delicadeza do trabalho que é o meu. Então, se minha orientação permaneceu a
mesma, eu perdi ao longo do tempo a voz de Lacan. Durante uns dez anos, ainda tinha
sua voz nos meus ouvidos. E estabelecia o texto em função dessa voz ali. Eu me apresso
a dizer que não é uma voz alucinatória, não sou a Joana D'Arc da psicanálise! [risos]
Era simplesmente sua cadência, sua maneira de escandir, e seu jeito à moda alemã de
colocar o termo mais significativo no fim da frase, o que em francês obriga a grandes
circunvoluções. Também não é a voz das gravações - que eu não tenho - era alguma
coisa que de algum modo me era própria. Geralmente, Lacan anuncia o termo importan-
te por circunvoluções: "blá-blá-blá ... a saber..." e ele solta um pedaço. E continua assim.
Às vezes, esse termo é um verbo, em geral um substantivo, e a frase toda é construída
para levar até o termo capital e pontuá-lo. Para mim, era impensável não respeitar isto,
porque o próprio texto falava assim. Essa voz se perdeu, num determinado momento, o
que me levou a restituir uma ordem das palavras mais conforme ao espírito do francês,
e, portanto, mais legível.
8.0.: Fora "a voz perdida''., se eu posso dizer assim, sua abordagem do Seminário se mo-
dificou, por outro lado?
J.-A.M.: Sentia que o público tinha mudado, que certo número de referências de Lacan
se distanciavam. Foi com uma preocupação de clareza que não pus mais o grego em
caracteres gregos e os transcrevi em caracteres latinos. Comecei a destorcer suas frases
pela mesma razão. Até então, eu precisava fazer acrobacias para que isso fosse gram~Iti-
calmente possível. Coloquei-me, ao contrário, a remeter as palavras à ordem que a língua
francesa exige.
D.G.-J.: Esta mudança de estilo que você evoca o coloca em relaçâo a um momento preciso
de sua abordagem do ensino de Lacan?
J.·A.M.: Não. Tenho a impressão de que o tempo pedia para eu fazer um esforço ele trans-
mitir a originalidade e o caráter estranho do que Lacan pode trazer. Para se confronrar
com o que é verdadeiramente difícil não há nenhuma necessidade de complicações inú-
teis. Nunca fui a favor de multiplicar os obstáculos. Pelo contrário, tentei sempre transmi-
tir este ensino da maneira mais clara possível. Isso posto, é algo muito relativo. Nos seus
últimos Seminários. Lacan fazia frases muito mais curtas, cuja sintaxe não tinha que ser
mudada. O problema se coloca mais no começo de seu ensino, em que suas frases er:-1m
frequentemente muito longas, às vezes inacabadas e com uma coerência gramatical du-
vidosa, como ocorre com aqueles que estão expondo. O problema é diferente de acordo
com os períodos do Seminário.
F.L.: Como uocê encontra o equilíbrio, no seu trabalho de escrita dos Seminários, entre o
fato de querer tornar audível a fala de Lacan, sem, por isso torná-la transparente?
J.-A.M.: Não é que eu queira torná-la transparente, mas nos seus Seminários Lacan diz
coisas que é necessário respeitar. No início, eu pensava que as leituras se arranjariam
com seus equívocos 1 com os quais me defrontava, eu mesmo, sem cessar. Se me permito
intervir mais na sintaxe das frases: é para obter um tom mais francês, sempre respeitando
a articulação conceituai. Trata-se de facilitar o acesso do leitor, e que ele não tenha que
sofrer para encontrar o relativo, o antecedente do relativo etc. Trata-se de minimizar a
dificuldade sintática para deixar aparecer, se for o caso, a sutileza ou a dificuldade con-
ceitual, em nenhum caso para reduzi-la. As dificuldades inerentes ao texto permanecem.
F.L.: Existe então uma tensão entre o ensino de Lacan, difícil, às vezes opaco, e seu gosto
pronunciado pela clareza.
J.-A.M.: É justamente por isso que eu pude me interessar por Lacan! Eu não ia me interes-
sar por alguém que fosse claro por si mesmo!
M.O.: Você diz que é o mais sério que você encontrou, mas é o mais dffícil?
J.-A.M.: Não. As matemáticas são incomparavelmente mais difíceis para mim, a partir ele
um certo nível. Minha cabeça não funciona no nível superior das matemflticas, e lamen-
to isto. Eu nunca li Lacan em termos de dificuldade, mas sempre com a ideia: "Ali, eu
alcancei. Ali, eu alcancei. Ali, eu continuo a compreender." Bom. Evidentemente, quebro
muitas vezes a cabeça. Posso passar seis horas, sem perceber, sobre um parágrafo, e
dizer a mim mesmo que não conseguirei nunca. Eventualmente, isso tem uiri lado egip-
tológico: a estenografia é incompreensível, então pego um pequeno pedaço compreen-
sível, reservo-o, tento ver com o que isso pode colar, retomo isso dez a quinze vezes e,
passo a passo, reconstituo um mundo. Estou encantado que as versões da estenografia
original estejam difundidas na Internet, porque quando as comparamos, podemos ver
a diferença. O texto que estabeleço dá outra respiração, temos uma chance de sair das
nuvens e apanhar as articulações.
J.·A.M.: Sobre a consistência. Lacan, eu confio nele, que o que ele adianta não é dito ao
acaso nem para preencher o tempo. Certas passagens são menos equilibradas ou acaba-
das do que outras, e é verdade que ele às vezes muda de opinião de uma semana para
outra. Mas me dei conta de que era preferível confiar nele. Lacan tem base, o que não
é o caso de todos.
C.S.: No ensino de Lacan, o que permite que você se defenda dos ataques de que é objeto,
às vezes?
J.-A.M.: Sua densidade. É um ensino que nâo se deixa facilmente corromper, se posso
dizer assim. Lacan se gabava, aliás, ele mesmo: do que ele chamava de seu "poder de
ileitura". E isso protege enormemente. Quando se lê Lacan, não é somente para se deli-
ciar, frequentemente se faz careta.
B.D.: Lacan tem uma língua que não se parece com nenhuma outra_, mas como ele traba-
lhava seus textos, seus escritos, seu Seminário? Você sabe?
J.-A.M.: Primeiro: ele não falava da mesma forma que escrevia. Certamente, ele falava
como se escreve, mas enfim, ele escrevia de um modo muito mais conciso. Aliás, ele
considerava "A instância da letra" como um semi-escrito porque não está suficiente-
mente conciso. "Quando eu escrevo, não quero deixar ao meu leitor outra saída senão
a boa", ele dizia para justificar que seus textos fossem tão densos. Portanto, a ideia de
deixar um caminho muito estreito para o leitor, e de restringi-lo, desacelerá-lo também,
às vezes, supõe um regime de escrita especial. Quando se lê Sartre, em comparação,
pode-se ir a cem por hora. Se nós perdemos alguma coisa, sabemos que dez páginas
adiante ele repetirá a mesma coisa. Isso dá uma chance ao leitor desatento, principal-
mente àqueles que foram formados à moda francesa, quer dizer, com a arte da disser-
tação. Nos escritos de Lacan, é preciso prestar atenção à menor vírgula. Esta conden-
sação, esta densidade é, sem dúvida, de natureza a preservar o texto por muito tempo.
Ele perde em audiência imediata, mas ganha em duração. Sollers, cuja pena é leve,
rápida e harmoniosa, considera que Lacan escrevia mal. Por que não? Em todo caso,
Lacan não escreve como Sollers. Ele não busca a harmonia, ele foge dela, ele pratica
a dissonância, isso range. Ele relaxa às vezes o clima com um sarcasmo, uma ataque
maldoso, mas abre um sulco, e deixa ao leitor fórmulas que permanecem. Lacan não
é um homem de letras e, se é isso que Sollers quis dizer, ele tem razão. Mas Lacan é,
contudo, um mestre da língua.
M.O.: Você que frequentou Lacan, qual a imagem que aceitaria nos dar dele traha/bando,
escrevendo?
J.-A.M.: Quando foi que eu o vi escrevendo?
A.P.: Era um não-analista que, finalmente, compreendia melhor o que ele escrevia.
J.-A.M.: Sim, que compreendia da sua maneira. Ler Lacan supõe um nível ele coerência
discursiva, significante, e para aceder a isso não há necessidade de ser analista. Isto é:
existem valores cios quais não poderemos nos servir da mesma forma se somos ou não
analistas. Quando ele diz "aquele que me interroga sabe também me ler", ele constatava
que eu sabia lê-lo por causa das minhas pequenas inscrições que lhe foram bem conve-
nientes. Quanto a mim, eu não tentara, em "Televisão'', fazer-lhe perguntas inteligentes.
Minhas questões, como "O inconsciente - palavra engraçada!", não era para ffle fazer
de interessante, eu queria perguntar no nível de todo mundo. Ele é que não conseguia
responder neste nível. Ele disse isso, aliás. Tentamos três ou quatro vezes, sem chegar ao
que quer que seja, e eu lhe disse: "Você deve escrever.'' Ele escreveu. É preciso saber ler
para ser psicanalista, mas pode-se saber ler sem ser psicanalista.
para ele, ela deve ter lhe aberto algumas vias para a feminilidade. Foi ela que teria dito:
"O amor é dar o que não se tem ...
A.P.: A respeito de seus cursos agora, por que razões você não os publica em francês?
J.-A.M.: Eu dou um curso sobre a psicanálise, sem parar, desde 1970, cada vez diferente.
A quarta parte está publicada em espanhol, o resto está para ser feito. São meus amigos
argentinos que fazem isso, a partir das estenografias. Fazem isso com muito cuidado,
competência e gentileza. É publicado pelo editor Paidós, que publica também os Semi-
nários de Lacan. Em francês, é outra coisa. O fato de que não seria meu francês, que
teria que ser reescrito, até agora não consigo assumi-lo. Depois que tiver terminado de
publicar os Seminários de Lacan, talvez me decida a isso. Enquanto isso, ele é publicado,
parcialmente, nas revistas.
A.L.-0.: Abordemos, se você desejar, a questão da relação que Lacan mantinha com a filo-
sofia. Quais filósofos ele encontrou?
J.-A.M.: Sartre e Lacan se cruzaram. Lacan tinha certa admiração por Sartre, não resta
dúvida. O ser e o nada foi importante para ele, bem antes de seu artigo de 1936 sobre "A
transcendência do ego", que comentei no meu curso. Ao mesmo tempo, ele reconhecia
em Sartre alguma coisa do espírito falso.
A.L.-0.: Talvez muitosJilósofos tenham a ideia de que pensar pode estar disjunto das con-
sequências deste pensamento. Isto é impossível em psicanálise já que a teoria indexa
1
uma prática.
J.-A.M.: No entanto, o psicanalista não é um grande condutor do povo. Sua fala tem uma
incidência pelas vias individuais, e, efetivamente, isso dá uma certa responsabilidade:
não se pode dizer absolutamente qualquer coisa, não se pode fazer absolutamente qual-
quer coisa - enquanto Sartre, no seu prefácio ao livro Os condenados da terra de Franz
Fanon, publicado em 1961, diz dos colonos alguma coisa assim: "Mate-os todos''" Ele
esbravejava em sua cama, e, aliás, contra si mesmo, contra o burguês que havia nele.
Tinha alguma coisa de incongruente. Simplesmente, isso só era lido pelos estudantes de
filosofia, que o liam dizendo, "Ah, ele lhes deu um golpe' Ele é formidável'" Isso não
teve outras consequências. O realismo exige, contudo, se perguntar: para que servem as
teorias? O homem que falava seriamente, pensando que a palavra tinha um peso, uma
incidência, era Lacan.
A.L.-0.: Como Lacan, que dec!amva fazer antijilosqfia, foi recebido entre os filósofos'
J.-A.M.: Existiram vários tempos nessa relação com a filosofia. No começo, os filósofos
ficavam estupefatos com Lacan. Nos anos 50, ele participava de não poucos colóquios,
era conhecido e conhecia esse mundinho. Alguns filósofos o respeitavam, o seguiam,
inspiravam-se mais ou menos ern seu trabalho, como Foucault ou Deleuze. No fundo,
Foucault não compreendia Lacan, e ele dizia isto, em todo caso, mas havia uma influên-
cia de Lacan sobre ele. Sobre Derrida, é evidente. E depois, houve o período em que eles
se voltaram todos contra Lacan, após 68. Deleuze e Foucault, prontamente; Derrida, em
um texto em que ele acredita poder dar aula a Lacan sobre "a carta roubada". O grande
impulso anti-fi.losófico de Lacan se situa nesse momento.
A.P.: E Foucault?
J.-A.M.: Foucault, eu conhecia de muito mais perto. Quando tinha 20 anos, Barthes me
convidava muitas vezes para jantar após seu seminário, e Foucault se juntava a nós no
restaurante chinês, quando voltava de Clermont-Ferrand. Lembro-me de ter falado com
Barthes sobre Derrida, de quem eu seguia o curso na Sorbonne, era a primeira vez
que ele escutava seu nome. Foucault fora seu mentor na Escola Normal (École Norma/e
Supérieure).
ATUALIDADE
A.L.-0.: Diz-se, habitualmente, no meio, que Lacan é "um visionário", que ele foi suficien-
temente próximo do real em jogo para poder anunciar um certo número de coisas que
foram verificadas em seguida, tal como o aumento do racismo. Você compartilha esta
ideia?
J.-A.M.: Para Lacan, isso gira em círculo. Logo, existem coisas que não são tão fáceis de
predizer. O que existiu na história não desaparece assim. A propósito das religiões, acre-
ditou-se, no fim do século XIX, que elas tinham acabado. Ele não acreditava que com
a ciência, chegar-se-ia ao fim das religiões. Vemos que, por outro lado, os Estados de
inspiração marxista-leninista, que pareciam tão poderosos e instalados para sempre, não
se mantiveram por setenta anos. Desapareceram sem deixar traço, ou quase nenhum tra-
ço. As religiões, pelo contrário, têm uma vitalidade certa. Entào, em Lacan, essa relação
com o futuro está fundada sobre a ideia de uma certa remanescência: "Vocês pensam
que conquistaram sua liberdade? Esperem um pouco para ver." Quando eu lhe fazia o
elogio do que se passava na China, sua resposta foi: "Sim, mas por quanto tempo'" É o
que há, se somos razoáveis.
A.L.-0.: O que dizer nesse sentido das revoluções recentes na 7imísia, no Egito, na Líbia,
e da revolta síria?
J.-A.M.: Vamos esperar para ver. É a lição de Lacan. Existe um tempo lógico da revolta. Ama-
-se tanto o tempo 1, que não se quer pensar no tempo 2 nem no tempo 3, quando vem a
conclusão. As pessoas querem se regozijar com os jovens insurgentes? Elas têm esse direi-
to. Querem fazer a festa? Que seja feita a sua vontade. Mas o que vai mudar exatamente?
Não que não tenha nunca nada de novo, mas o fundo da novidade é a remanescência.
Lacan ressaltava maliciosamente que uma revolução, no sentido próprio do termo, é uma
rotação que leva ao ponto de partida. O século XX ensina muito a esse respeito: vejam a
revolução russa, vejam a China, para não falar do Camboja. É o nervo da demonstração
de Tocqueville: existe a Revolução Francesa, uma revolução bem sucedida, nela foi dado
o máximo, sacudiu-se o planeta, cortaram-se cabeças para criar a igualdade de condi-
ções, mas é também a conclusão do Antigo Regime. Robespierre e Saint-Just herdaram de
Philippe-Auguste, de Luiz XI, de Richelieu, de Luiz XIV, e abriram a via para Bonaparte,
depois para o reinado de Monsieur Homais. A História é irônica e a razão astuciosa. Fala-
-se da resistência, do programa do CNR, muito bem, mas quem ganhou, definitivamente?
Lacan via isso tal como era, e me disse, na presença de François Regnault, que escreveu e
publicou: pela Liberação, grande festa pela Mutualidade, belos discursos inflamados cios
resistentes, e agora quem vai subir no palco? O Orfeão da Polícia, "que os ferrava, todos."
É Brecht e Genet, ao mesmo tempo. A ordem social, em sua essência, é a Polícia. É o que
observa Hegel em sua Filosofia do direito. Basta levá-lo a sério.
A.L.-0.: Como se dar conta das diferentes maneiras pelas quais uns e outros recebem essas
revoluções.?
J.-A.M.: Tem gente que diz: "Isso vai acabar mal, vai acabar no Islã fundamentalista!", e
há aqueles que objetam: "Mas, de jeito nenhum, todas as esperanças são permitidas, eles
vão se tornar totalmente como nós!" A esperança daqueles que querem que eles se tor-
nem "como nós" é de que eles sejam conquistados pela quantificaçào e pelo consumo.
E, uma vez que eles consumirão, esperarão pelo próximo iPad como a um Messias, se
assim posso dizer, eles cessarão de se curvar cinco vezes por dia, pensa-se, farão fila em
frente às lojas. A confiança que temos em nossos lixos para dar cabo elos grandes valores
A.L.-0.: Lacan não era progressista, mas também não era reacionário.
J.-A.M.: Ele não era progressista, não. E não era reacionário, também não. Ser reacionário
é querer voltar para trás. De Gaulle fizera uma advertência aos franceses da Argélia, em
uma entrevista privada - mas a frase é célebre -: "O que eles querem é que lhes devol-
vamos a Argélia do papai, mas a Argélia do papai está morta, e se não se compreende
isso, se irá morrer com ela", ele dizia, essencialmente. Não havia nada de nostálgico em
Lacan, eu lhes disse. Eu nunca o escutei dizer que estava melhor antes. Ele considerava
sem dúvida que o mundo sempre foi repugnante, e o será sempre ...
A.L.-0.: Quando você diz isso, poderíamos pensar em cinismo. 1l1as não foi exatamente
isso, não é?
J.-A.M.: Digamos que o homem não trabalha para o seu bem. E, na realidade, preferimos
que isso aconteça da melhor forma possível. Um princípio moral mínimo ao qual todo
mundo possa aderir, e que não seja ingênuo, seria, por exemplo, o de Richard Rorty, que
dizia: "Nenhuma crueldade".
C.L.: Fiquemos na atualidade. O que você diz do fenômeno mais ocidental da feminiza-
ção da comunidade analítica?
J.·A.M.: De todo modo, não pediram minha opinião. [risos] A posição do analista, Lacan
a considerava como uma posição essencialmente feminina. Não se analisa a partir das
fórmulas da sexuação masculina, por exemplo, não se analisa o "sim" ou o "não". É "sim"
e é "não", e é também nem um nem outro. O analista não pode se ater ao binarismo.
Uma interpretação, isto já é outra coisa. Escuta-se o que há por detrás do que se diz. Para
retomar uma fórmula de Lacan: "escuta-se o desejo que passa sob". Nada, além disso.
Isto pertence mais à posição feminina.
C.L.: Para continuar na atualidade, no.fim de seu ensino, Lacan entitiu várias vezes dúvi-
das quanto à perenidade da psicanálise. O que ele queria dizer co,n isso, segundo você?
J.-A.M.: Não se pode dizer que a psicanálise seja levada pelo espírito do tempo. A psica-
nálise está mesmo na contracorrente. Ela tem seu fluxo, mas fica na contracorrente.
C.L.: A época atual nâo reseroa o mesmo acolhimento à psicanálise como no tempo de
Lacan. A1as você pensa que Lacan já Jazia referência aos ataques que a psicanálise so-
freria'
J.-A.M.: Existe uma exacerbação das coisa. Quando Lacan era vivo, a psicologia nos
parecia ser um horror. Esta disciplina era ensinada no seio da filosofia, e, num dado
momento, ela ganhou autonomia. Os filósofos eram contra essa autonomia, sabendo
que ela iria dar no pior. Foi aí que Canguilhem escreveu seu célebre artigo "O que é
a psicologia?", que publiquei outrora, que Lacan adorara. Um indivíduo se apresentou
um dia como psico-sociólogo 1 e dizíamos entre nós: "Oh, não é verdade, essas pessoas
existem ... ?!" Ele presumia, além do mais, contribuir para as campanhas de publicidade!
Perguntava-se: a psicologia tem no entanto, suas cartas de recomendação da filosofia,
1
como ousam se servir delas para fazer publicidade? Isso nos parecia, em 1962, o cú-
mulo da abjeção.
Notas
A.L.-0.: Então, foi preciso tempo para apaziguar as tensões e essas "pequenas diferenças\
que impediam os analistas de trabalhar juntos, apesar de uma mesma orientação?
J.M.: Isso tomou tempo, na realiclacle, perto ele dez anos, cios dois lados cio Atlântico.
Acredito que a EEP, a Escola Europeia (que compreendia, em sua origem, os grupos
espanhóis e os grupos italianos, que nâo tinham ainda Escola 1 naquele momento) e a
EEP-desenvolvimento (que englobava os outros países europeus, à exceção da França')
foram criadas em 1990, como a Escola de Orientação Lacaniana, a Escola argentina.
Depois, foi uma após a outra, a criação da Escola espanhola, Escola italiana, Escola bra-
sileira e a New Lacanian Scbool, que agrupa as instâncias de orientação lacaniana nos
países que ainda não têm Escola.
C.L.: Havia a transferência pela pessoa de Lacan e, além disso, era preciso a transferência
pela causa analítica, para que o ensino de Lacan pudesse conJinuar a existir, uma vez
que ele desapareceu,
J.M.: Certamente, um analista produz uma tranferência, como outros, aliás, mas um ana-
lista não se identifica com aquele que sabe, ele sabe que a transferência se endereça ao
sujeito-suposto-saber. Quando ele quer dar um passo a mais na transmissão, é preciso
que encontre como essa transferência pode ir até a própria psicanálise de orientação
lacaniana. Esta passagem é às vezes problemática, pois é necessária uma presença en-
carnada - a presença de um analista é indispensável -, é necessário também um além
desta presença para que a transferência pela psicanálise se produza efetivamente. É isso
que observo nos seminários que os ensinantes do Campo Freudiano mantêm.
A.L.-0.: Contudo, isto não quer dizer que não possa haver tensões dentro de uma Escola.
J.M.: Claro! Uma Escola conhece, quando é o caso, as tensões, mas ela as atravessa de
maneira diferente dos grupos. A unanimidade é bastante preocupante em uma comuni-
dade de trabalho, mas justamente uma Escola é um lugar em que o debate pode acon-
tecer melhor quando se está ali para trabalhar e não para se digladiar e trabalhar para
sua própria promoção.
A.L.-0.: Isto que você chama de "Escolas" abriga a vida institucional de analistas laca-
níanos em um dado país (assim, há a Escola italiana, a espanhola, a francesa, a argen-
tina, ... ) Mas tem também as Escolas para onde convergem grupos vindos de diferentes
países.
J.M.: Sim, um grupo como o de Havana - composto de praticantes decididos, e não sei
por que milagre, lacanianos inabaláveis' - que data de 1991. tornou-se, por exemplo,
componente da Nova Escola Lacaniana. Esta Escola, fundada em julho de 2000, reune
alguns países da América Latina que não têm sua própria Escola, como Peru, Venezuela,
Cuba, Bolívia, Colômbia, Miami - EUA, México e Chile.
Leste Europeu. Antes de fazer parte de uma Escola, é preciso conseguir criar uma trans-
ferência própria para que uma comunidade de trabalho efetiva e autônoma possa nascer.
A.P.: Nas universidades, Lacan é, efetivamente, conhecido através dos estudos de French
Theo1y, de Queer Theory, e Cultural Studies, ou ainda nos departamentos de cine-ma,
onde se utilizam muito as teorias de Lacan sobre o olhar. Trata-se sempre de estudos des-
conectados da clínica.
J.M.: A maioria dos psicanalistas americanos não é lacaniana, na realidade. Tem alguns
que vieram fazer análise na França - aliás, frequentemente em inglês - com os membros
da Escola da Causa Freudiana. Mas, para se difundirem lá, não sei o que conta realmente.
A.L.-0.: Contudo, Lacan é considerado pela Lacanían lnk, a revista novaiorquina, dirigi-
da por Josefina Ayerza e na qual Jacques-Alain Miller, como também Gérard V7ajcman,
ou .filósofos como Badiou e Zizek escrevem ...
J.M.: Josefina Ayerza é argentina, aliás. Todavia, tem um verdadeiro grupo no Canadá,
que se chama "Pont Freudien", em Montreal, há uma década. Mas lá a avaliação devasta
violentamente, ela é mais mundializada que a psicanálise. Nós devemos lutar contra a te-
rapia comportamental aqui, mas lá é pior ainda. A legislação sobre a deontologia do olho
absoluto é terrível lá. Ela deve ser do mesmo gênero nos Estados Unidos: um analista
tem que ser rápido e, talvez, tenha de dar informações sobre seus analisantes! É difícil.
A.L.-0.: Então, no fundo, entre a América Latina ou francófona e a Europa latina (Fran-
ça, Espanha, Itália), a psicanálise lacaniana teria sido aceita primeiramente pelos pouos
latinos?
J.M.: Realmente, Lacan foi muito bem recebido no Congresso de línguas romanas, en-
quanto não era bem recebido na IPA, que já estava muito americanizada. É verdade que
a Escola brasileira, a Escola Brasileira de Psicanálise, que foi criada depois da Escola
argentina, da qual nós ainda não falamos, é de um dinamismo extraordinário: eles têm
uma revista formidável, muitas coleções, Lacan é traduzido em português - e bem tra-
duzido - num prazo muito curto. Há almas que animam a coisa, concretamente. Eu me
abstenho de citar nomes aqui, mas todos sabem quem é a alma da tradução, e da revista
brasileira. Então, sim, a psicanálise é mais desenvolvida nos países latinos do que nos pa-
íses anglo-saxões, incontestavelmente. Tem-se, contudo, um excelente tradutor de Lacan
em inglês na Austrália. Ele trabalha no seu ritmo, ffias traduz muito bem.
C.L.: Como isto que você chama de "reconquista do Campo Freudiano" tem sido encami-
nhado, concretatnente?
J.M.: Quase fazendo um porta-a-porta, após o primeiro falso-semblante. Encontraram-se
alguns psicólogos quase por acaso, pelo fato de cu ter uma sobrinha que vivia em Mos-
cou, onde ela aprendia teatro. Seu professor de esgrima leu o pequeno volume bilíngue
de "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise" que eu dera a ela, e que ela
lhe emprestou, sem tê-lo lido! Este senhor ficou muito interessado. Sua mulher, psicóloga
num grande hospital de Moscou, nos apresentou a pessoas passíveis de se interessar pela
leitura de Lacan. Freud recomeçava a ser traduzido - frequentemente de maneira duvido-
sa-, e o primeiro Seminário do Campo Freudiano na Rússia começou de forma precária.
Ele cresceu como uma bola ele neve. E a bola de neve se estendeu como mancha de
óleo, graças àqueles que ensinam nos Seminários do Campo Freudiano, em cada um dos
países que vetorizam a NLS. As traduções de lacan continuam sendo nossa melhor arma.
Mais de vinte colegas da Europa cio Leste começaram uma análise na França, e um na
Espanha. São os pioneiros.
A.L.-0.: E no Japão?
J.M.: As relações com o Japão datam da época do Lacan vivo. Senhor Takatsusu Sasaki,
um homem impressionante, traduziu os Escritos. Ele não é psicanalista, mas tinha uma
paixão, tanto pelos Escritos quanto por Lacan. Ele trabalhava com um cuidado extraor-
dinário. Outros começaram a traduzir os Seminários de Lacan. Alguns iniciaram uma
análise na França. Tem também traduções de Lacan em coreano, em que uma senhora,
que eu encontrei, uma feminista bastante impressionante, se dedica a elas.
C.L.: Eu vi no Tzoitter que na Índia tem um professor que leu Lacan- eu não sei exatamen~
te em qual língua - e o ensina. Um de seus alunos, uma jovem indiana, virá em breve à
França para se formar e fazer uma análise.
J.M.: Quem sabe? Ela se tornará, pouco a pouco, o pilar de um grupo indiano, como a
senhora do Irã se tornou em seu país .. A partir do momento em que há alguém decidi-
do, não precisa hesitar em ir fundo. É uma aposta. Na Albânia, eu encontrei uma jovem
mulher verdadeiramente decidida, que sabia a quem se dirigir, e, portanto, ela reuniu,
de saída, uns bons cinqüenta "psis" no primeiro Seminário do Campo Freudiano. Eles
estão descobrindo a psicanálise porque mesmo os textos de Freud não são traduzidos
pelos albaneses. Começa-se.
C.L.: A Eurofederaçâo reagrupa todas as Escolas e grupos europeus que fazem parte da
AMP, assim como as associações que gravitam em torno das Escolas ou grupos sem fazer
parte da AMP. É isso'
J.M.: Sim, a Eurofederação de Psicanálise federa todas as associações e grupos existentes.
A.P.: Onde você acha que vão eclodir as próximas Escolas de psicanálise lacaniana do
Campo Freudiano?
J.M.: Não vamos colocar o carro na frente dos bois! Como você pontuou, a reconquista do
Campo Freudiano está para ser feita na China, na Índia e, quem sabe, na África ... Onde
nós não fazemos grande coisa, nem no mundo muçulmano. Nós teremos que lutar, não
somente contra a avaliação, a quantificação, as terapias comportamentais, mas também
contra os integristas. Como articular charia e psicanálise?
A.L.-0.: Para termina1; e já que temos uma ideia dos lugares onde Lacan está vivo no
mundo, trinta anos após sua morte, eu lhe pediria, de hom grado, uma anedota, uma
pequena história que caracterize o homem Lacan, segundo você, que o conheceu tão bem
e por uma razão evidente.
J.M.: Anedotas, todos me pedem isto. Ao Diable: vocês admiram Lacan porque o lêem e o
estudam. E vocês fazem bem, na minha maneira de ver. Permitam-me não satisfazer este
pedido. Vocês são jovens e eu gostaria que existissem Diables em todos os países onde
existe o Campo Freudiano e nos países onde ainda não existe. O mundo mudou muito
desde Lacan. Estou convencida de que o melhor que posso fazer é me consagrar ao seu
ensino e ao desejo que ele testemunha para que, ambos, continuem a se transmitir: é
uma verdadeira escolha de civilização, uma aposta essencial no futuro. O futuro, claro,
me parece preocupante, mas este desejo e este ensino permanecem como uma bússola
fiável, e que supõem que cada um coloque aí algo de seu.
Em 2008, a Escola Europeia se tornou a Federação Europeia das Escolas de Psicanálise que integrava a ECF. Depois, ela
mesma se transformou, em 2010. em Eurofederação de Psicanálise, que compreende todas as escolas europeias e nume-
rosos grupos trabalhando em ligação com estas Escolas.
Que conheça bem a espira a que sua época o arrasta na obra continuada de Babel e que sai-
ba sua função de intérprete n:1 discórdia das linguagens". (. .. ) Porque a psicanálise no século
XXI é uma questão de sociedade, um problema de civilização, há uma escolha forçada (. .. ).
Isto quer dizer testemunhar em ato sobre nossa posição, como psicanalistas, não apenas "no
tratamento~, mas também "na cidade"3 .
É a partir de sua ancoragem na nova ordem simbólica que o analista saberá fazer
uso dos significantes mestres, para poder ocupar o lugar de um parceiro que tenha a
A falha no saber encontra no século XXI uma forma particular acentuada pela de-
terminação da contribuição por parte da ciência. Assim uma socióloga descreve a falha
da subjetivação do saber: "O homem democrático quer submeter toda verdade e toda
decisão à sua crítica, mas, ao mesmo tempo, está condenado a crer (. .. ) em milhões de
coisas sobre a fé do próximo". Nossa autonomia intelectual nunca esteve tão afirmada,
mas, ao mesmo tempo, nossos juízos repousam cada vez mais na confiança que estamos
obrigados a conceder ao próximo. Não se trata apenas da investigação científica e de
sua crescente especialização. O progresso técnico-científico rapidamente torna obsoleta
a organização da vida cotidiana e supera as capacidades ele compreensão da maioria de
nós. De tal modo que, mais do que nunca, dependemos estreitamente dos outros, ao
mesmo tempo em que não cessamos de afirmar nossa irredutível individualidade e nosso
direito absoluto ?1 autonomia intelectual''4.
A via do igualitarismo contemporâneo com sua exigência de transparência afe-
tou especialmente o estatuto do sujeito suposto saber na experiência da psicanálise.
Diante da concorrência do modelo cognitivo-comportamental, que reduz o terapeuta a
um técnico a serviço da cura de seu "cliente", a psicanálise americana pretende reno-
var os semblantes da psicanálise, propondo um tratamento estritamente democrático,
recíproco, liberado de qualquer autoridade suposta. Judith Beck, filha do fundador das
terapias cognitivo-comportamentais, faz a seguinte apresentação da relação terapêutica.
"Os terapeutas colaboram com seus clientes (tomam decisões comuns, como sobre o
planejamento cio uso do tempo de sessão), pedem uma devolutiva ("O que você achou
da sessão? Quer que seja diferente da próxima vez?"). A aliança é reforçada quando
de "lalíngua". É a partir do desnudamento desse real que uma ordem simbólica pode
se restabelecer.
O percurso de uma psicanálise se inaugura pela instalação do Inconsciente trans-
ferencial pelo laço associativo de dois significantes S1---.s2 • E termina com um horizonte
no qual os significantes mestres do sujeito se isolam dos múltiplos laços que haviam
tecido. Eles adquirem uma dimensão real. Seu retorno às cadeias identificatórias se torna
impossível 1 S1 se encontra apartado de S2 •
Nesta perspectiva, sempre ficarão significantes que não estarão sozinhos o bas-
tante e não esperamos que todos os significantes mestres de um sujeito se produzam
deste modo; basta que alguns o sejam suficientemente. Um sujeito, depois das primei-
ras sessões, evoca as três gerações de desejo que provocaram o embaraço no qual se
encontra. Primeiro o mau matrimônio do avô, cujos filhos incomodam a família. De-
pois uma mãe que maltrata seus próprios filhos. Finalmente, ele, o filho que se divorcia
aos quarenta anos, com a firme intenção "de não fazer sua mulher sofrer", enquanto se
produz, claro, exatamente o inverso. Será necessário, no curso da análise, desenrolar
esse novelo emaranhado.
Os significantes mestres circulam entre as gerações, para além dos indivíduos. La-
can podia falar da transmissão de uma bofetada por várias gerações7. Produzi-los consis-
te em liberar o sujeito de sua ingenuidade e de sua perplexidade e percorrer o labirinto
de gozo no qual a repetição, a culpa, a agressividade, a depressão e a agitação desvai-
rada se enlaçam. Será preciso isolar os significantes familiares que, na sua contingência,
contribuem com a formação e a estabilização dos modos de satisfação que constituem o
fantasma. Deste modo, passamos do desenvolvimento da cadeia significante às relações
do sujeito com os objetos de seu gozo %• a.
A passagem se dá graças à dupla função do psicanalista. Por um lado, ele é o en-
dereço das demandas do sujeito; por outro, lugar do objeto que deteria a chave do gozo
impossível a-%.
A identificação de um modo de gozar não é idenrificação a um modo de gozar. É o
que nos ensina o final do texto "A direção do tratamento ... '*. Enquanto a psicanálise da
época visava a identificação do sujeito com seu fantasma, Lacan mostra como o sujeito
é remetido pela pulsão, à contingência do amor. O fantasma pode "ser atravessado". A
identificação de um modo de gozo modifica o que entendemos por identificação. Con-
forme mostra o seminário de mesmo nome, o desenvolvimento de uma série na qual se
misturam significantes e valor ele gozo: (l+(a)), permite definir um valor de gozo para
toda a série. Foi deste modo que Lacan esclareceu os debates nos quais a psicanálise
se atolava entre a transferência como repetição da cadeia significante e a transferência
no presente. articulada à exposição do fantasma na realidade da sessão. Ela não se dá
sem restos.
que se produz "quando os tratamentos duram muito tempo", mas em que o sujeito não
"submerge" no furo do soprador. Ele condensava o obstáculo com o qual se chocaram os
testemunhos de passe. Aquele que era o filho da mamãe, quando .se tornou homem com
mulheres, continuava querendo seduzir a Escola no procedimento cio passe. Aquela que
era a filha de seu pai e rechaçava a mãe, havia gostado do passador homem e detestado
a passadora mulher. O homem marcado pelo segredo familiar transporta consigo uma
atmosfera ele clandestinidade no dispositivo. Aquela que foi marcada pela solidão na in-
fância quer ser adotada pela Escola e encontrar ali sua nova família 16 . Esta declinação dos
restos mostra a presença cio fantasma em profundidade. Como pode, então, se produzir
a imersão? Lacan dá uma indicação bastante precisa: é preciso que o sujeito descomplete
o sintoma cio Outro. "l~ necessário haver sido formado como analista. Somente quando
está formado é que 1 de tempos em tempos, isso lhe escapa; formado é ter visto como
o sintoma, isco se completa"n. É pela incompletude que se produzirá o salto no furo.
Isto supõe que sejam franqueados os restos ele identificação fantasmática e os restos ele
identificação com o analista.
O princípio da falha do ato analítico reside, em última instância, na identificação
com o analista. Ele se dá sob duas formas distintas. Por um lado 1 existe a identificação
com o analista como aderência ao psicanalista que foi o instrumento da operação analí-
tica. O sujeito se torna analista como o seu analista quer, ou como ele é.
A identificação com o analista se faz na sombra desses jogos narcisistas onde um
está conforme à imagem do outro. Identificações fantasmáticas e narcisistas se recobrem
como nos "jogos ela orelha com as ondas com os quais se encarnavam os poetas manei-
ristas"18, nos dizia Lacan.
A identificação com o analista leva também à marca da aderência a um .ideal ou a
uma norma do que seria o analista. Ela impede o abandono dessa perspectiva. O esforço
ela comissão do Passe é deixar de conceber a existência de um analista como exceção a
uma regra, mas, a partir da exceção, decifrar uma faceta do que é um analista. Partimos,
então, não cio que é comum ou corrente, mas antes do que é inabitual. É adotando esse
ponto ele vista que podemos dizer que "Cromwell foi julgado o Inglês mais típico de seu
tempo, simplesmente porque foi o mais bizarro?" 19 . Esta lógica da singularidade é aquela
em que se colocam em jogo o vazio e o gozo, para além dos significantes mestres que
fazem a lei para cada um.
É mantendo uma topologia que diferencie os verdadeiros e os falsos furos, que
pode ficar aberta a singularidade do modo de gozo, fundamento da ordem simbólica de
Lalíngua, corpo por corpo. O modo de gozar se refere ao corpo, sem por isso reduzir-se
a ele. Ao responder à angústia que nos captura, temos uma oportunidade de responder
ao convite que faz Demócrito na leitura que Lacan nos propõe em Mais, ainda e em "O
aturdido". O átomo de Demócrito, como o sinthoma de Lacan, é, ao mesmo tempo, cor-
Notas
Texto publicado originalmente no boletim Papers, (]): Boleti11 Electrónico de! Comité de Acció11 de la Esc11ela Una - Sei-
/icei. Versión 2011-2012.
Miller, J.-A. (fev-2005). ''Uma fantasia". Opçào Lacaniana, (42): 7-18.
2 Miller,J-A. (2010).joumal desjoumés, (78).
3 l.acan, _1. 0998). F.scn'fos. Rj: Zahar, p.321 (Ed. Fr).
4 Schnapper, D. [14/07/2010). Extrato da Lição Inaugural dos Enconlros de Petrarca. ln www.femondefr.
5 Beck, J. (12 Juillet 2010). Cog11itive Behauior 71Jerapy: ll(Wbs cmd Realities.
6 Renik, O. (1996). The Perils of Neutrality Psycboana(vlic Quaterfr, I.XV. p.495-517, traduzido por G. I.e Gaufey, et al.
7 Lacan, J. 0957/1966). •la psychanalyse et son enseignement•. ln Escrits Paris: Le Seuil, p.448-449.
8 Lacan,J (1979). -La Dirección de la Cura y los princípios de su poder,. ln F_Krilos 1.Siglo XXI, p.270-274.
9 Ledairc, S. (1968). •le rêve à la licorne•. ln Psychoana/yJer. Paris: I.c Seuil, p.116.
10 lacan, J.{1964/1966). •Position de ]'Inconsdcnc,. ln Ecrits. Paris: Le Scuil. p.842.
11 Lacan, J. (2001). •Télévision•. ln Azttres Ecrits. Paris: Lc Seui!, p.544.
12 Lacan, J. (2009 [1970-711). O Seminán·o, livm 18: De um discurso que 11âu fosse semb{allle. Rio de J:meiro: Jorge Zahar,
p.76.
13 Lacan, J. 0975/1976). Yale University, 24 de Noviembre 1975. Sei/icei (7) : 35 ; 361.
14 !d., ibid., p.35.
15 Lacan, J. [1968]. Le Séminaire, Livre XV, L'ade psychanalitiquc, 31 janvier,1968, inédit.
16 Miller, J.A. [20081. • Conférences en france Culmre •. Historias de Psicoanálisis, inédilas.
17 Lacan, J. 0966). Ecrits. p.681. Tomemos o seguinte exemplo no qual vemos que junco et sonhos estão cm espelho: •A
sombra dess:1 flor vermelha/ e aquela dos juncos pensos/ pareciam estar ali dentro/ os sonhos da água que adormece•.
Tristan L'Hermitte. Promenoir de deux amants. ln Les amours. 0938).
18 Lacan, _1. 0975). Yale University, 24 de novembre 1975. Op.cit., p.35.
19 Geem.. 0973). Bali, interprétation d'1me cu/ture. Paris: Gallin1:1rd, p.45.
20 Demócrito, fragmento BI56 DK. As querelas da interpretação ''Dcnos" de Demôcrito e sua import:'incia são valorizados
por Bárbara Cassin na parte em que ela redigiu "li n'y a pas de rapport scxuel. Deux leçons sur 'l'é1ourditº de Lacan'',
Alain Badiou e Barbara Cassin, Fayard, p.62 e seguinles.
Jacques Lacan não se deteve diante do que ele mesmo nomeou como um "fra-
casso" de sua primeira "Proposição ... " sobre o passe; aí reside para mim o interesse do
"Prefácio à edição inglesa do Sen1inário 1r1. Esse texto mostra que ele não cessou de
perseverar em sua pesquisa quanto ao fim de análise, sempre ancorado em sua prática,
pois recebeu seus analisantes até o fim de sua viela. Trinta anos após sua morte, nós
ainda nos debruçamos sobre os resultados de seus trinta anos de prática analítica, expe-
riência da qual ele extraiu a matéria de seu ensino.
Esse texto nos revela também sua paixão por esmiuçar a posição feminina, a tal
ponto que acabará por escrever seu matema, que ele nos legou. Levar adiante seu sonho,
o mais longe possível, mais longe do que Freud, aresta uma posição subjetiva deterrnina-
da, a sua, que o conduziu a defrontar-se com "o insuportável da questão feminina para
um homem"2 • Uma das implicações de tal defrontação é que "a posição do analista é por
excelência uma posição feminina" 3 .
No meu caso, o passe permitiu encontrar um modo singular de viver a feminilida-
de para além da via normalizadora elo casamento. Fazer-me responsável por essa posição
passou menos pela questão de saber como decidir pelo lado do Um ou do Múltiplo em
relação ao parceiro, do que pela assunção do gozo das línguas no plural. Sob a plura-
lidade dos parceiros, subsistia uma e somente uma modalidade de relação, fixando a
mesma, ao passo que em relação a cada parceiro, tratava-se de fazer par diferentemente
- o fato de que essa modalidade seja única permite, inclusive, que outras singularidades
se instituam e renovem sua relação com um mesmo parceiro, por exemplo. Se Uno,
Da proposição ao relatório
Assim, esse texto, o último do volume dos Outros Escritos, tal como Jacques-Alain
Miller o concebeu em 2001 5 , nos ensina sobre a nomeação do Analista da Escola, o AE,
de modo discreto, mas talvez mais seguramente do que a "Proposição de 9 de outubro
de 1967 sobre o psicanalista da Escola",
Trata-se antes, nos diz Mil[er, de algo da ordem de um "relatório" da experiência
de passe, uma vez lançada a proposiçf10, em que a atenção se focaliza entre recalque e
transferência, para reconhecer um estatuto transferencial do inconsciente e constarar,
1
a favor do advento do fim, e sob a égide de uma inegável satisfação, que esse estatuto
mudou e se tornou real.
Todavia, e porque o ensino contido nesse último escrito se prolonga na "Orienta-
ção lacaniana", devemos registrar que a transferência nos abra outra perspectiva sobre
o inconsciente real: "como exterior ao sujeito-suposto-saber, exterior à máquina signifi-
cante que produz sentido'". Lacan situa essa perspectiva no lugar em que se produz uma
"disjunção entre o inconsciente e a interpretação" 7.
Como boa lógica lacaniana, era preciso submeter essa profissão, recém-chegada na
histoeria, à prova da verdade com a qual sonha a função dita inconsciente. 'É assim que
Lacan faz aparecer o passe nesse último escrito: como uma miragem, uma miragem da
verdade, certamente, "mas que não é menos mentirosa com relação ao gozo impossível
de negativar''8 . Cito-o: "A miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira, [... ]
não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise" 9 .
A experiência do passe nos mostra que há um além da metamorfose, e que ele
não se modifica; foi o que Lacan marcou com o nome de sinthoma: o ser de gozo que
permanece rebelde ao saber. A relação entre o gozo e o sentido não se presta a uma
travessia, resta "um gozo opaco, que exclui o sentido" 10 •
O último dos Outros escritos de Lacan, portanto, coloca maior acento "sobre a ver-
dade do que sobre o saber, e mesmo sobre a verdade mentirosa, ou seja, sobre a ficção
do passe, enquanto antes !.J o passe aparecia mais como um fato" 11 . Esta expressão foi
pinçada como tema do colóquio que aconteceu em Strasbourg em dezembro de 1993:
"O passe, fato ou ficção" 12 .
Mas esse deslocamento do fato do passe à ficção do passe encontra seu funda-
mento em uma proposição - desta vez de ].-A. Miller - sobre os dois regimes do passe,
distintos conforme os ordenamos com relação ao saber ou à verdade, pois esse último
escrito evoca mais uma experiência de satisfação do que uma demonstração de saber.
Assim, o passe do sinthoma resulta mais do vivenciado na experiência do que a
ideia da "Proposição ... ", e o legado desse "Prefácio... " é proveniente dos últimos desen-
volvimentos do ensino de Lacan, particularmente a partir do seminário O sinthoma, em
que se elabora a doutrina dos nós.
Se o passe na EFP foi efetivamente um fracasso em termos de elaboração de sa-
ber, podemos colocar na conta da ECF um certo forçamento no sentido em que o saber
de passe foi ali colocado à prova com uma obrigação atribuída aos AEs (Analistas da
Escola) e aos membros do júri de produzir e ensinar. No entanto, o fracasso não deteve
Lacan e seus alunos não renunciaram a ele; a experiência prossegue na ECF e em outras
Escolas da Associação Mundial de Psicanálise, a AMP, em que o ensino do passe em
curso continua a produzir efeitos sobre os analistas. Recentemente vimos se confirmar
o que podemos chamar de política da enunciação analisante, tal como ela se inscreve
na continuidade do legado particular que constitui esse último texto dos Outros escritos.
O inconsciente real nomeia; diante disso, a ficção se torna verdade mentirosa; uma
tese radical se deduz disso: "O real é o excluído do sentido, inclusive do 'sentido-goza-
do'. Essa tese, discutida em seu último ensino oral, não foi retomada por Lacan em ne-
nhum de seus escritos: ela confere a essa coletânea seu ponto de fuga" 13 , nos diz Miller.
Lacan concebeu e quis que a nomeação de AE acontecesse fora de qualquer ava-
liação de um percurso institucional e profissional - para o reconhecimento deste último,
ele inventou outro título, o de AME, Analista Membro da Escola.
Se fosse preciso colocar essa profissão de AE, recém-chegada na histoeria, à prova
da miragem da verdade, não seria o caso de demonstrar um saber proveniente da expe-
riência com outros, mas de fazê-lo a partir de um ponto de satisfação singular. É por isso
que o procedimento não se impõe a todos. Para Lacan, não há 'todos', há apenas "espar-
sos disparatados". Assim, escreve ele, logicamente: "Eu o deixei à disposição daqueles
que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa" 14 •
CoúP DE FOUDRE*
Aprender a falar
de ouro, que surgem no caminho de duas meninas e, muito exigentes, decidem o seu
destino. Elas surgem de dentro do buraco de uma cisterna, em cuja borda cada uma das
meninas, em tempos diferentes, senta-se para descansar e fazer uma refeição, após uma
longa jornada na busca da própria sorte. As cabeças pedem para ser alimentadas, pen-
teadas e ninadas com música. A primeira menina, considerada uma boa filha, bastante
afetuosa com o pai, atende prontamente às solicitações de cada uma das três cabeças, e
é, por via de consequência, beneficiada com o dom da bondade e com um hálito suave,
o que lhe possibilita, ao falar, lançar pedras preciosas pela boca. A segunda menina, filha
caprichosa, mais ligada à mãe, recusa-se a prestar favores às três cabeças, que, entào,
reservam-lhe uma vida difícil - literalmente, um caminho de espinhos, que ferem sua
pele e tornam sua aparência pouco atraente - e, ainda, um hálito horrível, que a leva, ao
falar, a lançar cobras e lagartos pela boca.
Como a primeira menina, desde muito cedo, eu estava marcada pelo amor ao pai,
em função do desejo deste de ter uma filha a quem daria o mesmo nome de sua esposa.
O uso do nome da mãe na filha é incomum e não se encaixa na perspectiva de afirma-
ção de uma transmissão, como é o caso quando se batiza o primogênito com o nome do
pai ou do avô. Esse ato de nomeação não se fez sem consequências sobre o lugar que
passei a ocupar junto à minha mãe, bem como junto à minha avó paterna, que morava
com a família e era responsável pela educação das crianças. Por ter como miragem o
destino da primeira menina da fábula, tornei-me uma observadora atenta dos indícios
do que melhor convinha ao outro, para me encaixar e ser reconhecida como uma filha
modelo e de comportamento exemplar. O destino da segunda menina, contudo, perma-
neceu dúbio e em aberto, causando preocupação e medo.
Um equívoco da língua, que insiste em se apossar do nome do primeiro analista,
acaba por de_stacar o significante "cólera", designador, ou nome, do gozo sem sentido
das mulheres de minha família - notadamente minha mãe e avó paterna. Manifestada
na relação con1 a fala, a cólera, que em minha mãe é apreendida no falar denegridor e
depreciativo a respeito do pai e, em minha avó, é expressa em dizeres hostis formulados
contra minha mãe, sua única nora, pois é a esposa de seu filho único. Com efeito, minha
mãe é a própria encarnação desse Outro mal, algo inerente à subjetividade de minha
avó. Desde muito cedo, por conseguinte, não me passou despercebido o deslocamento
cio ódio que minha avó alimentava contra a nora, minha mãe, e era projetado sobre a
neta de mesmo nome. A posição que se configura par~ o sujeito nessas circunstâncias,
é de ser uma tela na qual o outro projeta um elemento insuportúvel de si próprio, estra-
nhamento perturbador que interfere na maneira como é visto.
O primeiro modo do saber sujeito, que é o do objeto a, começa por mostrar-se
como imputado ao Outro. No laço transferencial, há o objeto agalmático - a joia com
tudo que esta representa - e o equívoco sobre o nome, ambos situados do lado do
Outro. O que pode ser dito a propósito do mal-estar advindo da palavra e circunscrito
na cólera diz respeito tanto aos impropérios e atos, julgados injustos, da mãe e da avó,
quanto à exaltação de ambas ao filho e neto primogênito, do sexo masculino. Ao mesmo
tempo, percebe-se a manifestação de algo da ordem do impossível de dizer: a cólera
frequenta a cena dos sonhos do sujeito. Em seguida, à medida que a análise prossegue,
a cólera corporifica-se e, à revelia do sujeito, encena-se em episódios breves de crises ele
cólera - especialmente diante da desorganização cios objetos em casa -, e de crises de
ciúmes, episódicas, relativas a seu parceiro. A cólera e os ciúmes, que emergem no pro-
cesso de análise, são considerados efeitos de desinibição em relação ao sintoma inicial.
São afetos contraditos para a menina que quer ser uma menina modelo e almeja o bem
dizer. Por isso mesmo podem ser situados, preferencialmente, na vertente do sintoma.
Conclui-se, então, que as soluções elo amor e da doação, bem como as identifica-
ções que destacavam habilidades das mulheres da família e, por isso, traziam certo re-
conhecimento ao sujeito, sào impotentes para apaziguar o humor explosivo e desrnedido
das mulheres, em geral. Tendo como suporte o amor de transferência, o sujeito acredita
em uma reconciliação com o Outro pela instalação do novo par mfte/filha, constituído
com o analista. Essa via, no entanto, em vez de mobilizar o sintoma - ou seja, "ensinar
a falar" -, acentua a exclusão característica da fantasia, cujos elementos já começavam
a se esboçar. O termo dessa análise é determinado pela ruptura do analista com a co-
munidade analítica em que eu desejava me inserir. Nesse momento, o sentimento que
predomina ~ e, também, inquieta - é uma certa tendência ao isolamento - reaparece,
portanto, uma das manifestações da inibição, como medida para evitar o turbilhão de
gozo próprio ao universo do feminino.
Uma frase destaca-se do texto de uma conferência proferida pelo analista e afeta
o corpo do sujeito: ele diz, "la voix va au-delà de l'objet". Desencadeia-se uma crise ele
choro, um choro interno, como um grito engolido. No mesmo dia, o corpo é invadido
por uma dor que se manifesta em todas as articulações e deforma até o jeito de andar. Na
sequência, um sonho me permite lembrar de um clube onde passei muitos dias de mi-
nha infância, sobretudo durante as férias, quando meus irmãos e eu éramos deixados lá,
pela manhã, e buscados no final da tarde, depois ela jornada ele trabalho de minha màe.
Esse clube situava-se em frente a um quarteirão de casas construídas por meu bisavô e
onde ele morava, assim como a maior parte de seus filhos. Um quarteirão de casas que
se comunicavam pelos fundos, já que todas desembocavam em uma grande área central.
Nessa área, havia uma horta e árvores frutíferas de todo tipo. Meus primos, irmãos
e eu brincávamos nesse espaço durante o intervalo de três horas em que o clube fechava
para o almoço. Eu passava perto do centro dessa área, sempre um pouco assombrada:
porque sabia que fora naquele local meu avô paterno tinha interrompido sua vida com
um tiro ele fuzil. É da morte no centro do "Jardim do Éden" que advém o desejo do
analista. À procura de um saber, o sujeito se coloca, desde muito cedo, na função de
um pesquisador incansável do que se encontra, para além do pai e da mãe, no limite do
dizer, no desejo que enlaça o trauma da morte com o amor.
Do outro lado da rua, a piscina representa o buraco negro, em função de uma
advertência constante da avó paterna, que sinalizava o perigo de rnorte por afogamento,
repetindo uma frase que soava enigmática: "A água exige os que sabem nadar, porque os
que não sabem já são dela". O espaço enorme do clube é decifrado e as zonas de perigo
delimitadas. Realiza-se 1 assim, um trabalho de organização em prol da vida. Integro-me
à equipe de natação. Aluna aplicada, alcanço certa harmonia na reprodução dos movi-
mentos, que não passa despercebida ao treinador. Então, este me solicita frequentemente
reproduzir algum tipo de nado para a observação dos demais alunos, o que me leva a
imaginar-me sendo vista - o corpo toma a forma do falo.
Os sonhos vão colocar em cena um corpo esvaziado e coberto por véus - o sem-
blante do falo - e o sujeito bem posicionado em relação ao olhar, ele forma a poder ver.
Um desses sonhos causa surpresa: crianças são atingidas por tiros de fuzil - "coup de
fusil" -, vindos de toda parte; os corpos gingam para se defender e acabam caindo no
chão, um após outro. Pergunto-me: "Que é isso? Corpos de crianças caídos, atingidos por
tiros de fuzil'" E a resposta que se formula é: "Coup de foudre'" Essa resposta também
causa surpresa pelo inesperado da substituição - "coup de .fusi/" por "coup de .foudre".
Trata-se de algo inteiramente novo, sobre que não há saber. É preciso lidar com isso.
Se não há desejo de saber, isso se explica porque, na experiência analítica, não se
pretende achar alguma coisa. Minha trajetória de análise revela o lado idílico cio desejo
de saber - ou seja, uma obstinação que gera, de modo especial, inibição quanto ao sa-
ber. Assim, não se trata de descobrir um 'saber', mas de curar-se dele. E, para tanto, é
preciso inventá-lo sob a égide do 'fazer'. No meu caso, a obstinação em extrair um saber
do real promoveu o encontro contingencial com o coup de jàudre - acontecimento de
amor súbito, arrebatamento, trovão, semblante da fúria dos deuses ou tudo isso no modo
de gozo do meu olhar, único capaz de circunscrever a causa e o horror de saber.
Notas
Testemunho de passe apresentado nas Jornadas da EBP-SP: "O gozo feminino no século XXI". São Paulo, 26 de novembro
de 2011.
J,acan 1 J. (2007[1975-19761). O semináriu_. livro 23.- o sinthoma. Rio de Janeiro: JZE, p. 64
Certa vez, ainda jovem, quando me dirigia ao analista, deparei-me com uma picha-
ção em forma de coração: Marcos e Rose. Reparei que o nome de Marcos estava pintado
com uma tinta com tonalidade diferente e borrava outro nome - João - que, originalmen-
te, fazia par na pichação amorosa com a cal Rose. Fiquei imaginando, meio admirado, o
quanto Marcos ousara ao dar conhecimento público, no muro, de que ele agora era o novo
parceiro de Rose naquele coração pichado. Por outro lado, fiquei pensando na humilhação
de João, sendo substituído, assim, por Marcos e, certamente, no coração de Rose.
Solidário a João, pus-me a conjecturar sobre as possíveis razões do romance entre
João e Rose ter fracassado. Àquela altura da vida me sentia sem perspectivas de futuro,
sem projeto, meio ridículo e patético. Experimentava uma realidade pouco favorável.
Penava no amor, considerando a amada sempre como extraordinária e, portanto, rece-
bendo dela sempre de menos. Mas, existe uma alíquota irredutível de gozo, uma parcela
mínima que não se pode declinar e que não pode ser sublimada, sob o risco de morte,
como bem assinalou Freud com o cavalo de Schilda 1 • Trata-se do traço sexual indomável
a serviço da dignidade do homem.
Considero essa passagem um apólogo de meu final de análise. Pode-se dizer a pos-
teriori que na entrada em análise antevi o final nesse apólogo do coração pichado. Em
comentário sobre meu testemunho de passe, Miller ressalta que houve uma mudança do
regime de gozo sem a troca do objeto de amor2 . Portanto, destaca-se que, se antes havia
um gozo João, na medida em que amava o pai e, em vão, tentava compreender a mulher;
já no fim da análise esse gozo migrou para o gozo Marcus, como aquele que ama uma
mulher sem compreender e compreende o pai sem, contudo, amá-lo.
Extraí de anos de minha análise um grão. De uma forma bem humorada, posso
dizer que, mediante o esvaziamento de sentido, uma montanha pariu uma semente.
Nomeei esse rescaldo analítico de passema: "Amar uma mulher sem compreender". Esse
de qualquer engano. Destarte, crer não é nada mais do que a certeza subjetiva de que a
mulher se inscreve como Outro no plano da diferença.
Notas
lexto inspirado nas passagens de Lacan,J. [1974-75]. Seminário 22: "HSJ"', aula de 21 de Janeiro de 1975, inédito, e Kierke-
gaard, S. (2007). Obras do Amor. Petrópolis: Editora Vozes
2 Lacan, J. (2009 [1970-71]). O Semínário, livro 18: De um disrnrso que não Jo.,;,se semblante. Rio de Janeiro: Jorge Z,1har.
p.122. Comentário acerca da passagem em Freud, S. (1910/1990). "Cinco lições de psicanálise''. ln Obras completas psi-
cológicas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: Imago editora, p.50.
3 Miller, J.-A. (2010). "Comentários sobre o testemunho de Sérgio de Campos-. Opção lacaniana, (58): 67.
4 l.acan, J. (2009 f1970-71]). Op.cit., p.34.
5 lacan, J [1974-75]. Op.cit., aula de 21/01/1975.
6 Mora, F. (2001). !Vicolau de Cusa. Sào Paulo: Edições Loyola, p.2085.
7 Michelec, J. (1859/1995). ~A mulher no casamento··. .ln la F-emme. São Paulo: Editora Martins Fontes, p.80.
8 Lacan, J. {1974-751. Op.cit., aub de 21/01/1975
9 Kierkegaard, S. (2007). "A obra do amor que consiste em fazer o elogio do amor'". Op.cit., p.401.
10 1..acan, J. 0985 [1972-731). O Seminário, livro 20: mais. ainda. Rio ele Janeiro: Jorge Zahar., p. 98.
11 Lllcan, J. (2009 11970-71})_ Op.cit .. p.33.
12 Miller, J.-A. (2010). los didnos detalles. /,os c11rsos psícoanalílicus dejacq11es-Alai11 ,Willer. Buenos Aires: Paidós, p.170.
Nesta homenagem a Jacques Lacan, por ocasião do aniversário de 30 anos cio seu
desaparecimento, celebramos, não a morte de Lacan, mas o fato de que ele esteja bem
vivo entre nós. Ao publicar, nesta ocasião, Vida de Lacan, Jacques-Alain Miller faz reviver
a pessoa de Lacan, resíduo do seu Curso de Orientação Lacaniana, onde nos transmite
o pensamento ele Lacan; o que não deixa de ser um paradoxo, já que o próprio Lacan
teria expressado o voto de que sua pessoa não fizesse mais obstáculo ao seu ensino
após sua morte'.
Sabemos que não é de hoje que nos anunciam a morte de Freud e da psicanálise.
Não apenas nos Estados Unidos, para onde, em 1909, Freud teria levado "a peste", mas
na própria França, não faltou alguém para difamar Freud e escrever O crepúsculo de um
ído/0 2 • Para os psicanalistas de orientação lacaniana, Lacan veio tornar Freud vivo e atu-
al em um momento em que os pós-freudianos corriam o risco de apagar a descoberta
freudiana do inconsciente. Desde 1914, Freud defendeu-se cios desvios que ameaçavam
a psicanálise, mostrando como os caminhos seguidos por Jung e Adler se afastaram do
seu 3• Sem nunca ter desistido de reformular a teoria psicanalítica a partir da experiência
recolhida pela clínica, Freud registrará novas ideias e conceitos até o fim de sua vida.
Lacan, cabe aqui dizer, não lhe ficou atrás. A ambição de seu ensino, nas pala-
vras de Miller, era repercutir o traumatismo freudiano. Se Freud escandalizou o mundo,
trazendo à luz a sexualidade infantil, e os psicanalistas, inventando a pulsão de morte,
Lacan pôde dizer que o real talvez fosse sua resposta sintomática à descoberta de Freud4.
Nesse sentido, ele não apenas ensinou-nos a ler Freud e recuperou a importância de sua
descoberta do inconsciente, mas introduziu o real como furo no simbólico, situando-o
no avesso daquilo que funciona. Dizer que o real é o sinthoma de Lacan, é dizer que
ele tinha uma afeição especial por aquilo que rateia, recolhendo, dos últimos textos de
Freud, o indomável da pulsão e os restos sintomáticos de uma análise. Assim 1 se Freud
por Joyce iria ao encontro do sonho de Joyce de acabar com a literatura, o que, para La-
can, seria acabar com uma certa psicanálise 9· Miller chega a dizer que, se Lacan o insta-
lou na posição de redigir seus Seminários, era porque Miller via nele uma faceta: "depois
de mim, o dilúvio" 1º. Lacan inventou o neologismo ;'lituraterra" e deslocou a psicanálise
para o registro do Um, do sinthoma, para além de todo o blábláblá do sentido, mas Miller
não deixa de dizer que ainda chegará o dia em que haverá na Universidade lacanianos
como há joycianos, onde ser lacaniano vai querer dizer ser amante do texto". No en-
tanto, o traço singular do dizer de lacan, sempre amortecido pela "dizência" 12 , também
toca, de outra maneira, o Outro. Pois Lacan sabia fazer ouvir sem dizer, nas entrelinhas,
de modo a ser ouvido apenas por aqueles que devem ouvir.
Quem seriam, então, os que devem ouvir? Posto que estou entre os que não tive-
ram o privilégio ele encontrar Lacan "ao vivo", penso que são aqueles que fizeram a ex-
periência do inconsciente e que, ao deparar-se com seus restos sintomáticos, tornam-se
parceiros ele seu sinthoma, fazem bom uso dele. A partir da minha experiência, eu diria
que é impossível ler Lacan sem passar por uma análise, a não ser que se o leia como um
universitário. Para os que fazem parte, de algum modo, de sua Escola, Lacan está vivo
em seus Escritos e Seminários, e na transmissão que Miller faz deles. Também está vivo
na transmissão que faz cada um do que pode subjetivar do seu ensino, na sua prática e
na inquietação que o toma diante do real de uma clínica que, muito além de qualquer
indicação ou contra-indicação da psicanálise, se serve do ensino de Lacan como bússola.
Lacan está vivo porque nos ensinou a nos orientar pelo real, acreditando poder mudar
o rumo das coisas ao seu redor.
Notas
Cf. entrevista de Jacques-Alain Miller com Martin Quenehen. no programa de rádio Matin d'Été, em 10/08/2011, e Lacan,
J. /15/01/1980]. " D111tre manque ·•: "S'i/ arríve que Je m'en ai/e, dites-vous q11e c"est afin d'ê/re Autre enjin ".
2 Cf. Onfray, M. (2010). le crépuscule d'1111e ido/e. Paris: Grassct.
3 Cf. Freud, S. 0974). "A História do Movimento Psicanalítico", in ESBOPS!~ vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago.
4 Miller, J.-A. (2009). Perspectivas do Seminán·o 23 de Lacan. O Sinthuma. Rio de Janeiro: Zahar, p.17
5 Laurent, E. (2011). "Lacan analisante". Opção Laca11iana. (60): p.68.
6 Cf. o título do livro publicado por Elisabeth Roudinesco por ocasião dos 30 anos da morte de Lacan: Laca11 cnvers et
con/re tou/, traduzido em português como Lacan, a despeito de tudo e de todos. (201 l). Rio de Janeiro: Zahar.
7 Cf. Lacan, J. (15/01/1980]. "L'Autre manque ": "On peu/ se contenter d'êtrc Aulre comme tout /e mo11de_. aprês une vie
passée à vo11/oir /'être malgfP la Loi k.
8 l.acan, J. (2007 [1975•76}). O Seminário, livro 23: O Sinlhoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.16-17.
9 Miller, J.-A. (2009). Perspectivas do Seminário 23 de Laca 11, o Sinthoma, op. cit., p. 142.
10 Miller, ).-A. (2011). Vida de Lacan. Silo Paulo: Litur.uerra, p.18.
11 Miller, J.-A. (2009). "Nota passo a passo". in O Seminán'o. livro 23: o Sinthoma. Op. cit., p.214.
12 Cf. Miller, J.·A. (2009). Per.1pecti1:as do Seminário 23 de J,acan. o Sinthonw. Op. cit., p.9.
Não era, portanto, a primeira vez que eu abria seus Escritos; raras incursões ti-
nham inicialmente me confortado, com a ideia recebida de que era prolixo e inutilmente
Rochedos/colheitas' do saber
fundação ele um saber é que o gozo cio seu exercício é o mesmo do ela sua aquisição. L..]
Não há informação que fique, senão na medida de alguém formado no uso:"
... lizmente, a bela é manhosa: com sua complexidade, suas sinuosidades, o texto
de Lacan é um antídoto poderoso contra a idiotia. Seus "argumentos - observa Jacques-
-Alain Miller - têm sempre alguma coisa ele singular, de retorcido"; ele mina "a posição
do autor como aquele que sabe o que diz de tal maneira que perdura esta dimensão de
suposição, para que, em lugar de verdade, haja precisamente este saber suposto, e não
o autor idêntico a si mesmo". E ele acrescenta: "Lacan pensou continuamente contra
Lacan." 5
Ali onde eu esqueceria que a iluminação não está numa fórmula mágica, mas num
clarão (fulgurante), que ela bagunçou o que eu acreditava saber, no instante brevíssimo
ele abertura no qual, de repente, as coisas se reordenam de outro jeito, o texto me pro-
voca, ele me exorta ao de-lírio 6 e a reler de novo e - na minha vez - contra mim.
Ali onde eu gostaria de me fechar com o mesmo, com a miragem da identidade
de si para si, me abrigar sob a proteção ele um bem-pensar lacaniforme, de um sentido
psicanalítico comum, fui infalivelmente desencaminhada e atraída pelos conceitos em
permanente revisão. Lacan nos entrega generosamente seu métoda7: pensar "contra um
significante. [. ..] Apoia-se contra um significante para pensar"; levar "os conceitos origi-
nais necessários para atacar e ordenar o novo campo", que ele deslinda depois de Freud;
tomar apoio no enigma - cada um de seus escritos é um "texto problemático, de tal
modo que ler Freud [e Lacan] é reabrir as questões".
em um impasse: por mais refinadas que sejam suas construções, elas vacilam diante de
um real que são impotentes para reabsorver. Longe de retroceder, Lacan se serve dessas
construções de saber para continuar a avançar.
Como vai aí todo tipo de material, a consistência de seu texto não se deve apenas
f1 sua coerência interna, deve-se também à resistência que ele nos oferece - da mesma
forma que os acessórios, desvios e digressões que fazem o estofo da fala cio analisante.
Veja-nos aí, reenviados a uma questão que atormentou muito Lacan: como formalizar
uma consistência que não fosse imaginária e que conviesse ao real? 10
Se des-alfabetizar
Mas, o que ele nos quer fazer entender, insistindo sobre o fato de que um escrito
não é 'para ser lido'? Primeiramente, que ele recusa sacrificar à compreensão: "Vocês não
entendem estenescrita [stécriture]. Tanto melhor, será uma razão para que a expliquem."
Em seguida e principalmente, que a arte analítica não jaz no 'ler', mas no 'se ler': trata-se,
mais exatarnente, 'do que não se lê' na fala, do que, nela, se lê mal, de travé0, ou somente
nas entrelinhas. "É a título de lapso que aquilo que significa alguma coisa, quer dizer,
que aquilo pode ser lido de uma infinidade de maneiras diferentes [:] ao que se enuncia
de significante, vocês dão sempre uma leitura outra que não o que ele significa."ll
Pois - será preciso lembrar? - a interpretação não opera pela compreensão, mas
pelo equívoco. Se uma existência humana se deve, no final das contas a pouca coisa,
dito de outro modo, a alguns significantes maiores, reabri-los ao equívoco, à contingên-
cia e ao absurdo cio fora de sentido é permitir ao sujeito jogar com eles, reintroduzindo-
-os em um discurso, gozar deles de outra maneira, separando-se deles um tanto, seja de
um pouco de seu peso, da ficção que eles fazem consistir. Assim, ter a chance de tocar
o real do sintoma 1 observa J.-A. Miller, implica passar "da escuta cio sentido à leitura do
fora de sentido." 12
A exemplo de Joyce, Lacan encaixa, força os significantes, os decompõe e recom-
Ad augusta per augusta ... " Como todo escrito digno deste nome, o texto ele Lacan
não se penetra pela força 1 só fala se o interrogamos, entrega seus segredos apenas à
solidão do leitor abalado por uma busca singular. Impossível conhecê-lo pela simples
exterioridade.
Para Lacan 1 "a originalidade, a contorção própria de seu pensamento foi durante
muito tempo uma espécie de maldição. Então, I. .. ] ele fez uso dela, principalmente a re-
colocou e utilizou o que era sua obscuridade para elevá-la a um paradigma." 17 Analisante
de seu ensino, durante trinta anos ele se serviu de sua própria obscuridade para incisar,
imprensar a opacidade do gozo que agita o falasse,:
Minha leitura de seu tex10 se tece com o trajeto de meu tratamento. No mundo
aberto peh1 "função e campo da fala e da linguagem", foi-me preciso situar 'Acção' e
'canto' em um lugar mais justo e me render àquele do i-mundo (im-monde) 18 . Renunciar
à_fi:>t.âo de um discurso pleno, para aproximar "os limites, os pontos de impasse, de sem-
saída" da fala - nào tem consistência que valha sem furd 9 • Recobrir com tinta as bordas
do inarticulável para suportá-lo.
Se as virtudes encantadoras de sua escritura ficaram comprometidas, a força de
sua enunciação ainda me entusiasma, e a maneira que o silêncio ressoa nela sempre
me toca. Resta esta prenda, bem delicada, sem parar de repetir, alegre também: ser um
pouquinho mais a mesma para admitir e confrontar suas obscuridades e seus enigmas.
Entretanto, uma coisa é clara: a leitura é um exercício solitário, mas não autista; ela
não se inventa e:x nihilo, a despeito da leitura que outros puderam fazer, negando seus
comentários e interpretações. Sem o começo do meu trabalho na Escola da Causa Freu-
diana, este lugar de endereço que escolhi para seu rigor, sua precisão e sua preocupação
pelo mais singular, minha leitura não seria a mesma; talvez ela nem fosse.
O texto de Lacan interpreta o leitor que consente em engajar-se nele; confrontado
com sua própria obscuridade, a do real sem forma, inarticulável que o habita, está a
Notas
N.T. Jogo de palavras envolvendo os verbos: décanter = decantar = clarificar. depurar, purificar, depositar (como em
português); e, canter = galope de ensaio de um cavalo de corrida.
2 N.T. No original: É(-)cuei/(/e)s, palavra com a qual a autorJ faz o seguinte jogo de palavras: érneil = rochedo; recife:
banco de areia: um obstáculo perigoso. Cueille = colho (1' pessoa do singular do presente do indicativo do \·erbo colher);
cueilles = colhes (na 2' pessoa do singular); cueil/ette = colheita.
3 Proust. M. (1988). Sur la /ecture. Arles: Actes-sud, p.37-38. 40 & 41.
4 lacan, J (1985 11972-73)). O Semh1ário1 livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro Jorge Zahar, p.130-131.
Miller, J-A. (2009). Semblants et sinthome. Paris: ECF, p.17 e Miller, J.-A. (1985). Entretien sur le Séminaire awc François
Ansermel. Paris: Navarin, p.44 & 64-65.
6 N.T. Seguinte jogo de palavras: dé-/ire = délire: delírio; dé-lfre: de-ler.
7 lacan, J. (2005[1975-761). LeSéminaire. !iure XXlll. f,e sintbome. Paris: Seuil, p.155. E Lacan, J. (1981 11955-56]). O Seminá-
rio. livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.123.
8 CJ especialmente Lacin, J (2003). "lituraterra . ln Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Ed., p.18.
9 Miller, J-A. (1985). Op.cit., p.44-45.
10 Cf especialmente Lacan, J 11974-75]. Seminário 22: ·'RSI". Inédito.
11 Cf Lacan J (2003). "Posfácio ao Seminário Ir. Op.cit., p.505 & lacan. J 0985 11972-73]). Op.cit., p.51-52.
12 Miller J-A. (junho, 2011). "Lire um symptômc". Mental_ (26):57.
13 Lacan, J. 0985 [1972-73]). Op.cit., p.51.
14 N.T. A autora faz um jogo de palavras com bon-beurt: bonbeur = felicidade; bon hcurt = bom encontro; beurt = choque;
encontrão; topada.
15 CJ Barthes R. (1973). Leplais(rdu texte. Paris: Seuil. Coll. Poirns, p.20-23. especialmente.
16 N.T. ~A resultados sublimes por vias estreitas". Cf Dicionário Koogan l.arousse. 0979).
17 Miller, J-A. 0985). Op.cit., p.25.
18 CJ Lacan J (2003). ·•o aturdito". ln Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar Ed., p.461. E ';A terceira . nesta edição de Opção
Lacaniana.
19 tacan. J (1985 !1972-73)). Op.cit .. & Lacan, J. 11974-75]. Op.cil .. especialmente a liçilo de 11 de fevereiro de 1975. in Orni-
car?, (4):98.
20 Cf Lacan J (junho. 1979). "Conclusions''. IX CongrCS de !'((cole freudicnne de Paris sur La Transmission. ln l.ettres de
l"EFP, (25\219.
LAcAN LóG1co
Nesta homenagem a Lacan feita por Opção Lacaniana trinta anos após sua morte,
quero trazer um traço singular de um psicanalista que esteve à altura de sua época, que
viveu e apreendeu plenamente o que era sua contemporaneidade.
A palavra lógica vem do grego clássico logos - que quer dizer palavra, pensamen-
to, ideia, argumento, razão lógica, et cetera. A lógica foi definida como o estudo formal
sistemático dos princípios ele inferência válida, portanto considerada uma ciência for-
mal, - um conjunto de axiomas e regras de inferência que representam formalmente o
raciocínio válido.
Pode-se remontar a Aristóteles, às raízes da lógica. Por 2000 anos ainda existe o
modo aristotélico de pensar a lógica embutida em nossa linguagem. É a chamada lógica
clássica. A lógica moderna é atribuída a Frege, já no século 19, e outros. Eles modificaram
a lógica, diferenciando-a de Aristóteles, criando símbolos e operações que constituem
as proposições, como o f(x), por exemplo, a função proposicional de Frege, que teve a
preocupação ele formalizar as regras de demonstração do raciocínio e criou a lógica de
predicados. O período atual da lógica começa com Russel e Whiteheacl 1 . Muitos contri-
buíram para o progresso da lógica, inclusive temos grandes nomes ainda vivos, como o
brasileiro Newton da Costa, criador da lógica paraconsistente que admite a contradição
e que deu uma contribuição original à lógica deôntica.
A formalização
Do impossível à contingência
E o Real que não é deduzido a partir ela ordem simbólica? Esse que Lacan cerca
em seu último ensino? Miller o define a partir da contingência. 'Se abstrairmos a ordem
simbólica descobriremos a dimensão da contingência'. 'O Real é o que cessa de ser im-
possível, é o que cessa de não escrever-se' 5. A fórmula milleriana: 'o real é bem mais
contingente cio que impossível', aproxima o real do inconsciente. Isto fala do modo de
surpresa através da qual o inconsciente se manifesta. Nesse ponto a suposição endereça-
da ao analista, como uma manifestação do inconsciente em ato, também é contingente.
Uma contingência que vai se inscrever na análise por meio do significante que faz supor,
fazer seu percurso como necessário, e depois das operações analíticas, lógicas, voltar a
ser contingente. O efeito surpresa cio qual falava Freud, diz respeito a essa contingência
do não se sabe o que se enganchará no analista. A surpresa é outro nome para a con-
tingência.
Notas
Noli. J. e Hohatyn, D. (1991). Lógica. São Paulo: McGraw-Hill e Makron Books do lir.tsil Edi1ora.
2 Lacan,J. [outubro, 19741. "Conferência de imprensa em Roma·'.
3 Cf. tradução publicada neste volume de Opção Lacaniana.
4 Lacan. J. 0985 [1972-73]). O Seminário, livro 20: mais, ai rida. Rio de Janeiro· Jorge Zahar.
5 Miller. J.-A., Perspectivas dos E-:critos e Outros escritos de Lacan. Z.1har editores. RJ, 2011.
UCAN E A ETOLOGIA
da psicanálise. Se, a partir ela etologia animal, a realidade pode ser dominada pela ima-
gem, no homem temos que supor, ele toda realidade, que ela seja fantasmática. Se para
o animal o imaginário é uma articulação do real 1 para o homem temos a ação do objeto
a (como algo que cai do Outro) sobre o campo subjetivo, que determina toda realidade
e mapeia os campos de gozo com possibilidades e impossibilidades.
Podemos então falar de um terceiro momento da elaboração de Lacan, na medida
em que há uma função do semblant que passa a ser decisiva no seu raciocínio, não
somente em relação à imagem, mas articulada também aos outros dois registros. O con-
traponto com a etologia perde a força e deixa de ser esclarecedor, na medida em que aí
a função da aparência se articularia especialmente ao imaginário. Passo a passo Lacan
irá abandonar a etologia como um contraponto da experiência humana, na medida em
que o objeto a torna-se uma referência central das articulações seja do imaginário, do
real ou do simbólico.
Notas
Lacan, J 0981 [1955-561). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.16.
2 lacan, J. 0998119491) "O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência
analítica" [n facrilm. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.99
3 lacan, J. [1%8.169] ''O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro", lição de 7 de maio de 1968.
UCAN E A FILOSOFIA
O mito da lâmina
de Aristófanes, em que a divisão se realiza sem nenhum resto 4• Esse mito é, portanto,
uma resposta à concepção do amor tomado como complementaridade entre os sexos,
presente no Banquete ele Platão. O essencial desse mito é inverter a vertente freudiana da
libido como substância, introduzindo, no seu seio, o elemento da perda inicial do sujeito.
A lâmina funda a libido, apoiada na castração; e institui a perda e seus restos como um
traço que lhe é inerente.
Por meio desta concepção mitificada da libido, Lacan recusa, radicalmente, a pro-
cura de um complemento na imagem patética e enganadora de uma metade que teria de
ser encontrada na relação sexual. É também por essa via que se preconiza a inexistência
de relação sexual entre os seres falantes. A lâmina é, justamente, o signo da impossibili-
dade de reconstituiçào da unidade do ser no amor, concebido como o resgate ela perda
que incide sobre a constituição dos objetos libidinais. Ela equivale, portanto, ao objeto
a, objeto considerado como o complemento anatômico, irremediavelmente perdido pelo
sujeito, por causa da reproduçào sexuada. Para o ser falante, o objeto a é o resultado
da perda de uma parte de si mesmo, que, no entanto, permanece, como resto e como a
cicatriz da castração.
Nesses termos, o amor nào tem nada a ver com a figura esférica da "boa forma"
humana, que se instituiria no encontro de un1 complemento. Desde o Livro 20, do Semi-
nário, Mais ainda, Lacan apresenta uma lógica que constitui uma contribuição inestimá-
vel para a psicanálise: a escritura da lógica ela não-complementaridade entre os sexos.
Graças à função lógica da castração para os dois sexos, lacan acaba por estabelecer que
a paixão entre eles se escreve sob a égide do impossível do gozo, do gozo que bu.sca res-
tituir a parte perdida de si me.smo. Com fundamento na escrita desse impossível, pode-se
afirmar que a invenção ela psicanálise, no âmbito do amor, é o "novo amor'' ou o "amor
mais digno'' 5 que, paradoxalmente, é aquele que inscreve os efeitos da lfunina sobre o
sujeito, a saber: a indignidade pulsional referida ao modo de gozo particular de cada um.
Notas
que designou como "Lacan freudiano" 2 • De início, essa designação me faria tomar mais
facilmente o caminho do primeiro Lacan, sobretudo daquele que se consagrou, inclusive
para além dos meios lacanianos, como o do "retorno a Freud". Entretanto, ao privilegiar
aqui a "mudança de perspectiva" destacada por Miller, eu me coloco mais no rumo do
que ele também pôde chamar de "O ultimíssimo ensino de Lacan"3, em um percurso em
que Lacan, efetivamente, é mais lacaniano do que propriamente freudiano.
Se ouso, então, nesse Lacan lacaniano, encontrar um Lacan freudiano, é por duas
razões. Primeiro porque quando Lacan passa a considerar que 1 como veremos, a sa-
tisfação está em todas as partes, este me parece ser um modo de ele se haver com o
que Freud concebeu como "economia libidinal" e com o que, já em 1894, ou seja, nos
primórdios da psicanálise, foi localizado como "alguma coisa - uma quota de afeto ou
soma de excitação - que apresenta todas as características de uma quantidade (embora
não disponhamos de meios para medi-la), capaz de crescimento, diminuição, desloca-
como um "fetiche" e que um fetiche, segundo Freud, é um objeto com que se tenta
desmentir a castração feminina, um objeto com que se procura fazer existir o que é
realmente inexistente, ou seja, o "pênis da mãe"9. Porém, do desenho de Sreinberg não
podemos inferir apenas o objeto fetiche como equivalente cio falo. Nele, encontramos
ainda o objeto olhar e o objeto oral (porque "O sapato" tem um olho e uma boca), como
também o objeto voz (não apenas por sua relação com a boca, mas sobretudo porque a
parte superior desse desenho tem a forma ele uma orelha), e ainda me parece possível
extrair desse sapato o objeto anal (graças a um deslocamento metonímico do nariz que
é também nele encontrado). Além disso, tal desenho de Steinberg tem a forma ele um
"semblante" feminino, e não apenas porque se trata de um sapato de mulher: ele evoca a
face que eu, sabendo do quanto seu criador gostava do cubismo, qualificaria de cubista
e que diz respeito a uma mulher, ou seja, cio que, segundo Lacan vai mostrar no final de
seu ensino, faz as vezes do que é "um sinthoma para todo homem" 10 •
"O sapato" cairia como uma luva na capa do Seminário 5. Afinal: a capa que temos
- e na qual encontramos, pintado por Ucello, um guerreiro a cavalo - evoca um chiste,
ou seja, uma dessas "formações'' em que Freud soube ler uma espécie de manifestação
"do inconsciente". Trata-se de um chiste que Lacan escutou ele Raymoncl Quenau 11 • As-
sim, no detalhe de Ucello, temos uma transposição ele uma trama significante para uma
imagem enquanto que, com "O sapato", teríamos uma espécie de agregação (ao estilo
de um Arcimboldo contemporâneo) das "formas do objeto a" 12 e, portanto, uma versão
do que eu chamaria de dimensão libidinal (e não apenas significante) do inconsciente.
Sem dúvida, essa dimensão libidinal do inconsciente também está incluída no chiste
que, por sua vez, não é só um jogo de palavras 1 mas um jogo de palavras que provoca
riso, ou seja, satisfação, gozo. Então 1 para encontrarmos a conexão entre o detalhe de
Ucello e o chiste contado por Queneau, é necessário lermos a aula seis do Seminário
5 e cotejá-la com a aula dezoito de E/ partenaire-síntoma, mas, de um modo que mais
direto, "O sapato" provoca o riso já com sua própria apresentação, como uma espécie
de chiste gráfico.
Portanto, não é sem razão que Miller só pôde escolher in extremis a imagem para
a capa do Seminário 5. Efetivamente, o desenho de Steinberg, por ser uma agregação de
objetos muito valiosos na economia libidinal, a evocaçf10 cubista do rosto de uma mulher
e uma espécie de chiste gráfico, ilustra muito mais diretamente que o detalhe extraído
do quadro de Ucello o inconsciente como aparelho de satisfação produzida pelo gram-
peamento dos significantes nos corpos, ou seja, a mudança de perspectiva que, segundo
Miller 13 , será antecipada nas considerações de Lacan, no Seminário 5, sobre o Outro
como "sujeito real", mas que vai se efetivar apenas no Seminário 20.
Sabemos que Freud concebia o "isso" como uma instância onde "toda a libido está
ainda acumulada" e que luta "pelo imediato atendimento e satisfação [Befriedigung] dos
Porém, outra tensão se impõe, segundo Miller, entre o gozo e o que Lacan chamou
de mais-de-gozar. Essa outra tensão me pareceu, a princípio, diferente da operação da
fantasia de tran.sformar gozo em prazer. Mas é importante determinar que essa diferença,
efetivamente: não se sustenta. O rnais-de-gozar pode ser considerado outro modo de
nomear a operação que a fantasia faz funcionar e esta última, como "máquina'', mesmo
rnovida por esse excesso libicli'nal corporificado como mais-de-gozar, não faz com que o
que vive aceda ao gozo. Primeiro, porque no âmbito da própria famasia, intrínseco a sua
lógica, aparece uma carência de gozo, uma mortificação, um desinvestimento libidinal
que, com Lacan, escrevemos como%, sublinhado por Miller como um sujeito mortificado
pelo significante e alijado do gozo. Sem dúvida, é justamente na fantasia que esse sujeito
deslibidinizado (Jf) se aproxima do mais-de-gozar (a), ou seja, das zonas do corpo que
apresentam "um suplemento de investimento", assim como dos objetos ;'onde o ganho
libidinal se concentra'', mas a experiência da fantasia, embora marcada por zonas corpo-
rais e por objetos repletos de gozo, acaba por deixar o sujeito sempre sedento de algo
mai.s e que, no entanto, não se alcança pela via do mais-de-gozar.
Por isso, se a fantasia parece inicialmente resolver a tensão entre gozo e prazer,
acabamos notando que, de fato, essa tensão não é assim solucionada. Na fantasia, o
encontro com o gozo é sempre falho, tal como Lacan, lendo Sade 19 , já nos ensinava, na
Em Cursos mais recentes e que tiveram algumas de suas aulas publicadas em Pers-
pectivas do seminário 23 de Lacan e Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan,
Miller me parece ao mesmo tempo insistir e apresentar ainda mais o que é a outra pers-
pectiva inaugurada com o Seminário Jl1ais, ainda 2º. De fato, na aula desse Seminário
intitulada "O saber e a verdade", Miller vai destacar o gozo assinalado pela letra J (inicial
de Jouissance) envolvida por um círculo que, por sua vez, encontra-se dentro de uma
espécie de saco aberto rumo ao que aparece escrito como "Real". Sem pretender elucidar
todos os termos desse esquema, gostaria de destacar que nele também aparece a letra a,
com a qual se designa o objeto a ou o que é ainda evocado como "mais-de-gozar". Logo
acima do a e bem isolado da letra J que designa o gozo, podemos ler: "semblante''. Então,
é possível concluir por que o mais-de-gozar (a) não se volta realmente para o gozo: ele
é semblante, encontra-se no meio do vetor que vai do Simbólico para o Real, mas não
é propriamente real, enquanto o gozo (J), embora fechado sobre si mesmo, encontra
alguma abertura para o Real. Mas o que significa o gozo estar fechado sobre si mesmo
e voltado para o Real'
Imaginário
S (A)
verdadeiro realidade
Simbólico
8 Real
Semblante, aparência, a
O rochedo e o sinthoma
Nesse poema 1 nota-se que não apenas há sempre um elemento que se coloca
como uma espécie de obstáculo entre os dois outros, mas também que os dois primeiros
que impedem uma relação acabam aparecendo de novo para tentar formar um novo par,
uma nova relação: a mulher é obstáculo na relação entre o homem e o amor, mas surge
ainda como uma parceira do homem; um mundo se interpõe entre o homem e a mu-
lher, embora apareça como outro par do homem. Contudo, no final, um muro assinala a
impossibilidade da relação. Com Miller, permito-me dizer que, até o Seminário 20, esti-
vemos diante ou em torno desse muro e que ele pôde tomar, por exemplo, a forma mais
extensa do campo da linguagem ou a forma mais reduzida do falo, sempre como um
elemento de impasse no que concerne à relação. A concepção do Outro como parceiro-
sintoma é uma mudança nessa perspectiva porque, graças a ela, será possível verificar
que, entre os seres sexuadas, "não só há um muro" que marca a inexistência da relação
sexual, "como também há o sintoma'' e, assim, "a relação de casal, no nível sexual, supõe
que o Outro se converta no sintoma do falasser, em um meio de seu gozo"35 .
Se ';um muro", bem como "um mundo" e ainda "a mulher", no poema de Antoine
Tudal ainda evocam o "rochedo da castração" com que Freud demarcava os impasses
que, apresentados mesmo com os términos das análises, tendiam a fazer da análise uma
experiência "interminável''36 , o sintoma - particularmente a partir do Seminário 20 e com
sua reescrita como sinthoma no Seminário 23 - fará com que mesmo um (inusitado)
Lacan freudiano torne-se, mais do que nunca e de modo exclusivo, Lacan, reinventando,
como antes apenas Freud pôde inventar, a psicanálise.
Assim, onde a ausência da relação sexual tende a convocar um deserto de gozo, o
sintoma pode armar-se como:
Notas
Miller, J.-A. (1997-1998): E/ partenaire-síntoma. Texto estabelecido por Sílvia Elcna Tendlarz. Buenos Aires: Paidós, 2008,
p. 400-401.
2 Esclareço que este texto deriva de minha participação no Seminario Itinerante Clínico, promovido pela Nueva Escuela
L'lcaniana (NEL) entre março de 2009 e março de 2010. Minha apresentação, intitulada "La satisfacción en todos los
rincones~ foi realizada no dia 13 de fevereiro de 2010 em Medellín, Colômbia e .se encontra originalmente publicada em:
Alvarenga, E., Gorostiza, L., Laia, S., Medina, N. G., Pérez, J. F., Spurrier_ P. O.. Tarrab. M. y Udenio, B. Discussión sobre E/
partenaire-síntoma: Seminario Itinerante Clínico. Bogotá, NEL, p. 149-169. Coube-me, naquela ocasião, abordar as aulas
dezoito e dezenove de E/ partenaire-síntoma, Curso ministrado por Jacques-Alain Miller cm 1997-1998. Para o texto aqui
publicado em Opção Lacaniana. traduzi uma boa parte do que apresentei em Medellín. mas também procurei articulá-lo
mais claramente ao tema "Lacan freudiano" e, no que concerne a essa articulaçào, introduzi algumas considerações que
não se encontravam no texto original espanhol e retirei algumas partes que tinham uma relaçào mais direta com a aula
dezenove de E/ partenaire-síntoma.
3 Le tout dernierenseignement de Lacan foi o CÍtulo original que Jacques-Alain Miller deu a seu Curso de 2006-2007.
4 Freud. S. (1894). "As neuropsicoses de defesa··. ln: Edição standard brasileira das obras psicológicas completes de Sig-
mund Freud, v. lII. Rio de Janeiro: Imago. 1976, p. 73.
5 Lacan. J. 0980). "Sêminaire de Caracas". LÂne. Paris. n. 1, avril-mail 1981, p. 30.
6 Freud. S. (1937). Análise terminável e interminável. ln: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. v. XX!Il, p. 247-287.
7 Miller,J.-A. 0997-1998). E/ partenarie-síntoma .. ., p. 389. Para a capa do Seminário 5. ver: Lacan, J. (1999[1957-1958]). O
seminário. Lívro 5: as formações do inconsciente. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro.
Revisão: Marcus André Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
8 Esse desenho pode ser encontrado no site desta revista: hnp://www.newyorkcr.com/magazine/covers/1993 (consultado
em 10 de fevereiro de 2010).
9 Freud, S. 0927/2007). "O fetichismo-. Tn: F.scritos sobre a psicologia do inconsciente. Tradução de Cláudia Dornbusch.
Helga Araujo, Elza V. K. P. Susemi!hl, Maria Rita Salzano e Lui7. Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, p.159-liO.
LO tacan, J. (2007[1975-1976]) O Seminário. Livro 23: osi11tboma. Tradução: Sérgio Laia. Revisão: André Telles. Rio ele Janei-
ro: Jorge Zahar, p.98.
11 Para este chiste, ver a aula seis de: Lacan, J. 0999[1957-19581). Op.cit., p.106-125. Ele também é retomado por Miller em:
Miller, J.-A. (1997-1998). Op. cit., p.389-391.
12 ]Momo, do título dado por Miller à última parte do Seminário 10. a expressão "formas do objeto a": Lac-,rn, J. (2005
(1962-63]). O seminário. Livro 10: a ar1gústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Versão
Final: Angclina Harari. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 235-366.
13 Miller, ).-A. (1997-1998). 1:1 partenaire-síntoma ... , p. 400-416.
14 Freud, S. (1923). O Eu e o Id. ln: F.scn·tos sobre a psicologia do i11co11sciente, v. lll .. , p. 5S.
15 Lacan, J. 0985 [1972-731). Oseminário. Livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: M.
D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.142 e 143. Por sua vez, Miller cita e comenta essa frase em: Miller. J.-A.
0997-1998). Op.cit., p.400.
16 Mille,, J.-A. (1997-1998) Op.cit., p.392.
17 Idem, ibidem, p.392.
18 Idem, ibidem. p.392.
19 Lacan, J. (1962/1998). ''Kant com Sade''. ln: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Joge Zahar, p.776-803.
20 Miller, J. -A. (2009[2006-2007]). Perspectivas do Seminário 23 de lacan: o sinthoma. Revisão do texto: Tercsinha Prado.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Miller,J-A. (2011[2008-20091). Perspectivas dos Escritos e Outros escritos de Lacan. Tradução:
Vera Avellar Ribeiro. Prcp:1raçào do texto: Carlos Augusto Nlcéas. Versão final e subtítulos: Marcus André Vieir;1. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
21 Miller, J.-A. (1997-1998). Ef purtenaire-síntoma .. ., p. 396.
22 Miller, J.-A. 0997-1998). E/ partenaire-síntoma .. ., p. 396. Para a noçiio de ~outu satisfa~•fo"", recomendo. no Seminárío 20,
a aula intitulada "Aristóteles e Freud: a outra satisfação'": J.ac:.m. J. 0972-1973). OS('llliniirio. Livro 20: mais, ainda ... , p.
70-86.
23 Miller, J.-A. (1997-1998). F.! partenaire-síntoma ... p. 396. No Seminário 20, esses termos citados por Miller se encontram
em: Lacan. J. (1972-1973). O seminário. Livro 20: mais, ainda .... p. 96.
24 Miller, ).-A. (1997-1998). E! parrenaire-síntoma ... p. 400.
25 Miller, J.-A. 0997-1998). E/ ptmenaire-síntoma . ., p. 397.
26 I.acan. J. (1972-1973). O seminário. Liuro 20: mais, ai11da .. , p. 94.
27 Trata-se dos versos de um poema Intitulado "Ébauchc d'un serpeme .. (1921): '·Que l'univcrs n·est qu·un défaut/ Dans la
pureté du Non-être". No Brasil, o poeta Augusto de Campos os traduziu assim: ~Que o mundo é apenas um defeito/
Ante a pureza do Niio-Ser"; cf.: CAMPOS, A. (1984). Paul Valé,y: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, p. 29. Por
sua vez. Lacan cita esses dois versos em: Lacan. J. 0960). ·'Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano". ln: Escritos ... , p. 834.
28 Miller,j.-A. 0997-1998). Elparte11aire-síllfoma ... p. 397.
29 Miller,J.-A. 0997-1998). Hlpartenaire-síntoma .. , p. 398 (grifos meus).
30 Em seu aspecto de gozo do significante, o gozo desdobra-se ainda em "gozo da palavra" e ·'gozo da escrita··. mas nfo
vou desenvolver aqui essas duas versões do gm:o do significante Cf. Miller, J.-A. 0997-1998). Fl partenaire-símoma ..
p. 400.
31 Miller, ).-A. 0997-1998). E/ partenaire-síntoma ... , p. 397.
32 Esse novo valor do falo foi aludido por Miller nas aulas 13 e 14 de seu curso Coisas deji11eza em psicanálise. Essas aulas
podem ser lidas em: MIU.ER, ).-A. (2008-2009). Perspectioas dus Escritos e Outros escritos de Lacan ... , p. 171-190
33 Miller. ).-A. 0997-1998). E! parrenaire-síntoma ... p. 401-402. Ver, também: l.acan, J. 095i-1958). Oseminário. Livro 5: as
formações do inconscien/e.. ., p. 119-125.
34 Lacan,j. 0954). "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". ln: F.scn'tos .. , p. 290.
35 Miller, _l. 0997-1998). El parlenaire-síntoma ... p. 408.
36 rreud, S. 0937). Análise terminável e interminável. .. p. 284-287.
Notas
Extraio da tese que fez. jus ao título de "Dou1or em Ciências'", ou1org:1do pela USP - Universidade de São Paulo (Neuro-
logia): "Desautorizando o sofrimento sociahnentc padroniwdo, em pacientes afe1ados por doenças neuromusculareÇ_
Lacan, J. (199811957]). "A instância da letra no inconsciente ou a r.t7..io desde Freud'·. ln Escritos. Rio de Janeiro: Zahar,
p.516. Comentário nosso.
LAcAN ToP01óG1co
Lacan foi topológico do início ao fim de seu ensino. A topologia contém um ele-
mento singular das respostas que Lacan dá à pergunta de Freud sobre qual é a estrutura
do aparato psíquico e como funciona. Na primeira intervenção de seu ensino, em julho
de 1953, Lacan 1 propõe ler os fundamentos dos textos de Freud a partir dos três Regis-
tros, que, diz) são constitutivos da experiência humana: o Simbólico, o Imaginário e o
Real. O número três faz de Lacan um pensador topológico e 1953 é um salto do "a dois"
para o três que, como na trindade, três fazem um. Na clínica, o Sujeito-suposto-saber
introduz o terceiro elemento que é de veia 2 • De estrutura.
Freud dá partida às respostas com o "Projeto"3 . Uma estrutura, os neurônios, e
uma quantidade que circula ou se fixa, fi:xierung. Seu mmor é a nostalgia de um gozo
perdido, das Ding, causa última do desejo. Em "A interpretação dos sonhos'" Freud se
preocupa em deixar muito claro que esse lugar que descreve não tem referência na ma-
téria nervosa, na anatomia. Isto lhe facilita colocar o foco no escópico e no imaginário.
Seu modelo: o microscópio. As imagens, as imago, as Imagem Rainha. A outra cena.
Inclui-se aí a perspectiva da transmissão luminosa, a luz, que Lacan retoma em sua ideia
do ato analítico, que joga luz5, e a constituição da imagem no estádio do espelhd;. Cada
sonho tem seu umbigo, o Real que o fixa.
O último ensino de Lacan tem como centro de gravidade a passagem do A (outro)
para o Um7. Do Ser ao existir. Isto cem a ver com a mudança radical que sofre sua teoria
ao passar da linguagem para lalíngua. Do (A) Outro ao Um - se coloca em primeiro
plano o gozo. O Significante Um produz uma espécie de encarnação do significante no
corpo vivo. Assim, os significantes de lalíngua entram no falasser, produzindo gozo no
corpo. São significantes de signo positivo que vivificam o corpo8 • Nessa substância go-
zante9, o simbólico faz furos.
Em um segundo momento, lalíngua, estruturando-se como linguagem, se articula
Hepresentação
Pcs
Angústia
Inibição
ks
Desenho 1- Nó borromeano
de três, com as nominações: R s
Inibição, Sintoma e Angústia.
<I>
Fonte: Freud (19761 Ex-sistênda
Em "RSI"", lição ele 10 ele dezembro ele 1974, Lacan 0974-1975) toma seu nó e o
articula com Freud em "lnibiçâo, sintoma e angústia" 12 . Destaca ali a função de nomear.
A nomeação ganha um lugar essencial em seu ensino porque o nome enlaça. Por isso a
ideia de que o pai dá nome traz a força do Nome do Pai. A nomeação do imaginário é
a inibição, que é necessariamente a primeira, pois é a que pode deter, ao dar sentido, a
metonímia que tende ao infinito próprio do mecanismo da linguagem. A segunda nome-
ação é pelo simbólico, constituindo o sintoma. A angústia é a nomeação do Real, algo
que fica totalmente fora do sentido. Ex-siste 13 , diz LaGm. Nesse mesmo desenho, que traz
R R
s
Notas
UCAN SUPERVISOR
No texto "Situação ela psicanálise e formação cio analista em 1956", lacan expõe
e critica a formação do analista na IPA. Ainda fazendo parte desta instituição, coloca-se
contra outras visões defendidas pelos grupos dominantes. Inaugura, de certa maneira,
sua proposta ele formação que se apresentará em 1964, no texto "Ato ele Fundação'.
Em sua reconquista do campo freudiano, na ocasião ela fundação ele sua Escola,
Lacan retoma as palavras de Freud quando propõe "que se restaure a sega cortante
de sua verdade'' 1 , reconduzindo, sob o nome de psicanálise, a uma crítica assídua e à
denúncia dos desvios que degradam o emprego ele seu nome. Ele propõe um controle
interno e externo da prática psicanalítica. Toda inovação será remetida à Escola a par-
tir de então. Lacan propõe que a Escola assegurará o controle ela prática daqueles que
se vincularem a ela. O controle se impõe desde o .início da formação e a preocupação
recai também sobre o paciente que se submete ao tratamento analítico. É interessante
notar que se trata de um controle no sentido forte do termo. A Escola toma para si uma
responsabilidade mais do que moderna no que tange a uma espécie de 'proteção ao
consumidor', já que se ocupa de controlar se o que está sendo realizado no tratamento
merece o nome de psicanálise. Ele aponta que esta exigência já está, nessa época, 'na
ordem do dia em todos os lugares'.
A transferência é ponto privilegiado para Lacan nesta prática, porém, a Escola se
abstém de propor uma .lista de didatas e supervisores que seriam propostos aos candi-
datos. A transferência é o que orienta a escolha do analista e do controlador/supervisor.
Os seminários de formação teórica, ela mesma forma, obedecem à lógica da transferência
na constituição da formação dos analistas.
Em 1967, em sua "Proposição de 9 de outubro ... ", Lacan amplia sua proposta de for-
mação do analista, criando o gradus. Ele diz que o analista só se autoriza por si mesmo.
Propõe o gradus ele AME, dado pela Escola, através do reconhecimento do percurso reali-
Notas
Lacan, J. (2003), "Ato de fundação". ln Outros escritos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge 7.ahar.
2 Lacan, J. (2003). "Discurso na Escol.i Freudiana de Paris". Ibidem, p.265.
3 Pere sévêre - homofonia utilizada por l.acan para dizer que persevera, como pai severo, em sua proposição de manter a
"sega cortante da \'Crdade freudiana". Cf Lacan, J. (2003). "Carla de dissolução". ln Op.cit., p.320.
A INCONSISTÊNCIA DO ÜUTRO
cúolo de gozo que se aloja em um ponto de 'extimidade', no ponto 'o mais íntimo' do
ser, que permanece, entretanto, radicalmente heterogêneo, irremediavelmente incomple-
to, em falta, inconsistente, na medida em que contém um elemento real, diferente dos
outros, que são simbólicos. Então, permanece 'inexistente' como 'Todo-simbólico', para
sempre com um buraco central, lugar do significante da falta simbólica nesse Outro,
que Lacan escreve, nesse lugar, S (A:), marcado pela falta do gozo como significante.
Significante da falta no Outro, diferente dos outros significantes e que, solitário, não faz
par com outro significante, aquele sem o qual os outros não representariam nada, só
podendo ser ele mesmo concebido como éxtirno em relação ao Outro.
Significante a ser inventado pelo sujeito, causa de gozo, nome de gozo do sujeito,
do mais íntimo do seu ser: o sinthoma. Libido localizada na sua dimensão real, enlaçada
ao simbólico, corpo vivificado.
Por isso o Outro só pode ser inconsistente, marcado pela incompletude, pelo fato
de que apenas um elemento heterogêneo pode vir no lugar de sua falta.
Então, "o Outro não existe", "não há Outro do Outro": o defeito no universo sim-
bólico é fundante. O que resta, consequentemente, como Outro do Outro, o que funda
a alteridade do Outro é o objeto a como resto não simbolizado da Coisa.
A topologia do nó borromeano surge, então, para reformular o conceito de estru-
tura e exclusivamente a partir das categorias ela experiência analítica que são RSI: o nó
borromeo, como esforço para pensar a estrutura, o simbólico, fora de uma referência ao
Outro, como condição de possibilidade da experiência analítica.
Lacan, então, circunscreve o Um, o gozo, a partir das 3 dimensões heterogêneas:
RSI. Com o ser falante, o falasser se sustentando nesses 3 registros, circunscrevendo aí
algo de um gozo fixado a partir de um quarto termo, solução sinthomática.
É ao redor da falta central que a lógica do significante funcionará. Como o signifi-
cante é diferencial, não existe o todo possível do significante, sempre faltará um (parado-
xo de Russel, na sua teoria dos conjuntos, pelo qual sempre haverá um elemento faltante
ou que torna o conjunto incompleto, paradoxo de 'demonstração' da inconsistência do
Outro).
Para formar um Todo é preciso um a mais, que não está incluído, que faz exceção
(S (A:), S1 sozinho, que não faz par). A é então incompleto, comporta uma falta e nesse
lugar, o que faz consistir o A é esse significante exterior, suplementar, que faz uma bor-
da, S (.A), que vem completar o Outro. Então, quando é introduzido um elemento, hete-
rogêneo, isto mostra que o Outro é inconsistente). Incompleto ou inconsistente, o Outro
só existe barrado. "A marca ela incompletude é como o brasão do Outro "1.
Na questão ela nomeação, o sujeito tentará designar um significante por si mesmo,
para vir ocupar esse lugar lógico do ponto de inconsistência. É no ponto mesmo da fal-
ta do Outro, onde falta o significante que poderia nomeá-lo, que o sujeito se encontra
ÜUTRAS REl'ERÉNCIAS
Lacan, j. (200811968*69]). O seminán'o, livro 16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Miller, J.-A {18/12/961. "O Outro que não ex.iste e seus comitês de ética~. Inédito.
Skriabine, P. (abr/dez 2001). "O defeito no universo"/ "Clínica do nó Borromeano". ln Phenix, (1/2).
Rev.Del.PR/EBP.
Nota
1 Miller, J.-A. [2005-061. "Iluminações profanas". Curso de Orientação Lacaniana, lição 9. (Inédito)
A TRANSMISSÃO
DA PSICANÁLISE:
ENTRE A REFUNDAÇÃO LACANIANA E A
INVENÇÃO PRÓPRIA DE CADA UM
próprio de cada um. Para abordar a questão do estilo é preciso apelar para os poetas, e
Haroldo de Campos nos ajuda na tarefa: em texto publicado no Correio em 1998, Harol-
do de Campos elucubra sobre o estilo Lacan, iniciando com uma digressão sobre a pró-
pria palavra estilo: "Passe metonímico, o transpasse de significantes que o instrumento
manual da escrita (stylo) passou a designar a marca escriturai mesma: o estilo" 5•
No desenvolvimento do texto localizamos os limites ela fala e sua recuperação no
escrito, e como estes participam do estabelecimento de un1 estilo:
"Esta preocupação ou ocupação com o estilo, de parte de um psicanalista, não causa espécie
a um escritor - a um poeta-. esta ocupação, no sentido latino, de ob capire, de tomar posse
do terreno vacante para outros seguidores menos criativos e que somente no retorno a Freud,
o percurso de volta ao precursor se faz por uma radicalização do discurso analítico. É o que
me proponho chamar de afreudisíaco Lacan. O que outra coisa não é senão um exponenciar
em princípio obsessivo de estilo, um elevar até a extrema potência de linguagem aquilo que,
em Freud, era sobretudo um dispositivo de leitura analítica (ainda quando rastreável nos
paradigmas dispersos de uma indubitável predisposição escriturai). Por isso mesmo chamei
a intervenção do "estilo" Lacan na formação cio analista e no evolver do discurso analítico
a partir do lado microtonal de Freud, um "afreudisíaco introjetado na galàxia de lalíngua,,6.
Notas
O objeto a é uma invenção de Lacan. Esta invenção, é preciso situá-la em seu lugar,
isto é, na tentativa de Lacan de capturar o gozo em sua vertente real, no esforço de Lacan
para, no percurso de seu ensino, escrever o real através de um materna. Nesse percurso,
nesse caminho para o real, constatamos que a natureza desse objeto será modificada.
Conforme nos mostra Miller\ antes de Lacan inventar o objeto a, o gozo era apre-
sentado como maciço, inalcançável, tal como o encontramos no Seminário 7 (A ética da
psicanálise), sob a forma de das Ding - a Coisa, A invenção do objeto a permitirá uma
abordagem do gozo mais modesta, mais reduzida e, ao mesmo tempo, mais manejável
do que a Coisa, na medida em que esse objeto faz surgir um gozo fragmentado, par-
cializado, condensado, um gozo que é o resultado do desbaste da Coisa pela operação
significante2. O objeto a surge, portanto, como um elemento de gozo, um elemento que
dará ao gozo um caráter múltiplo, verificável não somente na multiplicação desse objeto
(uma vez que Lacan, ao inventá-lo, adiciona novos objetos - olhar e voz - à lista dos
objetos freudianos, seio e fezes) mas, também, nas diferentes maneiras como esse objeto
será abordado no trajeto de seu ensino.
Pretendo situar, neste texto, três tempos desse trajeto que marcaram o meu próprio
percurso com relação ao que essa invenção de Lacan pôde me transmitir.
O objeto da transferência
De início, privilegiarei o objeto a tal qual apresentado por Lacan pela via da trans-
ferência. No Seminário 8, encontramos o objeto a como agalma, ou seja, um objeto
precioso que é, em última instância, o que seria visado no ser amado3 •
O objeto a, nesse contexto, aparece como sendo a mola do amor de transferência
O objeto e a angústia
O objeto é semblante
No Seminário 20, Lacan promove uma distinção radical entre o objeto a e o reaJIº·
Ele situa o objeto a no caminho que se dirige do simbólico para o real e diz que, nesse
caminho, a verdadeira natureza do objeto a se demonstra. Portanto, é somente após um
longo percurso de seu ensino, no decorrer do qual o próprio Lacan sustenta essa direção
do simbólico ao real, que ele, depois de ter inventado o objeto a, pôde situar o que diz
respeito à sua verdadeira natureza. Como sublinha Miller, a verdadeira natureza do obje-
to a, ainda que ele se encontre no caminho para o real, está relacionada ao ser, ao sem-
blante, e não ao real' 1 . Retomando Lacan no capítulo 7 do Seminário 20, Miller afirma:
Notas
11 Miller, ).-A. (2001[1991-1992]). De la natureza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós, p.115.
12 Idem. ibidem, p.116.
UCAN, PSIQUIATRA
A psicanálise, que se consolidou com uma clínica própria, é uma herança da psi-
quiatria. O discurso analítico, consequente com a psiquiatria de Kraepelin e de Bleuler,
modificou a nosografia psiquiátrica: a passagem da demência precoce à esquizofrenia
foi produzida pelo discurso da psicanálise. Assim, a psicanálise começou a modificar a
psiquiatria, esclarecendo-a principalmente em relação ao diagnóstico, que estava basea-
do nas formas sintomáticas, ao tomar como referência a posição do sujeito, considerando
a estrutura.
Durante o longo período de sua formação médico-psiquiátrica, merecem destaque
especial três momentos do Lacan psiquiatra que terão consequências na sua formação
de psicanalista e no desenvolvimento da psicanálise:
1928: Trabalha como interno da Enfermaria Especial para alienados da Chefatura
de Polícia. dirigida por Gaetan Gatian Clérambault.
1932: Defende a sua tese de doutorado, Da psicose paranóica em suas relações com
a personalidade.
1936: Sua comunicação sobre o estádio do espelho, durante congresso da Associa-
ção Internacional de Psicanálise (IPA) em Marienbad.
Já em 1931, quando ainda preparava sua tese de doutorado em medicina, o caráter
subversivo da psicanálise já despertava seu interesse, começava a ser uma referência e
se manifestou com a tradução do texto de Freud Acerca de alguns mecanism.os neuró-
ticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade, que publicou na Revue Jrançaise
de psychanalyse.
Mas, é em seu texto "De nossos antecedentes" que vamos encontrar as referências
mais explícitas sobre a formação psiquiátrica de Lacan e sua passagem para a psica-
nálise. Ao reconhecer a formação kraepeliana de Clérambault, de quem transforma o
(os ditos de interesses) e os crimes do .!d (estes pulsionais, imotivados, característicos das
esquizofrenias). A estes agrega os crimes do superego, àqueles os delírios dos querelan-
tes e os de autopunição. Na sequência, Lacan alude a "um impulso homicida primordial
no psiquismo humano", tomando como referência o livro de Freud Totem e Tabu, destaca
as influências das técnicas da psicanálise na psiquiatria e a importância do conceito de
resistência do sujeito (a reação agressiva como seu limite) para o acompanhamento do
progresso do tratamento com medicamentos3.
Sobre as indicações terapêuticas antes e depois da psicose (ele se refere às indica-
ções profiláticas), indica a psicanálise em primeiro plano, mas destaca a prudência dos
analistas para tratar casos já desencadeados por considerarem que essa técnica ainda
não está madura, apesar de alguns autores terem relatado e publicados tratamentos exi-
tosos. No final do capítulo II, Lacan diz que a omissão da não aplicação da psicanálise
ao caso Aimée não foi por sua vontade. Hoje, podemos deduzir que, já na escolha da
paciente e seu método de investigação do caso na preparação de sua tese - ao contrário
Notas
UCAN JOYCEANO
Ainda estamos sob o impacto do que Lacan procurou extrair da leitura da obra de
Joyce, sobretudo aquela desenvolvida ao longo do Seminário 23: o sinthoma.
Esta não foi a primeira vez que Lacan se referiu a Joyce ao longo do seu ensino. Já
no Seminário sobre 'A carta roubada', incluído nos E,cn·tos, faz menção à expressão "a
letter, a litter", "uma letra/carta, um lixo" sobre a qual se apoia para nos dizer da mate-
rialidade do significante. Mais adiante, em "O engano do sujeito suposto saber", faz nova
referência a Joyce, desta vez para inseri-lo em uma série a princípio estranha, que inclui,
além dele, Moisés, Mestre Eckhart e Freud, como representantes de uma "diologia", a
se opor à apreensão ontológica de Deus que toda teologia pressupõe. Mais adiante, no
Posfácio ao Seminário Os quatro conceitos.fundamentais da psicanálise, Lacan atribui a
Joyce a introdução da dimensão do "escrito para não ser lido", na qual inclui seus pró-
prios Escritos e pela qual nos incita a reconsiderar o ato de leitura.
1
Não podemos deixar de mencionar um Lacan joyciano naquilo que mais comu-
mente os aproxima: a ilegibilidade de seus escritos. Tema amplo, do qual Lacan não se
furtou a enveredar. A experiência analítica exige repensar o ato de leitura em seus funda-
mentos. Desde Freud a leitura do inconsciente caminhou no sentido de uma interpreta-
ção como modalidade de decifração do sentido aprisionado na retórica do inconsciente.
A hipótese lacaniana de um "inconsciente leitor" - renovada por Jacques-Alain Miller
com sua concepção de um "inconsciente intérprete" - coloca em questão o estatuto da
interpretação como decifração) para remetê-la à altura da potência significante da língua:
seus equívocos, suas homofonias, suas escansões, seus paradoxos.
Pensar a prática psicanalítica como leitura implica reconhecer o sinthoma como
um escrito, ou mais precisamente, como uma letra. O estatuto de sinthoma da escrita
de Joyce, tal como depreendido por Lacan, abre assim duas perspectivas. Uma primeira,
caminha na direção do que poderia ser chamado de uma teoria da letra a ser depreendi-
da do discurso analítico. Será através de Joyce que Lacan irá, decididamente, considerar
a letra para além de sua dimensão significante, estabelecendo sua condição de "litoral":
de um lado, suas afinidades com o sentido; de outro, sua dimen.sâo fora do sentido, sua
materialidade, capaz de tornar-se "receptáculo ele gozo".
Por fim, é como joyciano que Lacan poderá situar o que talvez tenha sido o grande
tema do seu chamado último ensino, a saber1 o de considerar o que, em uma experiên-
cia analítica, poderá constituir um saber fazer com o gozo opaco ao sentido. Em outras
palavras, com o gozo em sua dimensão de ilegibilidade.
O que de melhor uma experiência analítica poderá produzir deve ser avaliado a
partir desta perspectiva: o modo como cada um foi capaz de ler o ilegível de seu sintho-
ma, na medida em que essa ilegibilidade deriva do que "não cessa de não se escrever";
e a maneira como foi possível derivar daí uma nova satisfaçào 1 que criou condições para
o sujeito inscrever-se ele modo inédito na ficção do Outro.
Notas
É de conhecimento de todos que Lacan sempre afirmou ser Gaetan Gatian de Clé-
rambault seu "único mestre em psiquiatria" 1• Foi com ele que aprendeu e tomou gosto
pela "fidelidade ao invólucro formal do sintoma, o verdadeiro traço clínico".
Nesta passagem do texto "De nossos antecedentes'', última vez que Lacan mencio-
na o nome do mestre, ele aponta o passo seguinte: o seu encontro com Freud ao acres-
centar que, no limite: o sintoma "se reverte em efeitos de criação".
Lacan toma como ponto de partida o ensino deste "homem de olhar", este clínico
que valorizava o olhar como instrumento para avaliar e dominar o espaço que circuns-
creve geometricamente o objeto de sua percepção, de seu saber.
Henri Ey' - discípulo de Clérambault e colega de sala de plantão de Lacan - escre-
ve que G. de Clérambault foi, como pessoa, por toda a sua vida, esse homem, menos de
'escuta' do que de 'olhar'. Por isto, talvez, "esse homem de olhar" tenha escolhido acabar
com sua vida depois que seu olhar se apagou, sentado em uma poltrona frente a um
grande espelho, cercado pelos manequins de cera que lhe serviram para seus estudos
ele drapeado. 3
Percorrendo os escritos de Lacan de seu período como interno em Sainte-Anne,
encontra-se uma menção ao mestre que nos chama a atenção por ser uma nota de ro-
dapé inserida para justificar o uso da descrição de uma estrutura delirante presente em
um caso clínico que descreve: "um anelídeo, não um vertebrado". "Esta imagem utilizada
no texto foi emprestada do ensino verbal de nosso mestre M. G. de Clérambault, a quem
tanto devemos em substância e método. Assim o fazemos para não nos arriscar a ser
plagiário e lhe render homenagem com cada um desses termos. 4 ''
O que parece uma simples referência assume outra proporção ao acrescentar-lhe
o que está escrito no pequeno texto de Henri Ey já citado acima, quando ele, referindo-
se à "fria indiferença" com que o mestre lhe tratava, assinala que os "amigos e grandes
"Seu automatismo mental, com sua ideologia mecanicista de metáfora, por certo bastante
criticável, parece-nos, em seus enfoques do texto subjetivo, mais próximo do que se pode
construir de uma análise estrutural do que qualquer esforço clínico na psiquiatria francesa.
Fomos sensíveis ali ao toque de uma promessa, percebida pelo contraste que faz com o que
se marca de decadente numa semiologia cada vez mais comprometida com os pressupostos
da razão. Clérambault realiza, por seu ser de olhar, por suas parcialidades de pensamento,
como que uma recorrência do que recentemente nos descreveram na figura datada do Nas-
cimento da clínica.·''
Clérambault, referência maior de Lacan na sua formação como psiquiatra, foi quem
lhe imprimiu a marca estruturalista com a elaboração da "síndrome do automatismo
mental\ como muito bem nos demonstra Angelina Harari6 : "nesta síndrome ele isola
um grupo de fenômenos elementares e estruturais que apontam a entrada na psicose: a)
conteúdo essencialmente neutro (ao menos, em seu início); b) caráter não sensorial; c)
função primária no decurso da psicose".
A ruptura de Lacan com a psiquiatria acontece a partir do momento em que seu
método clínico e mesmo suas apresentações de pacientes deixam "de contribuir para o
avanço" 7, daquela ciência, e passam a ter como objetivo servir à psicanálise.
Pode-se assim concluir, contrapondo a clínica psiquiátrica de Clérambault à clínica
psicanalítica de Lacan com as psicoses: a de Clérambault, como uma clínica do olhar, e a
de Lacan, como uma clínica da escuta. Segundo Angelina Harari, a orientação lacaniana
do tratamento da psicose se faz pela via dos "desdobramentos do conceito de gozo". Em
outras palavras, pelo que escapa ao simbólico e deixa o imaginário à mercê de um real
que não se apreende nas malhas de um discurso.
Notas
• Gaetan Henri Alíred Edouard léon Marie Gatian de G11!ramba11lt é o nome completo de Clérambault.
I.acan, J. (1998). ''De nossos antecedentes''. ln Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
2 Ey, H. 0977). "Gaetan Gatian De Clérarnbault A l'infirmerie spedal du dépot~. Omicar?, (12/13).
3 Wikipédia.
4 Lacan, J. [07/07/19311. "Structures des psychoses parano"iaques·. ln'· Pas-to11t lacan ".
5 Lacan, J. 0998). ·'De nossos antecedentes". Op.cit.
6 Harari, A. {2006). Clínica lacaniana da psicose- de Cléramhault à i11co11sisté11cia do Outro. Rio de Janeiro: Ed. Contra
Capa, p.14.
7 Idem, ibidem, p.24.
Uma análise é bem mais do que a rememoração dos fatos e frases marcantes, ela
não se faz sem a inquietante lembrança de um dizer cujo destino é ser esquecido. Lacan
não fala de recalque e sim de esquecimento em uma de suas formulações mais conheci-
das. Em mais de uma ocasião ele a propôs à sua audiência:
Qu'on dise reste oublié derriere ce que ce dit dans ce que s'entend.
Esta frase é usada tanto para abrir seu texto "O aturclito" 5 quanto para encerrar seu
Seminário ... ou pior'. Em português podemos traduzir do seguinte modo:
Que se diga fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se ouve.
Nesses dois textos, Lacan promove uma dissecação entre dito e dizer. Eles se incluem
nos três anos consecutivos em que Lacan aborda os discursos e que, com a publicação
do seminário ... ou pire, tornam possível ver os seminários 171 18 e 19 como uma espécie
de trilogia dos discursos. É verdade que em seu ensino é fundamental o fato de sermos
seres habitados pela linguagem, mas a frase "Que se diga ... " de Lacan tem um espectro
maior. Ela vincula a própria existência ao dizer que faz da linguagem um discurso. Assim 1
a ênfase não recai sobre os ditos e sim sobre o dizer que ex-siste a esses ditos. Um dizer
que apenas é possível devido ao seu suporte corporal, que não tem nada a ver com a sig-
nificação e sim com o fato de que "na praça, tudo que é dito faz gozar"7.
Se o inconsciente é estruturado como linguagem, é preciso uma psicanálise para
que ele se torne um discurso. "Que se diga ... comporta em si a fratura lacaniana entre
aquilo que é singular e se modaliza como discurso a partir da enunciação do falasser, e
o que é da ordem do para-todos, do universal.
Sem o discurso do analista, não seria possível perenizar o dizer de Lacan. Sua
Escola seria reduzida a uma associação em torno das palavras do pai. Contudo, a orien-
tação lacaniana está longe de ser nostálgica e capturada pela repetição, o que reduziria
a Escola a um campo de linguagem e não de discurso.
A presença dos AE's na Escola seria inconcebível se a lógica fosse outra. O AE
não faz uma doutrina, tampouco é testemunha de uma revelação. Ele traz para o seio
da Escola um dizer singular e o modo como, em sua análise, operou esse corte entre o
dizer e os ditos. Ou seja, como o dizer, que não cessava de ser esquecido, emerge em sua
relação com o Outro. Isto porque o "Que se diga ... " não pode existir sem Outro.
O esquecimento do gozo
"O aturdito" retoma questões bastante exploradas por Lacan nos anos 50. A partir
desse texto, é possível fazer uma nova leitura do esquema L e explorar a tensão gerada
da oposição entre o plano das relações humanas, onde impera a dimensão do dito sub-
metido à verdade, do eixo a-a', e a diagonal do sujeito em relação à alteridade, onde se
situa o dizer como experiência de gozo, a ex-sistência 8 • O que muda entre o primeiro
e o segundo ensino de Lacan é precisamente o estatuto dessa alteridade. Enquanto no
primeiro ensino o Outro é o próprio simbólico, garantido pelo Nome-do-Pai, no segundo
ensino trata-se do Outro sexo, ou seja, a ex-sistência de um dizer sem palavras.
É possível identificar, a partir do esquema L, o esquecimento da relação com o Ou-
tro. Ele surge na vetor que liga o es(S) ao Outro, e que se torna pontilhado precisamente
quando este vetor encontra a diagonal da realidade.
(moi) a
~ (A)utre
Proponho assim uma leitura da frase de Lacan a partir do esquema dos Seminários
iniciais. Ele nos dá a pista desse movimento no próprio texto "Aturdito" ao afirmar que,
em 56, se foi possível introduzir o Nome-do-Pai no campo das psicoses, foi graças ao
consentimento do discurso analítico.9
Que se diga Por cr,ís do que se diz
Quando seguimos os passos dos homens de exceção 1 percebemos que, por mais
prolíficos que eles sejam, sempre é possível encontrar um traço de inovação genial, uma
intuição ou revelação que acompanha sua obra por toda a vida. Não surpreende, por-
tanto, que o discurso analítico estivesse presente desde o momento em que Lacan, para
além da poubellication, iniciou seus Seminários, fazendo destes o seu maior legado. Para
além do que se lê nos textos, seus Seminários não nos deixam esquecer o seu dizer.
Notas
1 Massenpsychologic und Jcb-Ana~vse.
2 Lacan, J. 0991). J.'envers de la p!sychcma~vse, Le Sémí11aire livre XVH. Ed du Scuil, Paris, p.194.
3 Laurent, E., O Supereu sob medida, Agente Digital: http://agente.institutopsicanaliscbahia.eom.br/entrcvisrn.html, Revista
Eletrônica da EBP-Bahia
4 Lacan, J. (201111971-72]) . ... ou pire, Le Séminaíre livre XIX Paris: Éditions du Seuil, p.219 .
5 Lacan. J. (2001). • L't'tourdí! •. In Autres Écrits. Paris: Ed. du Seuil, p.449.
6 Lacan, J (2011(1971-/21). Op.cít., p.221.
7 Idem, p.230 - Par-dessus le marché, tout ce q11í est difait jouír, lí3.dução nossa.
8 l..acan. J. (2001). Op.cil. p.452.
9 Id. lbid., p.458.
o RESTO E o ruso*
Em seu sétimo Seminário, Lacan introduz uma nova ferramenta para o analista: a
1
ética O termo é de manuseio delicado, especialmente para os ouvidos de hoje, treina-
•
Porquinho-da-índia
Quando eu tinha seis anos/ Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava/ Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala/ Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava: Queria era estar debaixo do fogão. Não fazia caso nenhum das minhas
ternurinhas ...
- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada 8 •
É um monstro tornado bichinho que, apesar disso, mantém seus poderes de ruptu-
ra, causando surpresa. O poema demonstra como a lida com a libido, tomada como ob-
jeto, pode produzir efeitos impensáveis. "Porquinho-da-índia" é a libido tornada objeto
graças a essa nomeação, localizando um gozo que não é apenas perigo e excesso, mas
eventualmente presença companheira, mesmo se apenas sob o fogão.
Alguém poderia argumentar que o procedimento de Bandeira nada tem a ver com
a sexualidade, pois pouco poderia haver de encontro sexual com um porquinho do pas-
sado. O mesmo efeito se encontra, porém, neste poema:
Há algo nos "olhos que nasceram dez anos antes do corpo" guardando o que é de
Teresa e de mais ninguém. Este grão de singularidade ganha a forma de um resto, fora
do corpo, mas intimamente a ele vinculado, exatamente como lacan define seu objeto
a. O poema transmite o modo como o Outro nos afeta e, creio, marca como o impos-
sível da relação é ao mesmo tempo o lugar onde se desencontram sujeito e Outro, no
exercício da sexualidade.
A proeza do poeta é conseguir passar a público o monstruoso de sua singularida-
de e ela passar a tomar parte de sua vida. É uma "inclusão" muito distinta da moral em
vigor nos estudos culturais, por exemplo, mas é ainda assim inclusão, que ganharia em
ser distinguida do conceito de sublimação. Não poderemos fazê-lo aqui, basta assumir
que para manter a analogia da operação de Bandeira com o processo analítico é preciso
ter em mente que uma análise irá tão longe, na direção da singularidade dos fragmentos
significantes, a ponto destes só terem valor para quem os leva consigo. Tais e quais, nos
confins do sentido compartilhado, não servirão a nenhuma criação poética ou artística.
O porquinho-da-Índia de Bandeira. ou seus laços com os olhos de Teresa. não
constituem nenhuma prática erótica alternativa, mas são operações "erotológicas" que
fazem um objeto a ganhar lugar no Outro, reorganizando o campo do desejo.
Por esta razão, Lacan, ao final de seu seminário sobre a ética, coloca o desejo
bem próximo, neste contexto do que tendemos a chamar de pulsão, no centro da ética
psicanalítica; mas apenas ao preço de um paradoxo. Ele só pode ser parâmetro de nossa
ação como uma "medida infinita'' 10 • Dez anos depois, porém, em "Televisão", encontra
maneira de afastar o paradoxo, ao deixar o desejo em segundo plano e definir a psica-
nálise como uma ética do 'bem-dizer'.
Não é 'dizer o Bem', instaurar o ideal no discurso, como se houvesse cura para o
irremediável da linguagem com relação ao real. Tampouco é 'dizer bem', instaurar um
discurso ideal, buscando o melhor possível a cada vez, na obrigação de ser o melhor
sempre. É 'dizer', pois ele é quem conta, não há como elevar-se acima dele. Somos o que
Notas
Este texto retoma boa parte do desenvolvido na última aula do curso "Paixões em análise", ministrado na EBP-Rio em
2010. O restante do curso, cm seus aspectos mais diretamente relacionados ao tema dos afetos, foi retomado de forma
resumida em ·A letra e o elà". Latusa. (15). Rio de Janeiro, EHP-Rio, 2010.
Lacan, J. (1988 11959-60)). O Semi11ârio, livro 7: a ética d:1 psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge 7.,ahar Editora, p.10.
2 Idem, ibidem, p.372.
3 Idem, ibidem. p.374.
4 Idem, ibidem, p.14.
5 Freud, S. (197611920l) "Além do princípio do prazer", vol. XVII!, 17-89. Ediçào Swndard Brasileira Completa das Ohras
Psicológicas de Sigmu11d Freud. Rio de Janeiro: Imago, p.219.
6 Vieira, M. A. (2008). Restos, uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise, Rio de Janeiro, Contra Capa, p.18. 24.
7 L1c.1n, J. (2005(1962-63)). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, p
8 Bandeira, M. (1986). Poesia completa e prosa. lfo de Janeiro: Nova Aguilar. p.208.
9 Idem, ibidem, p.214.
Ü GOZO FEMININO E O UM
Mais, ainda
"A formalização matemática é nosso fim, nosso ideal. Por quê? - porque só ela é materna,
isto é, capaz de se transmitir integralmente. A formalização matemática é a escrita, mas que
só subsiste se eu emprego ao apresenr.á-la a língua que eu uso. Eis aí a objeção - nenhuma
formalização da língua é transmissível sem o próprio uso da língua. É por meu dizer que esta
formalização, ideal metalinguagem, eu a faço ex-xistir"9 .
Essa questão da relação sexual, se há um ponto de onde isto poderia se esclarecer, é justa-
mente do lado das damas, na medida em que é da elaboração do nãotodo que se trata de
romper o caminho. É meu verdadeiro tema deste ano, por trás desse Mais, ainda. e é um
dos sentidos do meu título. Talvez assim eu chegue a fazer aparecer algo de novo sobre a
sexualidade feminina 11 .
ser por serem enunciadas. A existência não nos faz sair da linguagem, mas para aceder
à existência é preciso tomar a linguagem em um nível diferente do ser, é preciso tomá-la
pela escritura. Uma escritura que não é a escritura da fala, mas a escritura pura, manejo
da letra, do traço, onde o significante opera cortado da significação. Sendo assim, não
se trata mais de escuta, mas de leitura. O que se escuta são significações que evocam
compreensão, onde há sempre um gozo implicado. A leitura é outra coisa, a leitura parte
do significante e, eventualmente, pode até dar lugar a significações, pode-se passar da
escuta à leitura e para passar de uma à outra é preciso passar pelo escrito.
Este significante primeiro, Lacan diz que é como uma substância, mas Miller adver-
te, substância não quer dizer gênese, ele é primeiro, chega ao mundo com a linguagem,
há Um, e este Um não pode ser deduzido. É na medida em que se coloca como um dado
primeiro, "há um", que se é conduzido a isolar o gozo como outra substância.
Neste sentido, poderíamos dizer que Lacan abandona as ficções pelas .fixões do
gozo. Ali onde reinava os efeitos de sentido, passa a prevalecer o gozo sem sentido.
A substância gozante é atribuída ao corpo, mas com a condição, diz Lacan, segun-
do Miller, de que se defina só como aquilo de que se goza, ou seja, o corpo de que se
trata aqui não se define pela imagem ou pela forma, como o corpo do estádio do espe-
lho. Dizer substância implica um corpo que goza de si mesmo, não o corpo que seria o
da relação sexual, mas um corpo existente em que a linguagem se imprime produzindo
efeito de gozo: o Um se imprime sobre o corpo e faz dele um aparelho de gozo e "a
repetição do Um comemora uma irrupção de gozo inesquecível". O sujeito se encontra
desde então, nas palavras de Miller, ligado a um ciclo de repetições que as instâncias não
se adicionam e as experiências não lhe ensinam nada, são as adições.
A generalização do gozo feminino seria, então, essa repetição de um gozo mudo,
opaco, fora do sentido, chamado de feminino, que nem todas as mulheres experimentam
e que um homem pode experimentar.
Podemos reconhecer esse gozo em algumas passagens da literatura e aqui me lem-
bro de duas. Uma refere-se ao livro de Aharon Appelfeld - Histoire d'une vie - no qual
ele relata o período, durante a segunda guerra, em que fugiu de um campo de concen-
tração aos cinco anos, e viveu sozinho, durante três anos, em uma floresta. Ele escreve
justamente para tentar falar de uma experiência para a qual não há palavras e nos relata,
por exemplo, uma umidade que o remete a uma experiência de corpo inusitada. Ele sabe
que essa experiência de corpo tem relação com esse período em que viveu abandonado,
mas por mais que conte a história e tente se lembrar dos acontecimentos, resta uma ilha
de gozo sem nome que ele revive a cada vez que entra em contato com essa umidade.
Ele nos diz que sua escrita é para isso, se nào pode dizer, ele tenta cernir.
Bem diferente dessa experiência, Proust, Em Busca do tempo perdido, conta uma
história cheia de sentido e lembranças, mas só para demarcar ilhas de gozo mudo e sem
Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção de sua causa. Esse prazer logo me tor-
nara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastre, ilusória sua brevidade, tal
como faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes, essa essência não estava
em mim, era eu mesmo. [. .. ] De onde vinhaí Que significava? Onde apreendê-la? 12
E na mesma página:
É assim com nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa
inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e ele seu alcance, em
algum objeto material (na sensação que no.s daria esse objeto material) que nós nem suspei-
tamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes ele morrer, ou que não o
encontremos nunca.
O testemunho do passe, para Lacan, seria a via para tentar dizer sobre essa ex-
periência e Miller pontua dois momentos do passe no ensino de Lacan: a travessia da
fantasia e o sinthoma. Em um primeiro momento, o passe era a revelação ela verdade
com consequências sobre o real, a travessia da fantasia e a queda do objeto a. A fantasia,
como significação dada ao gozo mediante um cenário, mesmo quando essa significação
é esvaziada, o gozo permanece. Com o sinthoma, a revelação da verdade pode ter uma
incidência sobre o real, mas o real como tal permanece intocado, resta o incurável que
continua sua repetição, indiferente ao esforço de tentar domesticá-lo ou limitá-lo. O ver-
dadeiro impossível, como observa Miller, é o real. Portanto, com o sinthoma não se trata
de transgredir, trata-se de poder cingir um certo número de pontos de impossível e a
tentativa de demonstrar o impossível, em uma via além da verdade mentirosa.
Notas
Lican, J. (1988 [1959-60)). O Seminário. livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
2 Idem, p.383.
3 L'\can, J. (1985 [1963-641). O Seminário. livrol l: os quatro co11ceitosfundame11tais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, p.260.
4 L1can, J. (1985 11972-731). O Seminário, livro 20: mais. ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p.9.
5 Idem, p.35.
6 Idem. p.94.
7 Lacan, J. (1972/2003). ·'O Aturdito''. ln Outros Escrilos. RJ: JZE. p.479.
8 Lacan, J. (1972/2003). "Televisão". ln Outros Escritos. R_I: JZE, p.515.
9 Lacan, J. 0985 \1972-731). Op.cit., p.161.
10 Idem, p.171.
11 Idem, p.78.
12 Proust, M. (2006). Em busca do tempo perdido. Volume l. Traduç;io Maria Quintana. Rio de Janeiro: Ed. Globo, p. 71.
LACAN MATEMÁTICO
Quase da mesma forma que Freud nutria uma paixão pela verdade e a perseguia
com perigosa ousadia, Lacan nutria uma paixão pela matemática, girava em torno dela,
a convocava ... E a matemática respondeu a esse amor de diferentes maneiras, mas rara-
mente esteve à altura dessa paixão.
Por que ele a cortejava? Ele deu algumas explicações no Seminário 20, em duas
exaltadas frases. Na primeira, na aula 8 desse seminário, disse que a formalização ma-
temática poderia dar o modelo do Real, por ela ser a elaboração mais avançada da sig-
nificância ao contrário do sentido, quase a contra-senso. Significância, nesse seminário,
é aquilo que tem efeito de significado. Ou seja, o real, por só poder se inscrever como
impasse na formalização, poderia encontrar seu modelo na formalização matemática
que, sendo um nonsense, aparece como uma elaboração avançada de efeitos de signifi-
cados. Ele o disse assim:
A Carta roubada
lei do significante passa a imperar. Essa lei do significante ignora a impossibilidade ele
se prever de que lado a moeda cairá. Ou seja, essa ordem significante estabelece leis e
organiza simbolicamente aquilo que, no Real, continua não sendo organizáveL Mas essas
leis parecem tão convincentes que fazem esquecer que o Real, como já dizia Lacan nesse
momento, é o que retorna sempre ao mesmo lugar e continuará sendo imprevisível se
vai dar cara ou coroa. 6
Mas, assim como os leitores apressados desse texto tendem a pensar que o próprio
acaso poderia ser previsível, os sujeitos tendem a confundir as leis simbólicas com a
ideia de que essas leis poderiam valer no real. Por isso as pessoas compram sequências
numéricas que prometem prever, por exemplo, que número vai cair na roleta.
Lacan percebe isso, e na conferência proferida em 22 de junho de 1955 diz:
Lacan, J. 0985 [1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p.125.
2 [dern, p.161.
3 Lacan, J. 0973/2003). "lntrcxlução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos" in Outros escritos. Rio de Janeiro.
Jorge Zahar Ed., p.551.
4 Lacan, J. 097911953-19541). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., p.256.
5 Só é possível verificar isso tendo a paciência de refazer a rede simbólica que Lacan mostra nesse texto. Miller, em O osso
de uma análise, demostra essas séries de mancir:1 mais compreensível.
6 Lacan, J. (1978 [1954-19551). O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., p.373.
7 Lacan, J. 0973/2003). "Televisão· in Outros escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed .. p.535.
8 Miller J.· A. [20111. Seminário "O ser e o Um", aulas de 14 e 25/05/2011. Inêdito.
9 Miller J.· A. [20111. Seminário "O ser e o Um", aulas de 14 e 25/05/2011. Inédito.
vam nesse sistema. Em 1967 fiz uma proposição à minha escola, partindo do ponto em
que, por haver dado conta de sua análise, do lugar que o psicanalista ocupara em seu
percurso, no momento de sua 'dessuposição', alguém dá o passo de ocupá-lo. Chamei
isso de passe e constatei que o analista, dessa operação, dessa passagem, não sabia coi-
sa alguma. Propus um procedimento para que as pessoas pudessem testemunhar sobre
esse ponto, criando assim a função de analista da Escola. Entre outras coisas, ele poderia
detectar como os analistas têm tão somente uma produção estagnada, sem saída teórica.
Talvez se possa até recrutar analistas a partir deste ponto. Propus isto aos italianos.
Eu - Então o passe é um desejo de Lacan'
Lacan - Você é insistente' Há um real em jogo na própria formação do psicanalista.
As Sociedades se fundam sobre o desconhecimento desse real, ou mesmo sua negação
sistemática. Uma sombra espessa encobre esta juntura, esta passagem, do psicanalisando
ao psicanalista. A Escola pode se empenhar em dissipá-la, particularmente na medida
em que seus analistas testemunham sobre esse ponto. Se em 1964 eu precisava de tra-
balhadores decididos, a partir desta proposição eu precisava de analistas à altura desta
tarefa.
Eu - E... foi bem sucedido?
Lacan - Bem, na Escola Freudiana de Paris a experiência do passe foi marcada
pelo fracasso. Tentamos por quase treze anos e não tive outra saída senão a dissolução.
Na Escola Freudiana não entravam em acordo a não ser quanto a isso; amam-me. Essa
Escola era sintoma, como qualquer outra 1 mas não o bom. Temi que num momento em
que eu não tivesse mais voz na Escola, isto é, no momento em que eu finalmente me
transformaria em Outro, e este momento se aproximava, minha Escola não se sustenta-
ria. Não se tratava de uma autodestruição, a Escola não era eu, nunca pensei ou disse
isso. Tratava-se sim, de uma proposta para a psicanálise.
A dissolução foi necessária para que a experiência do passe não fosse abandona-
da e para que eu desse ao psicanalista, que tem horror ao seu ato, a oportunidade de
enfrentá-lo.
Fundei, então, a Escola da Causa Freudiana.
Eu - E o senhor pensa em Escolas em outros lugares 1 na América Latina, por
exemplo?
Lacan - Em 1980 estive na Venezuela, com pessoas que nunca tinham me visto
nem me escutado. Eram meus leitores, e o fato de não serem meus alunos não os impe-
dia de serem lacanianos. A eles pude dizer que se quisessem poderiam ser lacanianos,
mas que eu, de minha parte, era freudiano. Penso que o futuro está aí, e para tratar da
relação com esses grupos, criei a Fundação do Campo freudiano.
Eu - E a Escola'
Lacan - Bem, para haver Escola é preciso que haja formação, análises, e isto leva
atrás por François Rcgnault: "a psicanálise, por sua dialética cio caso clínico, é o campo
no qual o singular e o universal coincidem sem passar pelo particular''7•
Cada sujeito, a partir daquilo que o faz sofrer, dará coma do seu caminho singular
na revelação de uma satisfação que lhe seja própria.
Notas
Lacan, J. (2003). "Joyce, o sintoma~ ln Ou1ros escritos. Rio de janeiro: JZE. p.565. Na versão brasileira, a tradução para
é11é11eme1Jt de co,ps é '·evento corporar. Ultimamente. vem se turnando usual a expressão "acontecimento de corpo".
2 Miller, J.-A. ''Ler um sintoma". Texto estabelecido por Dominique Helrnet, não revisado pelo autor. Tradução de Maria
CrL~tina Maia Fernandes. Edição e revi:;ão: Maria Angela Maia.
3 Miller, ).-A. (2008). "Coisas de fineza em psicanálise , aula de Ii/12/2008, publicado na revista !.a Causefreudienne.(il).
4 Idem, ibidem, p.78.
5 Ver, por exemplo, este trecho de uma conferência de Lacan: "A realid:1de física se mostra dora\·ame impenetrávd a roda
analogia rnm um ripo qualquer de homem universal. Ela é plenamente, totalmente inumana. O problema que se coloca
para nós não é mais o problema cio co-nascimento (co-naissance). de um conhecimento de uma conatural idade pela qual
se abre para nós a amizade das aparências."' l.acan, J. (2005). O Triunfo da Religião, precedido de Discurso Aos Católicos.
RJ: Jorge Zahar Editor. p.40.
6 Miller, J.-A. Op. cit.: "... o que eu creio mais propriamente psicanalítico: o ponto de vista anti-diagnóstico. O diagnóstico
vem por acréscimo".
7 Regnauh. F. (2001). Em /omo do vazio. RJ: Contracapa. p.10.
a resposta quando os alunos estão no ponto de encontrá-la". Para Lacan: "este ensino é
uma recusa de todo sistema. Ele descobre um pensamento em movimento - preparado,
no entanto, para o sistema, porque ele apresenta necessariamente uma face dogmática''.
E evocando Freud: "O pensamento de Freud é o mais perpetuadamente aberto à revisão.
É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Cada noção, nele, possui sua vida própria. Ê o que
se chama precisamente de dialética".
Dedicando-se, então, a comentar os escritos técnicos de Freud, Lacan se endereça
a seu grupo de alunos para adverti-los: "Se vocês não vêm aqui para pôr em causa toda
a atividade de vocês, eu não vejo porque vocês estão aqui. Aqueles que não perceberiam
o sentido dessa tarefa, por que permaneceriam ligados a nós em vez de irem se juntar a
uma forma qualquer de burocracia?".
A Lacan interessava, portanto, desde a abertura do seu ensino, denunciar, antes de
tudo, um primeiro efeito da burocratização da formação do analista, reduzindo as regras
standard da psicanálise, não as tratando, como o fez Freud, à maneira de um instrumen-
to que se tem bem firme na mão.
Membro já da comissão do ensino da SPP, desde 1951 começara a dar um semi-
nário de leitura de textos freudianos em sua casa. Entre o primeiro deles consagrado
a Dora, e o último sobre o Homem dos lobos, dado no momento da crise, um grande
número de analistas em formação o ouviam. Para aqueles que recebiam o seu ensino ele
destinou, privilegiadamente, o seu discurso de Roma.
Em 1953, ano da primeira cisão na comunidade psicanalítica francesa, um projeto
de emenda aos estatutos do Instituto de Psicanálise deu a Lacan, então diretor provisório
do Instituto, a ocasião para dar ao ensino da psicanálise um órgão no qual exercê-lo.
Existente desde antes, mas fechada depois da declaração da segunda Guerra mundial,
a SPP era a instituição garantidora do ensino da psicanálise na França ajustando-se às
1
Estes, deveriam ser "rão liberalmente concebidos quanto aqueles que conduzem a uma
ciência que merece entre todas ser qualificada de humanista". O ensino teórico da psica-
nálise não poderia, sobretudo, "limitar-se a um ciclo de conhecimento que a gente fecha
de uma vez por todas". Enfim, para Lacan, em 1953, a formação do analista participa das
pesquisas que fundam as categorias de uma experiência analítica e que ele resume em
número de quatro.
A primeira delas, ele a traz de sua própria experiência ensinando a psicanálise: o
comentário dos textos originais de Freud, "a mais segura via e a mais racional" para se
ter e manejar os conceitos fundamentais da psicanálise. Lacan reafirma, no entanto 1 a
exigência de que as noções freudianas tenham sempre o seu valor ressituado no contex-
to em que elas surgiram, isto é, quando se fizeram "indispensáveis a Freud porque elas
traziam uma resposta a uma questão que ele tinha formulado antes em outros termos".
Isso ele já diz na abertura do seu primeiro seminário.
A segunda categoria funda a experiência do analista em formação em um apren-
dizado supervisionado "onde o estudante pode reconhecer a função criadora da práxis
e o valor da análise como ciência do particular, pondo à prova, na duração de uma ex-
periência a relação das regras com seus efeitos no caso".
A terceira categoria é a crítica que, subordinada aos dados analíticos, questiona
"tanto as normas da psicopatologia clássica, quanto o valor efetivo da intervenção técni-
ca, ela mesma".
Finalmente, uma quarta categoria elege para a formação analítica a psicanálise
com crianças, uma clínica ainda por ser definida, segundo ele, em 1953, mas segura-
mente se apresentando como "a fronteira onde se oferece à psicanálise o que de mais
desconhecido existe a se conquistar".
Em seu projeto, Lacan vê principalmente uma vantagem essencial na formação
que um Instituto oferece aos seus analistas: "não participar das exigências formais de
assiduidade e de exames que, por se exercerem talvez um pouco em demasia nos nossos
dias nos estudos superiores, mostram suficientemente que elas degradam o estilo sem
elevar o nível''.
O intento de Lacan não foi o de assentar a teoria psicanalítica sobre outros sabe-
res reconhecidos, mas, no início do seu ensino, foi o de reuni-los e questioná-los para
torná-los afins à psicanálise. Como ele o fazia? Pela via indicada por ele como "a única
formação que nós possamos entender transmitir": um estilo.
Anos depois, a solidariedade entre a enunciação de Lacan e a receptividade e a
realização do seu ensino pelos ouvintes do seu seminário, cumpriu-se nos maternas e
na formalização dos quatro discursos. Antes, porém, ainda em 1964, tendo já acontecido
a segunda cisão na comunidade dos analistas franceses, o livro 10 do seu seminário Os
quatro conceitos fundamentais da psicanálise, reafirma que seu ensino permanece ten-
Notas
Lacan, J. (1966/1998) "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise". ln F.scritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
2 L:lcan, J. (1979 ll953-541). O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
U.CAN E A CRIANÇA
A criança é feita para aprender, diz Lacan', aprender a fazer o nó a partir do que
fracassa. Com isso, ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui
a ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um.
Essa indicação de Lacan nos orienta a ser parceiros da criança em seu trabalho
de construção, com os elementos ao seu alcance, para não ser deixada cair como obje-
to- dejeto da família e da civilização atual, que não quer saber do fracasso próprio ao
falasser.
A disjunção entre o infantil e a criança tem consequências que devem nos orientar
hoje, para não fazer a criança encarnar o infantil que a infantiliza, e permitir resgatar na
dimensão inconsciente do infantil freudiano sua função de alienação e separação.
Lacan continua dizendo, nessa mesma aula de seu Seminário 21, que a criança
deve aprender alguma coisa para que o nó se faça bem e ela não seja não-tola. Em ou-
tras palavras, para que ela possa ser tola do que é possível construir para se orientar no
mundo imprevisível dos humanos. Lembremo-nos do título do seminário "Os não tolos
erram". Com essa indicação somos levados a acompanhar as crianças em suas constru-
ções para lidar com um real opaco, que se presentifica de forma cada vez mais avassa-
ladora em relação às origens, que ficam sob o controle das ofertas da ciência a serviço
da injunção de "criança para todos" que alimenta o mercado de genes e de embriões.
Torna-se cada vez mais difícil decifrar o desejo em jogo a partir do mal-entendido entre
os sexos, e enlaçar simbólico e imaginário a partir do elemento terceiro que Lacan de-
signa como real. Pois o real opaco é um buraco negro não esvaziado, de forma que os
fios não conseguem passar e se entrelaçar. Lacan, na parte final do seu ensino, abre para
a dimensão do furo no buraco negro, na opacidade presente em todo desejo. Com isso,
ele faz valer a chance que as crianças têm para lidar com sua posição de objeto à mercê
dos cuidados ou do abandono por parte dos que a introduzem no mundo.
Notas
Lacan, J [1973-741. ~Lcs non-dupes errent". Semi11ãrio 21, Os não tolos erram. Inédito, aula de 2 de dezembro de 1973.
2 Caso Clínico apresentado por Angélica Bastos no núcleo Curumim(ICP-RJ), no dia 22 de novembro de 2011.
ABsTRACTS
Resumo: Entrevista com Jacques-Alain Miller, realizada pelos membros do comitê de redação da
revista /..e Diable probablement. Nela, Miller relaLa situações inéditas sobre Lacan, assim como
revela, sobre si mesmo, o fato espantoso de ter tomado Lacan como seu "protegido". Fala da
relação do psicanalista francês com a filosofia e com os grandes pensadores da época, tais
como: Sartre, Deleuze, Foucault, Derrida, assim como com a doxa. Miller fala dos Seminários
de Lacan, e, sobretudo, do lacan psicanalista, aquele que, com a força de seu desejo, tirava
seus analisantes da confortável mediocridade. Mostra, exatamente, como o estilo de Lacan não
deixa ninguém indiferente ou impassível.
Palavras chave: psicanálise; Lacan; Seminários; Miller; escrita; clínica psicanalítica; posteridade.
•
Abstract: lnterview with Jacques Alain Miller, performed by members of the editorial board of
•
the magazine Le Diable probablement. ln it, Miller reports on Lacan new situations, as well as
reveals about himself, the astonishing fact of Lacan have taken as his "protectect··. He speaks
about the relationship of the French psychoanalyst with philosophy and with the great thinkers
of that time, such as Sartre, Deleuze, Foucault, Derrida, as \Vell as the doxa. Miller speaks ahout
Lacan's seminars and ahove ali the psychoanalyst Lacan, who, with the strength of his desire,
took his analysands off their comfortable mediocrity. He shows exaclly how Lacan's style leaves
no one indifferent or impassive.
Keywords: psychoanalysis; Lacan; Seminar; Miller; writing; clinic; posterity.
Resumo: Judith Miller concede uma entrevista para a revista Le Diable probablement. A pre-
sidente da Associação da Fundação do Campo Freudiano, filha de Lacan, que há décadas
consagra-se ao ensino de seu pai conta a história do nascimento do Campo Freudiano, sua
difusão pelo mundo e seu trabalho de "reconquista permanente". Ela ressalta ainda a impor-
tância das traduções dos livros e artigos de Lacan, por ser este um dos pilares da transmissão
do seu ensino, possibilitando a formação de psicanalistas pelo mundo afora.
Palavras-chave: Campo Freudiano; Escolas lacanianas; formação; ensino; desejo
Abstract: Judith Miller gives an interview to the magazine Le Diahle probablement. The presi-
dent of the Foundation of the Freudian Field, daughter of Lacan, who for decades devoted to
the teaching of his father tells the story of the birth of the Freudian Field, spread around the
world and his work of "permanent conquest." She also emphasizes the importance of trans-
lations of Lacan's books and articles once this is one of the pillars of the transmission of his
teaching, enabling the training of psychoanalysts throughout the world.
Keywords: Field Freudian; Lacanian schools; training; teaching; desire
ERIC LAURENT - psicanalista, diretor-presidente da Universidade Popular Jacques Lacan, AME da EBP, da
ECF. da ELP, da EOL, da NEL, da NLS e da AMP.
A ordem simbólica no século XXI, consequências para o tratamento
Abslract: Text originally published in Papers No. 1, published online preparation for the Eighth
Congress of the AMP. Where does the title of the next Congress in 2012? The symbolic order in
the XXI century. It is no longer what it was. Consequences for the cure. As part of the titles in
the series of conferences? Two years ago, in Buenos Aires, Jacques-Alain Miller put in a logical
fashion, the series of titles and traced the history of a wonderful program, well thought out
from the beginning. Placed in shape with the help of ternary. The last three Congresses form
a ternary particular.
Keywords: psychoanalysis; congress of AMP; joy; sinthome.
Resumo: Pascale Fari escreve como sua transferência a Lacan se inscreveu a partir de seu encon-
tro com o texto do psicanalista francês. Texto este que lhe serviu de antídoto contra a angústia
e permitiu-lhe trabalhar sua relação com o saber, até que se abrisse a possibilidade de saber
fazer com o furo real, sem que fosse apenas pela consistência imaginária e pela formalização
corrente do simbólico.
Palavras-chave: texto de lacan; saber; mal-entendido; angústia; furo real
Abstract: Pascale Fari writes how his transfer to Lacan was ascribed to his encounter with the
French psychoanalyst's text. Text that served heras an antidote to anxiety, allowed him to work
his relationship with the knowledge, until it was available some know-how with the actual
hole instead of dealing with uniquely by means of imaginary consistency and a symbolic chain
formalization.
Keywords: Lacan's text; knowledge; misunderstanding; anxiety; real hole
Resumo: Relato de passe. Jacques Lacan não se deteve diante do que ele mesmo nomeou como
um "fracassoM de sua primeira "Proposição ..." sobre o passe; aí reside para mim o interesse do
"Prefácio à edição inglesa do Seminário 11". Esse texto mostra que ele não cessou de perseve-
rar em sua pesquisa quanto ao fim de análise, sempre ancorado em sua prática, pois recebeu
seus analisantes até o fim de sua vida. Trinta anos após sua morte, nós ainda nos debruçamos
sobre os resultados de seus trinta anos de prática analítica, experiência da qual ele extraiu a
matéria de seu ensino.
Palavras-chave: passe; transmissão; saber; analista.
Abstract: Jacques Lacan was not arrested before he even named as a "failure" of his first "pro-
position ... " on the go, for me there Iies the interest of the "Preface to the English edition of
Seminar 11.M This text shows that he did not cease to persevere in his research on the arder of
Resumo: Relato de passe. Para mim, o português é a língua materna e o francês, a língua do
Outro. E por que não considerá-lo como esse Outro estrangeiro que é o inconsciente? Durante
os 20 anos em que transcorreu minha experiência analítica, antes do passe - oito anos, com
o primeiro analista; dois anos de interrupção; e outros 10 anos com o segundo analista -,
produziram-se lapsos, trocadilhos e expressões por meio de sonhos, que exploravam riquezas
semânticas e equívocos que o trânsito do matemo ao estrangeiro da língua tornou possíveis.
Palavras-chave: passe, língua, lalíngua, feminino.
Abstract: To me, Portuguese is the mother tongue and French,the language of the Other. And
why not consider it as this other foreigner who L') unconscious? During the 20 years I spent my
analytic experience, before the pass - eight years with the first analyst, two-year break, and ano-
ther 10 years with the second analyst - were produced slips, puns and expressions through
dreams, exploiting semantic richness and misconceptions that the transit of foreign mo-
ther tangue beca me possible.
Keywords: pass, language, lalangue, female.
SÉRGIO PASSOS RIBEIRO DE CAMPOS - AE da EBP eda AMP, Coordenador da Residência de psiquiatria do
IRS/FHEMIG, Doutorado pela FM-UFMG.
Amar sem compreender
Resumo: Resumo: O texto é um relato de passe no qual o sujeito testemunha sobre a crença no
amor e na mulher. Ademais, o autor ilustra com um apólogo a mudança do regime de gozo no
final de análise sem, contudo, a troca de objeto de amo. Assinala que quando se ama se crê
na mulher e em consequência de tal condiç.1o, o homem se torna devedor até o momento em
que finda o amor.
Palavras-chave: Apólogo, amor, crença, não-todo, depoimento, final de análise.
Abstract: The text is an account of which the subject passes rhe witness about the belief in love
and women. Moreover, the author illustrates with a parable regime change with joy at the end
of analysis, but without the exchange of object love. Notes that when it is believed the woman
he loves and as a result of such condition, the man becomes debtor to the time when the !ove
ends.
Keywords: an apology, love, belief, not-all, testimony, final analysis.
ELISA ALVARENGA - psiquiatra e psicanalista, AME da EBP e da AMP, ex-AE (2000-2003). Doutorado em
Psicanálise pela Universidade de Paris VIII.
Porque Lacan está vivo
Resumo: o texto fala do momento atual, em que celebramos, por ocasião dos 30 anos da morte
de Lacan, a publicação de Vida de Lacan, livro de Jacques-Alain Miller que o torna mais vivo
entre nós. Se Lacan recuperou a experiência freudiana do inconsciente, a orientação lacaniana
da psicanálise torna vivo e operante o ensino de Lacan, que convida cada analisante a contri-
buir com a sua experiência.
Palavras-chave: Freud, Lacan, vida, inconsciente, real.
Abstract: the text talks about the actual moment, when we celebrate, in the ocasion of the 30
years of Lacan's death, the publication of Lacan's life, Jacques-Alain Miller book which makes
Lacan alive among us. As well as Lacan has recovered the freudien experience of the uncons-
cious, the lacanian orientation of psychoanalysis makes lively and operating the teachings of
Lacan, who invites each analysand to contribute avec his own experience.
Keywords: Freud, Lacan, life, unconscious, real.
Resumo: Esse texto versa sobre a fundamentação lógica do ensino de Lacan, o recurso que ele
faz a diversos lógicos para formalizar a sua teoria.
Palavras-chave: Lacan; lógica; traço; formalização; Real, sintoma.
Abstract: This work presents the fundamentals of logic in Lacan's studies and the mention of
several logic and mathematic theories from different authors to formulate his own theory.
Keywords: Lacan; feature; logic; formulation; Real; Sintam.
Abstract: Lacan's references of ethology are used as the counterpart of the sexual disorder in
rhe humankind, creating an approach of its ignorance of the sexual partner, this is, an anteci-
pation of his late development of the non-sexual relation. One of the points of this disorder
in men is a kind of game of hide and seek between the image and the object. The construc-
tion of relations between i(a) and the object will result in the development of the function of
the semblant and also of the object in the three registers.
Keywords: ethology; sexual partner; image; semblant.
JÉSUS SANTIAGO - psicanalista. doutor em Psicanálise pela Universidade de Paris VIII, professor adjunto
da UFMG, AME da EBP e da AMP.
Lacan, filósofo
Resumo: O intuito desse artigo é mostrar a modalidade singular do emprego que Jacques Lacan
faz do saber filosófico. Salienta-se que o recurso ao campo da filosofia não se depreende da
filosofia tomada como um sistema conceituai e interpretativo, mas com os restos desse saber
que afetam o real com o qual lida o psicanalista. Considera-se, assim, que a conexão com os
diversos restos da filosofia está a serviço do avanço da própria psicanálise e, não, do corpus
de problemas e soluções que tradicionalmente pertencem ao campo filosófico. As conexões da
psicanálise com a filosofia apenas existem com a condição de se admitir que sua finalidade úl-
tima é contribuir para a psic.análise como um saber autônomo e desconexo dos outros saberes.
A prova disto é que a apropriação desses restos que, pouco a pouco se depositaram, ao longo
da elaboração de Lacan, assume a designação explícita de antifilosofia. Finalmente, o artigo
intenciona demonstrar essa apropriação da antifilosofia dos mais diversos restos da filosofia
por meio do tema eterno do amor tal como ele aparece no Banquete de Platão.
Palavras-chave: Lacan, filosofia, anti-filosofia, amor, salvação, real.
Abstract: This article's objective is to show the singularity of the philosophical knowledge made
by Jacques Lacan. The resource of the philosophical field does not come from philosophy as a
conceptual and interpretative system but as the remains of this knowledge which affects the re-
alism that the psychoanalyst <leais with. This way, the connection to many parts of phylosophy
works in favor of the psychoanalysis, and not of the body of problems and solutions that tradi-
tionally belong to the philosophical field. The connections of psychoanalysis with philosophy
only exist when admitring that it acknowledges psychoanalysis as autonomous from the other
areas of knowledge. The proof is in Lacan's elaboration of the antiphylosophy term. Finally, the
article demonstrares the use of antiphylosophy in diverse remains of philosophy by using the
eternal !ove theme as lt is seen in Plato's Banquet.
Keywords, Lacan, Phylosophy, antiphilosophy, !ove, salvation, real.
SÉRGIO LAIA-Analista Membro da Escola (AMEI, pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mun·
dia! de Psicanálise (AMP); Professor do Curso de Psicologia da Universidade FUMEC (fundação Mineira de Edu·
cação eCultura); Pesquisador do Programa de Pesquisa e Iniciação Científica da Universidade FUMEC (ProPIC) e
com Bolsa de Produtividade Nível 2pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico eCientífico (CNPQ).
Um (inusitado) Lacan Freudiano- a satisfação em todas as partes
Resumo: Neste texto, as influências que Lacan teve de Freud são abordadas para além do seu cé-
lebre "retorno a Freud''. Assim, orientado por elaborações de Miller em El partenaire-síntoma,
este texto procura esclarecer como urna mudança na concepção de Lacan sobre as relações
entre significante e gozo altera suas noções anteriores de "sujeito", "Outro" e "fim de análise".
Palavras-chave: satisfação; gozo; falasser; sintoma; sinthoma; fim de análise.
Abstract: ln this text, the influences of Freud on Lacan are presented beyond his acclaimed
"return to Freud". Oriented in direct line with Miller's elaborations in Et partenaire-síntoma,
this text aims clarify how a changing in Lacan conception about the relations between signifier
andJouissance transforrns his forrner notions about "subject", "Other" and "the end of analysis".
Keywords: satisfaction, enjoyment, speakingbe; symptom; sinthome; end of analysis.
Resumo: Extrato da tese que fez jus ao título de "Doutor em Ciências", outorgado pela USP·-
Universidade de São Paulo (Neurologia): "Desautorizando o sofrimento socialmente padroniza-
do, em pacientes afetados por doenças neuromusculares".
Palavras-chave: Lacan, segunda clínica, real, responsabilizar.
BERNARDINO C. HORNE - Psicoanalista, Miembro de la EBP y la AMP. Analista Membro da Escola (AME) y AE
1995. Miembro de la Escuela Europea de Psicoanálisis.
Lacan topológico
Resumo: Lacan responde, no final de seu ensino, à pergunta inicial de Freud sobre como é a
estrutura e o funcionamento do sistema mental por meio da topologia. Os registros essenciais
da experiência humana são 3: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Eles se enlaçam borromea-
namente por meio de um quarto elemento nas neuroses, e não borromeanamente nas psicoses.
Esta última elaboração tem a ver com a virada radical na reoría, ao passar o eixo da relação do
Sujeito com o (A) Outro para o Uno.
Palavras·chave: Borromeo; Nó; Sinthoma; Sintoma; Uno.
Abstract: Topology is the answer that gives Lacan, during the last period of his teaching, to the
starting question of Freud about the structure and function of the mental system. The Real, the
Symbolic and the Imaginary are essential for the human experience they tie trough a fourth
element in a borromean way in the neuroses and non borromean way in the psychoses. All
this as to do with the passage from the (A) to the One.
Keywords: Borromean; Knot; Sinthome; Symptorn; One.
RÔMULO FERREIRA DA SILVA - AME da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP. Membro do Conselho da EBP
e da EBP·SP. Psiquiatra e Doutorando da Universidade de Paris 8.
Lacan, supervisor
Resumo: O texto retoma o percurso de Lacan em relação à formação do analista, dando ênfase
na supervisão como um dos três pontos fundamentais dessa formação.Ressalta ainda a impor-
tância que teve Lacan na história da supervisão institucional.
Palavras·chave: supervisão; formação analítica.
Abstract: The text takes the pathway of Lacan for the training of the analyst, with emphasis on
supervision as one of the three key points of the psychoanalytical training. The text emphasi-
zes the importance that Lacan has had in the history of institutional supervision.
Keywords: Supervision; psychoanalytical training.
Abstract: The text <leais with elaboration of the concept of inconsistency of the Other
from the formalization of the Freudian concept of libido proposed by Lacan.
Keywords: libido; langage; castration; object a; inconsistency of the Other.
Resumo: Este texto visa abordar a questão da transmissão da psicanálise como proposta por
Lacan a panir de sua ruptura radical com o modo protocolar e o ritualístico de tr,rnsmitir a
herança freudiana. A transmissão da psicanálise visa então, fazer passar de um a um o que
já está estabelecido no seu campo - da fala e da linguagem- ao mesmo tempo favorecer que
algo novo possa surgir neste transporte considerando, no entanto, que nesta transferência algo
se perca para sempre. Ou seja, a transmissão em psicanálise não é integral e, portanto não
está garantida - sua presença no mundo - depende do desejo do psicanalista em sustentá-la.
Palavras-chave: Transmissão da psicanálise, desejo do psicanalista, passe, materna.
Abstract: This text aims to approach the transmission of psychoanalysis as per Lacan's pro-
posai, from its radical break with the protocol and ritualistic way of transmitting the freudian
heritage. The transmission of psychoanalysis aims to transfer from one to another , what
has already been established in its field - from speech and language - and at the sarne time
favours that something new could arise in this transport, considering however, that in this
transfer, something gets lost forever. ln other words, the transmission of psychoanalysis is not
integral, and therefore is not totally guaranteed - its presence - depends on the desire of the
psychoanalyst in sustaining it.
Keywords: Transmission of psychoanalysis, desire of the psychoanalyst, transfer, matheme.
SIMONE SOUTO - psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial
de Psicanálise (AMP).
Lacan e o objeto a, em três tempos
Abstract: This text discusses the formu1ation of objecc a by Lacan on three occasions: in the
experience of transference, in its relationship with anguish and its presentation as semblanr.
Keywords: object a; transference; semblant;jouissance.
Resumo: A psicanálise, que se consolidou com uma clínica própria, é uma herança da psiquia-
tria. O discurso analítico, consequente com a psiquiatria de Kraepelin e de Bleuler, modificou
a nosografia psiquiátrica: a passagem da demência precoce à esquizofrenia foi produzida pelo
discurso da psicanálise. Assim, a psicanálise começou a modificar a psiquiatria, esclarecendo-
-a principalmente em relação ao diagnóstico, que estava baseado nas formas sintomáticas, ao
tomar como referência a posição do sujeito, considerando a estrutura.
Palavras-chave: psicanálise; psiquiatria; diagnóstico; Lacan.
Abstract: Psychoanalysis, which was consolidated with a clinic itself is a legacy of psychiatry.
The analytic discourse, resulting in psychiatry ofKraepelin and Bleuler changed the psychiatric
terminology: the passage of dementia praecox to schizophrenia has been produced by the dis-
course of psychoanalysis. Thus, psychoanalysis, psychiatry began to change, clarifying particu-
larly in relation to diagnosis, which was based on symptomatic forms, by taking as reference
the position of the subject, considering the structure.
Keywords: psychoanalysis, psychiatry, diagnostic, lacan.
Resumo: O texto procura traçar os momentos de encontro do ensino de Lacan com a obra de
James Joyce, visando extrair o que desse encontro nos prepara para a experiência analítica do
século xxi.
Palavras-chave: Lacan; Joyce; letra; legível; ilegível.
Abstract: This paper seeks to trace the moments of meeting of Lacan's teaching with the work
of James Joyce in order to draw this meeting which prepares us for the analytic experience of
the twenty-first century.
Keywords: Lacan; Joyce; letter; readable; unreadable.
FRANCISCO PAES BARRETO - A.M.E. Analista Membro da EBP e da AMP, preceptor da residência em psi·
quiatria do Hospital Galba Veloso e do Instituto Raul Soares (FHEMIG) entre 1968 e1993.
Lacan e a apresentação de pacientes
Resumo: A apresentação de pacientes é uma experiência que o Dr. Lacan praticou durante toda
a vida, até 1980. Existe, porém, continuidade e ruptura entre o que ele fez e o que provem da
tradição psiquiátrica: eis a linha mestra do presente trabalho.
Palavras-chave: apresentação de pacientes; psicanálise e psiquiatria; automatismo mental.
Abstract: The Presemation of Patiems is a experience that doctor Lacan practiced during all his
life, until 1980. There is both continuity and rupture between what he did and what proceed
from psychiatric tradition: this is the axis of this work.
Keywords: presentation of patients; psychoanalysis and psychiatry; mental automatism.
CELSO RENNÓ LIMA • médico psiquiatra, AME da Escola Brasileira de Psicanálise e ex·AE da Associação
Mundial de Psicanálise (no Período de 1977-2000).
Lacan e o mestre Clérambault
Abstract: A brief history of the importance that had De Clérnmbault in the formation of Jac-
ques Lacan, curious passages marking the recognition of this relationship where the axis is rhe
recognition of the Master.
Keywords: psychiatry; psychoanalysis; Clérambault; Lacan.
Resumo: A recente publicação do Seminário XIX de Lacan nos permite fazer uma releitura das
propostas sobre o dito e o dizer, classicamente associadas às formulações de seu texto o Atur~
dito, tendo como base as considerações dos primeiros seminários, sobretudo o esquema L,
introduzido no Seminário III. Nossa proposta é verificar a pertinência da distinção entre dito
e dizer levando em conta o discurso do analista como um discurso que leva em conta o gozo
intrínseco a própria enunciação do ser falante.
Palavras-chave: Discurso do analista, dito, dizer, esquema L.
Abstract: The recent publication of Lacan's Seminar XIX allows us to reconsider the proposals
on the "said" and the "saying", classically associated with the formulation of your L'etourdit text,
based on considerations of the first seminars, especially the L scheme, introduced in Seminar
III. Our proposal is to check the relevance of this distinction between saying and what was said
taking into account the analyst's discourse as a discourse that takes into account the intrinsic
enjoyment of the very utterance of the speaking being.
Keywords: Speech of the analyst, said, to say, Scheme L.
MARCUS ANDRÉ VIEIRA - AME da EBP, Professor da PUC·Rio, Diretor do ICP-RJ, autor, entre outros, de
Restos (Contra Capa, 2008).
O resto e o riso
Resuma: Este artigo resume a teoria lacaniana do objeto "a" como resto da constituição subjeti-
va, tal como proposto em seus Seminários 10 e 11. No entanto, em lugar de fazê-lo com base
nas operações de alienação e separação, introduzidas por Lacan nestes seminários, optamos
por trazer a função do objeto-resto a partir da distinção entre moral e ética empreendida em
seu Seminário 7. O desejo, tal como Lacan o entende é sempre incompatível com o ego e por
isso sempre, em seus termos, monstruoso. O texto se apoia a seguir em dois poemas de Ma-
nuel Bandeira para demonstrar como é possível dar lugar aos monstros do desejo sem recorrer
à sua interdição ou à sua inclusão por domesticação.
Palavras-chave: desejo, gozo, ética, moral, objeto "a", resto, riso.
Abstract: This paper explains the lacanian theory of the • a ~ object. It's definition by Lacan
approaches it to the wastes of everyday life and a fundamental waste within de subject cons-
titution as Lacan pointes out in his eleventh seminar. ln this text we choose to bring out this
theory form his seventh seminar, the one who put the relationship between ethic and moral
into perspective. Our desire is full of little ~ rnonsters •, meaning the part of our fantasies that
are impossible to put together with our ego. Finally, we comment two poems of Manuel Ban-
deira to demonstrate what has been explained.
Keywords: desire, jouissance, ethics, moral, • a • object, waste, laghter.
ANA LUCIA LUTTERBACH - Membro da Seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise; AME da Associação
Mundial de psicanálise: AE durante o período de 2007 a 2010; Doutora em Teoria Psicanalítica UFRJ.
O gozo feminino e o Um
Resumo: A autora parte da referência de Lacan no Seminário 20 sobre o seminário da Ética para
falar sobre a relação entre o gozo feminino e o Um, explorada por Miller em seu curso de
2011. Se no Seminário 7 havia a ideia do fim de análise como uma purificação do desejo, isto
é, desejo sem corpo, no Seminário 20 o gozo ganha corpo, a própria sublimação não é sem o
corpo. Passa-se de uma cartografia a uma topologia, e do amor cortês e da erótica do trágico
à não relação sexual e à elahoraçào do nãotodo, uma estrutura correlativa à face real do Outro
que não existe. Uma vez que o Outro não existe, não existe a relação sexual, só existe o sig-
nificante Thn_ É na medi<la que -se coloca como um dado primeiro .há um• que se é conduzido
a isolar o gozo como uma outra substância. E substância implica um corpo existente onde a
linguagem se imprime produzindo efeito de gozo: o Um se imprime sobre o corpo e faz dele
um aparelho de gozo.
Palavras-chave: gozo feminino, corpo, topologia, Outro que não existe, YAD'Um, substância.
Abstract: Lacan's 20th Seminar refers directly to the Ethics seminar. The author starts from there
to talk about the relationship between feminine enjoyment and the One, exploited by Miller
in his course in 2011. If the 7th Seminar had the idea of the end of analysis as a purification
of desire, that is, desire without body, in the 20th Seminar enjoyment takes shape, sublimation
is not without the body. We go from the mapping to the topology, and from courtly lave and
the tragic erotics to the non sexual relationship and the formulation of the nona!{, a structure
corresponding to the real face of the Other that does not exist. Once the Other does not exist,
there is no sexual relationship, there is only the significam One. When "that is one" arises as a
primary fact it conducts to isolate the enjoyment as another substance. And substance means
the existing body where language is printed producing effect of enjoyment: the One is printed
over the body and makes it an apparatus of enjoyment.
Keywords: feminine enjoyment, body, topology, Other that does not exist, One, substance.
Resumo: Lacan pensava que a matemática seria a chave que permitiria a articulação direta entre
Simbólico e Real, importante para nossa clínica na qual o Real do gozo deve ser tocado com
palavras. Importante também para poder pensar como o real do trauma, que foi fixado como
acontecimento corporal, se repete na palavra.
Palavras-chave: matemática, real, simbólico, cifra.
Abstract: Lacan thought that mathematic would be the key to a direct articulation between the
Real and the Symbolic, which is important to our clinic where the Heal of joy must be touch
with words. It is also important to think how the real of trnuma, which was setas a body event,
repeats in the word.
Keywords, mathematic, Real, Symholic, , chypher
LUIZ HENRIQUE VIDIGAL - membro da Escola Brasileira de Psicanálise, da Associação mundial de Psicaná-
lise e AME da Escola Brasileira de Psicanálise.
Lacan e a Escola
Resumo: Trata-se da ficção de um breve encontro e um diálogo com Lacan sobre a Escola que
poderia ter ocorrido em 1979. Todas as falas de Lacan foram retiradas de seus seminários ou
escritos. A literalidade, do que poderia ser apenas um conjunto de citações, é rompida pela
reorganização das palavras, pela ênfase, na medida em que é preciso dar a sensação de um
diálogo, de uma história contada. Nem verdade, nem mentira, ficção.
Palavras-chave: Escola; formação; cartel; asse.
Abstract: This is the fiction of a brief encounter and dialogue with Lacan about the • Éco/e •
that could have occurred in 1979. Ali lines have been drawn from Lacan,s Seminars and his
Writings.The literalness of what could be just a collection of quotations, is disrupted by the
rearrangement of words, for emphasis, to the extent that it is necessary to give the impression
of a dialogue, a story told. Neither truth or false, fiction.
Keywords: School; formation; cartel; passe.
Resumo: Em um pequeno texto feito em homenagem a um escritor que se deu a tarefa de forçar
a língua até o limite do sentido, Lacan nos deixou esta afirmação: o sintoma é um aconteci-
mento de corpo. Por que falar do corpo nessa conferência? Por que falar do corpo em uma
homenagem a James Joyce? É até certo ponto surpreendente que um artista que nunca passou
pela experiência analítica - e a questão sequer podia ser levantada, comentou de passagem
Jacques-Alain Miller - sirva de exemplo, ou, mais do que exemplo, de modelo para uma nova
abordagem do sintoma, para o qual Lacan chegou inclusive a propor uma nova escrita: sin-
thoma.
Palavras-chave: acontecimento de corpo; sintoma; gozo; falasser.
Abstract: ln a small text made in honor of a writer who has the task of forcing the language
to the limit of sense, Lacan gave us this staternent: the symptom is an event of the body. Why
speak of the body at this conference? Why speak of the body in an homage to James Joyce?
It is somewhat surprising that an artist who never went through the analytic experience - and
the question could be raised even commented in passing Jacques-Alain Miller - serve as an
example, or more than example, a model for a new approach to the symptom, for which Lacan
has even proposed a new script: sinthome.
Keywords: event of the body; symptom; joy; speakingbeing.
Resumo: Um ensino, o seu, durante os primeiros 10 anos, pôs Lacan, semanalmente, retornou,
então, ao sentido de Freud. Com Freud, a psicanálise se aprendia na experiência mesma da
análise do analista, sua formação conjugando, assim, a convicção da existência do inconscien-
te e trocas verbais ou epistolares a partir dos ensinamentos do mestre. Transmitiam-se, dessa
maneira, os conceitos fundamentais da psicanálise. A Lacan interessava, desde a abertura do
seu ensino, denunciar, antes de tudo, um primeiro efeito da burocratização da formação do
analista, reduzindo as regras standard da psicanálise, não as tratando, como o fez Freud, à
maneira de um instrumento que se tem bem firme na mão.
Palavras-chave: ensino; Lacan; transmissão; psicanálise.
Abstract: Teaching, his, during the first 10 years, put Lacan, weekly, returned, then the sense of
Freud. With Freud, psychoanalysis has learned the sarne experience of the analyst's analysis,
combining their training, so the conviction of the existence of the unconscious and verbal and
epistolary exchanges from the teachings of the master. It is transmitted in this way, the fun-
damental concepts of psychoanalysis. The Lacan interest, since the opening of his teaching,
Resumo: A criança é feita para aprender, diz Lacan , aprender a fazer o nó a partir do que
fracassa. Com isso, ele distingue a criança do infantil como retorno do recalcado, e atribui a
ela um trabalho de construção que pode ser verificado de forma singular em cada um. Essa
indicação de Lacan nos orienta a ser parceiros da criança em seu trabalho de construção, com
os elementos ao seu alcance, para não ser deixada cair como objeto- dejeto da família e da
civilização atual, que não quer saber do fracasso próprio ao falasser.
Palavras-chave: criança; infantil; objeto; civilização.
Abstract: The child is made to learn, says Lacan, learning to do from the node that fails. Thus,
he distinguishes the child from the child as a return of the repressed, and assigns it a work of
construction which can be determined uniquely in each. This indication of Lacan tells us to
be partners in their child's construction work, with the elements at your fingertips, not to be
dropped as object-waste and the family of modero civilization, he does not want to know the
failure itself to speaking being.
Keywords: child, child; object; civilization.
52 SETEMBRO/OS
EDITORIAIS
Silvia Tendlarz, Do objeto a ao sintoma e o semblante § Ana Lydia Santiago, Editorial
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, Semblantes e sinthomas; A imagem do corpo em psicanálise; Psicanálise e conexões;
O desbaste da formação analítica
FELICIDADE NO SINTHOMA
Samyra Assad, Da varieté dos sintomas ao sinthoma § Laura Rubião, O patrocínio de Stela:sobre a função
da escrita na psicose § Teresinha N M. Prado, O nada como causa em Clarice Lispector § Luis Francisco
Espíndola Camargo, Modulação e extracão no tratamento das psicoses § Eliana Bentes Castro, Um trabalho
de nomeação
OPASSE NAS ESCOLAS
Carmelo Licitra Rosa, Viver. .. depois do passe § Ana Lucia L. Ho!ck, Mulheres e objetos § Céline Mengui, Uma
raspa de voz ao nível do osso § Luis Dario Sa/amone, Mais que um truque § Bernard Seynhaeve, Escrita de
uma borda § Massimo Termini, O que acontece § Antoni Vicens, Testemunho
MODALIDADES DO PASSE NO SÉCULO XXI
Elisa Alvarenga, Modalidades do passe na EBP §Hilán·o Cid Vivas, Intervenção na plenária § Li/ia Mabjoub,
A formação do psicanalista § Maurício Tarrab, Uma nova volta § Rose-Paulo Vfnctguerra, O passe, con-
tingente
OLUGAR DOS CPCTs NO DISCURSO ANALITICO
Paula Kalfus, Fale comigo § Monique Kusnierek, Um passo para o lado § Lucia Grossi, O objeto e o tempo
§ Antoni Vicens, Um caso ordinário § Pascale Fan·, Dar lugar ã própria voz § Domenico Cosenza, Entre um
suicídio bem sucedido e um falido: o caso de Filippo, o fotórafo
AOBJETALIDADE DA CIÊNCIA, DA ARTE EA POLÍTICA
François Ansermet, Traço e objeto, entre neurociências e psicanálise § Jorge Forbes, Maktoub? A influência
da psicanálise sobre a expressão dos Genes §Jean-Claude Ma/eva/, Os autistas "ouvem muitas coisas", mas
será que alucinam? § Marie-Héli!ne Brousse, O objeto de arte na época do fim do Belo: do objeto ao abjeto
§ Samuel Basz, Uma política da psicanálise
ALEITURA DO ALGORITMO DA TRANSFERÊNCIA A PARTIR DO OBJETO a
Graciela Brodsky, Hic et nunc § Marco Focchi, Glitch § Pierre-Gilles Guégen, A captura do objeto a na
transferência
53 JANEIR0/09
EDITORIAIS
Jacques-Alain Miller, Qual política lacaniana para 2009? § Perspectivas de política lacaniana § Rômulo Fer-
reira da Silua, Editorial §
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, Conferência no Teatro Coliseo
HLICIDAOE ESEMBLANTE
Lêda Guimarães, Felicidade no sintoma pós-analítico §Jorge Pimenta, A felicidade tem um pouco de tristeza
ou é melhor morrer com dignidade, em casa? § Ondina Machado, Sexo, mentiras e semblante
PONTUAÇÕES
Maria Isabel Lins, O objeto de arte em Marcel Duchamp § Reinaldo Pamponet, Sobre o gozo lacaniano §
Marcos Bulcão Nascimento, As duas verdades: Descartes com Lacan
PRÁTICA LACANIANA EM INSTITUIÇÃO
Freden·co Feu de Caroalbo, Surpresa e vergonha - resultados terapêuticos de uma apresentação de paciente
§ Maria Inês Lamy, Urgência subjetiva: um caso clínico § Man·a Luiza Mota Miranda, Eu sou borderline,
doutora
AMULHER ENTRE A MÃE EA CRIANÇA
Maria Luiza Rangel, Maternidade perversa? § Simone Bianchi, Ao encontro do parceiro: identificar-se ao
sinthoma do Outro § Suzana Ban-oso, Uma contribuição dos Lefort à psicanálise: a dínica da criança sem
o Outro
54 MAI0/09
EOITORIAIS
Leonardo Gorostiza, Felicidade ou alegria §Jésus Santiago, Em defesa de um psicanalista,
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, As prisões do gozo
MENTIRAS DA FELICIDADE
Eric Laurent, O tecido da fantasia§ Eric Laurent, O real do sinthoma
55 NOVEMBRO/O9
EDITORIAIS
Alicia Arenas, O inconsciente-utensílio § Marcus André Vieira, Editorial
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, O passe e as E.5colas § Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI § "São
os acasos que nos fazem ir a torto e a direito" § O inconsciente e o sinthoma
OANALISTA SEMBLANTE
Eric Laurent, O analista, semblante do objeto a
OANALISTA EOS SEMBLANTES
Ana Lydia Santiago, O analista e o semblante de saber § Leonardo Gorostiza, O arco-íris do gozo § Jorge
Forbes, Não tenho a menor ideia
PASSE ESEMBLANTE
Ana Lucia Lutterbach Holck, O analista, a mulher e o arco-íris
FINS DE ANÁLISE
Antoni Vicens, Do cinismo à ironia § Lilany Vieira Pacheco, Miséria banal, ao final de uma análise?
TRAÇOS DA CONTEMPORANEIDADE
José Rambeau, Clíi1.ica das periculosidades § Cristiana Pitel/a de Mattos, Anorexia: dois problemas, duas so-
luções § Sandra Espinha, Transferência e responsabilidade § Mónica Bueno de Camargo, "Pai, não vês que
estou queimando?"
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, O homem dos lobos (1ª.parte) § A palavra que fere
ENAPAOL
En·c Laurent, O semblante, a causa e a relação sexual § Romildo do Rêgo Barros, Como fazer escutar o sinto-
ma na instituição? § Gracie/a Brodsky, Dizer não SGracie/a Musachi, A pretensão universal dos protocolos:
angústia e sintomatização § Enric Berenguer, Nossa orientação diante nova Carte du Pays de Tendre
SEMINÁRIO INTERNACIONAL EBP
lordan Gurgel, De semblantes e bigodes! § Francisco Paes Barreto, O homem e a mulher, a lógica e a psi-
canálisea
ESTILO ESEMBLANTE
Gilson lannini, O estilo não é o homem: estilo, dessubjetivaçào e fim de análise § Mareio Peter de Souza
Leite, UnbewuSt, poesia e psicanálise § Jésus Santiago, A semblantização não é nominalista § Eduardo Ria-
viz, Adeus ao além? "Uma homeostase de nível superior~§ Angela de Andrade Pequeno, O estrangeiro e os
semblantes § Gisella Sette Lopes - A magia: verdade e gozo sintomático
58 OUTUBR0/10
EDITORIAIS
Marie-/Jéli!ne Brousse, Brainstorming, §Jésus Santiago, A ordem simbólica no séc. XXI
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, O passe do falasser
TESTEMUNHOS DOS AE NO VII CONGRESSO DA AMP
Jacques-Alain Miller, Abertura da plenária § Angelina Harari, Parceiros no singular § Jacques-Alain Miller,
Comentários § Sérgio de Campos, Túnica intima §Jacques-Afain Miller, Comentários § Jacques-Alain Milfer,
Abertura da plenária § Gustavo Stlglitz, Bom dia, Escola Una § Jacques-Alain Miller, Comentários § Sergio
Caretlo, O homem reto§ Patrícia Bosquin, Uma a-paixonada § Si/via Salman, Ânimo de amar§ Éric Laurent,
Comentários§ Anne lysy, 'Tem que ir!~§ Éric Laurent, Comentários§ Leonardo Gorostiza, A solidez de um
vazio § !lric Laurent, Comentários
CARTEL DO PASSE NA EBP
Graciela Brodsky, Alguns ensinamentos do passe
SINTOMA ESEMBLANTE
Pierre-Gilles Guéguen, O que não se pode dizer § Tânia Coelho dos Santos, Lá onde o inconsciente
falassério, o real morre de rir
60 SETEMBRO/li
EDITORIAIS
Jorge Chamarro - O analista suposto § Ana Lydia Santiago - Discurso de posse
ORIENTAÇÃO LACANIANA
Jacques-Alain Miller, Seminário sobre os caminhos da formação de sintomas
SOIRÉE DA AMP (31/01/11)
Eloisa Alvarenga - Falar a Língua do Outro§ Leonardo Gorostiza - O passe e as línguas na Escola Una § Guy
Bn"ole - Contingências das línguas § Angelina Hararl - O passe, as línguas e !alíngua § Erlc Laurent - O
passe entre as línguas ou "Dire Baber
LACAN ANALISANTE
Eric Laurent - Lacan analisante
CARTÉIS DO PASSE DA ECF
Serge Cottet - Relatório conclusivo d cartel A9 § Miquel Basso!s - Relatório conclusivo do cartel 89 § Eric
Laurent - Reflexões sobre os relatórios dos cartéis do passe da ECF
TESTEMUNHOS DE PASSE
Leonardo Gorostiza - Quando a cópula se abre § Angelina Harari - Topologia, vta de acesso ao real § Gus-
tavo Stiglitz - Tem gato na tuba. Sobre o fenômedo psicossomático § Sérgio de Campos - Três amarrações
do passe
PASSE EM TIRADENTES
Sérgio de Campos - Loucura masculina diante do não-todo da mulher § Si/via Salman - O significante de-
sanimado
IX ENCONTRO BRASILEIRO
Leonardo Gorostiza - O sintoma na clínica do delírio generalizado § Bernardino Horne - O delírio generali-
zado das ne\.1roses -da via Romana à via de Vincennes §Jésus Santiago-A intromissão compulsiva do olhar
na época da permissividade delirante §
OPASSE NA AMP
Araceli Fuentes - Um corpo, duas escrituras § Guy Bn"ole - fasa cicatriz, aqui
INCONSCIENTE ERESPONSABILIDADE
Jorge Forbes - Inconsciente e responsabilidade, psicanálise do século XXI (extratos)
ASSINATURA
Procedimentos
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Harari.
o Enviar cópia digitalizada do comprovante de depósito acompanhado da proposta de assinatura devida·
mente preenchida eos dados para envio para o e-mail: oplacaniana@gmail.com c/c: angelina.harari@terra.
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o Ou enviar para o endereço acima um cheque no valor de R$95,00 cruzado e nominal a Angelina Harari,
acompanhado da proposta de assinatura preenchida.
Após o recebimento desses documentos, o envio dos exemplares será realizado por correio, para o ende·
reço indicado.
Sol>re os exemplares
o nº 1ao nº 4: esgotados.
o nº 5 ao nº 7/B: Revista Brasileira de Psicanálise - esgotados.
o nº 9 ao nº 54: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise (já estão esgotados os nºs: 9, 10, 11, 12, 13, 17,
20, 2B, 29 e 30). Antes de efetuar pagamento, favor entrar em contato para conferir disponil>ilidade em
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Aquisição de três exemplares a partir do número 62 até dezembro de 2012_ Em caso de compras avulsas, exemplar les)
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ISSN 1s1,-J12a
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