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EDUCAÇÃO MATEMÁTICA EM REVISTA – RS

O OBJETO DE ENSINO DA ÁLGEBRA: PESQUISAS, PROGRAMAS CURRICULARES E


A FALA DOS PROFESSORES1

The object of teaching in algebra: Research, curriculum programs and the speech of
teachers

Maria Lucia Panossian


Manoel Oriosvaldo de Moura

Resumo1 theory and the activity theory. A literature review


of research on the process of teaching and lear-
Este artigo apresenta sínteses derivadas ning algebra was carried out; analysis of curricu-
da pesquisa de doutorado (PANOSSIAN, 2014) lum programs; and data collection from written
que investigou a constituição do objeto de ensino records and the speeches of teachers. One was
da álgebra, fundamentada na teoria histórico- found the diversity of views in relation to algebra
cultural e na teoria da atividade. Foi realizada a and its teaching highlighting the role of symbo-
revisão bibliográfica de pesquisas sobre o proces- lism and language; the process of generalization;
so de ensino e aprendizagem da álgebra; análise the conception of variable; the relationship of
de propostas curriculares; e captação de dados a magnitudes among others. It was considered the
partir de registros escritos e falas de professores. need of discussions to balance this diversity of
Constatou-se a diversidade de concepções em concepts and establish principles to guide the
relação à álgebra e seu ensino destacando-se: o proposal of algebra teaching object.
papel do simbolismo e da linguagem; o processo
de generalização; a concepção de variável; a rela- Keywords: Algebra. Teaching of algebra. Object
ção entre grandezas entre outros. Considerou-se of teaching.
a necessidade de discussões que equilibrem esta
diversidade de concepções e estabeleçam prin- Introdução
cípios que orientem a constituição do objeto de
ensino da álgebra. A partir dos fundamentos da teoria histó-
rico-cultural, adotou-se como pressuposto que o
Palavras-chave: Álgebra. Ensino de álgebra. olhar sobre o objeto da álgebra para os pesquisa-
Objeto de ensino. dores matemáticos difere do olhar sobre o objeto
da álgebra para os pesquisadores do ensino de
Abstract matemática. O matemático reconhece nos objetos
fenômenos e conceitos matemáticos seu objeto
This article presents summaries from de estudo e pesquisa, sendo este o fim de sua ati-
a doctoral research (PANOSSIAN, 2014) that vidade. Por outro lado, o pesquisador do ensino
investigated the constitution of the object of tea- de matemática estuda e analisa o objeto da álge-
ching in algebra, based on the cultural-historical bra não como um fim em si mesmo, mas como
objeto de ensino para desenvolver as funções
psíquicas (VIGOSTKY, 2001) e o pensamento
1
Este artigo é uma ampliação do texto apresentado no VI
SIPEM, 2015. teórico (DAVYDOV,1982) dos estudantes.

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Assim, o que se apresenta como objeto para Fiorentini, Miorim e Miguel a diferencia-
de ensino cumpre minimamente duas funções: ção está relacionada ao papel da álgebra como
desenvolver o sujeito psiquicamente e possibi- linguagem.
litar a apropriação dos conhecimentos já for- Usiskin (1995) destaca quatro concepções
mados historicamente. Essas duas funções são de álgebra que estão relacionadas à importân-
interdependentes, sendo impossível separá-las. cia atribuída às variáveis. A álgebra pode ser
O sujeito se desenvolve psiquicamente ao se compreendida como: aritmética generalizada
apropriar dos conhecimentos, e seu desenvolvi- (variáveis como número geral); estudo para re-
mento psíquico permite a apropriação de novos solver certo tipo de problemas (variáveis como
conhecimentos. incógnitas); estudo da relação entre grandezas
Considera-se ainda que a álgebra esco- (variáveis em relação de dependência associada
lar é derivada da álgebra que, historicamente, à noção de função) e estudo de estruturas (vari-
se constituiu na experiência humana e, dessa áveis como objetos arbitrários).
forma, deve contemplar os nexos conceituais e Por sua vez, Fiorentini, Miorim e Miguel
a essência (DAVYDOV, 1982) do conhecimento (1993) identificam diferentes concepções de álge-
algébrico. Entretanto, não se desconsidera que bra relacionando ao seu papel como linguagem.
essa álgebra desenvolvida e organizada para as Assim denominam uma delas de processológica,
ações escolares está influenciada pela própria entendida como um conjunto de procedimen-
estrutura escolar e de formação de professores. tos para resolver problemas, independente da
Assim, essa organização está também relaciona- linguagem que a expressa. Além disso, carac-
da às concepções dos professores, às orientações terizam outras três concepções associadas à
curriculares, etc. linguagem: a concepção linguístico-estilística,
Neste artigo pretende-se evidenciar na qual álgebra é uma linguagem específica
elementos manifestados em alguns programas para expressar procedimentos de resolução de
curriculares e na fala dos professores para a problemas; a concepção linguístico-sintático-
compreensão do que tem sido considerado semântica, que também compreende a álgebra
como objeto de ensino da álgebra. Para tanto, como uma linguagem, entretanto foca atenção ao
metodologicamente foram elaboradas análises e significado dos símbolos; e a concepção chamada
sínteses a partir de: 1) pesquisas que apresentam lingüístico-postulacional, em que a álgebra é
concepções de álgebra e educação algébrica; 2) compreendida como uma linguagem simbólica
programas curriculares (de forma particular da cujos signos alcançam alto grau de abstração e
rede pública estadual de São Paulo); 3) da fala generalidade.
de professores (através de um curso realizado Fiorentini, Miorim e Miguel (1993) tam-
com professores da rede estadual de São Paulo). bém apresentam tendências que influenciam
Tais análises e sínteses serão expostas nos itens o ensino de álgebra no Brasil. A tendência
a seguir. linguístico-pragmática, preponderante no século
XIX, enfatiza o domínio da linguagem literal e o
Um panorama a partir de pesquisas do treino para resolução de equações. Vinculada ao
ensino e aprendizagem da álgebra movimento da Matemática Moderna (décadas de
1970 e 1980) predomina a tendência fundamen-
Pesquisas como as de Cury et al. (2002) talista-estrutural com foco para as propriedades
revelam que conhecer as concepções de álgebra estruturais. Como uma síntese das anteriores,
e de educação algébrica é elemento importante os autores destacam a tendência fundamenta-
para novas reformulações curriculares na medida lista analógica, que procura recuperar o valor
em que possibilita que se discutam as finalidades instrumental da álgebra e, para tanto, faz uso de
dessa disciplina. recursos denominados de físicos e geométricos.
Autores como Usiskin (1995) Fiorentini, Em tais concepções, há predominância do siste-
Miorim e Miguel (1993) já pesquisaram e sis- ma simbólico e ênfase à sintática da álgebra mais
tematizaram concepções de álgebra. Enquanto do que ao pensamento algébrico ou significado
para Usiskin tais concepções se diferenciam (semântica) dos símbolos. A situação oposta, em
conforme a importância atribuída às variáveis, que prevalece o aspecto semântico e conceitual

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(GOMEZ-GRANELL, 1996), não é uma tendência e outros. Conforme a autora, até meados da
predominante no ensino. década de 1960, o ensino de álgebra priorizava
Lins e Gimenez (1997) também apresen- atividades de manipulação simbólica. A autora
tam concepções de educação algébrica com pre- também indica que na década de 1990 houve
dominância do recurso simbólico (a concepção predominância das atividades de geração com o
letrista e a concepção letrista facilitadora que uso de sequências e padrões. A expectativa era
recorre ao uso de materiais manipulativos). de que se os estudantes realmente “entendessem”
É fato que a manipulação simbólica é uma a álgebra, a manipulação técnica se resolveria,
característica da álgebra que permite a resolu- porém chama a atenção de que isso não aconte-
ção dos problemas sem a constante retomada ce. A autora considera a necessidade de atribuir
do significado das expressões. Historicamente significados não só aos objetos da álgebra, mas
se reconhece que a partir de Viète (2006) e sua aos seus processos manipulativos, admitidos
logística speciosa, o desenvolvimento da álgebra como um objeto conceitual.
é alavancado, também por serem usados sím- Além do papel do simbolismo no en-
bolos não atrelados a objetos específicos. Por sino da álgebra, a noção de variável também
outro lado, no processo de ensino de álgebra, o é elemento e objeto de pesquisas. Por vezes a
excesso de manipulação torna-se sem sentido se variável é associada a uma letra e não contém
não estiver consolidado o significado atribuído em si a variação, sendo usada apenas como
aos símbolos. “identificador” de um elemento desconhecido.
Entre 2000 e 2004, pesquisadores asso- Ursini et al. (2005) propõem o modelo ‘Três usos
ciados ao International Commission on Mathe- da variável’ (3UV) – incógnita, número geral e
matical Instruction (ICMI) realizaram estudos relação funcional – e consideram necessário que
sobre o futuro do processo de ensino da álgebra o estudante compreenda esses diferentes “usos”
e revelaram preocupação com o excesso de ma- da variável.
nipulação simbólica. Os conceitos de variável e variação são
também estudados por Sousa (2004). A partir
Se a álgebra é interpretada só como de registros da história da matemática e em
uma manipulação simbólica, então busca dos nexos dos conceitos algébricos, a
ela tem pouca relevância para a vida pesquisadora preocupa-se com a elaboração
do dia a dia, em países desenvolvi-
de atividades de ensino em que professores e
dos e pouco desenvolvidos. De fato,
isso pode ser uma fonte de alienação alunos possam pensar sobre o lógico-histórico
dos estudantes para aprendizagem do conhecimento científico a partir de diferen-
de matemática. O desafio, portanto, tes linguagens (retórica, sincopada, simbólica,
tem sido reconceitualizar a álgebra geométrica) reconhecidas no desenvolvimento
como um assunto que tem relevância do conhecimento algébrico, e dos processos de
para os estudantes e fazer isso de um pensamento envolvidos.
modo que os estudantes percebam
A autora fundamenta-se em Caraça (1952),
por eles mesmos esta relevância.
(STACEY; CHICK, 2004, p.2) para quem o conceito de função é entendido
“como o instrumento próprio para o estudo das
leis”. Esse autor se refere à lei como sendo “toda
Em um desses estudos, Kieran (2004)
regularidade de evolução de um isolado” (p.120).
aponta como núcleo do que denomina atividade
O isolado por sua vez é um recorte da totalidade,
algébrica: as atividades de geração, de transfor-
que não pode ser compreendida de uma única
mação ou de nível meta/global. Nas atividades
vez, mas que, apesar de recortado de forma ar-
de geração, os padrões e propriedades são in-
bitrária, contém componentes que permitem o
terpretados ou representados algebricamente.
estudo do fenômeno do qual ele foi recortado. A
Nas atividades de transformação, o foco é a
manipulação da função como instrumento mate-
manipulação simbólica. As atividades de nível
mático só é possível com o conceito de variável
meta/global não estão diretamente relacionadas
que, para Caraça, é o símbolo representativo de
a conteúdo algébrico, mas usam esses conteúdos
qualquer elemento de um conjunto numérico e
para resolver problemas, organizar estruturas
permite alcançar a generalidade sem se restrin-

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gir a casos particulares expressos em tabelas de É essencial estabelecer, de forma


números. A variável é para Caraça (1952, p.127) clara, a distinção entre ‘genérico’
“o símbolo da vida coletiva do conjunto, vida e ‘generalizado’. A situação ‘gene-
ralizada’ emerge quando os alunos
essa que se nutre da vida individual de cada
passam a falar do que é comum a
um dos seus membros, mas não se reduz a ela”. um conjunto de casos particulares
Assim o conceito de variável agrega o conceito […] ao passo que a situação ‘ge-
de número, mas o supera. nérica’ emerge quando tratamos
Assim, fundamentada em Caraça (1952), diretamente daquilo que é geral
e considerando o conceito de variável como um numa situação, sem a intermediação
dos nexos internos que compõem o pensamento dos casos particulares. Isso não quer
algébrico, Sousa (2004) sugere uma proposta de dizer, é claro, que a situação genéri-
ca se constitua independentemente
ensino de álgebra em que “[…] o ponto de partida
de qualquer caso particular (embora
do ensino deste campo da matemática seja um isso não seja nada improvável ou
estudo de movimentos qualitativos e quantitati- impossível!) e sim, que, no interior
vos da realidade para, num segundo momento, da atividade, a atenção é diretamen-
tornar-se um estudo dos aspectos particulares e te dirigida ao que é geral, e não ao
singulares de movimentos quantitativos determi- processo de ‘generalização’. (LINS;
nados” (MOURA; SOUSA, 2008, p.68). GIMENEZ, 1997, p.114)
A relação quantitativa entre grandezas é
também fundamental para Davídov (1982), pes- Para Blanton e Kaput (2011) o coração da
quisador russo da teoria histórico-cultural e da álgebra e do pensamento algébrico se encontra
teoria da atividade, que indica que os símbolos em construir, expressar e justificar as generali-
literais e fórmulas são acessíveis às séries iniciais zações e pode ser apresentado aos estudantes já
mesmo antes de os estudantes reconhecerem os nos primeiros anos de escolaridade.
números. O estudioso estabelece um programa Pesquisas como as de Radford (1996a;
curricular visando ao desenvolvimento do pen- 1996b) aprofundam os estudos sobre o processo
samento teórico. Busca a gênese do conceito de de generalização, particularmente a algébrica,
número e a considera para todos os números e desvinculam esse estudo dos processos arit-
reais, sendo que os números naturais, racionais, méticos.
inteiros, irracionais são casos singulares da Concordamos com Radford (1996a, p.108)
representação das relações gerais entre as gran- no seguinte sentido: “Eu penso que a hipótese da
dezas (DAVYDOV, 1982). Para o conhecimento generalização ser vista como uma norma epistê-
algébrico, o estabelecimento dessas relações mica precisa ser estudada em maior detalhe e que
entre grandezas de modo geral é fundamental, o as consequências que provoca para o ensino de
que nos conduz às concepções sobre o processo matemática precisam ser especificadas”.
de generalização. Radford (2001) compreende o processo
Em relação ao processo de generalização, de generalização a partir da semiose e conceitu-
na década de 1990, Usiskin indicava a aritmética aliza a “generalização factual”, “generalização
generalizada como uma das concepções de álge- contextual” e “generalização simbólica”. Nas
bra, sendo que “[...] as instruções-chave para o alu- ‘generalizações factuais’ não se recorre a termos
no são traduzir e generalizar. Trata-se de técnicas linguísticos ou símbolos especializados, o que
importantes, não só para a álgebra mas também limita o alcance de um status mais geral, man-
para a aritmética” (USISKIN, 1995, p.13). tendo as ações de generalização ligadas a um
Essa generalização é realizada sobre as contexto específico. A “generalização contextual”
propriedades numéricas. Lins e Gimenez (1997), se desenvolve sobre os objetos ainda situados no
a partir da análise da proposta de Davydov, re- tempo e no espaço e que também dependem das
gistram que há uma diferença entre identificar a pessoas envolvidas na ação. Considera que para a
álgebra como aritmética generalizada e entender generalização algébrica os objetos não estão situ-
que a álgebra pode generalizar a aritmética e ados temporal ou espacialmente e nem atrelados
explicam: à participação de um indivíduo particular. Ra-
dford reconhece a necessidade de os estudantes

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“descorporificarem” e deslocarem do tempo e do O modo encontrado para atender a essa pressão


espaço os processos de generalização e objetos de formação dos estudantes foi aprofundar a
matemáticos, e a esse processo atribui o nome linguagem dos conjuntos e privilegiar o papel das
de “dessubjetificação”, que considera necessário estruturas, inclusive da álgebra abstrata (grupo,
para chegar à ‘generalização simbólica’. anel, corpo e outros).
Destacou-se, brevemente, através desse Conforme Pires (2008), no movimento da
panorama de pesquisas, elementos considerados Matemática moderna era intenção que o ensino
essenciais no ensino da álgebra, reconhecidos escolar se aproximasse da ciência. Entretanto, os
entre os pesquisadores: o papel do simbolismo; a objetos matemáticos foram tratados de maneira
concepção de variável; relações entre grandezas excessivamente formalizada.
e o processo de generalização, ainda que existam
diferentes concepções sobre cada um deles e sua No período que sucedeu o declínio
abordagem no ensino. A seguir, será destacado o da Matemática Moderna, em todo
objeto de ensino da álgebra revelado em algumas o mundo buscou-se construir cur-
rículos de Matemática mais ricos,
propostas curriculares.
contextualizados culturalmente e
socialmente, com possibilidades de
O objeto de ensino da álgebra nas estabelecimento de relações intra
propostas curriculares e extra-matemática, com o rigor e
a conceituação matemáticos apro-
priados, acessível aos estudantes,
As diferentes concepções sobre a natureza
evidenciando o poder explicativo
da álgebra e de seu ensino também são reveladas da Matemática, com estruturas
pelos programas curriculares. No processo de mais criativas que a tradicional
elaboração de propostas ou programas curricula- organização linear (seja por meio
res, entende-se que é necessário definir critérios de mapas conceituais, de concep-
para a escolha do que será considerado como ção mais hierarquizada, seja por
objeto de ensino, e tais critérios estão necessa- meio de redes de significados, de
concepção menos hierarquizada).
riamente associados aos objetivos escolares para
(PIRES, 2008, p.15)
a formação dos estudantes ou, melhor, à função
social da escola. De forma particular, entende-se
que o estabelecimento do objeto de ensino da Também influenciam a determinação dos
álgebra também está diretamente relacionado ao programas curriculares as diferentes concepções
objetivo da escola para a formação dos estudan- sobre a natureza da álgebra e de seu ensino. As
tes. Diferenças no que é proposto para o ensino diferenças entre o que se entende por ensino e
da álgebra nos diferentes programas curriculares aprendizagem da álgebra nos currículos de vários
geram diferenças nos resultados obtidos em re- países foram analisadas pelo grupo participante
lação à formação dos estudantes. do ICMI em 2004 e estão reunidas nos textos de
Pires (2008) sintetiza o processo de organi- Kendal e Stacey (2004).
zação e desenvolvimento curricular da Matemá- Esses estudos indicam diferenças entre a
tica no Brasil a partir da década de 1960 e da in- organização dos programas curriculares de álge-
fluência do Movimento da Matemática Moderna. bra conforme a organização do sistema escolar e
Tal movimento surge atendendo às pressões para faixa etária dos estudantes. Por meio do estudo
a modernização do ensino, visando à formação de currículos de diferentes países encontra-se a
de indivíduos adaptados aos crescentes avanços álgebra vista como: a) um meio para expressar
tecnológicos, de acordo com o progresso e desen- generalidade e padrões; b) estudo da manipu-
volvimento. Destaca-se a preocupação mundial lação simbólica e resolução de equações; c)
que era a disputa pela supremacia tecnológica estudo de funções e suas transformações; d) um
entre Estados Unidos e União Soviética, e as meio para resolver problemas que estão além
mudanças curriculares aumentando a ênfase do alcance de métodos aritméticos; e) um meio
nas áreas exatas. Essa preocupação influencia para interpretar o mundo por meio de situações
também o ensino no Brasil, que convivia com reais modeladas, precisa ou aproximadamente;
atraso tecnológico e de mão de obra qualificada. f) um sistema formal que possibilita lidar com

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teoria dos conjuntos, operações lógicas e outras áreas para visualizar a soma de alguns monômios”
operações ou objetos além dos números reais. Em (SÃO PAULO, 1988, p.96).
função do excesso de diferenças sobre o modo A resolução de problemas é indicada
de conceber a álgebra e seu ensino em diferentes como procedimento metodológico, somente
países, os autores desta pesquisa encontram difi- para desencadear o surgimento, por exemplo,
culdades em generalizar e definir uma concepção de equações ou de sistemas, que deveriam ser
de álgebra que seja consensual. estudados de forma autônoma. Tal orientação
Kendal e Stacey (2004) também apresen- é indicada para a resolução de equações de 1º
tam o panorama de Rômulo Lins sobre o que grau na 7ª série: “Embora se deva partir ainda de
tem sido considerado como álgebra no Brasil. situações-problema, das quais as equações sejam
O pesquisador considera que a educação algé- meras traduções, trata-se, agora, de se proceder a
brica no país segue um modelo de manipulação um estudo relativamente autônomo das equações
simbólica tradicional, em que os estudantes de do 1º grau com uma incógnita” (SÃO PAULO,
4º ano resolvem equações simples com o uso 1988, p.98). Percebe-se, então, a importância
do método de completar os espaços vazios e há maior sendo atribuída ao método de resolução
algum trabalho com padrões. Até o 6º ano, essa de equações em seus procedimentos técnicos do
situação não se modifica muito, e os estudantes que à resolução do problema.
conseguem apenas resolver equações simples. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais
A partir do 7º ano, a manipulação simbólica é (BRASIL, 1998), percebe-se uma abrangência em
enfatizada, com o estudo de binômios e o uso relação ao ensino de álgebra desde a compreen-
de recursos geométricos com o pressuposto de são de sua sintaxe até o reconhecimento de suas
que auxiliará na compreensão. No 8º ano, a ma- diversas funções relacionadas à generalização de
nipulação simbólica permanece, e os estudantes padrões, resolução de problemas aritmeticamente
passam a resolver equações de 2º grau, além da difíceis, estabelecimento de relações entre grande-
introdução da noção de função. No ensino médio, zas e outros. Para o terceiro ciclo (que corresponde
os conteúdos ensinados são funções, trigonome- às antigas 5ª e 6ª séries ou na legislação atual, 6º
tria, polinômios. Nesse panorama, Rômulo Lins e 7º ano, respectivamente), é recomendado que
destaca também as dificuldades dos estudantes o estudante compreenda a noção de variável e
em resolver problemas não padronizados, além expresse algebricamente a relação entre duas
de baixos índices atingidos em provas – por grandezas. A resolução de equações, de inequa-
exemplo, o Programa Internacional de Avaliação ções e de sistemas de equações está prevista para
dos Estudantes (PISA). o quarto ciclo, à medida que os alunos tenham a
Esse panorama e a ênfase no modelo de necessidade para resolver os problemas.
manipulação simbólica podem ser reconhecidos
na síntese a seguir apresentada sobre algumas Embora nas séries iniciais já se
propostas curriculares, em especial do Estado possa desenvolver alguns aspectos
de São Paulo. da álgebra, é especialmente nas
séries finais do ensino fundamen-
Nas propostas curriculares elaboradas ao
tal que as atividades algébricas
final da década de 1980 se reconhece uma tendên- serão ampliadas. Pela exploração
cia de formalização, sistematização e abstração de situações-problema, o aluno
das estruturas matemáticas. Em vez do nome reconhecerá diferentes funções
álgebra, recorre-se a “cálculo literal” e “[...] espera- da Álgebra (generalizar padrões
se dar nova abordagem a esse tema de modo a aritméticos, estabelecer relação
reduzir significativamente a sua extensão, a sua entre duas grandezas, modelizar,
resolver problemas aritmeticamente
monotonia e o tempo que, geralmente, se gasta no
difíceis), representará problemas
seu desenvolvimento” (SÃO PAULO, 1988, p.95). por meio de equações e inequações
A concepção de educação algébrica presente em (diferenciando parâmetros, variá-
tais propostas também se aproxima da concepção veis, incógnitas, tomando contato
letrista facilitadora, ao recorrer a alguns artifícios com fórmulas), compreenderá a
metodológicos para facilitar o cálculo com as le- sintaxe (regras para resolução) de
tras. Por exemplo: “Utilizar, também, o cálculo de uma equação.

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Esse encaminhamento dado à No decorrer de seu texto, os Parâmetros


Álgebra, a partir da generalização Curriculares Nacionais apresentam concepções
de padrões, bem como o estudo da de álgebra muito próximas às concepções pro-
variação de grandezas possibilita a
postas por Usiskin (1995). Ainda que não façam
exploração da noção de função nos
terceiro e quarto ciclos. Entretanto, referência a essa pesquisadora, consideram que
a abordagem formal desse conceito tais concepções devem estar contempladas nas
deverá ser objeto de estudo do ensi- situações propostas para os alunos (Figura 1).
no médio. (BRASIL, 1998, p.50-51)

Figura 1 – Concepções da álgebra.

Fonte: Brasil (1998a, p.116).

Na atual Proposta Curricular para o Estado gem e das técnicas da álgebra. O


de São Paulo (SÃO PAULO, 2008), a Matemática uso da linguagem algébrica, para
é entendida com um sistema simbólico que deve expressar generalizações que se
constituam em propriedades de
articular-se com a língua materna para represen-
outros campos da Matemática, é
tar a realidade. O conhecimento algébrico surge outra função da álgebra que deve
articulado com outras áreas do conhecimento, ser, pouco a pouco, introduzida.
como um instrumento de resolução de problemas (BRASIL, 2011, p.16)
de diferentes áreas da ciência. “Na organização
proposta, a lista de conteúdos selecionados para Nas orientações curriculares do município
cada série não se afasta muito da que é usual- de São Paulo para o ensino fundamental, espera-
mente apresentada nos diversos sistemas de se em álgebra que os alunos sejam capazes de
ensino” (SÃO PAULO, 2008, p.47), e realmente “Identificar diferentes usos para as letras, em si-
mantém a estrutura adotada por livros didáticos tuações que envolvem generalização de proprie-
(GIOVANI JÚNIOR; 2009; IMENES; LELIS, 2009) dades, incógnitas, fórmulas, relações numéricas
analisados no Guia de Livros Didáticos (BRASIL, e padrões” (SÃO PAULO, 2007, p.45). Nesse caso,
2011), cujas orientações para o ensino de álgebra considera-se que a generalização é um processo
incluem: a ser desenvolvido sobre objetos matemáticos,
ou seja, generalizam-se propriedades, fórmulas,
A percepção de regularidades, que
relações e outras.
pode levar à criação de modelos
simbólicos para diversas situações, A partir da teoria histórico-cultural, com-
e a capacidade de traduzir simboli- preende-se que a relação entre a generalização
camente problemas encontrados no como uma capacidade cognitiva do aluno a ser
dia a dia, ou provenientes de outras desenvolvida e/ou como um processo realizado
áreas do conhecimento, devem ser sobre objetos matemáticos é necessariamente
gradativamente desenvolvidas para dialética. A capacidade cognitiva do estudante
se chegar ao uso pleno da lingua-
em generalizar se desenvolve enquanto ele reali-

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za processos de generalização. Ao mesmo tempo, três anos elementares do currículo de Davydov


os processos de generalização se desenvolvem em uma escola americana. O estudo revelou que
na medida em que o estudante possui condições os estudantes conduzidos por esse currículo
cognitivas para realizar tal processo. A compre- resolveram problemas algébricos que não eram
ensão da generalização como processo/produto encontrados até o segundo nível de escolaridade
requer estudos que revelam o desenvolvimento nos Estados Unidos. A pesquisa também apre-
desse processo no movimento histórico e que senta uma comparação entre o desenvolvimento
revelam o movimento da generalização enquanto da álgebra no currículo de matemática elementar
processo lógico de pensamento. proposto por Davydov e pelo currículo orientado
Também encontramos na proposta mu- pelo National Council of Teacher of Mathematics
nicipal de São Paulo indícios que revelam a (NCTM). Destaca uma diferença relevante entre
álgebra concebida como a aritmética generali- eles: a álgebra desenvolvida no currículo de
zada, reforçando-a como uma linguagem para Davydov a partir da relação entre as grandezas
expressar regularidades, como destacado no consideram os números como uma aplicação
trecho a seguir: concreta das generalizações algébricas, portan-
to em oposição ao que é proposto pelo NCTM,
É importante, também, propor em que a álgebra é derivada das generalizações
situações que permitam identificar numéricas.
e generalizar as propriedades das Para Schmittau (2004, apud SCHMITTAU;
operações aritméticas e estabelecer
MORRIS, 2004), o currículo de Davydov per-
algumas fórmulas. Nessa dimensão,
a letra simplesmente substitui um mite aos estudantes: pensar os procedimentos
valor numérico. algébricos e desenvolve o pensamento teórico,
Analisando as atividades propostas, a partir de relações quantitativas em situações
o aluno pode construir a ideia de contextualizadas; desenvolve a capacidade de
álgebra como uma linguagem que análise e generalização ao compreender a letra
serve para expressar regularidades como “qualquer número”, gerando modelos de
observadas em diferentes relações relações quantitativas, com estruturas e prin-
aritméticas e geométricas. (SÃO cípios que regem a manipulação de símbolos
PAULO, 2007, p.93)
algébricos.
Assim, no decorrer deste item, também
Ainda que identifiquemos concepções puderam ser observadas diferentes concepções
de álgebra e educação algébrica refletidas nas sobre álgebra e seu ensino nas orientações ou
propostas curriculares e que enfatizam a mani- programas curriculares revelando a falta de con-
pulação simbólica ou a álgebra como aritmética senso em relação ao que pode ser definido como
generalizada, Knuth et al. (2005) consideram que objeto de ensino da álgebra. No próximo item,
há um crescente consenso de que uma reforma no destacaremos também diferentes concepções
ensino de álgebra requer uma reconceitualização sobre o objeto de ensino da álgebra através da
da natureza da álgebra e do pensamento algébri- fala dos professores.
co, e um novo exame sobre quando os estudantes
são capazes de pensar algebricamente para que A fala dos professores
se possa inserir a álgebra no currículo2.
Alguns indícios para essa reconceitualiza- As análises a seguir sintetizadas foram
ção podem ser encontrados na pesquisa de Sch- realizadas a partir de dados obtidos em um curso
mittau (SCHMITTAU, 2004, apud SCHMITTAU; de 30 horas intitulado “Atividades de ensino de
MORRIS, 2004) sobre o desenvolvimento dos álgebra a partir da teoria histórico-cultural”, de
que participaram dezesseis professores da rede
2
Uma discussão que se faz bastante presente nas pesquisas estadual de São Paulo. O objetivo principal do
atuais é o processo da early algebra (CAI; KNUTH, 2011), com a curso era o de discutir com os professores prin-
sugestão de inserir a álgebra em anos anteriores no programa cípios de organização do ensino de álgebra ao
escolar. Entretanto, existe uma decisão anterior a esta de apre-
sentar a álgebra mais cedo aos estudantes, que é a de rever o
longo dos anos de escolaridade.
objeto de ensino da álgebra, o seu conteúdo real.

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EDUCAÇÃO MATEMÁTICA EM REVISTA – RS

Tomou-se como pressuposto inicial que dência a compreender a álgebra como aritmética
a discussão sobre o desenvolvimento histórico generalizada e em seu aspecto funcional.
da álgebra não se apresenta no espaço escolar, A professora Suzana apresentou uma
não sendo considerada para a constituição do concepção de álgebra associada a formas de
objeto de ensino da álgebra. Este já se encontra pensamento mais do que a sua representação na
cristalizado em programas curriculares e mate- forma de linguagem e responde que:
riais didáticos na forma de tópicos de conteúdo
algébricos que se repetem ao longo dos anos […] a álgebra é importante sim por
escolares com alterações pontuais. que é ela que faz com que a gente
Não se discutem nas orientações curri- equacione um pensamento, uma
solução, um raciocínio que vai
culares os critérios de definição do conteúdo
enfim lá na frente de encontro com
algébrico ou as razões para sua presença, mas a nossa situação problema e venha
sim as questões metodológicas de abordagem e a resolver […] o objeto [de ensino
apresentação desses conteúdos pré-definidos. da álgebra] é a construção da ideia
Tais conteúdos são padronizados e podem ser de maneira que você a equacione
observados em coleções de livros didáticos ou, para resolver as situações proble-
de forma mais recente, nas apostilas distribuídas mas, problemas gerais a partir de
situações problemas do cotidiano
bimestral e anualmente para alunos e professores
[…]. (Suzana)
da rede pública de ensino, no caso particular do
Estado de São Paulo.
Durante o curso, foram promovidos Destaca-se também a sua concepção de
momentos de discussões sobre: o processo de variável relacionada aos vários fenômenos que
formação de conceitos; formas de pensamento e influenciam um acontecimento, e não necessa-
de linguagem; episódios de história da álgebra riamente variações quantitativas.
em diferentes momentos (retórica, sincopada,
Uma coisa que acho que tem que
geométrica, simbólica), situações de ensino de
ficar mais clara, que eles têm noção
álgebra e outros. Mas para este artigo serão con- sobre variável que eles calculam
siderados apenas os momentos iniciais do curso isso mentalmente sem perceber e
que revelam as concepções dos professores sobre eu chamo muita atenção deles[...].
álgebra e seu ensino. Me conta o que você fez hoje, tá
Em resposta à questão “O que pode ser ele vai te contar, eu vim pra escola,
considerado como objeto da álgebra e que deve o ônibus quebrou, o que significa
o ônibus quebrar? Era uma coisa
ser ensinado aos estudantes?”, a simbologia
prevista? Não, foi um acidente.
destacou-se entre os registros escritos de cinco Como posso equacionar isso para
dos professores por meio de afirmações como “A que este acidente seja superado e
simbologia usada no estudo de cada situação” eu não chegue atrasado? Então ele
(Vânia3) ou “A simbologia que sintetiza o pensa- sabe fazer isso oralmente, a nossa
mento de forma geral” (Suzana). investigação além de brincar com
Ainda evidenciando uma concepção de a álgebra, tal…é que eu ainda não
álgebra associada a seus símbolos, o professor tive tempo de brincar com isso.
(Suzana)
Pedro destaca como sendo objeto da álgebra
a “sistematização de problemas concretos por
meio da simbologia”. Por outro lado, a professora Essa professora concebe a álgebra como
Helena entende que a álgebra permite que se re- a possibilidade de expressar todo e qualquer
solva uma série de problemas em função de seu movimento da realidade objetiva, sem se prender
poder de generalização e admite como objeto da aos movimentos que podem ou não ser quantifi-
álgebra as generalizações e as relações entre as cados. Por isso, a sua compreensão de “variável”
grandezas. Essa professora oscila entre uma ten- no movimento do fenômeno é diferente da con-
cepção de variável em Caraça (1952).
Essa professora declara ainda que res-
gata episódios históricos para apresentar aos
3
Os nomes dos participantes do curso são fictícios.

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EDUCAÇÃO MATEMÁTICA EM REVISTA – RS

estudantes. Também concebe como sendo Em relação ao registro simbólico, Ester


importante “contar as passagens” ou trechos questiona a necessidade de uma alfabetização em
históricos para que o aluno entenda o que está matemática, similar à alfabetização em lingua-
sendo ensinado, como se vê no trecho a seguir gem materna, para que os símbolos incorporem
transcrito. significados, e afirma “[…] eles aprendem assim
equação é isso, mas eles não sabem o que signi-
A gente não pode enrijecer o conhe- fica equação”. Por sua vez, a professora Helena
cimento […] eu pelo menos busco as reforça a preocupação com a apresentação e o uso
coisas diferentes, estou sempre bus- dos símbolos matemáticos convencionados:
cando informações diferentes […].
A história da evolução que a gente
[…] a questão da simbologia mate-
conta vai do que você domina, do
mática, o aluno não consegue en-
conhecimento que já está acostu-
tender. Você coloca x (xis) pertence
mada. Eu tento não ser tão técnica
a R (erre) ele lê xer, que é isso? Não
em relação a demonstrações que
faz sentido, trabalhar a questão de
na vida cotidiana do aluno não faz
simbologia, […] eu costumo dedicar
diferença alguma e trabalho mais o
uma aula só para passar símbolos
pensamento. Então eu vou contar
matemáticos, por que eu acho que
para eles a história dos conjuntos,
eles têm que entender o que signi-
se eu dou conjuntos dos números
fica o símbolo, por que se não barra.
reais eu conto como chegou até lá.
(Helena)
Eu faço uma história, é uma aula de
história, se eu dou números com-
plexos eu ponho […] os números Além desse foco no registro simbólico, o
e conto […] a história em quinze processo de generalização foi citado por sete pro-
minutos você consegue contar as fessores e inclusive pela professora Helena, que
passagens com alguns trechos.
comenta: “É unânime que a álgebra é realmente
importante por que através da álgebra a gente
Pode ser observada por meio dessa fala consegue generalizar uma série de situações e
uma concepção de ensino que reconhece nos assim resolver uma série de problemas de uma
episódios da História possibilidades para a or- forma geral, genericamente digamos assim, do
ganização do ensino de álgebra. Mas se observa cotidiano” (Helena).
que o destaque dado pela professora é no sentido Outra professora reforça uma concepção
de narrar ou contar os fatos. de generalização como uma ação mental que se
A professora Mônica compreende que desenvolve de forma independente e divorciada
o ensino de álgebra é facilitado com o uso de das ações com a realidade objetiva, como se hou-
recursos geométricos, o que se afilia a uma ten- vesse uma possibilidade de ensinar o processo de
dência fundamentalista-analógica (FIORENTINI; generalização por ele mesmo e diz: “[…] o que a
MIORIM; MIGUEL, 1993) e comenta: gente estava questionando é: será que não seria
o caso de ensinar ele primeiro a generalizar? Ter
Principalmente quando você da uma aula só para aprender a generalizar [...]”.
área, você já começa você faz as
A professora é categórica em assumir “[…] eu
construções geométricas. Então
vamos generalizar isso aqui, o que enxergo a matemática só como isso […] o racio-
vocês estão observando então eu cínio lógico e a capacidade de abstrair e genera-
acho que é assim muito legal sempre lizar […]” (Ester). Nesse sentido, o processo de
começar a álgebra ligada a geome- generalização é concebido como uma forma de
tria…quando chega na 7ª. Série que pensamento que surge independente dos objetos
é só álgebra aí o negócio para mim a serem generalizados.
complicava, mas eu penso que a
Entretanto, o processo de generalização
gente sempre ligando o ensino da
matemática com a geometria, os
seria um produto do processo de ensino, mas
alunos gostavam, fica mais fácil. entende-se que, enquanto processo de pensa-
(Mônica) mento, só pode ser desenvolvido sobre uma base
material, ou sobre abstrações já realizadas sobre

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EDUCAÇÃO MATEMÁTICA EM REVISTA – RS

essa base material. Dessa forma, só é possível ficado para as professoras que anteriormente não
desenvolver o processo de generalizar realizan- citaram. Assim, a professora Helena escreve:
do generalizações sobre objetos materiais ou
sobre objetos matemáticos, que já constituem Um ponto que quero destacar é
abstrações dos objetos materiais. Por exemplo, é que o curso me fez compreender
necessário realizar generalizações sobre a relação que todo o conhecimento não pode
ser visto como algo isolado, ele faz
entre números, sobre as propriedades numéricas,
parte da evolução da humanida-
sobre conceitos matemáticos e outros. de. Analisar o conhecimento de
Os dados obtidos confirmam a falta de uma perspectiva histórico-cultural
consenso sobre o que pode ser considerado como me ajudou a entender melhor as
objeto de ensino da álgebra e que deriva das dife- relações existentes na construção
rentes concepções dos professores sobre álgebra do próprio conhecimento. Nada
e seu ensino, provenientes da formação pessoal, aconteceu ou foi criado por acaso,
tudo é fruto de uma necessidade
das orientações curriculares, etc. Entretanto,
histórica. (Helena, RE15)
observou-se que o registro simbólico da álgebra é
foco de atenção dos professores. Seja na tentativa
de “alfabetizar” em matemática, ou gerar aulas O estudo do texto de Caraça (1952) tam-
em que se explicam os símbolos, ou procurando bém foi elucidativo para as professoras:
formas de contextualizar por meio de situações-
Para mim, foi igual uma questão
problema, ou ainda em busca de estratégias
que ele coloca no começo, como e
que possibilitem aos estudantes “equacionar” porquê das coisas…parece a inves-
os movimentos cotidianos. Também é destaque tigação constante, a gente tá sempre
o processo de generalização, mas nota-se que perguntando como que as coisas
também não há consenso em relação ao que se acontecem, eu penso assim que aí
esteja entendendo por “generalizar”, e também que a álgebra entra você quer pelo
não se destaca o papel da variável e da variação menos nós matemáticos, por que
estas coisas acontecem e qual é o
de grandezas.
padrão com que acontecem […]
A preocupação com as concepções dos então a gente tenta entender isso, e
professores sobre álgebra e seu ensino também quando a gente dá aula, a gente tá
se justificam por meio desta afirmação do pes- sempre tentando explicar. (Mônica,
quisador Luis Radford D3, DV1; 00:10:40)

De fato, na maior parte do tempo, as


concepções dos professores acerca Considerações finais
do conteúdo matemático que eles
ensinam decorrem da formulação Este texto apresentou sínteses da primeira
matemática contemporânea do etapa da pesquisa de doutorado (PANOSSIAN,
conteúdo sob consideração. No en- 2014) sobre a constituição do objeto de ensino da
tanto, a formulação contemporânea álgebra em que se constatam os elementos pre-
é o resultado de um longo processo sentes no ensino da álgebra na realidade atual.
de mudanças e transformações
Por meio de pesquisas anteriores, de propostas
conceituais e não necessariamente
é o melhor ponto de partida para os curriculares e da fala de professores, constatou-
alunos. (RADFORD, 2011, p.16) se a diversidade de concepções sobre álgebra e
seu ensino.
Na busca por elementos que caracterizas-
Dessa forma, podemos nos questionar se
sem o objeto de ensino da álgebra, encontrou-se
o trabalho com a álgebra simbólica, diretamente
uma série de tópicos (sequencias, equações, fun-
realizado em sala de aula, contribui com a forma-
ções, etc.) associados a manipulações simbólicas,
ção dos significados dos conceitos algébricos.
traduções de situações-problema, generalização
No decorrer do desenvolvimento do curso,
de casos particulares da aritmética ou pela con-
foi possível destacar alguns elementos com signi-
cepção de que processos de pensamento, como

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EDUCAÇÃO MATEMÁTICA EM REVISTA – RS

a generalização, são desenvolvidos de forma Considerando que a definição e escolha de


intrapsíquica. determinado conhecimento enquanto objeto de
Tais elementos se manifestam nas pro- ensino está atrelada ao que se espera da formação
postas curriculares, nas ações dos professores e do aluno, ao que se entende como função social
nem sempre ficam explícitos os motivos pelos da escola, e que os conteúdos do ensino não são
quais se reconhecem determinados tópicos ou vulgarizações ou simples adaptações de conhe-
procedimentos como objeto de ensino da álgebra. cimentos científicos (CHERVEL, 1990), faz-se
Por exemplo, não basta verificar que “equações” necessário identificar o que seria o seu conteúdo
é um tópico do ensino de álgebra, por se manifes- mínimo através de estudos específicos do conhe-
tarem em diferentes propostas curriculares, em cimento em seu movimento histórico.
diferentes tempos e espaços, se não é possível Conforme Davydov (1982)
identificar e justificar explicitando as razões de
por que ensinar “equações” é relevante para o Coluna vertebral da disciplina é
ensino da álgebra e por que compõe seu objeto. seu programa, ou seja, a descrição
Entende-se ainda que uma revisão neces- sistemática e hierárquica dos conhe-
cimentos e artes que procede assi-
sária sobre o objeto de ensino da álgebra não
milar. O programa, determinante
se dá somente pela compreensão de processos do conteúdo da matéria, estabelece
psicológico-didáticos de aprendizagem dos os métodos do ensino, o caráter
estudantes, mas também pela compreensão do do material didático, os prazos
próprio processo de desenvolvimento do objeto de estudo e outros elementos do
da álgebra. A álgebra escolar é derivada da álge- processo docente. E, o que é mais
bra que, historicamente, se constituiu na experi- substancial, ao indicar a estrutura
dos conhecimentos assimiláveis e
ência da humanidade, e o objetivo na escola é a
o método de sua coordenação, o
apropriação do conhecimento algébrico como um programa projeta esse tipo de pen-
instrumento para a formação dos estudantes. samento que se forma nos alunos ao
Assim, em busca de princípios para orien- assimilar isto no material de estudo
tar a constituição do objeto de ensino da álgebra, proposto. (p.6)
prosseguiu-se a pesquisa de doutorado finalizada
em 2014 (PANOSSIAN, 2014) investigando as Não é o caso de elaborar um programa
relações entre o movimento histórico e lógico curricular para que o estudante alcance a ‘es-
dos conceitos algébricos e o objeto de ensino da sência’ do conhecimento no seu último ano de
álgebra. Constatando que o objeto de ensino de escolaridade, mas sim que essa essência esteja
determinado ramo de conhecimento não pode contemplada nas diferentes situações propostas
conter em si todo o conhecimento acumulado na ao aluno durante todos os anos de estudo, e que
experiência histórica humana, sendo impossível ele tenha essa possibilidade de se aproximar de
considerar que em alguns anos de escolaridade tal essência. Definir os conceitos que fazem parte
de um sujeito ainda em formação psíquica lhe de um programa não é tarefa de menor importân-
sejam apresentados todos os conhecimentos acu- cia, pois não se trata de apresentar o conteúdo na
mulados em séculos de desenvolvimento. forma de produto da ciência a que corresponde,
Entretanto, a seleção do que constituirá mas sim explicitar as conexões lógicas de desen-
o objeto de ensino de determinado ramo de co- volvimento dessa ciência como forma de inter-
nhecimento, o conteúdo de ensino, passa pelo pretar a realidade. A partir disso, organizam-se
movimento histórico e lógico de seus conceitos. as demais condições metodológicas e didáticas
Ainda que a apropriação do conhecimento pelo que se encontram manifestadas nas elaborações
sujeito não siga totalmente a formação do conhe- curriculares e na fala dos professores, podendo
cimento na experiência histórica humana, não se ser transformadas e reelaboradas.
pode desconsiderar que o estudo de como deter-
minado conhecimento se desenvolveu na espécie Referências
humana apresenta elementos fundamentais que
podem contribuir para a superação de impasses BLANTON, M. L.; KAPUT, J. J. Functional thinking
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Manoel Oriosvaldo de Moura – Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, SP, e líder do
Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Atividade Pedagógica (GEPAPe). E-mail: modmoura@usp.br

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