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AQUÍFEROS JANDAÍRA-AÇU (CE): PILHAGEM DA ÁGUA, CONFLITOS E


INJUSTIÇA AMBIENTAL

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Diego Gadelha de Almeida Ronilson De Morais Sousa


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará Universidade Federal do Ceará
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José César Maia Filho


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AQUÍFEROS JANDAÍRA-AÇU (CE): PILHAGEM DA
ÁGUA, CONFLITOS E INJUSTIÇAS AMBIENTAL

Diego Gadelha de Almeida 1


José César Maia Filho 2
Ronilson de Morais Sousa 3

RESUMO
Nas duas últimas décadas, com a emergência no Brasil do regime de acumulação via pilhagem
ambiental, intensifica-se uma corrida por bens da natureza, com destaque para a terra e água. Com isso,
no semiárido nordestino, os espaços de reserva com disponibilidade hídrica viraram alvo do
agronegócio, disparando disputas territoriais entre as frações de classe vinculadas à questão agrária.
Nesse contexto, este artigo tem como objetivo analisar a territorialização do agronegócio fruticultor na
Chapada do Apodi, tendo como foco o uso, a dominação e a privatização do sistema de aquíferos
Jandaíra-Açu, buscando desvelar a injustiça hídrica no recorte espacial da pesquisa que envolve os
municípios de Quixeré, Limoeiro do Norte, Jaguaruana no Estado do Ceará. A pesquisa adotou um
percurso metodológico organizado nas seguintes etapas: levantamento bibliográfico e documental,
elaboração e análise de dados primários e secundários e trabalho de campo. Como síntese, podemos
indicar que está em curso uma pilhagem da água para fins de reprodução em escala ampliada do capital,
resultando em esgotamento e contaminação das reservas subterrâneas, no uso desigual do volume
extraído e na expropriação hídrica das comunidades rurais.
Palavras-Chave: Agronegócio, Aquíferos Sedimentares, Território, Injustiça Ambiental.

ABSTRACT
The race for natural goods has intensified in the last two decades. It has occurred due to the emergence
of the accumulation regime via environmental plunder in Brazil, also, it has emphasis on land and water.
As a result, natural reserve spaces with water availability in the semi-arid region of the Northeast became
a target for agribusiness. That triggered territorial disputes between class fractions connected to the
agrarian matter. According to the context presented, this paper displays an analysis of the
territorialization of fruit-growing agribusiness in Chapada do Apodi. The focus is on the use, domination
and privatization of the Jandaíra-Açu aquifer system. Likewise, the unveiling of the water injustice in
the spatial cutout of this research, which involves the cities of Quixeré, Limoeiro do Norte and
Jaguaruana, in the State of Ceará, is pursued. This research adopted a methodological sequence that is
organized in the following stages: bibliographical and documental survey, elaboration and analysis of
primary and secondary data, and fieldwork. In fact, there is an indication of an ongoing plunder of water,
that is happening with the purpose of reproduction of capital on a large scale. Consequently, the
underground reserves face depletion and contamination. Besides, rural communities endure the unequal
use of the extracted volume and the expropriation of water.
Keywords: Agribusiness, Sedimentary Aquifer, Territory, Environmental Injustice.

1
Professor do Instituto Federal do Ceará (IFCE), doutorando em Geografia pela Universidade Estadual
do Cerará e coordenador do Observatório da Questão Hídrica do Ceará (OQHICE),
diegogadelha@ifce.edu.br;
2
Graduando em Saneamento Ambiental no Instituto Federal do Ceará (IFCE) e integrante do
Observatório da Questão Hídrica do Ceará (OQHICE), maiacesarmaia844@gmail.com;
3
Graduando em Engenharia Ambiental na Universidade Federal Ceará (UFC) e integrante do
Observatório da Questão Hídrica do Ceará (OQHICE), sousa.ronilson789@gmail.com.
1. INTRODUÇÃO
Observamos nas últimas décadas, no território nacional, um avanço da fronteira
agrícola em direção a três regiões brasileiras e seus respectivos “espaços de reserva”
(SANTOS; SILVEIRA, 2003): Centro-Oeste, Norte e Nordeste. O debate público e as lentes
geográficas, não obstante, têm priorizado o olhar sobre as duas primeiras regiões – com
destaque para os impactos e conflitos que envolvem os biomas e os povos do cerrado e da
floresta amazônica, encobrindo na arena político-acadêmica o movimento nada silencioso e
destrutivo de incorporação do semiárido nordestino à divisão internacional do trabalho, com
ênfase para a produção de commodities.
Não estamos indicando com isso que inexistem pesquisas geográficas sobre a inserção
do semiárido na produção agropecuária sob égide da globalização neoliberal, não obstante,
há complexidades e particularidades desse processo que seguem invisibilizadas. Um rápido
levantamento bibliográfico sobre a difusão da agricultura científica no semiárido nordestino,
tendo como exemplo a produção de teses e dissertações dos Programas de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará
(UECE), evidenciará estudos vinculados à questão agrária nordestina que privilegiaram a
relação entre agronegócio, açudagem, vales perenizados e perímetros irrigados federais.
Por outro lado, há uma escassez de pesquisas que busquem capturar a corrida do
agronegócio para espaços de exceção hidrogeológica da região semiárida – os aquíferos
sedimentares. Esses bolsões de água subterrânea, verdadeiros pontos luminosos hídricos,
passaram para o centro da disputa territorial com a difusão do “Consenso das Commodities”
(SVAMPA, 2013), que se espacializa no nordeste brasileiro, por exemplo, a partir da expansão
da fronteira agrícola de grãos, frutas e produção de camarão em cativeiro.
Nesse contexto de intensificação da demanda por água no nordeste do Brasil, a
presente pesquisa objetiva analisar a territorialização do agronegócio fruticultor na Chapada
do Apodi, tendo como foco o uso, a dominação e a privatização do sistema de aquíferos
Jandaíra-Açu, buscando desvelar os conflitos territoriais disparados pela corrida por terra e
água nos municípios de Quixeré, Limoeiro do Norte e Jaguaruana, no Estado do Ceará.
Assim, desvelar a corrida por terra e água nas bacias sedimentares do semiárido
brasileiro é central para compreender o papel da região Nordeste no Consenso das
Commodities (SVAMPA, 2013), a mobilidade espacial das frações do capital vinculadas ao
agronegócio, assim como os impactos, os conflitos e as injustiças ambientais (SOUZA, 2019)
desse processo, justificando a importância da presente pesquisa em andamento. Esperamos
assim oferecer à comunidade acadêmica e aos grupos sociais em conflito com o agronegócio
ferramentas analíticas para interpretar a nova ofensiva do capital na América Latina e para
fortalecer as lutas e resistências sociais já em curso no Vale do Jaguaribe.

2. REFERENCIAL TEÓRICO
Segundo Svampa (2017), em se tratando de América Latina, nos últimos dez anos,
sob a tutela do neodesenvolvimentismo progressista (Lulismo, Chavismo, Evismo,
Correrismo, entre outros), a demanda por bens da natureza se ampliou em virtude da alteração
do regime de acumulação regional. Essa mudança foi marcada pela passagem da ordem
neoliberal stricto sensu, orientada pelo Consenso de Washington, para uma nova ordem
baseada na exportação de bens primários em grande escala - o Consenso das Commodities.
O Consenso das Commodities (SVAMPA, 2013) representa, assim, um regime de
acumulação por pilhagem (ALTVATER, 1995; HARVEY, 2005); com as seguintes
características: (1) territorialização de grandes projetos, de capital nacional e multinacional,
representados pelo setor de mineração, infraestruturas logísticas, energia e agronegócios
monocultores – demandadores de bens da natureza (água, solo, biodiversidade) em grande
escala; (2) manejo de um discurso desenvolvimentista que aciona a gramática da
colonialidade do saber, ser e poder (QUIJANO, 2005); (3) aniquilamento e/ou precarizando
outras formas de uso e apropriação da natureza, nomeadas como improdutivas, arcaicas,
tradicionais e atrasadas e (4) mercantilização e valoração econômica da natureza, que deixa
de ser um bem de uso comum e transmuta-se em recurso natural – em mercadoria.
Com base em Giaretto (2018) esse processo de acumulação por pilhagem encontra
um limite material e simbólico nas lutas e resistências territoriais. Para entender essa
contraofensiva protagonizada por ativismos e movimentos sociais (SOUZA, 2019) faz-se
necessário acionar o conceito de território. Cabe demarcar que Estado-Capital e os povos do
campo, floresta e águas têm concepções e práticas distintas de território e territorialização.
Os dois agentes hegemônicos – Estado e Capital - adotam um uso corporativo do
território (SANTOS; SILVEIRA, 2003), ou seja, o território é um recurso a serviço da
acumulação capitalista. Estes agentes analisam a configuração espacial com uma régua e
sensores de mercado, em busca de produtos passíveis de virarem negócios, almejam, ao fim,
transformar a vida em mercadoria. Já os grupos sociais que resistem – camponeses, povos
indígenas, quilombolas, pescadores e outros – apreendem o território enquanto abrigo
(SANTOS, 1997).
Há, portanto, uma disputa em torno da produção do espaço, conformando territórios.
Em diálogo com Porto-Gonçalves (2006) e Souza (2013; 2019) compreendemos que o
território é, em síntese, um campo de força, produzido por relações sociais, objetivando o
controle, via práticas espaciais, da configuração espacial.
É com essa articulação conceitual entre Consenso das Commodities, acumulação por
pilhagem e território que objetivamos analisar a captura do sistema de aquíferos Jandaíra-
Açu, na Chapada do Apodi, Estado do Ceará. Indicamos que a chegada de empresas nacionais
e internacionais no recorte espacial da pesquisa guarda relação direta com a adoção, pelos
governos do Brasil, do regime de acumulação neodesenvolvimentista e sua sede por terra,
água e corpos.
Dessa forma, o uso corporativo do substrato material do território dispara uma guerra
por água (SHIVA, 2006), que se evidencia em concentração fundiária, explotação
desenfreada, privatização e poluição dos corpos hídricos. A expansão do agronegócio para os
aquíferos sedimentares do semiárido nordestino significa uma colonização da água (SHIVA,
2006), que será drenada via produção e exportação de frutas para mercados longínquos. Em
complemento, podemos indicar que a Chapada do Apodi, a partir do sistema de aquíferos
Jandaíra-Açu, se insere no contexto global de “water grabbing/‘acaparamiento de aguas”
(KAY; FRANCO, 2012) termo que ganha espaço na literatura mundial sobre uso corporativo
da água e indica o cercamento, privatização e mercantilização desse bem comum, privando
comunidades locais do acesso, aniquilando, assim, usos pretéritos do território.
A captura da Chapada do Apodi é um exemplo concreto da subsunção real dos
territórios vitais ao capital (GIARETTO, 2018), produzindo impactos, conflitos e injustiças
ambientais (SOUZA, 2019). Indicamos, por fim, que a expansão do agronegócio para os
aquíferos sedimentares do semiárido nordestino significa uma colonização da água (SHIVA,
2006), que será drenada via produção e exportação de frutas e grãos para mercados longínquos,
evidenciando uma geografia desigual dos rejeitos e proveitos (PORTO-GONÇALVES,
2006).

3. METODOLOGIA
Para alcançar o objetivo da presente pesquisa, adotamos como recorte espacial os
municípios de Limoeiro do Norte, Quixeré e Jaguaruana (CE), pois apresentam áreas dos
aquíferos Jandaíra-Açu dentro de suas fronteiras, especificamente na Chapada do Apodi.
No intuito de desvelar os usos, as frações de classe, os conflitos e as injustiças
ambientais resultantes da territorialização do capital na área de estudo, a pesquisa adotou
procedimentos qualiquantitativos, com destaque para análise dos bancos de dados e dos
relatórios e planos da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), da Companhia de Gestão dos
Recursos Hídricos (COGERH), bem como da Agência Nacional de Águas (ANA). Com base
nos dados de outorga de uso da água disponibilizados pela SRH/COGERH, organizamos
tabelas, gráficos e quadros, objetivando identificar os usuários, os usos, a localização dos
usos e o volume outorgado dos sistemas aquíferos Jandaíra-Açu. Para esta atividade
sistematizamos as outorgas concedidas e/ou vigentes no ano de 2019, possibilitando uma
comparação de 10 anos ao cruzarmos com os dados disponíveis nos estudos da ANA (2010)
e COGERH (2009).
A pesquisa contou ainda com ampla revisão bibliográfica, bem como trabalho de
campo na área selecionada, objetivando apreender a paisagem e a dinâmica dos conflitos,
lutas e resistências em curso. O trabalho de campo realizado para a presente pesquisa, na
verdade, é fruto da inserção, na última década, de um dos autores nos ativismos e movimentos
sociais que lutam por alternativas ao desenvolvimento capitalista na região do Vale do
Jaguaribe.
Inspirados em Fals Borda (2009) e Rigotto, Leão e Melo (2018), o contato com os
sujeitos sociais das comunidades impactadas ocorreu na própria dinâmica de lutas e
resistências em curso – ocupações, audiências públicas, reuniões comunitárias, manifestações
de rua – desenvolvendo assim com uma geografia “sentipensante”, comprometida com as
práticas insurgentes (SOUZA, 2015) dos grupos sociais territorializados no recorte empírico
da pesquisa.
Por fim, informamos que o presente estudo contou com financiamento do programa
de bolsas de iniciação científica do Instituto Federal do Ceará (PIBIC-IFCE) e compõe parte
das ações do Observatório da Questão Hídrica do Ceará (OQHICE), projeto de extensão
cadastrado na mesma instituição.

4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
- Palavras iniciais:
No semiárido nordestino as políticas hídricas se concentraram historicamente em torno
da produção e gestão das águas superficiais. Obras de açudagem, transposições e perenizações
artificiais dos rios estiveram no alvo das ações do Estado, bem como no centro das disputas
entre as frações de classe. Assim, privatizações de açudes públicos e/ou a construção de
reservatórios em propriedades privadas, parasitando o fundo público; o cercamento de rios,
lagos e lagoas e as transposições hídricas marcaram parte da história conflituosa em torno da
água no semiárido brasileiro.
Contudo, desde os anos cinquenta do século XX, segundo Silva et al. (2007), os
reservatórios subterrâneos ganharam um papel de destaque na ampliação da oferta hídrica para
atender a demanda das comunidades rurais e urbanas, mas também para saciar a sede das
frações do capital ligadas ao agronegócio, a mineração, as energias e as indústrias
hidrointensivas.
Foi, no entanto, com a emergência do Consenso das Commodities (SVAMPA, 2013),
no século XXI, que a busca por água barata e em abundância se intensificou, ativando uma
disputa em torno dos aquíferos sedimentares no território brasileiro. Ou seja, na atual quadra
histórica, as fontes subterrâneas viraram o novo alvo da pilhagem por parte frações
hidrointensivas do capital.
O Estado do Ceará serve de exemplo para entendermos os desdobramentos ambientais
da expansão e diversificação de práticas produtivas apoiadas por fontes subterrâneas. Marcado
por uma estrutura geológica dominada pelo embasamento cristalino, cerca de 75% da área do
território cearense, encontramos no Ceará, no entanto, algumas províncias hidrogeológicas
conformadas por bacias sedimentares, mapa 1, que possibilitam o armazenamento de um maior
volume hídrico no subsolo (CALVACANTE; GOMES, 2011 e SILVA et al. 2007).

Mapa 1 – Estruturas geológicas do Ceará

Fonte: Elaboração dos autores


A região do Baixo e Médio Jaguaribe, no Estado do Ceará, é um destaque estadual em
fontes subterrâneas, já que dispõe da Formação Barreiras e dos sedimentos dunares (municípios
de Fortim, Aracati, Icapuí em destaque); a formação Faceira (Limoeiro do Norte, Russas e
Morada Nova); planície aluvião do rio Jaguaribe e seus afluentes e as formações Jandaíra-Açu.
Em síntese, cinco sistemas de aquíferos sedimentares se especializam nessa região (Dunas,
Barreiras, Faceira, Aluvião, Jandaíra-Açu), conforme mapa 2. Embora, nos últimos anos, todos
os sistemas de aquíferos do Vale do Jaguaribe estejam sob pressão, no presente artigo
destacaremos a disputa territorial em torno das águas do Jandaíra-Açu, destacando o seu papel
para a manutenção e/ou expansão da fronteira agrícola cearense e a conformação dos processos
de injustiça ambiental.

Mapa 2-Dominios Hidrogeológicos do Baixo Jaguaribe

Fonte: Elaboração dos autores

-Os aquíferos Jandaíra-Açu: um ponto hídrico luminoso dominado pelo agronegócio


No médio e baixo curso do rio Jaguaribe, na borda nordeste do Estado do Ceará, formou-
se, ao longo da história geológica do Mesozóico e Cenozóico a Chapada do Apodi. Relevo
inserido na bacia Potiguar, formada por sedimentos pertencentes ao Grupo Apodi, com
superfície, em geral, plana e níveis altimétricos de até 100 metros, na porção cearense (SOUZA,
2005).
A Chapada do Apodi estrutura-se a partir de duas camadas principais de sedimentos, as
Formações Açu e Jandaíra, figura 1, possibilitando a conformação hidrogeológica de um
sistema complexo de aquíferos com grande capacidade de armazenamento de água. Em virtude
da sobreposição de camadas, tendo as rochas do arenito Açu sobrepostas pelas rochas
carbonáticas do Jandaíra e o comportamento hidrogeológico da área, nossa análise, na presente
pesquisa, entende os dois aquíferos como um sistema - o sistema aquíferos Jandaíra-Açu 4.

Figura 1 – Modelagem em 3D do sistema Jandaíra-Açu

Fonte: COGERH, 2009

A insignificância da rede natural de drenagem superficial na Chapada do Apodi (ANA,


2010), faz dos aquíferos Jandaíra-Açu a principal fonte hídrica de sustentação da ocupação do
solo na área. Segundo a Agência Nacional de Águas (2010), o conhecimento técnico sobre a

4
Segundo COGERH (2009), os aquíferos Açu e Jandaíra “estão separados por uma camada
semipermeável (aquitardo), constituída por diferentes litologias, correspondentes ao topo da Formação
Açu e a base da Formação Jandaíra. […] Esta camada funciona como camada confinante ou
semiconfinante do Aquífero Açu e dependendo das variações de carga hidráulica podem ocorrer entradas
(drenança vertical descendente) ou saídas (drenança vertical ascendente) da água do aquífero Açu com
relação ao Aquífero Jandaíra (COGERH, 2009, p. 20).
hidrogeologia da região teve como marco, ainda na década 1960, a busca por petróleo na bacia
Potiguar, protagonizados pela Petrobras e a Companhia Nordestina de Sondagens e Perfurações
(CONESP) - vinculada a Superintendência de Desenvolvimento do Norte (SUDENE). Embora
o objetivo central da ação do Governo Federal fosse a busca por combustíveis fósseis,
indiretamente os estudos realizados geraram um conhecimento alargado sobre a hidrogeologia
da região.
Também na década de 1960, segundo estudo da COGERH (2009), foram mapeados
cerca de 138 poços distribuídos entre os aquíferos Jandaíra-Açu, abrangendo os municípios de
Limoeiro do Norte, Quixeré, Alto Santo, Jaguaruana e Russas. A intensificação do uso da água
subterrânea acompanhou, contudo, o processo de formação e consolidação das comunidades
rurais, e até mesmo de distritos, como o de Lagoinha, no município de Quixeré. A diversificação
e expansão dos usos econômicos do território, na transição do século XX para o XXI, com
destaque para a produção agropecuária e a mineração, multiplicaram a perfuração de poços na
área em análise.
No entanto, no final da década de 1980, a Chapada do Apodi foi alvo da política de
irrigação pensada e executada pela SUDENE em parceria com autarquias federais como o
Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), tendo como resultado a instalação
do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, na divisa dos municípios de Limoeiro do Norte e
Quixeré.
Esse sistema de engenharia hidroagrícola marcou, com base em FREITAS (2010), a
territorialização da “irrigação moderna empresarial”, tornando essa fração do espaço o “locus
da reprodução do capital de empresas agrícolas nacionais e multinacionais” (FREITAS, 2010,
p. 60). As empresas agrícolas, mapeadas por FREITAS (2010, 2018) e CAVALCANTE (2020),
passaram a disputar a Chapada do Apodi atraídas, sobretudo, pela ação estatal que produziu o
espaço a partir da instalação de fixos vinculados à eletrificação rural, abertura e melhorias de
estradas, bem como a concessão de incentivos fiscais.
Outra benesse produzida pelo Estado, com destaque para o papel do Governo Federal,
foi a transferência de água do rio Quixeré para o topo da Chapada do Apodi 5, garantindo
segurança hídrica com foco no desenvolvimento de uma agricultura calcada no paradigma da
Revolução Verde (CALDART et al 2012).

5A fonte de abastecimento do perímetro é o rio Quixeré, perenizado pela política de açudagem, com
destaque para o reservatório do Castanhão. A água é bombeada, vencendo uma altura de
aproximadamente 100 metros, entre o nível do rio e o topo da Chapada, sendo distribuído por um sistema
de canais para os lotes irrigados.
Tal processo de chegada do agronegócio, sujeito da suposta “irrigação moderna
empresarial”, inicialmente ocorreu dentro dos limites do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi e

nas suas fronteiras, já que a oferta hídrica garantida ao projeto de irrigação se efetiva por canais
de drenagem impermeabilizados que distribuem a água para as unidades parcelares do projeto
público de irrigação, rompendo a restrição de recursos hídricos superficiais na Chapada.
Esse movimento de territorialização do agronegócio, contudo, não se limitou – com o
curso da história – ao perímetro e seu entorno. Aproveitando os sistemas de engenharia
implantados e as políticas de incentivos fiscais ofertadas pelo Estado, empresas de pequeno,
médio e grande porte passaram a comprar, expropriar, grilar e concentrar terras dentro dos
limites político-administrativos dos municípios de Limoeiro do Norte e Quixeré, notadamente,
marcando uma expansão da agricultura irrigada no decorrer da última década do século XX e
nos vinte anos iniciais do século XXI (CAVALCANTE, 2020).
Se a chegada inicial do agronegócio teve como fonte hídrica os canais do perímetro
Jaguaribe-Apodi, o avanço da fronteira agrícola na região em análise foi, e é, sustentado pela
perfuração de poços dos aquíferos Jandaíra-Açu.
Segundo o estudo da COGERH (2009, P. 26), no município de Quixeré, entre 2001 e
2007, a instalação de poços para o aproveitamento das águas dos aquíferos foi maior que “em
60 anos do início do século XX”. Acrescenta-se ainda que “nos últimos 10 anos a demanda por
água subterrânea teve um aumento considerável, em virtude da instalação de grandes empresas
de fruticultura irrigada nesse município”. Limoeiro do Norte seguiu a mesma dinâmica de
Quixeré apresentando um crescimento no número de poços perfurados, levando a COGERH
(2009. p. 36) indicar “[...] que entre 2001 a 2007 o número de poços construídos foi maior em
relação aos anos anteriores. [...] “nos últimos 10 anos a demanda por água subterrânea teve
um aumento considerável”.
Nos dois municípios o tipo de uso que mais concentravam poços era justamente a
agropecuária. Em Quixeré, dos 244 poços cadastrados pela COGERH no de 2007, 165 (67%)
tinham como finalidade a irrigação. Já em Limoeiro do Norte, dos 47 poços inventariados, 17
(36%) eram utilizados para o mesmo fim. Esse quantitativo de poços possibilitou a irrigação de
4.614 hectares (ha) no primeiro município e 1.628,40 ha no segundo. Ou seja, os aquíferos
Jandaíra-Açu forneceram, no período analisado, água para 6.242,40 ha. Esta extensão superava
a área irrigada no perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi – 5.465,09 ha – apontado como o mais
rentável do Estado do Ceará, no ano de 2007, com renda bruta de R$ 25.530.160,18 (FREITAS,
2010).
-Pilhagem e injustiça hídrica: as veias abertas do Jandaíra-Açu
Os dados apresentados na seção anterior indicam a importância que os aquíferos
Jandaíra-Açu passaram a ter para o avanço do agronegócio na Chapada do Apodi. Agora, com
o objetivo de atualizar o conhecimento do uso dos aquíferos da Chapada do Apodi,
apresentamos a análise das outorgas de recursos hídricos administradas pela SRH, autorizando
mapear quais são os usuários, quais tipos de usos são realizados com a água subterrânea, bem
como o volume outorgado por ano. Em outras palavras, objetivamos desvelar a geografia
desigual dos rejeitos e proveitos envolvida na disputa pelas águas dos aquíferos em análise.
Com base nos dados coletados, filtrados e analisados, sinalizamos um total de 67
outorgas vigentes nos três municípios no ano de 2019. Deste total, 58,21% tinham como origem
o município de Quixeré, 35,82% localizavam-se em Limoeiro do Norte e 5,97% em Jaguaruana.
Quanto ao volume total de água subterrânea outorgado, 18.762.444 m³/por ano, os usos
realizados em Quixeré dominavam 52,06% do total, enquanto Limoeiro do Norte e Jaguaruana,
concentravam, respectivamente, 37,94% e 10% do volume autorizado para o ano de 2019.
A concentração do quantitativo de autorizações e do volume outorgado para uso dos
aquíferos Jandaíra-Açu em Quixeré e Limoeiro do Norte tem como principal justificativa a
estruturação, a partir da década 1990, por parte do Estado em parceria com as frações do capital,
de um polo de fruticultura irrigada na região, autorizando a territorialização do agronegócio na
Chapada do Apodi, como mencionamos anteriormente. Jaguaruana pode ser indicado,
juntamente com os municípios de Tabuleiro do Norte e Alto Santo como territórios de expansão
do agronegócio na região.
A diversificação do capital agrário no recorte em análise, contudo, não ocorre sem
impactos e conflitos ambientais. Além das práticas espaciais e processos já mapeados por
consistentes estudos sobre a região (CAVALCANTE, 2020), sublinhamos a face hidrointensiva
do modelo agrário-agrícola adotado, representado por grandes propriedades – de capital
nacional e internacional – produtoras de frutas tropicais (banana, melão, melancia, mamão,
entre outras), tendo como base tecnológica a Revolução Verde, com realce para o uso de
agrotóxicos e a irrigação.
Foi justamente a adoção da irrigação que mais pressionou a explotação do sistema
Jandaíra-Açu em 2019, correspondendo a um uso total de 18.302.146 m³/ano ou 97,54% do
volume total outorgado a partir dos dois aquíferos. Para compreendermos o peso da irrigação
na demanda hídrica, hierarquizamos os 20 maiores consumidores de água subterrânea do
recorte espacial, conforme quadro 1, e todas as posições foram ocupadas por empresas e/ou
usuários vinculados à produção agropecuária via irrigação.
Considerando o rol dos 20 maiores usuários de água dos aquíferos, a Terra Santa LTDA
(posição 2, 13 e 14), Agrícola Famosa LTDA (posição 6, 9 e 10) e Meri Pobo LTDA (posição 4
e 7) detém mais de uma outorga de uso da água. Assim, se considerarmos a hierarquia a partir
da análise individual de cada outorga emitida, a Tropical Nordeste Fruit, localizada em
Limoeiro do Norte ocupava a primeira posição em uso da água. As posições no quadro
mudariam se totalizássemos as múltiplas outorgas de um mesmo usuário. Com essa forma de
cálculo o quadro teria a seguinte ordem de maiores demandadores: a Tropical Nordeste seguiria
em primeiro (3.337.610,12 m³/ano); a Terra Santa, com 3 outorgas, seguiria na segunda posição
(volume somado de 2.390.716,20), a Agrícola Famosa assumira a terceira posição (volume
somado de 2.019.321,55 m³/ano), a Meri Pobo seguiria na quarta posição (volume somado de
1.684.601,26 m3/ano).

Quadro 1 – 20 maiores usuários de água dos aquíferos Jandaíra-Açu, segundo o


volume outorgado, ano de 2019
POSIÇÃO USUÁRIO MUNICÍPIO TIPO DE VOLUME
USO OUTORGADO
(m³)/ano
1 TROPICAL NORDESTE LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 3.337.610,12
FRUIT AGROINDUSTRIA NORTE
2 TERRA SANTA QUIXERE IRRIGAÇÃO 1.370.158,33
IMPORTADORA E
EXPORTADORA DE
FRUTAS LTDA
3 FRUTOBRAZ - QUIXERE IRRIGAÇÃO 991.842,14
Agrocomercial e Exportadora
de Frutas Ltda
4 MERI POBO JAGUARUANA IRRIGAÇÃO 927.777,88
AGROPECUÁRIA LTDA
5 JOAO TEIXEIRA JUNIOR QUIXERE IRRIGAÇÃO 800.898,00
6 AGRÍCOLA FAMOSA LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 771.940,44
LTDA NORTE
7 MERI POBO JAGUARUANA IRRIGAÇÃO 756.823,38
AGROPECUÁRIA LTDA
8 FRUTA FROTA LTDA QUIXERE IRRIGAÇÃO 731.106,13
9 AGRÍCOLA FAMOSA LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 627.424,70
LTDA NORTE
10 AGRÍCOLA FAMOSA QUIXERE IRRIGAÇÃO 619.956,41
LTDA
11 PTLA OLINDA PROJETOS QUIXERE IRRIGAÇÃO 583.993,41
AGRICOLAS LTDA
12 AIRLON GONÇALVES DE QUIXERE IRRIGAÇÃO 537.496,20
SOUSA
13 TERRA SANTA QUIXERE IRRIGAÇÃO 513.887,49
IMPORTADORA E
EXPORTADORA DE
FRUTAS
14 TERRA SANTA QUIXERE IRRIGAÇÃO 506.670,38
IMPORTADORA E
EXPORTADORA DE
FRUTAS LTDA
15 JOSÉ JAILSON LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 341.069,65
SALDANHA OLIVEIRA NORTE
16 JOAQUIM LEAL NETO LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 304.526,47
NORTE
17 AGROPAULO QUIXERE IRRIGAÇÃO 284.007,00
AGROINDUSTRIAL S.A
18 JOAQUIM LEAL NETO LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 243.621,18
NORTE
19 JOSÉ JEAN XAVIER LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 243.621,18
FERREIRA NORTE
20 FRANCISCO DE ASSIS LIMOEIRO DO IRRIGAÇÃO 243.621,18
LIMA JUNIOR NORTE
Fonte: SRH, elaboração dos autores, grifo nosso.

Assim, quando operamos o somatório do volume outorgado/ano das quatro empresas


chegamos ao seguinte total: 9.432.249,13 m³ ou 51,53% do total autorizado para o uso agrícola
da fonte Jandaíra-Açu. Para suavizarmos a abstração de tantos milhares e milhões de metros
cúbicos, cabe uma comparação entre o somatório do volume outorgado/ano para as quatro
empresas e o volume armazenado nas cisternas de placas destinadas ao consumo humano (16
mil litros) – uma tecnologia de convivência com o semiárido. O uso outorgado para as empresas
equivale ao consumo anual de 589.515 mil cisternas. Este quantitativo seria suficiente para
instalar 7,7 cisternas por habitante, considerando o somatório da população total de Limoeiro
do Norte e Quixeré- 75.676 mil, segundo informa o Censo 2010 do IBGE.
Sinalizamos, assim, que o modelo agrário-agrícola territorializado pelas frações do
capital vinculadas ao agronegócio na Chapada do Apodi vem superexplorando a água
subterrânea dos aquíferos Jandaíra-Açu, implicando ainda no(a):

1) Rebaixamento dos aquíferos, impactando diretamente na produção dos agricultores


camponeses:
Segundo estudo da COGERH (2009), o volume anual explotado dos aquíferos da bacia
Potiguar foi de 14.095.224 m³, em 2008. Se considerarmos os dados produzidos pela presente
pesquisa para o ano 2019, tomando como referência só o sistema Jandaíra-Açu, incluindo todos
os usos, chegamos a um total de 18.762.444,05 m³/ano. Ou seja, uma diferença de mais de 4
milhões de m³ o que indica um avanço na extração de água subterrânea na região.
O avanço na demanda hídrica ganha complexidade se considerarmos que pós-2009, a
região Nordeste e, especificamente, o Estado do Ceará entrou num período de estiagem, com
destaque para o período de 2012-2017. O encontro da expansão da demanda – via avanço da
fronteira da agricultura irrigada, com as irregularidades/ escassez de chuvas, provocou - e segue
produzindo - um rebaixo dos aquíferos Jandaíra-Açu.
Já em 2008, segundo monitoramento publicado pela COGERH, “os registros de
horímetros instalados em 73 poços, foi extraído um volume total de 14 milhões de m³ que excede
em 4 milhões de m3 a recarga subterrânea estimada pelo balanço hídrico para o Aquífero
Jandaíra” (COGERH, 2009, p. 199). Em síntese, o rebaixamento do aquífero já era uma
realidade que figurava no principal estudo sobre o tema conduzido pelo próprio Governo do
Estado do Ceará.
Novos monitoramentos da COGERH sobre o comportamento do uso e recarga dos
aquíferos foram realizados e publicados nos anos de 2010, 2011, 2012, 2013. Dois trechos dos
relatórios sintetizam o resultado geral dos documentos: 1) “Com base nessas informações,
percebe-se que a precipitação ocorrida em 2010, associada ao volume de água explotado dos
aqüíferos, não permitiu a recuperação dos níveis dos aqüíferos Jandaíra e Dunas/Barreiras
para o período” (COGERH, 2012, p. 4. 2, grifo nosso) “As baixas precipitações (tendência dos
últimos anos) e o aumento do consumo explicam o rebaixamento dos níveis, na maioria dos
poços dos três tipos aquíferos estudados. Dos 40 poços monitorados 21 sofreram rebaixamento,
8 mantiveram-se constantes, 5 poços tiveram recarga e 6 não tiveram dados registrados”
(COGERH, 2014, p. 4, grifo nosso).
Apesar das indicações do crescente déficit hídrico dos aquíferos, o Governo do Estado
do Ceará não adotou nenhuma prática de gestão que garantisse a proteção dessa reserva
estratégica para a população da região. Na verdade, em 2015, o Conselho Estadual de Recursos
Hídricos, em 01 de setembro, publicou a Resolução CONERH Nº 03, que determinou, em seu
artigo 1º, a suspensão de outorgas de Direito de uso das águas superficiais vinculadas ao sistema
Jaguaribe – ou seja – aos trechos perenizados pelos rios Jaguaribe e Banabuiú, bem como do
Canal do Trabalhador e Eixão das Águas.
Essa medida, em nossa avaliação, com base nos dados coletados, provocou uma corrida
em direção aos aquíferos sedimentares localizados no Baixo Jaguaribe, com destaque para o
Jandaíra-Açu. O Governo do Estado, assim, ofereceu os aquíferos às frações do capital,
garantindo segurança hídrica para o agronegócio, por exemplo, e negando o direito à água aos
povos do campo.
2) Contaminação da água, via infiltração/percolação dos agrotóxicos no subsolo:
Os estudos organizados por Rigotto (2011) e o trabalho de Freitas (2018), para citar dois
exemplos, relacionam a expansão do agronegócio irrigado e o uso de agrotóxicos na região do
Baixo Jaguaribe. Rigotto (2011) identificou vários princípios ativos de veneno nas águas para
uso agrícola e abastecimento humano na Chapada do Apodi.
Já os estudos da COGERH (2011) aprofundam o conhecimento sobre a contaminação
das águas subterrâneas na Chapada do Apodi. No ano de 2010, a Instituição realizou quatro
campanhas de coleta ao longo do ano na bacia Potiguar. Das 32 amostras de água de poços com
agrotóxicos, 29 encontravam-se no município de Quixeré.
Apesar diferença numérica entre o total amostrado e as detecções por agrotóxicos,
asseveremos que 32 amostras de água de poços com mais de 30 metros de profundidade
contaminadas já sinalizam o cenário de risco produzido pela sobreposição de áreas
monoculturas irrigadas-manejadas com agrotóxicos e a qualidade da água subterrânea do
Jandaíra-Açu. Quixeré desponta em primeiro lugar justamente por concentrar empresas
fruticultoras de capital nacional e internacional que produzem segundo o paradigma da
Revolução Verde.
Com isso, podemos apontar um cenário de injustiça ambiental (SOUZA 2019) no uso
da água subterrânea na Chapada do Apodi. A atual corrida das frações hidrointensivas do capital
em direção aos sistemas de aquíferos da região ocorre produzindo concentração, privatização,
contaminação e esgotamento das reservas do Jandaíra-Açu.
Em virtude da assimetria de poder, tecnologia e capital entre o agronegócio e os/as
camponeses/as das comunidades da Chapada, o rebaixamento e contaminação dos aquíferos,
por exemplo, significa também a negação do direito à água para os grupos sociais das
comunidades rurais, já que estes não dispõe - na mesma proporção - de condições técnicas e
financeiras para seguir perfurando cada vez mais o aquífero até a última gota d’água como
fazem as firmas fruticultoras. Estas usam o território como mero recurso econômico, sem
considerar a dinâmica da natureza, as práticas agrícolas dos povos do campo e o futuro
climático/hídrico da região.
A partir das entrevistas realizadas - junto a Cáritas Diocesana de Limoeiro do Norte e
lideranças populares de comunidades rurais impactadas pela expansão do agronegócio – foi
possível capturar, que desde 2010, os poços localizados nas propriedades de camponeses
passaram a secar/rebaixar. Antes da expansão do agronegócio e da estiagem que assolou a
região era comum que a perfurações de poços de 20 a 40 metros atendessem a demanda hídrica
das famílias de agricultores(as).
Não obstante, com o crescimento da área plantada de frutas, com destaque para o melão
e a banana, e a gestão pró-agronegócio por parte dos órgãos do Estado – é cada vez mais comum
a busca de água a mais de 300 metros de profundidade, em virtude do rebaixamento dos
aquíferos. Tal profundidade inviabiliza – por conta do custo de perfuração – as atividades
produtivas dos agricultores e das agricultoras que historicamente utilizaram as águas
subterrâneas para sua reprodução.
Por fim, cabe frisar, segundo as entrevistas realizadas, que várias denúncias foram feitas
junto aos órgãos públicos – com destaque para COGERH e o Ministério Público Estadual, mas
até o momento o uso da água segue os caminhos do poder econômico. A ausência de gestão –
por parte do ente público estadual – parece compor um projeto político. Em outras palavras,
não se trata de incapacidade técnica de gestão, mas sim de anuência para que a frações do capital
consigam saciar sua sede por água até que o esgotamento das reservas subterrâneas dispare uma
migração das empresas para outras áreas com potencialidade hídrica. Enquanto isso, ratificando
o quadro de injustiça, sobrará aos grupos sociais locais a missão de recuperar a herança maldita
deixada pelo agronegócio.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Materializa-se na Chapada do Apodi uma geografia desigual dos rejeitos e proveitos,
uma pilhagem da água para fins de reprodução em escala ampliada do capital. Entre as faces
dessa geografia desigual indicamos a concentração da água e dos lucros e a socialização da
herança maldita do agronegócio para as comunidades rurais da região.
Os processos destrutivos que conduzem a herança maldita já se avolumam:
rebaixamento dos aquíferos; perda da produção camponesa, venda de propriedades familiares
motivada pela impossibilidade de captar água em profundidades cada vez maiores;
intensificação da proletarização dos agricultores e agricultoras como alternativa infernal a
privatização dos aquíferos; contaminação das águas por agrotóxicos e fertilizantes químicos;
produção e escoamento de commotidies para mercados longínquos – exportando indiretamente
a água irrigada; mudanças no uso da terra com a expansão da monocultura frutícola em
detrimento da sociobiodiversidade alimentar.
Ao final desta pesquisa, indicamos que reivindicar uma ação do Estado no sentido de
proteção dos aquíferos parece um pedido que não guarda coerência com a realidade das relações
de poder em curso. A rede política formada pela parceria entre entes públicos e as frações do
agronegócio já decidiu para quem deve servir os aquíferos Jandaíra-Açu. Cabe agora uma
revanche dos expropriados, despossuídos, invisibilizados – os camponeses e as camponesas –
com o objetivo de garantir uma reapropriação do território, curar a destrutividade ambiental
deixada pelo agronegócio e salvaguardar os aquíferos como fonte de soberania alimentar e
reserva estratégica para os cenários de mudanças climáticas que anunciam mais instabilidade
pluviométrica para o semiárido.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Subterrâneos e Proposição de Modelo de Gestão Compartilhada para os Aquíferos da
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Ed. UNESP, 1995.
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Participativa dos Aquíferos da Bacia Potiguar: Estado do Ceará. Fortaleza: Companhia de
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