Você está na página 1de 5

ENSAIO SOBRE A PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL

FRANCISCO ANDRÉ DOS SANTOS RODRIGUES1

Ser cidadão é ser nacional de um país e exercitar os direitos de cidadão, para além
dos direitos políticos, nesse contexto, ter cidadania é colaborar na construção do cotidiano
da sociedade e com o bem público. No Brasil, grande parte das pessoas percebe-se
cidadão apenas de dois em dois anos, quando manifesta uma das facetas de sua cidadania,
e talvez a mais singela delas, votando para a eleição de seus representantes nos Poderes
Legislativo e Executivo das três esferas de poder, Municipal, Estadual e Federal. Essas
pessoas não se atentaram, todavia, para o fato de que a cidadania democrática concebida
na Constituição Federal de 1988 vai muito além de votar, ou mesmo de ser votado,
àqueles mais ousados que se filiam a partidos políticos e nutrem a inquietude de fazer
algo mais pela comunidade em que se inserem e pelo país; cidadania é um fundamento
da República e, da forma como concebida constitucionalmente, envolve a efetiva
participação de todos diretamente ou por meio de organismos (sindicatos, associações,
conselhos, comitês, entre outras modalidades de entidades) nos foros decisórios da vida
coletiva brasileira. Este fundamento, portanto, é, hoje, como um iceberg, do qual se
percebe apenas uma pequeníssima parte e cuja força e capacidade de surtir efeitos práticos
está, justamente, na parte oculta. A questão é participação popular. Para além da
suficiência das ferramentas de participação popular previstas na Constituição brasileira
de 1988, a população brasileira exerce cidadania democrática segundo os ditames
constitucionais? E quando exerce, tal participação tem força decisória, ou é utilizada
apenas para dar satisfações e uma falsa ideia de exercício democrático do poder pelo
povo? Quais interesses estão sendo concretizados na atual realidade social vivenciada no
Brasil?
Primeiro, é necessário desmistificar o que seja política, do grego politikós, relativo
a pólis, frequentada, à época, século XIII, apenas pelos ditos cidadãos. Daí ser possível
definir o ato político como sendo todo fazer que se preocupa com as questões do local
onde se está inserido. Como no mito da caverna, conhecer o bem tornaria alguém filósofo
e buscar o bem para os demais, um político (PLATÃO, 2000).
Como dito por Friederich Hebbel, citado por Gramsci, 1917: “viver significa
tomar partido”. Ou nas palavras de Gramsci, 1917: “Não podem existir os apenas homens,
estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e
partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os
indiferentes”.
Daí, a participação sobre os destinos individuais e coletivos é condição
indispensável para alguém se reconhecer como pessoa, como manifestação de sua
personalidade exercida à luz do atributo da dignidade humana.
Em segundo lugar, na história brasileira, a Constituição de 1988 é um marco
civilizatório quando introduz a participação popular como fundamento e se propõe a dar
efetividade a essa participação prevendo instrumentos de participação popular em rol
claramente exemplificativo (Art. 1º, caput e inciso II, Art. 5º, LXXIII e § 2º, Art. 14 a 17,
Art. 58, II e IV, Art. 198, III).
1
Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Piauí, Especialista em Direito Tributário pelo Centro
de Ensino Unificado de Teresina. Analista Judiciário do TRT da 22ª Região.
Um terceiro ponto a ser destacado é que, na prática, segundo o Mata do Ensino
Superior no Brasil, a maioria dos brasileiros, cerca de 55,5%, ingressam no ensino
superior e desistem antes de concluir o curso. Não que isso seja um fator determinante
para a politização de um indivíduo, mas um bom grau de instrução escolar assegura,
minimamente, o convívio salutar em um ambiente de discussão aberta sobre questões
relevantes para o convívio social e a maior possibilidade de colocação em posições de
decisão dentro do mercado de trabalho privado ou no Setor Público. A par de tal dado, e,
em parte, decorrente disso, as desigualdades sociais observadas na população brasileira,
que, em sua maioria, ocupa quase a integralidade do tempo em tentar garantir o mínimo
para sua sobrevivência e de sua família exercendo atividades econômicas de grande
desgaste físico e alto grau de estresse mental em troca de baixos salários, pois segundo
dados do Cadastro Geral de e Empregados e Desempregados (CAGED) do mês de
setembro de 2023, a quase totalidade da população economicamente ativa ocupante de
postos formais de trabalho percebe, no máximo, três salários mínimos, predominando
massivamente a faixa de salários entre um e um e meio salários mínimos.
Diante de tal realidade, é de se esperar um baixo grau de eficiência da participação
popular pela via individual, em que pese a existência de instrumentos previstos no texto
constitucional e até na legislação ordinária, como se dá, no caso das audiências públicas
que podem ser convocadas pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento de
Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Declaratórias de Constitucionalidade e Ações
de Descumprimento de Preceito Fundamental (Art. 9º, § 1º, da Lei n. 9.868/1999 e Art.
6º, § 1º, da lei n. 9.882/1999) o que reforça a necessidade de incentivo por parte de toda
a sociedade civil ao fortalecimento das entidades não governamentais capazes de agregar
pessoas com interesses comuns, não apenas segundo critérios profissionais ou de
categorias econômicas, mas pela concretização de objetivos fundamentais tais como o
desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais
e a eliminação de todas as formas de discriminação (Art. 3º da CF/88).
Associativismo este responsável por históricas vitórias em prol dos direitos
fundamentais de populações vulneráveis no Brasil, dentre elas consumidores,
trabalhadores, mulheres, indígenas, população LGBTQIPN+, negros e pessoas com
deficiência. Cuja força está, basicamente, na capacidade de reunião de grupos de
indivíduos cuja diversidade de bagagem intelectual, cultural, política, religiosa e o diverso
ciclo de relações tem o potencial de ampliar o espectro de influência, ganhando
representatividade dentro do sistema público de tomada de decisões, em especial por
tornar desconfortável aos integrantes dos poderes impor revezes desprovidos de ostensiva
e fundamentada motivação a grandes grupos, angariando, assim, entre outros reflexos
negativos, a indesejada impopularidade política que, em regra, precede o fracasso de uma
carreira como membros dos Poderes Legislativo e Executivo brasileiros.
Com efeito, desde a segunda metade do século XIX no Brasil foram criadas várias
associações, cujos objetivos eram os mais diversos, desde aquelas que representavam os
interesses das classes políticas até as associações formadas por ex cativos reunidos em
torno de um ideal de liberdade através da compra de alforrias, tais dados podem ser
encontrados no Arquivo Nacional, situado no Estado do Rio de Janeiro, na Seção do
Fundo do Conselho de Estado dos Negócios do Império (JESUS, 2007); passando pelo
movimento sindical de tantas vitórias em prol dos interesses das categorias de
trabalhadores na iniciativa privada e, mais recentemente, no setor público; e, mais
recentemente, pode-se citar casos como o da intervenção como amicus curiae de uma
série de entidades não governamentais representando os interesses de uma gama de
populações cujos interesses estavam em jogo na Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão (ADO) n. 26 julgada pelo STF e que tinha por escopo analisar a existência de
omissão do Parlamento federal no que tange à proteção penal da população LGBTQIPN+
contra atos de discriminação praticados em razão da orientação sexual ou da identidade
de gênero da vítima – a questão da “ideologia de gênero, notadamente a Associação de
lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (ABGLT), a Associação nacional de
juristas evangélicos (ANAJURE), o Grupo de advogados pela diversidade sexual
(GADVS), a Frente parlamentar "mista" da família e apoio à vida e o Grupo dignidade -
pela cidadania de gays, lésbicas e transgêneros, Convenção brasileira das igrejas
evangélicas irmãos Menonitas (COBIM).
Todavia, em especial nos últimos 20 anos, tem-se observado que os temas que
mais impactam sobre os interesses das classes economicamente privilegiadas têm sido
decididos à margem de quaisquer critérios de participação popular efetiva, como se
observa em institutos atrelados à Reforma Trabalhista que vem sendo implementada
desde 2017, a Política de Saúde Suplementar e a Política Agrária de distribuição de terras
e fomento à criação de pequenas e médias propriedades rurais sustentáveis, por exemplo.
Seja porque os movimentos de participação popular tiveram seus escopos subvertidos por
interesses pouco republicanos ou mesmo pela exclusão do salutar diálogo prévio,
contemporâneo e de acompanhamento das políticas públicas desses (e de outros) setores
estratégicos2.
Sobre a Reforma Trabalhista, foi repassada sob a justificativa de ser uma mudança
necessária e positiva para a sociedade, instrumento de incentivo para o mercado de
trabalho, abertura de novos postos de emprego e, assim, fomento à economia; contudo a
sua apressada tramitação e as escusas negociações em relação ao texto aprovado já
indicavam a não participação efetiva dos atores sociais. Ao invés de solucionar problemas
trabalhistas, as inovações levadas a efeito têm fragmentado os direitos fundamentais
sociais auridos em especial desde a década de 1930, incluindo duros golpes na estrutura
associativa sindical3.
Observado esse contexto, e sem uma perspectiva de burcas mudanças
institucionais de cunho ético, acima de tudo, a concretização aqueles objetivos
fundamentais constitucionais acima perfilhados, por exemplo, mostra-se cada vez mais
distante. Mudanças que, na visão de Castells, 1990 advêm da participação popular nas
instituições representativas do Estado em todos os níveis significa possibilidade concreta
de mudar qualitativamente a política e a estrutura desse Estado, articulando-o cada vez
mais com as organizações populares e a um novo tipo de disputa pelo excedente social.
Tal participação popular, portanto, capaz de induzir mudanças é a manifestação
do exercício direto e legítimo do poder entregue ao povo pelo constituinte quando
constitui o Brasil na forma de Estado Democrático de Direito. Poder este definido por
Weber, 1994, como a possibilidade de impor a própria vontade ao comportamento alheio,
partindo do modelo teleológico da ação segundo o qual um indivíduo ou um coletivo
considerado individualmente como um todo, se propõe a atingir um objetivo e escolhe os
meios adequados e suficientes para realizá-lo. O êxito da ação provoca no mundo uma
mudança no estado de coisas referente àquele objetivo. Na medida em que tal sucesso
depende do comportamento de outrem, deve o ator ter à sua disposição ferramentas

2
Assentamentos viraram “grande esquema de corrupção”. Disponível em:
https://www.agrolink.com.br/noticias/assentamentos-viraram--grande-esquema-de-corrupcao---
entenda_482599.html. Acesso e. 29 de nov. 2023.
3
A quem interesse essa reforma trabalhista. Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-
quem-interessa-essa-reforma-trabalhista. Acesso em 29 de nov. 2023
capazes de induzir o outro ao comportamento desejado. É essa capacidade de disposição
sobre meios que permite influenciar a vontade de outrem que Weber chama de Poder.
Então, para ele, o Poder significa aquela probabilidade de realizar a própria vontade,
dentro de uma relação social, mesmo em face de resistência.
Porque isso se dá? Ingerência de interesses econômicos de determinadas
categorias detentoras do capital, por interesses imperialistas externos segundo uma
agenda neoliberal bem engendrada, por incompetência ou má-gestão na política ou para
fomentar os arroubos de corrupção que periodicamente são noticiados; talvez tudo isso
junto, combinados entre si ou alternando-se, mas o fato é que não se tem claro acesso ao
que subjaz o discurso que justifica o parcial cerceamento da participação popular no
Brasil, seja reduzindo a capacidade individual de participação esclarecida ou minando,
direta ou indiretamente, a participação associativa em determinadas matérias sensíveis.
Em conclusão, é seguro afirmar, pelo menos a priori, que, a população brasileira
é capaz de exercer sua cidadania democrática segundo os ditames constitucionais,
todavia, atualmente, isso ocorre com maior eficiência e de forma mais ampla, pela via
associativo-sindical. Por outro lado, em relação à força decisória, ou é utilizada apenas
para dar ares de legitimidade democrática à população ou sequer é ocorre a pretexto de
urgência da matéria. Sobre os interesses contemplados pelas políticas públicas
desenvolvidas no Brasil, tem-se um largo campo de estudos, inclusive por meio de
pesquisas de campo e por meio de uma análise crítica dos discursos político-jurídicos dos
atores institucionais, e, assim, talvez sejam elucidados de forma objetiva e flagrante os
particulares interesses que as justificam individualmente.

REFERÊNCIAS
CASTELLS, Manuel. Cidade, Democracia e Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
DE JESUS, Ronaldo Pereira. Associativismo no Brasil do Século XIX: repertório crítico
dos registros de sociedades no Conselho de Estado (1860-1889). Locus: revista de
história, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, 2007, p. 144-170. Disponível em:
https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20658/11071. Acesso em. 29 de
nov. 2023.
Estatísticas mensais de emprego formal – Novo CAGED, set. 2023. Disponível em:
https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUK
EwiT8YKu7OmCAxU3ObkGHdsiCIkQFnoECBEQAQ&url=https%3A%2F%2Fstatic.
poder360.com.br%2F2023%2F10%2Fcaged-setembro-
2023.pdf&usg=AOvVaw1wNBHghHvYU7t3AVEWkcgY&opi=89978449. Acesso em
29 de nov. 2023.
GRAMSCI, Antonio. La cittá futura. Turim, 11 de fevereiro de 1917.
Mapa do Ensino Superior no Brasil em 2023. 13ª ed. Disponível em:
https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact
=8&ved=2ahUKEwjzqr6S6umCAxU_IbkGHUX0ALkQFnoECAUQAQ&url=https%3
A%2F%2Fwww.semesp.org.br%2Fwp-content%2Fuploads%2F2023%2F06%2Fmapa-
do-ensino-superior-no-brasil-
2023.pdf&usg=AOvVaw0QIPS8J8iwC0Zr9FnOeVaH&opi=89978449. Acesso em 29
de nov. de 2023.
PLATÃO. A República. Livro VII, Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém:
EDUFPA, 2000.
WEBER, M. Economia e sociedade – fundamentos da Sociologia Compreensiva. Trad.
Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 3. ed. 2 v. Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1994.

Você também pode gostar