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etapa de ensino por ser o momento no qual se exige nas duas últimas décadas uma verdadeira “revolução”
da escola a inserção dos alunos na cultura escrita e a das expectativas elaboradas por aquelas instâncias e
autonomia na leitura e produção de textos. propostas.
Apoiamo-nos em dois modelos distintos, que ana- Vemos que o ensino da leitura e da escrita feito
lisam a dinâmica da construção/produção dos saberes com base no treino das habilidades de “decodificação”
escolares: o modelo da transposição didática e aquele e “codificação” do alfabeto tem sido duramente criti-
que enfoca a construção dos saberes da ação. O primei- cado há mais de 20 anos. Tanto nos textos acadêmicos
ro, que enfoca os saberes por ensinar (e o modo como como nos documentos oficiais, investigadores de
tais saberes diferem dos saberes científicos e daqueles vários campos passaram a questionar radicalmente o
efetivamente ensinados nas escolas), permitiu-nos ana- ensino da leitura e da escrita fundamentado no desen-
lisar as mudanças didáticas ligadas ao ensino da leitura volvimento das habilidades já mencionadas e realizado
e da escrita na alfabetização inicial para verificar como com o apoio de materiais pedagógicos que priorizavam
tais proposições têm guiado as práticas dos professores. a memorização de sílabas e palavras ou frases soltas
O segundo modelo, que busca explicar as práticas profis- (Marinho, 1998; Mortatti, 2000).
sionais e os mecanismos que as caracterizam, permitiu No campo da psicologia, os estudos sobre a psico-
que compreendêssemos melhor a natureza das mudanças gênese da língua escrita, desenvolvidos por Emilia
observadas nas práticas de ensino dos docentes. Ferreiro e Ana Teberosky (1979), trouxeram contri-
buição que passou a ocupar lugar especial, inclusive
Transposição didática e alfabetização nos currículos nacionais e em materiais pedagógicos
produzidos pelo Ministério de Educação para a forma-
Os teóricos da transposição didática propõem ção de professores. Como aquela teoria demonstrou
uma distinção entre o saber sábio, o saber por en- que as crianças se apropriam do sistema alfabético de
sinar e o saber ensinado (Verret, 1975; Chevallard, escrita por meio de um processo construtivo, passou-se
1985). O saber sábio (savoir savant, em francês) a defender que aprendam interagindo com os textos
corresponderia ao conhecimento científico produzido escritos. Isto é, o ensino deveria centrar-se em práticas
pelos especialistas de uma disciplina em determinado que promovessem a reflexão sobre como funciona o
contexto histórico-social. Tal saber sofre um processo sistema de escrita alfabética (SEA) e nas quais os
de transposição didática quando muda de seu am- aprendizes se apropriassem da linguagem convencio-
biente original para o espaço institucional de ensino. nal dos diferentes gêneros textuais escritos.
Transforma-se, então, em saber a ser ensinado, como Ainda no âmbito das investigações psicolingüís-
o que aparece nas propostas curriculares e que se ticas, numerosos estudos que examinaram a relação
pode materializar em manuais didáticos. Contudo, é entre habilidades de consciência fonológica e o êxito
evidente que o saber efetivamente ensinado pode cor- na alfabetização apontaram a necessidade de promover
responder ou não àquele que, em instâncias externas na escola, desde a etapa de educação infantil, oportu-
à escola (ministérios, editoras), foi prescrito como o nidades de reflexão sobre as palavras como seqüências
saber por ensinar. Segundo esse enfoque, as mudanças de segmentos sonoros. Como observa Morais (2004),
nas práticas dos docentes estariam vinculadas ao pro- tal perspectiva tende a conceber a escrita alfabética
cesso de transposição didática, no qual se prescrevem como um código, cuja aprendizagem continuaria sendo
novas definições do saber por ensinar. interpretada como resultante de mecanismos de discri-
Se consideramos as mudanças implicadas nos minação perceptiva e memorização. Segundo Morais,
dois primeiros elementos da cadeia de transposição essa seria a razão que levaria distintos partidários do
didática (o savoir savant e os textos do saber), vemos treino em consciência fonológica a defender a adoção
que, na área de alfabetização, no Brasil, encontramos de métodos tradicionais de alfabetização – como o
método fônico –, sem prescrever que os aprendizes um ensino sistemático da escrita alfabética. Tendiam,
vivam práticas sistemáticas de leitura e produção de sim, a apresentar um leque muito variado de textos,
textos reais nas etapas iniciais da escolarização. de gêneros bastante distintos, o que indica uma evi-
No meio desse debate, observamos que, na década dente preocupação de letrar ou aproximar os novos
de 1990, outra perspectiva se consolidou no Brasil: o aprendizes da cultura escrita. Embora a maioria dos
tratamento do ensino da leitura e da escrita como prá- autores dos novos manuais declarasse adotar concep-
ticas de letramento. Depois das denúncias formuladas ções construtivistas e socioconstrutivistas de língua
na década anterior, sobre a necessidade de a escola e aprendizagem, suas obras didáticas tendiam a não
proporcionar aos aprendizes um domínio dos “usos promover a produção de escritas espontâneas nem o
e funções sociais” da leitura e da escrita (Morais & diagnóstico, pelos professores, do nível alcançado pe-
Albuquerque, 2004), ampliaram-se as críticas ao fato los alunos no que concerne à compreensão da notação
de, na instituição escolar, as práticas com a língua alfabética. Além disso, quase nunca propunham tarefas
escrita serem tão diferentes daquelas que ocorrem em ou atividades que promovessem a reflexão metafo-
seu exterior. Com a difusão em nosso país das teorias nológica das crianças, o que sugere baixa influência
construtivistas e sociointeracionistas de ensino/apren- dos estudos sobre consciência fonológica na recente
dizagem de língua nos âmbitos acadêmico e oficial, didatização da alfabetização no Brasil.
tornaram-se hegemônicas as propostas que concebem Se nos últimos séculos os manuais didáticos cons-
a língua como enunciação, como discurso – e não só tituíram uma importante ferramenta para os profes-
como comunicação (Mortatti, 2000; Soares, 1998). sores, as mudanças agora mencionadas parecem não
Isso implica incluir no tratamento didático as relações satisfazer os que ensinam com aqueles manuais.
da língua com aqueles que a utilizam, com o contexto Examinando as práticas e concepções de docentes
no qual é utilizada, com as condições sociais e histó- de três cidades em Pernambuco, Araújo (2004) cons-
ricas de sua produção e recepção. tatou que os professores que empregavam os novos
Como conseqüência, duas questões de natureza livros de alfabetização reconheciam a qualidade do
didática aparecem nos textos acadêmicos e curricula- repertório textual oferecido, mas queixavam-se expli-
res sobre alfabetização e sobre ensino de língua que citamente da ausência, nos livros, de atividades para
visam a orientar a ação docente: a importância de ensinar aos alunos a notação alfabética. Diziam que
considerar a alfabetização um processo de apropriação de nada servia letrar os alunos sem que aprendessem
(reconstrução, do ponto de vista cognitivo) do SEA e o bê-á-bá para que pudessem ler de forma efetiva e
a necessidade de considerá-la também como prática autônoma.
de letramento ou imersão na cultura escrita. Nesse contexto, buscamos nesta investigação
Além dos efeitos já mencionados nos documen- examinar a dimensão didática das práticas adotadas
tos curriculares e em materiais voltados à formação pelos professores para alfabetizar seus alunos: que
docente, verificou-se a influência de algumas dessas conteúdos e atividades costumavam priorizar para
contribuições teóricas na produção de manuais esco- ensinar a notação alfabética, que práticas de leitura e
lares de alfabetização. Morais e Albuquerque (2005) produção de textos escritos costumavam desenvolver e
examinaram as mudanças observáveis nos novos livros como vinculavam, em seu ensino, esses dois domínios
de alfabetização, substitutos das cartilhas. As análises
realizadas demonstraram que vários livros recomen-
avaliados por comissões de especialistas das distintas disciplinas do
dados pelo Ministério da Educação1 não propunham
currículo pelo Programa Nacional de Avaliação do Livro Didático
(PNLD). Os professores e demais profissionais das redes públicas de
Recordemos que, desde 1998, os livros didáticos adquiridos
1
ensino que escolhem os manuais que utilizarão só podem selecionar
pelo governo brasileiro para os estudantes das escolas públicas são a partir da lista de livros recomendados por aquelas comissões.
cotidianas dos professores de alfabetização. Como Quadro 1: Apresentação do perfil das professoras
Certeau, consideramos que essas práticas cotidianas Tempo de Turnos
Pós-
são produzidas/fabricadas pelos próprios atores. Elas Idade Formação magistério de
graduação
referem-se a uma “produção cultural”, embora não (anos) trabalho
sejam propriamente “obras” (no sentido de obras de Claudecy 38 Pedagogia 13 2
Cláudia 32 Pedagogia Sim 12 2
arte ou instituições duráveis).
Daniele 28 Pedagogia 7 2
Nessa perspectiva, procuramos compreender como Pedagogia
as fabricações de práticas alfabetizadoras se davam Eleuses 63 21 1
(cursando)
no cotidiano de escolas públicas de nosso país em um Leônia 41 Pedagogia Sim 13 2
contexto de redefinição dos saberes a ensinar naquela Ana
50 Pedagogia 15 2
etapa da escolarização. Como já dissemos, interessava- Luzia
nos particularmente examinar as soluções didáticas Mônica Pedagogia 12 1
Patrícia 28 Pedagogia 01 2
fabricadas para ensinar a notação alfabética.
Solange 40 Pedagogia Sim 21 2
Metodologia
Durante o período das observações, realizamos
mensalmente um encontro com as professoras, no qual
Nesta pesquisa, em função da própria natureza do
desenvolvíamos um trabalho com a técnica de grupo
objeto e da escolha teórica, privilegiamos a perspectiva
focal. A cada encontro discutíamos temas relativos à
etnográfica da pesquisa qualitativa. Concordando com
alfabetização, tanto do ponto de vista teórico quanto
Denzin e Lincoln (1994), concebemos que ela con-
das práticas de ensino das docentes. As temáticas
siste na descrição e interpretação de grupos humanos
trabalhadas foram: memórias e concepções de alfabe-
com base no contato intenso e multifacetado em que
tização, atividades de rotina da sala de alfabetização,
se valorizam, na ação, os elementos simbólicos das
uso do livro didático, importância do trabalho com
relações sociais.
textos para alfabetizar e promoção de habilidades de
A pesquisa foi desenvolvida com um grupo de
reflexão fonológica.
nove professoras de alfabetização (1º ano do primeiro
ciclo) da Secretaria de Educação da cidade do Recife
O que faziam as professoras?
no ano de 2004. O quadro 1 apresenta alguns dados
Análise das observações das práticas
sobre as professoras.
Para registrar como as professoras estavam trans-
Para cada dia de aula observado, elaboramos um
pondo as mudanças didáticas relacionadas à alfabetiza-
protocolo de observação e, a partir da análise do con-
ção para suas práticas de ensino e como fabricavam suas
junto de protocolos, categorizamos as atividades das
práticas pedagógicas cotidianas, utilizamos a observa-
professoras nos seguintes eixos: atividades de rotina,
ção participante como procedimento metodológico.
atividades de apropriação do SEA, atividades de lei-
As observações de aula foram realizadas no pe-
tura e produção de textos e atividades de desenho. Em
ríodo de junho a dezembro de 2004, totalizando dez
cada eixo, elencamos um conjunto de subcategorias
observações em cada sala de aula. Analisamos tam-
relacionadas às atividades desenvolvidas.
bém o material usado pelas docentes para o ensino da
No que se refere às atividades de apropriação do
leitura e da escrita, principalmente os livros didáticos
SEA, foco deste trabalho, elas foram categorizadas nas
utilizados2 e os cadernos dos alunos.
2
O livro didático de alfabetização adotado por toda a rede uma proposta para o letramento, de Gladys Rocha, publicado pela
municipal de ensino da cidade do Recife em 2004 foi Português: editora Moderna.
Tabela 1. Descrição das práticas de também ser evidenciados ao analisarmos suas aulas.
ensino do sistema de escrita alfabética Isso pode ser exemplificado com o que ocorreu no dia
desenvolvidas pela professora Cláudia da terceira observação. Naquela tarde, a professora
Categorias/Observações 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Cláudia fez inicialmente a leitura do livro Bebela, a
Apropriação do SEA pulguinha sapeca e a partir dele trabalhou as seguin-
Leitura de sílabas X
tes categorias: partição oral de palavras em sílabas,
Leitura de palavras X X X X X X X X
Escrita de palavra X X X X produção de rima/aliteração com correspondência
Escrita de palavras a partir de escrita, leitura de palavras com auxílio do professor,
X X X X X X X
letra/sílaba dada identificação de sílabas em posição inicial sem corres-
Escrita de palavra com auxílio pondência escrita, leitura de palavras, comparação de
X X X X X X X X X X
do professor
palavras quanto ao número de sílabas, contagem de
Cópia de sílaba X
Cópia de palavra X X X X X sílabas de palavras e contagem de palavras. Ao final,
Cópia de frase X X X os alunos agruparam em duas colunas as palavras que
Contagem de letras de produziram e exploraram (oralmente e por escrito),
X
palavras conforme o número de sílabas que apresentaram e as
Contagem de sílabas de
X X X X X anotaram em seus cadernos.
palavras
Contagem de palavras X X X
Quanto às atividades que envolviam leitura, é
Partição oral de palavras em importante salientar que a professora costumava ler
X X X
sílabas livros de literatura infantil para a turma após o recreio,
Partição escrita de palavra em organizando os alunos em roda de leitura. Observamos
X
letras
que, em geral, essas eram leituras para deleite. Já a
Partição escrita de palavra em
X produção de textos foi pouco explorada, ocorrendo
sílabas
Identificação de letras X duas vezes, sendo uma produção de texto coletivo e
Identificação de sílabas com outra produção de texto como souber. Essas ativida-
X X
correspondência escrita des de produção textual concentraram-se no final do
Identificação de sílabas sem período das observações.
X
correspondência escrita
A professora Eleuses desenvolvia uma prática
Identificação de palavras com
X X sistemática relacionada à alfabetização, mas vincula-
outros critérios
Identificação de palavras que da aos métodos tradicionais. Trabalhava diariamente
X
possuam a sílaba X com a memorização de sílabas e cópia de palavras
Identificação de retiradas de diferentes gêneros de textos, como pode
rima/aliteração com X X X
ser observado na Tabela 2.
correspondência escrita
Analisando os dados da tabela, constatamos
Produção de rima/aliteração
X X que a professora priorizou, em suas aulas, a cópia de
com correspondência escrita
Comparação de palavras palavras e frases, atividades que foram registradas
X X
quanto ao número de sílabas em todas as observações. Apesar de não intitular essa
Comparação de palavras atividade como cópia, ela solicitava que os alunos co-
quanto à presença de silabas X
piassem o que ela havia escrito no quadro; essa prática
iguais/diferentes
Formação de palavras com
diária correspondia a mais da metade do tempo total
X gasto com as atividades de apropriação do SEA. Já
outros critérios
Exploração dos diferentes a leitura de palavras foi o segundo item com maior
X X
tipos de letras freqüência (quatro registros dessa atividade). As ca-
tegorias escrita de frase, contagem de letras/sílabas
Tabela 2. Descrição das práticas de ensino Um fato que chamou a atenção foi quando a
do sistema de escrita alfabética professora, no 7º registro de aula, utilizou o recurso
desenvolvidas pela professora Eleuses da rima nas atividades com seus alunos. Podemos
Categorias/Observações 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 caracterizar o acontecimento como uma “mudança”,
Apropriação do SEA já que a docente declarou, antes dos encontros men-
Leitura de palavras X X X X
sais de grupo focal que vivenciou conosco, que não
Leitura de frases com auxílio X X
Escrita de letra X
empregava esse dispositivo para a alfabetização.
Escrita de palavras como Registramos o trabalho de leitura de textos pela
X X
souber professora em cinco observações e interpretação e
Escrita de frase X X X reconstrução em quatro aulas. A produção de texto
Cópia de palavra X X X X X X X X X X
coletivo foi identificada em uma aula. Os gêneros
Cópia de frase X X X X X X X X X X
Contagem de letras de
de texto que a professora utilizou foram: histórias,
X X X contos, panfletos e poemas, o que demonstra preo-
palavras
Contagem de sílabas de cupação com a diversidade textual. No entanto, ela
X X X
palavras utilizava os textos apenas para, a partir deles, ensinar
Contagem de palavras X X X
letras e sílabas.
Partição oral de palavras em
X X X Isso ficou evidente quando analisamos a seqüên-
sílabas
Partição escrita de palavra em cia desenvolvida por ela a cada aula. No caso da 5ª aula
X X X
sílabas observada, por exemplo, a professora afixou no quadro
Identificação de rima/ dois cartazes; o primeiro era uma fábula (Os viajantes
aliteração c/correspondência X
e o urso); o outro tratava de como se deve tratar os
escrita
Comparação de palavras amigos. Leu os dois cartazes em voz alta e em segui-
X
quanto ao número de letras da perguntou aos alunos quem eram os personagens
Comparação de palavras da história e o que eles faziam (no caso do primeiro
X
quanto ao número de sílabas
cartaz) e falou sobre a moral da história (referente ao
Formação de palavras a partir
X X segundo cartaz). Depois escreveu algumas palavras
de letras dadas
Formação de palavras a partir do texto no quadro e realizou uma leitura coletiva
X
de sílabas dadas delas. Separou, então, a primeira palavra em sílabas,
Exploração da relação som/ contou o número de letras e sílabas e solicitou que os
X X
grafia
alunos copiassem e fizessem o mesmo, dessa vez de
forma individual, com as demais palavras. Após meia
hora, a professora realizou a atividade no quadro junto
e palavras, partição oral de palavras em sílabas, com os alunos.
partição escrita de palavra em sílabas apareceram Podemos então dizer que ela trabalhava um
em três das aulas observadas. “método cartilhado sem cartilha”, ou seja, não ensi-
Um ponto curioso foi o fato de a professora, na nava BA-BE-BI-BO-BU, mas utilizava a apresentação
primeira observação, ter praticado um número consi- de textos para levar os alunos a memorizar letras ou
derável de atividades encadeadas: partição escrita de sílabas soltas. Isso parece ser uma recriação da profes-
palavra em letras, comparação de palavras quanto ao sora a partir das novas orientações sobre alfabetização
número de letras, comparação de palavras quanto ao e letramento, já que, para alfabetizar na perspectiva do
número de sílabas, formação de palavras a partir de letramento, se orienta a trabalhar com diversos gêneros
sílabas dadas. Esse encadeamento, porém, não foi textuais. Assim, a professora parecia desenvolver uma
repetido em outras aulas. prática tradicional com uma nova roupagem.
era feito oral e coletivamente. No momento em que como sistemáticas e cujas didáticas se distanciavam de
ditava as palavras, ela explorava um pouco a escrita métodos tradicionais de alfabetização, três lecionavam
delas, mas na hora de corrigir o ditado não levava os em uma mesma escola (Cláudia, Patrícia e Leônia); as
alunos a refletir sobre a escrita delas, apenas passava duas primeiras trabalhavam juntas em uma outra escola
de banca em banca e escrevia as formas corretas, ao da rede privada no turno da manhã e vivenciavam, na-
lado das palavras previamente escritas pelo aluno. quela instituição, um trabalho de formação continuada
No que se refere à leitura, a professora leu todos na área de alfabetização. Elas disseram que “traziam
os dias para as crianças. A leitura sempre acontecia muitas atividades daquela escola para serem realizadas
no início das aulas e estava relacionada à temática com os alunos da rede pública”. Ainda naquele pri-
que seria trabalhada. Para isso, ela trazia cartazes, meiro grupo, a professora Solange tinha vivenciado
textos produzidos pelas crianças em aulas anteriores, um trabalho de formação na área de alfabetização na
fragmentos de textos e livros de história. época do Ciclo de Alfabetização da rede municipal
Os textos sempre eram lidos por ela. Quando de ensino do Recife (de 1986 a 1988), no qual se
solicitava que os alunos a ajudassem no momento da discutia, em encontros quinzenais (durante todo o ano
leitura, poucos o faziam. Percebemos, assim, que o letivo), a importância de desenvolver atividades de
ensino de leitura predominou na prática da professora. leitura e produção de textos concomitantemente com
Mas em nenhum momento os alunos realizaram uma atividades de reflexão fonológica e de exploração das
leitura coletiva ou silenciosa. propriedades do sistema de escrita alfabética. Perce-
As atividades de produção coletiva de textos não bemos que, quase duas décadas depois, aqueles eixos
tinham destinatário real ou finalidade específica. Os ou prioridades guiavam seu ensino.
gêneros produzidos durante as aulas foram: recado, Consideramos, também, que a análise das práticas
bilhete, diálogo e lista, ocorrendo este último com de alfabetização apresentada aqui permitiu ver a in-
maior incidência. A composição dos textos, na maioria fluência do imaginário e de certo discurso pedagógico
das vezes, era feita pela professora, ou seja, durante a hoje dominante no campo da alfabetização. O fato de
atividade os alunos poucas vezes interagiam com ela que menos da metade das professoras que acompanha-
na construção do texto em si. mos investia no ensino sistemático da notação alfabé-
Constatamos, enfim, que a professora não ensinou tica demonstra a urgência da reflexão sobre os efeitos
o SEA de forma sistemática. Ela priorizava, em sua do discurso que critica a redução da alfabetização a
prática, a leitura de textos, a produção de texto coletivo, estratégias de “codificação-decodificação”, que parece
o desenho relativo a leitura e o desenho sem finalidade priorizar a imersão na cultura escrita (o letramento),
específica, em detrimento das atividades relacionadas no que seria supostamente uma “ação reparadora” para
à apropriação do sistema alfabético. com os alunos de meios sociais desfavorecidos logo
Nas observações realizadas, o livro didático só foi nas etapas iniciais da escolarização. Como enfatiza
utilizado uma vez: para ilustrar a fala da professora, Soares (2003), estaríamos deixando de tratar as espe-
na hora de contar uma história. cificidades da alfabetização como aprendizado de um
objeto (escrita alfabética) que requer metodologias de
Algumas considerações finais ensino específicas.
As docentes que acompanhamos revelavam ter
Inicialmente, gostaríamos de enfatizar uma rela- conhecimento razoável das propostas didáticas que pri-
ção entre os tipos de práticas de alfabetização feitos vilegiam a realização de práticas de leitura e produção
pelas professoras e alguns aspectos de suas experiên- de textos desde o início da alfabetização. Mesmo as
cias de formação inicial e trajetória profissional. Em professoras cujas práticas foram classificadas como as-
relação às docentes cujas práticas foram classificadas sistemáticas priorizavam atividades de leitura de textos
e se preocupavam com a diversidade de gêneros textuais trajetória vivida pelas professoras parecia refletir na
empregados. A partir dessa perspectiva, concebiam estar fabricação de suas práticas em sala de aula ante os
desenvolvendo um ensino diferente e inovador. No en- modelos cientificamente elaborados e transformados
tanto, não asseguravam um ensino voltado ao domínio em prescrições por instâncias externas à escola. Nou-
da notação alfabética, para que seus alunos pudessem tras palavras, as mudanças das práticas ante as novas
tornar-se em curto prazo leitores minimamente autôno- descobertas sobre alfabetização não se apresentariam
mos na tradução da notação escrita. da mesma forma que foram pensadas ou escritas pelos
O depoimento da professora Ana Luzia, em um especialistas, o que indica certa limitação da teoria da
dos encontros finais do grupo focal, é revelador dessa transposição didática na compreensão dos processos
questão. Ela falou: que geram os saberes efetivamente ensinados.
Indícios de autonomia didática e de disponibilidade
Agora eu sei por que meus alunos não estão alfabetiza- para mudar procedimentos didáticos manifestaram-se
dos. Eu trabalho muito com leitura e produção de textos, na atuação de diferentes professoras ou revelaram-se em
mando desenhar, mas não realizo essas atividades de reflexão momentos específicos. No primeiro caso, recordemos
com as palavras. Agora vou fazer diferente. certas opções de atividades muito praticadas por várias
delas, como a manutenção de tarefas de cópia ou a busca
Ainda na perspectiva do discurso do letramento, de exercícios distintos para alunos com rendimentos
cabe mencionar a distância entre as expectativas dos diferentes que freqüentavam a mesma sala. No segun-
acadêmicos sobre como desenvolver as situações de do caso – e levando em conta a inserção voluntária do
tratamento dos textos e o que pudemos verificar nas grupo de docentes na investigação –, cabe enfatizar as
aulas. A explicitação de finalidades para as ativida- evidências de disponibilidade para introduzir propos-
des (de leitura ou produção de textos), a definição tas que tínhamos discutido nos encontros mensais de
de destinatários ou a discussão sobre características formação, que pareciam atender a suas expectativas de
da língua escrita adequadas a cada gênero praticado praticar um ensino mais sistemático da notação alfabé-
nunca ou quase nunca foram objeto de reflexão nas tica, no dia-a-dia de suas salas de aula.
situações observadas nas salas de aula. Nas situações Interpretamos que os dados aqui analisados refor-
de produção de textos coletivos, as crianças tendiam çam nosso entendimento de que é na dinâmica da sala
a participar pouco na definição da forma composicio- de aula que as professoras recriam aquelas orientações
nal do produto que, no final da atividade, tinham que do savoir savant e dos textos do saber. O desconheci-
copiar em seus cadernos. mento pormenorizado do cotidiano da sala de aula e
Outro dado que requer menção especial foi a do perfil das professoras alfabetizadoras por parte dos
não-submissão das professoras à proposta do livro que geram prescrições (acadêmicos, autores de pro-
didático que, sem que fossem consultadas, tinha che- postas curriculares e de livros didáticos) constituiria,
gado a todas as salas de aula de alfabetização da rede portanto, um obstáculo para a efetivação de inovações
de ensino em que atuavam. Em oposição a uma visão viáveis, que permitam alfabetizar (no sentido estrito de
reducionista que pressupõe que os docentes “seguem ensinar a notação alfabética) com êxito e, ao mesmo
o que se propõe nos livros didáticos”, as práticas das tempo, garantir a iniciação das crianças no mundo da
professoras alfabetizadoras pareciam apoiar-se em cultura escrita.
determinadas maneiras de entender o processo de
alfabetização que por sua vez estariam ligadas a suas Referências bibliográficas
histórias enquanto sujeitos que foram alfabetizados,
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. Novos livros de alfabetização: dificuldades em inovar E-mail: elianaba@terra.com.br
o ensino do sistema de escrita alfabética. In: VAL, Maria da Graça
Costa; MARCUSCHI, Beth (Orgs.). Livros didáticos de língua ANDREA TEREZA BRITO FERREIRA, doutora em so-
portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: CEALE/ ciologia da educação pela Universidade Federal de Pernambuco
Autêntica, 2005. p. 205-236. (UFPE), é professora do Departamento de Educação da Universi-
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização dade Federal Rural de Pernambuco, é coordenadora do Centro de
(São Paulo: 1876-1994). São Paulo: Ed. UNESP/CONPED, 2000. Estudos de Educação e Linguagem (CEEL). Publicações recentes:
MOURA, Dayse Cabral. Por trás das letras: o ensino do sistema de “Brésil-France au quotidien de l’école” (Diversité (Montrouge),
notação alfabética na Educação de Jovens e Adultos. Dissertação n. 150, p. 179-189, set. 2007); em co-autoria com CHARTIER,
Anne-Marie, “Ler e escrever também é uma questão de gênero” (In: da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde coordena
LEAL, Telam Ferraz; ALBUQUERQUE, Eliana Borges Correia de o grupo de pesquisa Didática da Língua Portuguesa e se dedica às
(Orgs.). Desafios da Educação de Jovens e Adultos: construindo áreas de psicolingüística, ensino e aprendizagem da língua escrita
práticas de alfabetização. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p. 46- e formação de professores. Publicações recentes: em parceria com
62); “Cotidiano escolar: uma introdução aos estudos do cotidiano” ALBUQUERQUE, Eliana Borges e LEAL, Telma Ferraz organi-
(Sociedade em debate, v. 8, n. 3, p. 49-72, dez. 2002); em parceria zou: Alfabetização: apropriação do sistema de escrita alfabética
com ALBUQUERQUE, Eliana Borges e LEAL, Telma Ferraz orga- (Belo Horizonte: Autêntica, 2005); em co-autoria com LEAL,
nizou: Formação continuada de professores: questões para reflexão Telma organizou: A argumentação em textos escritos: a criança e a
(Belo Horizonte: Autêntica, 2005). Pesquisa em andamento: “A escola (Belo Horizonte: Autêntica, 2006). Pesquisa em andamento:
construção/fabricação de práticas de alfabetização em turmas de “Práticas de leitura, produção de textos e análise lingüística na es-
educação de jovens e adultos”, em colaboração com a professora cola: que propõem os novos livros didáticos? Que pensam e fazem
Eliana Albuquerque. E-mail: atbrito@superig.com.br os professores?”. E-mail: agmorais@uol.com.br
in a perspective of adult education and Este trabalho buscou analisar como as classified in two types: systematic and
presupposing, in this way, a different práticas de alfabetização se têm carac- non-systematic. Our data support the
relationship between teachers and terizado atualmente, tomando como interpretation that it is in classroom
training. eixo de investigação a “fabricação” do dynamics that teachers recreate official
Key words: educational reforms; cotidiano escolar por professoras do 1º and academic prescriptions.
teacher training; subjectivities ano do primeiro ciclo da prefeitura da Key words: literacy; daily school
cidade do Recife. No campo teórico, practice; teachers’ practice
Reformas educativas, formación y
apoiamo-nos em dois modelos distintos
subjetividades de los profesores Las prácticas cotidianas de
que analisam a dinâmica da construção/
En el contexto de las reformas alfabetización
produção dos saberes escolares: o da
educativas iniciadas en Portugal Este trabajo buscó analizar como
transposição didática e o da construção
en los años de 1980, la formación las prácticas de alfabetización se
dos saberes da ação. Para registrar como
continua de profesores tuvo un fuerte han caracterizado actualmente,
as professoras estavam transpondo as
incremento, asociado a financiamientos tomando como eje de investigación la
“mudanças didáticas” relacionadas à
de gran porte de la Unión Europea “fabricación” del cotidiano escolar por
alfabetização para suas práticas de en-
y a una lógica de oferta y procura profesoras del 1º año del primer ciclo
sino e como “fabricavam” suas práticas
inducida por un encuadramiento de la alcaldía de la ciudad de Recife.
pedagógicas cotidianas, utilizamos a
legal que estableció una unión En el campo teórico, nos apoyamos en
observação de aulas como procedimento
entre la formación y la progresión dos modelos diferentes que analizan la
metodológico. As práticas das profes-
en la carrera. En este artículo, se dinámica de la construcción/producción
soras quanto ao ensino do sistema de
defiende que ese incremento no tuvo del saber escolar: el de la transposición
escrita alfabético foram classificadas em
equivalente en la transformación de las didáctica y el de la construcción del
dois tipos: sistemática e assistemática.
concepciones y prácticas de formación, saber de la acción. Para registrar como
Os dados analisados reforçam nosso en-
generando lógicas hasta contrarias las profesoras estaban transponiendo
tendimento de que é na dinâmica da sala
a los principios participativos y de las “transformaciones didácticas”
de aula que as professoras recriam as
emancipación de la educación de relacionadas a la alfabetización
orientações oficiais e acadêmicas.
adultos. La formación se desarrolló para sus prácticas de enseñanza y
Palavras-chave: alfabetização; cotidia-
predominantemente a la imagen del como “fabricaban” sus prácticas
no escolar; prática de professores
modelo formal y académico de la pedagógicas cotidianas, utilizamos
escolarización y con influencias de The daily practices of literacy: what la observación de las clases como
políticas de racionalización de las do teachers do? procedimiento metodológico. Las
reformas educativas. En las primeras The present study sought to analyse prácticas de las profesoras en cuanto a
secciones del artículo, se abordan esas the current traits of literacy practice la enseñanza del sistema de la escritura
lógicas, acentuándose sus defectos en performed by first grade teachers in alfabética fueron clasificadas en dos
las subjetividades de los profesores. public schools in Recife, Brazil. With tipos: sistemática y asistemática. Los
En seguida, se abordan concepciones regard to theoretical considerations, datos analizados refuerzan nuestro
alternativas, considerando la we were inspired by two different entendimiento de que es en la dinámica
formación continua en una perspectiva models which analyse the dynamics de la sala de clase que las profesoras
de educación de adultos y previendo, of the production/construction recrean las orientaciones oficiales y
así, otro tipo de relación de los of school knowledge: studies on académicas.
profesores con la formación. didactic transposition and those on Palabras clave: alfabetización;
Palabras clave: reformas the construction of the knowledge cotidiano escolar; práctica de
educativas; formación de profesores; of action. In order to register how profesores
subjetividades teachers were transposing “didactic
changes” related to literacy into their
teaching practice and to understand
Eliana Borges Correia de Albuquerque,
how they “fabricated” their everyday
Artur Gomes de Morais e Andréa
teaching practices, we employed
Tereza Brito Ferreira
classroom observation techniques.
Practices related to teaching the
As práticas cotidianas de alfabetização:
alphabetic writing system were
o que fazem as professoras?