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1 – uma história com começo,

meio e fim
Pâmela Eurídice jun 9, 2023

AVISO: o texto traz SPOILERS

Você deve conhecer aquele meme de : “eu estava obcecada,


passava 80% do meu tempo falando de coisa x e nos outros 20%
torcia para que alguém falassem pra eu falar mais”. Essa fui eu no
último mês em relação a “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”.
E, nesse texto, destaco quais foram os cinco motivos que me
levaram a me apaixonar por essa narrativa e revê-la tantas vezes.

A história de como Charlotte chegou ao Reino Unido para casar-se


com o rei e tornou-se a majestosa rainha casamenteira de
“Bridgerton” é bem amarrada, sem a necessidade de temporadas
complementares que justifiquem sua forma de governar ou como
trata as pessoas de sua corte.
:
“Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton” discute um ponto
central que é a consolidação da linhagem de George III, por isso a
montagem passeia entre presente e futuro ou passado e presente –
dependendo do seu ponto de vista – para mostrar o pesadelo da
rainha alemã de não ter descendentes que continuem a dinastia
Hannover após a morte de seus 15 filhos. Uma preocupação válida
considerando a fragilidade da linha de sucessão entre o marido de
Charlotte e Vitória.

Em paralelo, acompanhamos sua dificuldade em adaptar-se a nova


cultura e como isso afetou o entendimento de certa forma, do papel
que deveria exercer como monarca consorte, incluso a perpetuação
da linhagem real. Vemos uma Charlotte impetuosa, voluntariosa,
mas, ao mesmo tempo, carente e condescendente com a situação
que lhe é imposta pela família real britânica.

As novas camadas de sua história são importantes para a


compreensão da construção de sua liderança e ainda nos apresentar
George e o tocante romance que os envolve. Por isso, o final de
“Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton” conecta todos os
pontos de presente e futuro, visto que o roteiro consegue tanto dar
conta de apresentar uma solução para a sucessão – com a gravidez
da esposa de Eduardo, ou seja, rainha Vitória a caminho – quanto
nos mostrar como o sentimento entre os monarcas ainda perdurou
apesar de todas as intempéries. Os pezinhos se aproximando ao
final é só um resquício da solidez do relacionamento que vimos ao
longo dos seis episódios.

2 – A construção de relacionamento
:
Uma vez que já comentei sobre o final emocionante – pena que as
camas contemporâneas não nos permitem entrar debaixo delas -, é
preciso salientar que parte de sua sensibilidade e significância
ocorrem por rememorar cenas icônicas vivenciadas no decorrer da
narrativa, algo que acontece com certa frequência no decorrer de
“Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”.

O primeiro encontro do casal, por exemplo, quando a ainda princesa


planeja pular o muro para fugir do casamento é constantemente
citado, uma maneira de relembrar quem são, dado ser este um
momento de liberdade e naturalidade entre os dois, como se fossem
dois jovens sem a pressão imposta pelo nascimento e os acordos
políticos, apenas George e apenas Charlotte. Para o público, essa
cena também é importante porque nos permite conhecer a
personalidade de ambos e entender um pouco da dinâmica do casal;
a rainha como uma força da natureza e o rei sendo seu admirador e
observador atento.

Importante perceber ainda como o roteiro arquiteta o relacionamento


deles dentro da discussão política. A trama social está ali tangível e a
:
beira de um colapso que avança ou se interrompe conforme o plot
do casal real, sendo este também o motivo da existência de dias
pares e de dias ímpares.

Por fim, há também uma química gritante entre Índia Amarteifio e


Corey Mylchreest, que torna todas as declarações entre eles
apaixonantes seja ele apenas dizendo o quanto a esposa é bela, ela
admirando suas mãos de fazendeiro ou a pulsante cena em que se
declaram com todas as letras. Há tantas camadas no relacionamento
deles, que poderia fazer um texto apenas sobre isso.

3 – As tramas paralelas

Algo que também torna “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”


fechada em si e bem pontuada é o quanto as tramas paralelas
existem em função da narrativa principal. Nesse aspecto, duas
histórias se destacam: a de Lady Danbury e dos mordomos reais.

Enquanto a trama dos Danbury literalmente serve a principal no


quesito político-social, por ser a aplicação do Grande Experimento,
:
conseguir discutir a questão racial sem argumentos idealistas de que
os novos nobres seriam aceitos passivamente pela corte e ainda
pontuar como nasceu o relacionamento entre a rainha e sua dama
de companhia; Reynolds e Brimsley são literalmente o espelhamento
de seus suseranos: brigam, mas se amam. Se distanciam, embora
queiram estar juntos. E é incrível como roteiro constrói sua relação
de forma sólida para que também torçamos pelo casal tanto quanto
torcemos pelos monarcas.

4 – Mulheridade Negra

No livro “Olhares negros: raça e representação”, bell hooks fala sobre


como as mulheres negras se vêem nas artes e mostra também
comportamentos subversivos para lidar com as expressões artísticas
que tem pessoas brancas como o padrão. Conforme assistia “Rainha
Charlotte: Uma História Bridgerton”, me recordava de suas palavras e
de sua busca por uma mulheridade negra sólida que também
pudesse inspirar meninas de cor a se identificarem com o que viam
em tela.
:
Charlotte chega para se juntar a um time de monarcas com apenas
Tiana e Ariel de Halle Bailey. Sua presença forte, sem ser grosseira
ou posta como vilã, e o olhar de desejo, carinho e admiração que
recebe de George preenchem, de algum modo, a ausência de
representações verossímeis de mulheres negras na TV/streaming.
Demorei a me reconhecer como uma mulher negra e, hoje, sei que
parte disso se deve à falta de personagens com quem me identificar.
Talvez, em algum grau, eu veja na rainha alemã traços de quem eu
era na sua idade ou de quem sou hoje, motivo que também me
prendeu tanto a essa narrativa.

Devo dar créditos a essa conquista também a Shonda Rhimes. Como


uma showrunner negra, ela insere elementos que contribuem para
essa feminilidade ancestral. Primeiramente, pela presença da própria
Agatha Danbury, que é uma pessoa racializada o que a leva a lutar
não só por si, mas também pelo seu povo. Há também a escolha de
paletas de cores e vestidos que acentuam a ancestralidade negra e a
beleza tanto de Charlotte quanto de Danbury. Neste aspecto, me
chama atenção, por exemplo, a escolha dos vestidos de casamento;
enquanto Charlotte faz opções por roupas ousadas e que combinam
com sua posição, Augusta tenta subjugar a nora por meio da
vestimenta. Ainda bem que o vestido majestoso ganha ao final.

Há algum tempo, vi um vídeo que discutia porquê nos seriados da


Disney havia poucas atrizes negras como protagonistas, entre os
vários motivos, se falava ainda da ausência de profissionais que
pudessem cuidar do cabelo e maquiagem do elenco negro. O oposto
é o que vemos em “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”:
embora boa parte do penteado seja peruca, é interessante o quanto
eles agregam o cabelo crespo e escolhem diversos formatos que se
alinham também conforme o estado de espírito das personagens.

Por fim, não poderia deixar de citar as escolhas para a trilha sonora.
:
A minissérie repete um feito que deu certo em “Rainha Charlotte:
Uma História Bridgerton”, me refiro a criação de arranjos de músicas
pop para o clássico, o que nos permite termos versões de “Halo” e
“Deja vu” de Beyoncé, “If I ain’t got you” de Alicia Keys, “Nobodys
gets me” de Sza e a atemporal “I will always love you” de Whitney
Houston. Perceba que todas são músicas interpretadas por
mulheres negras; isso me faz pensar que bell hooks estaria contente
de ver uma obra em que a mulheridade negra realmente acontece.

5 – O olhar feminino

Não é só a mim que “Rainha Charlotte: Uma História Bridgerton”


gera identificação, a linguagem escolhida pela série consegue
dialogar muito bem com o público feminino. Algo latente no universo
de Bridgerton.

Há algum tempo escrevi o quanto Matt Ruskin teve um olhar sensível


e disruptivo em “O estrangulador de Boston”, o mesmo se observa
na direção de Tom Verica. Ele não apenas conhece o ambiente de
sua história, uma vez que também dirigiu episódios da série sobre a
:
família de Anthony, mas também por trazer características que
valorizam as personagens femininas sem objetificá-las.

As cenas de sexo nunca expõem o corpo feminino, por terem


também no set profissionais específicas para coreografarem esses
momentos, tornando-os mais confortáveis para os atores. Percebe-
se a busca por torná-las mais íntimas e, por conseguinte, mais
atrativas para o público feminino. Há um destaque igualmente para
os toques em mãos, nos braços e rostos que por tanto tempo
alimentaram a imaginação dos fãs de literatura vitoriana, vide uma
das melhores cenas de “Orgulho e Preconceito”.

Outro ponto que compõe esse olhar é a vulnerabilidade em torno do


protagonista masculino. O personagem é construído com dubiedade
nos primeiros episódios, ora é o último romântico e encantador, ora é
babaca e egoísta. Escolhas as quais escondem o tormento imposto
em sua vida e as torturas que se submete para ficar com seu grande
amor. Um homem másculo, mas frágil e que, quando permite que
sua debilidade seja vista, se torna alguém normal, “apenas George”.
Seria um homem por quem também vale a pena lutar?

Poderia falar mais coisas que me encantaram em “Rainha Charlotte:


Uma História Bridgerton”, embora acredite que essas sintetizem o
que tem me incomodado nas últimas semanas. Talvez a melhor parte
seja que a narrativa funciona como história isolada, não precisa
assistir “Bridgerton” para que se compreenda a discussão em tela,
assim como a série principal não depende dos acontecimentos
apresentados no spin-off . De qualquer forma, ainda bem que
Charlotte não pulou o muro.
:

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