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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE

A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NO AUTISMO E SUA RELAÇÃO COM O OUTRO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ROBERTA VERÔNICA FERREIRA COSTA

2005
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NO AUTISMO E SUA RELAÇÃO COM O OUTRO

ROBERTA VERÔNICA FERREIRA COSTA

ORIENTADOR: LUCIANO DA FONSECA ELIA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise


da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicanálise

Rio de Janeiro, 30 de novembro de 2005.


COSTA, Roberta Verônica Ferreira.

A constituição do sujeito no autismo e o olhar do Outro. Rio de


Janeiro: Instituto de Psicologia, UERJ, 2005.

Orientador: Luciano da Fonseca Elia.


Dissertação (Mestrado). UERJ: Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise, 2005.

1- Autismo. 2- Sujeito. 3- Outro. 4- Responsabilidade. 5- Clínica.


I- Título
Dedico esta dissertação de Mestrado a todas as crianças autistas e psicóticas que pude
conhecer e para as quais pude ser um pouco Outro nessa experiência inesquecível.

E também ao meu afilhado BRUNO HENRIQUE, meu anjinho:


a criança que me faz acreditar em todas as outras.
AGRADECIMENTOS

À KÁTIA ALVARES DE CARVALHO MONTEIRO, pela amizade, credibilidade, respeito e por


todas as “possibilidades”...

À ANGÉLICA BASTOS e ANA BEATRIZ FREIRE, por todo o incentivo e força em meus
momentos acadêmicos, sobretudo os mais delicados...

A toda a EQUIPE DO NAICAP, pelo precioso e inesquecível trabalho que fizemos juntas.

À JEANNE MARIE DE LEERS COSTA RIBEIRO, por todas as supervisões clínicas.

A NELSON CALDAS (HUCFF-UFRJ), pelo incentivo “Você vai longe”.

Aos meus AMIGOS - em especial, ALEXANDRE, FERNANDA E HELENA - pela força no início,
meio e fim de tudo isso...

Aos PROFESSORES DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO DA UERJ, por toda a transmissão.

Aos COLEGAS DE MESTRADO, por todo o intercâmbio e momentos compartilhados.

À CAPES, pela bolsa de estudos e todo o apoio em outras oportunidades.

À COMANDANTE MUIÁRA e colegas da MARINHA DO BRASIL, por todo o incentivo.

Às professoras ANGÉLICA BASTOS e SÔNIA ALBERTI, componentes da banca examinadora,


pela presença e pelos significativos apontamentos.

A LUCIANO ELIA, pela valiosa orientação.

Aos meus pais JOANA e JOSÉ PAULO e à minha irmã CLAUDIA, pela força de sempre.

A DEUS, acima de qualquer coisa.


RESUMO

Essa dissertação apresenta algumas questões sobre o sujeito no autismo e sua relação com o
Outro, partindo de um histórico da literatura do termo autismo para, posteriormente,
trabalhar mais profundamente o tema na teoria psicanalítica de Sigmund Freud e Jacques
Lacan. Apostamos na possibilidade de advento do sujeito autista e apresentamos os
processos de constituição do sujeito descritos por Lacan (alienação e separação) e da
intervenção da metáfora paterna na sua estrutura para defender sua posição como uma
resposta ao Outro, tendo como ponto de partida a questão da responsabilidade de cada um
por sua condição de sujeito para pensar as particularidades da relação da criança autista
com o Outro e seus objetos. Finalmente, são apresentadas algumas possibilidades de
trabalho clínico em instituição com crianças autistas. Neste trabalho, pensamos a relação do
sujeito autista com o Outro e seus objetos a partir dos processos de constituição do sujeito,
mas levantamos como temas para futuros trabalhos a possibilidade de pensá-la com a teoria
dos quatro discursos de Lacan e com a definição de sujeito na estrutura R-S-I (uma
articulação entre dimensões real, simbólica e imaginária).
RESUMÉ

Cette dissertation pose la question du sujet autiste dans son rapport à l´Autre,
prenant comme point de départ un cadre historique de la littérature centrée sur le terme
d'autisme. Ensuite, la question est plus profondémente travaillée dans les théories
psychanalytiques de Sigmund Freud et Jacques Lacan. Nous faisons le pari de ce que sujet
autiste puisse advenir à travers le travail analytique et nous présentons les procès de
constitution de sujet décrits par Lacan (aliénation et séparation), en y précisant l'incidence
de la métaphore paternelle dans la structure pous tenir sa position comme réponse à l´Autre,
ayant comme point de départ la question de la responsabilité de chacun de sa condition
de sujet pour penser les particularités du rapport de l'autiste à l`Autre et ses objets.
Finalemente, nous présentons quelques possibilités de travail clinique en institution avec
des enfants autistes. Dans ce travail, nous pensons le rapport de l´enfant autiste à l´Autre
et ses objets à partir des procès de constitution du sujet, mais nous signalons comme thème
pour des travails postérieurs la question de penser la position du sujet autiste à partir de
la théorie des quatre discours de Lacan et de la estructure R-S-I, soit l'articulation des
dimensions du réel, du symbolique et de l'imaginaire
SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................ 01

Capítulo 1 ........................................................................................ 08
Uma breve revisão da literatura sobre Autismo

Capítulo 2 ........................................................................................ 21
A constituição do sujeito e o olhar do Outro

Capítulo 3 ........................................................................................ 36
A questão da responsabilidade no autismo

Capítulo 4 ........................................................................................ 45
Implicações para um trabalho clínico possível

Considerações Finais ................................................................. 55

Referências Bibliográficas ................................................................. 61


“(...) as crianças denominadas autistas
inquietam e fascinam. Aparentemente, não se
consegue ficar indiferente diante delas”.
Ana Elizabeth Cavalcanti
Paulina Schmidtbauer Rocha
Ilustração:
O BERÇO
Berthe Morisot (1872)
APRESENTAÇÃO

“Eu olhei para ela mais uma vez. Já há algum tempo nos
encontrávamos no mesmo horário, na mesma sala.
Entretanto, cada olhar meu, cada palavra proferida,
cada oferta era terminantemente recusada. Era preciso
estar ali como se não estivesse. E como é difícil supor um
sujeito ali onde ele parece insistir em não se apresentar.
Mas naquele dia foi diferente. Ela já estava na sala,
parecia à minha espera, no mesmo horário de sempre.
Brincava com um bambolê no chão, nos giros
intermináveis que parecem fascinar as crianças autistas.
Eu me aproximei e peguei um outro bambolê. Naquele
momento, não usei palavras, apenas rodei o bambolê em
meu braço. Ela se aproximou e eu estendi-lhe a mão,
ainda em silêncio, que ela segurou. Juntas, fizemos o
bambolê rodar. Ela esboçou um sorriso e me olhou
através do espelho. Somente a partir disso, pôde suportar
que eu lhe dirigisse o olhar, a palavra, o ato. Somente a
partir disso, parece ter se permitido comparecer”1.

O fragmento clínico citado não soa estranho para aqueles que trabalham com
crianças autistas ou que, de alguma outra forma, as conhecem. Crianças que têm uma
maneira bastante particular de se fazerem presentes, como em uma “presença ausente”. Se,
em alguns momentos, parecem não notar a presença das outras pessoas, em outros parecem
resistir bravamente a qualquer tentativa de aproximação – seja a voz, o olhar, o toque ou
qualquer outro apelo do outro – de forma arredia ou silenciosa, mas sempre marcante.
Nesse momento, em que elas estão ali parecendo não estar e parecem exigir do outro a
mesma postura, como pensar o status do sujeito no autismo?
Assim, o primeiro capítulo ilustra um histórico da literatura do autismo, suas
primeiras definições médicas e a literatura psicanalítica a respeito. A análise histórica
mostra que as definições de autismo não levam em consideração a dimensão de sujeito:
ainda que haja divergências teóricas, a grande maioria dos autores adere a correntes de
pensamento desenvolvimentistas.

1
Fragmento de uma experiência durante estágio no NAICAP – Núcleo de Assistência Intensiva à Criança
Autista e Psicótica, serviço infantil do Instituto Municipal Philippe Pinel, Rio de Janeiro, que se propõe a
atender crianças autistas, psicóticas e neuróticas graves.
Entretanto, apesar da notória divergência teórica entre algumas abordagens
apresentadas, um fato em comum se mostra central: a relação particular dessas crianças
com as outras pessoas, no sentido de uma recusa radical à sua presença e a seus objetos
(voz, olhar, toque).
Inicialmente, quando descreveu o autismo infantil precoce como doença (e não mais
como um estado psicológico, como até então era descrito por Bleuler), Kanner supôs algum
funcionamento lógico nos aspectos fenomenológicos que observou nas suas pesquisas com
crianças autistas – embora posteriormente tenha aderido a uma visão mais organicista
desses fenômenos. Isso parece ter aberto espaço para que se apostasse na possibilidade de
subjetivação dessas crianças, sobretudo a partir da abordagem psicanalítica sobre o sujeito,
acreditando que ele não existe a priori, mas é constituído na relação com o Outro.
Freud aponta a relação precoce da criança com o Outro quando descreve a
participação deste como seu auxiliador, importante no momento de desamparo constitutivo
de todo sujeito enquanto bebê, no sentido de atentar para as suas necessidades (fome, sede,
etc) e promover ações para satisfazê-las.
Quais seriam então as condições para o advento do sujeito? O que é uma estrutura
que o designa como tal? O sujeito se constitui a partir da relação que estabelece com o
Outro, por isso faz-se pertinente e imprescindível pensar a questão principal do autismo: a
relação particular que a criança autista estabelece com as outras pessoas, sua posição de
sujeito. Sabe-se que a nomeação de um bebê não garante por si só a sua presença subjetiva:
a subjetivação, para a Psicanálise, não é natural, mas tem a linguagem, enquanto dimensão
própria do humano, como condição promotora da passagem do ser vivo para o sujeito.
Trata-se, pois, de uma causação do sujeito. Lacan apresenta a alienação e a separação como
processos constituintes do sujeito, apontando uma relação intrínseca entre sujeito e Outro,
uma vez que esses campos não subsistem isoladamente: o sujeito é marcado pelo Outro,
pelos seus significantes, e é a partir disso que se constitui como tal.
A constituição do sujeito e sua relação como Outro será abordada no segundo
capítulo, tomando como direção o referencial psicanalítico de Freud, no que se refere às
primeiras relações do bebê com o mundo, e mais profundamente de Lacan, quanto aos
processos de alienação e separação e à metáfora paterna, com a intenção de oferecer um
embasamento teórico que sustente a reflexão que permeia o terceiro capítulo, a saber, como
pensar as relações particulares estabelecidas pelas crianças autistas com o Outro. Partindo
da questão da responsabilidade e da causalidade psíquica, serão levantadas reflexões
psicanalíticas acerca de aspectos fenomenológicos observados nessa clínica.
No que se refere aos processos de sua constituição enquanto sujeito, veremos que a
criança autista não está aquém da alienação, mas é fato que, neste processo, ela não afaniza,
tampouco avança para a separação. O autista estaria então petrificado no significante S1? A
problemática do autismo também concerne à intimação que o Outro (a mãe) faz em seu
discurso, no que se refere à presença ou ausência da função invocante de que fala Lacan.
Assim, trata-se de uma dupla questão: qual o estatuto da criança autista enquanto sujeito e
que estatuto tem esse Outro diante do qual ela assume essa posição tão radical?
Lacan, ao afirmar que “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis”2,
aponta a responsabilidade do sujeito por assumir uma posição frente ao Outro. Isso sustenta
que o autismo não é pensado pela Psicanálise como um déficit estrutural frente ao que seria
um desejável desenvolvimento ideal, mas como uma resposta de sujeito frente ao Outro.
Essa responsabilidade não se refere a uma culpabilização e/ou ausência de investimento,
seja por parte da mãe ou da criança, como poderiam incitar algumas linhas de estudo dessa
clínica.
A relação das crianças autistas com a linguagem, na medida em que esta se refere ao
Outro, também se mostra bastante particular. É comum no discurso das mães de crianças
autistas o relato de que elas começaram a falar na tenra idade e pararam certo tempo depois.
Sabe-se que, mesmo que não falem, algo se fala delas – e para elas – assim, como pensar a
sua relação com a linguagem? No momento algumas dessas crianças falaram, teria sido
essa fala tomada como apelo?

2
LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1965-66). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.
873.
Se é nas faltas do discurso do Outro que o desejo deste é apreendido pelo sujeito, o
que pensar a respeito do Outro no autismo? Teria ele feito a intimação furada3 através da
qual é apontado para a criança o enigma do desejo do adulto? Se é a partir do Outro que a
mensagem retorna ao sujeito invertida, como se deu essa relação entre a fala uma vez
apresentada por essas crianças e o seu lugar no discurso do Outro? Laznik-Penot4 relembra
a loucura necessária às mães sobre o que nos alerta Winnicott, no sentido de atribuir algum
sentido aos sons aparentemente indecifráveis de seus bebês, o que já mostra um certo
endereçamento das mães à singularidade da criança5.
Tal como sustenta Soler, a criança autista está na linguagem, embora não esteja no
discurso. Ela entra no campo da linguagem, mas não a faz função, não toma um significante
para se fazer representar. E se a linguagem – e mais especificamente, a fala - comporta uma
dimensão de falta, nossa hipótese é a de que, justamente por não dispor de uma
simbolização primordial que a implique, essa falta não é suportada por essas crianças, que
recusam terminantemente a fala enquanto função. Elia6 aposta que o autista “prova” da fala
para poder parar de falar; ou seja, o “parar de falar” é um efeito desencadeado pela própria
experiência falante, promotora de um gozo que o sujeito precisou experimentar como
insuportável para poder recusar a fala:

Será que podemos formular a hipótese de que é necessário ao sujeito experimentar o efeito
do ato de falar, e portanto, como propusemos no início de nossa argumentação, um efeito de
gozo, experimentado como insuportável para o sujeito, na medida em que o lança no
circuito da demanda para um Outro que precisamente a massacra, a reduz à necessidade?7

3
“Uma falta é, pelo sujeito, encontrada no Outro, na intimação mesma que lhe faz o Outro por seu discurso.
Nos intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é radicalmente
destacável – ele me diz isso, mas o que é que ele quer?” – LACAN, Jacques. O Seminário Livro 11 Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Op. cit. p. 203.
4
LAZNIK-PENOT, Marie-Christine. Rumo à palavra: três crianças autistas em psicanálise. São Paulo:
Escuta, 1997.
5
Durante uma entrevista com a mãe de uma criança autista no NAICAP, seu filho de 4 anos brinca com um
telefone de plástico. Pergunto a ele: “Você vai telefonar pra quem?”, ao que imediatamente a mãe reage: “Não
adianta, ele não sabe que isso é um telefone e para que serve, coloca tudo no ouvido assim mesmo”. A criança
então se levanta, traz o telefone até mim e, colocando-o no meu ouvido, diz: “Alô”.
6
ELIA, Luciano. Desenvolvimento, estrutura e gozo. In: MARRAIO. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005.
7
Id. Ibidem.
Um outro aspecto interessante observado na clínica do autismo é o número maciço
de crianças autistas do sexo masculino em comparação ao quantitativo infinitamente menor
de crianças do sexo feminino que apresentam essa problemática. Estudos mundiais apontam
maior prevalência do autismo em homens que em mulheres, no sentido de que “a
predominância dos meninos, segundo as investigações feitas, varia de 2,5 a
4,3 meninos para cada menina”8.
Tomando como referência uma pesquisa mais recente9, os dados apontam a
prevalência de 80% de crianças autistas e psicóticas do sexo masculino, quadro bastante
significativo frente ao quantitativo de 20% correspondentes ao sexo feminino. Haveria aí
alguma relação com a vivência do Édipo?
Somam-se a esse quadro a dificuldade que essas crianças apresentam para dormir
(muitas chegam a passar dias acordadas) e a capacidade “analgésica” que parecem ter,
raramente sentindo dor ou adoecendo, independente das circunstâncias a que se submetem.
Partindo da premissa de que o corpo da criança é constituído como tal a partir do corpo
simbólico, da sua apreensão na cadeia de significantes, o fato das crianças autistas não
alcançarem esse corpo de significantes justificaria a ausência de reações corporais como
dor, choro, gripe, etc. A dificuldade de dormir, por sua vez, poderia estar associada à
ameaça que o sono implica a esse corpo vivenciado como fragmentado, já que quando o ato
de dormir impele que o sujeito abra mão de sua pretensa unidade corporal, inexistente no
autismo.
A relação dessas crianças com outros corpos também tem sua particularidade: não
raro vemos que o corpo do Outro é tratado por partes, como “pedaços de corpo”, como por
exemplo quando as crianças utilizam as mãos deste para pegar os objetos que desejam e
enfiam seus dedos nos orifícios alheios (olhos, boca, orelhas, nariz). Neste momento, o
Outro é apenas a mão, os olhos, a boca, as orelhas, o nariz. No fragmento citado no início
desta apresentação, vê-se claramente um exemplo disso: o Outro é a mão que balança o
bambolê, a mão que segura a outra mão, o olho que olha pelo espelho.

8
Dados epidemiológicos retirados de um estudo realizado numa ilha japonesa no ano de 1972, citados em
AJUIAGUERRA, J. Manual de Psiquiatria Infantil. Rio de Janeiro: Editora Masson do Brasil, 1980.
9
Referência à pesquisa “Estudo da Demanda” (2001), realizada no NAICAP, Núcleo de Assistência Intensiva
à Criança Autista e Psicótica, do Instituto Municipal Philippe Pinel, serviço de referência no atendimento de
crianças autistas e psicóticas no Rio de Janeiro.
Assim como essas crianças apresentam uma relação bastante particular com o seu
corpo e com o corpo do Outro, também a têm com relação a seus objetos (fezes, saliva,
secreções), mais particular ainda quanto aos objetos que presentificam o Outro (olhar, voz,
toque), tomando-os como insuportáveis.
Finalmente, após a discussão acerca da relação da criança autista com o Outro, o
quarto e último capítulo apresenta implicações psicanalíticas para um trabalho possível com
essas crianças. Se a teoria se fundamenta na clínica (e vice-versa) quais seriam as
implicações desse estudo para um trabalho clínico com crianças autistas? A teoria, por si
só, não aborda o autismo, até porque a psicanálise é clínica e não pode dispor de outro lugar
para seu aprendizado que não este. A pesquisa em psicanálise tem como especificidade a
experiência da palavra que, tal como a clínica, coloca o sujeito como baliza, ressaltando
porém, a causalidade psíquica de sua condição, tal como afirma Bastos:

Se o tratamento psicanalítico foi considerado equivalente à construção da história, isso


ocorreu em uma configuração da história da psicanálise que tentaremos circunscrever como
um movimento contrário à idéia de causalidade natural e empenhado no resgate do sentido.
O sentido de que se trata, no entanto, não é aquele que se compreende; também não se
confunde com a significação, nem se reduz a ela, desembocando no não-sentido10.

Pensar um trabalho clínico que tome o autismo como uma posição do sujeito frente
ao Outro denota uma aposta neste sujeito, ainda que ele não apareça. É preciso dizer, sem
vacilar, que há sujeito ali para que de fato ele possa existir, e tomar as suas produções
sonoras e corporais como ato, atribuindo-lhes valor significante. É importante tomá-las
como material de trabalho e não como mera estereotipia ou “manias”, já que se essas
crianças podem estar apontando aí algo da ordem do sujeito: uma passa o tempo abrindo e
fechando portas, outra se interessar em organizar metodicamente os objetos, outra brinca
com líquidos (água, tinta) de forma intermitente, e mesmo duas crianças que repetem a fala
do Outro incessantemente podem não repetir as mesmas palavras.

10
BASTOS, Angélica. As histórias e a história. In: A psicanálise e o pensamento moderno. Regina Herzog
(org). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. p. 61.
A ausência da fala manifesta-se nela pelas estereotipias de um discurso em que o sujeito,
pode-se dizer, é mais falado do que fala: ali reconhecemos os símbolos do inconsciente sob
formas petrificadas, que, ao lado das formas embalsamadas com que se apresentam os
mitos em nossas coletâneas, encontram seu lugar numa história natural desses símbolos11.

É essa aposta do advento do sujeito no autismo que sustenta a possibilidade de um


trabalho clínico psicanalítico com crianças autistas, já que a psicanálise é uma clínica do
sujeito. Tão paradoxal quanto a escolha “forçada” do sujeito – que é paradoxal porque, se
por um lado, precede seu advento, por outro, o obriga a responder, como sujeito, a partir
dela – é a psicanálise com crianças autistas. Assim como a psicanálise com crianças não é
uma especialidade da psicanálise, não se trata de apostar em uma “psicanálise de autistas”,
mas em um trabalho psicanalítico que, somente e por ser psicanalítico, aposta no sujeito.

11
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998. p. 281.
CAPÍTULO 1
UMA BREVE REVISÃO DA LITERATURA SOBRE O AUTISMO

“Há aqueles para quem dizer algumas palavras não


é tão fácil. Chama-se isso de autismo. É ir rápido
demais. Não é de todo forçosamente isso”12.
Jacques Lacan

O que dizer sobre aquele que não diz? Desde a sua descoberta, o autismo fascina e
intriga. Quem é essa criança autista que, ao mesmo tempo em que é descrita pela negativa
(“não faz relação”, “não fala”) e se mostra tão alheia ao mundo e às pessoas, parece tão
absolutamente imersa na linguagem? De que sujeito se trata quando se trata de autismo?
É recente a abordagem sobre a constituição do sujeito no autismo porque a própria
clínica do autismo é nova. Pode-se dizer que os analistas ainda estão na sua “porta de
entrada”: ainda não há uma teoria clínica constituída para o autismo tal como aquela
descrita inicialmente por Freud com relação aos neuróticos. Mas os autistas estão aí e
impelem ao trabalho, a questionamentos, a experiências. Como a criança autista se constitui
sujeito e para tal, que estatuto dá ao Outro? A partir disso, quais as possibilidades
psicanalíticas de trabalho com essas crianças e que posição é dada ao analista para tal?
O termo autismo foi introduzido por Bleuler, psiquiatra alemão contemporâneo de
Freud e membro da Sociedade Psicanalítica de Viena. Bleuler foi reconhecido por definir a
schizophrenia (1908), conhecida como dementia praecox, não como uma demência que
envolvesse deteriorizações orgânicas, mas como um estado mental em que tendências
contraditórias coexistiam. Em 1911, utilizou pela primeira vez o termo autismo para
designar como principais sintomas da esquizofrenia no adulto a perda de contato com a
realidade e a impossibilidade de comunicação interpessoal, apresentando uma equivalência
deste termo ao auto-erotismo definido por Freud, no que se referia ao investimento libidinal
em si mesmo.

12
LACAN, J citado por RIBEIRO, M. A. C. In: Revista MARRAIO. Formações Clínicas do Campo
Lacaniano. No 2. Rio de Janeiro, 2001. p. 07.
Entretanto, foi através da sintomatologia descrita por Leo Kanner (1943) como
distúrbio autístico do contato afetivo e, posteriormente, autismo infantil precoce, que o
autismo adquiriu o estatuto de entidade nosográfica. No que se refere a seus aspectos
clínicos, Kanner13 descreveu alguns casos de crianças autistas que chegaram à instituição
com suposições diagnósticas diversas, mas cujo quadro clínico não se enquadrava em
nenhuma classificação psiquiátrica existente até então14. Tomando como referência
algumas descrições de Kanner a respeito da condição apresentada por essas crianças -
Donald “parece quase se fechar em sua concha e viver no interior de si mesmo”15; Richard
“parece bastar-se a si mesmo em suas brincadeiras”16; Bárbara é “passiva a maior parte
do tempo, mas às vezes passivamente obstinada”17; Virginia “se mantém afastada das
outras crianças”18 - o que se percebe é que, ao mesmo tempo em que elas parecem não se
dar conta da presença das outras pessoas, as vozes e olhares provenientes destas são vividos
como uma invasão.
Comprovando a inexistência de déficits cognitivos e/ou auditivos (na grande
maioria dos casos era levantada a hipótese de surdez, haja vista a ausência de resposta
dessas crianças), como guardavam a grande maioria das suspeitas, Kanner afirmou como
“distúrbio mais surpreendente (...) a “incapacidade destas crianças de estabelecer
relações” de maneira normal com as pessoas e situações, desde o princípio de suas
vidas”19. No início de suas pesquisas, na década de 40, Kanner remetia essas observações
clínicas ao saber da psiquiatria clássica e também acreditava na possibilidade de alguma
lógica reger as produções (verbais ou não-verbais) dessas crianças. Entretanto, alguns anos
depois, ele se afasta desta abordagem clínica e, aliando-se a linhas teóricas mais
organicistas, justifica o autismo por razões congênitas ou mesmo genéticas – mas uma
questão se impõe: até que ponto o autismo é um estado fenomenológico ou pode ser
pensado como atrelado a uma estrutura?

13
KANNER, Leo. Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo (1943). In: Autismos. SCHMIDTBAUER,
Paulina (org). Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem. Recife: Editora Recife, 1997.
14
Algumas classificações psiquiátricas da época: demência precoce, oligofrenia e esquizofrenia infantil.
15
Id. Ibidem. p. 113.
16
Id. Ibidem p. 126.
17
Id. Ibidem. p. 133.
18
Id. Ibidem. p. 135.
19
Id. Ibidem. p. 156.
Não tendo sido comprovadas quaisquer deficiências cognitivas no quadro de
autismo, a quarta edição do manual publicado pela Associação Americana de Psiquiatria o
inclui no diagnóstico das desordens mentais definidas primeiramente na infância e
adolescência. Em 2000, o DSM-IV foi substituído pelo DSM-IV-TR20, permanecendo essa
classificação junto a outras entidades nosográficas desencadeadas na infância, tais como a
Síndrome de Asperger (caracterizada pela procedência normal da linguagem e do
desenvolvimento cognitivo, mas por um atraso na interação social), Síndrome de Tourette
(cujas características mais notórias são tiques motores e vocais rápidos, recorrentes e
estereotipados) e outros transtornos considerados desiderativos e globais do
21
desenvolvimento inespecíficos. Assim como o DSM, o CID-X não inclui a subjetividade
como critério para suas classificações, mantendo o autismo dentro dos critérios
diagnósticos utilizados para as psicoses infantis e inserindo-o na classificação de
“Transtornos Globais do Desenvolvimento”.
Desde então, muitos caminhos foram traçados para pensar as particularidades das
crianças autistas. Particularidades contraditórias, relações intrigantes dessas crianças com a
linguagem, o Outro, os objetos, o próprio corpo. Se a neurologia descrevia o autismo como
uma síndrome de determinação puramente orgânica, e a psiquiatria o considerava um
distúrbio psicoafetivo ou mesmo uma doença geneticamente determinada, no campo da
psicanálise os autores apresentaram visões bastante controversas quanto à conceituação do
autismo.
Margareth Mahler, adepta a uma corrente de concepções evolucionistas, afirmava o
autismo como sendo decorrente de bloqueios no desenvolvimento, acreditando que as
psicoses na infância eram desencadeadas por distorções no seio das relações precoces
estabelecidas entre a mãe e o bebê. Ela descrevera três fases do desenvolvimento que
considerava normal: o autismo primário normal (do nascimento aos 3 meses de vida), a
simbiose (na qual o bebê ainda vê a mãe como uma extensão de si) e finalmente, a
separação/individuação (a partir da qual a criança passa a investir no mundo externo).

20
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5a
ed. Washington D.C., 2000.
21
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação de transtornos mentais e de comportamento:
CID-10. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
Ao definir o autismo primário normal, tomou como referência a metáfora freudiana
do ovo do pássaro22, ilustrando um tipo de funcionamento psíquico em que o bebê, como o
embrião das aves, satisfaz suas necessidades de forma auto-suficiente e sem a percepção de
uma realidade externa.

Corretamente objetar-se-á que uma organização que fosse escrava do princípio de prazer e
negligenciasse a realidade do mundo externo não se poderia manter viva, nem mesmo pelo
tempo mais breve, de maneira que não poderia ter existido de modo algum. A utilização de
uma ficção como esta, contudo, justifica-se quando se considera que o bebê – desde que se
inclua o cuidado que recebe da mãe – quase realiza um sistema psíquico desse tipo (...) Um
exemplo nítido do sistema psíquico isolado dos estímulos do mundo externo e capaz de
satisfazer autisticamente (para empregar a expressão de Bleuler, 1912) mesmo suas
exigências nutricionais é fornecido por um ovo de pássaro, com sua provisão de alimento
encerrada na casca; para ele, o cuidado proporcionado pela mãe limita-se ao fornecimento
de calor23.

Ela apostava que fatores constitucionais da criança (no sentido de uma


predisposição a uma inadaptação ao ambiente) e os efeitos de fatores ambientais seriam
necessários para que se desenvolvesse um autismo patológico.
Melanie Klein, por sua vez, afirmava que as primeiras angústias vivenciadas no
desenvolvimento da criança seriam de natureza psicótica e as defesas organizadas contra
elas caracterizariam a posição “esquizo-paranóide”, própria aos primeiros meses de vida. A
psicose infantil seria não somente uma persistência nessa fase para além do período
considerado normal, mas também uma exacerbação dos modos de defesa devido à
intensidade das pulsões agressivas que não puderam autorizar o desenrolar satisfatório das
pulsões libidinais. Se a prova de realidade e a emergência da organização simbólica são
consideradas alguns dos acontecimentos responsáveis pela superação da posição “esquizo-
paranóide”, no caso da psicose, o objeto original e o símbolo não são diferenciados no
pensamento – o que entravaria o acesso e o manejo do mundo simbólico.

22
FREUD, S. Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental (1911). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud, v. XII. RJ: Editora Imago, 1996.
23
Op. cit. p. 239.
Francis Tustin, por sua vez, definiu o autismo como “uma defesa ante um encontro
prematuro e traumático com o mundo externo que leva a criança a um retraimento
profundo, comprometendo de forma avassaladora todo o processo de constituição da vida
psíquica”24. Inicialmente apoiada na teoria kleiniana, em um segundo momento, sua obra
teve forte influência do pensamento de Margareth Mahler. Tustin distinguiu quatro tipos de
autismo: o autismo primário normal, que seria o momento sucessivo ao nascimento em que
a criança estaria em um estado de indiferenciação com o outro, o autismo primário
anormal, caracterizado pela permanência no estado anterior devido a atropelos na relação
do bebê com o meio ambiente; o autismo secundário encapsulado, correspondente à
descrição de Kanner e no qual a criança recusa qualquer contato com o objeto não-eu por
conta de dificuldades de separação; e finalmente, o autismo secundário regressivo,
desencadeado durante o processo que chamou psicose simbiótica. O terceiro momento de
sua obra data de 1986 quando, ainda tomando Mahler como referência, ela postulou uma
fase de autismo “normal”, a que o autismo patológico seria uma regressão, ampliando o
conceito de autismo ao propor a existência de seu núcleo em pacientes neuróticos.
Também nessa linha de pensamento, Bruno Bettelheim (1987) caracterizava o
autismo como um estado de fechamento e ausência de relações objetais possíveis, no qual a
criança sofre de uma espécie de “marasmo infantil”25 e não possui um mundo imaginário.
Ele propôs que o autismo fosse encarado como decorrente de uma experiência do bebê
durante três ou mais períodos críticos do desenvolvimento: o primeiro, podendo ocorrer nos
primeiros seis meses, período caracterizado principalmente pelo reconhecimento das
pessoas próximas e recusa a pessoas estranhas; o segundo, dos seis aos nove meses, quando
o bebê descobre os outros e conseqüentemente, o “eu”, começando a relacionar-se de forma
diferenciada; e o terceiro, dos dezoito meses a dois anos de idade, quando o autismo é mais
facilmente detectado, uma vez que é a idade em que a criança parece optar definitivamente
por aproximar-se do mundo ou evitá-lo sob a forma de um alheamento físico e
emocionalmente.

24
CAVALCANTI, Ana Elizabeth & ROCHA, Paulina Schmidtbauer. Autismo: construções e desconstruções.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.
25
BETTELHEIM, Bruno. A fortaleza vazia. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p.51.
Sigmund Freud26 já apontava a importância do Outro para o sujeito em uma relação
bastante precoce, quando abordou a questão do desamparo e da experiência de satisfação
como sendo a primeira relação do sujeito com este Outro, que ali teria função de auxiliador.
Tomando como exemplo a fome, mostrou que o bebê necessita de uma ação específica
externa, promovida por um outro que atente para seu estado aflitivo e testemunhe um valor
de mensagem neste grito/choro, intervindo com um olhar não anônimo para satisfazer suas
necessidades. Essa ação introduz a criança no mundo do simbólico, na medida em que esse
desamparo não se refere apenas a uma questão biológica, mas à questão da linguagem, já
que é ela que a lança ao desamparo e é pelo endereçamento atribuído a uma mensagem que
ela toma sentido, havendo algum tipo de comunicação. A demanda do sujeito é então
constituída nos passos da necessidade, na medida em que seria a transformação desta por
sua passagem pelo Outro.

Todavia, desses primeiros e mais importantes de todos os vínculos sexuais, resta, mesmo
depois que a atividade sexual se separa da nutrição, uma parcela significativa que ajuda a
preparar a escolha do objeto e, dessa maneira, restaurar a felicidade perdida27.

A distinção entre desejo, demanda e necessidade se apresenta em uma relação de


deslizamento. A necessidade é referida a questões de ordem biológica propriamente ditas
(comer, beber, dormir). A demanda seria a formulação dessa necessidade; ou seja, a
introdução desta na ordem simbólica - “a demanda transforma a necessidade, a oblitera, a
opacifica”28. O desejo aparece então como efeito dessa dependência gerada pela demanda,
na medida em que é o que resta quando se subtrai da demanda a necessidade.
O desejo é definido por Lacan como “uma defasagem essencial em relação a tudo o
que é, pura e simplesmente, da ordem da direção imaginária da necessidade – necessidade
que a demanda introduz numa ordem outra, a ordem simbólica”29.

26
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica (1895). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de S. Freud, v. I. RJ: Editora Imago, 1996.
27
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a sexualidade (1905). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de S. Freud, v. XII. RJ: Editora Imago, 1996. p. 210.
28
MILLER, Jacques-Allain. Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 60.
29
LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 5: As Formações do Inconsciente (1957-58). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor:1992. p.96.
A demanda se coloca numa comunhão de registro e linguagem, sendo dirigida como
entrega de um todo de si e de suas necessidades a um Outro de quem o próprio material
significante da demanda é tomado como empréstimo30, uma vez que se trata de um
processo circular.
Assim, é através do Outro que o sujeito ingressa no mundo da comunicação, na
medida em que é este quem dará sentido às suas ações, dirigindo-lhe um olhar não
anônimo, “dotado de capacidade discursiva”31. Freud indica “usualmente, a mãe”32 como
aquela que dirigirá esse olhar para a criança, na medida em que a tratará com sentimentos
que se originam de sua própria vida sexual, tratando-a como “o substituto de um objeto
sexual plenamente legítimo”33 .
No texto sobre o narcisismo34, Freud aborda mais precisamente a representação da
criança pelo olhar dos pais e a conseqüência desta para sua constituição enquanto sujeito.
Ele desmonta a definição35 de Paul Näcke, em que a idéia de narcisismo é considerada uma
perversão que se refere a um estado que pode ser encontrado em muitas perturbações, e
define o narcisismo como uma condição inerente a todo sujeito, tendo para este um caráter
estrutural.
A força motriz para Freud trabalha esse conceito de narcisismo – e,
conseqüentemente, elaborar a idéia de narcisismo primário e narcisismo secundário - foi a
descrição dos casos de esquizofrenia e demência precoce. Fez-se necessário pensar como
esses quadros clínicos estariam relacionados à teoria da libido, já que em ambos, o
investimento sexual parecia estar ausente do mundo externo e os interesses desviados para
uma megalomania. Se no caso dos pacientes histéricos ou neuróticos obsessivos havia uma
substituição pela fantasia, nos parafrênicos essa substituição era secundária.

30
Id. Ibidem. p.98.
31
ANSERMET, François. Clínica da Origem – a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2003. p.08.
32
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a sexualidade (1905). Op cit. p. 211.
33
Id. Ibidem. p. 211.
34
FREUD, Sigmund. Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de S. Freud, v. XII. RJ: Editora Imago, 1996.
35
O termo narcisismo deriva da descrição clínica e foi escolhido por Paul Näcke em 1899 com a seguinte
designação: “a atitude de uma pessoa que trata seu próprio corpo da mesma forma pela qual o corpo de um
objeto sexual é comumente tratado – que o contempla, vale dizer, o afaga e o acaricia até obter satisfação
completa através dessas atividades” in FREUD, Sigmund. Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). Op
cit. p.81.
A questão que se colocava então era: como pensar a libido afastada dos objetos
externos na esquizofrenia? A resposta parecia estar apontada pela megalomania
característica desses casos, na qual a libido, afastada dos objetos externos, era dirigida para
o ego, dando margem a uma atitude de narcisismo – sendo assim a manifestação mais clara
de uma condição que já existia previamente. Isso implicava considerar que o narcisismo
que surge desta retração da libido até então direcionada aos objetos externos era secundário,
superposto a um narcisismo anterior, então definido como primário.
Freud exemplifica com a atitude afetuosa dos pais para com seu filho, reconhecendo
que através dela eles revivem e reproduzem seus próprios narcisismos36, já que sua postura
emocional para com a criança é constituída basicamente por uma supervalorização,
considerada estigma narcisista no caso da escolha objetal.
Primeiramente concebida como “Sua Majestade O Bebê” no olhar dos pais, a
criança abarca sobre si o que Freud chamou EU ideal, dotado de atributos de perfeição e
valor. Essa imagem seria constitutiva do narcisismo primário e caracterizada pelo
investimento original da libido no EU. Parte desse investimento inicial persiste e é
posteriormente transmitido a objetos externos (amor objetal), o que mostra que o EU é
concebido inicialmente como objeto original de investimento libidinal e, quando
estabelecida uma dinâmica da libido como deslocamento, tem a possibilidade de
investimento em outros objetos.
Freud estabelece então uma relação entre o narcisismo e o auto-erotismo, até então
descrito como um “estado inicial da libido”37. Assim, Freud rompe com a primeira teoria
pulsional, fazendo do EU objeto da pulsão sexual. Parte do princípio de que o ego deveria
ser desenvolvido e ainda que as pulsões auto-eróticas estivessem ali sempre presentes,
somente a partir de uma ação psíquica o narcisismo poderia ser construído: antes dela, as
primeiras satisfações sexuais auto-eróticas eram atribuídas às funções vitais que serviam à
finalidade de auto-conservação e, depois dessa ação psíquica, as pulsões sexuais delas se
“separariam”.

36
“O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais
renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocadamente revela sua natureza anterior” in
FREUD, Sigmund. Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). Op. cit. p. 98.
37
Id. p.84.
O grande marco deste texto parece ser a constatação de que o EU não está ali desde
sempre e que seu desenvolvimento consiste no afastamento do narcisismo primário e na
constante busca de sua recuperação através da formação de um ideal. Para Freud, portanto,
o EU é constituído a partir dessa ação psíquica acrescentada à dispersão auto-erótica para
que o sujeito possa unificar-se em seu narcisismo. É o olhar do Outro (inicialmente
encarnado pelos pais) através da projeção de uma imagem idealizada sobre a criança que
funda esse narcisismo primário infantil.
A queda desse ideal de perfeição (característico da “Sua Majestade o Bebê”) se dá
justamente quando, na formação desta imagem especular, opera um Outro barrado, com
uma falta que nenhuma imagem idealizada deste bebê pode suprir. Em termos gerais, o que
este Outro primordial faz é demandar que o sujeito demande, já que “a perda que afeta o
sujeito e o Outro permite a subtração de gozo com a coisa e intima ao desejo, que vem do
Outro”38 .
É por esta razão que Lacan afirma que só há um lugar possível ao sujeito: no
significante, que está no campo do Outro, ao qual ele confere o “lugar em que se situa a
cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito”39. É
neste sentido que Lacan afirma que o sujeito é produzido dentro da linguagem que o
aguarda, sendo seu efeito - e não seu agente.
Lacan aposta no advento do sujeito (e não na sua existência a priori) e explora as
condições necessárias para tal. Uma primeira referência é encontrada quando ele descreve o
estádio do espelho como formador da função do eu. Lacan cita exemplos de animais que
necessitam visualizar a experiência de congêneres para adquirir um reconhecimento e os
diferencia do homem, afirmando que neste último, não se trata de uma experiência
meramente mimética: o reconhecimento de sua imagem no espelho repercute na criança
uma série variada de ações com relação ao seu corpo, às pessoas e aos objetos. Trata-se da
identificação que se constitui matriz para todas as identificações subseqüentes.

38
VORCARO, Ângela. Crianças na Psicanálise – Clínica, Instituição e Laço Social. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1999. p.27.
39
LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964). Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p.193-194.
É essa captação pela imago da figura humana (...) que domina, entre os seis meses e os dois
anos e meio, toda a dialética do comportamento da criança na presença de seu semelhante
(...) Essa relação erótica, em que o indivíduo humano se fixa numa imagem que o aliena,
em si mesmo, eis aí a energia e a forma donde se origina a organização passional que ele irá
chamar de seu eu40.

Lacan atribui um fundamento simbólico à experiência do estádio do espelho,


afirmando que, como identificação primordial, ele se apresenta como uma experiência
“mais constituinte do que constituída”41. É a palavra do Outro que vai permitir, a partir da
constituição dessa primeira imagem, a confirmação do estatuto de sujeito, uma vez que a
imagem por si só atesta essa diferenciação apenas no mundo visível, enquanto que o
advento do sujeito necessariamente parte da dialética do sujeito com o Outro.
É através da relação afetuosa da mãe que o corpo da criança é erogeneizado, não
como uma conseqüência da satisfação de suas necessidades biológicas, mas referido a um
olhar, tal como afirma Jerusalinski: “há sem dúvida um olhar materno que (...) pode ser
chamado de função no sentido descritivo do papel que cabe como primeiro objeto que se
oferece a ser simbolizado”42.
Lacan explicita essas funções da mãe e do pai para além da satisfação das
necessidades afirmando que essa transmissão se dá no sentido de uma constituição
subjetiva, “implicando a relação com um desejo que não seja anônimo”43: já que no início
da sua vida o homem não está neurologicamente apto a fazer uma representação de sua
unidade corporal, é o pensamento do Outro que dará à sua imagem no espelho a idéia desta
unidade (seu próprio EU visto como outro). Trata-se do estádio do espelho, que Lacan
descreve como aquele que “reenvia ao sujeito uma imagem de sua unidade corporal à
medida que o Outro dá o sentido”44, assim também prescindindo do simbólico.

40
LACAN, J. A agressividade em psicanálise (1948). In: Escritos. Op. cit. p. 116.
41
LACAN, J. O estádio do espelho como formador na função do eu (1949). In: Escritos. Op. cit. p. 98.
42
JERUSALINSKI, Alfredo. Psicanálise do Autismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984 citado por
STEFAN, Denise Rocha in: O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Salvador: Ágalma,
1991. p.24.
43
LACAN, Jacques. Notas sobre a criança (1969). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003. p.369.
44
NOMINÉ, Bernard. A questão do sintoma e a problemática do corpo no autismo. In: ALBERTI, Sônia
(org). Autismo e psicose na clínica da esquize.Rio de Janeiro, Marca D´Água Livraria e Editora, 1999. p.237.
É um olhar que mostra, há aí a questão da mostração, o investimento desse Outro. O
investimento ultrapassa os cuidados da necessidade, não é disso que se trata: o investimento
tem a ver com essa palavra que se endereça a um sujeito e que mostra efetivamente que ele
é desejado45.

O corpo é então constituído como efeito de um investimento pulsional, como lugar


de inscrição de significantes. A junção do sujeito com o corpo se efetua sob a forma de
corte, que Lacan destaca nas pulsões parciais como caráter de borda, em que são
reconhecidas as zonas erógenas. Esse “enodamento entre surgimento do sujeito e
enlaçamento do circuito pulsional”46, é definido por Lacan em três tempos: o circuito
começa na borda, dirige-se ao vazio do objeto faltoso e retorna após contorná-lo através da
mediação com o Outro.

(...) não há dois termos nessas pulsões, mas três. É preciso bem distinguir a volta em
circuito de uma pulsão do que aparece – mas também por não aparecer, - num terceiro
tempo. Isto é, o aparecimento de ein neues Subjekt que é preciso entender assim – não que
ali já houvesse um, a saber, o sujeito da pulsão, mas que é novo ver aparecer um sujeito.
Esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que a pulsão pôde fechar seu curso
circular. É somente com sua aparição no nível do outro que pode ser realizado o que é da
função da pulsão47.

45
NAZAR, Maria Teresa Palazzo. Tempos modernos. In: ALBERTI, Sonia. O adolescente e a modernidade.
Congresso Internacional de Psicanálise e suas conexões. Tomo I. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
p. 49.
46
LAZNIK-PENOT, Marie-Christine. Quando a alienação faz falta. In: O que a clínica do autismo pode
ensinar aos psicanalistas. Op. cit. p.43.
47
Id. Ibidem.
Representação gráfica do circuito da pulsão48

No caso da criança autista, essas zonas parecem não fazer borda, não serem tomadas
num circuito pulsional. É como se os significantes se dispersassem no corpo, trazendo um
gozo sem lei nem coordenação, não impedindo a criança de “ser o corpo do Outro e de
gozar de seu objeto na própria relação em que ele é objeto do Outro”49. Isto denota a
diferença de posição do Outro na criança autista e o fato de que seu EU não se constitui
como um EU corporal.

(...) na posição autística o sujeito não se deixa representar por um significante junto ao
Outro. É por isso que ele não utiliza a linguagem para cifrar seu gozo, ele não utiliza os
significantes da demanda do Outro para recuperar essa parte perdida dele mesmo.
Retomando a metáfora de Freud, é a boca que beija a si mesma. O que nos faz falar é que
situamos o que nos falta do lado do Outro, é por isso que aceitamos endereçar-lhe nossas
demandas. O autista não situa seu objeto no Outro, mas em contrapartida, ele considera a si
mesmo como seu próprio objeto, e isso significa que ele não é objeto de ninguém mais (...)
posição autística seria caracterizada por uma recusa primordial e radical do sujeito diante
dessa posição de objeto do Outro50.

48
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Op cit.
p.169.
49
NOMINÉ, Bernard. A questão do sintoma e a problemática do corpo no autismo. In: ALBERTI, Sônia
(org). Autismo e psicose na clínica da esquize.Rio de Janeiro: Marca D´Água Livraria e Editora, 1999. p. 240.
50
NOMINÉ, Bernard. O autista: um escravo da linguagem. In: MARRAIO. Formações Clínicas do Campo
Lacaniano. no 2. Rio de Janeiro, 2001. p.16.
Mas o que acontece para que não haja o trajeto que proponha a satisfação
retornando sobre o ponto de partida? Seria algo da ordem do apelo não se transformou em
demanda, lembrando o grito do bebê que, inicialmente como mera descarga, só adquire um
valor de mensagem quando o Outro lhe atribui um sentido; ou seja, atesta que o corpo não é
só biológico, mas pulsional, regido por significantes?
A auto-agressão, comumente observada nas crianças autistas, denotaria uma falha
no circuito desse trajeto, como se a criança precisasse efetivamente arrancar o objeto no
real de seu próprio corpo? Diferente do seio ou do beijo, por exemplo, em que a
pulsão contorna o objeto, no autismo ela parece não fazer borda, atuando no real do próprio
corpo.
CAPÍTULO 2
SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO

“Uma vez reconhecida a estrutura da


linguagem no inconsciente, que tipo de
sujeito podemos conceber-lhe?”51
Jacques Lacan

Freud tematizou a constituição do EU ao abordar o caso de psicose de Schreber52 e


o conceito de narcisismo53, ressaltando em ambos a importância e a presença do Outro na
relação com o EU. Seus trabalhos também alertaram sobre o simbolismo e a
sobredeterminação significante, encontrados nos fenômenos que caracteriza como
“psicopatologia da vida cotidiana”, a saber, sonhos, chistes e atos falhos, entre outros. Essa
relação tão direta com o inconsciente parecem ter aberto caminho para que Lacan
formulasse a questão a questão do sujeito referido ao inconsciente, não como algo
empírico, mas contingente; ou seja, podendo não ser outra coisa senão aquela que se tornou
depois que algo (significante) ali se inscreveu de alguma forma. Se “o sujeito
inevitavelmente encontra a questão de seu sexo e a de sua contingência no ser”54, isso
mostra que ele não se refere à personalidade propriamente dita, mas a uma estrutura
constituída a partir de identificações que, por ser passível de ter qualquer uma delas, não
admite uma relação prévia de causa-efeito que determine sua existência como tal.
Partindo da idéia de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, Lacan
propôs uma topologia sobre a constituição do sujeito, cuja dinâmica define, tal como Freud,
“em sua essência, de ponta a ponta, sexual”55 - portanto, referida à pulsão. A essência da
pulsão é ser parcial e por não representar completamente a tendência sexual, ela só é
manifestada no psiquismo através de seus representantes e equivalentes.

51
LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998. p. 814.
52
FREUD, S. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia
Paranoides) (1911). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud, v. XII. RJ: Imago, 1996.
53
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Op. cit.
54
ANSERMET, François. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2003. p.33.
55
LACAN, J. O Seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Op. cit. p. 193.
Entretanto, longe da sexualidade ser reduzida a fins de reprodução - o que a
caracterizaria em um plano meramente biológico - não existe nada no psiquismo que defina
para o sujeito o “ser macho” ou “ser fêmea”. Tal como Freud apontou56, o objeto da pulsão
é o que ela tem de mais variável, pois independente de qual seja, visa cumprir sua
finalidade, a saber, a satisfação pulsional. Assim, a sexualidade não seria distinta como
masculina ou feminina, mas teria como polaridades a atividade e a passividade, a que o
sujeito responde independente de sua questão anatômica, como aponta Alberti:

(...) se é a linguagem que determinará a sexualidade do sujeito, podemos dizer que um


menino não se reconhece como menino porque biologicamente nasce com um pênis, mas
sim porque, ao nascer com um pênis, normalmente é reconhecido como menino pelo Outro:
há o desejo do Outro que dele faz um menino, mesmo que às vezes possa ocorrer o
contrário57.

É a partir deste ponto que Lacan pensa o Outro para o sujeito como a única via que
este dispõe para saber o que deve fazer, também como homem ou como mulher - “a
sexualidade se instaura no campo do sujeito por uma via que é a da falta”58; ou seja, o
sujeito deduz sua sexualidade a partir de algo que não é ela mesma, mas seus
representantes. Lacan aponta a existência de duas faltas: a primeira, uma falha central,
estrutural por assim dizer, em torno da qual “gira a dialética do advento do sujeito a seu
próprio ser em relação ao Outro”59: o sujeito, para constituir-se como tal, depende do
significante, que está primeiro no campo do Outro.
A segunda falta pode vir a ser recoberta pela primeira através do processo de
separação e corresponde à reprodução sexuada, quando o vivo perde uma parte sua de vivo
para constituir-se sujeito. Trata-se aí de uma falta real, porque se “reporta a algo de real
que é o que o vivo, por ser sujeito ao sexo, caiu sob o golpe da morte individual”60.

56
FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S.
Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
57
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999. p. 116.
58
LACAN, J. O Seminário Livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Op. cit. p. 194.
59
Id. Ibidem. p. 194.
60
Id. Ibidem. p. 195.
A linguagem tem então uma dimensão que é de morte: a morte do ser para o
advento do sujeito. O primeiro nascimento do sujeito é, então, na linguagem, o que atesta
sua “dependência significante”61 ao lugar do Outro. Evidentemente, não basta a existência
do Outro por si só, é preciso que o sujeito tome o seu lugar nesta topologia que Lacan
formula com as operações constituintes do sujeito, a saber: a alienação e a separação.
Ele apresenta dois campos distintos: inicialmente, do lado do que poderá vir a ser
sujeito, só há puro ser vivo; e do outro lado, há o Outro, definido como lugar do
significante a partir da qual o sujeito poderá vir a se constituir. Enquanto puro ser vivo,
ainda não é pulsional. É no lado desse vivo, quando chamado à responder pela intervenção
do Outro, que a pulsão virá se manifestar.

Esquema representativo da alienação62

Lacan coloca o Outro como lugar onde se situam as coordenadas simbólicas que
presidem e possibilitam a constituição do sujeito, e a linguagem que, na dimensão do
Outro, preexiste e condiciona o seu advento: “o significante, nesta dimensão, passa a ser
não apenas o que governa o discurso do sujeito, mas o que governa o próprio sujeito”63.
Assim, é no Outro que as palavras tomam sentido: o sujeito, como emissor, receberá
do Outro (receptor) sua própria mensagem, de forma invertida. Neste sentido, admite a
relação do sujeito com o Outro no processo de sua constituição como sendo marcada por
um movimento circular, no qual o significante é produzido no campo do Outro e definido
como aquilo que vai representar o sujeito para outro significante.
61
Id. Ibidem. p. 196.
62
Id. Ibidem. p. 200.
63
FERNANDES, Lia. O olhar do engano – autismo e o Outro primordial. Op. cit. p.39.
O ser do sujeito está sob o sentido. Se a escolha for pelo ser, o sujeito desaparece,
cai no não-senso. Se for pelo sentido, ele só subsiste decepado dessa parte do não senso,
que é justamente o que constitui o inconsciente na realização do sujeito. Na medida em que
é produzido no campo do Outro, o significante “faz surgir o sujeito de sua significação”64.
Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do
que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a responder
como sujeito. Entretanto, esse significante tem como efeito a afânise, ou seja, o
desaparecimento do ser, na medida em que o faz desaparecer sob o significante que ele se
torna. Assim, ao mesmo tempo em que o significante designa o sujeito (já que antes dessa
representação ele inexiste), ele o anula, pois o sujeito não é o ser vivo, mas aquilo que o
significante representa. Diante dessa mortificação do ser, promovida pelo advento do
significante que o faz desaparecer, somente o segundo significante – e a conseqüente
articulação da cadeia significante - irá permitir que o sujeito apareça nesse intervalo, nessa
“fenda”, por assim dizer, quando um primeiro significante reenvia a um segundo
significante da cadeia.
Entretanto, a união do sujeito com o Outro deixa sempre uma perda: ele não pode
ser inteiramente representado pelo Outro e sendo assim, é definido por um significante-
mestre e tem parte de si deixada de fora desta representação.
Se o sujeito, em um primeiro momento (lógico) se petrifica em um significante para
vir a ser algo, ele deverá fazer um movimento de sair dessa petrificação, para que possa
haver deslizamento de sentido e construir seu desejo, já que é do Outro, enquanto falta em
seu discurso, que ele deriva enquanto sujeito. Sem essa falta, ele não tem outra alternativa a
não ser ficar petrificado naquele significante primeiro de sua constituição.
Trata-se aí do Outro sob dois aspectos: como tesouro de significantes, lugar
primeiro para o sujeito; e como aquele que porta uma falta. É a afânise que permite ao
sujeito salvar-se dessa petrificação no primeiro significante, fazendo-o aparecer de um lado
como sentido e desaparecer de outro pelo non-sense. A alienação constitui então um
momento de petrificação e um movimento de afânise.

64
LACAN, J. O Seminário Livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Op. cit. p.197.
(...) o sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante
unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa para o sujeito, para um outro
significante, o qual outro significante tem por efeito a afânise do sujeito. Donde, divisão do
sujeito – quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se
manifesta como fading, como desaparecimento. Há então, se assim podemos dizer, questão
de vida e de morte entre o significante unário e o sujeito enquanto significante binário,
causa de seu desaparecimento65.

O sujeito aparece então no intervalo entre os dois significantes (unário e binário),


atestando a afânise como a essência alienante66, já que é ela que permitirá a separação,
onde o Outro é finalmente posto em evidência em seu próprio limite, na falta que também
lhe é constituinte. A intersecção que constitui o sujeito surge do recobrimento das duas
faltas: a que se encontra no Outro, na intimação que este faz ao sujeito por seu discurso, e
naquela que surge na experiência da criança como a marca de uma falta primeira, referida
ao desejo – “ele me diz isso, mas o que é que ele quer?”67.
É questionando sobre o que este Outro quer dele, que o sujeito reconhece aquilo que
lhe falta, veiculando a sua demanda à demanda do Outro, razão pela qual Lacan afirma que:

os processos devem, certamente, ser articulados como circulares entre o sujeito e o Outro -
do sujeito chamado ao Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo do
Outro, do Outro que lá retorna. Este processo é circular, mas, por sua natureza, sem
reciprocidade. Por ser circular, é dissimétrico68.

Lacan utiliza um losango para apresentar a alienação e a separação, e designar o que


chama de “processo de borda, processo circular”69 através de direções vetoriais
apresentadas no sentido inverso aos dos ponteiros do relógio.

65
Id. Ibidem. p. 207.
66
Id. Ibidem. p. 207.
67
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). Op. cit. p.203.
68
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Op. cit.
p. 196.
69
LACAN, J. O Seminário Livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Op. cit. p.198.
Algoritmo do gráfico lacaniano70

O V da metade inferior do losango constitui o vel da alienação, na qual estariam a


petrificação do sujeito no S1 e seu processo de afânise, enquanto que o V da metade
superior do losango constitui o processo de separação. Entre os dois campos delimitados
por Lacan – o campo do sujeito (ser) e o campo do Outro (sentido) – a alienação e a
separação seriam as operações constituintes do sujeito.
O vel da alienação condena o sujeito a só aparecer nesta divisão em que ele aparece
de um lado como sentido, produzido pelo significante; e de outro como afânise. Trata-se de
uma escolha que implica no seguinte: na reunião entre as duas dimensões (ser/sentido), há
um círculo que comporta que, qualquer que seja a escolha que se opere, há por
conseqüência “nem uma, nem outra”; ou seja, a escolha é apenas a de saber se pretende
guardar uma das partes fazendo a outra desaparecer.

Trata-se de alguma coisa que concerne ao Outro, e que é aceita pelo sujeito de tal maneira
que, se ele responder a respeito de uma coisa, sabe que, por isso mesmo, será acuado
acerca de outra71.

Esse vel da alienação não é uma invenção arbitrária: ele está na linguagem. O
sujeito como tal só pode ser reconhecido no lugar do Outro, submetido à primazia do
simbólico, em que se situa a cadeia significante, que o precede.
Se a “alienação é o destino”72, uma vez que não se pode evitá-la, a separação, por
sua vez, exige um movimento do sujeito, no que diz respeito à necessidade de deslizamento
de sentido, já que ele não pode ser inteiramente representado no Outro.

70
Id. Ibidem. p. 198.
71
LACAN, J. O Seminário Livro 5 – as formações do inconsciente (1957-58). Op. cit. p.150.
A separação é, então, o momento em que o sujeito reconhece a sua falta a partir do
que falta no Outro e entra na dimensão do desejo, o que denota sua responsabilidade por
sua condição de sujeito, já que ele precisa tomar uma posição e sujeitar-se à linguagem, tal
como afirma Santos:

(...) o sujeito do inconsciente está necessariamente associado à idéia de responsabilidade


subjetiva e a clínica psicanalítica está condicionada pela exigência de que, como efeito do
trabalho inconsciente, um sujeito responsável deva operar, assumindo sua própria
73
causalidade e respondendo por aquilo que o determina .

Na constituição do sujeito, há uma relação com um resto: algo sobra e afirma sua
relação com a libido, uma vez que, na medida em que nem todo o ser do sujeito convém à
imagem narcísica. É esse resto que dá à imagem um valor libidinal, passível de
investimento, graças ao qual o sujeito pode visar o desejo do Outro. Entretanto, é
necessário que o sujeito, até então petrificado no Outro enquanto tesouro de significantes,
pleno, possa reconhecer neste uma falta e com ela se instale; ou seja, é preciso que o Outro
seja barrado, não completo, não todo, para que o sujeito se torne então desejante.
Lacan propôs uma representação gráfica para analisar a constituição do sujeito nesta
dialética da intersubjetividade com o Outro. No esquema L, reproduzido a seguir, o eixo A-
S designa a relação inconsciente entre o Outro e o sujeito; enquanto o eixo a-a’ aponta a
relação imaginária/narcísica acima referida, estabelecida entre o sujeito e seus objetos. As
duas diagonais são articuladas, indicando que o campo das identificações é
fundamentalmente estruturante.

72
Referência à lembrança freudiana do dito de Napoleão: “A anatomia é o destino” in FREUD, S. Sobre a
tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à Psicologia do Amor II). (1912). Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.195.
73
SANTOS, Katia Wainstock Alves dos. O dispositivo psicanalítico na clínica institucional do autismo e da
psicose infantil. Dissertação de Mestrado, UERJ-RJ, 2001. p. 35.
Esquema L

O estado do sujeito (sua estrutura, posição) depende do que se desenrola no campo


do Outro (A), na medida em que o que aí se desenrola articula-se com um discurso (que é o
discurso do Outro). A ressalva de Lacan para a aposta no sujeito é a de que “nesse discurso,
como estaria o sujeito implicado se dele não fosse parte integrante?”74. No caso das
crianças autistas, isso é reafirmado quando elas repetem a fala das outras pessoas, sem
inversão pronominal e muitas vezes com a mesma entonação75. Entretanto, quando se pensa
que cada criança pode “escolher” repetir uma determinada fala do outro, não se poderia
pensar há algo dela enquanto sujeito? O autismo poderia ser pensado como uma alienação
que não afaniza; ou seja, em que há uma primeira referência a um significante a que se
petrifica, mas sem que haja o movimento necessário que possibilite a separação.
A causação do sujeito em Lacan, abordada a partir da linguagem, é pensada com
relação ao parlêtre, ou seja, àquele que fala, que é falado antes mesmo de nascer - mesmo
ainda não fale. Lacan afirma que quando uma criança tapa os ouvidos, ela está ”para
alguma coisa que está sendo falada – já não está no pré-verbal, visto que se protege do
verbo”76, o que atesta sua relação com o Outro e permite afirmar que o sujeito autista está
na linguagem, ainda que não fale. Bruno (1991) também compartilha desta posição: o
autista, ao tapar os ouvidos, estaria plenamente na linguagem, protegendo-se dos
significantes do Outro.

74
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1955-56). In: Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 555.
75
Cito como exemplo uma criança autista que repetia a fala de uma técnica do setor, sem a inversão
pronominal, com a mesma entonação e sotaque (já que essa técnica era maranhense): “Pega o sabunete!”.
76
LACAN, Jacques. Alocução sobre as psicoses da criança (1968). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003. p. 365.
Se há uma palavra que funda a fala como ato no sujeito, algo que confere autoridade
ao que se articula no nível do significante (no texto da lei), Lacan literalmente o nomeia: é
o Nome-do-Pai, à que concerne a metáfora paterna, a função central da questão do Édipo,
que ele descreve em três tempos lógicos da experiência do Édipo.
A primeira relação de realidade se dá entre a mãe e a criança, mas o Nome-do-Pai é
mantido, enquanto função, no nível simbólico. A criança se posiciona junto à mãe,
buscando identificar-se com o que supõe ser o seu objeto de desejo. Lacan afirma haver
uma ligação metafórica entre o pai e o objeto específico de desejo da mãe (o falo), no
vértice ternário da relação mãe-criança: a posição do significante paterno no nível
simbólico funda a posição do falo no nível imaginário, ou seja, é o pai que aponta para a
criança que o desejo da mãe é pelo falo. Uma vez que toda privação real exige uma
simbolização, é na medida que a mãe é faltosa que esse objeto é projetado como símbolo e
postulado como tal. A relação da criança com o falo só se estabelece dessa forma porque
ela supõe ser este o objeto de desejo da mãe.

Primeiro tempo. O que a criança busca, como desejo de desejo, é poder satisfazer o desejo
da mãe, isto é, to be or not to be o objeto do desejo da mãe (...) Neste caminho colocam-se
dois pontos, este aqui, que corresponde ao que é ego, e, em frente a ele, aquele ali, que é seu
outro, aquilo com que a criança se identifica77.

É o registro da privação que anuncia o segundo tempo do Édipo, no qual o pai


aparece na configuração mãe-criança-falo como “privador” em duplo sentido: priva a mãe
de seu objeto de desejo (objeto fálico) e priva a criança de ser esse objeto de desejo da mãe.
Uma vez que é o pai suposto deter o objeto de desejo da mãe, a partir da sua intervenção a
criança é forçada a não apenas deixar de ser o falo, como também a não tê-lo com a mãe. É
justamente a partir do deslocamento do objeto fálico e do encontro criança com a lei do pai
que a criança se depara com o fato de que o desejo de cada um é submetido à lei do desejo
do Outro e se posiciona como sujeito frente ao papel desempenhado pelo pai no fato de a
mãe não ter o falo.

77
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 5: As formações do inconsciente (1957-58). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999. p. 197.
Criança-Mãe-Pai Criança-Mãe-Pai e o Falo

Vale ressaltar que não se trata de relações interpessoais entre a mãe e o pai reais,
mas de uma relação específica da mãe com a palavra do pai em suas três dimensões: função
de intervenção, fala articulada e lei. Tal como nos alerta Lacan: “o essencial é que a mãe
funde o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho, ou
seja, a lei como tal”78. Ou seja, o pai aparece aí como pai imaginário, agente aceito ou não
pela criança como aquele que priva a mãe do seu objeto de desejo (o falo).
Da vivência imediata dessa dialética do “ser” ou “não ser” o falo, a criança dá lugar
a um substituto e pelo processo de simbolização, ascende à dimensão do “ter”. A partir
disso, ela se coloca como sujeito e não mais como objeto do desejo do Outro, referindo
assim ao segundo tempo do Édipo. Ela se encontra então diante de um Outro barrado pela
inscrição da castração.
O terceiro momento do Édipo é caracterizado pelo declínio deste, a partir do fim da
rivalidade fálica. O pai, tido até então como privador, é revelado em sua função como
também submetido à castração. A simbolização da lei paterna promove a perda simbólica
do objeto imaginário: o falo. É a condição da mãe como mulher na relação com o falo que
inscreve o significante Nome-do-Pai, definido por Lacan como “termo que subsiste no nível
do significante que, no Outro como sede da lei, representa o Outro”79.

78
Id. Ibidem. p.197.
79
LACAN, Jacques. O Seminário livro 5 – as formações do inconsciente (1957-58). Op. cit. p. 152.
O terceiro tempo é este: o pai pode dar à mãe o que ela deseja, e pode dar porque o possui.
Aqui intervém, portanto, a existência da potência no sentido genital da palavra – digamos
que o pai é um pai potente. Por causa disso, a relação da mãe com o pai torna a passar para
o plano real80.

A instância paterna aparece nos três tempos: primeiro de forma velada, reinando na
lei do símbolo; depois com uma presença privadora (imaginária); e finalmente intervindo,
real e potente, como aquele que tem o falo ao mesmo tempo em que não o tem (também é
castrado e deseja a mãe). É o Nome-do-Pai que permite que a criança, até então sujeita à lei
caprichosa da mãe, se veja submetida a uma lei maior, a que não só ela, mas também a mãe
e o pai estão submetidos.
É a partir do momento em que a criança sai de sua posição fálica, supostamente
ideal para sua satisfação e de sua mãe, que ela torna-se outra coisa, identificando-se com o
pai (no caso dos meninos) ou com a mãe, deslocando seu objeto de desejo (no caso da
meninas), mas assumindo uma posição de sujeito frente à essa questão central do Édipo,
que remete diretamente relação com seu desejo e objetos.
O pai não é, pura e simplesmente, um objeto real (ainda que tenha que intervir como
tal), tampouco um objeto ideal. Trata-se de uma metáfora: o Nome-do-Pai é o significante
que funda o sujeito. Constitui, pois, uma função, uma vez que não é apenas um dos muitos
significantes da cadeia, mas justamente aquele que vai promover a articulação de todos
eles.
Destacando a função a mãe a partir desse interesse particularizado e do pai, cujo
nome atesta a encarnação a Lei no desejo, Lacan aponta o sintoma da criança como
resposta, representante da verdade, ao que existe de sintomático na estrutura familiar.
Quando a criança não dispõe da mediação assegurada pela função do pai, ela é implicada
correlativamente a uma fantasia, torna-se objeto da mãe e realiza a presença do objeto a:

80
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 5: As formações do inconsciente (1957-58). Op. cit. p. 200.
A distância entre a identificação com o ideal do eu o papel assumido pelo desejo da mãe,
quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai), deixa
a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela e torna o “objeto” da mão e não mais
tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. A criança realiza a presença do
que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia81.

Fernandes propõe que o autismo não se refere a uma situação concreta de abandono
e/ou separação, mas a algo necessário à constituição do sujeito, referente ao “acolhimento
simbólico (...) lugar destinado a uma criança no desejo do Outro”82, na medida em que é o
investimento de desejo que possibilita à criança a constituição de um lugar subjetivo. A
criança autista, apesar de freqüentemente apresentar uma história institucional vasta, carece
de uma história pessoal, por assim dizer, o que denota a dificuldade de instauração de seu
lugar de sujeito. Pode-se pensar que não houve uma inscrição do Desejo da Mãe como
significante, na medida em que o Nome do Pai não exerce sua função? Se a mãe não tem a
marca da falta, o objeto que a criança é para ela não tem qualquer mediação na triangulação
e na referência fálica e a criança ocupa o lugar de objeto na fantasia83, condição até
necessária para sua sobrevivência e para sua constituição enquanto sujeito, desde que não
permanente. Mas será que o Desejo da Mãe, sem a metáfora subseqüente ao Nome do Pai,
já produz esse estatuto que o Outro tem para o sujeito autista?
Ao pensar as particularidades do Édipo, relembramos o que não raro está presente
no discurso das mães de crianças autistas: muitas vezes elas passam a dormir com seus
filhos na mesma cama e deslocam seus maridos para outros cômodos (ou até casas,
decorrente de separações), justificando tal atitude pelo fato de que, por serem crianças que
exigem muita atenção, esta não “poder” ser dada à relação conjugal. A separação parece
não se instaurar entre a mãe e a criança, mas entre a mãe e o pai, no real. Isso não remeteria
à questão edipiana? Não seria uma mostra particular dessa experiência, sem a presença do
Nome-do-Pai?
Lacan, ao apresentar o pai do Édipo, relembra que numa determinada tribo
primitiva, a procriação era atribuída a outras coisas que não ao pai (fontes, pedras, ou outras

81
LACAN, Jacques. Notas sobre a criança (1969). In: Outros Escritos. Op cit. p. 369-370.
82
Id. Ibidem. p.15.
83
MIRANDA, Elisabeth da Rocha. Uma esquizofrenia precocemente desencadeada? In: ALBERTI, Sônia
(org). Autismo e psicose na clínica da esquize. Rio de Janeiro, Marca D´Água Livraria e Editora, 1999. p.113.
coisas) e ressalta que a qualidade do pai como procriador e a significação do Nome-do-Pai
são questões referidas ao nível simbólico. Ele admite que mesmo nos casos em que o pai
não está presente e a criança é deixada com a mãe, o Édipo pode transcorrer normalmente –
o que atesta que não se trata do pai real, mas de algo que cumpre a função de Nome-do-Pai:
“a atribuição da procriação ao pai só pode ser efeito de um significante puro, de um
reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como
Nome-do-Pai”84.
Laurent (1999), ao questionar o que as psicoses poderiam ensinar à clínica das
neuroses, admite que a identificação com o pai no Édipo é apenas uma forma possível de
lidar com o gozo. O pai, enquanto função, é uma ficção entre outras:

Há maneiras de lidar com o gozo que permitem faze-lo emergir no reconhecimento, que
permitem dar uma representação do gozo sem passar pela identificação ao pai. O pai, como
ficção jurídica, como ficção útil para um certo real, é um caso particular na série de ficções
que não funcionam na psicose como ponto de ancoragem85.

Assim, se a neurose não é uma “norma” da vivência do Édipo, mas uma das formas
de vivenciar essa experiência (que regula o gozo, mas não o exclui) onde a relação do filho
com o pai é atestada como lei, sintoma, como pensar isso no que se refere ao autismo? Se o
pai, diferente da identificação propriamente dita, é algo que designa uma função de gozo86,
outras coisas podem vir a servir de modelo a essa função, que não necessariamente um ser.
Laurent lembra que a relação pai-filho aparece em Lacan como “ápice da relação
simbólica pela identificação edipiana nos anos da metáfora paterna”87, mas atesta que as
relações possíveis entre pai e filho são passíveis de versões que atendem a modelos de
função de gozo particulares. A partir disso, pode-se pensar, para o autismo, uma vivência
particular do Édipo em que sua função como tal repercuta, de forma particular, em sua
condição de sujeito.

84
LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1955-56). Op. cit.
p.562.
85 LAURENT, Eric. O que as psicoses ensinam à clínica das neuroses? In: Curinga. Numero 14. Belo Horizonte: EBP-MG, 2000.
p.179.
86 LAURENT, Eric. O que as psicoses ensinam à clínica das neuroses?
. Op cit.179.
87 Id. Ibidem. .
p 179.
Uma outra forma de se pensar a estrutura do sujeito a partir de sua constituição é
referí-la a uma articulação das dimensões simbólica, imaginária e real, sob a forma de uma
amarração que pressupõe uma relação de equivalência entre esses registros.
Primeiramente, há a possibilidade desse entrelaçamento, atestada pelo universo
simbólico a que a criança está submetida antes mesmo de nascer, ou seja, no campo
discursivo que a aguardava, e pelo investimento imaginário de um outro.
A superposição do organismo à posição simbólica investida imaginariamente
produz uma certa regularidade entre a descarga orgânica de tensão e o apaziguamento
promovido por uma resposta, tomada pela criança como uma experiência de satisfação. É
nesta matriz simbólica que vai incidir o real, promovendo um primeiro enlace desses
registros. É estabelecida uma certa descontinuidade e a alternância entre tensão e
apaziguamento, articuladas pelo movimento anterior, não mais se mantém.
Há, porém, a necessidade de superação dessa descontinuidade e a exigência de um
retorno à situação de gozo pleno supostamente vivenciada antes, o que faz com que a
criança situe o agente da privação na imagem materna, supondo nela o saber sobre seu
gozo: essa é a incidência do imaginário no real. Entretanto, a mãe se mostra afetada em sua
onipotência imaginária e demanda à criança o que esta não pode lhe dar, recobrindo aí
reciprocamente duas faltas: a criança tentando realizar o desejo materno, acreditando que a
mãe, por outro lado, possa restituir-lhe a experiência de satisfação. A posição fálica da
criança não se sustenta e ela se depara com algo a que ambas estão submetidas e que as
impede de tamponar essas faltas.
O real então aparece como privador e interditor, atestando um obstáculo
intransponível entre a criança e a mãe e promovendo um certo afrouxamento real do
simbólico, que é seguido pela idéia da onipotência paterna pela criança: já que ela não pode
ser o objeto de gozo da mãe, o pai é mitificado – há aí novamente o recobrimento do
imaginário sobre o real. Finalmente, diante da impossibilidade da criança vir a ser o falo
materno, ela não mais se equivale a ele, mas supõe ao pai um saber e de certa forma o
coloca como mediador desta relação.
Trata-se, pois, de algo estrutural e circular, na medida em que somente através
desses movimentos há uma amarração entre os registros real, simbólico e imaginário.
CAPÍTULO 3
A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE NO AUTISMO

“Por nossa posição de sujeito, sempre


somos responsáveis”88.
Jacques Lacan

Na definição da Língua Portuguesa, o termo “responsabilidade” se refere ao fato do


“sujeito responder por um ato que o sobrevém, falar em nome próprio”. Em sua carta 125,
datada de 09 de dezembro de 1899, ao questionar-se “Quando é que uma pessoa se torna
histérica em vez de paranóica?”89, Freud parece, de certa forma, ter aberto o caminho para
uma questão ainda mais ampla: que escolha faz o sujeito a respeito de sua estrutura clínica?
De que responsabilidade se trata quando se trata de psicanálise? Que sujeito é esse que tem,
diante de si, uma escolha que, ao mesmo tempo em que é prévia à sua estrutura,
paradoxalmente o obriga a responder a partir dela?
Se a ética da psicanálise pressupõe que há uma escolha na tomada de uma posição
do sujeito frente ao Outro (enquanto alteridade radical), uma clínica, do ponto de vista da
ética, é aquela que se formula em termos de responsabilidade. Se o status do sujeito em
Psicanálise admite uma estrutura que dá conta de seu estado de fenda, Spaltung, motivada
pelo reconhecimento do inconsciente, e se o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, como pensar a relação do sujeito com o Outro através de seus significantes?

Se, “de nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis”, em que sentido sou
responsável pela minha psicose, minha perversão e por minha neurose? Que significa isso?
Qual é essa responsabilidade? Isso poderia conduzir-nos a pensar o sujeito como causa de
sua estrutura clínica, como se houvesse uma eleição livre de sua clínica por parte do sujeito.
Quando, na realidade, o gozo é que elege o sujeito90.

88
LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1965-66). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
p. 873.
89
FREUD, Sigmund. Carta 125 (1899). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud,
volume I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
90
MILLER, Jacques-Allain. Patologia da Ética. In: Lacan Elucidado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998. p. 347.
Freud, em uma de suas conferências91 sobre a teoria geral das neuroses, ressalta que
os sintomas psíquicos acarretam um dispêndio mental para sua formação e,
conseqüentemente, para se lutar contra eles. Ele atesta questão da causalidade psíquica
quando afirma que “a realidade psíquica é a realidade decisiva”92, definindo o sintoma
como resultado de um conflito decorrente de um meio de satisfazer a libido que, amparado
por forças opostas, teria como componente a libido insatisfeita que, repelida pela realidade,
buscaria outras vias de satisfação:

O sintoma emerge como um derivado múltiplas vezes distorcido da realização de desejo


libidinal inconsciente, uma peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois
significados em completa contradição mútua93.

Lacan também propõe a causalidade psíquica, situando a dialética do ser como


ponto em que se situa o desconhecimento essencial da loucura. Admite que neste ponto, há
uma identificação ideal que caracteriza um destino particular e que é admitida através de
uma “insondável decisão do ser”94. A identificação é, neste sentido, a própria causalidade
psíquica, uma vez que a imago dela decorrente realiza uma identificação resolutiva de uma
fase psíquica; ou seja, uma “metamorfose das relações do indivíduo com seu semelhante”95.
O primeiro efeito que apresenta da imago no ser é a alienação: tudo surge da
estrutura do significante, produzido no campo do Outro. Neste primeiro momento, o
significante só funciona como tal reduzindo o sujeito a não ser mais que ele. Não se trata de
uma escolha sobre a qual o sujeito tem plena eleição, mas uma escolha forçada, uma
primeira operação essencial em que o sujeito se funda.

91
FREUD, Sigmund. Conferência XXIII – Os caminhos da formação dos sintomas (1917). Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas de S. Freud, volume XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
92
Id. Ibidem. p. 370
93
Id Ibidem. p. 363.
94
LACAN, Jacques. Formulações sobre a causalidade psíquica (1946). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1998. p. 179.
95
Id. Ibidem. p. 189.
O sujeito é produzido dentro da linguagem que o aguarda, é efeito (e não agente)
desta, inscrito no lugar do Outro. O sujeito é então apontado na alienação e representado
por esse significante mestre (S1), e sua união com o Outro sempre deixa uma perda, na
medida em que ele não pode ser inteiramente representado. A legitimidade da Psicanálise é
referida a um sujeito necessariamente afetado pelo campo de linguagem. Neste sentido,
pensar sobre o autismo em Psicanálise só é possível se tomarmos no discurso psicanalítico
o sujeito, o que implica considerá-lo marcado pela linguagem.
Toda a abordagem que concerne ao sujeito incita a discussão sobre o fato de que ele
se constitui a partir do Outro, emergindo do status de objeto que foi para esse Outro.
Partindo disso, muitas questões se apresentam com relação às crianças autistas: qual a
configuração do Outro para essa criança? Se é a partir da falta do Outro que o sujeito se
constitui desejante, como pensar isso no autismo, onde ao Outro parece não faltar nada, a
ponto de ser tomado como um Outro invasor? Se o inconsciente se produz através do
campo discursivo, como pensar isso no autismo, onde o Outro parece não convidar o sujeito
à alienação e assim possibilitar que este venha a se constituir como tal? Se há alguma
alienação, o que há no autismo que impede que o sujeito não faça o deslizamento dos
significantes do campo do Outro, característica da operação de separação?
A alienação implica uma escolha forçada, mas a separação aponta algo para além
disso: é preciso supor um sujeito ali para que ele possa advir – “lá onde isso estava, lá, o
sujeito devo (eu) advir”96. É neste sentido que o autismo pode ser pensado como uma
posição diante dessa escolha forçada, e a partir disso, pensada a responsabilidade desse
sujeito por assumí-la.
No autismo, trata-se de uma posição radical do sujeito frente ao Outro. Entretanto, o
que suscitaria essa resposta? Haveria uma “redução do ser ao puro lugar de sua
alienação”97, o que Ansermet sugere que teria permanecido “congelado no processo de
assunção subjetiva”98?

96
LACAN, Jacques. A ciência e a verdade (1965-66). Op. cit. p. 878.
97
STEPHAN, Denise Rocha. Autismo e Psicose. In: O que a clínica do autismo pode ensinar aos
psicanalistas. Op. cit. p.24.
98
ANSERMET, François. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2003. p.81.
Soler parte da afirmação lacaniana de que o psicótico não está fora da linguagem,
mas fora do discurso para sustentar que o autismo estaria “num aquém da alienação, uma
recusa de entrar, um permanecer na borda”99 – o que sustentamos de forma diferente neste
trabalho, uma vez que acreditamos ter havido uma entrada da criança autista na alienação
(senão ela seria apenas um puro ser), mas não houve a afânise que permite o movimento de
separação. Apesar de sua posição quanto à inexistência da alienação no autismo, Soler
sustenta que a criança autista é sujeito, já que é tomada no significante quando se fala
dela100, e que ser efeito de sua fala é a primeira posição de todo sujeito. Ressalta porém que
o tornar-se agente - entendendo agente como “alguém que fala, que deseja”101 - implica
necessariamente uma animação de libido.
O que se percebe é que, ao contrário de receber do outro sua própria mensagem
invertida, essas crianças não são sujeitos que enunciam, mas constituem puro significado do
Outro. Soler afirma que ao mesmo tempo em que elas parecem perseguidas pelos sinais da
presença do Outro, mostram uma aparente anulação deste Outro, através de uma ausência
clara de demandas e respostas.
Ela então caracteriza o autismo como uma “doença da libido”102, diretamente ligada
à questão do corpo, supondo uma perturbação onde a libido do sujeito parece ser também
do Outro, atestando uma falha no balizamento das fronteiras entre o seu corpo e o corpo do
Outro. É neste ponto que ela sustenta a impossibilidade de separação: se o Outro é parte de
sua libido, não há como o sujeito dele se separar, tal como mostra a representação a seguir:

99
SOLER, Colette. Autismo e Paranóia (1990) in: ALBERTI, Sônia. Autismo e Esquizofrenia na clínica da
esquize. Rio de Janeiro: Marca D´água Livraria e Editora, 1999. p. 219.
100
Lembro aqui o relato de duas mães de crianças autistas sobre seus filhos: a primeira disse “Não sabia que
estava grávida, enjoava muito e sentia minha barriga crescer, achei que tivesse comido alguma coisa
estragada” (sic) e a outra, uma estudante de Psicologia, afirmou: “meu filho é o melhor estágio de psicologia
que eu posso fazer na vida” (sic).
101
SOLER, Colette. Autismo e Paranóia (1990) in: ALBERTI, Sônia. Autismo e Esquizofrenia na clínica da
esquize. Op cit p.222.
102
Id. Ibidem. p.228.
Esquema representativo da relação do sujeito com o Outro no autismo, segundo Soler.

Ao contrário de dispor da presença-ausência que permite um vazio estrutural para


sua constituição, essas crianças parecem permanecer no limite da simbolização,
necessitando de um corte no corpo, nos batimentos que contrastam os estados de inércia
com os estados de animação. Para fins de ilustrar esse “funcionamento”, ela apresenta um
trecho bastante interessante de uma novela de ficção científica, La ville au bord du temps:

Quando os homens são enviados ao espaço, seus corpos são transformados de modo a se
tornarem coextensivos à máquina. Eles perdem, portanto sua imagem, seus órgãos, suas
funções; eles não perdem sua subjetividade, mas eles próprios tornam-se engrenagens da
máquina. Essa transformação é de tal modo correlata – aí está o ponto interessante – a um
gozo absolutamente especial que, ao retornarem para a terra e reencontrarem seu corpo,
caem em uma nostalgia infinita do tempo em que tinham a mesma extensão da máquina, de
modo que a maioria deles não chega a sobreviver103.

Algumas orientações teóricas e clínicas supõem uma estreita relação entre a atitude
das mães no que se refere ao tratamento com essas crianças e as respostas obtidas por elas,
indo em direção a uma via de culpabilização, atribuída ao excesso ou à carência de
cuidados maternos – a que René Spitz104 chamou “hospitalismo”. Com o propósito de isolar
e investigar os fatores responsáveis ou desfavoráveis, ligados ao desenvolvimento infantil
em crianças internadas de até 2 anos e meio de idade, Spitz fez observações em um
impecável orfanato para crianças enjeitadas e em um berçário de uma prisão de mulheres.

103
Id Ibidem. p.232.
104
MARCELLI, D. Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra. Porto Alegre: Artes Médicas,
1998.
No orfanato, organizado e limpo, as crianças mostravam um sensível retardamento
em seu desenvolvimento mental e progressiva debilidade física; uma epidemia de sarampo
matou 23 das 88 crianças com idade inferior a 2 anos e meio e das sobreviventes, apenas 2
começaram a falar e aprenderam a caminhar no decorrer da pesquisa, não tendo nenhuma
delas aprendido a comer sozinha e a controlar seus esfíncteres. Em grande contraste, no
berçário da prisão de mulheres onde as crianças eram a fascinação das próprias mães
reclusas e de todo o pessoal de serviço, seu desenvolvimento era tão acelerado e sadio que
o problema era conter as manifestações de sua vitalidade e inteligência. Spitz concluiu,
através dos testes realizados e das observações dessas duas populações de crianças (filhos
de mães em uma instituição penitenciária, cuidados por elas com auxílio de enfermeiras; e
crianças carecendo de contato humano caloroso), que a reação de “hospitalismo” apareceu
apenas no segundo grupo de crianças - no primeiro só aparecia após uma separação da mãe.
Neste processo de separação, descreveu três fases: fase de choramingos; fase de gemidos,
perda de peso e suspensão do desenvolvimento; e fase de retraimento e recusa de contato,
podendo culminar com um quadro de depressão.
Também foi possível diagnosticar o hospitalismo intrafamiliar no caso de famílias
negligentes, caracterizado por um quadro de carência afetiva, total ou parcial. Acreditou
que, se as causas desta carência não fossem tratadas, essas crianças poderiam desenvolver
quadros mais complexos, tais como desarmonias de evolução, pré-psicoses ou afecções
depressivas de longa duração.
Embora seja freqüente no relato das mães de crianças autistas uma vivência corporal
embaraçante durante a gestação105, não parece ser a carência de cuidados maternais ou de
investimento afetivo que acometem essas crianças. Em muitos casos são, inclusive, até
excessivamente cuidadas por suas mães. Por que não há registros de crianças moradoras de
rua e/ou desprovidas de condições mínimas de sobrevivência que sejam autistas enquanto
há crianças que, ainda que com grande investimento e cuidados da família respondem dessa
forma?

105
Em uma entrevista, a mãe de uma criança autista afirmou só ter descoberto estar grávida quando o filho
nasceu, recebendo-o surpresa no hospital. Quando perguntada como ela passou sua gestação, ela disse:
“Comecei a enjoar muito, achei que tivesse comido uma coisa estragada. Daí engordei demais e teve um dia
que tive uma dor tão forte que me levaram pro hospital. Aí que ele nasceu”. Chama a atenção seu discurso:
seja de que forma for, somente ao tê-lo nos braços, ele nasceu para ela e pôde começar a sua história.
Pensamos que o que se desenrola no autismo parece ser de outra ordem: sob que
tipo de relação entre a mãe e a criança o autismo parece apoiar-se? Tal como afirma Lacan,
“o que está em jogo numa psicanálise é o advento, no sujeito, do pouco de realidade que
esse desejo sustenta nele em relação aos conflitos simbólicos e às fixações imaginárias,
como meio em que esse desejo se faz reconhecer”106. A principal característica
fenomenológica observada parece ser a ausência de relações dessas crianças com o meio,
cujos sinais já são observados no 1o ano de vida:

As crianças autistas são descritas por sua mãe como bebês especialmente calmos, até
“fáceis”: não pedem nada a ninguém, manifestam-se pouco, parecem felizes quando estão
sós. Na presença de um adulto, são indiferentes. Nota-se a ausência de uma certeza
antecipatória: não viram a cabeça para a mãe quando esta entra no quarto, não se agitam
quando vão ser pegas no colo, não estendem os braços. O tônus dinâmico é modificado, o
“dialogo tônico” não existe; impressão de um peso morto ou de um saco de farinha quando
alguém os pega. As principais marcas do despertar psicomotor do primeiro ano são
modificadas: ausência de sorriso (3o mês), ausência de reação de angústia diante do
estranho (8o mês)107.

No decorrer do segundo e terceiro anos de vida, o autismo parece tornar-se mais


evidente: o olhar é vazio, ausente, difícil de fixar-se ou parecendo haver uma eterna
vigilância; o contato físico é recusado ou estabelecido de uma forma estranha, na qual a
criança parece interessar-se apenas por uma parte do corpo do adulto, servindo-se dela
como instrumento; não parece haver reação à partida dos pais nem à presença de estranhos;
a linguagem é ausente ou expressa de forma estereotipada (ranger de dentes, ruídos, gritos)
e as relações com outras crianças são nulas ou puramente manipulatórias. Não raramente,
maiores tentativas de contato podem acarretar reações de agressividade.

106
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). Op. cit. p.281.
107
MARCELLI, D. Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra. Op. cit. p. 201.
Um outro aspecto freqüentemente trazido no relato das mães das crianças autistas é
que, assim como raramente ficam doentes, muitas apresentam sérias dificuldades para
dormir, chegando a ficar despertas por mais de um dia. Freud afirma que o sono acarreta
uma “retirada narcisista das posições de libido até o próprio eu do indivíduo, ou, mais
precisamente, até o desejo único de dormir”108. Sendo assim, as dificuldades para dormir
dessas crianças indicariam algum tipo de ameaça a esse movimento libidinal, uma vez que,
por não terem essa pretensa unidade corporal, recusariam a perder o mínimo de controle
que exercem sobre esse corpo desfacelado?
No autismo, parece ser imprescindível considerar o apelo do sujeito para-além do
vazio do seu dito, uma vez que a ausência de uma fala comunicativa propriamente dita é
manifesta e, com ela, um discurso em que “o sujeito, pode-se dizer, é mais falado do que
fala”109. É o que percebemos quando se fala das crianças autistas: não raramente elas são
definidas por negativas: “não fala”, “não mantém relação com outras pessoas”, “não
brincam”, “não parecem se dar conta da presença de outras pessoas”, etc. O que se percebe
é uma relação muito particular das crianças com o olhar e a voz. No processo de
erogeneização do corpo, a acomodação do real do corpo do bebê ao objeto de demanda
materna marca uma primeira unificação em torno dos elementos que a criança supõe ser o
que realiza o desejo do Outro (seio, fezes, olhar, voz), objeto a em suas versões
imaginárias, causa de desejo.
O desejo não tem objeto específico, é uma busca incessante, que aponta para o
insaciável, uma vez que não há objeto possível capaz de satisfazê-lo completamente. O
único objeto a ele referido é o objeto que o evoca - objeto a causa de desejo – a partir do
qual há um deslizamento, no sentido de buscar outros objetos. O que causa o desejo na
criança é o desejo do Outro: ela percebe que ele se dirige a outra coisa que não ela e,
conseqüentemente, atesta que não basta a ele. Não é tanto o que é visto ou dito pelo outro,
mas o próprio ato de olhar e a voz que manifestam esse desejo.

108
FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. Op cit. p.90.
109
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). Op. cit. p.281.
Por esta razão, Lacan acrescenta a voz e o olhar à série descrita por Freud (seio-
fezes-pênis-bebê)110 e afirma que pertencem ao registro do real, sendo afetados pelo
significante, mas não imaginarizados.

A renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem alguma tentativa de compensação. Ela
desliza – ao longo da linha de uma equação simbólica, poder-se-ia dizer, do pênis para um
bebê. Seu complexo de Édipo culmina em um desejo, mantido por muito tempo, de receber
do pai um bebê como presente – dar-lhe um filho111.

Embora não sejam intercambiáveis e não estejam na cadeia simbólica, produzem


efeito no sujeito, que só pode identificar-se com o ponto de real desses objetos. No caso do
autismo, isso parece ser da ordem do insuportável e eles assumem uma relação
extremamente particular com o olhar e a voz: não olham e não suportam ser olhados, não
falam e não respondem ao apelo de outrem – em casos extremos, recusam a voz do outro
tapando seus ouvidos e o olhar, fechando seus olhos. Entretanto, não olhar o interlocutor
não atesta sua ausência, mas, ao contrário, aponta aí algo da ordem de um excesso que,
insuportável para a criança, faria desse não-olhar a tentativa de criar um vazio aí onde
parece não haver nenhuma barra.

110
FREUD, Sigmund. A dissolução do complexo de Édipo (1924). Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de S. Freud, v. XIX. RJ: Editora Imago, 1996.
111
Id. Ibidem. p.198.
CAPÍTULO 4
IMPLICAÇÕES PARA UM TRABALHO CLÍNICO POSSÍVEL

“(...) as regras técnicas, ao se reduzirem a


receitas, suprimem da experiência qualquer
alcance de conhecimento e mesmo qualquer
critério de realidade”112.
Jacques Lacan

A partir da abordagem psicanalítica sobre a constituição do sujeito – mais


especificamente, no autismo - e do estatuto do Outro neste processo, como pensar o
trabalho clínico com as crianças autistas? Que lugar o analista poderia pleitear a esse
sujeito? Se o Outro é tomado como invasor pela criança autista, há que se encontrar um
lugar para que ele ocupe no trabalho analítico, lugar este que deverá ser consentido pela
própria criança.
Ansermet aponta que a Psicanálise, ainda que seja uma clínica que pretende
apreender o sujeito pela escuta, deve considerar que “para aceder à dimensão subjetiva, a
atenção deve incidir sobre o que não pode ser dito”113. Ele faz uma comparação bastante
interessante ao afirmar que o médico opera a partir do lugar do mestre, mas que a posição
do analista difere disso porque não há conhecimento prévio sobre o sujeito. Assim, o
dispositivo analítico se orienta em direção a uma “possível liberdade significante”114.
Assim, uma das particularidades da clínica psicanalítica com crianças autistas é
justamente propor essa direção psicanalítica que se relaciona diretamente com a fala com
crianças que não falam ou cuja fala denota o discurso literal do Outro. É por isso que
Lacan115 ressalta a necessidade de um certo manejo da técnica ali onde a linguagem se
apresenta tão no seu limite, como é o caso do autismo, onde a intervenção analítica deverá
partir das produções dessas crianças, tomando-as como ato que se afirma como significante
e, como tal, pode supor um sujeito para outro significante.

112
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem (1953). Op. cit. p.241.
113
ANSERMET, François. Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2003. p.09.
114
Id. Ibidem, p. 12.
115
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem (1953). Op. cit.
Uma referência no trabalho institucional com crianças autistas é a pratique à
plusieurs (termo cunhado por Jacques Allain-Miller), proposta em Antenne116 e destinada
ao tratamento de crianças com graves perturbações psíquicas. Esse dispositivo parte da
aposta de que o autista é “um psicótico em trabalho”117 e que as particularidades que
apresentam já são maneiras de tratar os objetos que presentificam esse Outro e os objetos,
que são vividos como intrusivos.
Como exemplos desse trabalho de regulação, por assim dizer, realizado pelas
crianças autistas em Antenne, podemos ressaltar o tratamento dado ao olhar, à voz, ao
alimento e aos excrementos (objetos de presença e demanda do Outro): a recusa de uma
brincadeira de esconder-se (e, conseqüentemente, uma recusa em desaparecer e questionar
o lugar que ocupa no desejo do Outro), a voz ritmada com musicalidade e/ou repetições, o
alimento tratado imperativamente com rituais e tratamentos diversos impostos aos
excrementos atestam a exigência desse “controle”. O que se percebe é que, em última
instância, esse controle visa uma regulação de gozo. Essa direção de trabalho pressupõe que
no autismo, o sujeito se ocupa de tratar seu Outro pela introdução de uma marca de
suplência: na medida em que lhe falta a marca fálica, necessária para a assimilação da falta,
o que autista tenta é justamente introduzir uma outra marca, tanto ao nível dos objetos que
ele é para o Outro quanto ao nível de uma construção delirante - como essa marca parece
nunca se inscrever, ele é condenado a “tratar” esse Outro incessantemente, como uma
tentativa de inscrever, no real, uma diferença entre o EU (não como constituição
imaginária, mas como aquilo que não é o Outro) e o Outro.
Nessa proposta, os chamados educadores, ao se confrontarem com esse real de gozo
desenfreado tratado por essas crianças, colocam-se em uma posição de destituição de saber.
Entretanto, não se trata de uma destituição de todo o saber, mas sim daquilo que Baio
definiu como “condições exigidas pelo sujeito psicótico, a saber, que saiba “saber-não-
saber”118: ao mesmo tempo em que a criança já elabora um saber, é preciso que este Outro,
tomado pela criança autista como invasor, seja um parceiro que “não sabe”.

116
Instituição belga que propõe o atendimento de crianças autistas, psicóticas e com graves perturbações da
personalidade.
117
ZENONI, A. Traitement de l’Autre. In: Preliminaire. Numero 03. Bruxelas, 1991.
118
BAIO, Virginio & KUSNIEREK, Monique. L’autiste: um psychotique au travail. In: Preliminaire.
Antenne 110. Numero 05. Bruxelas, 1993. p. 67.
Se, por um lado, isso implica um ato do próprio técnico em considerar que ele
mesmo não possui um saber de antemão, por outro pressupõe um “consentimento” da
criança quanto ao lugar que esse técnico vai ocupar como “notário”, parceiro da criança
nesse tratamento que ela dá ao Outro e ao gozo desmedido: “uma verdadeira prática feita
por muitos deve levar isso em conta e orientar seu funcionamento não pelas exigências dos
especialistas, mas segundo as exigências do sujeito”119. Assim, o trabalho em Antenne se
desvincula de uma ação educativa propriamente dita e preserva operação lógica do
significante, constituindo uma “tentativa de tratamento, na psicose, do impasse ligado à
transferência”120, com a importante ressalva de que:

o fato de sermos muitos, todavia, não deve fazer passar para segundo plano a constatação de
121
que, em uma prática feita por muitos, cada um reponde pessoalmente por seu ato .

No Brasil, a clínica psicanalítica do autismo vem abrindo caminhos com serviços


que propõem modalidades de atendimento institucionais a essas crianças.
O Núcleo de Assistência Intensiva a Criança Autista e Psicótica (NAICAP), no Rio
de Janeiro, é uma referência da rede pública em cuidados diários e intensivos a crianças
com graves transtornos mentais, tendo sido a primeira iniciativa do Ministério da Saúde122
dirigida a essas crianças que, até então, só dispunham de serviços caracterizados por uma
atenção estritamente medicamentosa, atendimentos ambulatoriais de baixa resolutividade
ou mesmo internação. Sua proposta é atender a esta clientela na modalidade de atenção
intensiva, caracterizando-se como um serviço para assistência, ensino, pesquisa e formação
de recursos humanos na área do autismo e psicose na criança.

119
DI CIACCA, A. Inventar a psicanálise em instituição. In: HARARI, A et al. (org). Os usos da psicanálise:
primeiro encontro do Campo Freudiano. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003. p. 38.
120
BAIO, Virginio & KUSNIEREK, Monique. L’autiste: um psychotique au travail. Op. cit. p. 66.
121
DI CIACCA, A. Inventar a psicanálise em instituição. In: HARARI, A et al. (org). Os usos da psicanálise:
primeiro encontro do Campo Freudiano. Op. cit. p. 36-37.
122
Até o ano de 1999, Instituto Philippe Pinel pertencia à administração federal, tendo sido municipalizado
mais recentemente.
A direção de seu trabalho clínico faz valer a pluralidade de respostas dessas crianças
à questão de seu lugar de sujeito, delineando-se como um “espaço de possibilidades” e
mantendo “um espaço aberto de não saber, que possibilita a reformulação e reconstrução da
123
direção de trabalho a partir da singularidade de cada caso” . Assim, na medida em que
seu trabalho clínico toma como ponto de partida a singularidade de cada criança, as
atividades são construídas a partir do interesse de cada uma delas, com um espaço e um
tempo de construção que não exigem cumprimento de prazos e/ou objetivos específicos
pré-determinados, mas apontam um caminho para que a criança advenha como sujeito, a
seu tempo.
Retomamos aqui o fragmento clínico exposto na apresentação deste trabalho: uma
menina sempre se esquiva (desviando o olhar ou afastando-se fisicamente) das pessoas. Um
dia, um membro da equipe pega um bambolê e começa a rodá-lo no braço. A menina
observa o movimento pelo espelho e se aproxima vagarosamente, mantendo o olhar para o
reflexo do movimento no espelho. O membro da equipe se vira para a criança e abre a mão
para que ela possa tocá-la. Nenhuma resposta. A menina se afasta e pega um outro
bambolê. Coloca em seu braço da mesma maneira que aquele está no braço da outra pessoa,
sem, no entanto, conseguir rodá-lo sozinha. O membro da equipe se aproxima e repete o
gesto de estender-lhe a mão aberta, olhando-a também apenas pelo reflexo do espelho. A
menina finalmente segura a sua mão, que permanece rodando o bambolê no braço, e
conseqüentemente é absorvida pelo movimento realizado, fazendo rodar também o seu
bambolê. Ao ver o seu movimento, parece compará-lo com o movimento que o outro faz,
observando-o através do espelho. A menina então olha para esse membro da equipe
diretamente (não mais com o recurso do espelho) e parece sorrir. Não se poderia então
supor que o bambolê possa ter tido, ainda que minimamente, essa função de ser um
“terceiro” que viabiliza a relação da transferência neste trabalho?

123
MONTEIRO, Katia Alvares de Carvalho e RIBEIRO, Jeanne Marie de Leers Costa (org). A “prática entre
vários” e a invenção do sujeito. In: Autismo e psicose na criança: trajetórias clínicas. Rio de Janeiro:
FAPERJ-7Letras, 2004. p. 24.
O trabalho clínico assistencial do CAPSI124 Pequeno Hans, serviço infanto-juvenil
dirigido a crianças e adolescentes portadores de grave sofrimento psíquico, tem, desde a sua
fundação (em 1998) a peculiaridade de uma direção técnica exclusivamente psicanalítica,
constituindo-se “uma iniciativa clínica de acesso público dirigida a sujeitos autistas e
psicóticos”125, no Rio de Janeiro. Sendo o primeiro CAPSI da Secretaria Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro, essa proposta partiu de uma pesquisa126 que propõe um
dispositivo psicanalítico ampliado, guardando semelhanças com a prática entre muitos e
promovendo a prática da psicanálise entre psicanalistas e agentes, com sujeitos em muitos
espaços, em período de tempo dilatado, tal como sustenta Santos:

O “estar entre muitos” funciona, ao contrário do que fenomenologicamente pode parecer,


como um neutralizador dos signos da presença do Outro, ou seja, ele contribui como
operador de uma ausência na medida em que desfaz a situação da análise como sendo
aquela que envolve duas pessoas, analista e analisante127.

A posição radical dessas crianças as impede de estabelecer qualquer demanda.


Entretanto, o analista pode fazer aparecer essa demanda a partir de seu lugar, possibilitando
o estabelecimento da transferência, cujo manejo se mostra então requerimento primeiro no
trabalho com essas crianças. Para tal, Vorcaro ressalta que “trata-se de acolher a criança
sem gozar às suas custas e sem se colocar como objeto de seu gozo”128. Ou seja, ali onde o
Outro deixa de ocupar a posição fixa da demanda, a criança autista já não se sente invadida,
e neste sentido, algum trabalho pode ser possível.

124
Unidade da reforma psiquiátrica, caracterizada como centro de atenção psicossocial infantil.
125
SANTOS, Katia Wainstock Alves dos. O dispositivo psicanalítico na clínica institucional do autismo e da
psicose infantil. Op. cit. p. 77.
126
ELIA, Luciano. O dispositivo psicanalítico ampliado e sua aplicação em uma clínica institucional pública
de saúde mental infanto-juvenil (2004-2005). Relatório de Projeto de Pesquisa - Programa Prociência de
Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística. Rio de Janeiro, 2005.
127
SANTOS, Katia Wainstock Alves dos. O dispositivo psicanalítico na clínica institucional do autismo e da
psicose infantil. Op. cit. p. 86.
128
VORCARO, Ângela. Crianças na Psicanálise – Clínica, Instituição e Laço Social. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1999. p.13.
Entretanto, uma controvérsia se impõe ao analista: se a clínica da Psicanálise – e
mesmo a clínica da esquizofrenia na psiquiatria clássica - foi elaborada a partir da
testemunha da fala, como pensar um trabalho com essas crianças que não enunciam?
Pensando nos sons indecifráveis que essas crianças que emitem, poderíamos
caracterizá-los como “gritos-mudos” quando são isentos de uma função de apelo, ou seja,
quando o Outro não testemunha neles valor de mensagem. Na medida em que há algum
endereçamento, o som assume o estatuto de mensagem e a partir disso, abre a possibilidade
de que alguma demanda apareça e, consequentemente, a transferência possa ser
estabelecida.
Fernandes afirma, diante de uma criança que teve melhoras súbitas com o tratamento:
“passou-se a esperar algo dele”129. Ao falar sobre uma criança autista, ela apresenta: “Era
como se Marcos dissesse ‘Eu não estou aqui’; recusa que testemunhava, não obstante, a
presença de algo , ainda que sob a forma de um. De um grito mudo”130. A resposta de
algumas delas ao trabalho proposto se deve, portanto, não tanto ao trabalho em si, mas,
sobretudo, por uma própria mudança subjetiva; ou seja, uma mudança de lugar a partir de
um investimento de desejo do olhar do Outro, a partir de uma intervenção que possa
denotar essa diferença, de forma cuidadosa, já que qualquer interferência maior do Outro
pode ser vivenciada como grandes recusa/ressentimento.

Há que se encontrar a medida para que do analista o sujeito possa manter a boa distância,
evitando os horrores da transferência com um Outro não-barrado (...) a criança autista não
suporta a voz, o olhar do analista. Tais objetos – o objeto voz e objeto olhar – furam o
corpo próprio ali onde não há demanda por falta de mediação131.

129
FERNANDES, Lia. O olhar do engano – autismo e o Outro primordial. Op. cit. p.18.
130
Id. Ibidem. p.22.
131
ALBERTI, Sônia. Autismo e Esquizofrenia na clínica da esquize. Rio de Janeiro: Marca D´água Livraria e
Editora, 1999. p.7.
Trata-se do trabalho com uma criança imersa na linguagem, mas fora do discurso,
uma vez que o autista não faz laço social, condição primeira para que o discurso se instale.
Entretanto, haja vista que Lacan distingue “o que está em questão no discurso como uma
estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra”132 e afirma a existência de um
discurso sem palavras (mas não fora da linguagem), algo pode subsistir, em relações
fundamentais, mesmo sem palavras.
Tal como nos afirma Nominé, o autista não utiliza a linguagem para cifrar seu gozo
e os significantes do Outro para recuperar sua parte perdida (objeto a, resto que “mantém o
sujeito à distância do seu corpo como lugar do gozo do Outro”133) porque não se deixa
representar por um significante junto ao Outro: apenas o utiliza para “alimentar seu próprio
novelo”134, caracterizando, pois, uma espécie de circuito fechado onde o uso do significante
se apresenta sem nenhuma alteridade.

Ora, toda fala pede uma resposta (...) não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas
com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte135.

Ao mesmo tempo em que parece não se interessar pela presença do Outro, não
respondendo e não aceitando a representação significante, a criança autista o vê como
demasiado presente e invasor. Por esta razão, sustentamos que o funcionamento estrutural
dessas crianças requer um dispositivo marcado pelo coletivo, em que a “invasão” do Outro
possa estar diluída de alguma forma entre muitos, na medida em que a criança ocupará seu
lugar diante deles e não em uma relação aparentemente dual com o Outro.

132
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise. Op cit. p. 10-11.
133
NOMINÉ, Bernard. O autista: um escravo da linguagem. In: MARRAIO. Op cit. p.18.
134
NOMINÉ, Bernard. A questão do sintoma e a problemática do corpo no autismo. In: ALBERTI, Sônia
(org). Autismo e psicose na clínica da esquize. Rio de Janeiro, Marca D´Água Livraria e Editora, 1999. p.233.
135
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). Op. cit.
O trabalho com essas crianças é deveras delicado, delineado em seu tempo pela
construção de um lugar subjetivo decorrente de um longo percurso de trabalho e marcado
por constantes idas e vindas: muitas vezes tem-se a impressão de que elas dão um passo à
frente e, em seguida, três para trás. Do analista, este trabalho requer, mais que em qualquer
outra clínica, tolerar o tempo de movimento dessas crianças, suportar sua “presença
ausente”, e principalmente, controlar sua ansiedade de querer mais respostas quando se
consegue algum “lampejo” delas.
Em um dispositivo institucional, um outro fato freqüentemente observado como
influente na posição dessas crianças é o próprio contato com as outras crianças, entre os
muitos desse trabalho. Muitas vezes, a presença de uma nova criança em um determinado
horário promove uma rearrumação das posições subjetivas das outras crianças e da equipe
que ali trabalha. O contato até então evitado com as outras crianças pode assumir uma nova
configuração, uma outra demarcação de espaço e controle dos objetos e da demanda.
Faremos um recorte clínico de um trabalho136 com crianças bem pequenas: uma vez
por semana, reuníamos os três meninos e uma menina, na faixa etária de 4-5 anos, que
freqüentavam aquele determinado horário de atendimento. A convivência entre eles se dava
de forma muito isolada, na medida em que cada criança optava por uma “atividade”: um
cantava olhando-se no espelho, outro batucava objetos incessantemente, outro ainda subia e
descia escadas e a menina andava em cima de uma mesa de um lado para o outro, como se
desfilasse. Comum a todos, uma posição de alheamento radical. A entrada de uma nova
criança neste horário promoveu mudanças bastante significativas, tanto por parte da equipe,
como das próprias crianças. Por ser uma criança que demandava muita atenção, solicitando
a participação da equipe e das outras crianças em suas brincadeiras, puxando-nos pelas
mãos, logo percebemos o quanto algumas crianças passaram a atender de pronto a algumas
de suas solicitações (e muitas vezes a solicitar também), enquanto outras se recusavam
inclusive a permanecer no lugar, não deixando sequer ser retirada a mochila das suas costas
e aguardando o horário de saída “colada” à porta do serviço.

136
O “Espaço de Convivência”, realizado no NAICAP buscava promover a construção de laços possíveis para
as crianças em atendimento intensivo e acolher novas crianças, inserindo-as no cotidiano do serviço. Era
realizado semanalmente, com o mesmo grupo de crianças que freqüentava o serviço naquele determinado
horário, podendo a mesma criança participar de outros espaços, nos outros dias em que estivesse no setor.
Para a equipe, a mudança também foi significativa, uma vez que diante de tantas
crianças que pouco nos demandavam, era tentador atender sempre de imediato às demandas
desta criança em especial, que tanto nos endereçava suas demandas. Era como se
estivéssemos tendo com ela o retorno tão ansiosamente esperado do árido trabalho com as
outras.
É neste sentido que um trabalho desse porte exige uma supervisão, um olhar outro,
de fora, que possa atentar para os impasses da clínica, da posição do sujeito autista e da
posição da equipe. A supervisão permite que, com a discussão acerca dos impasses do
trabalho com essas crianças e as experiências vividas pelos profissionais, haja uma
responsabilidade do profissional pelo seu próprio ato e a orientação do trabalho sempre
pelo sujeito - e não por quaisquer especialidades profissionais. A supervisão não deve ser,
entretanto, uma super-visão no sentido de um saber prévio que, por ser completo, dirige a
ação, mas um olhar aberto, inventivo e disponível para o inesperado que se apresenta nesta
clínica. Trata-se de permitir à equipe olhar o sujeito autista nas formas particulares de
tratamento desse gozo desenfreado que vivencia e, no que for possível, ser para ele um
outro menos invasor e mais tolerável.

É uma clínica que exige alguma tolerância a gritos, sangue, cuspe, lixo e excrementos, sem
que entrem em jogo o masoquismo e as "boas intenções" do analista, uma vez que, dessa
posição, ele jamais poderá operar como analista. Se podemos falar de uma clínica do
autismo, é de uma clínica do inesperado, da surpresa, do real que emerge a cada instante em
seu poder de impossível, avassalador. Ser psicanalista de autistas é saber ser vassalo do real
sem se deixar avassalar por ele. É enfrentar a clínica da devastação absoluta sem se deixar
ser devastado137.

Finalmente, se quaisquer trabalhos com crianças impelem a uma escuta de seus pais,
o tratamento de crianças autistas parece ter nisso a chave para abrir as portas de seu
trabalho. Como já citado, não raramente essas crianças são marcadas por uma longa história
institucional, mas carecem de um lugar subjetivo, uma história pessoal. Na experiência
clínica, observa-se muitas vezes que os pais falam dessas crianças, mas não com elas.

137
Id. Ibidem. p. 09.
O trabalho com os pais se mostra então imprescindível para a construção de uma
história que não se restrinja a longas peregrinações institucionais, marca que parece cercear
a subjetividade dessas crianças. É freqüentemente observado no discurso das mães de
crianças autistas um longo percurso institucional, muito comumente iniciado pelo pediatra
por uma suspeita de surdez, diante da recusa de resposta dessas crianças às demandas
alheias. Uma vez não tendo sido diagnosticados problemas auditivos nos exames
audiométricos, nem déficits cognitivos ou orgânicos, começa uma longa peregrinação
dessas mães com seus filhos em busca de respostas para as principais perguntas que elas
procuram responder: “O que é isso que meu filho tem?” e “Isso tem cura?”138. Vale
ressaltar que esses questionamentos já sã, muitas vezes, efeitos de um trabalho, haja vista
que muitas mães chegam ao serviço tendo sido incentivadas por pessoas da família,
vizinhos ou mesmo médicos, mas mostrando pouca (ou nenhuma) estranheza sobre seus
filhos autistas.
Neste sentido, o espaço de escuta das primeiras entrevistas, muitas vezes estranhado
pelas mães que pouco têm a dizer sobre seus filhos, parece já apresentar seu efeito quando
elas começam a enumerar as coisas que essas crianças “gostam” de fazer, tais como rodar
objetos, observar atentamente os movimentos de certos objetos (ventilador, ponteiros do
relógio), etc. De alguma forma, essas mães já apontam o trabalho realizado por essas
crianças quando frisam suas atividades na relação com esses objetos: “ela gosta de ficar
abrindo e fechando torneiras”, “ele fica acendendo e apagando a luz”, “ela abre e fecha as
portas do armário sem parar”139. Elas nos mostram a necessidade de marcar um certo
controle desse Outro onipotente e dos objetos que o presentificam, manifestando seu desejo
de manter uma certa ordem, uma permanência que é controlada rigidamente e cuja
mudança não é tolerada.

138
Questionamentos freqüentemente observados pelas mães no decorrer do trabalho clínico com essas
crianças no NAICAP.
139
Relatos de mães em atendimentos realizados no NAICAP.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

“não há fala sem resposta, mesmo que se


depare apenas com o silêncio”140.
Jacques Lacan

Relembrando a afirmativa lacaniana no que se refere às psicoses, a grande questão


que se coloca sobre a constituição do sujeito no autismo é “saber o que acontece com o
processo de comunicação quando, justamente, ele não chega a ser constitutivo para o
sujeito”141. Tomando a Psicanálise como referência, essa dissertação procurou abrir
caminhos para responder à seguinte questão: “qual o lugar do sujeito nesses casos em que
ele não se apresenta com sua questão, com uma demanda colocada ao Outro a quem ele
supõe um saber que possa ajudá-lo em seu sofrimento?”142, procurando focar o sujeito no
autismo. Mas de que sujeito trata a Psicanálise? Trata-se de um sujeito desejante, animado
de libido, cuja emergência é atestada pelo discurso do Outro.

O que é um sujeito? Será alguma coisa que se confunde, pura e simplesmente, com a
realidade individual que está diante de seus olhos quando vocês dizem o sujeito? Ou será que,
a partir do momento que vocês o fazem falar, isso implica necessariamente uma outra coisa?
Quero dizer, será que a fala é como que uma emanação que paira acima dele, ou será que ela
desenvolve, que impõe por si só, sim ou não, uma estrutura como aquela que tenho
comentado longamente, à qual os habituei? – e que diz que, quando há um sujeito falante, não
há como reduzir a um outro, simplesmente, as suas relações com alguém que fala, mas há
sempre um terceiro, o grande Outro, que é constitutivo da posição de sujeito enquanto alguém
que fala, isto é, também como sujeito que vocês analisam143.

No que se refere ao sujeito, não se trata de uma certeza antecipada, mas de uma
aposta: é a palavra, ato do analisando, que pode fazer o sujeito aparecer. O autista nos incita
a isso: ainda que não apareça como tal, ele possui sua condição de sujeito e é isso que faz
apostar na possibilidade de um trabalho e somente a partir do caso a caso, é possível fazê-lo
emergir.

140
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem (1953). Op. cit. p.249
141
LACAN, J. O Seminário livro 5 – as formações do inconsciente (1957-58). Op. cit. p.151.
142
BARROS, Maria do Rosário Collier do Rego. Prefácio. Op. cit. p 17.
143
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 5: As formações do Inconsciente. Op cit. 185-186.
A importância do Outro auxiliador para o bebê denota a importância e precocidade
da relação do sujeito com este Outro cujo olhar não anônimo introduz a criança no mundo
simbólico e permite, dentre outras coisas, a constituição de uma pretensa unidade corporal,
constituída a partir de seu investimento pulsional.
Se o único lugar possível ao sujeito é o significante, que está no campo do Outro,
ele é produzido como efeito da linguagem. Como condições necessárias, Lacan descreve a
experiência do estádio do espelho, como formador da função do eu, e as operações de
alienação e separação, constituintes do sujeito – em ambos ressaltando as coordenadas
simbólicas presentes, já que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
O que se observa desde precocemente é uma posição muito particular dessas
crianças frente ao Outro, tomado como não-barrado; e aos seus objetos (que são tomados
como intrusivos), razão pela qual elas apresentam um aparente alheamento e uma forte
recusa às suas demandas. No que se refere ao processo de constituição do sujeito no
autismo, nossa aposta é a de que há um significante primeiro (S1) – portanto, o autista não
estaria aquém da alienação, como defende Soler – mas não há a afânise necessária para
possibilitar a separação, ou seja, o sujeito parece permanecer petrificado nesse primeiro
significante. É justamente por não sair dessa condição que fica impedido de construir seu
desejo, já que é a partir do processo de separação que o sujeito reconhece a sua falta a partir
do que falta no Outro e entra na dimensão do desejo.
Entretanto, se há algum momento de alienação – já que ela é o “destino” de todos
aqueles submetidos à linguagem -, o que impede que o sujeito não haja o deslizamento dos
significantes do campo do Outro? Como essa criança pode se subjetivar sem que lhe seja
dada uma brecha, um engano, um intervalo de onde o sujeito pode advir? Percebemos no
discurso dessas mães a existência de duas postura extremas: a mãe que nada sabe sobre seu
filho e a mãe que tudo sabe sobre ele. Em ambas, a imutabilidade, uma existência
cristalizada que não permite um deslizamento, um movimento, um advento dessa criança
como sujeito.
A função do Nome-do-Pai, enquanto tal, funda a fala como ato e permite que a
criança saia de uma posição de identificação fálica e assuma uma posição de sujeito na
relação com seu desejo e objetos. Mas no autismo, não houve qualquer mediação na
triangulação fálica e a criança fica sujeita a ocupar o lugar de objeto na fantasia da mãe,
muito embora apostemos que o Édipo repercuta, de forma particular, na condição do sujeito
autista.
O sujeito autista intriga: não fala (ou fala repetidamente, sem inversão da
mensagem); vivencia uma falência egóica (e, de certa forma, repassa ao corpo do Outro
esse despedaçamento, tratando-o como pedaços de corpos); recusa terminantemente o olhar
e a fala do Outro como demandas; não adoece; têm maneiras muito particulares de tratar o
Outro e os objetos.
A ética da Psicanálise pressupõe que esta seja uma tomada de posição do sujeito
frente ao Outro, um arranjo possível encontrado por essas crianças para suportar a angústia
de lidar com este Outro tão maciçamente constituído. Na medida em que não há
simbolização, o Outro é não-barrado e, portanto, não comporta a dimensão de falta; suas
demandas são tomadas como intrusivas, e diante delas, faz-se necessário algum controle,
uma ação que descomplete esse Outro e promova o esvaziamento de seu gozo invasor.
Assim, se a ação do Outro indica tanto incômodo, tanta invasão, a alternativa encontrada
pela criança autista parece ser a de regrá-lo incessantemente, fazendo com que seja sua – e
não do Outro - a iniciativa (nem que seja uma iniciativa de recusa). Muitas vezes, essas
crianças encontram objetos que lhes servem de mediadores na relação com o Outro:
Marcelo segura um pedaço de barbante e somente enquanto está com ele nas mãos
responde a alguma intervenção, Rafael só se aproxima de alguém cantarolando melodias
indecifráveis, Natália só olha as pessoas através do espelho144.
Se a relação da criança autista enquanto sujeito com o Outro é o que aparece de
mais particular em sua estrutura, sua posição de sujeito e o estatuto desse Outro parecem
ser questões centrais para o trabalho na clínica com crianças autistas. Que lugar essa
criança ocupou no desejo do Outro primordial, o primeiro Outro que constituiu uma
alteridade tão radical? A partir disso, que posição ela assume e qual a direção de trabalho
clínico possível que, pautando-se na Psicanálise, escute essa criança que não fala?

144
Exemplos de situações clínicas no NAICAP.
O autista é presa do simbólico, presa da linguagem, mas não presa do Outro (...) o autista
estava no campo da linguagem, mas não na função da fala; ele não está na função da fala, já
que não se inscreve na demanda do Outro, ele se situa fora da demanda (...) compreendo a
posição autista como aquela de um sujeito que, para não desaparecer inteiramente na
inscrição simbólica, recusa o princípio da identificação significante. Isso é lógico, já que a
inscrição simbólica só é suportável com a condição de que exista Outro145.

Como pensar o advento do sujeito no autismo, onde o EU não se constitui uma


unidade? No autismo, a ausência de uma articulação da cadeia significante implica em
falência egóica, em que a dispersão dos significantes remete à uma dispersão do gozo, dos
órgãos do corpo. Como lidar então com essa descontinuidade subjetiva de um corpo não
marcado pelo desejo, não unificado e, portanto, fragmentado, que caracteriza o autismo?

Não se nasce com um corpo. Para se ter corpo, muitas condições serão necessárias para que
ele se aparelhe, tome forma, ganhe imagem e se apalavre. E, para tal, o olhar do Outro
ganha aqui todo o destaque146.

A Psicanálise aposta que os aspectos observados na clínica são respostas do sujeito


à presença e demanda deste Outro que a criança autista percebe tão intrusivo e que é a
partir dessa aposta que algum trabalho psicanalítico com essas crianças se mostra possível:
ele implica necessariamente a suposição de um sujeito mesmo ali onde ele ainda não pôde
advir. Implica antecipá-lo, escutar o que ele tem a dizer - mesmo que não fale. Neste
sentido, o manejo da transferência parece ser a via central de trabalho com essas crianças.
A ausência da vinculação entre S1 e S2 impede que o sujeito seja representado para outro,
mas não impossibilita que ele estabeleça algum tipo de transferência já que, como afirmou
Freud, a afetividade não estaria aniquilada:

145
NOMINÉ, Bernard. O autista: um escravo da linguagem. In: MARRAIO. Op cit. p.13.
146
JERUSALINSKI, A; RASSIAL, J-J; MENDONÇA, A.S; MOTTA, Sonia. Adolescência e modernidade.
In: ALBERTI, Sonia. O adolescente e a modernidade. Congresso Internacional de Psicanálise e suas
conexões. Tomo I. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. p. 172.
O problema das psicoses seria simples e claro se o desligamento do ego em relação à
realidade pudesse ser levado a cabo completamente. Mas isso parece só acontecer
raramente ou, talvez, nunca147.

Na clínica do autismo, a transferência está condicionada pelo que caracteriza o


sujeito em suas especificidades e ao que dificulta seu advento. O analista deve ter sua
presença vazia de qualquer demanda, possibilitando a essas crianças experiências com a
linguagem, tal como ressalta Santos na experiência do CAPSI Pequeno Hans: “de início,
fizemos a aposta de que as crianças são sujeitos e fizemos também uma escolha de dar a
palavra ao sujeito, mesmo quando ele não fala”148, o que exige tomar como ato as
produções verbais e não-verbais que essas crianças apresentam.
A prática entre muitos, que tanto tem permeado a prática psicanalítica dos
dispositivos institucionais com essas crianças, parece ser uma alternativa resolutiva na
medida em que vê a criança autista como um sujeito entre muitos e não como
“propriedade” de cada profissional, exigindo a construção de um ponto de ancoragem para
que ela suporte o trabalho com menos angústia, já que não estaria em uma relação dual com
este Outro que vivencia como invasor. Trata-se mais de uma particularidade do que de uma
especialidade técnica, uma vez que o trabalho clínico com essas crianças exige um certo
desprendimento das especialidades e a aposta na singularidade de cada caso, tal como nos
orienta Freud149.
A aridez da clínica do autismo convoca o analista a trabalhar com o não-saber, com
a surpresa, tomando as manifestações apresentadas por essas crianças como ato, como
produções que, de alguma forma, buscam alguma inscrição significante.

147
FREUD, Sigmund. Esboço de Psicanálise (1938). Volume XXIII. Edição Standard das Obras Completas
de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 215.
148
SANTOS, Katia Wainstock Alves dos. O dispositivo psicanalítico na clínica institucional do autismo e da
psicose infantil. Dissertação de Mestrado, UERJ-RJ, 2001. p. 27.
149
FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). Volume XII. Edição
Standard das Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
O autismo é ainda uma questão nova, e muito caminho de trabalho há que ser
percorrido. A noção de estrutura em Lacan perpassa as estruturas clínicas (neurose, psicose
e perversão, pensadas a partir da metáfora paterna), a teoria dos quatro discursos (discurso
do mestre, discurso da histeria, discurso da universidade e discurso do analista) e a
amarração dos três registros (real, imaginário e simbólico). Aqui, neste trabalho, abordamos
o autismo no que se refere aos processos de constituição do sujeito e sua relação com o
Outro, permeando a questão da metáfora paterna.
Quando Lacan elabora um conceito de estrutura não mais ligada ao sintoma, mas
pressupondo a intervenção de uma lógica que ultrapassa a linguagem e se realiza através do
discurso, propõe um esquema operacionalizável para se pensar o sujeito e sua constituição
escritos a partir do discurso, no que se refere ao posicionamento que o sujeito assume frente
ao Outro e ao gozo. Neste sentido, na medida em que a questão da criança autista se refere
justamente ao tratamento de um gozo desenfreado, abre-se caminho para pensar o autismo
com relação à teoria dos quatro discursos formulada por Lacan já que eles são, em última
instância, modos da relação do sujeito com o gozo.
Lançamos então, para futuros trabalhos, duas outras questões: se o autismo trata o
gozo desenfreado e a teoria dos discursos descreve formas de lidar com o gozo, como
pensar o autismo neste momento do ensino lacaniano? Poderíamos supor o sujeito autista
advindo como R-S-I, em uma articulação dos registros real, simbólico e imaginário, cujo
processo estrutural e circular de amarração constituiria um operador na relação inicial
aparentemente dual da criança com a mãe?
Finalmente, como Toquinho canta em Aquarela150, “nessa estrada, não nos cabe
conhecer ou ver o que virá, o fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar”. Que a
clínica do autismo, com suas pedras e flores, possa ser percorrida pelo analista com o
“coração do seu ser”151; e que haja sempre aposta no trabalho possível com aquele que
tantas vezes é tomado como impassível de qualquer trabalho: o sujeito autista.

150
Referência à música Aquarela, de Toquinho, cuja letra está transcrita ao final deste trabalho.
151
RIBEIRO, Maria Anita Carneiro. Revista MARRAIO. Formações Clínicas do Campo Lacaniano. Numero
2. Rio de Janeiro, 2001. p. 09.
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__________________. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). E.S.B.
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__________________. Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental


(1911). E.S.B. Volume XII.

__________________. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de


paranóia (Dementia Paranoides) (1911). E.S.B. Volume XII.

__________________. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor


(Contribuições à Psicologia do Amor II). (1912). E.S.B. Volume XI.

__________________. Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914). E.S.B. Volume XIV.

__________________. Conferência XXIII – Os caminhos da formação dos sintomas


(1917). E.S.B. Volume XVI.

__________________. A dissolução do complexo de Édipo (1924). E.S.B. Volume XIX.

__________________. Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os


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Aquarela
(Toquinho)

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo


E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva
Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
Num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu

Vai voando contornando a imensa curva norte-sul


Vou com ela viajando, Havaí, Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela branco navegando
É tanto céu e mar num beijo azul
Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo, com suas luzes a piscar
Basta imaginar e ele está partindo, sereno indo
E se a gente quiser, ele vai pousar

Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida


Com alguns bons amigos, bebendo de bem com a vida
De uma América à outra consigo passar num segundo
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo
Um menino caminha e caminhando chega no muro
E ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está
E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar
Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar
Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela de uma aquarela que um dia, enfim,
Descolorirá...

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