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ESTUDOS DE

HOMENAGEM A
ANTÓNIO PITRA NETO

COMISSÃ O
ORGANIZADORA:
Carlos Maria da Silva Feijó
Vírgílio Fontes Pereira
Carlos Teixeira
Estudos de Homenagem
a
António Pitra Neto
ÍNDICE
Nota De Apresentação
Tabua Gradulatoria
Textos
Índice
NOTA DE APRESENTAÇÃO

A presente obra reú ne textos de autores de vá rias geraçõ es que se dedicam ao


Direito — mais concretamente ao Direito Administrativo —, com um ú nico propó sito:
homenagear uma figura incontorná vel nesta á rea, o Professor Antó nio Pitra Neto.
Sempre que nos deparamos com a necessidade de um texto deste teor, logo nos
assalta, de imediato, a angú stia de escrever um elaborado e longo encomiá stico discurso
(por vezes, tocando até o barroco), cheio de adjectivos e superlativos, enaltecendo o
homenageado e traçando o seu Curriculum Vitae adjectivado e comentado.
Todavia, ao lembrar o perfil do nosso homenageado, vimos aquela que parecia ser
uma á rdua e morosa tarefa ser, magicamente, atenuada, ou nã o se tratasse do Professor
Pitra Neto, uma pessoa cuja simplicidade e descriçã o atravessa a sua personalidade, os
actos e a vida. Falamos de alguém que, salvo imperativos profissionais (que nã o têm sido
poucos), se furta à luz dos holofotes, que se demarca de apariçõ es pú blicas, avesso a
celebraçõ es e que prescinde de protagonismos. Tentaremos seguir nesta linha, nã o
omitindo os pontos fundamentais que o ligam ao tema que a todos nos agracia.
É inegá vel o modo como, de forma singular, o Professor Antó nio Pitra Neto
conciliou as suas qualidades jurídicas de ilustre administrativista com as políticas
pú blicas que implementou, enquanto responsá vel político da á rea da administraçã o
pú blica em Angola, ao longo de vá rios anos. O seu ensino, de mais de três décadas,
através do qual revelou excelentes qualidades científicas e pedagó gicas e uma ímpar
disponibilidade institucional, revelaram um pedagogo atento, preocupado, amigo, um
mestre, um exemplo a seguir, tendo deixado uma marca muito positiva nos seus
discentes.
Enquanto académico, granjeou o reconhecimento dos seus pares, da sua
universidade e dos seus muitos alunos.
Por todos estes motivos é um digno merecedor desta singela homenagem, um justo
reconhecimento que inclui a publicaçã o da presente obra colectiva, recolhendo os
contributos daqueles que o quiseram homenagear, designadamente colegas, discípulos e
juristas amigos.
Recuando um pouco no tempo, recordamos que a disciplina de Direito
Administrativo foi incluída, pela primeira vez, na Angola independente, no plano
curricular da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, sob a regência do
Professor alemã o, Doutor Tech.
Até entã o, era ensinado um Direito Administrativo que se preocupava mais com a
ideologia política daquele, do que com os aspectos técnico-jurídicos inerentes à pró pria
disciplina.
Corria o ano lectivo 1983/84, ainda em pleno período revolucioná rio, quando o
Professor Iná cio Fonseca Costa optou por um plano de curso de Direito Administrativo,
pró ximo das liçõ es do Professor Doutor Marcello Caetano. Nesse sentido, iniciou as suas
primeiras liçõ es escritas, mas nã o teve oportunidade de as concluir porque,
traiçoeiramente, a morte lhe roubou a vida.
Foi neste panorama/cená rio que o Professor Antó nio Pitra Neto assumiu, em 1985,
a regência da cadeira de Direito Administrativo. Saliente-se que, mais do que dar
continuidade ao plano de curso anterior, foi introduzindo as suas pró prias liçõ es no
ensino do Direito Administrativo.
Em Resumos sobre matérias de Direito Administrativo, 2ª Edição Mayamba, 2018,
sintetiza a sua vocaçã o nos seguintes termos:

Por um lado, que “a escassez de tempo que naturalmente limita a


possibilidade de dar mais atençã o ao embrião da minha formaçã o, opçã o e
destino profissional – a actividade e carreira docente” e, por outro, que “um
dos desafios a que nos propusemos no exercício do consulado no organismo
pú blico do Governo responsá vel pela preparaçã o assistência e participaçã o na
execuçã o das políticas pú blicas no domínio da Administraçã o Pú blica foi de
poder, modestamente, ajudar a colmatar o vazio que o ordenamento jurídico
angolano apresentava em matéria de direito administrativo (positivo) durante
quase todo o período em que assumimos a responsabilidade pela regência da
referida cadeira”.
O Professor Antó nio Pitra Neto é um reputado administrativista, tendo também, de
modo inovador, realizado trabalhos na á rea da sociologia da administraçã o, teoria da
administraçã o e reforma administrativa, conforme o atesta a sua obra publicada,
nomeadamente os Volumes I (2010) e II (2018) de Abordagens Concretas sobre
Administração Pública e Administração do Trabalho e Apontamentos sobre Matérias de
Direito Administrativo (2011).
Mas nã o é só isso, procuramos homenagear, também, o intelectual cristã o, o
cidadã o exemplar empenhado na construçã o do Estado Democrá tico de Direito e o
homem de elevadas qualidades pessoais e literá rias, como também atestam as suas
obras poéticas: Feliz Raridade (2011) e Tributos aos Sonhos, Lições e Encantos (2017).
Muito haveria para dizer deste homem que tem dedicado a sua vida ao Direito, ao
Ensino e ao país, mas como pragmá tico, discreto e sucinto que é, também o tentá mos ser
nesta apresentaçã o.
Por tudo quanto fica dito, era tempo de homenagearmos o Professor Antó nio Pitra
Neto, que se corporiza nos estudos que integram a presente obra, que, em boa verdade, é
uma homenagem académica.

A COMISSÃ O ORGANIZADORA

Carlos Maria Feijó

Virgílio Fontes Pereira

Carlos Manuel dos Santos Teixeira


Tabula Gradulatoria

Antó nio Feijó


Elisa Rangel
Virgílio Fontes Pereira
Carlos Teixeira
Antó nio Rodrigues Paulo
Má rcio Daniel
Saidy Fernando
Celestino Calos Kalanja
David Jacinto José Kinjica“Kinjica”
Moreira Lopes
A CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE SANEAMENTO
BÁSICO EM ANGOLA.
ENSAIO SOBRE O REGIME APLICÁVEL

CARLOS MARIA DA SILVA FEIJÓ 1

Sumário:

Introduçã o

1. O Regime de utilizaçã o de bens do domínio pú blico

2. A Concessã o como forma de gestã o privada de bens e serviços pú blicos

3. As directrizes gerais da contrataçã o pú blica

4. O regime específico da concessã o do saneamento bá sico

5. O regime de saneamento bá sico apó s a implementaçã o das autarquias locais

Conclusõ es.

1
Doutor em Direito Pú blico, Professor Catedrá tico da Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto, Professor Catedrá tico Convidado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de
Lisboa. 10
INTRODUÇÃO

Em Angola, o “saneamento bá sico, vulgo recolha e tratamento de resíduos


só lidos urbanos ou limpeza urbana”2, é qualificado como serviço pú blico. As
normas de competência, procedimentos e materiais desvendam um sistema
regulado que importa conhecer. No presente estudo, faremos uma aná lise dos
institutos e regimes jurídicos da concessã o de serviços pú blicos, partindo da
aná lise dos dados gerais: os bens do domínio pú blico e a reserva pú blica de
actividades pú blicas. Finalizaremos a aná lise com um debruçar sobre o regime
específico do saneamento bá sico e assinalaremos o caso particular da Província de
Luanda.

1. REGIME DE UTILIZAÇÃO DE BENS DO DOMÍNIO PÚBLICO

1.1. Bens do domínio público

O Estado consigna um conjunto de bens e de actividades econó micas a ele


pró prio e a outros entes pú blicos, como forma de garantir uma certa soberania
econó mica no seu territó rio ou, pelo menos, para assegurar os meios necessá rios à
prestaçã o de bens e serviços pú blicos tendentes ao cumprimento das tarefas que
lhe sã o confiadas.
Assim, a existência de um “feudo dominial” pú blico – os bens de domínio
pú blico e uma reserva de actividade econó mica pú blica – indicia a intençã o
normativa de que “a existência de um domínio pú blico constitui um princípio geral
da organizaçã o econó mico-social, e uma necessidade face ao imperativo de
algumas incumbências prioritá rias do Estado, funcionando como elemento
material mediato de conformaçã o dos pró prios sectores de propriedade dos meios
de produçã o”3.
Numa ideia: a Constituiçã o e a lei recortam uma reserva patrimonial dos
2
Para efeitos do presente estudo, utilizaremos as três expressõ es semâ nticas como
sinó nimas; embora cada uma delas se possa referir a um conjunto de actividades com maior ou
menor amplitude, umas em relaçã o à s outras – desdobrando-se em actividades variadas e
interdependentes –, a materialidade normativa subjacente é comum à s três, justificando, assim, a
nossa utilizaçã o como sinó nimas. 11
entes pú blicos e, complementarmente, um segmento de actividades econó micas
que devem ser – em primeira instâ ncia – prosseguidos pelos entes pú blicos. Tal
“feudo dominial” pú blico visa salvaguardar que o Estado e os demais entes
cumprem o essencial, o nú cleo bá sico das suas tarefas, tendo como substrato o
interesse pú blico, i.e., o bem geral e sustentá vel da comunidade.

O fim ú ltimo é a salvaguarda de um interesse pú blico de prestar certos bens


de utilidade geral4. Os bens de domínio pú blico constitucionalizados nã o esgotam o
elenco dos bens possíveis, mas estes foram considerados como o nú cleo essencial
dos mesmos e, como tal, mereceram tutela constitucional.
Em conclusã o: a existência de bens do domínio pú blico garante, ao Estado,
um nú cleo de bens necessá rios à satisfaçã o das necessidades pú blicas gerais mais
características e que, por razõ es de consenso geral, nã o podem ser privatizados.

1.2. Reservas públicas económicas

Antes da entrada em vigor da CRA, o n.º 1 do artigo 11.º da Lei Constitucional


remetia para legislaçã o ordiná ria a determinaçã o dos sectores e actividades que
constituíssem reserva do Estado5. Nessa medida, os sectores de reserva deste
estavam, exclusivamente, regulados pela Lei n.º 5/02, de 16 de Abril (Lei de
Delimitaçã o de Sectores da Actividade Econó mica).

Actualmente, a delimitaçã o dos sectores de reserva do Estado ou as “reservas

3
Rui Guerra da Fonseca, Comentário à Constituição portuguesa, Vol. II, Almedina, Coimbra,
2008: 299.
4
Neste sentido, citando Freitas do Amaral, Lourenço Vilhena de Freitas, Direito dos Contratos
Públicos e Administrativos, AAFDL, 2014, Lisboa: 115. A concessã o, como veremos adiante, tem
como objecto a realizaçã o da utilidade geral intrínseca à qualidade de um bem de domínio pú blico
por um prestador/concessioná rio – geralmente, um ente privado –, através de um contrato pú blico
com uma entidade concedente pú blica.
5
De acordo com o previsto no artigo 10.º da Lei de Delimitação de Sectores da Actividade
Económica, “entende-se por reserva do Estado o conjunto de á reas em que as actividades
econó micas só podem ser exercidas, a título de propriedade ou gestã o dos respectivos meios, desde
que haja intervençã o ou participaçã o do Estado ou de outras entidades que, nos termos da lei,
integram o sector pú blico”. 12
pú blicas”, conforme a designaçã o ínsita na Constituiçã o, está prevista no artigo
93.º. O artigo 93.º da CRA prevê a existência de dois tipos de reservas: a reserva
absoluta e a reserva relativa. No cotejo do elenco, a Constituiçã o apenas cuidou de
reservar, absolutamente, para o Estado o exercício da actividade de banco central e
de banco emissor de moeda (n.º 1).
Desta forma, por opçã o normativa da Constituiçã o, actualmente deve
considerar como ú nico sector, absolutamente reservado, a actividade de banco
central e emissã o (primá ria) de moeda. Quedam, assim, todas as á reas de reserva
que se encontram previstas no artigo 11.º da Lei de Delimitação de Sectores da
Actividade Económica em vigor.
Nesse sentido, o artigo referido cessa a sua vigência por caducidade6, por
inconstitucionalidade superveniente, em consequência da entrada em vigor da
Constituiçã o, o que nã o significa dizer que, automaticamente, caem na livre
iniciativa privada. Tal conclusã o, a nosso ver, quedaria por excesso. Interpretando
a norma em conformidade com a Constituiçã o, diríamos que é, apenas, o comando
de proibiçã o absoluta que fica afectado, nã o nos impedindo a Constituiçã o de
interpretar a proibiçã o – i.e., a reserva – como relativa.
Já no que se refere à s actividades econó micas do â mbito de reserva relativa, a
Constituiçã o autoriza que sejam reguladas por lei ordiná ria (artigo 93.º, n.º 2),
atribuindo competência à Assembleia Nacional e/ou ao Poder Executivo, com
autorizaçã o da Assembleia Nacional (alínea k) do n.º 1 do artigo 165.º).
A esse propó sito, vale ainda (i.e., vigora) o estabelecido nos nú meros 1 e 2 da
Lei de Delimitação de sectores da Actividade Económica:

“Artigo 13.º
Reserva relativa
1. Constituem reserva relativa do Estado as actividades econó micas
compreendidas nas á reas discriminadas no n.º 2 do presente artigo,

6
Neste mesmo sentido vai a opiniã o de Jorge Miranda, ao referir que nã o existe revogaçã o da
norma, mas sim uma caducidade: “a superveniência da nova constituiçã o ou de uma sua revisã o,
acarreta ipso facto pela pró pria funçã o e força de que está investida, o desaparecimento das normas
de Direito ordiná rio anterior com elas desconformes”. Jorge MIRANDA, Manual de Direito
Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra,
132003: 317.
as quais podem ser exercidas por empresas ou entidades nã o
integradas no sector pú blico, mediante contratos de concessã o.
2. Sã o á reas de reserva relativa do Estado as seguintes:
a) saneamento bá sico;
b) produçã o, transporte e distribuiçã o de energia eléctrica para
consumo pú blico;
c) captaçã o, tratamento e distribuiçã o de á gua para consumo
pú blico através de redes fixas;
d) exploraçã o de serviços portuá rios e aeroportuá rios;
e) transportes ferroviá rios;
f) transporte aéreo regular de passageiros domésticos;
g) serviços complementares postais e de telecomunicaçõ es;
h) infra-estruturas que nã o integrem a rede bá sica, bem como os
respectivos serviços de telecomunicaçõ es.”7

Como evidenciado acima, do preceito citado resultam as seguintes directrizes


normativas:
1) O saneamento bá sico constitui uma reserva relativa do Estado;
2) A actividade de saneamento pode ser exercida por entidade (empresa ou
outro ente) integrada no sector pú blico ou, em alternativa, por entidade nã o
integrada no sector pú blico.

Estas directrizes normativas carecem de notas explicativas, as quais


passaremos a enumerar nos pará grafos que se seguem.

Primeira nota: decorre do facto de a lei nã o determinar o alcance e o


conteú do de “saneamento”. Tal técnica remete para o intérprete e para o aplicador
a tarefa de preencher o respectivo conteú do, com recurso aos câ nones normais da
interpretaçã o.
Ou seja, nã o havendo conceito jurídico, devemos entender como vá lido o
conceito técnico8, que nos dá conta que saneamento, na definiçã o clá ssica, “é o
7
Itá licos nossos
8
Definiçõ es retiradas do dicioná rio informal
14 (www.dicionarioinformal.com.br).
conjunto de medidas visando a preservar ou a modificar as condiçõ es do meio
ambiente, com a finalidade de prevenir doenças e promover saú de". Ou, ainda,
segundo a definiçã o da Organizaçã o Mundial de Saú de (OMS), é “o controle de
todos os fatores do meio físico do homem, que exercem ou podem exercer efeitos
nocivos sobre o bem-estar físico, mental e social.”
De todo o modo, podemos considerar que integram a actividade de
saneamento os actos (i.e., actividade ou conjunto de actividades), os efeitos (i.e.,
resultado ou finalidade visada) de sanear (i.e., de reparar ou limpar), ou, ainda, o
sistema de canalizaçõ es e esgotos que permite o rá pido escoamento de á guas,
imundícies, etc.9

Segunda nota: o Regulamento sobre a Gestão de Resíduos (aprovado pelo


Decreto Presidencial n.º 190/12, de 24 de Agosto) tem por objecto estabelecer as
regras gerais relativas à produçã o, depó sito no solo e no subsolo, lançamento para
a á gua ou para a atmosfera, tratamento, recolha, armazenamento e transporte de
quaisquer resíduos (excepto os de natureza radioactiva ou sujeitos a
regulamentaçã o específica), de modo a prevenir ou minimizar os seus impactos
negativos sobre a saú de das pessoas e do ambiente. É aplicá vel a todas as pessoas
singulares e colectivas, pú blicas ou privadas, que desenvolvem actividades
susceptíveis de produzir resíduos, ou envolvidas na gestã o de resíduos, e a todos
os tipos de resíduos existentes no territó rio nacional e regulando, ainda, a
classificaçã o dos resíduos. Materialmente falando, o saneamento encontra-se na
cadeia de valor da gestã o de resíduos, mas nã o se confunde com estes.

Terceira nota: como predica o preceito legal, a actividade de prover, manter


ou assegurar a limpeza pú blica incumbe ao Estado. Mais concretamente, em
termos de provimento de competências, essa actividade é de competência
municipal (cfr. artigo 15.º da Lei n.º 15/16, de 12 de Setembro – Lei da
Administração Local do Estado, e, no caso da Província de Luanda, a alínea v) do n.º
2 do artigo 40.º do Decreto Presidencial n.º 77/16, de 14 de Abril – Organização e o
Funcionamento dos Órgãos do Governo da Província de Luanda).
Em síntese conclusiva, deve reter-se que a actividade de saneamento em
9
http://www.priberam.pt. 15
Angola entra nas atribuiçõ es estaduais, em concreto da competência dos ó rgã os de
gestã o municipal.

Quarta nota (e ponte para o tema seguinte): a lei admite que entes nã o
integrados no sector pú blico possam participar na actividade de saneamento,
através de concessã o. Trata-se, como é bom de se antecipar, de uma concessã o de
serviço pú blico.
Convém realçar que este regime macro-regulató rio (porque, em certo modo,
estabelece, apenas, as bases do sistema) é de ordem pú blica e de natureza
injuntiva. Quer isso dizer que nã o podem ser afastadas por vontade da
administraçã o pú blica (por respeito ao princípio da legalidade administrativa)
nem por vontade contratual (i.e., pela vontade concertada da administraçã o e dos
particulares interessados).
Nesta altura, a nota dominante entre os bens de domínio pú blico e a
existência de reserva de actividade econó mica torna-se, entã o, aparente: cumpre
assegurar a protecçã o do interesse pú blico. É , pois, essa protecçã o que reclama um
regime jurídico pró prio de acesso e controlo dessa actividade ou da actividade que
se desenvolve sobre esses bens.

2. CONCESSÃO COMO FORMA DE GESTÃO PRIVADA DE BENS E


SERVIÇOS PÚBLICOS

A concessã o é o acto jurídico pú blico – de natureza contratual –, mediante o


qual um ente pú blico autoriza um ente particular a aceder ao uso de um bem ou a
prover uma actividade cujo gozo ou exercício lhe seria relativamente vedado. Ou
seja, sem o acto de concessã o, o privado nã o tem acesso a determinado bem ou
exercício de certa actividade econó mica.
No que concerne à concessã o, cumpre distinguir os casos de concessã o de
exploraçã o dos casos de concessã o de usos privativos do domínio pú blico10. O que

10
Distinçã o que decorria claramente do, agora revogado, n.º 2 do artigo 120.º do Decreto-Lei
n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro (Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa) e da
concepçã o doutriná ria de Marcello CAETANO, apud16Diogo Freitas do AMARAL, op.cit.: 15.
distingue, sobretudo, a concessã o de exploraçã o11 e a concessã o de uso privativo
do domínio pú blico é, exactamente, o facto de a segunda se deter no mero uso da
coisa, enquanto na primeira o particular tem o direito de exploraçã o e gestã o de
parte do domínio, aceitando os riscos inerentes. Portanto, no primeiro caso, o
elemento essencial é a exploraçã o/gestã o e, no segundo, é o uso do domínio
pú blico.
De uma forma breve, nos pará grafos seguintes, iremos apresentar duas notas
adicionais a este propó sito.
A primeira remete-nos para a transferência de riscos. O privado “toma” o
lugar do ente pú blico e exerce a actividade “como se fosse” o ente pú blico, devendo
assegurar a prestaçã o de uma actividade de interesse e proveito geral, mas
assumindo os riscos econó micos da actividade12.
A segunda é preenchida com a consequência de o privado assumir a
actividade “como se fosse” o dominus pú blico. É -lhe, ou devem-lhe ser, predicados
poderes de autoridade bastante instrumentais à tarefa e, porque se trata de uma
actividade pú blica, o sujeito privado fica sujeito a uma miríade de normas de
direito pú blico, a começar pelas regras da actividade administrativa (artigo 2.º, n.º
3 da NPAA).
Dito de outra forma, aplica-se aos concessioná rios privados, no uso de
poderes pú blicos, as mesmas regras adjectivas – bem como de ética e probidade
administrativas – de direito pú blico que se aplicam ao pró prio dominus pú blico.
Interessa sublinhar, nesse domínio, as regras de contrataçã o a que estes ficarã o
sujeitos no desempenho da concessã o13.

11
Um exemplo ilustrativo é a concessã o de exploraçã o ferroviá ria, nos termos do artigo 3.º e
ss. do Decreto Presidencial n.º 147/10, de 20 de Julho (sobre o “Domínio Pú blico Ferroviá rio”).
12
Nas palavras de Fernanda Maçã s, “A concessã o de serviço pú blico e o Có digo dos Contratos
Pú blicos”, in Pedro Gonçalves (Org.) Estudos da Contratação Pública – I, Coimbra Editora, Coimbra,
2008, 380: “A entidade actua por sua conta e risco, como se fora o concedente, sendo remunerada
por meio de taxas ou tarifas a pagar pelos utentes ou consumidores do respectivo serviço pú blico.”
13
A esse propó sito, importa referir, acompanhando Carolina Sofia Gorldalino Murinelo de
Sousa Guerreiro Cyrne, Regulação do Serviço de Resíduos (Dissertaçã o de mestrado), Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, 2014: 49: “a pedra de toque de recurso à concessã o está
essencialmente na extensã o dos poderes de controlo que ficam reservados ao Estado ou autarquia,
ou no caso dos sistemas municipais, apenas nas relaçõ
17 es com as entidades gestoras dos serviços.”
Atentos à definiçã o contida na Lei n.º 9/16, de 16 de Junho (Lei dos Contratos
Públicos), entende-se – para efeitos jurídico-administrativos – por contrato de
concessã o de serviço pú blico “o contrato pelo qual o co-contratante – o
concessioná rio – se obriga, perante uma entidade pú blica contratante – concedente
– a gerir, em nome pró prio e sob a sua responsabilidade, uma actividade de serviço
pú blico, por um determinado período de tempo, sendo remunerado directamente
pelo concedente ou através da totalidade ou parte da actividade concedida” (cfr.
alínea g) do artigo 5.º).
Ora, desta consideraçã o – aliá s, antevista já no preceito legal sobre a reserva
relativa que acima citamos na concessã o participa, do lado passivo, o concedente
pú blico, e, do lado activo, o concessioná rio privado – o contratante pode estar
integrado por qualquer ente nã o integrado no sector pú blico, que se qualifique nos
termos da lei e dos regulamentos em vigor a cada momento em que sã o lançadas
(vide artigo 124.º, n.º 2).
Na fó rmula sintética de Cíntia Camargo Kuczmarski, “o contrato de concessã o
de serviço pú blico tem como objecto a transferência da gestã o e execuçã o de um
Serviço do Poder Pú blico ao particular, por sua conta e risco” 14. Ou seja, a
“concessã o administrativa é um dos modos de gestã o de um serviço pú blico,
podendo ser definida como um "acto (unilateral, com o consentimento de terceiro,
ou contratual) constitutivo de uma relaçã o jurídica administrativa pelo qual a
pessoa titular de um serviço pú blico atribui a outra pessoa o direito de esta, no seu
pró prio nome, organizar, explorar e gerir um serviço pú blico"”15.
Diversamente, o mero contrato de prestaçã o de serviços é aquele em que
uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho
intelectual ou manual, com ou sem retribuiçã o (cfr. Artigo 1154.º do Có digo Civil).
Para além disso, o Có digo Civil qualifica como prestaçõ es de serviços os contratos
que constam do seu artigo 1155.º: mandato, depó sito e empreitada. Ficando,
claramente e pela natureza das coisas, o contrato de concessã o administrativa em

14
Cíntia Camargo Kuczmarski, Contrato de concessão de serviços públicos. Disponível em
http://www.direitonet.com.br.
15
Acó rdã o do Supremo Tribunal Administrativo (português). Processo n.º 0862/07, de
21/05/2008. Relator: Angelina Barros. 18
qualquer das suas modalidades.
Por outras palavras, através do contrato de prestaçã o de serviços, o
prestador, sob sua autonomia técnica, obriga-se a prestar uma actividade do seu
domínio. Diferente, logo se vê, do que se passa com a concessã o, cuja actividade é
originalmente da esfera de domínio do concedente. Por outro lado, sendo a
concessã o um contrato (administrativo) pú blico (i.e., resultante da prá tica de actos
de gestã o pú blica da administraçã o), qual o regime aplicá vel ao mesmo? Disto
trataremos na secçã o seguinte.

3. AS DIRECTRIZES GERAIS DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA

3.1. Regime aplicável

A actividade administrativa é dominada por normas de cará cter injuntivo,


que se impõ em tanto à formaçã o (e respectivos procedimentos) como ao pró prio
conteú do da vontade das partes, bem como à definiçã o de competências e à s fases
de execuçã o.
Ao cotejar as normas aplicá veis ao contrato de concessã o de serviços
pú blicos, somos, desde logo, surpreendidos por um binó mio de normas jurídicas
aplicá veis à s concessõ es (em geral): de um lado, reclama(va)-o o capítulo VIII da
NPAA (v. artigos 129.º) e, do outro, a Lei dos Contratos Públicos. Naquele figura(va)
um regime geral dos contratos administrativos, enquanto neste reside um regime
mais densificado para os contratos pú blicos (dos quais os contratos
administrativos sã o uma espécie).
A primeira questã o será : Qual dos regimes se aplica à s concessõ es? Na
verdade, a aplicaçã o do capítulo VIII da NPAA nã o passa de uma aparência falsa,
por sinal. Com efeito, esse regime foi, expressamente, revogado pela alínea c) do
n.º 1 do artigo 414.º da Lei dos Contratos Públicos, que determina que “sã o
revogados o Capítulo VIII do Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro, que
aprova as Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa”, sendo que, ao
abrigo do n.º do 2 do mesmo preceito, “as remissõ es para a legislaçã o revogada nos
termos do nú mero anterior consideram-se feitas para as correspondentes

19
disposiçõ es da presente Lei [i.e., da Lei dos Contratos Públicos].”
Desfeita a aparente dualidade, perscrutemos o sistema normativo. À guisa de
aproximaçã o hermenêutica, considere-se o seguinte:
– Em primeiro lugar, nã o existe um regime jurídico geral da concessã o de
serviço pú blico;
– Em segundo, ainda que se considerasse o regime revogado, notava-se aí
uma escassez de regime (seja adjectivo ou material) ao abrigo da NPAA;
– Em terceiro, no que a contratos de natureza e interesse pú blicos diga
respeito, a Lei dos Contratos Pú blicos deve ser considerada a Bíblia ou o Código
Civil dos contratos pú blicos: ela é o “orá culo”, i.e., responde – ainda que nos meros
princípios – de forma subsidiá ria, lá onde falte a regulaçã o especificamente
enquadrá vel ou onde ela nã o dê suficiente resposta. Ou seja, na falta ou na
insuficiência;
– Em quarto, nã o há lugar a conflito de competências entre a Lei dos
Contratos Pú blicos e o regime (revogado, repita-se) da NPAA. E nã o existe um
regime geral aplicá vel à s concessõ es.
Finalmente, acrescentando uma nova consideraçã o, a Lei dos Contratos
Públicos determina que:

“Artigo 2.º
 mbito de aplicaçã o
1. [...]
a) À formaçã o dos demais contratos a concluir pelas entidades
pú blicas contratantes que nã o estejam sujeitos a um regime
legal especial;
b) À formaçã o dos contratos cuja concretizaçã o seja efectuada por
intermédio de uma Parceria Pú blico-Privada;
2. A execuçã o dos contratos pú blicos nã o regulados pela presente Lei
aplica-se, subsidiariedade, as disposiçõ es previstas nos títulos V ou
VI, conforme as especificidades do caso.”

O que se segue é um mero exercício de interpretaçã o do regime aplicá vel.


20
Nã o deve prejudicar ulteriores e mais aprofundadas revisõ es da matéria dada, bem
como o desenvolvimento dos TPC: entenda-se “Tó picos para a Contrataçã o” e nã o
os clá ssicos “trabalhos para casa”.

3.2. Entes concedentes

Por ente “concedente” deve entender-se o ente pú blico titular do serviço


pú blico e a quem incumbe contratar com o concessioná rio. Como dissemos acima,
o modelo angolano é unimodal: sã o entes concedentes os municípios (v. §. 2.º deste
texto).
Acrescente-se, nesta sede, que esses ó rgã os da administraçã o local do Estado
sã o qualificados como entidades concedentes e estã o sujeitos ao regime dos
contratos pú blicos (quando preenchidos os pressupostos), ao abrigo do artigo 6.º
da Lei dos Contratos Públicos.

3.3. Aplicação dos princípios gerais de contratação

Neste capítulo, estã o as regras relativas à ética no processo de contrataçã o


(Capítulo II da LCP – artigos 8.º a 10.º), que definem as regras e princípios a
observar de modo a evitarem-se situaçõ es de conflitos ou aproveitamento de
interesses, bem como prá ticas de favorecimento/prejuízo ou outros que coloquem
em causa a lisura ou probidade administrativas na formaçã o da vontade, tanto da
administraçã o concedente, como do particular concessioná rio.
Parece-nos, ainda, evidente que se aplicam os princípios gerais da actividade
administrativa especialmente previstos na Constituiçã o da Repú blica e na
densificaçã o daquela (e numa interpretaçã o em conformidade com a mesma).
Estes sã o princípios previstos na NPAA: princípio da legalidade (artigo 3.º);
princípio da prossecuçã o do interesse pú blico (artigo 4.º); princípio da
proporcionalidade (artigo 5.º); princípio da imparcialidade (artigo 6.º); princípio
da colaboraçã o (artigo 7.º); princípio da participaçã o (artigo 8.º); princípio da
decisã o (artigo 9.º).
Na sua essência, estes princípios encontram-se assegurados,
transversalmente, nas normas da Lei dos Contratos Públicos, no entanto, para

21
efeitos de clarificaçã o, pensamos ser aplicá vel o brocardo latino quod abundant
non nocet.

3.4. “contratos a concluir pelas entidades públicas contratantes que não


estejam sujeitos a um regime legal especial”/Contratos a ser concluídos
por entidades públicas mas que se encontrem fora do regime legal
especial

Numa interpretaçã o literal, diríamos que o preceituado na alínea a) do n.º 1


do artigo 2.º apenas autoriza a exclusã o de contratos que nã o estivessem sujeitos a
um regime aprovado por lei em sentido formal. Daí a expressã o “legal”.
No entanto, parece-nos que numa interpretaçã o, conforme o sistema jurídico
nos autoriza a entender, a expressã o legal deve ser interpretada de forma
extensiva, contemplando aqui regimes normativos de natureza geral e abstracta,
onde caberiam regimes jurídicos de contrataçã o, aprovados pelo poder executivo
ou pelo seu titular, nos termos e â mbito das suas competências constitucionais ou
legais.
Ou seja, o preceito da Lei dos Contratos Pú blicos é, para nó s, uma norma que
tem como objectivo impor mínimos de regulaçã o na formaçã o de contratos
pú blicos, nã o podendo o poder executivo furtar-se a aplicar esses mínimos, quando
vise regulamentar regimes contratuais específicos. Como é o caso das concessõ es
de resíduos urbanos.

*****

Depois deste longo escorço jurídico, passemos ao momento, porventura, mais


aguardado, que é o do regime especialmente aplicá vel ao serviço pú blico de
recolha de resíduos.

4. O REGIME ESPECÍFICO DA CONCESSÃO DO SANEAMENTO BÁSICO

4.1. O regime geral

22
Com vista a uma melhor compreensã o, impõ em-se um parêntesis a abrir esta
secçã o. Para começar, o seu título deveria ser: “Nã o é de estranhar que seja a
Agência Nacional de Resíduos (ANR) a fixar o conteú do dos contratos de
concessã o. Os cépticos colocariam um ponto de interrogaçã o na frase.
Descerremos a lá pide: A ANR é uma agência reguladora16 que tem como
atribuiçõ es, genéricas e principais, a regulaçã o, fiscalizaçã o e promoçã o da
actividade de resíduos em todo o territó rio nacional. Pela negativa, a ANR nã o goza
de competência licenciadora no sector; esta está atribuída aos municípios.
Segue-se, agora, a explicaçã o. A Agência Nacional de Resíduos (ou Agência
Angolana de Resíduos, adiante “ANR”) foi criada pelo Decreto Presidencial n.º
181/14, de 28 de Julho de 2014, que procedeu, igualmente, à aprovaçã o do
respectivo Estatuto Orgâ nico. A natureza jurídica da ANR resulta dos seus artigos
1.º e 2.º. Com efeito, do artigo 1.º (“natureza”) retira-se, apenas, que se trata de
uma pessoa colectiva pú blica (dotada de personalidade jurídica e autonomia
administrativa, financeira e patrimonial), i.e., numa primeira aproximaçã o, conclui-
se que a ANR é um organismo de tipo instituto pú blico.
Para uma caracterizaçã o jurídica mais apurada, é preciso articular o disposto
no artigo 1.º com o disposto no artigo 2.º (“regime”). Este preceito manda aplicar, à
ANR, o regime das agências pú blicas (previsto no Decreto Presidencial n.º 2/13, de
25 de Junho – Regras de criaçã o, estruturaçã o e funcionamento de institutos
pú blicos). Podemos, por isso, concluir que a ANR é uma agência pú blica.
Nos termos do artigo 30.º do Decreto Presidencial n.º 2/13, de 25 de Junho, “as
agências pú blicas sã o espécies de institutos pú blicos que prosseguem fins de

16
Como é consabido, e em síntese – brevitatis causa –, a necessidade de regulaçã o prende-se
com três ordens de razã o: por um lado, as chamadas “falhas de mercado”, sendo a mais
característica aquelas situaçõ es em que – como é o caso dos resíduos – se verifica um monopó lio; e
a segunda prende-se com a necessidade específica de consideraçõ es de ordem técnica, cujos
pressupostos, complexidade e necessidades exigem paradigmas que fogem aos modelos de
modelaçã o administrativa clá ssicas; terceiro motivo – hoje em dia tendido a ser esquecido –
prende-se com a idiossincrasia pró pria de desconfiança no poder político, diga-se no Estado. Essa
característica da psicologia americana esteve na origem da independent agencies e, qual vírus,
espalha-se – por vezes, sem critério – além-fronteiras americanas, chegando distorcidos, mas em
“quasi imitaçõ es”, nas mais variadas ordens jurídicas, mesmo lá , onde a independência nã o se
verifica. 23
natureza reguladora, fiscalizadora e de promoçã o de actividades de interesse
pú blico de sectores específicos ligados à economia”. Traduzindo, as agências
pú blicas sã o institutos pú blicos de regulaçã o e fiscalizaçã o de actividades
econó micas sectoriais. No caso específico da ANR, trata-se da agência reguladora
para o sector dos resíduos.
As competências especificadas da ANR estã o previstas nas alíneas do artigo
5.º do seu Estatuto Orgâ nico. De entre estas, destacam-se as que resultam da sua
natureza reguladora:
a) Regulamentar a actividade de concessã o de serviço pú blico na á rea de
resíduos (alínea a))17;
b) Monitorizar e avaliar o desempenho das entidades gestoras de fluxos
específicos de resíduos, acompanhar a sua actividade e assegurar as
auditorias no â mbito dos sistemas de gestã o de fluxos específicos de
resíduos (alínea j)).
Ora, como se verifica pelos preceitos acima citados, em Angola a actividade
de gestã o de resíduos é um serviço pú blico. Além disso, essa qualificaçã o resulta
directamente do artigo 13.º, 1 e 2, a) da Lei n.º 5/02, de 16 de Abril – Lei de
Delimitação de Sectores de Actividade Económica: o acesso da iniciativa econó mica
neste sector rege-se por meio de uma concessã o. Ou seja, as entidades gestoras de
fluxos específicos de resíduos acedem à actividade por meio de um contrato de
concessã o de Direito Pú blico.
Nos termos da legislaçã o em vigor, a entidade concedente para as actividades
de gestã o de fluxos específicos de resíduos é a administraçã o municipal.
Tal competência resulta do artigo 6.º, n.º 2, alínea c) do Regulamento sobre a
Gestão de Resíduos, aprovado pelo Decreto Presidencial n.º 190/12, de 24 de
Agosto, que prescreve que “em matéria de gestã o de resíduos, compete aos ó rgã os
locais, nas respectivas á reas de jurisdiçã o, e sob coordenaçã o do Ministro do
Ambiente, [...] participar nos processo de licenciamento para a remoçã o,
tratamento e depó sito de todo o tipo de resíduos, nas respectivas á reas de

17
Ao abrigo desta competência regulamentadora, a ANR produziu e propô s um pacote
normativo – composto por regulamento; caderno de encargos e modelo de contrato – que, à data de
elaboraçã o deste estudo, pese embora tenha sido apresentado ao pú blico, nã o havia ainda sido
aprovado e publicado, nos termos legais. 24
jurisdiçã o” e da alínea h) do artigo 23.º do Decreto Presidencial n.º 20/18, de 29 de
Janeiro (que estabelece o Regime geral de de delimitação e desconcentração de
competências e coordenação de actuação territorial da Administração Central e da
Administração Local do Estado). Bem como dos preceitos citados no §2.º deste
texto.
Por outras palavras, a ANR nã o goza de competência contratualizadora, i.e.,
nã o é a entidade concedente para o sector dos resíduos: essa é uma competência
local, com a coordenaçã o central do Ministério do Ambiente. À ANR é reservada a
competência para actuar como agente regulador, criando o quadro regulamentar
da concessã o, e como fiscalizador das concessioná rias, nos termos das normas de
competência acima citadas.
Quer isso dizer, a ANR nã o possui competências licenciadoras, nã o só dos
equipamentos e actividades, mas, também, dos pró prios operadores do sector. Tal
competência está entregue ao Ministério do Ambiente, ao abrigo artigo 6.º, n.º 1 do
Regulamento de Gestão de Resíduos.
Ora, face a este panorama deve, entã o, questionar-se a coerência do sistema e
qual a necessidade de uma agência que nã o tem poderes para “certificar” a
capacidade dos operadores e respectivos equipamentos.

4.2. O regime especial da Província de Luanda

O sistema de competências municipais acima descrito sofre uma importante


derrogaçã o em Luanda. Com efeito, nesta Província existe uma concessioná ria
pú blica: a ELISAL, E.P.
Nos termos dos seus estatutos, aprovados pelo Decreto n.º 55/04, de 17 de
Agosto, a ELISAL é a concessioná ria geral do serviço de limpeza pú blica da
Província de Luanda, sendo as condiçõ es do exercício da concessã o aprovadas pelo
respectivo Governo Provincial (artigo 9.º).
No entanto, a referida empresa realiza o seu objecto social (prestaçã o de
serviço pú blico de limpeza, manutençã o e expansã o da rede de esgotos da á rea
urbana da Província – cfr. artigo 3.º) mediante a subcontrataçã o (i.e.,
subconcessã o) de outras empresas gestoras dos resíduos (cfr. artigo 10.º).

25
De notar que este sistema está em contradiçã o com o Decreto Presidencial n.º
77/16, de 21 de Outubro [estabelece a organizaçã o e o funcionamento dos Ó rgã os
do Governo da Província de Luanda; cfr. artigo 40.º n.º 6 a)], ao abrigo do qual as
competências relativas ao saneamento (lixos e resíduos) sã o cometidas à s
administraçõ es municipais. Parece-nos que, atentos aos câ nones sobre a aplicaçã o
intertemporal da lei, ou seja, aos princípios da Lex posterior derogat priori e ao
princípio vigência da lei, a competência relativa ao saneamento na Província de
Luanda pertence à s administraçõ es municipais, tendo sido revogadas as normas
que previam ser competência da ELISAL.
Como regulador, a competência principal (a montante ou a priori) da ANR é a
de regulamentar a actividade de concessão de serviço público na área de resíduos.
No que se traduz, afinal de contas, essa competência?
O nú cleo essencial da competência regulató ria repousa na capacidade de
emitir regulamentos técnicos e econó micos, i.e., normas de desenvolvimento ou de
concretizaçã o do quadro normativo legal. Nesse sentido, regulamentar a actividade
significa desenvolver o quadro normativo secundá rio relativo ao sector dos
resíduos, com base nos limites impostos por lei prévia e respeitando-os.
Na prá tica, trata-se de emitir, entre outros, os requisitos técnicos, humanos,
financeiros e materiais para o exercício da actividade, bem como aqueles
parâ metros de qualidade e bem-estar, avaliaçã o e informaçã o:
― Essas normas regulamentares podem tomar os formatos de normas
técnicas, regulamentos, directrizes, entre muitas outras da mesma
natureza. Em termos de â mbito objectivo, o poder regulamentar da ANR
abrange todos os aspectos que careçam de regulamentaçã o legal e que
dizem respeito ao sector dos resíduos;
― Em termos do â mbito subjectivo, a regulamentaçã o da ANR abrange todas
as pessoas pú blicas e privadas que actuem no sistema de gestã o de
resíduos.
Em resultado do â mbito do poder regulamentar da ANR, questiona-se: Como
se articula (ou deve articular) a competência regulamentar da ANR, do Ministério e
das administrações municipais (incluindo no caso da Província de Luanda)?
De seguida, apresentamos uma resposta possível, dada no divã da “sala de
26
espera” do aludido estudo, ordenado pelo Titular do Poder Executivo:
Em primeiro lugar, distingamos as instâ ncias:

a) O Ministério do Ambiente actua ao nível de todo o segmento normativo


de protecçã o do ambiente, criando as condiçõ es de actuaçã o no sector;

b) Os ó rgã os de administraçã o local do Estado actuam no segmento da


contrataçã o (rectius, da concessã o) da actividade, i.e., actuam como parte
contratante dos serviços;

c) A ANR actua como agente “hemostá tico” na á rea dos resíduos sob sua
responsabilidade: normaliza, padroniza e fiscaliza.
Entã o, em termos sistemá ticos, podemos afirmar que:
1. Ao Ministério compete exercer as competências de decisã o e conduçã o
política do sector do ambiente, enquanto sistema, o que inclui, necessariamente, o
subsistema de resíduos e os poderes de licenciamento de que goza. Daí se justifica
a “coordenaçã o” e os poderes de aprovaçã o dos planos provinciais por parte do
Ministério do Ambiente;
2. Os ó rgã os locais – e descontando o caso da ELISAL – devem assegurar a
existência do quadro regulamentar para que se efective a limpeza e recolha de
lixo/resíduos na respectiva circunscriçã o através de contrataçã o de
concessioná rios privados;
3. A ANR é responsá vel por criar as condiçõ es de equilíbrio de todo o
sistema, emitindo as normas regulamentares que permitem aumentar a qualidade,
eficiência e eficá cia de todos os intervenientes. Isto é, também compete à ANR
emitir normas que imponham padrõ es de contrataçã o aos municípios. No fundo,
ela deve garantir os elementos necessá rios para simular um mercado cada vez
mais perfeito, uma actividade exercida em ambiente de monopó lio18;
4. Numa linguagem simples, poderíamos dizer que, no seu papel de
“á rbitro”, à ANR nã o foi, nem lhe podia ser dada, a competência para contratar com

18
Nã o se trata de um monopó lio natural, mas sim – nas palavras de Paulo Alexandre
Castanheira Madeira, Direito de Reclamação dos Utilizadores dos Serviços de Águas e Resíduos —
Proposta de reformulação do modelo de intervenção da ERSAR, Publicações CEDIPRE Online - 33,
http://www.cedipre.fd.uc.pt, Coimbra, julho de 2018, 54 – de “um monopó lio legal justificado por
razõ es de eficiência e racionalidade econó mica.” 27
os operadores. Mas ela pode emitir as regras de convivência que devem ser
adoptadas entre o concedente municipal e o concessioná rio privado (ou pú blico,
no caso da ELISAL).
Apesar de analisarmos o sistema com uma aparente clareza cristalina, nã o
deixamos de ver dificuldades face ao enquadramento orgâ nico do sector. Nesse
quadrante – em que há competências licenciadoras (amplo senso) repartidas entre
o Ministério do Ambiente, os Governos Provinciais, as administraçõ es municipais e,
no caso particular da Província de Luanda, a ELISAL –, afigura-se aconselhá vel
clarificar as atribuiçõ es e/ou competências de cada entidade, principalmente,
quanto ao papel da ELISAL na Província de Luanda, bem como a robustez da ANR.
Torna-se, igualmente, necessá rio proceder à clarificaçã o do sentido
normativo do artigo 6.º, n.º 2, alínea c) do Regulamento sobre a Gestão de Resíduos,
quanto ao que possa significar a “participaçã o” dos municípios e a “coordenaçã o”
do Ministério do Ambiente relativamente ao licenciamento.

5. O REGIME DE SANEAMENTO BÁSICO APÓS A IMPLEMENTAÇÃO


DAS AUTARQUIAS LOCAIS

Este é, no presente, o quadro de competências em vigor nesta actividade.


Uma vez que se iniciou o processo de implementaçã o de autarquias locais, parece-
nos ú til referirmo-nos, ainda que de forma rá pida, ao futuro quadro jurídico-
administrativo regulador do sector.
No entanto, todo este quadro será , em breve, alterado ou, no mínimo, deverá
ser repensado com a institucionalizaçã o das autarquias locais em Angola.
A questã o de fundo que se colocará é saber como se vã o repartir as
atribuiçõ es e competências entre o Estado Local e as autarquias locais, tendo em
conta que a Constituiçã o, no seu artigo 242º, vem dizer que “os ó rgã os
competentes do Estado determinam por lei [...] o alargamento gradual das suas
atribuiçõ es, [...] e a transitoriedade entre a administraçã o local do Estado e
autarquias locais.”
Ora, a questã o central que se colocará será saber quando e a quantidade de

28
atribuiçõ es e poderes em matéria de saneamento bá sico e até aonde irã o os
poderes do futuro concedente: autarquias locais. Noutro lugar escrevi o seguinte19:
“Na configuraçã o das competências jurídico-administrativas do poder local, o
legislador ordiná rio deve ser guiado pelo princípio da subsidiariedade”20, apesar
de este princípio nã o encontrar assento normativo explícito na Constituiçã o. Ou
seja, o princípio nã o está expressamente consagrado, mas a ideia de
subsidiariedade está implícita, tanto na descentralizaçã o como no reconhecimento
da autonomia local. Há nestas duas técnicas de organizaçã o do poder a ideia da
proximidade do poder à s populaçõ es e a consideraçã o de que essa proximidade é
benéfica, porque eficiente.
Na verdade, defendemos que é possível apreender o princípio da
subsidiariedade na Constituiçã o angolana. Com efeito, ele resulta implícito quando
conjugamos os princípios do Estado democrá tico de Direito, que acolhe o
pluralismo de organizaçã o política e a democracia representativa e participativa
(cf. art. 2.º), o princípio da organizaçã o territorial do poder político-administrativo
(cf. art. 5.º) e o princípio da autonomia do poder local (cf. arts. 8.º, 213.º e 214.º).
Em especial, o n.º 1 do artigo 214.º esclarece que a autonomia local
autá rquica compreende o direito e a capacidade efectiva de o poder local gerir e
regulamentar, sob sua responsabilidade e no interesse das respectivas populaçõ es,
os assuntos que lhes digam respeito. O resultado dessa conjugaçã o de princípios
nã o pode ser outro que nã o o de entender que a Constituiçã o estabelece um
mecanismo de repartiçã o e exercício do poder que, a montante (i.e., a priori, ex
ante), procede à definiçã o de um “equilíbrio institucional que comanda a
repartição horizontal de poderes, e a respectiva incidência na repartição vertical de
competências.”21
Escrevi22, ainda, que (onde fecham as aspas seguintes?) “em sede de
19
Carlos Feijó , A Autonomia Local e a Organização do Poder Territorial em Angola, Casa das
Ideias, Luanda, 2012: 113-121.
20
No sentido que nos ocupa, a expressã o evoca o cará cter supletivo, auxiliar ou assistencial
de uma dada realidade (cf. Carlos Blanco de MORAIS, «A Dimensã o Interna do Princípio da
Subsidiariedade no Ordenamento Português», ROA, Ano 58, II: 780).
21
Maria Luísa DUARTE, A Teoria dos Poderes Implícitos e a Delimitação de Competências entre a
União Europeia e os Estados-Membros, Lisboa, Lex, 1997: 214.
22
Cfr. Carlos FEIJÓ , … A Autonomia Local, pp29
121-125
Disposiçõ es Finais e Transitó rias, a CRA estabelece o princípio do gradualismo no
seu artigo 242.º. No dizer da Constituiçã o: a institucionalizaçã o das autarquias
locais obedece ao princípio do gradualismo, devendo os ó rgã os do Estado
competentes determinar a oportunidade da sua criaçã o, o alargamento gradual das
suas atribuiçõ es, o doseamento da tutela de mérito e a transitoriedade entre a
administraçã o local do Estado e as autarquias locais.
Com a consagraçã o deste princípio, a Constituiçã o impõ e, ao legislador
ordiná rio, o dever de proceder à institucionalizaçã o do poder local (incluindo a
pró pria criaçã o autarquias locais), de acordo uma sequência gradual.
Destarte, a regulaçã o do princípio da autonomia local nas suas diversas
modalidades (i.e., tanto as autarquias locais como o institucionalismo tradicional)
fica sujeita a uma ponderaçã o política, que deve seguir uma programaçã o temporal
e uma progressiva intensidade na implementaçã o a seguir, perante o quadro
normativo constitucionalmente traçado. Tal princípio de prudência deve-se,
fundamentalmente, à inexistência de uma prá tica legislativa coerente e sistemá tica,
relativamente ao poder local.
Daí que, ainda que em cumprimento de um comando constitucional, uma
mudança abrupta e desprogramada fracassaria se nã o tivesse em conta, por um
lado, o entrelaçamento entre todas as espécies ou formas de administraçã o pú blica
e, por outro, um gradualismo no processo de concretizaçã o da autonomia local,
designadamente ao nível da criaçã o das autarquias e das transferências de
competências e de poderes para os ó rgã os do poder local autá rquico ou para as
autoridades tradicionais que reú nam as condiçõ es mínimas, bem como no
processo de diminuiçã o da intensidade do vínculo do Estado23.
Transporto para a dimensã o que interessa ao tema, ou seja, o objecto do
presente artigo, que o gradualismo aponta para um escalonamento progressivo e
faseado no sentido da autonomia financeira e administrativa dos entes infra-
estaduais, projectando-se em geometria variá vel, tendo em conta as
especificidades de cada um dos níveis e também, porventura, em funçã o das
particularidades de cada á rea, regiã o ou circunscriçã o administrativa.
23
Reiteramos, mutatis mutandis, o alerta que já defendemos, anteriormente, para as
autarquias locais tout court na nossa tese de mestrado (Cf. Carlos FEIJÓ , … A Autonomia Local …:
355). 30
Isto é, de acordo com o princípio do gradualismo, os poderes administrativos
a confiar aos entes administrativos descentralizados devem ser transferidos, de
forma gradual e faseada, para que se possa obter uma autonomia local substantiva,
ao invés de uma mera reproduçã o mecâ nica de normativos legais, sem que seja
acompanhada dos meios humanos, materiais e financeiros indispensá veis para
concretizar as atribuiçõ es e competências formalmente transferidas.
A questã o agora é saber o que acontecerá ou, no quadro de processo de
institucionalizaçã o das autarquias locais, quais os poderes administrativos que, em
matéria de saneamento bá sico e de concessã o de serviços pú blicos de recolha de
resíduos só lidos, serã o transferidos da administraçã o central e local do Estado
para as autarquias locais?
A resposta a esta interrogaçã o poder-nos-ia ser dada pela Lei Orgânica sobre
a Organização e Funcionamento das Autarquias Locais (que integra o “pacote
legislativo autá rquico”), e que se encontra em processo de aprovaçã o parlamentar,
para a qual haverá a descentralizaçã o para as autarquias locais, i.e., municípios, das
competências que agora se encontram no Estado, mas desconcentradas nas
estruturas locais do Estado.
Com efeito, decorre da alínea l) do n.º 1 do artigo 6.º do citado diploma que o
saneamento bá sico constitui uma das “atribuiçõ es das autarquias locais a
promoçã o e salvaguarda dos interesses específicos das respectivas populaçõ es.”
Consequentemente, a Lei atribui à Câ mara Municipal – o ó rgã o executivo
local – a competência para “fixar tarifas, custos e preços pela prestaçã o de serviços
ao pú blico, designadamente no â mbito do [...] saneamento, recolha de resíduos e
tratamento de lixo, ligaçã o, conservaçã o e tratamento de [...] (nã o falta aqui algo?).”
(alínea f) do artigo 36.º).
Essas normas devem ser conjugadas com o artigo 10.º da Lei da Transferência
das Atribuições e Competências da Administração do Estado para as Autarquias
Locais, nos termos da qual “as atribuiçõ es e competências a transferir para as
autarquias locais sã o dos seguintes domínios [...] ambiente e saneamento bá sico”.
Ainda na mesma direcçã o, e ao detalhar as atribuiçõ es e competências, a lei
sobre a transferência vem dizer, no seu artigo 22.º, que compete à s autarquias
locais, entre outras:
31
“a) Elaborar planos de sistemas de recolha e tratamento de
resíduos só lidos e limpeza dos espaços pú blicos, submetendo-os à
aprovaçã o da Assembleia Municipal;
b) Assegurar a limpeza de espaços pú blicos, incluindo zonas
balneares e zonas protegidas, recolha e tratamento de resíduos
só lidos, de acordo com as orientaçõ es metodoló gicas sobre a
matéria.”

Ou seja, no essencial, decorrerá do processo autá rquico uma transferência de


atribuiçõ es do Estado local para os entes autá rquicos – vulgo descentralizaçã o – no
â mbito operacional. Entende-se e aplaude-se a soluçã o legal proposta, uma vez
que, ao mesmo tempo que a Lei transfere atribuiçõ es – digamos, em obediência ao
princípio da subsidiariedade –, se assiste também à atribuiçã o de competências
financeiras, de modo a assegurar os meios conducentes à quele fim.
Em geral, vã o-se notando receios quanto à capacidade de as autarquias locais
assumirem certos tipos de competências. Tal inquietaçã o sugere-nos cautela,
ponderaçã o e responsabilidade na definiçã o das atribuiçõ es e competências a
transferir para as autarquias locais, mesmo na á rea de saneamento e de recolha de
resíduos só lidos.
Deste modo, a questã o será averiguar se os primeiros passos, no domínio do
saneamento e recolha de resíduos só lidos, serã o tímidos para nã o atribuir mais
competências do que aquelas que as autarquias locais estã o em condiçõ es de
assumir e, por outro lado, se serã o em quantidade suficiente para que se possam
sentir os efeitos da descentralizaçã o.
Do que se trata, agora, é saber qual a correcta adequaçã o metodoló gica da
desconcentraçã o e da descentralizaçã o administrativa, quando todas as Leis que
integram o pacote autá rquico entrarem em vigor.
Assim, em primeiro lugar, considera-se fundamental, também nos domínios
do saneamento e da recolha de resíduos só lidos, a existência de um programa
concreto de desconcentraçã o e de implementaçã o das autarquias que englobe as
questõ es relativas à sua implementaçã o cronoló gica e em associaçã o com outras
32
matérias, designadamente com a matéria orçamental.
Esse programa deve estar devidamente delineado e servir de suporte
concretizador e balizador do processo de desconcentraçã o administrativa e
descentralizaçã o.
Bem vistas as coisas, há que avaliar a capacidade financeira de as autarquias
locais passarem a ser as concedentes da recolha de resíduos só lidos e outras
tarefas/investimentos ligados ao saneamento bá sico.
Com efeito, a proposta de Lei opera a transferência de atribuiçõ es e
competências para as autarquias. Mas, na prá tica, se esta transferência nã o for
acompanhada de adequaçã o orçamental e, sobretudo, a sua execuçã o, o efeito pode
ser de soma zero. Vejamos um exemplo:
Se as autarquias forem responsá veis pela recolha de resíduos só lidos, há que
ver se a legislaçã o sobre contrataçã o pú blica e orçamental tem esta visã o de
descentralizaçã o, permitindo que esta competência, em matéria de saneamento
bá sico, passe para as autarquias.
Em segundo lugar, é essencial programar a implementaçã o da
desconcentraçã o e da implementaçã o das autarquias, tendo em conta os meios
existentes e os que sã o necessá rio reunir para esse efeito.
Em terceiro lugar, é necessá rio assegurar a articulaçã o funcional e orgâ nica
entre os vá rios ó rgã os da administraçã o local do Estado, futuras autarquias e da
pró pria Administraçã o central.
Nessa medida, e para além das incoerências detectadas no interior do Estado-
Administraçã o, no processo de institucionalizaçã o de autarquias locais devem ser
estudadas, ponderadas e resolvidas:

a) Eventuais sobreposiçõ es de atribuiçõ es e competências entre os vá rios


ó rgã os e serviços;

b) Omissõ es de competências a respeito de determinadas situaçõ es (por


exemplo, no caso de nã o existir nenhuma entidade competente para
intervir ou solucionar determinada situaçã o concreta);

c) Emparcelamento das atribuiçõ es, nomeadamente nos casos em que uma


determinada entidade tem competência para dar resposta a parte de uma

33
situaçã o, sendo necessá rio intervençã o de outra para a sua concretizaçã o
ou conclusã o. As situaçõ es de emparcelamento tornam a actividade da
administraçã o local do Estado mais morosa, complexa e ineficiente, pelo
que, na nossa perspectiva, deve ser evitada no momento de
implementaçã o das autarquias.
A título de ilustraçã o do referido na alínea c), cite-se um exemplo, que se
prende com a limpeza e/ou manutençã o de valas ou valetas. Correntemente,
existem situaçõ es existem em que uma unidade administrativa é privada de
resolver um problema de manutençã o da valeta porque a limpeza da mesma está
entregue a outra entidade. Tal problema coloca-se, por exemplo, nos municípios e
distritos na Província de Luanda, pelo que se exigirá uma melhor concatenaçã o das
competências interorgâ nicas para que sejam eliminados conflitos ou insuficiências.
Esta é a melhor filosofia a seguir cujo processo de descentralizaçã o deve
obedecer ao gradualismo funcional de competências, isto é, a ser feito de modo
gradual e em coordenaçã o entre as diferentes estruturas, de modo a evitar
conflitos positivos ou negativos de competências e, ainda, que a transferência de
competências deve ser acompanhada da garantia de existência (ou de potencial de
existência) de recursos humanos e materiais, necessá rios à sua execuçã o.

CONCLUSÕES

Importa, à guisa de conclusã o, fazer o seguinte remate:


1. A concessã o é um contrato típico da actividade administrativa do Estado.
O contrato de concessã o do serviço pú blico de recolha de resíduos deve ser objecto
de uma dupla tutela para assegurar o interesse pú blico: por um lado, trata-se de
uma actividade realizada em situaçã o de monopó lio (o que justifica a regulaçã o
sectorial para assegurar uma “simulaçã o de mercado” e evitarem-se os abusos); e,
por outro, pelo cará cter econó mico, o concessioná rio deve ser o mais há bil e capaz
de se substituir à s administraçõ es municipais. Daí a necessidade da submissã o aos
apertados critérios da contrataçã o pú blica e de se privilegiar o concurso pú blico
para o maior benefício possível.

34
2. A alteraçã o de paradigma com a introduçã o da ANR – e já dando
desconto à s conclusõ es do diagnó stico do “estudo” do Executivo – exigirá uma
coordenaçã o inter-administrativa entre o Estado central, a administraçã o local do
Estado e a ANR: será importante, onde e quando necessá rio, uma interpretaçã o
conforme o interesse pú blico dos poderes dos actores institucionais sob pena de
ineficiência do sistema. Nã o se trata de uma competiçã o para ver quem faz mais ou
recebe os louros, trata-se, sim, de um objectivo de assegurar o interesse geral,
chamado de interesse pú blico.
3. Em termos operacionais, as competências obedecem ao princípio da
proximidade. No paradigma actual – de ausência de autarquias –, as atribuiçõ es e
competências operacionais e financeiras encontram-se ao nível das estruturas
municipais do Estado, sendo que, com a implementaçã o das autarquias, operar-se-
á uma verdadeira descentralizaçã o de fins e meios para as autarquias locais.

BIBLIOGRAFIA

Acó rdã o do Supremo Tribunal Administrativo (português). Processo n.º 0862/07,


de 21/05/2008. Relator: Angelina Barros.
AMARAL, Freitas do, FREITAS, Lourenço Vilhena de, Direito dos Contratos Públicos
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CYRNE, Carolina Sofia Gorldalino Murinelo de Sousa Guerreiro, Regulação do
Serviço de Resíduos (Dissertaçã o de mestrado), Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, 2014.
DUARTE, Maria Luísa, A Teoria dos Poderes Implícitos e a Delimitação de
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FEIJÓ , Carlos, A Autonomia Local e a Organização do Poder Territorial em Angola,
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35
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Coimbra Editora, Coimbra, 2008.
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MADEIRA, Paulo Alexandre Castanheira, Direito de Reclamação dos Utilizadores dos
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intervenção da ERSAR, Publicações CEDIPRE Online – 33,
http://www.cedipre.fd.uc.pt, Coimbra, julho de 2018.
MORAIS, Carlos Blanco de, «A Dimensã o Interna do Princípio da Subsidiariedade
no Ordenamento Português», ROA, Ano 58, II: 780).
KUCZMARSKI, Cíntia Camargo, Contrato de concessão de serviços públicos.
Disponível em http://www.direitonet.com.br.

36
AS BOAS PRÁTICAS NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA

ELISA RANGEL24

Sumário

Introduçã o

1. A Nova Concepçã o de Administraçã o Pú blica: o seu Acolhimento pela


Constituiçã o Angolana e Princípios Regentes

2. Princípios que presidem à Contrataçã o Pú blica em Angola

3. Boas Prá ticas na Contrataçã o Pú blica e a Boa Governança

4. As Boas Prá ticas como Factor de Diminuiçã o de Actos Fraudulentos e de


Corrupçã o

5. Visã o Global sobre a Contribuiçã o dos Tribunais de Contas para a Consolidaçã o


de Boas Prá ticas na Contrataçã o Pú blica

6. A acçã o do Tribunal de Contas Angolano visando incutir e preservar as Boas


Prá ticas no domínio da Contrataçã o Pú blica

Conclusõ es

24
Doutora em Direito, Professora Catedrá tica da Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto. 37
INTRODUÇÃO

Nos tempos modernos, era das invençõ es e das descobertas, visando um


mundo mais integrado e melhor, deparamo-nos com o contra-senso de a
capacidade criativa gerar fenó menos que beneficiam um punhado insignificante de
cidadã os (pelo nú mero e nã o pelo que conseguem fazer), em detrimento daqueles
que, por serem cumpridores, de forma abnegada, pagam os tributos que lhes sã o
impostos, com contrapartida específica ou sem ela.
E o surgimento de tais fenó menos é notó rio num sector que se desenvolve no
seio da actividade financeira pú blica e, sem o qual, dificilmente ela se desenrola: a
contrataçã o pú blica.
É , precisamente, da contrataçã o pú blica, dos princípios a que está sujeita e do
seu malbaratar, que nos ocuparemos nas linhas que se seguem.
Como os Tribunais de Contas, onde se acham implantados, na sua missã o
fiscalizadora e jurisdicional, perscrutam os afazeres da Administraçã o Pú blica e
dos seus agentes, em tudo quanto represente o interesse pú blico, a ausência de
boas prá ticas que minem tal interesse é, por dever de ofício, objecto da competente
acçã o destes ó rgã os, em ordem a velar pelo respeito que é devido ao cidadã o
eleitor/contribuinte, que confia os escassos recursos pú blicos a gestores que têm o
dever de os bem gerir.
Em jeito de começo, é abordada a temá tica da nova concepçã o de
Administraçã o Pú blica acolhida na Constituiçã o angolana e o conjunto de
princípios que a regem (1); a esta, segue-se a enunciaçã o do conjunto de princípios
que subjazem à contrataçã o pú blica (2); pelo facto de ser o título do tema que se
explora, as boas prá ticas na contrataçã o pú blica e a boa governaçã o, surgem
segundo a abordagem que pareceu ser a adequada ao contexto (3);
inevitavelmente, por força do que ocorre um pouco por todo o lado, as má s
prá ticas, assentes na fraude e na corrupçã o, foram aqui tratadas de forma algo
liminar (4), para, depois, a atençã o incidir sobre o papel que, em geral, se espera do
desempenho dos tribunais de contas, na missã o que, constitucionalmente, ou nã o,
lhes esteja atribuída, enquanto ó rgã os supremos zeladores, em ú ltima instâ ncia, do
interesse pú blico e da justiça financeira pú blica (5); e nã o se ousou fechar esta
38
pequena reflexã o sem deitar um olhar sobre o que pareceu ser de alguma
relevâ ncia no papel desempenhado pelo Tribunal de Contas angolano, no sentido
de preservar a moralidade e a ética na contrataçã o pú blica (6).

1. A NOVA CONCEPÇÃO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O SEU


ACOLHIMENTO PELA CONSTITUIÇÃO ANGOLANA E PRINCÍPIOS
REGENTES

Com o surgimento do Estado constitucional, assente no princípio da


separaçã o de poderes, ficou para trá s a concepçã o tradicional de Administraçã o,
personificada num poder autoritá rio, tendo esta passado a subordinar-se à lei que
é a expressã o da vontade do povo, que, através dos seus representantes, passou a
ser o detentor do poder político. A lei é, pois, a fonte legítima da actuaçã o da
Administraçã o Pú blica.
O Estado de Direito Democrá tico veio colocar o acento preponderante na
pessoa humana e no cidadã o e, por isso, a Administraçã o Pú blica ficou incumbida,
nos termos da lei, da tarefa de satisfazer o interesse geral, interesse pú blico ou
bem comum, respeitando os direitos e interesses legítimos dos cidadã os, também
estes legitimados pela lei.
A Administraçã o Pú blica, num Estado de Direito Democrá tico, já nã o é um
poder unilateral, mas um ente que, no â mbito de uma relaçã o jurídica recíproca
com os particulares, é, tal como estes, um sujeito de direitos e de obrigaçõ es e,
enquanto tal, deve (porque subordinado à lei) exercer as posiçõ es previstas na lei,
respeitando os direitos e liberdades dos particulares, do mesmo modo que estes
devem observar os poderes administrativos que, em cada caso, se coloquem.
Uma coisa é certa, os particulares (pessoas singulares e colectivas nã o
integradas na Administraçã o Pú blica) já nã o devem mais ser tratados como “meros
objectos” dessa Administraçã o, porque passaram a participar como sujeitos numa
relaçã o jurídica (administrativa) onde impera a reciprocidade fundada na lei.
Visto deste modo, a concepçã o tradicional de que a Administraçã o se situa
num plano superior à quele que é ocupado pelos particulares, devendo-lhes estes

39
obediência, de modo que os direitos subjectivos e outras posiçõ es jurídicas cedam
perante o poder da Administraçã o Pú blica, está ultrapassada, posto que ela passou
a estar sujeita à lei, devendo actuar em conformidade com ela.
Na presença de direitos subjectivos dos particulares, previstos na lei e
dimanados por ela, nã o pode a Administraçã o Pú blica impor o seu poder,
invocando a prossecuçã o do interesse pú blico, sob pena de estar a violar o
princípio bá sico que coloca o Estado ao serviço do cidadã o, uma vez que este é a
razã o de ser da sua existência.
Se o poder administrativo é exercido por força da lei, e também é por força
dela que sã o exercidos os direitos fundamentais e outras posiçõ es jurídicas dos
particulares, entã o, só lhes resta cumprir a lei de forma recíproca, colocando-se no
seio de uma relaçã o jurídica, onde existem, de parte a parte, direitos e deveres
recíprocos que por eles têm de ser respeitados. Nã o é mais admissível que a
Administraçã o Pú blica, em ordem à prossecuçã o de um interesse pú blico,
sobreponha a sua actuaçã o, mesmo com atropelo da lei.
Parece ser hoje possível admitir-se uma nova concepçã o de Administraçã o
Pú blica, visto para trá s ter ficado o seu cará cter unitá rio, devido ao surgimento e
desenvolvimento de princípios, como o da autonomia local, a admissibilidade de
uma administraçã o do tipo municipal, mas, também, o surgimento de
estabelecimentos pú blicos personalizados, as pessoas colectivas pú blicas,
resultantes da publicizaçã o de institutos originariamente privados, e, ainda, as
entidades representativas de categorias profissionais. Todos estes factores foram
determinantes para que a Administraçã o Pú blica de hoje surja como uma
pluralidade orgâ nica.
Neste conceito de pluralidade orgâ nica de Administraçã o Pú blica identifica-
se: a administraçã o directa do Estado (administraçã o central e a administraçã o
local do Estado); a administraçã o indirecta do Estado; a administraçã o autó noma
(de â mbito territorial e de â mbito institucional).
Um breve olhar lançado ao Título V da Constituiçã o da Repú blica de Angola
leva a que se conclua que o texto constitucional se afastou da concepçã o tradicional
de Administraçã o Pú blica, tendo optado pela concepçã o moderna, gizada na
pluralidade orgâ nica de Administraçã o Pú blica e na admissibilidade da existência
40
de uma relaçã o de paridade ou de reciprocidade entre a referida Administraçã o e
os particulares, tendo sido colocada de parte a unilateralidade de poder
administrativo exercida de modo autoritá rio.
Começa-se por, no artigo 198.º do texto constitucional, referir que a
Administraçã o Pú blica prossegue o interesse pú blico, para o qual deve ser
observado um conjunto de princípios, impensá veis de aflorar na concepçã o
tradicional de Administraçã o Pú blica.
Definindo-se o que deve entender-se por interesse pú blico, poderá dizer-se
que este visa traduzir o interesse de todos os que se acham inseridos numa dada
colectividade, interesse que se identifica com o bem comum, com o bem-estar de
todos os membros de uma dada comunidade e que a todos interessa.
A prossecuçã o do interesse pú blico pela Administraçã o Pú blica compreende-
se por ser nela que reside o dever de garantir, em nome do Estado que representa,
que os cidadã os cumpram os deveres impostos pela Constituiçã o e pela lei, mas
também que lhes sejam garantidos os direitos que elas lhes conferem e asseguram.
A Administraçã o Pú blica angolana, em ordem a actuar de acordo com os
parâ metros de um Estado de Direito Democrá tico, tem subjacente um conjunto de
princípios fundamentais: a igualdade, a legalidade, a justiça, a proporcionalidade, a
responsabilizaçã o, a probidade administrativa e o respeito pelo patrimó nio
pú blico. Por outro lado, a sua organizaçã o tem por base outros tantos princípios,
tais como: a simplificaçã o administrativa, a aproximaçã o dos serviços à s
populaçõ es, a desconcentraçã o administrativa e a descentralizaçã o administrativa.
Todos os princípios, atrá s citados, dizem respeito à organizaçã o e ao
funcionamento da Administraçã o Pú blica angolana.
O artigo 200.º da Constituiçã o angolana é, também, um indicativo da mudança da
concepçã o de Administraçã o Pú blica na ordem jurídica angolana.
Contudo, constata-se que essa mudança é meramente formal, visto que, na
prá tica, cada vez mais se enraízam actos pró prios de uma Administraçã o que se
distancia dos administrados.
Assiste-se ao antigo problema da existência de normas jurídicas inertes, por
falta de aplicaçã o. Os princípios e as intençõ es subjacentes sã o bons, a grande
questã o reside na sua materializaçã o.
41
E fruto dessa disparidade, entre o que diz a norma e o que se pratica, ao
cidadã o continuam a ser prestados serviços pouco ou nada desejá veis, posto que
os servidores pú blicos ainda nã o interiorizaram a necessidade de mudança.

2. PRINCÍPIOS QUE PRESIDEM À CONTRATAÇÃO PÚBLICA EM


ANGOLA

Além dos princípios plasmados na Constituiçã o, que sã o a reserva de onde


parte o legislador ordiná rio para a consagraçã o dos princípios base de qualquer
actividade, a Lei n.º 9/16, de 16 de Junho, sem qualquer titubear, acolhe um
conjunto de princípios que devem estar presentes, quer na formaçã o, quer na
execuçã o dos contratos pú blicos.
À cabeça de tais princípios situa-se o da prossecuçã o do interesse pú blico,
que aparece, como vimos no artigo 198.º da CRA, seguido dos princípios da justiça,
da igualdade, da concorrência, da imparcialidade, da transparência, da probidade,
da economia, da eficiência e da eficá cia (3 E’s) e do respeito pelo patrimó nio
pú blico.
Olhando para uns e outros, pode descortinar-se que uns encerram valores
que se prendem com um princípio maior e fundamental, que é o princípio da
dignidade da pessoa humana, à volta do qual muito coisa gravita, enquanto outros
na base da consensualidade admissível no domínio pú blico, à guisa ou como se se
tratasse de interesses protegidos por ordem de razõ es privatísticas, pois situam-se
no domínio do mercado, tais como a concorrência, a economia, a eficiência e a
eficá cia (critérios de boa gestã o).

3. BOAS PRÁTICAS NA CONTRATAÇÃO PÚBLICA E A BOA


GOVERNAÇÃO

A questã o das boas prá ticas na contrataçã o pú blica tem origem no factor
humano, na índole de quem contrata e de quem é contratado.
Quaisquer que sejam os princípios, um denominador comum que temos de
42
ter presente, em matéria de aná lise das boas prá ticas, é o que se pretende para a
contrataçã o pú blica: o factor humano.
O homem é o cerne de tudo, para ele e por ele existem e encontram-se ao seu
serviço o Estado, o Direito e a Justiça. Partindo desta premissa, haveria que
perguntar de que tipo de homem se fala e se promove. Pensa-se sempre no homem
eivado de bons princípios, de boa conduta, para que todos beneficiem dos ditos
recursos, que sã o escassos.
Contudo, quanto mais se fala na escassez de recursos e da necessidade de
haver probidade na sua gestã o, mais se assiste a prá ticas abusivas em proveito de
alguns (poucos), que nã o se importando com a raridade ou escassez de tais
recursos utilizam artifícios para se apoderarem do mais que podem, em seu
pró prio proveito.
É evidente que é preciso apertar o cerco, definindo princípios, regras e
procedimentos. Mas tudo isso é pouco, quando o espírito de missã o e de
cumprimento do dever de satisfaçã o das necessidades comuns nã o existem.
As boas prá ticas, que possam caracterizar uma Administraçã o Pú blica,
dependem do ambiente de moralidade e de respeito pelo cumprimento das
normas, pelos agentes pú blicos e pela vontade de bem servir os concidadã os.
Se o ambiente for generalizadamente medíocre, voltado para o
enriquecimento ilícito e fá cil à custa dos recursos pú blicos, com uma total
impunidade para quem prevarica, nã o há boas prá ticas que se evidenciem e
resistam.
As boas prá ticas ocorrem se o capital humano for instruído, no sentido de
servir de forma diligente, honesta, solidá ria, transparente, disciplinada, eficiente e
coerente o que é de todos.
A ideia que se tem é que confiando uma parte do seu patrimó nio à
Administraçã o Pú blica, para que esta prossiga o interesse pú blico, é legítimo que
dela se espere uma boa gestã o.
Os agentes pú blicos sã o, acima de tudo, servidores pú blicos, deles se
esperando que concretizem os mais sagrados princípios que conduzam à maior
satisfaçã o de todos, contribuintes ou nã o, para o erá rio pú blico.
E essa motivaçã o coloca-se, com maior preponderâ ncia, para aqueles agentes que
43
têm o destino dos países na sua mã o. A falta de observâ ncia e de cumprimento, por
estes, determina que os agentes que se situem em escalõ es intermédios, ou
inferiores, assumam a postura de quem está , hierarquicamente, melhor situado.
Se quem comanda o barco é desregrado, toda a sua tripulaçã o tende a seguir
o exemplo do comandante.
Esta é a visã o geral que é suposto ter-se de gestã o financeira pú blica. Nã o é
diferente o juízo, quando aplicado à contrataçã o pú blica, sendo certo que esta
envolve aspectos financeiros de grande monta e que vã o desembocar na gestã o
financeira.
A contrataçã o pú blica é uma á rea de arranque para a movimentaçã o de
somas incalculá veis de dinheiros pú blicos. Por essa razã o, tem de aparecer
rodeada de cuidados redobrados, que começam pela imposiçã o de princípios
basilares que devem presidir ao estabelecimento de qualquer relaçã o contratual
no domínio pú blico.
Como se sabe, nos tempos que correm, a maior apetência para o
enriquecimento ilícito arranca da má utilizaçã o ou desvio dos dinheiros e bens
pú blicos para fins diferentes dos que estavam previstos.
Apesar de tais prá ticas serem cada vez mais recorrentes, no sentido oposto,
em que se colocam as boas prá ticas na contrataçã o pú blica, levariam os agentes
pú blicos a operar os recursos pú blicos motivados por um sentimento de
proporcionar maior utilidade com menos custos, de modo a ser alcançado o
má ximo de utilidade social.
As boas prá ticas na contrataçã o pú blica ou, por outras palavras, a contrataçã o
pú blica efectivada através de boas prá ticas, a coberto de moralidade e ética
administrativas, conduzem à boa governaçã o, a uma governaçã o limpa e
transparente, despida de intençõ es maléficas e maliciosas para com o erá rio
pú blico.
Por boa governaçã o tem-se entendido a gestã o desenvolvida pelas entidades
pú blicas com respeito pelos princípios da economia, eficá cia e eficiência, exercida
de modo sustentá vel e segundo padrõ es de justiça social, visando obter os
melhores resultados com o menor custo social possível, voltados para a satisfaçã o
do bem comum. Ou, ainda, “como um conjunto de princípios que subjazem à s
44
estruturas, mecanismos e processos de tomada de decisã o e à forma como as
decisõ es sã o ou nã o implementadas, que condicionam o desenvolvimento das
sociedades e dos países”25.
Havendo quem defenda que “a boa governaçã o é aquela que é orientada por
princípios de moralidade, ética, transparência, eficá cia, eficiência e economicidade,
visando atingir objectivos de ordem material e imaterial, que proporcionem
benefícios econó micos e/ou bem-estar à queles a quem os seus resultados se
dirigem”. (fonte?)
Podendo haver diversas definiçõ es de boa governança, atenta-se que o seu
denominador comum assenta no respeito pelos princípios que lhe estã o
subjacentes e no alcance de determinados objectivos centrados no bem comum.
Segundo Paulo Nogueira da Costa, “a governaçã o só pode ser qualificada de
boa se for garantida a responsabilidade das autoridades pú blicas perante os
cidadã os, a qual, para além de pressupor o respeito por critérios técnicos de boa
gestã o, é indissociá vel do respeito pelos princípios da justiça, da imparcialidade, da
boa-fé, da igualdade de proporcionalidade”26.
Coloca-se, a quem gere recursos pú blicos, um dever fundamental de boa
administraçã o ou de boa governaçã o, por correspondência ao mandato que lhes foi
confiado pelos cidadã os eleitores.
Quem confere um mandato de gestã o, nã o o faz para ser prejudicado nos
direitos que tem sobre o seu patrimó nio, pelo que dele é retirado por via dos
tributos, nem noutros direitos fundamentais, como é o caso do direito à dignidade
da pessoa humana.
A dimensã o de tal dever fundamental é imensa, nã o estando, porém, ao
alcance nem seja objecto de compreensã o de todos os gestores pú blicos.

4. AS BOAS PRÁTICAS COMO FACTOR DE DIMINUIÇÃO DE ACTOS

25
Cfr. Helena Maria Mateus de Vasconcelos Abreu Lopes, A Reforma da Administração Pública
e o Regime da Contratação Pública, Revista do Tribunal de Contas n.º 44, Jul-Dez, 2005, p. 49.
26
Cfr. Paulo Nogueira da Costa, O Tribunal de Contas e a Boa Governança. Contributo para
uma Reforma do Controlo Financeiro Externo em Portugal, https://estudo geral.sib.uc.pt, acedido
em 17.09.2014, p. 211. 45
FRAUDULENTOS E DE CORRUPÇÃO

Entendido e convindo que a gestã o pú blica deva ser desempenhada segundo


os melhores princípios, e que os seus actores observem tal postura, de modo
rigoroso e empenhado, perante o que é de todos, tal contribuirá , certamente, para
a evitaçã o de prá ticas sinuosas e plenas de artifícios, escondendo o que é
impró prio e visando fins obscuros, ou seja, actos que preencham o tipo do crime de
fraude, mas também actos que visem, igualmente, a obtençã o de benefícios
pessoais à custa dos recursos pú blicos, pela via da corrupçã o activa ou passiva.
Um agente pú blico que oculte dados que sã o essenciais, para que as contas
pú blicas sejam visíveis e transparentes, viola, por exemplo, os princípios da boa-fé
e da probidade, independentemente do facto de essa ocultaçã o ser em benefício
pró prio ou de terceiro.
Um agente pú blico pratica o crime de corrupçã o se, num contrato sob a sua
responsabilidade, sonega para si uma parte das quantias que deviam ser
encaminhadas para a finalidade da execuçã o do contrato, ainda que essa fatia nã o
seja visível, por entrar no domínio das denominadas comissõ es, mas poder o
embolso destas entrar no cô mputo das “cedências” que se fazem à contraparte,
para “aliviar” o rigor contratual.
Sabe-se, por exemplo, que muitas fortunas, por parte de quem contrata,
nascem do acú mulo de comissõ es, arrecadadas de contrato em contrato, pelos seus
negociadores.
Poderã o estes argumentar que elas lhes sã o atribuídas pelas margens de
negociaçã o contratual de que gozam as partes.
Mas, quando um agente pú blico negoceia um contrato pú blico, fá -lo no
exercício de uma missã o pú blica e nã o no domínio e por força da sua actividade
privada, que nã o a exerce no momento em que contrata ou ela nã o é determinante
para aquele aspecto particular. É porque se acha empossado de uma missã o
pú blica que lhe é proporcionada a negociaçã o de determinado contrato.
Por essa razã o, qualquer que seja a cedência ou amenizar de posiçã o, ou nã o,
na negociaçã o e que venha a criar a possibilidade de receber a título pessoal uma
benesse, constitui um atentado contra a boa-fé, a probidade, a moral e a ética

46
pú blicas.
Nem a sua sapiência e sagacidade, anteriormente adquiridas e utilizadas
durante a negociaçã o, para o êxito desta, justificam que tome, para si, qualquer
quantia de favor, seja ela qual for, para fins pessoais.
Uma tal prá tica constitui, ou nã o, um acto de corrupçã o?
Talvez importe que nos detenhamos, por alguns instantes, sobre o conceito
de corrupçã o, adiantado por duas conhecidas organizaçõ es mundiais.
Para o Banco Mundial, que defende uma noçã o genérica deste fenó meno, ele
parte da ideia da presença de um abuso do exercício de uma funçã o pú blica, com o
intuito de obter um lucro ou benefício de ordem material pessoal.
Para a organizaçã o Transparência Internacional, a corrupçã o abarca tanto
prá ticas no sector pú blico como no privado, sendo definida como o abuso de um
poder organizado, com a finalidade de obter um ganho privado.27
A corrupçã o na ordem jurídica angolana é considerada um ilícito criminal.
Veja-se como este tipo de crime aparece consagrado na Lei sobre a
criminalizaçã o das infracçõ es subjacentes ao crime do branqueamento de capitais,
na sua forma passiva (artigo 37.º – O funcioná rio que por si, ou por interposta
pessoa, com o seu consentimento ou ratificaçã o, solicitar ou aceitar, para si ou para
terceiro, vantagem patrimonial ou nã o patrimonial, ou a sua promessa, para a
prá tica de um qualquer acto ou omissã o contrá rios aos deveres do cargo, ainda que
anteriores à quela solicitaçã o ou aceitaçã o) e activa (artigo 38.º – Quem, por si ou
por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificaçã o, der ou prometer a
funcioná rio, ou a terceiro por indicaçã o ou com conhecimento daquele, vantagem
patrimonial ou nã o patrimonial para a prá tica de um qualquer acto ou omissã o
contrá rios aos deveres do cargo desse funcioná rio).
Por que se nã o é corrupçã o, pergunta-se por que razã o os agentes pú blicos
que com elas (comissõ es) se locupletam, nã o as declaram enquanto tal. Recebem-
nas pela “calada da noite” ou de forma obscura ou sorrateira, porque as ordens sã o
dadas para se depositarem as quantias em contas fora do controlo das autoridades
pú blicas, ou seja, por norma no exterior dos países a que pertencem os agentes
pú blicos negociadores e, de preferência, em paraísos fiscais, em contas off-shore, de
27
Cfr. Elisa Rangel Nunes, Orçamento do Estado: Contribuições para a Transparência
Orçamental em Angola, Luanda, 2011, pp. 478-479.
47
modo a que tais movimentos nã o deixem rasto.
Aliá s, nos ú ltimos tempos, tem-se observado o abrir de ficheiros, antes tidos
como secretos, porque contêm dados de movimentos inusitados e estrondosos de
capitais de grande parte de cidadã os de vá rios países, acumuladores de fortunas
imensas, fruto dos artifícios utilizados no manuseamento de dinheiros pú blicos ou
mesmo privados (de terceiros, como é o caso dos bancos e seguradoras privados).
Precisamente pela grande falta de transparência, que se tornou corriqueira e
passou a integrar e a caracterizar, como que de forma usual, a gestã o da coisa
pú blica, a corrupçã o já se tornou endémica em muitos países, tendo passado a
fazer parte da cultura de quem é mandatado para gerir recursos pú blicos.
Nem mesmo a complexidade que subjaz à gestã o da coisa pú blica justifica
que sejam colocados de lado princípios como a transparência, a ética e a
moralidade, em favor da obtençã o de privilégios que satisfazem e beneficiam quem
os recebe.
Nã o há , assim, que premiar os que supostamente dominam a informaçã o
relativa a essa gestã o, privando os demais da utilidade social que deve ser retirada
dos recursos e bens pú blicos.
Como diz Paulo Nogueira da Costa, “nas á reas gestioná ria e financeira, a
tecnicidade a elas inerente tem servido para justificar a opacidade de tomada de
decisõ es, a ausência de diá logo e a adoçã o de políticas excludentes de todos
aqueles que nã o dominam a linguagem técnica”.
Efectivamente, em honra ao tecnicismo envereda-se por caminhos que sã o
trilhados, apenas, pelos que se acham eleitos (muitos deles mesmo à margem ou
beira das eleiçõ es), porque mesmo nã o fazendo parte do grupo elegível, mas
situando-se no campo de influência destes, acedem com facilidade aos dinheiros
pú blicos, dando-lhes destino diverso do que é devido.
A somar a todas estas características e modos de actuar, tem-se assistido, por
um lado, a uma hipervalorizaçã o, por parte do Estado, dos critérios do mercado
(eficiência, produtividade e concorrência) e, por outro, à existência, por detrá s
dessa hipervalorizaçã o, de uma acentuada desvalorizaçã o de valores universais
sobre os quais a sociedade humana se tem edificado, por parte de quem tem a seu
cargo a gestã o financeira pú blica.
48
Daí tem advindo o reforço de uma sociedade hedonista e a degradação da ética
cidadã (citaçã o? Fonte?), principalmente, propalada e praticada pelos que detêm os
cordéis sobre a gestã o financeira pú blica, manietando-a como bem lhes apraz, sem
que seja objectada pelos demais cidadã os, pelas limitaçõ es que manifestam,
legitimando, assim, o exercício de uma democracia excludente, ao nível da tomada
de decisõ es.28
Terá , pois, de haver uma postura diferente perante o que é pú blico, para
modificar este quadro, tã o pouco digno e dignificante para quem tem a missã o de
gerir, visando a satisfaçã o, nã o de necessidades individuais, mas de necessidades
colectivas.

5. VISÃO GLOBAL SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DOS TRIBUNAIS DE


CONTAS PARA A CONSOLIDAÇÃO DAS BOAS PRÁTICAS NA
CONTRATAÇÃO PÚBLICA

No â mbito da sua missã o de ó rgã os de controlo externo independentes,


dotados de técnicas que lhes permitem obter a informaçã o necessá ria que deve ser
prestada ao ó rgã o parlamentar, mas também aos cidadã os, a respeito do modo
como decorre a gestã o pú blica, os tribunais de contas desempenham um papel
preponderante para a sanaçã o dessa gestã o, nos tempos modernos, mais maculada
do que nunca o foi.
A contrataçã o pú blica, como sabemos e já o dissemos, é um domínio onde as
má s prá ticas ocorrem, de forma apetecível, pelo volume de dinheiros pú blicos que
envolve.
Na qualidade de ó rgã os supremos de controlo financeiro, os tribunais de
contas têm o dever, assumido perante os cidadã os, de responder de forma
adequada, sancionando as má s prá ticas que atingem, de forma negativa, os
recursos pú blicos e, consequentemente, a utilidade social que deixam de ter,
através da condenaçã o dos agentes que as praticam.
Como afirma José Tavares, muito embora este tipo de ó rgã os de controlo
financeiro possa existir em quaisquer regimes políticos, visando assegurar a

28
Cfr. Paulo Nogueira da Costa, O Tribunal 49
de Contas e a Boa Governança..., cit., p. 254.
legalidade estabelecida, o é nos regimes democrá ticos que assumem toda a sua
plenitude, tendo como missã o fundamental informar os cidadã os e os seus
representantes (no Parlamento) de como sã o geridos, em vá rios planos, os
recursos financeiros e patrimoniais pú blicos – que, na realidade, lhes pertencem
como o eventual e consequente apuramento de responsabilidades, nos termos
legalmente estabelecidos. Por outro lado, este controlo da actividade financeira
pú blica, através das observaçõ es e recomendaçõ es formuladas, representa
também uma missã o pedagó gica e um contributo para o equilíbrio da vida
financeira.29
Contudo, essa funçã o ou missã o pedagó gica nã o pode sobrepor-se ao que
deles se espera, ou seja, que detectem os actos que prejudicam o erá rio pú blico e
os cidadã os, de um modo geral, e que nã o se fiquem, apenas, pelas boas
recomendaçõ es, sem que conduzam os prevaricadores a devolver o que, de modo
irregular ou sorrateiro, tiraram aos concidadã os.
Parece que em determinada altura, se viu, um pouco por toda a parte, este
lado benevolente dos tribunais de contas, veja-se por exemplo o que foi dito, em
tempos, sobre o Tribunal de Contas português: “sã o raros os acó rdã os
condenató rios do Tribunal (quando há apuramento de infracçõ es constitutivas de
responsabilidade financeira) e frequentes as justificaçõ es fundadas na ausência de
prejuízo efectivo ou em deficiências de escrituraçã o e controlo interno, quase
sempre consideradas desculpá veis”30. Mas em época mais recente, e ainda a
propó sito deste assunto, Lídio de Magalhã es faz notar que “o nú mero de
condenaçõ es nã o tem sido muito significativo, tornando ainda mais exíguo um já
de si escasso acervo de acusaçõ es formuladas pelo Ministério Pú blico. [...]
Disfunçã o, como alguém chamou à situaçã o, é o mínimo com que se podia qualificá -
la, perante uma opiniã o pú blica crescentemente ató nita com arquivamentos e
absolviçõ es em matérias em relaçã o à s quais haviam sido anunciadas graves e
onerosas violaçõ es da legalidade financeira ou erros clamorosos e grosseiros de

29
Cfr. José F. F. Tavares, Sistema Nacional de Controlo: controlo interno e controlo externo, in
Revista do Tribunal de Contas n.º 26, Jul-Dez, 1996, p. 67.
30
Cfr. Joã o Franco do Carmo, Contribuição para o Estudo da Responsabilidade Financeira,
Revista do Tribunal de Contas n.º 23, Jan/Set-1995,
50 p. 186.
gestã o”31.
E esta missã o ou funçã o pedagó gica dos tribunais de contas ou das ISC, de um
modo geral, nã o pode ir ao ponto, como refere Baptista Machado, “se aos efeitos
jurídicos da violaçã o de uma norma se nã o seguem medidas prá ticas efectivadoras,
e isto por forma sistemá tica e por longo tempo, essa norma acaba por perder a
qualidade de norma jurídica”32.
Ou seja, se a brandura das decisõ es dos tribunais de contas nã o passar disso
mesmo, se estes ó rgã os se ficarem pelas recomendaçõ es ou pela esperança de que
no futuro os gestores melhorem a sua performance, sem que nunca se vejam ser
condenados ou sancionados, a credibilidade do trabalho destes tribunais acaba por
ser abalada e a motivaçã o da sua existência morre, juntamente, com esse cará cter
tã o brando das suas decisõ es. “A falta de exercício gera ou revela a inutilidade dos
poderes nã o exercidos, que, por via dela, caducam e morrem”33.
Efeito pedagó gico sim, mas geral, que se repercuta, exemplarmente, por
todos, em face do seu cará cter justo e drá stico, quando e sempre que tiver de o ser.
Embora má s prá ticas, como a corrupçã o e a fraude, nã o façam parte do
objecto de actividade principal dos tribunais de contas, a estes fenó menos nã o
podem eles ficar indiferentes, até porque a sua actuaçã o deve perseguir a aplicaçã o
e preservaçã o da moral e da ética na gestã o pú blica, estando por detrá s destas ou a
elas ligadas “a noçã o de lealdade para com a Administraçã o Pú blica, a actuaçã o
pautada pela boa fé e honestidade, a transparência na execuçã o de atos
administrativos e na prestaçã o de contas, prezando sempre pela ausência de
favorecimentos, privilégios e perseguiçõ es casuísticas”34.
O apuramento de responsabilidades financeiras, pelos tribunais de contas, e a
sua efectivaçã o por via da concretizaçã o da obrigaçã o de repor, com vista a reparar
os danos produzidos no erá rio pú blico, é uma funçã o que compete de modo
31
Cfr. Lídio de Magalhã es, Controlo da Contratação Pública pelo Tribunal de Contas, Revista
do Tribunal de Contas, n.º 46, Jul-Dez, 2006, pp. 210-211.
32
Cfr. Joã o Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1983, apud
Joã o Franco do Carmo, Contribuição para o Estudo da Responsabilidade Financeira, cit., p. 187.
33
Cfr. Antó nio Luciano de Sousa Franco, Renovar e Continuar, Revista do Tribunal de Contas
n.º 23, 1995, p. 340.
34
Cfr. Mó nica Fonseca Almeida Santos, Os Tribunais de Contas e a Transparência como Meios
de Combate à Corrupção, Revista TCEMG, Abr/Maio/Jun,
51 2014, p. 36.
exclusivo a estes ó rgã os de controlo externo. E, se assim é, nã o se vê porque razã o
essa missã o nã o é, cabalmente, cumprida, sem apelo nem agravo, uma vez que os
agentes alvo demonstrem, comprovadamente, nã o terem respeitado o voto de
confiança neles depositado para gerirem, de modo eficiente, os recursos pú blicos,
visando a satisfaçã o de necessidades colectivas.
A convicçã o de que o maior rigor no sancionamento de quem prevarica e
viola o interesse pú blico é um modo eficaz de consolidar a disciplina financeira, no
domínio da contrataçã o pú blica, em qualquer das fases em que ela se evidencie,
deve guiar a actuaçã o dos tribunais de contas, cuja estrutura e estatuto
constitucional lhes conferem o poder e a força necessá rios para conduzir à
alteraçã o do “comportamento de todos quantos gerem dinheiros pú blicos”35.
Só agindo desse modo, os tribunais de contas se erigem em verdadeiros
aplicadores e defensores da justiça financeira (material), colocados que estã o ao
serviço da dignidade humana, na base da qual se estrutura o Estado Democrá tico
de Direito.
Importa referir, também, que aos tribunais de contas nã o deve estar, apenas,
reservado o tipo de controlo nos moldes tradicionais, justificando-se que se
pronunciem quanto à correcção económico-financeira das opções políticas, de modo
a que deixem de ser “cavaleiros sem espada”, por nã o lhes ser reconhecido poder
cassatório legitimador da anulação de acros oriundos do poder executivo ou do
poder legislativo36. (os itálicos/azul são citações?)

6. A ACÇÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS ANGOLANO VISANDO INCUTIR


E PRESERVAR AS BOAS PRÁTICAS NO DOMÍNIO DA CONTRATAÇÃO

35
Cfr. Lia Olema F. V. J. Correia, O Dever de Boa Gestão e a Responsabilidade Financeira,
Estudos Jurídicos e Econó micos em Homenagem ao Prof. Doutor Antó nio de Sousa Franco, Volume
II, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2006, p. 812. Esta afirmaçã o
da autora é feita em alusã o ao papel do controlo financeiro jurisdicional, cuja funçã o, como defende,
é “reconstituir o Erá rio Pú blico lesado e restaurar a legalidade infringida pelo seu efeito de
prevençã o geral (...)”.
36
Cfr. José Joaquim Gomes Canotilho, Tribunal de Contas como Instância Dinamizadora do
Princípio Republicano, Revista do Tribunal de Contas
52 n.º 49, Jan-Jun, 2008, p. 37.
PÚBLICA

Falar das contribuiçõ es do Tribunal de Contas, no domínio da contrataçã o


pú blica, visando que ela se reja por boas prá ticas, nã o pode deixar de remeter-nos
para o trabalho que tem sido desenvolvido por este Tribunal na á rea da
fiscalizaçã o preventiva, através da concessã o ou recusa do visto. Têm sido vá rias as
decisõ es de visto sobre contratos pú blicos com recomendaçõ es, como vá rias têm
sido as decisõ es de recusa de visto.
Este modo de fiscalizaçã o é conferido ao Tribunal de Contas, pela sua lei
orgâ nica – artigo 8.º da Lei n.º 13/10, de 9 de Julho.
Nos vá rios anos de exercício, este ó rgã o de controlo externo da actividade
financeira pú blica tem-se debatido com incompreensõ es, que partem de quem,
estando no exercício de funçõ es pú blicas, julga estar imune ao tã o necessá rio
controlo técnico, para que se possa avaliar até que ponto a gestã o pú blica respeita
a legalidade, a economia, a eficiência e a eficá cia, assim como outros princípios que
presidem a uma boa administraçã o da coisa pú blica.
Numa fase inicial, que do nosso ponto de vista durou bastantes anos, o
Tribunal actuou de forma pedagó gica, visando, pacientemente, a absorçã o, por
parte dos gestores da coisa pú blica, dos princípios que permitem aferir a
regularidade da sua gestã o.
No â mbito desta visã o pedagó gica, o Tribunal de Contas, em sede de
fiscalizaçã o prévia, emitiu o visto com recomendaçõ es, sempre na expectativa de
que no futuro os erros, irregularidades ou ilegalidades praticadas fossem evitados,
conduzindo, assim, à sua reduçã o.
Mas, mesmo em sede de fiscalizaçã o sucessiva e em processos de julgamento
para apuramento de responsabilidades financeiras, o Tribunal ou nã o condenou,
ou condenou de forma leve, como forma de dar uma oportunidade ao gestor
prevaricador de evitar futuras irregularidades.
Ao que se julga, este modo de proceder tende a mudar, porquanto a prá tica
de recomendaçõ es e condenaçõ es, de forma branda, têm surtido efeito no sentido
do agravamento nas má s prá ticas. Ou seja, os gestores olham para a ténue
condenaçã o dos seus iguais e acabam por julgar-se impunes e imaculados, pelo seu

53
agir, que é, afinal, concordante com a prá tica comummente aceite e tã o raramente
contestada.
É em sede de empreitadas de obras pú blicas que o Tribunal de Contas tem
incidido o seu poder de fiscalizaçã o, mas, em boa verdade se diga, ainda se
evidencia muito ténue para o que decorre no sector pú blico, em matéria deste tipo
de contratos. E quem se refere a empreitadas rapidamente se recorda que a grande
incidência de má s prá ticas decorre na rubrica de “trabalhos a mais”. É aqui que se
factura (ou sobrefactura) e cuja detecçã o, feita com alguma dificuldade, tem de ser
muito minuciosa.
Vem a propó sito do que temos vindo a invocar exemplos que nos sã o dados
por Amá vel Raposo, a propó sito da experiência por que tem passado a
Administraçã o pú blica portuguesa, em matéria de disciplina financeira, sob o olhar
do Tribunal de Contas português, e uma vez que as semelhanças com a realidade
em Angola sã o imensas, achá mos pertinente a sua citaçã o: “ Ao nível da
organizaçã o e funcionamento do Estado (sublinhado nosso??) há a proliferaçã o
desmedida de Serviços, de Institutos, de empresas municipais, de fundaçõ es, de
comissõ es, de grupos de trabalho sem avaliaçã o recognoscível da sua necessidade
ou utilidade social, sem adequado estudo da viabilidade econó mica, técnica e
financeira, sem consideraçã o dos encargos permanentes que daí advêm para os
contribuintes, sem suficiente controlo de quem cria ou tutela tais entidades. [...]
mais do que a racionalidade gestioná ria, o que à s vezes parece imperar é a ló gica
dos cargos, das acumulaçõ es e dos benefícios. Ao nível das receitas (sublinhado
nosso??), há a incapacidade de as liquidar e cobrar, o que se aplica aos impostos,
como a taxas, tarifas, coimas e multas. O efeito que isto tem no cumprimento
voluntá rio e cívico das leis é devastador, com consequências no alastrar da fraude
e da fuga aos impostos e a outras obrigaçõ es de cará cter social e com insuportá vel
quebra de receitas. Quebra que vã o ter de cobrir os contribuintes cumpridores
com sucessivos agravamentos da sua carga fiscal. Ao nível das despesas
(sublinhado nosso??), há os milhõ es de encargos sem orçamento, fazendo letra
morte do sacrossanto princípio do equilíbrio orçamental, há as contrataçõ es
indevidas e pessoal, há os compromissos no presente sem acautelar o peso deles
no futuro e as correspondentes receitas, há as temerá rias engenharias financeiras,
54
há as derrapagens de importantes contratos em regime de project finance e os
questioná veis equilíbrios contratuais, há os apoios, benefícios fiscais e sociais,
subsídios e transferências sem cabal verificaçã o dos seus pressupostos, alheios à s
atribuiçõ es das entidades que os concedem, sem rigorosa definiçã o dos fins a que
se destinam ou sem adequado controlo dos fins para que sã o utilizados. Ao nível
das empreitadas (sublinhado nosso??), há os erros e omissõ es no seu lançamento,
há os trabalhos a mais exorbitantes ou como mero expediente para contornar a
exigência de concurso, há o deficiente controlo do cumprimento dos cadernos de
encargos, há a má execuçã o de obras sem responsabilizaçã o dos empreiteiros. Ao
nível das remuneraçõ es (sublinhado nosso??), a indisciplina grassa em especial nas
empresas e institutos, onde há acumulaçõ es remunerató rias injustificadas,
suplementos, gratificaçõ es ou despesas de representaçõ es indevidas, prémios de
gestã o desligados da obtençã o de resultados ou com ela nã o condizentes. Como há
o uso abusivo ou sem suficiente controlo de cartõ es de crédito ou a aquisiçã o de
automó veis sumptuá rios para administradores ou dirigentes que, apó s 3 a 4 anos
de uso, lhes sã o atribuídos por valores residuais irrisó rios, benefícios em geral
suportados em meras normas internas dos gestores que deles vã o usufruir.
E como pano de fundo perturbador, a falta de rigor e fiabilidade da
contabilidade pú blica, nas receitas e nas despesas. Sã o diferenças de milhõ es que
estã o em jogo, conforme o Tribunal de Contas vem alertando em sucessivos
pareceres anuais sobre a Conta Geral do Estado, sem que nem os Parlamentos, nem
os Governos, nem os serviços se mobilizem para rectificar a situaçã o, restituindo
credibilidade a instrumento que é indispensá vel para a aná lise e evoluçã o da
situaçã o financeira do Estado.
Nisto como no mais, o que impressiona nã o é tanto a existência de erros e
deficiências, mas a facilidade com que se reproduzem, a indiferença com que todos
parecem aceitá -los ou a incapacidade de os corrigir”37.
Ainda um outro factor que parece condicionar o papel de ó rgã o aplicador da
disciplina financeira. Julgamos que se trata de uma grande dificuldade com que
este Tribunal se debate, e que parte do pró prio â mbito dos seus poderes de
materializar as decisõ es que profere.
37
Cfr. Amá vel Raposo, O Controlo dos Dinheiros Públicos numa Administração em Mudança,
Revista do Tribunal de Contas n.º 42, Jul-Dez, 2003,
55 pp. 67-68.
Diz a sua lei orgâ nica que, ao apurar responsabilidades financeiras, as suas
decisõ es constituem títulos executivos, o que quer dizer que este ó rgã o tem de
remeter as suas decisõ es a outros tribunais que cuidarã o da sua execuçã o.
Ora, como bem se compreende e, em face da morosidade dos tribunais
comuns no julgamento das inú meras acçõ es que lhe sã o remetidas, nã o havendo
qualquer prioridade na execuçã o das decisõ es proferidas pelo Tribunal de Contas,
tudo vai para o “saco comum”, ficando o Estado e os cidadã os contribuintes
(principalmente estes) a ver relegadas para as calendas gregas, o direito de serem
ressarcidos das ilegalidades e irregularidades cometidas, e até mesmo de ver os
autores de tais actos a serem punidos criminal e exemplarmente, como seria
devido.
Denota-se, por aqui, que com esta fragilidade, por nã o encontrarmos outro
adjectivo que cerceie, de modo tã o gritante um poder que caberia a este Tribunal
de controlo externo exercer, per se, sem qualquer situaçã o de dependência que só
constrange e enfraquece o seu poder de controlo, dificilmente conseguirá
implantar-se a necessá ria e ingente disciplina financeira, por força de um efeito
profilá ctico das decisõ es deste tribunal, já que o mecanismo para a sua
materializaçã o aparece como um sinal contrá rio.
Esta é uma das razõ es porque o Tribunal de Contas aparece enfraquecido na
pujança dos seus poderes de ó rgã o julgador e de apuramento de responsabilidades
financeiras. A sua decretaçã o nã o é sinó nimo de cumprimento imediato e efectivo,
por parte dos infractores condenados, tudo ficando em lista de espera para a
competente execuçã o de sentença, numa sala do cível e do administrativo de um
tribunal provincial.
De futuro, importará mudar este quadro, se se quiser, em face do panorama
geral de deslealdade para com a coisa pú blica e num sentido mais alargado e
extremado de falta de sentimento patrió tico, colocando na mã o do Tribunal de
Contas a faculdade de condenar e fazer cumprir em definitivo as decisõ es que
profere, chegando ao ponto de ter autonomia para decretar a perda de mandato
dos infractores, sem qualquer hipó tese de reconduçã o na vida pú blica, enquanto
durar a correspondente interdiçã o.
Bem vistas as coisas, é isso que se espera do Tribunal de Contas: que controle
56
de modo apropriado e condene de forma justa os que se recusam a cumprir a lei,
que a todos se aplica, sem distinçã o de qualquer natureza ou privilégio, quando
estejam obrigados ao dever de bem gerir o dinheiro público no melhor interesse de
todos os cidadãos38. Citaçã o?
Finalmente, nã o se pode deixar de relevar a importante missã o do Tribunal
de Contas, no domínio da emissã o do parecer e do relató rio sobre a Conta Geral do
Estado, que, embora possa surgir como mais preponderante na relaçã o entre este
ó rgã o e o Parlamento, nã o tem deixado de incidir sobre aspectos que falham na
á rea da contrataçã o pú blica, vista e inserida na fase da sua execuçã o.
Paradigmá tico da situaçã o a que nos reportamos é o relató rio e parecer sobre
a Conta Geral do Estado referente ao ano de 2013, emitido em 22 de Janeiro de
2015, em cuja rubrica destinada a recomendaçõ es se faz saber a necessidade de,
entre outras: “34. compatibilizar, nos termos da legislaçã o em vigor, a execuçã o
financeira das empreitadas com a respectiva execuçã o física; 35. exigir das UO o
envio da informaçã o actualizada sobre a execuçã o física e financeira do PIP, a fim
de se evitar a discrepâ ncia de dados, de modo que o MPDT possa efectuar melhor
acompanhamento dos desembolsos efectuados pelas mesmas; 37. cumprir os
prazos contratualmente estabelecidos para execuçã o das empreitadas e
responsabilizar as empresas construtoras e fiscalizadoras pela má qualidade das
obras; 38. evitar a sobrevalorizaçã o dos preços e pagamentos acima do valor
contratual; evitar a reconduçã o de projectos já concluídos, bem como pagamento
de obras inexistentes; 39. evitar a realizaçã o de obras nã o inscritas no PIP ou a
criaçã o de programas, projectos ou actividades no decurso da execuçã o do
orçamento; 41. cumprir com os dispositivos dos diplomas legais em vigor no que
tange ao envio dos contratos para fiscalizaçã o prévia do TC; 43. zelar pela
conservaçã o e manutençã o dos bens pú blicos; 44. evitar fraccionamento de
despesas na contrataçã o de empreitadas; 45. observar a legislaçã o em vigor
referente a celebraçã o de contratos em moeda estrangeira”39

38
Cfr. José de Castro Mira Mendes, Eleonora Pais de Almeida e Paulo Nogueira da Costa,
Auditoria Externa das Finanças Públicas e Controlo Político, Revista do Tribunal de Contas n.º 45,
Jan-Jun, 2006, p. 83.
39
Relató rio e Parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2013, Anexo I, Repú blica de Angola,
Tribunal de Contas. 57
CONCLUSÕES

Fazendo uma síntese conclusiva de quanto se disse:

1. Coloca-se uma nova concepçã o de Administraçã o Pú blica, em Angola, regida


por princípios que a adequam aos ditames do Estado de Direito Democrá tico;

2. Trata-se, porém, de uma concepçã o formal, visto que, na prá tica, a


Administraçã o Pú blica angolana continua a assumir uma postura de
administraçã o do tipo tradicional;

3. A contrataçã o pú blica, sendo domínio que movimenta volumes incalculá veis


de dinheiros pú blicos, carece do controlo sistemá tico do ó rgã o de fiscalizaçã o
externo, que tem o dever de zelar pela legalidade dos actos dos gestores
pú blicos, mas também da avaliaçã o de mérito das políticas pú blicas;

4. O dever de bem gerir os recursos pú blicos confere a legitimidade necessá ria


para que os tribunais de contas actuem em defesa dos cidadã os contra as má s
prá ticas de gestã o;

5. A fraude e a corrupçã o na gestã o pú blica merecem da parte dos Tribunais de


Contas uma resposta exemplar relativamente aos agentes que as praticam;

6. Sã o muitos os erros, as irregularidades e ilegalidades constatadas na


contrataçã o pú blica, pela acçã o de fiscalizaçã o dos Tribunais de Contas;

7. É tempo de abandonar a postura da complacência para com os gestores


pú blicos que prevaricam, causando danos ao erá rio pú blico, sob pena de se
gerar um ambiente de impunidade financeira generalizada, tornando-o um
factor de hereditariedade negativo;

8. O Tribunal de Contas angolano, assumindo o papel que justifica a sua


existência, nã o deve baixar os braços na luta contra as má s prá ticas, que
conduzam à ilicitude financeira, e devendo usar todos os mecanismos ao seu
alcance para o apuramento e efectivaçã o das responsabilidades financeiras;

58
9. As decisõ es do Tribunal de Contas angolano sobre a efectivaçã o de
responsabilidades financeiras deviam ser, imediatamente, executadas pelo
pró prio Tribunal, ao invés de constituírem título executivo, de modo a ser
exercido o efeito profilá ctico exemplar, num ambiente em que a
transparência, a ética e moralidade pú blicas têm uma baixa cotaçã o;

10. O relató rio e parecer emitido pelo Tribunal de Contas, sobre a Conta Geral do
Estado, deve conter a apreciaçã o fidedigna dos actos irregulares ocorridos
durante a gestã o financeira, em cada exercício, elucidando os representantes
do povo para a necessidade de que tais irregularidades sejam corrigidas.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

Amá vel Raposo, O Controlo dos Dinheiros Públicos numa Administração em


Mudança, Revista do Tribunal de Contas n.º 40, Jul-Dez, 2003.
Antó nio Luciano de Sousa Franco, Renovar e Continuar, Revista do Tribunal de
Contas n.º 23, 1995.
Elisa Rangel Nunes – Orçamento do Estado: Contribuições para a Transparência
Orçamental em Angola, Luanda, 2011.
Helena Maria Mateus de Vasconcelos Abreu Lopes – A Reforma da Administração
Pública e o Regime da Contratação Pública, Revista do Tribunal de Contas n.º
44, Jul-Dez, 2005.
Joã o Franco do Carmo, Contribuição para o Estudo da Responsabilidade Financeira,
Revista do Tribunal de Contas n.º 23, Jan/Set-1995.
José de Castro Mira Mendes, Eleonora Pais de Almeida e Paulo Nogueira da Costa,
Auditoria Externa das Finanças Públicas e Controlo Político, Revista do
Tribunal de Contas n.º 45, Jan-Jun, 2006.
José F. F. Tavares, Sistema Nacional de Controlo: controlo interno e controlo externo,
in Revista do Tribunal de Contas n.º 26, Jul-Dez, 1996.
José Joaquim Gomes Canotilho, Tribunal de Contas como Instância Dinamizadora do
Princípio Republicano, Revista do Tribunal de Contas n.º 49, Jan-Jun, 2008.
Lia Olema F. V. J. Correia, O Dever de Boa Gestão e a Responsabilidade Financeira,
59
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Antó nio de Sousa Franco, Volume II,
ediçã o da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora,
2006.
Lídio de Magalhã es, O Controlo da Contratação Pública pelo Tribunal de Contas,
Revista do Tribunal de Contas n.º 46, Jul-Dez, 2006.
Paulo Nogueira da Costa, O Tribunal de Contas e a Boa Governança. Contributo para
uma Reforma do Controlo Financeiro Externo em Portugal, https://estudo
geral.sib.uc.pt, acedido em 17.09.2014.

LEGISLAÇÃO CONSULTADA

Constituiçã o da Repú blica de Angola


Lei n.º 13/10, de 9 de Julho
Lei n.º 3/2014, de 10 de Fevereiro

OUTRAS FONTES DE CONSULTA

Relató rio e parecer sobre a Conta Geral do Estado de 2013.

60
A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA40

VIRGÍLIO DE FONTES PEREIRA41

Sumário:

Introduçã o

I – A democracia como ponto de partida

II – A democracia participativa como processo de consenso

III – Aproximaçã o aos pressupostos de autonomia da democracia participativa

IV – Os limites da participaçã o

Consideraçõ es finais.

40
O presente estudo corresponde, no essencial, ao Relató rio apresentado na cadeira de
Ciência Política do Curso de Aperfeiçoamento conducente ao Mestrado em Ciências Jurídico-
Políticas, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Outubro de 1994, sob orientaçã o
do Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa.
Comparativamente ao trabalho original, apresentado há 25 anos, o presente texto acolhe,
apenas, correcçõ es de forma e um particular ajuste da sua sistematizaçã o ao formato técnico da
obra em que ora se insere. A publicaçã o deste estudo é uma justa homenagem ao principal
responsá vel, à época, pela minha incursã o e paixã o pelo Direito Administrativo e, em geral, pelo
Direito Pú blico: o Professor Antó nio Pitra Neto.
41
Mestre em Direito e Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto. 61
INTRODUÇÃO

As referências doutriná rias à democracia participativa sã o, normalmente,


caracterizadas com alguma falta de ostensividade.
Estamos perante um tema que apresenta vá rios rostos, o que dificulta,
sobremaneira, o seu tratamento sistematizado e uma maior concentraçã o dos
cientistas políticos para aqueles domínios, que parecem ser os pontos fortes do
mesmo.
A democracia participativa é um tema em moda que ganha uma importâ ncia
cada vez mais elevada, face ao acentuado agravamento da crise do esquema de
democracia representativa. Na verdade, essa crise desperta as potencialidades da
democracia participativa nas suas diversas dimensõ es. Ora, a fluidez que parece
caracterizar esta figura obriga a que se convoquem, para o seu estudo, vá rios
outros temas, eles pró prios exaustiva ou insuficientemente tratados pela doutrina,
conforme os casos.
Há , pois, vá rias dimensõ es de aná lise da democracia participativa.
O propó sito do presente estudo visa, fundamentalmente, abordar a
democracia participativa como um processo conducente à obtençã o de consensos,
verificando, ao mesmo tempo, os pressupostos da sua autonomia.
O problema está em saber se a participaçã o de entidades portadoras de
interesses, além de carrearem um conjunto de informaçõ es para o interior das
instituiçõ es do poder, para que estas melhor decidam, pode garantir a produçã o de
decisõ es consensuais e se, a partir desse dado demonstrativo, pode avaliar a
autonomia da figura da democracia participativa.
Por isso, ao contrá rio do que, porventura, seria de esperar, optei por um
esquema de abordagem em que se partirá da aná lise do modelo democrá tico para
a verificaçã o do consenso, como o ponto de chegada da democracia participativa e,
finalmente, abordar a autonomia desta, mediante a catalogaçã o de alguns dos seus
mais importantes pressupostos.
Entretanto, embora em Angola vigore uma Constituiçã o que consagra o
modelo da democracia ocidental, a situaçã o política do meu país – donde releva a
menoridade da democracia e das suas instituiçõ es – e a ausência quase absoluta de
62
doutrina a florescer, entre outras razõ es, nã o permitem, para já , o tratamento deste
tema a partir da realidade angolana, como era obviamente meu desejo inicial.
Assim, a mençã o à realidade angolana será "propositadamente acidental",
embora, por razõ es afectivas, a tenhamos como referencial prospectivo na aná lise.
Nã o posso deixar de prevenir, desde logo, para as dificuldades que assumo
poder passar, face ao desconhecimento de elementos de natureza empírica que
permitam, na base da doutrina ocidental, a abordar com a maior profundidade
possível a democracia participativa, com todo o seu terreno acidentado.

CAPÍTULO I – A DEMOCRACIA COMO PONTO DE PARTIDA

1.1. O modelo de democracia consensual como questão basilar

Parece ser consensual a ideia de que uma abordagem da fó rmula – teoria ou


princípio (como se preferir) – da democracia participativa nã o procede com a
devida liquidez, sem, para o efeito, inflectir-se inicialmente com vista a uma
determinaçã o da ideia de democracia que se tem subjacente para uma tal
abordagem. Contudo, nã o se pretende, aqui, proceder a um estudo detalhado da
noçã o de democracia, nã o sendo este, de facto, o propó sito do presente trabalho.
É evidente que afasto qualquer visã o generalista da democracia, justamente
para evitar, por um lado, resvalar para a tã o corrente desfiguraçã o conceitual do
vocá bulo, resultado do fascínio que a palavra irradia sobre os povos (sobretudo, os
políticos) e, por outro lado, porque entendo que, enquanto envolve "uma forma de
vida"42, a democracia necessita de uma abordagem ínsita a um modelo concreto de
sociedade ou sistema político.
Dizem os cientistas políticos que a democracia tem a sua pró pria concepçã o
do mundo, uma visã o total do universo.
O que nos interessa, aqui é aquela concepçã o do mundo que tem o homem
como fundamento e destinatá rio da actividade estatal. Daí aparecer, como pedra
angular da democracia, a ideia de liberdade, considerada como elemento co-
extensivo da natureza humana, operando em sintonia com a ideia de igualdade.

42
A expressã o é de Carl Friedrich, “La democracia como forma política y como forma de
vida”. Trad. de C. Zabal Schmidt – Volz. Madrid, Editorial
63 Tecnos S.A., 1990, p. 35.
Esta concepçã o de democracia é cara aos modernos Estados (na sua
consagraçã o e prá ticas constitucionais) e doutrinas ocidentais.
Precisando, direi que a ideia de democracia que nos anima é aquela que se
pode tomar do Estado de Direito Social (e Democrá tico). Nã o vamos penetrar aqui
na querela doutriná ria sobre a profusã o de adjectivaçõ es do Estado (ocidental)
actual, nomeadamente sobre as expressõ es “Estado de Direito Social” e “Estado de
Direito Democrá tico”. Quaisquer que sejam os argumentos para catalogar os traços
fundamentais de um e de outro, entendo que o Estado actual cumpre, grosso modo,
as funçõ es que, eventualmente, se atribuam a cada uma daquelas variantes.
O Estado moderno deve, quanto a mim, ser caracterizado pela assunçã o
concomitante de uma trilogia dimensional que se pode mobilizar num estudo –
algo esquemá tico, mas seguramente elucidativo – de Baptista Machado, intitulado
"A Hipó tese Neocorporativa"43. Neste artigo, o autor propõ e quatro fases
caracterizadoras da evoluçã o do Estado, a saber: 1.º o Estado de Direito Formal –
no qual é patente o divó rcio entre Estado e Sociedade; 2.º o Estado de Direito da
"perequaçã o social", consubstanciado na "erradicaçã o das situaçõ es de
iliberalidade e compensaçã o das desvantagens relativas, em matéria de poder
negocial e de oportunidades de acesso aos bens culturais e econó micos, com vista a
criar uma bá sica igualdade de oportunidades para todos os cidadã os"; 3.º o Estado
Social e de Bem-Estar que assume as "novas responsabilidades" de regular e dirigir
o processo econó mico-social global e a repartiçã o do produto social; 4.º a fase do
"regresso do Estado à comunicaçã o e à negociaçã o sociais", na qual o Estado exerce
"um governo por discussã o, negociaçã o e compromisso", motivando a criaçã o de
"uma administraçã o pú blica nã o estadual ou social".
O que interessa, nesta classificaçã o, sã o as três ú ltimas dimensõ es que
corporizam, em simultâ neo – repito –, o Estado moderno.
A designaçã o de Estado de Direito Social, que acolhemos, nã o é redutível à 3.ª
fase da classificaçã o aludida. Ela vai para lá desta, cobrindo, evidentemente, a
vertente democrá tica e de comunicaçã o-negociaçã o que lhe está subjaz
Ora, a ideia de democracia que está já a desenhar-se, e que, afinal, constitui o
nosso desiderato, nã o pode assentar numa qualquer visã o ou teoria do modelo
democrá tico, ainda que respeitante ao Estado do tipo ocidental.
43
Publicado na Revista de Direito e de Estudos
64 Sociais, ano XIX Janeiro-Março, n.º 1, pp. 3-19.
O modelo democrá tico avançado, por exemplo, por Maurice Duverger44, que

"compreende três elementos essenciais: a designaçã o dos governantes


através de eleiçõ es por sufrá gio universal, a existência de um
parlamento com amplos poderes e uma hierarquia das normas jurídicas
que assegura um controlo das autoridades pú blicas por juízes
independentes",

nã o serve, exactamente, ao escopo do presente estudo. Esta construçã o, à


partida, deixa de fora, pelo menos do ponto de vista doutriná rio, a dimensã o
participativa dos cidadã os no exercício da actividade estatal, reduzindo-se o
modelo democrá tico à eleiçã o, à actividade parlamentar – enquanto "substrato
necessá rio e ú nico das decisõ es justas" – e à subordinaçã o do executivo ao
princípio da legalidade e ao controlo do poder judicial.
Nã o se descura, porém, que o autor se refere, no prolongamento da sua
construçã o, à existência de processos de "representaçõ es particulares”45 e de
democracia semi-directa46. Mas nã o é difícil de situar na histó ria este tipo de
construçã o.
Nos tempos que correm, a democracia deve ser visualizada como um
processo dinâ mico e claramente actuante, que garanta, ao cidadã o, sentir o pulsar
da acçã o dos governantes no dia-a-dia, controlar essa acçã o e participar dela,
assumindo a sua plena cidadania.
Neste sentido, parece indicar a doutrina de Jorge Miranda 47, para a qual a
democracia deve ser entendida como "a forma política em que o poder é atribuído
ao povo e em que é exercido de harmonia com a vontade expressa pelo conjunto
dos cidadã os titulares de direitos políticos".
Do pensamento desse ilustre Professor podem, ainda, retirar-se mais duas
ideias fundamentais:
44
Cfr. Mauruce Duverger, “Os Grandes Sistemas Políticos”, Almedina, Coimbra, 1985, p. 57.
45
Idem pp. 65-66. Para o autor, estes processos sã o assegurados pelos pró prios parlamentos.
Claro está que as construçõ es jurídicas e a prá tica política hodiernas apontam para um sentido
diferente.
46
Idem, pp. 67-69.
47
Cfr. Jorge Miranda “Ciência Política, Formas
65 de Governo”, Lisboa, 1992, p. 141.
 A primeira, a de que o exercício do poder, cuja titularidade pertence ao
povo, "deve ser actual, e nã o potencial";
 A segunda, a de que a democracia deve assentar em dois valores políticos
fundamentais, sem os quais ela perde a sua razã o de ser, a saber: a
liberdade e a igualdade48.
Aos supra referidos valores – a liberdade e a igualdade – entendo que se
devem juntar alguns princípios que, na prá tica, resultam directa ou indirectamente
e concorrem, em simultâ neo, para a efectiva assunçã o daqueles valores supremos,
quais sejam: os princípios da justiça, do pluralismo e da solidariedade49.
Chegados aqui, podemos concluir que sã o estes traços enformadores do
modelo ou princípio democrá tico que dã o conteú do à "forma de vida" nos Estados
democrá ticos do tipo ocidental. Os elementos que aqui foram convocados – os
atinentes ao pensamento de Jorge Miranda e os princípios que elegemos –
permitem enquadrar o princípio democrá tico como um princípio complexo que vai
de encontro à s exigências que a complexidade da vida política, econó mica, social,
cultural, ideoló gica, etc., impõ e, hoje por hoje, ao comportamento dos poderes
pú blicos e da sociedade civil. Devemos tomar como certo que a ideia de
"actualidade" do exercício do poder deve ser entendida como um apelo à
participaçã o permanente e nã o episó dica (de 4 em 4 ou de 5 em 5 anos) dos
cidadã os na vida pú blica.
A democracia afirma-se, desse modo, na sua dupla dimensã o, a saber: a
dimensã o representativa e a dimensã o participativa. E este cará cter envolvente da
só pode ser, ele pró prio, o sustentador de um modelo de democracia consensual50.
Toda a nossa aná lise será orientada em torno desta ideia de democracia.
Contudo, é necessá rio proceder a uma elucidaçã o da expressã o para
demarcá -la de certas posiçõ es doutriná rias. Há autores que, à luz dos sistemas
48
Idem, pp. 198-200. Note-se que Maurice Duverger, op. cit., p. 51 e p. 200 ss, nã o deixa de
dar relevâ ncia a esses dois valores a partir do modelo democrá tico liberal.
49
Em sentido pró ximo, V. Manuel Aragon “ La eficá cia jurídica del principio democrá tico” in
Revista Españ ola de Derecho Constitucional, Añ o 8, n.º 24, p. 28 e Barbosa de Melo “Introduçã o à s
formas de concertaçã o social” in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol
LIX, 1983, p. 106 ss.
50
Nã o confundir com os conceitos de “consociational democracy”, “konkordanz demokratie”
ou “segmented pluralismo”. 66
eleitorais, entendem que é possível optar-se entre um modelo competitivo, pela via
do sistema maioritá rio e, por isso, assente no bipartidarismo, outros num modelo
consensual da democracia gerado pelo sistema proporcional e, por sua vez, assente
no pluralismo partidá rio51.
Está bem de ver o vício desta tese, esteada no modelo divergista, cuja
linearidade a experiência prá tica já se encarregou de corrigir.
Consenso e competitividade nã o sã o modelos que se auto-excluem em
democracia, mas antes se complementam. A competitividade é uma regra
municiadora da pró pria democracia. Situada quer no interior do chamado círculo
central do poder, quer no interior do círculo periférico (ou segundo círculo52), a
competitividade nã o deve (nem pode) extravasar estes "territó rios", de forma a
nã o perturbar o ideal de consenso que deve pautar a relaçã o dos "dois círculos",
em sede da racionalizaçã o dos conflitos presentes no sistema político em geral.
O modelo de democracia consensual é, pois, aquele que garante uma
participaçã o real dos cidadã os na vida pú blica, através de mecanismos diversos
dos da representaçã o política e com vista à defesa dos seus interesses individuais
ou de grupo, junto dos governantes.
Este modelo assenta numa disposiçã o generalizada de busca de consenso em
relaçã o à s questõ es essenciais do Estado de Direito Social e à s decisõ es
politicamente mais relevantes.
Ao fazer-se, nestes termos, a defesa da vertente participativa da democracia,
parece estar-se a condenar, a "matar" aqui o nosso estudo. Mas, tal como já se
disse, na doutrina que inspira a nossa aná lise, nã o é totalmente pacífica a
construçã o da teoria da democracia participativa, como uma dimensã o do
princípio democrá tico.
O problema está em saber se, sendo irrefragá vel a ideia de que a democracia
representativa é o modo, por excelência, de realizaçã o do princípio democrá tico,
através do mecanismo da eleiçã o política, haverá espaço para afirmaçã o efectiva da

51
Cfr. Ricardo Leite Pinto, “Democracia consensual – Algumas notas sobre o sistema eleitoral,
o sistema partidá rio e o sistema de governo” in Revista da Ordem de Advogados, Ano 44, Lisboa, pp.
273-75.
52
Sobre estas expressõ es, V. José Má rio de Almeida “Grupos de Interesses e Representaçã o
Política”, in Revista Jurídica. N.º 8 Out/Dez, 1986,67
p.196 ss.
democracia participativa, enquanto conceito autó nomo, enquanto prá tica política
autó noma e relevante para a conformaçã o das decisõ es políticas. As interrogaçõ es
que se levantam sã o, entre outras (e em geral), as seguintes: Qual a génese da
democracia participativa? Ela nasce a partir da pró pria representaçã o política ou
fora dela? Qual a relaçã o que existe entre as duas? Será de complementaridade ou
existe plena autonomia? Havendo autonomia, poder-se-á falar em sobreposiçã o?
Qual a funçã o principal/Quais as funçõ es que a democracia participativa assume,
no quadro da realizaçã o do princípio democrá tico?
Ao longo deste trabalho, procuraremos dar resposta a algumas destas
questõ es, sendo que se reafirma nã o poder ser pacífica, fá cil e completa a
abordagem de uma expressã o tida, por alguns, como confusa e ambígua.
Em meu entender, o caminho pode começar a desbravar-se a partir de breves
consideraçõ es que se devem fazer sobre a democracia representativa, tentando a
partir dela – enquanto facto adquirido – reunir os dados que nos permitam
desenhar os contornos da democracia participativa, como elemento contributivo
da prá tica democrá tica no Estado de Direito Social, dentro do esquema aqui
reafirmado do modelo de democracia consensual.

1.2. A democracia Representativa53

Já se disse que a democracia representativa é a base do modelo democrá tico.


Ela assume-se como o sistema político em que os detentores do poder sã o eleitos
pelos cidadã os e, deste modo, considerados como seus representantes.
A eleiçã o aparece, assim, como o referencial bá sico da democracia
representativa, ou seja, o processo mediante o qual os cidadã os escolhem, entre
vá rios candidatos, aqueles que devem ser os seus representantes. Se isso pode ser
tido como um dado adquirido, já a questã o das regras, que devem orientar o
processo de eleiçã o, ainda nã o pode ser vista como pacífica em cada sociedade ou
sistema político. Tudo depende da concepçã o de democracia, em presença do grau

53
Obviamente nã o cabe aqui, nem é meu propó sito, proceder ao estudo deste tema em toda a
sua ampla dimensã o. Remeto para uma abordagem mais desenvolvida desta matéria, incluindo os
temas da eleiçã o, sistema eleitorais e partidá rios, para a obra de Jorge Miranda “Ciência Política…”,
cit., passim, cujo sentido de aná lise perfilho. No texto
68 tratarei apenas de referências tó picas.
de evoluçã o da sociedade a que se dirige, e, sobretudo, da cultura e postura
políticas das elites.
Tal como refere Nohlen Dieter:

As questões relativas aos sistemas eleitorais são, ao mesmo tempo,


questões de poder e questões em torno da concepção da sociedade e da
democracia: as posições que se adoptam no debate sobre o sistema
eleitoral derivam desta dualidade. Trata-se sempre de posições políticas
(inclusivamente quando se fundamentam ou se disfarçam
cientificamente).54

O que se pode dizer é que as regras do jogo eleitoral podem, à partida, ser
desvirtuadas em funçã o dos sistemas políticos melhor capitalizados no momento
do seu estabelecimento.
Sendo assim, e julgando admitir a ideia que a democracia se confunde com a
pró pria eleiçã o, aquela possibilidade – sempre potenciada – de privilegiar as
opçõ es políticas em desfavor dos aspectos técnico-jurídicos é motivo bastante
para, apesar da aceitaçã o generalizada do princípio da representaçã o política, se
evidenciar permanentemente a suspeiçã o em relaçã o aos sistemas eleitorais.
As opçõ es políticas vistas num sentido global sã o, em regra, veiculadas e
advogadas por partidos políticos.
A força dos argumentos políticos no debate à volta da representaçã o política
terá , por isso, justificado a consagraçã o generalizada do exclusivo, ou quase
exclusivo, partidá rio no exercício da representaçã o política global da colectividade.
Este facto produz a transformaçã o de um modelo de democracia "genuíno",
teorizado pelos cientistas políticos, entre outros, para um modelo de democracia
partidá ria que desemboca na figura do Estado de Partidos55.
Actualmente, os partidos políticos no Estado de Direito Social estã o cada vez
mais distanciados dos eleitores, o parlamento vem-se assumindo de forma gradual
54
Cfr. Nohlen Dieter, “Sistemas Eleitorais del mundo”, Madrid, Centro de Estudios
Constitucionales, 1981.
55
Sobre a constitucionalizaçã o dos partidos políticos, o Estado de Partidos e os contornos da
crise deste, consulte-se, especialmente, Marcelo Rebelo de Sousa “Os Partidos Políticos no Direito
Constitucional Português” Braga, 1983. 69
como instituiçã o de representaçã o da vontade dos cidadã os eleitores para se ir
paulatinamente moldando à realizaçã o do exclusivo interesse dos partidos ou,
mais propriamente, dos estados-maiores dos partidos políticos.
Com efeito, se os sistemas eleitorais estã o cada vez mais ao sabor das opçõ es
políticas, nã o sendo, por isso, neutros; se, pouco a pouco, as eleiçõ es se estã o a
tornar um processo de escolha real de candidatos pelos cidadã os (o monopó lio do
direito de apresentaçã o de candidaturas, pelos partidos políticos, evita a
diversidade de escolha e subverte a vontade de escolha do povo); se as eleiçõ es,
enquanto pedra angular da democracia, sã o cada vez mais geradoras de
parlamentos cuja actividade é totalmente (ou quase) desenvolvida a partir de
medidas, acordos, etc., (pré-)estabelecidos fora deles, ou seja, no interior dos
ó rgã os partidá rios ou, ainda, no aconchego das comissõ es parlamentares, isto
bastaria para dizer que os alicerces bá sicos da democracia representativa nã o
satisfazem, hoje, o projecto de uma forma de vida, em que subjaz à participaçã o
efectiva e actuante dos cidadã os na vida política.
Ressalta, de toda esta aná lise, um tó pico da maior importâ ncia, que se
reporta à relaçã o entre os sistemas eleitorais e o modelo democrá tico. Ao
constatar-se estes dados, que indiciam as insuficiências ou limites da democracia
representativa, está -se a pretender defender que é necessá rio maximizar a outra
dimensã o do princípio democrá tico, ou seja, a dimensã o participativa. Isto quer
dizer que estamos (continuamos) a pensar num modelo democrá tico que
congregue a participaçã o efectiva de todas as forças vivas portadoras dos mais
diversos interesses, que se situam à margem do esquema partidá rio, dada a perda
crescente do interesse do cidadã o eleitor pela discussã o de questõ es de natureza
geral (característica bá sica das matérias consagradas nos programas eleitorais dos
partidos) e a tendência crescente para a subalternizaçã o dos interesses sectoriais
ou grupais assumidos pela sociedade civil.
Ora, o modelo de democracia consensual que vimos defendendo, como
garantia da plena realizaçã o do ideal participativo, nã o é, nem pode ser, redutível à
democracia representativa. Aliá s, o consenso é algo que, em regra, nã o pode ser
obtido no esquema de representaçã o política onde vigora o princípio da maioria.

70
O modelo consensual adapta-se a qualquer sistema eleitoral. Ao invés, os
sistemas eleitorais é que, por si só , nã o podem, dadas as insuficiências patoló gicas
que se lhes reconhecem, estimular todas as virtudes do modelo consensual de
democracia.
Tudo isto resulta do definhamento, evidente, dos mecanismos de mediaçã o
entre os mandatá rios (cidadã os) e os mandatados (governantes). Este papel é (ou
devia ser) assumido pelos partidos, tendo em vista a participaçã o dos cidadã os.
Os sistemas eleitorais, na perspectiva de uma influência sobre o sistema
partidá rio no seu conjunto, nã o têm produzido soluçõ es que permitam a evoluçã o
positiva daquela mediaçã o. Existe uma resistência clara dos pró prios sistemas
partidá rios (sejam eles quais forem)56, corolá rio do apagamento cada vez mais
galopante dos partidos políticos como agentes de opiniã o, "tudo isto num percurso
em que da democracia se vai caminhando para a partidocracia; em que o sistema
de partidos degenera num sistema sem ideias, que conduz à despolitizaçã o das
populaçõ es, como condiçã o de sobrevivência das respectivas nomenclaturas."57
O poder do audiovisual, o tal poder que os meios de comunicaçã o social vã o,
cada vez mais, evidenciando na projecçã o das escolhas dos candidatos menos do
que uma causa – como à s vezes se advoga –, é mais um efeito do enfraquecimento
da capacidade de mediaçã o dos partidos políticos.
Estes continuam a (pretender) ter capacidade de controlo dos media, mas
esse escopo tem sido coarctado com a evoluçã o tecnoló gica, em resultado da qual a
escolha dos candidatos é cada vez mais mediatizada por meios técnicos dirigidos
à s massas, desvalorizando-se, assim, qualquer discurso político.

56
Nã o é verdade que apenas o bipartidarismo assente no sistema maioritá rio é o ú nico
gerador de estabilidade. Esta é uma visã o claramente simplista. Bastaria convocar, para aqui, a
experiência portuguesa das duas ú ltimas legislaturas, onde o sistema proporcional gerou uma
acentuada estabilidade. Vistas as coisas ao contrá rio, se o bipartidarismo também pode gerar
instabilidade (isto porque nã o está provado que, nesse sistema, os partidos se apresentem alguma
vez com a capacidade de representar todos os interesses diversificados da sociedade civil), entã o, a
necessidade de se racionalizar os conflitos e garantir, por via do consenso, a satisfaçã o dos
interesses individuais sectoriais ou grupais justifica o recurso ao modelo da democracia consensual,
por via da maximizaçã o da participaçã o dos cidadã os.
57
Cfr. Antó nio Lopes Cardoso “Os Sistemas71
Eleitorais”, Ediçõ es Salamandra, s.d., p. 131.
Sobre a democracia representativa, importa ainda referir um dado
importante que, aliá s, constitui uma das manifestaçõ es das suas insuficiências ou
limitaçõ es. É que a partir do modelo liberal nã o se descura a existência de algumas
fó rmulas (muito ténues, é certo) de intervençã o directa do povo ou a constataçã o
de que alguns elementos do poder político sã o investidos sem recurso a eleiçõ es.
Se, no primeiro caso – processos de democracia directa –, nã o se lhes deve
dar, actualmente, uma importâ ncia prá tica, por aí além, dadas as limitaçõ es da sua
exequibilidade nos grandes espaços territoriais, já no segundo – ausência de
recurso à eleiçã o para certos titulares do poder político – o problema assume
relevo capital.
Acontece que o crescente declínio dos parlamentos nas sociedades ocidentais
tem sido, desde há muito, acompanhado por um acentuado reforço do poder
executivo.
Esta perda de centralidade do parlamento tem como manifestaçã o particular
a crise da lei, na sua acepçã o de elemento fundador do Estado de Direito. A
iniciativa legislativa, no essencial, transferiu-se igualmente para o governo.
No fundo, o executivo acaba, paulatinamente, por se assumir como o centro
do poder real. As crescentes reivindicaçõ es da sociedade civil, consubstanciadas no
patenteamento de uma diversidade de interesses econó micos, sociais e políticos,
mexem com o Estado e exigem respostas céleres, justas e eficazes dos poderes
pú blicos, neste caso, do executivo.
A ordem social é, entã o, tida pelo Estado nã o já como mais um dado, mas
como algo de material que é preciso adequar, o que, obviamente, obriga à
configuraçã o de um novo quadro das relaçõ es Estado-Sociedade e Estado-
Indivíduo.
Face à s novas responsabilidades que lhe assistem, a Administraçã o, ou
melhor, o Estado-administraçã o, abre-se cada vez mais ao contacto com os
administrados. A Administraçã o aceita – ainda que bastas vezes nas entrelinhas – a
existência de um poder social reivindicador de audiências e de participaçã o.
Toda esta interacçã o nã o pode ser resolvida, como se vê, através dos
mecanismos da representaçã o política.

72
Quebra-se, deste modo, a tradicional concepçã o monista da política na sua
dupla dimensã o:
 Formal, porque consagradora de um ú nico detentor do poder, o
soberano;
 Substancial, porque consagradora da prossecuçã o de um ú nico fim, o
interesse pú blico58.
Está , assim, enferma a democracia representativa e o â mago dessa
enfermidade é, justamente, a eleiçã o59. Isso justifica o aumento do fluxo
abstencionista que ocorre em algumas democracias ocidentais, como é o caso
Portugal.
Os termos desta aná lise, assumidamente esquemá tica, permitem-nos
concordar, a priori, com a ideia de que, mais do que a simples reforma dos
mecanismos de delegaçã o dos poderes, que nã o é o remédio para os malefícios da
democracia, é imperiosa a assunçã o de instrumentos de participaçã o efectiva das
entidades portadoras de interesses político-econó micos e uma transformaçã o da
postura dos partidos políticos, enquanto instrumentos privilegiados na formaçã o e
na mediaçã o da vontade popular, dado que sem eles é praticamente impossível o
funcionamento da representaçã o política, nos dias de hoje.

1.3. A Democracia Participativa como uma dimensão do modelo democrático

Já foi, aqui, referido que o modelo democrá tico que é hoje acolhido no Estado
de Direito Social inclui uma vertente representativa e outra participativa.
58
Cfr. Maria Lú cia Amaral “O problema da funçã o política dos grupos de interesse: do
pluralismo ao neocorporativismo” in O Direito, anos 106-119, p. 162.
59
Assim se percebe a posiçã o de rejeiçã o das eleiçõ es por parte de Oliveira Martins, citado
em José Má rio de Almeida, op. cit., p. 182. Aquele autor refere que “coisa alguma demonstra melhor
que as eleiçõ es, o conflito permanente entre o modo real de sentir dos cidadã os e o modo
convencional que faz com que a manifestaçã o de interesses e ambiçõ es de uma minoria anó nima, se
chame nos jornais expressã o de opiniã o pú blica (…). A eleiçã o na sua brutalidade numérica é um
processo errado. Se o resultado aritmético nã o está subordinado à sorte, está -o, decerto, o resutado
moral…
Dominada pela intriga e pelo dinheiro, a urna preverte o principio da representaçã o.
Corrompida e doente, os bons espíritos afastam-se dela como quem se afasta de uma coisa
repugnante quem tem os sentidos apurados”. 73
Ao constatar-se o declínio da democracia representativa impõ e-se, desde
logo, saber de que modo é que se poderá salvar a democracia, mesmo admitindo
que ela nã o deixa de ser um mal60. Para lá das medidas sublinhadas no ponto
anterior, a resposta imbica para a chamada democracia participativa.
Ao tratar-se, pois, da democracia participativa, a questã o bá sica é a de se
saber de onde é que ela emerge? Quer dizer, que se deve determinar se ela nasce
no seio ou fora da democracia representativa, ou seja, dos mecanismos desta.
Admitindo-se que a democracia participativa nasce no seio da democracia
representativa estar-se-á a aceitar, entendo, que ela constitui um dos mecanismos
da representaçã o política que, em face da crise do sistema, se submete a medidas
(determinadas pelos poderes políticos) de potenciaçã o. Esta visã o é uma
manifestaçã o do modelo democrá tico liberal em que se percebe um ofuscamento
(qual crise de crescimento) da dimensã o participativa da democracia.
Esta visã o está arrimada a uma ideia redutora da participaçã o política ao
mecanismo da eleiçã o, o que nã o deixa de indiciar uma manifestaçã o de
sobreposiçã o dos dois esquemas: representativo e participativo.
A potenciaçã o a que nos referimos reporta-se nã o só a uma maior
abrangência da participaçã o dos cidadã os no acto eleitoral, mas, igualmente, na sua
participaçã o/militâ ncia nos partidos políticos. E aí retomamos ao Estado de
Partidos, sabendo que esta figura está em crise.
Sobre as eleiçõ es, ter-se-á dito o suficiente para se avaliar o seu grau de
insuficiências, de que decorre, igualmente, um certo (ou crescente?) amorfismo de
participaçã o do cidadã o eleitor.
No que respeita ao aumento do nú mero de filiados nos partidos políticos,
parece que os resultados nunca foram animadores. É sempre uma ínfima parte dos
cidadã os que se encontra filiada nos partidos políticos.
Admitindo-se, de outra banda, que a democracia participativa nasce fora da
democracia representativa, estar-se-á , desde logo, a aceitar (pelo menos como
ideia tendencial) a autonomia da primeira face à segunda.

60
Mas é um mal menor em comparaçã o aos macro-males que as sociedades hodiernas nos
apresentam. Pense-se tã o-só em exemplos como os fundamentalismos, xenofobia e a corrupçã o nas
suas configuraçõ es e intensidades actuais. 74
Esta é a posiçã o que perfilhamos. De facto, em nosso entender, a democracia
participativa é gerada pelo modelo – aqui designado de – consensual da
democracia, assente numa concepçã o pluralista da política em sede da qual os
poderes políticos reconhecem a existência de centros de poderes sociais que
defendem nã o já um interesse pú blico, mas diversos interesses do pú blico.
Dizer-se que a democracia participativa resulta das limitaçõ es ou
insuficiências da teoria da representaçã o nã o é errado. Isso nã o contrasta com a
nossa perspectiva. Simplesmente, a avaliaçã o dessa tese deve fazer-se em termos
há beis.
A teoria da representaçã o entra em crise a partir do momento em que se
questiona "o pressuposto político em que assentava e resulte manifesta a
contradiçã o entre as suas manifestaçõ es constitucionais e a efectiva prá tica
política".61
Sendo assim, a opçã o por um novo pressuposto político – entenda-se um
novo modelo de democracia – que permita, de um lado, o relançamento da
representaçã o política (com todos os seus mecanismos, sujeitos e instituiçõ es) e,
de outro lado, a afirmaçã o da sua dimensã o participativa, tornou-se claramente a
saída (pretendida em gló ria) do Estado de Direito Social.
A democracia participativa, aferida a partir de uma nova visã o da parte do
poder político, na qual releva a sua institucionalizaçã o (embora tímida, por
enquanto) com o estabelecimento de funçõ es e mecanismos pró prios, como ao
longo deste trabalho veremos, tem como frontispício uma ideia nova de defesa e
articulaçã o de interesses que pululam à margem do círculo central do poder. Ela
representa um dado novo configurador de um novo modelo democrá tico62.

61
Crf. Juan Solozabal "Representation y Pluralismo Territoral" in Revista de Estudios
Políticos, n.º 50, Nueva Epoca, 1986, p. 95.
62
O "novo" aqui deve ser entendido apenas face à sua recente institucionalizaçã o, pois o
modelo democrá tico, menos do que uma construçã o teó rica arbitrá ria, é o resultado de longos anos
de evoluçã o. De facto, a participaçã o em defesa de interesses nã o nasce com o Estado de Direito
Social, ela insere-se na melhor tradiçã o da democracia liberal, o que uma vez mais confirma o
cará cter dinâ mico da democracia. Obviamente, estã o por fora dessa perspectiva histó rica a
participaçã o aos modos das Constituiçõ es portuguesas de 1822, art.º 16, 1838 art.º 15 e 1911 art.º
8, respectivamente. 75
Porém, a participaçã o nã o pode resumir-se à ideia de ser, apenas, a expressã o
da defesa individual ou (sobretudo) grupal de interesses, resultado da consagraçã o
de direitos sociais, econó micos e culturais. Baseada na concepçã o pluralista63, a
democracia participativa é, antes de tudo, a expressã o de uma incindível
densificaçã o da igualdade e da liberdade, como princípios-direitos de cada cidadã o.
A participaçã o de todos os cidadã os (arts.º 48 e 112 da CRP), no exercício
democrá tico (princípio da igualdade), justifica aquela ideia, já anteriormente
exposta, da actualidade do exercício do poder. O princípio da igualdade é, pois,
tributá rio de uma disposiçã o psicoló gica permanente dos cidadã os para o exercício
do “seu” poder, donde a reivindicaçã o de uma igualdade de oportunidades, de
igualdade de direitos e, mais uma vez, de igualdade de direitos reconhecidos.
De outro lado, a liberdade há -de reportar-se a uma ideia de
autodeterminaçã o. Neste sentido, a liberdade de autonomia nã o significa, no
Estado de Direito Social, a existência de uma esfera de acçã o da sociedade civil
indiferente ao poder, mas, antes, "um valor que limita o campo de acçã o do
poder''64.
O princípio da liberdade tem, nessa perspectiva, manifestaçã o evidente na
descentralizaçã o, a partir da qual é dada voz autó noma a outras entidades, que nã o
apenas o Estado, para a resoluçã o dos problemas comuns a todos os cidadã os.
Como refere Baptista Machado, a "descentralizaçã o é [...] o outro nome da
liberdade"65.
A participaçã o será , neste sentido, um contraponto ao princípio da maioria
ínsita na democracia representativa, logo, como diz bem Jorge Miranda, "se a
democracia envolve princípio da maioria, é muito mais do que princípio da
maioria"66.
Por isto, é justo que se olhe para a democracia participativa como detentora
de um élan pró prio que o poder político nã o pode ignorar. Dentro dos sistemas

63
A expressã o nada tem a ver com as teorias pluralistas contra as quais, aliá s, se há -de bater
a democracia participativa.
64
Cfr. Adriano Moreira "Ciência Política", Coimbra, 1992, p. 386.
65
Cfr. Baptista Machado "Participaçã o e Descentralizaçã o, Democratizaçã o e Neutralidade na
Constituiçã o de 76", Coimbra, 1982, p. 65.
66
"Ciência Política...", cit, p. 164. 76
políticos dos Estados ocidentais, nomeadamente em Portugal, a democracia
participativa é, indiscutivelmente, um elemento da chamada á rea de autopistia67. É
admissível que se discutam os meios subjacentes à participaçã o democrá tica, o que
se compreenderá , face à menoridade que é atribuída à democracia participativa no
Estado de Direito Social. Mas, repito, a democracia participativa, em si mesma, é
um dado adquirido, indiscutível, na doutrina e na prá tica modernas, apesar da
timidez, quanto ao reconhecimento da sua autonomia, e ainda que – como em
Portugal – a pró pria Constituiçã o nã o a defina, todavia acolhe-a, estabelecendo
formas de concretizaçã o pró prias.
Hoje em dia, a democracia participativa afigura-se como um modelo
alternativo de realizaçã o pessoal e o Estado actual nã o se pode demitir da tarefa de
assegurar a sua efectivaçã o. Seria inconcebível que, em pleno do séc. XXI, os
interesses dos cidadã os, dos trabalhadores, dos empresá rios e entidades patronais,
das autarquias, etc., etc., nã o se pudessem exprimir e ser defendidos junto dos
poderes pú blicos.
Neste sentido, em termos doutriná rios, a democracia participativa deve ser
percebida como um modelo em que os seus sujeitos detêm autoridade pró pria. Nã o
nos referimos a uma autoridade que subalterne a autoridade, digamos, originá ria
dos governantes, mas, ainda assim, uma autoridade inquestioná vel.
É evidente que, se nos colocarmos no plano da prá tica do sistema político, a
democracia participativa – enquanto meio de realizaçã o pessoal e recorrendo, uma
vez mais, à construçã o de Miguel Esteves Cardoso – coloca-se na á rea da
autonomia. Isto só vem confirmar a ideia que se faz da democracia como um
conceito globalizante cuja realizaçã o atinge todos os domínios da sociedade.
67
A expressã o é acolhida num interessante artigo de Miguel Esteves Cardoso, "A autoridade
democrá tica e o sistema de autorizaçã o política: um conceito e um modelo" in Aná lise Social, Vol.
XXII, 1986, pp. 231-257. De acordo com o autor, para a compreensã o do sistema de relaçõ es de
autoridade em que se insere o conceito de autoridade democrá tica pode construir-se um modelo
analítico de um sistema de autorizaçã o composto por três á reas que, no conjunto, corporizam a
comunidade política; a saber: 1.º a á rea de autopistia que abarca o conjunto de regras, normas,
valores e tradiçõ es que, por se afigurarem indispensá veis, sã o em qualquer momento histó rico
indiscutíveis; 2.º a á rea de autotelia, assente no conjunto daqueles valores, crenças e regras que sã o
passíveis de interpretaçã o e, por isso, discutíveis; 3.º a á rea de autonomia tida como a á rea maior,
na qual cada membro de uma comunidade realiza77a sua identidade.
Daí que se compreenda e se aceite que a pró pria democracia participativa,
vista em sentido amplo, abarque a participaçã o política através do sufrá gio. É claro
que nã o é este o sentido que se persegue neste estudo. De todo o modo, esta
sobreposiçã o (que nã o se manifesta apenas nisso) nã o retira o cará cter autó nomo
que atribuo à democracia participativa, como já foi visto. Voltaremos a este
assunto mais adiante.
Finalmente, adiantando um entendimento primá rio da democracia
participativa, dir-se-á que, como processo de influenciar a tomada de decisõ es
políticas, ela consiste num modo de realizaçã o do ideal democrá tico, traduzido na
expressã o de interesses políticos, econó micos, sociais e culturais, através de
mecanismos pró prios situados fora da representaçã o política e sem pô r em causa a
primazia desta68.

CAPÍTULO II – A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO PROCESSO DE


CONSENSO

2.1. A ideia de participação pelo consenso

Já se deixou exposto que o modelo consensual de democracia é aquele que


caracteriza o Estado de Direito Social.
Este modelo garante uma constante mutabilidade da democracia, vista,
assim, como

“um processo dinâ mico que pressupõ e uma sociedade aberta e activa,
no sentido de que, no decorrer do processo histó rico, vai oferecendo aos
cidadã os possibilidade de desenvolvimento integral, liberdade de

68
Aqui afastamo-nos da visã o "tecnicista" de participaçã o defendida por alguns autores,
nomeadamente Baptista Machado, "Participaçã o ..." cit., que me parece algo desvalorizador face à
dimensã o que atribuo neste estudo à democracia participativa. Entretanto, parece-me que outras
posiçõ es doutriná rias devem ser consultadas como, por exemplo, as de Sanchez Moron, "La
participacion del ciudadano en la administracion publica", Madrid, 1980, passim, especialmente pp.
60-86 e Alfonso Perez Moreno, "Crisis de Ia participacion administrativa" in Revista de
Administracion Pú blica, n.º 119, 1989, pp. 113-7.78
participaçã o crítica no processo político, condiçõ es de igualdade
econó mica, política e social”69

Ora, a construçã o do Estado de Direito Social nã o está completa no ocidente.


E nem sei se algum dia poderemos chegar a afirmar que o Estado de Direito Social
cumpriu, por inteiro, as suas funçõ es mais evidentes, como, por exemplo, a
promoçã o do bem-estar, da justiça social e do ideal participativo.
O Estado vê-se obrigado a acompanhar a dinâ mica das complexas
transformaçõ es políticas, econó micas e sociais, tentando atingir sempre um grau
qualitativamente melhor de satisfaçã o dos interesses em jogo. Podemos bem
pensar que o Estado do tipo ocidental se encontra numa "permanente transiçã o".
Como bem refere Joaquim Aguiar,

"as sociedades modernas nã o sã o apenas sociedades complexas, sã o


também sociedades de transiçã o e de mutaçã o à procura do
restabelecimento de condiçõ es de estabilidade e, ao mesmo tempo,
destruindo essa hipó tese de estabilidade com o seu elevado ritmo de
mudança e de inovaçã o"70.

A estabilidade que se promove, com o objectivo da acçã o dos poderes


pú blicos na sua relaçã o com a sociedade civil, só pode ser garantida com o
aumento da dinâ mica participativa dos cidadã os, seja individualmente ou em
grupo.
Quanto maior for o grau de participaçã o ou, se preferirmos, de exercitaçã o da
democracia participativa, tanto maior será o grau de representatividade do poder
político.
Esta interacçã o, que resulta do papel limitador que a democracia
participativa exerce sobre o poder político nas sociedades fragmentadas 71, tem de
69
Crf. Gomes Canotilho, "Direito Constitucional", 5.ªed., Coimbra, 1992, p. 420.
70
Cfr. Joaquim Aguiar, "Sociedade fragmentada e clivagens políticas" in Aná lise Social, vol.
XXV, 1990, pp. 545-587, especialmente pp. 545-6.
71
A fragmentaçã o é aferida aqui em sentido genérico, justamente porque as sociedades que
estã o no nosso pensamento, a portuguesa e a angolana, nã o detêm as mesmas características. Na
sociedade portuguesa a fragmentaçã o tem maior
79 incidência nos domínios político e econó mico,
possuir como propó sito o consenso, no sentido de nã o permitir os extremos, ou
seja:
 O excesso de dirigismo do poder político como antecâ mara do
totalitarismo das maiorias;
 A subversã o da representaçã o política.
Ao Estado democrá tico moderno nã o interessa, obviamente, qualquer uma
dessas vias. Para tanto, a soluçã o assenta na uniformizaçã o de um sistema de
valores, do qual se destacam a liberdade e a igualdade, por um lado, e a busca do
consenso quanto aos princípios fundamentais da organizaçã o social, por outro.
A participaçã o dos cidadã os e instituiçõ es representativas de interesses no
processo conducente à decisã o política é, exactamente, corolá rio desses
pressupostos.
Na verdade, o "Estado se vê forçado a dividir o seu poder com as forças
sociais organizadas"72. Essa "divisã o" do poder – também entendida como uma
"devoluçã o do poder à sociedade" – nã o visa, nem pode, entrevar a existência e a
actividade das estruturas de domínio pró prias do círculo central do poder.
Continua a exercer o seu papel de decisor ú ltimo, mas este papel sofre agora a
influência da acçã o das "forças sociais organizadas".
A "divisã o" do poder, longe de produzir o divó rcio entre o poder político e a
sociedade civil, acaba – digamos que paradoxalmente – por derivar numa patente
imbricaçã o funcional dos dois centros.
A busca do consenso afigura-se, agora, como o denominador comum nas
relaçõ es entre o poder político e a sociedade civil em sede da produçã o. Pelo
primeiro, por decisõ es que, por carregarem a carga do consenso, podem mais
facilmente ser acatadas de forma consensual.
Quer dizer que a ideia de consenso, que aqui se advoga, nã o se situa apenas
ao nível do círculo periférico, onde a diversidade de interesses justifica uma
constante luta de opiniã o pela comunidade, pelo consenso.
O que se defende é uma ideia de consenso que corporiza agora o "feeling" das
relaçõ es democrá ticas entre os detentores do interesse pú blico, de um lado, e as

enquanto que na angolana relevam os domínios econó mico, social, étnico e cultural.
72
Crf. Baptista Machado, "Participaçã o..." ct.,
80p. 47.
entidades portadoras de interesses, do outro. Será , portanto, o sistema político
todo a "pescar" o consenso73.
Mas, ainda assim, nã o se deve pensar em "introduzir" o consenso no esquema
de funcionamento da democracia representativa. Aí, em regra, ele nã o funciona
dada a vigência do princípio da maioria74.
Assim sendo, há que retirar uma ideia importante para se compreender e
aceitar os mecanismos em que assenta a funcionalidade das entidades portadoras
de interesses. É que o consenso, perseguido com a actuaçã o destas entidades,
reporta-se sempre a questõ es pontuais (basta considerar que os interesses da
sociedade civil têm natureza particularista), justamente, porque nã o se pode
imaginar o Estado-parceiro ter que se sentar, permanentemente, com o conjunto
dos cidadã os para negociar as decisõ es sobre os problemas gerais da Naçã o. Seria
um retorno ao modelo – impraticá vel – da democracia directa.
As questõ es de interesse nacional sã o, em regra, resolvidas por via da
democracia representativa, quer se goste, ou nã o, deste sistema. Mas percebe-se
que a característica de generalidade subjacente aos interesses que nesse
mecanismo sã o acolhidos é, igualmente, motivo para a verificaçã o de um certo
imobilismo das instituiçõ es representativas na defesa dos interesses particulares
afectos aos círculos periféricos de poder.
Colocando o problema num plano algo diferente do nosso, Maria Lú cia
Amaral afirma que

"o interesse é tanto mais indefeso quanto mais difundido e generalizado


for, porque é de proporcionalidade inversa e nã o directa a relaçã o que

73
Nã o é, exactamente, o retorno linear a ideia da "volonté générale" pró pria do pensamento
setecentista, embora se reconheça que o lugar e a importâ ncia que toma o consenso no modelo
democrá tico hodierno, numa certa dimensã o, se aproxima ao sentido daquela.
74
Mas há quem chegue à conclusã o inversa. Veja-se, por exemplo, Miguel Lobo Antunes, "A
Assembleia da Repú blica e a consolidaçã o da democracia em Portugal" in Aná lise Social, vol. XXIV,
1988, pp. 77-95, especialmente pp. 92-5. O autor peca, quanto a mim, ao considerar o Parlamento
como um local de obtençã o de consensos ou "de contençã o pacífica dos conflitos" a partir,
certamente, da avaliaçã o de situaçõ es episó dicas81
em que sã o obtidos consensos.
se estabelece entre a generalidade de um valor e a sua capacidade
mobilizadora das estruturas sociais”75.

Logo, perante essa (aparente?) impossibilidade funcional da democracia


representativa poder viabilizar a satisfaçã o dos interesses particulares localizados
nos círculos periféricos de poder, de um lado, e a impossibilidade congénita (face à
atomizaçã o da sociedade civil) desses círculos embandeirarem interesses
nacionais, do outro lado, o ponto de equilíbrio deve fundar-se na procura de um
consenso democrá tico entre o poder político e as entidades portadoras de
interesse.
Finalmente, há que referir que a busca do consenso, pela via da democracia
participativa, deve assentar em dois pressupostos fundamentais, quais sejam:
 A existência e a funcionalidade de um poder social ínsito da sociedade
civil;
 A existência de um conjunto de interesses carentes de representaçã o
junto dos poderes pú blicos.

2.1.1. O poder social das entidades participativas

A aceitaçã o da ideia de que as entidades portadoras de interesses possuem


um verdadeiro poder social é algo que nã o é, correntemente, bem digerido pelo
Estado, apesar dos avanços que, de forma assumida, os mecanismos de
participaçã o democrá tica dos cidadã os vã o conquistando. Esta constataçã o resulta,
obviamente, da aná lise fá ctica dos comportamentos dos poderes pú blicos.
A ideia de que o poder significa "a possibilidade de eficazmente impor aos
outros o respeito da pró pria conduta ou de traçar a conduta alheia"76 (de quem é o
sublinhado?) atemoriza o Estado, dado que a aceitaçã o da ideia do poder social
implica ipso facto o receio pela possibilidade dos poderes pú blicos se submeterem
à s regras de jogo "impostas" pelas entidades portadoras de interesses.
Apesar desse temor, face ao modelo democrá tico, nã o resta ao Estado
moderno outra saída, actualmente em moda, que nã o seja o reconhecimento
75
Cfr. Maria Lú cia Amaral "O problema ..." cit., p. 207.
76
Cfr. Marcelo Caetano "Manual de Ciência Política e Direito Constitucional", 6ª ed., Coimbra,
1989, p. 5. 82
efectivo das formas de democracia participativa. Decorre, assim, uma mudança de
atitude do Estado Soberano.
Materialmente, a posiçã o do Estado, nas relaçõ es com a sociedade civil,
exprime nã o já uma manifestaçã o absoluta e inflexível de poder em que os
processos sã o "conduzidos a mal", mas sim uma revelaçã o de autoridade política77,
em consequência da qual a sociedade civil deve ser "entendida e conduzida a bem",
até ao ponto do Estado reconhecer a existência de um outro poder (social) que
deve ser um interlocutor respeitá vel78.
É ó bvio que este quadro das relaçõ es, entre o Estado e a sociedade civil, tem
expressã o na descentralizaçã o do poder79.
O Estado reconhece a existência de um poder com sede exterior à
Constituiçã o porque assume que, ele pró prio, nã o pode agora realizar todos os
seus projectos sem a participaçã o responsá vel da sociedade civil. De resto, nã o se
exige responsabilidades a quem nã o tem poder.
Em face disso, a relaçã o que daí decorre nã o é unidireccional. Existe, na
verdade, reciprocidade na relaçã o entre o Estado e a sociedade civil, pelo que
haverá , por consequência, um duplo comprometimento.
É , exactamente, este comprometimento que facilita a busca do consenso e da
confiança entre as partes.
O poder social pode aqui ser aferido como um fenó meno relacional na
medida em que ele encontra a sua melhor expressã o na relaçã o que as entidades
portadoras de interesses estabelecem com os poderes pú blicos, visando a
constituiçã o de alternativas de acçã o. Ele exprime a capacidade que os esquemas

77
Para uma diferenciaçã o dos conceitos de poder político e autoridade política, V. Miguel
Esteves Cardoso "A autoridade...", cit.
78
Baptista Machado, que se refere a esse "outro poder" com a locuçã o "sector pú blico nã o
estatal" (esta designaçã o tem no contexto da nossa aná lise um alcance limitado diferente da que lhe
atribui o autor), vê nele o pressuposto de "uma nova separaçã o e balanceamento dos poderes", in
"A hipó tese...", cit., p. 17.
79
Neste sentido, descentralizaçã o e participaçã o sã o expressõ es que se confundem. A mim
nã o repugna aceitar a ideia de que a participaçã o possa ser vista, concomitantemente, como um
pressuposto e fim da descentralizaçã o cujo valor subjacente é a liberdade – aqui entendida como
liberdade de autodeterminaçã o. 83
de democracia participativa possuem para seleccionar alternativas e "impor"80
quadros de decisã o aos poderes pú blicos.
O poder social, porque adstrito a vá rias entidades portadoras de interesses
(cidadã os, grupos sociais, associaçõ es profissionais, etc.), é naturalmente um poder
particularista, daí que se possa, em boa verdade, falar da existência de vá rios
poderes sociais. Isto mesmo decorre da característica de diversidade que subjaz
aos interesses reivindicados pela sociedade civil, interesses esses que escapam aos
condicionamentos integradores impostos pelas estratégias partidá rias.
Outra característica que importa relevar é a vertente orgâ nica do poder
social. Admitindo a macrocefalia da participaçã o dos grupos de interesses em
detrimento da participaçã o individual, dir-se-á que o poder social é uma revelaçã o
da cidadania orgâ nica81.
Apesar desta característica, nã o se pode negar que, em geral, o poder social
nã o deixou de ser, ainda, encarado com um poder fá ctico.
Nã o me parece que, actualmente, estejam já removidos todos os obstá culos a
uma global e permanente institucionalizaçã o da participaçã o dos grupos e,
também, de cidadã os, individualmente falando. Em meu entender, esta situaçã o é
produto das ambiguidades que se apontam à ideia de democracia participativa,
donde releva a dificuldade de se identificar a totalidade dos seus sujeitos. Basta
ver, por exemplo, que quando se fala em representaçã o de interesses, se afasta, em
regra liminarmente, a participaçã o individual ou, ao invés, incluem-se os pró prios
partidos políticos, ainda que assumindo, neste plano, uma forma indirecta de
participaçã o. Voltaremos, adiante, a este problema.
Entendo, resumidamente, que o “poder social” (ou poderes sociais, no caso de
se preferir) é uma expressã o de síntese da força e capacidade dos esquemas de

80
"A observaçã o diá ria da vida torna hoje irrecusá vel a verdade que há entidades emergentes
na sociedade civil, prosseguidoras de interesses ou fins particulares, que valem politicamente
porque eficazmente impõ em aos ó rgã os do poder político as suas pretensõ es; e, longe de ser casual
ou esporá dico, tem-se transformado este valor político em dado constante do real porque em regra
necessá ria de sobrevivência da comunidade", Maria Lú cia Amaral, p. cit., p. 148.
81
Em sentido pró ximo, cfr. Marcelo Rebelo de Sousa, "Administraçã o Pú blica e Direito
Administrativo em Portugal", Lisboa, 1992, p. 96.84
democracia participativa, a partir da qual os cidadã os estã o motivados para
dialogar e negociar com o Estado e, fundamentalmente, influir:
 Na mudança de atitude do Estado face à sociedade civil;
 Na emergência de um novo quadro estrutural do Estado (donde releva a
crise da divisã o unitá ria do Estado);
 No processo de produçã o de decisõ es democrá ticas, com voz responsá vel
e autó noma.
O poder social é, assim, uma garantia eficaz de procura de consensos com o
poder político.

2.1.2. A articulação de interesses

Outro elemento de aná lise, tendo em vista a consideraçã o da democracia


participativa como um esquema para obtençã o de consensos, é precisamente a
articulaçã o de interesses.
O interesse é o conceito basilar da vida social e é, justamente, à volta dele que
se procuram encontrar, de gré à gré, as soluçõ es para a realizaçã o do bem-estar e
da paz sociais.
No entanto, e como já dizia S. N. Eisenstadt82, a "legitimidade" bá sica dos
governos, em todas as naçõ es modernas, reside na pretensã o do dirigente, de que
ele age segundo os interesses do dirigido.
Já se disse que a dinâ mica e a complexidade da vida social hodierna nã o
permitem ao Estado moderno identificar, com oportunidade (e muito menos
satisfazer à justa), a diversidade de interesses particulares gerados por aquela,
através dos seus pró prios mecanismos.
Pense-se, tã o só , nas alteraçõ es que o pó s-guerra produziu no domínio social,
por exemplo, com o surgimento de novas categorias sociais, profissionais e a
proliferaçã o de muitas outras entã o existentes, em geral, o caso dos quadros
técnicos, os burocratas, os operá rios qualificados, os gestores, as profissõ es
liberais, entre tantas outras.

82
Citado em Gabriel Almond e Bingham Powell, Jr., "Uma Teoria de Política Comparada",
trad., Rio de Janeiro, 1972, p. 67. 85
Dessa atomizaçã o da sociedade decorre, logicamente, uma acentuada
pulverizaçã o de interesses que nã o encontra satisfaçã o a partir dos mecanismos da
democracia representativa.
A articulaçã o de interesses83 é, pois, o processo em que as entidades
portadoras de interesses podem, elas pró prias, fazer passar a sua mensagem, ou
seja, dar a conhecer os seus pró prios interesses e reivindicar a tomada de decisõ es
eficazes para a satisfaçã o dos mesmos.
Ora, a eficá cia das decisõ es fundamentais, sejam elas de natureza política,
econó mica, social ou cultural, deve fundar-se num processo de criaçã o de
consenso.
A articulaçã o de interesses tende, deste modo, a evitar o dirigismo estatal
assente numa postura de yes man das entidades portadoras de interesses e, no
outro extremo, a definhar a perspectiva de controlo hegemó nico do poder político
por parte daquelas entidades, na linha do modelo pluralista.
Questã o mais delicada é a de saber quem sã o essas entidades portadoras de
interesses. Na minha perspectiva, elas integram os cidadã os e os grupos de
interesses (ou de pressã o).
Entendo que, apesar da diferença de designaçõ es, é de se operar com o
conceito de grupos de interesses. Nã o vamos ocupar-nos aqui com os argumentos
que apontam para diferenciar (mas quantas vezes também para convergir) aquelas
duas figuras84.
83
A articulaçã o de interesses é aqui tida como uma expressã o de síntese de dois conceitos
muito em voga no assunto em aná lise: a representaçã o de interesses e a concertaçã o social. O
objectivo do presente estudo é abordar a democracia participativa como um mecanismo que visa a
produçã o de consensos. Ora, estes apenas podem ser gerados mediante a avaliaçã o e articulação
dos interesses vinculados à s partes em presença (poderes pú blicos e sociedade civil). Ao contrá rio
de alguns autores, que entendem existir diferença entre representaçã o de interesses e concertaçã o
– visando a primeira apenas a audiçã o e a segunda a pró pria negociaçã o – (V. Barbosa de Melo
"Introduçã o ...", op. cit., p. 95), eu entendo que audiçã o é apenas a fase, digamos, primá ria da
representaçã o (articulaçã o) de interesses e, por outro lado, nã o aceito que possa efectivar-se a
concertaçã o sem a representaçã o (articulaçã o) de interesses.
84
No mesmo sentido, José Má rio de Almeida "Grupos...", cit., p. 172, e Braga da Cruz "Os
interesses sociais organizados e as eleiçõ es antecipadas de Julho de 1987" in Revista de Ciência
Política, n.º 6, Lisboa, 1987, pp. 43-51. Em sentido contrá rio, Antó nio José Fernandes "Ciência
Política, Teoria, Métodos e Temá ticas", Lisboa, 1991,
86 pp. 228-231 e, ao que parece, Adriano Moreira
A articulaçã o de interesses procedendo com a actuaçã o individual nã o
merece, actualmente, grande destaque por parte da doutrina. Entendo que, apesar
da secundarizaçã o dessa via, ela nã o deve ser posta de lado, basta pensar na
participaçã o dos cidadã os nos procedimentos administrativos em defesa dos seus
interesses particulares.
É , precisamente, porque entendo que esta dimensã o (individual) da
articulaçã o de interesses deve ser considerada que se tem utilizado a expressã o
"entidades portadoras de interesses" para identificar globalmente os sujeitos de
participaçã o.
Claro está que nã o se perde de vista o maior protagonismo dos grupos. A
sociedade dos nossos dias é uma sociedade de grupos ou de organizaçõ es de
interesses, onde a participaçã o individual, embora considerada, é subalternizada.
Esse maior protagonismo dos grupos de interesses permite aproximar, numa
certa dimensã o, os conceitos de democracia participativa e de
neocorporativismo85.
É oportuno reconhecer que a articulaçã o de interesses, embora visando a
obtençã o de consensos, nã o propicia, no entanto, uma posiçã o igualitá ria das
partes em termos de poder de decisã o.
Mesmo os sindicatos, a quem se chega a atribuir o estatuto de "governo da
sociedade civil"86, sempre se lhes atribuiu um lugar subalterno em relaçã o aos
ó rgã os de decisã o.
Esse contrapoder dos grupos sociais exige, é certo, uma concepçã o política
nã o centralizadora como um pressuposto da articulaçã o de interesses, mas isso
nã o propele para a transferência do poder de decisã o do círculo central para os
círculos periféricos de poder.
Pode dizer-se que o debate que se processa entre o Estado-parceiro e as
entidades portadoras de interesses tem um cariz igualitá rio, mas questã o diversa –
e que é aqui afastada – é a da repartiçã o de poder de decisã o. Isto nã o pode

"Ciência Política", Coimbra, 1992, pp. 153-5.


85
No mesmo sentido, Jorge Miranda "Ciência Política...", cit., p. 178 e Baptista Machado "A
Hipó tese...", cit., p. 16.
86
Cfr. Adriano Moreira, op. cit., p. 191. Sobre o crescente papel dos sindicatos em defesa de
interesses sociais, V. também Sanchez Moron, p. cit.,
87 p. 53.
acontecer, como já se viu, sob pena de subverter a legitimidade democrá tica dos
poderes pú blicos.
Nã o falta, todavia, quem nã o se escuse de incluir os partidos políticos na
figura de grupo de interesse. Sanchez Moron atesta que

"o partido político é também um poder social, um grupo de pressã o, em


certo sentido, caracterizado por ter um aparato organizativo mais ou
menos perfeito e eficaz e pela legitimaçã o adicional que procede do seu
apoio eleitoral"87.

Esta constataçã o resulta da tentativa dos partidos políticos – face à assunçã o


das insuficiências dos mecanismos de democracia representativa de que sã o os
principais, senã o mesmo exclusivos, protagonistas – penetrarem no esquema de
representaçã o, nã o já do interesse geral, mas sim de interesses particulares, como
trampolim para a sua reabilitaçã o política e social.
As tentativas vã o desde a "colocaçã o" de dirigentes partidá rios no seio dos
ó rgã os de direcçã o dos grupos econó micos, sociais ou culturais até à integraçã o
dos dirigentes destes grupos nas estruturas directivas dos partidos políticos.
Decorre daqui um posicionamento ambíguo dos partidos políticos, que pode
ter alguns corolá rios, como, por exemplo:
 A evidência de uma sobreposiçã o das vertentes representativas e
participativas de democracia;
 A vantagem (ou desvantagem) da sua acçã o para a obtençã o (ou
obstruçã o) de decisõ es consensuais, etc.
Parece, no entanto, que os prejuízos sã o superiores aos benefícios. O melhor,
quanto a mim, será mesmo proceder-se a uma rigorosa demarcaçã o do papel dos
partidos políticos, reconduzindo-os ao estrito plano da democracia representativa.
De outro modo, teremos sempre uma prestaçã o aleató ria dos partidos políticos,
que nada beneficiará as expectativas legítimas dos cidadã os e dos grupos de
interesses que nã o partilhem dos seus ideais políticos, econó micos, sociais,
culturais, etc.88

87
Op. cit., pp. 51-2 88
Essa sensaçã o de desnorte dos partidos políticos só pode ser resultado do seu
esvaziamento programá tico, que há -de ser readquirido – pensarã o os dirigentes
políticos – a partir da pró pria sociedade civil.
Estas (e outras) situaçõ es nebulosas só prejudicam os objectivos da
articulaçã o de interesses. Como tal, deve ser levada a cabo com perfeita
identificaçã o dos sujeitos que suportam a funçã o tribunícia e do quid que motiva a
participaçã o.
A questã o tem uma relaçã o directa com a dupla dimensã o – reguladora e
racionalizadora89 – que se atribui à articulaçã o de interesses.
A ausência de clarificaçã o dos sujeitos e dos interesses subjacentes à
participaçã o facilita a chamada "concertaçã o reguladora", em que as partes
procuram, apenas, a articulaçã o de interesses apó s a eclosã o dos conflitos.
Porque se trata de uma acçã o pontual, é natural que os ó rgã os que se prestam
à sua resoluçã o, do lado da sociedade civil, ou serã o de natureza ah hoc ou estarã o,
em regra, impreparados para uma intervençã o eficaz junto dos governantes.
Este é o tipo de concertaçã o que satisfaz um poder pú blico arrogante e
complexado.
Numa outra dimensã o – racionalizadora –, a participaçã o das entidades
portadoras de interesses é processada com vista à antecipaçã o dos conflitos e à
procura de uma soluçã o, tã o consensual quanto possível.
No fundo é este o traço essencial da participaçã o no modelo de democracia
consensual. De todo o modo, nã o posso concordar com a tese de que a dimensã o
racionalizadora seja impraticá vel nas chamadas sociedades conflituais.90

88
"Para que os interesses sociais sejam articulados e agregados eficazmente é preciso
respeitar a demarcaçã o dos limites entre os grupos de pressã o e os partidos políticos. Quando os
partidos políticos controlam os grupos de interesses, retiram-lhe capacidade para formular
solicitaçõ es programá ticas e impõ em conteú do ideoló gico à sua actividade. E quando sã o os grupos
de interesses a controlar os partidos, incapacitam-nos de combinar interesses específicos em
programas de vasta amplitude", Manuel Braga da Cruz, op. cit., p. 43-4.
89
Cfr. Joaquim Aguiar "Concertaçã o social e o sistema político", in Revista de Direito e de
Estudos Sociais, Ano XXX, no 1, 1988, pp. 95-11 2. Na linguagem do autor faz-se referência expressa
à concertaçã o reguladora e à concertaçã o racionalizadora.
90
Esta é uma das conclusõ es de Joaquim Aguiar,
89 V. "Concertaçã o...", cit., p. 105.
Há , nessa ideia, alguma estanquidade que me parece perigosa, mesmo do
ponto de vista pedagó gico.
Nada justifica que aí mesmo, no terreno da conflitualidade social (para só
falar nesta), os mecanismos da democracia participativa – entendida, repito, como
um modelo cujo propó sito ú ltimo é a obtençã o de consensos – nã o possam
encontrar espaço para o seu accionamento.
A articulaçã o de interesses é isso mesmo, a tentativa de racionalizar os
conflitos. Quanto mais conflituosa é a sociedade tanto mais racionalizador deve ser
o sentido da participaçã o.
À articulaçã o de interesses encontra-se intrinsecamente ligado o problema
da informaçã o/comunicaçã o.
Como escrevera Rousseau,

"por mais fraca que seja a influência que a minha voz possa ter nas
actividades pú blicas, basta-me o direito de nelas votar para me impor o
dever de sobre elas me informar"91.

A publicizaçã o da vida pú blica é, nos tempos que correm, um pressuposto


essencial da participaçã o dos cidadã os. Diz-se mesmo que a informaçã o é a base da
participaçã o ou, numa visã o mais integradora, dir-se-á que participar é estar
informado.
Ao cidadã o do Estado democrá tico moderno abrem-se diversas
possibilidades de participaçã o na vida pú blica, que nã o sã o redutíveis à
participaçã o no sufrá gio. Isso mesmo nos revelam os esquemas de democracia
participativa. Assim, quanto maiores forem os mecanismos potenciais de
participaçã o, tanto maior deverá ser o acesso de informaçã o ao alcance dos
cidadã os.
Um dos grandes males que decorre do esquema de democracia
representativa é o facto de a informaçã o (política) ser de pouco domínio do
pú blico, face ao hermetismo dos partidos políticos e à pouca transparência das
instituiçõ es políticas em geral.

91
Cfr. J. J. Rousseau, "O Contrato Social", Trad.,
90 3.ª ed., Publicaçõ es Europa-América, s.d., p. 13.
A participaçã o das entidades portadoras de interesse visa, essencialmente,
quebrar esse quadro esotérico dos poderes pú blicos. A articulaçã o de interesses é
um meio reivindicador de uma sociedade aberta.
Do lado dos poderes pú blicos compete-lhes, fundamentalmente,
disponibilizar informaçõ es atempadas e adequadas para que – naquele sentido de
racionalizaçã o exposto – a articulaçã o de interesses possa alcançar o seu propó sito
preventivo. Mas deve, igualmente, competir aos poderes pú blicos justificar as
decisõ es políticas tomadas, por forma a manter os cidadã os informados sobre a
clareza, suficiência e congruência das mesmas.
Do lado das entidades portadoras de interesses compete-lhes fazer chegar,
aos poderes pú blicos, todo um leque de informaçõ es que concorram para a tomada
de decisõ es justas, eficazes e democrá ticas.
Depreende-se, por isso, que a articulaçã o de interesses se assume como uma
relaçã o dialéctica de estruturas de inputs e outputs.92
Essa relaçã o deve estear-se num fluxo dinâ mico de informaçõ es entre essas
estruturas. Nã o pode haver aqui uma visã o fixista dessa relaçã o, sob pena de se
entrevar, à partida, todo o esquema participativo. O problema é que as aspiraçõ es e
as expectativas políticas, econó micas e sociais crescem muito mais depressa do
que a possibilidade de o sistema político desenvolver quadros de atendimento e
resoluçã o das mesmas.
Cientes dessa situaçã o, as entidades portadoras de interesses devem
procurar obter algum – considerá vel – controlo da informaçã o pú blica e do
pú blico. Deter informaçã o é ter poder. O poder social nã o pode assumir-se sem que
os seus agentes se movimentem na base da informação certa, séria e segura. Só
desta forma vale a pena o ideal participativo. Participar sem se estar informado é
pura demagogia. Ora, a democracia participativa nã o deve viver de demagogias,
pois, a ser assim, é a sideraçã o da pró pria teleologia do modelo participativo. Nã o
se obtém consenso sobre algo de que nã o se possui uma informaçã o,
minimamente, tributá ria de poder negocial.
A detecçã o de informaçõ es pró prias e de capacidade de comunicaçã o deve
ser expressã o do poder e da autonomia do esquema de democracia participativa.

92
Cfr. Gabriel Almond e Bingham Powell Jr.,
91"Uma teoria...", cit., p. 106 ss.
CAPÍTULO III – APROXIMAÇÃO AOS PRESSUPOSTOS DA AUTONOMIA
DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

3.1. Preliminares

Um problema central da democracia participativa é o de saber se é possível


atribuir-lhe plena autonomia, nã o só teó rica ou conceptual, mas, igualmente,
prá tica.
Partindo quase sempre de uma visã o preconcebida, em que a democracia
participativa é tida como uma ideia ou ideologia ambígua e confusa, e reduzindo-a
quase em absoluto ao domínio da administraçã o pú blica, os autores parecem
abraçar algumas dificuldades para a sua formulaçã o teó rica no domínio político.
Para tal, recorre-se a vá rias perspectivas, nomeadamente: a tecnocrá tica93, a
política94, a socioló gica95, a técnico-jurídica96 e a dogmá tica97. Cada uma delas
reflecte, a seu modo, a participaçã o administrativa.
As diferentes posiçõ es vã o desde a consideraçã o, na concepçã o tecnocrá tica,
à participaçã o na base de um duplo discurso teó rico: um de cará cter técnico, como
resposta concreta à s necessidades prá ticas do modo de dominaçã o política, e outro
de cará cter estritamente ideoló gico, sobre os efeitos de legitimaçã o daquelas
formas de dominaçã o; passando pela consideraçã o da participaçã o como modo
concreto de realizaçã o da democracia, como uma linha tendencial de maximizaçã o
da liberdade, como decorre da perspectiva política; ou da visã o que consagra a
participaçã o nas decisõ es, e nã o na fase de execuçã o, e na qual os sujeitos
participantes sejam o conjunto dos cidadã os – como resulta da perspectiva
socioló gica; ou, ainda, da consideraçã o da participaçã o como uma ideia orientada e
limitada: pelo princípio da legalidade, pelo cará cter serviçal da administraçã o
pú blica, e pelo princípio da eficá cia, como sustenta a perspectiva técnico-jurídica;
até, finalmente, a consideraçã o da participaçã o como um mecanismo incapaz de

93
Cfr. Sanchez Moron, p. cit., pp. 67-76.
94
Idem, pp. 76-86. O autor assenta a sua aná lise nas ideias de F. Neumann.
95
V. Baena del Alcá zar, citado em Alfonso Perez Moreno, op. cit., pp. 114-5.
96
V. Lorenzo Martín-Retortillo, citado em Alfonso Perez Moreno, op. cit., pp. 114-6.
97
V. Parejo Alfonso, citado em Alfonso Perez
92Moreno, op. cit., p. 116-7.
remodelar a administraçã o e alterar as suas estruturas e os seus instrumentos
autocrá ticos no conjunto do Estado.
A doutrina portuguesa parece estar a sofrer de todas essas vicissitudes98.
Nã o há , como se pode expectar, traços comuns de grande evidência nessas
formulaçõ es, o que, de certo modo, alimenta as posiçõ es mais radicais, que
consideram a participaçã o como algo confuso.
Esta heterogeneidade da visã o da participaçã o nos nossos dias explica,
porventura, a ausência de consagraçã o constitucional do conceito de democracia
participativa em muitos países (Portugal e Angola, inclusive) e da pouca
consistência que, por enquanto, possuem os mecanismos e formas de realizaçã o da
democracia participativa.
É evidente que nã o se pode descurar – como já atrá s defendemos – que a
democracia participativa é – se nos colocarmos na perspectiva da sociedade
portuguesa e, muito mais ainda, na da angolana – um processo a desenvolver e que
ainda nã o produziu traços de evidente sedimentaçã o, por culpa maior dos poderes
pú blicos.
Mas, isto mesmo impõ e que se defina99, claramente, esta nova realidade, que
é a democracia participativa. Uma realidade que nã o pode deixar de ser analisada
tendo como ponto de referência a democracia representativa.
Partindo do pressuposto que a participaçã o pode cumprir uma funçã o de
consenso, que, à partida, nã o está ao alcance do esquema representativo, é de
admitir a assunçã o de uma patente autonomia.
Atentemos aos contornos tendenciais (possíveis) dos pressupostos da
democracia participativa.

3.2. Sentido da participação

98
Nã o conhecemos uma definiçã o doutriná ria da democracia participativa que tenha
recebido os favores gerais. As posiçõ es sã o, em vá rios pontos, desencontradas entre Baptista
Machado, "Participaçã o ..." cip. passim, Jorge Miranda, "Ciência Política ..." cit. especialmente pp.
172-180 e Gomes Canotilho, op. cit., especialmente pp. 413-5,420-2 e 430-4, para só citar estes
autores. Embora entre os dois ú ltimos as diferenças sejam muito menores.
99
Sem pretender deixar, pois, cair uma definiçã o acabada e consistente da democracia
participativa, afivelo-me, aqui, ao entendimento primá
93 rio proposto supra (vide pá g. ??? ).
A democracia participativa pode ser encarada em dois sentidos: amplo e
restrito.
 No sentido amplo, a democracia participativa consubstancia a
participaçã o no sufrá gio, assimilando, aqui, os processos e formas de
democracia representativa com a qual se confunde ou, no mínimo,
assume um certo paralelismo. Nã o é este o sentido com o qual temos
vindo a operar neste estudo. Este sentido amplo ilustra uma certa
justaposiçã o que existe entre as dimensõ es representativa e participativa
que deve ser entendida, justamente porque ambas têm a mesma
progénie – a democracia.
 No sentido restrito, a democracia participativa assume-se como um
modo de realizaçã o do ideal democrá tico através de formas e
mecanismos mais intensos ou menores em relaçã o à participaçã o no
sufrá gio.
A participaçã o realizada pelas entidades portadoras de interesses é
entendida como um processo, por um lado, de dimensã o radicalizadora da
democracia, através exactamente de mecanismos e formas pró prios que, sem
pretenderem superar a democracia representativa, visam maximizar a assunçã o da
liberdade e da igualdade mediante formas de autodeterminaçã o dos cidadã os, e,
por outro lado, de dimensã o complementar ou subsidiá ria ao sistema
representativo.
É este o sentido com que temos operado e que é aclamado pela doutrina, que
defende a autonomia adquirida ou tendencial da democracia participativa.

3.3. Modos de participação

A democracia participativa é exercida, no sentido aqui acolhido, de dois


modos: individual e grupal.
A participaçã o individual, como já se viu, é normalmente subalternizada e,
nalguns casos mais extremos, ela sofre mesmo uma completa desvalorizaçã o, pelo
menos do ponto de vista teó rico.

94
Apesar disso, a participaçã o individual pode assumir formas já largamente
consagradas, a saber:
 As formas de democracia semi-directa, como o sã o a iniciativa popular, a
acçã o popular e o referendo;
 A participaçã o nos procedimentos administrativos, nomeadamente nos
processos em que se julgue, seja ou possa ser considerado interessado.
Nã o se podem subestimar, no entanto, algumas formas de participaçã o
individual de cariz informal que emergem com a necessidade, cada vez mais
crescente, da sociedade civil se fazer ouvir, nomeadamente a actuaçã o de
comentadores ou analistas políticos, porta-vozes, dirigentes de grandes grupos
econó micos (assumindo a participaçã o na base da sua reputaçã o individual e nã o
do grupo de que faz parte), figuras de destaque da sociedade civil (antigos
dirigentes da naçã o, personalidades eclesiá sticas, etc.).
É evidente que estas formas de manifestaçã o da participaçã o individual
(informal) assumem o seu maior ou menor protagonismo, em funçã o do está dio de
vivência democrá tica de cada sociedade.
A participaçã o grupal ou institucional, conforme lhe chama Jorge Miranda100,
é, como se pode depreender, aquela que é exercida através de grupos de cidadã os
ou instituiçõ es socioeconó micas, culturais, etc. Este modo de participaçã o é,
justamente, aquele que melhor se enquadra no chamado "Estado de organizaçõ es"
e que, em geral, melhor realiza os propó sitos de representaçã o de interesses junto
dos poderes pú blicos. Nã o se trata de uma via de superaçã o da representaçã o
política, dado que os pressupostos nã o sã o iguais, donde releva o facto de, na
representaçã o de interesses, estes presumirem sempre um cará cter particularista,
sectorial e concreto.
Os grupos ou instituiçõ es representativos de interesses podem ser: famílias,
municípios, organismos socioprofissionais ou corporativos, etc. Reafirma-se, aqui,
o afastamento dos partidos políticos, mesmo aqueles que nã o estejam
representados no parlamento, naquele papel de representantes de interesses
particularistas ou grupais, no sentido em que estes sã o acolhidos no esquema de
democracia participativa. Os partidos políticos nã o sã o meros agentes de opiniã o.

100
Op. cit., p. 56 ss. 95
Eles sã o mais do que isso, sã o verdadeiros gestores directos da vida pú blica pelo
que se lhes deve evitar atribuir o estatuto de "puros grupos de interesses", nos
termos acolhidos neste relató rio.

3.4. Graus de participação

Aqui temos uma das matérias que deve merecer uma maior atençã o no
estudo do fenó meno participativo. A sua clarificaçã o ajudará , certamente, a melhor
compreensã o da autonomia que a pró pria dimensã o participativa da democracia
reclama e, tudo indica, se lhe deve atribuir.
Ao longo deste estudo, tenho defendido que os mecanismos da democracia
participativa nã o devem conduzir a uma substituiçã o do poder político, através da
subversã o do esquema de representaçã o política.
O esclarecimento dos graus de participaçã o visa resolver o problema da
intensidade, que subjaz à democracia participativa, intensidade essa, repito, que
nã o deve levar à colisã o com a representaçã o política.
Segundo a classificaçã o proposta por Gomes Canotilho101, a participaçã o pode
inserir-se em três graus:
1.º – A participaçã o nã o-vinculante, traduzida numa espécie de "participaçã o
à distâ ncia" no processo de decisã o. Neste grau, a participaçã o é feita através de
informaçõ es, propostas, exposiçõ es, protestos, etc., como simples modo de
preparar a decisã o final. Esta modalidade parece ser a que mais ao alcance se
encontra, em especial dos cidadã os individualmente e daqueles grupos de
interesses com menos representatividade e força negocial. De todo o modo,
entendo que se trata de um grau e nã o do fim em si da participaçã o.
2.º – A participaçã o vinculativa que se manifesta ao nível da pró pria tomada
de decisã o e da qual decorre uma "limitaçã o do poder de direcçã o tradicional". Este
grau de participaçã o é muito sensível, pois é nele em que as entidades portadoras
de interesse estã o mais pró ximo de pisar o risco. Porém, nã o deixa de ser verdade
que é, justamente, para se atingir esse grau que essas entidades reclamam e
realizam a sua participaçã o nos processos de decisã o política. Aponta-se, como
exemplo desse modelo, a participaçã o dos trabalhadores em conselhos de gestã o.

101
Op. cit., pp. 430-2 96
3.º – A participaçã o vinculante e autó noma traduzida na "substituiçã o pura e
simples do poder de direcçã o tradicional para outros poderes dentro do respectivo
sistema", nomeadamente a administraçã o autó noma. Esta modalidade afasta-se já
da ló gica das nossas posiçõ es porque nã o tratamos a democracia participativa
como um processo de substituiçã o do poder político, por um lado, e porque nã o
curamos de analisar os esquemas de participaçã o no interior dos grupos de
interesse, o que aqui, sim, encontraríamos procedimentos aná logos aos da
representaçã o política, por outro lado. Ora, o que nos preocupa é a participaçã o
dos grupos ou instituiçõ es portadoras de interesses nos processos de decisã o
política e nã o a participaçã o dos cidadã os no seio desses grupos ou instituiçõ es.
Este é outro problema que nã o cabe aqui deslindar.
Portanto, apenas os dois primeiros graus da classificaçã o trazida à colaçã o
interessam directamente ao nosso estudo. Aliá s, neste sentido parecem apontar as
posiçõ es de Baptista Machado102 e Barbosa de Melo103.
Entretanto, volto a sublinhar que estas classificaçõ es têm, apenas, um sentido
pedagó gico, nã o devendo, por isso, ser entendidas como fronteiras estanques.
A democracia participativa, vista a partir dessas classificaçõ es, visa sempre
atingir o grau mais elevado de participaçã o dos cidadã os e dos grupos.
Mas, ainda assim, nã o posso deixar de discordar de Baptista Machado que
considera que "só o direito de voto na decisã o final corresponde a uma verdadeira
participaçã o no poder de decidir."104. Entendo que as modalidades de participaçã o
negocial, consultiva, concertada ou procedimental nã o têm, necessariamente, que
reduzir a decisã o ao mecanismo do voto. Voto entre quem? Entre o representante

102
“Participaçã o...”, cit., p. 41, onde o autor propõ e a distinçã o entre "participaçã o na fase
preparató ria ou de informaçã o do processo de resoluçã o" e "participaçã o na sua pró pria decisã o", o
que corresponde, em termos gerais, aos dois primeiros graus de classificaçã o de Gomes Canotilho.
Mas este autor vai mais longe ao referir que a segunda fase pode abranger apenas a "execuçã o da
decisã o". É , exactamente, por isso que defendemos a necessidade de fundamentaçã o das decisõ es
políticas por parte dos poderes pú blicos para que os cidadã os e grupos de interesses possam
(acatando-as) participar na sua implementaçã o, devidamente informados.
103
"Introduçã o...", cit., p. 95. Este autor, como referimos supra (V. nota 42), propõ e duas fases
distintas: a da audiçã o e a da negociaçã o, que, em meu entender, correspondem igualmente aos
primeiros dois graus de participaçã o de Gomes Canotilho.
104
"Participaçã o..." cit. p. ???? 97
do governo e o Presidente de uma Federaçã o Sindical, por exemplo? Entre a
Administraçã o e um particular, em sede do procedimento administrativo?
De duas, uma: ou estar-se-á aqui a confundir, desnecessariamente, o sentido
da democracia participativa, com a participaçã o do cidadã o através do sufrá gio –
pró prio das formas de democracia representativa, como já vimos –, ou estamos
perante uma desvalorizaçã o do propó sito final da democracia participativa, que é,
na perspectiva que seguimos neste trabalho, a obtençã o de consenso para decisõ es
justas e nã o a submissã o ao voto maioritário como agravo das expectativas das
entidades portadoras de interesses.

3.5. Domínios da participação

A visã o da participaçã o como um processo de orientaçã o de input abre, desde


logo, a questã o de saber em que domínios da vida do Estado ela se faz sentir, para
lá , evidentemente, dos domínios envoltos na representaçã o política.
A delimitaçã o da participaçã o é, regra geral, associada aos grandes domínios
da actividade estatal, nomeadamente à administraçã o pú blica, à elaboraçã o da
legislaçã o e à funçã o jurisdicional.
Apesar das diferentes condiçõ es de asseguramento da participaçã o
democrá tica das entidades portadoras de interesses em cada Estado, parece nã o
haver dú vidas, por variadíssimas razõ es, aliá s, anteriormente aqui sustentadas,
que é no domínio da administraçã o pú blica que o problema assume maior
relevâ ncia em qualquer Estado democrá tico do tipo ocidental.
No domínio da administraçã o pú blica, a participaçã o pode repercutir-se em
três dimensõ es:

1- No reforço do poder local e regional.


A participaçã o toma, nesta dimensã o, um sentido de maior responsabilizaçã o
para os cidadã os, dada a sua maior aproximaçã o com o poder, donde um
maior conhecimento dos problemas por parte das entidades representativas
de interesses e do poder105;

105
Nã o vamos convocar, nesta sede, a polémica sobre a relaçã o entre a autonomia local e a
democratizaçã o, particularmente cara à Baptista 98
Machado, na doutrina portuguesa.
2- Na democratizaçã o da administraçã o.
A participaçã o é vista, aqui, em dois momentos: nos procedimentos
administrativos que afectem os direitos e interesses legalmente protegidos
dos cidadã os, com destaque para os interesses difusos e na gestã o
participada dos serviços, ou nas estruturas organizató rias da
administraçã o106;

3- Na chamada "democracia neocorporativista".


A participaçã o é, nesta dimensã o, realizada através de grupos ou instituiçõ es
junto dos poderes pú blicos. Relevam, neste sentido, algumas modalidades,
como o direito de petiçã o colectiva, qualificada ou nã o; audiçõ es ou pareceres
possíveis ou legal ou constitucionalmente necessá rios; a participaçã o em
ó rgã os consultivos, de planeamento ou de concertaçã o, em acordos ou
convençõ es obrigató rias para os parceiros sociais, a participaçã o na gestã o de
serviços, etc.

No domínio da elaboraçã o da legislaçã o, o problema da participaçã o afigura-


se bastante controvertido. Nã o é, de todo em todo, inviá vel a institucionalizaçã o da
participaçã o dos grupos portadores de interesses no processo legislativo. Mas já
nã o me parece salutar que se abra um espaço infindá vel à participaçã o neste
domínio e, ainda mais, com grau vinculante. Neste domínio, em especial,
aconselha-se a refrear a "euforia" participativa, devendo, para tal, criarem-se
sempre quadros de intervençã o das entidades portadoras de interesses que nã o
atentem contra a liberdade de acçã o dos poderes legitimados. A acçã o dos lobbies
parece encontrar aqui terreno fértil.
No domínio da funçã o jurisdicional subscrevo, em geral, a posiçã o de Jorge
Miranda107. É curioso que a constituiçã o angolana (leia-se, lei constitucional de

106
Sobre os exemplos de gestã o participada, Jorge Miranda entende que embora isso
aparente a prá tica de democracia directa "no plano global do Estado trata-se de democracia
participativa", op. cit., p. 178.
107
Op. cit., p. 176. Tem peso o meu assumido conhecimento deficiente da experiência
portuguesa, nessa matéria. 99
1992) se refira no seu art.º 122 à participaçã o de "assessores populares" no
exercício da funçã o jurisdicional. Mas, trata-se, quanto a mim, de um resquício do
modelo judicial da 1.ª Repú blica, pelo que nã o deve ser subsumido ao esquema da
democracia participativa, sendo presumível que esse elemento nã o venha a ser
acolhido no "edifício" judicial da 2.ª Repú blica, apó s a revisã o da constituiçã o
angolana. Entendo, no entanto, que, em homenagem ao princípio da independência
dos juízes e aos estritos critérios jurídicos de que se deve pautar a funçã o
jurisdicional, é de se afastar, terminantemente, a introduçã o de formas de
participaçã o, maxime, política neste domínio da actividade do Estado. Nã o se deve
levar tã o longe a participaçã o.

CAPÍTULO IV – OS LIMITES DA PARTICIPAÇÃO

Feita a verificaçã o sumá ria dos contornos da autonomia da democracia


participativa, interessa, agora, proceder-se à abordagem – ainda que telegrá fica –
dos limites da participaçã o.
A democracia participativa movida pelo slogan "quanto mais democracia,
mais liberdade e, por isso, mais participaçã o" fica, desde logo, condicionada pela
vontade política do poder. É este quem define o espaço de participaçã o dos
cidadã os.
A defesa e assunçã o de um status positivus socialis ao lado de um status
activus processualis depende, obviamente, do conjunto de instrumentos e
condiçõ es que o Estado disponibiliza e garante à sociedade civil108. Logo, o poder
político é, ele pró prio, um limite – geral – da democracia participativa.
Um outro limite que se aponta é a democracia representativa.
De facto, como se viu, a democracia participativa nã o pode ir para lá da
democracia representativa e é curioso que, nos casos de justaposiçã o entre
mecanismos ou formas de exercitaçã o de ambas, prevalecem os da democracia
representativa, senã o prestemos atençã o:

108
Todavia, esta posiçã o privilegiada do poder nã o deve conduzir, sob o pretexto de evitar o
"excesso de democracia" ou "excesso de socializaçã o do Estado", ao extremo da "colonizaçã o da
sociedade" e à desvalorizaçã o do ideal participativo.
100
 A participaçã o política entendida em sentido amplo reconduz-se, como
vimos, à participaçã o através do voto, por conseguinte, à democracia
representativa;
 Os partidos políticos, mesmo que se apresentem como agentes de
"representaçã o indirecta de interesses", nã o se lhes retira – antes pelo
contrá rio – o protagonismo exclusivo (ou quase exclusivo) na
representaçã o política;
 No confronto entre interesse geral e interesses particulares ou grupais,
em regra, o interesse geral sobrepõ e-se aos demais, embora possa fazer a
sua síntese;
 O poder social ínsito na sociedade civil é um poder, no fundo, limitado
pela legitimidade do poder político. Funciona, aqui, uma espécie de
"princípio da nã o violaçã o do poder político" que se exige à s entidades
portadoras de interesses e que, na prá tica, se assume como um castrador
de consensos.
Entretanto, para além dos limites apontados, costumam referir-se algumas
insuficiências imanentes à democracia participativa, que obrigam a interrogaçõ es
sobre a sua autonomia e eficá cia, nomeadamente:
 A dificuldade de passagem de um modelo de micro-participaçã o
(fá bricas, escolas, etc.) para um modelo de macro-participaçã o;
 A dificuldade de superar a "apatia" política dos cidadã os;
 A dificuldade de ultrapassar os erros que ela reproduz – embora em
menor escala e intensidade – e que se assemelham à democracia
representativa, designadamente o esquema representativo que está
subjacente à s entidades portadoras (representantes) de interesses.
Também aqui se coloca o problema do grau de representatividade; da
ligaçã o entre o representado e os dirigentes dos grupos; entre o interesse
dos representados e o interesse (subjectivo e real) dos representantes.
Tudo isto resulta do cará cter quase-político que possuem as entidades
portadoras de interesses a que lhes corresponde um modo de actuaçã o
muito pró ximo ao dos ó rgã os do poder político.

101
A consideraçã o de todos esses factores, que corporizam os limites (e
insuficiências) da democracia participativa, tem levado alguns autores a sugerirem
a existência de uma crise da participaçã o109 e faz aumentar o tom de voz daqueles
que consideram a democracia participativa como uma ideologia ou teoria ambígua,
confusa e difusa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo da democracia participativa – a partir da perspectiva que elegemos


neste relató rio – mostra, com evidência, que se trata de uma ideia que "apetece"
aos cientistas políticos nã o tratar dela. Para tal, parece có modo afirmar que se
trata, apenas, de uma ideia confusa e ambígua.
Nó s pró prios reconhecemos que este estudo está longe de cobrir todas as
vertentes de aná lise que a abordagem do tema reclama, apesar da delimitaçã o
inicialmente estabelecida.

1- Do nosso estudo resulta manifesto que se encontra insuficientemente


recortada essa figura, quer do ponto de vista doutriná rio, quer do ponto de
vista da sua dimensã o prá tica. Na primeira dimensã o – doutriná ria – o
problema parece residir, quanto a mim, no cará cter genérico da figura, o que
lhe retira algum espaço de caracterizaçã o teó rica. Na segunda dimensã o –
prá tica – as razõ es podem ser encontradas na exiguidade de mecanismos e
formas de participaçã o disponibilizados pelo poder político. Essa exiguidade
e, também, a sua fragilidade parecem alimentar as opiniõ es mais
depreciadoras da democracia participativa. Acresce que as "baterias"
parecem estar, por enquanto, mais viradas para o estudo das insuficiências
da democracia representativa. Mas, apesar disso, a confusã o que se atribui à
democracia participativa é mais aparente do que real.

2- A questã o do consenso como funçã o geral ou objectivo da participaçã o nã o


deve ser minimizada. De facto, perante a necessidade da sociedade civil se

109
Cfr. Alfonso Perez Moreno "Crisis ...", cit.102
p. ????
fazer ouvir, a articulaçã o de interesses assume uma importâ ncia fundamental
porque marca a fronteira entre a sociedade e o poder político. Esteada num
poder social capaz de dialogar com as instâ ncias decisó rias do Estado, a
articulaçã o de interesses permite a racionalizaçã o dos conflitos e a obtençã o
do consenso. Com efeito, perante o protagonismo, apesar de tudo cada vez
mais evidente, das entidades portadoras de interesses na sua ló gica em busca
do consenso, nã o é de estranhar que se desenhe já a designaçã o de "Estado
consenso" para o Estado ocidental, nos pró ximos tempos.

3- Se essa funçã o de consenso se pode concretizar, a outra consideraçã o que me


apraz fazer pode resumir-se na aceitaçã o da autonomia conceitual e prá tica
da democracia participativa, apesar das hesitaçõ es da doutrina. Para mim,
valem os seguintes elementos de aná lise:
 Nasce fora dos mecanismos de representaçã o política e conceitualmente
desenvolve-se autonomamente;
 Possui mecanismos e formas que, apesar de algumas afinidades com os
da representaçã o política, sã o, em geral, autó nomos;
 Caracteriza-se pela natureza particularista dos interesses que reivindica
e defende;
 Finalmente, assenta na autodeterminaçã o dos homens e nã o no mandato
do povo, como acontece com a representaçã o política.

4- E, se a alguma conclusã o podemos chegar é que – apesar de todas as


insuficiências e limitaçõ es que se lhe reconhecem – a democracia
participativa, enquanto processo a desenvolver, possui as virtualidades
necessá rias para “obrigar” o poder político a, cada vez mais, aceitar a
produçã o de decisõ es consensuais. É , justamente, o poder de intervençã o dos
cidadã os, grupos ou instituiçõ es, assentes em mecanismos e formas pró prios
e numa responsabilidade política e social, cada vez mais sedimentada, que
exige um reconhecimento, nã o apenas fá ctico, mas igualmente jurídico da

103
autonomia da democracia participativa pela doutrina e pelos poderes
pú blicos.

104
CONTRIBUTOS DE UM ADMINISTRATIVISTA PARA O
MODELO CONSTITUCIONAL DE ORGANIZAÇÃO DO PODER
ADMINISTRATIVO

CARLOS TEIXEIRA110

Sumário:

1. Introduçã o ao Direito Administrativo

2. Administraçã o Pú blica e suas Tipologias

3. Administraçã o Pú blica e as Funçõ es do Estado

4. Um Breve Olhar sobre os Processos da Descentralizaçã o em Á frica

Conclusã o

110
Professor Associado da Universidade Agostinho Neto e Director do Centro de Pesquisa em
Políticas Pú blicas e Governaçã o Local. 105
1. INTRODUÇÃO AO DIREITO ADMINISTRATIVO

A génesis do Direito administrativo é, historicamente e em termos


conceituais, a limitaçã o do poder estadual. Por sua vez, este limite encontra a sua
ratio essendi no respeito pelos direitos fundamentais do Cidadã o, garantidos pela
Constituiçã o.
A constituiçã o do direito administrativo tem, cada vez mais, como
travejamento o equilíbrio entre o poder do Estado e o direito das pessoas, no
contexto da construçã o dos Estados democrá tico e de direito.
O Direito administrativo, tal como os demais ramos de direito, encontra os
seus alicerces na Constituiçã o, responsabilizando-se pela concretizaçã o do Direito
Constitucional na busca permanente deste equilíbrio entre o poder estadual, que
persegue o interesse de todos, e o direito e interesse dos indivíduos.

1.1. As Bases Históricas do Direito Administrativo Angolano

O Direito administrativo angolano tem as suas bases histó ricas no direito


administrativo português, que, por sua vez, sofre fortes influências do direito
administrativo francês.
Entretanto, a ascensã o de Angola à independência levou a que, nos marcos do
ideá rio da constituiçã o do socialismo, essa matriz tenha sido afastada com a
aproximaçã o à matriz socialista, que, em boa verdade, se reconduzia a uma teoria
do Estado e de Direito na concepçã o da época.
Todavia, em 1984, vive-se em Angola um período tentativo de construçã o do
socialismo. Nesta altura, tem lugar a primeira ruptura implícita no ensino do
direito administrativo, com a reintroduçã o do manual de Direito Administrativo de
Marcelo Caetano, quando neste ano o entã o jovem angolano Iná cio Fonseca assume
o ensino da disciplina na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto,
magistério entretanto interrompido com o seu falecimento.
Assume, entã o, a regência da disciplina Pitra Neto, ao qual se juntam,
sucessivamente, Carlos Feijó , Virgílio Fontes Pereira e Carlos Teixeira,
contribuindo, significativa e decisivamente, para a construçã o do novo direito

106
administrativo angolano, criando os alicerces para o actual direito administrativo,
adaptado, pouco e pouco, ao desenvolvimento político e institucional que Angola
foi e vem conhecendo, agora reforçada pelas mais novas geraçõ es de cultores deste
apaixonante ramo do saber jurídico.

1.2. O Marco Constitucional do Direito Administrativo Angolano

A Constituiçã o da Repú blica de Angola, de 5 de Fevereiro de 2010, consagra


certos princípios bá sicos que sã o hoje as traves mestras do Direito Administrativo
angolano, em construçã o acelerada, fundado na prá tica institucional.
A CRA consagra, no seu artigo 2.º, o primado da Constituiçã o e da Lei, a
separaçã o de poderes e a interdependência de funçõ es.
Nestes termos, a administraçã o pú blica exerce a sua actividade visando a
prossecuçã o do interesse pú blico, baseado em princípios da igualdade, legalidade,
justiça, proporcionalidade, imparcialidade, responsabilidade, probidade
administrativa e respeito pelo patrimó nio pú blico111
A estes princípios juntam-se os da simplificaçã o administrativa, da
aproximaçã o dos serviços à s populaçõ es e da descentralizaçã o e desconcentraçã o
administrativas.
É alicerçada nestes princípios que se começa a desenhar a nova edificaçã o do
modelo constitucional de organizaçã o do poder administrativo, atendendo a
interesses específicos das populaçõ es, ou seja, o modelo autá rquico.
Falar das autarquias locais é uma tarefa á rdua, sobretudo pelo facto de ser
um tema que consta das agendas dos grandes debates actuais, nã o só em termos de
política, mas também na visã o quotidiana dos cidadã os em geral, visto que estas
trazem consigo ventos de mudança, em termos dos modos de funcionamento e
organizaçã o administrativa.
É de notar, entre os cidadã os, a ansiedade da materializaçã o das políticas
pú blicas no processo de implementaçã o das autarquias locais, bem como os
benefícios que estas trarã o no â mbito do seu desempenho. Trata-se de uma
questã o que, há muito, se tem colocado em torno das mesmas e que tem como base
o princípio do gradualismo constitucionalmente consagrado, assunto este que já

111
Ver nº. 1 do Artigo 198 da Constituiçã o 107
da Repú blica de Angola.
tem sido respondido nos mais diversos debates académicos sociais e políticos, que
marcam as principais cadeias televisivas e redes sociais no País.
Através de uma apresentaçã o, faremos uma exposiçã o dos principais pontos
que elegemos como elementos basilares deste tema, visto que nã o poderemos
deixar, também, de abordar a figura da descentralizaçã o administrativa, do poder
local e a questã o da reforma política, porque as reformas política e do Estado, bem
como da administraçã o pú blica, apontam no sentido da descentralizaçã o, e é a
partir desta que sã o desencadeadas todas as figuras das quais nos ocuparemos.
As Autarquias Locais, como nova forma de resoluçã o e governaçã o
democrá tica, impõ em-nos, desde já , uma incursã o ao princípio da proximidade,
que se traduz na contiguidade das pessoas colectivas pú blicas em relaçã o à s
dificuldades concretas que afligem as populaçõ es locais, bem como no
desenvolvimento de políticas e estratégias que deverã o ser criadas com base nas
necessidades locais, capazes de responderem e resolverem tais situaçõ es.
Considera-se que o processo da descentralizaçã o, enquanto modelo
organizacional adoptado pelo Estado angolano, é um dos principais catalisadores
do desenvolvimento local, isto porque, para além de libertar o Estado de certas
actividades que, de certo modo, devem ser atendidas a nível local e nã o central,
operacionaliza e faculta a execuçã o de vá rias tarefas que estariam ligadas ao ó rgã o
central a outras entidades administrativas diferentes do Estado e com autonomia
jurídica, patrimonial, tal como as autarquias locais e os institutos pú blicos.

2. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E SUAS TIPOLOGIAS

A estruturaçã o da administraçã o pú blica é um elemento variá vel ao longo dos


tempos e, tal como acontece com os sistemas, quer político como jurídico, esta
variaçã o tem como pano do fundo elementos temporais e espaciais. Estas variaçõ es
geram um entendimento do sistema administrativo a diferentes modos de
estruturaçã o, jurídica, de funcionamento e controlo da administraçã o, portanto,
estes modos fazem, desde já , nascer a necessidade de olharmos para a distinçã o
dos sistemas tradicionais e modernos de administraçã o pú blica. Os referidos

108
sistemas têm suporte em diferentes características pró prias, assentes na
concentraçã o de poderes, bem como na separaçã o de poderes na pessoa do
soberano, visto que a evoluçã o dos sistemas levou com que no nosso tempo, e
atendendo à s nossas necessidades, adoptá ssemos o sistema que melhor se
harmoniza com a nossa realidade e as nossas necessidades.

3. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AS FUNÇÕES DE ESTADO

Tendo-se por apreendidas as matérias ligadas à s funçõ es de Estado,


passaremos a uma abordagem, ainda que telegrá fica, à comparaçã o entre a
actividade administrativa, ou Administraçã o Pú blica em sentido material, e as
outras funçõ es de Estado, isto é, a política ou governamental, a legislativa, e a
jurisdicional.

3.1. Política e Administração Pública

A funçã o política ou governamental, enquanto actividade pú blica do Estado,


tem como fim específico definir o interesse geral da colectividade, para cuja
satisfaçã o a Administraçã o Pú blica existe. Tem por objectivo as grandes opçõ es
que o País enfrenta, ao traçar os rumos do seu destino colectivo, competindo à
Administraçã o Pú blica, como já vimos, satisfazer a realizaçã o das necessidades
colectivas de segurança, bem-estar econó mico e bem-estar social.
Tem uma natureza criadora, cabendo-lhe, a todo o momento, inovar em tudo
quanto seja fundamental para a conservaçã o e o desenvolvimento da comunidade
nacional, ao contrá rio da natureza executiva da Administraçã o Pú blica, sobretudo
no que toca à materializaçã o prá tica das orientaçõ es tomadas a nível político.

3.2. A Administração Pública como Poder

Nã o sendo a actividade dos ó rgã os administrativos homogénea quanto ao seu


conteú do, nem uniforme, é cada vez menos significativo referir, no plano de Direito
positivo, a funçã o administrativa do Estado, mero conceito de formulaçã o teó rica.

109
A Administraçã o Pú blica aparece-nos, hoje em dia, na maior parte dos países,
como uma das formas através das quais o Estado manifesta a sua autoridade. A
Administraçã o deixa de se caracterizar como funçã o e afirma-se como poder.

3.2.1. Função Legislativa e Administração Pública

A funçã o legislativa encontra-se no mesmo plano, ou ao mesmo nível, da


funçã o política, pelo que as características, há pouco apontadas para distinguir a
funçã o política da Administraçã o Pú blica, se aplicam também aqui, mutatis
mutandis.
A diferença principal entre a funçã o legislativa e a Administraçã o Pú blica
reside no facto de esta ú ltima estar totalmente subordinada à lei, que é o
fundamento, o critério e o limite de toda a actividade administrativa.

3.2.2. Função Jurisdicional e Administração Pública

Um importante traço, comum a ambas, resulta do facto de serem actividades


secundá rias, executivas, subordinadas à lei. Porém, mais relevantes ainda sã o os
traços que as distinguem: uma consiste em julgar, a outra em gerir.
A justiça visa aplicar o Direito aos casos concretos, a Administraçã o Pú blica
visa prosseguir interesses gerais da colectividade; a justiça aguarda, passivamente,
que lhe tragam os conflitos sobre os quais tem de pronunciar-se, à Administraçã o
Pú blica cabe a iniciativa de satisfazer as necessidades colectivas que lhe sã o
confiadas; a justiça está acima dos interesses, é desinteressada, nã o é parte dos
conflitos que, há décadas, a Administraçã o Pú blica defende, na prossecuçã o dos
interesses colectivos a seu cargo, em que é parte interessada.

3.2.3. O Regime jurídico de delimitação de responsabilidades de actuação


entre a Administração Central e a Administração Local do Estado

A Constituiçã o da Repú blica de Angola dá uma grande atençã o à


Administraçã o e Governaçã o Local, materializando tal importâ ncia como
desiderato de consolidaçã o da democracia gestioná ria. Como forma de melhorar e
tornar mais eficiente a prossecuçã o dos interesses pú blicos, o Executivo

110
estabeleceu, por via do Decreto Presidencial n.º 20/18 de 29 de Janeiro, o regime
de delimitaçã o e desconcentraçã o de competências e coordenaçã o entre a
Administraçã o Central e a Administraçã o Local do Estado.
O diploma estabelece o regime geral de delimitaçã o e desconcentraçã o,
â mbito e modos de competências e coordenaçã o da actuaçã o territorial em ambos
os níveis.
Sã o hoje tarefas e/ou missõ es de â mbito do poder local os domínios da
educaçã o e ensino, saú de, energia, transporte e vias de comunicaçã o, ordenamento
do territó rio e urbanismo, construçã o, conservaçã o e manutençã o de estradas,
ambiente, á gua e saneamento bá sico, promoçã o do desenvolvimento integrado,
patrimó nio, ciências, cultura e turismo.
Sã o, ainda, esfera de actuaçã o do poder local a satisfaçã o de demandas do
â mbito social, tempos livres e desportos, sem prejuízo de outras competências que
venham a ser, legalmente, definidas, assim como a prossecuçã o de demandas na
realizaçã o de sistemas de latrinas e fossas sépticas, construçã o de mangas de
vacinaçã o animal e de tanques banheiros, fomento da pesca artesanal, fomento da
actividade agro-pecuá ria familiar e cooperativa e outras acçõ es similares.
Perante este quadro legal, colocar-se-á a questã o de se saber se estã o eles
preparados para a assumpçã o das responsabilidades que, do ponto de vista legal,
lhe cabem?
Poder-se-á , igualmente, colocar a questã o referente a que ao tipo de
preparaçã o da sua geografia humana?
Concretizando mais, a preparaçã o a que nos referimos é no domínio dos
recursos humanos, porquanto, e/é no homem sobre quem deve incidir o
investimento, é o elemento chave para a mudança.
Um estudo, relativamente, recente na Província do Bié, que teve por objecto a
aferiçã o dos municípios, quer rurais ou urbanos, preparados para assumir as
competências decorrentes do Decreto Presidencial n.º 20/18, conclui que apenas
os municípios do Kuíto se abeiram do cumprimento das responsabilidades
gestioná rias e de planeamento que lhe cabem.
Em relaçã o a Benguela, aqui esperamos um outro cená rio, pois trata-se de
uma província do litoral e com uma tendencial forte concentraçã o de quadros com
111
a formaçã o e as habilidades adequadas para o cumprimento dos poderes
funcionais, tendo em vista a realizaçã o do interesse pú blico no cumprimento das
tarefas fundamentais do Estado, do direito e liberdades fundamentais constantes
da Constituiçã o da Repú blica de Angola.
Sendo o município uma associaçã o natural dos vizinhos (grupo de
intermediaçã o entre os indivíduos e o Estado com funçõ es de realizar o bem
comum) é, a meu ver, nesta circunscriçã o, que deve estar concentrado o melhor
das capacidades humanas e gestioná rias para a prossecuçã o do interesse pú blico e
a realizaçã o do bem comum.
Falar do poder local na Constituiçã o da Repú blica de Angola pressupõ e fazer
uma incursã o sobre a Constituiçã o conceptual.
Assim, diremos que o poder local se alicerça, necessariamente, num Direito
positivo em concreto, ainda que ele possa ser inspirado em realidades jurídicas
alheias e de contextos histó ricos ou políticos de outrem. Olhando para o passado
Histó rico-Constitucional recente de Angola, veremos que, mesmo na anterior Lei
Constitucional, o tratava em termos conceptuais de modo diferente. E este
exercício de conceituaçã o, na base dos elementos que a Constituiçã o nos oferece, é
o trabalho que nos cabe.
Assim, o poder local é, à luz da Constituiçã o da Repú blica de Angola, um
fenó meno da esfera do poder político alicerçado na descentralizaçã o, tal com
preceitua o artigo 213.º.
A anterior Lei Constitucional112 indexava o conceito de poder local à
organizaçã o democrá tica do Estado, dando-lhe um reconhecimento e projecçã o de
grande importâ ncia.
A actual Constituiçã o da Repú blica de Angola dá ao conceito de poder local
uma valência tridimensional, ao consagrar três formas organizativas, que sã o: as
autarquias locais, as instituiçõ es do poder tradicional e outras modalidades

112
Artigo 145.º.Error: Reference source not112
foundError: Reference source not found
específicas de participaçã o dos cidadã os113, conforme disposto no n.º 2 do artigo
213.º.
Seguindo de perto o Professor Doutor José Melo Alexandre114, ao analisar o
conceito de poder local na Constituiçã o da Repú blica de Angola, ressalta que o
texto constitucional assinala a dimensã o do poder político (democrá tico e
tradicional). Contrariamente ao que ocorria na Lei Constitucional, o poder local
tem hoje a ele dedicado, na Constituiçã o da Repú blica, um título em separado.
Por conseguinte, o poder local, sendo na sua dimensã o um poder político, nã o
é, todavia, soberano (nã o podendo ameaçar a soberania do Estado unitá rio),
devendo conviver com outros poderes, pú blicos, tradicionais e privados, assim
como com outros poderes administrativos do Estado, especialmente o de controlo,
nos termos previstos no artigo 241.º da Constituiçã o.
Da leitura do texto da Constituiçã o resulta, ainda, que o poder local pode
derivar de: um ordenamento do Estado mais democrá tico e autó nomo; de um
ordenamento originá rio pró prio e decorrente do exercício dos poderes
tradicionais; de meros poderes legais de participaçã o em actos, procedimentos,
ó rgã os ou instituiçõ es.
Quanto à s autarquias locais, já a anterior Lei Constitucional a ela se referia,
no artigo 146.º, deferindo-a como pessoa colectiva territorial que visa a
prossecuçã o de interesses pró prios das populaçõ es, dispondo, para o efeito, de
ó rgã os pró prios representativos eleitos e de liberdade de administraçã o das
respectivas colectividades.
Actualmente, é o artigo 217.º da Constituiçã o da Repú blica de Angola que o
conceptualiza como pessoa colectiva territorial, correspondente ao conjunto de
residentes em certas circunscriçõ es do territó rio nacional que asseguram a
prossecuçã o de interesses específicos resultantes da vizinhança, mediante ó rgã os
representativos eleitos pelas populaçõ es.

113
A propó sito destas outras formas ou modalidades de participaçã o, existem, no Município
do Andulo – Província do Bié – as ODAS, organizaçõ es de desenvolvimento das á reas (sectores ou
aldeias), hoje já em nú mero superior a 16, com um formato algo diferente dos Conselhos de
Auscultaçã o e Concertaçã o Social.
114
Vide O Poder Local na Constituiçã o da Repú
113 blica de Angola: princípios fundamentais.
Estã o, pois, aqui implícitos os elementos constitutivos do conceito de
autarquias locais, designadamente: personalidade jurídica, comunidade de
residentes, territó rio, interesses pró prios, cará cter electivo dos ó rgã os e poderes
locais.

4. UM BREVE OLHAR SOBRE OS PROCESSOS DE DESCENTRALIZAÇÃO


EM ÁFRICA: ALGUNS TÓPICOS E HISTÓRICO DO PROCESSO DA
DESCENTRALIZAÇÃO EM ANGOLA

As grandes orientaçõ es em matéria de descentralizaçã o administrativa


advêm de documentos de estratégia aprovados pelas estruturas do poder em
Angola, porém, ainda em exercício de densificaçã o.
Tendo em vista a edificaçã o da descentralizaçã o, enquanto modelo
organizacional, que mais benefícios pode oferecer ao desenvolvimento local e à s
populaçõ es, o MPLA — partido que sustenta a governaçã o no País — gizou e tem
procurado implementar vá rios programas com o propó sito de atingir tal
desiderato, tais como:
- Promoçã o da descentralizaçã o administrativa, mormente no que aos ó rgã os e
serviços da administraçã o periférica do Estado diz respeito, tendo como
propó sito garantir a extensã o e da consolidaçã o da presença da autoridade
do Estado à escala nacional;
- Promoçã o da descentralizaçã o administrativa e da institucionalizaçã o das
autarquias locais, na sequência da desconcentraçã o;
- Adopçã o do princípio do gradualismo no processo de institucionalizaçã o dos
ó rgã os locais autá rquicos;
- Promoçã o de acçõ es de coordenaçã o entre as diferentes estruturas da
administraçã o pú blica, que permite a implementaçã o gradual do processo de
transferência de atribuiçõ es e competências para as entidades locais;
- Adopçã o dos princípios constitucionais fundamentais com relevâ ncia para o
processo de institucionalizaçã o do poder local, designadamente:
a) A autonomia local;

114
b) O reconhecimento das instituiçõ es do poder tradicional e do costume
como fonte de direito nos termos previstos por lei;
c) A clarificaçã o das atribuiçõ es e competências das autarquias locais e das
instituiçõ es do poder tradicional;
d) As promoçõ es do associativismo e o incentivo à participaçã o individual a
nível local, como alavancas auxiliares do desenvolvimento;
- Adopçã o de um programa sério e credível de formaçã o, capacitaçã o e gestã o
previsional dos recursos humanos.
Estes passos, alicerçados em programas e outras medidas de políticas
pú blicas, têm o seu fundamento em razõ es histó ricas profundas, decorrentes do
processo político em Angola, que começou caracterizado por um elevado grau de
centralizaçã o, para cujo modelo terã o contribuído:
a) A necessidade de implementar as estruturas de um Estado independente,
que precisava de se afirmar por via do reforço da autoridade do poder
central, como aliá s aconteceu na maior parte dos países do continente
africano;
b) As influências ideoló gicas na construçã o do modelo organizacional na
altura vigente, que pendiam para uma forte centralizaçã o;
c) A promoçã o do desenvolvimento acelerado para tirar o país do estado de
subdesenvolvimento e as medidas de concentraçã o de recursos e
direcçã o centralizada do processo;
d) A carência de quadros e a necessidade de proceder a uma distribuiçã o
coordenada, de modo a prover as necessidades de províncias em
situaçõ es mais desfavorá veis;
e) A situaçã o de guerra vivida pelo país até 2002, que exigia uma
priorizaçã o de recursos e um estilo centralizado de gestã o.
Este roteiro levou a que, no passado ano de 2018, um processo de
auscultaçã o da sociedade tivesse lugar, culminando em 2019 com a aprovaçã o pela
Assembleia Nacional dos principais instrumentos reguladores do processo
autá rquico.

4.1. A Necessidade da Descentralização


115
A importâ ncia e a necessidade da descentralizaçã o é, como vimos, algo que,
desde 1992, tem vindo a ser identificado nos documentos de estratégia do partido
que sustenta a governaçã o em Angola, tendo ganho foro de cidade já na lei
constitucional de entã o e nã o tendo tido os desenvolvimentos subsequentes
normais com o reacender da guerra superveniente das eleiçõ es de 1992,
agravando os receios de fragmentaçã o, sempre presentes em países de composiçã o
etnolinguística e cultural variada como o nosso, num quadro de descentralizaçã o.
A Constituiçã o de Fevereiro de 2010 veio reafirmar os propó sitos de
descentralizaçã o, ao consagrar, no seu articulado 8.º, Angola como um Estado
unitá rio, assente no respeito dos princípios da autonomia dos ó rgã os do poder
local e da desconcentraçã o e descentralizaçã o administrativa. Estes postulados da
Carta Magna angolana foram retomados em legislaçã o infraconstitucional, em
especial na Lei n.º 15/16, que estabelece os princípios e normas de organizaçã o e
funcionamento dos ó rgã os da Administraçã o Local.
Assumido, uma vez mais, a descentralizaçã o como desejo e, também,
necessidade, enquanto modelo organizató rio, passos concretos vêm sendo dados
entre nó s para a sua efectiva concretizaçã o.
No quadro de um processo de descentralizaçã o gradual de competências, dos
ó rgã os Centrais para os ó rgã os locais, foram aprovados vá rios diplomas, como o
Decreto Presidencial n.º 20/18, de 29 de Janeiro, que estabelece o regime geral de
delimitaçã o e descentralizaçã o de competências e coordenaçã o da actuaçã o
territorial ao nível central e local.
A descentralizaçã o é o modelo organizacional que melhor permite a
prossecuçã o do bem comum, compaginá vel com as sensibilidades e
particularidades das populaçõ es locais, no que toca à natureza dos seus problemas,
canalizando a mobilizaçã o de iniciativas e sinergias locais com tal propó sito.
É , igualmente, inegá vel que a descentralizaçã o é o modelo organizacional que, na
equaçã o custo-eficá cia, proporciona, em tese, as melhores e mais plenas soluçõ es,
sendo, consequentemente, as mais benéficas para os problemas das populaçõ es.
Tendo este tó pico como trave-mestra a abordagem dos benefícios da
descentralizaçã o, nã o posso deixar de catalogar os inconvenientes que a ela podem
estar associados, como por exemplo:
116
a) Poder gerar alguma descoordenaçã o no exercício da funçã o
administrativa;
b) Poder ser um flanco para o mau uso dos poderes discricioná rios da
administraçã o, sobretudo naqueles casos em que as pessoas nã o estejam
suficientemente preparadas para os exercer;
c) O facto de Angola ser um país formado por 18 províncias e 164
municípios, com um nível de desenvolvimento cultural que nã o nos
permite negligenciar estes perigos.
Pelo que precede, e a meu ver, o Decreto Presidencial Nº 20/18, de 29 de
Janeiro, que estabelece o regime geral de delimitaçã o e descentralizaçã o de
competências e coordenaçã o entre os dois níveis do exercício do poder
administrativo, parece-me ser um excelente balã o de ensaio para aferirmos em que
ponto estamos na nossa marcha com vista à prossecuçã o do desejo comum da
construçã o de um modelo de organizaçã o administrativa descentralizada.
Estando a pouco mais de um ano da data marco para a realizaçã o das
autá rquicas, o departamento do executivo, que cuida destas matérias, terá já
certamente uma noçã o da velocidade a que teremos de lançar mã o para tornar
mais efectivos os comandos constitucionais que alimentam o nosso sonho de
descentralizaçã o e dos benefícios inequívocos que dele advêm.

4.2. As Aplicações Contemporâneas da Descentralização enquanto Modelo


Organizacional Catalisador do Desenvolvimento

A autarcizaçã o do país pressupõ e doses significativas de descentralizaçã o,


para cuja preparaçã o poderemos socorrer-nos da mesma, princípio consagrado na
Constituiçã o da Repú blica de Angola.
Com a endurance ganha no modelo descentralizaçã o um estado de maturaçã o
adequado do modelo Constitucional, sendo este o passo tã o esperado. Neste
modelo de organizaçã o administrativa, operacionaliza-se a execuçã o de vá rias
tarefas pú blicas por outras entidades administrativas diferentes do Estado e com
autonomia jurídica, patrimonial, administrativa e financeira, mas também e,
sobretudo, com capacidade de gerir autonomamente tais assuntos pú blicos, sendo,

117
pois, para esse está dio que nos devemos preparar para a autarcizaçã o e seus
desafios, fundamentados no princípio do gradualismo115.
O desenvolvimento local está ligado à implementaçã o de políticas vinculadas,
de acordo com o plano de investimento no sector do Governo local, e ao quadro
estratégico da política da descentralizaçã o, um mecanismo abrangente para a
coordenaçã o dos sectores pelo governo local, implementaçã o de programa e
atribuiçã o de recursos, que visam incorporar o desenvolvimento como objectivo
estratégico.
Neste aspecto, o Governo Central é responsá vel pela promoçã o do
crescimento econó mico a nível nacional e local, ao alinhar os factores
macroeconó micos, conceber estratégias nacionais para aumentar a
competitividade e atrair investimentos estrangeiros para o país.
Deve ser introduzido na carteira de investimentos dos Governos locais para
aumentar os rendimentos dos cidadã os e alargar a base da tributaçã o, potenciar o
lugar das parcerias pú blico-privadas (PPP) no fornecimento de serviços, criar
vá rias formas de apoio macrofinanceiro à comunidade para o desenvolvimento de
actividades econó micas, a necessidade de capacitar os líderes centrais e locais para
assumirem as suas responsabilidades no seio das comunidades que lidam.
O processo de descentralizaçã o mostra aos governos locais que, para
manterem a sua estabilidade, deverã o mudar a sua atitude em relaçã o ao
envolvimento em empreendimentos comerciais, sem procedimentos lucrativos,
criando ambiente favorá vel à prosperidade, através do desenvolvimento de
negó cios. Assim que os governos locais compreenderem este seu papel, as
potencialidades e os pontos fortes das PPP vã o produzir-se os resultados ora
previstos.
Os líderes políticos e administrativos locais devem demonstrar uma
capacidade na aplicaçã o de esforços no desenvolvimento local e nã o na satisfaçã o
dos seus interesses pessoais e do grupo a que pertence.
Um elemento muito importante a ter em conta na descentralizaçã o, enquanto

115
Conforme dispõ e o artigo 242º da Constituiçã o da Repú blica de Angola, a
institucionalizaçã o efectiva das autarquias locais obedece ao princípio do gradualismo,
fundamentado em lei aprovada por ó rgã os competentes do Estado, com conteú do das suas
atribuiçõ es e aspectos referentes à transitoriedade,
118nela também definidos.
modelo de organizaçã o catalisador do desenvolvimento local, é apostar na
avaliaçã o das competências existentes, aptidõ es e conhecimentos do pessoal das
Administraçõ es Locais para perceberem em que unidades podem executar as suas
funçõ es e alcançar os resultados.
Os governos locais devem contar sempre com a contribuiçã o de vá rios
actores sociais, sobretudo os emergentes do processo de descentralizaçã o
Administrativa, a sociedade civil, os partidos políticos e outras organizaçõ es,
capazes de apoiar no â mbito das políticas do desenvolvimento no seio das
comunidades.

4.2.1. Os Benefícios da Descentralização no Desenvolvimento Local

Os benefícios do processo da descentralizaçã o no desenvolvimento local


traduzem-se nas vantagens que o processo em si traz, que, neste caso, podemos
apontar como sendo:
a) O desenvolvimento local tem como fio condutor a eficiência e celeridade
por parte dos agentes administrativos, sendo que, no acto de actuaçã o, os
ó rgã os devem pautar-se por uma conduta célere e eficaz para que
possam, atempadamente, responder à s solicitaçõ es feitas pelos
administrados, ou seja, pelos cidadã os residentes nas circunscriçõ es
administrativas em que estas actuam;
b) Facilitaçã o da participaçã o dos interessados na gestã o pú blica;
c) Limitaçã o do poder pú blico, por via da separaçã o vertical do poder.

4.3. Desconcentração, Descentralização Administrativa e Autarcização

Num outro olhar, José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira
entendem a desconcentraçã o administrativa como o modelo organizacional, em
que o poder decisó rio se reparte entre um superior e um ou vá rios subalternos,
com direcçã o e supervisã o daquele116.
A desconcentraçã o prepara a má quina administrativa para uma prestaçã o

116
Noçõ es Fundamentais de Direito Administrativo, 2011 – 2ª Ediçã o; Almedina, pá gina 99 e
seguintes. 119
mais eficiente, oferecendo respostas rá pidas à s demandas dos administrados e
potenciando uma prestaçã o pú blica de melhor qualidade.
As modalidades de desconcentraçã o sã o vá rias, desde a horizontal, vertical,
absoluta, relativa, originá ria ou derivada, apoiadas em critérios diversos, sobre os
quais nã o nos referimos aqui, remetendo para autores como Marcelo Rebelo de
Sousa/André Salgado de Matos117 ou José Eduardo Figueiredo Dias/Fernanda
Paula Oliveira118.
Com a endurance ganha no modelo desconcentrado e num estado de maturaçã o
adequado do modelo Constitucional, a descentralizaçã o pode ser o pró ximo passo.
Neste modelo de organizaçã o administrativa operacionaliza-se a execuçã o de
vá rias tarefas pú blicas por outras entidades administrativas diferentes do Estado e
com autonomia jurídica, patrimonial, administrativa e financeira, mas também (e
sobretudo) com capacidade de gerir autonomamente tais assuntos pú blicos.
É , pois, para esse está dio, fundamentados no princípio do gradualismo119, que
nos devemos preparar para a autarcizaçã o e seus desafios, com data já marcada
para 2020.

4.3.1. Desconcentração e Descentralização em Angola – Os Caminhos Futuros


do Processo de Autarcização no Contexto Angola.

O poder local na Constituiçã o da Repú blica de Angola e a aná lise comparativa


sobre a temá tica na anterior Lei Constitucional merecerã o, também, a nossa
atençã o, procurando ler nelas a diferença conceptual e de abordagem sobre o
poder local.
Assim, e olhando para a Constituiçã o em vigor, elencaremos o catá logo de
princípios e densificá -lo-emos na antecâ mara das atribuiçõ es dos ó rgã os da
administraçã o e governaçã o local, ao nível da Província e do Município.
A nossa abordagem sobre o tema, que nos ocupa, nã o ficaria completa se nã o

117
Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª Ediçã o; D. Quixote, pá ginas 150 e 151.
118
Obra citada, pá gina 99 e seguintes.
119
Conforme dispõ e o artigo 242º da Constituiçã o da Repú blica de Angola, a
institucionalizaçã o efectiva das autarquias locais obedece ao princípio do gradualismo,
fundamentado em lei aprovada por ó rgã os competentes do Estado, com conteú do das suas
atribuiçõ es e aspectos referentes à transitoriedade,
120nela também definidos.
nos debruçá ssemos sobre o regime jurídico de delimitaçã o de responsabilidade de
actuaçã o entre a Administraçã o Central e a administraçã o local do Estado.
Quais sã o, entã o, as municipalidades que hoje têm condiçõ es de assumir as
atribuiçõ es e competências decorrentes, quer da Lei nº 15/16, quer do Decreto
Presidencial nº 20/18?
Poucas, mas, na continuaçã o desta aná lise, chegaremos, num futuro pró ximo,
a dados mais definitivos e conclusivos sobre a eficá cia do processo de
desconcentraçã o rumo à descentralizaçã o em Angola.
E porque a desconcentraçã o e, até mesmo, a descentralizaçã o e as medidas de
políticas pú blicas delas decorrentes, apenas se manifestarem eficazes e efectivas se
forem acompanhadas da necessá ria transferência (nã o só de recursos humanos,
mas também de recursos financeiros), dedicaremos, também, umas breves
palavras ao regime financeiro local, pelo menos no que toca ao seu regime jurídico
actual, ficando para um pró ximo estudo a aná lise efectiva do seu impacto, ao nível
da administraçã o e governaçã o. Nã o obstante terem sido efectivados os termos de
transferência em alguns domínios, nas 18 Províncias do País e para as 164
Administraçõ es Municipais, a parte financeira continuará a ser o grande calcanhar
de Aquiles.

4.4. As atribuições das Autarquias Locais e as Competências dos seus órgãos


De Iure Condendo

A Constituiçã o da Repú blica de Angola consagra, no artigo 219º, atribuiçõ es e


poderes funcionais nos domínios da educaçã o, saú de, energias, á guas,
equipamento rural e urbano, patrimó nio, cultura e ciência, transportes e
comunicaçõ es, tempos livres e desportos, habitaçã o, acçã o social, protecçã o civil,
ambiente e saneamento bá sico, defesa do consumidor, promoçã o do
desenvolvimento econó mico e social, ordenamento do territó rio, polícia municipal,
cooperaçã o descentralizada e geminaçã o.
Para o exercício dessas tarefas e, ou, missõ es, os ó rgã os autá rquicos
estruturar-se-ã o em assembleia representativa com poderes deliberativos,
composta por representantes locais, eleitos por sufrá gio universal, igual, livre e

121
directo, e o executivo colegial com um presidente e secretá rios responsá veis pelos
vá rios pelouros, nomeados pelo presidente do executivo municipal, sendo todos
eles responsá veis perante a assembleia representativa.
À semelhança do que acontece com o executivo central, e nos termos do
artigo 220º, n.º 4 da Constituiçã o da Repú blica de Angola, o presidente do ó rgã o
executivo da autarquia é o cabeça de lista mais votado para a assembleia.
Esta soluçã o, resultante de escolhas constitucionais, coloca-nos perante o
risco de transferências do poder partidá rio do nível central para o nível local, com
as influências negativas que podem acarretar para a democracia participativa que
se pretende mais apurada a nível local.
O cená rio colocar-nos-á perante a aná lise das feiçõ es da democracia no
â mbito do poder local.
Da leitura dos artigos 217º e 220º, n.º 2 e 5 da Constituiçã o da Repú blica de
Angola, parece ter ficado claro a opçã o pela democracia representativa, com alguns
laivos da democracia participativa, nos termos da parte final do n.º 2 do artigo
213º, que aponta para outras modalidades específicas de participaçã o dos
cidadã os nos moldes em que a lei ordiná ria o venha a permitir.
Nã o pude capturar da leitura do texto constitucional qualquer disposiçã o
indicadora da consagraçã o da democracia semi-directa, que tem a sua expressã o
marcante no instituto do referendo local.

4.5. Relação Funcional Entre Autarquias Locais, Autoridades Tradicionais e


Administração Local do Estado.

Olhando para o quadro da aproximaçã o conceptual e, sobretudo, para a


necessidade que se impõ e de revisitar conceitos, importará , no quadro do exercício
que aqui fazemos, olhar para a Constituiçã o da Repú blica de Angola para
capturarmos a densidade conceitual destes institutos e da relaçã o funcional que
mais abaixo procurarei apresentar.
O que é uma relaçã o funcional?
As relaçõ es funcionais sã o os vínculos normativos que se estabelecem entre
Entes, no quadro do exercício de atribuiçõ es e competências que lhe sã o pró prios.

122
Neste tó pico, teremos que ver, De Iure Condendo, que relaçõ es poderã o ser
estas e como operacionalizá -las, uma vez que, no quadro do modelo da organizaçã o
do Poder Local, as três realidades, designadamente, Autarquias Locais,
Autoridades Tradicionais e Administraçã o Local do Estado, devem ser tidas em
conta.
A Constituiçã o da Repú blica de Angola começa por estabelecer, no título VI,
dedicado ao Poder Local, os princípios sobre os quais deverã o repousar a
organizaçã o democrá tica do Estado a nível local, com realce para o princípio da
descentralizaçã o (artigo 213.º) e princípio da autonomia local (artigo 214.º).
Assim, o legislador constitucional define as Autarquias Locais120 como
“pessoas colectivas territoriais correspondentes ao conjunto de residentes em
certas circunscriçõ es do territó rio nacional e que asseguram a prossecuçã o de
interesses específicos” que decorrem das relaçõ es de vizinhança, assegurados por
“ó rgã os pró prios representativos das respectivas populaçõ es”.
Quanto à s Autoridades Tradicionais, enquanto realidade socio-histó rica que
nenhum actor político ou social deve negligenciar na abordagem do processo de
autarcizaçã o e dos caminhos para o desenvolvimento dos municípios e das
comunidades, também a Constituiçã o da Repú blica de Angola veio oferecer pistas
densificadoras para o seu entendimento e compreensã o.
A nível da Constituiçã o da Repú blica de Angola, o seu artigo 224.º define-as
como “entidades que personificam e exercem o poder no seio da respectiva
organizaçã o político-comunitá ria tradicional, de acordo com os valores e normas
consuetudiná rias e no respeito pela Constituiçã o e pela lei”.
No que à Administraçã o Local do Estado diz respeito, também poderemos
retirar da Constituiçã o da Repú blica de Angola, em especial no seu artigo 201º,
elementos concretizadores do seu conceito que, mais coisa, menos coisa, levar-nos-
ã o ao entendimento segundo o qual sã o Entes que resultam da desconcentraçã o da
Administraçã o central, com o propó sito de “assegurar, a nível local, a realizaçã o
das atribuiçõ es e dos interesses específicos da Administraçã o do Estado na
respectiva circunscriçã o administrativa, sem prejuízo da autonomia do poder
local”.
Feito que está o alinhamento conceptual dos três institutos, estamos, agora,
120
Vide artigo 217.º da CRA 123
em melhores condiçõ es de discorrer sobre a relaçã o funcional, com o conteú do e
densidade que demos antes, e que deverá , necessariamente, existir entre eles.

4.5.1. A Relação Funcional entre Autarquias Locais, as Autoridades


Tradicionais e a Administração Local

A Constituiçã o da Repú blica de Angola fala numa relaçã o de Tutela


Administrativa (artigo 221.º), de Solidariedade e Cooperaçã o (artigo 222.º) e de
Reconhecimento (artigo 223.º).
A Lei nº 15/16, de 12 de Setembro, veio acrescer ao conteú do da relaçã o
funcional, quer de direito vigente, quer de iure condendo, a relaçã o de
coordenaçã o121, ao reafirmar o respeito pelas atribuiçõ es e competências das
Autarquias Locais e a sua autonomia122 e a interacçã o e articulaçã o da actuaçã o
“com as autoridades locais tradicionais, respeitando os usos e costumes
observados nas organizaçõ es comunitá rias que nã o conflituem com a Constituiçã o
e a Lei nem a dignidade da pessoa Humana”123.

CONCLUSÃO

Pelo que precede nesta reflexã o sobre a influência ao Direito Administrativo,


para a implantaçã o do tã o desejado modelo de organizaçã o do poder
administrativo, devemos lembrar que o continente africano sofreu vá rias
alteraçõ es nos modelos de administraçã o dos seus territó rios, imediatamente apó s
o início do processo de descolonizaçã o, sendo que, ao longo dos tempos, se teve em
vista a edificaçã o da descentralizaçã o, enquanto modelo organizacional, que mais
poderia beneficiar e oferecer o desenvolvimento local à s populaçõ es.
A importâ ncia e a necessidade da descentralizaçã o é algo que, desde 1992, é
identificado, sendo que o processo de institucionalizaçã o deste modelo
organizacional foi reiterado no programa do executivo angolano, com a promessa
de continuar a desenvolver acçõ es que permitam a institucionalizaçã o efectiva,

121
Ver artigo 6º da Lei nº 15/16.
122
Ver nº 2 do artigo 6º da Lei nº 15/16.
123
Ver no artigo 6º da Lei nº 15/16. 124
gradual e paulatina do referido modelo, cujas bases passam, entre nó s, por um
processo de desconcentraçã o de competências. A nossa abordagem sobre o tema,
que nos ocupou, nã o ficaria completa se nã o nos debruçá ssemos sobre a relaçã o
funcional entre os diversos ó rgã os da administraçã o local do Estado, visto que um
dos resultados desta relaçã o é a desburocratizaçã o dos serviços e a consequente
aproximaçã o destes à s populaçõ es, permitindo que os agentes pú blicos mais
pró ximos dos problemas respondam em tempo ú til à s demandas dos cidadã os.
Conclui-se, assim, que com a descentralizaçã o se rompe uma unidade
personalizada e nã o há vínculo hierá rquico entre a Administraçã o Central e a
Pessoa Estatal Descentralizada, dito por outras palavras, a segunda nã o é
“Subordinada” à primeira, passando a existir, nessa altura, uma relaçã o decorrente
do poder de controlo da primeira sobre a segunda. Joga-se, aqui, uma clara
densificaçã o da tutela administrativa a exercer.

BIBLIOGRAFIA

André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª Ediçã o; D.


Quixote.
José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de
Direito Administrativo, 2011 – 2ª Ediçã o; Almedina,
José Melo Alexandrino, Direito das Autarquias Locais – Introdução, princípios e
regime comum.
José Melo Alexandrino, O Poder Local na Constituição da República de Angola:
princípios fundamentais.
Teixeira Carlos Manuel, Manual de Direito Administrativo; Mayamba Editora, 2015.

125
O CASO JULGADO NO CONTENCIOSO ANGOLANO:
EXECUÇÃO OU INEXECUÇÃO DA SENTENÇA?

– RELATÓ RIO APRESENTADO NA PARTE ESCOLARDO MESTRADO EM CIÊ NCIAS


JURÍDICO-POLÍTICAS –

ANTÓ NIO RODRIGUES PAULO124

Sumário:

Introduçã o

1. Sobre a obrigatoriedade de a Administraçã o executar as sentenças proferidas em


matéria de contencioso

2. Â mbito de aplicaçã o das normas sobre execuçã o do caso julgado: o art. 106º
(RPCA)

3. Descriçã o reflexã o críticas das normas processuais sobre a execuçã o do caso


julgado

Notas conclusivas

Bibliografia

124
Professor Assistente da Faculdade de Direito
126 da Universidade Agostinho Neto.
ABREVIATURAS

CRA – Constituiçã o da Repú blica de Angola de 2010


LC – Lei Constitucional (Lei nº 23/92, de 16 de Setembro)
RPCA – Regulamento do Processo Contencioso Administrativo (Decreto-lei nº 4-
A/96, de 5 de Abril)
LIAA – Lei de Impugnaçã o dos Actos Administrativos (Lei nº 2/94, de 14 de
Janeiro)
NPAA – Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa (Decreto-lei nº
16-A/95, de 15 de Dezembro)

127
INTRODUÇÃO

As questõ es de contencioso administrativo representam um campo aberto


para permanente problematizaçã o, sobretudo num país como Angola, onde a
justiça administrativa é pioneira, os tribunais administrativos ainda sã o um devir e
a jurisprudência escasseia. Foram estas as motivaçõ es para, no â mbito da parte
lectiva do mestrado em Ciências Jurídico-Políticas, promover uma discussã o sobre
o regime jurídico da execuçã o do caso julgado constante do Decreto-lei nº 4-A/96,
de 5 de Abril (Regulamento do Processo Contencioso Administrativo). Aquilo que,
à partida, parecia um mero desafio académico, logo se transformou num exercício
saudá vel de aná lise das normas sobre a execuçã o do caso julgado, em sede do
contencioso angolano, com reais repercussõ es no quotidiano das pessoas e das
instituiçõ es.
Nã o obstante a genérica designaçã o do presente artigo, “A execuçã o do caso
julgado no contencioso angolano”, decidimos restringir o debate, no essencial, à
aná lise das normas do Decreto-lei nº 4-A/96, relacionadas com a execuçã o contra a
Administraçã o, nomeadamente a Secçã o III, cuja epígrafe é “Execuçã o contra o
Estado”, Título VII, Capítulo XVII.

Como o objectivo deste trabalho é proceder a uma análise do diploma,


vamos começar por criticar a epígrafe (designada “Execução contra o
Estado”) da Secção III, Título VII, Capítulo XVII 125, do DL n.º 4-A/96. E aqui
queremos deixar duas breves notas.
A primeira prende-se com o facto de, em rigor, não se tratar apenas da
execução contra o Estado, mas sim contra todas as pessoas colectivas de
direito público condenadas por acto ou omissão julgada em sede do
contencioso – conforme aliás o próprio art. 106º reconhece.
A segunda nota tem a ver com uma questão que trataremos adiante, que é
a de saber se que as normas daquela secção são, ou não, aplicáveis
também em casos de execução contra entidades privadas, por recurso
contra acto emanado do exercício de funções de autoridade. Fonte?
125
Nã o podemos deixar de observar esta imprecisã o de cará cter formal: é o facto de o
diploma se apresentar organizado em Capítulo, Título e Secçõ es, quando devia aparecer primeiro os
Títulos e, dentro deles, os Capítulos e dentro dos 128
Capítulos as Secçõ es.
Porquê itálico?

É assim que, em boa verdade, nã o vamos discorrer sobre todo o regime


jurídico da execuçã o do caso julgado em matéria do contencioso, mas, apenas,
sobre os preceitos que regulam o cumprimento da sentença favorá vel ao
particular. E, mesmo dentre estas, vamos ater-nos aos preceitos que despertaram o
nosso sentido crítico, designadamente do art. 106º ao art. 114º, todos do Decreto-
lei nº 4-A/96 (Regulamento do Processo Contencioso Administrativo – RPCA).
A fim de tornar claros os conceitos com os quais operamos, vamos aqui abrir
um breve parêntesis para indagar se, afinal, o nosso tema está relacionado com a
“execuçã o de sentenças administrativas” ou, pelo contrá rio, com a “execuçã o das
sentenças dos tribunais administrativos”126.
Afastá mos, desde logo, a utilizaçã o da expressã o “sentenças administrativas”,
devido à contradiçã o insuperá vel que ela comporta, só admissível na remota era do
“Administrador-juiz”, característico do modelo organizativo administrativista, no
qual “a decisã o final dos litígios administrativos compete aos ó rgã os superiores da
Administraçã o activa”127.
Quanto à designaçã o “sentenças dos tribunais administrativos”, ela é, desde
logo, posta de parte porque o sistema angolano se enquadra hoje no “modelo de
especializaçã o, no seio de uma ú nica ordem jurisdicional”128-129.
Estando afastada a designaçã o de “sentenças administrativas”, e nã o se
podendo ainda falar em tribunais administrativos em Angola130, vamos operar com

126
Sobre a expressã o “sentença dos tribunais administrativos”, vide, por todos, CAETANO,
Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 10ª ed., p. 1397, e AMARAL, Diogo Freitas do, A
execução das sentenças dos tribunais administrativos, passim.
127
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A justiça administrativa, Almedina, 2000, p. 42.
128
FEIJÓ , Carlos, «Procedimento administrativo e contencioso administrativo», Procedimento
e contencioso administrativo – textos e legislação, Luanda, MAPESS, 1999, p. 72.
129
A propó sito da classificaçã o do nosso modelo de organizaçã o jurisdicional, vide PACA,
Cremildo, «Repensar o monismo da jurisdiçã o administrativa: do modelo actual à busca do modelo
ideal», que trata da questã o da “falsa especializaçã o” das nossas Salas (nos Tribunais Provinciais) e
Câ maras (no Tribunal Supremo).
130
A Constituiçã o da Repú blica de Angola (176º/3) consagra a possibilidade de criaçã o de
tribunais administrativos. 129
o conceito “sentenças proferidas em matéria de contencioso administrativo”.
E sobre estas sentenças vamos averiguar se, à luz do nosso ordenamento
jurídico-constitucional, existe a obrigatoriedade de as mesmas serem executadas
pela Administraçã o e promoveremos tal discussã o, nã o obstante o DL nº 4-A/96,
106º, consagrar que “transitada em julgado a decisã o judicial, o ó rgã o da
Administraçã o do Estado ou a pessoa colectiva de direito pú blico deve executá -la
no prazo de 45 dias”.
A nossa discussã o subsequente vai centrar-se na referida disposiçã o do DL nº
4-A/96 (106º). Procuraremos discernir se, à luz do nosso ordenamento jurídico-
administrativo, é, ou nã o, possível interpretar que a ela, também, estã o sujeitas as
pessoas colectivas de direito privado, por julgamento de acto praticado no uso de
poderes de autoridade.
A discussã o é promovida pelo facto de, em Angola, haver um quadro
normativo susceptível de nos dar a falsa ideia de que, no contencioso angolano,
apenas sã o admitidas impugnaçõ es contenciosas dos actos administrativos, como
tal, definidos pela Lei nº 2/94, de 14 de Janeiro (Lei de Impugnaçã o dos Actos
Administrativos), e que, em consequência, o DL nº 4-A/96 apenas regula recursos
de actos do Estado e demais pessoas colectivas pú blicas.
Por fim, vem a parte deste escrito dedicada à descriçã o [seguida de
considerações críticas] (porquê [] ??) do regime jurídico da execuçã o do caso
julgado. Aí, sim, promoveremos as maiores discussõ es sobre a execuçã o das
sentenças proferidas em matéria de contencioso administrativo.

1. SOBRE A OBRIGATORIEDADE DE A ADMINISTRAÇÃO EXECUTAR AS


SENTENÇAS PROFERIDAS EM MATÉRIA DE CONTENCIOSO

Existe, na nossa ordem jurídica, a obrigaçã o de a Administraçã o executar as


sentenças proferidas em matéria de contencioso administrativo? 131 Esta questã o
mostra-se pertinente uma vez que a entidade condenada está investida de poderes

131
A ideia de incluirmos um ponto com este teor surgiu-nos pelo facto de o assunto ter sido
abordado por AMARAL, Diogo Freitas do, A execução das sentenças dos tribunais administrativos,
Almedina Coimbra, 1997, p. 25 ss. 130
de autoridade.
Onde encontrar, no nosso ordenamento jurídico, a fundamentaçã o de que
sobre estas entidades – geralmente dotadas de poderes de autoridade – recai a
obrigatoriedade de executar a sentença?
Encontramos a primeira fundamentaçã o na Constituiçã o da Repú blica de
Angola (CRA), ao consagrar que “as decisõ es dos Tribunais sã o de cumprimento
obrigató rio para todos os cidadã os e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre
as de quaisquer outras autoridades” (art. 177º/2, CRA).
A Constituiçã o atribui aos tribunais a funçã o de garantir e assegurar “a
protecçã o dos direitos e interesses legítimos dos cidadã os e das instituiçõ es” e
decidir “sobre a legalidade dos actos administrativos” (art. 177º/1). Feito isto (ou
seja, decidida a legalidade do acto) e “transitada em julgado a decisã o judicial, o
ó rgã o da Administraçã o do Estado ou a pessoa colectiva de direito pú blico deve
executá -la no prazo de 45 dias contados da data da respectiva notificaçã o” (DL nº
4-A/96, art. 106º).
No caso de nã o haver execuçã o espontâ nea, ela pode ser provocada mediante
simples requerimento do demandante ou do Ministério Pú blico, pedindo ao
Tribunal que notifique a entidade condenada a executar a decisã o judicial (art.
107º, Decreto-Lei nº 4-A/96).
Tudo isto deve ser entendido num contexto jurídico em que se garante o
acesso à justiça, quer no plano constitucional (art. 29º/1, CRA), quer na legislaçã o
ordiná ria (art. 10º, Decreto-Lei nº 16-A/95, de 15 de Dezembro – Normas do
Procedimento e da Actividade Administrativa) –, nã o obstante o princípio da
plenitude da garantia jurisdicional administrativa nã o ter sido, adequadamente,
concretizado pela legislaçã o ordiná ria132.

2. ÂMBITO DE APLICAÇÃO DAS NORMAS SOBRE EXECUÇÃO DO CASO


JULGADO: O ART. 106º (RPCA)

O art. 106º, sobre a execuçã o espontâ nea, consagra que, apó s o trâ nsito em
julgado da sentença, esta deve ser executada. No entanto, especifica que a execuçã o

132
FEIJÓ , Carlos, cit., p. 72. 131
deve ser feita pelo “ó rgã o da Administraçã o do Estado ou a pessoa colectiva de
direito pú blico”.
A questã o que se coloca, em relaçã o a este preceito, é a seguinte: havendo, na
lei, uma referência expressa ao Estado e demais pessoas colectivas pú blicas, será
que o dever de executar (maxime aquela norma) nã o se aplica no caso de sentença
condenató ria de entidades privadas por acto praticado no exercício de funçõ es
pú blicas?
A redacçã o do preceito pode induzir-nos ao errado pensamento de que nã o
estã o sujeitas à s normas deste diploma as execuçõ es na sequência de decisõ es
condenató rias de actos ou contratos de entidades privadas no exercício de funçõ es
pú blicas.
A parte do diploma referente ao â mbito de aplicaçã o (Decreto-Lei nº 4-A/96,
art. 1º/1) aumenta as dú vidas ao dizer que o processo contencioso administrativo
é aplicá vel aos recursos e acçõ es propostas nos termos da Lei nº 2/94, de 14 de
Janeiro (Lei de Impugnaçã o do Contencioso Administrativo). Esta lei, por seu
turno, define como “actos administrativos os praticados no exercício das suas
funçõ es pelos ó rgã os da Administraçã o Central e Local do Estado e pelos ó rgã os de
direcçã o das pessoas colectivas de direito pú blico.” (art. 1º/1)
Temos, pois, por um lado, a Lei nº 2/94 (Lei de Impugnaçã o dos Actos
Administrativos) a considerar como actos administrativos os praticados pelos
ó rgã os do Estado e as demais pessoas colectivas de direito pú blico (art. 1º/1) e,
por outro lado, temos o Decreto-Lei nº 4-A/96 (Regulamento do Processo
Contencioso Administrativo) a dizer que as suas normas sã o aplicá veis (apenas?!)
à s acçõ es propostas no â mbito da Lei nº 2/94 (Lei de Impugnaçã o dos Actos
Administrativos).
Por outras palavras, nã o é apenas na legislaçã o do contencioso que
encontrá mos dú vidas sobre a aplicabilidade do respectivo regime jurídico a actos
praticados por entidades privadas, no exercício de funçõ es pú blicas. Tais
questionamentos podem (e devem), igualmente, fazer-se em relaçã o ao direito
substantivo.
A questã o que aqui se impõ e é a seguinte: O nosso sistema de contencioso
deve admitir, apenas, a impugnaçã o de actos administrativos praticados pelos
132
ó rgã os do Estado e demais pessoas colectivas pú blicas (como se infere do
elemento gramatical das normas)? Ou poderá , também, admitir acçõ es de anulaçã o
de actos administrativos praticados por entidades privadas no exercício de funçõ es
pú blicas?
Responder esta pergunta, directamente, pode ser uma forma muito simplista
de tratar o assunto. Se começarmos por analisar a noçã o legal de acto
administrativo da Lei nº 2/94 (art. 1º), a resposta será “Nã o”, porque podemos ser
tentados a dizer que a lei só se aplica aos actos administrativos nos termos ali
definidos. Por seu turno, a disposiçã o sobre o â mbito de aplicaçã o do Decreto-Lei
nº 4-A/96 diz que as suas normas sã o aplicá veis aos recursos e acçõ es propostas
no â mbito da Lei nº 2/94.
Há , portanto, um quadro legislativo susceptível de nos levar à conclusã o de
que, no contencioso angolano, apenas sã o admitidas impugnaçõ es contenciosas
dos actos administrativos, como tal, definidos pela Lei nº 2/94 (LIAA) e, em
consequência, que o Decreto-Lei nº 4-A/96 (RPCA), apenas, regula acçõ es e
recursos de actos dos ó rgã os do Estado e demais pessoas colectivas pú blicas.
Seria, portanto, negativa a resposta à inquietaçã o atrá s levantada sobre a
aplicabilidade das normas, no que se refere à execuçã o de sentenças condenató rias
de entidades privadas por acto praticado no exercício de funçõ es pú blicas.
No entanto, julgamos que nã o devemos estar satisfeitos com a conclusã o a
que se chegou no pará grafo anterior. Tudo porque as interrogaçõ es e as respostas,
até aqui formuladas, devem certamente ser precedidas destoutra pergunta:
Podem, no direito angolano, entidades privadas exercer funçõ es pú blicas,
praticando, em consequência, actos administrativos?
A resposta é-nos dada pelo Decreto-lei nº 16-A/95, de 15 de Dezembro
(diploma sobre as Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa –
NPAA), ao estipular que o regime fixado no diploma “é também aplicá vel aos actos
praticados por empresas concessioná rias no uso de poderes de autoridade”.
Resulta, do acima exposto, que entidades privadas, à s quais foram feitas
concessõ es e concedidos poderes de autoridade, podem praticar actos
administrativos e celebrar contratos administrativos.
Mas pode, por este facto, concluir-se que se aplica aos actos por eles
133
praticados o regime da Lei nº 2/94 (LIAA) e, consequentemente, do Decreto-lei nº
4-A/96 (RPCA)? Dito, por outras palavras: Pelo facto de entidades privadas
poderem praticar actos administrativos e celebrar contratos administrativos, pode
retirar-se a conclusã o de que, a tais actos e contratos, se aplica o regime da lei de
impugnaçã o de actos administrativos e do regulamento do processo contencioso?
Para responder, poderíamos dizer, tã o-só , que aqueles actos e contratos estã o
sujeitos à s normas do direito pú blico, pelo que o regime jurídico a aplicar seria o
da Lei nº 2/94 (LIAA) e do Decreto-Lei nº 4-A/96 (RPCA). Mas tentaremos
fornecer uma resposta mais concreta. O Decreto-Lei nº 16-A/95 (NPAA), no art.
10º, diz que “É garantido aos particulares o acesso à justiça administrativa na
perspectiva de fiscalizaçã o contenciosa dos actos da Administraçã o, para tutela dos
seus direitos ou interesses legítimos.”
Nã o há dú vida que o legislador ordiná rio teve como escopo criar um
mecanismo que concretizasse a garantia do acesso à justiça, nã o apenas para
impugnaçã o de actos ou contratos do Estado e demais pessoas colectivas pú blicas
(como diz a Lei nº 2/94, LIAA, art. 1º/1, para o qual remete o Decreto-Lei nº
4-A/96, RPCA, art. 1º/1), mas também das entidades privadas que, na base de uma
concessã o, estejam no uso de poderes de autoridade – como deve resultar do
Decreto-Lei nº 16-A/95, art. 2º/3, combinado com o art. 10º do mesmo diploma, e
com o art. 29º/1 da Constituiçã o da Repú blica de Angola.
Temos, em conclusã o, que aos actos praticados por entidades privadas no uso
de poderes de autoridade se aplica o regime do contencioso administrativo –
incluindo o regime da execuçã o espontâ nea (Decreto-Lei nº 4-A/96, art. 106º).
Embora se possa chegar a este resultado por via interpretativa, seria conveniente a
consagraçã o expressa desta soluçã o.
Propõ e-se, pois, de iure condendo, a alteraçã o da redacçã o daquele preceito,
no sentido de tornar explícito que as entidades privadas que, na base duma
concessã o, exerçam poderes de autoridade estã o sujeitas à obrigatoriedade de
execuçã o das sentenças proferidas em matéria de contencioso administrativo.

134
3. DESCRIÇÃO E REFLEXÃO CRÍTICA DAS NORMAS PROCESSUAIS
SOBRE A EXECUÇÃO DO CASO JULGADO

PONTO PRÉVIO: O texto da Lei refere-se a Conselho de Ministros ou


Governo. À luz da Lei Constitucional de 1992, o Governo (como órgão
constitucional) era um órgão complexo cujas dimensões abarcavam o
Conselho de Ministros (órgão colegial), os ministros (cada um dotado de
atribuições próprias) e um primeiro-ministro (ainda se discutia se o
Presidente da República, a quem competia dirigir as sessões do Conselho
de Ministros, era ou não parte integrante do Governo). Com a aprovação
da Constituição da República de Angola de 2010, deve entender-se que tal
referência é feita ao Presidente da República, na veste de Titular do Poder
Executivo. No entanto, por comodidade de exposição – e para deixar
espaço para melhor interpretação –, a referência continuará a ser feita ao
Conselho de Ministros ou ao Governo, para manter a fidelidade do texto do
DL nº 4-A/96. (porquê itálico??)

A nossa legislaçã o do contencioso consagra a possibilidade de a entidade


condenada requerer a suspensã o ou inexecuçã o da sentença. Esta questã o é
regulada pelo art. 108º e ss do Decreto-Lei nº 4-A/96 (RPCA) e pela Lei nº 8/96, de
19 de Abril (Lei da Suspensã o de Eficá cia dos Actos Administrativos – LSEAA).
Uma vez que o objecto do presente trabalho é fazer uma aná lise
problematizante da execuçã o de sentenças proferidas em matéria de contencioso
administrativo, vamos optar por proceder à descriçã o do respectivo regime
jurídico, seguida de consideraçõ es. Iremos deixar de parte os casos de suspensã o
da execuçã o da decisã o, pelo facto de o respectivo regime jurídico nã o suscitar
questõ es polémicas.
Nesta parte da exposiçã o do regime jurídico da inexecuçã o de sentença,
vamos dedicar-nos, apenas, à s normas do Decreto-Lei nº 4-A/96 (RPCA), nã o
deixando de fazer referência – ali onde se justificar e em nota de rodapé – à s
(escassas três) disposiçõ es da Lei nº 8/96 sobre o assunto.
Os pedidos de inexecuçã o de sentença sã o regulados, especificamente, do art.

135
108º ao art. 113º, do Decreto-Lei nº 4-A/96 (RPCA). Mas, para esta descriçã o,
devemos recuar ligeiramente, no diploma, e começar por dizer que, apó s o trâ nsito
em julgado da sentença, a entidade condenada deve executar a decisã o judicial
num prazo de 45 dias (art. 106º, RPCA). Decorrido aquele período, sem que tenha
havido execuçã o espontâ nea, a demandante ou o Ministério Pú blico podem
requerer ao tribunal que inste o condenado a executar a sentença (art. 107º,
RPCA).
Entretanto, feita a notificaçã o (107º, RPCA), a entidade condenada pode, no
prazo de 15 dias, pedir a inexecuçã o da sentença, em requerimento dirigido ao
Tribunal (art. 108º, RPCA), com base nos seguintes fundamentos133 (art. 110º,
RPCA): impossibilidade de execuçã o, gravidade do prejuízo que a execuçã o pode
provocar ao interesse pú blico e verificaçã o de circunstâ ncias de ordem, segurança
e tranquilidade pú blicas que obstam a execuçã o.

[O nº 2 do art. 110º manda aplicar, ao pedido de inexecução, o regime


estabelecido nos números 1, 2 e 3 do art. 109º. Esta disposição regula o
pedido de suspensão da execução da decisão judicial e o nº 1 diz que tal
interrupção pode ser feita por um prazo não superior a seis meses. É nossa
convicção ter havido uma grave falha, por parte do legislador, pelo
seguinte: tratando-se de uma disposição que fixa um prazo limite (para a
suspensão – seis meses), não faz sentido mandar aplicá-la aos casos de
inexecução.
Embora o art. 110º/2 fale em “necessárias adaptações”, é de todo
descabido pretender-se uma “inexecução por tempo determinado”, tal
como pode acontecer nos casos de suspensão da execução da decisão
judicial. Em boa verdade, a remissão do 110º/2 devia limitar-se aos
números 2 e 3 do art. 109º. Foi esta, aliás, a solução adoptada pela Lei nº
8/96, a qual no regime da inexecução faz uma remissão para o preceito
sobre a suspensão, mas manda aplicar apenas o número 2, relativa à não
aplicação da suspensão a decisões judiciais que condenem no pagamento
de uma quantia em dinheiro.]

133
Os fundamentos de inexecuçã o enumerados pelo DL nº 4-A/96 (110º) nã o diferem, na sua
essência, daqueles consagrados pela Lei nº 8/96 136
(3º/1).
Feito o pedido de inexecuçã o de sentença, pode o tribunal enviar ao Conselho
de Ministros (à luz da CRA, deve entender-se Titular do Poder Executivo) a
resposta do demandado que tiver pedido a inexecuçã o da decisã o judicial ou,
entã o, comunicar (ao Conselho de Ministros) que a entidade demandada nã o
requereu a respectiva inexecuçã o. Estas situaçõ es só ocorrem, entretanto, quando
a decisã o judicial foi proferida em primeira instâ ncia pela Câ mara do Cível e
Administrativo do Tribunal Supremo (111º/1).

[Ao referir-se às decisões proferidas em primeira instância pela Câmara


do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo, a lei (111º/1) está, na
verdade, a reportar-se às sentenças dos recursos de actos dos membros do
Governo e dos governadores provinciais 134. Por outras palavras, quando se
trate de apreciar um pedido de inexecução, feito por ministro ou
governador provincial, a lei “manda” o tribunal – antes de decidir – enviar
ao Conselho de Ministros o pedido de inexecução.
A solução do art. 111º/1, do Decreto-Lei nº 4-A/96, viola, provavelmente,
o princípio constitucional da separação de poderes e da independência dos
tribunais e dos juízes135. Embora se utilize a expressão “se o entender
conveniente” (art. 111º/1, DL nº 4-A/96), o regime subsequente constante
do diploma (sobre o qual nos pronunciaremos a seguir) não deixa dúvida
acerca do condicionamento existente (vide art. 111º/2 e art. 113º/1). Se
não fosse a pretensão de “condicionar” a decisão do tribunal a um
pronunciamento prévio do Conselho de Ministros, que outra razão estaria
na base daquela solução legislativa?
Outro problema que se levanta está relacionado com o facto de o órgão
colegial do Governo dever ser comunicado “sempre que se trate de
decisões proferidas em 1ª instância pela Câmara do Cível e Administrativo
do Tribunal Supremo” (art. 111º/1, DL nº 4-A/96). Esmiuçando o
conteúdo, pretende-se dizer que também se deve enviar ao Conselho de
Ministros os pedidos de inexecução feitos pelos órgãos máximos de todas
as pessoas colectivas de direito público. É a este resultado que chegamos
se combinarmos (como devemos fazê-lo) o art. 111º/1, do DL nº 4-A/96
134
E das pessoas colectivas de direito pú blico que, por agora, omitimos porque será alvo de
discussã o mais adiante.
135
Vide Constituiçã o da Repú blica de Angola,
137art. 105º/3, art. 175, art. 179º/1.
(RPCA), e o art. 17º/a, da Lei nº 2/94 (LIAA).
Afinal, diz o art. 17º/a), da Lei nº 2/94 (LIAA), que são julgados em
primeira instância, pela Câmara do Cível e Administrativo, não apenas os
recursos dos actos dos ministros e dos governadores, mas também os “das
pessoas colectivas de direito público de âmbito nacional” 136 (art.
111º/1/in fine, DL nº 4-A/96).
E vemo-nos confrontados com duas questões que são as seguintes: deve
entender-se que esta comunicação, ao Conselho de Ministros, apenas
ocorre nos casos de pedido de inexecução feito por ministros ou por
governadores ou, antes, deve entender-se que a mesma tem lugar,
inclusivamente, nos casos de pedidos de inexecução feitos por órgãos das
pessoas colectivas de direito público de âmbito nacional?
Como se sabe, algumas pessoas colectivas de direito público (por exemplo,
as Autarquias Locais) integram a Administração Autónoma 137 e com estas
o Governo tem uma relação de tutela, no âmbito da separação vertical de
poderes (vide CRA, art. 120º/d, art. 199º/1/2, art. 214º). Se respondermos
positivamente à segunda questão, levantada no parágrafo anterior,
estaremos perante um regime jurídico de constitucionalidade duvidosa.
Estas são mais algumas questões que deixamos para reflexão.
Vamos, agora, deter-nos à parte final do art. 111º/1, do DL nº 4-A/96, que
nos chama a atenção para o seguinte aspecto: o tribunal não é
“convidado” a notificar o Conselho de Ministros (à luz da CRA, deve
entender-se Titular do Poder Executivo) apenas nos casos em que a
entidade demandada pede a inexecução de sentença, mas, também, nas
ocasiões em que não se requer a inexecução.
Ou seja, mesmo quando a entidade demandada não requer a inexecução
da sentença (por qualquer razão, podendo uma delas ser a conformação
com a decisão judicial), manda a lei comunicar ao Conselho de Ministros
(à luz da CRA, deve entender-se Titular do Poder Executivo). E aqui
coloca-se outra questão: Não havendo pedido de inexecução, qual será o
conteúdo do “aviso prévio” que o tribunal fará ao Governo? Certamente,
alertá-lo que correm os trâmites no tribunal de um pedido de inexecução,
136
Em rigor, dos ó rgã os má ximos das pessoas colectivas pú blicas de â mbito nacional.
137
Para melhor compreender a superaçã o da concepçã o monista do Estado-Administraçã o,
vide MOREIRA, Vital, Administração autónoma e associações públicas, Coimbra Editora, 1997, p. 23
ss. 138
porque a entidade administrativa não executou espontaneamente uma
decisão judicial.]

Com a comunicaçã o feita pelo Tribunal nos termos do art. 111º/1, do DL nº


4-A/96, sempre que o Conselho de Ministros (à luz da CRA, deve entender-se
Titular do Poder Executivo) entenda que se verificam alguns dos fundamentos
previstos no art. 108º, deve pronunciar-se no sentido de inexecuçã o da decisã o
judicial e informar o Tribunal da sua decisã o, no prazo de 15 dias a contar da
recepçã o da comunicaçã o (art. 111º/2).

[Este preceito obriga-nos a um primeiro comentário que é o seguinte: se o


tribunal deve comunicar ao Conselho de Ministros que não houve pedido
de inexecução de sentença (art. 111º/1/in fine, DL nº 4-A/96) e o Governo
tem 15 dias para se pronunciar no sentido da inexecução da decisão
judicial (art. 111º/2, DL nº 4-A/96), então, podemos concluir que poderá
haver sempre inexecução, mesmo quando a entidade demandada a não
solicite.
O nosso segundo comentário tem a ver com o elemento gramatical do art.
111º/2, DL nº 4-A/96. Sem pretender fazer uma interpretação baseada
apenas no referido elemento, podemos concluir que o Governo-
legislador138 impõe um comando ao Governo-administração, ao dizer o
diploma que, entendendo que se verificam alguns dos fundamentos
previstos no art. 108º, DL nº 4-A/96, o “Conselho de Ministros [...] deve
pronunciar-se no sentido da inexecução da decisão judicial e informar o
tribunal da sua decisão.”
É, a todos os títulos, incompreensível, uma solução que, primeiro,
condiciona uma apreciação do tribunal àquele que é o entendimento do
Governo sobre determinada matéria e, segundo, torna inútil o prazo de 15
(quinze) dias dado ao demandante para pedir a inexecução (art. 108º, DL
nº 4-A/96). Isto porque, mesmo não pedindo a inexecução, o tribunal
comunicará ao Conselho de Ministros (art. 111º/1/in fine, DL nº 4-A/96) e
este órgão sempre poderá (aliás, deve) “pronunciar-se no sentido da
inexecução da decisão judicial”.]
138
Tendo a forma de Decreto-Lei, este diploma foi aprovado pelo Governo no uso de uma
autorizaçã o legislativa, à luz da vigência da Lei Constitucional
139 de 1992.
Se o Conselho de Ministros nada disser, deve entender-se que confirma o
pedido de inexecuçã o formulado pela entidade demandada ou, na falta de pedido,
que se pronuncia pela ausência de qualquer fundamento legítimo de inexecuçã o
(art. 111º/3, DL nº 4-A/96).

[Dois aspectos devem aqui ser destacados.


O primeiro é o seguinte: será difícil o Conselho de Ministros nada dizer
porque a Administração (lato sensu) tem sempre interesse na inexecução
da sentença, mesmo quando existe a convicção de ter havido uma
actuação inadequada. Aliás, é preciso não esquecer que o Governo está,
praticamente, “obrigado” (“deve”) a “pronunciar-se no sentido da
inexecução da decisão judicial” (art. 111º/2, DL nº 4-A(96).
O segundo aspecto, que queremos destacar, tem a ver com o facto de a lei
(na verdade, o Governo-legislador) criar uma ficção legal de actuação do
Governo-administração, ao consagrar que, em caso de silêncio do
Conselho de Ministros, “deve entender-se que confirma o pedido de
inexecução” ou, não tendo a demandada efectuado qualquer pedido, “que
se pronuncia pela ausência de qualquer fundamento legítimo de
inexecução” (art. 111º/3/in fine, DL nº 4-A/96).
Ora, vejamos: desde logo, é grave que a lei – diante de um comportamento
negativo do Governo (silêncio) – atribua um efeito positivo (“deve
entender-se que confirma o pedido de inexecução”). E mais: ao dizer que,
na falta de pedido de inexecução, o silêncio do Governo deve entender-se
“que se pronuncia pela ausência de qualquer fundamento legítimo de
inexecução” (art. 111º/3/in fine, DL nº 4-A/96), a lei está a dizer que o
tribunal não tem capacidade para avaliar se existe, ou não, fundamento
legítimo de inexecução. E não terá ocorrido ao legislador que a falta de
fundamento de inexecução terá estado na base do não pedido de
inexecução, por parte da entidade demandada?]

No caso de o Conselho de Ministros (à luz da CRA, deve entender-se Titular


do Poder Executivo) se pronunciar, expressamente, pela falta de fundamentos de

140
inexecuçã o, deve ordenar a entidade demandada a cumprir a decisã o judicial,
usando, se necessá rio, de meios coercivos legais (art. 112º/1, DL nº 4-A/96).

[Aqui, também estamos diante de uma situação em que o Governo-


legislador impõe ao Governo-administração uma conduta. Sempre que o
Conselho de Ministros considerar que não há fundamentos de inexecução,
então, “deve desde logo ordenar a entidade demandada que cumpra a
decisão judicial, usando, sendo caso disso, dos meios coercivos previstos na
lei para que a ordem seja cumprida” (112º/1).
E voltámos àquela questão já discutida a propósito do 111º/1, qual seja a
de saber se a comunicação ao Conselho de Ministros ocorre, apenas, no
caso de a entidade demandada ser um ministro ou um governador. E,
aqui, alargamos a discussão para indagar se a ordem a que se refere ao
112º/1 pode, também, ser dada nos casos em que a entidade demandada
é, não já um órgão da Administração directa do Estado, mas sim uma
pessoa colectiva de direito público distinta do Estado – sobretudo nos
casos de pessoas colectivas que integram a Administração autónoma, com
as quais o Governo mantém uma relação no âmbito da tutela
administrativa e não uma relação de hierarquia.
Diogo Freitas do AMARAL ensina que as “ordens são comandos concretos,
específicos e determinados, que impõem a necessidade de adoptar
imediata e completamente uma certa conduta” 139 e, como sabemos, elas
enquadram-se num contexto de hierarquia administrativa.
Por seu turno, Paulo OTERO elucida que a hierarquia administrativa não
é, conceitualmente, confundível com a tutela administrativa, e é
peremptório ao dizer que “pode mesmo afirmar-se só ser possível existir
tutela administrativa onde nunca se constituiria uma relação hierárquica
e vice-versa”140.]

Mas há , também, a possibilidade de o Conselho de Ministros (à luz da CRA,


deve entender-se Titular do Poder Executivo) manter-se em silêncio, situaçã o em
que o tribunal pode solicitar-lhe que inste a entidade demandada a cumprir
(112º/2).
139
Curso de Direito Administrativo, Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 719.
140
Conceito e fundamento da hierarquia administrativa,
141 Coimbra Editora, 1992, p. 227
[Consagrando a Constituição que as decisões dos tribunais são de
cumprimento obrigatório (CRA, art. 177º/2) e que todas as entidades têm
o dever de cooperar com os tribunais, na execução das suas funções (CRA,
art. 174º/3º), por que razão deve o poder judicial solicitar ao Conselho de
Ministros a instar a entidade demandada a executar?
Ou seja, resultando da Constituição a obrigatoriedade de cumprimento
das decisões dos tribunais (CRA, art. 174º/3), não faz sentido vir o
legislador ordinário “submeter” aquele escopo à “boa vontade” do
Governo, mediante solicitação do tribunal. Este não precisa de pedir ao
Conselho de Ministros que inste a entidade demandada a executar porque,
ele próprio, pode lançar mão dos “meios coercivos previstos na lei para
que a lei seja cumprida” (art. 112º/1, DL nº 4-A/96), até porque, diz a
Constituição, “todas as entidades públicas e privadas têm o dever de
cooperar com os tribunais na execução das suas funções, devendo
praticar, nos limites das suas competências, os actos que lhes forem
solicitados pelos Tribunais” (CRA, art. 174º/3).
E aproveitamos para, aqui, em breves notas, introduzir um elemento para
futuras discussões. Diogo Freitas do AMARAL 141 diz não ser eficaz utilizar
a execução forçada judicial contra a Administração pública. Com todo o
respeito que o autor nos merece, queremos discordar, por duas razões: a
primeira é que, hoje por hoje, Administração pública não é sinónimo,
apenas, de Estado (ao lado da Administração do Estado existem outras,
Autónomas, e não será uma heresia usar-se a força física contra uma
Autarquia ou contra um Ordem profissional); a segunda está relacionada
com a ideia de que, num Estado de Direito, deve ser admissível pensar-se
em forçar os órgãos e serviços do Estado a cumprir as decisões judiciais, o
que é possível, por exemplo, nos sistemas de orientação subjectivista onde
o tribunal, inclusive, faz injunções à Administração.]

O tribunal deve indeferir o pedido de inexecuçã o ou, simplesmente, declarar


que nã o se verifica nenhuma causa legítima de inexecuçã o (art. 113º/1, DL nº 4-
A/96), em qualquer uma das seguintes hipó teses (art. 112º, DL nº 4-A/96): no caso
de o Conselho de Ministros (à luz da CRA, deve entender-se Titular do Poder
141
A execução das sentenças dos tribunais administrativos,
142 cit., p. 33.
Executivo) se pronunciar, expressamente, no sentido de que nã o há fundamentos
para nã o executar a decisã o judicial, devendo imediatamente ordenar a entidade
demandada a cumprir a sentença e, no caso, de o Conselho de Ministros ficar em
silêncio, podendo o Tribunal solicitar ao ó rgã o colegial do Governo que inste a
entidade demandada a cumprir a decisã o judicial.

[Ao dizer “nas hipóteses previstas no artigo anterior”, o art. 113º/1


remete ao art. 112º, ambos do DL nº 4-A/96.
Em face das situações em que o Conselho de Ministros ordena a entidade
demandada a cumprir a decisão judicial (art. 112º/1, DL nº 4-A/96), tem-
se entendido que o Tribunal deve recusar o pedido de inexecução de
sentença feito pela entidade demandada (isto, aliás, resulta
expressamente do art. 113º/1, DL nº 4-A/96). Estamos, mais uma vez,
diante de uma situação em que a actuação do tribunal fica condicionada a
uma apreciação prévia do Conselho de Ministros (à luz da CRA, deve
entender-se Titular do Poder Executivo).
Por outras palavras, resulta do exposto que, nalgumas situações, não é o
tribunal a entidade a avaliar se se verifica ou não um dos fundamentos de
inexecução, mas sim o Conselho de Ministros.
Mas também, aqui, vale um outro comentário, no sentido de chamar a
atenção para o absurdo que representa o Governo-legislador impor ao
Tribunal que “deve indeferir o pedido de inexecução” ou “declarar
simplesmente que não se verifica nenhuma causa de inexecução” – sendo
que qualquer das soluções resulta do prévio pronunciamento ou do
silêncio (nos termos do art. 112º, DL nº 4-A/96) do Governo-
administração (o Conselho de Ministros).
Aliás, vistas assim as coisas, o Tribunal nunca por nunca consegue forçar a
entidade demandada a executar a sentença, porque todo o regime jurídico
está construído no sentido da inexecução da sentença.]

Confirmado, de forma expressa ou tá cita, pelo Conselho de Ministros o


pedido de inexecuçã o da entidade demandada, diz a lei que “o tribunal toma a sua
decisã o tendo em atençã o as razõ es alegadas pelas partes e a posiçã o do Conselho

143
de Ministros”.

[Mais uma vez, a lei condiciona o pronunciamento do tribunal àquela que


é a posição do Conselho de Ministros. E, a propósito deste artigo, abstemo-
nos de outros comentários.]

Se, apesar dos diversos mecanismos, a entidade nã o executar a decisã o


judicial, resta ao exequente requerer que o processo prossiga com execuçã o para
pagamento de quantia certa, de harmonia com as disposiçõ es aplicá veis do Có digo
de Processo Civil, quando se trata de decisã o que tenha condenado a entidade
demandada a pagar certa quantia (art. 114º/1/a, DL nº 4-A/96), ou, quando se
trata de qualquer outra decisã o, requerer que se proceda à fixaçã o da
indemnizaçã o142 devida pelos prejuízos derivados da falta de execuçã o ou da
inexecuçã o da decisã o143, convertendo-se o pedido inicial em execuçã o por quantia
certa e respectiva liquidaçã o.

[A propósito da indemnização144, não podemos deixar de registar aqui


uma breve nota.
Em rigor, nos casos de impugnação de acto administrativo, “quando ao
pedido não corresponder utilidade económica” (art. 15º/2, DL nº 4-A/96),
o regime regra consagrado é o de uma compensação e não uma
verdadeira indemnização, “salvo alegação e prova em contrário” (art.
15º/2). Nestes casos, não será pago um valor que tem em conta o dano
emergente e o lucro cessante, mas deve sim entender-se “que os prejuízos
derivados da falta de execução da decisão judicial são equivalentes ao
valor da acção”, nos termos do art. 15º do DL nº 4-A/96 (RPCA). Por
outras palavras, nalguns casos, é pré-estabelecido o valor a ser pago como
142
O pagamento de uma indemnizaçã o em caso de inexecuçã o é, igualmente, consagrado na
Lei nº 8/96 (4º/1/in fine).
143
Dizer “falta de execuçã o” e “inexecuçã o da decisã o” resulta no mesmo. O que o legislador
devia fazer é clarificar o seu pensamento de que a expressã o “falta de execuçã o” está a ser usada
para significar incumprimento da entidade demandada, enquanto que “inexecuçã o” se aplica aos
casos em que, verificadas as causas legítimas de inexecuçã o, o tribunal autoriza.
144
A propó sito da teoria da diferença, no cá lculo da indemnizaçã o em dinheiro vide COSTA,
Má rio Jú lio de Almeida, Direito das obrigações, Coimbra,
144 Almedina, 1991, p. 643 ss.
“indemnização” pela inexecução, o que, na verdade, converte o montante
numa compensação.]

NOTAS CONCLUSIVAS

Aqui chegados, vamos deixar registadas, sob forma de tó pico-problemá tica,


algumas notas conclusivas do que foi discutido, ao longo do presente trabalho. Sã o
elas:
i. Da combinaçã o entre os art. 29º/1, art. 177º/1, ambos da
Constituiçã o da Repú blica de Angola (CRA), e do art. 106º, do DL nº 4-
A/96 (RPCA), e do art. 10º, do DL nº 16-A/95 (NPAA), podemos
concluir que, no direito angolano, existe a obrigatoriedade de a
Administraçã o executar as sentenças proferidas em matéria de
contencioso administrativo;
ii. Embora tal nã o resulte, expressamente, do nosso ordenamento
jurídico-administrativo, a conjugaçã o do art. 29º/1, da Constituiçã o da
Repú blica de Angola, com o art. 10º, do DL nº 16-A/95 (NPAA), leva-nos
à conclusã o que o regime do Decreto-Lei nº 4-A/96 (RPCA), maxime art.
106º, é extensivo à s entidades privadas para a execuçã o das decisõ es
judiciais que tenham julgados actos praticados no uso de poderes de
autoridade;
iii. Ao referir que as decisõ es proferidas, em primeira instâ ncia pela
Câ mara do Cível e Administrativo do Tribunal Supremo, devem ser
remetidas ao Conselho de Ministros (DL nº 4-A/96, art. 111º/1), ficam
incluídas as sentenças que julguem actos das pessoas colectivas de
direito pú blico de â mbito nacional (art. 17º/a, Lei nº 2/94 – LIAA);
iv. A comunicaçã o que o tribunal faz ao Conselho de Ministros (art.
111º/1, DL nº 4-A/96) e a possibilidade dada ao Governo de se
pronunciar no sentido da inexecuçã o (art. 111º/2, DL nº 4-A/96)
tornam inú til o prazo de 15 dias (art. 108º, DL nº 4-A/96) que o
demandante tem para pedir a inexecuçã o;

145
v. Ao consagrar que, no caso de o Conselho de Ministros se pronunciar
no sentido da inexecuçã o, deve ordenar a entidade demandada a
cumprir a decisã o judicial (art. 112º, DL nº 4-A/96), a lei cria dois
problemas: primeiro, viola o princípio constitucional da independência
dos juízes porque retira ao tribunal a competência para verificar se
existem, ou nã o, causas legítimas de inexecuçã o da sentença; segundo,
viola o princípio constitucional da autonomia de algumas pessoas
colectivas que mantêm com o Governo uma relaçã o de tutela e nã o de
hierarquia. Como tivemos oportunidade de demonstrar, algumas
sentenças proferidas em primeira instâ ncia, pela Câ mara do Cível e
Administrativo do Tribunal Supremo, incidirã o sobre decisõ es de
pessoas colectivas pú blicas de â mbito nacional que integram a
Administraçã o Autó noma – à s quais o Conselho de Ministros nã o deve
dar ordens;
vi. Existe grande probabilidade de se estar perante uma
inconstitucionalidade na norma (art. 113º/1, DL nº 4-A/96) que
“manda” o tribunal recusar o pedido de inexecuçã o, naquelas situaçõ es
em que o Conselho de Ministros ordena a entidade demandada a
cumprir a sentença –, entenda-se que a lei manda o tribunal recusar o
pedido de inexecuçã o se for outro o entendimento do Governo, ao
mandar executar; trata-se de uma decisã o do tribunal condicionada
pelo juízo de valor do Governo-Administraçã o (à luz da CRA, deve
entender-se Titular do Poder Executivo);
vii. Em boa verdade, a indemnizaçã o de que se fala no art. 114º, do DL nº
4-A/96, converte-se, nalguns casos, em compensaçã o (art. 15º/2, DL nº
4-A/96 – RPCA).
Por fim, uma breve palavra, à guisa de desabafo, para manifestar o nosso
desconsolo. Nã o obstante Angola se enquadrar no modelo objectivista, o diploma
sobre o Regulamento do Processo Contencioso Administrativo (o Decreto-Lei nº 4-
A/96, em especial as normas sobre a execuçã o da sentença) foi, fortemente,
prejudicado por dois aspectos, designadamente: por um lado, uma “concepçã o

146
estatizante de Administraçã o”145 (em que “Administraçã o” confunde-se unicamente
com “Estado-Administraçã o”) e, por outro, o facto de ter sido aprovado ao abrigo
de uma autorizaçã o legislativa concedida ao Governo – tendo este sido
negativamente influenciado pelas concepçõ es do “Estado intocá vel”146.
Em face do exposto, podemos, de forma dramá tica, concluir que, no
contencioso administrativo Angolano, apó s o trâ nsito em julgado da sentença
segue-se a fase da inexecuçã o de sentença!

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Diogo Freitas do, A execução das sentenças dos tribunais administrativos,
Coimbra, Almedina, 1997.
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Coimbra, Livraria
Almedina, 1998.
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A justiça administrativa, Almedina, 2000.
CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 10ª ed., data.
COSTA, Má rio Jú lio de Almeida, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 1991.
FEIJÓ , Carlos, «Procedimento administrativo e contencioso administrativo»,
Procedimento e contencioso administrativo – textos e legislação, Luanda,
MAPESS, 1999.
MOREIRA, Vital, Administração autónoma e associações públicas, Coimbra Editora,
1997.
OTEREO, Paulo, Conceito e fundamento da hierarquia administrativa, Coimbra
Editora, 1992.
PACA, Cremildo, «Repensar o monismo da jurisdiçã o administrativa: do modelo
actual à busca do modelo ideal», inédito.

145
Ou “a estatizaçã o da administraçã o autó noma”, na expressã o de MOREIRA, Vital,
Administração autónoma e associações públicas, Coimbra Editora, 1997, p. 27.
146
Talvez, assim, se compreenda a nã o consagraçã o expressa, naquele diploma, do crime de
desobediência em caso de inexecuçã o nã o autorizada
147 pelo tribunal.
LEGITIMIDADE PASSIVA
A PROTECÇÃO DOS CONTRA-INTERESSADOS NAS ACÇÕES
SOBRE CONTRATOS – O CASO PORTUGUÊS

MÁ RCIO DANIEL147

Sumário:

Introduçã o

1. A relaçã o jurídica administrativa como conceito central da teoria administrativa

2. Fundamento jurídico da protecçã o processual dos contra-interessados

3. Os contra-interessados como partes necessá rias do processo administrativo

4. A posiçã o substantiva dos contra-interessados

5. A determinaçã o dos contra-interessados

Conclusã o

147
Professor Assistente da Faculdade de Direito
148 da Universidade Cató lica de Angola.
INTRODUÇÃO

A questã o da legitimidade mereceu um tratamento inovador na reforma do


contencioso administrativo de 2002. Esta realidade é notá vel, tanto a nível da
legitimidade activa como ao nível da legitimidade passiva, porquanto se verifica
uma extensã o da legitimidade, tendo por critério construçã o subjectiva lide a
participaçã o (parece-me que falta aqui algo), na relaçã o jurídica controvertida. A
multipolaridade de posiçõ es jurídicas substantivas presentes processam
contencioso conduzem a que, do lado passivo da relaçã o jurídico processual, para
além da entidade pú blica autora do acto que se impugna, ou da omissã o que se
pretende suprir, surjam outros sujeitos, que pretendem a manutençã o do acto ou
que nã o se pratique determinado acto com certo conteú do susceptível de lesar
direitos ou interesses legalmente protegidos.
Há uma extensã o da legitimidade para a propositura de acçõ es sobre
contratos, procurando dar resposta aos reparos dirigidos contra a soluçã o
tradicional148. O principal problema coloca-se em relaçã o à invalidade consequente,
uma vez que, à luz do anterior regime do Có digo Administrativo, apesar de o
contrato ser consequentemente invá lido, o terceiro nã o podia obter, através do
recurso de anulaçã o, qualquer decisã o quanto à sua (in)validade149. O terceiro nã o
detinha legitimidade para intentar a respectiva acçã o de invalidade do contrato.
Nas acçõ es sobre contratos, sobretudo naquelas em que a situaçã o pretexto
nasce no â mbito de um procedimento concursal, coloca-se a questã o de saber
quem, para além da entidade pú blica demanda, deve ser chamado à demanda para
defender o seu direito ou interesse legalmente protegido. Tal preocupaçã o resulta
do facto de o Có digo de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante
abreviadamente CPTA ou o Có digo), nos artigos 57.º e 68.º n.º 2, impor, sob pena
de ilegitimidade passiva, a obrigaçã o de o autor demandar, conjuntamente, com a
entidade pú blica os contra-interessados que tenham “legítimo interesse na
manutençã o do acto impugnado” ou “a quem a prá tica do acto omitido possa
148
Almeida, Má rio Aroso de, O novo regime do processo nos tribunais administrativos.
Almedina, Coimbra, 4.º ediçã o, 2005, pag. 33.
149
Leitã o, Alexandra, A protecçã o judicial dos terceiros nos contratos da Administraçã o
Pú blica. Almedina, Coimbra, 2002, pg. 334. 149
directamente prejudicar ou tenham legítimo interesse em que ele nã o seja
praticado”. O legislador português cria, em torno da participaçã o processual dos
contra-interessados, uma dupla situaçã o de litisconsó rcio necessá rio passivo:
entre a autoridade recorrida e os contra-interessados e entre todos os contra-
interessados150.
No presente trabalho, tenho por desiderato apresentar critérios para
determinar quem deve ser co-demandado com a entidade pú blica, nas acçõ es de
impugnaçã o de um acto destacá vel do procedimento concursal ou do acto final do
procedimento.

I. A RELAÇÃO JURÍDICO-
ADMINISTRATIVA COMO CONCEITO CENTRAL DA TEORIA
ADMINISTRATIVA

O primeiro enquadramento dogmá tico, que me parece imperioso fazer,


encontra-se ao nível da teoria jurídico-administrativa, na medida em que parece
abandonada a ideia de que o contencioso administrativo diz respeito, apenas, à
parte demandante e à entidade pú blica demandada, limitando-se o universo
subjectivo da lide à s pessoas do autor e da ré. Tal conduz à situaçã o de que
qualquer outra pessoa, que tenha uma posiçã o substantiva que queira ver
protegida na acçã o em causa, tenha de recorrer aos mecanismos processuais
pró prios da intervençã o de terceiros. Actualmente, “a atençã o do direito positivo e
da dogmá tica que lhe corresponde está cada vez mais desperta para a realidade
dos efeitos mú ltiplos ou multilaterais dos actos administrativos a ponto de a
relaçã o jurídica deles emergentes transcender o seu destinatá rio directo ao mesmo
tempo que gera efeitos que transcendem o caso concreto e individual”151 (citaçã o
sem pontuaçã o!?). A Relaçã o jurídico-administrativa aparece como o conceito-
150
Otero, Paulo Os contra-interessados em contensioso administrativo, in Estudos em
homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pag 1078 e
1079.
151
Cabral de Moncada, Luís S., A relaçã o jurídica administrativa – Para um novo paradigma de
compreensã o da actividade, da organizaçã o e do contencioso administrativos. Coimbra Editora,
Coimbra, 2009, pá gina 12. 150
quadro para a compreensã o global do panorama em que se desenvolve a
actividade administrativa e se organiza o contencioso administrativo, a força
expansiva do conceito de relaçã o jurídica, tende a abarcar as principais formas de
actuaçã o da Administraçã o Pú blica, tanto a via unilateral como a concertada. Este
novo conceito central da dogmá tica administrativa concede, aos particulares,
cidadania plena nas acçõ es administrativos, na medida em que estes sã o titulares
de posiçõ es subjectivas face à Administraçã o, sejam direitos subjectivos, direitos
limitados ou interesses legalmente protegidos.152
Em termos prá ticos, assumir a relaçã o jurídica como conceito central da
dogmá tica jus-administrativa, aplicada à compreensã o do â mbito subjectivo
passivo da relaçã o processual nas acçõ es sobre contratos (ou seja, saber em que
termos o conceito de relaçã o jurídica administrativa contribui para determinar o
nú mero de particulares a serem processados, conjuntamente com a entidade
pú blica), levanta o problema de saber se é a partir da previsã o de uma norma
jurídica ou a partir de uma situaçã o fá ctica que se determina a extensã o das
pessoas partes nessa mesma relaçã o153, isto é, o momento de criaçã o da relaçã o
jurídica. A opçã o por um ou por outro critério parece-me fulcral para a
determinaçã o dos contra-interessados que o autor deve, obrigatoriamente, mandar
citar aquando da propositura da acçã o. Fundamentalmente, com base no primeiro
critério, existe uma relaçã o geral cidadã o – Estado directamente criada pelo
ordenamento jurídico, devendo essa relaçã o ser considerada, independentemente
de qualquer facto jurídico criador, sempre que estejam em causa direitos
absolutos, como é o caso dos direitos fundamentais. O segundo critério conduz a
que só se possa falar em relaçã o jurídica quando a norma é concretizada através de
uma determinada situaçã o fá ctica, distinguindo, portanto, entre a previsã o legal da
relaçã o e a sua concretizaçã o no plano dos factos154, nomeadamente a prá tica de
um acto, a celebraçã o de um contrato ou o exarar de um regulamento. O segundo
critério parece-me mais defensá vel, na medida em que, para efeitos do contencioso

152
Andrade, José Carlos Vieira, Justiça Administrativa (Liçõ es). Almedina, Coimbra, 10.ª
ediçã o, 2009, pá ginas 66-67.
153
Para mais desenvolvimentos, ver Vasco Pereira DA SILVA, Em busca do acto
administrativo perdido. Almedina, Colecçã o Teses, Coimbra, 1995, pá ginas 170 e seguintes.
154
Silva, Vasco Pereira da Silva, ob. cit pag.151
173.
de anulaçã o ou de condenaçã o à prá tica de acto, a pretensã o do autor determina a
extensã o dos efeitos que o caso produzirá , logo, o universo de contra-interessados,
como veremos mais adiante, deverá ser determinado em razã o da relaçã o jurídica
concretizada pelo acto ou pela omissã o de que se recorre, e serã o tantos quantos
puderem ser, directamente, afectados pela sentença do processo.

II. FUNDAMENTO JURÍDICO DA


PROTECÇÃO PROCESSUAL DOS CONTRA-INTERESSADOS

Perante a soluçã o legal em impor, ao autor, a obrigaçã o de mandar citar os


contra-interessados, para se fazerem presentes à demanda, sob pena de
ilegitimidade passiva, coloca-se a questã o de saber qual será o fundamento de tal
opçã o do legislador.
O legislador português nã o acolheu, claramente, a ideia “para um contencioso
administrativo dos particulares, esboço de uma teoria subjectivista do contencioso
administrativo”, para utilizar a expressã o de Vasco Pereira da Silva, procedendo à
cristalizaçã o normativa de uma construçã o subjectivista do contencioso
administrativo, pelo contrá rio, “depois de haver experimentado as insuficiências
dos modelos quase exclusivamente subjectivista e quase exclusivamente
objectivista, o sistema português de contencioso administrativo evoluiu agora para
um modelo misto, em que as duas funçõ es coexistem sempre que possível. Nã o se
discute o imperativo da tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses
legalmente protegidos lesados pela Administraçã o. Mas, a par disso, a reposiçã o da
legalidade objectiva é, em si mesma, um bem ao serviço dos princípios democrá tico
e da igualdade, ou seja, como factor de integraçã o social”155. “As grandes linhas da
reforma do contencioso administrativo” atestam-no, claramente, como bem nota
SÉ RVULO CORREIA, ao considerar sá bia a fó rmula retida pelo legislador, na alínea
a) do n.º 1 do artigo 55.º do CPTA, que, salvaguardando o acesso daqueles que
aleguem lesã o de direito subjectivo ou interesse legalmente protegido, o estende a
outros que, também, possam invocar um interesse directo e pessoal nã o

155
Sérvulo Correia, José Manuel, in Prefá cio à obra de Francisco Paes MARQUES, A
efectividade da tutela de terceiros no contencioso152
administrativo. Almedina, Coimbra, 2007, pá g 14.
claramente abrangido por aqueles dois tipos de situaçõ es jurídicas subjectivas, aos
quais a Constituiçã o garante a tutela jurisdicional administrativa efectiva (artigo
268.º n.º 4).
Portanto, o fundamento da escolha do legislador encontra-se em argumentos
de ordem subjectivista e de ordem objectivista; entre os primeiros, há que
distinguir os de natureza substantiva e os de natureza adjectiva ou processual.
Passo a apresentá -los nos pará grafos subsequentes.
Segundo PAULO OTERO, o fundamento do chamamento, ao processo e à
actuaçã o processual do contra-interessado, tem subjacente a necessidade de
garantir os interesses pró prios deste156. O contra-interessado é chamado ao
processo porque é, segundo a expressã o da lei, titular de interesses que podem ser
directamente prejudicados com o provimento do recurso. A simples circunstâ ncia
de o contra-interessado ser, materialmente, titular de interesses que justificam ser
chamado ao processo permite encontrar o fundamento da sua intervençã o
processual, no â mbito do direito fundamental de acesso à justiça, que o artigo 20.º
da Constituiçã o da Repú blica Portuguesa (doravante designada CRP) garante à s
pessoas, desenvolvido e completado pelo direito a uma tutela jurisdicional efectiva
dos administrados em sede de contencioso administrativo, como dispõ e o artigo
268.º n.º 4 da CRP. FRANCISCO PAES MARQUES entende ser possível ir-se mais
longe, uma vez que a correspectividade entre os direitos subjectivos, de que sã o
titulares tanto o autor como o contra-interessado (de tal forma que a satisfaçã o do
direito de um deles implicará , automaticamente, a frustraçã o do exercício do
direito do outro), pressupõ em que os dois se encontrem numa posiçã o de
paridade, face ao â mbito de protecçã o da garantia constitucional. Segundo este
autor, o princípio da tutela jurisdicional efectiva exige uma “paridade simétrica”
entre as posiçõ es do autor e do contra-interessado, com todas as consequências
que daí resultam, nomeadamente, ao nível do princípio da igualdade das partes e
do princípio do contraditó rio157.
A questã o dos contra-interessados no processo administrativo apresenta,
também, uma justificaçã o de cará cter processual e tem sido analisada à luz do
156
Paulo Otero, ob cit pag. 1080.
157
Marques, Francisco Paes. A efectividade da tutela de terceiros no contencioso
administrativo. Almedina, Coimbra, 2007, pag. 90-91.
153
princípio do contraditó rio e como forma de garantir a eficá cia subjectiva do
julgado, evitando, designadamente, situaçõ es justificativas do recurso
extraordiná rio de oposiçã o de terceiros158. RUI CHANCERELLE DE MACHETE nota
que, mesmo nos ordenamentos em que o contencioso administrativo se reveste de
um cará cter predominantemente objectivista, como é o caso do francês, a “tierce
opposition” é admitida por razõ es de justiça que nã o podem deixar de ser
atendidas159. O julgamento deve consistir numa soluçã o definitiva da relaçã o
material controvertida e garantir que todas as partes tenham a oportunidade
efectiva de intervir, activamente, na apreciaçã o judicial da causa. Trata-se, aqui, de
um complemento à natureza substantiva da protecçã o dos contra-interessados, na
medida em que a tutela jurisdicional efectiva tem sempre de garantir, também, um
qualquer meio de intervençã o processual a todos aqueles que, sendo titulares de
posiçõ es jurídicas subjectivas decorrentes de uma decisã o administrativa objecto
de impugnaçã o judicial, podem vir a ser lesados por efeito do provimento desse
recurso160. Segundo PAULO OTERO, se a tutela processual dos contra-interessados
expressa um corolá rio do princípio da tutela jurisdicional efectiva, nã o é menos
verdade que decorre, também, do princípio geral do contraditó rio e do princípio da
igualdade das partes: sempre que a actuaçã o processual de alguém se mostra
passível de lesar, directamente, direitos ou interesses legítimos de terceiros – tal
como sucede quando alguém interpõ e um recurso cujo provimento pode
prejudicar, directamente, a posiçã o jurídica material de terceiros fundada no acto
recorrido –, mostra-se indispensá vel, segundo as exigências de um Estado de
Direito, que a esses terceiros seja assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de
participar no processo e garantidos os meios de influenciar o seu êxito.161

158
Machete, Rui Chancerelle de, A legitimidade dos contra-interessados nas acçõ es
administrativas comuns e especiais, in Estudos em homenagem do Professor Doutor Marcello
Caetano, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pags. 616 e 617.
159
Ibidem pag. 617.
160
Otero, Paulo. Ob cit pag 1082.
161
Ibidem pags 1082-1084. 154
III. OS CONTRA-INTERESSADOS COMO
PARTES NECESSÁRIAS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

Os contra-interessados sã o partes necessá rias ao processo162, o seu nã o


chamamento ao processo provoca a ilegitimidade passiva, como já foi tivemos
oportunidade de referir neste trabalho. A questã o de fundo que se coloca é a de
saber, atendendo à qualidade de “cidadania plena” de que gozam os contra-
interessados, que consequências retirar da sua nã o intervençã o no processo.
Eles, os contra-interessados, sã o necessá rios à definitiva resoluçã o do litígio
levado ao tribunal, na medida em que “ninguém pode ser afectado por uma decisã o
judicial em cujo processo nã o participou”163. A garantia das posiçõ es jurídicas
substantivas dos contra-interessados, que justificam a sua qualificaçã o como
partes necessá rias ao processo, implica a limitaçã o dos efeitos das sentenças à s
partes que participaram efectivamente no processo 164: a decisã o judicial que anule
um acto administrativo nunca produzirá os efeitos de caso julgado, relativamente a
todos os contra-interessados que nã o foram identificados ou mandados citar pelo
recorrente na petiçã o de recurso165.
O condicionamento do efeito ú til da decisã o judicial anulató ria do acto
recorrido à possível intervençã o dos contra-interessados no processo pode,
também, concluir-se por necessá ria a uma verdadeira busca da “paz jurídica”,
subjacente à actuaçã o dos tribunais no exercício da funçã o jurisdicional do Estado,
apenas se conseguindo através de decisõ es que garantam uma composiçã o
definitiva do litígio, tanto mais que se mostra anó malo, no contexto da unidade do
sistema jurídico, que um mesmo acto jurídico esteja para uns anulado e para
outros (isto é para todos aqueles que nã o tiveram possibilidade de intervençã o
processual) se deva considerar, simultaneamente, nã o anulado e, por isso mesmo,

162
Uma expressã o sugestiva utilizada pelo Prof. Viera de Andrade denominava os contra-
interessados como partes “quase necessá rias” ao processo, o que espelha bem a mudança
qualitativa da posiçã o deste com a reforma do contencioso de 2002, cf. Joã o Carlos VIEIRA DE
ANDRADE. Justiça Administrativa. Almedina, Coimbra, 2009.
163
Antunes VARELA, Miguel BEZERRA e SAMPAIO E NORA. Manual de Direito Processual
Civil ?????
164
Leitã o, Alexandra ob. cit pag. 125.
165
Otero, Paulo. Ob cit pag. 1086. 155
gozando da eficá cia decorrente de presunçã o de legalidade. Compreende-se que a
ordem jurídica, visando assegurar a má xima eficá cia subjectiva das decisõ es
judiciais anulató rias de actos administrativos, enquanto expressã o da pró pria
unidade do sistema jurídico e de um exercício racional e eficaz da funçã o
jurisdicional pelos tribunais, procure garantir a intervençã o processual dos contra-
interessados no recurso contencioso, através da figura de um litisconsó rcio
necessá rio passivo, cujo ó nus impõ e a cargo do recorrente, determinando,
simultaneamente, que a falta de identificaçã o ou citaçã o dos contra-interessados
conduz à ilegitimidade passiva do recorrente e ao consequente indeferimento da
interposiçã o do recurso contencioso. Verifica-se existir aqui, como resultado de
todos os citados valores que se encontram presentes no fundamento da exigência
legal de intervençã o processual dos contra-interessados, uma clara funçã o de
natureza objectivista na justificaçã o da tutela processual dos contra-interessados
nas acçõ es administrativas em geral166.
Como resulta evidente, nã o sã o, apenas, razõ es de ordem subjectivista, sejam
elas substantivas ou adjectivas, que justificam a soluçã o legal de impor ao
requerente o dever de mandar citar os contra-interessados, prende-se, também,
com a ordem jurídica na sua globalidade e assumem uma funçã o marcadamente
objectivista que se compreendem pela necessidade de dar permissã o à intervençã o
processual a todos os terceiros beneficiá rios de actos conexos, de forma a impedir-
se que a questã o da justiça da anulaçã o pudesse ser reaberta em momento ulterior,
evitando-se a multiplicaçã o de processos e o risco de produçã o de sentenças
contraditó rias167.

IV. A POSIÇÃO SUBSTANTIVA DOS


CONTRA-INTERESSADOS

Posta esta questã o, o difícil problema que se atalha é o de saber até onde vai a
juridicidade das situaçõ es pretensivas/pretensiosas que os contra-interessados

166
Idem pá g. 187.
167
Má rio Aroso de ALMEIDA, Anulaçã o de Actos Administrativos e Relaçõ es Jurídicas
Emergentes, Almedina, Coimbra, 2002, pá g. 395-396.
156
defendem. Há sempre a necessidade de encontrar uma justificaçã o de direito
material para a legitimidade passiva dos particulares que acompanham a
autoridade administrativa como partes principais, na sua posiçã o defensiva no
processo contencioso. A relaçã o poligonal regulada no programa da norma
aplicá vel, que arbitra, em abstracto, a repartiçã o das vantagens e desvantagens
entre as duas posiçõ es correlacionadas, determina a qualidade da protecçã o
conferida pela norma à s partes, exprimindo o objectivo daquela, que prossegue,
por vezes, de forma indirecta, e explicita as condiçõ es predispostas para poder
alcançar a tutela jurisdicional da posiçã o substantiva consagrada na norma.
A posiçã o substantiva do contra-interessado pode reconduzir-se a um direito
subjectivo ou a um interesse, legalmente, protegido. Sobre esta matéria muito se
tem dito e escrito, tanto no sentido da necessidade de manter a dicotomia, bem
como na necessidade da sua superaçã o, incluindo ambas numa ú nica categoria, a
de direitos subjectivos pú blicos, igualmente resultante de imposiçõ es comunitá rias
a este respeito, nomeadamente, aquela a que costumamos designar como
“Directiva Recursos”.
A distinçã o entre direitos subjectivos e interesses legítimos assenta, segundo
a concepçã o clá ssica, no facto de os primeiros constituírem interesses protegidos,
directamente, pela ordem jurídica, aos quais correspondem deveres da
Administraçã o e os respectivos meios de efectivaçã o, quer graciosos, quer
contenciosos; enquanto, pelo contrá rio, os segundos nã o seriam mais do que
pretensõ es, indirectamente protegidos, na medida em que a sua satisfaçã o coincide
com a prossecuçã o de um determinado interesse pú blico168.
SÉ RVULO CORREIA defende que o interesse legalmente protegido significa
um poder individual de intervençã o (sobretudo reactiva) quanto ao exercício de
um poder pú blico, do qual poderia, eventualmente, resultar a obtençã o de um bem.
O interesse legalmente protegido nã o tem, por conteú do, um poder de exigir esse
bem. Através daquele subjectiva-se, pois, uma pretensã o à observâ ncia de normas
jurídicas administrativas que nã o sã o de protecçã o, mas cujo dever de acatamento
obrigará (quando violada) a um novo exercício, ou ao nã o exercício, da
competência dispositiva, abrindo-se, assim, a eventualidade (mas nã o a certeza) da
168
Marcelo REBELO DE SOUSA, Liçõ es de Direito Administrativo. Vol. I, Lex, Lisboa, 1999,
pags. 97 e seguintes. 157
satisfaçã o do interesse do particular em relaçã o a um bem. Para este autor, a
funçã o subjectivista da jurisdiçã o administrativa só ganha em extensã o com a
dicotomia direito subjectivo — interesse legalmente protegido, visto que permite
estender a tutela jurisdicional à apreciaçã o de aspectos da legalidade das decisõ es
em que nã o está em causa a lesã o de direitos subjectivos.169
A questã o fulcral reside no facto de o regime garantístico-processual do
direito subjectivo nã o diferir do do interesse legalmente protegido, o que
demonstra o artificialismo da distinçã o e um excessivo conceptualismo da
distinçã o. Na prá tica, estã o sempre em causa posiçõ es jurídicas substantivas dos
particulares, perante a Administraçã o, cuja violaçã o implica a anulaçã o ou
declaraçã o de nulidade do comportamento administrativo lesivo e o ressarcimento
dos eventuais danos.
É verdade que o ordenamento jurídico português acolhe, expressamente, a
distinçã o entre direitos subjectivos e interesses legítimos170, contudo, dessa
distinçã o teó rica nã o decorrem diferenças prá ticas substanciais, nem ao nível da
intensidade da protecçã o (a ambas figuras é constitucionalmente assegurado o
direito a uma tutela judicial efectiva), nem tã o pouco ao nível das garantias
procedimentais. Quer seja titular de um direito subjectivo, quer de um interesse
legítimo, o recorrente poderá alcançar, através do recurso de contencioso de
anulaçã o, a repetiçã o do procedimento a partir do momento da prá tica do acto
invá lido, o ressarcimento dos danos causados na sua esfera jurídica ou, em alguns
casos, a situaçã o de vantagem que pretendia obter. Nã o se vislumbra, assim,
qualquer diferença171.

V. A DETERMINAÇÃO DOS CONTRA-


INTERESSADOS

O problema seguinte é o de saber que critério utilizar para determinar, num


determinado procedimento concursal, os contra-interessados que devem ser co-

169
José Manuel SÉ RVULO CORREIA, in ob cit. pá g. 12.
170
Ver por todos Sérvulo Correia in ob cit pag 12 e Alexandra Leitã o, ob cit pag 84.
171
Alexandra LEITÃ O, ob cit pag. 85. 158
demandados com a entidade pú blica. As operaçõ es destinadas a identificar os
contra-interessados sã o, no entanto, bastante complexas, pois, mesmo face a
disposiçõ es legais expressas, tem a doutrina proposto diversas soluçõ es, com o
objectivo de auxiliar o intérprete nessa tarefa interpretativa. FERNANDO
MARQUES indica três critérios identificadores172:
 Critério do acto impugnado;
 Critério da posiçã o substantiva do terceiro;
 Critério dos efeitos da sentença.
O primeiro critério visa, essencialmente, uma identificaçã o dos contra-
interessados, através do acto administrativo que atribui uma específica vantagem a
este terceiro, pretendendo este, portanto, sustentar a manutençã o do título
jurídico que lhe concedeu essa vantagem. Ou seja, para esta corrente todos aqueles
que sã o titulares de um interesse qualificado na conservaçã o do acto impugnado
devem ser considerados contra-interessados. Esta orientaçã o, ainda
predominantemente objectivista e tributá ria da ideia do processo feito a um acto,
tem sido muito criticada. PAULO OTERO defende que uma posiçã o dessa natureza
conduz a um entendimento de que os contra-interessados sã o um instrumento
pelo qual se obtinha um reforço da postura de defesa da manutençã o do acto
recorrido, transformando o contra-interessado numa espécie de auxiliar ou
substituto processual da Administraçã o e, por outro lado, conduz à ideia de que o
recurso contencioso se trata de um processo entre dois particulares. Esta ideia é
contestada por aquele autor, contra-argumentando que a autoridade recorrida nã o
abandona o processo por efeito de existirem contra-interessados, nem a
intervençã o destes dispensa a participaçã o processual da autoridade recorrida e
que o critério teleoló gico da actuaçã o processual do contra-interessado é sempre a
defesa dos respectivos interesses, isto sem prejuízo de uma tal actuaçã o poder ter
efeitos reflexos173.
Quanto ao segundo critério, defendido por ALEXANDRA LEITÃ O174, pretende
sustentar que o contra-interessado tem de ter um interesse, pessoal, directo e
actual ao do recorrente, muito embora de sinal contrá rio. A aplicaçã o deste critério
172
Marques, Fernando Paes, ob cit pag 92.
173
Paulo OTERO, in ob cit pag 1079.
174
Leitã o, Alexandra. Ob cit pag 106-107. 159
implica uma aná lise da relaçã o material controvertida para determinar quais sã o
os interesses susceptíveis de serem afectados pelo processo judicial,
independentemente da procedência, ou nã o, do pedido formulado pela recorrente
ou pelo autor. Como os interesses que estã o em causa constituem sempre posiçõ es
jurídicas substantivas, estas situaçõ es plurisubjectivas processuais acabam por
corresponder a relaçõ es jurídicas administrativas multilaterais. Nestes casos, sã o
partes necessá rias no processo administrativo todos aqueles que sejam sujeitos da
relaçã o jurídica multilateral.
O ú ltimo critério pretende determinar os contra-interessados através dos
efeitos da sentença, dito de outra forma, saber, mediante um juízo de prognose,
quais as esferas jurídicas que, directamente, vã o ser afectadas pela pronú ncia
jurisdicional que venha a ser adoptada. Esta posiçã o é defendida por PAULO
OTERO175, ou seja, o autor defende que o nú cleo do critério legal determinativo do
universo dos contra-interessados se centra em duas ideias: a existência de
interesses de terceiros, que podem ser prejudicados, e os que o sejam por efeito
directo da anulaçã o do acto recorrido. Para Otero, uma vez que apenas no
momento da sentença, ou melhor, da execuçã o de uma eventual sentença de
provimento do recurso, se pode determinar, efectivamente, se existem terceiros
que sã o directamente prejudicados com a anulaçã o da acto recorrido, a
circunstâ ncia de a lei impor ao recorrente, na petiçã o inicial, o ó nus de identificar e
mandar citar tais interessados determina que se assista aqui à formulaçã o de um
juízo de prognose: o recorrente deve ter em consideraçã o, tal como formula a sua
petiçã o de recurso e, por outro, atendendo a uma eventual decisã o futura à sua
petiçã o de recurso e, por outro ainda, atendendo a uma eventual decisã o futura de
provimento pelo acto recorrido, quem poderá ser directamente prejudicado com a
anulaçã o do acto recorrido. ALEXANDRA LEITÃ O176 entende que se trata de um
critério “à s avessas”, cronoló gica e logicamente invertido, na medida em que exige
um juízo de prognose quanto ao conteú do da previsível da sentença, que nã o nos
parece, por isso, de acolher. Salvo o devido respeito, nã o concordo com esta
opiniã o, porquanto, “o conteú do da sentença reveste-se, nesse domínio, de uma
importâ ncia crucial, pois se o objectivo do contra-interessado é a manutençã o do
175
Paulo OTERO, idem pag. 1093.
176
Alexandra LEITÃ O, idem pag 106. 160
status quo ante ao processo impugnató rio, será apenas através dos efeitos
constitutivos da sentença que essa situaçã o de vantagem poderá vir a ser
eliminada”177. A posiçã o jurídica do contra-interessado surgirá , portanto, do
resultado previsível da equaçã o entre status quo ante à impugnaçã o e os possíveis
efeitos desvantajosos da sentença178.
Questã o fundamental nesta matéria é entender qual dos critérios expostos
terá sido o consagrado no CPTA, designadamente nos artigos 57.º e 68.º. Por
ventura, terá o legislador sido guiado por um ú nico critério ou terá ele combinado
na fó rmula legal vá rios critérios?
FRANCISCO PAES MARQUES entende que a nova lei do contencioso
administrativo adopta um critério misto, procedendo, portanto, à combinaçã o das
vá rias orientaçõ es mencionadas, numa redacçã o que lhe parece pouco feliz179.
Segundo este autor, o segmento da norma contida no artigo 57.º do CPTA, ao
estatuir que são demandados os contra-interessados (porquê itá lico? Citaçã o?) “a
quem o provimento do processo impugnató rio possa directamente prejudicar”,
parece que, inequivocamente, consagra o critério dos efeitos da sentença,
enquanto outro segmento da mesma norma consagra o critério do acto impugnado,
como entende o autor no decorrer do trecho, que prevê, também, outra categoria
de contra-interessados, aqueles “que tenham um legítimo interesse na manutençã o
do acto impugnado”. Por fim, o artigo consagra, igualmente, o critério da posiçã o
substantiva do sujeito, ao dispor que sã o contra-interessados os “que possam ser
identificados em funçã o da relaçã o material em causa ou dos documentos contidos
no processo administrativo”. MÁ RIO AROSO DE ALMEIDA esclarece que o CPTA
teve o cuidado de densificar o conceito de contra-interessado e, em particular, o
cuidado de o circunscrever à s pessoas que possam ser identificadas em funçã o da
relaçã o material em causa ou dos documentos contidos no processo
administrativo, atendendo à s consequências gravosas que resultam da sua falta de
citaçã o180. RUI MACHETE defende que a participaçã o ou nã o participaçã o no

177
Marques, Fernando Paes, ob cit pag 94.
178
Otero, Paulo. Ob. Cit pag. 1093.
179
Marques, Fernando Paes, ob cit pag 95
180
Almeida, Má rio Aroso de, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos.
Almedina. Coimbra, 2003 pag 53. 161
procedimento constitui uma forte presunçã o, mas nã o é, por si só , suficiente, por
poder nã o existir coincidência entre as relaçõ es procedimentais e as questõ es a
serem dirimidas em juízo. E o CPTA, no artigo 55.º n.º 3, por forma avisada, fala
justamente em que a intervençã o dos interessados no procedimento, no qual tenha
sido praticado o acto impugnado, constitui mera presunçã o de legitimidade para a
sua impugnaçã o, importará sempre encontrar a justificaçã o de direito material
para a legitimidade passiva dos particulares que acompanham a autoridade
administrativa, como partes principais na sua posiçã o defensiva no processo
contencioso.181
Do meu ponto de vista, o enquadramento geral dentro do qual se deve fixar o
sentido e alcance da soluçã o legal dos artigo 57.º e artigo 68.º deve ter em atençã o
o facto de a acçã o poder ser indeferida, por ilegitimidade passiva, caso o autor nã o
identifique os contra-interessados que se devem posicionar defensivamente ao
lado da autoridade pú blica demanda, logo a ratio legis deste preceito indica para
uma preocupaçã o do legislador em densificar ao má ximo as vias, através das quais
o autor deve identificar os outros particulares com uma “posiçã o substantiva
fungível”182 à sua. Logo, o risco de um alargamento considerá vel do universo dos
contra-interessados, derivado do facto de o legislador exigir, para o preenchimento
do pressuposto processual da legitimidade passiva, a mera titularidade de um
interesse legítimo na manutençã o do acto impugnado, deve ser contrabalançado,
em meu entender, com uma interpretaçã o restritiva. Esta resulta da compreensã o
da necessidade de conceder, ao autor, instrumentos profícuos de determinaçã o do
universo de particulares, cuja posiçã o substantiva será prejudicada em decorrência
de uma eventual procedência da acçã o ou da prá tica de um determinado acto.
Porquanto, tal posiçã o substantiva, conforme se argumentou, deve ser
processualmente protegida por imperativos de ordem constitucional, tanto de
natureza substantiva – o direito de acesso à justiça e o direito a uma tutela
jurisdicional efectiva dos direito e interesses legítimos – como de natureza
processual – o princípio do contraditó rio e o princípio da igualdade das partes, ou,
ainda, por causa da necessidade de garantir a paz jurídica subjacente à actuaçã o
dos tribunais, na execuçã o da funçã o jurisdicional do Estado. Como defende
181
Machete, Rui Chancerelle de, ob cit pag 617-619.
182
A expressã o é de Rui Machete in ob cit pag
162617.
PAULO, vá rios podem ser os caminhos concretizadores das situaçõ es em que o
provimento de um recurso pode directamente prejudicar alguém:
 Sã o directamente prejudicadas todas aquelas pessoas que, encontrando
no acto administrativo recorrido a fonte de direitos ou interesses
legítimos, sã o passíveis de ver essas suas posiçõ es jurídicas materiais
afectadas com a anulaçã o do acto e os efeitos daí decorrentes, em sede de
execuçã o administrativa da respectiva sentença;
 Sã o, ainda, directamente prejudicadas todas aquelas pessoas que, tendo
no acto recorrido a fonte de certa obrigaçã o, encargo ou ó nus, a
respectiva anulaçã o e a inerente execuçã o da sentença, por parte da
Administraçã o, se traduza num agravamento de tais posiçõ es jurídicas
passivas.

CONCLUSÃO

Apesar da carga histó rica que transporta o termo “contra-interessados”, em


funçã o do tratamento pouco favorá vel que aqueles mereceram à luz do anterior
Direito Processual Administrativo, o facto é que, actualmente, os contra-
interessados, por imperativo constitucional, merecem da parte do legislador um
tratamento mais favorá vel. O direito de acesso à justiça e direito a uma tutela
jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
particulares, conjugados com os princípios do contraditó rio e da igualdade das
partes (os primeiros de natureza substantiva e os segundos de natureza
processual), fundamentam a intervençã o processual dos contra-interessados e
enformam a posiçã o substantiva destes na admissã o, andamento e decisã o da
causa.
A necessidade de o processo administrativo proceder a um julgamento, que
conduza a uma resoluçã o definitiva da relaçã o material controvertida, impõ e que
todos aqueles detentores de posiçõ es substantivas simétricas à do autor sejam co-
demandados pela entidade pú blica, na medida em que o â mbito da eficá cia
subjectiva da sentença se circunscreve à s partes que, efectivamente, participaram

163
no processo, uma vez que esta nunca produzirá efeitos em relaçã o aos contra-
interessados que nã o foram identificados ou mandados citar, pelo recorrente, na
petiçã o de recurso, cumprindo a soluçã o legal uma funçã o, também, marcadamente
objectivista.
A determinaçã o do universo de contra-interessados, que possam ser
prejudicados em decorrência directa da anulaçã o do acto ou da condenaçã o à
prá tica de um acto determinado, faz-se mediante um juízo de prognose dos efeitos
da execuçã o da sentença, tendo por base a pretensã o do autor, manifestada na
petiçã o de recurso.
Consideram-se contra-interessados, capazes de serem prejudicados por
efeito directo da execuçã o da sentença, todos aqueles que encontrem no acto
recorrido fonte de um direito ou interesse legalmente protegido, ou seja, aqueles
sujeitos a um encargo que pode vir a ser agravado com a anulaçã o do acto ou com a
sua prá tica.

BIBLIOGRAFIA

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Almedina, Coimbra, 2002.
ALMEIDA, Má rio Aroso de, O novo regime do processso nos Tribunais
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10.ª Ediçã o, 2009.
CORREIA, José Manuel Sérvulo, “Prefá cio a Francisco Paes Marques”, A efectividade
da tutela de terceiros no contencioso administrativo. Almedina, Coimbra, 2007.
CORREIA, José Manuel Sérvulo, Legalidade e Autonomia Contratual nos contratos
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LEITÃ O, Alexandra, A protecção judicial dos terceiros nos contratos da
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MACHETE, Rui Chancerelle de, “A legitimidade dos contra-interessados nas acçõ es
administrativas comuns e especiais”, in Estudos em homenagem ao Prof.

164
Doutor Marcello Caetano. Almedina, Coimbra, 2006.
MARQUES, Francisco Paes, A efectividade da tutela de terceiros no contencioso
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MONCADA, Luís S. A. Cabral de, A relação jurídica administrativa – Para um novo
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administrativos. Coimbra Editora, Coimbra, 2009.
OTERO, Paulo, “Os contra-interessados em contencioso administrativo:
Fundamentos, funçõ es e determinaçã o do universo em recurso contencioso
do acto final de procedimento concursal”, in Estudos em homenagem ao Prof.
Doutor Rogério Soares, Almedina, Coimbra, 2001.
SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do acto administrativo perdido. Almedina,
Coimbra, 1998 (reimp).
SILVA, Vasco Pereira da, Para um contencioso administrativo dos particulares.
Almedina, Coimbra, 1997 (reimp).
SOUSA, Marcelo Rebelo de, Lições de Direito Administrativo. Vol. I, Lex, Lisboa,
1999.
VARELA, Antunes/ Miguel BEZERRA/ SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil.
2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2004 (reimp).

165
NOVA ABORDAGEM PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
ANGOLANA
(pessoas, organização, processos e instrumentos)

SAIDY FERNANDO183

Sumário:

Introduçã o

1. Enquadramento constitucional da administraçã o pú blica

2. Visõ es da administraçã o pú blica

3. Dimensõ es fundamentais da administraçã o pú blica – visã o teó rica

4. Caso de estudo – cultura de ti e e-governo electró nico na reforma da gestã o na


Malá sia

5. Consideraçõ es finais

Referências bibliográ ficas

183
Pó s-Graduado em Contrataçã o Pú blica e Docente da Faculdade de Direito da Universidade
Cató lica de Angola. 166
INTRODUÇÃO

O Direito, em geral, como instrumento ao serviço da comunidade em que se


insere, deve estar apto a seguir a velocidade da forma de relacionamento entre os
seus membros ou de adiantar-se, indicando linhas valorativas cuja observâ ncia
garanta a manutençã o de uma convivência assente na confiança e na segurança.
Especificamente e, com igual razã o, o direito administrativo, ou o direito da
gestã o dos entes pú blicos, no seu relacionamento interno e com os seus
accionistas, nã o deve estar aquém destes dois momentos de intervençã o, i.e.,
regular relaçõ es existentes e criar normas de orientaçã o para relaçõ es futuras.
A dialéctica da vida humana impõ e, por força da necessidade de auto-
superaçã o e facilitaçã o do modo de vida, com vista à sobrevivência digna e
duradoura da sua espécie, soluçõ es que se exigem inovadoras, mesmo que se tenha
de ir contra a ordem de conceitos estabelecida.
Como instrumento ao serviço da comunidade, o direito administrativo carece
de permanentes actualizaçõ es, por vista ao melhor alcance dos seus fins, o que
acontece na maior parte das vezes, por imposiçã o da simplificaçã o de
procedimentos, racionalizaçã o dos gastos, protecçã o dos interesses dos
particulares, transparência, maior troca de informaçã o entre os gestores e os
accionistas, utilizaçã o de tecnologia de informaçã o mais eficiente, melhoria dos
meios de controlo, auditoria interna e responsabilizaçã o.
Todas estas forças, que justificam a permanente reforma do Estado, devem
convergir para uma Administraçã o Pú blica que se quer voltada para a
sustentabilidade dos resultados. Ou seja, sobre as acçõ es desenvolvidas pelos
ó rgã os munidos de poderes pú blicos deve incidir, apenas, um ú nico critério de
validaçã o, aprovaçã o e responsabilizaçã o (sustentabilidade do resultado). A lei e o
princípio da legalidade devem ser instrumentos ao serviço da produçã o e ao
alcance de resultados que sejam sustentá veis.
A lei e demais actos normativos, ao tratarem das matérias típicas da ciência
de gestã o (nomeadamente, pessoas, organizaçã o, processos e instrumentos),
devem estabelecer princípios e regras que sejam portadores objectivos de critérios
de sustentabilidade dos resultados da Administraçã o Pú blica, a título de
167
indicadores-chave de performance.
Para o presente texto, optou-se pela utilizaçã o de uma metodologia de crítica
positiva sobre os elementos fundamentais da actividade de gestã o, quer pú blica,
quer privada, que assenta em dois principais momentos: primeiro, uma
apresentaçã o sucinta do quadro legal ou regulató rio existente (status quo);
segundo, apresentaçã o de situaçõ es que representam oportunidade de melhoria
para, a posteriori, se indicarem alternativas de intervençã o inovadora-correctiva,
por via de meros actos por via legislativa ou de meros actos administrativos.
Com base nesta metodologia, nos pró ximos títulos falar-se-á de temas ligados
ao direito administrativo ou o direito da gestã o dos entes pú blicos, no seu
relacionamento interno e com os seus accionistas, tendo como linhas de orientaçã o
os seguintes elementos fundamentais na ciência de gestã o:
 Pessoas, como centro e vocaçã o inicial de toda a concepçã o do direito
administrativo e da sua reforma, Administraçã o Pú blica como serviço
pú blico para pessoas e o princípio da participaçã o dos cidadã os, os
vínculos jurídicos entre a Administraçã o Pú blica e seus colaboradores
(garantias e responsabilizaçã o), a capacitaçã o, profissionalizaçã o
(existência de vá rios regimes) e responsabilizaçã o;
 Organização, como forma de exposiçã o e manifestaçã o da relaçã o que se
estabelece entre os vá rios entes que exercem poderes pú blicos, directa
ou indirectamente. A divisã o ou segregaçã o de poderes, a concentraçã o,
desconcentraçã o e a descentralizaçã o administrativa, assim como o
princípio da participaçã o orgâ nica ou institucional, o tamanho ideal do
Estado, o relacionamento e enquadramento da administraçã o de força e
segurança do Estado, os ó rgã os de controlo genéricos e específicos –
â mbito objectivo e subjectivo –, a administraçã o dos ó rgã os de soberania
e instituiçõ es administrativas independentes, sã o temas importantes no
â mbito desta abordagem;
 Processos, como o modo de funcionamento dos poderes pú blicos ou ao
serviço, o procedimento administrativo, as decisõ es e competência, a
interacçã o com os accionistas da Administraçã o Pú blica, as garantias

168
administrativas, o reconhecimento e atribuiçã o de direitos, as
responsabilidades e mecanismos de responsabilizaçã o do Estado;
 Instrumentos, como conjunto de meios ao serviço da Administraçã o
Pú blica para o alcance dos seus fins, de forma eficiente e comprometida
com os resultados, tais como a lei e os demais actos normativos, os
contratos, a utilizaçã o de tecnologias de informaçã o e comunicaçã o.
No final do dia, o que se pretende com cada um destes elementos é uma
restruturaçã o da forma de ser e de se manifestar da Administraçã o Pú blica o que,
necessariamente, implicará mudanças no direito administrativo.

1. ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA

 A (nova) matriz identitária do Direito Administrativo

A Constituiçã o da Repú blica de Angola de 2010 (CRA) (in)augura uma (nova)


era para a Administraçã o Pú blica. Mais do que a evidente alteraçã o de paradigma,
em relaçã o ao modelo de organizaçã o do poder vigente no quadro constitucional
passado, na perspectiva administrativa, a CRA introduz sérias mudanças e
consagra valores e garantias que, seguramente, nos levam a afirmar que houve
uma nova matriz identitá ria da Administraçã o Pú blica (ou pelo menos, vaticina), o
que, consequentemente, impõ e o surgimento de um novo conceito de gestã o
pú blica e identidade do Direito Administrativo.
O Capítulo I do Título V da CRA é, axiologicamente, transpassado pela ideia
do comprometimento do exercício do interesse pú blico, subordinado ao império
dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Nã o se quer,
certamente, colocar em causa o exercício de poderes pú blicos. Pelo contrá rio,
limita, legitima e condiciona, como critério de validade e fundamento, o seu
exercício com respeito aos particulares.
Assim, nã o apenas de forma quantitativa, mas fundamentalmente pelo seu
conteú do, os princípios que devem instrumentalizar o melhor alcance dos
resultados pretendidos pela Administraçã o Pú blica agrupam-se em duas ordens

169
distintas:
i. “Os princípios garantísticos da supremacia e comprometimento com os
particulares no exercício da funçã o administrativa e os princípios que
protegem a paridade entre os destinatá rios da acçã o administrativa”184,
sendo respectivamente, por um lado, o da participaçã o, da aproximaçã o
dos serviços, da audiência, da informaçã o e do acesso aos arquivos, e,
por outro, o da igualdade, justiça, imparcialidade e proporcionalidade;
ii. “Os princípios de gestã o interna comprometidos com o fim ú ltimo da
acçã o administrativa”, que sã o o da simplificaçã o administrativa,
desconcentraçã o e descentralizaçã o, bem como o respeito pelo
patrimó nio pú blico e a responsabilizaçã o.
Tendo em atençã o estes princípios, falta na ordem jurídica da tutela
administrativa actual o alinhamento infraconstitucional de concretizaçã o deste
novo paradigma. Ou seja, o desejo manifestado na CRA precisa encontrar
concretizaçã o, seja no quadro normativo ordiná rio, seja na actividade da
Administraçã o Pú blica.

2. VISÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A Administraçã o Pú blica, em qualquer está gio civilizacional, é, primeiramente, um


produto directo de uma determinada visã o e sentido do Estado.
Omar GUERREIRO185 lembra-nos que a Administraçã o Pú blica é caracterizada
por atributos que, apenas, podem ser explicados a partir do Estado. O autor
partilha a sua visã o e efectua uma aproximaçã o desta, a vá rias geografias, como
podemos verificar:

La índole de esa cualidad del Estado es el movimiento, de modo que la


administración pública consiste en la actividad del Estado. Tal como es
observable a lo largo del pensamiento administrativo, esta noción de
184
CANOTILHO, J. J., Gomes, MOREIRA, Vital, CRP – Constituição da República Portuguesa
Anotada, Vol. II, 4.ª Ed. Revista, Coimbra Editora, Outubro de 2014, pá g. 796.
185
GUERREIRO, Omar, Principios de Administracion Pública, Santa Fé de Bogota: Escola
Superior de Administration Publica – ESAP, 1997b.
170
administración pública ha sido extraordinariamente consensual, tanto en
el tiempo, como en el espacio. En Alemania, Carlos Marx se refirió a la
actividad organizadora del Estado y Lorenz van Stein a la actividad del
Estado; en tanto que los Estados Unidos, Woodrow Wilson discernía sobre
el gobierno en acción, Luther Gulick sobre el trabajo del gobierno y
Marshall Dimock al Estado como constructor.186

Para Freitas DO AMARAL, ao falar-se em Administraçã o Pú blica, deve ter-se


presente “um conjunto de necessidades colectivas cuja satisfaçã o é assumida como
tarefa fundamental do Estado, ou por outras entidades pú blicas, através de
serviços por esta organizados e mantidos”187.
Partindo do pressuposto de que existe um conjunto de desejos cuja satisfaçã o
a ló gica de mercado nã o se dispõ e a fornecer tais bens188, há necessidade de, no
seio da comunidade, se organizar um conjunto de serviços especializados, ó rgã os
administrativos, recursos humanos e materiais vocacionados para os fins da
produçã o e fornecimento destes bens. Segundo FEIJÓ e PACA (2013), 189 “a criaçã o
desses ó rgã os e serviços consubstanciar-se-á naquilo a que se chama
Administraçã o Pú blica, ou organizaçã o administrativa pú blica, cuja finalidade é a
de prosseguir ou satisfazer o interesse pú blico ou fins da colectividade”.
Como se pode notar, há uma relaçã o de complementaridade e materializaçã o:
a ideia de vida em sociedade demanda necessidades cuja satisfaçã o apenas deve
ser feita por um ente diferente dos interesses particulares, surgindo assim o
Estado com o seu aparelho administrativo. Este aparelho administrativo nã o se
basta a si mesmo e nã o é um modelo acabado. Precisa de ser repensado,
permanentemente, em funçã o das novas exigências sociais, o que pode implicar
ampliaçã o ou reduçã o do seu tamanho, ou, ainda, simplificaçã o ou reagrupamento

186
GUERREIRO, Omar, Ob., cit., pag. 24.
187
AMARAL, Diogo Freitas do, FEIJÓ , Carlos, Direito Administrativo Angolano, Almedina, 2016,
pá g. 12.
188
Os chamados bens pú blicos. Para mais desenvolvimentos, vide, ROCHA, Manuel, José Alves
da, DAVES, Vera da, e DELGADO, Albertina, Finanças Públicas, Universidade Cató lica de Angola –
CEIC, Texto Editores, Lda, Angola, 2013, pá g. 46.
189
FEIJÓ , Carlos e PACA, Cremildo, Direito Administrativo, 4.ª Ediçã o, Mayamba Editora,
Luanda, Janeiro de 2015, pá g. 73. 171
da forma de funcionamento. Sã o, portanto, estas nuances que justificam a presente
reflexã o.

3. DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA –


VISÃO TEÓRICA

Tradicionalmente, a escola continental da Administraçã o Pú blica de matriz


romano-germâ nico, ao falar de uma aproximaçã o terminoló gica da figura, refere-se
ao seu cará cter polissémico. Nesta linha, por exemplo, OTERO (2014)190 identifica
três diferentes sentidos da Administraçã o Pú blica, nomeadamente:
i. A Administraçã o Pú blica como actividade;
ii. A Administraçã o Pú blica como organizaçã o;
iii. A Administraçã o Pú blica como poder ou autoridade.
Ora, a construçã o teó rica que se ensaia neste texto nã o se quer apresentar
como substituta da visã o enunciada no pará grafo anterior. Pelo contrá rio,
alicerçando-se na sensibilidade construída, ao longo de décadas sobre o tema, na
vasta bibliografia existente, pretende propor uma nova arrumaçã o, quer da
organizaçã o interna da Administraçã o Pú blica, quer na forma de manifestaçã o
externa aos seus destinatá rios.
Inspirando-se no tratamento de temas de gestã o das organizaçõ es que
exercem actividade privada, entende-se que, para a simplificaçã o da estrutura
organizativa da pró pria Administraçã o Pú blica, se devem adoptar quatro
dimensõ es que encerrem, em si, todo o sentido e alcance da Administraçã o Pú blica.
Assim, defendem-se as seguintes dimensõ es:
i. Pessoas;
ii. Organizaçã o;
iii. Processos;
iv. Instrumentos.
190
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Almedina, Agosto de 2014, pá g.
171. Igualmente, neste sentido: Marcello Caetano, Manuel de Direito Administrativo, 10.ªed., pp 5 e
13; Rogério Ehrardt Soares, Administração Pública, pp. 136; Idem, Direito Administrativo (1992),
pp. 10 ss.; Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3.ª Ed., pp 29 ss., Idem,
Curso de… 2.ª ed., pp., 22 ss.,. 172
No essencial, estas dimensõ es nã o retiram as actuais atribuiçõ es da
Administraçã o Pú blica. Pelo contrá rio, agrupam-nas, de forma a garantir-se melhor
sistematizaçã o e fluidez na criaçã o, funcionamento e extinçã o de qualquer serviço
pú blico que seja motivado para o alcance de resultados sustentá veis.191 Nos
pró ximos momentos, apresentam-se, de forma meramente exemplificativa, as
supra-referidas dimensõ es e o seu conteú do essencial, sem, portanto, qualquer
pretensã o de se esgotar a sua abordagem neste ensaio.

3.1. Pessoas

Toda e qualquer consideraçã o da Administraçã o Pú blica e as suas constantes


reformas deve iniciar-se nas pessoas, sendo estas as peças fundamentais do
processo e como beneficiá rios finais. A reforma da Administraçã o Pú blica é
primeiro, e acima de tudo, uma reforma de ideias; ideia do que é administrar a
coisa pú blica. Justifica-se, desta forma, que o primeiro trabalho deve iniciar-se com
a criaçã o de uma nova ideia ou um novo conceito que, ao ser assimilado pelas
pessoas, passará facilmente a ser digerido, quando materializado, por intermédio
dos actos normativos e materialmente administrativos.
As pessoas, na ciência da gestã o, sã o vistas em vá rias perspectivas.
Entretanto, neste texto, iremos procurar abordar esta dimensã o em três
perspectivas:192
i. Como destinatá rias finais de toda a acçã o da administraçã o;
ii. Como participantes das acçõ es de administraçã o;
iii. Como autoras da acçã o de administraçã o (servidores pú blicos).
A actual literatura normativa da Administraçã o Pú blica, encabeçada pela CRA
e pelo Decreto-Lei 16-A/95, de 15 de Dezembro, sobre as Normas do

191
SILVESTRE. Hugo Consciência, ARAÚ JO, Joaquim Filipe, Colectânea em Administração
Pública, Escolar Editora, Lisboa, 2013, pá g. 5.
192
Em sentido de exposiçã o diferente, mas que acaba transportando o mesmo significado
identitá rio, vide OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Almedina, Agosto de
2014, pá g., 93. O autor, ao abordar a problemá tica da relaçã o entre a Administraçã o Pú blica e os
particulares, apresenta três diferentes configuraçõ es: (i) relaçõ es gerais de poder, (ii) as relaçõ es
gerais de poder e (iii) as relaçõ es jurídico-administrativas (em sentido pró prio). (estã o
iguais ???????) 173
Procedimento e da Actividade Administrativa, é rica em consagrar um conjunto de
princípios que, apesar da sua bondade, nã o se destinam e nem cobrem, com igual
preocupaçã o, a compreensã o da dimensã o "pessoa", manifestada no ponto
anterior.
Há , sem qualquer dú vida, uma preocupaçã o da abordagem da dimensã o
"pessoas", lamentavelmente, focada nestas, enquanto autores da acçã o
administrativa, isto é, os chamados gestores pú blicos, desconsiderando, em larga
medida, as restantes perspectivas.
Nã o existem (e nem se aconselha) que se criem fundamentos para a
persistência nesta visã o bipartida do relacionamento inter-administrativo,
caracterizada na relaçã o administrador vs administrado, albergando a primeira e a
ú ltima perspectiva desta dimensã o. Há , pois, que se perceber que a relaçã o entre as
pessoas, na Administraçã o Pú blica, nã o se confina a esta dualidade de partes,
nitidamente segregadas. Existe, em todo o processo de tomada e implementaçã o de
decisõ es, a perspectiva participativa das pessoas, isto é, pessoas como parte do
processo e nã o apenas como autores ou destinatá rios. Isto porque o fim da
administraçã o pode ser, e é, muitas das vezes, atingido no "processo" e nã o apenas
no "produto" idealizado por uma decisã o administrativa.
A salvaguarda da posiçã o das pessoas nas relaçõ es com a Administraçã o
Pú blica nã o é, apenas, um dado que deve decorrer da forma de estar e de ser da
Administraçã o Pú blica. Esta concepçã o deve estar alicerçada na Constituiçã o, na
matriz identitá ria, que a conforta e dá validade. A dignidade da pessoa humana e
dos seus direitos fundamentais no trato com a Administraçã o Pú blica é, antes e
acima de tudo, uma imposiçã o do direito constitucional.
Neste sentido, SILVA (2005) defende, de modo inverso na exposiçã o, mas
com igual acentuaçã o, que:

não apenas o direito constitucional, mas todo o direito público e,


consequentemente, também o direito administrativo, necessitam de ser
recentrados: o direito público não deve ser mais o direito do Estado e dos
seus órgãos, mas o dos indivíduos e dos seus direitos, tal como o direito
administrativo não deve ser mais o da Administração, mas o dos direitos

174
individuais na relação administrativa.193

Portanto, reitera-se a ideia de que a dimensã o subjectiva da Administraçã o


Pú blica contraria a ideia de que esta deve ser, apenas, o braço predilecto de
manifestaçã o e exercício do poder do Estado nas suas relaçõ es com os particulares,
defendendo uma nova perspectiva que situa a pessoa humana, enquanto autor,
participante e destinatá rio de toda a acçã o administrativa do Estado, antes e acima
de tudo, porque é o cidadã o que financia a actividade da Administraçã o, logo, nã o
pode ter um tratamento diferenciado, perdendo para os procedimentos e a
organizaçã o rígida e hierá rquica.
No ponto seguinte, apresenta-se uma síntese do enquadramento legal sobre
esta dimensã o.

3.1.1. Síntese do enquadramento legal194

O direito administrativo vigente, quanto a esta dimensã o, pode ser


sintetizado no quadro seguinte:

Tabela 1 – Quadro síntese da legislação da Dimensão “Pessoas”

# Diploma Conteú do essencial


1 Decreto-Lei n.o 10/94, de Regime jurídico das férias, faltas e licenças dos
24 de Junho funcioná rios pú blicos e agentes administrativos
dos ó rgã os da administraçã o local e central do
Estado e dos Institutos Pú blicos
2 Decreto 33/91, de 26 de Regime disciplinar aplicá vel aos funcioná rios
Julho pú blicos e agentes administrativos
3 Decreto-Lei n.o 8/02, de Estabelece o agravamento das faltas justificadas
18 de Junho cometidas no término das férias, feriados,
tolerâ ncias de ponto e dias de descanso semanal

193
SILVA, Vasco Pereira da, Para um contencioso administrativo dos particulares – esboço de
uma teoria subjectiva do recurso directo de anulação, Livraria Almedina, Coimbra, 2005, pá g., 63.
194
Reconhece-se que o quadro legal, dentro desta dimensã o, dá um especial destaque à s
“pessoas”, na perspectiva de gestor. 175
4 Resoluçã o n.o 26/94, de Aprova a pauta deontoló gica do serviço pú blico
26 de Agosto
5 Decreto Presidencial n.o Regime jurídico das prestaçõ es familiares,
8/11, de 7 de Janeiro constituído pelo subsídio de maternidade,
subsídio de aleitamento, abono de família e
subsídio de funeral
6 Decreto Presidencial n.o Regulamento sobre a avaliaçã o de desempenho
52/18, de 19 de dos funcioná rios das Finanças Pú blicas e a
Fevereiro correcçã o efectuada pelo Decreto Presidencial
n.o 221/18, de 26 de Setembro.
7 Lei n.o 11/18, de 20 de Lei dos feridos nacionais
Setembro
8 Lei n.o 7/04, de 15 de Lei de Bases da Protecçã o Social
Outubro
9 Decreto n.o 16/89, de 13 Estatuto do Gestor Pú blico
de Maio
10 Decreto-Lei n.o 12/94, de Regime Jurídico e Condiçõ es de Exercício de
1 de Julho Cargos de Direcçã o e Chefia

3.1.2. Oportunidade de melhoria

Como uma oportunidade de melhoria, nesta dimensã o, reconhece-se que um


trabalho profundo deve ser feito para a conscientizaçã o dos funcioná rios pú blicos,
mantendo-os motivados para os fins das suas organizaçõ es e, consequentemente,
na forma como se trata o cidadã o-accionista. Apresenta-se, de seguida, um Caso de
Estudo – sobre a Avaliaçã o de Desempenho dos Funcioná rios Pú blicos – Caso do
Ministério das Finanças, que pode ser um bom exemplo para o caminho a ser
seguido pela Administraçã o Pú blica.

Tabela 2 – Caso de Estudo 1

Caso de Estudo

176
Pelo Decreto Presidencial n.o 52/18, de 19 de Fevereiro, e a alteraçã o
Enquadramento
introduzida pelo Decreto Presidencial n. o 221/18, de 26 de
Setembro, aprovou-se o Regulamento sobre a avaliaçã o de
desempenho dos funcioná rios das Finanças Pú blicas, também
designado por “Sistema de Avaliaçã o de Desempenho das Finanças
Pú blicas – SADFF”.
 Introduzir a avaliaçã o por objectivos;
Visão Geral

 Definir 3 (três) dimensõ es ou valências dos


funcioná rios/colaboradores, designadamente, Objectivos,
Competências Transversais e Competências Específicas.
A avaliaçã o com base no objectivo avalia a contribuiçã o de
cada funcioná rio para o sucesso estratégico e sustentado
das Finanças Pú blicas. Os objectivos sã o definidos a nível
Objectivos

estratégico pelo gestor de topo e é, de seguida, desdobrado


em cascata por todos os serviços e á reas que, por sua vez,
devem identificar os objectivos individuais de cada
funcioná rio. Os objectivos têm de ser smart195.
Aplicam-se a todos os funcioná rios das finanças pú blicas. Os
factores de avaliaçã o, nesta dimensã o, têm por base o nível
Dimensões

Competências
transversais

de responsabilidade das categorias na actividade das


Finanças Pú blicas, considerando que as funçõ es de Direcçã o
e Equiparadas e de Chefia assumem responsabilidades
estratégicas e as restantes categorias responsabilidades
mais operacionais.
As específicas dividem-se em técnicas e de liderança. As
técnicas têm a ver directamente com as matérias que se
Competências
Específicas

espera que cada colaborador desenvolva dentro do período


de avaliaçã o. As de liderança têm a ver com a capacidade de
motivar a equipa, a proactividade, a tomada de decisã o e a
monitorizaçã o do desenvolvimento da equipa.

195
Sigla em inglês que, em português, significa: específicos, mensurá veis, atingíveis,
relevantes e temporalmente limitados. 177
Questões 1. Pode este modelo ser estendido para toda a Administraçã o
Pú blica?
2. Estã o os gestores e funcioná rios pú blicos preparados para
implementar e monitorar um modelo semelhante?
3. Que aspectos podem comprometer o êxito deste modelo no
MinFin?

Numa visã o mais alargada, recomenda-se que o direito a constituir, para a


definiçã o de um regime jurídico desta dimensã o, seja capaz de considerar as
seguintes oportunidades de melhoria, com impacto substancial nos resultados e
sustentabilidade da acçã o administrativa:

Tabela 3 – Oportunidades de Melhoria – 1

Perspectivas
da Dimensão Oportunidades de melhorias
Pessoa
Destinatá rios Aumento da consciência de cidadania que pode ser fomentada
da acçã o pela expansã o do conceito de pertença ao Estado na vida das
administrativa pessoas e nã o apenas no territó rio;
Participantes Redimensionamento do procedimento administrativo actual,
da acçã o para uma perspectiva mais participativa das pessoas, que
administrativa procure maximizar a sustentabilidade do resultado da acçã o
administrativa, nã o apenas na decisã o idealizada como
executó ria e definitiva, mas em todas as fases da gestã o
pú blica administrativa;
Autores da  Equacionar o regime jurídico-laboral ou de vínculos
acçã o jurídico contratual entre a Administraçã o Pú blica e pessoas
administrativa singulares, com a ló gica de produtividade da prestaçã o,
condicionada a contratos de termo certo.
 Gestã o de carreiras e mandatos para os gestores pú blicos e
cargos de direcçã o e chefia;

178
 Profissionalizar, com a identificaçã o de tarefas e níveis de
crescimento, a carreira geral da funçã o pú blica.

Em conclusã o, o exercício do desenho de uma nova perspectiva da


Administraçã o Pú blica é necessá rio considerar-se, como aspecto fundamental a
ter-se em conta, a dimensã o pessoa. Nenhuma política pú blica ou nenhum
regulamento administrativo poderá ser aplicado ou desenvolvido se as “pessoas”
da Administraçã o Pú blica estiverem desmotivadas. De igual forma, se nã o se
considerar esta dimensã o na perspectiva da participaçã o dos interessados na
actividade administrativa, como os verdadeiros accionistas do Estado que a
Administraçã o Pú blica serve, este processo fica, igualmente, comprometido.

3.2. Organização

O ideal, o perfeito, é inalcançá vel em funçã o da natureza humana, marcada


por um deficit de substratos instintivos. Porém, o adequado, dentro das
circunstâ ncias de tempo e espaço, é o mínimo exigível pela natureza humana e pelo
seu convívio social. É dentro destas limitaçõ es que se criam as organizaçõ es.
Organização “consiste em estabelecer relaçõ es formais entre as pessoas e estas e
os recursos, para atingir os objectivos propostos” (TEIXEIRA, 2013)196.
Pela componente "organizaçã o" na Administraçã o Pú blica, de acordo com a
ciência de gestã o, deve entender-se a disposiçã o harmoniosa de vá rios serviços em
funçã o de um comando, tendo em vista a prossecuçã o de um determinado
objectivo. Para este desiderato, a disposiçã o dos serviços pú blicos deve ser
adequada.
Num mundo cada vez mais marcado por alteraçõ es de ordem econó mica,
política e cultural, onde a inovaçã o tecnoló gica vai assumindo comando em quase
todos os segmentos da vida humana, a concepçã o teó rica sobre a Administraçã o
Pú bica tem de estar à altura de absolver, digerir e, de forma eficiente, dar respostas
eficazes aos desafios diariamente colocados ao Estado. A disposiçã o dos serviços
pú blicos deve convergir e facilitar a absorçã o da evoluçã o e desenvolvimento
humano e colectivo, bem como, sempre que possível, ser o verdadeiro motor deste

196
TEIXEIRA, Sebastiã o, Gestão das Organizações,
179 Escolar Editora, 3.ª ediçã o, Lisboa, pá g., 7
progresso.
Assim, e de forma bastante resumida, nesta dimensã o, far-se-á uma incursã o
pela visã o teó rica do conceito de organizaçã o ou da Administraçã o Pú blica, na
perspectiva orgâ nica, as linhas constitucionais, algumas notas, os vá rios níveis de
organizaçã o da administraçã o do Estado, o quadro legal, os desafios e as
oportunidades de melhoria, para uma Administraçã o Pú blica que seja parte
principal na vanguarda das transformaçõ es sociais e consiga, de forma dinâ mica e
eficiente, dar resposta a um misto de desafios com origens internacionais ou
nacionais.

 Visão Teórica Geral

Teoricamente, a parte orgâ nica da Administraçã o é a que mais se manifesta


quando os particulares se relacionam com a Administraçã o Pú blica. Muitas vezes,
junto da dimensã o organização, cria-se um link com o estabelecimento físico que
suporta ou alberga um determinado serviço pú blico ou componente orgâ nica da
Administraçã o Pú blica (por exemplo, fala-se em Ministério das Finanças,
relacionando-o, mentalmente, à sua estrutura física, situada no Largo da
Mutamba). De igual forma acontece com os Governos Provinciais e Municípios. A
verdade é que a componente orgâ nica da Administraçã o Pú blica nã o se reduz ao
seu espaço físico.
Esta dimensã o da Administraçã o Pú blica manifesta-se, imediatamente, com a
sua criaçã o, isto é, quando ganha personalidade jurídica, em regra, por um acto
normativo do Presidente da Repú blica, enquanto Titular do Poder Executivo, nos
termos das al. d), e), f) e g) do art. o 120.o da CRA, sem desprimor da criaçã o por
parte de poderes.
É , no momento da criaçã o do ó rgã o da Administraçã o Pú blica, ou do Serviço,
que se decidem as suas atribuiçõ es, podendo verter sobre estruturas decisó rias de
matriz pú blica ou de matriz privada197, podendo, de igual modo, esta forma
impactar sobre o modo de actuaçã o e manifestaçã o.

197
OTERO, Paulo, Manual de Direito Administrativo, Volume I, Almedina, Agosto de 2014, pá g.
173. 180
 Modelo de organização político-administrativa presente na CRA

Mais do que os teó ricos princípios referentes à distribuiçã o do poder


administrativo, baptizados pelos extremos da centralizaçã o e descentralizaçã o, é
fundamental que a opçã o por um e/ou por outro seja, antes de mais, mensurada e
imposta pelos resultados que se pretendem alcançar. É o foco na sustentabilidade
dos resultados que irá definir o melhor modelo de organizaçã o e distribuiçã o dos
serviços pú blicos.
Neste debate, entre a centralizaçã o e os vá rios níveis de descentralizaçã o, é
necessá rio destacar que o â mago de toda a discussã o nã o deve ser visto nem
confundido com as disputas políticas. É , acima de tudo, mister de qualquer
consideraçã o que o aparelho administrativo e, concomitantemente, as normas que
o regulam deverem figurar-se com uma ossatura de fá cil identificaçã o.
Este esqueleto é, teoricamente, o que decorre dos fins do Estado, previstos na
CRA, maxime, art.º 21.o, e dos princípios fundamentais, vide art.º 198.o da CRA que,
como instrumentos, devem estar ao serviço do alcance dos resultados
programá ticos e, exemplificativamente, enumerados na Constituiçã o. Dito de outro
modo, à disposiçã o dos ó rgã os e da relaçã o que entre eles se estabelece, tal como
aflorado em relaçã o ao primeiro segmento de gestã o pú blica, identificado neste
texto, deve estar intrinsecamente comprometido com a sustentabilidade dos
resultados.

 Nota sobre os vários níveis de organização

Largamente se tem reconhecido, a nível da bibliografia, que nã o inexistem


modelos perfeitos. Assim, convém, com igual verdade, reconhecer que se o foco for
a resoluçã o de problemas ablativos localizados, isto é, os problemas de Angola, nã o
é, e nunca deverá ser, identificar um modelo e seguir sem nenhuma adaptaçã o a
soluçã o mais avisada.
A estrutura da organizaçã o administrativa compõ e-se de vá rios poderes e,
consequentemente, cria um vasto leque de relaçõ es de diferentes índoles, algumas
complexas e muito complexas e outras mais burocrá ticas e, outras ainda, um pouco
simples. Para breves notas, identificam-se infra segmentos de organizaçã o

181
administrativa do Estado:

Tabela 4 – Notas sobre os níveis de organização da Administração Pública

# Níveis de
organização da
Notas
Administração
Pública
Há toda a necessidade de um alinhamento orgâ nico e
funcional entre as entidades que exercem a funçã o
administrativa nos ó rgã os de soberania, para, entre
outros, garantir a melhor protecçã o dos interesses
Entidades
dos particulares, com os quais se relacionam. Por
administrativas
1 exemplo, nã o se pode confundir a funçã o legiferante
dos ó rgã os de
da Assembleia Nacional198 com a gestã o orçamental
soberania
para o seu funcionamento. Que tratamento dar,
imagina-se, a um recurso hierá rquico interposto por
um concorrente, no processo de fornecimento de
viaturas protocolares para os deputados?199
Administraçã o
Central (ó rgã os O relacionamento hierá rquico entre os vá rios níveis
auxiliares do de dependência do Titular do Poder Executivo pode
Presidente da ser melhorado. Referindo-se, concretamente, à
2
Repú blica, relaçã o entre os Ministros junto da Casa Civil ou de
Departamentos Segurança do Presidente da Repú blica, na criaçã o de
Ministeriais e redundâ ncia ou eventuais sobreposiçõ es de funçõ es.
equiparados)
198
O Parlamento Angolano, nos termos do n.º 1 do artigo 141.º da CRA
199
Nos termos do n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 9/16, de 16 de Junho, Lei dos Contratos
Pú blicos, os recursos hierá rquicos, pró prios e impró prios, devem ser, respectivamente, interpostos
para o superior hierá rquico ou para o ó rgã o que exerça poderes de supervisã o sobre aquele. No
caso em concreto, quem seria este ó rgã o? O Presidente do Conselho de Administraçã o da
Assembleia Nacional ou o Presidente da Assembleia Nacional. Numa outra situaçã o, como agir, se a
entidade em causa for a Comissã o Nacional Eleitoral?
182
Administraçã o A Administraçã o Local do Estado é um meio, por
Local (Governos excelência, para a materializaçã o de uma governaçã o
provinciais e participativa. O relacionamento entre o Poder
3 administraçõ es Local200 e os poderes executivo, judicial e legislativo
municipais, deve ser esclarecido em bases objectivas e
distritais e concorrentes para uma prestaçã o de serviços de
comunais) Estado mais efectiva e eficiente.
Os institutos pú blicos e as empresas pú blicas,
enquanto principais manifestaçõ es da administraçã o
indirecta do Estado, devem conhecer maior
autonomia. A primeira consideraçã o é que estes nã o
Administraçã o sã o sectoriais. Isto é, sã o institutos da Administraçã o
4 indirecta (nota Pú blica, encabeçada pelo Presidente da Repú blica,
particular ao SEP) enquanto Titular do Poder Executivo, e nã o de cada
departamento ministerial. Em segundo lugar,
incentiva-se a celebraçã o de contratos-programa,
com o Estado, como verdadeiros instrumentos de
vinculaçã o e gestã o.
5 Administraçã o A estrutura tradicional da Administraçã o Pú blica, de
independente e subordinaçã o hierá rquica ou de superintendência,
autó noma201 tornou-se excessivamente pesada e inadequada para
cumprir certos desideratos. As falhas de governo dã o

200
Nos termos da CRA, integrado pelas Autarquias Locais (artigo 217.º) e pelas Instituiçõ es
do Poder Tradicional (artigo 223.º).
201
As entidades administrativas independentes e ou autó nomas surgem, com maior
predomínio, no â mbito das discussõ es sobre a reformulaçã o do papel do Estado junto dos novos
desafios. Neste sentido, nas palavras do Prof. Lucas Cardoso, em CARDOSO, José Lucas,
“Administração Independente”, in Dicioná rio Jurídico da Administraçã o Pú blica, Lisboa, 2007,
Lisboa, p. 17., a administração independente, em sentido subjectivo, “é o conjunto de ó rgã os do
Estado e de pessoas colectivas pú blicas de cará cter institucional que asseguram a prossecuçã o de
tarefas administrativas de incumbência do Estado sem estarem sujeitos aos poderes de hierarquia,
de superintendência, nem de tutela dos ó rgã os de direcçã o política”. Já em sentido objectivo, “é a
actividade administrativa exercida com vista a prossecuçã o de fins do Estado, no respeito pela
ordem jurídica mas sem subordinaçã o à política”.183
disto um testemunho. O surgimento de entidades
administrativas independentes pode facilmente
proporcionar o equilíbrio de vá rios interesses,
principalmente no â mbito da actividade reguladora
do Estado.

3.2.1. Síntese do enquadramento legal

O direito administrativo vigente, quanto a esta dimensã o, pode ser sintetizado no


quadro seguinte:

Tabela 5 – Quadro síntese da legislação da Dimensão “Organização”

# Diploma Conteú do essencial


Decreto Legislativo Regime jurídico da organizaçã o e funcionamento dos
Presidencial n.o Institutos Pú blicos
1
2/13, de 25 de
Junho
Lei de Bases do Sector Empresarial Pú blico, que
Lei n.o 11/13, de 3 estabelece o Regime Jurídico das empresas pú blicas,
2
de Setembro empresas com domínio pú blico e participaçõ es
pú blicas minoritá rias.
Decreto Estabelece os princípios e as normas de organizaçã o e
Presidencial n.o de funcionamento dos ó rgã os da Administraçã o do
3
208/17, de 22 de Estado, fixando as respectivas estruturas
Setembro organizacionais.
Lei n.o 15/16, de 12 Lei da Administraçã o Local do Estado
4
de Setembro
Decreto Legislativo Estabelece a organizaçã o e o funcionamento dos
Presidencial n.o ó rgã os auxiliares do Presidente da Repú blica
5
3/17, de 13 de
Outubro

184
3.2.2. Oportunidade de melhoria

A sacralidade e o dogma com que se tem transformado, anunciado e


defendido o princípio da legalidade no funcionamento da Administraçã o Pú blica
tem levado a que as acçõ es das organizaçõ es que ela corporaliza estejam
estritamente comprometidas com um cumprimento formal da lei, como que de
uma check-list se tratasse, sem a preocupaçã o da aná lise do mérito, da
oportunidade e, fundamentalmente, da sustentabilidade do resultado da acçã o
administrativa.
Ora, tal como já manifestado noutros pontos, o entendimento que se deve ter
acerca do princípio da legalidade e dos seus correlativos é meramente
instrumental. O critério de juízo de valor sobre os actos da Administraçã o Pú blica
tem de estar comprometido com a sustentabilidade dos resultados e nã o com o
cumprimento cego e religioso da lei, que, pelos mecanismos formais decorrentes
do seu processo de actualizaçã o e exteriorizaçã o, chega tarde, na maior parte das
situaçõ es, em relaçã o aos desafios colocados hodiernamente perante a velocidade
frenética com que inova na visã o de desenvolvimento da Humanidade.
O direito administrativo angolano peca, duramente, por nã o considerar
mecanismos técnico-científicos de gestã o que permitam, temporalmente, avaliar o
desempenho das organizaçõ es que corporiza.
A ausência de critérios, procedimentos, guias e ó rgã os responsá veis pela
avaliaçã o do desempenho das organizaçõ es é claramente um sinal da falta de
comprometimento com o cumprimento das metas definidas nos planos anuais de
actividade, bem como um evidente divó rcio com os resultados que se pretendem
atingir com a Administraçã o Pú blica.
Importa, igualmente, referir que o exercício da actividade administrativa nã o
pode ficar refém de critérios políticos de êxito. A Administraçã o Pú blica, pelas suas
instituiçõ es, precisa de alicerces objectivos, institucionalizados e seguros que
sobrevivam aos apetites e visõ es políticas sazonais de cada ciclo eleitoral. Deve
haver uma ciência de gestã o de instituiçõ es pú blicas por trá s dos seus actos e nã o
meras orientaçõ es políticas desprovidas, muitas das vezes, do necessá rio aporte
técnico-científico para a sustentabilidade dos resultados.

185
Importa destacar que o conceito de avaliaçã o de desempenho, em tese neste
ponto, nã o se confunde com as acçõ es de fiscalizaçã o ou inspecçã o, exercidas pelos
ó rgã os de controlo interno e externo da Administraçã o Pú blica, pelo facto de a
intervençã o destes ser, exclusivamente, formal e legalista (por exemplo, como
decorre dos termos da Lei n. o 15/10, de 14 de Junho, Lei do Orçamento Geral do
Estado, da Lei n.o 13/10, Lei Orgâ nica e do Processo do Tribunal de Contas).
É completamente verdadeira a ideia de que, na ausência de planos de
actividades, com objectivos e metas claramente definidos e mensurá veis, todo e
qualquer resultado pode ser tido como satisfató rio. Porém, em nosso entender,
este nã o pode ser o caminho a seguir para a gestã o de organizaçõ es que se querem
eficientes, inovadoras e fortemente vinculadas à produçã o de resultados
sustentá veis.
Assim, para a construçã o de um sistema de avaliaçã o de desempenho das
organizaçõ es incorporadas na Administraçã o Pú blica é fundamental a
consideraçã o dos seguintes factores:
 Definiçã o de critérios e metodologia para avaliaçã o do desempenho das
organizaçõ es;
 Definiçã o de critérios de aná lise do ambiente interno e externo das
organizaçõ es para efeitos de definiçã o genérica dos targets;
 Definiçã o de objectivos que sejam específicos, mensurá veis, alcançá veis,
realistas e temporalmente limitados;
 Criaçã o de mecanismos de controlo interno de desempenho junto das
organizaçõ es;
 Identificaçã o de uma estrutura orgâ nica e de cadeia decisó ria;
 Criaçã o de mecanismos de responsabilizaçã o e impedimento sobre o
resultado do desempenho.
Quanto ao â mbito, importa acrescentar que a aná lise do desempenho deve
incidir sobre as dimensõ es essenciais da actividade de gestã o, nomeadamente,
pessoas, organizaçã o, processo e instrumentos.
Para que nã o se caia na tentaçã o de se focar os meios, e nã o os fins, é preciso
realçar que o grande objectivo da avaliaçã o de desempenho das organizaçõ es é o

186
da optimizaçã o contínua dos resultados da acçã o administrativa.

3.3. Processos

A actual visã o da Administraçã o Pú blica angolana está , infelizmente,


sequestrada pela ideia de procedimento, como se de valor absoluto de toda a sua
actividade se tratasse, o que é, de todo, lastimá vel por se deixar inebriar pelas
“luzes da procissã o e o folclore do ritual” e nã o pela “alegria da salvaçã o”.
A sequência ordenada de actos, com vista a um determinado fim, é tida como
processo, ou seja, sã o as vá rias fases que corporizam uma determinada decisã o ou
actuaçã o administrativa. A ideia de "processo", enquanto sequência de actos, está
associada à de procedimento, apesar de, para nó s, procedimento ter uma
equivalência mais detalhada e específica. Por exemplo, depreende-se que nã o têm
o mesmo alcance as seguintes expressõ es: "processo de formaçã o do contrato" e
"procedimento de formaçã o de contrato".
Estruturalmente, entende-se que o processo administrativo está
condicionado à s vá rias formas de manifestaçã o da actividade administrativa. Dito
de outra forma, a pedra de toque deste tema consiste na identificaçã o das vá rias
manifestaçõ es da actividade administrativa; por exemplo, celebram-se contratos,
praticam-se actos materiais e emitem-se regulamentos, decisõ es, autorizaçõ es e
licenças. Para todas estas situaçõ es há um item a ser seguido, há um ritual, um
fluxograma. Esta é, assim, a primeira aproximaçã o.
Este caminho ou processo, em funçã o da actividade, precisa de ser visto
numa dimensã o interna, dentro da ló gica de gestã o e funcionamento da entidade
pú blica, ou numa perspectiva externa, quando estabelece formas de
relacionamento entre o cidadã o-accionista e o ente administrativo. Assim, nesta
aproximaçã o, o procedimento comporta a ideia de garantia. Isto é, a observâ ncia de
certa tramitaçã o quer contribuir para a protecçã o das legítimas expectativas e
segurança jurídica dos interessados, significando que, pelo "processo", a
administraçã o, através transparência, dá a conhecer o seu modo de ser e estar
perante vá rias situaçõ es que corporizam a sua actividade.

187
Neste sentido, SOTO (2013) 202
reforça a ideia, numa perspectiva
constitucional, citando, igualmente, MAURER (1999)203:

El procedimiento administrativo tiene una vinculación constitucional directa.


En virtud de ella los ciudadanos no pueden ser considerados objetos del
procedimiento administrativo, sino que son sujetos de derechos y partes,
que están vinculados en el proceso de toma de decisiones, y en el cual deben
tener la posibilidad de que sus conocimientos, puntos de vista y proyectos
sean tomados en cuenta. “El principio del Estado de Derecho exige – dice
Maurer – no sólo una clara y previsible conformación, sino también una
conformación justa” del procedimiento administrativo.

Ao que se acrescenta que esta vinculaçã o constitucional é, em nosso


entender, reforçada, fundamentalmente, em decorrência do facto de que o sujeito
da decisã o ou, a parte interessada, nã o é, apenas, a antiga ideia de “administrado”,
mas sim o principal interessado na acçã o administrativa – o cidadã o-accionista.
Em certas situaçõ es, a ideia do processo quer igualmente produzir, para a
Administraçã o Pú blica, outras vantagens ou outros valores: é o caso flagrante da
concorrência na formaçã o dos contratos pú blicos. O interesse master é a
celebraçã o de um contrato para o alcance de um determinado fim, porém, a
realizaçã o, via concorrencial, transparece para os vá rios interessados a consciência
da competitividade da melhor oferta como o modo de agir da administraçã o nestas
situaçõ es, salvaguardando o direito de impugnar quando a administraçã o se
manifestar em sentido contrá rio a este caminho. Contudo, apesar deste sentido, a
pró pria administraçã o tem vantagens marginais que decorrem deste processo.
Trata-se, por exemplo, da possibilidade da concretizaçã o do princípio da economia,
na ló gica da aná lise custo-benefício, por um lado, e, por outro, na dinamizaçã o do
funcionamento do mercado em que se insere, especificamente, esta aquisiçã o.

202
SOTO, Jorge Bermú dez, Fundamento y límites de la potestad sancionadora administrativa
en materia ambiental, Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Cató lica de Valparaíso, XL
(Valparaíso, Chile, 2013, 1er Semestre), [pp. 421 - 447]
203
Maurer, Hartmut, Allgemeines Verwaltungsrecht (12ª edició n, Mü nchen, C.H. Beck, 1999),
p. 465. 188
Portanto, sã o, assim, três as situaçõ es que podem, em nosso entender,
caracterizar o processo administrativo, nomeadamente:
i. Processo como forma de tomada de uma decisã o ou prá tica de uma
actividade administrativa, que pode ser voltada para a gestã o interna da
Administraçã o Pú blica ou com efeito externo ao cidadã o-accionista;
ii. Processo como garantia do cidadã o-accionista, na medida em que
solidifica e exibe o modo de agir pró prio da administraçã o;
iii. Processo como forma de alcance de políticas pú blicas secundá rias ou
externalidades positivas.

3.3.1. Síntese do enquadramento legal

O direito administrativo vigente, quanto a esta dimensã o, pode ser


sintetizado no quadro seguinte:

Tabela 6 – Quadro síntese da legislação da dimensão “Processo”

# Diploma Conteú do essencial


1 Lei n.o 2/94, de 14 Lei da impugnaçã o dos actos administrativos
de Janeiro
2 Lei n.o 8/96, de 19 Lei sobre a suspensã o da eficá cia do acto
de Abril administrativo
3 Decreto-Lei n.o 4- Regulamento do Processo de Contencioso
A/96, de 5 de Abril Administrativo
4 Decreto 16-A/95, Normas do Procedimento e Actividade Administrativa
de 15 de Dezembro

3.3.2. Oportunidade de melhoria

Os processos da Administraçã o Pú blica, no tracto com os particulares, pode


ser objecto de melhoria, fundamentalmente, mediante o reforço do papel dos
tribunais, como garantias da celeridade, imparcialidade e justiça.
Os tribunais administrativos desempenham um importante papel na nova

189
concepçã o de Estado e de Direito administrativo. Nesse sentido, nã o devem ser
vistos como braços especiais para a exequibilidade das decisõ es administrativas,
pelo contrá rio, devem garantir e servir de alternativa para protecçã o de direitos
fundamentais dos particulares, no relacionamento com a administraçã o e, de
forma eficiente e eficaz, buscar tal realizaçã o.
Associadas à s outras abordagens sobre o essencialismo na concepçã o do
conteú do das normas do direito administrativo, neste domínio, a intervençã o dos
tribunais fica facilitada quando as normas jurídicas, que regulamentam as relaçõ es
entre a administraçã o e os particulares, sejam completas ou perfeitas, com a clara
previsã o do comportamento devido à estatuiçã o e à sançã o pelo seu nã o
acatamento.
Neste paradigma, os tribunais facilmente conseguirã o concretizar a sua
funçã o de intervençã o garantística em defesa oportuna do interesse dos
particulares.

3.4. Instrumentos

Para uma concepçã o da Administraçã o Pú blica e, por conseguinte, o seu


direito administrativo, na ló gica seguida neste documento, há uma estrita relaçã o
entre a qualidade dos resultados pretendidos com a acçã o administrativa e o tipo
de meios que, para tal, sã o utilizados.
A qualidade destes meios, ou a forma como sã o assimilados e manuseados,
impacta a qualidade de serviço que, em ú ltima instâ ncia, a administraçã o se
compromete prestar, nos termos da Constituiçã o e da lei.
A título exemplificativo, nã o se pode dissociar a forma como as normas
jurídicas, que constituem a ossatura da Administraçã o Pú blica, sã o concebidas,
executadas e monitorizadas com o desempenho final da Administraçã o Pú blica.
Isto é, as normas jurídicas, assim como a pró pria autoridade, o processo de
planificaçã o ou a gestã o do fenó meno da comunicaçã o, sã o verdadeiros
instrumentos ao serviço dos objectivos finais da acçã o administrativa. Esperar-se
por uma Administraçã o Pú blica que seja eficiente, na produçã o de bens e serviços
capazes de proporcionar resultados sustentá veis, implica prestar especial atençã o

190
para os instrumentos que sã o utilizados para o efeito.
De seguida, para maior desenvolvimento desta dimensã o, apresentam-se
vá rias categorias de instrumentos que integram a nova abordagem da gestã o
pú blica.

 A autoridade Administrativa do Estado

O pensamento da Administraçã o Pú blica e do direito administrativo, como


instrumento de conformidade da sua organizaçã o e funcionamento, deve criar um
espaço privilegiado para a discussã o da autoridade do Estado e da Administraçã o.
A Autoridade do Estado, na ló gica da sua tripla divisã o de poderes, passa, em
grande medida, pela forma como gere a relaçã o com os cidadã os-accionistas. A
força capaz de garantir a execuçã o coerciva das decisõ es do Estado é entendida
como uma ferramenta cujo manuseio, em maior ou menor densidade, impacta no
funcionamento e nos resultados esperados da acçã o administrativa.
A administraçã o dos serviços pú blicos consubstancia a forma mais evidente
da manifestaçã o da autoridade do Estado. Esta, que é a grande diferença entre a
gestã o privada e a gestã o pú blica, conhece níveis diferenciados de concretizaçã o e
manifestaçã o.
Uma reforma do modo de se pensar a Administraçã o Pú blica e o direito
administrativo deve, necessariamente, passar pela identificaçã o de formas mais
eficientes do exercício da força que materializa a autoridade do Estado em todas as
suas manifestaçõ es, bem como o impacto que este exercício tem no alcance de
resultados sustentá veis.
É de toda a conveniência, nos nossos dias, compreender-se o exercício da
força do Estado nã o limitado ao respeito pela dignidade da pessoa humana,
enquanto centro e vértice de toda a sua concepçã o.
Assim, a humanizaçã o do uso da força da autoridade do Estado é, hoje, um
aspecto que deve merecer uma abordagem em todos os níveis das ciências
pú blicas, comprometidas por uma administraçã o mais actuante, com respeito ao
cidadã o-accionista e na sustentabilidade da sua acçã o.

191
 Plano (estratégico, táctico e operacional)204

O Plano é cada vez mais um instrumento de gestã o administrativa cuja


consideraçã o nã o pode deixar de ser feita nesta abordagem.
A recente histó ria do nosso país liga a ideia de plano como um instrumento
exclusivo do período de implementaçã o da ideologia socialista de orientaçã o
marxista-leninista, como tal, um instrumento de orientaçã o da actividade
econó mica a que os operadores econó micos devem obediência.
Na moderna teoria da gestã o, o Plano representa a antevisã o de um conjunto
de ideias e actividades cuja realizaçã o constitui objectivo de uma determinada
organizaçã o, dentro de um espaço temporalmente delimitado.
Dividido em níveis estratégico, tá ctico e operacional, o plano é composto por
um conjunto de objectivos, medidas, acçõ es com metas e indicadores-chave de
performance, identificados objectivamente.
Como instrumento de gestã o administrativa, o Plano permite assegurar a
execuçã o e o monitoramento do Programa de Governo sufragado nas eleiçõ es e,
desta forma, vai dando corpo a um conjunto de objectivos que representam a
vontade dos cidadã os-eleitores.
Do ponto de vista jurídico, muitas das ideias constantes do Plano sã o
incorporadas no OGE de cada ano, aprovado pelo parlamento, enquanto
assembleia representativa, como um documento que reitera os compromissos
assumidos pelo partido que suporta o governo em relaçã o aos objectivos que
devem ser alcançados, com a correlativa previsã o orçamental, enquanto limite de
valor a gastar para o efeito. Neste domínio, o Plano (no caso em concreto,
substancialmente, consumido no OGE) ganha a forma de Lei.
Por outro lado, o desafio coloca-se em relaçã o à força jurídica de outros
níveis do Plano, nomeadamente, o Plano Estratégico (em Angola a expressã o
má xima é o Plano de Desenvolvimento Nacional) e o Plano de Actividades, num
nível mais operacional e confinado ao â mbito de cada ó rgã o da Administraçã o
Pú blica.
Como instrumento de orientaçã o da actividade da Administraçã o Pú blica, o

204
Vide TEIXEIRA, Sebastiã o, Gestão das Organizações, 3.ª Ediçã o, Escolar Editora, 2013, pá g.
64. 192
Plano pode ter a sua força vinculativa decorrente da forma como eles sã o
aprovados. Ou seja, apesar de, muitas vezes, terem um conteú do mais de
orientaçã o metodoló gica, ao serem aprovados, mediante acto normativo que
atribui eficá cia regulamentar, os Planos ganham força vinculativa de cumprimento
obrigató rio para todos os seus destinatá rios internos.
Neste domínio, outra discussã o prende-se em saber se os interessados
externos podem, por exemplo, evocar uma dada rubrica de um Plano de Actividade
ou de um Plano Tá ctico, in casus, o OGE, para reclamar, mediante uma acçã o
indemnizató ria, uma expectativa jurídica que a seu favor iria nascer, mas que deixa
de acontecer por inércia ou alteraçã o dos objectivos constantes do Plano. Nã o nos
pronunciaremos sobre um, eventual, posicionamento quanto a este ponto, uma vez
que nã o constitui o foco deste texto. Entretanto, é importante e inquestioná vel
reconhecer a necessidade de um certo grau de vinculaçã o dos vá rios ó rgã os da
Administraçã o Pú blica aos instrumentos de planeamento.
Portanto, neste ponto, fica apresentada a ideia e o cará cter imprescindível
dos instrumentos de planeamento na Administraçã o Pú blica, como um dos
aspectos a ser considerado, seja quanto à forma como ao conteú do, ao
perspectivar-se uma reforma administrativa.

 Legislação

A pluralidade de actos normativos, emanados pela Administraçã o Pú blica,


leva a uma dispersã o legislativa tida como uma das causas fundamentais da
ineficiência e ineficá cia da Administraçã o Pú blica angolana.
Como se sabe da teoria normativa, o regulamento administrativo é um dos
actos por excelência da Administraçã o Pú blica. Segundo AMARAL (2011), o
regulamento é uma norma jurídica emanada no exercício do "poder
administrativo" por um ó rgã o da Administraçã o Pú blica ou "por outras entidades
pú blicas ou privadas para tal habilitadas" 205. Desviando-nos um pouco da tradiçã o
normativa e administrativa, impõ e-se a necessidade de se conceber um novo
paradigma, seja para a produçã o normativa, bem como para a forma e o conteú do

205
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Coimbra, 2011, pá g.
177. 193
dos actos normativos que devem reger a actividade normativa.
A novidade do modelo que se apresenta reside em três ideias fundamentais:
 Reconhecimento do regulamento administrativo, como um instrumento
ao serviço da gestã o pú blica (seja na ó ptica do gestor, seja na do cidadã o-
accionista);
 Sistematizaçã o dos aspectos fundamentais da gestã o pú blica, num Có digo
de Gestã o Administrativa ou Regulamento de Gestã o Pú blica, cuja
vigência pode coincidir, ou nã o, com o mandato político e o conteú do
essencial deve compreender as dimensõ es da ciência da gestã o,
nomeadamente, pessoas, organizaçã o, processos e instrumentos;
 Adopçã o de guias prá ticos e ou directivas, como instrumentos de gestã o
ao serviço de transmissã o de ordens, visõ es ou alinhamentos técnicos
sobre diferentes matérias.
É fundamental perceber a dinâ mica de funcionamento e o fim ú ltimo de um
regulamento administrativo. Por si só , ele nã o se destina a resolver uma situaçã o,
aliá s, como qualquer acto normativo, o regulamento serve para guiar, orientar os
destinatá rios com vista ao alcance de determinado objectivo, que, na
Administraçã o Pú blica, sã o os resultados da acçã o de gestã o pú blica, ou
administraçã o. Acrescenta-se que estes resultados devem ser sustentá veis no seu
modo de manifestaçã o.
A gestã o pú blica, como ciência, é regida por um conjunto de linhas-chave de
orientaçã o que têm, certamente, uma estabilidade temporal, o que lhes permite
solidificar-se na cultura da gestã o, seja do lado dos gestores, seja no lado cidadã o-
accionista.
A consolidaçã o destas linhas gerais de gestã o, sejam princípios ou regras de
garantia ou de procedimentos, distinguem-se pela sua essencialidade. O elevado
nível de generalidade e abstracçã o sã o, também, dados fundamentais destas
normas. O que se defende é que estas devem ser sistematizadas, dentro das quatro
dimensõ es, e tidas como o regulamento administrativo por excelência, do qual
podem resultar regulaçõ es autó nomas, apenas quando for, por especificidade da
matéria, absolutamente necessá rio.
A sistematizaçã o e a concentraçã o destas normas, num có digo de gestã o
194
administrativa ou regulamento de gestã o, têm o grande mérito de parametrizar a
acçã o da administraçã o no que toca aos seus aspectos fundamentais.
Sobre este ponto, um outro problema, que nos parece marginal, prende-se
com a forma do acto ou o problema da fonte orgâ nica da sua produçã o. Uma
verdadeira lei ou um verdadeiro regulamento? Existem pró s e contras em cada
uma das posiçõ es. É verdade que, sendo uma Lei, pode gozar de maior
intemporalidade, rigidez e solenidade na sua aprovaçã o e pode, ainda, de alguma
forma, implicar maior imparcialidade no tratamento das normas de garantias para
o cidadã o-accionista.
Por fim, é nossa defesa a adopçã o e a introduçã o de guias prá ticos de
orientaçã o técnica como verdadeiros instrutivos da gestã o pú blica. Para que tenha
força vinculativa, nã o precisa ser um regulamento! Nã o se precisa "jurisdicionar".
A adopçã o desta prá tica torna o recurso ao direito subsidiá rio a/da (??) gestã o
técnica. Isto é, o regulamento, enquanto norma jurídica, apenas deve servir para o
que for, de facto e necessariamente, matéria relacionada com a criaçã o,
modificaçã o ou extinçã o de direitos e de ó rgã os, bem como sobre a validade de
actos. Recomenda-se que toda a orientaçã o técnica sobre o modo de agir, destinada
fundamentalmente aos ó rgã os internos da administraçã o, seja feita por via de
Manuais ou Guias Prá ticos.
A grande diferença ou o grande mérito do Guia é o de se focar em determinar
"como fazer", diferente do regulamento cujo conteú do é, sobretudo, "o que fazer".
O Guia cumpre, desta forma, com um mandato pedagó gico, passível de renovaçã o
permanente, quando os seus fundamentos ou os da circunstâ ncia assim o
impuserem.
Quanto à competência para aprovaçã o, recomenda-se que os Guias sejam
aprovados pelos ó rgã os de regulaçã o sectorial macro. Por exemplo, o modo de
realizaçã o da despesa, que em Angola é hoje prescrito por um regulamento (Regras
Anuais de Execuçã o do OGE), pode, a nosso ver, ser transformado em Guia de
Execuçã o do OGE, elaborado pelo Departamento Ministerial responsá vel pelas
finanças pú blicas, cuja actualidade ou actualizaçã o pode ser anual (ou nã o),
dependendo das circunstâ ncias macroeconó micas e dos objectivos que se querem
atingir em determinados períodos.
195
Assim, reitera-se que a complexidade do funcionamento da administraçã o
pode ser mitigada mediante a sistematizaçã o e a criaçã o de um Có digo de Gestã o
Administrativa, como um instrumento genérico, contendo os temas essenciais de
constituiçã o, modificaçã o ou extinçã o de direitos e obrigaçõ es na Administraçã o
Pú blica, bem como as garantias do cidadã o-accionista no seu relacionamento com
a administraçã o. Defende-se, também, que as orientaçõ es técnicas deixem de ser
conteú do de regulamentos administrativos e passem para guias de orientaçã o ou
manuais prá ticos cujo conteú do seja voltado em "como fazer" e nã o em "o que
fazer".

 Recursos Financeiros

Para o desenvolvimento de qualquer actividade organizacional, sã o


necessá rios recursos, sejam eles humanos, técnicos, financeiros, patrimoniais,
entre outros.
Para a abordagem do novo paradigma da Administraçã o Pú blica e do seu
direito, tendo em conta as vá rias dimensõ es supra apresentadas, em funçã o da
importâ ncia que ela encerra, preferiu-se autonomizar os "recursos humanos" e
serem tratados na dimensã o "pessoas" dentro das suas três vertentes.
Os recursos financeiros sã o, igualmente, instrumentos com a sua particular
importâ ncia, na medida em que sustentam a economia da Administraçã o Pú blica,
seja para o exercício imediato das suas funçõ es ou para aquisiçã o de bens ou
serviços, por meio dos quais se podem afectar bens que satisfazem as necessidades
colectivas.
A dimensã o da Administraçã o Pú blica, a qualidade da despesa, entre outros
meios, tudo isso depende da forma como sã o alocados e utilizados os recursos
financeiros. É recomendá vel que a actividade financeira do Estado e as suas
implicaçõ es para a sua actividade administrativa sejam alinhadas com vista a que
se atinjam resultados sustentá veis.
Existe uma relaçã o de complementaridade entre este instrumento e os
demais. A pressã o exercida sobre os recursos financeiros será maior, ou menor, em
funçã o da existência de outras formas de produçã o de resultados que nã o passem,

196
necessariamente, por onerar directamente a Administraçã o. Refere-se, como
exemplo, que, no â mbito de uma governança participativa, muitos trabalhos das
pequenas comunidades podem ser desenvolvidos pelos pró prios cidadã os-
accionistas, directamente beneficiá rios. Ou, ainda, a terceirizaçã o de certos
serviços da Administraçã o Pú blica pode reduzir a demanda por recursos.
Directamente relacionado com a necessidade de toda a Administraçã o
Pú blica se focar na produçã o de resultados que sejam sustentá veis está a
identificaçã o dos segmentos de actividade econó mica, que devem, de facto,
merecer a intervençã o pú blica.
Assim, a saú de ou nã o dos recursos financeiros deve-se, essencialmente, aos
pressupostos e objectivos que ditam as decisõ es pú blicas, de acordo com a teoria
da public choice206. Como valor a ser acrescentado, a nova abordagem da
Administraçã o Pú blica requer que esta teoria deve ter por base fundamentos
objectivos de actuaçã o administrativa, tendo em atençã o a sustentabilidade dos
resultados pretendidos, em consonâ ncia com os indicadores previamente
elaborados.
De acordo com a teoria econó mica, os recursos financeiros sã o (e serã o)
sempre escassos, ante a magnitude das vá rias necessidades e formas de utilizaçã o.
A diferença reside, portanto, no destino que se dá a cada recurso pú blico
arrecadado.

 Tecnologias de Informação

Vivemos numa era de franco e feroz desenvolvimento tecnoló gico. O nã o-


alinhamento e seguimento do ritmo de evoluçã o das inovaçõ es tecnoló gicas
provoca um gap entre os Estados e ou os cidadã os, capaz de causar sérias
assimetrias de vontade no seu relacionamento.
A actividade administrativa esteve, nos ú ltimos séculos, dependente de
processos em que a intervençã o humana e a utilizaçã o de papel, para a prá tica de
determinados actos e cumprimento de formalidades, eram tidas como ú nicos
meios possíveis para o alcance de tais fins.

206
BLACK, CALITZ e STEENEKAMP, Public Economics, sixth edition, oxford university press,
southern africa, 2017, pag. 95. 197
A reclamaçã o, a decisã o, os ofícios e as notificaçõ es para a cumprimento de
formalidades sã o exemplo de situaçõ es em que oficiais de diligências e ou estafetas
tudo faziam para receber ou entregar documentos oficiais da Administraçã o
Pú blica, sem, portanto, esquecer-se dos respectivos protocolos de recepçã o e ou
entrega. Esta forma de gestã o da Administraçã o Pú blica está completamente fora
do seu tempo. Os níveis de eficiência mediante a simplificaçã o de procedimentos e
formalidades, via utilizaçã o de tecnologias de informaçã o, constitui, hoje, um
caminho sem volta.
Neste domínio, questiona-se até que ponto os Estados e as suas
administraçõ es pú blicas estã o disponíveis e dispostas para embarcar nesta rota
sem fim à vista? Como as administraçõ es pú blicas encaram e/ou devem encarar,
por um lado, o paradoxo da existência de documentos classificados e, por outro, o
facto de que muitos servidores, onde sã o sitiadas certas informaçõ es, nã o serem da
titularidade da Administraçã o Pú blica? Por fim, ainda dentro deste dado, como se
articula a relaçã o entre a Administraçã o Pú blica e os cidadã os-accionistas, via
plataformas electró nicas, na perspectiva da garantia dos seus interesses e política
de protecçã o de dados?
A sociedade global está em franco crescimento tecnoló gico, motivado pela
constante inovaçã o das Empresas privadas e dos financiamentos estatais para
programas especiais de investigaçã o científica. Consequentemente, no intento da
satisfaçã o das necessidades da comunidade em que se insere, a Administraçã o
Pú blica e o seu Direito Administrativo estã o condenados a anteverem mecanismos
de incorporaçã o das Tecnologias de Informaçã o na estrutura e no funcionamento
da Administraçã o Pú blica. Nã o basta que sejam criados portais, sites, pá ginas web
ou plataformas, é necessá rio que a actividade administrativa seja, hoje, feita via
digital, e-gov ou GovTech. IFalamos de um mundo paralelo onde nã o existem
fronteiras físicas, mas que a demanda por serviços pú blicos essenciais é cada vez
maior e atingindo níveis extraterritoriais.
No contexto angolano, vá rias iniciativas têm sido tomadas, algumas isoladas,
no sentido de uma introduçã o cada vez mais acentuada do GovTech. Neste â mbito,
serve-nos como caso de estudo o texto constante na caixa abaixo:

198
Tabela 7 – Caso de Estudo – Comunicado de Imprensa sobre o SEPE

Caso de Estudo
COMUNICADO DE IMPRENSA SOBRE SEPE
O Governo de Angola estabelece, como uma das suas prioridades, fortalecer,
simplificar e modernizar a Administraçã o Pú blica, com o objectivo de tornar
mais pró xima a relaçã o dos cidadã os com os serviços pú blicos, apostando, para o
efeito, na utilizaçã o das novas tecnologias de informaçã o.
Neste contexto, o Governo acaba de lançar o SEPE – Serviços Pú blicos
Electró nicos, uma ferramenta digital que centraliza num só portal, além dos
serviços de agendamento electró nico e pagamentos de taxas e emolumentos,
uma oferta alargada de serviços de educaçã o, finanças, justiça, saú de, segurança
pú blica e segurança social.
O SEPE visa reduzir os tempos de espera, desmaterializar e agilizar os serviços
pú blicos, incentivar a transformaçã o digital, simplificar processos e, ainda,
promover a actuaçã o integrada e sistémica entre as instituiçõ es envolvidas na
prestaçã o dos serviços pú blicos.
Com a concretizaçã o desta iniciativa, o Governo vem dar resposta, por um lado, à
crescente demanda dos cidadã os atentos à qualidade da prestaçã o dos serviços
pú blicos e, por outro lado, aos estilos e ritmos de vida da nova geraçã o de
utentes que utiliza regularmente as tecnologias da informaçã o e comunicaçã o.
Simples, intuitivo e inovador, o SEPE está disponível aos cidadã os e empresas,
em qualquer lugar e a qualquer hora, em www.sepe.gov.ao, bem como por meio
da sua instalaçã o em dispositivos mó veis.
SEPE, serviços mais pró ximos dos cidadã os.

GABINETE DE COMUNICAÇÃ O INSTITUCIONAL E IMPRENSA DO MINISTÉ RIO


DAS TELECOMUNICAÇÕ ES E TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃ O, em Luanda aos
23 de Janeiro de 2019
Questões  Qual é a relevâ ncia jurídica desta medida?
 Como se pode concretizar o poder de autoridade do Estado
numa Administraçã o Pú blica mais comprometida com as TI?

199
No diapasã o deste texto, recomenda-se que as normas que regulam a
actividade administrativa, reconhecendo as Tecnologias de Informaçã o como
instrumentos da actividade administrativa de prossecuçã o do interesse pú blico,
estejam em condiçõ es, de forma sistemá tica e harmoniosa, de estabelecerem
regras de organizaçã o, tramitaçã o e protecçã o de interesses dos cidadã os-
accionistas, ao mesmo tempo que se articule uma interoperabilidade de vá rios
sistemas, numa ló gica de antecipaçã o ou desenvolvimento de uma cultura de
gestã o de informaçã o pró xima à tecnologia blockchain.

 Comunicação

Uma gestã o pú blica, que se quer eficiente, precisa de estabelecer canais de


comunicaçã o dinâ micos.
A prá tica administrativa em Angola conhece, de acordo com a teoria
legislativa, um jornal, o Diário da República, onde sã o publicados e comunicados os
actos oficiais do Estado e, concomitante, da Administraçã o Pú blica. A verdade é
que este instrumento foi concebido dentro de um contexto secular cuja actualidade
é hoje questionada.
O que se quer, em ú ltima instâ ncia, é a existência de uma comunicaçã o
simples, directa e fidedigna entre os intervenientes da acçã o administrativa.
Questiona-se, portanto, se os actuais meios sã o os mais adequados para o contexto
de evoluçã o do sentido, motivaçã o e alcance da comunicaçã o.
Na perspectiva jurídica, a comunicaçã o para a Administraçã o Pú blica, em
relaçã o aos destinatá rios directos da sua acçã o, decorre, inicialmente, do direito de
ser informado e, posteriormente, da necessidade de dar publicidade de
determinados actos oficiais, em cumprimento do ponto anterior. Ou seja, as
normas jurídicas que disciplinam a vida corrente da Administraçã o Pú blica devem
ser, suficientemente, densificadas ao ponto de dar forma à concretizaçã o desta
aspiraçã o.
A questã o que se coloca é: Em que medida a Administraçã o Pú blica e o seu
direito podem tornar-se num canal de materializaçã o do direito à informaçã o, via

200
definiçã o de canais eficientes e eficazes de comunicaçã o?
A comunicaçã o é, de facto, uma via, uma das principais artérias por onde se
deve veicular toda a informaçã o entre os agentes da acçã o administrativa. O
tratamento jurídico do problema da comunicaçã o, enquanto instrumento ao
serviço da acçã o administrativa, merece toda a dignidade reconhecida aos vá rios
canais que, de forma inequívoca, drenam as expectativas dos stakholders, para o
destino comum mais ponderado.
Assim, tendo em atençã o e como ponto de partida a realidade fá tica,
resultante da prá tica actual, recomenda-se que a problemá tica da comunicaçã o
seja discutida num cená rio que tenha, como linha de actuaçã o, os vá rios
instrumentos electró nicos ao serviço da partilha de informaçã o.
É importante realçar que em causa está uma relaçã o de confiança, legitimada
pelos cíclicos pleitos eleitorais, para a prestaçã o de determinados serviços de
utilidade comum do grupo de accionistas das acçõ es dos decisores pú blicos. Por
esta razã o, uma comunicaçã o simples, directa e acessível deve ter um tratamento
na linha da frente, de um sistema administrativo que privilegie um modelo de
governança, capaz de criar um espaço e instituiçõ es que consigam materializar as
garantias do cidadã o-accionista, integrante activo da acçã o administrativa.

 Ética e Compliance

O problema da integridade é, antes de mais, uma questã o do comportamento


das pessoas, pelo que, de acordo com a estrutura deste texto, deveria ser tratado
na primeira dimensã o, isto é, referente à s pessoas, enquanto aspecto fundamental
do entendimento actual da Administraçã o Pú blica. Entretanto, quando associado à
ética e compliance nas organizaçõ es, afigura-se pertinente o seu tratamento em
sede dos instrumentos que, colocados ao serviço da Administraçã o Pú blica, devem
proporcionar resultados mais sustentá veis.
A ideia de cumprimento de condutas eticamente relevantes, como factor
identitá rio de uma postura da Administraçã o Pú blica geradora da confiança, na sua
forma de ser e de estar, proporciona maior aceitaçã o por parte dos seus directos
accionistas.

201
A ética na Administraçã o Pú blica constitui, assim, um instrumento de sublime
importâ ncia e necessidade, sem a qual nenhum outro instrumento descrito nesta
sessã o pode cumprir, fielmente, o seu papel ao serviço dos objectivos da
Administraçã o Pú blica para com os cidadã os-accionistas da sociedade.
A inobservâ ncia de comandos éticos, na formulaçã o e aplicaçã o e controlo de
qualquer norma jurídica da Administraçã o ou política pú blica, macula a bondade
de todas as suas intençõ es.
No domínio da gestã o pú blica, a adopçã o de comportamentos eticamente
relevantes deve ser incentivada e premiada, pois afigura-se como a á urea que
envolve e perfuma a imagem mental que se tem de uma instituiçã o ou serviço
pú blico.
A criaçã o e permanente manutençã o de um clima ético, no modo de ser e agir
da Administraçã o Pú blica, facilmente comove os agentes e os destinatá rios finais
de toda a acçã o administrativa, para um profícuo alinhamento com os desideratos
constitucionalmente consagrados como aspiraçã o social.
Na componente prá tica, a materializaçã o de uma estratégia de ética e
moralizaçã o da Administraçã o Pú blica implica a concepçã o de mecanismos de
controlo interno e compliance, bem como de có digos de ética e deontologia,
seguidos de um plano permanente de comunicaçã o e gestã o da mudança.
Portanto, facilmente se pode concluir que a concepçã o de um novo
paradigma para a Administraçã o Pú blica, que se quer de confiança, dedicada e
comprometida para com o cidadã o-accionista, com vista ao alcance de resultados
cada vez mais sustentá veis, deve incorporar na sua estratégia a componente ética.
A componente ética nos serviços pú blicos impregna à Administraçã o Pú blica
de uma fragrâ ncia que atrai confiança e motiva a participaçã o e colaboraçã o.

3.4.1. Síntese do enquadramento legal

O direito administrativo vigente, quanto a esta dimensã o, pode ser


sintetizado no quadro seguinte:

Tabela 8 – Quadro síntese da legislação da Dimensão “Instrumentos”

# Diploma 202
Conteú do essencial
1 Lei ???? n.º 15/10, de Regime Jurídico de Preparaçã o, aprovaçã o,
14 de Julho execuçã o e controlo do orçamento Geral do Estado
2 Lei n.o 1/11, de 14 de Lei de Bases do Regime geral do sistema Nacional
Janeiro de planeamento
3 Lei n.o 18/10, de 6 de Lei do Patrimó nio Pú blico
Agosto
4 Lei n.o 3/10, de 29 de Lei da Probidade Pú blica
Março
5 Lei n.o 9/16, de 16 de Lei dos Contratos Pú blicos
Junho

3.4.2. Oportunidade de melhoria

De uma forma geral, as pessoas, a organizaçã o, os processos e os


instrumentos devem concorrer para a maximizaçã o da acçã o da Administraçã o
Pú blica. Entretanto, na concepçã o ou estruturaçã o de cada uma destas dimensõ es e
da sua forma de concretizaçã o, acorrem vá rias situaçõ es que desvirtuam o seu
original conceito e a sua razã o de ser.
Estas situaçõ es sã o chamadas, na doutrina, por falhas de governo. 207 Assim,
alguns autores (PINHEIRO, 2008 e Tullock, Seldon e Brady, 2005)208 relacionam a
teoria das falhas de governo com os pressupostos da teoria da escolha pú blica,
mais comummente citada na sua denominaçã o em inglês, Public Choice Theory.
PINHEIRO acrescenta que:

Ao contrário do é que afirmado em determinados textos, Tullock defende


que há vários motivos para crer que os decisores no sector público não
agem, sempre e necessariamente, visando o interesse colectivo. O
argumento mais evidente resulta do fato de que a maioria dos decisores,
207
Neste sentido, PINHEIRO, Ivan Antó nio, Políticas públicas: entre falhas, legados e outras
limitações às avaliações conclusivas, no encontro de Administraçã o Pú blica e governança, Baía,
Novembro de 2008, pá g. 9, admite que as falhas de governo possuem vá rias causas.
208
TULLOCK, Gordon, SELDON, Arthur, BRADY, Gordon L. Falhas de Governo. Rio de Janeiro:
Instituto Liberal, 2005. 203
por certo as de maior relevância, ocupa cargos electivos que
periodicamente devem ser submetidos à consulta dos eleitores; daí ser
impossível não pensar que as suas acções, senão no todo, em parte não
serão dirigidas pelos seus próprios interesses políticos e eleitorais. Mesmo
os que não disputam a preferência dos eleitores, como é o caso dos
profissionais de carreira, têm interesses pessoais (prestígio, progressão
profissional, benefícios, etc.), que certamente influenciam as suas decisões;
há casos em que somente o interesse meramente corporativo parece poder
explicar certas decisões – o melhor exemplo são as resistências às reformas
para reduzir a burocracia. Assim, resulta falso o pressuposto de
comportamento altruísta do decisor no sector público. Trata-se de uma
falha, pois os interesses de uma minoria são custeados com os recursos de
todos – da sociedade.209

Neste sentido, entende-se que um dos pressupostos para a admissã o de uma


reforma estrutural sobre os fundamentos e o pensamento constitutivo,
organizacional e operacional da Administraçã o Pú blica é o reconhecimento das
suas falhas. Ou seja, admitir que o modelo em vigor nã o responde, cabalmente, aos
desafios inicialmente criados.
O nepotismo, a corrupçã o, o trá fico de influência, conflitos de interesses,
excesso de burocracia, assimetrias de informaçã o, sã o, entre outras, situaçõ es que
concorrem para as chamadas falhas de Governo. Quanto mais complexa for a
estrutura do Estado mais propensã o se tem para a ocorrência destas falhas. No
essencial, com estas admite-se que, nã o raras vezes, a Administraçã o Pú blica
fracassa na sua missã o, configurando-se, sim, numa organizaçã o, entretanto,
distante dos seus fins iniciais.
É consciência assente que estes males nã o se poderã o erradicar, em
definitivo, da Administraçã o Pú blica. Porém, aceitar que as falhas da
Administraçã o Pú blica sã o reais e factuais constitui uma primeira fase do seu
tratamento.
Numa outra perspectiva, recomenda-se a existência de um alinhamento
transversal sobre os mecanismos de prevençã o e controlo. Para todos os efeitos, é

209
PINHEIRO, Ivan Antó nio, Políticas públicas…
204 2008
recomendá vel que o norte da Administraçã o Pú blica seja sempre o alcance de
resultados sustentá veis para o cumprimento das expectativas que emanam da sua
razã o de ser. Todas as "gorduras" que inibem este desiderato devem ser
expurgadas.

4. CASO DE ESTUDO – CULTURA DE TI E E-GOVERNO ELECTRÓNICO


NA REFORMA DA GESTÃO NA MALÁSIA

A Malá sia começou, desde muito cedo, a implementar reformas na sua


Administraçã o Pú blica. À semelhança de Angola, nos primó rdios da sua
independência, aquele país era fortemente dependente da exportaçã o de
commodities, sujeitas à volatilidade do mercado internacional. Porém, com
reformas estruturais no sector pú blico, rapidamente conseguiu inverter o quadro.
Dentro das vá rias facetas da sua reforma, destaca-se a utilizaçã o de
tecnologias de informaçã o. Assim, para o presente trabalho, apresenta-se como
caso de estudos a cultura de utilizaçã o de tecnologias de informaçã o na Malá sia.

IT culture and e-government In Management reform in Malaysia210

The advancements in the field of information technology (IT) has offered


enormous prospect for transforming service provision and widened citizens’
expectations for more efficient and responsive delivery of public services. This
has also put pressures on the government to reinvent itself and produce
innovations in the service delivery systems. The Malaysian government appears
to be well ahead of many other developing countries in terms of emphasizing its
significance and undertaking programs for IT application in the administration.
In fact, a major feature of the current administrative reforms in Malaysia is the
stress on IT.

210
SIDDIQUEE, Noore Alam, Public management reform in Malaysia - Recent initiatives and
experiences, Flinders Institute of Public Policy and Management, Flinders University of South
Australia, Vol. 19 No. 4, Adelaide, Australia, 2006.205
The Multimedia Super Corridor established in 1996 is seen as a milestone in the
development of IT application in all areas including the government.
Subsequently, the government initiated na E-Government scheme seeking to
dramatically enhance the performance and quality of public services by
harnessing IT and multi-media (GOM, 2000; Karim and Khalid, 2003). An early
initiative in this regard is the Public Service Networks (PSN) whereby the post
offices have been enabled to act as one-stop bill payment centers and provide
other services like renewal of various licenses, stamping, and payment of road-
tax.
The PSN experiment has produced favorable results as the members of the
public are in a position to pay all the utility bills and obtain other services at one
point. While it marked the beginning of IT application in the government, the
proposed e-government in Malaysia is far more comprehensive and ambitious. It
seeks to reinvent the service delivery and redefine how the government relates
to its citizens, to businesses as well as how the various components of the
government relate with one another. A number of other pilot projects have
already been completed in various areas and quite a few services are now
offered online. Services like driver and vehicle registration, licensing and
summons services and the payment of utility bills have all been integrated under
the e-Services program that allows the members of the public to access such
services electronically.

E-Perolehan is the official secure online marketplace for suppliers and


government agencies. It enables the suppliers not only to receive tender
information released by public agencies nationwide and presente their products
and services, obtain tender documents and submit bids and quotations, but also
to complete transactions and receive payments – all online. The Government
Multi-purpose Card serves a variety of purposes. Apart from facilitating cashless
financial transactions, it serves as national identification document and driving
license; it also contains passport and health information. Additional facilities are
now being added to make it a vehicle of convenience in all aspects of life. The
government is confident that with the full implementation of e-government,
206
more and more services could be provided online where agencies at federal,
state and local authority will collaborate relating to services and present them as
one public service portal.

Therefore, the services will be accessible to the members of the public at any
time and from any place without being constrained by agency working hours
and distance (Ali, 2001; Karim, 2003). The proposed E-Public Services (E-PS)
seeks to upgrade the efficiency and effectiveness of service delivery to the public
and business community via interactive electronic channels. The citizens will be
provided with a choice of multiple delivery channels with wider access available
from anywhere at their convenience. Although the objectives of E-PS are similar
to that of E-government, its scope is much wider as it encompasses all electronic
services to the citizens irrespective of whether they are provided by the public,
private or voluntary sectors. Therefore, it envisions a collaborative and
proactive relationship between these sectors in providing quality services that
meet the customer expectations in the information age (GOM, 2000).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A organizaçã o dos serviços pú blicos, a lei, os regulamentos e os seus


conteú dos, o tamanho ideal do Estado, a descentralizaçã o, a forma de participaçã o
dos cidadã os e a sua priorizaçã o na agenda da acçã o administrativa, a utilizaçã o da
força pú blica e das tecnologias de informaçã o, as garantias dos administrados, o
bem-estar, sã o, entre outros, temas colocados na ordem do dia, quando o assunto é
a reforma do Estado e da Administraçã o Pú blica.
Nesta breve reflexã o, apresenta-se uma nova abordagem da Administraçã o
Pú blica, com relativa inspiraçã o na Teoria da Nova Gestã o Pú blica, concretizada em
quatro dimensõ es fundamentais, nomeadamente, as pessoas, as organizaçõ es, os
processos e os instrumentos. Propõ e-se que a combinaçã o destas dimensõ es, de
forma orquestrada e priorizando as pessoas, permita à Administraçã o Pú blica ter
uma intervençã o melhor conseguida, em termos de sustentabilidade dos seus

207
resultados.
Reconhece-se que todas as ideias, reflexõ es e especulaçõ es, vertidas neste
texto, nã o passam de provocaçõ es, muito pró prias, valendo apenas enquanto isso.
Porém, parte-se do pressuposto de que, somente aceitando a necessidade crítica
do actual pela negaçã o, fundada das teses dogmá ticas, se podem produzir
interessantes e fecundas simbioses, de acordo com a dialéctica da vida e do
pensamento.
O propó sito é a construçã o de uma mentalidade académica, política e social
capaz de influenciar, de forma positiva, a acçã o do Estado na concretizaçã o diá ria
da sua missã o. Para que o Estado e a administraçã o consigam fazer mais, com o
pouco e ao serviço de todos, os seus instrumentos devem estar todos alinhados e
afinados para o fim ú ltimo. Pretendeu-se, portanto, apresentar, de forma
subjectiva, algumas notas que podem contribuir para que a Administraçã o Pú blica
seja uma má quina mais leve e fluída na sua acçã o, contando, para o efeito, com
pessoas, organizaçõ es, processos e instrumentos que sejam eles pró prios uma
antevisã o do resultado que se quer atingir.

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210
SISTEMA NACIONAL DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA
ELECTRÓNICA EM ANGOLA

SAIDY FERNANDO211

Sumário:

Introduçã o

1. Questõ es Terminoló gicas

2. E-Procurement em Angola – Evoluçã o

3. Enquadramento jurídico, modelo e â mbito da e-procurement

4. Benchmarking de modelos de e-procurement (Uniã o Europeia, Chile e Quénia)

5. Segurança e Confiança do SNCPE

6. Factores críticos de sucesso

Consideraçõ es Finais

Referências bibliográ ficas

211
Pó s-Graduado em Contrataçã o Pú blica e Docente da Faculdade de Direito da Universidade
Cató lica de Angola. 211
INTRODUÇÃO

A revoluçã o da internet e a tecnologia conexa têm envolvido a plenitude da


expressã o da vida individual nos dias que correm. Todas as dimensõ es do modo de
existir das pessoas sã o, hoje, completamente preenchidas e dominadas por
ferramentas tecnoló gicas ou digitais.
À semelhança do que acontece com as pessoas físicas, há também uma
permanente pressã o de utilizaçã o das tecnologias mais sofisticadas na gestã o
corrente do Estado. Com a Govtech212, ou Governo electró nico, verifica-se uma
transposiçã o dos há bitos e das inovaçõ es privadas para a gestã o do sector pú blico
e da sua interacçã o com o privado.
No domínio da Contrataçã o Pú blica, a adopçã o das tecnologias é, geralmente,
conhecida por “e-procurement”, traduzindo a gestã o do ciclo de preparaçã o,
formaçã o, execuçã o e monitorizaçã o dos contratos pú blicos, via plataforma
electró nica. A e-procurement, enquanto forma e canal de relacionamento entre o
sector pú blico contratante e o sector privado, representa um encontro de cultura e
troca de expectativas num ambiente de interesses contraditó rios, mas
harmonizá veis.
A nível global, o sector privado, pelas suas características, tem sido precursor
de inú meras inovaçõ es tecnoló gicas, como factor de competitividade para
manutençã o e/ou conquista de poder de mercado.
Quanto ao sector pú blico, este tem interesses em efectuar as suas aquisiçõ es
e/ou concessõ es. Porém, por força da sua natureza, é necessá rio que, ao processo
de gestã o destes contratos, sejam agregados valores adicionais, nomeadamente: a
prestaçã o de contas e responsabilizaçã o, eficiência e economicidade das decisõ es,
bem como o fomento da concorrência e transparência. A tecnologia de suporte, a e-
procurement, deve atinar com estes objectivos.
A e-procurement, como parte do Govtech, representa a adopçã o, apropriaçã o e
introduçã o, por parte do Estado, de uma nova cultura de ser e estar, no

212
Segundo FILER, Tanya, Thinking about GovTech, Bennett Institute for Public Policy,
Cambridge, “GovTech is an emergent innovation ecosystem in which private-sector start-ups and
innovative small and medium enterprises (SMEs) deliver technological products and services, often
using new and emerging technologies, to public sector
212 clients”.
relacionamento institucional com o sector privado.
A ideia de introduçã o de uma nova cultura de gestã o pú blica e,
concomitantemente, de interacçã o entre o sector pú blico e privado, na formaçã o e
execuçã o dos contratos pú blicos, nã o deve ser vista, apenas, sobre o fascínio da
magia, pró pria das inovaçõ es tecnoló gicas. Uma reflexã o profunda e
desapaixonada sobre a adequaçã o das Plataformas Electró nicas é garantia dos
interesses fundamentais dos intervenientes e de cada cidadã o contribuinte.
Em Angola, esta nova cultura de gestã o das aquisiçõ es e/ou concessõ es do
Estado encontra abrigo no Sistema Nacional da Contrataçã o Pú blica Electró nica
(SNCPE), enquanto Plataforma Electró nica de materializaçã o da e-procurement.
É sobre o SNCPE que este texto trata. O â mbito objectivo e subjectivo,
antecedentes, modelo adoptado, estudo comparado, insuficiências e oportunidades
de melhoria, bem como os riscos associados, sã o, entre outros, temas que se vã o
desenvolver nos pró ximos pará grafos.
Assim, dentro dos limitados recursos, a reflexã o que se segue pretende
propor, em ú ltima instâ ncia, novos rumos para uma efectiva digitalizaçã o do
comércio nos mercados pú blicos e é motivada pela necessidade de estimular uma
discussã o académica do tema para que, mais do que um problema dos mercados
pú blicos, seja um desafio da sociedade em geral.

Necessidade e racionalidade

A introduçã o de um novo modelo de contrataçã o pú blica visa vá rios


objectivos que sã o, aliá s, igualmente, demandados pela pró pria essência do
procurement (contrataçã o pú blica tradicional), numa ló gica tripartida:
a. Melhorar a Governança da Contratação Pública, por intermédio do
aperfeiçoamento das técnicas de transparência, integridade e
responsabilizaçã o;
b. Aumentar a eficiência e eficácia na contratação pública, mediante
seguimento rigoroso dos actos preparató rios, nomeadamente a
planificaçã o das necessidades e pesquisa de mercado, traduzindo-se

213
numa correcta avaliaçã o do custo benefício das aquisiçõ es numa ló gica
de cobertura de todo o ciclo da contrataçã o pú blica;
c. Criar condições para a implementação mais dinâmica e controlada
das políticas de sustentabilidade na contratação pública, com maior
incidência para a concorrência e a promoçã o das Micro, Pequenas e
Médias Empresas213, bem como as formas de participaçã o das
comunidades envolvidas e a protecçã o do ambiente.
A racionalidade que se exige e se espera da contrataçã o pú blica electró nica é,
em ú ltima instâ ncia, de melhorar a confiança dos operadores do mercado. Para
cada parte interessada neste processo, deve ficar assegurada a uniformizaçã o da
linguagem tecnoló gica utilizada por forma a que, a seu nível, cada um seja capaz de
maximizar as suas expectativas no negó cio.

Questões Terminológicas

Segundo CORSI (2006)214, e-procurement “é o termo utilizado para descrever


o uso de métodos electró nicos, tipicamente através de internet, para conduzir
transacçõ es entre entidades adjudicantes e fornecedores”.
E-procurement, e-commerce, e-purchasing, e-Transaction, e-Register e-buy,
etc., sã o todas terminologias que comportam a utilizaçã o de ferramentas
electró nicas na sua materializaçã o, diferenciando-se dos paradigmas tradicionais.
A novidade nestas terminologias nã o está na sua frequente referenciaçã o em
inglês ou na pré-fixaçã o do "E", o problema nã o é o "E", o desafio é maior, é o
chamado por uma nova forma de conceber e fazer negó cios pú blicos. Em causa
está o eclodir de uma reforma profunda e sem precedentes. O sector privado, mais
á gil e avisado, já se vai adaptando, porém, estas terminologias, quando colocadas
no sector pú blico, criam sustos e dú vidas, em funçã o das elevadas falhas do
governo.
Existe, portanto, a nível dos vá rios pronunciamentos sobre o tema, vá rias
acepçõ es do termo e-procurement e, nã o poucas vezes, usada em sentido e contexto
213
Neste sentido, recomenda-se KHAOYA, E. M., & MUCHELULE, Y., Effect Of E-Procurement
on Performance Of Small And Medium Size Enterprises: A Case Of Bungoma County, The strategic
Journal of Business & Change Management, Vol. 6, Issue 2, Article 14.
214
CORSI, Marcella, E-procurement overview,
214Università “La Sapienza” di Roma, January 2006.
diferenciado. Por exemplo, BADENHORST e outros (2017)215 consideram que o e-
procurement compreende, necessariamente, as seguintes categorias:
 e-sourcing relating to contractual processes such as online auctions,
bidding and tendering, and e-requests for quotations;
 e-transactions relating to e-marketplaces and the use of e-catalogues;
 e-payment solutions such as procurement cards and e-invoicing.
Portanto, a nossa preocupaçã o neste texto nã o é, certamente, expor o â mbito
ou o alcance de cada termo, pois acreditamos que o seu â mago semâ ntico se
mantém o mesmo, com a excepçã o do pré-aditamento do "E", é sim a aná lise da
abrangência de cada uma das expressõ es do exercício iniciado por Angola.

1. E-PROCUREMENT EM ANGOLA – EVOLUÇÃO

A implementaçã o da e-procurement em Angola conhece os seguintes


momentos de particular referência:

# Ano Acções
1 Setembro Aprovaçã o da Política Nacional de Compras Pú blicas
de 2007 Electró nicas pelo Ministério das Finanças (Direcçã o Nacional
do Patrimó nio do Estado)
2 2008 Realizaçã o do leilã o electró nico na plataforma TRADEJANGO
durante o Piloto I216
3 Julho de Realizaçã o do 1° Fó rum Nacional de Compras Pú blicas
2009 Electró nicas217
4 Setembro Aprovaçã o da Lei n.º 20/10, de 7 de Setembro, Lei dos

215
BADENHORST-WEISS, Ja; DLAMINI, Jo Cilliers W; AMBE, Im; Purchasing and supply
management, Seveth Edition, Van Schaik Publishers, South Africa, 2017, pá g. 248.
216
O Governo conseguiu poupar o equivalente a dois milhõ es de dó lares norte-americanos
para a compra de consumíveis informá ticos, em vez de pagar USD sete milhõ es, fruto do primeiro
leilã o electró nico piloto do PNCE.
217
http://m.portalangop.co.ao/angola/pt_pt/mobile/noticias/economia/2009/6/27/
Programa-Nacional-Compras-Electronicas-reduz-gastos-publicos,df50b52d-1247-4df6-a724-
7e617e4bd984 215
de 2010 Contratos Pú blicos
5 Dezembro Decreto Presidencial n.º 298/10, de 3 de Dezembro, que aprova
de 2010 o regime jurídico do entã o Gabinete da Contrataçã o Pú blica
6 Agosto de Aprovaçã o do novo Estatuto Orgâ nico do SNCP, pelo Decreto
2015 Presidencial n.º 162/15, de 19 de Agosto
7 Junho de Aprovaçã o da Lei n.º 9/16, de 16 de Junho, Lei dos Contratos
2016 Pú blicos
8 Fevereiro Criaçã o de um grupo de trabalho Multissectorial para a sua
de 2017 implementaçã o em 2017, com Base no Despacho n.º 42/17, de
3 de Fevereiro
9 Setembro Aprovaçã o do Regulamento do SNCPE, pelo Decreto
de 2017 Presidencial n.º 202/17, de 6 de Setembro
10 Abril de Lançamento da fase Piloto (II), com quatro procedimentos,
2018 sendo três para aquisiçã o de medicamentos e materiais
gastá veis e um para aquisiçã o de viaturas protocolares.

2. ENQUADRAMENTO JURÍDICO, MODELO E ÂMBITO DA E-


PROCUREMENT

Apesar das primeiras acçõ es se terem desenvolvido numa base de actos


materiais da administraçã o218, sem uma base normativa, uma aná lise do modelo
angolano de e-procurement passa, necessariamente, pela aná lise da legislaçã o
existente para o efeito.

2.1. Enquadramento

O tema da contrataçã o pú blica electró nica na Lei dos Contratos Pú blicos nã o


é novo. Ou seja, nã o foi a Lei n.º 9/16, de 16 de Junho (LCP), que o introduziu. A
pró pria Lei n.º 20/10, de 7 de Setembro (Lei 20/10), no art.º 12.º, já fazia
referência à utilizaçã o de mecanismos de contrataçã o electró nica, como meio de
formaçã o dos contratos pú blicos.
A aná lise da presença da contrataçã o electró nica na LCP pode ser vista tendo
218
A realizaçã o do primeiro piloto é anterior
216à publicaçã o da Lei n.º 20/10, de 7 de Setembro.
em atençã o vá rios critérios. Acredita-se que se evidencia mais para a LCP uma
abordagem bipartida, isto é, que considera a contrataçã o pú blica electró nica na
perspectiva orgâ nica, ou seja, a organizaçã o do e-procurement na Lei e, num outro
momento, a perspectiva funcional.
Na perspectiva orgâ nica, coloca-se o problema de saber como a LCP assume,
por um lado, a organizaçã o do e-procurement no quadro das entidades pú blicas
contratantes e, por outro, da titularidade dos meios.
Por nã o nos parecer matéria com dignidade legal, mas sim regulamentar,
quer-se crer que o legislador andou bem em nã o responder a estas preocupaçõ es
no â mbito da LCP. Ou seja, a LCP remete para tratamento regulamentar as normas
sobre o â mbito subjectivo e titularidade das plataformas electró nicas.
A componente orgâ nica ou o modelo de gestã o da contrataçã o pú blica
constitui um dado que pode merecer tratamento diferenciado, em funçã o da
alteraçã o das regras de mercado ou das condiçõ es gerais de funcionamento da
ferramenta, recomendando-se, portanto, a sua aná lise e tratamento junto de um
regulamento.
Quanto ao funcionamento, a LCP dedica um conjunto de artigos sobre o tema,
reconhecendo a contrataçã o electró nica como:
i. Canal de comunicaçã o e fonte de informaçã o, de acordo com o art.º 12.º,
ao fazer referência ao Portal da Contrataçã o Pú blica;
ii. Meio de tramitaçã o dos procedimentos, mediante a submissã o dos
documentos de habilitaçã o e realizaçã o do acto pú blico, segundo o art.º
66.º;
iii. Instrumento de realizaçã o de leilã o, segundo o art.º 92.º.
Diferente do que acontecia na Lei n.º 20/10, a LCP deixa de considerar os
Sistemas de Aquisiçã o Dinâ mica Electró nica.
Face ao acima exposto, nã o nos parece que o legislador tenha assumido, como
preocupaçã o central, a definiçã o de um regime de funcionamento da contrataçã o
electró nica na LCP. Existem aspectos ligados a esta temá tica que, seguramente,
deviam merecer maior tratamento por parte da LCP, para o bem da segurança
jurídica, limitando o poder discricioná rio da Administraçã o Pú blica.

217
2.2. Modelo – aproximação sumária

Por modelo de e-procurement, na LCP, quer dizer-se a opçã o de


operacionalizaçã o. Existem vá rios possíveis modelos de operacionalizaçã o da e-
procurement. Para esta abordagem focamo-nos em duas perspectivas: quanto à
titularidade e/ou quanto ao número.
 Quanto à titularidade, o sistema de e-procurement pode ser titulado
pelo Estado ou qualquer outra entidade pú blica ou pelo mercado, sendo,
respectivamente, um sistema pú blico ou um sistema privado;
 Quanto ao número, apesar da titularidade, pode ter-se uma ú nica ou
vá rias plataformas, consubstanciando-se, respectivamente, num modelo
centralizado ou num modelo difuso.
O enquadramento legal do modelo de operacionalizaçã o é tratado em dois
momentos, sendo o estatuído na LCP, a posteriori, e a abordagem dada no Decreto
Presidencial n.º 202/17, de 6 de Setembro, que aprova o regulamento de
funcionamento do Sistema Nacional da Contrataçã o Pú blica Electró nica – SNCPE
(adiante, “Regulamento”).

 Na Lei dos Contratos Públicos

Na LCP, pelo n.º 2 do art.º 12.º, "as regras de funcionamento e de utilizaçã o de


plataformas electró nicas", há claramente referência a uma pluralidade de
plataformas. No mesmo sentido vai o n.º 2 do art.º 66.º, ao dar a possibilidade da
entidade pú blica contratante indicar a plataforma electró nica onde devem ser
apresentadas as propostas.
Conclui-se, assim, que quanto ao nú mero de plataformas se prevê um modelo
difuso de operacionalizaçã o da e-procurement na LCP, isto é, a possibilidade de
coabitarem vá rias plataformas para efeitos de planificaçã o, formaçã o e tramitaçã o,
gestã o e controlo dos contratos pú blicos.
Quanto à titularidade destas plataformas, a LCP é omissa. O silêncio da lei
pode significar vá rias coisas, pode entender-se: O silêncio da lei pode significar
que:

218
i. Podem ser tituladas por empresas privadas, para utilizaçã o pelas EPC,
mediante uma fee;
ii. Podem ser tituladas pelo Estado, seja pela administraçã o directa ou
pelas entidades da administraçã o indirecta, nomeadamente institutos
pú blicos e empresas pú blicas, bem como as demais entidades pú blicas
contratantes, previstas no art.º 6.º da LCP.

 Na perspectiva do Regulamento do SNCPE

Para a dualidade em aná lise, relativamente ao Modelo de e-procurement, o


Regulamento é peremptó rio em afirmar que, quanto à titularidade, deve ser do
Estado e, quanto ao nú mero, deve ser uma ú nica Plataforma Electró nica, como
decorre do n.º 3 do art.º 1 do regulamento.
A reflexã o sobre os eventuais contornos desta opçã o será feita nos pró ximos
subtítulos.

2.3. SNCPE – Âmbito Objectivo, desafios e oportunidades

Qual é o alcance do e-procurement e do SNCPE vs o ciclo de vida dos contratos


pú blicos?
O SNCPE, quanto ao â mbito objectivo, pelo Regulamento, diz menos do que
devia. Estamos certos de que o SNCPE nã o se pode esgotar no Regulamento.
Porém, um alinhamento entre o que se pretende com o SNCPE e o que vem
previsto no Regulamento permite, entre outros, certeza e segurança jurídica,
principalmente por parte dos stakeholders.
Como se disse e recordamos aqui, por e-procurement entende-se a utilizaçã o
de métodos e ferramentas electró nicas para gestã o do processo de contrataçã o.
Ora, reitera-se que esta aproximaçã o por uma definiçã o nã o atribui nem retira o
cará cter exclusivamente pú blico ou privado do e-procurement, aliá s, nã o é esta a
intençã o.
Voltando ao tema, em causa está , por um lado, o ciclo de vida de um contrato
pú blico, e, por outro, a pretensã o do Regulamento pela cobertura de todas estas
fases. Em rigor, este nã o é um problema do Regulamento. É , antes e acima de tudo,

219
da LCP.
Quando a LCP, nos artigos soltos dedicados à contrataçã o pú blica electró nica,
se refere apenas à fase da tramitaçã o dos procedimentos, apesar da reconhecida
evoluçã o, entre a Lei n.º 20/10 e a LCP, com a introduçã o, entre outros, da
obrigatoriedade do planeamento das aquisiçõ es (art.º 404.°) e da parte substantiva
dos contratos de locaçã o, aquisiçã o de bens e de serviços (título VI), o legislador
nã o fez correr na mesma direcçã o a operacionalizaçã o destas inovaçõ es
legislativas, mediante a utilizaçã o de ferramentas electró nicas. Se calhar, talvez
tenha ficado preso aos dissabores e dú vidas proporcionadas pela nã o aplicaçã o da
Lei 20/10, ao que à contrataçã o pú blica electró nica diz respeito.
Ora, o ciclo de vida de um contrato pú blico, por regra, compreende vá rias
fases, nomeadamente:
1. Preparação (identificaçã o da necessidade, planeamento, pesquisa de
mercado, orçamentaçã o e autorizaçã o);
2. Lançamento (publicaçã o e acesso interactivo à informaçã o, correcçã o de
erros e omissõ es);
3. Tramitação (recepçã o das propostas, avaliaçã o, adjudicaçã o e gestã o dos
diferendos);
4. Celebração de contratos (aceitaçã o de minuta, prestaçã o da cauçã o,
assinatura e, em alguns casos, consignaçã o);
5. Execução (realizaçã o das prestaçõ es e pagamentos, gestã o de stocks,
fiscalizaçã o e gestã o dos incumprimentos);
6. Avaliação do desempenho e manutenção.
Dentro destas fases, apenas a 2 e a 3 estã o cobertas pelo SNCPE, da leitura
conjunta da LCP e do capítulo III do Regulamento. Há , claramente, um desvio entre
o conceito tradicional de e-procurement e o que o SNCPE vem estabelecer. Uma vez
mais, prestamos a nossa reconhecida simpatia e solidariedade para com o
legislador, sendo, porém, esta uma excelente oportunidade de melhoria no direito
a constituir.
Perante esta ausência de comunicaçã o regulamentar da intençã o do
legislador do SNCPE, quanto ao seu â mbito objectivo, e supondo que a plataforma
electró nica criada segue à risca o pensamento deste, o que fica é a questã o de se
220
saber se pode ou nã o uma EPC enquadrada no â mbito subjectivo adquirir serviços
ao mercado, que sejam complementares ao SNCPE, à sua custa e ao seu
entendimento. Por exemplo, pode uma unidade hospitalar adquirir uma
Plataforma Electró nica de gestã o de necessidades e planeamento das aquisiçõ es?
Ou uma ferramenta de gestã o de stocks?
Por outro lado, supondo que todas as etapas do ciclo de vida dos contratos
pú blicos estivessem, devidamente, salvaguardas no SNCPE, o maior desafio seria o
da categorizaçã o dos bens, serviços objectos de aquisiçã o via plataforma. Visto de
outro prisma, nã o nos parece de todo que a categorizaçã o seja um problema do
Regulamento.
A categorizaçã o deverá ser feita. É imprescindível! Para a concepçã o dos
requisitos funcionais da Plataforma Electró nica, para a concepçã o e para a
utilizaçã o e controlo, os intervenientes devem saber que tipos contratuais devem
estar ou nã o abrangidos pelo SNCPE. Refiro-me, por exemplo, ao tipo de contratos,
aos tipos de procedimentos, à s quantidades, aos valores estimados, etc. Estes
dados, quando divulgados, irã o certamente proporcionar maior correcçã o das
assimetrias entre os intervenientes.
Portanto, considerando a fase embrioná ria do projecto de implementaçã o da
e-procurement em Angola, via SNCPE, de forma ousada e inovadora, quer-se
reconhecer que existem alguns desafios quanto ao â mbito objectivo do SNCPE que
podem ser consideradas verdadeiras oportunidades de melhoria, em sede do
direito a constituir.

2.4. SNCPE – âmbito subjectivo, desafios e oportunidades

O Sistema Nacional da Contrataçã o Pú blica Electró nica (SNCPE) corporiza, de


forma clara, a opçã o da administraçã o pú blica angolana, em matéria de e-
procurement.
O SNCPE é, assim, entendido como o conjunto de sistemas (pú blicos)
interligados por intermédio de uma Plataforma Electró nica, de acordo com a al. o)
do art.º 4.º do Regulamento do SNCPE. Esta plataforma é desenvolvida e gerida
pelo Estado.

221
Está , assim, claro que, quanto ao nú mero de plataformas, o Regulamento
prevê apenas uma ú nica, ou seja, um modelo centralizado; quanto à titularidade, o
Regulamento nã o é claro, ou seja, prevê apenas que seja "uma Plataforma
Electró nica ú nica, desenvolvida e gerida pelo Estado". De forma simplista, poderia
dizer-se que esta plataforma é, por força desta formulaçã o, titulada pelo Estado.
Ora, vejamos duas rá pidas reflexõ es que se impõ em. A primeira é saber qual
é o sentido do termo Estado, nesta disposiçã o? Podemos entender o Estado, na sua
plenitude, compreendendo os quatro poderes constituídos e protegidos pela
Constituiçã o da Repú blica, o Executivo, o Legislativo, o Judicial e o Local? Ou, pelo
contrá rio, quer-se defender o Estado, apenas enquanto Administraçã o Pú blica? E,
neste quesito, a Administraçã o Pú blica directa ou também a indirecta e autó noma?
A segunda reflexã o dú vida reside na natureza jurídica da Plataforma: Pode
ser considerada um bem do domínio pú blico que, por exemplo, ao ser
desenvolvida, gerida e, por arrasto, titulada pelo Estado, nã o permite a sua
alienaçã o, prescriçã o e penhora, aproveitando-se da brecha forçada da al. k) do
art.º 95.º da CRA? Ou, pelo contrá rio, pode admitir-se que a Plataforma Electró nica,
como instrumento de gestã o, integra os bens do domínio privado do Estado,
podendo inclusive, no â mbito da autonomia privada da vontade, que nos termos do
art.º 96.º da CRA, conjugados com o art.º 405.º do Có digo Civil, se reconhecer ao
sector pú blico?
O problema da titularidade da Plataforma Electró nica e da forma de
materializaçã o tem muito que ver, igualmente, com o â mbito da sua sujeiçã o.
Podemos, por hipó tese, admitir que seja um bem do Estado,
independentemente da sua amplitude, mas, por uma delimitaçã o metodoló gica e
pedagó gica, vamos assumir que seja do Estado como entidade pú blica contratante,
nos termos do art.º 6.º da LCP, entã o, dificuldades funcionais se colocam em
relaçã o ao modelo adoptado.
O SNCPE concretiza-se na interoperabilidade de vá rios sistemas e portais
detidos pela Administraçã o Pú blica, com destaque para o SIPIP 219, SIGFE220,
SIGPE221, SIGT e Portal da Contrataçã o Pú blica. Entretanto, de acordo com
219
SIPIP – Sistema Integrado de Projectos de Investimento Pú blico;
220
SIGFE – Sistema Integrado de Gestã o Financeira do Estado;
221
SIGPE – Sistema Integrado de Gestã o Patrimonial
222 do Estado;
informaçõ es oficiais, publicadas no dia 16 de Abril, o SNCPE “apresenta um elevado
grau de interoperabilidade”222 com o SIGFE223.
O SIGFE, enquanto ferramenta de gestã o das Finanças Pú blicas, tem o seu
â mbito de intervençã o confinado à s entidades gestoras do Orçamento Geral do
Estado, o que, desde logo, contrasta com o â mbito subjectivo da LCP. Dito de outro
modo, apesar da vontade do legislador administrativo em criar uma Plataforma
Electró nica que seja ú nica e extensiva a todo o Estado, operacionalmente, este
desejo nã o é exequível, tudo porque existem entidades pú blicas contratantes, que
têm operaçõ es de contrataçã o pú blica fora do SIGFE, e que nã o executam o OGE. O
caso mais flagrante é o das Empresas Pú blicas e Empresas com Domínio Pú blico,
bem como as empresas privadas que executam actos materialmente
administrativos.
Ora, nã o se pode, portanto, deixar de elogiar o legislador administrativo, pela
opçã o, tudo se entendermos, por um lado, o estado de evoluçã o do assunto e, por
outro, que o maior volume de contrataçã o ocorre no SIGFE, sendo aí,
efectivamente, o meio mais idó neo para a implementaçã o da e-procurement e,
consequentemente, dos valores que este quer defender e promover.
Tecnicamente, defendemos que uma pluralidade de plataformas electró nicas,
ao serviço da Contrataçã o Pú blica, seria o ideal, sejam estas tituladas pelo Estado
ou por qualquer outra entidade pú blica.
Um instrumento de gestã o desta natureza e complexidade nã o se pode
confinar a uma ú nica ferramenta, seja por questõ es de eficiência e demanda
permanente de inovaçã o ou de segurança operacional.
Diga-se, de passagem, que a manutençã o, inovaçã o e actualizaçã o de
plataformas electró nicas nã o é o grande forte dos Estados, fundamentalmente,
considerando a estrutura de autorizaçã o e burocracia bastante complexa no seu
funcionamento.
Em alinhamento com a LCP e o Estatuto Orgâ nico do SNCP, recomenda-se a
existência de vá rias plataformas electró nicas ao serviço da e-procurement, cabendo
ao Estado a regulaçã o e supervisã o do seu funcionamento, antes, durante e depois
222
Vide: https://opais.co.ao/index.php/2018/04/17/novo-sistema-de-contratacao-
electronica-vai-reduzir-custos-ao-estado/
223
http://www.contratacaopublica.minfin.gov.ao/PortalSNCP/#!/sala-de-imprensa/noticias
223
da sua utilizaçã o.
A liberalizaçã o do mercado das plataformas electró nicas ao serviço da
Contrataçã o Pú blica é, pois, uma oportunidade que o Estado tem, por um lado, de
garantir a transparência, concorrência e economicidade das suas aquisiçõ es e, por
outro, de forma externa, gerar inovaçã o e oportunidades no sector privado das
telecomunicaçõ es.
O Estado, ao eximir-se desta responsabilidade, poupa em tempo e em
recursos humanos e financeiros dedicados a esta funçã o.

3. BENCHMARKING DE MODELOS DE E-PROCUREMENT (UNIÃO


EUROPEIA, CHILE E QUÉNIA)

A nível mundial, vá rios sã o os modelos e as direcçõ es seguidas para a


contrataçã o pú blica electró nica. A título de exemplo, sem pretensã o de exaustã o,
apresentam-se alguns países da Uniã o Europeia, da América Latina e de Á frica com
diferentes formas de concretizaçã o da iniciativa e-procurement:

 Perspectiva da e-procurement na União Europeia

Na Uniã o Europeia, o mais recente pronunciamento sobre o tema vem


previsto na “DIRETIVA 2014/24/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO
CONSELHO, de 26 de Fevereiro de 2014, relativa aos contratos pú blicos e que
revoga a Diretiva 2004/18/CE”, adiante "Directiva".
Esta dedica profundas recomendaçõ es ao tema das aquisiçõ es electró nicas
(e-procurement). Os nú meros 63 a 68, que sustentam os artigos n. o 34, 35 e 36,
referem-se, respectivamente, aos Sistemas de Aquisiçã o Dinâ micos, Leilõ es
Electró nicos, bem como aos Catá logos Electró nicos.
No que tange à operabilidade da e-procurement na Europa, a regra é a
existência de vá rias plataformas privadas, disponíveis para serem utilizadas pelas
entidades pú blicas contratantes. Por exemplo, em Portugal existem mais de 6
(seis) Plataformas licenciadas pelo Estado, e os respectivos titulares, prontas para
serem utilizadas pelos interessados.224
224
Vide.: http://www.base.gov.pt/Base/pt/PlataformasEletronicas/EntidadesCertificadas;
224
Em muitos outros países, para além dos vá rios provedores de e-procurement,
a nível dos organismos pú blicos, existe um portal que centraliza toda a informaçã o
relacionada com os contratos pú blicos. Voltando ao exemplo de Portugal, o serviço
é prestado pelo Portal Base 225, gerido pelo IMPIC, Instituto dos Mercados Pú blicos,
do Imobiliá rio e da Construçã o.
Num outro sentido, em Itá lia, o Ministério da Economia e das Finanças em
parceria com a CONSIP SPA desenvolveram o sistema e-procurement, que tem
como interface o site http://www.acquistinretepa.it. Os agentes econó micos
interessados podem, permanentemente, participar dos procedimentos de
contrataçã o pú blica electró nica, mediante o registo e apresentaçã o dos
documentos de habilitaçã o. O Marketplace, neste sentido, apresenta as seguintes
possibilidades226:
i. Convenzione – para comprar apenas por ordem directa;
ii. Mercato Elettronico – para comprar por ordem directa, solicitaçã o de
cotaçã o (RDO) ou negociaçã o directa;
iii. Accordo-Quadro – para anú ncio, concepçã o e concessã o de um
contrato específico (AS) ou emissã o de uma ordem directa, dependendo
do que é esperado;
iv. Sistema dinâmico – para iniciar uma proposta específica a partir da
lista de itens ou usando o modelo comercial disponível, dependendo do
tipo de mercadoria.

 Perspectiva da e-procurement no Chile

Entre as realidades comparadas, a do Chile é a que mais se assemelha ao


modelo de e-procurement definido pelo Estado angolano. Segundo GÓ MEZ (2008):

“La plataforma electró nica www.chilecompra.cl, es una herramienta que


constituye uno de los pilares de la Reforma al Sistema de Compras
Pú blicas del Estado Chileno, que permite a cualquier persona o empresa,
nacional y extranjera, acceder y participar en las oportunidades de
negocio que representa la demanda de bienes y servicios por parte del
225
Disponível em http://www.base.gov.pt/Base/pt/Homepage;
226
Vide: https://www.acquistinretepa.it/opencms/opencms/Supporto_PA.html
225
Estado. Esta plataforma opera así:
1. Adquisiciones a través de cotizaciones o licitaciones.
2. Compra contra catá logo electró nico de Convenios Marco chilecompra
Express.
3. Administrar el Registro Electró nico Oficial de Proveedores del Estado,
chileproveedores.
4. Desarrollar aplicaciones y herramientas que completen el ciclo
digital.”

Na verdade, a e-procurement no Chile é materializado pelo “Chilecompras”,


que é a ú nica plataforma gerida pelo ó rgã o responsá vel pela regulaçã o do sistema
nacional de aquisiçõ es pú blicas que garante o seu funcionamento.227

 Perspectiva da e-procurement no Quénia

A demanda por transparência, competitividade, bem como a integridade e


responsabilizaçã o, tem sido frequente em Á frica, seja por parte dos seus cidadã os
ou por parte dos credores internacionais.
Recentemente, MAMBO (2015), escrevendo para Strategic Journal,
apresentou o estado de implementaçã o da e-procurement no Quénia, como a seguir
se transcreve:228

“In Kenya, the government has recognized the adoption of ICT in service
delivery to the public and citizen in general. This has gained momentum
with the current Government administration. Existing literature reveals
that a number of organizations in Kenya have successfully adopted the
use of e-procurement technology. (…) Cited the example of Nation Media
Group which through their digital platform commonly known as N-
Soko229 has enabled their clients to purchase products online. There is
however emerging evidence of the slow uptake of the technology

227
Mais desenvolvimentos, vide: https://www.chilecompra.cl/que-es-chilecompra/
228
MAMBO, Patricia Njeri, Factors Influencing Implementation Of E-Procurement In The
National Government: A Case Of The Ministry Of Interior And Co-Ordination Of National Government,
The Strategic Journal of Business & Change Management, Vol. 2, Number 46; 2015, pá g., 955.
229
Disponível em https://www.tendersoko.com/kenya/tender
226
despite the benefits that e-procurement offers (…). In the public sector,
several models have been tried by different public entities to implement
e-procurement. These are seller centric, buyer centric, e-marketplaces
or third-party managed models.”

No Quénia, a Plataforma N-Soko é titulada por uma empresa privada, porém,


qualquer interessado pode anunciar e tramitar os seus procedimentos,
independentemente da sua natureza pú blica, privada ou associativa.

4. SEGURANÇA E CONFIANÇA DO SNCPE

É reconhecida a importâ ncia da e-procurement, seja para a melhoria da


qualidade da despesa do Estado, seja para aumento de oportunidade, por parte dos
operadores econó micos privados.
Tratando-se de um sector de mercado, onde o acesso à informaçã o
relacionada com a demanda pú blica e ou com os dados dos concorrentes e das suas
propostas, é fundamental que as questõ es de segurança estejam suficientemente
garantidas, como forma de protecçã o da confiança dos utilizadores.
Para dar resposta a esta preocupaçã o, o Regulamento prevê, no essencial, os
requisitos para a segurança no acesso e utilizaçã o da Plataforma:
 Validação cronológica – Registo da prá tica de todos os actos mediante
atribuiçã o de có digos de barras, automaticamente emitidos pela
Plataforma;
 Controlo de acesso – Os acessos devem ser atribuídos em funçã o das
responsabilidades na conduçã o dos procedimentos de contrataçã o
pú blica;
 Auditorias de segurança – O Ministério das Telecomunicaçõ es e
Tecnologias de Informaçã o deve, regularmente, verificar a idoneidade,
experiência e qualificaçã o da Plataforma;
 Integridade dos dados – A Plataforma Electró nica nã o deve partilhar
hardware e recursos do sistema operativo, nem quaisquer dados,

227
nomeadamente, credenciais de acesso e de cifragem, com qualquer outra
aplicaçã o ou sistema;
 Confidencialidade da informação e dados; esta nã o tem descriçã o?
 Assinaturas electrónicas – Todos os carregamentos devem ser
validados e assinados, electronicamente, mediante a utilizaçã o de
certificados de assinatura electró nica qualificada;
 Arquivo e preservação digital – A Plataforma garante a custó dia de
todos os dados produzidos durante a sua utilizaçã o.
É importante realçar que a responsabilidade para garantir a segurança das
transacçõ es no SNCPE depende de uma intervençã o interdisciplinar, segundo a
distribuiçã o constante dos artigos 12.º, 13.º e 14.º, ambos do Regulamento.

5. FACTORES CRÍTICOS DE SUCESSO

A contrataçã o pú blica electró nica apenas será , efectivamente, implementada


se forem atendidos determinados pressupostos cuja verificaçã o, ou nã o
seguimento, certamente comprometerã o o sucesso da iniciativa, a saber:
1. Identificaçã o/criaçã o de uma estratégia que seja o conceito a ser
defendido e implementado e constitua os alicerces para as reformas
estruturais da legislaçã o, governance, prá ticas de mercado, compliance e
integridade;
2. Criaçã o de uma base jurídica só lida que garanta a operacionalizaçã o da e-
procurement e a protecçã o dos interesses dos intervenientes;
3. Assumir a contrataçã o pú blica electró nica como uma prioridade
nacional, ao serviço da gestã o macroeconó mica e da melhoria do
ambiente de negó cios;
4. Identificaçã o de modelos que contém com a intervençã o directa do sector
privado;
5. Definiçã o de planos de comunicaçã o, de gestã o de risco e de mudança,
com foco nos benefícios que decorrem da reforma;

228
6. Assegurar a nã o proliferaçã o de tecnologias paralelas ou dispersã o
tecnoló gica com interferências no modelo de contrataçã o pú blica
electró nica a ser assimilado;
7. Definiçã o de um plano alargado de capacitaçã o em três níveis
diferenciados: gestores políticos de topo, directores e técnicos, bem como
os fornecedores do Estado e demais intervenientes do processo230;
8. Garantia de existência de uma base de infra-estrutura tecnoló gica
transversal aos stakeholders, isto é, EPC, fornecedores, operadores dos
mercados de telecomunicaçõ es, organizaçõ es de regulaçã o dos mercados
pú blicos, fiscalizadores e ó rgã os de controlo interno.
Estas sã o, em nossa opiniã o, situaçõ es que, se cumpridas, podem
seguramente permitir uma eficaz implementaçã o da e-procurement em Angola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida na aldeia global obriga o Estado Angolano a melhorar, continuamente,


os seus níveis de eficiência, governance e sustentabilidade na provisã o de bens
pú blicos. A utilizaçã o de tecnologias de informaçã o na Administraçã o Pú blica, em
geral e, concretamente, na contrataçã o pú blica, em particular, vem resolver um
conjunto de desafios que, pela forma tradicional, têm sido utilizados enormes
esforços e recursos, sejam financeiros, humanos ou materiais.
A e-procurement, entre outros, procura atingir objectivos distribuídos em
vá rias categorias, nomeadamente, quanto à integridade e responsabilizaçã o,
eficiência e economicidade das aquisiçõ es, promoçã o da transparência,
concorrência, bem como o apoio na implementaçã o de políticas de
sustentabilidade na contrataçã o pú blica, destacando-se, a protecçã o do ambiente e
a facilitaçã o do acesso das Micro, Pequenas e Médias Empresas à contrataçã o
pú blica.
O modelo apresentado no Regulamento do Sistema Nacional da Contrataçã o

230
MAMBO, Patricia Njeri, Factors Influencing Implementation Of E-Procurement In The
National Government: A Case Of The Ministry Of Interior And Co-Ordination Of National Government,
The Strategic Journal of Business & Change Management,
229 Vol. 2, Number 46, 2015, pá g. 967.
Pú blica Electró nica nã o está isento de apreciaçõ es críticas, por incompletude ou
imprecisã o de informaçõ es. Este Regulamento comporta excelentes oportunidades
de melhoria para, de forma mais avisada, se poder fazer face aos desideratos
preconizados.
A nível internacional, vá rios sã o os modelos adoptados. Devemos estar
cientes de que nã o existe um modelo ideal. É preciso ajustar o modelo eleito aos
desafios circunstanciais de cada realidade.
A segurança das transacçõ es e a protecçã o de dados é um importante aspecto
a ser tido em linha de conta. A criaçã o de um sistema de acreditaçã o,
credenciamento e auditoria à s plataformas, associado a mecanismos institucionais
de recurso, concorrem para uma maior confiança dos operadores ao sistema de
contrataçã o electró nica.
Por fim, ficou igualmente patente a necessidade de se cumprir um conjunto
de pressupostos para o sucesso da iniciativa. Destacam-se o alto patrocínio
político, assumindo a contrataçã o electró nica como um projecto de Estado, o maior
envolvimento e capacitaçã o de todos os interessados, a criaçã o de um plano de
gestã o de mudanças, entre outros.
Reitera-se a crença de que é irreversível o processo de reformas na
Administraçã o Pú blica e na gestã o dos contratos pú blicos, dando nota que as
ferramentas escolhidas devem estar em plena sintonia com os objectivos
estrategicamente definidos.

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230
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TAVARES, Luís Valadares, O Guia da Boa Contratação Pública, as Directivas de 2014
e o Decreto-Lei 111-B/2017, OPET, IST-TAGUS PARK, Lisboa, 2017.

232
OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
NO ENSINO DO PROFESSOR ANTÓNIO PITRA NETO

CELESTINO CARLOS KALANJA

Sumário:

Introduçã o

1. Fundamento dos Princípios Jurídicos da Administraçã o Pú blica

2. Delimitaçã o conceptual dos Princípios Jurídicos da Administraçã o Pú blica

3. Catalogaçã o dos Princípios Jurídicos da Administraçã o Pú blica segundo o


Professor Antó nio Pitra Neto

Consideraçõ es finais

Referências bibliográ ficas

233
INTRODUÇÃO
Como é sobejamente sabido, a pertinência da abordagem dos Princípios
Jurídicos da Administração Pública em Angola, que o ilustre Professor Antó nio Pitra
Neto nos ensina, precisamente em sede do Direito Administrativo, é sem sombra
de dú vidas inegá vel, pelo facto de, ao longo das ú ltimas décadas, ter sido
significativamente crescente a relevâ ncia dos mesmos no panorama jurídico
angolano.
Nesta perspectiva, entende-se que a Administraçã o Pú blica angolana assume
um papel chave na efectivaçã o dos referidos princípios jurídicos, porquanto
consideramos ser o resultado “natural” da democratizaçã o do país, introduzida
pela Constituiçã o de 1992 e desenvolvida pela Constituiçã o de 2010, que, por sua
vez, provocou uma verdadeira revoluçã o no plano das relaçõ es dos cidadã os com
as entidades pú blicas, conferindo, deste modo, ao Direito Administrativo uma
relevâ ncia e um dinamismo jamais idealizado. Basta verificar o crescimento
exponencial do volume de litigâ ncia dos actos administrativos e dos pró prios
contratos administrativos pú blicos, sem preterir, até certo ponto, a complexidade
dos princípios da organizaçã o e actividade autá rquica, para se concluir que a
prá tica do Direito Administrativo está presente no quotidiano de um nú mero cada
vez maior de juristas angolanos.
O presente estudo, sobre os Princípios Jurídicos da Administraçã o Pú blica em
Angola, objectiva nã o só aprofundar o quadro das liçõ es ministradas em sede do
Direito Administrativo, pelo supracitado Professor, mas também, e acima de tudo,
homenageá -lo, tal como dito em outras paradas, atendendo à diversidade de
paradigmas normativos e linhas de orientaçõ es doutrinais de natureza
administrativa. Pretende-se que sirva de acervo doutrinal e instrumento analítico,
no quadro da formulaçã o dos conteú dos inerentes à temá tica em apreço, bem
como de instrumento para o alinhamento necessá rio das metodologias e
abordagens de orientaçã o técnica relativas à Reforma do Estado e da
Administraçã o Pú blica.
Para lograr este intento, o estudo recorreu, de forma lacó nica e precisa, ao
direito comparado para analisar as diferentes doutrinas e as opçõ es estratégicas

234
inerentes ao processo, inspiradas nas experiências nacionais, no direito
administrativo e no quadro plasmado na Constituiçã o da Repú blica, bem como em
referências aná logas.
A terminar, considerando que a nossa abordagem tem um cunho científico,
certamente nos escaparã o algumas informaçõ es que lhe permitiriam ter um maior
alinhamento teó rico-prá tico. Porém, nã o foi nossa pretensã o esgotar, in toto, as
abordagens que se podem fazer em sede deste tema, tampouco deter o ú ltimo
ponto de vista, porquanto somos, ainda, embriã o que, a cada dia, multiplicamos
esforços nas nossas pesquisas científicas, inspirando-nos nos grandes jus
publicistas angolanos, como os professores Calos Feijó , Virgílio de Fontes Pereira,
Carlos Teixeira, Araú jo, Elisa Rangel, entre outros. Na verdade, entendemos tã o-
somente fazer uma apreciaçã o e apologia, na medida necessá ria e adequada, ao
desenvolvimento dos ensinamentos do ilustre Professor Antó nio Pitra Neto, no
quadro do exercício académico relativamente a esta temá tica e, à luz do mesmo,
submetermo-nos ao senso judicioso da crítica e correcçã o.

1. FUNDAMENTO DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA

A Administraçã o Pú blica, enquanto sistema de ó rgã os, serviços e agentes que


asseguram, em nome da colectividade, a satisfaçã o regular e contínua das
necessidades comuns de segurança, cultura e bem-estar social, obedece a
proposiçõ es bá sicas, ou seja, enunciados expressos pela ordem jurídica que
influenciam a sua estruturaçã o, funcionamento e controlo, tudo isto, pela
primazia dos valores que os mesmos conservam, “até porque sã o eles (os
princípios) (os anteriores parêntesis do autor do texto ou do autor do livro?
Presumo que seja do primeiro, mas é preciso saber) que o informam e orientam
todo um quadro de aparelho da Administraçã o Pú blica e seu correlato
funcionamento”231. Decerto, “o conteú do axioló gico de um princípio traduz a
racionalidade bá sica de regras jurídico-positivas de um dado ordenamento”232.
Tais princípios de concretizaçã o constitucional sã o aplicá veis, em qualquer

231
Cfr. Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, ob. cit.,
235pá g. 101.
circunstâ ncia, a todo e qualquer tipo de actividade, seja ela de gestã o pú blica, de
gestã o privada ou de índole meramente técnica233.
Os princípios da Administraçã o Pú blica, enquanto realidades jurídicas, nã o
constituem um simples somató rio de “normas” jurídicas, muito pelo contrá rio, por
maior que seja a sua quantidade e dispersã o formal, uma Administraçã o Pú blica
justifica-se e existe, enquanto tal, quando seja possível fixar uma série de
princípios fundamentais que constituam linhas dominantes para a orientaçã o de
toda a sua organizaçã o, estruturaçã o, funcionamento e controlo, transformando-a
num todo harmonioso e coerente.
Neste quadro de aná lise, a justificaçã o e enunciaçã o desses princípios,
plasmados em institutos fundamentais do sistema jurídico, permitem colher a
essência e os fundamentos do regime dimanado de um certo conjunto de normas.
A massa das normas jurídicas do Direito Administrativo que, por sua vez, rege a
Administraçã o Pú blica nã o é um conjunto desordenado de preceitos avulsos,
desprovidos de conexã o uns com os outros. Há , na verdade, uma ordenaçã o entre
elas.
Tal unidade expressa-se através da existência de certos valores que
atravessam e orientam todo o sistema e consubstanciam as ideias basilares e os
nexos em que o sistema assenta e se funda e, através dos quais, se articula. Sã o
estes princípios que, na linguagem jurídica administrativa que o Professor Antó nio
Pitra Neto nos vem ensinando, sã o designados por princípios fundamentais da
organizaçã o e da actividade da Administraçã o Pú blica.
Neste sentido, julgamos ser o motivo que galvanizou o supracitado Professor
a considerar que234:

1. “quanto aos princípios fundamentais da organizaçã o Administrativa


depende em grande medida da consagraçã o constitucional que destes se
faz no respectivo diploma fundamental, mas nã o deixa de ser comum a

232
Marcus Vinicius Filgueiras JUNIOR, Introdução ao Direito Administrativo, Síntese Editora,
Porto Alegre, 2005, pá g. 41, apud Carlos Feijó e Cremildo Paca, ob. cit., pá g. 101.
233
Carlos Feijó e Cremildo PACA, ob. cit., pá g. 101.
234
Antó nio Pitra NETO, Resumos Sobre Matérias de Direito Administrativo, 2ª Ediçã o, Luanda,
Mayamba Editora, Janeiro, 2015, pp. 25, 38 e 151236
e ss.
adopçã o dos princípios da legalidade, da participaçã o dos administrados
na preparaçã o e execuçã o das decisõ es da Administraçã o Pú blica, da
igualdade dos cidadã os perante a Administraçã o Pú blica, da
desconcentraçã o e da descentralizaçã o administrativa ...”;
2. “a actividade administrativa rege-se por determinados princípios
fundamentais que, a despeito da necessidade da sua consagraçã o
positiva no contexto de um dado sistema administrativo que os acolher,
pode-se referir alguns deles, como o princípio da legalidade que
modernamente representa “o fundamento, o critério e o limite de toda
actividade administrativa”, o testemunho da passagem “do governo do
arbítrio ao governo das leis”; os princípios da justiça, da imparcialidade
e da proporcionalidade no exercício da actividade administrativa; o
princípio da moralidade; o princípio da igualdade dos administrados
perante a Administraçã o”, etc. (há aspas que nã o fecham. Fica confuso
saber onde inicia e termina o texto citado – ainda por cima é do
homenageado!)

O fundamento destes princípios jurídicos justifica a edificaçã o e orientaçã o


da Administraçã o Pú blica e do Direito que o rege e com os quais, num momento
como hoje, em que a Reforma do Estado e da Administraçã o Pú blica angolana
ganham palco cada vez mais crescente, visa desenvolvimentos significativos,
principalmente em matérias de Poder Local de que os Professores Virgílio de
Fontes Pereira235, Carlos Feijó e Elisa Rangel Nunes236, de forma alargada e
profunda (no quadro das suas teses, dissertaçõ es e doutrinas), nos ensinam, em
matéria de Procedimento Administrativo, que só com a revisã o do Decreto-Lei
16A/95, que aprovou as Normas sobre Procedimento Administrativo, assim como
uma profunda reforma do contencioso administrativo, marcarã o, indelevelmente, a
evoluçã o do Direito Administrativo nos pró ximos tempos.
235
Virgílio de Fontes PEREIRA, O Poder Local: da imprecisã o conceptual à certeza da sua
evoluçã o em Angola. Contributos para a hipó tese de um modelo, tese de mestrado policopiada,
1997, pá g. 19.
236
Elisa Rangel NUNES, Elementos de Direito Comparado para o Estudo das Finanças Locais
em Angola, 2à Ediçã o, Janeiro, Luanda, 2011, pá g. 382 e ss. Ver, ainda, Elisa Rangel NUNES, Lições de
Finanças Públicas e de Direito Financeiro, 5ª Ediçã o revista e actualizada, Luanda, 2014, pá g. 413 e
ss. 237
Poderíamos, mesmo, arriscar-nos a dizer que foi a pensar em todos estes
cená rios, voltados nã o tanto para ideologia política, mas para os aspectos técnico-
jurídicos, que o Prof. Antó nio Pitra Neto assumiu, em 1985, a regência da cadeira
de Direito Administrativo. Através desta, mais do que dar continuidade ao plano de
curso anterior, ministrado pelos Professores Doutores Tech e Iná cio Fonseca
Costa, introduz no ensino do Direito Administrativo as suas pró prias liçõ es, dentre
as quais, os princípios jurídicos fundamentais da Administraçã o Pú blica que, aqui e
agora, fundamentamos e fazemos apologia.

2. DELIMITAÇÃO CONCEPTUAL DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS DA


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A primeira nota que se deve admitir, no quadro do estudo da delimitaçã o


conceptual sobre a matéria em epígrafe, de que nos ensina o Professor Antó nio
Pitra Neto, prende-se com a ideia segundo a qual, a nível da Ciência da
Administraçã o Pú blica e do Direito Administrativo, existem outros conceitos de
princípios jurídicos da Administraçã o Pú blica, para além daqueles que vamos
demarcar e densificar.
Consideramos ú til sublinhar que os conceitos ou conceptualizaçõ es, de que
nos iremos laconicamente ocupar, obedecem à ló gica da jurisprudência doutrinal
de alguns discípulos primá rios mais notá veis do supracitado Professor.
Procedemos desta forma, primeiro por uma questã o de veneraçã o académica e
científica que se lhe deve tributar, enquanto mentor do Direito Administrativo
legislado angolano, e, segundo, por considerarmos serem estes discipulados
figuras cujas teses doutrinais dominam, ampla e consensualmente, o cume da
pirâ mide das escolas de ensino da Administraçã o Pú blica e do Direito
Administrativo em Angola.
Nesta senda, para a delimitaçã o conceptual dos princípios jurídicos da
Administraçã o Pú blica, aceitamos e partirmos da ideologia apresentada pelos
Professores Carlos Feijó e Cremildo Paca, que entendem ser aqueles que servem de
proposiçõ es bá sicas para a estruturaçã o, organizaçã o, funcionamento e controlo

238
das mesmas, “até porque sã o eles (os princípios) que informam e orientam todo
um quadro de aparelho da Administraçã o Pú blica e seu correlato
funcionamento”237. Decerto, “o conteú do axioló gico de um princípio traduz a
racionalidade bá sica de regras jurídico-positivas de um dado ordenamento”238.
Sustentam, ainda, os supracitados Professores, que tais princípios de concretizaçã o
constitucional sã o aplicá veis, em qualquer circunstâ ncia, a todo e qualquer tipo de
actividade, seja ela gestã o pú blica, de gestã o privada, ou de índole meramente
técnica239. Integralmente repetido 3 pá ginas atrá s, onde ficar?
Segundo a formulaçã o do Professor Carlos Teixeira, os princípios jurídicos da
Administraçã o Pú blica sã o aqueles que vinculam todas as funçõ es e, no dizer do
Professor Gomes Canotilho, têm uma natureza normogenética e sistémica,
constituindo o fundamento de regras jurídicas com idoneidade irradiante, que lhes
permite ligar ou cimentar objectivamente todo o sistema constitucional.240
Por outro lado, sustenta o Professor Gomes Canotilho (citado pelo Professor
Burity da Silva) que se consideram princípios jurídicos fundamentais “os
princípios historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na
consciência jurídica e que encontram uma recepçã o expressa ou implícita no texto
constitucional”. Estes pertencem à ordem jurídica positiva e constituem um
importante fundamento para interpretaçã o, conhecimento e aplicaçã o do direito
positivo.241

3. CATALOGAÇÃO DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS DA ADMINISTRAÇÃO


PÚBLICA SEGUNDO O PROFESSOR ANTÓNIO PITRA NETO

Como temos vindo a referir, a organizaçã o e a dinâ mica da Administraçã o

237
Cfr. Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, Direito Administrativo, 4.ª Ediçã o, Ediçã o Mayamba
Editora, Luanda, Janeiro, 2015, pá g. 101.
238
Marcus Vinicius Filgueiras JUNIOR, Introdução ao Direito Administrativo, Síntese Editora,
porto Alegre, 2005, pá g. 41, apud Carlos Feijó e Cremildo Paca, ob. cit., pá g. 101.
239
Idem, pá g. 101.
240
Carlos TEIXEIRA, Manual de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o, Mayamba Editora, Luanda,
Julho, 2015,
241
Carlos Alberto B. B. da SILVA, Teoria Geral
239do Direito Civil, Luanda, Maio, 2004, pp. 90 e 91.
Pú blica é orientada por princípios jurídicos fundamentais, que encontram a sua
má xima e antiga referência em três pontos: primeiro, nas liçõ es programá ticas
ministradas pelo Professor Antó nio Pitra Neto242; segundo, nos conteú dos
ministrados pelos seus discípulos primá rios, entre os quais, destacamos os
Professores Carlos Feijó , Virgílio de Fontes Pereira e Carlos Teixeira; e, terceiro,
em nó s, geraçã o embrioná ria, por intermédio da passagem do legado doutrinal
intelectual administrativo destes e na qualidade de pupilos seguidores, aos quais
pretendemos dar sequência.
Segundo os ensinamentos do Professor Antó nio Pitra Neto, os princípios
jurídicos que regem a Administraçã o Pú blica comportam duas dimensõ es ou
hemisférios, se assim também podemos designar. O primeiro hemisfério encontra-
se virado para a organizaçã o Administrativa – que é considerada como o primeiro
momento da Administraçã o Pú blica, o seu momento está tico e de feiçã o
institucional (permanência, constâ ncia, regularidade, previsibilidade). O segundo
hemisfério está virado para a Actividade Administrativa – que representa a feiçã o
dinâ mica externa da Administraçã o Pú blica, o seu momento operacional, a
circunstâ ncia em que o vasto sistema de pessoas colectivas pú blicas, ó rgã os e
serviços pú blicos se movimenta, agindo, realizando ou produzindo acçõ es e
operaçõ es, de forma regular e contínua, para a satisfaçã o plena das necessidades
colectivas. É a Administraçã o Pú blica vista em sentido material ou objectivo.243
Nesta ordem de ideias, dentro dos incalculá veis, podemos catalogar num
bloco ú nico os princípios jurídicos fundamentais que fazem jus à Organizaçã o
Administrativa244 e à Actividade Administrativa245, tal como foram, devida e
acertadamente, arquitectados pelo Ilustre Professor em apologia. Sã o eles:

1. Princípio da prevalência do interesse pú blico;

242
Antó nio Pitra NETO, Resumos Sobre Matérias de Direito Administrativo, 2ª Ediçã o, Luanda,
Mayamba Editora, Janeiro, 2015, pá g. 151 e ss.
243
Antó nio Pitra NETO, pp. 25 e 38.
244
Antó nio Pitra NETO, Resumos Sobre Matérias de Direito Administrativo, 2ª Ediçã o, Luanda,
Mayamba Editora, Janeiro, 2015, pp. 25 e 177. Ver também Diogo Freitas do Amaral, Curso de
Direito Administrativo, 3.ª Ediçã o, vol. I, Almedina, Setembro, 2012, pá g. 907.
245
Antó nio Pitra NETO, ob. cit., pp. 38 e 182.
240
2. Princípio da participaçã o dos administrados;
3. Princípio da legalidade em relaçã o à s atribuiçõ es e à competência;
4. Princípio da direcçã o individual e da responsabilidade pessoal dos
titulares dos ó rgã os administrativos singulares;
5. Princípio da colegialidade (ó rgã os administrativos colegiais);
6. Princípio da desconcentraçã o;
7. Princípio da descentralizaçã o;
8. Princípio da aproximaçã o dos serviços aos destinatá rios;
9. Princípio da prossecuçã o e realizaçã o do interesse pú blico;
10. Princípio da igualdade;
11. Princípio da imparcialidade;
12. Princípio da justiça;
13. Princípio da proporcionalidade;
14. Princípio do mérito ou do dever de boa administraçã o;
15. Princípio da moralidade administrativa.

Uma vez elencados os princípios jurídicos fundamentais da Administraçã o


Pú blica, e como bem adverte o supra citado Professor, ao referir que “quanto aos
princípios fundamentais da organizaçã o Administrativa depende em grande
medida da consagraçã o constitucional que destes se faz no respectivo diploma
fundamental”246, nada obsta, antes de descermos à aná lise e narraçã o daqueles que
consideramos os princípios fundamentais da Administraçã o Pú blica, iniciar com
um esclarecimento sobre o lugar e a relevâ ncia a conceder ao princípio da
constitucionalidade ou da supremacia constitucional, por entendermos ser um dos
principais, senã o mesmo o principal e supremo princípio “parturiador”, de todos os
outros princípios jurídicos que o Professor Pitra Neto também releva nos seus
ensinamentos.
Dito isto, é agora o momento de passarmos à abordagem singular dos
mesmos.

1. Princípio da Constitucionalidade ou da supremacia constitucional


246
Antó nio Pitra NETO, Resumos Sobre Matérias de Direito Administrativo, 2ª Ediçã o, Luanda,
Mayamba Editora, Janeiro, 2015, pá g. 25. 241
Este princípio, que opera por via da Constituiçã o, imprime a ideia segundo a
qual a Administraçã o Pú blica deve subordinar-se à Constituiçã o, uma vez que
esta se situa no topo da hierá rquica das normas jurídicas.
Isto implica dizer que as leis e os actos do Estado, dos ó rgã os do Poder Local
e dos entes pú blicos, em geral, só sã o vá lidos se forem conformes à Constituiçã o. É
neste sentido, e a título de exemplo, que a Constituiçã o da Repú blica de Angola
dispõ e, expressa e claramente, no seu artigo 198.º, conjugado com o artigo 6.º, o
seguinte:

Artigo 6.º
(Supremacia da Constituição e legalidade)

1. A Constituição é a lei suprema da Repú blica de Angola.


2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade,
devendo respeitar e fazer respeitar as leis.
3. As leis, os tratados e os demais actos do Estado, dos ó rgã os do poder
local e dos entes pú blicos em geral só sã o vá lidos se forem conformes à
Constituição.

Artigo 198.º
(Objectivos e princípios fundamentais)

1. A administraçã o pú blica prossegue, nos termos da Constituição e da


lei, o interesse pú blico, devendo, no exercício da sua actividade, reger-se
pelos princípios da igualdade, legalidade, justiça, proporcionalidade,
imparcialidade, responsabilizaçã o, probidade administrativa e respeito
pelo patrimó nio pú blico.

O princípio da supremacia constitucional significa, tã o-somente, encontrar-


se a Constituiçã o no vértice do sistema normativo. Ela é o fundamento de
validade de todas as demais normas, pois estabelece, no seu corpo, a forma pela
qual a normatividade infraconstitucional será produzida. Todas as demais leis e
actos normativos sã o-lhe, hierarquicamente, inferiores, e, se com ela forem

242
incompatíveis, nã o têm lugar no sistema jurídico, por nã o haver possibilidade de
coexistência entre a Constituiçã o e a norma inconstitucional.
Em síntese, o princípio da supremacia da Constituiçã o consagra a
prevalência das normas constitucionais sobre todas as outras regras existentes
no sistema jurídico, em virtude da sua superioridade hierá rquica, à qual a
Administraçã o Pú blica, tanto no quadro da sua organizaçã o como em sede da sua
actividade ou funcionalidade, está submissa.

2. Princípio da prevalência do interesse público


O princípio da prevalência do interesse pú blico constitui um dos mais
importantes,
senã o mesmo o principal princípio de que se deve reger a Administraçã o
Pú blica. Além de nortear outros princípios, é também conhecido pelos
doutrinadores como o princípio das finalidades pú blicas. Consideramos ser neste
sentido que galvanizara o Ilustre Professor Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado de Matos (citados pelo Professor Carlos Teixeira), a entenderem e
defenderem, nas suas teses, que “o interesse pú blico é o norte da AP”, confirmado
entre nó s pelo n.º 1 do artigo 198.º da CRA247 e artigo 1.º da Lei n.º 17/90, de 20
de Outubro – Sobre os Princípios a Observar pela Administraçã o Pú blica,
conjugado com o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro –
Sobre Normas do Procedimento e Actividade Administrativa.
Este princípio é tã o pertinente que nã o está presente, apenas, no momento da
elaboraçã o da lei, mas também no momento da sua execuçã o.
Objectiva, este princípio, por meio da Administraçã o Pú blica, impor nos
termos da Constituiçã o e da lei obrigaçõ es a terceiros, uma vez que a
administraçã o representa os interesses da colectividade. Tais actos sã o
imperativos e, conforme este princípio, a administraçã o pode exigir o
cumprimento de tais actos pelos administrados ou particulares, por meio de
sançõ es ou providências indirectas, toda a vez que agir em favor do interesse
pú blico.

247
Carlos TEIXEIRA, Manual de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o Mayamba Editora, Julho,
2015, pp. 39 e 40. 243
O princípio da prevalência do interesse pú blico existe com base no
pressuposto de que toda a actuaçã o da Administraçã o Pú blica seja pautada pelo
interesse colectivo, ainda que satisfaça o interesse particular, cuja determinaçã o
deve ser extraída da Constituiçã o, das leis e das manifestaçõ es da vontade geral.
Dessa forma, os interesses privados encontram-se “sacrificados” ou subordinados
à actuaçã o da Administraçã o Pú blica.
O princípio em alusã o fundamenta todas as prerrogativas de que dispõ e a
administraçã o, como instrumento para executar as finalidades a que sã o
destinadas.
O princípio da prossecuçã o do interesse Pú blico assegura, ao executor da lei,
prorrogativas que o colocarã o em posiçã o jurídica de superioridade, em relaçã o ao
administrado, partindo do pressuposto que o interesse Pú blico deve prevalecer
sobre o interesse privado. Este princípio vem afirmar que todos aqueles que têm o
dever de buscar a satisfaçã o do interesse Pú blico devem ter privilégios e
prorrogativas jurídicas, de modo a colocarem-se em posiçã o de superioridade em
relaçã o à queles que perseguem a satisfaçã o de interesses privados, nã o partindo
desta forma a sucumbência do colectivo em prol do particular.
Neste sentido, decorre do princípio da prevalência do interesse pú blico que,
havendo conflito entre o interesse pú blico e interesse privado, prevalecerá o
primeiro, tutelado por excelência pela Administraçã o Pú blica, nã o implicando, com
isto, o desrespeito pelos direitos e garantias dos particulares expressos na
Constituiçã o, ou dela decorrente.248
Nã o obstante a grande pertinência que se tributa ao princípio da prevalência
do interesse Pú blico, prosseguido pela Administraçã o Pú blica, nã o se pode revogar
que o mesmo nã o está directamente presente em toda e qualquer actuaçã o da
administraçã o, limitando-se, sobretudo, aos actos em que ela manifesta poder de
império, denominados actos de império. Estes sã o todos os que a Administraçã o
Pú blica impõ e, coercivamente, aos administrados ou particulares; se assim,
também, quisermos dizer, criando unilateralmente para eles obrigaçõ es, ou
restringindo ou, ainda, condicionando o exercício de direitos.
Sã o os actos que originam relaçõ es jurídicas entre o particular e a
Administraçã o Pú blica, caracterizados pela verticalidade e desigualdade jurídica.
248
Ver, a título de exemplo, o art. 198.º n.º 244
2 da CRA.
Neste quadro de ideias, considera-se necessá rio realçar que existem os
chamados actos de gestã o e actos de mero expediente, praticados pela
Administraçã o Pú blica quando actua internamente, e sobre os quais nã o há
incidência directa do princípio da prevalência do interesse pú blico, isto porque nã o
há obrigaçõ es ou restriçõ es que precisem ser impostas aos administrados. No
mesmo formato, nã o há incidência directa deste princípio nos casos em que a
Administraçã o Pú blica actua regida pelo direito privado.

3. Princípio da participação dos administrados


O princípio da participaçã o dos cidadã os na gestã o da vida pú blica, também
denominado como princípio da participaçã o social, princípio da participaçã o
popular ou princípio democrá tico, é, no quadro da Administraçã o Pú blica
contemporâ nea e dos Estados democrá ticos de direito, um princípio jurídico com
dignidade constitucional249 cujo seu conteú do é expresso no direito das pessoas
participarem na vida política e na direcçã o dos assuntos pú blicos, quer de forma
directa ou indirecta. É , na verdade, a orientaçã o emergente do artigo 8.º do
Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro – Sobre Normas do Procedimento e
Actividade Administrativa, segundo o qual “Aos ó rgã os da Administraçã o Pú blica
cabe assegurar a participaçã o dos particulares”.
Na verdade, trata-se de um princípio que privilegia os cidadã os de
informarem a Administraçã o Pú blica sobre todos os actos de interesse pú blico,
sem descorar a obrigaçã o dos mesmos (cidadã os) em cumprirem ou respeitarem
as leis e de obedecerem à s ordens das autoridades legítimas, dadas nos termos da
Constituiçã o e da lei.
De acordo com a formulaçã o dos Professores Carlos Feijó e Cremildo Paca, o
princípio do participativo traduz uma das mais importantes conquistas dos
Estados modernos democrá ticos de direito, no â mbito da actividade pú blica
administrativa e a correlativa relaçã o com os administrados. Manifesta-se através

249
Dispõ e o artigo 52.º n.º 1 da CRA que: “Todo o cidadã o tem o direito de participar na vida
política e na direcçã o dos assuntos pú blicos, directamente ou por intermédio de representantes
livremente eleitos, e de ser informado sobre os actos do Estado e a gestã o dos assuntos pú blicos,
nos termos da Constituiçã o e da lei”. 245
da faculdade ou poder reconhecido aos particulares de participarem, de diversos
modos, no exercício da actividade administrativa pú blica.250
Uma nota importantíssima a ter em conta, no quadro da aná lise do princípio
da participaçã o, prende-se com o sá bio alarme manifestado por Diogo Freitas do
Amaral, que se traduz na ideia segundo a qual251:

“os cidadã os nã o devem participar na vida administrativa apenas


através das eleiçõ es dos respectivos ó rgã os, mas devem também fazê-lo
intervindo no funcionamento quotidiano das Administraçõ es. De modo
algum este mecanismo quer traduzir um afastamento do princípio
constitucional da democracia representativa a favor de uma democracia
directa; o que significa é que deve haver esquemas estruturais e
funcionais de participaçã o dos cidadã os no funcionamento da
Administraçã o Pú blica”252.

O conteú do da participaçã o dos cidadã os na gestã o da vida pú blica (na gestã o


da administraçã o) pode assumir diversas formas253: primeiro, a forma ou funçã o
consultiva, com cará cter acidental e pontual, ou um modo regular e permanente no
processo de tomada de decisõ es administrativas; segundo, possibilitar aos
interessados o exercício autó nomo, tomando decisõ es e executando funçõ es
administrativas; terceiro, e ú ltimo, possibilitar ao particular participar no processo
de decisã o que lhe diz respeito.254

4. Princípio da legalidade em relação às atribuições e à competência


O princípio da legalidade é, sem sombra de dú vida, a directriz bá sica da
conduta da Administraçã o Pú blica, implicando subordinaçã o completa desta à
Lei, tal como consagrado nos termos dos artigos 198.º n.º 1 da CRA, no artigo 1.º

250
Cfr. Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, ob. cit., pp. 106 e 107. Ver também artigos. 8.º; 27 e
52.º do Decreto-Lei 16/95, de 15 de Dezembro.
251
Diogo Freitas do Amaral, Curso…, ob. cit., pp. 908 e 909.
252
Cfr. Diogo Freitas do Amaral, Curso…, ob. cit., pá g. 909.
253
Idem, pá g.106.
254
Cfr. Carlos TEIXEIRA, Manual de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o Mayamba Editora, Julho,
2015, pá g. 40. Diogo Freitas do Amaral, Curso…, ob.
246cit., pp. 908 e 909.
n.º 2 da Lei n.º 17/90, de 20 de Outubro, e do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º
16-A/95, de 15 de Dezembro.
Este princípio imprime a obrigatoriedade de nenhuma atribuiçã o ou
competência da Administraçã o Pú blica ser dada ou legitimada sem que, para tal,
exista uma lei prévia para o efeito. Ou seja, as atribuiçõ es e competências dos
organismos, dos ó rgã os e dos agentes da Administraçã o Pú blica devem resultar da
lei.
Na formulaçã o do Professor Carlos Teixeira, trata-se de um princípio
fundamental do Estado democrá tico de Direito. Por esta razã o, configura a
submissã o da administraçã o Pú blica à Lei, que na organizaçã o e actuaçã o os seus
agentes devem observar, estritamente nos limites e com os fins para que lhes
forem conferidos poderes, salvaguardando os interesses e direitos dos
particulares, legalmente protegidos por lei.255.
O princípio da legalidade, que é uma das principais garantias de direitos
individuais, remete para o facto de a Administraçã o Pú blica só poder fazer aquilo
que a lei permite, ou seja, só pode organizar-se e exercer os seus actos em
conformidade com o que é apontado pela lei (legalidade positiva). Esse princípio
ganha maior relevâ ncia pelo facto de, para além de reger a organizaçã o, o
funcionamento e controlo da Administraçã o Pú blica visa, também, proteger o
cidadã o de vá rios abusos emanados de agentes do poder pú blico.
Em conformidade com o atrá s exposto, Meirelles defende que:

“Na Administraçã o Pú blica nã o há liberdade nem vontade pessoal.


Enquanto na administraçã o particular é lícito fazer tudo que a lei nã o
proíbe, na Administraçã o Pú blica só é permitido fazer o que a lei
autoriza. A lei para o particular significa “poder fazer assim”; para o
administrador pú blico significa “deve fazer assim””.256

Deste modo, este princípio, além de passar muita segurança jurídica ao

255
Cfr. Carlos TEIXEIRA, Manual de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o Mayamba Editora, Julho,
2015, pá g. 40.
256
Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 25ª Ediçã o, Sã o Paulo, Malheiros,
2000, pá g. 82. 247
indivíduo, limita o poder do Estado, ocasionando, assim, uma organizaçã o da
Administraçã o Pú blica. Em conclusã o ao exposto, Mello completa:

Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissã o da


Administraçã o à s leis. Esta deve tã o-somente obedecê-las, cumpri-
las, pô -las em prá tica. Daí que a actividade de todos os seus
agentes, desde o que lhe ocupa a cú spide, isto é, o Presidente da
Repú blica, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de
dó ceis, reverentes obsequiosos cumpridores das disposiçõ es
gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posiçã o que
lhes compete no direito. 257

No mais, fica claro que a legalidade é um dos requisitos necessá rios na


Administraçã o Pú blica e, como já dito, um princípio que gera segurança jurídica
aos cidadã os e limita o poder dos agentes da Administraçã o Pú blica.
Em outras palavras, pode dizer-se que o princípio da legalidade nã o só visa
evitar o caos organizató rio e funcional administrativo como, também, precaver o
livre arbítrio, outrossim, a interferência nas actividades desencadeadas entre os
ó rgã os e agentes da Administraçã o Pú blica, sem preterir que também serve de
garantia, enquanto meio de defesa para os cidadã os, fazerem face aos actos
administrativos resultantes do abuso do poder dos ó rgã os ou agentes da
Administraçã o, que lesem ou possam lesar os seus direitos e interesses legalmente
protegidos.
Portanto, o princípio da legalidade imprime a ideia de que a Administraçã o
Pú blica nã o pode actuar contra legem ou praeter legem, mais sim, secundum legem.
É , na verdade, o império da lei em sentido negativo ou proibitivo que se impõ e ou
impera.

5. Princípio da direcção individual e da responsabilidade pessoal dos


titulares dos órgãos administrativos singulares
O princípio da responsabilidade individual e da responsabilidade pessoal dos
257
Celso Antó nio Bandeira de MELLO, Curso de Direito Administrativo, 5ª Ediçã o, Sã o Paulo,
Malheiros, 1994, pá g. 48. 248
titulares dos ó rgã os administrativos singulares refere-se, por excelência, aos
ó rgã os administrativos singulares e imprime a ideia, segundo a qual, os titulares
dos respectivos ó rgã os sã o os primeiros responsá veis e respondem,
individualmente, pela actuaçã o dos ó rgã os que dirigem. Como sustentam e
defendem, nas suas dissertaçõ es doutrinais, os Professores Carlos Feijó , Cremildo
Paca e Carlos Teixeira, “tal exigência resulta da tese de que, quem está a frente de
um ó rgã o responde pelo seu sucesso ou insucesso”258.
Neste quadro de aná lise, nã o é errado pensar que o princípio da direcçã o
individual e da responsabilidade pessoal dos titulares dos ó rgã os administrativos
singulares é uma consequência ló gica da violaçã o ou inobservâ ncia do princípio da
boa administraçã o ou governaçã o.
Com este princípio, imprime-se o ó nus de que todos aqueles ó rgã os ou
pessoas singulares que, nos termos da Constituiçã o e da lei, lhes sã o ou forem
conferidos poderes de direcçã o e chefia (ou como diz o Professor Carlos Teixeira,
entidade que se encontra à frente de um ó rgã o259), respondem pela actuaçã o dos
ó rgã os ou serviços que dirigem ou representam.

6. Princípio da colegialidade (órgãos administrativos colegiais)


O princípio da colegialidade pelo qual se rege a Administraçã o Pú blica é
aquele em que, entre os demais, pressupõ e a existência de “competência” conjunta,
conduzindo, por conseguinte, a decisõ es ou deliberaçõ es administrativas tomadas
em comum por vá rios ó rgã os em acto ú nico.
O fundamento deste princípio está intrinsecamente ligado à ideia de que,
tendo em consideraçã o a elevada complexidade ou relevâ ncia com que se revestem
determinadas matérias (as quais, pelas suas peculiaridades observam um regime
pró prio de deliberaçõ es), é impreterível que na tipologia de ó rgã os administrativos
figurem ó rgã os colegiais, formados por mais de um membro, de forma a serem
melhor reflectidas e deliberadas as questõ es de que constituem suas competências.
Na verdade, este princípio imprime a obrigatoriedade de a Administraçã o

258
Cfr. Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, ob. cit., pá g. 110. Ver também Carlos TEIXEIRA, Manual
de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o Mayamba Editora, Julho, 2015, pá g. 21.
259
Cfr. Carlos TEIXEIRA, Manual de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o Mayamba Editora, Julho,
2015, pá g. 41. 249
Pú blica analisar, discutir e aprovar em ó rgã os colegiais questõ es que, pela sua
natureza, complexidade e pertinência, assim o justifiquem.
Segundo a formulaçã o do Professor Carlos Feijó , embora em Angola sejam
previstos ó rgã os colegiais administrativos, o certo é que nã o temos, do ponto de
vista administrativo, uma regulamentaçã o genérica aplicá vel à generalidade dos
ó rgã os administrativos colegiais. O que acontece é encontrarmos disposiçõ es em
cada diploma regulador do estatuto de um ó rgã o administrativo como, por
exemplo, os casos do Regimento do Conselho de Ministros e dos Estatutos do
Governos Provinciais.260
De qualquer modo, segundo o jus publicista professor, a partir dos diplomas
reguladores de alguns dos nossos ó rgã os administrativos colegiais podem,
seguindo de perto a doutrina dominante portuguesa, sintetizar-se as mais
relevantes regras gerais a que obedece o nosso direito na constituiçã o e
funcionamento dos ó rgã os colegiais: a composiçã o e constituiçã o; marcaçã o e
convocaçã o de reuniõ es; sessõ es de membros; funcionamento; deliberaçã o e
votaçã o; quó rum; modos de votaçã o; a maioria; decisã o, etc.261
Outras revelaçõ es deste princípio poderiam ser apresentadas, mas importa
destacar que nã o existe lei administrativa que regule a constituiçã o e
funcionamento dos ó rgã os colegiais. A tradiçã o europeia aponta que para os casos
omissos e na falta de costume aplicá vel à constituiçã o e funcionamento dos ó rgã os
colegiais da administraçã o é regulado pelo regime do parlamento, funcionando
como lei supressiva para os demais ó rgã os colegiais, pú blicos e privados.262

7. Princípio da desconcentração
A desconcentraçã o administrativa é vista como um modelo de gestã o ou
organizaçã o administrativa em que o poder decisó rio se reparte entre o superior e
o inferior, de forma hierarquizada, ou a mais ó rgã os subalternos.
Segundo o Professor Antonio Pitra Neto,

“conceitualmente, define-se a desconcentraçã o, juridicamente, como


260
Carlos Feijó e Cremildo PACA, ob. cit., pá g. 109.
261
Idem, pp. 109 e 110.
262
Cfr. Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, ob. cit.,
250pá g. 110.
sistemas que dizem respeito à organizaçã o administrativa de uma
determinada pessoa colectiva pú blica, revelando desta feita a
distribuiçã o de poderes funcionais em vá rios ó rgã os ou num só em que
se desdobra (ou nã o) essa entidade pú blica”263.

Na mesma senda, acresce o supracitado Professor que haverá


desconcentraçã o administrativa:

“quando no seio da mesma entidade pú blica o poder decisó rio está


repartido entre o ó rgã o superior e os subalternos, em que o exercício de
competências decisó rias nã o está apenas confiada ao superior
hierá rquico da pessoa colectiva pú blica, mas delegado a vá rios ó rgã os
ou funcioná rio e agentes subalternos”.

Este princípio impõ e que a Administraçã o Pú blica venha a ser, gradualmente, cada
vez mais desconcentrada, o qual se pode fazer sob a forma de desconcentraçã o
legal ou sob a forma de delegaçã o de poderes. 264 Nã o obstante os poderes
desconcentrados serem, normalmente, menos importantes do ponto de vista
político, eles também acabam descongestionando os ó rgã os superiores.
A desconcentraçã o tem como principal objectivo a organizaçã o vertical dos
serviços Pú blicos, ou seja, dizem-se sistema desconcentrado quando estes mesmos
nos apresentam um elevado grau de distribuiçã o vertical de competências pelos
diferentes patamares de uma hierarquia. Neste sentido, ensina o Professor Antó nio
Pitra Neto que a nota característica do conceito é, pois, o processo de distribuiçã o
de competências pelos diferentes graus da hierarquia, no â mbito de uma dada
pessoa colectiva (desconcentraçã o administrativa).265
A desconcentraçã o, enquanto fenó meno administrativo, é aquele modelo em que,
por razõ es de descongestionamento ou outros motivos, se permite que
determinadas entidades, por via originá ria ou por via derivada, exerçam
determinadas funçõ es ou poderes. Na estrutura de ó rgã os da mesma pessoa
263
Antó nio Pitra NETO, Resumos Sobre Matérias de Direito Administrativo, 2ª Ediçã o, Luanda,
Mayamba Editora, Janeiro, 2015, pá g. 31.
264
Cfr. Diogo Freitas do AMARAL, Curso…, ob. cit., pá g. 908 e 910.
265
Antó nio Pitra NETO, Resumos, ob. cit., pá251
g. 31.
colectiva Pú blica deve existir uma repartiçã o de competências entre superiores
hierá rquicos e subalternos.266
Na verdade, por força deste princípio, a Administraçã o Pú blica é caracterizada pelo
descongestionamento de competências, que permite determinadas entidades
exercerem funçõ es ou poderes na estrutura da mesma pessoa colectiva Pú blica,
devendo existir uma repartiçã o de competências entre superiores hierá rquicos e
subalternos. Com esta afirmaçã o, queremos dizer, de forma categó rica, que uma
administraçã o é desconcentrada quando sã o conferidos poderes decisó rios aos
ó rgã os inferiores, baseada numa estrutura hierarquizada com graduaçã o de
autoridade, correspondente à s diversas categorias funcionais.
As vantagens do princípio da desconcentraçã o estã o ligadas a uma maior
celeridade, eficiência e justiça administrativa. No entanto, a desconcentraçã o
também nã o deve ser excessiva ao ponto de conduzir a uma falta de unidade na
acçã o administrativa, correndo o risco de perder a harmonia e a coerência nas
decisõ es tomadas pelos ó rgã os desconcentrados.
Este princípio, de que emerge o referido modelo de organizaçã o, oferece-nos
maiores vantagens (ao contrá rio da concentraçã o), que vã o desde a celeridade e
maximizaçã o da eficiência dos serviços pú blicos, dando resposta à quilo que sã o os
interesses dos particulares, até à melhoria dos serviços prestados aos cidadã os, e,
por outro lado, a especializaçã o da funçã o dos inferiores, em que cada ó rgã o passa
a ter uma parcela de competência que exerce com certa autonomia.
Na perspectiva do Professor Carlos Feijó , a operacionalidade do princípio da
desconcentraçã o assenta na repartiçã o de poderes funcionais no interior da pessoa
colectiva pú blica, partindo-se do topo à base ou aos ó rgã os a si imediatos.267.
O princípio da desconcentraçã o administrativa encontra consagraçã o nos termos
do artigo 199.º nº 1 da CRA, o qual estabelece que “A administraçã o pú blica é
estruturada com base nos princípios da simplificaçã o administrativa, da
aproximaçã o dos serviços à s populaçõ es e da desconcentração e descentralizaçã o
administrativas”.

8. Princípio da descentralização
266
Cfr. Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit., pá g. 235.
267
Carlos Feijó e Cremildo PACA, ob. cit., pá252
g. 111.
No quadro dos ensinamentos do Professor Antó nio Pitra Neto, a primeira
nota que se deve ter é que “a descentralizaçã o tem como cená rio de aplicaçã o nã o o
seio de uma só pessoa colectiva pú blica em si (e regra geral será no Estado –
Administraçã o Central), mais sim a existência de pessoas colectivas pú blicas
autó nomas, distintas do Estado”268. Isto implica dizer que o princípio da
descentralizaçã o administrativa se traduz no sistema em que a funçã o
administrativa esteja confiada nã o apenas ao Estado, mas também a outras pessoas
colectivas pú blicas distintas dele.
Segundo o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, “há descentralizaçã o
administrativa quando existem mú ltiplas pessoas colectivas, nomeadamente
pú blicas que participam no exercício da funçã o administrativa do Estado-
colectividade”269.
A descentralizaçã o é o deslocamento para uma nova pessoa diferente do
Estado, que pode ser física ou jurídica, nã o havendo hierarquia, mas existindo
controlo e fiscalizaçã o (sem subordinaçã o). Também há descentralizaçã o quando
temos a aceitaçã o, de facto, por parte do Estado, da existência de um poder local
autó nomo e “independente” deste, a delimitaçã o de uma á rea de competências e
interesses específicos e temos a existência de uma gestã o autó noma e responsá vel.
De acordo com o Professor Carlos Feijó , este princípio imprime a ideia de que
nã o deve caber, apenas, ao Estado a prossecuçã o dos interesses colectivos de uma
sociedade, sobretudo nos dias de hoje. Daí que se diga que a imputaçã o da
responsabilidade, pela direcçã o e prossecuçã o das finalidades, cai no â mbito da
Administraçã o Pú blica e que essas tarefas se distribuem por pessoas colectivas ou
organizaçã o territorial ou institucional, mais limitado que o dele.270
Num sistema administrativo descentralizado, os ó rgã os de direcçã o das
entidades autó nomas sã o eleitos em consonâ ncia com o princípio de
descentralizaçã o administrativa e de autonomia local. As Constituiçõ es e demais
leis dos Estados modernos consagram a eleiçã o como modo adequado para o
provimento dos ó rgã os de direcçã o. Deste modo, para além de corresponder,
formalmente, ao princípio democrá tico, possui também um elevado grau de
268
Antó nio Pitra NETO, Resumos, ob. cit., pá g. 31.
269
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit., pá g. 223 e ss.
270
Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, ob. cit., pá g. 112.
253
importâ ncia, ou seja, a representatividade, em que os ó rgã os eleitos representam
nã o só as populaçõ es que os elegem, como também os interesses que estes
pretendem prosseguir.
No essencial, diremos que é um princípio com dignidade constitucional271 e
impõ e a necessidade de descomprimir o Estado, de tal modo que existam outras
entidades pú blicas que, a seu exemplo, prossigam fins mú ltiplos pró prios ou
específicos de uma dada colectividade, sendo o que apela o Professor Carlos
Teixeira272.

9. Princípio da aproximação dos serviços aos destinatários


Partindo do pressuposto que a Administraçã o Pú blica, no quadro das
atribuiçõ es e funçõ es a que está adstrita, objectiva, por excelência, assegurar a
satisfaçã o das necessidades colectivas ou interesses pú blicos, fica patente e sem
qualquer sobressalto de interpretaçã o considerar que, para a efectivaçã o ou
materializaçã o das mesmas, é impreterível que deve ser de tal forma estruturada
que os serviços se localizem o mais possível junto das populaçõ es que visam
servir.273
Dada a relevâ ncia que este princípio conserva, o legislador constituinte
angolano conferiu-lhe dignidade constitucional, tal como plasmado nos termos
do artigo 199.º n.º 1 da CRA.
Nesta senda, pelos fundamentos que os ergue e de acordo com os
propó sitos a que estã o visados, no exercício das suas actividades, a
Administraçã o Pú blica deve, necessariamente, aproximar os seus serviços
pú blicos à populaçã o, de forma a que os cidadã os vejam facilitada a satisfaçã o das
suas necessidades e, cada vez mais, se sintam pró ximos da referida instituiçã o
pú blica.
Segundo a formulaçã o do Professor Diogo Freitas do Amaral, a aproximaçã o
dos serviços desenvolvidos pela Administraçã o Pú blica nã o é apenas geográ fica,
mas também psicoló gica e humana, no sentido em que os serviços devem
271
Ver artigo 199.º n.º 1 da CRA.
272
Cfr. Carlos TEIXEIRA, Manual de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o Mayamba Editora, Julho,
2015, pá g. 21.
273
Cfr. Diogo Freitas do AMARAL, Curso…, ob.
254cit., pá g. 908.
multiplicar os contactos com as populaçõ es e ouvir os seus problemas, as suas
propostas e as suas queixas, funcionando para atender à s aspiraçõ es e
necessidades dos administrados e nã o para satisfazer os interesses ou caprichos
do poder político ou da burocracia.274
Nos dizeres de Jonas Machado e Paulo Nogueira da Costa, é um princípio
densificador de democracia local, que permite uma maior proximidade dos
cidadã os relativamente aos centros e aos processos de decisã o, tornando-os mais
operativos e permitindo um maior controlo do exercício do poder pela opiniã o
pú blica.275

10. Princípio da prossecução e realização do interesse público


O princípio da prossecuçã o ou continuidade e realizaçã o do interesse pú blico, de
que o Professor Antó nio Pitra Neto nos ensina, é aquele que impõ e a prestaçã o
ininterrupta no quadro da realizaçã o do serviço pú blico.
A continuidade pressupõ e a regularidade e a constâ ncia na prestaçã o do
serviço pú blico com observâ ncia das normas vigentes.
Segundo o Professor Antó nio Pitra Neto, os interesses pú blicos sã o o embriã o
a partir do qual se enraíza, modela e se move todo o tecido estrutural e funcional
em que se efectiva a Administraçã o Pú blica, através do seu “sistema” de entidades
e acçõ es que preenchem o seu quotidiano existencial.276
A ló gica dos serviços pú blicos, como modo de desempenho de funçõ es
administrativas necessá rias à colectividade, assenta na constâ ncia dos anseios da
colectividade, de tal sorte que o seu funcionamento é regular e contínuo. A
continuidade dos serviços pú blicos deve ser mantida, sejam quais forem as
circunstâ ncias, mesmo em caso grave, como estado de sítio ou de emergência,
guerra e sinistro.277
É oportuno ressaltar que a continuidade nã o impõ e que todos os serviços
pú blicos sejam prestados diariamente e em período integral, na verdade, devem

274
Diogo Freitas do AMARAL, Curso…, ob. cit., pá g. 908.
275
Jonas MACHADO e Paulo Nogueira da COSTA, Direito Constitucional Angolano, 1ª Ediçã o,
Coimbra Editora, Coimbra , 2011 pá g. 121.
276
Antó nio Pitra NETO, Resumos, ob. cit., pá g. 21.
277
Cfr. Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, ob. cit.,
255pá g.114.
ser prestados de acordo com as necessidades que a populaçã o apresenta, sendo
lícito distinguir a necessidade absoluta da relativa.
Na primeira, o serviço deve ser prestado sem qualquer interrupçã o, uma vez
que a populaçã o necessita, permanentemente, da disponibilidade do serviço,
dando como exemplo: hospitais, distribuiçã o de á gua e energia, entre tantos
outros.
Contrariamente, na segunda, o serviço pú blico pode ser prestado, de forma
perió dica, em dias e horá rios pré-determinados pelas administraçõ es, levando em
consideraçã o as necessidades intermitentes da populaçã o, tais como: biblioteca
pú blica, museus, quadras desportivas, etc.
Por esta e outras razõ es, dada a preponderâ ncia singular que o princípio da
prossecuçã o e realizaçã o do interesse pú blico se reveste, o legislador constituinte
angolano conferiu-lhe dignidade constitucional, ao estabelecer, nos termos do
artigo 199.º n.º 1 da CRA, que “A administraçã o pú blica prossegue, nos termos da
Constituiçã o e da lei, o interesse pú blico…”.

11. Princípio da igualdade


O princípio da igualdade, que o Professor Antó nio Pitra Neto nos ensina,
traduz a racionalidade de que os ó rgã os e agentes da Administraçã o Pú blica, no
exercício das suas actividades, devem tratar por iguais todos os cidadã os, salvo nos
casos em que a lei determinar o contrá rio.
É um princípio fundamental que, segundo o supracitado Professor, se
enquadra no â mbito da funcionalidade relacional da Administraçã o Pú blica com
outros entes jurídicos, isto é, quando actua despido do poder de autoridade, por
um lado, e, por outro, traduz a igualdade dos cidadã os perante a Administraçã o
Pú blica.278
Postula, assim, que se determine, à luz da Constituiçã o e da lei, se certas
situaçõ es devem ser substancialmente consideradas idênticas e que se assegure
igual tratamento se aquela determinaçã o conduzir à conclusã o da existência de
similitude substancial.279
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, o princípio da igualdade significa que a
278
Antó nio Pitra NETO, Resumos, ob. cit., pá g. 25.
279
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit.,
256pá g. 123.
Administraçã o Pú blica se deve abster de tratar diversamente situaçõ es idênticas.
Neste sentido negativo, o princípio da igualdade impõ e à Administraçã o Pú blica o
dever de nã o agir. Historicamente, é o sentido primeiro do princípio da igualdade.
Por outro lado, o princípio da igualdade determina, também, que a Administraçã o
Pú blica actue para assegurar igual tratamento de situaçõ es substancialmente
iguais. É o sentido positivo, cronologicamente formulado em segundo lugar, do
mesmo princípio. Neste sentido positivo, o princípio da igualdade impõ e à
Administraçã o Pú blica o dever de agir.280
Os dois sentidos do princípio da igualdade representam as duas modalidades
diversas de afirmar esse princípio, quanto ao cará cter negativo ou positivo do
dever que impede sobre a Administraçã o Pú blica.281
Enquanto princípio nuclear que rege a Administraçã o Pú blica282, obriga os
seus ó rgã os e agentes que, no exercício das suas actividades, devam tratar, de
forma igual, os particulares ou outros sujeitos de direito no quadro da sua relaçã o,
nã o devendo, para o efeito, privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de quaisquer
direitos ou isentar de quaisquer dever algum administrado, designadamente em
razã o da imunidade, ascendência, sexo, raça, língua, naturalidade, nacionalidade,
religiã o, convicçõ es políticas ou ideoló gicas, condiçã o econó mica ou social, etc.283

12. Princípio da imparcialidade


Por via de regra, a actuaçã o das pessoas é movida por interesses egoísticos, ou
seja, busca-se a satisfaçã o das pró prias necessidades ou daqueles que lhes sã o
pró ximos. Ao contrá rio do que ocorre na Administraçã o Pú blica, deve ter como
finalidade essencial a satisfaçã o do interesse pú blico, buscando as melhores
alternativas para a sociedade como um todo. E, por "interesses pú blicos", nã o
devem ser compreendidos como alguma concepçã o ideoló gica pessoal do agente
administrativo, mas aquilo que é definido como tal pelo direito e pela lei.
Conforme ensina o Professor Antó nio Pitra Neto, “estes vêm a ser como que a

280
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit., pá g. 123.
281
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit., pá g. 123.
282
Ver art. 198.º n.º 1 da CRA.
283
É neste sentido que também o legislador constituinte angolano plasmou o princípio da
igualdade, tal como disposto nos termos do artigo257
23.º da CRA.
categorizaçã o jurídica das necessidades colectivas, a conformaçã o normativo-
legal dos interesses gerais e permanentes, sentidos, proclamados e assumidos na
sua prossecuçã o por toda a comunidade através do Estado”284.
Nos dizeres de Marcelo Rebelo de Sousa, o princípio da imparcialidade é,
sobretudo, conhecido pela sua vertente negativa, que se exprime no impedimento
absoluto, ou relativo, da intervençã o de titulares de ó rgã os ou agentes
administrativos em procedimento administrativo ou em acto de gestã o pú blica
ou privada nos quais tenham interesse, se ou pró ximo, que afecte a sua isençã o285.
Actuar imparcialmente significa, portanto, a Administraçã o Pú blica ter sempre a
finalidade de satisfazer os interesses colectivos, mesmo que, nesse processo,
interesses privados sejam beneficiados ou prejudicados. O que se veda é a
actuaçã o administrativa com o objectivo de, apenas, beneficiar ou prejudicar
pessoas ou grupos específicos, sob pena de violar a orientaçã o prevista nos
termos do artigo 198.º n.º 1 da Carta Magna angolana.
Imparcialidade, também, pressupõ e isonomia, pois a funçã o destas é a execuçã o
da lei, independentemente de quem sejam os interesses beneficiados ou
prejudicados. Até mesmo os pró prios interesses da Administraçã o Pú blica,
enquanto pessoa jurídica, somente podem ser satisfeitos se estiverem
respaldados pela lei.
Assim, num processo administrativo, uma eventual decisã o favorá vel à
Administraçã o Pú blica deve ser baseada na melhor aplicaçã o possível da lei e nã o
nos seus interesses.
Os actos da Administraçã o devem estar sempre de acordo com a finalidade
genérica (satisfaçã o do interesse pú blico) que lhe é pró pria. A desobediência a
esta finalidade constitui uma espécie de abuso de poder, chamada de desvio de
finalidade ou de desvio de poder.
Os ó rgã os da Administraçã o Pú blica devem tratar de forma imparcial os cidadã os
com os quais entrem em relaçã o. Este princípio impõ e que a Administraçã o Pú blica
deva tratar os particulares da mesma forma, para as mesmas condiçõ es, a fim de
evitar o nepotismo ou qualquer forma de financiamento econó mico ilegal e
prá ticas de corrupçã o.
284
Antó nio Pitra NETO, Resumos, ob. cit., pá g. 20.
285
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit.,
258pá g. 126.
O princípio da imparcialidade da Administraçã o Pú blica é aquele que dá ao
administrador prorrogativas de agir de forma objectiva, sem analisar os critérios
subjectivos, interno como externo, que se traduzirá na total ausência de marcas
pessoais e particulares do administrador Pú blico.
Um dos principais vícios que viola o princípio da imparcialidade é o nepotismo ou
o partidarismo, pois se consubstancia quando os agentes Pú blicos, usufruindo dos
cargos que ocupam, fazem concessõ es de favores a parentes e amigos, sem analisar
os critérios objectivos, para favorecerem os critérios subjectivos. O partidarismo
também nã o fica distante deste, visto que nã o se afasta das feiçõ es pessoais e entra
o vínculo político-partidá rio, que muitas das vezes se manifesta em favores
políticos.
Os Ó rgã os ou agentes da Administraçã o Pú blica devem tratar de forma imparcial
aqueles que com ela entrem em relaçã o, considerando com objectividade todos, e
nã o apenas os interesses relevantes no contexto decisó rio, e adoptando as soluçõ es
organizató rias e procedimentais indispensá veis à preservaçã o da isençã o
administrativa e à confiança nessa isençã o.

13. Princípio da justiça


O princípio da justiça é extensivo à ideia de que o acesso à justiça
administrativa é um direito fundamental, nã o apenas por nortear a actividade da
Administraçã o Pú blica, mas sim por garantir também que todo o cidadã o que
peticiona, ou vê o seu direito perturbado ou na iminência de o ser, pode fazê-lo
valer, junto da Administraçã o, e de acordo com as atribuiçõ es e competência
daquela.
A justiça identifica-se com o conjunto de valores supremos,
constitucionalmente consagrados e fundados na dignidade da pessoa humana, nos
quais assumem primazia os direitos fundamentais.286
Assim encarada, a justiça exige o respeito da ordem constitucional e
administrativa, naturalmente dotada de protecçã o legal, dos direitos fundamentais,
em geral e em concreto, e o tratamento igualitá rio das situaçõ es de facto que,

286
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit.,
259pá g. 120.
substancialmente, devam ser igualmente tratadas à luz dos valores daquela
ordem.287
O acesso à justiça administrativa é um direito fundamental bá sico do cidadã o
e imprescindível para o desenvolvimento de um país. Neste sentido, a concepçã o
de acesso à justiça administrativa tanto se pode dar em sentido formal quanto
material. O sentido formal é, justamente, ter a possibilidade de ingressar em juízo
administrativo para defender um direito de que se é titular. Já o sentido material
consiste no acesso a um processo e a uma decisã o administrativa justa. Em ambos
os casos, com o acesso à justiça administrativa, pretende-se também garantir em
benefício dos particulares a fiscalizaçã o contenciosa dos actos da Administraçã o
Pú blica para tutela dos seus direitos ou interesses legítimos.
Qualquer tipo de condiçã o ou exigência que impossibilite ou inviabilize o
acesso à justiça administrativa, seja de forma directa ou indirecta, constitui uma
exigência que importa em violaçã o ao princípio constitucional e legal do acesso à
justiça.288
A Administraçã o Pú blica deve tratar de forma justa todos aqueles que com
ela entrem em relaçã o e rejeitar as soluçõ es, manifestamente, desrazoá veis ou
incompatíveis com a ideia de direito, nomeadamente em matéria de interpretaçã o
das normas jurídicas e das valoraçõ es pró prias do exercício da funçã o
administrativa.
Este princípio está associado ao da igualdade e traduz a obrigatoriedade da
Administraçã o Pú blica tratar por iguais, situaçõ es iguais, e por desigual, situaçõ es
desiguais.289

14. Princípio da proporcionalidade


O princípio da proporcionalidade, nã o obstante relacionar-se com o princípio

287
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit., pá g. 120.
288
Ver artigo 198.º n.º 1 da CRA.
289
Nã o é por acaso que a igualdade é considerada como uns dos elementos ló gicos da justiça,
a qual (a igualdade) implica que sejam, igualmente, tratados os casos iguais e desiguais, o que o que
é diferente. É assegurada pela generalidade e abstracçã o das normas jurídicas. Ver Antó nio Santos
JUSTOS, Introdução ao Estudo do Direito, 6ª Ediçã o, Coimbra Editora, Julho, 2012. pá g. 66. Ver
também Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit.,
260pá g. 119.
da justiça e da igualdade290, no mesmo formato, norteia a actividade dos ó rgã os e
agentes da Administraçã o Pú blica, na medida em que impõ e limites ao poder
discricioná rio destes, assumindo vá rias manifestaçõ es nomeadamente291:
A razoabilidade: como forma de ponderaçã o dos interesses pú blicos e dos
direitos e interesses legítimos dos particulares em confronto. A razoabilidade
consigna que qualquer decisã o deve assentar na ló gica do fim que pretende
alcançar;
A adequação dos meios aos fins: implica a tomada de uma medida
equâ nime, ou seja, nã o basta que o acto tenha uma finalidade legal, é, porém,
necessá rio que os meios a utilizar sejam adequados ao fim pretendido e a sua
utilizaçã o seja realmente necessá ria;
A proibição de excesso: a administraçã o no seu relacionamento com os
particulares obriga-se a actuar com a moderaçã o possível e, sempre que tenha ao
seu dispor vá rios meios para prosseguir um fim pú blico, deve escolher,
forçosamente, o meio menos gravoso para os direitos e interesses legítimos dos
particulares.

15. Princípio do mérito ou do dever de boa administração


Com este princípio, nã o basta a obediência ao princípio da
constitucionalidade e legalidade acima referenciados. Aqueles que lidam com o
interesse e patrimó nio pú blico devem, também, seguir padrõ es meritocrá ticos, da
excelência administrativa, e da ética, inspirados e respeitados em determinada
comunidade ou sociedade.
Através dele pretende-se vincar a ordem segundo a qual os gestores
pú blicos devem ser pessoas com capacidades, formaçã o e profissionalismo para
administrar, sem sobressaltos, o patrimó nio pú blico. Neste sentido, dispõ e o
artigo 6.º da Lei n.º 3/10, de 29 de Março – Lei da Probidade Pú blica, que: “no

290
Nã o é por acaso que a igualdade é considerada como uns dos elementos ló gicos da justiça,
a qual (a igualdade), resulta da proporcionalidade, que implica que sejam igualmente tratados os
casos iguais e desiguais o que é diferente. É assegurada pela generalidade e abstracçã o das normas
jurídicas. Ver Antó nio Santos JUSTOS, ob. cit.,pá g. 66.
291
Carlos FEIJÓ e Cremildo PACA, ob. cit., pá g. 115. Ver também Marcelo Rebelo de SOUSA,
Licões…, ob. cit., pá g. 121. 261
exercício das suas funçõ es o agente pú blico e a entidade pú blica devem pautar-se
em assumir o mérito, o brio e a eficiência como critérios mais elevados de
profissionalismo pú blico”.
A boa gestã o da coisa pú blica passa, necessariamente, pela tecnicidade e
pelo profissionalismo daquele a quem é incumbida a devida responsabilidade, e
nã o a pessoas desprovidas do mínimo de inteligência administrativa da coisa
pú blica. Prevalece o império da sapiência e nã o da demência administrativa.
O sucesso de uma entidade administrativa depende muito da qualidade da
gestã o adoptada. Importa, pois, que a Administraçã o Pú blica consiga imbuir uma
administraçã o eficiente, que é um factor chave para o sucesso de uma dada
organizaçã o.
Num bom uso do patrimó nio Pú blico, deve existir sempre o mérito Pú blico,
numa aproximaçã o e englobamento ao princípio da boa Administraçã o. A
prossecuçã o do interesse Pú blico manifesta uma sujeiçã o, eminente, da
Administraçã o à lei, precisamente da probidade administrativa. Nã o devem existir
bens sociais plasmados como bens Pú blicos que nã o tenham um acervo legal, e
essa habilitaçã o ou meritocracia, enquanto tal, deve ser efectivada pela letra da lei.

16. Princípio da moralidade administrativa


A Administraçã o Pú blica, no â mbito do exercício das suas actividades, está
vinculada ao dever constitucional e legal de respeitar o princípio da moralidade
administrativa. Nisto é mister a Constituiçã o da Repú blica, a Lei n.º 3/10, de 29 de
Março – Lei da Probidade Pú blica.
O princípio da moralidade existe para estabelecer os bons costumes, como
regra da Administraçã o Pú blica, sendo que a sua inobservâ ncia importa em um
acto viciado (errado), que se torna invá lido, pois o acto praticado é considerado
ilegal justamente por nã o ser moralmente aceitá vel naquela comunidade
“encarnada” na Administraçã o Pú blica.
Os deveres em referência sã o dignos de observâ ncia, nã o só pela emanaçã o
constitucional como, também, pelos princípios informadores dos Estados
modernos democrá ticos de direito, pois trata-se de um princípio que compreende
ou resulta da vertente subjectiva do princípio da legalidade administrativa.
262
O artigo 5.º do supracitado diploma legal estabelece que:

“o agente pú blico pauta-se pela observâ ncia de valores de boa


administraçã o e honestidade do desempenho da sua funçã o, nã o
podendo solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, directa ou
indirectamente, quaisquer presente, empréstimo, facilidade ou
quaisquer ofertas que possam pô r em causa a liberdade da sua acçã o, a
independência do seu juízo e a credibilidade e a autoridade da
Administraçã o Pú blica, dos seus ó rgã os e serviços.”

O princípio da moral administrativa repousa os seus postulados na


obrigatoriedade de que toda a acçã o ou acto administrativo se revista,
necessariamente, de lisura, nã o se justificando excesso, desvio e motivaçã o
estranho ao interesse pú blico. Além disto, a Administraçã o Pú blica deve estar
calcada na ética, deontologia, cultura cívica e moral no desempenho das suas
funçõ es.
O princípio da moral administrativa está associado ao princípio da boa-fé.
Mais do que um princípio geral do direito, a boa-fé é, também, um princípio
do direito administrativo, que imprime a ideia de que, no exercício da actividade
administrativa e em todas as suas formas e fases, os ó rgã os e agentes da
Administraçã o Pú blica devem agir e relacionarem-se segundo as regras da boa-fé,
devendo, para o efeito, ponderar-se os valores fundamentais do direito relevantes,
em face das situaçõ es consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na
contraparte pela actuaçã o em causa e o objectivo a alcançar com a actuaçã o
empreendida.
O princípio da boa-fé, nas suas mais variadas formas, supõ e a valoraçã o da
conduta administrativa de acordo com os valores ou parâ metros bá sicos do
ordenamento jurídico. Nesses valores encontram-se os princípios da justiça e
moral administrativa, da igualdade e da proporcionalidade, pese embora nã o
possam ser confundidos, mas envolve a sua relevâ ncia ou atendibilidade,
traduzindo-se no imperativo de encontrar um equilíbrio tendencial nas relaçõ es
entre a administraçã o Pú blica e os particulares (ou entre vá rias entidades

263
administrativas ou mesmo dentro de um organismo pú blico).292
O princípio da boa-fé pressupõ e que, no exercício da actividade
administrativa, se deve agir sem intencionar prejudicar os outros, honrar a palavra
dada, adoptar conduta digna e honesta e, acima de tudo, correcta, para nã o quebrar
a confiança dada. Como diz Karl Larenz, citado pelo Professor Carlos Feijó e
Cremildo Paca, “o princípio da boa-fé significa que todos devem guardar fidelidade
à palavra dada e nã o frustrar ou abusar daquela confiança que constitui a base
imprescindível das relaçõ es humanas”293.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em decorrência do estudo teó rico efectuado e demonstrada a confiabilidade
do acervo legal e doutrinal consultado e aplicado, que permitiu emanar
informaçõ es e conhecimentos, os quais nos legitimou abordar sobre os Princípios
Jurídicos da Administração Pública no Ensino do Professor António Pitra Neto,
deixamos as seguintes consideraçõ es:
 Tivemos a oportunidade de conviver com uma nova forma de
interpretaçã o dos princípios jurídicos fundamentais da Administraçã o
Pú blica, basilar, inovador e voltado, nã o apenas para a parte doutrinal e
legalista do ordenamento jurídico angolano, mas também para a parte
humanística do Direito Administrativo;
 O estudo dos Princípios Jurídicos da Administração Pública no Ensino do
Professor António Pitra Neto afiguram-se de inegá vel aceitaçã o e, ao
mesmo tempo, de capital importâ ncia para a compreensã o profunda e
ampla da Administraçã o Pú blica e do Direito que o rege;
 Os Princípios Jurídicos da Administraçã o Pú blica, que o supracitado
Professor nos ensina, constituem nã o só os pontos cardeais da
Administraçã o Pú blica e do Direito Administrativo, como também, e
acima de tudo, servem de ossatura e bú ssola administrativa num

292
Marcelo Rebelo de SOUSA, Licões…, ob. cit., pá g. 116.
293
Karl Larenz apud Carlos FEIJÓ e Cremildo
264PACA, ob. cit., pá g. 120.
contexto como o de hoje, onde a reforma do Estado e da Administraçã o
Pú blica ganham um palco bastante significativo;
 Os referidos Princípios Jurídicos da Administraçã o Pú blica sã o, pois,
mecanismos que sustentam o processo de governaçã o pú blica e
conferem, à administraçã o pú blica, maior observâ ncia aos postulados
normativos, transparência, honestidade, justiça e estabilidade na
execuçã o das decisõ es administrativas;
 Terminamos, reiterando que a abordagem ampla sobre os princípios
jurídicos da Administraçã o Pú blica de que o Professor Antó nio Pitra Neto
nos ensina sã o cada vez mais presentes e, portanto, nã o deixam de
merecer um estudo mais aprofundado e mais esclarecedor, porquanto,
dada a rica enormidade dos conteú dos que encarnam, nã o descartam a
possibilidade da sua continuidade e, muito menos, esgotam o seu todo
neste artigo científico em sua homenagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS

a) Livros
FEIJÓ , Carlos e PACA, Cremildo, Direito Administrativo, 4.ª Ediçã o, Ediçã o Mayamba
Editora, Luanda, Janeiro, 2015.
FEIJÓ , Carlos e PACA, Cremildo, Direito Administrativo: Introdução e Organização
Administrativa, 2ª Ediçã o, Viseu, 2007.
JUNIOR, Marcus Vinicius Filgueiras, Introdução ao Direito Administrativo, Síntese
Editora, Porto Alegre, 2005.

JUSTO, Antó nio Santos, Introdução ao Estudo do Direito, 6ª Ediçã o, Coimbra


Editora, Julho, 2012.

MACHADO, Jonas e COSTA, Paulo Nogueira da, Direito Constitucional Angolano, 1ª


Ediçã o, Coimbra Editora, Coimbra, 2011.

MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 25ª Ediçã o, Malheiros,


Sã o Paulo, 2000.
265
MELLO, Celso Antó nio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 5ª Ediçã o,
Malheiros, Sã o Paulo, 1994.
NETO, Antó nio Pitra, Resumos Sobre Matérias de Direito Administrativo, 2ª Ediçã o,
Mayamba Editora, Luanda, Janeiro, 2015.
NUNES, Elisa Rangel, Elementos de Direito Comparado para o Estudo das Finanças
Locais em Angola, 2ª Ediçã o, Luanda, Janeiro, 2011.
NUNES, Elisa Rangel, Lições de Finanças Públicas e de Direito Financeiro, 5ª Ediçã o
revista e actualizada, Luanda, 2014.

PEREIRA, Virgílio de Fontes, O Poder Local: da imprecisã o conceptual à certeza da


sua evoluçã o em Angola. Contributos para a hipó tese de um modelo, tese de
mestrado policopiada, 1997.

SILVA, Carlos Alberto B. B. da, Teoria Geral do Direito Civil, Luanda, Maio, 2004.

SOUSA, Marcelo Rebelo e MATOS, André Salgado, (2007), Direito Administrativo


Geral, Vol. III, Lisboa, [s.n].
SOUSA, Marcelo Ribelo de, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, 1999.

TEIXEIRA, Carlos, Manual de Direito Administrativo, 1ª Ediçã o, Mayamba Editora,


Luanda, Julho, 2015.

b) Leis
Constituiçã o da Repú blica de Angola, 2010
Decreto-Lei 16/95, de 15 de Dezembro – Aprova as Normas do Procedimento
Administrativo e da Actividade Administrativa.
Lei n.º 17/90, de 20 de Outubro – Sobre os Princípios a Observar pela
Administraçã o Pú blica.
Lei n.º 3/10, de 29 de Março – Lei da Probidade Pú blica.

266
A REFORMA ADMINISTRATIVA EM ANGOLA:
HISTÓRIA, RESULTADOS E A NECESSIDADE DE UM NOVO
CICLO DE REFORMA E MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA

DAVID JACINTO JOSÉ ” KINJICA”KINJICA294

Sumário:

Introduçã o

1. O programa de reforma administrativa do governo de Angola: histó ria,


objectivos e realizaçõ es

2. A necessidade de um novo ciclo de reformas e modernizaçã o administrativa

3. Os grandes desafios da reforma e modernizaçã o administrativa

Conclusã o

Referências bibliográ ficas

294
É Consultor e Formador em Gestã o Pú blica e Empresarial. Exerceu funçõ es de Director do
Gabinete Jurídico do Ministério da Administraçã o Pú blica, Trabalho e Segurança Social (MAPTSS),
Administrador Nã o Executivo da Escola Nacional de Administraçã o-ENAD, Chefe de Departamento
da Administraçã o Pú blica e Coordenador Nacional do Programa de Nacional de Simplificaçã o e
Modernizaçã o Administrativa “Mais Simples, Mais Fácil”. Actualmente, é Assessor no Gabinete do
Ministro das Finanças.Advogado, Pó s-Grauado em Direito Contencioso Administrativo e Fiscal e
Mestre em Gestã o Pú blica. 267
INTRODUÇÃO

A histó ria da Administraçã o Pú blica Angolana regista inegá veis avanços. No


domínio da reforma administrativa podemos, por exemplo, destacar o
estabelecimento de um Sector Pú blico Administrativo e de um Sector Pú blico
Empresarial, a criaçã o do regime de carreiras e a reconversã o de carreiras, a
implementaçã o reconversã o profissional dos funcioná rios pú blicos, o Plano Geral
de Formaçã o dos Funcioná rios Pú blicos, entre outros.
As medidas de reforma e modernizaçã o administrativa tiveram sempre
documentos orientadores, elaborados a partir de estudos e auscultaçã o dos
funcioná rios e da sociedade civil organizada, tais como: o “Programa de Reforma
Administrativa do Governo de Angola” (PREA), o “Estudo sobre a Macro-estrutura
da Administraçã o Pú blica Angolana” e, mais recentemente, as “Medidas de
Revitalizaçã o da Reforma Administrativa”.

1. O PROGRAMA DE REFORMA ADMINISTRATIVA DO GOVERNO DE


ANGOLA: HISTÓRIA, OBJECTIVOS E REALIZAÇÕES

Nos finais da década de 80 e princípios da década 90, o Governo de Angola


encetou profundas reformas nos sistemas econó mico, financeiro e administrativo
do Estado, cujo ponto de partida foi o “Programa de Saneamento Econó mico e
Financeiro (SEF)” – que, no domínio econó mico e financeiro, veio introduzir
profundas alteraçõ es – e a aprovaçã o da Lei n.º 17/90, de 20 de Outubro, sobre os
princípios a Observar na Administraçã o Pú blica – que, no domínio administrativo,
foi o arranque das reformas na organizaçã o e funcionamento da Administraçã o
Pú blica.
Strictu sensu, a Lei n.º 17/90, de 20 de Outubro, marcou o início – ainda que
nã o expresso – da reforma administrativa no país. Afirmamos, sem a menor
hesitaçã o, que se trata do mais importante diploma legislativo da nossa
Administraçã o Pú blica, redigido até hoje.
Importa lembrar que, foi esta lei que retirou a competência da Lei Geral do

268
Trabalho, como fonte das normas reguladoras das questõ es ligadas ao regime de
emprego na Administraçã o Pú blica, e estabeleceu a necessidade desta se reger por
leis pró prias, distintas daquelas estritamente aplicadas ao sector empresarial
pú blico ou privado. Foi, igualmente, o exercício regulamentar desta mesma lei (que
surgiu em 1991) do primeiro pacote legislativo da funçã o pú blica, com realce para
os diplomas, que estabeleceu: os períodos de funcionamento e de trabalho na
administraçã o pú blica; as normas sobre o regime de recrutamento e selecçã o de
candidatos para os quadros da Administraçã o Pú blica; os princípios de
estruturaçã o das carreiras na Funçã o Pú blica; as normas que regulam a relaçã o
jurídica de emprego na Administraçã o Pú blica e o diploma sobre o regime
disciplinar dos funcioná rios pú blicos e agentes administrativos.
Ademais, foram, ainda, criados os princípios gerais sobre a estruturaçã o dos
serviços pú blicos, o modo de constituiçã o da relaçã o de emprego na Administraçã o
Pú blica, o regime de promoçã o, sistema remunerató rio, regime jurídico disciplinar,
sistema de segurança social obrigató rio e os princípios de gestã o da funçã o
pú blica.
O diploma marcava, assim, a intençã o de corrigir os manifestos
desajustamentos e desequilíbrios em que atracou a Administraçã o Pú blica, apó s a
Independência, adequando-a ao novo quadro de exigências e conhecimentos que
se requereu aos serviços pú blicos do Estado.295.
O Programa de Reforma Administrativa (PREA), aprovado no final da
década de 90, foi, entretanto, o momento mais significativo da reforma
administrativa em Angola, pois este surgiu da estratégia global do Estado de
modernizar os serviços pú blicos, por forma a criar um ambiente institucional,
gerencial e comportamental favorá vel à implementaçã o das reformas políticas,
econó micas e sociais.
O PREA é um documento que sintetiza e faz uma actualizaçã o das medidas de
política de reforma e modernizaçã o administrativa empreendidas pelo Governo de
Angola, atendendo ao momento político da época. Este emergiu da necessidade de
sistematizar e desenvolver um plano que traduzia a política de reforma
institucional e modernizaçã o administrativa através de um documento estratégico.
295
Dos Santos, Clá udio P., Administração Pública Angolana: perspectiva histórica do seu
desenvolvimento e os desafios da terceira administração.
269 Disponível em www.cooperacao-palop.tl.eu
O PREA teve três á reas essenciais de actuaçã o, nomeadamente:

A. No domínio do aperfeiçoamento da capacidade funcional do Estado:


i. Reforço e qualificaçã o do Estado;
ii. Redefiniçã o e reordenamento do Aparelho do Estado.

B. No domínio da capacitaçã o e valorizaçã o dos recursos humanos:


i. Desenvolvimento do Sistema Integrado de Gestã o de Recursos
Humanos (SINGERH);
ii. Adopçã o de uma política racional e qualificada de recursos humanos
para Administraçã o Pú blica nos domínios do emprego, formaçã o,
motivaçã o e carreiras dos funcioná rios e agentes administrativos;
iii. Reconversã o de Carreiras e Reconversã o Profissional dos efectivos da
Funçã o Pú blica;
iv. Plano Geral de Formaçã o dos Funcioná rios Pú blicos;
v. Reforço do sentido de missã o e comprometimento do servidor pú blico
para com a prestaçã o de serviços de melhor qualidade para o cidadã o
(ex. a adopçã o da Pauta Deontoló gica do Serviço Pú blico, Prémio de
Qualidade do Serviço Pú blico, Tabelas Indiciá rias e Suplementos
Remunerató rios, etc.).

C. No domínio do estabelecimento de um quadro organizativo de


funcionamento adequado e eficaz a nível da Administraçã o Central e Local do
Estado:
i. Racionalizaçã o e poupança na actividade dos serviços pú blicos;
ii. Valorizaçã o dos serviços pú blicos;
iii. Desburocratizaçã o e simplificaçã o administrativa.

Da implementaçã o das medidas de reforma administrativa, PREA, destacam-


se as seguintes realizaçõ es2962:
a) A separação institucional entre o sector público e privado, com o
consequente desdobramento do sector pú blico em sector pú blico
administrativo e sector pú blico empresarial;
296
Paulo, Antó nio R. (2014) in Termos de Referência para Elaboração do Plano Director da
Reforma e Modernização da Administração Pública Angolana, MAPTSS.
270
b) A criação de paradigmas de estruturação e organização a nível
central e local;
c) A desconcentração administrativa, através da transformaçã o das
Delegaçõ es Provinciais em Direcçõ es Provinciais – serviços executivos
directos dos Governos Provinciais;
d) A Descentralização administrativa, institucional e empresarial, com a
criaçã o dos institutos pú blicos, fundos autó nomos e empresas pú blicas
dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial;
e) A criação de um regime de carreiras e, consequentemente, a
Reconversão de Carreiras e a Reconversão Profissional;
f) Institucionalização do Sistema de Avaliação de Desempenho nos
serviços pú blicos;
g) A implementação do Plano Geral de Formação dos Funcionários
Públicos e a consequente criaçã o do Instituto Nacional de Administraçã o
Pú blica para a formaçã o especializada dos funcioná rios pú blicos;
h) A adopção do concurso público, como regra para ingresso e promoçã o
na Funçã o Pú blica;
i) A instituição de estruturas indiciárias, para o regime remunerató rio
da Funçã o Pú blica;
j) A implementaçã o do Sistema de Protecção Social Obrigatório dos
Funcioná rios Pú blicos, Agentes Administrativos e Trabalhadores no geral
e a criaçã o do Instituto Nacional de Segurança Social, enquanto
entidade gestora do sistema.

2. A NECESSIDADE DE UM NOVO CICLO DE REFORMAS E


MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA

O actual contexto econó mico e social que o país vive – aliado à estabilidade
política, militar e de uma nova Constituiçã o da Repú blica – coloca novos desafios à
governaçã o e, portanto, à funçã o administrativa desempenhada pela
Administraçã o do Estado (Directa e Indirecta) e pelas diversas formas de

271
Administraçã o Autó noma. Urge, portanto, saber interpretar o novo contexto
político, as suas necessidades, e readaptar todas as formas de administraçã o
pú blica aos novos desafios.
O empolamento e proliferaçã o de estruturas, muitas das quais ad hoc, a
deficiente qualificaçã o profissional dos efectivos e a incapacidade técnica de
algumas lideranças administrativas de implementarem modelos de gestã o
estratégica e por objectivos, continuam a ser constrangimentos relevantes à
modernizaçã o administrativa angolana.
Outrossim, os objectivos e metas traçados no Plano de Desenvolvimento
Nacional (2018-2022) impõ em que se desenvolvam esforços adicionais, os que têm
sido feitos, e se tomem medidas corajosas e sustentá veis de reforma e
modernizaçã o da Administraçã o Pú blica. (porquê bold??)
Nesta senda, é urgente que o Governo de Angola dê início a um novo ciclo de
reformas e medidas de modernizaçã o administrativa, que nã o se resumam, apenas,
à alteraçã o ou aprovaçã o de novos diplomas legais, mas incidam, sobretudo, na
mudança comportamental dos servidores pú blicos, assim como na cultura de
gestã o, organizaçã o e funcionamento dos serviços pú blicos.
Para iniciar o referido novo ciclo de reformas e modernizaçã o, parece-nos
conveniente que se adopte um Plano Director de Reforma e Modernizaçã o da
Administraçã o Pú blica Angolana297 que resulte de um diagnó stico científico da
realidade social, econó mica, política e administrativa da Administraçã o Pú blica
Central e Local do Estado e apresente um conjunto de propostas de medidas a
adoptar, a curto, médio e longo prazo, e aprovado por Lei.
Porém, julgamos que, qualquer que seja a estratégia a adoptar, as medidas de
reforma administrativa devem sempre ser compreendidas numa perspectiva
evolutiva da sociedade e do Estado Angolano. Além disso, devem ainda procurar
introduzir, nos servidores e nos serviços pú blicos, os valores modernos do
funcionalismo pú blico, a saber:
i. A cultura do foco nos clientes/utentes/cidadã os;
ii. O compromisso, qualidade e responsabilizaçã o dos servidores pú blicos;
iii. A competitividade e sustentabilidade dos serviços pú blicos;
297
Neto, Antó nio Pitra (2014). Novo ciclo do programa de reforma e modernização
administrativa: aperfeiçoamento e aprofundamento.
272MAPTSS.( Este foi o nome do documento fonte)
iv. A desconcentraçã o de competências e a partilha de responsabilidades
dos agentes pú bicos;
v. A protecçã o do erá rio pú blico e prossecuçã o do interesse colectivo
como finalidade de existências dos Serviços do Estado.

3. OS GRANDES DESAFIOS DA REFORMA E MODERNIZAÇÃO


ADMINISTRATIVA

O maior dos desafios que a Administraçã o Pú blica Angolana enfrenta,


actualmente, é a mudança de cultura e/ou comportamental dos servidores
pú blicos e da forma de organizaçã o, gestã o e funcionamento dos serviços pú blicos.
É nossa visã o que a cultura de trabalho, gerencial e orgâ nica, reinante nos
serviços pú blicos, resulta, em grande parte, da falta de visã o estratégico-
competitiva das lideranças, da nã o vinculaçã o da remuneraçã o à produtividade,
dos objectivos e resultados, do fraco investimento na formaçã o e treinamento
profissional, da falta de controlo e de comprometimento no serviço pú blico, da
impunidade e falta de responsabilizaçã o pela gestã o de bens pú blicos, do
desrespeito pelo erá rio e patrimó nio pú blico, entre tantos outros, sendo certo que,
na origem desta “forma de estar e de ser dos servidores e dos serviços”, (Citaçã o?
Fonte?? retirei as as aspas porque trata-se de uma afirmaçã o pró pria que
pretedeu-se dar destaque) há factores que transcendem a Administraçã o Pú blica e
incidem sobre outros domínios da Administraçã o do Estado, nomeadamente, o
sistema de administraçã o da justiça, a acçã o política e cívica dos governantes, grau
de escolaridade da populaçã o e qualidade do ensino, a ideologia política do partido
político governante e o sistema de remunerató rio.
Por isso, entre as medidas que julgamos prioritá rias e desafiantes que devem
marcar um novo ciclo de reforma e modernizaçã o administrativa, destacam-se:

273
1. Redução de estruturas administrativas298, através da fusã o e/ou
aglutinaçã o de tarefas e funçõ es dos Departamento Ministeriais,
Institutos Pú blicos (Estabelecimentos Pú blicos, Serviços Personalizados,
Agências e Fundos) e Serviços Equiparados (Gabinetes Técnicos, Centros
e Unidades Técnicas), em todos os sectores, desde que exerçam
actividades semelhantes ou tenham similitudes ou afinidades de funçõ es,
mesmo quando nã o estejam no mesmo Departamento Ministerial ou
sector de actividade;
2. Implementação de mecanismos de avaliação e condicionamento das
dotações orçamentais de manutenção e funcionamento dos serviços
públicos, bem como os suplementos remuneratórios pagos aos
colaboradores, pelo desempenho, objectivos e resultados
produzidos, a fim de que estejam comprometidos com a arrecadaçã o das
receitas fiscais e com a melhoria da qualidade dos serviços pú blicos que
prestem;
3. Reestruturação do modelo de gestão de recursos humanos, tais
como os sistemas carreiras, avaliaçã o de desempenho e remunerató rio,
de tal forma que se valorize mais o saber-fazer, as competências técnicas,
os resultados e se vincule as remuneraçõ es e acesso a benefícios
econó micos e sociais à produtividade, objectivos e resultados;
4. Adopção de uma cultura de gestão por objectivos e avaliação
integrada de desempenho através de um sistema que, de forma regular
e permanente, defina objectivos e metas, monitorize, faça controlo e
responsabilize (de modo positivo e negativo) os serviços, os dirigentes de
topo, as chefias intermédias e os técnicos pela produtividade e resultados
das instituiçõ es;

298
A observâ ncia do princípio da nã o duplicaçã o, sobreposiçã o e/ou concorrência de funçõ es
entre os ó rgã os e serviços do sector pú blico administrativo ou do sector empresarial pú blico, assim
como a racionalidade de estrutura e de pessoal pelos entes pú blicos, vêm estabelecidos nos
Decretos Legislativos Presidenciais nº 2/13 e n.º 3/13, de 25 de Junho e 23 de Agosto,
respectivamente, sobre a criaçã o, organizaçã o e funcionamento dos institutos pú blicos e dos
serviços centrais da Administraçã o do Estado. 274
5. Regulamentação da utilização de bens e serviços no exercício do
serviço público, mesmo quando sejam privados (ex. viaturas,
telemó veis, internet, etc.), assim como o acesso a suplementos
remunerató rios e benefícios econó micos e sociais (subsídios, seguro de
saú de, viatura oficial, residências, etc.);
6. Melhoramento e massificação da formação e treinamento
profissional e condicionar estes aos ingressos, promoçã o e progressã o
nas carreiras e equipará -los à formaçã o técnica-académica.

CONCLUSÃO

É ponto assente que, em resultado das medidas de reforma administrativa,


sustentada em estudos e em documentos orientadores, a Repú blica de Angola
progrediu e possui, hoje, um sector pú blico administrativo que vem cumprido a
sua missã o, tendo em conta o contexto de guerra civil e transiçã o política em que
as medidas da reforma administrativa foram implementadas.
Entretanto, o actual contexto político, econó mico e social do país coloca
novos desafios à governaçã o, pelo que urge que se dê início a um novo ciclo de
reformas e medidas de modernização administrativa, visando tornar os
serviços pú blicos mais sustentá veis, competitivos e focados nos
clientes/cidadã os/utentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Administraçã o Pú blica: Reduçã o da intervençã o directa do Estado e Aumento da


Responsabilidade Pú blica (2003). PNUD e Ministério da Administraçã o
Pú blica, Emprego e Segurança Social, Luanda.
Dos Santos, Clá udio P., Administração Pública Angolana: perspectiva histórica do
seu desenvolvimento e os desafios da terceira administração. Disponível em
www.cooperacao-palop.tl.eu. [consultado em 20.07.2014].
Estudo Sobre a Macro Estrutura da Administraçã o Pú blica (2000), Ministério da

275
Administraçã o Pú blica, Emprego e Segurança Social, Luanda.
Kinjica, David Jacinto J.; (2012) Legislação da Administração e o Contencioso
Administrativo, Fascículo, ENAD, Luanda.
Kinjica, David Jacinto José; (2013) Remuneração estratégica e melhoria dos serviços
públicos em Angola, ISG, Lisboa.
Lei nº17/90, de 20 de Outubro, Sobre os Princípios a Observar na Administração
Pública.
Neto, Antó nio Pitra (2014). Novo ciclo do programa de reforma e modernização
administrativa: aperfeiçoamento e aprofundamento. MAPTSS.
Paulo, Antó nio R. (2014) in Termos de Referencia para Elaboração do Plano
Director da Reforma e Modernização da Administração Pública Angolana,
MAPTSS.

276
A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO AO
NÍVEL DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA ANGOLANA.
“REFLEXÕES SOLTAS”

Moreira Lopes299

Sumário:

Introduçã o

1. O Procedimento Administrativo como centro de toda Actividade administrativa

2. A construçã o e desconstruçã o dos procedimentos ao nível da Lei dos Contratos


Pú blicos

3. Procedimento Contratual e imparcialidade

4. O concurso Pú blico ao nível da Contrataçã o Pú blica

Conclusõ es

Bibliografia

299
Jurista, Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Cató lica de
Angola e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Pó s-graduado em
Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Pessoas Colectivas Pú blicas e
Especializaçã o em Ciências Jurídico-políticas, pela Faculdade de Direito de Lisboa.
277
INTRODUÇÃO

Os problemas mais complexos dos cidadã os, face à sua incapacidade para os
resolver, deverã o constar da lista de prioridades da Administraçã o. Contudo, este
processo deve obedecer a um conjunto de regras específicas. É preciso garantir
que estes interesses da colectividade, em funçã o da sua importâ ncia, sejam
ininterruptamente realizados, pois, se tal nã o acontecer, é a vida de um nú mero
indeterminado de pessoas que fica em perigo. Por outro lado, a realizaçã o de tais
actividades implica execuçã o de despesas captadas pelo/por parte do Estado,
segundo regras pró prias. Neste sentido, a sua utilizaçã o deve obedecer ajustar-se a
exigências específicas. Por força disso, os indivíduos que põ em a sua força física e
intelectual a serviço da comunidade estã o vinculados a deveres e estã o habilitados
a exercer determinados poderes fundamentados no fim ú ltimo da administraçã o.
Assim, de um lado, teremos um conjunto de necessidades colectivas,
problemas comuns e transversais de um determinado grupo e, do outro, uma
estrutura exclusivamente montada para satisfazer, de modo regular e contínuo, as
necessidades colectivas previamente identificadas.
O problema da á gua e da energia na cidade do Kilamba, por exemplo, nã o
pode ser resolvido por actuaçã o dos cidadã os residentes na zona, é um trabalho
que, pela sua especificidade, deve ser realizado por uma estrutura devidamente
preparada, a Administraçã o Pú blica.
A Administraçã o Pú blica, enquanto estrutura que actua, diariamente, e
mantém contacto com os cidadã os, deve estar sujeita a um conjunto de regras
jurídicas e nã o jurídicas. A sua ordenaçã o e funcionamento dependem do que for
estabelecido pelo Direito, mais concretamente o Direito Administrativo, por muitos
denominado Direito da Administraçã o Pú blica.
A forma como a administraçã o pú blica se organizará depende das regras que
forem estabelecidas pelo Direito Administrativo. Por isso é que se diz que o estudo
do Direito Administrativo assenta em elementos de cidadania, na medida em que,
com a sua assimilaçã o, o cidadã o saberá como deve funcionar a Administraçã o
Pú blica, podendo criticar e exercer os seus direitos, quando esta nã o realizar as
suas tarefas de forma conveniente.
278
As linhas acima apresentadas mostram a importâ ncia do Direito
Administrativo, pois regula grande parte dos problemas essenciais da vida em
comunidade300, desde o nascimento até à morte o Direito Administrativo
acompanha a vida do Homem. Ao nascer, ele é assistido numa maternidade,
hospital Pú blico, uma estrutura administrativa. Mesmo que esta instituiçã o seja
privada, ainda assim, estará a desempenhar uma actividade naturalmente pú blico-
administrativa, que circunstancialmente é realizada por uma entidade privada. No
decorrer da sua vida, o cidadã o vai mantendo contactos com os vá rios serviços
pú blicos, a escola, o tratamento da cédula nas conservató rias do registo civil e,
depois, o tratamento do bilhete de identidade. Caso pretenda casar, ele terá de
recorrer aos serviços das conservató rias do registo Civil, mesmo apó s a sua morte
ele precisará dos serviços das conservató rias do registo civil para que seja
registada a sua morte e, por fim, necessitará dos serviços administrativos que
tratam da gestã o dos cemitérios. A ninguém é permitido ignorar o Direito
Administrativo, nã o existirá cidadã o que possa dizer que sempre prescindiu dos
serviços da Administraçã o Pú blica.
A importâ ncia deste ramo começa a ser evidenciada, desde logo, através da
sua relaçã o com o Direito Constitucional e com a constituiçã o301, na medida em que

300
Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral Tomo I, D.
Quixote, Lisboa, 2008, p. 35.
301
“De acordo com Bouboutt, o Direito Administrativo é uma espécie de irmã o siamês do
Direito Constitucional. Nos nossos dias, é cada vez mais necessá ria uma cooperaçã o frutuosa entre
a doutrina constitucional e a doutrina administrativa, pois o “Direito Administrativo actual existe,
modifica-se e desaparece, tanto em sentido formal como em sentido material, em conjugaçã o com –
e indissociavelmente ligado ao – Direito Constitucional”. O que é vá lido tanto para o Direito
Administrativo substantivo, como o do procedimento, ou o do contencioso – qualquer deles ligado à
Constituiçã o por um cordã o umbilical”. Vasco Pereira da Silva, Ventos de mudança no contencioso
administrativo, Almedina 2005 p. 63. Relacionada a esta ideia, temos a frase de Fritz Werner, que
chamou o Direito Administrativo como Direito Constitucional concretizado. Diogo Freitas do
Amaral, A Última Lição, Almedina 2007, p 13.
Ligada à ideia do relacionamento entre Direito Constitucional e Direito Administrativo: “O
problema posto tem naturalmente a ver com as célebres teses de Otto Mayer – o Direito
Constitucional passa e o Direito Administrativo permanece e de FARITZ Werner – o Direito
Administrativo é o Direito Constitucional concretizado. Pois bem, ainda que a doutrina actual tenda
a abandonar a tese de Mayer, que é preciso situar
279 historicamente, a verdade é que ela continua
o Direito Administrativo é o ramo que realiza, de modo mais efectivo, os comandos
constitucionais, é só pensarmos em matérias como: direitos fundamentais302,
modelo de Estado, intervençã o do Estado na economia, intervençã o do Estado na
protecçã o do ambiente e tantas outras matérias, que resultam da concepçã o
constitucional democraticamente adoptada, cuja execuçã o é diferida à
Administraçã o Pú blica. Portanto, podemos afirmar que a constituiçã o, enquanto
documento reitor e parametrizador de condutas num Estado, nã o pode ser
executada se nã o tivermos um aparelho administrativo devidamente preparado,
que dê corpo aos objectivos que justificaram a sua criaçã o, como pessoa colectiva
de direito pú blico303.
Apesar das resistências de alguns sectores, os problemas tratados pelo
vá lida, sobretudo, entre nó s. Sem dú vida que a tese de Werner é absolutamente pertinente e até
indiscutível, mas é preciso ter em consideraçã o (para além de influências histó ricas) que ela se
refere a um ordenamento jurídico preciso, onde pontifica, entre outros aspectos, uma noçã o
jurídica forte de interesse pú blico, em que se relativizam os vícios formais do acto em favor da
Administraçã o e onde se admite até a fundamentaçã o pó stuma do acto administrativo. Aspectos e
questõ es que nã o encontram paralelo no nosso ordenamento jurídico-administrativo. Para além,
obviamente, de outra cultura administrativa e jurisdicional. Se é certo que o Direito Administrativo
é ou deve ser o Direito Constitucional concretizado, nã o é menos verdadeiro que o Direito
Constitucional tem ou deve ter as suas bases no Direito Administrativo e que as soluçõ es vertidas
na ordem jurídica de um país nã o sã o necessariamente e mecanicamente transportas para outro”.
Luís Filipe Colaço Antunes, O Direito Administrativo e a sua justiça no início do século XXI, algumas
questões, Almedina 2001, pp. 123-124.
302
É deixada de parte hoje a ideia de, segundo a qual, nã o existem actos Administrativos
inconstitucionais, pois entre a constituiçã o e os actos administrativos nã o existe uma relaçã o
directa, esta existe, sim, mas entre os actos administrativos e a lei, esta ú ltima, sim, depende
directamente da Constituiçã o. Na verdade, os direitos fundamentais apresentam-se, como limite,
directamente proveniente da Constituiçã o aos actos administrativos. Para mais detalhes em torno
desta discussã o, vide, Dinamene de Freitas, O Acto Administrativo Inconstitucional, Coimbra
editora, 2010 pp. 262-263. Com alguma relaçã o com o tema, porquanto se levanta a questã o de
saber se a Administraçã o tem o poder de controlar as leis inconstitucionais, por estar directamente
vinculada à Constituiçã o, Rui Medeiros, A decisã o de Inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, p. 168 ss e
André Salgado Matos, A Fiscalizaçã o Administrativa da Constitucionalidade, Almedina 2004. Juarez
Freitas Controle Administrativo da Constitucionalidade, in Estudos em homenagem ao Professor
Doutor Jorge Miranda, vol II, Coimbra editora 2012 p. 363 ss.
303
Para mais desenvolvimentos desta teoria dentre outros veja, Paulo Otero, Manual de
Direito Administrativo Vol I, Almedina, 2013 p. 153
280ss.
Direito Marítimo, integram o â mbito do Direito Administrativo, pois boa parte do
que se desenvolve quando um navio se aproxima de um porto, por exemplo, sã o
relaçõ es jurídico-administrativas com entidades administrativas portuá rias e
outras cuja existência é justificada pelo interesse pú blico, questõ es ligadas,
nomeadamente, ao aproveitamento econó mico e energético dos espaços
marítimos, que sã o á reas sujeitas ao regime de Direito Administrativo.304
Portanto, o Direito Administrativo está onde se manifestar uma necessidade
colectiva.
Já vimos que a Administraçã o Pú blica deve prosseguir, de forma
incondicional, o interesse pú blico, o bem comum, deve satisfazer necessidades
colectivas. Ora, assim sendo, precisamos conhecer as vias que ela utilizará para
garantir a materializaçã o deste interesse.
Se a Administraçã o quiser recolher lixo para evitar doenças, construir uma
escola para garantir o direito à educaçã o, erigir um hospital para tratar da saú de
dos cidadã os, licenciar um estabelecimento comercial que, apesar da sua natureza
privada, vai prestar um serviço pú blico que deve ser fiscalizado pelo Estado, serã o
necessá rios vá rios e diferentes actos, mas todos eles dirigidos para uma finalidade.
Quais os actos que a Administraçã o pode praticar?
Para construir uma escola ou um hospital a Administraçã o deve celebrar um
contrato de empreitada que, em funçã o da finalidade e regras aplicadas, será um
contrato administrativo. Para licenciar um estabelecimento comercial, a
Administraçã o deve praticar um acto administrativo.
Com o presente artigo pretendemos, acima de tudo, evidenciar a importâ ncia
do procedimento Administrativo para a contrataçã o pú blica angolana, a partir dos
elementos que este instituto fornece e que ajudam a concretizar os principais
objectivos da contrataçã o Pú blica. Através do procedimento Administrativo, sã o
garantidos os valores da racionalidade, planificaçã o, concorrência, transparência,
imparcialidade, interesse pú blico, entre outros.
Em Angola, os elementos acima referidos só serã o devidamente
concretizados se atribuirmos ao procedimento o seu principal papel, de centro de
toda a actividade administrativa, instituto transversal e de garantia de equilíbrios
304
Rui Guerra da Fonseca, Espaço marítimo e Direito Administrativo: enquadramento, Direito
Administrativo do Mar, Almedina 2016 Reimpressã
281o p. 91.
na realizaçã o do interesse Pú blico.
As verbas utilizadas para pagar os serviços contratados sã o pú blicas,
resultam de impostos e de outros meios de financiamento das actividades pú blicas,
que devem, como tal, ser utilizadas com a parcimó nia e racionalidade exigidas e,
para além disso, devemos sempre garantir que o serviço, a proposta adjudicada, é a
melhor para a sociedade, para a comunidade.305
Interessa, neste domínio, que a Administraçã o seja eficiente ao má ximo, ao
ponto de alcançar o value for money, o maior benefício na utilizaçã o dos seus
recursos, nã o seja este um dos principais objectivos da regulaçã o dos
procedimentos de formaçã o dos contratos pú blicos. A eficiência, em questã o,
assenta em algumas ideias, a saber: (i) a aquisiçã o feita pela administraçã o deve
estar alinhada à satisfaçã o das efectivas necessidades colectivas; (ii) os termos do
contrato, a ser celebrado, devem atender ao má ximo o interesse da colectividade;
(iii) a entidade contratada deve apresentar os meios necessá rios para garantir a
execuçã o do contrato.306
Os valores da contrataçã o pú blica, acima enunciados, só poderã o ser
alcançados se consagrarmos procedimentos de formaçã o de contratos de natureza
concorrencial e nã o discriminató rios, devidamente publicitados e acompanhados
por critérios de selecçã o, que atendam à transparência entre os concorrentes e que
nos levem, obviamente, à escolha da melhor proposta. Tal como resulta das regras
econó micas, a escolha da melhor proposta pressupõ e a avaliaçã o de, pelo menos,
duas alternativas. Só assim poderemos ter uma ideia das opçõ es e estaremos em
condiçõ es de escolher a melhor soluçã o, pois em termos comparativos e atendendo
aos critérios que presidem a escolha supera as demais.
Independentemente do que se afirmou acima, sobre as vantagens de
procedimentos concorrenciais e abertos, a verdade é que o contexto pode ditar a
adopçã o de procedimentos fechados. Esta adopçã o pode ser determinada pela
natureza do contrato a celebrar, pelo tipo de entidades envolvidas na contrataçã o,
pela urgência de contratar, pela complexidade técnica dos serviços a obter e pela

305
Francisco de Oliveira Ferreira, Procedimentos pré-contratuais ao abrigo dos Contratos
Pú blicos, Coimbra editora, 2010 p. 32.
306
Vera Eiró , A obrigaçã o de indemnizar das entidades adjudicantes. Fundamentos e
pressupostos, Almedina 2013 p. 47. 282
necessidade de valorizar os factores de apreciaçã o pessoal dos particulares que
contratam com a Administraçã o.307
Neste sentido, a grande preocupaçã o para os académicos e os operadores do
mercado de contrataçã o nã o é a existência de procedimentos abertos ou fechados,
mas sim a consagraçã o de regras claras, a legislaçã o deve definir as circunstâ ncias
em que a administraçã o pode optar por procedimentos mais fechados e deve fazê-
lo de forma clara e objectiva, com margens reduzidas de discricionariedade para o
aplicador da norma.
Há , no entanto, uma preocupaçã o em garantir a legalidade dos
procedimentos contratuais com a sua inerente objectividade e, ao mesmo tempo, a
liberdade da administraçã o em tomar sempre a melhor decisã o, de acordo com as
circunstâ ncias. Na ausência de normas jurídicas injuntivas, o responsá vel pela
direcçã o do procedimento tem a faculdade para adoptar a melhor soluçã o, o
melhor caminho e, por conseguinte, há uma flexibilidade na conduçã o do
procedimento. Como resultado, este princípio pode ser encarado como
fundamento para a contratualizaçã o da actividade administrativa308.
Em termos de contrataçã o Pú blica impõ e-se, acima de tudo, que se conheçam
e respeitem três pressupostos:
a) Pressuposto ló gico: pluralidade de objectos e pluralidade de
concorrentes. Diante da inexistência de concorrência e variedade de
objectos a serem fornecidos, a realizaçã o de licitaçã o nã o tem o menor
sentido;
b) Pressuposto jurídico: quando a licitaçã o se constitui em meio apto, em
tese, para a consecuçã o do interesse pú blico. É um meio (ou
instrumento) para se alcançar utilmente um resultado: a melhor
contrataçã o para a Administraçã o (logo, o atendimento do interesse
pú blico). Assim, nas hipó teses em que a realizaçã o da licitaçã o nã o se
mostra juridicamente viá vel (pois nã o é o melhor meio para a consecuçã o

307
Má rio Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros Procedimentos
de adjudicaçã o administrativa, das fontes à s garantias. Almedina 1998, nota n.º 10 p. 182.
308
Jorge Alves Correia, Contrato e Poder Administrativo, o problema do contrato sobre o
exercício de poderes pú blicos, Gestlegal 2017 p. 518.
283
do interesse pú blico), a pró pria lei permite ao administrador deixar de
realizá -la (hipó teses de dispensa e inexigibilidade de licitaçã o);
c) Pressuposto fá ctico: existência de interessados na disputa. Diante da
ausência de concorrentes, nã o há como realizar a licitaçã o.309
O moderno Direito Administrativo assenta em aspectos que nos levam a
respeitar e a aprimorar, cada vez mais, o regime dos contratos pú blicos, pois tem,
em si, o consenso, enquanto elemento fundamental nas relaçõ es entre cidadã os e
administraçã o. Prova disso é que, mesmo nos sistemas de administraçã o executiva,
se foi cada vez mais afastando a ideia de autoridade, brilhantemente substituída
pela aproximaçã o, cooperaçã o, consenso, etc.310
Para além da homenagem ao Professor Pitra Neto, motivo de honra para mim
– que, embora nã o tenha sido seu aluno, aprendi a respeitar os seus feitos
académicos, por ser, antes de tudo, um pioneiro no ensino do Direito
Administrativo. Este facto marca, de forma indelével, a histó ria do ensino do
Direito em Angola, e qualquer investigador deste ramo do saber jamais pode
ignorar. Com este artigo pretendemos, igualmente, reflectir sobre os desafios do
mercado da contrataçã o pú blica angolano, de modo a garantir que este funcione de
acordo com as regras que, predominantemente, atendam ao interesse Pú blico.
Assim, precisamos criar mecanismos para garantir a efectividade das normas
aprovadas e rever o papel e as formas de actuaçã o do Serviço Nacional de
Contrataçã o Pú blica, que deve ser uma verdadeira autoridade reguladora e
independente.

1. RELEVÂNCIA DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO NO


EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE ADMINISTRATIVA. LIÇÕES A RETIRAR
PARA A CONTRATAÇÃO PÚBLICA

Ficou clara, no ponto anterior, a importâ ncia do procedimento

309
Vítor De Amorim, Licitaçõ es e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência, Senado
Federal, 2017 p. 24.
310
Jorge Alves Correia, Contratos Urbanísticos, Concertaçã o, contrataçã o e neocontratualismo
no Direito do Urbanismo, Almedina 2009 p. 16. 284
administrativo, enquanto instituto transversal a todo o exercício da funçã o
administrativa. Pretendemos evidenciar, ao longo deste artigo, a importâ ncia do
instituto, com foco na contrataçã o Pú blica angolana. Faremos, por isso, uma ligaçã o
que começará com generalidades e que, depois, nos irá transportar para aspectos
mais concretos e específicos, ligados à contrataçã o Pú blica.
Prematuramente e face ao que temos defendido ao longo do texto, podemos
afirmar, de forma categó rica, que nã o pode existir actividade Administrativa sem
Procedimento Administrativo. E a primeira fundamentaçã o para esta afirmaçã o
está na natureza das coisas. Para o efeito, a pró pria realidade é fértil em
exemplos311 que evidenciam a natureza ritualista312, faseada, paulatina e processual
da vida e, consequentemente, da actividade administrativa, o que nos permite
concluir que o procedimento é relevante para o exercício da funçã o administrativa.
Nã o nos bastamos com esta afirmaçã o, por si só , incapaz de traduzir a amplitude e
força do instituto, pelo que teremos de demonstrar esta relevâ ncia com factos
“palpá veis” no decorrer desta parte do artigo.
O advento do Estado Social313, dentre vá rios aspectos, propiciou a mudança
311
O casamento, em regra, é precedido de um namoro, a maioridade nã o se atinge sem passar
pela infâ ncia, ninguém aceita o resultado de uma equaçã o sem que se faça prova ou demonstraçã o
dos passos que foram seguidos para gerar aquele resultado, etc.
312
“Em todo agir humano consciente se pode distinguir entre o caminho e a meta: o
procedimento é o caminho, a via ou a estrada que ao destino pretendido, à meta, identificada esta
com a decisã o final ou o propó sito que a conduta visa alcançar. Toda a formaçã o, manifestaçã o e
execuçã o da vontade de qualquer sujeito pressupõ e sempre a existência de um conjunto de actos e
formalidades que, em termos ordenados e sucessivos, se encontram dirigidos ao propó sito ou fim
visado: aqui a ideia nuclear de procedimento, podendo dizer-se que nã o há expressã o da vontade
sem a existência de um qualquer procedimento”. Paulo Otero Direito do Procedimento… ob cit. p.
20.
313
“O alargamento das tarefas estaduais característico da superaçã o do Estado Liberal
implicou alteraçõ es profundas na administraçã o pú blica. A concretizaçã o dos novos fins de
conformaçã o e de satisfaçã o de necessidades sociais cabe, em primeira linha, à Administraçã o.
Consequentemente, esta vai deixar de se caracterizar como uma estrutura centralizada e
rigidamente hierarquizada que prossegue o interesse pú blico através de intervençõ es pontuais de
cará cter ablativo (Administraçã o agressiva) passando a avultar situaçõ es em que a Administraçã o
Pú blica é chamada, nã o só a prestar serviços, como a desenvolver actividades de programaçã o de
processos sociais (Administraçã o constitutiva). A satisfaçã o da necessidade social de bem-estar,
traduzida numa exigência de actuaçã o sistemá285
tica, tem como consequência a intensificaçã o do
de paradigma, no que à s formas de exercício da funçã o administrativa se diz
respeito, com efeito directo na figura do procedimento que foi retirado da periferia
para o centro da abordagem jus-administrativa. Fundamentalmente porque se
percebeu que, face à s exigências, a administraçã o deveria recorrer a outras formas
de exercício do poder administrativo, se quisesse realizar da melhor maneira
possível o interesse pú blico. Se na época clá ssica o procedimento estava virado
para o acto, com o surgimento das outras formas de actuaçã o, o contrato e o
regulamento, cedo se notou que a utilizaçã o destas duas figuras deveria,
igualmente, ser antecedida de um ritual, até porque em relaçã o aos contratos se
pretendia, entre outras coisas, estabelecer um percurso obrigató rio, de modo a
evitar as influências externas que pudessem perigar a busca pela melhor decisã o
na perspectiva jurídica e financeira.
Outro aspecto que esteve na base do reposicionamento do Procedimento
Administrativo, no quadro da actividade administrativa, foi a relevâ ncia que se
concedeu aos direitos fundamentais314, enquanto categorias por via das quais os
cidadã os podiam fazer frente ao Estado, pois tratavam-se de meios de protecçã o
das posiçõ es vantajosas a eles conferidas, por via da sua inaliená vel dignidade. Se o

relacionamento entre a Administraçã o Pú blica e os cidadã os. Se é verdade que se acentuam as


dependências dos particulares relativamente à actividade administrativa, nã o é o menos que esta
exige, para o bom desempenho das novas tarefas, a colaboraçã o dos cidadã os e o recurso a meios de
actuaçã o flexíveis”. Pedro Machete, A Audiência… ob cit… pp. 20-21.
314
“Também relativamente à Administraçã o os direitos fundamentais nã o funcionam apenas
como posiçõ es de defesa, em que os particulares se podem entrincheirar contra quaisquer medidas
capazes de colocar em risco a intangibilidade do seu conteú do. Para que a sua conduta possa
considerar-se em harmonia com as pautas constitucionais nesta matéria, nã o é pois suficiente que
as instâ ncias administrativas se abstenham de agredir –directa ou indirectamente por mã o pró pria
ou através de interposta pessoa – os bens jurídicos protegidos pelas normas de direitos
fundamentais. Nem sequer os direitos fundamentais podem limitar-se a servir de referências
axioló gicas objectivas, destinadas a orientar a actividade administrativa no seu conjunto ou a
fornecer uma chave para a sua compreensã o global. E, menos ainda. Se pode reduzir a
Administraçã o ao estatuto de servidora diligente da exigência decorrente de direitos a prestaçõ es –
sejam estas as prestaçõ es materiais típicos do Estado Social, sejam estas as prestaçõ es jurídicas que
integram direitos específicos dos administrados (direitos à informaçã o, à fundamentaçã o e à
notificaçã o)”. Jorge Pereira da Silva, Deveres do Estado de protecçã o dos direitos fundamentais,
Universidade Cató lica Editora 2015 p. 655. 286
tratamento que se conferia ao cidadã o se alterou, já nã o fazia sentido colocá -lo na
mesma posiçã o de sú bdito, de administrado, pois a partir daquela altura ele podia
fazer frente à administraçã o porquanto, na sua actuaçã o, aquela deveria respeitar,
tal qual lombas na estrada, os direitos dos cidadã os. Assim se percebeu que à
administraçã o nã o restava outra soluçã o senã o aproximar-se do cidadã o e
estabelecer, com ele, uma relaçã o de cooperaçã o e parceria – a administraçã o
cedeu –, pretensã o cuja realizaçã o estava inteiramente dependente do
procedimento administrativo, enquanto espaço privilegiado de ponderaçã o de
interesses conflituantes315.
Este relacionamento, entre a Administraçã o e os particulares, gerou uma
série de vinculaçõ es recíprocas pró prias da natureza do contacto efectuado entre
ambos, mesmo sem qualquer origem legal ou constitucional. Neste sentido, fala-se
da eficá cia irradiante dos direitos fundamentais que pode assumir modalidades
diversas: imediata atribuiçã o dos direitos fundamentais em matéria de
procedimento, dependência dos direitos fundamentais relativamente ao
procedimento, necessidade de medidas administrativas que afectam os direitos
fundamentais serem tomadas na sequência de um procedimento administrativo.316
Como afirma o professor Vieira de Andrade:

“Em determinados casos, a Constituiçã o consagra directamente certas


garantias de procedimento (ou de processo), enquanto bens jurídicos
autó nomos, conferindo assim aos particulares verdadeiros direitos
fundamentais procedimentais, direitos relativos a um determinado
procedimento. Noutras hipó teses, a Constituiçã o consagra direitos
fundamentais cuja concretizaçã o ou, pelo menos, cujo exercício
individual só é possível através de uma normaçã o ordiná ria de cariz
organizató rio ou procedimental: trata-se de direitos fundamentais de
cunho procedimental ou direitos dependentes de um procedimento. A
doutrina e a jurisprudência alemã s reconhecem ainda aos titulares de
direitos fundamentais que possam ser afectados por um procedimento
administrativo os direitos (faculdades) necessá rios para a defesa
efectiva, nesse procedimento, dos respectivos bens jurídicos
315
Paulo Otero Direito … ob cit… p 36.
316
Vasco Pereira Em busca ob cit… p 438. 287
constitucionalmente protegidos. Estamos perante situaçõ es de direitos
fundamentais postos em causa por um procedimento”317

Portanto, pode perceber-se que a ideia de procedimentalizar a actividade


administrativa tem uma das suas razõ es de ser nos direitos fundamentais, para os
realizar ou, ainda, para de forma legítima, “os violar”. De tal sorte que,
sectorialmente falando, ao nível dos direitos fundamentais dos cidadã os, nã o se
pode negar a omnipresença mediadora do Procedimento Administrativo. Hoje, o
procedimento é encarado como meio pelo qual a administraçã o e cidadã o realizam
os seus interesses, de forma harmó nica, daí a perspectiva mediadora atribuída ao
instituto.
Veja-se o exemplo do direito à informaçã o procedimental, com raízes no
direito fundamental, a informaçã o encarada na perspectiva geral, cujo exercício
depende de alguns pressupostos, um deles de natureza objectiva, a existência de
um procedimento pendente ou concluído.318
Cumpre avançar que o moderno Estado democrá tico e de direito apregoa
uma maior aproximaçã o da administraçã o aos cidadã os e encontra, na participaçã o
administrativa319, um dos pilares para consolidaçã o dos seus desígnios, mormente
a democracia participativa, de tal modo que a participaçã o dos cidadã os na gestã o
administrativa seja encarada como elemento de legitimaçã o das decisõ es e como
mecanismo por via do qual muitas delas podem ser corrigidas e compatibilizadas
aos princípios da justiça, do interesse pú blico, etc.320 Claramente que esta
participaçã o deverá ser feita em obediência a regras, entre as quais se notabilizam

317
José Carlos Vieira de Andrade, O dever de fundamentaçã o expressa de actos
administrativos, Almedina, 2ª reimpressã o 2007, p. 188.
318
Sérvulo Correia, Direito à informaçã o e os direitos de participaçã o dos particulares no
procedimento e, em especial, na formaçã o da decisã o administrativa, ina, nº 9/10 Janeiro. Junho
1994 p 138.
319
Algumas notas sobre o princípio da participaçã o na Constituiçã o da Repú blica Portuguesa
vide Janaína Rigo Santin, o Princípio da participaçã o na Administraçã o Pú blica portuguesa in
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, ediçã o especial Luanda 2015 p
414-469.
320
Gustavo Henrique Justino de Oliveira, Audiências Pú blicas e o processo administrativo
brasileiro, Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 p 274.
288
as procedimentais de forma a torná -la mais eficiente e ordenada, por conseguinte,
é mais uma vez a figura do procedimento a destacar-se.321
O procedimento, dotado de vocaçã o interna, está hoje ao serviço de normas e
realidades contratuais, fruto da expansã o e reconhecimento das suas valências
para o exercício da funçã o administrativa, como é o caso dos contratos
interadministrativos cuja celebraçã o assenta na necessidade de simplificar a
tramitaçã o administrativa.322
Ainda no â mbito das exigências do moderno Estado democrá tico de direito,
destaca-se a ideia de concertaçã o323, enquanto mecanismo por via do qual a
Administraçã o Pú blica prossegue os interesses pú blicos, em alternativa à s
tradicionais formas unilaterais324, tendo com isso assegurada a composiçã o da
melhor decisã o possível, ao abrigo dos postulados gerais do Direito
Administrativo. Claro que sã o colocados à concertaçã o alguns limites, porquanto o
poder de decisã o, como tal, sempre caberá à Administraçã o, estamos apenas a falar
de mecanismos mais democrá ticos para obtençã o de uma decisã o325.
No limite, o direito à participaçã o no procedimento nã o deve ser encarado
321
Neste mesmo sentido, mas em relaçã o à notificaçã o dos actos administrativos, Pedro
Gonçalves in Notificaçã o dos administrados (notas sobre a génese, â mbito, sentido e consequências,
de uma imposiçã o constitucional), ab vno ad omnes, nos 75 anos da Coimbra editora, Coimbra
editora, 1998 p 1091-1092.
322
Sobre o tema, Alexandra Leitã o, Contratos interadministrativos, Almedina 2011.
323
“É comum ligar à noçã o de procedimento administrativo uma ideia de princípio de
consenso ou concertaçã o de relaçõ es autoritá rias de poder pú blico. Ainda que nã o seja adequado
exagerar esta linha de força, maxime quando os dados legais nã o sã o inequívocos, ou pelo menos,
tã o inequívocos como noutros ordenamentos – caso da lei italiana do procedimento, que no artigo
11º prevê, a ocorrência dos designados acordos integrativos e substitutivos do acto administrativo,
mesmo quando o procedimento tenha sido impulsionado para a prá tica de um acto desse –, o certo
é que, em vá rias disposiçõ es do CPA já encontramos normas e princípios que, de algum modo,
derivam daquela ideia de concertaçã o ou consenso com os interessados, no exercício de poderes
autoritá rios pela Administraçã o (será , por exemplo, o caso dos contratos administrativos
substitutivos de actos administrativos de revogabilidade dos actos constitutivos de direitos”. Má rio
Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, Joã o Pacheco Amorim, Có digo de Procedimento
Administrativo comentado 2º ediçã o Almedina 2010 p 38-39.
324
Sobre a derrogabilidade da unilateralidade na actividade administrativa, Paulo Otero,
Legalidade e Administraçã o Pú blica, o sentido da vinculaçã o administrativa à juridicidade,
Almedina 2003 p 834-844. 289
como um fim em si mesmo, porquanto ele tem a sua razã o de ser num outro
princípio, o da dignidade da pessoa humana326, que orienta a participaçã o do
indivíduo detentor de direitos e posiçõ es subjectivas, de tal sorte que a tomada de
uma decisã o pela administraçã o, sem que ao cidadã o seja dada a possibilidade de
se exprimir por qualquer forma, será uma decisã o invá lida.327
Hodiernamente, é fá cil notar que as normas produzidas pelos estados ligadas
ao direito privado, ou ao direito pú blico, estã o directa ou indirectamente ligadas ao
procedimento administrativo, pois estes precisam de afinar os mecanismos de se
relacionar com os cidadã os, e, ao mesmo tempo, devem satisfazer as necessidades
colectivas, por via da tomada de decisõ es devidamente antecedidas de uma
sequência de actos e formalidades ajustadas aos problemas levantados.
Portanto, vai-se verificando, ao nível dos vá rios ordenamentos jurídicos, uma
tendência para a escolha de formas de actividade administrativa mais relacionais,
gerando situaçõ es em que se utiliza com maior frequência, por exemplo, a figura do
contrato administrativo, face ao acto, o que contribui para o abandono de alguns
complexos na relaçã o administraçã o e cidadã os. Tais complexos, muitas vezes
conducentes a um tratamento subalternizado do cidadã o face à Administraçã o
Pú blica, estã o hoje completamente ultrapassados, por força dos mais recentes
entendimentos do princípio da legalidade que submete a administraçã o e os
cidadã os à obediência do mesmo tipo de normas, podendo afirmar-se que ambos
estã o numa posiçã o paritá ria328.
O procedimento assume-se como um mecanismo em torno do qual gira toda
a actividade administrativa, exercendo, por conseguinte, um papel instrumental no
quadro das vá rias alternativas que sã o colocadas à administraçã o, no que tange à s
formas de actividade. Esta relevâ ncia e instrumentalidade do procedimento é
levada tã o a sério que a sua inobservâ ncia é passível de sançõ es severas, ao nível
325
Luís Cabral de Moncada, A relaçã o jurídica administrativa – Para um novo paradigma de
compreensã o da actividade, da organizaçã o e do contencioso administrativos, Coimbra editora
2009 p 144-145.
326
O princípio da dignidade da pessoa humana é considerado princípio absoluto que nã o
deve, no uso da técnica da ponderaçã o, ceder perante outros. Robert Alexy, Teoria dos Direitos
Fundamentais, traduçã o de Virgílio Afonso da Silva, Malheiros editores 2006 p111.
327
Janaína Santino, O princípio ob cit. p 430.
328
Pedro Machete Estado… ob cit… p 459-460.
290
das invalidades329 do Direito.
Sobre a importâ ncia da procedimentalizaçã o da actividade administrativa, o
professor Sérvulo Correia afirma o seguinte:

“A procedimentalizaçã o da actividade administrativa corresponde à


necessidade de objectivar a vontade de uma pessoa colectiva pú blica
através de uma sequência de actos e formalidades pré-ordenados e
fixados no termo da qual a vontade dos suportes dos ó rgã os se
despersonalize e combine numa vontade qualitativamente distinta: a da
pessoa colectiva. Por esse modo, reú nem-se as melhores condiçõ es para
a prossecuçã o do interesse pú blico graças à necessidade da intervençã o
de vá rios ó rgã os, do confronto de pareceres, da expressã o e publicaçã o
de motivos, da sujeiçã o a controlos. Fica assim melhor protegido o valor
da imparcialidade, do mesmo passo que se tornam mais difíceis os erros
de perspectiva na aplicaçã o das regras da boa administraçã o.”330

Portanto, o processo decisó rio é enriquecido pela ideia do procedimento, de


tal sorte que este está ao serviço da administraçã o na busca da melhor decisã o aos
olhos do interesse pú blico. O procedimento permite que a administraçã o, antes de
tomar uma decisã o, converse, troque experiências, efectue estudos, etc.331
A par do que já se afirmou, a propó sito da histó ria do procedimento, e para
que se compreenda mais uma vez o contexto actual em aquele é o centro de toda a
actividade administrativa, cumpre apresentar algumas notas sobre as vá rias
geraçõ es de procedimentos332.
Os procedimentos de primeira geraçã o atendem, em exclusivo, a aplicaçã o do
329
Sobre as invalidades, em especial no domínio da contrataçã o Pú blica, Raquel Carvalho, As
invalidades contratuais nos contratos administrativos de solicitaçã o de bens e serviços, Almedina
2010, p 68.
330
Sérvulo Correia Legalidade. ob cit.. p 579.
331
O Procedimento Administrativo facilita a cooperaçã o administrativa. Eberhard Schmidt-
Assmann, Pluralidad de estructuras y funciones de los procedimientos administrativos en el
derecho alemá n, europeo e internacional, p 76.
332
Sobre a matéria, a qual seguimos de perto, Javier Barnes, Tres generaciones de
procedimiento administrativo, in Tendencias actuales del procedimiento administrativo en
Latinoamérica y Europa, editorial Universitaria de Buenos aires, 2011 p 128 ss.
291
Direito, no â mbito de uma administraçã o autoritá ria primariamente virada para o
interesse pú blico que, no entanto, deve ser materializado incondicionalmente,
destacando-se, por exemplo, os pedidos de licença para o exercício de uma
actividade. Por sua vez, os procedimentos de segunda geraçã o estã o ligados ao
Estado Social, que aprendeu as liçõ es com o Estado Liberal e se abriu mais aos
cidadã os, dando origem a outro tipo de postura comportamental, por parte da
administraçã o, efeitos directos sobre o procedimento, tanto é que uma das tó nicas
desta modalidade foi a aprovaçã o de normas regulamentares devidamente
procedimentalizadas. A terceira geraçã o, ligada à época moderna, privilegia
actuaçõ es procedimentais cada vez mais relacionais, porquanto reconhece um
papel activo ao cidadã o que, agora, necessita de interagir com a administraçã o,
interacçã o esta que se coloca, por isso, como condiçã o sem a qual a administraçã o
fica impossibilitada de realizar os seus desígnios.
Por outro lado, e como resulta da pró pria natureza, o procedimento permite
aplicar o direito da melhor maneira possível, pois possibilita planificar e, com isso,
racionalizar os meios a serem usados na marcha rumo à decisã o. Esta marcha
apresenta-se, igualmente, como mecanismo por via do qual a administraçã o
transmite, aos cidadã os, uma imagem de confiança e segurança, na medida em que
mostra, de forma clara e transparente, o caminho a seguir, a linha que serve de
base à sua actuaçã o, estando excluída qualquer actuaçã o empírica.
O procedimento representa, hoje, a histó ria de um acto da administraçã o, o
acto em devir o progredir333. Em nenhum outro momento da actividade
administrativa a satisfaçã o das necessidades pú blicas é colocada em aná lise e no
“laborató rio”, como no procedimento administrativo. A utilizaçã o do instituto
propicia uma melhor satisfaçã o das necessidades colectivas.
Para além do que foi afirmado sobre as razõ es que justificam a utilizaçã o do
procedimento, importa adicionar que é o pró prio interesse pú blico334 que obriga a

333
Fernanda Paula Oliveira e José Eduardo Figueiredo Dias, Noçõ es Fundamentais de Direito
Administrativo 3ª ediçã o Almedina 2013 p 198.
334
Do princípio da prossecuçã o do interesse pú blico decorre a imposiçã o da procura do meio
ó ptimo para concretizar esse interesse, neste sentido, a eficiência da administraçã o pú blica deve
ser considerada um imperativo constitucional. Marta Portocarrero, Modelos de Simplificaçã o
Administrativa, Publicaçõ es Universidade Cató lica,
2922002 p 27.
administraçã o a usar as melhores formas para o alcançar 335. Nestes termos, o
procedimento será o melhor mecanismo para a realizaçã o do interesse pú blico, por
via da vinculaçã o da administraçã o a determinados parâ metros jurídicos336.
A Administraçã o Pú blica, sob pena de violaçã o do dever de boa
administraçã o, deve privilegiar a busca pelo interesse pú blico, destarte nã o basta
prosseguir o interesse pú blico, tem de ser a melhor referência, a luta pelo alcance
do melhor interesse pú blico possível, associado à ideia de perfeiçã o e de
adequaçã o, falando-se, a propó sito, da optimizaçã o das decisõ es administrativas,
tendo como parâ metro os fins da actividade administrativa337.
No plano das relaçõ es entre o poder administrativo e o judicial, o
procedimento permite acautelar certos interesses dos cidadã os, sobretudo quando
nã o existem formas judiciais de os realizar com a eficiência exigida pela natureza
da situaçã o, ou mesmo quando nã o existem meios que, em absoluto, os possam
realizar. Sabendo que, nos ú ltimos tempos, tem aumentado a actuaçã o
administrativa, sob a égide de reserva de poder, e diante das limitaçõ es colocadas
ao poder judicial, urge apostar no procedimento como forma de controlar a
administraçã o, pois aí ela estará inapelavelmente vinculada a padrõ es de domínio
geral e claros ao ponto de as irregularidades serem facilmente perceptíveis338.
Na esteira do Professor Canotilho, tendo em conta a compensaçã o das
insuficiências judiciais, o procedimento permite:
a. Fazer transparecer factos e questõ es, que, de outro modo, nã o se
suscitariam e que passariam jurisdicionalmente despercebidos;
b. O acréscimo de controlo administrativo (ainda nã o independente) nos
casos de menor densidade de controlo jurisdicional, como em sede de
relaçõ es especiais de poder;
c. Observar, logo no procedimento, princípios e regras que um conjunto
jurisdicional ex post dificilmente detectaria, se nã o estivessem já ali
consagrados;

335
Sobre as teorias das formas de actividade administrativa, Eberhard Schmidt-Assmann, La
doctrina de las formas jurídicas de la actividad administrativa, DA 1993 nº 235-236.
336
Pedro Machete, A Audiência ob cit… p 86.
337
Paulo Otelo, O poder… ob cit.. p 640.
338
José Carlos Simõ es Loureiro, Procedimento…
293 ob cit.. p 83.
d. Ao particular, muito antes da decisã o final, litigar pela sua razã o posta
em marcha ou actuar efectivamente.339
Por via do exposto, iremos evidenciar a posiçã o subjectiva que o cidadã o
deverá exercer diante da administraçã o, falando-se a propó sito de uma dimensã o
garantística do procedimento. As garantias dos cidadã os apresentam-se como uma
das facetas do Direito Administrativo e, se o procedimento visa a sua aplicaçã o, nã o
é difícil vislumbrarmos aí uma funçã o garantística340.
O Direito Administrativo, por via das suas normas, concede faculdades e
poderes aos particulares para que estes possam, no â mbito do procedimento
administrativo, exercer posiçõ es subjectivas, ao abrigo de normas procedimentais
que vinculam a administraçã o a seguir determinados caminhos, se quiser efectivar
da melhor maneira, sob pena de invalidade, os princípios da legalidade e da
constitucionalidade.341
O posicionamento do cidadã o, ao nível do procedimento, assenta acima de
tudo na perspectiva de prevenir lesõ es aos seus direitos, que estã o ligados a vá rios
aspectos da sua personalidade. Na dimensã o cronoló gica fala-se, por exemplo, do
direito a participar, que em seguida será responsá vel pelo “surgimento” de outros
direitos fundamentais, entre os quais se destaca, por ter uma dimensã o
instrumental, o direito à informaçã o procedimental.342
A dimensã o instrumental deste direito acentua-se na medida em que surge
como forma privilegiada, ao dispor do cidadã o, para influenciar a decisã o a ser
tomada, por via da transmissã o à administraçã o de elementos que possam
determinar o conteú do da decisã o a ser tomada, fundamentalmente porque ela nã o
é omnisciente, está limitada, daí que se afigure de extrema importâ ncia o contacto
que faz com os cidadã os.343
339
Má rio Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves, Joã o Pacheco Amorim, Có digo… ob cit… p 37.
340
Existem três grandes perspectivas na teoria geral do Direito Administrativo – a da
organizaçã o administrativa, a da actividade administrativa e as garantias dos particulares. Diogo
Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo vol I 2ª ediçã o Almedina, Coimbra 2009 p 591.
341
Má rio Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e Joã o Pacheco Amorim Có digo ob cit… p
36.
342
Sobre o tema e tratado com a profundidade exigida, Raquel Carvalho, o Direito à
informaçã o Administrativa procedimental, Publicaçõ es Universidade Cató lica 1999.
343
Sérvulo Correia, Direito à Informaçã o… 294
ob cit… p 152.
Inerente à natureza do procedimento administrativo, a informaçã o visa, em
primeiro lugar, “proteger a Administraçã o dela mesma ao impedi-la de cair sob
domínio de grupos de interesses ou gerar posiçõ es autoritá rias; serve de
contrapeso à s prerrogativas da Administraçã o; é um instrumento para melhor
proteger os direitos dos cidadã os; facilita o controlo da Administraçã o; a tentaçã o e
o risco constante da arbitrariedade, a inércia e as irresponsabilidades
administrativas”344.
Por fim e como já o afirmá mos, o procedimento administrativo nã o está ,
exclusivamente, ao serviço dos particulares, antes, ele situa-se no meio das
relaçõ es entre administraçã o e cidadã os, de modo a suavizar o contacto entre
ambos, que muitas vezes, e por falta de elementos mediadores, tende a ser
extremamente desequilibrado, com propensã o para subalternizaçã o do cidadã o
detentor de direitos fundamentais345.
Daí que hoje, e na senda do que temos vindo a afirmar, se fale que, na
perspectiva substancial, o procedimento visa a realizaçã o do equilíbrio e de
mediaçã o entre a prossecuçã o do interesse pú blico, em respeito pelos direitos e
interesses dos cidadã os, e interesses privados, o equilíbrio referido está associado
à sua pró pria natureza, assente na ideia do contraditó rio. O tempo ajudou a provar
que mais vale nos preocuparmos com os passos e a histó ria de formaçã o do acto do
que com a sua exteriorizaçã o, porquanto, a partir da aná lise dos passos da sua
formaçã o, poderemos diagnosticar eventuais problemas que se verifiquem no
presente346, tal qual o médico que, antes de passar a receita e traçar o quadro
clínico do paciente, analisa o seu historial. Ora, o procedimento representa com a
exactidã o prevista tal preocupaçã o. Neste sentido, alguns autores colocam a tó nica
sobre a instruçã o, quando se referem aos momentos mais importantes do

344
Raquel Carvalho, o Direito… ob cit… p149.
345
Sobre as vantagens do Procedimento para a administraçã o pú blica, colocando a nota nas
ideias de eficiência e racionalidade, Mariana Portocarrero, Direito à informaçã o ob cit… p 129.
346
“O correcto entendimento do procedimento e o conhecimento das suas vá rias fases, bem
como da funçã o que cada uma desempenha dentro dele, sã o fundamentais, por vezes, para se
compreender a invalidade do acto principal. É que esta pode ser determinada pela incorrecta
tramitaçã o dos anos do procedimento, gerando-se, com isso, vícios de procedimento ou de
conteú do de acto principal”. Fernanda Paula Oliveira
295 e José Eduardo Figueiredo Dias, ob cit… p 197.
procedimento administrativo.347
O tratamento e os estudos das matérias relativas à s posiçõ es subjectivas, que
podem ser exercidas pelos cidadã os face à Administraçã o, estã o na base das
pesquisas acerca das relaçõ es jurídico-administrativas que representam o á pice do
estudo do procedimento e do seu consequente estatuto de figura central do novo
Direito Administrativo, ao ponto de se afirmar que a relaçã o jurídico-
administrativa se situa no primeiro plano, no que ao processo decisó rio diz
respeito, servindo num outro prisma para garantir a aproximaçã o do cidadã o ao
Direito Administrativo. Neste processo, as posiçõ es das partes sã o relativizadas, no
sentido de espelhar a dimensã o paritá ria que se pretende instituir nas relaçõ es
entre Administraçã o e cidadã o348.
O procedimento administrativo é transversal à Administraçã o e ao Estado,
sendo utilizado por outros poderes (legislativo e o judicial) aquando da sua
actuaçã o, nas vestes de entidades administrativas e nã o só . Tal é assim porque se
percebeu que, mesmo nestes sectores, em que as entidades em questã o deveriam
estar sujeitos a outros regimes, o direito administrativo e, consequentemente, o
procedimento administrativo revelaram-se as melhores vias para que estes ó rgã os
materializem os interesses pú blicos, intrínsecos à sua natureza349.
Apesar de tudo, ainda existem correntes que apontam, com bastante
veemência argumentativa, algumas desvantagens resultantes da utilizaçã o da
figura do procedimento administrativo pela Administraçã o Pú blica350.
Argumentos como:
a) O procedimento normativo escrito nã o permite a flexibilidade e a
eficiência da actividade administrativa;

347
Neste sentido e sobre o que apresentamos neste pará grafo, Luís Filipe Colaço Antunes, o
Procedimento Administrativo de avaliaçã o de impacto ambiental, Almedina 1998 p 116ss.
348
Eberhard Schmidt-Afimann, La doctrina… ob cit… p 26.
349
Entre nó s e reconhecendo a aplicaçã o do Procedimento Administrativo na actividade
parlamentar, Camilo Gomes Buange, O exercício do poder decisó rio em matéria administrativa na
Assembleia Nacional de Angola, um imperativo de normalizaçã o? Assembleia Nacional 2012 p 106
ss.
350
Nuno J. Vasconcelos Alburquerque Sousa, Noçõ es de Direito Administrativo, Coimbra
editora 2011 p 289. 296
b) Nã o é conveniente importar para a administraçã o os excessos formalistas
do processo judicial;
c) Para os funcioná rios interessa mais a observâ ncia do procedimento do
que o controlo dos resultados.
Com efeito, podem ser avançadas outras críticas contra a utilizaçã o da figura
do procedimento administrativo, o que é perfeitamente normal; entretanto, nã o
podemos esquecer que, modernamente, nã o existe alternativa à utilizaçã o do
procedimento. Este, desde que convenientemente implementado, serve
naturalmente para a realizaçã o das finalidades da Administraçã o Pú blica e do
Direito Administrativo.
O moderno procedimento assenta em novos princípios, donde se destacam a
flexibilidade em nome da eficiência, pois sã o as normas procedimentais que, em
atençã o ao princípio da eficiência, determinam que (em certas circunstâ ncias) a
administraçã o atenue a rigidez procedimental, ou seja, receba uma habilitaçã o
normativa para que, em funçã o do contexto, adopte a melhor decisã o à luz do
mérito. O estudo da discricionariedade instrutó ria é prova de que, mesmo no
procedimento escrito, nem todo o ritual está rigidamente consagrado. Ademais, a
reserva da administraçã o351 confere a esta o poder para regulaçã o e adopçã o de
comportamentos que achar melhor à luz do interesse pú blico, dentro do seu
espaço de actuaçã o constitucionalmente atribuído.
A eficiência e eficá cia apresentam-se hoje com uma dimensã o jurídica,
associadas e como materializadoras do princípio do Estado de Direito352. Em parte,
estes contornos (relevâ ncia atribuída aos dois princípios) resultam de um
princípio, essencialmente econó mico, que apregoa a escassez dos recursos
econó micos face à s necessidades que já se sabe que sã o ilimitadas.
O segundo ponto pode, igualmente, ser postergado, pois existem diferenças
sonantes entre os tribunais e a administraçã o, porquanto a sua criaçã o está
associada a ló gicas diferentes. Por outro lado, a tendência actual é para a reduçã o
dos excessos e adopçã o de modelos cada vez mais simplificados, até porque se
assiste, um pouco por todo mundo, a um movimento de desintervençã o da
351
Sobre o tema e seus contornos em especial no Direito Alemã o, Luís Cabral de Moncada, Lei
e Regulamento, Coimbra editora 2002 p 369ss.
352
Marta Portocarrero Modelos… ob cit… p297
25.
administraçã o em determinados sectores, com particular realce para o
procedimento, evidenciando reflexos directos na reduçã o dos prazos e
formalidades impostas aos particulares, daí que a crítica referida nã o deve ser
acolhida.
Tanto é que hoje se discute, com muita acutilâ ncia, a questã o da influência do
tempo, dos prazos e consequências decorrentes da sua preclusã o353 no Direito
Administrativo. Neste domínio, a questã o principal prende-se com o facto de se
saber a duraçã o do procedimento, para que ele seja considerado justo. É neste

353
“O aparente desinteresse da doutrina contrasta com o nú mero crescente de casos em que
o legislador recorre à figura da caducidade para regular matérias de direito administrativo. A nossa
disciplina é propensa à fixaçã o de prazos de caducidade e à atribuiçã o de efeitos aná logos a outros
factos para lá do decurso do tempo. As circunstâ ncias da actuaçã o administrativa, em especial
quando sujeitas à aceleraçã o de ritmos pró pria das sociedades modernas, reforçam as exigências de
rá pida estabilizaçã o das situaçõ es jurídicas e colocam tensõ es crescentes à actuaçã o de todos os
sujeitos, na perspectiva de uma aquisiçã o expedita de certezas jurídicas. Ora, como veremos, no
direito administrativo as situaçõ es de caducidade – ou como tal designadas – revelam nã o apenas
um crescimento quantitativo, mas também uma progressiva diversidade, surgindo em contextos
muito variados e cada vez mais distantes do paradigma civilístico da preclusã o de um direito pelo
seu nã o exercício tempestivo. Contextos, porventura, demasiado variados: a expansã o da
caducidade nas á reas administrativas tem sido acompanhada por uma multiplicaçã o de
configuraçõ es e de regimes jurídicos, que uma doutrina pouco atenta nã o tem conseguido tratar
eficazmente. Existe, porém, a consciência crescente de que a caducidade jurídico-administrativa é
uma realidade plural, envolvendo realidades que exigem um tratamento dogmá tico diverso – e
pressente-se até que nem tudo será caducidade, que sob uma designaçã o unitá ria se escondem
figuras heterogéneas. Em jeito de conclusã o antecipada, pode dizer-se que a situaçã o dogmá tica
actual surge lapidarmente retratada na frase pouco tranquilizadora de Alessandra Sandulli: ― O
termo caducidade é utilizado no direito administrativo para designar, com duvidoso rigor
hermenêutico, uma série nã o homogénea de fenó menos, nã o enquadrá veis numa categoria
tipoló gica unitá ria”. Luís Fá brica Caducidade no Direito Administrativo, V encontro de professores
de Direito Pú blico, ICJP e FDUL 2012 ebook, p 65-66. Sobre a temá tica, “Desde mi punto de vista,
parece difícil poner en duda que la vigente regulació n de la caducidad procedimental (no, desde
luego, las interpretaciones de que ha sido objeto) se inspira primariamente en el valor de la
protecció n del ciudadano frente a la actuació n administrativa. Aludir só lo a la seguridad jurídica me
parece, sin embargo, poco expresivo. A mi entender, la razó n ú ltima de la caducidad se encuentra
en un indeseable efecto psicoló gico, bien conocido de muchos ciudadanos: me refiero a la eficacia
intrínsecamente punitiva que posee la mera tramitació n de procedimientos pú blicos de resultado
potencialmente gravoso, antes de su resolució n,298
y, por tanto, al imperativo de fijar al sufrimiento
sentido que o Professor Canotilho indica três ideias basilares relativas à dicotomia
procedimento vs tempo: a duraçã o de um procedimento é um factor de localizaçã o
de actividades econó micas; a duraçã o do procedimento é um método de
internacionalizaçã o dos custos sociais; a duraçã o do procedimento provoca custos
sociais de oportunidade, pelo que a tendência moderna é sujeitar o procedimento
administrativo a prazos fixos e cada vez mais reduzidos – sem prejuízo das
alteraçõ es determinadas pela natureza do assunto em causa – cuja violaçã o tem

que infligen un límite temporal terminante. É sta es una realidad a la que la Administració n suele ser
insensible (no en todos los casos, desde luego), pero que es evidente e insoslayable: la tramitació n
de determinados procedimientos de resultado potencialmente desfavorable provoca en sus
destinatarios un nivel de desasosiego muy superior al que genera su propia resolució n, con
independencia del contenido efectivo de ésta, meramente por la inestabilidad emocional (por no
hablar de la econó mica) que produce el factor incertidumbre. Las personas que trabajan en el torno
de la justicia penal conocen a la perfecció n este mecanismo, al que se conoce con la cínica expresió n
de «pena de banquillo». La caducidad de los procedimientos es, justamente, la técnica encaminada
derechamente a luchar contra esta «pena de banquillo administrativo» que, nos guste o no, es tan
real como cruel; algo que todos los servidores pú blicos saben, pero a lo que es sumamente difícil
renunciar, por el poder y el temor reverencial que proporcionan. Pero esta forma de punició n no es
admisible má s que con límites estrictos: la Administració n está en su derecho, por motivos de
observancia de la legalidad, de perturbar la vida de un ciudadano teniendo pendiente respecto de él
un procedimiento potencialmente desfavorable, pero só lo durante un tiempo fijo, predeterminado e
improrrogable, transcurrido el cual el procedimiento debe extinguirse. En términos coloquiales, la
caducidad se funda en el sagrado derecho a no ser molestado má s que durante un tiempo concreto,
predeterminado e improrrogable. No otra es la razó n de ser de esta técnica, a la luz de la cual debe
interpretarse y aplicarse. Por supuesto, la caducidad tiene también algo que ver con los valores
propios de la actuació n administrativa, pero éstos poseen un cará cter secundario, accesorio o
meramente derivado del que antes mencioné. La caducidad es también un acicate a la actuació n
rá pida de los servicios administrativos, a su «productividad» en términos de despacho de
expedientes y, por lo mismo, a la inmediatividad y actualidad de tal actuació n, que no es lícito
aplazar tramitando procedimientos inacabables a los que cada día convierte un poco má s en
historia. Pero tal acicate constituye meramente un efecto indirecto de la caducidad; no, desde luego,
su razó n de ser. La caducidad está al servicio de los ciudadanos afectados por procedimientos
desfavorables, no de la actuació n expedita de la Administració n”. Juan Alfonso Santamaria Pastor,
Caducidad del Procedimiento, in Revista de Administració n Pú blica nº 168 2005, p 16-17. Ainda
sobre a temá tica da influência do tempo com particular enfoque para o contencioso administrativo,
Isabel Celeste Fonseca, Processo temporalmente 299
justo e urgência, Coimbra editora 2009.
consequências severas. 354
Sobre a terceira crítica, cumpre-nos afirmar o seguinte: o raciocínio que
temos vindo a defender, acerca do espaço que o procedimento assume no contexto
da nova administraçã o, assenta em vá rios vectores, donde o mais importante é o
homem. Assim, a questã o ora levantada pode ser, facilmente, contornada se houver
uma aposta nos recursos humanos, pois é da sua preparaçã o que depende o
sucesso ou insucesso das premissas apresentadas. O funcioná rio tem de estar
preocupado com os dois elementos355: executar as normas e exigências
procedimentais fugindo delas quando necessá rio, desde que legalmente habilitado
para o efeito, e com os resultados da decisã o, intrinsecamente ligados à forma
como o procedimento foi conduzido. O resultado deverá (porque é pú blico)
merecer todo o tipo de avaliaçõ es. Sobre a administraçã o impende o dever de
fundamentaçã o das suas opçõ es, como elemento legitimador e que concorre para a
sua anuência por parte dos destinatá rios. Por outro lado, o resultado deve ser o
melhor possível à luz do interesse pú blico, para tal, afigura-se necessá rio seguir o
procedimento naturalmente virado para aquele fim, o que, por si só , já é bastante
elucidativo acerca da indissociá vel ligaçã o entre o procedimento e seus resultados.
Nã o é em vã o que, em determinados sectores da administraçã o, se premeiam os
melhores funcioná rios, cujos elementos para a sua avaliaçã o sã o obtidos também
em funçã o dos resultados dos procedimentos em que estes estejam envolvidos.
A despeito das críticas apresentadas para afastar a utilidade e centralidade
do procedimento administrativo para a Administraçã o Pú blica, principalmente
aquelas que afirmam nã o haver espaço de manobra para o funcioná rio pú blico que
está vinculado aos passos legalmente estabelecidos e que, portanto, nã o lhe resta
outra alternativa senã o seguir cegamente sem reflectir, tal qual robot nas grandes
linhas de produção habitualmente rotineiros e mecâ nicos, pois só tem de usar os
automatismos, nã o procedem, pois é a pró pria dinâ mica administrativa que obriga
a administraçã o a decidir nã o apenas de acordo com a lei, mas a procurar as
soluçõ es que melhor se adeqú em à realidade, gerando assim resultados positivos.
Isso nã o é possível se houver uma fixaçã o absoluta à s normas jurídicas, sem
atender ao contexto em que elas se vã o aplicar. É nestes termos que se discutem
354
Marta Portocarrero, Modelos… ob cit.. p 37-38
355
A formaçã o para tal é sempre possível. 300
conceitos como reserva de administraçã o356, discricionariedade, planificaçã o,
instruçã o, regulamentaçã o, etc. que, por si só , evidenciam a dimensã o criadora da
Administraçã o Pú blica e traduzem fielmente a sua capacidade para responder,
contextualmente, aos problemas que diariamente lhe sã o colocados.

3. A CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DOS PROCEDIMENTOS AO


NÍVEL DA LEI DOS CONTRATOS PÚBLICOS

Quando submetemos a tramitaçã o dos contratos Pú blicos a um regime


procedimental específico é porque estamos convictos que este é o que melhor
realiza os valores inerentes à contrataçã o Pú blica. Esta opçã o tem, em si, a ideia de
realizaçã o do melhor interesse pú blico357.
Como parte mais importante do processo de contrataçã o Pú blica, o artigo 22º
da Lei 9/16, de 16 de Junho, Lei dos Contratos Pú blicos, adiante LCP, consagra 4
tipos de procedimentos, a saber:
i. Concurso Pú blico;
ii. Concurso Limitado por prévia qualificaçã o;
iii. Concurso Limitado por convite;
iv. Contrataçã o simplificada.

Em termos gerais, entre os vá rios procedimentos, podemos avançar como


elementos distintivos os seguintes:
a) No concurso pú blico, qualquer interessado pode participar como
concorrente, o seu regime está consagrado nos artigos 69º a 116º;
b) No concurso limitado por prévia qualificaçã o, qualquer interessado pode
participar como candidato, sendo convidados para apresentar proposta
os candidatos seleccionados na sequência da avaliaçã o da sua capacidade
técnica e financeira;
356
Sobre as teorias de negaçã o da reserva de administraçã o, Pedro Moniz Lopes,
Derrotabilidade normativa e normas administrativas, Tese de Doutoramento, Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa 2012, p 552ss.
357
Afonso D’Oliveira Martins, para um conceito de Contrato Pú blico, Estudos em Homenagem
ao Professor Doutor Inocêncio Galvã o Telles, Vol.301
V, Almedina 2003 p 489.
c) No concurso limitado por convite, a entidade contratante convida três ou
mais pessoas, singulares ou colectivas, a apresentar uma proposta com
base no conhecimento da aptidã o e da credibilidade que a esta
reconhece, para a execuçã o do contrato pretendido, ou com o recurso ao
Portal da Contrataçã o Pú blica, que contém uma base de dados de
fornecedores cadastrados e certificados;
d) Na contrataçã o simplificada, convida-se uma pessoa singular ou colectiva
para apresentar proposta.

Para além dos aspectos acima referidos, a LCP consagra o critério do valor
como elemento para a escolha do procedimento a ser adoptado. Tendencialmente,
os contratos com valores mais elevados deverã o seguir o regime do concurso
pú blico ou concurso limitado por prévia qualificaçã o. Entretanto, o nº 4 do artigo
24º permite que seja adoptado o concurso pú blico ou concurso limitado por prévia
qualificaçã o, quando o valor do contrato for inferior aos limites estabelecidos
legalmente, atendendo ao conteú do do nº 1 do artigo 24º.
O concurso pú blico deve ser o procedimento a adoptar nas situaçõ es de
contratos com valores elevados, cuja utilizaçã o deve ser devidamente
fundamentada e justificada (nã o que nos outros procedimentos nã o sejam),
portanto, deve haver maiores garantias na sua utilizaçã o. Se o concurso Pú bico
pode ser utilizado em qualquer tipo de contrato, independentemente do valor, nã o
faz sentido que, neste caso, continuemos a falar de valor para a determinaçã o da
escolha do procedimento, basta consagrar um regime regra.
O valor do contrato nã o pode ser um critério, quando se discute a escolha do
procedimento, devemos sim atender, por exemplo, à complexidade do contrato a
ser celebrado ou, por exemplo, o impacto para o interesse pú blico. A este nível,
podíamos ter na nossa legislaçã o um regime geral do concurso pú blico que nã o
atende ao valor do contrato, um regime regra rígido, que seria sempre utilizado;
entretanto, em algumas situaçõ es taxativamente consagradas, poderíamos utilizar
outros procedimentos que, no caso, deveriam ser a excepçã o. Nã o se deveria
atribuir à entidade Pú blica contratante poder discricioná rio para escolher entre o
concurso Pú blico e o concurso limitado por prévia qualificaçã o, pois este poder
302
nem sempre é bem utilizado e o controlo efectuado à fundamentaçã o utilizada para
o efeito inexiste. Havendo, por exemplo, razõ es ponderosas para adopçã o do
regime do concurso Pú blico, as entidades envolvidas seguem o concurso limitado
por prévia qualificaçã o, deturpando deste modo as razõ es que justificam a
consagraçã o do concurso pú blico. A selecçã o prévia efectuada é, muitas vezes,
baseada em critérios subjectivos aparentemente objectivos. Hoje, por exemplo,
como é que teremos a certeza que a capacidade técnica de uma empresa foi bem
medida? E a sua capacidade financeira? Pela carteira de negó cios? Pelo nível de
investimentos? Muitas questõ es podem ser levantadas a este respeito. Pensemos
no exemplo do recente concurso Pú blico para escolha da quarta operadora, no qual
se solicitou a uma das empresas o balanço e demonstraçã o de resultados dos
ú ltimos três anos, mas como ela nã o tinha esse tempo de existência, nã o podia
apresentar o que lhe fora pedido. Presume-se que a solicitaçã o foi feita para avaliar
a capacidade financeira da empresa, ora podemos ter empresas com apenas 1 ano
ou 6 meses de existência e com uma carteira de negó cios superior a empresas com
décadas de actuaçã o no mercado, por isso, a questã o da capacidade financeira é
muito subjectiva.
A formaçã o do contrato, para além da escolha do co-contratante, engloba
necessariamente um conjunto de actos e de formalidades, os actos principais e os
acessó rios. Durante a formaçã o e na perspectiva do procedimento, existem sançõ es
aplicá veis à inobservâ ncia do “ritual” legalmente imposto. Com isto, importa
referir que a LCP, mais uma vez e na perspectiva do que vimos apresentando,
ignora a importâ ncia do procedimento Administrativo, ao nível da Contrataçã o
Pú blica, na medida em que nã o consagra um regime pró prio aplicá vel à s
ilegalidades ocorridas na fase de formaçã o dos contratos. Contra este argumento
poder-se-á dizer que sã o aplicá veis, à fase de formaçã o do contrato, as regras
gerais do procedimento ou as regras consagradas na parte referente à execuçã o
(invalidades). Mas nã o podemos esquecer que a procedimentalizaçã o na
contrataçã o pú blica atende a aspectos muito específicos, e que nã o encontram
acolhimento nem protecçã o ao nível das regras procedimentais gerais. Basta
pensarmos no vício aplicá vel à escolha indevida do procedimento contratual, em
princípio, e se pensarmos que a escolha, como tal, resulta de um acto
303
administrativo, podemos entã o sancionar a ilegalidade com uma das formas de
invalidade. Mas há aqui uma particularidade, a sançã o a aplicar deve ser agravada
quanto mais distante a parte se afastar do procedimento devido, ora, é uma
questã o que nã o deve ser tratada por uma regra geral, mas sim num regime
especial.358 As invalidades ocorridas na escolha do procedimento, se forem graves,
poderã o, inclusive, determinar a invalidade do contrato. O mesmo pode acontecer
com alguns documentos exigidos no concurso, situaçã o que nos levará a distinguir
entre as questõ es estritamente ligadas ao procedimento, as quais sã o igualmente
fontes de invalidades derivadas, das situaçõ es relativas aos documentos do
concurso, que podem também gerar invalidades derivadas (as ligadas ao programa
do concurso, por exemplo). Neste domínio, temos ainda de destacar as invalidades
ligadas ao pró prio contrato, ou as que estiverem ligadas ao caderno de encargos. 359
Podemos, nesta senda, apresentar um conjunto de exemplos que, de facto,
evidenciam a importâ ncia da consagraçã o de um regime aplicá vel à violaçã o das
regras procedimentais, donde se destaca a falta de acta, que pode equivaler à falta
de procedimento e, nesse sentido, será geradora de nulidade. Mas quem no-lo diz?
Temos de recorrer a interpretaçõ es muito arriscadas do regime consagrado na LCP
ou, ainda, ao regime consagrado no Decreto-lei 16 A/95.
Com efeito, podemos avançar a questã o de vícios ligados à composiçã o das
comissõ es de avaliaçã o; por exemplo, a indicaçã o da esposa de um dos candidatos
como presidente da comissã o afigura-se, desde logo, como violadora das regras
sobre imparcialidade administrativa que, em caso de insistência, pode gerar
invalidade da indicaçã o e de todo o procedimento subsequente360. Esta questã o
seria resolvida se tivéssemos, ao nível da LCP, um regime especificamente
aplicá vel aos vícios procedimentais. Nã o temos sançõ es especificamente aplicadas
à falta de audiência prévia, o que nos obriga a recorrer ao regime geral que, em
funçã o do seu conteú do, nã o se coaduna aos desígnios do moderno Direito
Administrativo de matriz personalista.

358
Raquel Carvalho, As invalidades contratuais nos contratos Administrativos de solicitaçã o
de bens e serviços, Almedina 2010 p 180.
359
Raquel Carvalho …ob cit… p 209.
360
Alexandra Leitã o, A protecçã o judicial dos terceiros nos contratos da Administraçã o
Pú blica, Almedina 2002 p 210. 304
Há , ainda, um problema ligado à formaçã o dos contratos pú blicos que
cumpre analisar, no presente estudo, relacionado com os critérios materiais. Tudo
começa com a consagraçã o do procedimento simplificado, que pode ser utilizado
se o valor do contrato corresponder ao exigido legalmente, e até aqui parece nã o
haver problema. A seguir, o artigo 26º consagra a regra segundo a qual o
procedimento simplificado pode ser aplicado independentemente do valor, neste
sentido, de nada adianta limitar a utilizaçã o desta forma de procedimento ao valor,
tal como faz o nº 3 do artigo 24º da LCP. Para este tipo de procedimento deveria
valer, apenas, o critério material; deve ser o contexto a determinar a sua escolha e
nã o o valor, pois se estivermos diante de valores superiores ao que consta da
tabela anexa, a parte, desde que fundamente com uma das alíneas do artigo 27º,
pode usar a contrataçã o simplificada. Apenas por recurso à interpretaçã o
sistemá tica se conclui que o conteú do do artigo 27º dever ser aplicado em
simultâ neo com o dos artigos que se seguem, ou seja, qualquer que seja o valor do
contrato, a entidade competente para contratar pode usar a contrataçã o
simplificada, mas deve fundamentar tal escolha num dos critérios materiais. Os
critérios materiais que, em algumas circunstâ ncias, determinam a celebraçã o de
contratos, sem atender ao seu valor, aparecem consagrados, de forma muito
abstracta, assemelhando-se a verdadeiros conceitos indeterminados que, muitas
vezes, facilitam a sua utilizaçã o fraudulenta. Estes critérios só teriam razã o de ser
se, no nosso ordenamento jurídico, fosse possível impugnar actos discricioná rios,
inclusivamente as interpretaçõ es feitas pelos ó rgã os da Administraçã o, pois ali
todos os enquadramentos mal feitos seriam, facilmente, detectá veis e sindicá veis
pelas partes.

Duas notas devem ser destacadas nesta matéria, nã o obstante os critérios se


colocarem de modo cumulativo:
a) A al. a) do artigo 27º faz referência aos prazos, ou seja, esta linha assenta
na ideia de impossibilidade de realizaçã o do concurso dentro dos prazos
previstos em outros procedimentos. Entendemos que, para evitar a
proliferaçã o de conceitos indeterminados cujo controlo é difícil, mesmo
ao nível do concurso pú blico, deveríamos ter prazos mais reduzidos, para
305
atender a estas particularidades. Nã o precisamos de ter concursos
pú blicos com prazos de realizaçã o muito alargados. Por outro lado, nada
obsta que se crie um regime de concurso pú blico urgente;
b) A al. b), por exemplo, faz referência ao facto de a empresa ser a ú nica a
prestar serviços no mercado, e a grande questã o que se coloca é: Como é
que a entidade sabe que a empresa X é a ú nica, se ele nã o explorou o
mercado? Nem se ela nã o concedeu oportunidades a outras entidades?
Cremos que, para estes casos, o melhor seria abrir um concurso pú blico
e, se nenhuma empresa se candidatasse, aí já faria sentido a conclusã o da
inexistência de outras empresas no mercado.
Os pontos avançados demonstram a inconveniência da utilizaçã o dos
critérios materiais no domínio da contrataçã o Pú blica que, em funçã o do nosso
contexto, nossa histó ria e cultura, devem ser erradicados ou a sua utilizaçã o estar
sujeita a vá rias formas de controlo e sempre aberta à possibilidade de impugnaçã o
judicial.
A Administraçã o Pú blica, no seu dia-a-dia, deve materializar a lei e demais
regras que orientam a sua actividade. Esta liberdade é extensível ao domínio da
contrataçã o Pú blica e, dentro dele, à escolha do tipo de procedimento a ser
adoptado. O poder discricioná rio é conferido pelo direito para que a Administraçã o
concretize as normas, tendo sempre em atençã o o interesse Pú blico, o que exigirá
uma fundamentaçã o da escolha feita por esta. Entretanto, nã o nos devemos
esquecer que existem vá rias formas de concretizar o interesse Pú blico, com efeito,
a ponderaçã o absoluta feita pelo legislador, segundo a qual devemos usar nas
situaçõ es de urgência361 (por exemplo o critério material), nã o é dos melhores,
porquanto nem sempre a urgência, ou outro requisito, será a forma mais adequada
de concretizar e realizar o interesse Pú blico. Mesmo em situaçõ es de urgência,
poderemos encontrar formas de o materializar, cumprindo regras procedimentais
que nã o a contrataçã o simplificada por recurso a critérios materiais. Se existir
alguma calamidade e houver necessidade de adoptar um procedimento encurtado
ou simplificado, que atenda à urgência na contrataçã o, podemos sempre ter um
Concurso Pú blico, com prazos encurtados. Nã o pretendemos, com esta abordagem,
361
A Lei estabelece outros requisitos para a utilizaçã o da contrataçã o simplificada,
independentemente do valor. 306
diabolizar a utilizaçã o da contrataçã o simplificada por recurso a critérios
materiais, pretendemos, apenas, passar a ideia segundo a qual existem alternativas
à utilizaçã o deste procedimento, que deve ser, somente, utilizado em situaçõ es
muito concretas e sujeitas a uma fundamentaçã o rigorosa, por parte do ó rgã o que
a utiliza.
O tipo de procedimento, agora analisado, consagra algumas fases,
nomeadamente o caderno de encargos e o convite, nos termos da al. d) nº 1 do
artigo 44º e nº 3 do artigo 46º da LCP. A verdade é que, na prá tica, as instituiçõ es
nã o cumprem o estabelecido nos artigos acima referidos, porquanto nã o estã o
sujeitas a nenhuma fiscalizaçã o externa. Na maior parte dos casos, a entidade
Pú blica contratante notifica a instituiçã o prestadora de serviço e celebra com ela o
contrato sem qualquer outra formalidade. Com isso, deixamos de lado o valor
concorrência, enquanto pilar da contrataçã o Pú blica. Se fosse elaborado o caderno
de encargos, saberíamos quais as regras que iriam presidir à execuçã o do contrato
e que tipo de elementos justificaram a escolha desta ou daquela entidade.
As vá rias influências — os “amiguismos” — poderã o ser afastados se
sujeitarmos as contrataçõ es a um conjunto de procedimentos e, nestes, houver
verdadeira publicidade e concorrência. Os escolhidos poderã o ser entidades que
estejam fora do circuito de interesses e que nã o tenham qualquer ligaçã o com
entidades políticas.362
A contrataçã o Pú blica está , inteiramente, associada à ideia de integridade,
lisura, imparcialidade, probidade, entre outros valores que devem ser realizados,
incondicionalmente, mesmo que a sua concretizaçã o implique ineficiência e
ineficá cia. Contudo, os referidos valores permitem a intervençã o dos cidadã os e a
publicidade confere-lhes, por exemplo, a possibilidade de denunciarem os
eventuais atropelos à s regras jurídicas. 363
Para formaçã o dos contratos assume grande relevo o trabalho realizado pela
comissã o de avaliaçã o, que conduz todo o processo de formaçã o dos contratos
pú blicos e influencia na determinaçã o da entidade a ser contratada. Com a
indicaçã o da comissã o de avaliaçã o pretende-se, entre outros aspectos, que nã o
362
Miguel Assis Raimundo, A Formaçã o dos Contratos Pú blicos, uma concorrência ajustada
ao interesse Pú blico, aafdl 2013 p 355.
363
Miguel Assis Raimundo, A formaçã o… ob cit… p 356
307
haja influência directa da entidade contratante no processo de escolha, mas uma
separaçã o entre a entidade que decide contratar e a entidade que conduz o
procedimento tendente à contrataçã o. Daí a necessidade de sujeiçã o a um conjunto
de regras, deveres jurídicos e nã o só . De qualquer forma, a realizaçã o dos valores
da imparcialidade, lisura e honestidade sairã o mais reforçados se forem instituídas
algumas garantias. Uma delas é a da remuneraçã o dos membros que integram as
comissõ es de avaliaçã o. Revogado o regime das senhas de presença, hoje nã o há
qualquer subsídio a atribuir aos membros das comissõ es de avaliaçã o, o que
dificulta o trabalho da entidade contratante, porquanto os funcioná rios com
potencial nã o demonstram motivaçã o para a integrar. Além do mais, em alguns
ó rgã os pú blicos, o trabalho que se realiza em sede da comissã o de avaliaçã o nã o
serve para efeitos de avaliaçã o de desempenho. Como resultado, as entidades
contratantes sã o obrigadas a nomear sempre as mesmas pessoas, as que estã o
disponíveis para fazerem parte da comissã o de avaliaçã o.
Apesar do avanço que esta Lei apresenta, no que à regulaçã o da impugnaçã o
diz respeito, ela ainda mantém alguns indícios do Direito Administrativo clá ssico,
na medida em que, no nº 3 do artigo 15º da LCP, estabelece a obrigatoriedade da
impugnaçã o administrativa, porquanto utiliza a expressã o “têm cará cter
obrigató rio”. As partes sã o obrigadas a apresentar reclamaçõ es durante o acto
pú blico que, neste caso concreto, funciona como condiçã o para a impugnaçã o
contenciosa, pelo menos parece ser a ú nica consequência prá tica da consagraçã o
da regra da obrigatoriedade da reclamaçã o.
Parece-nos que a LCP tenta ressuscitar o fantasma do acto definitivo e
executó rio como pressuposto de impugnaçã o judicial do acto Administrativo.
A discussã o central incide sobre a questã o da definitividade 364 e

364
“Para Rogério Soares a nã o definitividade é uma situaçã o do acto, nã o a qualidade do acto,
nem a natureza do acto. Um acto definitivo é um acto que se encontra temporariamente numa
posiçã o precá ria, mas produz efeitos como outro qualquer acto administrativo. Se nã o for
administrativamente impugnado pela via hierá rquica necessá ria, ao cabo do respectivo prazo
passará a definitivo. Sendo-o entã o, a definitividade só se obterá pela decisã o do superior
hierá rquico. O que torna irrecorrível o acto nã o definitivo é a simples circunstâ ncia de nã o ser acto
administrativo”. José Câ ndido de Pinho, Breve ensaio sobre a competência hierá rquica, Almedina
2000, p 48-49. 308
executoriedade365, enquanto pressupostos para a impugnaçã o de actos
administrativos, pois, segundo a doutrina dominante, o acesso é garantido
constitucionalmente e a regulaçã o adoptada viola directamente o conteú do
daquele direito fundamental366. Algumas questõ es se levantam e estã o por detrá s
da consagraçã o de definitividade e executoriedade, como requisito para a
impugnaçã o contenciosa dos actos administrativos. Um dos argumentos usados é o
facto da inexistência deste “filtro” vir a fazer com que os cidadã os acedessem
directamente aos tribunais. Isso iria impugnar qualquer tipo de acto, muitos dos
quais encontrariam resoluçã o no seio da pró pria administraçã o, com os cidadã os,
por via das garantias administrativas, a provocarem a reapreciaçã o dos actos por
parte dos ó rgã os competentes, ao invés de recorrerem aos tribunais que, muitas
vezes, nã o teriam meios para responder, em tempo ú til, à s vá rias solicitaçõ es,
pondo em causa a eficiência da sua actuaçã o.367 Por outro lado, defende-se, ainda, a
total liberdade do legislador para concretizar determinados imperativos
consagrados na Constituiçã o, definindo, inclusive, as condiçõ es para aceder aos
tribunais, e nã o deveria ser a Constituiçã o a fazê-lo.368 Para além do que já se
afirmou, pretende-se conferir, ao superior hierá rquico má ximo, a possibilidade de
se pronunciar sobre o conteú do de um pedido apresentado pelo cidadã o, antes que
este recorra aos tribunais, pois, em princípio, ele é a entidade que melhor domina o
trabalho e que está tecnicamente mais preparado para o efeito. E na eventualidade
de o acto vir a ser impugnado judicialmente, será ele quem irá responder,
enquanto superior hierá rquico, por tais actos369.
Em parte, a teoria da definitividade e executoriedade370 assenta na
inexistência da separaçã o entre administraçã o e tribunais, encarando estes como
365
Sobre o acto administrativo definitivo e executó rio em reflexõ es pioneiras, Marcello
Caetano, Manual de Direito Administrativo volume I, Almedina reimpressã o da 10ª ediçã o, 2010 p
463-464.
366
Ideias críticas sobre o acto definitivo e executó rio, as quais sufragamos, Vasco Pereira da
Silva, Em busca…ob cit…p 629 ss.
367
Freitas do Amaral, Apreciaçã o da dissertaçã o de doutoramento do Mestre Vasco Pereira
da Silva, “Em busca do acto administrativo perdido”, Direito e justiça, Revista da Faculdade de
Direito da Universidade Cató lica portuguesa, volume X 1996 Tomo 2 p 274.
368
Freitas do Amaral, Apreciaçã o da dissertaçã o de doutoramento…ob cit…p 274.
369
Neste sentido, Rogério Soares, Direito Administrativo…ob
309 cit..p 63
um prolongamento da administraçã o, daí resultando que a impugnaçã o judicial dos
actos se afigurava como recurso de decisõ es, em que os ó rgã os da administraçã o já
se haviam pronunciado e, para garantir a sua constâ ncia, o cidadã o obrigava-se a
impugnar, primeiramente, junto da administraçã o, e em caso de decisã o
desfavorá vel estava aí aberta a via para o tribunal como instâ ncia superior.
Esta matéria, no ordenamento jurídico português, dividiu durante muito
tempo a doutrina, dando origem a duas grandes correntes: a fundamentalista (com
os professores Vasco Pereira da Silva e José Joaquim Canotilho) e a moderada (com
os professores Freitas do Amaral, Rogério Soares e Vieira de Andrade).371
O estado de evoluçã o do Direito Administrativo deixa de lado qualquer
referência à ideia da definitividade e executoriedade como pressuposto para a
impugnaçã o judicial do acto administrativo, desde logo porque muitas das
situaçõ es que se integravam no conceito de acto administrativo deixaram hoje de o
ser e estar. Isto aconteceu, sobretudo, porque foram sendo criadas e colocadas ao
dispor dos cidadã os outras formas de reacçã o, é o caso dos actos administrativos
de conteú do negativo372, que hoje nã o precisam de ser definitivos e executó rios,
porquanto já nã o sã o impugná veis através de recurso contencioso, mas sim por via
de outros mecanismos, como, por exemplo, a acçã o de condenaçã o à prá tica de
acto devido.373 Este nã o tem como objecto qualquer acto administrativo nem se
dirige contra acto praticado por superior hierá rquico, mas sim contra a pessoa
colectiva em que o ó rgã o se insere374.
Por outro lado, a mesma evoluçã o do direito administrativo ajudou a

370
Apresentando algumas vantagens decorrentes da exigência do esgotamento das garantias
administrativas, Joã o Damiã o, A precedência obrigató ria no Contencioso Administrativo Angolano,
contributo para a criaçã o de um Contencioso Administrativo adequado ao Estado de Direito,
Almedina 2014 p 160.
371
Sobre as teorias, José Câ ndido de Pinho, Breve…ob cit…p 53-55.
372
Sérvulo Correia, Incumprimento…ob cit…p 19-20.
373
Má rio Aroso de Almeida, Consideraçõ es em torno de acto administrativo impugná vel, in
Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, vol II, Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa 2006 p 274.
374
Má rio Aroso de Almeida, Recurso hierá rquico, acto tá cito e condenaçã o à prá tica de acto
devido, comentá rios ao Acó rdã o do STA de 24.11. 2004, Caderno de Justiça Administrativa nº 53,
Setembro/Outubro 2005, p 20. 310
“provar” a variedade da tipologia de actos administrativos, e nã o, apenas, os que
impõ em deveres e encargos aos cidadã os, perspectiva a partir da qual se definiu a
ideia da executoriedade. Hoje existem outros actos administrativos que se afastam
deste paradigma, basta pensarmos na tendência, relativamente generalizada, de
proliferaçã o de actos administrativos cuja composiçã o assenta na relaçã o
comparticipada entre administraçã o e cidadã os, que vai, igualmente, ditar o seu
modo de execuçã o.375
Ademais, o conceito de definitividade congrega vá rios elementos, alguns
deles inconciliá veis entre si, desde logo porque a definitividade vertical se
apresenta, essencialmente, como um pressuposto processual e a definitividade
horizontal há muito que deixou de fazer sentido, na medida em que hoje é,
perfeitamente, aceite a perspectiva da impugnaçã o autó noma de determinados
actos que, praticados no decurso do procedimento, terã o um tratamento
singularizado376 e separado, e o cidadã o nã o precisa de esperar pelo fim do
procedimento para os impugnar.377 Atençã o que os actos, apesar de intermédios ou
preparató rios, poderã o causar danos aos particulares e, nesse sentido, susceptíveis
de impugnaçã o contenciosa378. A mesma linha argumentativa justificou uma
viragem do tratamento da matéria, ao permitir-se, dada a sua relevâ ncia, à
impugnaçã o de alguns actos internos, fundamentalmente aqueles que dizem
respeito à distribuiçã o de competências379 e ao relacionamento de determinados
ó rgã os por via de institutos, como a superintendência ou a tutela.
A atribuiçã o de efeitos constitutivos ao acto administrativo definitivo e
executó rio originou a que, muitas vezes e ao arrepio do princípio da legalidade e da
juridicidade, este anulasse os efeitos decorrentes das leis, nalguns casos benefícios

375
Má rio Aroso de Almeida, Consideraçõ es…ob cit…p 278.
376
Pensemos nos casos de concursos pú blicos em que o cidadã o é excluído da lista final de
indivíduos que constarã o da decisã o. Até ele esperar que se decida para impugnar o acto, poderá
perder o concurso, bem como a sua vaga legalmente ocupada por outra pessoa, reflexã o retirada e
adaptada da obra de Rogério Soares, Direito Administrativo…ob cit…p 61.
377
Enquadramos, por exemplo, os actos destacá veis ao nível da contrataçã o pú blica, para
mais informaçõ es, Freitas do Amaral e Carlos Feijó , Direito Administrativo…ob cit… p 841.
378
Rogério Soares, Direito Administrativo…ob cit…p 62.
379
Má rio Aroso de Almeida, Consideraçõ es…ob
311 cit…p 284.
concedidos por aqueles aos cidadã os.380 Apesar de nã o concordarmos com a
exigência do esgotamento das vias ordiná rias, como condiçã o para a impugnaçã o
de actos administrativos381, cremos que nã o se pode ir ao extremo e considerar que
as normas que o exigem sejam inconstitucionais382, quando, na verdade, é diferido
ao legislador ordiná rio o poder de estabelecer os requisitos para se aceder aos
tribunais, estando incluindo neste poder a faculdade de condicioná -lo, embora nem
todas as constituiçõ es consagrem esta liberdade 383. Entretanto, esta regulaçã o está
limitada, na medida em que nã o pode impedir o acesso, sob pena de

380
Luís Fá brica, Acto definitivo e recurso de mera anulaçã o no pensamento de Marcello
Caetano, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, 2006, vol II 2006 p 98-99.
381
Sã o, contudo, reconhecidas algumas vantagens à impugnaçã o necessá ria, ligadas ao
interesse pú blico e à realizaçã o dos valores comunitá rios ou, ainda, à s vantagens para os
particulares. Segundo Isabel Celeste Fonseca, “Elas reforçam o controlo da legalidade,
especialmente do mérito da actuaçã o administrativa, assumem um papel determinante como
instrumento do princípio da unidade da acçã o administrativa e traduzem um factor de legitimaçã o
administrativa no quadro do princípio hierá rquico. E, do ponto de vista dos particulares, garantem
a imediata suspensã o da eficá cia do acto impugnado, o controle do mérito e apreciaçã o da decisã o
por ó rgã o mais qualificado, sendo certo que também se apresentam como mecanismos de tipo
informal, fá cil de interpor, barato e rá pido”. Isabel Celeste Fonseca, Repensar as impugnaçõ es
administrativas entre a efectividade do processo e a unidade da acçã o administrativa, Caderno de
Justiça Administrativa nº 82 Julho/ Agosto 2010, p 79.
382
Sobre as razõ es que determinam a inconstitucionalidade de regra da precedência
obrigató ria, no ordenamento jurídico português, Vasco Pereira da Silva, De necessá rio a ú til: a
metamorfose do recurso hierá rquico no novo contencioso administrativo, Caderno de Justiça
Administrativa nº 47, Setembro/Outubro 2004 p 22 ss.
383
Vejamos, neste sentido, algumas ideias a respeito do assunto no ordenamento
Moçambicano: “Sobre esta questã o há no nosso entender uma divergência de abordagem entre o
preceituado na CRM nº 3 do art. 253 e o art. 32 da Lei 7/2014 de 28 de Fevereiro, pois a lei mã e
garante aos particulares o direito do recurso contencioso sempre que haja um acto da
administraçã o pú blica que viola os direitos do particular, outrossim o art. 32 da lei 7/2014
estabelece como condiçã o da recorribilidade que o acto seja definitivo e executó rio. Nesta
perspectiva olha os princípios de interpretaçã o normativa, nenhuma lei pode contraria a CRM
assim, estamos diante de uma inconstitucionalidade material, pois a Lei 7/2014 vem regular a
condiçã o da recorribilidade do acto administrativo de forma contrá ria a CRM. Essa divergência era
justificá vel no â mbito da Lei 9/2001 e a CRM 2004, pois a CRM era posterior à lei do contencioso,
está vamos sim diante de uma inconstitucionalidade
312 superveniente, mas o legislador teve a
inconstitucionalidade384.385 Posto isto, apontam-se algumas críticas ao recurso
hierá rquico necessá rio, que se apresenta como resultado de uma visã o que
apregoa a concentraçã o administrativa, com todas as suas desvantagens 386, e que
nã o abre o necessá rio espaço para a desconcentraçã o, enquanto modelo que
garante maior democracia e fluidez no exercício da actividade administrativa. 387
Ademais, o acto administrativo praticado pelo subalterno é igual ao que seria
praticado pelo superior hierá rquico e mantém a sua validade, este só intervem, na
aná lise de tal acto, quando se pretende impugnar judicialmente, fora da qual se

oportunidade de em 2014 na revisã o da LPCA (Lei do Processo Contencioso Administrativo),


adequar o preceituado legal e constitucional mas nã o o fez, mantendo assim a mesma redacçã o. Mas
que como se tem dito na gíria popular nã o há problema sem soluçã o pode o juiz em sede de
fiscalizaçã o sucessiva concreta desaplicar a norma e remeter ao Conselho constitucional para a
apreciaçã o da constitucionalidade da norma, ou ainda os organismos atribuídos o poder de solicitar
a inconstitucionalidade das normas no â mbito do disposto no art. da CRM pedir a apreciaçã o da
constitucionalidade da norma, resolvendo assim o problema de uma vez. É nosso entender que o
legislador constituinte quis adoptar a teoria do acto lesivo como condiçã o da recorribilidade dos
actos administrativos, ao estatuir o preceituado no nº 3 art. 253”. Edmar Barreto Jorge, A Teoria do
Acto Lesivo vs Teoria da Definitividade e Executoriedade do Acto Administrativo – Discussã o à Luz
do Ordenamento Jurídico Moçambicano, Revista Científica do ISCTAC, Vol. 3, nº 08, Ano III, Abril –
Junho de 2016, p 14.
384
“La línea inaugurada por la Corte Suprema de Justicia de Costa Rica, mantenida en
sentencias posteriores,59 alcanzó consolidació n parcial en el Có digo Procesal Contencioso
administrativo de dicho país que entró en vigencia el 1º de enero de 2008. En este ú ltimo
ordenamiento, se sienta el cará cter optativo de la regla del agotamiento como principio general que
só lo hace excepció n en materia municipal y de contratació n pú blica. En Argentina, muchos
administrativistas se han volcado a favor de la tendencia tendiente a suprimir la regla del
agotamiento de la vía administrativa o, al menos, atenuarla, basados en que su subsistencia
conculca el principio de la tutela judicial efectiva, de base constitucional y supra constitucional. En
conclusió n, la CIDH y en época reciente, de un modo má s asertivo, la Corte Suprema de Costa Rica
han establecido un nuevo paradigma. Esta ú ltima, sintonía con la doctrina que venía bregando por
la supresió n o atenuació n de la regla del agotamiento declara que la mencionada regla es
inconstitucional, por violació n de la tutela judicial efectiva y de otros principios constitucionales,
como el de igualdad de cargas procesales, con lo que el requisito de agotar la instancia, en el que
descansaba el sistema, ha pasado a ser opcional y no obligatorio o preceptivo. La consecuente
primacía constitucional se ha impuesto así como los principios del Estado de Derecho. Má s aú n, han
salido ganando los justiciables con esta nueva conquista del derecho pú blico”. Juan Carlos Cassagne
El procedimiento administrativo y el acceso a la justicia,
313 Tendencias…ob cit p 76-77.
mantém vá lido388, situaçã o que os defensores desta corrente nem sempre
souberam explicar. Por outro lado, a teoria da definitividade e executoriedade
parte de um pressuposto nã o isento de críticas, que é a ideia de pensar que apenas
os actos definitivos e executó rios, pela sua dimensã o coerciva, podem causar danos
aos particulares, depois da aquisiçã o desta qualidade, ele pode ser atacado junto
das instâ ncias judiciais.
O princípio da tutela jurisdicional efectiva encaminha-nos para um
entendimento que defende o alargamento do â mbito do acto recorrível389
contenciosamente, podendo criar-se um regime unitá rio passível de prever vá rias
situaçõ es que legitimam a impugnaçã o contenciosa de actos administrativos, um
modelo que exigirá para determinados actos, desde que nã o lesivos, a regra da
procedência obrigató ria. Este regime será devidamente acompanhado por um
conjunto de meios ao dispor dos cidadã os para realizarem as suas mais variadas
pretensõ es, ao nível do contencioso.
Isso deixa claro que a tutela jurisdicional efectiva nã o se restringe à s
condiçõ es que devem ser criadas para que se possa falar de uma protecçã o
subjectiva realizada pela norma. Para além do acesso aos tribunais, à informaçã o, à
consulta de documentos, à decisã o em prazo razoá vel e, acima de tudo, à
consagraçã o de meios cautelares390 que garantem a efectividade do princípio391
385
Isabel Celeste Fonseca, Repensar… ob cit…p 78.
386
Sobre as vantagens e desvantagens da concentraçã o de poderes, Freitas do Amaral, Curso
vol I…ob cit…p 836.
387
Joã o Miranda, Em defesa da inconstitucionalidade do recurso hierá rquico necessá rio,
comentá rio ao Acó rdã o do STA de 15.1.1997, Caderno de Justiça Administrativa, Maio/Junho de
1998, p 46-47.
388
Vasco Pereira da Silva, de necessá rio a ú til: a metamorfose do recurso hierá rquico…ob
cit…p 23.
389
Sérvulo Correia, Impugnaçã o dos actos administrativos, Caderno de Justiça Administrativa
nº 16, Julho/ Agosto 1999, p 14.
390
“Os meios processuais, sob pena de inutilidade, deverã o ser acompanhados de meios
cautelares adequados para assegurar a sua “retaguarda”. Sofia Henriques, A tutela cautelar nã o
especificada no novo contencioso administrativo português, Coimbra editora 2006, p 25.
391
Neste sentido e sobre a efectividade da tutela judicial, Maria Fernanda Maçã s, Tutela
judicial efectiva e suspensã o da eficá cia: balanço e perspectivas, Caderno de Justiça Administrativa,
nº 16, Julho/Agosto 1999 p 52 ss. 314
rumo à ideia de justiça, a maior fatia da responsabilidade, em relaçã o a este
princípio, recai sobre o legislador. Este está impedido de criar dificuldades no
acesso ao tribunal e a situaçõ es de incertezas na definiçã o dos tribunais
competentes para dirimir conflitos, deve por outro lado, acima de tudo, garantir
que os cidadã os se sintam seguros392.
Ele impõ e-se como mecanismo de protecçã o do cidadã o, face aos actos dos
poderes pú blicos susceptíveis de o afectarem. E porque esta defesa deve ser feita a
vá rios níveis, o princípio revela-se, igualmente, como transversal a toda a relaçã o
entre o cidadã o e os entes pú blicos, garantindo inclusive a efectividade de outros
direitos fundamentais. Por outro lado, a sua unidade é assegurada pela
consagraçã o de uma série de subprincípios que, entretanto, determinam a sua
concretizaçã o por via de três pilares fundamentais: o princípio do acesso aos
tribunais, o princípio das competências de conformaçã o processual e o princípio da
utilidade da pronú ncia jurisdicional.393 Por conseguinte, existe unanimidade na
determinaçã o dos elementos que integram este direito394, embora a mesma nã o se
verifique na sua classificaçã o. Qualquer que seja a doutrina, a verdade é que este
deve, enquanto direito aná logo, beneficiar do regime jurídico dos direitos
fundamentais.
Conforme já o referimos, a regra do esgotamento das garantias
administrativas, como requisito para impugnaçã o de actos administrativos,
representa uma má opçã o no que à política legislativa diz respeito, com
implicaçõ es profundas no acesso à justiça e ao direito. Neste sentido, deveria ser
um mecanismo facultativo, ao contrá rio do regime actualmente consagrado, que
em nada contribui para a efectiva tutela dos direitos e posiçõ es dos cidadã os,
fundamentalmente porque já o vimos, a execuçã o do acto impugnado e a contagem
dos prazos continuam. Para piorar, a nã o impugnaçã o administrativa impede o

392
Manuel Carlos do Nascimento, Garantia da tutela jurisdicional efectiva dos sujeitos
jurídicos fiscais, uma aná lise do Direito Angolano a partir do Direito Português, ediçã o do autor
2014 p 20-21.
393
Francisco Paes Marques, A efectividade da tutela de terceiros no contencioso
administrativo, Almedina 2007 p 41-42.
394
Vieira de Andrade, Justiça Administrativa
315(liçõ es) 10ª ediçã o Almedina, 2009 p 163.
cidadã o de o fazer contenciosamente395 e aí, sim, estaríamos diante de uma
interpretaçã o inconstitucional, por violaçã o directa do princípio da tutela
jurisdicional efectiva.396 A mesma soluçã o é aplicá vel nos casos em que o cidadã o
perde o prazo, enquanto espera pela decisã o do recurso hierá rquico ou da
reclamaçã o.
Entendemos que, ainda assim, a norma em questã o pode manter-se vigente
sem que seja declarada inconstitucional, porquanto o legislador recebe da
Constituiçã o a liberdade para modular o regime de acesso aos tribunais, podendo
mesmo condicioná -lo ao cumprimento de determinados pressupostos.
Cumpre asseverar que, em nenhum momento, o legislador constitucional (no
artigo 29º397) consagra o acesso directo aos tribunais, como forma de realizaçã o do
direito (antes estabelece padrõ es que o legislador ordiná rio, no â mbito da
regulamentaçã o ou condicionamento de direitos fundamentais pode seguir),
porquanto visam a determinaçã o dos pormenores do exercício de um direito de
modo compatível com as circunstâ ncias concretas da realidade em que ele será
aplicado398. As exigências que o condicionamento estabelece estã o dentro dos
padrõ es de razoabilidade, perfeitamente controlá veis e sindicá veis, em que o limite
é a afectaçã o desvantajosa do referido direito, figura totalmente desconhecida do
condicionamento399, que apenas estabelece os requisitos para o exercício de
395
A extemporaneidade da interposiçã o do recurso hierá rquico ou da reclamaçã o implica a
perda do direito de recurso aos tribunais.
396
Sobre o princípio na Constituiçã o da Repú blica de Angola, Isabel Fonseca e Osvaldo da
Gama Afonso, Direito Processual…ob cit..p 27-33.
397
Sobre a interpretaçã o deste artigo e suas implicaçõ es no ordenamento jurídico Angolano,
no domínio da precedência obrigató ria, Joã o Damiã o, A precedência obrigató ria no Contencioso
Administrativo Angolano, contributo para a criaçã o de um Contencioso Administrativo adequado ao
Estado de Direito, Almedina 2014 p 177-178.
398
Reis Novais, Restriçõ es…ob cit…p 177.
399
Podemos notar que estamos diante de um desenvolvimento de direitos fundamentais que
nã o impede, aos particulares, o acesso à Justiça Administrativa para a defesa dos seus direitos,
enquanto conteú do do artigo 29º da Constituiçã o da Repú blica de Angola. Desta forma, nã o vemos a
incompatibilidade alegada pela doutrina que defende a inconstitucionalidade desta Lei. Para
clarificar a distinçã o entre restriçã o e condicionamento, temos um exemplo tirado da
jurisprudência do Tribunal Constitucional Português (cuja fonte é a obra do Professor Reis Novais
sobre as restriçõ es e frequentemente citada no316
presente trabalho), em relaçã o ao prazo de pré-
direitos fundamentais, para tal valem os requisitos exigidos para a restriçã o400.
Para o caso em aná lise, mesmo nã o sendo uma restriçã o401, permitida aos
olhos da CRA artigo 57º, devemos ter em conta os requisitos que a carta magna
estabelece para que se possa falar de uma restriçã o legítima, nomeadamente a
obediência ao princípio da proporcionalidade, no caso, o condicionamento
apresenta-se como o meio mais idó neo para garantir que o direito dos cidadã os
seja exercido em respeito a determinados elementos que, muitas vezes, sã o
impostos pela realidade; por outro lado, a opçã o referida visa, sobretudo, garantir
a concretizaçã o de determinados valores.
O segundo aspecto sobre a matéria aqui desenvolvida tem a ver com o
princípio do respeito pelo conteú do mínimo do direito fundamental, no caso,
garantido na medida em que nã o está vetada a possibilidade de o particular aceder
aos tribunais. Portanto, este conteú do significará o respeito pelo nú cleo
fundamental determiná vel em abstracto, intrínseco de cada direito e intangível402.
O conteú do mínimo representa o lado mais profundo do direito, depois de o
“despirmos” de todas as formalidades e sustentá culos que o integram, de tal modo
aviso para a realizaçã o de uma manifestaçã o, exigindo o prazo de pré-aviso de 48 horas, sendo este
estaríamos diante de um condicionamento ou regulamentaçã o do exercício de um direito
fundamental, ao passo se for exigido um prazo de pré-aviso de 6 meses estaríamos diante de uma
restriçã o sendo, por isso, inconstitucional. O critério assente nesta distinçã o é o da
proporcionalidade; assim, achá mos que condicionar o acesso do particular à justiça Administrativa,
à definitividade e executoriedade do acto. Administrativo nã o seja uma medida desproporcional,
nesta medida inconstitucional. Esta definitividade e executoriedade pressupõ e a resoluçã o dos
litígios, entre os particulares e a administraçã o por outras vias, antes de se chegar ao tribunal,
embora estes mecanismos administrativos nã o deixem de levantar alguns problemas,
fundamentalmente porque da exigência da reclamaçã o nã o se pode retirar nada de novo, o que
revela que o cidadã o pode estar a perder o seu precioso tempo. O acto será o mesmo, analisado pela
mesma entidade, acto que, no entanto, antes já era definitivo e executó rio, pondo mesmo em
choque os conceitos dos termos referidos.
400
Reis Novais, Restriçõ es…ob cit…p 185.
401
Joã o Damiã o entende que a exigência do esgotamento das garantias administrativas gera
uma restriçã o ao exercício de direito fundamental. A precedência obrigató ria no Contencioso
Administrativo Angolano, contributo para a criaçã o de um Contencioso Administrativo adequado ao
Estado de Direito, Almedina 2014 p 175.
402
Vieira de Andrade, Direitos fundamentais na Constituiçã o Portuguesa de 1976, 4ª ediçã o
Almedina 2009 p 284-285. 317
que, se este nú cleo for afectado, o direito deixa de existir.403
O conteú do essencial dos direitos fundamentais404 pode ser determinado de
forma definitiva, que desta forma servirá de padrã o em todas as situaçõ es em que
esta questã o surge, ou, pelo contrá rio, pode ser determinado em funçã o das
circunstâ ncias concretas do momento, de tal modo que, se o interesse pú blico por
exemplo determinar, o conteú do essencial poderá ser postergado.405
Assim, a essência da tutela jurisdicional efectiva (acesso aos tribunais) está
perfeitamente garantida, nã o devendo, nesta perspectiva, a norma em causa ser
declarada inconstitucional.
Deve haver, sim, a preocupaçã o em garantir que todos os actos praticados
pelos ó rgã os administrativos sejam impugnados judicialmente,
independentemente da sua forma e natureza, e este acesso jamais deve ser negado.
Neste sentido, a jurisprudência portuguesa reconhece a legitimidade do
condicionamento legalmente estabelecido sobre a matéria, desde que a tutela
judicial nã o seja posta em causa.406 Entre nó s, a jurisprudência em homenagem ao
princípio da tutela jurisdicional efectiva vai aceitando processos em que as partes
nã o tenham impugnado administrativamente, ou seja, contra actos que nã o sejam
definitivos e executó rios407, faltando apenas que esta posiçã o se legitime,

403
Vieira de Andrade, Direitos…ob cit…p 285.
404
Sobre o conteú do essencial da Liberdade de Profissã o, em termos semelhantes ao referido
nesta parte da monografia, Joã o Pacheco Amorim, A Liberdade de Profissã o, Estudos em
comemoraçã o dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto,
Coimbra editora 2001 p 755ss.
405
Cristina Queiroz, Direitos fundamentais, teoria geral, 2ª ediçã o, Coimbra editora 2010 p
270.
406
Vieira de Andrade, Algumas reflexõ es a propó sito da sobrevivência do conceito de acto
administrativo no nosso tempo, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Rogério Soares,
Stvdia Ivridica 61, Coimbra editora, 2001 p 1206
407
“O recurso hierá rquico necessá rio deve ser interposto no prazo (geral) de 30 dias [de
acordo, porém, com a jurisprudência administrativa mais recente, a extemporaneidade da
interposiçã o do recurso hierá rquico necessá rio nã o acarreta automaticamente a do recurso
contencioso (no caso de o vício de ilegalidade de que enferma o acto originar a sua anulabilidade),
de modo que, se o superior hierá rquico conhecer o recurso interposto fora do prazo, poderá
prosseguir o recurso contencioso contra essa decisã o expressa] e suspende, em regra, a eficá cia do
acto recorrido (de registar que o Tribunal Constitucional
318 decidiu, na esteira de uma boa parte da
contribuindo assim para a verdadeira efectividade das garantias administrativas
que, face aos problemas acima referidos, estã o longe deste desiderato.
O problema aqui levantado coloca-se nos mesmos termos relativamente à
exigência de esgotamento das vias ordiná rias como condiçã o para interposiçã o de
determinados recursos408, o que é legítimo, nã o sendo nas situaçõ es em que se
impede a interposiçã o do referido recurso com fundamento no nã o esgotamento
das vias ordiná rias, por aspectos que nã o lhe sã o directamente imputá veis.
O artigo 21º da LCP, em homenagem ao princípio da tutela jurisdicional
efectiva, institui a regra do acesso aos tribunais, a impugnaçã o judicial, mas faz de
uma forma susceptível induzir as pessoas em erro, senã o vejamos; “As decisõ es
proferidas sobre as impugnaçõ es administrativas sã o susceptíveis de recurso
contencioso”. Esta norma parece colidir com a regra consagrada no nú mero 4 do
artigo 15º da LCP, pois daí resulta a ideia segundo a qual nem todas as reclamaçõ es
sã o obrigató rias, podendo haver impugnaçã o judicial que nã o seja precedida de
reclamaçã o, por isso é que nã o se pode afirmar, tal como resulta do artigo 21º da
LCP, que as decisõ es sobre impugnaçõ es administrativas sã o susceptíveis de
impugnaçã o judicial, pode haver impugnaçã o judicial directa. Em algumas
situaçõ es, a impugnaçã o administrativa apresenta-se como uma faculdade das
partes, neste sentido, elas podem impugnar judicialmente sem a reclamaçã o
administrativa, por isso a redacçã o do artigo tem de ser revista sob pena de causar
confusã o à s pessoas, a norma tem reflectir justamente a ideia de que o acesso aos
tribunais nem sempre deve ser precedido de uma impugnaçã o administrativa,
ademais, a jurisprudência mais recente do Tribunal Supremo admite impugnaçõ es
judiciais que nã o tenham sido precedidas pela via administrativa.
Outras questõ es podem ser levantadas no domínio da impugnaçã o

doutrina e da jurisprudência administrativa, numa pluralidade de arestos, designadamente nos


Acó rdã os nºs 603/95, 499/96 e 1143/96, nã o julgar inconstitucionais vá rias normas que impõ em
para os actos praticados por subalternos, no caso de competência concorrente como o ó rgã o
superior uma impugnaçã o administrativa como pressuposto do recurso contencioso, desde que tais
normas nã o obstem à posterior interposiçã o do recurso contencioso, nem afectem a sua utilidade)”.
Fernando Alves Correia, Alguns conceitos de Direito Administrativo, Almedina 2001 p 57-58.
408
Veja-se, por exemplo, as críticas avançadas pelo Professor Vasco Pereira da Silva contra o
recurso hierá rquico necessá rio. Novas e velhas andanças do Contencioso Administrativo estudos
sobre a reforma do Contencioso Administrativo aafdl
319 2005 p 13 a 28.
administrativa e judicial. Por exemplo, o artigo 19º da LCP consagra o instituto da
audiência dos contra-interessados, entretanto, parece haver contradiçã o entre a
epígrafe e o conteú do do artigo, na medida em que se diz que eles (os contra-
interessados) poderã o pronunciar-se, abrindo margem para outros tipos de
pronunciamento que nã o sejam em sede da audiência, ou seja/quer isto dizer, que
a ideia da realizaçã o da audiência deve estar associaçã o à audiçã o dos contra-
interessados, pois, se fosse apenas para eles se pronunciarem por escrito, nã o
haveria necessidade de consagrarmos a audiência como tal.
A questã o acima referida está ligada a uma outra, a que aparece consagrada
no artigo 86º referente à audiência prévia. As partes podem pronunciar-se por
escrito, num prazo de até 5 dias, sobre o conteú do do relató rio preliminar, ao
abrigo do direito de audiência prévia. Ora, precisamos definir, exactamente, o
sentido e a ideia de audiência prévia. Se a parte foi notificada sobre o conteú do de
um documento é porque, em princípio, ela pode (caso queira) reagir, aliá s, esta é
uma das razõ es de ser das notificaçõ es. Nesta situaçã o, a parte nã o precisa de uma
audiência prévia, antes envia o seu ponto de vista para a entidade competente. Nã o
se pode, com isso, dizer que o envio de documentos, ao abrigo daquelas normas,
possa ou deva ser enquadrado no direito de audiência prévia. A exigência de
audiência prévia está ligada, em primeiro lugar, due process of law, que impõ e a
realizaçã o de uma audiência de discussã o quando se verifique uma controvérsia
sobre factos e a discussã o contraditó ria seja método racional para o seu
esclarecimento.
O Procedimento Administrativo justo é aquele que, entre outras coisas,
facilite e conceda, à s partes, oportunidade para se pronunciarem sob diversas
formas, sendo a audiência a mais consentâ nea com os ideais da Democracia,
porquanto evidencia a perspectiva de participaçã o do cidadã o na gestã o dos
assuntos pú blicos que lhe digam respeito. As audiências que seguem a forma
escrita devem obedecer a algumas formalidades. Desde logo, na notificaçã o que é
apresentada ao particular para defender os seus direitos, devem ser apresentados
todos os elementos para que o exercício deste direito concretize as intençõ es dos
cidadã os e, assim, se possa falar efectivamente no contraditó rio, ao nível do
procedimento Administrativo. Com efeito, o legislador deve aproveitar a revisã o da
320
LCP para consagrar um regime jurídico aplicá vel à audiência dos interessados. Nã o
podemos continuar a aplicar o regime geral do procedimento administrativo
consagrado no Decreto-Lei 16 A/95 que, por força da época em que foi aprovado,
já nã o responde à s exigências que o dia-a-dia coloca à Administraçã o Pú blica
angolana.

4. PROCEDIMENTOS CONTRATUAIS E IMPARCIALIDADE

Na sequência do que temos vindo a afirmar sobre a importâ ncia do


Procedimento Administrativo, vamos, nos pontos que se seguem, abordar a
questã o da imparcialidade como valor fundamental a ser realizado ao nível da
contrataçã o Pú blica.
A realizaçã o dos valores ligados à Contrataçã o Pú blica só será possível se
pudermos acompanhar, detalhadamente, a conduta dos vá rios intervenientes neste
domínio, o acompanhamento minucioso só será possível se tivermos as regras
definidas, de modo claro, e os passos que nos conduzem aos resultados estejam
devidamente determinados. Por exemplo, o valor transparência, para além da
prevençã o de conflitos, garante o combate à corrupçã o, porquanto tem em si a
ideia de disponibilidade de informaçã o, pressupõ e a clareza nos procedimentos e a
previsibilidade da actuaçã o das entidades envolvidas no processo de contrataçã o
pú blica.409
A Imparcialidade evita que se favoreça ou desfavoreça, injustificadamente,
em qualquer fase da contrataçã o, uma das partes envolvidas, impondo desde o
início um tratamento igual para todas as partes envolvidas no processo de
contrataçã o Pú blica.410 Associada à ideia de procedimento, e como sinal evidente
da importâ ncia deste instituto no domínio da contrataçã o Pú blica, a imparcialidade
impõ e igualmente que a Administraçã o Pú blica, no â mbito da contrataçã o Pú blica
(e nã o só ), pondere e avalie os elementos que tem em sua posse e que, como é
ó bvio, serã o afectados, positiva ou negativamente, pela decisã o pú blica a ser

409
Miguel Assis Raimundo, A Formaçã o… ob cit… p 363.
410
Marcelo Rebelo de Sousa, O Concurso Pú blico na formaçã o do Contrato Administrativo,
LEX ediçõ es jurídicas, Lisboa 1994 p 40. 321
necessariamente tomada. É , também, este princípio que, em nome da supra-citada
ponderaçã o, determina a adopçã o de diligências, no sentido de efectuar uma
avaliaçã o correcta e objectiva dos elementos em jogo, algumas vezes incompatíveis
entre si. Neste caso, a tarefa da Administraçã o, ao invés de ser de exclusã o de uns
em detrimento de outros, será de harmonizar, na medida em que nã o poderã o
existir incompatibilidades inconciliá veis. É , exactamente, esta reserva de
ponderaçã o, associada à reserva administrativa, que determina a inconveniência
da opçã o do legislador, na consagraçã o de um regime de contrataçã o simplificada
por recurso a critérios materiais, na medida em que retira da Administraçã o a
possibilidade de avaliar e escolher o melhor procedimento, tendo em conta as
circunstâ ncias.
Ao nível da actuaçã o das comissõ es de avaliaçã o, impõ e-se um conjunto de
regras para guiar a actuaçã o destes ó rgã os, o mesmo se passando com as entidades
com competência para adjudicar. Neste sentido, a imparcialidade impõ e, como
temos vindo a referir, a ponderaçã o de todos os factos (o balanceamento), deve
igualmente priorizar-se uma exacta determinaçã o dos factos (violam este
princípio, por exemplo, as actuaçõ es, decisõ es que estejam totalmente afastadas da
realidade, decisõ es desajustadas, “fora da pista”). É possível anular-se uma decisã o
que nã o tenha sido precedida da competente avaliaçã o dos elementos relevantes,
mesmo que este poder de ponderaçã o resulte de uma actuaçã o discricioná ria da
administraçã o. Hoje, por força do princípio da juridicidade, todos os actos da
administraçã o estã o sujeitos a impugnaçã o, porquanto o padrã o para a sua
invalidaçã o ou validaçã o deixou de ser, unicamente, a lei.
De qualquer forma, importa referir, e porque em muitas normas do regime
jurídico da LCP as entidades administrativas serã o obrigadas a fundamentar as
suas decisõ es e opçõ es, a falta de ponderaçã o, a violaçã o do princípio da
imparcialidade, serã o detectadas na fundamentaçã o apresentada.411
Mesmo que a Administraçã o actue sob a égide de um poder discricioná rio, a
imparcialidade obriga-a a adoptar e a seguir determinados padrõ es, sob pena de
ver tal acto declarado contrá rio ao Direito. Por exemplo, a actuaçã o discricioná ria
da Administraçã o, no domínio da Contrataçã o Pú blica, deve estar alinhada ao
princípio da transparência.
411
Sérvulo Correia, Noçõ es de Direito Administrativo
322 I Lisboa, 1982, p 255.
Apesar de estarem devidamente definidos os objectivos da regulaçã o da
contrataçã o Pú blica, a verdade é que nã o pode ser ignorado o facto de a relaçã o
entre estes se apresentar, frequentemente, conflituosa e, até mesmo, incompatível.
O caso paradigmá tico é o do conflito existente entre a eficiência econó mica da
compra, ligado à protecçã o dos interesses pú blicos financeiros e defesa dos
contribuintes, e o objectivo da igualdade de oportunidades das empresas, ligado à
protecçã o dos interesses pú blico e privado da concorrência. 412
O valor da concorrência surge como instrumento de concretizaçã o e
realizaçã o da ideia da igualdade de oportunidades entre as partes e do princípio da
economicidade na aplicaçã o dos recursos pú blicos. Esta constataçã o permite-nos
verificar que os eventuais conflitos entre concorrência e interesse pú blico, ou entre
concorrência e interesse pú blico financeiro, nã o têm razã o de ser.413
Neste processo, papel determinante é atribuído ao legislador que tem a
missã o de construir414 um sistema que privilegie a concorrência. A ele incumbe a
definiçã o dos termos de prevalência do interesse pú blico sobre outros valores, o
que implica necessariamente uma tarefa de ponderaçã o.
Mesmo o legislador, por altura da criaçã o de normas ligadas ao Direito
Administrativo, está vinculado ao princípio da imparcialidade, quando estabelece
regras de actuaçã o para a Administraçã o Pú blica, e nã o só . Nã o pode, por exemplo,
consagrar regras que retirem da Administraçã o o poder de escolha e de
ponderaçã o, antes da tomada de decisã o.415
Por fim, importa esclarecer que o procedimento administrativo conducente à
celebraçã o de um contrato Pú blico é portador de algumas particularidades, daí que
no processo de aplicaçã o das normas gerais a actividade administrativa deve ser
feito com alguma cautela. Por exemplo, a LCP consagra princípios importantes a
serem concretizados no processo de contrataçã o Pú blica, mas nã o os aprofunda,
precisamos de saber qual é o seu conteú do com vista a garantir uma melhor
fiscalizaçã o e consequente aplicaçã o da LCP.

412
Pedro Gonçalves, Direito dos Contratos Pú blicos, Almedina 2015 p
413
Pedro Gonçalves, Direito dos Contratos…ob cit…p 133.
414
Pedro Gonçalves, Direito dos Contratos Pú blicos, ob cit…p 134.
415
Maria Teresa de Melo Ribeiro, O Princípio da Imparcialidade da Administraçã o Pú blica,
Almedina 1996, p 126. 323
5. O CONCURSO PÚBLICO NO QUADRO DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA

Na senda do que temos vindo a afirmar, precisamos de conferir maior


atençã o ao concurso Pú blico e, porque está em voga a revisã o da LCP, podíamos
aproveitar a oportunidade para reconfigurarmos o sistema e transformarmos o
concurso Pú blico em regime regra. Os restantes seriam aplicados em determinadas
situaçõ es, a serem definidas pelo legislador.
Olhando para a rigidez do regime jurídico-procedimental da LCP, podemos
sugerir, em termos de soluçõ es, a criaçã o de vá rios tipos de concursos pú blicos416,
de modo a concretizar determinados interesses e garantir soluçõ es ajustadas aos
vá rios contextos, no nosso ordenamento jurídico.
Atendendo à natureza do concurso Pú blico, o legislador angolano optou pela
consagraçã o de mais etapas para este tipo de procedimento, estando na mesma
linha, por exemplo, o concurso limitado por prévia qualificaçã o. Com efeito, vale o
disposto nas alíneas a) e b) do artigo 44º e artigo 48º da LCP. Ainda assim, nã o
podemos concluir que, pelo facto de ter vá rias fases, o concurso Pú blico realiza da
melhor forma a concorrência, a transparência e a publicidade. Impõ e-se uma maior
fiscalizaçã o do cumprimento das regras procedimentais consagradas na LCP.
O cumprimento dos princípios acima citados depende, em primeira instâ ncia,
da eficá cia da publicidade adequada. Defende-se, neste sentido, a eficá cia da
publicidade417 associada à facilidade do seu conhecimento, medida ou avaliada
pelas formas de acesso, por parte dos cidadã os interessados. Assim, em termos de
soluçõ es, e olhando para o nosso contexto, nã o parece ser uma opçã o positiva
permitir que as peças do procedimento sejam consultadas apenas nas horas
normais de expediente, tal como determina o nº 1 do artigo 71º da LCP. Esta
soluçã o afecta o modo de acesso à informaçã o, pois nem sempre é possível
consultá -las nas horas normais de expediente. Durante o prazo de consulta, devem
ser estabelecidos nas Unidades de contrataçã o Pú blica horá rios alternativos, com
416
Margarida Olazabal Cabral, O Concurso Pú blico no Có digo dos Contratos Pú blicos, Estudos
de Contrataçã o Pú blica, Coimbra 2008 p 183.
417
Ana Neves, A Publicidade Concursal, Estudos em homenagem ao Professor Doutor José
Joaquim Gomes Canotilho, Coimbra Editora 2012324
p 457.
grupos de escala, de modo a permitir que as peças possam ser consultadas a
qualquer altura do dia. Há uma alternativa que pode ser viá vel, a possibilidade de
as peças estarem disponíveis electronicamente, entretanto, isso nem sempre
ocorre, na medida em que a LCP permite esta possibilidade somente nas situaçõ es
em que se segue a via do procedimento electró nico. Ainda assim, esta opçã o deve
ser implementada com alguma cautela em Angola, pois sã o sobejamente
conhecidas as dificuldades que os cidadã os têm em aceder a um computador.
Uma segunda nota sobre o tema tem a ver com a possibilidade de as peças do
procedimento serem fornecidas a título gratuito ou oneroso (n.º 3 do artigo 71º).
Ora, para o concurso pú blico, em que os destinatá rios sã o indeterminados,
defendemos o acesso gratuito à s peças do procedimento. Estamos a tratar do
exercício do direito à informaçã o procedimental418 com uma dimensã o subjectiva
forte, havendo por parte da entidade Pú blica contratante a obrigaçã o de respeitar e
permitir tal exercício. Nem a soluçã o consagrada no nº. 7 do artigo 71º da LCP
serve para mitigar a crítica acima apresentada, pois estaríamos a permitir que os
cidadã os participassem no concurso sem ter a informaçã o exigida, uma vez que a
conhecem, ou a adquiriram em fontes nã o oficiais, o que nã o realiza de forma
eficiente o direito fundamental à informaçã o.
Os esclarecimentos a serem prestados pela comissã o de avaliaçã o devem
cumprir um conjunto de regras, nesse sentido, defendemos que exista uma espécie
de subprocedimento. As falhas e o fornecimento de informaçõ es deve, neste
sentido, equivaler à falta de informaçã o que, para o caso, pode ser sancionada
como a nulidade.
Mais do que em outros procedimentos, o princípio da estabilidade assegura,
da melhor forma, os interesses que fundamentam a adopçã o do concurso pú blico,
na medida em que defende sempre o interesse da maioria, que resulta,
exactamente, do acordo inicial ligado à manutençã o das regras apresentadas, logo
de início, e que, obviamente, se ajustam à materializaçã o do interesse pú blico. A
regra, no entanto, pode ser excepcionada na medida em que, em algumas situaçõ es,
será necessá rio alterar as regras constantes do caderno de encargos, com a
finalidade de ajustar a legislaçã o posteriormente adoptada, sob pena de ilegalidade

418
Ana Neves, A Publicidade… obra cit… p 475.
325
que, obviamente, põ e em causa a execuçã o do contrato.419
Por outro lado, no caso de já ter sido apresentada uma proposta, as regras do
concurso devem manter-se inalteradas, sob pena de violaçã o das expectativas das
partes, configurando, assim, uma violaçã o ao princípio da concorrência. Nestes
casos, as alteraçõ es serã o possíveis se elas resultarem de um consenso, de um
entendimento entre a entidade Pú blica contratante e os particulares que tiverem
apresentado as propostas. É preciso que os efeitos prejudiciais para os cidadã os
sejam minimizados, mesmo se estivermos diante de alteraçõ es que se impõ em em
termos imperativos. Nã o havendo qualquer candidatura, as alteraçõ es parecem ser
mais fá ceis de implementar, independentemente disso, razõ es ligadas ao interesse
pú blico também podem justificar alteraçõ es à s regras do concurso, inclusive as que
estiverem ligadas aos critérios de adjudicaçã o.420 Nã o sendo possível apurar uma
entidade com base nos critérios de adjudicaçã o e na possibilidade de nã o haver
adjudicaçã o, parece-nos que a soluçã o de alteraçã o dos critérios se apresenta como
uma opçã o, ponderadamente associada ao interesse Pú blico. Uma segunda soluçã o,
nos casos de a comissã o de avaliaçã o considerar que nenhuma das partes
apresentou propostas compatíveis aos critérios do concurso, nada obsta que o
procedimento termine com a nã o adjudicaçã o, mesmo que estejamos diante de
uma situaçã o que, nos termos legais, nã o conduza à nã o adjudicaçã o. Entendemos
que as causas de nã o adjudicaçã o têm natureza taxativa, pois isso conduziria a
adjudicaçõ es ilegais, na medida em que a entidade Pú blica contratante teria de,
necessariamente, adjudicar mesmo nas situaçõ es de ilegalidade, porque a situaçã o
em si nã o está contemplada no leque de situaçõ es que justificam a nã o adjudicaçã o.
Nos procedimentos administrativos nã o há qualquer garantia de decisã o
favorá vel aos interesses das partes, em algumas situaçõ es, e tendo em conta os
elementos carreados ao procedimento, a entidade administrativa pode concluir
pelo indeferimento do pedido; nã o havendo qualquer impedimento legal, as partes
podem voltar a apresentar o mesmo pedido.
Independentemente dos motivos que justificarem as alteraçõ es, nã o está

419
Má rio Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros
procedimentos de adjudicaçã o administrativa, Almedina 1998 p 109.
420
Má rio Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros
procedimentos de adjudicaçã o administrativa, Almedina
326 1998 p 110.
afastada a possibilidade de responsabilizaçã o da Administraçã o civil por factos
lícitos, na medida em que alguns cidadã os incorreram em determinadas despesas
para responder à s exigências do concurso.
Em geral e salvo algumas excepçõ es, as regras da estabilidade na formaçã o
dos contratos aplicam-se também à s partes. As entidades apuradas, em sede do
procedimento, devem ser as mesmas a executar o contrato, sobretudo nos
contratos celebrados em atençã o a determinadas qualidades da entidade
qualificada.
Por fim, cumpre avançar algumas normas sobre o caderno de encargos,
enquanto documento central do processo de formaçã o dos contratos, na medida
em que representa o futuro, traça os caminhos para a execuçã o, consagra os
impedimentos e define os limites a que as partes estã o sujeitos.
A primeira nota tem a ver com o facto de o caderno de encargos, em qualquer
dos procedimentos, com particular destaque para os concursos Pú blicos, consagrar
as clá usulas que melhor realizam o interesse Pú blico nas suas mais variadas
dimensõ es, porquanto é dada à entidade Pú blica contratante a possibilidade de
elaborar o seu caderno de encargos, estando, com efeito, vinculada a conceber um
instrumento apto para realizar o interesse da colectividade. Havendo falhas na
execuçã o do contrato e, consequentemente, na realizaçã o do interesse pú blico,
deve a entidade pú blica contratante ser responsabilizada. Nã o se pode, por
exemplo, aceitar que esta deixe de adjudicar um contrato, a um particular, porque
entende que nenhuma das partes preencheu os requisitos, quando, na verdade, tal
só aconteceu por falhas do caderno de encargos.421
Por isso é que se deve conceder à s entidades Pú blicas contratantes poder
para elaboraçã o de cadernos de encargos que melhor se adeqú em aos seus
interesses, indissociavelmente ligados ao interesse pú blico que deverá ser
construído em funçã o do contexto. Nã o pode, assim, o legislador arrogar-se deste
direito e invadir o campo de acçã o das entidades contratantes, antes deve remeter
tal responsabilidade à Administraçã o que, no exercício dos seus poderes, poderá
adoptar uma posiçã o criativa, de ajustar sempre os cadernos de encargos aos
desafios colocados ao contrato a celebrar.
421
Pedro Ferná ndez Sá nchez, Concorrência na formaçã o dos contratos de empreitada: o
papel do Caderno de encargos, in Estudos sobre Contratos
327 Pú blicos, Almedina 2019 p 71.
Mesmo nas situaçõ es em que existem modelos “pré-fabricados”, a sua
existência é essencialmente justificada por insuficiências técnicas dos serviços,
pelo que, ainda nestes casos, deverá ser respeitado o “poder de criaçã o” da
Administraçã o Pú blica.
Estas notas surgem, fundamentalmente, para acautelarmos algumas prá ticas
em Angola, na medida em que muitas entidades Pú blicas Contratantes, em funçã o
de experiências anteriores ou de modelos “pré-fabricados”, tendem a adoptar um
ú nico modelo para qualquer tipo de contrato a celebrar, situaçã o prejudicial a
todos os níveis; desta forma, corremos o risco de nã o realizar o interesse Pú blico,
pois teremos um caderno de encargos criado para um tipo de contrato, de forma a
atender à s especificidades deste, a funcionar para um contrato diferente com
exigências e finalidades opostas. Nã o queremos, com isso, deixar de lado ou
menosprezar a importâ ncia dos modelos, queremos, acima de tudo, alertar para o
facto de a sua utilizaçã o dever ser rodeada de algumas cautelas.
Enfim, temos ainda muitos desafios na aplicaçã o da LCP, e um deles está
ligado à forma como em Angola encaramos a Contrataçã o Pú blica, com uma visã o
muito jurídica, quando o caminho tende para a valorizaçã o da dimensã o econó mica
da contrataçã o pú blica que, obviamente, realiza da melhor maneira a ideia de
eficiência na gestã o de recursos pú blicos. Os postulados basilares da economia
(escolha perfeita, custo de oportunidade, ló gica de mercado, oferta e procura, entre
tantos outros) devem entrar para o nosso vocabulá rio, em primeira instâ ncia, e
depois vir a engrossar a fileira de conceitos operacionais a serem aplicados, ao
nível da Contrataçã o Pú blica Angolana. Tais exigências estã o, acima de tudo,
ligadas aos desafios que a teoria econó mica do contrato coloca aos vá rios
operadores.422

CONCLUSÕES
Em face do que se abordou no artigo, é possível sintetizá -lo da seguinte
forma:

422
Sobre o tema, dentre outros, Fernando Araú jo, Teoria Econó mica do Contrato, Almedina
2007. 328
a) O Direito Administrativo é o Direito da Administraçã o Pú blica e esta
ocupa um espaço relevante na vida de cada cidadã o;
b) O Procedimento Administrativo é figura central do moderno Direito
Administrativo, e da sua utilizaçã o só resultam ganhos para o interesse
Pú blico;
c) No domínio da contrataçã o pú blica é importante que se reconheça a
importâ ncia do procedimento, de forma a serem realizados os valores da
transparência, concorrência, igualdade, publicidade, etc.;
d) O Concurso Pú blico deve ser o procedimento regra e os outros serã o
utilizados em funçã o do contexto, obedecendo, para o efeito, à s regras
legalmente estabelecidas;
e) A LCP deve ser ajustada à nossa realidade.

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