Você está na página 1de 308

ABORDAGEM HISTÓRICA SOBRE

A POPULAÇÃO NEGRA NO
ESTADO DO PARANÁ

ORGANIZADORAS
ANA ZAICZUK RAGGIO
REGINA BERGAMASCHI BLEY
SILVIA CRISTINA TRAUCZYNSKI

VOL. 2
Curitiba, Paraná, Brasil
2018
Governo do Estado do Paraná

Secretaria de Estado da Justiça,


Trabalho e Direitos Humanos

Departamento de
Direitos Humanos e Cidadania

Organizadoras
Ana Zaiczuk Raggio
Regina Bergamaschi Bley
Silvia Cristina Trauczynski

Capa
Ana Carolina Gomes

Diagramação, Editoração e Revisão


Formas Consultoria

P831
População Negra no Estado do Paraná: Coletânea de Artigos - Abordagem
Histórica - v. 2 / Organizadores: Ana Zaiczuk Raggio, Regina Bergamaschi Bley,
Silvia Cristina Trauczynski - Curitiba: SEJU, 2018.

306 p.

ISBN 978-85-66413-14-4

1. Ciências Sociais 2. População Negra 3. Abordagem Sociológica I. Raggio,


Ana Zaiczuk II. Bely, Regina Bergamaschi III. Trauczynski, Silvia Cristina

CDD-300

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte.
Reproduções para fins comerciais são proibidas.
Apresentação

Esta publicação resulta do convênio firmado entre a Secretaria Nacional


de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/Ministério dos Direitos Humanos
(SEPPIR/MD) e a Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos
(SEJU), além da colaboração do Instituto de Terras, Cartografia e Geologia do Pa-
raná (ITCG) e em especial do esforço comum dos profissionais de áreas diversas,
que atuam em universidades, instituições públicas estaduais e nos movimentos so-
ciais de promoção e defesa da igualdade racial e assinam os artigos aqui presentes.
A obra População negra no estado do Paraná divide-se em 2 volumes, sen-
do: Coletânea de artigos – Abordagem Sociológica (vol. 1) e Coletânea de artigos
– Abordagem Histórica (vol. 2), além do Mapa População Negra, Comunidades
Quilombolas e Comunidades Tradicionais Negras no Estado do Paraná, e busca
apresentar a riqueza de estudos, debates e pesquisas, relacionadas à população negra.
A coletânea busca também dar visibilidade à importante colaboração da po-
pulação negra para a formação do estado; e retratar a realidade social vivida por ela,
contribuindo para a formulação de políticas públicas efetivas.
A SEPPIR nasceu do reconhecimento das lutas históricas do movimento
negro brasileiro e da importância e impacto que a população negra tem sobre a for-
mação social, cultura, política e econômica do país. Cabendo à SEPPIR a formula-
ção, coordenação e articulação de políticas, legislação e diretrizes para a promoção
da igualdade racial; sempre primando pela transversalidade da pauta e cooperação
entre os entes federados.
Por sua vez, a SEJU possui entre suas inúmeras atribuições a definição de
diretrizes para a política governamental focada no enfrentamento ao racismo e à
discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Para tan-
to, mantém, de forma permanente, uma estreita relação com as várias instituições
governamentais e não governamentais, nas suas diferentes formas de expressão.
É por meio do seu Departamento de Direitos Humanos e Cidadania (DE-
DIHC) que são desenvolvidas atividades, das quais se destacam a coordenação do
processo de elaboração do Plano Estadual de Políticas Públicas de Promoção da
Igualdade Racial, a implementação do Programa SOS Racismo e a execução do
Convênio nº 822.118/2015 entre SEPPIR/MD e a SEJU, que, além da publicação
desta coletânea, realizou entre os meses de março e novembro de 2017 cinco semi-
nários regionais sobre abordagem e enfrentamento ao racismo institucional.
Além disso, para garantir a construção democrática de políticas públicas e
a legitimidade social, está vinculado à SEJU o Conselho Estadual de Promoção da
Igualdade Racial (CONSEPIR). Composto de forma paritária por representantes
da sociedade civil e do poder público, o CONSEPIR tem por finalidade deliberar
sobre as políticas públicas que promovam a igualdade racial para combater a dis-
criminação étnico-racial, reduzir as desigualdades sociais, econômicas, políticas e
culturais, atuando no monitoramento e fiscalização das políticas públicas setoriais,
em atenção as previstas do Estatuto da Igualdade Racial.
Por fim, é nesse contexto e com a contribuição dos parceiros já mencionados
que se espera que esta obra venha a contribuir para reforçar o compromisso de for-
talecimento de políticas públicas de promoção da igualdade racial e enfrentamento
ao racismo.
Sumário

A PRESENÇA NEGRA NO PARANÁ


A presença negra na história do Paraná: pelo direito à memória.................................7
Delton Aparecido Felipe

Processos migratórios da população negra no Paraná............................................... 25


Ana Maria Rufino Gillies

Aspectos históricos da presença do negro no Paraná................................................ 38


Edson Lau Filho

Negros no Paraná na primeira década do século XXI: características demográficas e


desigualdades raciais................................................................................................ 46
Paulo Roberto Delgado

EDUCAÇÃO E CULTURA DA POPULAÇÃO NEGRA


O Paraná e a educação da população negra............................................................... 75
Celso José dos Santos, Claudinei Magno Magre Mendes e Eduardo David Oliveira

A educação da população negra: um debate a partir das experiências de escolarização


de escravos e libertos no Paraná Provincial............................................................... 91
Noemi Santos da Silva

A população negra e a educação brasileira..............................................................110


João Henrique de Souza Arco-Verde e Mirian Célia Castellain Guebert

Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná: negritude narrada por


crianças..................................................................................................................128
Ingrit Yasmin Oliveira da Silva, Fabiane Freire França e Delton Aparecido Felipe

Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do


Paraná.................................................................................................................... 145
Mel e Candiero

Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência...........................................162


Romilda Oliveira Santos
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes da licenciatura em
Educação do Campo - UFPR Litoral, da comunidade quilombola João Surá..........179
Claudemira Vieira Gusmão Lopes, Lourival de Moraes Fidelis e Michelle Bocchi
Gonçalves

CONQUISTA DE DIREITOS E CIDADANIA


Beatriz e o abandono: anotações a uma ação de liberdade no Paraná (1876-1881)... 198
Carlos Alberto Medeiros Lima

Racismo e antirracismo no Brasil: uma base teórica para a promoção da igualdade


racial a partir das políticas redistributivas e de reconhecimento .............................232
Fernanda da Silva Lima

O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial...........................247


Ana Zaiczuk Raggio e Regina Bergamaschi Bley

O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial: um olhar sobre a


mulher negra..........................................................................................................266
Amanda Ribeiro dos Santos e Francisco de Jesus de Lima

Classe média negra de Maringá..............................................................................278


Rosângela Rosa Praxedes

Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral da


População Negra no estado do Paraná – Secretaria de Estado da Saúde..................296
Lucimar Pasin de Godoy e Juliano Schmidt Gevaerd
A presença negra na história do
Paraná: pelo direito à memória
Delton Aparecido Felipe1

Introdução
O direito à memória hoje no Brasil é visto como um direito fundamental, em
que todos os sujeitos sociais têm direito ao acesso ao seu passado e às informações
que lhe permitem pensar suas identidades culturais, dito isso, discutir a memória
negra no estado do Paraná implica entender que muitas das práticas de vida da po-
pulação afro-brasileira no decorrer do século XX foram vistas como obstáculo para
a constituição do projeto nacional pensado pela elite, e na história do Paraná não foi
muito diferente, a construção de uma identidade paranaense, ou mesmo paranista,
se fez a partir da omissão ou do esquecimento da presença da população negra no
estado e, consequentemente, de sua memória.
Como argumenta Michael Pollak (1992), a memória coletiva é em parte
herdada, e não se refere apenas à vida física da pessoa, a memória remete tanto aos
mecanismos de acumulação vinculando-se às formas de conservação, atualização e
reconhecimento de uma lembrança, quanto aos processos de compartilhamento de
representações sociais. Afeita ao universo de interações e significações de um sujeito em
seu mundo, é essa reinterpretação constante do passado, sua reconfiguração e formas
de ação no presente. Pollak ainda afirma que a memória também sofre flutuações em
função do momento em que ela é articulada, em que está sendo expressa, estabelecen-
do o que aqui chamaremos de políticas da lembrança ou políticas do esquecimento.

1
Pós-doutor em História, na linha de pesquisa em Fronteiras, Populações e Bens Culturais no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá-Paraná. Doutor
em Educação com estágio de doutoramento junto ao Centro de Investigação Didática e Tecno-
logia na Formação de Formadores, da Universidade de Aveiro, Portugal. Mestre em Educação e
graduado em História. E-mail: ddelton@gmail.com.
7
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Considerando isso, ao retratar a presença negra no Paraná, julgamos a me-


mória como um fio condutor que nos leva a entender a negação identitária dessa
população no estado a partir de uma política de invisibilidade na história e tradições
culturais do Paraná. Nos últimos anos da década de 1990, esse movimento tem tido
um lento e progressivo deslocamento do esquecimento e da negação em direção ao
reconhecimento nas políticas pública dos diversos conhecimentos e modos de ser
da população negra paranaense, vinculando, assim, a uma política da lembrança.
Ao analisarmos as práticas de vida da população paranaense, percebemos que
os processos de sociabilidade, nos quais a identidade desse grupo se engendra, têm
ultrapassado as fronteiras de um discurso forjado a partir da ideia que o Paraná é um
estado construído a partir do imigrante europeu do final do século XIX. Mais que
isso, o questionamento da identidade do povo paranaense vem sendo gradualmente
reconstruído por novos elos agregados com o passar do tempo. Trata-se de uma
identidade que se produz também através da alteridade e dos critérios de aceitabili-
dade, admissibilidade e de credibilidade negociados diretamente com o “outro”, ou
seja, com aquele que a priori foi negado, distanciado e invisibilizado.
Dessa forma, um dos primeiros passos para analisar a presença negra no Pa-
raná passa pelo reconhecimento que as diferentes formas de manifestações da cultu-
ra material ou imaterial dessa população foram ignoradas na construção da história
do estado, uma vez que a importância dos bens patrimoniais dos grupos considera-
dos subalternos era renegada pelo projeto de construção da identidade paranaense.
O resultado dessa política foi o ocultamento dos grupos menos favorecidos, como a
população negra da memória social do Paraná (FELIPE, 2015).
O que nos remete às formulações de Johann Michel (2010), de que as polí-
ticas do esquecimento podem ser dar como omissão, que decorre de descartes fun-
cionais tanto no indivíduo quanto na sociedade; a negação, que opera no meio da
manipulação do esquecimento, fortemente marcada pela ação de atores públicos
como órgãos governamentais encarregados de transmitir a memória oficial e cons-
truir a identidade de um grupo ou estado.
Em relação à população negra, as políticas de esquecimento, tão bem opera-
cionalizadas na formação da identidade nacional, como argumenta Delton Felipe

8
A presença negra na história do Paraná

(2016), começaram a ser questionadas de forma mais incisa a partir do final das
décadas de 1970 e de 1980, dentro do processo de redemocratização da sociedade
brasileira e como resultado da organização e pressão do Movimento Negro Unifica-
do (MNU) e as novas perspectivas de pesquisa histórica baseada na Nova História
Cultural, que apregoam que as manifestações de origem africana deixaram de ser
vistas como exóticas e passaram a ser reconhecidas e valorizadas como formas de
expressão da cultura afro, como referência às identidades negras nas diversas regiões
do país, inclusive no Paraná.

A política da memória na formação identidade étnico-racial na história do


Paraná
A memória se perdura em lugares e em acontecimentos históricos, essa é uma
afirmação de Pierre Nora (1993) que, ao argumentar que os “lugares da memória”
são fundamentais para a organização da identidade de um grupo, segundo o autor,
a comunidade demonstra definir também sua identidade. Dessa forma, ao discutir
o local que a população negra ocupou na história paranaense, buscamos entender
também como as identidades desse grupo se constroem e se reconstroem em relação
aos contatos que estabelecem com outros grupos.
Ao discutir a formação das identidades no contexto contemporâneo, Stuart
Hall (2001) traz algumas reflexões. Afirma que, na atualidade, ainda que seja tenta-
dor pensar na identidade restringida, há dois caminhos: um retornando às “origens”
e um outro desaparecendo através da assimilação ou homogeneização não conside-
rando os processos de sociabilidade das memórias dos diversos grupos existentes em
uma sociedade. No que tange à análise da memória da população negra no Paraná,
é plausível pensarmos que tanto os “lugares de memória” quanto as representações
identitárias desse grupo lançam mão de elementos culturais e que são constante-
mente mutáveis e sociáveis, ora utilizados como elementos de negação, ora como
elementos de afirmação da identidade regional, como veremos.
Para problematizar o processo de afirmação ou negação na identidade do
ser paranaense, seguimos o conselho de Michael Pollak (1992), que argumenta que
tanto a memória quanto a identidade integram um projeto de construção de uma

9
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

nação ou de uma comunidade. Referir-se à formação da identidade de um povo ou


de grupo é, portanto, algo construído socialmente, é entender a obrigatoriedade de
se considerar que esta sujeita-se a toda sorte de interferências do contexto no qual
se insere, levando muitas vezes a uma política da memória, proposital ou não, de
esquecimento ou lembrança.
Para entendermos as discussões sobre identidade paranaense atual, é fun-
damental nos reportamos ao final do século XVI em que a busca da coroa portu-
guesa por ouro em território do Brasil Colonial teve êxito na Baía Paraná, um dos
primeiros lugares a se achar ouro, mesmo que fosse de aluvião2, o que fez a região
receber povoadores, em especial os paulistas, levando à transformação de Paraná em
Capitania, e também à fundação do povoado que, por volta de 1721, iria se chamar
Curitiba.
No decorrer do século XVIII, em especial com as mudanças ocorridas na
administração do Brasil, o Paraná se tornou a 5ª comarca da Capitania de São Pau-
lo. De acordo com Ângelo Priori et al. (2012, p. 7), o “território paranaense era
Comarca de São Paulo, não havia uma estrutura competente para as exigências ad-
ministrativas da região. A segurança era péssima, não havia escolas, nem professores
suficientes para a população. A justiça era mal aplicada e lenta. Os serviços públicos
eram precários”, o que fez com que a elite local começasse a requerer da Capitania de
São Paulo melhores condições, visto que a comarca pagava com altos tributos tanto
para o Império quanto para a província de São Paulo.
Esse descontentamento fez com que, no decorrer do século XIX, o Paraná,
enquanto 5ª comarca de São Paulo, tentasse inúmeras vezes o processo de emanci-
pação. Apesar dos avanços nas tentativas, a elite local não conseguiu sucesso até o
início da segunda metade do século XIX. Por volta de 1850, o assunto foi conside-
rado pelo Império, pois nessa época surgiu a preocupação com possíveis invasões
dos países vizinhos, além dos reflexos na região Sul, da tentativa da elite produtora
de charque do Rio Grande do Sul de buscar a emancipação política do Brasil por
meio da Guerra dos Farrapos (1835-1845). Dessa forma, regiões de fronteira pas-
saram a ser melhores estruturadas, com vistas a evitar qualquer invasão estrangeira

2
O ouro brasileiro era encontrado no barranco das margens dos rios ou em seu leito.
10
A presença negra na história do Paraná

ou processo de emancipação. Esse contexto possibilitou que as negociações sobre a


nova política de emancipação da 5ª comarca de São Paulo avançassem com a coroa.
Apesar da resistência da província de São Paulo, em 2 de agosto de 1853, o
projeto de emancipação da comarca do Paraná foi aprovado e, em 29 do mesmo
mês, sob Lei nº 704 sancionada por D. Pedro II, foi criada a província paranaense.
Em 19 de dezembro de 1853, aconteceu a instalação solene da nova província, to-
mando posse o primeiro presidente, Zacarias de Góes e Vasconcellos (PRIORI et
al., 2012), cujas atitudes foram fundamentais para o desenvolvimento da província
do Paraná. João Borba Camargo (2004) e Angelo Priori et al. (2012) argumentam
que, como presidente, Góes efetuou estudos sobre as possibilidades de construção
de estradas que ligassem Curitiba até o litoral, medida que possibilitou um maior
desenvolvimento econômico para a nova província, o que levou à construção da
Estrada da Graciosa que foi finalizada em 1873, possibilitando o transporte de mer-
cadorias com maior eficácia.
Nesse contexto, podemos mencionar uma das contribuições de Vasconcel-
los, aplicar a instrução pública primária do Paraná, investimento que, além de con-
tribuir para a qualificação de mão de obra na província, levou em 1876 à fundação
do Instituto Paranaense de Educação, atual Colégio Estadual do Paraná, que de
certa forma colaborou com o “abrasileiramento” dos estrangeiros que chegavam às
terras paranaenses. Podemos afirmar que, nesse momento histórico, iniciou-se uma
gestão da política da memória em busca de memoriais que se aproximavam e, por
vezes, se confundiam à identidade que se queria do paranaense.
A busca para formação de uma identidade local foi iniciada após a emanci-
pação paranaense de São Paulo, a partir de 1853, com vários incentivos governa-
mentais para construir uma memória coletiva do que é ser paranaense, e isso é o que
podemos chamar de políticas da memória. Na busca de uma coesão ou de uma ideia
de compartilhamento de passado, o estado aparece como um agente que propõe,
através de vários instrumentos, essa convicção de compartilhamento memorial.
No Paraná, a construção dessa política da memória se fez a partir da cons-
trução do “paranismo”, e terá no jornalista e historiador Alfredo Romário Martins
um dos seus principais definidores e expoentes no final do século XIX e início do

11
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

XX. Martins foi o autor da primeira obra sobre a historicidade do estado, intitulada
História do Paraná, publicado em 1892. José Iurkiv (2002), ao analisar o livro de
Martins, afirma que, por ser um texto extremamente narrativo, jornalístico e infor-
mativo, elencando uma série de informações detalhadas, abrangendo localidades e
épocas de uma forma sequencial:

a obra de Romário Martins legitimou-se, naquela época, como a


história oficial do Paraná, sobretudo, pelo seu reconhecimento cien-
tífico. Dessa forma, História do Paraná influenciaria decisivamente
a elite intelectual paranaense da época no processo de construção
identitárias do estado. (IURKIV, 2002, p. 126).

É preciso ressaltar que a obra e o pensamento de Martins sobre o Paraná


estão influenciados pelas teorias raciais do final do século XIX e início do século
XX. Como argumenta Delton Felipe (2014, 2016), as teorias raciais nesse período
fizeram a população negra sujeitos do branqueamento, ou seja, a busca genética para
eliminar as características africanas da população brasileira, pois parte dos intelec-
tuais da época acreditava que essa população, ao se parecer mais com a população
europeia, levaria o Brasil ao pretenso progresso. As políticas de branqueamento nes-
se período configuraram-se como uma das formas de assegurar a modernização do
país. Não é por outra razão que o estado brasileiro, no início do século XX, terá
como referência a Europa.
Ao analisarmos a questão racial, no pensamento de Martins, verificamos que
eles construíram uma representação do paranaense como sendo a soma das heranças
luso-brasileiras com o índio romantizado da literatura, eleitos os seus “ancestrais
fundadores”. Portanto, nessa “miscigenação positiva do herói português com o ín-
dio romântico, o africano seria eloquentemente esquecido” (CAMARGO, 2007, p.
12). Nessa lógica de pensamento, que foi a tônica do pensamento paranista, a me-
mória da população negra que estava vinculada à escravidão teria que ser esquecida
ou amenizada na história do Paraná.
Podemos afirmar que o “paranismo”, como elemento central na gestão da
política da memória paranaense, foi atravessado pelas teorias de branqueamento em
voga no Brasil no final do século XIX e no início do século XX. Um efeito disso é o

12
A presença negra na história do Paraná

argumento que encontramos na obra de Romário Martins (1995), “a população ne-


gra e mestiça de negro nunca foi numerosa no Paraná”. Argumento que tem passado
por uma desconstrução, a partir de pesquisas que buscam estabelecer uma política
da lembrança sobre a participação da população negra no Paraná. Entre estas, as
pesquisas de Miriam Hartung (2005), que demonstram que no estado do Paraná
a população negra esteve presente de forma significativa nas regiões do litoral ou
na região do planalto, nas cidades, vilas e freguesias, na mineração, na pecuária, na
agricultura de subsistência, no cultivo da erva-mate ou no café:

O mapa dos habitantes da Vila de Paranaguá de 1767 informa que,


no período, 48% da população era escrava. Em 1776, representava
23% da população de Curitiba; em 1767, 50% e no final do século
XVIII, 47%’. A autora ainda argumenta, era significativa no segundo
planalto, ‘nos Campos Gerais, em alguns períodos e locais, o escravo
também representou parcela considerável da população. Em Castro,
por exemplo, em 1839 os escravos eram 26% da população. (HAR-
TUNG, 2005, p. 149).

Outro argumento utilizado por Romário Martins (1995) em sua obra é que
o pequeno contingente populacional de negros e mulatos no Paraná se deve à pe-
cuária desenvolvida no estado no século XVIII, a cargo de índios e seus mestiços, e
não a agrícola, para qual o negro era preferido como a cana-de-açúcar no Nordeste,
e o café no Sudeste brasileiro, argumento que tem sido refutado por pesquisas mais
atuais sobre a participação da população negra no desenvolvimento econômico pa-
ranaense. Dessa forma, podemos afirmar que a obra de Martins colabora com a polí-
tica de esquecimento por omissão para construção de uma política da memória, que
construa uma identidade paranaense alinhada com as políticas de branqueamento
da época, ou seja, o paranista.
Nesse sentido, o conceito de paranista foi definido por Romário Martins
como:

Paranismo é todo aquele que tem pelo Paraná uma afeição sincera,
e que notavelmente a demonstra em qualquer manifestação de ati-
vidade digna, útil à coletividade paranaense. [...] Paranista é simbo-
licamente aquele que em terra do Paraná lavrou um campo, vadeou
uma floresta, lançou uma ponte, construiu uma máquina, dirigiu
13
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

uma fábrica, compôs uma estrofe, pintou um quadro, esculpiu uma


estátua, redigiu uma lei liberal, praticou a bondade, iluminou um cé-
rebro, evitou uma injustiça, educou um sentimento, reformou um
perverso, escreveu um livro, plantou uma árvore. Paranismo é o es-
pírito novo, de elação e exaltação, idealizador de um Paraná maior
e melhor pelo trabalho, pela ordem, pelo progresso, pela bondade,
pela justiça, pela cultura, pela civilização. É o ambiente de paz e soli-
dariedade, o brilho e a altura dos ideais, as realizações superiores da
inteligência e dos sentimentos. (MARTINS, 1995, p. 38).

Podemos entender, a partir da citação, que paranista não é necessariamente


aquele que nasceu no Paraná, mas sim aquele que contribui para o progresso do
estado e, na perspectiva do autor, a população negra não estava entre estes, no en-
tanto o conceito conseguira incluir a massa de imigrantes europeus que chegaram
ao Paraná, na segunda metade do século XIX, o que nos permite entender por que
na memória coletiva paranaense até hoje tem se registro que o Paraná é um estado
formado por imigrantes.
Não podemos esquecer que o governo apresentava como dois argumentos
principais para atrair imigrantes europeus: a baixa presença da população negra
no estado, os diferenciando de estados como São Paulo e o Rio de Janeiro, que,
mesmo nos anos pós-abolição, ainda tinham uma presença marcante da população
negra em seu tecido social. Esse argumento se insere em uma política da memória
de estado que contribuiu para invisibilidade dos afro-brasileiros na região, o que
nos permite afirmar que, para além de um racismo estrutural brasileiro, a população
brasileira viveu um racismo estrutural incentivado pelo próprio estado.
Outro argumento muito utilizado no final do século XIX e início do XX
foi o determinismo geográfico, com base no argumento que o clima paranaense era
mais próximo ao clima europeu do que, por exemplo, Rio e São Paulo. Nesse senti-
do, o clima do estado, ameno e semelhante aos climas europeus, foi amplamente uti-
lizado para justificar uma suposta superioridade dos paranaenses em relação ao resto
do Brasil, cujo clima tropical era um empecilho ao desenvolvimento da civilização,
argumento muito utilizado pelas teorias raciais da época para explicar a inferiorida-
de de povos não europeus, em especial os africanos e indígenas.

14
A presença negra na história do Paraná

Mesmo passados cem anos da emancipação política do Paraná, 1953, ges-


tão da memória paranaense que priorizava os imigrantes e seus descentes, em de-
trimento à população negra continuamente, em 1953 a obra História do Paraná de
Romário Martins foi reeditada e adotada como obra oficial da história paranaense.
A reedição e adoção da obra demonstra que, a partir da segunda metade do século
XX, ainda continua uma política de inviabilidade da população afro-brasileira no
Paraná. Para além disso, na comemoração do centenário, vários monumentos foram
fundados com notória influência paranista, exaltando a memória imigrante no Pa-
raná, como sinônimo de memória coletiva do povo paranaense.
Ainda na metade do século XX, mais especificamente em 1955, foi publica-
do o livro de Wilson Martins, Um Brasil diferente, em que o autor excluiu a popu-
lação negra e os povos indígenas da formação identitárias do Paraná. O autor elege
como argumento que o Paraná seria “um Brasil diferente” do resto do país por não
ter conhecido a existência da escravidão e por ter sido colonizado, eminentemente,
por europeus, o que levou o estado ao progresso e à civilização.
É importante mencionar que, mesmo entre os europeus, Wilson Martins
(1989) elegeu os que mais contribuíram para imigração, os alemães e aqueles que
menos contribuíram, os poloneses. Podemos afirmar que a formulação teórica de
Wilson Martins foi fundamental para consolidar a memória do imigrante como a
memória coletiva oficial da identidade paranaense, fazendo com que a memória da
presença da população negra ficasse no esquecimento.
Um exemplo disso podemos ver na pesquisa realizada por Octávio Ianni em
Curitiba, em 1955, com intuito de analisar as relações raciais na sociedade para-
naense. Ao fazer entrevistas orais com moradores locais sobre o impacto do precon-
ceito sobre o processo de integração da população negra em Curitiba, Ianni nos faz
o seguinte relato:

Ao iniciar a investigação acerca da situação social do negro em Curi-


tiba, um informante nos prestou um esclarecimento que, de início,
pareceu-nos gracejo de mau gosto, tão inesperado foi. ‘Aqui, afir-
mou, não há negros. O negro do Paraná é o polaco’. Ficamos pas-
mados com a declaração e, mais ainda, porque ele a fazia seriamente.
(IANNI, 1960, p. 325).

15
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

O relato de Ianni não é demonstrativo somente de Curitiba, mas de uma me-


mória coletiva do estado de brancos europeizados. Mais preocupante do que a me-
mória coletiva sobre a identidade histórica do paranaense, está a política de esque-
cimento empreendido pelo próprio estado sobre a memória da população negra,
visto que, ao reeditar as obras de Romário Martins e Wilson Martins pela imprensa
oficial, e adotá-las como referência no sistema educacional do estado, sem proble-
matizar os processos de esquecimento que essas obras fazem de parte da população
do estado, há uma gestão da memória que invisibiliza a população afro-brasileira na
história regional.

Memória negra no Paraná: por uma política da lembrança


Com os deslocamentos no pensar das narrativas históricas e a luta do mo-
vimento negro a partir da década 1980, a compreensão da memória negra no Pa-
raná passa por uma reconfiguração que, pouco a pouco, tem aberto espaço para o
entendimento da participação dessa população em diversos momentos da história
do estado. O que tem permitido a reconstrução da trajetória da população afro-
-brasileira na história regional que foi tornada invisível pela memória e pela história
tradicional.
Para estabelecermos uma política de lembrança, como argumenta Michael
Pollak (1989), como a capacidade de estabelecer laços com o passado de tal forma
que estejamos sempre visíveis e reconhecíveis para nós mesmos e para os outros, é
fator fundamental a análise das características da escravidão nesse estado. A escravi-
dão nessa localização, apesar de menos intensa do que em outros lugares do Brasil,
não foi diferente das demais regiões. A população negra foi inserida como merca-
doria na compra, venda e aluguel e rendia impostos ao governo. Produzia riquezas
com seu trabalho e era importante para a economia do mercado interno e externo
de bens. A Província do Paraná, em 1872, possuía registro de cerca de 10.500 negros
escravizados. Em 1887, o número teria diminuído para 3.600 e esse declínio foi
atribuído mais às mortes, vendas e transferências para outras províncias do que pela
libertação concedida pelos senhores escravocratas (TUMA, 2008).

16
A presença negra na história do Paraná

Ao analisar a população dos estados que compõem a região Sul do país, per-
cebe-se que o Paraná é o estado que concentra o maior número de negros. De acor-
do com Silva (2010):

Em 1853, quando ocorreu a emancipação política do Paraná, 40%


da população do Estado, era composta por negros. Hoje, segundo
dados do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE), eles re-
presentam 28,5%, o que confere ao Paraná a maior população negra
do sul do país. (SILVA, 2010, p. 1).

Esses dados desmistificam a visão eugênica de um Paraná sem negros, e essa


conotação começa a ser substituída pela visão de um Paraná que deve parte do seu
desenvolvimento à comunidade negra, que aqui se fez presente desde o século XVI
e ainda hoje reproduz parte de seus costumes e tradições no território paranaense,
estabelecendo, assim, uma política da lembrança do vivido.
Essa política da lembrança tem como objetivo trazer para conhecimento pú-
blico memórias que ficaram confinadas no silêncio e transmitidas de uma geração
a outra oralmente, e não através de publicações, e que permanecem vivas. Por mais
que a política do esquecimento busque produzir um silêncio sobre o passado, tem
sempre pontos de resistência ou de lembranças que determinado grupo consegue
fazer sobre a gestão da memória oficial (POLLAK, 1989).
No caso do Paraná, ao mesmo tempo que tivemos o estado promovendo
uma gestão da memória por meio do “paranismo”, em que a população negra se viu
excluída, a memória negra não sumiu ou se apagou, ela ficou residindo em espaços
ou lugares de memórias, tradições e em espaços das culturas não oficiais, esperando
o momento que houvesse uma redistribuição das cartas políticas ou de que o jogo
da memória coletiva se reconfigurasse.
Podemos perceber isso nos dizeres da historiadora Lúcia Helena Oliveira da
Silva (2008), que argumenta que a historiografia a respeito da escravidão no Paraná
apontou uma participação menos intensa de escravos na região do que em outras par-
tes do Brasil. Em parte, tal assertiva baseou-se no fato de o Paraná estar fora do eixo
das economias agroexportadoras de grande porte, como a região Nordeste, ou extra-

17
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

tivas, como Minas Gerais, ou mesmo o Sudeste com o café. Nesse sentido, houve uma
interpretação segundo a qual se minimizou o trabalho escravo feito na província.
A economia paranaense, embora não rivalizasse com os grandes ciclos, usou
a mão de obra escrava. Santos (2001) afirma que a economia colonial paranaense
cresceu baseada na ocupação do solo, na valorização de atividades econômicas e no
uso sistemático da mão de obra escrava. As atividades econômicas mais significativas
que envolveram a escravidão foram a produção do mate e do tropeirismo, conjunto
de homens que transportavam gados, iniciado ainda no século XVIII e que seguiu
por todo o século XIX, com algumas interrupções devido à exploração da prata.
Na segunda metade do século XVI, a presença negra em território paranaen-
se é detectada, junto com colonizadores portugueses marginalizados e outros aven-
tureiros. Gutierrez (2006) afirma que, na região onde atualmente fica a cidade de
Paranaguá, no decorrer do século XVII e XVIII, foram identificados dois grupos de
africanos em terras paranaenses, os bantos e os sudaneses.
Essa informação se torna relevante pois nos ajuda explicar a existência de
patrimônios culturais materiais vinculados à população negra desde da segunda
metade do século XVI, como, por exemplo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, em
Paranaguá, considerara uma das primeiras em solo paranaense e a primeira dedicada
à Nossa Senhora do Rosário no Brasil, construída no período de 1575-1578. Sofreu
sucessivas reformas, adaptações, saques e destruição de peças, tendo sido tombada
pelo Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná, em 1967.
Temos ainda a Igreja Nossa Senhora do Benedito, também em Paranaguá.
Foi a primeira igreja construída no Sul do Brasil por escravos negros devotos de
São Benedito, acredita-se que por volta de 1600 a 1650. Padroeira da Irmandade
de São Benedito, santo negro que os escravos chamavam de o “Glorioso São Bene-
dito”. Construída para a encomendação dos corpos dos negros mortos, para missas,
casamentos e também batizados dos cativos, que não podiam frequentar a igreja dos
brancos. Até hoje é preservada, porém já foi reformada várias vezes. Tombada pelo
Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná, em 1962 e pelo Instituto do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1967.

18
A presença negra na história do Paraná

Durante o regime escravista, a população negra exercia as mais variadas fun-


ções, tanto na cidade quanto na zona rural, e dominava técnicas de tecelagem e cos-
tura, tecia, fabricava roupas com objetos em couro, extraía e fundia o ouro na região
de Curitiba, fabricava e tocava instrumentos musicais, conhecia técnicas de entalhe
em madeira e também de arquitetura. A música e a dança faziam parte de suas cele-
brações religiosas, um exemplo é a congada, que hoje é considerada um patrimônio
cultural imaterial negro no Paraná (TRINDADE; ANDREAZZA, 2001).
Durante o século XVIII (1780), os escravos africanos foram introduzidos
em inúmeras atividades nas quais trabalhavam ao lado de pessoas livres. O primei-
ro levantamento da população, nesse mesmo ano, contabilizava 12.349 brancos e
5.336 negros e mulatos (MARTINS, 1995).
Os portos também eram lugares de presença de “braços africanos”, como o por-
to de Paranaguá, que atraía uma população de composição diversa à de outros lugares
no século XVIII. Enquanto o número de escravos africanos era menor que o número
de brancos em outras partes do Paraná, em Paranaguá, de um total de 3.193 pessoas,
1.414 eram escravos, ou seja, quase 50% da população (WESTPHALEN, 1968).
Ao retratar a vida da população negra no Paraná pós-abolição, Silva (2008)
discute que não possuímos dados sobre o Paraná, mas em outros estados, como San-
ta Catarina e Rio Grande do Sul, a presença negra na zona rural estava fortemente
associada aos remanescentes de quilombos ou de propriedades herdadas por pro-
prietários de escravos. Priori et al. (2012), ao analisarem a presença afro-brasileira
no Paraná, afirmam que as terras onde reside atualmente a população negra que
se organizou em quilombos têm origens diversas: terras que pertenciam a ordens
religiosas e foram deixadas sob a administração de escravos libertos no início da
segunda metade do século XVIII; fazendas abandonadas que foram ocupadas por
negros fugidos do sistema escravistas; pagamento por serviços prestados ao gover-
no, como, por exemplo, a participação na Guerra do Paraguai; terras compradas
por negros forros, ou seja, negros alforriados na época do Brasil Colônia; e terras
doadas pelos donos de escravos, localizadas por quase todo o território paranaense.
Conforme pode ser visualizada na Figura 1, de acordo com o Grupo de Trabalho

19
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Clóvis Moura (GTCM, 2010)3, o Paraná possui territórios quilombolas em quase


toda a sua extensão territorial.

Figura 1 – População negra e comunidades quilombolas no estado do Paraná.

Fonte: GTCM (2010).

A Fundação Cultural Palmares (2012), até o momento, reconhece no Para-


ná 34 comunidades quilombolas distribuídas em 14 cidades, e cabe aqui ressaltar
que há cidades que têm até quatro quilombos reconhecidos. A demarcação de ter-
ritórios quilombolas no Paraná é importante, primeiro, por reconhecer a existência
e a historicidade da população afro-brasileira no estado e, segundo, por estabelecer
uma proteção ao patrimônio cultural negro paranaense, visto que a Constituição
Federal do Brasil, em seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transi-
tórias (ADCT), traz os seguintes dizeres: “aos remanescentes das comunidades de
quilombos que estejam ocupando suas terras, reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado lhes emitir títulos respectivos.” (BRASIL, 1988). Esse mesmo
artigo regulamenta o procedimento de regularização fundiária e nele está descri-
to que: “são terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”.
Também os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988, que tratam do patrimônio
3
Grupo de trabalho organizado pelo estado do Paraná que realizou um levantamento de 2005
a 2010 sobre os territórios quilombolas e suas práticas de vida no Paraná. http://www.gtclovis-
moura.pr.gov.br/
20
A presença negra na história do Paraná

cultural brasileiro, estabelecem a proteção às manifestações afro-brasileiras e tom-


bamento de documento e sítios detentores de “reminiscências históricas dos antigos
quilombos” (BRASIL, 1988).
Nesse contexto, o território quilombola propicia condições de permanência,
de continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação do imagi-
nário coletivo e, por vezes, os grupos chegam a projetar nela sua existência, mas
não têm uma dependência exclusiva. Tanto é assim que temos atualmente inúme-
ros exemplos de grupos que perderam a terra e insistem em manter-se como grupo,
como o caso do Paiol de Telha, no Paraná. Trata-se, portanto, de um direito remeti-
do à organização social diretamente relacionado à herança.
É nesse quadro político que o quilombo passa, então, a significar um tipo
particular de referência, cujo alvo recai sobre a valorização das inúmeras formas de
recuperação da identidade positiva e a busca por tornar-se um cidadão de direitos,
não apenas de deveres. Enquanto forma de organização, o quilombo viabiliza novas
políticas e estratégias de reconhecimento das memórias, dos fazeres e dos saberes
da população descendente de homens e mulheres negros que foram escravizados
(LEITE, 2000).
Os quilombos podem ser vistos como patrimônio cultural, pois permitem o
exercício dos direitos culturais do cidadão, reconhecidos no texto da Constituição
de 1988, particularmente no artigo 215: “o Estado garantirá a todos o pleno exer-
cício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional [...]” e no artigo
216: “o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protege-
rá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”
(BRASIL, 1988).
A partir desse pressuposto legal, entendemos que os quilombos paranaenses
se organizam como espaço da lembrança da memória negra no estado, visto que é
local de resguardo de práticas de vida significativa à formulação e reformulação da
identidade da população afro-brasileira. Atualmente, busca-se no passado e na sua
ancestralidade raízes para explicar a sua identidade.

21
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Considerações finais
A identidade de um grupo se constrói por meio de uma relação direta com a
memória coletiva na história. No caso do Paraná, percebemos que houve uma ges-
tão da memória a partir do “paranismo”, para alicerçar uma identidade paranaense
a partir dos imigrantes europeus que chegaram ao estado na segunda metade do
século XIX. Essa gestão da memória, muitas vezes, empreendida pelo governo e re-
ferenciada por uma literatura historiográfica que minimizou ou apagou a presença
negra da história oficial do Paraná.
Esse quadro tem mudado devido à luta do povo negro por reconhecimento e
valorização de suas memórias, e pelas novas formas de se construir as narrativas his-
tóricas a partir dos grupos que foram silenciados. Esses novos estudos sobre a iden-
tidade étnico-racial paranaense têm realizado o que chamamos no decorrer do texto
de política da lembrança, que nada mais é do que a construção de uma historiografia
que considera os lugares de resistência da população afro-brasileira no estado, como,
por exemplo, as comunidades quilombolas.
No entanto, empreender um direito à memória que vise lembrar a presença
da população negra no estado não é feito sem conflitos com o governo, ao ques-
tionar a história oficial do estado e outros grupos sociais, como os descentes dos
imigrantes de europeus que viviam na região. Cabe ressaltar que as comunidades
quilombolas, ao se organizarem pelo direito aos territórios ancestrais, não estão ape-
nas lutando por demarcação de terras, sobretudo, estão fazendo valer seus direitos
para salvaguardar um modo de vida. Os territórios quilombolas são vistos como um
espaço físico que garante a sobrevivência dos descendentes de homens e mulheres
escravizados, e, não só isso, com as reformulações do conceito de patrimônio que
tivemos no decorrer do século XX, os territórios quilombolas passam a ser vistos
como um espaço de referência para a construção da identidade da população negra
paranaense.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,
Centro Gráfico, 1988.

22
A presença negra na história do Paraná

CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no
Paraná (1853-1953). 2007. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2007.
CAMARGO, João Borba. História do Paraná: 1500-1889. Maringá: Bertoni, 2004.
FELIPE, Delton Aparecido. A população negra no projeto de identidade nacional: um
olhar para sua história e sua educação. In: BARBATO, Luis Fernando Tosta (Org.). Iden-
tidade nacional brasileira: história e historiografia. São Paulo: Paco Editorial, 2016. 1 v.,
p. 173-198.
FELIPE, Delton Aparecido. Negritude em discurso: a educação nas revistas Veja e Época
(2003-2010). 2014. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá,
2014.
______. Patrimônio cultural negro no Paraná: lugares, celebrações e saberes. Historiae, v.
6, p. 117-134, 2015.
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Comunidades quilombolas. Brasília, DF:
Fundação Cultural Palmares, 2012. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?pa-
ge_id=88&estado=PR#>. Acesso em: 25 jan. 2017.
GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA. Relatório do grupo de trabalho Cló-
vis Moura. Curitiba: GTCM, 2010. Disponível em: <http://www.gtclovismoura.pr.gov.
br/arquivos/File/relatoriofinal2005a2010.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2017.
GUTIERREZ, Horácio. Donos de terras e escravos no Paraná: padrões e hierarquias nas
primeiras décadas do século XIX. História, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 100-122, 2006.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 6a. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001.
HARTUNG, Miriam. Muito além do céu: escravidão e estratégias de liberdade no Paraná
do século XIX. Revista Topoi, v. 6, n. 10, p. 143-191, 2005.
IANNI, Octavio. Do polonês ao polaco. Revista do Museu Paulista, Nova Série, v. XII, p.
315-338, 1960.
IURKIV, José Erondy. Romário Martins e a historiografia paranaense. Educere, Toledo,
UNIPAR, v. 2, n. 2, p. 123-132, 2002.
LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas.
Etnografia Lisboa, v. IV, n. 2, p. 333-354, 2000.
MARTINS, Alfredo Romário. História do Paraná. Curitiba: Travessa dos Editores, 1995.
MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente: ensaio sobre o fenômeno da aculturação no
Paraná. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.
MICHEL, Johann. Podemos falar de uma política de esquecimento? Revista Memória
em Rede, Pelotas, v. 2, n. 3, p. 14-26, 2010.
NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Revista Projeto
História, São Paulo, v. 10, p. 1-28, 1993.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janei-
ro, v. 2, n. 3, p. 3-19, 1989.
______. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p.
200-212, 1992.

23
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

PRIORI, Angelo; POMARI, Luciana R.; AMÂNCIO, Silvia M.; IPÓLITO, Veronica K.
História do Paraná: séculos XIX e XX. Maringá: Eduem, 2012.
SANTOS, Carlos R. A. Vida material, vida econômica. Curitiba: SEED, 2001.
SILVA, Antonio Bras da. Quilombolas no Paraná. Secretaria Nacional do Movimento
Negro, 25 jan. 2010. Disponível em: <http://secretariamovimentonegropdt.blogspot.
com.br/2010/01/quilombolas-no-parana.html>. Acesso em: 25 nov. 2014.
SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Escravos e libertos no Paraná. In: ALEGRO, Regina Célia;
MOLINA, Ana Heloisa; CUNHA, Maria de Fátima da; SILVA, Lúcia Helena Oliveira
(Orgs.). Temas e questões para o ensino de história do Paraná. Londrina: Editora da
Universidade Estadual de Londrina, 2008. p. 127-142.
TRINDADE, Etelvina Maria; ANDREAZZA, Maria Luíza. Cultura e educação no
Paraná. Curitiba: Secretaria de Educação e Cultura, 2002. 1 v.
TUMA, Magda Madalena Peruzin. Viver é descobrir: história do Paraná. São Paulo:
FTD, 2008.
WESTPHALEN, Cecília M. Pequena história do Paraná. Curitiba: Melhoramentos,
1968.

24
Processos migratórios da
população negra no Paraná
Ana Maria Rufino Gillies1

As migrações foram um dos fenômenos mais marcantes que caracterizaram


o período que vai das últimas décadas do século XIX à primeira metade do século
XX, estudiosos do tema são unânimes em afirmar. “A segunda metade do século
XIX marca o começo da maior migração dos povos na história”, afirmou Eric Hobs-
bawm (1979, p. 207-220) ao iniciar um dos capítulos da sua obra A era do capital,
referindo-se às milhões de pessoas que deixaram a Europa em busca de oportuni-
dades para uma nova vida, uma vida melhor, grande parte das quais tendo como
destino o Brasil.
Embora a população negra no Brasil tivesse passado por períodos de maior
ou menor deslocamento, em grande medida involuntário, e por vezes traumático,
por separarem, indiferentemente, familiares uns dos outros, um processo migra-
tório mais acentuado envolvendo-os também se manifesta a partir desse período,
em razão da abolição. Portanto, o ano de 1888 representa o início do recorte cro-
nológico usualmente adotado por pesquisadores para tratar, entre outras questões,
das migrações da população negra no Brasil. Na apresentação do terceiro volume
que compõe a obra Histórias do pós-abolição no mundo atlântico, Abreu, Dantas e
Mattos (2014) justificam esse recorte, destacando o “caráter inconcluso da imple-
mentação da cidadania e da igualdade após a conquista do fim da escravidão, assim
como a permanência e a recriação de mecanismos de hierarquização, discriminação
e exclusão racial”.

1
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná e professora Adjunta do Departa-
mento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Campus de
Irati. E-mail: amrgillies@irati.unicentro.br.
25
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Apesar do aumento do interesse que o pós-abolição vem despertando e de


importantes trabalhos que vêm sendo desenvolvidos no Brasil, entre os quais se
destacam as pesquisas realizadas por Ana Maria Lugão Rios, Hebe Mattos, Mar-
tha Abreu, Karl Monsma, Carlos Eduardo Coutinho da Costa, eles contemplam,
predominantemente, outros contextos. No Paraná, esta é uma área incipiente nos
estudos acadêmicos. Por outro lado, para a construção deste texto, foi possível iden-
tificar alguns excelentes trabalhos e discussões realizadas no estado, os quais incor-
poramos à discussão e encontram-se relacionados nas referências deste trabalho. En-
tretanto, é importante salientar que o que aqui se apresenta limita-se a um recorte
que não esgota, ou possa estar sendo produzido, nem a possibilidade de outras e
bem mais aprofundadas reflexões.
O direito à liberdade plena de ir e vir só foi conquistado por toda a popu-
lação negra brasileira com a abolição da escravidão, em maio de 1888. Portanto,
as experiências e trajetórias de vida do povo negro não podem ser discutidas sem
que se leve em consideração dois fatores: primeiro, que o negro foi o trabalhador
predominante em todas as formas de atividades – produtivas, artesanais, comerciais
e domésticas, no campo e na cidade – e que, para o aproveitamento de suas com-
petências e capacidade de trabalho, por quase quatrocentos anos, foi circulado por
todo o país, inclusive no Paraná; segundo, que, se sua circulação estava constrangida
por toda série de regulamentos, isso não o impediu de lançar mão das mais variadas
formas de astúcias para transitar por aí, sozinho ou acompanhado, temporária ou
definitivamente. Ou seja, foi no enfrentamento das condições restritivas impostas
pelo sistema escravista que o negro desenvolveu meios de superação, procurando
brechas e configurando-se como protagonista e agente no sentido de forjar soluções
para o melhoramento de sua vida, de seus familiares e amigos. Mas, depois de quase
130 anos da data da abolição, o que terá se passado? Este texto, suscitado pelo anseio
em obter respostas a essa questão, apresenta e discute apenas fragmentos, que foi o
que foi possível encontrar nessa busca. Mas, enfim, é com fragmentos que se produz
História! Para compor este texto, nos apoiamos numa bibliografia composta por
estudos de experiências de negros em uma variedade de contextos, pois, a despeito

26
Processos migratórios da população negra no Paraná

de especificidades locais, a experiência da escravidão e do pós-abolição, até os dias


atuais, não difere muito no que tange à luta e às dificuldades enfrentadas pelos negros.
Estudando as migrações negras no pós-abolição do sudoeste cafeeiro, entre
os anos de 1888 e 1940, Carlos Eduardo Coutinho da Costa, doutor em História
Social e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro, elencou motivações
que, embora refiram-se a outros contextos de pós-abolição, é plausível considerar que
as razões que motivariam negros do Paraná a migrar possam ter sido semelhantes.
Em primeiro lugar é apontado o desejo de localizar e reencontrar familia-
res afastados, pela venda, durante a escravidão, como aconteceu no Paraná, por
exemplo, a Francisca Placidina, liberta reescravizada em Castro, que teve seus fi-
lhos vendidos a senhores de localidades diferentes no ano de 1854, conforme de-
núncia publicada no periódico Dezenove de Dezembro de 1854. Em seguida, em
países como a Jamaica, acredita-se que os libertos tenderam a comprar pequenas
propriedades, perto de centros urbanos e áreas agroexportadoras onde pudessem
produzir tanto para subsistência quanto um excedente para vender nos mercados
locais e, ao mesmo tempo, alugar sua força de trabalho nas grandes fazendas. No
Brasil, doações a escravos foram comuns durante todo o período escravista, inclu-
sive no Paraná, onde é considerável o número dos que receberam terras, ainda que
condicionadas à permanência do beneficiado e prestação de seus serviços à família
do doador até a morte deste e de pessoas de sua família, além de cláusula tornando
o “bem” inalienável, ou seja, proibindo o “favorecido” de vender, sob pena de perder
a doação. Além disso, essas doações não se configuravam, necessariamente, como
benevolência dos senhores, mas, conforme hipótese de Robert Slenes (1996 apud
MARQUES, 2006), correspondiam a uma prática que foi comum no Brasil, qual
seja, a da produção de dependentes e de assegurar a continuidade de estruturas lon-
gamente estabelecidas.
Nos Estados Unidos, parte da migração para os centros urbanos teria ocor-
rido em busca de instituições sociais negras, como igrejas, escolas e sociedades de
ajuda mútua (COSTA, 2015). No Paraná, a Sociedade 13 de Maio exerceu esse
papel. Em depoimento concedido por Felipe de Castro, colaborador do presidente
da Sociedade, Álvaro da Silva, ele explicou que o clube surgiu para amparar com

27
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

moradia, saúde e trabalho os negros libertos, e também realizava bailes para arreca-
dar dinheiro para ajudar os que precisavam de auxílio.
No caso das motivações para migrações dos negros no Brasil após a aboli-
ção, Costa destaca que muitos autores tenderam a destacar a migração como perda,
ligada a condicionantes econômicos, em que as trajetórias desses migrantes, vitimi-
zados pelas mazelas da escravidão, levaram a insucessos (como a marginalização e o
favelamento). Embora seja um fato indiscutível que elevadas parcelas da população
negra no país ainda estejam à margem das possibilidades de forjar condições ideais
de vida, Costa deseja enfatizar o negro no pós-abolição como agente do processo
migratório, ou seja, convidar-nos a perceber que, para migrar, eles fizeram avaliações
e escolhas baseadas numa racionalidade que apenas o conhecimento das situações
específicas podem nos ajudar a avaliar e compreender.
Algumas pesquisas realizadas nesse sentido procuraram conhecer as traje-
tórias de vidas após a promulgação da Lei Áurea, e elas revelaram que, no Vale do
Ribeira, região das grandes fazendas produtoras de café, nem todos os libertos mi-
graram, mas, pelo contrário, permaneceram nas fazendas, trabalhando sob outras
condições. No caso do Paraná, que não fazia parte do grande circuito agroexpor-
tador da economia brasileira, o processo de abolição gradual da escravidão ocorreu
ao mesmo tempo que o governo imperial incentivava a vinda de imigrantes com o
intuito de formar uma classe de pequenos agricultores para o abastecimento de víve-
res, no entorno de Curitiba e em localidades do interior, e para substituir os escravos
e/ou libertos, enfim, os negros, nas atividades que exerciam no meio urbano e no
meio rural. Todavia, há que se ressaltar que, apesar do hábito de tratar como irreme-
diavelmente opostos os negros escravos e libertos, de um lado, e os imigrantes e seus
descendentes, de outro, existem evidências na documentação sobre imigração, em
processos criminais e ações cíveis, indicando que, apesar das ocasionais tensões e dos
esforços da administração pública provincial, relações de sociabilidades e de outras
naturezas se desenvolveram entre esses grupos.
Nas situações em que senhores desejavam manter seus libertos, uns podem
ter permanecido, mas outros escolheram se distanciar e recomeçar suas vidas onde
pudessem forjar algo completamente novo no meio de pessoas que não conheciam

28
Processos migratórios da população negra no Paraná

as condições em que viveram antes. Num texto em que discute vivências no pós-
-abolição, Lúcia Helena Oliveira Silva (2005) conta uma história extraída de um
processo cível em que libertos, que haviam recebido uma herança de seu falecido
senhor, sofriam na justiça contestação por parte da viúva, Rosa, e seu novo marido,
que buscavam reverter a doação em seu favor. A alegação da viúva era que, após
serem beneficiados com a herança, os libertos haviam mudado de conduta, isto é,
recusaram-se a permanecer com ela, a seu serviço, e mudaram-se para outras locali-
dades. Os libertos beneficiados recusaram-se a serem “reescravizados”, como enten-
diam ser o objetivo real da viúva. A autora concluiu que Rosa desejava que os ex-es-
cravos permanecessem com o mesmo comportamento dos tempos de cativeiro, para
servi-la, o que não aconteceu, pois, entre outros fatores, a liberdade para os libertos
era, sobretudo, o direito de ir e vir, de estar onde quisesse. Ou seja, migrar era cla-
ramente uma reafirmação da autonomia em relação à condição de livres. Nenhum
deles permaneceu na cidade em que haviam vivido, Palmeira, mas mudaram-se para
cidades próximas, atitude importante que expressava o desejo de viver sua nova con-
dição e estabelecer relações em outros lugares.
Se muitos desejaram distanciar-se dos contextos antigos, alguns, beneficia-
dos com heranças de seus antigos senhores, usualmente na forma de doações de
terras, mas também pela compra, permaneceram cuidando de suas roças com pe-
quena ou média produção enquanto possível. Outros, remanescentes da escravidão,
e mesmo bem antes da abolição, estabeleceram-se em comunidades quilombolas e/
ou “terras de pretos”, formadas por negros livres ou fugitivos, oriundos do Paraná e
de outras províncias, e localizadas em lugares distantes e de difícil acesso; algumas,
enfrentando desafios, ainda existem em seus locais de formação original e outras
foram extintas (MEZZOMO; SEMPREBOM, 2013). No Paraná, a pesquisa rea-
lizada pelo Grupo Clóvis Moura (GOMES JÚNIOR; SILVA; BRACARENSE,
2008) descobriu a existência de 90 dessas comunidades.
Migrar é possível, para aqueles que detêm o direito e a liberdade de dispor de
si, privilégio de que o negro, no Brasil, não pode usufruir por quase quatro séculos.
A condição escrava a que o sujeitaram implicava limitações que, quando não respei-
tadas, levavam a severas punições. Assim como não podia fugir ao trabalho cativo,

29
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

ou às condições desse trabalho, nem se divertir segundo os padrões definidos pela


sua tradição cultural originária, o africano ou descendente não podia nem mesmo
circular sem estar vinculado de algum modo ao seu senhor, através da apresenta-
ção de um salvo conduto assinado por aquele (IANNI, 1988). Em verdade, mesmo
quando libertos, se não apresentassem documento comprobatório e/ou testemu-
nhas aceitáveis, podiam acabar encarcerados, por anos, conforme é possível verificar
na documentação existente, por exemplo, no Arquivo Público do Paraná (2005).
Entretanto, constrangimentos e riscos não representaram impedimentos
para o contínuo deslocamento dos negros por todo o Brasil, fosse através das fugas
– enquanto escravizados –, amplamente noticiadas pelos periódicos locais, fosse em
busca de familiares, de melhores condições de vida ou outras motivações. O que é
importante destacar, conforme enfatiza Carlos Eduardo Coutinho da Costa em ar-
tigo em que discute as migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro entre os
anos de 1888 e 1940, é que migrar era um ato consciente e com significado próprio
(COSTA, 2015) e não apenas fuga desordenada, irracional ou resposta a processos
de atração ou de expulsão, ou seja, os migrantes devem ser tomados como agentes
do processo, protagonistas de suas escolhas. Permanecer onde estavam ou migrar
era uma decisão tomada sem leviandade, mas que, pelo contrário, envolvia reflexão
e decisões baseadas em cuidadosa racionalidade. Em um cuidadoso estudo sobre o
Paraná entre os anos de 1888 e 1950, Leonardo Marques (2006) detalhou uma série
de intricadas relações em que, estando envolvidos, implicava os deslocamentos de
libertos, mostrando quão complexas eram as situações.
Deslocamentos fizeram parte da inserção dos negros no Brasil desde os pri-
meiros tempos. No Paraná, essa presença data da época em que os paulistas chegaram
ao litoral, interessados em localizar terras minerais onde pudessem encontrar ouro,
prata ou pedras preciosas. Posteriormente, à economia mineradora, na marinha e
no planalto, juntou-se a economia pecuária dos campos gerais; mais tarde, a pro-
dução e exportação de erva-mate. Na composição dos grupos em movimento por
conta dessas atividades, estiveram presentes os brancos, os índios, os mestiços e os
negros (IANNI, 1988). Ainda que involuntários, esses deslocamentos geográficos
também representaram oportunidades de especialização no trabalho em diferentes

30
Processos migratórios da população negra no Paraná

áreas de atividade econômica, e, embora uma historiografia antiga e ultrapassada


tenha alimentado o imaginário paranaense procurando minimizar a importância
e as competências do trabalhador negro escravizado e do liberto no Paraná, atual-
mente novas pesquisas e produções acadêmicas vêm divulgando as ocupações que
os negros exerceram durante a escravidão (CÂMARA, 2011), a relevância do seu
trabalho e como as habilidades adquiridas o capacitavam para inserção no mundo
do trabalho livre. Que essa inserção não tenha se efetivado integralmente, é indis-
cutivelmente em razão da exclusão a que ficaram sujeitos a partir do momento que
a preferência e as oportunidades nos meios urbano e rural foram oferecidas ao imi-
grante europeu e seus descendentes.
Independentemente dessa possibilidade, num imaginário ainda existente,
quando a abolição foi decretada em 13 de maio de 1888, os negros migraram no
intuito de experimentar a liberdade. Tal concepção é muito marcada pelo estudo
sobre o significado da liberdade no contexto pós-abolicionista norte-americano
realizado por Eric Foner (1988). Nos Estados Unidos, de fato, tanto jornais noti-
ciaram uma movimentação desordenada quanto cronistas da época do pós-abolição
afirmaram que parecia que os libertos queriam chegar mais perto da liberdade para
então saber o que era isso (COSTA, 2015). Curiosamente, na pesquisa que realizei
em alguns jornais paranaenses, entre 1888 e 1890, não foi possível encontrar um
registro sequer de tal ocorrência. O que há são referências a celebrações por parte
de outros grupos da sociedade, os estabelecidos, ficando, aparentemente, de fora,
ainda como outsiders, os negros. Tampouco confirmam um processo de migração
imediata e em massa as pesquisas acadêmicas desenvolvidas sobre a pós-abolição.
Naturalmente, isso não elimina a possibilidade de existência de registros em fontes
que não consultei.
O imaginário desconsiderou o fato de que, quando a abolição foi decretada,
grande parcela, e em algumas províncias a maioria, dos negros escravizados já havia
conquistado sua liberdade, por meio de negociações que envolviam, predominan-
temente, o seu trabalho (trabalho extra como “negro de ganho” para juntar pecúlio
e comprar sua alforria e/ou de familiares e amigos; liberdades concedidas sob ne-
gociação de trabalhar até seu senhor ou senhora falecer, entre outras condições), ou

31
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

pela fuga. Esse imaginário também desconsiderou o fato demonstrado por Octavio
Ianni (1988), de que uma outra e desejada migração também ocorrera, qual seja,
uma migração étnico-racial, através da miscigenação, ou, para tomar emprestado o
conceito do autor, houvera uma “metamorfose”, através da qual o africano passara
a crioulo, a mestiço, a mulato, a pardo, a “branco”. Ou seja, no Paraná que celebra
sua diferença em relação a outras regiões do Brasil, nada há de tão diferente assim,
uma vez que os dados dos censos entre os séculos XIX e XX mostram ter havido
um processo de branqueamento na população, o que implica a existência de raízes
negras em considerável parcela da população paranaense.
Não é tarefa fácil descobrir a extensão dos processos migratórios da popula-
ção negra no Paraná. Ainda são poucas as pesquisas e estas circunscrevem espaços
específicos. Já foi mais fácil. Conforme Sebastião Ferrarini, após a emancipação po-
lítica da província do Paraná, ocorrida em 1853, a administração passou a manter
registros sobre o número de habitantes, livres e escravos. Assim sendo, no ano de
1866, por exemplo, a população total era de 87.491 livres e 11.596 escravos, os quais
se encontravam distribuídos pelas seguintes localidades: Curitiba, Príncipe (Lapa),
Castro, Antonina e Paranaguá, possuindo entre 1.086 e 1.204 escravos cada; São
José dos Pinhais, 769; Ponta Grossa, 753; Jaguariaíva, 622; Guarapuava, Morretes,
Campo Largo e Palmeira, entre 576 e 518 cada; Guaraqueçaba e Votuverava, 230 e
203, respectivamente; Guaratuba, Iguaçu e Rio Negro, entre 196 e 114 cada (FER-
RARINI, 1971).
Ainda segundo Ferrarini, até um determinado momento, houve no Paraná
um controle da circulação da população negra, demandado pelo governo imperial.
Para tanto, a fim de produzir um levantamento estatístico minucioso, a delegacia
de polícia mandava realizar periodicamente uma contagem, informando quantos
entrados ou saídos em determinadas épocas, além do sexo, idade, estado civil, profis-
são, se habitante no meio rural ou urbano. Produziu-se, em função dessa exigência,
considerável quantidade de dados.
De acordo com Octavio Ianni (1988), na composição demográfica do Pa-
raná, em 1872, os pardos reuniam 34,59% dos habitantes; em 1890 eles corres-
pondem a 31,03%, ao mesmo tempo em que se verifica a queda relativa de negros;

32
Processos migratórios da população negra no Paraná

quanto aos brancos, compõem 55% da população em 1872 e 63,80% em 1890; em


1872, 25% da população livre e escrava é mulata, ao passo que apenas 10% é negra,
levando o autor a problematizar o processo de miscigenação crescente. Ianni desta-
ca as dificuldades encontradas pelo IBGE quando de suas experiências censitárias,
para a coleta de informações relativas à cor, inclusive levando o Instituto a observar
que o número apurado de pardos classificados entre os brancos era, possivelmente,
menor do que seria dado por uma classificação objetiva, ou seja, ao declarar a cor,
um grande número dos que declararam-se brancos eram possivelmente pardos, que
teriam procurado escamotear a própria cor em razão do sistema de avaliações e au-
toavaliações sociais tendo como critério de valor a cor dos indivíduos. Foram as
análises que Octavio Ianni apresentou baseado na documentação que consultou,
que sugerem que o processo migratório dos negros no Paraná também se efetivou
como transição, ou migração, de natureza étnico-racial. Entretanto, no Brasil, as
categorias de cor – pretos, pardos, mestiços – herdadas do período colonial apresen-
tam uma plasticidade que requer atenção, uma vez que elas nem sempre designavam
matizes de pigmentação, mas buscavam definir e atribuir lugares sociais. Num dos
textos que li (MARQUES, 2006), sobre o desaparecimento de vacas em Curitiba,
a pessoa apontada como o suspeito foi referido pelas testemunhas como “um mula-
to”; num outro, envolvendo uma imensa briga que aconteceu num baile de Carnaval
na Sociedade dos Operários Alemães, acabou vitimado um “indivíduo negro”.
Raça e etnicidade estiveram ligadas à escolha da mão de obra no mercado de
trabalho brasileiro na transição da ordem escravocrata para a formação de um mer-
cado de trabalho livre, afirmam Ricardo Nóbrega e Verônica Toste Daflon (2009).
Aos elementos não brancos, incluindo os mestiços, foram atribuídos estereótipos
que ora eram paternalistas e lhes negavam a altivez, a capacidade de disciplina para
o trabalho e de cuidar de seus próprios interesses, ora os consideravam perigosos,
associando-os à violência. Eles ressaltam que as categorias branco e negro devem
ser tomadas como referenciais simbólicos em relação aos quais são classificados os
indivíduos (NÓBREGA; DAFLON, 2009).
Quanto à verificação das possibilidades de inserção do negro no mercado de
trabalho paranaense no pós-abolição, levando-os, ou não, a migrar para outras loca-

33
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

lidades, enquanto a escravidão predominou, “o negro e o mulato estavam presentes


em todos os setores do sistema produtivo, bem como nos transportes urbanos, ser-
viços domésticos etc.” (IANNI, 1988, p. 92), mas, a partir de 1870, a economia e a
sociedade começam a absorver a presença de imigrantes em vários setores, ou seja, a
produção resulta da conjugação de capitais e força de trabalho fornecidos por uma
população cada vez mais heterogênea, em que “brancos, pardos, caboclos, negros,
estrangeiros de múltiplas origens e brasileiros, escravos e libertos, distribuem-se pe-
las diferentes ocupações”, levando a que, “na última década do período escravocrata
seja cada vez menor a participação do cativo no sistema produtivo”, explica Octavio
Ianni (1988, p. 93-96). Entre as razões estaria o fato de que, com a cidade aumen-
tando, tornando-se industrializada, a mão de obra vai sendo recrutada principal-
mente nas colônias estabelecidas ao redor da capital, uma vez que não se acredita
que o liberto, tendo sido cativo, pudesse adaptar-se à racionalização exigida para o
novo sistema de trabalho livre. Essa perspectiva, atribuída a intelectuais pertencen-
tes à escola sociológica paulista, como Ianni, já está invalidada, uma vez que, hoje,
se reconhece que as motivações para a inserção de uns e a exclusão de outros são
mais complexas do que indicam as simplificações apresentadas. De qualquer forma,
a preferência por europeus e seus descendentes para as ocupações no meio urbano,
em Curitiba, pode ter contribuído para uma redução da presença negra na capital,
se é que essa redução ocorreu de fato ou trata-se de um discurso que, de tão reite-
rado, constituiu um caráter de verdade. Por outro lado, há que se levar em conta a
marginalização para os espaços periféricos, “invisíveis” da capital e a movimentação
da população negra pelos municípios do interior.
Interessado em verificar qual foi o destino dos ex-escravos após a abolição,
Leonardo Marques (2006) trabalhou em uma série de processos criminais de Cam-
po Largo e de dados dos recenseamentos a partir de 1872, e as evidências encontra-
das apontaram que alguns permaneceram em Campo Largo, outros migraram para
Curitiba e um terceiro grupo foi para localidades no interior, compondo grupos
aos quais ele se refere, baseado em estudos de Carlos A. M. de Lima (2002), como
um campesinato mestiço, que antecedia a abolição. Marques também observou as
profissões e os destinos dos libertos para conhecer as relações que se estabeleceram

34
Processos migratórios da população negra no Paraná

no pós-abolição e que impactaram as decisões por eles tomadas, e percebeu que


os caminhos seguidos por grande número dos ex-escravos contrariavam algumas
visões da historiografia tradicional paranaense, como Altiva Balhana e Cecília Wes-
tphalen, segundo as quais “em geral, com a libertação, os escravos abandonaram em
massa as fazendas e foram para as cidades” (MARQUES, 2006, p. 63).
Ele argumenta, contudo, que, dos diversos depoimentos que encontrou na
documentação consultada, foi possível observar um intenso trânsito entre Campo
Largo e Curitiba e que, como os escravos tinham essa possibilidade de circular, e
já conhecendo o ambiente de Curitiba, poderiam se sentir estimulados a ir para a
cidade. Ele observou também que a mobilidade geográfica estava associada à mo-
bilidade social e às relações que possuíam em outras localidades, mas que “o traba-
lho familiar na agricultura de abastecimento foi uma das principais áreas nas quais
libertos e negros livres concentraram suas estratégias de sobrevivência”, chegando
a representar mesmo uma meta que invadia o cativeiro e dava significado às expec-
tativas de cativos (MARQUES, 2006, p. 88). Mas o autor reconhece que o fator
central que acompanha a expansão do trabalho livre é a introdução do trabalhador
imigrante, num processo de europeização dos meios rural e urbano.
Acredito que seja importante levar em conta os diversos e variados arranjos
que foram feitos em diferentes contextos rurais e urbanos, arranjos estes que não
foram permanentes, mas variaram também de acordo com as demandas que a eco-
nomia local impunha ao mercado de trabalho. Se, num determinado momento, no
interior de São Paulo, os fazendeiros, considerando ingratos os escravos que aban-
donaram as propriedades, não hesitaram em não readmiti-los como trabalhadores
livres, optando pelo imigrante alemão e depois pelos italianos, forçando o trabalha-
dor negro a procurar ocupações menores no meio urbano; num segundo momento,
foram empregados esforços para afastar esse trabalhador da cidade, empurrando-o
para as zonas periféricas, porque sua presença não era considerada compatível com a
aparência de modernidade que se desejava projetar da capital paulista. Podemos in-
dagar até que ponto política semelhante não foi posta em ação na capital paranaense
ou em alguns municípios do interior, conforme reflexão proposta por Mariana A. S.
Panta (2013) em sua dissertação de mestrado.

35
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

No período que se seguiu à abolição e nas décadas seguintes, certamente


foram elevadas a ansiedade e as expectativas da população negra, não apenas para
incorporarem-se no mercado de trabalho ou algum tipo de atividade que garantisse
a manutenção da família, mas também para obter direitos igualitários de cidadania,
tratamento respeitoso e outras conquistas importantes como educação e elevação de
seus níveis econômicos e sociais. A cidade deve ter exercido um fascínio, mas, como é
possível observar até os dias atuais, ainda falta muito para que parcelas mais elevadas
da população negra sejam contempladas com as promessas dos ideais democráticos.

Referências
ABREU, Martha; DANTAS, Carolina Vianna; MATTOS, Hebe (Orgs.). Histórias do
pós-abolição no mundo atlântico: identidades e projetos políticos. Niterói: Editora da
UFF, 2014. 3 v.
CÂMARA, Juliana de Cássia. Especialidades escravas no Paraná: um estudo sobre o
trabalho e a sociabilidade nos anúncios do Jornal Dezenove de Dezembro (1854-1888).
2011. Monografia apresentada ao curso de pós-graduação em História Cultural da Facul-
dade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória, União da Vitória, 2011.
Disponível em: <http://www.museuparanaense.pr.gov.br/arquivos/File/monografiajulia-
nacamara.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2015.
COSTA, Carlos Eduardo Coutinho da Cunha. Migrações negras no pós-abolição
do sudeste cafeeiro (1888-1940). Topoi, Rio de Janeiro, v. 16, n. 30, p. 101-126,
2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S-
2237-101X2015000100101>. Acesso em: 8 out. 2016.
FERRARINI, Sebastião. A escravidão negra na província do Paraná. Curitiba: Lítero-
-Técnica, 1971.
FONER, Eric. O significado da liberdade. Rev. Bras. de Hist., S. Paulo, v. 8, n. 16, p.
9-36, 1988. Disponível em: <http://www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUI-
VO=3673>. Acesso em: 13 out. 2016.
GOMES JÚNIOR, Jackson; SILVA, Geraldo Luiz da; BRACARENSE, Paulo Afonso
(Orgs.) Paraná negro. Fotografia e pesquisa histórica: Grupo Clóvis Moura. Curitiba:
UFPR/PROEC, 2008. Disponível em: <http://www.historia.seed.pr.gov.br/arquivos/
File/sugestao_leitura/parana_negro.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.
HOBSBAWM, Eric. A era do capital: 1848-1875. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979.
IANNI, Octavio. As metamorfoses do escravo. São Paulo: Hucitec; Curitiba: Scientia et
Labor, 1988.
LIMA, Carlos A. M. Sertanejos e pessoas republicanas: livres de cor em Castro
e Guaratuba (1801-1835). Estud. afro-asiát., Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 317-

36
Processos migratórios da população negra no Paraná

344, 2002. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-


d=S0101-546X2002000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 17 abr. 2016.
MARQUES, Leonardo. Entre dívidas e migrações: o pós-abolição no Paraná (Campo
Largo, 1888-1950). TCC apresentado para obtenção do grau de Bacharelado e Licenciatu-
ra em História. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. Disponível em: <http://
www.historia.ufpr.br/monografias/2006/1_sem_2006/leonardo_marques.pdf>. Acesso
em: 15 ago. 2016.
MEZZOMO, Frank; SEMPREBOM, Roselene. Experiências da escravidão e formação de
comunidades quilombolas no Paraná. Soc. e Cult., Goiânia, v. 16, n. 1, p. 181-191, 2013.
Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/view/28221>. Acesso em:
04/06/2016.
NÓBREGA, Ricardo Avelar da; DAFLON, Verônica Toste. Da escravidão às migrações:
raça e etnicidade nas relações de trabalho no Brasil. In: INTERNATIONAL CON-
GRESS OF THE LATIN AMERICAN STUDIES ASSOCIATION, 28., 2009, Rio de
Janeiro. Proceedings... New York, 2009. p. 42-42. Disponível em: <https://www.acade-
mia.edu/541987/Da_escravid%C3%A3o_%C3%A0s_migra%C3%A7%C3%B5es_ra%-
C3%A7a_e_etnicidade_nas_rela%C3%A7%C3%B5es_de_trabalho_no_Brasil>. Acesso
em: 15 ago. 2016.
PANTA, Mariana Aparecida dos Santos. População negra em Londrina: processos mi-
gratórios, deslocamentos espaciais intra-urbanos e segregação. 2013. Dissertação (Mestra-
do) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013. Disponível em: <http://www.
bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000188610>. Acesso em: 15 ago. 2016.
PARANÁ. Arquivo Público do Paraná. Catálogo seletivo de documentos referentes aos
africanos e afrodescendentes livres e escravos. Curitiba: Imprensa Oficial, 2005.
SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Escravos e libertos no Paraná. In: ENCONTRO ESCRA-
VIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL, 2., 2005, Porto Alegre. Anais...
Porto Alegre, 2005. Disponível em: <http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/ima-
ges/Textos2/lucia%20silva%20completo.pdf>. Acesso em: 15 out. 2016.

37
Aspectos históricos da
presença do negro no Paraná
Edson Lau Filho1

Desde as chegadas das primeiras naus portuguesas de Pero Vaz de Caminha


e Pedro Álvares Cabral, os negros já figuravam como serviçais das galés e, posterior-
mente, das instalações europeias no novo mundo.
Entre os africanos trazidos para o Brasil predominavam os bantos e os su-
daneses. Os bantos vinham das regiões de Angola, Moçambique e Congo. Os su-
daneses eram originários da Costa do Marfim, da Nigéria e de Daomé (atualmente
República do Benin).
Por quatro séculos, a prática escravocrata era prática comum luso-brasileira,
sem a menor preocupação moral sobre a forma de tratamento dispensada à época.
A maioria das fontes históricas sobre a presença escrava no Paraná relata que,
desde 1640, quando foi descoberto ouro nas encostas da Serra Negra, próximo ao
litoral paranaense, originando a vila de Paranaguá, os negros já se faziam presentes.
Muitos mineradores e aventureiros se dirigiram rapidamente para a região e, com
eles, chegaram os primeiros escravos africanos, em 1645 foi instalado um pelouri-
nho no vilarejo.
Segundo documentos relativos à fase de colonização da região, estima-se que
um quarto da população total do Paraná entre 1640 e 1700 era composta por escra-
vos, que eram utilizados como mão de obra nas minas, na agricultura, na criação de
gado, na exploração do mate e da madeira, e ainda em inúmeros serviços nas vilas e
nas cidades.
A atividade de produção da erva-mate foi muito importante na economia
paranaense. Dela participaram a população escrava e os poucos negros livres, mu-
1
Assessor Especial de Políticas Públicas para a Juventude do Governo do Estado do Paraná.
E-mail: edsonlaufilho@gmail.com.
38
Aspectos históricos da presença do negro no Paraná

lheres, crianças e idosos. As crianças trabalhavam junto com suas famílias nas fazen-
das, nos ervais e nos engenhos, realizando diversas atividades.
Em muitas regiões, a mão de obra escrava (já misturando os escravos negros
com os escravos índios capturados na ocupação do interior) foi especialmente im-
portante, para se consolidar os povoados em formação como em Paranaguá, Anto-
nina, Guaratuba, Castro, Curitiba, Lapa e São José dos Pinhais.
A população negra foi inserida como mercadoria na compra, venda e aluguel
e rendia impostos ao governo. Produzia riquezas com seu trabalho e era importante
para a economia do mercado interno e externo de bens. A Província do Paraná,
já em 1872, possuía registro de cerca de 10.500 negros escravizados. Em 1887, o
número teria diminuído para 3.600 e esse declínio foi atribuído mais às mortes, ven-
das e transferências para outras províncias do que pela libertação concedida pelos
senhores escravocratas. (TUMA, 2008):

Em 1853, quando ocorreu a emancipação política do Paraná, 40%


da população do Estado, era composta por negros. Hoje, segundo
dados do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE), eles re-
presentam 28,5%, o que confere ao Paraná a maior população negra
do sul do país. (SILVA, 2010, p. 1).

Esses dados desmistificam a visão eugênica de um Paraná sem negros, e essa


conotação começa a ser substituída pela visão de um Paraná que deve parte do seu
desenvolvimento à comunidade negra, que se fez presente no estado desde o século
XVI e ainda hoje reproduz parte de seus costumes e tradições no território para-
naense.
A economia colonial paranaense cresceu baseada na ocupação do solo, na
valorização de atividades econômicas e no uso sistemático da mão de obra escrava.
As atividades econômicas mais significativas que envolveram a escravidão foram a
produção do mate e do “tropeirismo” iniciado ainda no século XVIII e seguiu por
todo o século XIX, com algumas interrupções devido à exploração da prata. Mas
mesmo após a abolição, o incremento dos fluxos imigratórios europeus fez com que
o tratamento dispensado aos negros em nosso estado e a não aceitação de sua pre-

39
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

sença como relevante para o nosso desenvolvimento socioeconômico cultural fosse


sistematicamente negada.
A presença negra na zona rural está fortemente associada aos remanescentes
de quilombos ou de propriedades herdadas por proprietários de escravos. Priori et
al. (2012), ao analisarem a presença afro-brasileira no Paraná, afirmam que as terras
onde residem atualmente a população negra, que se organizou em quilombos no
Paraná têm origens diversas: terras que pertenciam a ordens religiosas e foram dei-
xadas sob a administração de escravos libertos no início da segunda metade do sécu-
lo XVIII; fazendas abandonadas que foram ocupadas por negros fugidos do sistema
escravistas; pagamento por serviços prestados ao governo, como, por exemplo, a
participação na Guerra do Paraguai; terras compradas por negros forros, ou seja, ne-
gros alforriados na época do Brasil Colônia e terras doadas pelos donos de escravos.
A Guerra do Paraguai (1864/1870) merece especial destaque, pois muito do
contingente do exército brasileiro era formado por negros com a promessa de volta-
rem libertos. O Paraná, província recém-emancipada, era rota das tropas oriundas
do Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Diversos escravos aproveitavam o longo tra-
jeto para esvair-se pelo caminho e outros, mesmo com a promessa de liberdade ao
retornarem, preferiram, após a guerra, ficar pela região.
O Paraná, portanto, propiciou a formação de territórios quilombolas e ofe-
receu condições de permanência, de continuidade das referências simbólicas im-
portantes à consolidação do imaginário coletivo e, por vezes, os grupos chegavam a
projetar nela a sua existência, mas não tinham uma dependência exclusiva. Tanto é
assim que temos atualmente inúmeros exemplos de grupos que perderam a terra e
insistem em manter-se como grupo.
Trata-se, portanto, de um direito remetido à organização social diretamen-
te relacionado à herança. É nesse quadro político que o quilombo passa, então, a
significar um tipo particular de referência, cujo alvo recai sobre a valorização das
inúmeras formas de recuperação da identidade positiva e a busca por tornar-se um
cidadão de direitos, não apenas de deveres. Enquanto forma de organização, o qui-
lombo viabiliza novas políticas e estratégias de reconhecimento das memórias, dos

40
Aspectos históricos da presença do negro no Paraná

fazeres e dos saberes da população descendente de homens e mulheres negros que


foram escravizados (LEITE, 2000).
Hoje, a Fundação Cultural Palmares já reconhece oficialmente 36 dos mais
de 100 quilombos identificados no estado do Paraná. Muitos desses grupamen-
tos não estão mais constituídos a partir de um território comum, mas são iden-
tificados pelo conjunto de saberes e de fazeres (patrimônio imaterial) que os ca-
racteriza, mesmo que esses negros já estejam integrados à urbanidade. O que nos
permite inferir que o que concede a essa população a identidade quilombola é a
sua memória e o reconhecimento de sua ancestralidade comum (BUTTI, 2009).
Destaco alguns exemplos mais contundentes dessas situações como o Qui-
lombo Paiol de Telha, que tem sua gênese a partir dos anos de 1860, quando uma
senhora de escravos chamada Balbina Francisca de Siqueira Cortes, proprietária da
fazenda Capão Grande, deixa em testamento a seus treze escravos libertos a área de
terra denominada Invernada Paiol de Telha. O testamento não é claro quanto à exa-
tidão das dimensões geográficas da referida área, apenas explicita a localização desta.
A apropriação dessas terras pela população negra ocorreu no ano de 1868,
ano de morte de Balbina Francisca. A partir daí o território que localiza a comuni-
dade quilombola Paiol de Telha até hoje foi alvo de inúmeras contestações e apro-
priações indevidas por familiares da benfeitora, grileiros e colonos, e pela desapro-
priação de terras efetuada pelo governo do estado do Paraná na década de 1950,
quando se deu início o processo de imigração “alemã” na região de Guarapuava
(CALÁBRIA, 2013).
O estabelecimento da Colônia Suábia, em Entre Rios, distrito do municí-
pio de Guarapuava, gerou um forte estremecimento na região por ocasião da con-
fluência de terras vendidas pelo governo brasileiro aos imigrantes expatriados após
a Segunda Guerra e que vinham com suas famílias com o desejo de incrementar a
economia da região através da agricultura extensiva e da organização cooperada de
produção, com os seus antigos moradores quilombolas legítimos herdeiros de Bal-
bina Cortes, proprietária original.
A surpresa inicial dos germânicos ao encontrarem moradores nas terras a eles
destinadas foi suplantada com o aculturamento mútuo e a transformação de muitos

41
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

dos quilombolas ali residentes em serviçais dos cooperados suábios, os quais busca-
vam um novo começo de suas vidas marcadas pelo conflito mundial.
Da mesma forma, os remanescentes de quilombos na região dos Campos
Gerais, no entorno da Fazenda Capão Alto, no município de Castro, passaram pelo
mesmo processo de aculturação ao receberem na região nova leva de imigrantes ho-
landeses que formaram a Cooperativa Castrolanda.
Considerando que, ao longo do século XX, o projeto nacional brasileiro
com base na europeização2 do Brasil apagou ou minimizou a presença do negro no
Paraná, buscar identificar o pouco que se tem de informações dessa população no
estado, seus lugares, seus saberes e suas celebrações é no mínimo questionar o silen-
ciamento da história em relação à população afro-brasileira.
Ao analisar os quilombos paranaenses como lugar de memória negra, é per-
ceptível que a maioria dos fatores converge para a questão da importância do ter-
ritório como espaço identitário e da preservação de seus saberes e de seus fazeres.
Um resgate da história da população negra que habitou o Paraná em situação de
escravidão e no pós-abolição. Podemos afirmar que, para os quilombolas paranaen-
ses hoje, é muito importante poder reconhecer um determinado modo de vida em
um espaço, mesmo que apenas histórico, dando continuidade a seu modo de vida,
mesmo que de forma mutável, ao estabelecer relações com outros grupos e com os
interesses dos tempos atuais. Dessa forma, as comunidades quilombolas remanes-
centes precisam de muito estudo e pesquisa, pois são as melhores referências para a
construção da identidade da população negra paranaense.
Após 1888, os ex-escravos continuaram sendo usados como carregadores,
estivadores, jornaleiros, serventes, encarregados de limpeza das casas, lavadores de
vidros e de casas, vendedores ambulantes, carpinteiros, pintores, pedreiros e todo
tipo de emprego de menor valia, perpetuando-se, ainda, até os dias atuais, especial-
mente nos serviços domésticos.
2
Ideologia de branqueamento da população brasileira, institucionalizada legalmente por Ge-
túlio Vargas, por meio do Decreto-Lei nº 7.667, em 18 de setembro de 1945, que regulava a
entrada de imigrantes no Brasil de acordo com a necessidade de preservar e desenvolver na com-
posição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia.
As políticas de branqueamento implementadas no Brasil buscavam restringir qualquer forma de
crescimento da população negra.
42
Aspectos históricos da presença do negro no Paraná

No estado do Paraná, como nos outros estados do Sul, durante muito tempo
se acreditou que a escravidão negra havia sido muito pouco significativa nessas re-
giões por terem prevalecido as invernadas e fazendas de criação de gado, que neces-
sitavam de muito menos mão de obra que os engenhos do Nordeste açucareiro e as
fazendas de café da região Sudeste. Regiões onde prevaleciam a grande propriedade
sustentada pelo trabalho escravo, com produção destinada a abastecer o mercado
externo, e abastecidas pela pecuária das províncias do Sul que configuravam eco-
nomias de abastecimento do mercado interno. Mas as pesquisas recentes têm de-
monstrado o contrário e comprovado, paulatinamente, que a influência do negro
na formação do caráter paranaense é de igual importância de todas as outras etnias
que aqui se estabeleceram.
O resgate dessa parte esquecida, deliberadamente, pelos livros de história de
nosso estado tem por objetivo demonstrar características e elementos socioculturais
presentes na história do nosso estado, desconstruir ideias sobre a invisibilidade da
população negra no Paraná, analisar a presença da população negra nos diversos
espaços sociais e suas dinâmicas culturais, destacar características da cultura afrodes-
cendente como parte do estado e visibilizar contribuições da população negra nas
diversas áreas de atuação em momentos históricos diferentes no Paraná.
Desde 2003, existe uma lei federal que obriga o ensino de história da África
e cultura africana nas escolas. A Lei nº 10.639/2003 torna obrigatório o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra bra-
sileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil.
Ato contínuo, o Conselho Estadual de Educação do Paraná estabeleceu nor-
mas para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana. Assim, a Deliberação nº 04/2006, aprovada em 2 de agos-
to de 2006, do Conselho Estadual de Educação de Estado do Paraná, estabelece
normas complementares às diretrizes curriculares nacionais para a educação das re-
lações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, a
serem desenvolvidas pelas instituições de ensino públicas e privadas que atuam nos
níveis e modalidades do sistema estadual de ensino no Paraná. O ensino de história

43
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

e cultura afro-brasileira e africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização


da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, bem como a garantia de reco-
nhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao
lado das indígenas, europeias e asiáticas.
Compilar a história da presença dos negros no Paraná não é uma tarefa fácil,
por conta da escassa bibliografia existente sobre o tema. O estado que se considera
terra de todas as etnias sempre relegou a segundo plano a existência e importância
dos seus filhos negros na sua formação sociocultural.
Por isso, cada tentativa de lançar luz sobre o obscurantismo que lhes foi im-
posto pela história oficial e apresentar a vida e a face dos remanescentes de qui-
lombos, suas principais referências, é de destacada importância pela relevância
da presença dos negros no estado, tanto no que diz respeito à sua formação étni-
ca e cultural quanto aos aspectos econômicos da evolução histórica paranaense.
Era de se esperar que as bibliotecas das nossas escolas pudessem ter mate-
rial minimamente suficiente para a realização de uma pesquisa escolar, mas esta não
é a nossa realidade. Falta-nos bibliografia que trate da questão. Naturalmente que
esse fato se deve ao pouco valor que se dá ao assunto, tanto pelos organizadores de
bibliotecas quanto, fato mais grave, pelos próprios redatores de livros didáticos e
também de pesquisadores que se dediquem ao tema.
Que importância, então, teve a colonização negra, submetida à escravi-
dão, na conformação de nossa sociedade nos seus mais diferentes aspectos? Que
reflexos ela trouxe aos dias de hoje? Quantos foram e quantos são os afrodes-
cendentes no nosso estado? Como essa imigração negreira trouxe costumes do
Continente Africano ao nosso modo de viver e de ver o mundo? O que, afinal,
foram os quilombos? Onde o negro está situado na sociedade contemporânea
no Paraná? O racismo em suas diversas formas de manifestação é reflexo de uma
“cultura” passada de geração em geração, como combatê-lo? São respostas que
precisamos construir e consolidar, após tantos anos de ausência de protagonis-
mo, do ostracismo e da invisibilidade historicamente legadas ao negro no Paraná.

44
Aspectos históricos da presença do negro no Paraná

Referências
BUTI, Rafael Palermo. Acerca do pertencimento: percursos da comunidade Invernada
Paiol de Telha em um contexto de reivindicação de terras. 2009. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.
CALÁBRIA, J. Processo de comunidade quilombola pode ser anulado no Paraná.
Disponível em: <http://www.cedefes.org.br/?p=afro_detalhe&id_afro=10189>. Acesso
em: 8 jul. 2014.
LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas.
Etnografia Lisboa, v. IV, n. 2, p. 333-354, 2000.
PRIORI, Angelo; POMARI, Luciana R.; AMÂNCIO, Silvia M.; IPÓLITO, Veronica K.
História do Paraná: séculos XIX e XX. Maringá: Eduem, 2012.
SILVA, Antonio Bras da. Quilombolas no Paraná. Secretaria Nacional do Movimento
Negro, 25 jan. 2010. Disponível em: <http://secretariamovimentonegropdt.blogspot.
com.br/2010/01/quilombolas-no-parana.html>. Acesso em: 25 nov. 2014.
TUMA, Magda Madalena Peruzin. Viver é descobrir: história do Paraná. São Paulo:
FTD, 2008.

45
Negros no Paraná na primeira
década do século XXI: características
demográficas e desigualdades raciais
Paulo Roberto Delgado1

Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar um retrato da situação da população
negra no Paraná ao fim da primeira década do atual século, considerando a evolução
de sua participação na população do estado, sua distribuição regional e algumas ca-
racterísticas demográficas, relacionadas ao sexo, idade e composição familiar. Além
disso, dada a importância que a educação e a obtenção de trabalho possuem para
as condições de vida da população, procurou-se verificar se essas dimensões apre-
sentaram melhoria na última década e em que medida tais mudanças contribuíram
para reduzir os níveis de desigualdade que historicamente têm marcado a população
negra no estado e no país.
O censo demográfico, base das informações abordadas neste artigo, é uma
das principais fontes sobre a situação social da população segundo classificação por
cor ou raça2. Porém, além de alguns censos (1920 e 1970) não trazerem esse quesito,
o sistema de classificação passou por alteração ao longo do tempo, bem como o
modo de captação da informação – se atribuído pelo recenseador ou autodeclarado
pelo entrevistado.
Apenas duas categorias se mantiveram em todos os censos que incluíram o
quesito cor/raça: branca e preta3. A categoria amarela foi introduzida a partir de
1
Sociólogo, pesquisador do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES).
2
Outra fonte importante é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a qual traz
dados para o país, grandes regiões, estados e regiões metropolitanas, mas não, como o censo, para
municípios.
3
No primeiro censo após a abolição da escravatura (1890), a categoria preta foi restrita aos afri-
46
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

1940, visando captar os imigrantes de origem oriental, particularmente os japo-


neses. A categoria indígena foi incluída pela primeira vez em 1960 e voltou a ser
incluída nos censos a partir do de 1991; em alguns destacando os residentes em
aldeamentos e, mais recentemente, o pertencimento étnico.
A categoria parda só esteve ausente no censo de 1890, mas, geralmente, ser-
viu para classificar por exclusão, ou seja, as pessoas que não se enquadravam nas
categorias mencionadas anteriormente eram classificadas como pardas. Nesse rol,
entravam pessoas consideradas ou que se declaravam, entre outras, como mestiço,
mulato, caboclo, cafuzo, mameluco e, em alguns censos, indígena.
Essas alterações nos censos refletem, na avaliação da antropóloga Lilia Sch-
warcz (2012), indeterminações do próprio sistema de classificação racial presente na
sociedade brasileira, o qual “faz que o fenótipo, ou melhor, certos traços físicos como
formato de rosto, tipo de cabelo e coloração da pele se transformem nas principais
variáveis de discriminação” (p. 98), diferentemente de sistemas de classificação que
enfatizam a origem em termos de descendência, como no caso norte-americano.
Anjos (2013) chama atenção para outro aspecto relacionado ao sistema de
classificação nos censos, o de que essas variações estão relacionadas a mudanças nas
próprias representações de sociedade e de nação ao longo da história do país, e,
consequentemente, das políticas públicas. Considerando as representações sobre a
composição racial e a questão da miscigenação racial no país, essa autora define dois
grandes períodos nos usos da categoria cor nos censos demográficos. No primeiro,
que se estende do início da República até 1970, as estatísticas seriam usadas para
reforçar uma visão da elite nacional de que a população brasileira tenderia a um
contínuo embranquecimento, por meio da miscigenação resultante da redução “na-
tural” da população negra e da contribuição dos imigrantes europeus; o uso de uma
categoria intermediária no sistema de classificação facilitaria as transições para um
perfil de identificação mais claro na população: mestiço branco; preto pardo.
O segundo momento tem seu início marcado pela pressão do movimento negro e
de pesquisadores pelo retorno do quesito cor no censo de 1980, após sua exclusão
em 1970, e por uma reinterpretação da categoria parda “a partir do critério de as-

canos ou aos nascidos no Brasil de uniões endogâmicas.


47
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

cendência racial e agregada à categoria ‘preta’, para constituir a população ‘negra’”


(ANJOS, 2013, p. 112).
Essa reinterpretação resulta tanto de esforços do movimento negro em dar
visibilidade à questão das desigualdades raciais no Brasil quanto dos resultados de
estudos sobre o tema, que demonstraram certa similaridade das condições socioe-
conômicas de pretos e pardos no país, em contraposição às da população branca.
Segundo Lima e Prates (2015), as categorias utilizadas para fins de definição de
políticas valem-se, atualmente, de “uma classificação racial (pretos e pardos consi-
derados como negros ou não brancos) quanto a de identidade (indígenas e rema-
nescentes de quilombos)” (p. 172).
No presente artigo, a população negra será considerada a partir da classifica-
ção racial que a contrapõe à população branca, muito embora na maioria dos casos
optou-se pela apresentação das informações nas categorias originais do censo, preta
e parda, o que permite fazer algumas diferenciações entre esses dois grupos popula-
cionais, mas, também, evidenciar a semelhança no perfil socioeconômico desses gru-
pos, como vem sendo destacado na literatura sobre desigualdades raciais no Brasil.

Evolução e distribuição regional da população segundo composição por cor


O censo de demográfico de 2010 registrou, pela primeira vez em quase um
século, a participação da população branca inferior a 50%, resultado de um longo
processo de alteração na composição por cor da população brasileira.
Como destacado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE,
2006), apesar das mudanças que os critérios de classificação por cor sofreram ao
longo dos diversos censos demográficos, mencionadas anteriormente, é possível
destacar importantes inflexões na composição populacional por cor ao longo da
história brasileira.
Com o fim da escravidão e o estímulo à imigração de europeus, que marca-
ram a sociedade brasileira no trânsito dos séculos XIX e XX, a participação dos
brancos passou de 44,0%, imediatamente após o fim da escravidão (1890), para
63,5%, em 1940, ano em que se realizou o primeiro censo do século XX que trazia
o quesito cor para classificar a população. Nesse mesmo período, embora os contin-

48
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

gentes populacionais de pretos e pardos tenham apresentando forte crescimento4,


a sua participação na população brasileira foi reduzida devido ao forte afluxo de
imigrantes europeus; a participação de pretos, nesse período, passou de 19,7% para
14,6% e a dos pardos sofreu redução mais intensa, de 38,3% para 21,2%.
A partir de 1940, há uma nova inflexão com um lento, mas quase contínuo
decréscimo na participação de brancos, segmento que se manteve majoritário até o
censo de 2000, contraposto ao forte incremento que se deu na participação de par-
dos (Figura 1). Segundo o IBGE (2006), essa mudança se deveu, em um primeiro
momento, ao fim dos grandes fluxos imigratórios internacionais, após o que resul-
tou de fatores de crescimento natural endógeno, quais sejam a dinâmica de morta-
lidade e de fecundidade, cujo nível e ritmo de mudança, apesar de tendências gerais
para o país, são diferenciados segundo os segmentos populacionais, e também pelo
padrão de intercasamento entre as pessoas dos vários grupos de cor.

Figura 1 – Composição por cor da população brasileira – 1940/2010.

Nota: A participação, nos diversos anos, não totaliza 100% devido à exclusão dos casos de não decla-
ração e dos grupos que foram sendo incluídos ao longo dos censos (amarela e indígena), mas que têm
pequena participação na população brasileira.
Fonte: IBGE, Censos Demográficos de 1940/2010.

4
No meio século que se estende de 1890 a 1940, o número de pretos foi incrementando em 208%
e o de pardos em 130%. Os dados históricos sobre a composição populacional por cor foram ob-
tidos em http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=10&op=0&vcodigo=POP106&-
t=populacao-presente-residente-cor-raca-dados (consulta em 6 fev. 2017).
49
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Embora insuficiente para alterar expressivamente sua participação no total


da população brasileira, houve, nos dois últimos censos demográficos, forte incre-
mento no número de pretos, que tiveram incremento relativo de 95,4%, no período
1991/20105; de 7,3 milhões de pessoas passaram a 14,3 milhões. Para além dos fato-
res de crescimento endógeno destacados anteriormente, alguns pesquisadores atri-
buem, como importante para esse crescimento recente, uma revalorização da iden-
tidade negra, assentada mais em critérios de ascendência racial, reunindo pardos e
pretos. Soares (2008), por exemplo, realizou um estudo para esclarecer os fatores
que desencadearam, a partir dos anos 1990, uma aceleração na participação dos ne-
gros no total da população brasileira e conclui que mais que efeito dos diferenciais
de fecundidade entre mulheres de grupos de cor diferente ou de fatores socioeconô-
micos, como educação e renda, é uma intensa mudança no padrão de autoidentifica-
ção das pessoas que explica esse crescimento, fato que ele observou acompanhando
as mudanças de identificação racial entre várias coortes populacionais, com base em
dados das PNADs6. Vale registrar sua conclusão:

Até o início dos anos 1990, a população negra vinha aumentando


de modo relativamente lento e vegetativo via uma taxa de fecundi-
dade um pouco mais alta para pretos e pardos, e o fato de que fi-
lhos de casais mistos têm maior probabilidade de ter filhos pardos.
Em algum momento, entre 1996 e 2001, há o início de um proces-
so de mudança em como as pessoas se veem. Passam a ter menos
vergonha de dizer que são negras; passam a não precisar se bran-
quear para se legitimarem socialmente. (SOARES, 2008, p. 116).

Esse autor, como outros (DUARTE, 2011; ANJOS, 2013), relaciona essa
mudança à maior presença do movimento negro, o qual, entre outras ações de mobi-
lização, realizou, por ocasião do censo de 1991, uma campanha de conscientização,
para as pessoas se reconhecerem a partir de sua origem étnica. Além disso, é possível
que, a partir dos anos 2000, a adoção de políticas de combate à discriminação e à de-

5
Nesse mesmo período, a população total brasileira aumentou em 29,9%.
6
Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, realizada nacionalmente pelo IBGE com pe-
riodicidade anual, exclusivamente nos anos de realização do censo demográfico, e desde 2012,
trimestral.
50
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

sigualdade racial – como o sistema de cotas para ingresso em universidades públicas


– tenha reforçado esse processo de mudança no padrão de autoidentificação racial.
O Paraná, junto com os outros estados da região Sul, sempre chamou aten-
ção nos estudos sobre a questão racial, pela menor participação de negros em sua
população. No último censo, pretos e pardos representavam 20,7% da população da
região Sul, contra uma participação de 50,9% no país. O Paraná é, no Sul do país, o
estado com maior participação de negros (28,5%).
Apesar do menor peso da população negra, a evolução desse grupo no Para-
ná segue as tendências gerais observadas para o país. Entre meados do século XIX
e a primeira metade do século XX, ocorreu importante mudança na composição
demográfica do Paraná, decorrência do afluxo de imigrantes europeus. Referindo-se
a esse processo, Ianni (1966) aponta que os negros e mulatos, escravos ou libertos,
representavam, em 1872, 45% da população da província do Paraná; e 1890, a par-
ticipação desse grupo tinha reduzido para 36,2%. Westphalen (apud MORAES;
ROCHA, 2004), indica outro fator para a queda na participação da população ne-
gra no estado, o deslocamento, ocorrido após a interrupção do tráfico internacional
de escravos, de parcela dos cativos paranaenses para as lavouras paulista de café.
A partir de meados do século XX, como ocorrido no país, aumenta quase
que continuamente a participação dos negros (pretos e pardos) na população para-
naense (Figura 2). Mas uma particularidade marca esse processo no Paraná, o im-
pacto de processos migratórios interestaduais. Pode-se observar, no mesmo gráfico,
que as taxas de crescimento da população negra no Paraná foram mais intensas que
as brasileiras entre os anos 1940 e 1980, chegando a apresentar uma taxa de 9,6%
a.a. no período de 1950/1960. Na realidade, esse crescimento deveu-se fundamen-
talmente ao aumento na participação daquelas pessoas que se declaram, nos censos,
como pardas, sendo que as de cor preta apresentaram taxas positivas, mas inferiores
às dos pardos e brancos7.

7
Ressalte-se que este foi um período de expansão da fronteira agrícola paranaense, levando o es-
tado a apresentar taxas de crescimento populacional superiores à do Brasil; e, apesar desse intenso
crescimento se manifestar entre os diferentes grupos de cor/raça, as taxas referentes aos pardos
foram as mais elevadas, particularmente entre os anos de 1950 e 1980.
51
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Figura 2 – Participação relativa e taxa anual de crescimento da


população negra – Paraná e Brasil – 1940/2010.

Fonte: IBGE, Censos Demográficos de 1940/2010.

O desempenho dos pardos e, em menor medida, dos pretos, nesse período,


possivelmente foi influenciado pelo que Magalhães (1996) destacou como a quase
contemporaneidade de duas ondas de povoamento que o estado experimentou: a
ocupação, a partir de 1940, do norte do estado como prolongamento da atividade
cafeeira paulista e a ocupação, a partir de 1950, do extremo oeste e sudoeste, com
base na policultura alimentar e na pecuária suína. Entre 1940 e 1970, o Paraná teve
saldo migratório positivo em todas as décadas, totalizando um ganho, em suas tro-
cas populacionais com outras unidades da federação, de aproximadamente três mi-
lhões de pessoas. E nesse processo coube, segundo Magalhães, à ocupação do nor-
te paranaense um papel hegemônico tanto na dinâmica econômica desse período
quanto na demográfica, para a qual contribuíram as correntes populacionais vindas
de estados e regiões do país – paulistas, mineiros e nordestinos – que contavam com
maior participação de pardos e pretos em sua composição populacional, possivel-
mente contribuindo para as taxas de crescimento mais elevadas desses grupos de cor
na população paranaense8.
Mais recentemente, depois de duas décadas com taxas de crescimento infe-
riores à brasileira, a população negra voltou a crescer, entre 2000 e 2010, em um rit-
8
Na ocupação do oeste e sudoeste do estado, embora recebendo populações de diversas regiões
do país, teve um predomínio daquelas oriundas de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com
participação importante de descendentes de alemães e italianos.
52
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

mo mais intenso no Paraná (ver Figura 2), novamente em função do crescimento do


segmento declarado como pardo; quase todo o incremento populacional que o Pa-
raná teve nesta década deve-se a esse segmento populacional (Tabela 1). Nesse caso,
porém, a contribuição dos imigrantes para esse crescimento deve ter sido menor,
uma vez que as trocas populacionais interestaduais foram bastante reduzidas nas
últimas décadas9, devendo tal mudança na composição de cor estar relacionada aos
padrões de relações inter-raciais, através das uniões matrimoniais, e do movimento
de revalorização da identidade negra, que implica mudanças na autoclassificação em
termos de cor/raça.

Tabela 1 – População paranaense segundo cor/raça – 1940/2010.

Cor/Raça 1940 1950 1960 1980 1991 2000 2010


Branca 1.070.151 1.824.879 3.557.857 5.883.466 6.408.517 7.387.842 7.317.309
Parda 91.414 154.346 468.252 1.445.736 1.755.459 1.745.610 2.647.895
Preta 60.396 91.630 148.126 198.475 190.444 271.871 328.949
Amarela 13.482 39.244 86.425 79.447 77.820 88.452 124.279
Indígena 10.977 31.488 25.787
Sem declaração 833 3.498 3.061 22.725 5.403 39.380 307
Total 1.236.276 2.115.547 4.263.721 7.629.849 8.448.620 9.564.643 10.444.526
Fonte: IBGE, Censos Demográficos de 1940/2010.

Nesta última década, a população branca apresentou sua primeira redu-


ção em termos absolutos desde o início do registro do quesito cor/raça nos censos
demográficos, embora ainda represente 70,1% da população estadual. Os pretos,
embora representem apenas 3,1% da população estadual, tiveram um crescimento
expressivo entre 1991 e 2010 quando seu contingente foi ampliado em 73%, cresci-
mento este mais intenso nos anos 1990.

9
Conforme Magalhães, Cintra e Angelis (2014), na primeira década do século XXI, no Paraná,
houve redução no número de imigrantes e de emigrantes interestaduais, com expressiva queda no
saldo migratório que foi praticamente nulo no período 2005/2010; essa queda acentua um pro-
cesso que já se observava no período censitário anterior (1995/2000). Se as trocas interestaduais
perdem peso, o mesmo não se verifica com os movimentos migratórios no interior do estado, os
quais podem contribuir para mudanças na composição por cor da população nas regiões e municí-
pios do estado, juntamente com os fatores endógenos de crescimento mencionados anteriormente.
53
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

A distribuição da população negra entre as regiões do estado não difere ex-


pressivamente da distribuição da população total, concentrando-se naquelas mais
populosas – mesorregiões metropolitana de Curitiba e norte central –, as quais,
juntas, contêm 54,8% das pessoas de cor preta e 49,4% das pardas (Tabela 2). Mas
é interessante notar, por meio do quociente locacional10, que as mesorregiões que
compõem a porção norte do estado – noroeste, norte central e norte pioneiro –
têm participação mais elevada na distribuição regional de pretos e pardos do que na
população total do estado (ver valores > 1,10, em destaque). Muito provavelmente,
esse diferencial na participação dessas regiões reflete, ainda, aqueles processos de
ocupação do estado mencionados anteriormente.

Tabela 2 – Distribuição da população total e por cor/raça


segundo mesorregião geográfica – Paraná – 2010.

Cor/Raça
Mesorregião Geográfica
Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
Distribuição (%)
Noroeste Paranaense 5,4 8,0 6,4 9,3 2,6 6,5
Centro Ocidental Paranaense 2,7 3,5 2,9 4,6 1,6 3,2
Norte Central Paranaense 18,7 23,0 36,5 20,4 22,5 19,5
Norte Pioneiro Paranaense 5,1 7,1 7,0 5,2 7,0 5,2
Centro Oriental Paranaense 7,0 5,9 3,2 5,9 6,1 6,6
Oeste Paranaense 11,5 10,8 9,4 12,4 12,0 11,7
Sudoeste Paranaense 5,1 3,0 2,4 4,2 4,7 4,8
Centro-Sul Paranaense 4,9 4,7 3,9 6,1 22,1 5,2
Sudeste Paranaense 4,3 2,2 1,3 2,9 1,7 3,9
Metropolitana de Curitiba 35,3 31,8 27,1 29,0 19,8 33,5
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

10
O quociente locacional relaciona a participação de uma região na população total de uma cate-
goria de cor com a sua participação no total da população estadual; quando essa relação é maior
que 1, significa que essa região tem um peso maior na distribuição da população de uma dada ca-
tegoria de cor do que sua participação no total da população estadual. Na Tabela 2, por exemplo,
a norte central concentra 23,0% das pessoas pretas e uma participação de 19,5% na população
total do estado.
54
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

Cor/Raça
Mesorregião Geográfica
Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
Quociente locacional
Noroeste Paranaense 0,83 1,23 0,98 1,44 0,40 1,00
Centro Ocidental Paranaense 0,85 1,09 0,92 1,42 0,49 1,00
Norte Central Paranaense 0,96 1,18 1,87 1,05 1,15 1,00
Norte Pioneiro Paranaense 0,98 1,35 1,34 1,00 1,34 1,00
Centro Oriental Paranaense 1,05 0,89 0,48 0,89 0,93 1,00
Oeste Paranaense 0,98 0,93 0,80 1,06 1,03 1,00
Sudoeste Paranaense 1,07 0,62 0,50 0,88 0,99 1,00
Centro-Sul Paranaense 0,93 0,90 0,75 1,18 4,25 1,00
Sudeste Paranaense 1,12 0,57 0,32 0,76 0,43 1,00
Metropolitana de Curitiba 1,05 0,95 0,81 0,87 0,59 1,00
Total 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

A Figura 3 permite visualizar a importância da população negra na popula-


ção dos municípios paranaenses. Um primeiro aspecto é que são poucos os muni-
cípios em que esse conjunto populacional representa mais da metade da população
e esses casos estão concentrados na mesorregião noroeste. Essa figura evidencia,
também, que a maioria dos municípios em que a participação de negros é superior
à sua participação no estado (28,5%) está concentrada na porção norte do Paraná;
a mesorregião centro-sul se destaca na porção sul. A capital do estado está no grupo
em que a população negra tem menor participação relativa, mas se observa que, na
maioria dos municípios de seu entorno, a periferia metropolitana, a participação é
maior que a taxa estadual.
Por sua vez, a Figura 4 destaca os contingentes de pretos e pardos nos mu-
nicípios paranaenses. A distribuição municipal dessa população segue a hierarquia
urbana do estado, com as maiores concentrações localizando-se nas principais aglo-
merações urbanas do estado. Mas é possível observar dois eixos principais, um que
envolve municípios do norte pioneiro e do norte central e outro que se estende do
litoral ao segundo planalto, com peso maior da região metropolitana de Curitiba.

55
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Figura 3 – Participação percentual de pretos e pardos na


população dos municípios – Paraná – 2010.

Fonte: IBGE (2010).

Figura 4 – Número de pretos e pardos na população dos municípios – Paraná – 2010.

Fonte: IBGE (2010).

As correntes migratórias, como destacado anteriormente, foram fundamen-


tais na dinâmica demográfica do estado, mas os dados do censo de 2010 revelam
que, atualmente, uma parcela expressiva da população (83,0%) é natural do próprio
estado, situação que prevalece em todos os grupos de cor/raça (Tabela 3). Em rela-
ção aos não naturais, cabe destacar que 72% residem há mais de 10 anos no Paraná.

56
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

Tabela 3 – Distribuição da população segundo cor/raça e naturalidade – Paraná – 2010.

Cor / Raça Total


Naturalidade
Branca Preta Amarela Parda Indígena
Paraná 83,4 77,6 71,2 83,0 86,6 83,0
Outra UF 16,2 22,1 22,8 16,6 12,7 16,5
Naturalizado 0,2 0,1 2,6 0,1 0,3 0,2
Estrangeiro 0,3 0,2 3,3 0,2 0,4 0,3
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: IBGE (2010).

Características demográficas e composição familiar


Na composição da população paranaense, há um ligeiro predomínio de mu-
lheres, as quais, em 2010, representavam 50,9 da população estadual (Tabela 4).
Mas entre pardos e, principalmente, entre os pretos são os homens que têm maior
participação.

Tabela 4 – Número e distribuição percentual da população


segundo sexo e cor/raça – Paraná – 2010.

Sexo Distribuição %
Cor/Raça
Masculino Feminino Masculino Feminino
Branca 3.536.973 3.780.336 48,3 51,7
Preta 177.134 151.815 53,8 46,2
Amarela 59.759 64.520 48,1 51,9
Parda 1.344.220 1.303.675 50,8 49,2
Indígena 12.742 13.045 49,4 50,6
Ignorado 166 140 54,3 45,7
Total 5.130.994 5.313.532 49,1 50,9
Fonte: IBGE (2010).

A distribuição populacional por sexo é um dos fatores que condiciona as


possibilidades de relações matrimoniais11, influenciando o grau de endogeneida-
11
Há a possibilidade de relações entre pessoas do mesmo sexo, mas esse tipo de relação ainda é
pequeno no conjunto das relações conjugais registradas nos censos.
57
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

de dos matrimônios, ou seja, de casamentos dentro do mesmo grupo racial. Um


modo de avaliar essas diferenças é através do indicador razão de sexos, que expressa
o número de homens para cada grupo de 100 mulheres. Na Figura 5, as colunas
de cor azul mostram a taxa para o total de pessoas de cada grupo etário; as demais
referem-se às taxas para pretos e pardos, em cada um desses grupos. Considerando
as taxas totais, pode-se observar que só entre as crianças e jovens (até 14 anos) há
mais homens do que mulheres12; com o aumento da idade, as mulheres passam a
predominar, particularmente entre a população idosa. Essa tendência de aumento
da presença feminina em idades mais elevadas é observada também entre pardos e
pretos. Porém, o que se destaca é o desequilíbrio entre sexos no caso dos pretos; há
um excedente de quase 20 homens para cada grupo de 100 mulheres tanto na in-
fância quanto entre jovens e adultos. Ente os pardos, a situação se aproxima mais de
uma distribuição equilibrada entre os sexos.

Figura 5 – Razão de sexo na população segundo faixa etária e cor/raça – Paraná – 2010.

Fonte: IBGE (2010).

A composição populacional por faixas de idade revela uma particularidade


em relação às pessoas de cor preta (Tabela 5). Há um peso menor das crianças e
jovens, com idades entre 0 e 17 anos, que correspondem às três etapas da educa-
12
Valores acima de 100 indicam mais homens na população e menores o predomínio de mulhe-
res; essa referência, no gráfico, é representada pela linha pontilhada.
58
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

ção básica – ensinos infantil, fundamental e médio –, quando seria de se esperar


uma participação mais elevada, uma vez que as mulheres de cor preta, juntas com
as pardas e indígenas, apresentam taxas de fecundidade mais elevadas. Na realidade,
isso reflete um aspecto relacionado ao padrão de matrimônio dessa população, que
apresenta a menor taxa de endogamia – casamentos entre pessoas da mesma cor – e,
portanto, uma prole mais diversa em termos da identificação por cor.

Tabela 5 – Distribuição percentual da população segundo


cor/raça e faixa etária – Paraná – 2010.

Cor/Raça
Faixa Etária
Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
0a5 8,7 4,2 5,4 7,7 11,1 8,3
6 a 14 14,0 10,6 10,6 16,8 18,0 14,6
15 a 17 5,1 4,6 3,8 6,4 5,3 5,4
18 a 24 11,9 12,0 11,2 12,7 11,8 12,1
25 a 64 52,3 60,3 54,6 50,1 45,8 52,0
65 e + 7,9 8,2 14,5 6,2 8,0 7,6
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: IBGE (2010).

Considerando essa característica da composição das famílias que envolvem


cônjuges de cor preta, para o cálculo dos dois indicadores apresentando na Tabela 6
– razão de dependência e relação idoso/criança – foi necessário considerar a distri-
buição etária das pessoas segundo a cor/raça do responsável pelo domicílio, uma vez
que entre a população de pretos, devido ao pequeno tamanho dessa população no
estado e à menor endogeneidade dos casamentos, a razão de dependência ficava su-
bestimada, uma vez que muitos dos filhos desses casamentos declaram-se como par-
dos e, em menor proporção, como brancos. A razão de dependência indica o núme-
ro de pessoas economicamente dependentes – crianças (até 14 anos) e idosos (>=
65 anos) – em relação ao segmento potencialmente ativo economicamente (15 a 64
anos); e a relação idoso/criança, que indica o número de idosos para cada grupo de
100 crianças, evidenciando se a população dependente é mais jovem ou mais idosa.

59
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Assim procedendo, verifica-se que não há muita diferença na razão de depen-


dência segundo a cor/raça do responsável pelo domicílio, com exceção dos domi-
cílios cujos responsáveis se classificaram como indígenas; nesse caso, para cada 100
pessoas ativas há cerca de 63 pessoas em relação potencial de dependência (Tabela
6). No caso de pretos e pardos, essa relação é de 45,4 e 47,1 dependentes para cada
100 ativos, pouco acima da registrada em domicílios com responsáveis brancos.
As informações para o Brasil mostram que o país está vivendo um período
em que as taxas de dependência estão em seus níveis mais baixos, prevendo-se que
ela deverá voltar a crescer com o envelhecimento populacional. No Paraná, como
pode ser observado na Tabela 5, para os grupos de pretos, pardos e indígenas a re-
lação idoso/criança ainda é muito baixa, indicando que a maior parcela dos depen-
dentes é composta por crianças.

Tabela 6 – Número de pessoas segundo a cor/raça do responsável


pelo domicílio e faixa etária – Paraná – 2010.
Faixa Etária/ Cor do Responsável pelo Domicílio Total
Indicador Branca Preta Amarela Parda Indígena
0 a 14 1.552.270 109.806 25.438 691.164 10.433 2.389.198
15 a 59 4.993.586 301.840 93.697 1.826.578 20.054 7.235.904
65 e + 566.401 27.349 18.024 169.610 2.182 783.566
Total 7.112.257 438.995 137.158 2.687.352 32.670 10.408.667

Razão de
42,4 45,4 46,4 47,1 62,9 43,8
dependência
Relação idoso/
36,5 24,9 70,9 24,5 20,9 32,8
criança
Nota: como a referência são as pessoas nos domicílios, os totais desta tabela são diferentes dos
contingentes específicos dos grupos de cor/raça (ver Tabela 1, ano 2010), uma vez que em muitos
domicílios há pessoas de cor/raça diferentes.
Fonte: IBGE (2010).

O padrão de matrimônios é um aspecto fundamental para se pensar as re-


lações inter-raciais. Schwarcz (2012) destaca que, no Brasil, assim como em outras
sociedades miscigenadas, a maior parte dos casamentos é endogâmica, envolvendo
parceiros do mesmo grupo de cor/raça; além disso, observa que o crescimento da

60
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

mestiçagem, percebido a partir do aumento de pardos na população, ocorre mais à


custa de casamentos de homens pretos com mulheres brancas. Ressalta, porém, que
o grau de endogamia varia entre os grupos de cor/raça.
No Paraná, em 2010, 74% das relações conjugais13 eram endogâmicas, mas
com importante diferença entre os grupos de cor/raça e, em menor medida, entre os
sexos. Assim, por um lado, tem-se taxa superior a 80% entre os brancos, em ambos
os sexos, o que, dado o peso desse grupo na população paranaense, influencia a taxa
geral de endogamia no estado; por outro lado, as menores taxas são registradas entre
os pretos, com o maior diferencial entre os sexos, 26,9% entre os homens e 36,8%
entre as mulheres (Figura 6).

Figura 6 – taxa de endogamia dos matrimônios segundo sexo e cor/raça – Paraná – 2010.

Fonte: IBGE (2010).

Confirmando o destacado por Schwarcz para o país, mencionado anterior-


mente, os casamentos inter-raciais, no Paraná, das pessoas pretas e pardas se dão
majoritariamente com brancos; no caso dos pretos, porém, há uma participação
importante, também, de cônjuges de cor parda (Tabela 7). É importa ressaltar que,
além das desvantagens que a discriminação racial implica para as escolhas matrimo-
13
Foram consideradas apenas as relações referentes aos responsáveis dos domicílios e seus côn-
juges; casos de famílias secundárias, dentro dos domicílios, não foram considerados, mas estes
constituem parcela menor do número de famílias. E apenas as relações entre pessoas de sexo
diferente.
61
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

niais, os diferenciais nos estoques populacionais e os de sexo também condicionam


as possibilidades de escolhas; de certo modo, é isso que explica a baixa participação
de cônjuges pretos entre os chefes de outra cor/raça, inclusive entre os pardos.

Tabela 7 – Distribuição percentual das relações conjugais segundo cor


do cônjuge e do responsável pelo domicílio – Paraná – 2010.

Cor do Responsável Cor do Cônjuge


pelo Domicílio Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
Branca 83,6 2,0 0,5 13,8 0,1 100,0
Preta 49,0 27,9 0,7 22,3 0,2 100,0
Total Amarela 37,0 1,7 51,9 9,2 0,3 100,0
Parda 42,0 2,2 0,5 55,2 0,1 100,0
Indígena 37,6 3,6 1,1 13,7 44,0 100,0
Fonte: IBGE (2010).

Os elementos acima têm implicação sobre a composição familiar. Como se


observa na Tabela 8, a seguir, nas famílias cujos responsáveis são pretos há parti-
cipação quase igual de pessoas brancas e pardas. Entre os membros de cor preta,
destacam-se aquelas na condição de filhos, mas há, também, além dos cônjuges da
mesma cor, os que se relacionam a partir da ascendência do responsável (pais, avós
ou irmãos). Entre os brancos, residentes nesses domicílios, a maior parcela está na
condição de cônjuge, mas há também um número importante de filhos e de ascen-
dentes do cônjuge. Entre os membros pardos, os cônjuges têm menor participação
e os filhos predominam.
Do total de domicílios chefiados por pretos, em apenas 21% todos os mem-
bros são da mesma cor deste. Dos filhos que moram nesse tipo de domicílio, 40%
são pretos, 39% são pardos e 21% são brancos. Essa composição familiar possivel-
mente tem implicações para a formação de identidade baseada em critérios raciais,
bem como para avaliações de desigualdades baseadas apenas na cor, uma vez que
certas desvantagens associadas, por exemplo, à cor/raça do provedor familiar se es-
tendem para os membros de outra cor/raça.

62
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

Tabela 8 – Composição da população residente em domicílios com


responsáveis pretos ou pardos, segundo a cor e a relação dos demais
membros com a pessoa responsável – Paraná – 2010.

Relação com o Responsável: Preto


Responsável pelo Cor dos demais membros do domicílio
Domicílio Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
Cônjuge 13,8 7,9 0,2 6,3 0,1 28,2
Filho 10,6 19,9 0,2 19,4 0,0 50,2
Parentes ascen-
dentes 0,9 3,4 0,0 0,8 0,0 5,0
Parentes
descendentes 2,3 2,3 0,0 2,7 0,0 7,4
Outros parentes 3,7 2,1 0,0 2,4 0,0 8,2
Outros 0,5 0,2 0,0 0,3 0,0 1,1
Total 31,9 35,7 0,5 31,9 0,1 100,0

Relação com o Responsável: Pardo


Responsável pelo Cor dos demais membros do domicílio
Domicílio Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
Cônjuge 12,6 0,7 0,1 16,6 0,0 30,1
Filho 15,2 0,5 0,1 35,5 0,0 51,4
Parentes
1,0 0,1 0,0 3,4 0,0 4,5
ascendentes
Parentes
2,3 0,1 0,0 3,6 0,0 6,0
descendentes
Outros parentes 2,8 0,1 0,0 4,1 0,0 7,1
Outros 0,4 0,0 0,0 0,5 0,0 0,9
Total 34,4 1,5 0,4 63,7 0,0 100,0
Fonte: IBGE (2010).

Nos domicílios com responsáveis pardos, 63,7% dos membros têm a mesma
cor/raça do responsável pelo domicílio; naqueles chefiados por brancos, 87,6% dos
demais membros reproduzem a cor dos responsáveis.

63
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

As desigualdades raciais: indicadores de educação e trabalho


A primeira década do século XXI foi marcada, no Brasil, por importante
melhoria de alguns indicadores sociais, entre os quais serão abordados aqui, para a
realidade paranaense, os de escolaridade e de inserção no mercado de trabalho, uma
vez que essas dimensões são consideradas fundamentais para a redução das desigual-
dades sociais e raciais.

Escolaridade
A Tabela 9 apresenta o nível de instrução alcançado pelas pessoas de 15 anos
e mais de idade. Essa informação permite uma aproximação às mudanças que vêm
ocorrendo com a escolaridade ao longo das gerações14 e, também, verificar a evolu-
ção dos diferenciais de desempenho entre os grupos de cor/raça.
Iniciando a leitura pelos idosos (65 anos e +), verifica-se tratar de um grupo
que na quase totalidade não chegou a concluir o ensino fundamental, podendo-se
supor mesmo que a maioria se deteve no que corresponderia aos anos iniciais dessa
etapa de ensino. Mesmo nesse quadro de baixa escolaridade, chama atenção a alta
desigualdade entre brancos e negros; enquanto 21,1% dos brancos tinham comple-
tado o ensino fundamental ou nível mais elevado, entre os pretos e os pardos esse
percentual não ultrapassa a 8%.
Entre a população adulta (30 a 64 anos), o percentual que concluiu o ensino
fundamental ou nível mais elevado sobe para 51,5%, contra 18,1% no grupo de
idosos. Essa melhoria pode ser observada nos três segmentos raciais, mas entre os
negros quase 2/3 não chegou a concluir o ensino fundamental. Vale lembrar que
esta é uma população que tem elevada taxa de participação no mercado de traba-
lho, sendo que esses diferenciais de escolaridade devem afetar as oportunidades de
acesso ao trabalho, seja na obtenção de uma ocupação, seja em relação ao tipo de
ocupação que poderá exercer.

14
Fala-se em “aproximação” geracional por que, particularmente entre os idosos, o que o censo
traz é a informação de escolaridade dos sobreviventes, não expressando totalmente a situação
dessa coorte quando ela estava em idade escolar.
64
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

Entre os jovens (15 a 29 anos), há um expressivo salto em relação aos que


concluíram o ensino fundamental (75,4%), sendo que quase a metade do grupo
etário já conclui o ensino médio ou superior. Mas em relação a essas duas etapas
mais elevadas de ensino, as diferenças continuam expressivas com os brancos apre-
sentando participação 15,7 pontos percentuais acima da dos pretos e 17,7 pontos
acima da dos pardos.

Tabela 9 – Distribuição percentual da população segundo cor/


raça, faixa etária e nível de instrução – Paraná – 2010.

Cor/Raça
Faixa Etária Nível de Instrução
Branca Preta Parda Total
Sem instrução e fundamental incompleto 20,4 35,2 34,4 24,6
Fundamental completo e médio incompleto 29,0 30,0 32,8 30,0
Médio completo e superior incompleto 39,0 30,2 28,7 36,0
15 a 29
Superior completo 10,5 3,7 3,2 8,4
Não determinado 1,0 0,9 1,0 1,0
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
Sem instrução e fundamental incompleto 43,3 59,5 63,0 48,5
Fundamental completo e médio incompleto 15,6 15,4 15,3 15,5
Médio completo e superior incompleto 24,7 19,0 16,8 22,5
30 a 64
Superior completo 16,2 6,0 4,8 13,3
Não determinado 0,2 0,2 0,2 0,2
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
Sem instrução e fundamental incompleto 78,8 92,0 92,4 81,9
Fundamental completo e médio incompleto 7,3 4,0 3,8 6,5
Médio completo e superior incompleto 7,9 2,6 2,6 6,7
65 e +
Superior completo 6,0 1,3 1,2 4,8
Não determinado 0,1 0,0 0,0 0,1
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: IBGE (2010).

Uma síntese dessa evolução pode ser observada na Figura 7, que destaca a
parcela da população que, em cada grupo etário, concluiu o ensino fundamental ou
etapa mais elevada do ensino. Há inegável avanço no nível de escolaridade da popu-
lação no Paraná, mas o diferencial entre a coluna que representa o desempenho dos
65
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

brancos e as que representam pretos e pardos permanece quase do mesmo tamanho


nos três grupos de idade; ou seja, embora a distância relativa entre os grupos tenha
diminuído, expressando redução da desigualdade nessa etapa escolar, há um dife-
rencial absoluto que se mantém no tempo.

Figura 7 – Percentual da população que concluiu o ensino fundamental ou etapa


mais elevada de ensino, segundo cor/raça e faixa etária – Paraná – 2010.

Fonte: IBGE (2010).

A Tabela 10, a seguir, apresenta dois indicadores relacionados à população


em idade escolar, retratando o acesso escolar quando da realização dos dois últimos
censos demográficos, permitindo verificar a evolução desses indicadores na primeira
década do atual século. O primeiro indicador – taxa bruta de escolarização – infor-
ma o percentual de crianças e jovens em cada faixa etária que estava frequentando
escola, independentemente da etapa de ensino em que se encontrava. Pode-se ob-
servar que, no grupo de 7 a 14 anos, o acesso está praticamente universalizado, com
97,6% das crianças, em 2010, frequentando a escola. Percebe-se, também, um avan-
ço no acesso escolar dos jovens de 15 a 17 anos, mas com os negros apresentando
taxas ligeiramente inferiores aos brancos. Por sua vez, entre os jovens de 18 a 24, o
percentual dos que frequentam escola apresentou acréscimo apenas entre os bran-
cos, mesmo assim pequeno.

66
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

Tabela 10 – Taxas bruta e líquida de escolarização segundo cor/


raça, ano do censo e faixa etária – Paraná – 2000/2010.

Cor/Raça
Ano Faixa Etária
Branca Preta Parda Total
Taxa bruta de escolarização (%)
7 a 14 96,2 93,3 94,0 95,7
2000 15 a 17 75,6 62,9 64,6 73,1
18 a 24 31,1 21,9 22,3 29,3

7 a 14 97,9 95,9 97,1 97,6


2010 15 a 17 82,6 74,8 76,8 80,7
18 a 24 33,6 21,7 22,8 30,5

Taxa líquida de escolarização (%)


7 a 14 89,0 86,2 87,3 88,5
2000 15 a 17 48,8 28,9 33,3 45,2
18 a 24 11,6 1,9 2,4 9,8

7 a 14 82,7 81,4 82,4 82,6


2010 15 a 17 53,9 37,7 42,7 50,1
18 a 24 21,1 8,0 8,3 17,4
Fonte: IBGE (2010).

O segundo indicador, na Tabela 9, informa também a frequência escolar,


mas considerando o nível de ensino correspondente a cada grupo etário – funda-
mental (7 a 14 anos); médio (15 a 17 anos); e superior (18 a 24 anos); expressa,
portanto, o percentual de estudantes que cursam o nível de ensino que a legislação
prescreve para sua idade15.
Em relação às crianças de 7 a 14 anos, observa-se queda na taxa de escola-
rização, mas essa queda pode estar relacionada aos casos de crianças que, no censo
2010, não foram classificados no quesito correspondente ao ensino fundamental
regular, mas como classe de alfabetização. Se esses casos forem incluídos, a taxa lí-
15
Em relação a esse indicador de escolarização, cabe observar que foi mantida a idade de 7 anos
como limite inferior do ensino fundamental para efeito de comparação com o censo de 2000,
pois a lei que ampliou para nove anos a duração dessa etapa e estipulou a idade de 6 anos como
seu início é do meio da década (Lei nº 11.274/2006). Quanto à definição da etapa adequada
respectivamente a cada faixa etária, foram consideradas apenas as situações que, nos censos de-
mográficos, correspondiam ao ensino regular seriado, no caso dos ensinos fundamental e médio.
67
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

quida de escolarização desse grupo etário seria de 89,4%, praticamente mantendo o


desempenho de 2000 (88,5%). Mas dado o objetivo deste artigo, o mais relevante é
observar que nessa faixa etária não há diferença entre os grupos de cor/raça quanto
à sua participação no nível de ensino prescrito em lei.
Em relação aos outros dois grupos de jovens, houve, no período 2000/2010,
melhoria na taxa de escolarização líquida, a qual passou de 45,2% para 50,1%, entre
os jovens de 15 a 17 anos, e de 9,8% para 17,4%, entre os de 18 a 24 anos de idade.
No caso daqueles em idade de cursar o ensino médio, a evolução foi mais favorável
para pretos e pardos, que apresentaram variação maior entre 2000 e 2010; apesar
de indicar redução da desigualdade racial nessa etapa de ensino, o diferencial em
relação aos brancos permanece ainda elevado. Na etapa correspondente ao ensino
superior, foram os brancos que apresentaram maior crescimento no período, am-
pliando, assim, as diferenças em relação aos negros.
Esses resultados de redução da desigualdade no acesso ao ensino médio, e am-
pliação da distância no que se refere ao ensino superior, apesar da expansão do acesso
em todos os grupos de cor/raça e nas duas etapas de ensino, são compatíveis com os
resultados apresentados por Lima e Prates (2015), para o Brasil, no mesmo período.

Trabalho
A primeira década do atual século foi um período marcado por intenso cres-
cimento da ocupação no país. No Paraná, segundo dados dos censos demográficos,
entre 2000 e 2010 o número de pessoas ocupadas foi acrescido em 1,2 milhão de
pessoas, uma variação relativa de 31% no período; com isso, em 2010 havia um con-
tingente de 5,3 milhões de pessoas trabalhando no estado. A Tabela 11 permite ve-
rificar que esse dinamismo do mercado de trabalho significou um aumento na taxa
de ocupação, com 63,9% da população de 14 anos e mais de idade encontrando-se
na condição de ocupado. Percebe-se, ainda, que o nível de ocupação é praticamente
igual entre negros e brancos.

68
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

Tabela 11 – Taxa de ocupação e desocupação da população de 14


anos e mais, segundo cor/raça – Paraná – 2000/2010.
Cor/Raça
Ano Total
Branca Preta Parda
Taxa de ocupação (%)
2000 57,5 57,6 57,1 57,4
2010 64,5 64,8 62,3 63,9

Taxa de desocupação (%)


2000 12,0 14,8 15,1 12,6
2010 4,6 5,4 6,1 5,0
Fonte: IBGE (2010).

O crescimento da ocupação permitiu uma redução acentuada da taxa de de-


socupação, a qual se deu com a mesma intensidade entre negros e brancos, manten-
do, porém, as taxas mais elevadas para pretos e pardos.
Outra mudança importante verificada no período foi o aumento na taxa de
formalização da população ocupada, a qual expressa a participação de trabalhadores
com registro em carteira e de estatutários e militares do setor público no conjunto
dos ocupados (Figura 8), condição que favorece o acesso a um conjunto de direitos
previstos na legislação trabalhista e previdenciária do país. O maior incremento se
deu entre os pretos que já tinham, em 2000, a maior taxa de formalização.

Figura 8 – Taxa de formalização da população de 14 anos e


mais, segundo cor/raça – Paraná – 2000/2010.

Fonte: IBGE (2010).


69
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Resta saber em que medida essa melhoria nas condições de inserção no


mercado de trabalho refletiu sobre os níveis de rendimento do trabalho e sobre as
desigualdades entre os diversos segmentos de pertencimento racial. Uma primei-
ra observação, a partir dos dados da Tabela 12, é que tanto o rendimento médio
quanto o mediano registraram ganhos reais entre os anos de 2000 e 2010; porém,
a variação do rendimento mediano (40,8%) foi bem superior ao do rendimento
médio (10,4%), o que sinaliza que o aumento entre os trabalhadores com menores
rendimentos foi maior do que o verificado para os da porção superior da distribui-
ção de rendimentos16. Muito provavelmente, esse desempenho reflete a política de
valorização do salário mínimo, desenvolvida durante todo esse período, a qual afeta
um grande número de trabalhadores no país.
Outro aspecto relevante é que, nas duas medidas, a remuneração de pretos e
pardos teve variação superior à dos brancos, particularmente quanto ao rendimento
médio, em relação ao qual a variação para os brancos foi de 11,4% e a dos pretos e
pardos foi, respectivamente, 48,2% e 30,2%.

Tabela 12 – Rendimento bruto médio e mediano no trabalho principal,


em salários mínimos, segundo cor/raça – Paraná – 2000/2010.

Ano Cor/Raça Total


Branca Preta Parda
Média
2000 2,63 1,36 1,39 2,39
2010 2,92 2,01 1,82 2,63
Variação (%) 11,4 48,2 30,2 10,4

Mediana
2000 1,23 0,93 0,93 1,12
2010 1,67 1,37 1,37 1,57
Variação (%) 36,1 47,4 47,4 40,8
Nota: inclui apenas os ocupados com rendimento no trabalho principal; os valores de 2000 foram atualiza-
dos para julho de 2010, pelo IPCA (fator: 1,896265) e transformados em salários mínimos dessa data.
Fonte: IBGE (2010).
16
A mediana separa uma distribuição em duas partes, significando que uma metade das pessoas
tem rendimento inferior a esta medida, e a outra ganhos acima; a média é uma medida mais
sensível a valores extremos, o que, no caso de distribuições de renda, significa ser mais afetada por
rendimentos mais elevados.
70
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

O desempenho evidenciado anteriormente aponta para uma redução das de-


sigualdades raciais relacionadas ao rendimento do trabalho. Entre 2000 e 2010, o
rendimento médio dos pretos passou de 51,8% para 68,9% do valor médio auferido
pelos brancos; no caso dos pardos, essa variação foi de 53,1% para 62,1%.
Apesar desse importante avanço, os diferenciais de rendimento ainda persis-
tem e em nível elevado: em média, os brancos têm um rendimento médio do tra-
balho 45% superior ao dos pretos e 61% ao dos pardos (Figura 9). Esse diferencial
é observado para todos os níveis de educação da população ocupada, à exceção dos
pretos com nível médio completo ou superior incompleto.

Figura 9 – Diferencial relativo de rendimento médio no trabalho


principal segundo cor/raça e nível de instrução – Paraná – 2010.

Fonte: IBGE (2010).

É interessante destacar, no gráfico acima, que o diferencial relativo ao total


é maior do que o observado considerando-se os níveis de instrução da população
ocupada. Esse fato decorre, possivelmente, do perfil educacional dos ocupados em
cada grupo racial; enquanto 48,6% dos ocupados de cor branca têm ensino médio
ou superior completo, entre os pretos e pardos cerca da metade não concluiu o ensi-
no fundamental. Além disso, é entre os ocupados de nível superior que se observa o
maior diferencial de rendimento, favorável aos brancos17. Trata-se, pois, da combi-
17
Em relação às diferenças salariais entre pessoas com nível superior, Lima e Prates (2015) mos-
71
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

nação de efeitos das desigualdades raciais de escolaridade, tratadas no item anterior,


e das desigualdades decorrentes da discriminação no mercado de trabalho.

Considerações finais
O Paraná continua sendo um estado com participação majoritária de po-
pulação branca, mas é, na região Sul, o que possui maior peso de pretos e pardos
em sua composição populacional. Na realidade, o crescimento desse grupo segue a
tendência observada nacionalmente, desde os anos 1940, com contínuo aumento
de sua participação no total populacional do estado.
No estado, esse processo contou com a contribuição dos elevados fluxos mi-
gratórios oriundos de outros estados, quando da expansão da fronteira agrícola es-
tadual entre os 1940 e 1970, processo este que ainda marca a distribuição regional
dessa população, com a porção norte do estado concentrando os municípios em que
os negros têm maior participação relativa na população dos municípios.
Nas duas últimas décadas, voltou a verificar-se maior incremento relativo da
população negra no estado. O número de pretos foi ampliado em 73% entre 1991 e
2010 e, na última década, quase todo crescimento populacional do Paraná decorreu
do incremento no número de pardos. Novamente, essa dinâmica demográfica segue
um padrão observado nacionalmente, no qual o crescimento mais elevado dos ne-
gros relaciona-se, para além dos fatores endógenos de crescimento populacional, a
uma mudança na autoidentificação racial da população.
Os homens têm um peso maior na composição da população negra, parti-
cularmente entre os pretos, cuja razão de sexo indica um excedente importante de
homens relativamente às mulheres, entre os jovens e adultos. A distribuição da po-
pulação negra entre os grupos etários (crianças, adultos e idosos), caracterizada pela
razão de dependência, não difere da verificada entre os brancos. Mas se observou

tram que a obtenção desse tipo de credencial não é suficiente para reduzir as diferenças entre
negros e brancos, pois o acesso a carreiras de maior prestígio – medicina, engenharias e direito
– continua muito desigual. Além disso, segundo esses autores, “entre as carreiras escolhidas (de
nível superior), há diferenças na inserção nos estratos ocupacionais e, mesmo entre aqueles que
têm qualificações e inserções semelhantes, as distorções salariais persistem” (p. 188).
72
Negros no Paraná na primeira década do século XXI

que as crianças têm, entre os negros, um peso maior na composição do segmento


considerado dependente – crianças e idosos.
Seguindo o padrão observado em outras sociedades miscigenadas, a taxa de
casamentos entre pessoas da mesma cor é elevada, mas a endogamia é menor entre
as pessoas de cor preta, especialmente entre os homens. Ao se observar a compo-
sição média dos domicílios, observa-se que aqueles chefiados por pretos têm uma
participação quase similar de pretos, pardos e brancos na sua composição, enquanto
os domicílios chefiados por pardos e brancos são compostos, majoritariamente, por
pessoas da mesma cor do responsável pelo domicílio.
Por fim, os indicadores de escolaridade e de inserção no mercado de trabalho
evidenciaram que houve, na última década, importante avanço na condição social
dos negros. No caso da escolaridade, isso se expressa por meio do maior acesso à
escola, principalmente no que se refere à educação básica (ensinos fundamental e
médio). Em relação ao trabalho, verificou-se melhoria no nível de ocupação, na re-
dução do desemprego e na formalização dos postos de trabalho.
Porém, em quase todos os indicadores a situação de pretos e pardos continua
inferior à dos brancos. Em relação à educação, isso se reflete em menores taxas de
escolarização nas etapas adequadas de ensino, inclusive com ampliação da distância
no que se refere ao ensino superior. No caso do trabalho, a persistência das desi-
gualdades se manifesta principalmente nos diferenciais de salários, os quais refletem
tanto efeito das desigualdades educacionais que marcam as diferentes gerações de
trabalhadores negros no estado quanto o efeito de discriminação no próprio merca-
do de trabalho, expresso no menor acesso a ocupações mais valorizadas socialmente
e/ou em diferenças de remuneração quando as qualificações e posições ocupacio-
nais são similares.

Referências
ANJOS, Gabriele dos. A questão “cor” ou “raça” nos censos nacionais. Indicadores Eco-
nômicos FEE, v. 14, n. 1, p. 103-118, Porto Alegre, 2013.
DUARTE, Alessandra. Censo 2010: população do Brasil deixa de ser predominantemente
branca. O Globo, 29 abr. 2011. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/politica/cen-
so-2010-populacao-do-brasil-deixa-de-ser-predominantemente-branca-2789597>. Acesso
em: 15 jan. 2016.
73
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1966.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Estatísti-
cas do século XX. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.
gov.br/visualizacao/livros/liv37312.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2016.
______. Censo demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
LIMA, Márcia; PRATES, Ian. Desigualdades raciais no Brasil: um desafio persistente.
In: ARRECHE, Marta (Org.). Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos
últimos cinquenta anos. Editora UNESP, São Paulo, 2015.
MAGALHÃES, Marisa V. O Paraná e as migrações – 1940 a 1991. 1996. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
MAGALHÃES, Marisa V.; CINTRA, Anael. P. de U.; ANGELIS, Thiago de. Migração
de data fixa nas mesorregiões geográficas do Paraná: 1995-2000 e 2005-2010. In: MAGA-
LHÃES, Marisa V.; LOU, Issac A. C. (Orgs.). Migrações internas nos decênios 1990 e
2000 em unidades da federação selecionadas: mudanças e continuidades. Salvador: SEI,
2014.
MORAES, Airton de; ROCHA, Rita de C. G. Historiografia e a escravidão africana no
Paraná: alguns apontamentos. História & Ensino, Londrina, v. 10, p. 127-144, 2004.
SCHWARCZ, Lilia M. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
SOARES, Sergei. A demografia da cor: a composição da população brasileira de 1890 a
2007. In: THEODORO, Mário; JACCOUD, Luciana; OSÓRIO, Rafael; SOARES,
Sergei (Orgs.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a
abolição. Brasília, DF: IPEA, 2008. p. 97-117.

74
O Paraná e a educação da
população negra1
Celso José dos Santos2
Claudinei Magno Magre Mendes3
Eduardo David Oliveira4

Introdução
O estado do Paraná foi palco da recepção de imigrantes europeus de forma
tão significativa que influenciou sensivelmente sua composição étnico-racial. Mais
que um embranquecimento biológico, com a significativa ampliação da população
branca residente, a partir da vinda dos imigrantes europeus, houve sobretudo um
embranquecimento cultural, seja pela exaltação, apoio e incentivo às tradições cul-
turais de imigrantes europeus, seja pela invisibilidade, negação e boicote aos valores
e manifestações culturais de matriz africana mantidos pela população negra.
O mesmo estado que financiou as políticas de embranquecimento, de forma
sistemática e abundante, agora, de forma homeopática, é capaz de produzir peque-
nas formas de políticas públicas para resgatar sua identidade negra escondida ao
longo do tempo. Esse breve olhar sobre a história paranaense visa reconhecer os ato-
res sociais que propiciaram essa inflexão na história, particularmente da educação
paranaense, de modo a produzir mecanismos institucionais de reafirmação, valori-
1
Adaptação de parte da Seção 2 e da Seção 3 da Dissertação “Equipes Multidisciplinares das
Escolas Estaduais da Região Noroeste do Paraná na aplicação da Lei 10.639/03: limites e poten-
cialidades”, apresentada por Celso José dos Santos ao Programa de Pós-Graduação em Ensino da
Universidade Estadual do Paraná – Campus de Paranavaí, como um dos requisitos para a obten-
ção do título de Mestre em Ensino. Área de Concentração: Formação docente interdisciplinar.
2
Mestre em Ensino, professor da rede Estadual de Educação do Paraná, membro do Conselho
Estadual do Promoção da Igualdade Racial do Paraná, representando a APP – Sindicato dos
Trabalhadores em Educação Pública do Paraná e Dirigente da CUT-Paraná.
3
Orientador da Dissertação de Mestrado.
4
Coorientador da Dissertação de Mestrado.
75
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

zação e resgate da identidade negra, ao mesmo tempo que mantém viva as tradições
culturais europeias.
Este artigo aborda aspectos históricos da presença da população negra no
estado do Paraná e de políticas voltadas para a recuperação da identidade de matriz
africana, visando reconhecer as contradições presentes nesse estado e os movimen-
tos contra-hegemônicos de resgate da identidade negra paranaense, invisibilizada
por séculos.
Para tanto inicia essa discussão com uma pequena imersão na omissão histó-
rica da educação da população negra no Brasil.

Antecedentes históricos da exclusão educacional da população negra


A história da educação no Brasil está repleta de lacunas no que se refere à edu-
cação da população negra, pois a historiografia não tem dado conta de pesquisar e
desvendar a multiplicidade dos aspectos da vida social e da riqueza cultural do povo
brasileiro, reproduzindo o tratamento desigual relegado aos negros na sociedade.
Mariléia Cruz (2005) reflete sobre a necessidade dos estudos sobre os afro-
-brasileiros na historiografia da educação brasileira:

A problemática da carência de abordagens históricas sobre as traje-


tórias educacionais dos negros no Brasil revela que não são os povos
que não têm história, mas há os povos cujas fontes históricas, ao in-
vés de serem conservadas, foram destruídas nos processos de domi-
nação. (CRUZ, 2005, p. 23).

De acordo com a autora, a conservação das fontes ao longo do tempo, por


um determinado grupo, diz mais sobre a participação desse grupo nas narrativas
históricas de um povo do que de outro cujas fontes não foram preservadas, fazendo
pensar que alguns povos sejam mais sujeitos históricos que outros e dando a impres-
são de haver povos sem história:

À margem desse processo têm sido esquecidos os temas e as fontes


históricas que poderiam nos ensinar sobre as experiências educativas,
escolares ou não, dos indígenas e dos afro-brasileiros. O estudo, por
exemplo, da conquista da alfabetização por esse grupo; dos detalhes

76
O Paraná e a educação da população negra

sobre a exclusão desses setores das instituições escolares oficiais; dos


mecanismos criados para alcançar a escolarização oficial; da educa-
ção nos quilombos; da criação de escolas alternativas; da emergência
de uma classe média negra escolarizada no Brasil; ou das vivências
escolares nas primeiras escolas oficiais que aceitaram negros são te-
mas que, além de terem sido desconsiderados nos relatos da histó-
ria oficial da educação, estão sujeitos ao desaparecimento. (CRUZ,
2005, p. 22).

Organizar as informações sobre a história da educação da população negra


no Brasil requer reunir os poucos estudos voltados especificamente para o resgate
dessas experiências e realizar leitura atenta de estudos em história da educação bra-
sileira a fim de problematizar as informações, observar os materiais iconográficos
apresentados e questionar a invisibilidade que se dá a esse segmento. Tal fato pode
indicar inexistência da participação em crescentes níveis de instrução ao longo da
história ou demonstrar que não pareceu relevante considerar os peculiares proces-
sos de acesso desse segmento aos saberes formais instituídos (CRUZ, 2005).
Sergio Buarque de Holanda, no prefácio do livro Memórias de um colono no
Brasil, já registrava a necessidade de se olhar a história sensível à voz dos “de baixo”,
ao afirmar que:

Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma clas-


se, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples
tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figuran-
tes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes
mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que ape-
nas escrevem a história. Exercício difícil e cheio de- seduções perigo-
sas onde faltam pontos de apoio seguros, levará facilmente a aceitar
seus resultados como a única verdade digna de respeito. Seria difícil,
por exemplo, imaginar-se a escravidão no Brasil descrita do ponto de
vista de suas vítimas, se estas tivessem voz articulada, e não do ponto
de vista dos escravocratas, dos governos, dos abolicionistas [...] Mais
difícil, porém, seria acreditar que para muitos essa descrição, se exis-
tisse, não passaria a valer por si, constituindo matéria prima de apo-
logias ou de invectivas. (HOLANDA, 1941, p. 34-35).

Nunca é demais salientar que a ausência, na história ensinada, de grupos in-


dígenas e de escravizados negros e seus descendentes, assim como de trabalhadores,

77
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

decorre de uma visão política e ideológica, referendada por uma concepção de his-
tória, como revela Bittencourt (2005, p 199):

Entre nós, tem prevalecido a idéia de que esses grupos populacionais


não possuem História e, nesta perspectiva, se torna difícil compreen-
der, ainda hoje, que a História deles faz parte da História do Brasil. É
possível aceitar, apenas, que eles tiveram influências, ou então deram
algumas contribuições para a vida cultural, como hábitos alimenta-
res, para a música, ou em eventos esportivos, principalmente o fute-
bol, um dos esportes identificados com a nacionalidade.

O livro História da educação do negro e outras histórias, organizado por Jeruse


Romão (2005), apresenta várias contribuições ao debate sobre a presença (ou não)
da população negra no sistema educacional, referenciadas no presente texto:

Em tempos atuais, quando se discute a implementação da Lei


10.639/03 ainda se faz necessário a busca por respostas sobre como
foi o processo de acesso do negro à escolarização. Afinal, ‘como o
negro chegou à escola’? Com objetivo de compreender os processos
de escolarização do negro, pesquisadores – negros e brancos – reu-
nidos neste livro se dedicam a analisar a trajetória institucional da
educação dos descendentes de africanos no Brasil, buscando respos-
tas para a pergunta acima. Informação necessária, inclusive, para a
compreensão da necessidade da Lei 10.639/03 e dos indicadores que
apontam uma histórica desigualdade entre as trajetórias escolares de
negros e brancos no Brasil. (ROMÃO, 2005, p. 11).

Geraldo da Silva e Márcia Araújo (2005), em artigo enfocando a escolariza-


ção dos negros em São Paulo, ressaltam haver poucas informações sobre o processo
de escolarização do segmento negro no período pós-abolição. Tal afirmação é rea-
lizada partindo da suposição que a ausência de fontes da história da educação em
relação à progressividade dos negros surgiu da incompatibilidade intrínseca entre as
fontes oficiais e a história dos oprimidos.
Não se pode negar que existe uma história da educação e da escolarização
da população afro-brasileira e que tem sido resgatada por pesquisadores de origem
negra, porém, segundo Cruz (2005), a grande maioria dos trabalhos tem se voltado
para períodos mais atuais da história, havendo carência de informações sobre a his-

78
O Paraná e a educação da população negra

tória da educação da população negra em épocas mais remotas. Diante do quadro


de carência e omissão nos conteúdos oficiais da disciplina de História da Educação,
faz-se urgente o incentivo a pesquisas que se ocupem dessa temática:

No âmbito das pós-graduações, tem havido necessidade de linhas de


pesquisa voltadas para a educação dos afro-brasileiros, com especial
destaque em história da educação. Devido à vigência de uma concep-
ção de Brasil eurocêntrica, que ainda permeia o espaço acadêmico,
tem havido dificuldades para o acesso de pesquisadores interessados
em estudos na temática Negro e Educação. Tais dificuldades têm
sido justificadas pela carência de orientadores dispostos a se envol-
ver com a temática. Esse fato legitima o mito da não-escolarização
dos negros e impede inclusive a possibilidade de multiplicação de
pesquisadores conhecedores do tema Negro e Educação dentro das
universidades. (CRUZ, 2005, p. 30-31).

Muitos aspectos e temas aguardam para serem desvelados: as experiências


educativas do movimento negro; o estudo do pensamento negro em educação no
Brasil; a legislação e a proposição de políticas educacionais para os negros; a história
da educação das mulheres, dos homens, dos jovens e das crianças negras; as peda-
gogias negras; a contribuição do negro para o pensamento educacional do Brasil;
a educação nos quilombos; as metodologias de pesquisa adotadas por negros e ne-
gras em história da educação; e a pesquisa de negros e negras acerca de educação
no Brasil (ROMÃO, 2005). É na perspectiva de enxergar o “outro”, o “negro”, o
“afrodescendente” na história da educação, que se faz esse recorte, ainda que muito
sucinto da presença da população negra na educação brasileira, para demonstrar a
sua exclusão que gerou um grave quadro de vulnerabilidade socioeducacional, como
veremos adiante, e que justifica, a nosso modo de ver, a adoção de políticas públicas
afirmativas de natureza educacional em favor dessa população.
Para uma melhor compreensão deste texto, além de referências acadêmicas,
foram utilizados os conceitos legislados definidos no Estatuto da Igualdade Racial
(Lei nº 12.288/2010) para discriminação racial ou étnico-racial, desigualdade racial,
desigualdade de gênero e raça, população negra, políticas públicas e ações afirmativas:

Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a


garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunida-
79
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

des, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o


combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se: I - discri-
minação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição
ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacio-
nal ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhe-
cimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos
humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econô-
mico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública
ou privada; II - desigualdade racial: toda situação injustificada de
diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades,
nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência
ou origem nacional ou étnica; III - desigualdade de gênero e raça:
assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância
social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais; IV - po-
pulação negra: o conjunto de pessoas que se auto declaram pretas
e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam
auto definição análoga; V - políticas públicas: as ações, iniciativas e
programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribui-
ções institucionais; VI - ações afirmativas: os programas e medidas
especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a cor-
reção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de
oportunidades. (BRASIL, 2010, p. 1, grifos nossos).

Ainda cabe destacar que os termos: “negro”, “população negra” e “afrodescen-


dente” serão utilizados neste texto como sinônimos da soma dos brasileiros que se
autodeclaram pretos e pardos nas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE) ou quando utilizados seus critérios de pertencimento étnico-racial.
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discri-
minação Racial, de 1966, em seu art. 1º, considera discriminação racial como sendo:

[...] qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em


raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por
objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício num mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos
humanos no domínio político, social, cultural ou em qualquer outro
domínio da vida pública. (ONU, 1969, p. 02).

80
O Paraná e a educação da população negra

Considerando que a utilização desses termos se faz no campo da educação, é


necessário precisar seus significados, conforme aponta Sant’Ana (2005):

Quando falamos em discriminação étnico-racial nas escolas, certa-


mente estamos falando de práticas discriminatórias, preconceituo-
sas, que envolvem um universo composto de relações raciais pessoais
entre os estudantes, professores, direção da escola, mas também o
forte racismo repassado através dos livros didáticos. Não nos esque-
cendo, ainda, do racismo institucional, refletido através de políticas
educacionais que afetam negativamente o negro. (SANT’ANA,
2005, p. 50).

O termo “etnia”, de acordo com Munanga (2010, p. 175), refere-se a “[...] um


conjunto de indivíduos que possuem em comum um ancestral, um território geo-
gráfico, uma língua, uma história, uma religião e uma cultura.” Esse conceito é mais
apropriado para designar povos indígenas ou algumas comunidades quilombolas
rurais que, mesmo com o passar dos tempos, mantiveram as características específi-
cas de um determinado grupo étnico.
Acerca da utilização do termo “étnico” na expressão étnico-racial, o Conse-
lho Nacional de Educação, no Parecer CNE/CP nº 03/2004, define que:

É importante também explicar que o emprego do termo étnico, na


expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas
devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o são tam-
bém devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que
difere em visão de mundo, valores e princípios das de origem indíge-
na, européia e asiática. (BRASIL, 2004, p. 5).

Acerca da utilização da expressão raça, o mesmo documento explica o con-


texto em que essa expressão é utilizada, para que não paire dúvidas:

É importante destacar que se entende por raça a construção social


forjada nas tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes si-
muladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito bio-
lógico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente supe-
rado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado com frequência
nas relações sociais brasileiras, para informar como determinadas
características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras,
influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar
81
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira. Contudo, o


termo foi ressignificado pelo Movimento Negro que, em várias si-
tuações, o utiliza com um sentido político de valorização do legado
deixado pelos africanos. (BRASIL, 2004, p. 5).

Desse modo, não se trata de conferir ao termo “raça” sua conotação biológi-
ca, mas sociológica, uma vez que não há como se apagar as origens e consequências
do racismo, pelo simples fato de que do ponto de vista biológico somos todos homo
sapiens. A raça foi utilizada como instrumento de dominação e de segregação. O
termo “raça”, ressignificado, passa a ser utilizado como instrumento de identidade
social e de luta para superação dos efeitos do racismo criminoso.

Paraná: um Brasil diferente


O território do Paraná, desde o Tratado de Tordesilhas firmado entre Portu-
gal e Espanha, em 07 de julho de 1494, é palco de disputa. Primeiro, pelas diferentes
interpretações de onde se localiza o limite da linha imaginária que atingiria o terri-
tório, hoje brasileiro. Para a Espanha, tal linha imaginária atingiria o mar na altura
de Iguape/SP. Com isso, o território paranaense pertenceria à Espanha. Do lado
Português, essa linha imaginária atingiria o mar em Laguna/SC, de tal modo que
esse território pertenceria à Portugal, como de fato acabou ocorrendo, conforme
salienta Ferreira (1996).
As primeiras notícias do que seria o litoral paranaense datam de 1549 através
do relato do viajante alemão Hans Staden, que viajava num navio espanhol e teria
aportado nessas praias em decorrência de uma tempestade. Em 1558, o litoral para-
naense é assolado pelas primeiras bandeiras escravagistas e em 1614 há a concessão
da primeira sesmaria correspondente ao istmo de Superagui. Em 1630, surge o arraial
de Paranaguá e em 1693 Curitiba é elevada à categoria de Vila (FERREIRA, 1996).
Entretanto, segundo o mesmo autor, os fatos históricos que nos interessam
neste trabalho são os que se referem à constituição da população paranaense. No
seu nascedouro, em 1853, como Província do Paraná, sua população era de 62.258
habitantes (31.219 homens e 31.039 mulheres), a população de negros escraviza-
dos era próxima de 9.500 pessoas, aproximadamente 15% da população paranaense.

82
O Paraná e a educação da população negra

Curitiba se tornou a capital da Província. Nesse ano, a população de Paranaguá era


de 6.533 habitantes, sendo 3.134 homens e 3.339 mulheres. Do total da população,
4.150 eram brancos, 1.109 mulatos e pardos e 1.274 negros escravos, enquanto que
a população de Curitiba era de 5.891 habitantes, 2.940 homens e 2.879 mulheres.
Dessa população, 4.102 eram brancos, 955 entre pardos e mulatos e 762 pretos, dos
quais 473 escravos, representando aproximadamente 8% da população curitibana.
Em 1823, iniciou-se a vinda dos primeiros imigrantes para o Paraná. Em
1850, esse número não atingia 500 pessoas. Mas, de 1853, quando o Paraná se tor-
nou Província, até 1886, dois anos antes da abolição, o número de imigrantes atin-
giu 20 mil pessoas. De acordo com Romário Martins, de 1829 até 1929, o número
de imigrantes que se fixaram no Paraná ficou perto de 130 mil (FERREIRA, 1996).
No recenseamento realizado no Império do Brazil em 1872, a situação do
Paraná, como se verifica na Tabela 1, apresenta dados extremamente interessantes
em relação à presença de escravizados e de imigrantes, mas particularmente em rela-
ção à situação de instrução da população paranaense.

Tabela 1 – O Paraná no Recenseamento do Império do


Brazil, por raça, instrução e nacionalidade – 1872.

Raças Instrução Nacionalidade


Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher
Provín-
Sabe ler e escrever

Sabe ler e escrever

cia do
Estrangeira

Estrangeira
Analfabeto

Analfabeto

Brasileira

Brasileira
Caboclo

Caboclo
Branco

Branco

Paraná
Pardo

Pardo
Preto

Preto

Livre 35.936 15.358 3.292 4.718 33.762 15.278 3.449 4.369 19.014 40.290 12.802 44.056 57.224 2.080 56.049 809

Escravo 2.010 3.496 2.099 2.955 6 5.500 2 5.052 5.029 477 4793 261

Total 35.936 17.368 6.788 4.718 33.762 17.377 6.404 4.369 19.020 45.790 12.804 62.253 2.557 60.842 1.070

Fonte: Recenseamento do Império do Brazil em 1872, disponível na Biblioteca do IBGE. Dados


reorganizados pelo autor.

Do total de habitantes, 126.722, nessa época, apenas 3.627 eram estrangei-


ros, o que correspondia a 2,9% da população paranaense. Nesse mesmo período,
a população de escravizados era de 10.560 habitantes, correspondendo a 8,3% da

83
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

população. A média nacional de escravizados era de 15,31%. Em relação ao grau de


instrução da população formada por 64.810 homens e 61.912 mulheres, temos que
o total da população alfabetizada (sabia ler e escrever) representava apenas 31.824
habitantes, 25,1% da população paranaense.
Nesse mesmo período, a média nacional era de 15,75%. Os escravizados que
sabiam ler e escrever, em número de 8, sequer poderiam ser representados estatisti-
camente. Os dados disponíveis nesse levantamento não permitem estratificar o grau
de instrução por raça, para saber a representação de pretos e pardos, em relação aos
brancos que sabiam ler e escrever.
Esse processo de formação do estado do Paraná (séculos XVIII e XIX) é
profundamente marcado pelas teorias racistas que ensejaram as teorias de bran-
queamento da população brasileira, tendo a imigração europeia como um de seus
mais poderosos instrumentos. Pelos dados apresentados, é possível identificar a
acentuada expansão da imigração europeia no estado. Foi diante desse processo
que, no período da Primeira República, foi desenvolvida a ideia do “paranismo”,
que desempenhou um papel fundamental na construção de uma identidade para o
estado, não apenas enaltecendo a imigração europeia como fator preponderante de
seu desenvolvimento, mas negando a presença e participação da população negra.
Analisando o movimento paranista, Batistella (2012) conclui que o ideá-
rio desses intelectuais objetivava construir uma autoimagem do Paraná como um
Brasil branco e diferente, próximo do ideal europeu de civilização. Essa afirmação
se ancora no pensamento de Wilson Martins (1989), que não apenas minimizou a
presença da população negra e indígena no Paraná, mas verdadeiramente as excluiu,
juntamente com os portugueses, para justificar sua tese de um Paraná Europeu:

Assim é o Paraná. Território que, do ponto de vista sociológico,


acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de uma civilização
original construída com pedaços de todas as outras. Sem escravi-
dão, sem negro, sem português e sem índio, dir-se-ia que a sua de-
finição não é brasileira. Inimigo dos gestos espetaculares e das ex-
pansões temperamentais, despojado de adornos, sua história é a de
uma construção modesta e sólida e tão profundamente brasileira
que pôde, sem alardes, impor o predomínio de uma idéia nacional
a tantas culturas antagônicas. E que pôde, sobretudo, numa expe-

84
O Paraná e a educação da população negra

riência magnífica, harmonizá-las entre si, num exemplo de fra-


ternidade humana a que não ascendeu a própria Europa, de onde
elas provieram. Assim é o Paraná. (MARTINS, 1989, p. 446).

A análise desse movimento por Souza (2003) destacou que, no processo de


embranquecimento e de invisibilização da população negra na história do Paraná,
foram adotadas:

[...] políticas públicas específicas construídas pelo Estado do Paraná


para a população branca imigrante em contraposição a inexistência
de qualquer política pública específica para a população negra após
a abolição. No mesmo sentido em que, conforme já verificado, existe
um processo de invisibilização da existência da população negra no
Paraná na tentativa de consolidar a imagem de um Estado Europeu e
sem negros na sua História. (SOUZA, 2003, p. 36).

Reafirmando essa ideia, Onasayo (2008) destaca a visão de Curitiba como


ideário desse estado com uma capital sem negros.

Curitiba é consagrada pelos meios de comunicação como sendo de


Primeiro Mundo e Capital Européia, o que traduz também o ideário
do Estado, que é apontado por alguns historiadores como ‘Um Esta-
do mais Europeu’, ‘Um Brasil Diferente’, ‘O Estado das etnias’, onde
todos conviveriam na mais perfeita harmonia racial. Esse ideário é re-
produzido pelo poder político local e reforçada nas escolas públicas
e nos meios de comunicação, oficiais ou não. A ênfase da construção
desse imaginário no Estado foi a década de 90, identificado como
principal momento de construção e consolidação da idéia de que a
cidade tratar-se-ia de ‘Primeiro Mundo’, uma ‘Capital Européia’ sem
a presença negra na sua formação histórica, cultural e atual. (ONA-
SAYO, 2008, p. 90).

Cabe destacar que esse movimento é fruto do passado, tendo em vista que
novos historiadores resgatam a presença e a participação da população negra na
construção social, política, econômica e cultural do estado do Paraná. Todavia, é
inegável que o “paranismo” deixou marcas profundas na história, na cultura e nas
políticas públicas de incentivo ou de exclusão da mobilidade de grupos étnico-ra-
ciais, de acordo com os setores dominantes, nos quais não se encontra a popula-

85
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

ção negra. É instigante perceber as contradições existentes num estado em que o


racismo institucional se esforçou para negar a presença da população negra e que
tenha, em tão curto espaço de tempo, produzido políticas públicas para essa mesma
população.
São exemplos de políticas de ação afirmativa desenvolvidas institucional-
mente por parte do Poder Executivo Estadual: a Lei de Cotas no Serviço Público
Estadual; a criação do Grupo Clóvis Moura para a identificação de Comunidades
Remanescentes de Quilombos (CRQs) e “Terras de Pretos” ou de Comunidades
Negras Tradicionais (CNTs); a criação do Grupo de Trabalho entre APP-Sindi-
cato e SEED para a implementação da Lei nº 10.639/2003, que posteriormente se
constituiu no Núcleo de Educação das Relações Étnico-Raciais e Afrodescendência
(NEREA), hoje CERD; a institucionalização do FPEDER/PR como instância de
monitoramento e de formulação de políticas públicas em favor da implantação da
Lei nº 10.639/2003 e das DCNERER, junto à SEED; e a criação do Conselho
Estadual de Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná
(CPICT/PR), e do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (CON-
SEPIR), além das equipes multidisciplinares.
Ao mesmo tempo que se implementam medidas afirmativas por parte do
poder público, também há um movimento de resistência por parte da elite para-
naense, seja na Assembleia Legislativa do Paraná, que rejeitou por mais de uma vez
a criação do Estatuto da Igualdade Racial em âmbito estadual e a instituição do
feriado estadual em homenagem Zumbi e ao Dia da Consciência Negra, no dia 20
de novembro, seja no âmbito empresarial que recorreu à Justiça e obteve êxito, ao
conseguir suspender os feriados municipais instituídos em Curitiba e Londrina, res-
tando apenas o feriado no município de Guarapuava, instituído por lei municipal
no ano de 20095.

5
Em 2015, apenas uma cidade do Paraná teve feriado no Dia da Consciência Negra, celebrado no
dia 20 de novembro. O município de Guarapuava, na região dos Campos Gerais, tem esse feriado
desde o ano de 2009. No mesmo ano, a cidade de Londrina, na região Norte, também decretou
feriado municipal. Contudo, a Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) conseguiu
uma liminar na Justiça para evitar as paralisações no comércio e repartições públicas. Curitiba
também chegou a aprovar o feriado em 2013, mas um pedido da Associação Comercial do Para-
ná (ACP) e do Sindicato da Construção Civil foi acatado pela Justiça, que suspendeu o feriado.
86
O Paraná e a educação da população negra

Parece, no entanto, que essas políticas públicas são de Governo e não de Es-
tado, uma vez que é perceptível a contradição no âmbito do Poder Executivo para-
naense, de um lado criando conselhos e espaços de monitoramento dessas políticas
públicas, de outro com redução de orçamento para a execução de ações que já fazem
história no Paraná, como, por exemplo, os encontros anuais do FPEDER/PR e os
encontros de educadores e educadoras negros e negras do Paraná, que só se efeti-
varam por uma atuação do movimento sindical (APP-Sindicato e CUT/PR) e do
movimento negro (participantes do FPEDER/PR). É nesse contexto de profundas
contradições, perpassando diferentes governos de Estado6 e intensas ações do mo-
vimento negro e dos(as) trabalhadores(as) em educação, que emergiram as equipes
multidisciplinares como um instrumento de política pública para implementação da
Lei nº 10.639/203 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.
Cabe destacar que a atuação da APP-Sindicato e do movimento negro para-
naense se confunde com o desenvolvimento, na Rede Pública Estadual de Educação
do Paraná, do debate acerca da história e cultura africana nos currículos escolares e
com as políticas para uma educação das relações étnico-raciais.
O acúmulo de atuação e de debate sindical em favor da educação das relações
étnico-raciais fez com que uma cobrança da APP-Sindicato, logo após a publicação
da Lei nº 10.639/2003, tenha resultado na instalação de um Grupo de Trabalho
(GT) paritário entre a SEED e a APP-Sindicato para formular propostas que fa-
vorecessem a inserção da temática nos currículos escolares e o acompanhamento da
implementação da referida lei nas escolas da Rede Pública Estadual. Esse GT serviu
de base para a criação posteriormente, no âmbito da SEED, do Núcleo de Educação
das Relações Étnico-Raciais e Afrodescendência (NEREA), hoje transformado em
Coordenação da Educação das Relações da Diversidade Étnico-Racial (CERDE).

6
Merece destaque que grande parte das políticas destacadas como inovadoras ocorreram durante
os governos de Roberto Requião, particularmente no segundo e terceiro mandatos (01/01/2003
a 04/09/2006 e 01/01/2007 a 01/04/2010). Os mandatos do atual governador (01/01/2011
a 31/12/2015 e 01/01/2015 até a presente data) é marcado pela instituição de conselhos de
políticas públicas, porém há significativa redução de investimentos para continuidade de ações
de promoção da igualdade racial em favor da população negra paranaense, particularmente no
campo educacional.
87
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

O relatório de Gestão 2003-2010: Ações desenvolvidas sobre a implemen-


tação da política de educação das relações étnico-raciais no Paraná (art. 26-A da
LDBEN) elaborado pelo NEREA, encartado no Procedimento Administrativo
MPPR-0046.14.000922-9, registra o histórico e faz uma síntese da implementação
da política de educação das relações étnico-raciais no Paraná. O documento assim
descreve esse momento:

Desde o ano de 2003, quando foi sancionada a Lei 10.639, a Secre-


taria de Estado da Educação (SEED) iniciou um processo de diálogo
com o movimento social negro e sindical no sentido de consolidar
um espaço participativo de proposição e acompanhamento da Po-
lítica de Educação das Reações Étnico-Raciais (ERER) no Paraná.
É necessário ressaltar que os referidos movimentos já tinham uma
forte atuação na área da educação, principalmente através do Fórum
de Entidades Negras e do Coletivo de raça e Etnia da APP-Sindica-
to dos Trabalhadores em Educação do Paraná. As primeiras ações
desenvolvidas, ainda em 2003, nascem do diálogo com essas organi-
zações. Nesse contexto deriva a proposição de realização dos Encon-
tros de Educadores/as Negros/as do Paraná que, no ano de 2010,
realizou sua sétima edição. A princípio com uma demanda focada
em Formação Continuada de Professores/as, esse diálogo se expan-
de para preocupação da institucionalização da política em questão e
da criação das condições estruturais para que ela se viabilize. Nesse
sentido, em 2004, foi criado o Grupo de Trabalho de composição pa-
ritária entre APP-Sindicato e SEED com vistas a implantar a política
de Educação das Relações Étnico-Raciais no Estado e, em 2005 com
a criação do Fórum Estadual Permanente de Educação e Diversidade
Étnico-Racial do Paraná (FPEDER-PR), esse espaço foi gradual-
mente sendo consolidado com espaço de articulação e proposição da
política de ERER no estado. (PARANÁ, 2014, p. 61).

Uma das primeiras ações significativas de formação continuada desenvolvi-


das pela SEED após a constituição do GT foi a realização, em setembro de 2003,
do Seminário de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (PARANÁ, 2014),
seguida da publicação do I Caderno Temático de História e Cultura Afro-brasileira
e Africana, em 2005, e dos Grupos de Estudos de História e Cultura Afro-brasileira
e Africana, em 2006. De acordo com o relatório do NEREA sobre a atuação desse
GT: “Esse GT pautou a realização de grupo de estudos, de eventos de formação
88
O Paraná e a educação da população negra

continuada, da elaboração e acompanhamento de propostas que favoreçam a inser-


ção da temática nos currículos escolares, e a elaboração e distribuição de materiais
paradidáticos.” (PARANÁ, 2014, p. 63).
Com a criação do FPEDER/PR, a atuação de controle social, de formulação
e proposição acerca da implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africa-
na e Afro-Brasileira, passou a ter um importante instrumento de acompanhamento.
A atuação do FPEDER/PR é referência no país, sendo o único com atuação ininter-
rupta, com majoritária participação da sociedade civil e que já realizou 11 encontros
estaduais para formular propostas e monitorar o cumprimento da Lei 10.639/2003.
Da sua atuação resultou a Deliberação do Conselho Estadual de Educação que insti-
tuiu a obrigatoriedade das equipes multidisciplinares nas escolas públicas e privadas
de educação básica do Paraná. Um importante instrumento de política pública que,
com seus limites e potencialidades, tem possibilitado a implementação da Lei nº
10.638/2003 no Paraná.
Recentemente, com a criação do Conselho Estadual de Promoção da Igual-
dade Racial, tem-se aprimorado a ação institucional do estado do Paraná no mo-
nitoramento do racismo institucional. Todavia, ações mais contundentes que se
materializem nos orçamentos públicos e nas estruturas governamentais ainda estão
longe de alcançar o espaço merecido e necessário para essa gigantesca luta em favor
da promoção da igualdade racial e do combate ao racismo.

Referências
BATISTELLA, Alessandro. O paranismo e a invenção da identidade paranaense. História
em Reflexão, Dourados, v. 6, n. 11, 2012.
BITTENCOURT, Circe. Identidade nacional e ensino de história do Brasil. In: KARNAL,
Leandro (Org.). História na sala e aula: conceitos práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005.
BRASIL. Recenseamento do Brazil Império em 1872. (Obra Rara). Rio de Janeiro, Typ.
Leuzinger/Tip. Commercial, [1874?], Biblioteca do IBGE, Livro 25477_v.1. Disponível
em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v1_br.pdf>. Acesso em:
15 out. 2015.
______. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP nº 03, de 10 de março de
2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial da União,

89
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Brasília, DF, 19 maio 2004. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cne-


cp_003.pdf>. Acesso em: 15 maio 2013.
______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial;
altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24
de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 21 jul. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em: 15 out. 2015.
CRUZ, Mariléia dos Santos. Uma abordagem sobre a história da educação dos negros. In:
ROMÃO, Jeruse (Org.). História da educação dos negros e outras histórias. Brasília, DF:
MEC; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
FERREIRA, João Carlos Vicente. O Paraná e seus municípios. Maringá: Memória Brasi-
leira, 1996.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Prefácio do tradutor. In: DAVATZ, Thomas. Memórias de
um colono no Brasil (1850). São Paulo: Livraria Martins, 1941. Disponível em: <http://
pt.scribd.com/doc/86794759/Thomas-Davatz-Memorias-de-Um-Colono-No-Bra-
sil-1850>. Acesso em: 30 jan. 2014.
MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente: ensaio sobre fenômenos de aculturação no
Paraná. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.
ONASAYO, Claudemir Figueiredo Pessoa. Fatores obstacularizadores na implementa-
ção da lei 10.639/03 de história e cultura afrobrasileira e africana na perspectiva dos/
as professores/as das escolas públicas estaduais do município de almirante Tamandaré-
-PR. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008. Disponível
em: <http://www.ppge.ufpr.br/teses/teses/M08_onasayo.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2015.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção internacional
sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial. Genebra: ONU, 1969.
PARANÁ. Ministério Público do Paraná. Procedimento Administrativo MPPR-
0046.14.000922-9. Acompanhamento da implementação da lei 10.639/03 nas Redes de
Educação do Estado do Paraná. Curitiba: CAOPJDH/NUPIER, 2014.
ROMÃO, Jeruse. História da educação do negro e outras histórias. Brasília, DF: MEC;
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
SANT’ANA, Antônio Olímpio de. História e conceitos básicos sobre o racismo e seus.
In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília, DF:
MEC; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
______. Teoria social e relações raciais no Brasil contemporâneo. Cadernos Penesb, Nite-
rói, n. 12, p. 169-203, 2010. Disponível em: <http://www.uff.br/penesb/images/publica-
coes/LIVRO%20PENESB%2012.pdf>. Acesso em: 18 out. 2015.
SILVA, Geraldo da; ARAÚJO, Márcia. Da interdição escolar às ações educacionais de
sucesso: escolas dos movimentos negros e escolas profissionais, técnicas e tecnológicas. In:
ROMÃO, Jeruse (Org.). História da educação dos negros e outras histórias. Brasília,
DF: MEC; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
SOUZA, Marcilene Garcia de. Juventude negra e racismo: o movimento hip-hop em
Curitiba e a apreensão da imagem de “capital européia” em uma “harmonia racial”. 2003.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003.
90
A educação da população negra: um
debate a partir das experiências de
escolarização de escravos e libertos no
Paraná Provincial
Noemi Santos da Silva1

Introdução
Pensar historicamente sobre o acesso da população negra ao universo escolar
pode trazer elementos interessantes para debates atuais que versam o tema das desi-
gualdades que caracterizaram e ainda caracterizam a conquista da cidadania plena
por parte dos grupos marcados pela exclusão. No bojo desses debates, emerge o as-
sunto das medidas de combate às desigualdades e ao racismo, no interior das quais
se situam as políticas de ação afirmativa, que visam equilibrar a inserção de brancos
e negros em repartições públicas como as instituições de ensino. O assunto é ainda
frutífero quando se toma o Paraná como ponto de partida, uma região marcada pela
memória hegemônica de supervalorização da imigração europeia e de negação da
prática da escravidão, consonante com as políticas de branqueamento em alta na
passagem do século XIX ao XX2.
Este artigo busca caminhar em sentido contrário a essas proposições do cam-
po da memória, ao salientar a importância da escravidão na formação e consolida-
ção do Paraná, através de uma análise que privilegie os entremeios trilhados por
escravizados e seus descendentes para obterem a educação formal, as desigualdades

1
É doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Cecult - Unicamp).
Seu mestrado, desenvolvido na Universidade Federal do Paraná, se dedicou às propostas e expe-
riências de educação de escravos, libertos e ingênuos no Paraná oitocentista. -mail: noemihist@
gmail.com.
2
Refiro-me em especial às declarações de Wilson Martins (1989).
91
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

que caracterizaram esse processo, e os significados atribuídos por esses sujeitos para
a educação em escolas públicas. Atribuíamos à ideia de educação seu sentido escolar,
já que educação e instrução estavam agregadas no conceito de “instrução elementar”
durante o século XIX. Como nos indica Faria Filho (2009), nesse período o espaço
escolar foi interpretado não apenas como instrumento de transmissão de educação
para as novas e velhas gerações, mas também como meio de regeneração das cama-
das mais pobres. Cabia à escola comportar os saberes e valores propagados com o
fim de integração, mesmo que desigual, dos mais pobres à vida social.
No âmbito legal, escravizados estavam alheios do direito às escolas públicas.
A Constituição do Império não previa o contato deles com o ensino público, direi-
to reservado exclusivamente aos cidadãos no seu formato básico, o de “instrução
primária”. Escravos, não sendo considerados cidadãos perante a lei, não estavam au-
torizados à formação escolar básica na escola pública. Essa proibição foi reforçada
em decretos posteriores nas províncias, inclusive no Paraná, onde em 1857 o art. 39
do Regulamento da Instrução Pública assim sintetizava as limitações às matrículas:

Art. 39. As matrículas são gratuitas e ficam excluídos delas:


§. 1º. Os meninos que sofrerem de moléstias contagiosas e mentais.
§. 2º. Os não vacinados.
§. 3º. Os escravos.
§. 4º. Os menores de 5 anos e maiores de 15.
§. 5º. Os que não houverem sido expulsos competentemente. (MI-
GUEL; MARTIN, 2004, p. 57).3

Essas restrições tinham semelhança com decretos de mesma função publi-


cados na Corte dedicados a moldar a organização da instrução pública. Havia um
evidente o esforço estatal no sentido de restringir o acesso de escravizados às práticas
escolares, mesmo assim, nos é cabível indagar sobre qual o peso efetivo daquelas
restrições legislativas nas práticas sociais de professores e alunos no Paraná oito-
centista, e se as mesmas restrições abrangiam os libertos, e também os chamados
ingênuos4, já que, pela lei, estes desfrutariam dos direitos relativos à escolarização
garantidos para os cidadãos do Império.

3
Regulamento da Instrução Pública da província do Paraná.
4
Filhos livres de mulheres escravas nascidos após a Lei do Ventre Livre de 1871.
92
A educação da população negra

A discussão aqui proposta se ancora em um conjunto de aspectos trabalha-


dos em minha pesquisa de mestrado através da documentação levantada para aquele
fim, composta, sobretudo, de relatórios provinciais, legislação, imprensa jornalística
e, principalmente, correspondências de governo que contemplam a documentação
escolar da província paranaense. O texto será estruturado em dois momentos: pri-
meiro, busco resgatar de forma breve parte das tensões que caracterizaram as deci-
sões políticas da abolição no contexto nacional e paranaense, para compreender o
papel da instrução como parte integrante dos projetos que visavam pensar o futuro
da população negra, que nesse período era ainda marcada pela experiência da escra-
vidão. Em seguida, dedico-me a apresentar e discutir as múltiplas formas de inserção
desse segmento social no ensino escolar da província do Paraná, salientando aspec-
tos que apontam para as experiências de ascensão social através da escola.

Abolição e instrução: os negros e a construção da sociedade livre


Além de vivos debates voltados a refletir acerca da educação pública, o Bra-
sil vivenciou nas últimas décadas do século XIX intensas discussões relacionadas à
questão da mão de obra. A crescente necessidade do fim da escravidão despertava
nos políticos do Império brasileiro e na elite proprietária temores quanto à possível
falta de trabalhadores para tocarem as lavouras, receios de uma crise econômica de-
rivada da libertação dos escravos e especulações quanto aos efeitos de uma possível
desordem social derivada da abolição. Ao mesmo tempo que se sustentava o ideal de
liberdade como sinônimo de avanço e civilização, pensava-se em estratégias de ame-
nização do impacto causado pela erradicação do sistema escravista, tão enraizado
nas práticas sociais de então.
O almejado ideal de liberdade encontrava-se, por assim dizer, sobrecarrega-
do de defeitos, pois se pensava que os cativos, ao desfrutarem deste, levariam a har-
monia ao caos social, uma vez que não teriam sido propriamente preparados para
gozarem da plena autonomia (MENDONÇA, 2008). Para os homens que gover-
navam o Brasil de então, a abolição deveria ser encaminhada gradualmente, para
evitar que trouxesse à tona toda espécie de vícios associados aos libertos negros, vis-
tos como incapazes de incorporarem sentimentos civilizados. Por isso, propostas de
93
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

ações disciplinadoras para essa camada foram pensadas no sentido de neutralizar o


combate à ociosidade e criminalidade, e ainda assegurar a permanência dos libertos
nas suas atividades de trabalho.
É diante desse quadro que a educação foi interpretada como se tivesse o po-
tencial de encaminhar essas questões para os caminhos do progresso e da civilização.
Foi justamente no período de término da escravidão que o ideal de propagação da
educação popular teve sua difusão fortalecida. Educar os escravos e libertos ajudaria
a prepará-los para a liberdade. Desde os escritos políticos mais clássicos do aboli-
cionismo brasileiro, como as obras de Perdigão Malheiro (A escravidão no Brasil, de
1866) e de Joaquim Nabuco (O abolicionismo, de 1883), a questão da necessidade
de instrução dos negros incrementava o projeto de emancipação gradual de cativos,
dando o suporte necessário de garantia da ordem social. Longe de se configurarem
como ideias radicais de inovação, suas projeções, apesar de abolicionistas, reforça-
vam os estereótipos negativos referentes aos negros, tão difundidos pela elite letrada
e governante. Declarava Nabuco em seu clássico:

Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder


sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ain-
da preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta
estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo,
superstição e ignorância [...] lhe é indispensável adaptar à liberdade
cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apro-
priou (NABUCO, 2010, p. 38).

Nota-se que, para Joaquim Nabuco, a educação teria o potencial de regene-


rar os que foram escravos, já que em seu ver haveria uma “maldição da cor” e males
do cativeiro a serem “corrigidos”. Expectativas semelhantes, referentes à democrati-
zação do acesso à instrução como item direcionador dos usos da liberdade para os
egressos do cativeiro, foram vistas no Paraná do século XIX. Câmara Leal, chefe
de polícia e juiz de Direito de Curitiba, já em meados da década de 1860 emitiu
opiniões bastante detratoras sobre os escravos alertando sobre os males de uma abo-
lição repentina:

[Seria] indesculpável imprevidência política colocar de um jato no


país milhares de homens exaltados pela embriaguez, real ou prove-
94
A educação da população negra

niente da imaginação em delírio, pela aquisição do sempre esperado


e jamais esquecido dom da liberdade, - sem o maior corretivo, sem
dar-lhes ocupação adaptada, sem encaminhá-los ao amor da ordem,
ao respeito às instituições, ao reconhecimento dos direitos de todos
[...] (LEAL, 1866 apud PENA, 1999, p. 105).

Encarada como mecanismo “corretor” dos negros, supostamente “degrada-


dos” pela experiência no cativeiro, a instrução, na visão daqueles homens envolvidos
com o pensamento político, elites e governantes, teria o potencial de transformar
“vícios” em moral, bom caráter e amor ao trabalho. Um dos principais ingredien-
tes da abolição gradual era, portanto, a educação do liberto. Obviamente que esses
pensamentos eram apenas expectativas defendidas por um grupo minoritário de
agentes sociais envolvidos com o governo. O olhar às experiências sociais revela as
limitações e obstáculos encontrados no oferecimento de oportunidades de educa-
ção escolar para escravos, libertos e negros livres.

Do plano pensado à prática social: experiências de escolarização de


escravos, libertos e ingênuos no Paraná
Essas tantas projeções traçadas para o futuro da população negra durante a
abolição da escravidão nos levam a pensar na aplicabilidade daqueles dispositivos
legais e projetos políticos, tendo em vista que a inclusão educacional desse grupo
social era vista como necessária.
A província do Paraná em fins do século XIX não gozava de nem meio sécu-
lo de emancipação política. Separada de São Paulo em 1853, encontrava-se no auge
dos esforços administrativos para promover a organização básica de muitos setores
como segurança pública, finanças e imprescindivelmente, instrução pública. Nessa
área da administração, os governantes, quase na totalidade dos casos, demonstravam
erudição e sintonia com os fundamentos de estruturação da educação pública em
outros lugares do país ou mesmo fora dele, ancorando-se em tais exemplos para
formularem discursos e projetos voltados à realização dos desejos de progresso e
civilização pela instrução. A questão da educação popular mais do que nunca se
fazia necessária, diante da inevitabilidade da libertação dos escravos e urgência das

95
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

demandas pela formação dos trabalhadores diante do quadro de modernização das


relações produtivas de então, no interior das quais a indústria do mate tinha impor-
tância crucial.
Mesmo com a presença escrava numericamente menos expressiva que em
regiões de economias de exportação, a circulação de escravos nas áreas rurais e ur-
banas do Paraná denunciava a dependência das relações sociais e econômicas com
relação à instituição escravista (NETTO, 2011), desde a fundação da província. O
impacto das decisões pela emancipação dos escravos, portanto, certamente fazia-se
sentir pelas várias regiões do Paraná e já em 1871 encontramos o primeiro foco de
escolarização de escravos via institucional e pública.
A iniciativa surgiu na cidade de Paranaguá, região litorânea e portuária da
província, partida de um ativo professor do ensino público: José Cleto Silva, conhe-
cido popularmente como “professor Cleto”. Ele, possivelmente ciente da proibição
oficial à matrícula e frequência de escravos no ensino público, escreveu ao inspetor
geral da Instrução Pública pedindo permissão para abrir uma escola noturna desti-
nada a escravos no mesmo local onde lecionava no período diurno, em correspon-
dência assim elaborada:

Desejando eu, servindo-me do que disponho com uma tão fraca


inteligência, suprido apenas pela boa vontade. Fazer com que seja a
instrucção primária pela partilha de todos nesta cidade, e contando
nesse empenho com o valioso auxílio de V.Sª, como digno chefe de
um dos mais importantes ramos do serviço público, tenho a distinta
honra de pedir a V. Sª que se digne de conceder-me licença para abrir
eu uma escola noturna, na mesma casa em que funciona a diurna sob
minha direção, na qual possão receber os rudimentos da instrucção
aquelles de nossos irmãos que infelizmente trazem na fronte o avil-
lante selo da escravidão e cujos senhores nisso consentirão5.

Cleto chama atenção para o caráter filantrópico para justificar seu empreen-
dimento – algo dentro dos limites da normalidade para um homem que pretendia
seguir carreira política, porém, evidencia que sua ação não foi motivada pelos se-
nhores da região, mas sim que estes apenas “consentiriam” na iniciativa que estava
prestes a realizar.
5
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná; Livro: BR APPR nº 385, p. 123.
96
A educação da população negra

O pedido de permissão encaminhado por Cleto não explicita qualquer em-


basamento legislativo que fundamentasse sua intenção de escolarizar escravos, no
entanto, quando analisamos a fundo os dispositivos que definiam o acesso à ins-
trução no império, percebemos “brechas” nessa espécie de legislação, por meio das
quais se construíam pequenas possibilidades de acesso dos escravos à instrução.
Exemplo disso está no regulamento educacional da província, comentado anterior-
mente, destinado a definir o acesso ao ensino básico, em cujas disposições os escra-
vos não se encontravam permitidos de ingressar nas escolas públicas, assim como os
portadores de doenças infectocontagiosas, não vacinados e maiores de 16 anos. O
mesmo texto era baseado em um regulamento da Corte, que em seu decorrer tra-
zia ambiguidades ao deixar vaga as condições para matrícula de adultos no ensino
público. Era previsto que os professores de escolas secundaristas se dedicassem à
instrução básica de adultos em horários que lhes fossem pertinentes, não constando
nenhuma restrição para matrícula de seu alunado nessa modalidade de aprendizado
(BRASIL, 1854)6.
Não foi possível identificar a resposta do inspetor geral à petição de Cleto,
tampouco houve anexo da lista dos alunos que provavelmente se matriculariam. Po-
rém, houve menções à “escola noturna do professor Cleto” na documentação edu-
cacional nos anos seguintes, fator indicativo do funcionamento da escola, tal como
pretendia seu idealizador.
Investigando a documentação escolar do período, pudemos chegar à con-
clusão de que o professor Cleto se encontrava envolvido nos debates políticos rea-
lizados no presente contexto, especialmente aqueles tangíveis ao abolicionismo.
Relembrado posteriormente em discursos como personagem heroico da cidade de
Paranaguá, muitos jornais destacaram seu empenho na luta pela causa abolicionista
e seu ingresso na vida pública, o que é significativo para compreendermos o diferen-
cial inovador de sua iniciativa, num período no qual as medidas públicas de emanci-
pação se encontravam em pleno desenvolvimento. As ações de José Cleto, por isso,
podem não ser concebidas como isoladas de um campo de possibilidades propício
para a efetivação de medidas voltadas à instrução de cativos e egressos da escravidão.

6
Art. 71.
97
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Isso explica, em grande medida, esforços semelhantes de outros professores


de localidades paranaenses na abertura de escolas onde escravos pudessem receber
instrução primária. O ano de 1872 marcou a promulgação da lei de incentivo à cria-
ção de escolas noturnas para adultos no Paraná. Não demoraram em surgir, em de-
corrência, as aulas noturnas previstas pela medida legal. Em Curitiba, inaugurou-se
uma delas, com muitas características semelhantes à escola noturna do professor
Cleto. O espaço escolar tinha a regência de Damasio Correia Bittencourt e, ao con-
trário de Cleto, esse professor não pediu permissão à autoridade competente para
abrir uma escola para escravos, apenas comunicou, enviando, inclusive, dados rela-
cionados ao espaço que abriu, enfatizando promover a instrução: “da classe menos
protegida pela fortuna [...] que com consentimento de seus senhores desejam apren-
der a ler, escrever e contar”7. Na correspondência que enviou à autoridade provin-
cial, Bittencourt mencionava destinar o ensino para “escravos e operários”, os quais
já somavam, no ano de abertura, a quantia de 23 alunos. Estes dividiam-se entre os
mais variados ofícios: pedreiros, carpinteiros, sapateiros e alfaiates, não havendo en-
tre eles nenhum padrão de faixa etária, pois na mesma aula noturna de Bittencourt
frequentavam alunos dos 10 aos 60 anos de idade. Logo, a escola noturna de Bitten-
court está implicitamente associada na correspondência como um espaço destinado
a trabalhadores, portanto, condizente com o combate à ociosidade tão propagado
em todo o Império.
Um aspecto para o qual é interessante atentar é a afirmação de Bittencourt
de direcionar o ensino a “escravos que desejam aprender a ler, escreve e contar...”.
Mais uma vez, assim como no caso de José Cleto, este não foi um empreendimento
encabeçado por senhores de escravos, mas sim mobilizado pelos negros, cativos ou
libertos, possivelmente agindo em busca de melhores condições na concorrência
do trabalho, ou seja, sujeitos que, para além de unicamente seguirem tendências
circulantes na esfera estatal, autonomamente buscaram estratégias de ascensão, por
motivações próprias, mas, certamente conscientes das modificações em transe ocor-
ridas nas relações de trabalho.
A década de 1880 foi um período de aumento excessivo de abertura de es-
colas noturnas na província do Paraná. Em 1882, de acordo com um levantamento
7
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná; Livro: BR APPR nº 447, p. 93-94.
98
A educação da população negra

feito pelo então presidente Jesuíno Marcondes de Oliveira e Sá (1882), a província


contava com 361 alunos oficialmente registrados no ensino noturno, dos quais os
escravos somavam o número de 71, ou seja, 20% do alunado dessa espécie de escola-
rização. A década de 1880 é, por isso, o período no qual a presença de escravos, liber-
tos e ingênuos nas escolas noturnas é ainda mais evidente na documentação escolar
da província paranaense. No mesmo relatório anual, o presidente da província fazia
referência a um espaço escolar, também noturno, dessa vez com características ainda
mais peculiares: foi “aberto e mantido por escravos” sendo dirigido pelo tipógrafo
João Teodoro Silva (SÁ, 1882), situado na cidade de Paranaguá.
No mesmo ano, nas redondezas da região litorânea da província, dessa vez,
na Vila de Morretes, um colégio também particular era cursado majoritariamente
por escravos que “com permissão de seus Senhores” a frequentavam, “com mais ou
menos regularidade, havendo entre eles a maior boa vontade de aprender”8.
Dezenas de mapas escolares9, dispersos na documentação escolar da provín-
cia, sustentam a ampla frequência de escravos, libertos e ingênuos no ensino escolar
noturno da província, sobretudo a partir da década de 1870. Sobre os últimos, é
necessário dedicar um pouco mais de espaço de discussão, tendo em vista delinear
as condições de liberdade que tais menores vivenciaram por meio da vinculação que
estabeleceram com a educação pública.
Tão logo alcançaram idade escolar, muitas dessas crianças negras buscaram o
ensino público visando à instrução primária garantida legalmente como direito bá-
sico de todos os livres. Esse acesso, entretanto, não ocorreu de forma fácil, tampouco
implicou a junção destas com as outras crianças livres sem vínculo ao cativeiro, ao
menos no Paraná, onde as fontes indicam inexatidão quanto à assimilação dos ingê-
nuos como menores livres e, ainda, um cotidiano escolar muito semelhante àquele
vivido por escravos e libertos tal como mencionado anteriormente.
Exemplo disso se encontra num episódio ocorrido na cidade de Palmeira,
onde José Agostinho, um professor público, no ano de 1879, redigiu uma corres-

8
Assim afirmava o inspetor paroquial num “Relatório de Visita” DEAP – PR, Ref: BR APPR
659, p. 122.
9
Modalidade da documentação escolar onde são mencionados alguns detalhes sobre os alunos
matriculados, tais como idade, profissão, condição e, em alguns casos, rendimento.
99
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

pondência à autoridade da instrução pública questionando se devia ou não admitir


um ingênuo em sua escola:

Tendo sido apresentado a matricula na escola a meu cargo um meni-


no filho de mulher escrava, liberto pela Lei n°2040 de 28 de Setem-
bro de 1871, rogo a V.Exc.ª que se digne a dizer se devo admitillo em
cargo do que diz o Art.39§2 do Regulamento da Instrução Pública10.

O trecho de legislação escolar citado pelo professor trata-se da restrição à ma-


trícula de escravos nas aulas públicas11, logo, Agostinho considerou o menor, antes
como liberto, depois como escravo. Se nascido livre, o ingênuo não era considerado
liberto, tampouco escravo. Foi, sem dúvida, em decorrência de tais situações que as
autoridades da instrução pública finalmente adotaram uma postura legislativa pe-
rante a inclusão de ingênuos no ensino público da província paranaense. Em 1883,
após mais de uma década de aprovação da Lei do Ventre Livre, o regulamento de
instrução pública da província do Paraná compreendeu essas crianças na obrigato-
riedade escolar12. Desde 1879, entretanto, os menores já haviam atingido a idade
escolar e, como crianças livres, não se encontravam juridicamente impedidos de fre-
quentarem escolas públicas, pelo contrário, já compunham o conjunto de menores
atingidos pela obrigatoriedade.
O fato mais notável em meio a esse jogo passado entre as medidas legislativas
e práticas sociais no que confere às experiências de escolarização dos ingênuos pa-
ranaenses está no intercâmbio conflituoso vivido por esses menores entre as formas
de liberdade e de escravidão. Isso explica, em certa medida, as dezenas de manifesta-
ções contrárias de professores locais a respeito da grande quantidade dessas crianças
negras livres longe das aulas ou, então, frequentando escolas noturnas da região,
destinadas exclusivamente aos adultos. Um deles foi o polêmico professor Pedro Sa-
turnino da Cadeira de Castro, reclamante assíduo nas correspondências de governo
de cunho escolar da província, sempre cobrando das autoridades maior atenção aos
assuntos do cotidiano escolar. O professor, em carta ao inspetor geral da Instru-
ção Pública alertava para o “crescido número de ingênuos e libertos nas condições
10
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná; Livro: BR APPR nº 564, p. 12.
11
Regulamento da Instrução Pública (MIGUEL; MARTINS, 2004).
12
Regulamento do ensino obrigatório, 3 dez. 1883, art. 1º (MIGUEL; MARTIN, 2004).
100
A educação da população negra

de frequentarem a escola pública de menores, e que por desleixo dos pais e tutores
acham-se jazendo nas trevas”13. Alguns anos depois, em correspondência de mesmo
teor, o professor contestava a permanência de menores ingênuos nas aulas noturnas
mesmo após uma condenação partida diretamente do imperador D. Pedro II em
visita à província do Paraná que reprovou a frequência de menores no ensino notur-
no, ao menos que as crianças comprovassem exercerem algum ofício durante o dia14.
Essa alta incidência de crianças negras no ensino escolar noturno reforça um
ideal de instrução para essas crianças nutrido por muitos pensadores sociais e eli-
te proprietária, que vinculava a escolarização de ingênuos ao trabalho, revelando a
disparidade das propostas de educação para brancos e negros durante esse período.
Alertava Perdigão Malheiro:

Mas pergunta-se, que educação devem receber estas crias, que aos 21
anos, por exemplo, têm que entrar no gozo pleno de seus direitos?
O essencial é que além da educação moral e religiosa, tomem uma
profissão, ainda que seja lavradores ou trabalhador agrícola: ele con-
tinuará a servir aí se lhe convier, ou irá servir a outrem. (MALHEI-
ROS, 1866, p. 156).

Nota-se, além do apelo pela instrução dos filhos de mulher escrava, que o
modelo educacional proposto para os ingênuos, na visão de Perdigão Malheiro, de-
veria condizer à classe social à qual seria destinado, de forma semelhante ao que era
projetado quanto à educação dos pobres nos tantos debates realizados em todo o
Ocidente, dedicados a pensar a questão. Sendo assim, embora a universalização da
instrução fosse um aspecto notável em seu pensamento, o conteúdo a ser transmi-
tido por essa espécie de ensino de forma alguma se encontrava uniformizado para
todos os segmentos sociais. Mesmo assim, escravos ou negros livres buscaram a es-
cola e a interpretaram enquanto um direito, basta atentar para a presença deles em
abaixo-assinados pela abertura de escolas noturnas no Paraná em regiões de ampla
presença de trabalhadores especializados, como foi Curitiba, Antonina e Morretes
naquele período.

13
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR nº 662, p. 241.
14
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR nº 603, p. 209.
101
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Em Antonina, uma escola noturna criada em 1882 pela Câmara Munici-


pal chegou a ter 40 alunos, dos quais 23 eram escravos, cinco eram libertos e dois
eram ingênuos – filhos livres de mulheres escravas nascidos após a Lei do Ventre
Livre de 1871. Esses trabalhadores manifestaram-se contrariamente à arbitrária
decisão de fechamento da escola em 1885, redigindo um abaixo-assinado com 20
assinaturas, no qual se autointitulavam “operários especiais de diversos ofícios”:

Os abaixo assinados operários especiais de diversos ofícios, tendo


já frequentado uma escola noturna de 1ªs letras paga pela Câmara
Municipal desta cidade, e tendo sido suprimida a mesma escola por
motivo que os suplicantes ignoram, vem eles por isso a presença de V.
Sª por intermédio do Ilmo Sr. Inspetor Paroquial desta cidade pedir
a V. Sª afim de que se digne providenciar a continuação da mesma
escola, onde possam os suplicantes continuar recebendo instrução, e
prestando assim V. Sª um serviço tão importante, por ser sobretudo
humanitário.15

A análise desses abaixo-assinados permitiu deduzir a presença dos escravos e


libertos nessas mobilizações, os quais partilhavam com os demais frequentadores da
aula das funções de pedreiros, jornaleiros, sapateiros, carpinteiros, barqueiros, do-
mésticos entre outros ofícios16. Situação semelhante foi possível observar em Mor-
retes, cidade serrana, vizinha à Antonina, onde os moradores encaminharam um
abaixo-assinado diretamente ao presidente da província pedindo a abertura de uma
escola noturna “afim de poderem instruir-se devidamente”17. Essa escola, inaugura-
da em 1882, tinha 18 alunos matriculados, sendo oito deles escravos e um deles, li-
berto, exerciam as profissões de pedreiro, lavrador, criado e tanoeiro18. Na capital, ao
menos cinco escolas públicas noturnas existiram entre as décadas de 1870 e 1880,
15
Requerimento encaminhado inspetor Parochial Manoel Libaneo de Sousa; vários assinantes.
Departamento de Arquivo Público do Paraná (DEAP-PR). Ref: BR APPR 765, p. 31, parte 1.
16
Requerimento encaminhado Inspetor Parochial Manoel Libaneo de Sousa; vários assinantes.
DEAP-PR, Ref: BR APPR 765, p. 31, parte 2. Mapas escolares produzidos pelo professor Jo-
celyn de Paula Pereira da cadeira noturna de Antonina (1882). DEAP-PR, Ref. BR APPR 664,
p. 101; 667, p. 278.
17
Correspondência encaminhada a “Pedrosa”; vários assinantes. 08/08/1880. DEAP-PR. Ref:
BR APPR 618, p. 62.
18
Mapa demonstrativo dos alunos da escola noturna municipal da cidade de Morretes, elaborado
pelo professor Lidolpho Siqueira Bastos. 16/08/1882. DEAP-PR. Ref: BR APPR 665, p. 52.
102
A educação da população negra

entre elas, havia uma escola regida por um descendente de imigrantes alemães, que
chegou a lecionar para 70 alunos, os quais, também, obtiveram a abertura da mesma
aula mediante seguidos abaixo-assinados enviados aos presidentes de província, 52
alunos eram livres, entre eles, 12 eram escravos19.
Esses pedidos aconteciam porque a maior parte dessas escolas noturnas era
atingida instabilidade político-administrativa que afetava o governo provincial e
os municípios. Eram escolas criadas, em sua maioria, após a recomendação do pre-
sidente Carlos Augusto de Carvalho, que, em 1882, recomendou às autoridades
municipais a abertura de escolas de adultos tendo em vista que a Lei do Voto de
1881 passara a exigir a alfabetização para o alistamento de eleitores. Mas eram esco-
las que tinham uma existência de curta duração, suprimidas pelas próprias câmaras
logo após o término do mandato do governante, um fenômeno típico de manobra
praticada entre esses representantes locais para garantir favores durante os curtos
mandatos dos presidentes.
À parte dessas experiências, algumas situações diferentes apontadas na do-
cumentação oficial chamam atenção para outras formas encontradas por escravos e
negros livres para o acesso à instrução, como foi o caso da fundação de uma escola
de instrução básica aos presos da penitenciária de Curitiba, cujas aulas eram regidas
por um detento e escravo, no trânsito entre as décadas de 1870 e 1880. O chefe de
polícia Luiz Barreto Corrêa de Menezes registrou em relatório o funcionamento de
uma escola que tomara a iniciativa de abrir na cadeia para cumprir com o “dever que
temos todos de pugnar pela regeneração moral dos presos”20.
A cadeia da capital localizava-se no centro da cidade, entre as praças da igreja
matriz e do mercado público. Nessa época, de acordo com Carlos Augusto de Car-
valho, que substituiu Luiz Barreto no cargo de chefe de polícia, havia 29 detentos,
alocados nas mesmas celas sem discriminação da espécie de pena, juntando autores
de crimes leves e graves, homens e mulheres, e até mesmo “alienados”, que ali perma-
neciam por não haver hospício na cidade. As condições eram insalubres, não havia
19
Ofício encaminhado ao Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Carlos Augusto de Carvalho, presidente da Pro-
víncia, pelo professor Miguel José Lourenço Schleder. 13/08/1882. DEAP –PR. Ref: BR APPR
667, p. 281.
20
Relatório do chefe de polícia Luiz Barreto Corrêa de Menezes ao presidente da província Ma-
nuel Pinto Souza Dantas Filho (PARANÁ, 1879, p. XV).
103
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

o mínimo de higiene, tampouco alimentação adequada. Os escravos representavam


26% da população carcerária da capital, no geral condenados por homicídios ou
“tentativas de morte”. Pelo regulamento da escola, serviria de professor, “um dos
presos que maiores habilitações tiver”, e, de acordo com a autoridade policial, o es-
colhido teria sido Pedro Antonio Silva, registrado como escravo que cumpria a pena
do artigo 1º da lei de 10 de junho de 1835, destinada a punir com pena de morte
escravos que atentassem contra a vida de seus senhores. Era um dos presos mais anti-
gos da cadeia, com 25 anos de prisão, ali chegando depois de ter sido transferido de
Castro, local onde teria cometido o crime.
A escola contava com 19 matriculados, entre eles, dois escravos. As aulas se-
guiram em pleno funcionamento no decorrer na década de 1880, mas a regência
desta, pelo escravo (e preso) Pedro, teve curta duração. O presidente Souza Dantas
Filho, em visita à escola, em 1880, algum tempo após a sua abertura, registrou al-
gumas impressões bastante negativas em relação ao fato de as aulas serem regidas
pelo escravo, que a seu ver não possuía a “força moral necessária a um mestre”, e,
além disso, não dispunha de algumas qualificações básicas: “...e demais é por sua vez
pouco preparado, de sorte que além das noções mais rudimentares de leitura, nada
pode ensinar, adiantando seus discípulos”21.
Pedro Antonio teria tido acesso ao letramento de maneira autônoma, dentro
da prisão, e foi considerado o mais capacitado para reger a aula. Certamente, não
imaginava um dia ser congratulado com o título de professor de seus companheiros
de cárcere, muito menos que essa empreitada teria tão breve duração. O presidente
solicitou que ele fosse retirado da função, recomendando o envio de pessoa “mais
competente” para o exercício da docência, em vista de “resultados morais” mais ex-
pressivos na regeneração dos presos. Não é possível saber ao certo como foi a recep-
ção da notícia por parte de Pedro, a quem a liberdade teria sido negada mais de uma
vez. Coincidência ou não, ele que havia completado quase três décadas na prisão, de
lá fugiu em 1881.
O quadro da instrução pública indicado por esses documentos revela as pos-
sibilidades abertas aos escravos e negros livres para ter acesso à escolarização, nega-
das pela lei para parte deles, mas ofertadas na prática durante o período noturno e
21
Paraná (1880, p. 39).
104
A educação da população negra

aproveitadas por esses sujeitos em suas buscas pela instrução. Esse corpo documen-
tal, embora limitado para fornecer indícios sobre os empreendimentos particulares
de instrução de adultos, sugere a existência de outros caminhos escolares possíveis
de serem seguidos na procura pela instrução. Em Curitiba, duas instituições par-
ticulares foram mais expressivas no fornecimento da instrução primária aos adul-
tos trabalhadores no período investigado: a Sociedade Protetora dos Operários e o
Clube Treze de Maio.
A Sociedade Protetora dos Operários foi fundada em 1883 pelo pedreiro
Benedito Marques, e tinha por objetivo promover o auxílio mútuo aos trabalha-
dores no ápice da implantação do trabalho livre. Na Figura 1, a seguir, vemos os
primeiros associados em frente ao prédio que sediava a agremiação, situado na Rua
da Imperatriz, bairro do Alto São Francisco:

Figura 1 – Inauguração da Sede da Sociedade Protetora dos Operários.

Fonte: Centro de Documentação da Casa da Memória de Curitiba (autoria desconhecida).

Como sugere a imagem, parte significativa dos associados era composta por
negros livres ou libertos, sendo esta a condição do próprio fundador, Benedito Mar-
ques. A associação foi nomeada sociedade coirmã ao Clube 13 de Maio, fundado
em 1888 também na capital. No mesmo ano de inauguração, a Sociedade Protetora
dos Operários solicitou ao governo um professor público que pudesse servir na di-

105
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

reção da escola noturna aberta aos associados. Mesmo sem saber sobre a resposta do
governo provincial em relação ao pedido, a Sociedade manteve sua escola noturna
com regularidade nos anos posteriores, como assegura o estatuto do clube, aprova-
do em 189722.
A relação entre a Sociedade Protetora dos Operários e o Clube Treze de
Maio (ou Sociedade Operária Beneficente Treze de Maio) perpassa pela partilha do
cotidiano associativo e do perfil plural de associados, demarcando, assim, um dos
caminhos para a garantia de direitos básicos pelos negros no pós-abolição. O clube
também manteve uma escola noturna para os associados, o que fortalece a ideia
de que a educação pudesse ser vista como via para a melhoria das condições desses
sujeitos no pós-abolição.
As tantas histórias até aqui apresentadas indicam alguns caminhos seguidos
por escravizados e negros livres em suas buscas pela escolarização no Paraná, seja
através da participação em reivindicações dirigidas às autoridades, seja por meio
do aproveitamento de “brechas” nos programas de instrução popular em vigor na
província, por vezes com a colaboração de professores. Mesmo assim, há de se con-
siderar a grande quantidade de pessoas negras que, ao longo desse processo, seguiu
sem ter acesso ao direito à educação, seja pelas poucas possibilidades, ou mesmo por
escolhas pessoais, já que a busca pela instrução poderia estar relacionada às neces-
sidades surgidas do mundo do trabalho. Em relação às crianças negras, filhas de es-
cravas, os obstáculos podiam abranger outros patamares, que vão desde a limitação
etária estabelecida para frequência nas aulas noturnas, à precoce inserção no mundo
do trabalho, que excluía essas crianças das escolas infantis. Essas experiências ain-
da denotam uma fragilidade das propostas de instrução popular, que favoreceram
quase na totalidade, apenas ao sexo masculino, mesmo havendo boa quantidade de
mulheres trabalhadoras, possivelmente em busca de instrução. O alcance daqueles
projetos e práticas de instrução popular foi para essas mulheres negras ainda mais
restrito, na medida em que, fora da infância, nas escolas noturnas, elas não teriam
possibilidades de escolarização, ao menos na iniciativa pública.

22
Estatuto da Sociedade Protetora dos Operários. Capítulo VII. 9/05/1897. Acervo do centro
de documentação da Casa da Memória de Curitiba.
106
A educação da população negra

Resta conhecer, contudo, quais eram as expectativas de muitos desses escra-


vos e negros livres com relação ao ingresso no ensino primário. Sabe-se que, em algu-
mas dessas ocasiões, a iniciativa pela escolarização partiu dos próprios escravizados,
entretanto, como o favorecimento pela instrução foi visualizado por eles? Algumas
experiências indicadas pelas fontes nos direcionam a estabelecer proximidades, tra-
çadas pelos próprios cativos, entre a escolarização e a conquista da liberdade, ou pe-
los negros livres que poderiam atrelar a busca da educação à ampliação da cidadania.

Escolarização e experiências de liberdade: considerações finais


Para finalizar, faço uso de um formidável caso, onde as questões trabalhadas
até então tomam formato cotidiano. Trata-se der um processo judicial movido por
Francisca Romana da Cunha em 1887. Ela, liberta desde 1882, lutava para não ser
reescravizada por seu antigo senhor utilizando como ferramenta comprobatória de
sua liberdade a matrícula e frequência em uma escola pública de Paranaguá, onde
residia:

Apesar de ser ela de condição livre, comprova com a carta de liber-


dade, junta em original, competentemente reconhecida e registrada,
escripta e assignada pelo próprio punho de seu ex-senhor a 2 de Maio
de 1882, comprova-o ainda com o facto de tê-la inscipta néssa quali-
dade conforme a ezigência do art. n° 39 §2° do Regulamento da Ins-
trução Pública da Província de 16 de Junho de 1876, na 2ª Cadeira
da referida cidade de Paranaguá, regida pela professora pública Dona
Maria Julia da Silva Nascimento.23

Francisca buscava comprovar que era liberta mediante um atestado de for-


mação escolar. O trecho do regulamento da instrução citado no processo é o mesmo
mencionado pelo professor José Agostinho da Cadeira de Palmeira, o qual buscava
sanar suas dúvidas a respeito da aceitação de um ingênuo em sua escola. Trata-se
da tão afirmada restrição de escravos nas aulas públicas. A partir do caso de Fran-
cisca Romana, temos uma visão alternativa do significado da instrução em tempos
de escravidão: ao encaminhar sua matrícula como símbolo da legitimidade de sua
liberdade, percebemos o quanto o ambiente escolar foi visado como espaço de ex-
23
DEAP-PR – Processo de manutenção de liberdade. Ref: PB045. PI8334.321.
107
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

periência de liberdade por muitos cativos. Isso, no momento de transição pelo qual
passava a nação brasileira – do trabalho escravo para as relações de trabalho livre –,
revela o quanto esses indivíduos vivenciaram condições de “fronteira”, entre a escra-
vidão e a liberdade e demais obstáculos para a aquisição da liberdade e cidadania
plena e buscaram alternativas para driblá-las.

Considerações finais
Os casos aqui apresentados demonstram que os negros do Paraná provincial
por vezes aproveitaram as parcas chances de escolarização oferecidas especialmente
a adultos trabalhadores no período noturno. Entretanto, não devemos concluir que
esse segmento da sociedade teve plenas chances de instrução na escola pública, basta
atentar para o público restrito de escravos e libertos presentes nessas escolas: eram
quase exclusivamente do sexo masculino, moradores de áreas urbanizadas onde es-
sas escolas existiram, e que exerciam trabalhos especializados. Nossa abordagem res-
trita ao século XIX, também não contempla os possíveis percalços enfrentados pela
população negra para a inserção educacional no trânsito entre os séculos XX e XXI,
época em que a racialização das práticas sociais certamente surtiu efeitos nas possi-
bilidades de acesso e permanência desses sujeitos nas escolas24. O uso dos clubes as-
sociativos como ferramenta de acesso a direitos no pós-abolição, como vimos, pode
revelar certa inoperância do Estado no oferecimento de condições básicas de digni-
dade e acesso a cidadania (SCHUELER, 1997; MATTOS, 2009; MAC CORD,
2012), fazendo com que a conquista desses valores fosse resultado de experiências
pessoais e coletivas da população negra.

Referências
BRASIL. Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854. Approva o Regulamento para
a reforma do ensino primario e secundario do Municipio da Côrte. Coleção de Leis do
Império do Brasil, 1854. Página 45, volume 1 pt I (Publicação Original).
DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil, 1917-1945. Tra-
dução de Cláudia Santana Martins. São Paulo: Editora da UNESP, 2006.
DOMINGUES, Petrônio. “O recinto sagrado: educação e anti-racismo no Brasil”. Cader-
nos de Pesquisa, v. 39. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2009.
24
Cf. entre outros, Jerry Dávila (2006) e Domingues (2009).
108
A educação da população negra

FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de
educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no
Recife oitocentista. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio político, jurídico e social. Petró-
polis: Vozes, INL, 1866.
MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente. Ensaios sobre fenômenos de aculturação no
Paraná. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.
MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. In: CARVALHO, José
Murilo de e NEVES, Lucia Bastos Pereira das (Orgs.). Repensando o Brasil do Oitocen-
tos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos
da abolição no Brasil. 2. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2008.
MIGUEL, Maria Elisabeth Blank; MARTIN, Sonia Dorotea (Orgs.). Coletânea da do-
cumentação educacional paranaense no período de 1854 a 1889. Brasília, DF: INEP/
SBHE, 2004.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Best-Bolso, 2010.
NETTO, Fernando Franco. Senhores e escravos no Paraná provincial: os padrões de
riqueza em Guarapuava (1850-1880). Guarapuava: Unicentro, 2011.
PARANÁ. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná no dia 4 de
junho de 1879 pelo presidente da província Manuel Pinto de Souza Dantas Filho.
Curityba: Typographia Perseverança, 1879.
______. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná, pelo presidente da
província Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas Filho. Curityba: Typographia Perseveran-
ça, 1880.
PENA, Eduardo S. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e a lei na Curitiba
provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999.
SÁ, Jesuino Marcondes de Oliveira e. Relatório do presidente da província do Paraná.
1882.
SCHUELER, Alessandra Frota Martinez. Educar e instruir: a instrução popular na
Corte imperial – 1870-1889. 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1997.

109
A população negra e a
educação brasileira
João Henrique de Souza Arco-Verde1
Mirian Célia Castellain Guebert2

Introdução
O Brasil, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2010), tem a maior população negra do mundo excluindo o continente
africano. Trata-se, assim, do país que se constitui com a segunda maior população
negra mundial, atrás somente da Nigéria.
No decorrer de sua história, o Brasil produziu um perfil de extrema desigual-
dade entre os grupos étnico-raciais com os negros e brancos, pois não se propôs a
consolidar uma política de equidade da população negra após o período escravocra-
ta, fato que até hoje marca as características sociais em diversas searas sociais.
Ao reconhecer que os negros estão presentes na história de construção do
Brasil, mas, marcadamente como escravos, trabalhadores explorados, habitantes da
periferia, pobres, e é dessa forma que estão descritos e caracterizados nos baixos ín-
dices de desenvolvimento humano, o que possibilitou a construção de ações reacio-
1
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR (2007), es-
pecialista em Criminologia e Política Criminal pela Universidade Federal do Paraná – UFPR
(2009), graduado em licenciatura em História pela PUCPR (2013), mestre em Direitos Hu-
manos e Políticas Públicas pela PUCPR. Atua, desde 2014, como coordenador da divisão de
Direitos Humanos da Secretaria de Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Paraná. E-mail:
arcoverde.adv@gmail.com.
2
Graduada em Pedagogia pela UFPR (1994), com Especialização em Educação Especial ênfa-
se em Condutas Típicas pela Universidade Tuiuti do Paraná (1996), e Especialização em Edu-
cação Especial com ênfase em Política Públicas pela Universidade Federal do Mato Grosso do
Sul (1998), mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2002), doutora em Educação, História, Política, Sociedade pela PUC de São Paulo (2013).
Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Pú-
blicas na PUCPR. E-mail: mirian.castellain@pucpr.br.
110
A população negra e a educação brasileira

nárias como o racismo, que até pouco tempo no Brasil era velado e que, atualmente,
se apresenta em diversos âmbitos das políticas sociais, embora o país se autodeclara
como não preconceituoso.
O racismo está presente nas relações de poder postas nas relações sociais, eco-
nômicas que influenciaram a percepção sobre o negro, de tal sorte que até o próprio
negro tem dificuldades de se identificar como tal e lutar pela sua plenitude cidadã.
Por outro lado, ao considerar que no país temos a possibilidade de saber
quantos negros somos, com processos de identificação por meio de documentos e
aportes institucionais, as pessoas que se autoidentificam como negros ou morenos
no Brasil correspondem a 53% de população, isto é, cerca de 106 milhões de pessoas.
Conforme estipula o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
brasileiros negros com idades entre 12 e 18 anos apresentam uma probabilidade três
vezes maior de serem mortos do que seus pares brancos, isso devido à forma como
são julgadas as pessoas, pela sua aparência.
Esses dados possibilitam afirmar que são os negros que aparecem nas esta-
tísticas de população de vulnerabilidade social, como evidencia uma pesquisa rea-
lizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2015), que apresenta em seus
resultados os números sobre os homicídios dos negros no Brasil:

Com efeito, Cerqueira e Coelho (2015) verificaram que um indiví-


duo afrodescendente possui probabilidade significativamente maior
de sofrer homicídio no Brasil, quando comparado a outros indiví-
duos. [...] ilustra o ponto e mostra que essas diferenças são maiores
no período da juventude (entre 15 e 29 anos). Aos 21 anos de ida-
de, quando há o pico das chances de uma pessoa sofrer homicídio
no Brasil, pretos e pardos possuem 147% a mais de chances de ser
vitimados por homicídios, em relação a indivíduos brancos, amare-
los e indígenas. [...] No período analisado (2004 a 2014), houve um
paulatino crescimento na taxa de homicídio de afrodescendentes (+
18,2%), ao passo que houve uma diminuição na vitimização de ou-
tros indivíduos, que não de cor preta ou parda (-14,6%), [...]. Com
esse movimento, considerando-se proporcionalmente as subpopula-
ções segundo sua raça-cor, em 2014, para cada não negro que sofreu
homicídio, 2,4 indivíduos negros foram mortos. (WAISELFSZ,
2016, p. 22-23).

111
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

O estudo supracitado teve como objetivo apresentar o número de homicí-


dios contra a população afrodescendente no Brasil, levando em conta o índice de
letalidade dos diferentes grupos raciais brasileiros e ficando evidente que essa popu-
lação é mais vulnerável nesse aspecto do que outras etnias.
Ao ponderar sobre a questão do velado preconceito racial no Brasil, atual-
mente não é possível silenciar socialmente a resistência negra, pois esta está fortale-
cida pelos movimentos negros que denunciam rotineiramente as desigualdades e a
violência institucional cometida contra a população negra.
Podemos afirmar que uma das violações de direitos que ocorrem na desigual
sociedade brasileira é a que se reflete no acesso e permanência dos afrodescendentes
no sistema educacional. Essa situação passa a ser reconhecida por parte do Estado
quando estabelece a obrigatoriedade da temática da história e cultura afro-brasileira
e dá outras providências, quando aprova a Lei Federal nº 10.639, como resposta às
lutas e organização da população negra na busca de sua valorização e respeito.
A partir do posicionamento do Conselho Nacional de Educação, no sentido
da aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas,
no ano subsequente ao da lei.
Serão apresentados dados que consubstanciem essa desigualdade de trata-
mento, bem como os principais motivos que levam a população negra à não pro-
moção escolar, a evadir-se das escolas, publicizando os paradigmas velados de dis-
criminação social e racial que refletem dificuldades para a promoção da igualdade e
fortalecimento das identidades e dos direitos dos negros e negras no Brasil.

O início das práticas pedagógicas para o negro no Brasil


A escravidão no Brasil teve duração de três séculos, do início do século XVI
até o final do século XIX, o país foi responsável pela vinda de, aproximadamente,
5 milhões de pessoas reconhecidas como escravos, e foi o último país da América a
abolir a escravidão, somente no ano de 1988.
Esses dados refletem aspectos que geram desigualdades sociais que são viven-
ciadas até o momento; ao considerar que a maioria da população afrodescendentes

112
A população negra e a educação brasileira

está confinada à margem da sociedade, dados do censo de 2010 apontam que cerca
de 70% dos brasileiros que vivem na pobreza extrema são negros, estão quase que
totalmente excluídos das posições de poder, evidenciado tal fato que, entre os anos
de 2010 a 2016, existiu apenas uma mulher negra que respondia justamente pelo
Ministério da Igualdade Racial.
As marcas do início do processo de escolarização da população negra no Bra-
sil estão marcadas neste trabalho, como a Lei do Ventre Livre que versa sobre prá-
ticas educacionais dirigidas aos afrodescendentes nascidos livres de mães escravas.
Existem indícios históricos desse período que presumem uma consciência sobre o
valor da educação como elemento de inclusão social no processo de superação do
escravismo, não obstante ter predominado a tendência a não incluir os filhos livres
de escravas nos benefícios da instrução.
No estudo histórico de Marcus Fonseca, realizado levando em conta o re-
corte temporal de 1850 até 1888, período em que se deu o processo de abolição
da escravatura legal brasileira, é possível verificar que em 1871, através da Lei do
Ventre Livre, dava-se a libertação das crianças filhas das escravas brasileiras. Após a
proibição do tráfico de africanos para o Brasil em 1850, somente se podia renovar a
escravidão por intermédio do útero feminino, portanto libertar o ventre da escrava
significava romper com a renovação da escravidão brasileira.
Perdigão Malheiros assim analisou esse momento histórico:

Para se obter a extinção completa da escravidão, é preciso atacá-la no


seu reduto, que entre nós não é hoje senão o nascimento. Cumpre,
portanto, declarar que são livres todos que nascerem de certa data
em diante ... esta emancipação do ventre, esta liberdade dos filhos,
importa a grande justiça da revogação do odioso e injustificável bár-
baro princípio mantenedor da perpetuidade da escravidão, o celebre
partus sequitur ventrem deve ser a pedra angular da reforma. (MA-
LHEIROS, 1976, p. 156).

Portanto, diante da Lei do Ventre Livre, rompe-se com o princípio roma-


no que aponta para que o parto deve seguir a sorte do ventre, não havendo mais
nascituros escravos, fato que, aos poucos, colocaria fim à escravidão no Brasil, es-
tipulando, assim, uma transição para o trabalho assalariado. O historiador Justino

113
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Magalhães (1996) apontou para o objeto deste artigo questionando: que educação
receberia esses cidadãos do Império?
A educação para os filhos de escravos deveria obedecer ao processo de rom-
pimento da escravidão no Brasil, sendo uma preparação das crianças para o exer-
cício da liberdade. No entanto, essa articulação entre a abolição e educação não
teve o objetivo de proteger as crianças, mas sim objetivou uma tentativa de mini-
mizar o impacto que a abolição da escravatura poderia gerar na sociedade brasi-
leira. Isso fica nítido no parecer apresentado na Assembleia Geral Legislativa:

Artigo 7º – Os filhos das escravas nascidos depois da publicação des-


ta lei serão considerados livres. Os libertos em virtude desta disposi-
ção ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães,
que exercerão sobre eles o direito de patronos, e terão a obrigação
de criá-los e tratá-los, proporcionado-lhes sempre que for possível a
instrução elementar. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1874 apud
FONSECA, 2001, p. 13).

Essa condicionalidade apresentada no parecer isenta a obrigatoriedade de


os patronos assumirem a função de garantir a instrução elementar aos libertos. A
responsabilidade em educar era vista como um problema para os patronos, que não
queriam assumir esse compromisso social.
A Lei do Ventre Livre apontava que os patronos tinham a obrigação de cui-
dar das crianças de suas escravas até os 8 anos de idade e depois deveriam tomar uma
decisão, ficar com o menor até os 21 anos de idade ou, então, entregariam estes ao
Estado e receberiam uma indenização. Esta última era a garantia que haveria o en-
caminhamento do menor a uma instituição que teria a responsabilidade de criá-lo
e educá-lo.
No decorrer do processo de abolição da escravidão no Brasil, adotou-se uma
concepção educacional, tida como indispensável na transição para a sociedade livre.
Existiam duas vertentes educacionais, a dos espaços públicos que apontavam para
um conjunto de procedimentos a serem adotados pelo Estado, como uma forma de
estatização da sociedade, e a outra, de âmbito privado, ligada a determinadas verten-
tes religiosas que atendiam a elite brasileira.

114
A população negra e a educação brasileira

No âmbito privado, destacavam-se a cobrança realizada durante o Congres-


so Agrícola de 1878, que ocorreu no Rio de Janeiro:

Para que tão momentosa necessidade seja satisfeita, será preciso que
o Estado se encarregue da instrução primária e secundária, [...] o
Estado deve abrir escolas primárias em todas as freguesias, capelas,
pequenos povoados, onde ainda não existam, especialmente escolas
praticas especiais de agricultura, entre estas algumas industriais au-
xiliares da agricultura, para órfãos e para os ingênuos entregues ao
governo, onde estes desvalidos, a par de um bom ensino elementar,
teórico e prático, recebam a educação santa do trabalho, e que devem
ser distribuídas pelas províncias com relativa igualdade, ao alcance
da grande lavoura, para lhe fornecerem braços, e em lugares d’on-
de seja fácil a exportação, para servirem de núcleo á colonização es-
trangeira. (CONGRESSO AGRÍCOLA, 1878 apud FONSECA,
2002, p. 32).

Nessa perspectiva, o Estado se torna responsável pela educação de forma


universal, adotando, assim, uma concepção moderna de educação, já amplamente
propagada e difundida pelos países europeus. Surge, no Brasil, um espaço próprio
da sociedade que deve desenvolver alguns aportes que passam a ser indispensáveis
nos processos educativos, assim como a formação de algumas pessoas que devem ter
a responsabilidade em educar.
A educação foi sem dúvida um elemento essencial no processo de abolição
do trabalho escravo, no entanto, devido aos interesses escravistas, a política educa-
cional não trouxe o impacto estrutural esperado. Existiam setores da sociedade que
defendiam a educação como elemento estruturante da inclusão social do negro, mas
o que de fato se constatou foi a inclusão de ex-escravos e seus filhos de forma margi-
nal à sociedade organizada da época.

As vulnerabilidades sociais e a educação


Diante da exposição dos processos educacionais não inclusivos, são eviden-
ciados que esses fatos foram se reiterando e propagando no decorrer da história
brasileira a vulnerabilidade que essa população passa a ser colocada.

115
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Na sociedade contemporânea o jovem, negro, do gênero masculino, é o perfil


que se apresenta fora da escola. Ao considerar os diferentes levantamentos realiza-
dos pelas mais variadas instituições, as quais caracterizam e demonstram em suas
pesquisas, que as barreiras sociais estão relacionadas às práticas discriminatórias em
razão da cor da pele, como apontam para a defasagem da população negra frente à
branca, no que se refere à promoção e garantia dos espaços educacionais, não so-
mente no acesso, mas, principalmente, na permanência escolar:

A temática das relações raciais no campo da educação vem sendo alvo


de estudos e pesquisas em diversos pontos do Brasil. Longe se está
de esgotar o tema, entretanto, algumas pesquisas já demonstraram o
caráter discriminador do sistema escolar brasileiro. A discriminação
se manifesta em todos os setores da escola, nos livros didáticos, nos
conteúdos trabalhados ou omitidos, no silenciamento dos professo-
res diante de situações de preconceito e discriminação no cotidiano
escolar etc. (CANDAU, 2003, p. 163).

Conforme o censo demográfico de 2010, cerca de 3,8 milhões de brasileiros


entre 4 e 17 anos não frequentam a escola, esse dado coloca o Brasil em 3º no ran-
king de abandono escolar entre os 100 países com maior Índice de Desenvolvimen-
to Humano (IDH).
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) aponta
que 1 a cada 4 alunos que inicia o ensino fundamental abandona o estudo antes de
finalizar a última série. Não por coincidência que o perfil daqueles que abandonam
a escola é o mesmo daqueles historicamente excluídos, assim afirma a presidente
do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes: “A pobreza
influencia muito as taxas de evasão, e a população negra e indígena são os grupos
mais vilipendiados” (CASTRO, 2013, p. 128).
O Brasil vem conquistando diversos avanços nessas áreas educacionais e na
diminuição da pobreza extrema, mas ainda são resultados que estão longe de sanar
uma história de omissão e exclusão de diversos segmentos, principalmente da popu-
lação negra.
É importante pensar como uma sociedade escravocrata se construiu na dife-
rença entre raça e classe e considerou a escravidão uma prática normal. O currículo

116
A população negra e a educação brasileira

escolar pode contribuir decisivamente para introduzir no imaginário do aluno es-


tereótipos e preconceitos, aí a necessidade de construção dialética e crítica, pois,
se tratada unilateralmente e de forma incompleta fatalmente, irá se reproduzir o
preconceito. A escola deve estar preparada para trabalhar com as diferenças:

A questão racial não é exclusiva dos negros. Ela é da população bra-


sileira. Não adianta apoiar e fortalecer a identidade das crianças
negras, se a branca não repensar suas posições. Ninguém diz para
o filho que deve discriminar o negro, mas a forma como se trata o
empregado, as piadas, os ditos e outros gestos influem na educação.
(CANDAU, 2013, p. 29-30).

Assim, é fundamental estabelecer estratégias para a desagregação de pro-


cessos legitimadores de relações hierárquicas que se dão pela cor da pele, o que se
demonstra um desafio, uma vez que o senso comum, por vezes, não reconhece o
racismo.
Inexiste no Brasil qualquer hierarquia social que permita a um ser humano
sobrepor o outro. Dessa forma, é necessário romper com o discurso de inferiorida-
de ou incapacidade racial e fortalecer os mecanismos de equiparação de condições
para todos, trazendo toda a população negra para o âmago da sociedade, com ampla
garantia de direitos.
Outras situações que interferem diretamente na questão da população negra
na escola são o trabalho infantil e a violência social. Dados do UNICEF (2014)
apontam que mais de um milhão de crianças e adolescentes, entre 6 e 14 anos, estão
trabalhando, sendo 65% delas negras, e o trabalho é um dos principais motivos de
abandono escolar. Ainda, conforme estudo da Organização Internacional do Tra-
balho (OIT), em 2013, 93% das crianças envolvidas em trabalho doméstico são
meninas negras. A violência social sofrida pela população negra e a violência insti-
tucional são causas que também contribuem para o abandono escolar.
O UNICEF, em pesquisa realizada com o público de 15 a 17 anos, revela que
nessa faixa etária cerca de 1 milhão de pessoas negras estão fora da escola, número
quase que duas vezes maior que o de brancos.

117
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

O alto índice apresentado reflete um sistema que não contempla a cultura


e a identidade da população negra, o próprio material didático, a falta de diálogo
social e a falta de capacitação dos profissionais implicam diretamente a ausência de
identidade da população negra com a escola:

Desde o início da trajetória escolar, a criança [negra] se depara com


um determinado tipo de ausência, que a acompanhará até o curso su-
perior (isto é, para aquelas que conseguirem romper com a estrutura
racista da sociedade e chegar até a universidade): a quase inexistência
de professoras e professores negros. A criança negra se depara com
uma cultura baseada em padrões brancos. Ela não se vê inserida em
livros, nos cartazes espalhados pela escola ou ainda na escolha dos
temas e alunos para encenar números nas festinhas. Onde quer que
seja, a referência da criança e da família feliz é branca. Os estereóti-
pos com os quais ela teve contato no seu círculo de amizades e na
vizinhança são mais acentuados na escola, e são muitos mais cruéis.
(GOMES, 1996, p. 76).

Certamente, todo o contexto de valorização étnica branca ao longo da his-


tória da educação brasileira contribuiu para a submissão racial, o meio social está
intrinsecamente relacionado com os processos de produção econômica, a produti-
vidade, a permanência, a identificação no meio escolar; sendo fatores para a inexis-
tência de relações como: professores negros, materiais didáticos que contemplem
a diversidade cultural, situações inadequadas, fazendo com que alunos e alunas ne-
gras se sintam descontextualizados, culminando em desistências dos processos de
escolarização, fatos que ampliam as desigualdades.

As desigualdades na formação do negro e do branco no Brasil


O Brasil é marcado por construções históricas que confirmam as desigualda-
des escolares e sociais entre negros e brancos, o Relatório de Desigualdades Sociais
do Brasil, produzido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013), aponta
que isso não se demonstra somente pelo índice de escolarização. Conforme afirma
o economista Marcelo Paixão:

118
A população negra e a educação brasileira

Esta desproporção corresponde aos fatores socioeconômicos e cultu-


rais vigentes em nossa sociedade, que conferem a homens e mulheres
dos diferentes grupos de cor ou raça papéis diferentes no interior de
nossa sociedade. Neste caso, o problema não reside apenas no fato
estatístico de que é muito raro encontrar uma mulher negra no co-
mando de uma empresa, o mesmo valendo para um homem branco
trabalhando como faxineiro ou como diarista. Antes, o que chama
a atenção é que diante de casos como estes, com elevadíssima pro-
babilidade, as pessoas em geral achariam extremamente estranha tal
situação. Não seria improvável que viessem a apoiar que o tal homem
branco do nosso exemplo saísse imediatamente daquela situação ao
passo que criaria muitos constrangimentos para a tal mulher negra
empregadora, muitas vezes inviabilizando o seu empreendimento.
Mas, para além daqueles dados específicos sobre as posições na ocu-
pação, é preciso ver que as desigualdades de cor ou raça no Brasil
assumem uma dimensão estrutural. Assim, qualquer que seja o indi-
cador social analisado, lá serão encontradas profundas disparidades
nas condições de vida de brancos e pretos e pardos. Isto vale para o
acesso ao sistema educacional e de saúde, à exposição à morte vio-
lenta e evitável, à sujeição às condições de pobreza e dificuldade de
acesso ao alimento adequado e suficiente, às probabilidades de ob-
tenção de uma ocupação bem remunerada, estável, prestigiada e com
acesso à proteção social, o acesso à terra. Enfim, quando falamos que
no Brasil o racismo à brasileira assume um caráter estrutural estamos
dizendo que forças objetivas e subjetivas se irmanam não apenas para
prorrogar as diferenças nas condições de vida entre os portadores de
cor da pele e traços físicos distintos, mas para tornar tais desseme-
lhanças como naturais. (MAGALHÃES, 2013).

A desproporção aparece também nas temáticas escolares e, principalmente,


nos livros didáticos que não tratam das polaridades sociais, o Brasil possui a segun-
da maior população negra do mundo e isso não é retratado nos livros, estes muitas
vezes tratam da história negra até a abolição da escravatura e depois pouco se escreve
sobre esse segmento da população brasileira.
Ao considerar os relatos da história da educação no Brasil, há números que
se destacam até o período da abolição da escravidão, afirmando que o negro não
tinha acesso à educação, entretanto em 1950, pouco mais de sessenta anos após a
abolição, 70% da população negra era analfabeta, o que demonstra que as desigual-
dades entre negros e brancos quanto à escolarização se mantiveram.

119
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Atualmente, essa diferença está presente no número de anos de escolariza-


ção, uma vez que o fortalecimento da escola pública e a democratização brasilei-
ra reduziram o percentual de crianças fora da escola como também, o número de
analfabetos evidenciados nos dados divulgados pelo Censo de 2010. Nesse sentido,
podemos afirmar que a desigualdade vem diminuindo, devido aos investimentos em
políticas educacionais de acesso e permanência de todos de forma igualitária.
Ressalta-se que brancos e negros têm praticamente o mesmo número de
matrículas, no entanto a diferença se dá na distorção idade/ano e no número de
repetência, que o negro apresenta índices mais elevados, ao mesmo tempo em que
há indicação que esse segmento abandona mais a escola e enfrenta uma variedade de
dificuldades, estes são os principais desafios que precisam ser superados pelo sistema
de ensino brasileiro.
Conforme dados do Relatório de Desigualdades do Brasil (2009), a taxa lí-
quida de escolarização de negros e pardos caiu 94% no ensino fundamental (7 a 14
anos) para 42,2% no ensino médio (15 a 17 anos), contra a taxa de 61% do bran-
co. Assim, constata-se que existem desafios referentes ao ensino médio para serem
superados, ao considerar o número de adolescentes, entre 15 e 17 anos, que estão
fora da escola ou matriculados na série em desconformidade com sua idade, pelos
parâmetros definidos pelo Ministério da Educação (MEC). O índice no ensino su-
perior, por consequência, é ainda mais agravante, cerca de 7,7% de negros e 20,5%
de brancos não concluem seus estudos.
Para dar conta dessa desigualdade, segundo Paixão:

Devem ser discutidos os conteúdos apresentados em sala de aula,


cada escola deve ter uma boa biblioteca, computadores. Mas mais
importante que isso é a posição que o sistema escolar deve tomar,
de modo a ser ‘mais receptivo à constituição de um ambiente favo-
rável à diversidade, ao multiculturalismo’, reduzindo os elementos
de preconceito e discriminação. É preciso que a escola seja o espaço
da ‘igualdade entre os diferentes’, seja que diferença for: de visão, de
locomoção, de cor e cultura. […] se uma pessoa tem dificuldades eco-
nômicas para prosseguir seus estudos e ainda enfrenta discriminação
por preconceito, terá mais possibilidades de prejudicar seu aprendi-
zado. Essa discriminação está presente também nos materiais didáti-
cos e paradidáticos, que têm dificuldade de trabalhar com a diversi-

120
A população negra e a educação brasileira

dade que é marca da nossa população. ‘Se o livro didático brasileiro


se baseia em padrões eurocêntricos, indiferentes a essa diversidade, é
claro que vai tornar o ambiente da sala de aula mais receptivo para
um grupo do que para outro. (PAIXÃO et al., 2010, p. 237).

A Lei Federal nº 10.639/2003, que obriga a escola a inserir em seus currículos


formais temas que versam sobre a história da África, de modo apresentar a cultura
do negro em sala de aula, assim como estreitar as relações e ampliar o conhecimen-
to existente sobre a população na construção do Brasil, como intuito de ampliar
e valorizar a construção cultural, social e política brasileira, torna-se fundamental
para a formação inicial, continuada e total atenção aos professores para ministrar os
conteúdos sobre a história da África e da cultura afro-brasileira de forma transversal,
interdisciplinar a partir da organização curricular intercultural com o objetivo de
minimizar as desigualdades entre negros e brancos na sociedade brasileira:

O compromisso em promover a igualdade racial inclui a implemen-


tação da Lei 10639/03, que representa uma possibilidade de avanço
para resignificar a História da África e da cultura Afro-brasileira;
bem como atenção por parte dos professores aos materiais didáticos
utilizados para ministrar suas aulas, tomando cuidado com textos e
ilustrações que possam reforçar o racismo e quando por ventura pa-
recerem denunciar aos órgãos competentes. Valorizar os conteúdos
como contos africanos, respeito às religiões de matriz africana, for-
mas de resistência e luta como os quilombos e atualmente a atuação
do movimento negro, durante as aulas, pode contribuir para elevar a
autoestima de alunos negros. Essas ações concretas contra o racismo
na escola podem amenizar o prejuízo que esta prática vem trazendo
para alunos negros e significar reais possibilidades de aprendizagem.
(PACÍFICO, 2008, p. 568).

Dessa forma, e por fim, cumpre ressaltar que a desigualdade entre negros e
brancos na educação brasileira é visível e precisa ser enfrentada a partir da efetivação
das políticas educacionais inclusivas, com estratégias que possibilitem a manuten-
ção do negro na rede de ensino, na busca de educação de qualidade para todos na
tentativa de diminuir as desigualdades construídas historicamente.
Para isso, faz-se necessário readequar o foco educacional de forma a ampliar
a visibilidade da construção histórica no Brasil, assim como repensar os critérios de
121
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

elaboração e aprovação de políticas públicas, organização curricular, entre outras


ações de maior abrangência.

Uma realidade cada vez mais exposta


Mesmo com a necessidade da reorganização dos processos educativos, sabe-
mos da relevância no uso das tecnologias e das informações como excelentes aliadas
no combate às desigualdades e aos problemas de evasão e repetência persistentes nos
processos educacionais. Esses aspectos confirmam que a cor, sexo, situações econô-
micas e culturais podem gerar crianças e jovens mais vulneráveis socialmente; essa
afirmação pode estar subsidiada nos dados publicados no Censo de 2010 que ser-
vem de indicadores para auxiliar os sistemas municipais e estaduais a propor de for-
ma concreta e localizada o enfrentamento educacional necessário e as consequentes
definições de políticas públicas.
Os números identificados por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD, 2011) correspondem à porcentagem de alunos negros com
mais de dois anos de atraso escolar chegou a 14% no Brasil, entre alunos brancos,
a taxa caiu pela metade, 7%. Além disso, apenas metade dos estudantes negros, ao
atingir o 6º ano do ensino fundamental, tem a idade correta para o ano em que estu-
da. Os dados motivaram o MEC a desenvolver diversos programas para o enfrenta-
mento da demanda apontada no levantamento, por outro lado, com o acompanha-
mento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), por meio de sua Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), desta-
cam-se dados que o censo indica, como, por exemplo, que mais de 3,8 milhões de
brasileiros entre 4 e 17 anos estão fora da escola. As crianças e adolescentes que em
sua maioria são identificados como negros com renda domiciliar de até meio salário
mínimo per capita e moram na zona rural e ou periférica, também, têm pais que não
têm instrução escolar formal e ou não completaram o ensino fundamental.
Na medida em que outros dados vão se somando, como os da UNICEF e da
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, utilizados no acompanhamento do
PNE, fica evidenciado o perfil do estudante que está fora da escola, como se segue:

122
A população negra e a educação brasileira

 51,7% é homem entre as crianças fora da escola com idades entre 4 e 5


anos;
 50,7% é homem entre os jovens fora da escola com idades entre 15 e 17
anos;
 55,4% é negro entre as crianças fora da escola com idades entre 4 e 5
anos;
 61,2% é negro entre os jovens fora da escola com idades entre 15 e 17
anos;
 65,5% têm renda per capita domiciliar inferior a meio salário mínimo
entre as crianças fora da escola com idades entre 4 e 5 anos;
 52,9% têm renda per capita domiciliar inferior a meio salário mínimo
entre os jovens fora da escola com idades entre 15 e 17 anos;
 77,8% têm pais sem instrução ou com fundamental incompleto entre as
crianças fora da escola com idades entre 4 e 5 anos;
 64,3% têm pais sem instrução ou com fundamental incompleto entre
os jovens fora da escola com idades entre 15 e 17 anos.

Essas informações, bem como os dados levantados nesse estudo, permitem


concluir que os mais marginalizados da escola são aqueles historicamente excluídos
de toda a sociedade. Torna-se evidente que o fracasso escolar é mais recorrente entre
alunos negros e pobres. Esse fracasso, entendido como baixo rendimento escolar,
repetência, abandono e evasão, atinge de formas diferentes estudantes que fazem
parte de grupos distintos em relação aos aspectos étnico-raciais.
As diferenças apontadas devem demonstrar não apenas a discrepância so-
cioeconômica, mas os impactos demonstrados pelos números nas diferentes fontes,
sobre o desempenho acadêmico, declaram um tipo de racismo, mesmo que invisível
como resultado dos aspectos históricos e culturais, produzido pela sociedade no
Brasil.
Em 2009, um estudo dos pesquisadores Ricardo Madeira, Marcos Rangel e
Fernando Botelho, do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo
(USP), comparou as notas que os professores davam aos seus alunos com as notas

123
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

obtidas pelos estudantes no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Esta-


do de São Paulo (SARESP), a avaliação anual do governo paulista.
Os dados mostraram que alunos negros e brancos com os mesmos resultados
no SARESP tinham notas diferentes dadas por seus docentes em sala de aula – as
notas das crianças brancas eram maiores. Entre meninos e meninas, eram elas que
apresentavam os melhores desempenhos, de acordo com os professores.
Paula Louzano (2012), em sua pesquisa, discute as diferenças entre as regiões
do Brasil. Os dados analisados por essa autora revelam que meninos pretos residen-
tes no Norte e Nordeste, filhos de pais sem o ensino fundamental completo, têm
65% de probabilidade de chegar ao 5º ano, tendo repetido um ano ou abandonado
a escola no mínimo uma vez. De acordo com a análise, esse é o grupo mais propenso
ao fracasso escolar.
Em contrapartida, no outro extremo, meninas brancas da região Sudeste,
que têm pais com ensino médio completo, apresentam a mais baixa probabilidade
de fracasso escolar avaliada: 10%.
Os dados ainda revelam que ser negro aumenta a probabilidade de fracasso
escolar da criança entre 7 e 19 pontos percentuais, considerando apenas as crianças
com pais que completaram a educação básica. Logo, o problema deve ser analisado
como um todo, criando ações que evitem a repetência, a evasão e o baixo desem-
penho independentemente da raça/cor, região onde vive e escolaridade da família.
Desde 2003, está em vigor no Brasil a Lei Federal nº 10.639, que inclui no
currículo oficial das redes de ensino a obrigatoriedade de temáticas referentes à his-
tória e cultura afro-brasileira.
A professora Ione Jovino, pesquisadora do Núcleo de Relações Étnico-Ra-
ciais, de Gênero e de Sexualidade (NUREGS) da Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG), destaca a necessidade de reforçar políticas educacionais existentes,
como forma de aumentar a produção de material didático com a valorização desses
conteúdos e reforçar a formação continuada dos professores:

O Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Con-


tinuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, tinha muitos editais
de proposição de obras didáticas, cursos de formação e fóruns de dis-
cussão. De dois anos para cá, essas ações diminuíram. É preciso ‘re-
124
A população negra e a educação brasileira

tomá-las’, opina. Professores e funcionários não podem ver como na-


turais situações de preconceito ou achar normal que um aluno negro
vá pior na escola do que um branco. (LOUZANO, 2012, p. 219).

Para Jovino, existe algo intrínseco à escola que impacta na questão racial: “As
pesquisas apontam que, mesmo quando igualamos as variáveis de brancos e negros,
os negros sempre aparecem em piores condições. Existe algo além do socioeconô-
mico”, explica. “Negros são massivamente reprovados e realmente abandonam mais
a escola”. Logo, faz-se necessário estratégias para combatermos o preconceito social
e histórico, há necessidade de todos serem tratados igualmente. Portanto, denunciar
casos de racismo e promover cada vez mais pesquisas que tragam tais temas à tona
são ações fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa.

Considerações finais
As desigualdades existentes e evidenciadas pela população negra no Brasil
perpassam processos educacionais construídos no decorrer do histórico preconcei-
to sofrido por essa população, que são enfatizadas pelas dificuldades sociais como
obstáculos para a formação dos estudantes negros, fazendo aumentar o índice de
abandono escolar desse segmento. Tais reflexões são representações das multiplici-
dades de políticas públicas pensadas, mas não efetivadas para transformar a cultura
existente, mantendo as perspectivas impostas pelo poder econômico a essa popula-
ção considerada vulnerável devido à sua constituição sócio-histórica.
Se, por um lado, temos os processos educativos como política pública que,
em sua vertente de caráter social e transformador, tem como finalidade buscar a
equidade dos sujeitos de direitos, por meio do tratamento social, evitando a dis-
criminação, na busca de garantir oportunidades e viabilizar condições de acesso e
permanência dos estudantes até a conclusão nos processos formativos, a educação
é a política que possui investimento real por parte do estado brasileiro e, em razão
disso, deve ser a que mais produz meios de superar as desigualdades sociais, portan-
to deve ser designada para a população mais vulnerável socialmente.
Por outro lado, temos a garantia que uma educação pública de qualidade está
diretamente relacionada com princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez
125
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

que por meio da educação é que o sujeito se desenvolve, se constrói, se transforma,


define seus projetos de vida, adquire e ressignifica conhecimentos, se torna cidadão
com diversas possibilidades de viver com qualidade social na busca de uma socieda-
de menos desigual.
Tendo como premissa os argumentos apresentados nesta discussão, faz-se ne-
cessário enfatizar que as conquistas históricas da população negra dentro do âmbito
educacional são o resultado da busca da identidade e representação social que os
negros se encontram, mesmo entendendo as origens das inúmeras dificuldades para
que haja equiparação de direitos, de oportunidades nos processos de escolarização.
Este estudo expressou a preocupação em apontar dados históricos sobre os
processos educacionais, os quais nos remetem a novas buscas, como, por exemplo,
a necessidade de entender como está sendo desenvolvida na prática essa temática,
além de analisar materiais didáticos na tentativa de compreender e identificar como
estão sendo representadas as populações vulneráveis, como sistematizar elementos
para a construção de uma cultura que respeita as diferenças, as desigualdades.

Referências
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasilei-
ra”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
BRITES, Jurema Gorski. Trabalho doméstico: questões, leituras e políticas. Cadernos de
Pesquisa, v. 43, n. 149, p. 422-451, 2013.
BOTELHO, Fernando; MADEIRA, Ricardo; RANGEL, Marcos. Discrimination
goes to school? Racial differences in performance assessments by teachers. Unpublished
Manuscript. Department of Economics, University of São Paulo, 2010.
CASTRO, Fábio Meirelles Hardman de. Dimensões do papel do Conanda na efetiva-
ção dos direitos humanos de crianças e adolescentes para conselheiros nacionais: o
debate sobre grandes eventos esportivos no Brasil. 2013. Monografia – Escola Nacional de
Administração Pública, Brasília, DF, 2013.
FONSECA, Marcus Vinicius. As primeiras práticas educacionais com características
modernas em relação aos negros no Brasil. In: SILVA, P. B.; PINTO, R. P. (Orgs.). Negro e
educação: presença do negro no sistema educacional brasileiro. São Paulo: Ação Educativa,
Anped, 2001.
______. A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no
Brasil. Bragança Paulista: ESUSF, 2002.

126
A população negra e a educação brasileira

______. População negra e civilização: uma análise a partir do estabelecimento da obriga-


toriedade escolar em Minas Gerais (1830-1850). Educ. rev., Belo Horizonte, v. 25, n. 2, p.
43-71, 2009.
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF). Relatório do
especialista independente para o estudo das Nações Unidas sobre a violência contra
crianças. UNICEF: 2006. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/pt/Estudo_
PSP_Portugues.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2016.
______. Agenda pela infância 2015-2018. Desafios e Propostas eleições 2014. UNICEF,
2014. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/pt/UNICEF_agenda2014.pdf>.
Acesso em: 15 out. 2016.
GOMES, Nilma Lino. Educação, raça e gênero: relações imersas na alteridade. Cadernos
Pagu, Campinas, n. 6-7, p. 67-82, 1996.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo
demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <https://ww2.ibge.gov.
br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 20 out. 2016.
______. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Síntese de indicadores. 2011.
Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
JOVINO, Ione da Silva. Alguns pressupostos para o trabalho com cultura negra na escola.
Estudos Étnico-Raciais, Bauru, v. 6, p. 14-22, 2009.
LOUZANO, Paula. Fracasso escolar e desigualdade no ensino fundamental. In: TODOS
PELA EDUCAÇÃO. De olho nas metas: quinto relatório de monitoramento das 5
metas do Todos Pela Educação, 2012. p. 114-126.
MAGALHÃES, Justino. Um contributo para a história do processo de escolarização da
sociedade portuguesa na transição do Antigo Regime. Educação Sociedades & Culturas,
Porto Alegre, n. 5, p. 7-34, 1996.
MAGALHÃES, Mário. Novos livros de Marcelo Paixão radiografam desigualdade racial
no Brasil. Blog do Mário Magalhães, 3 dez. 2013. Disponível em: <https://blogdomario-
magalhaes.blogosfera.uol.com.br/2013/12/03/novos-livros-de-marcelo-paixao-radiogra-
fam-desigualdade-racial-no-brasil/>. Acesso em: 14 out. 2016.
MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico e social. 3. ed.
Petrópolis/Brasília, DF: Vozes/Instituto Nacional do Livro, 1976.
PACÍFICO, Tânia Mara. A implantação da Lei n.º 10.639/2003 em uma Escola da
Rede Pública Estadual, no Ensino Fundamental, na Cidade de Curitiba – PR. Dispo-
nível em: <http://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2008/259_680.pdf>. Acesso em: 15
nov. 2016.
PAIXÃO, Marcelo; ROSSETO, Irene; MONTOVANELE, Fabiana; CARVANO, Luiz
(Orgs.). Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010. Rio de Janeiro:
Editora Garamond, 2010. Disponível em: <http://www.redesaude.org.br/portal/comu-
nica/201112/includes_publicacoes/01_Relatorio_2009-2010_desigualdades%20raciais.
pdf>. Acesso em: 20 out. 2016.
WAISELFSZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2016. Homicídios por armas de fogo no
Brasil. . Brasília, DF: IPEA, 2016.

127
Contação de histórias em uma
escola do estado do Paraná:
negritude narrada por crianças
Ingrit Yasmin Oliveira da Silva1
Fabiane Freire França2
Delton Aparecido Felipe3

Introdução
O interesse em pesquisar as representações sobre a população negra na edu-
cação infantil, se deu a partir da realização de um trabalho referente a cotas raciais,
na disciplina de Organização do Trabalho Pedagógico I, durante a graduação em
Pedagogia no ano de 2015. Nesse sentido, ao pesquisar sobre o tema, sentimos a
necessidade de conhecer mais o assunto e entendemos que, em observância ao arti-
go 1º, § 1º da Resolução nº 1/2004, do Conselho Nacional de Educação (CNE), e
o artigo 5º da Deliberação 04/2006, do Conselho Estadual de Educação do Paraná
(CEE), são requisitadas propostas curriculares e ementários relativos à inclusão das
relações étnico-raciais nas disciplinas e atividades curriculares dos cursos do ensino
superior.
No decorrer das discussões realizadas na disciplina, algumas das acadêmicas
do curso4 apresentaram um posicionamento contrário à temática de cotas raciais,
justificando que, quando o/a negro/a “aceita” fazer parte das cotas, é porque “sabe
que não é capaz de conseguir” passar no vestibular ou em concurso sem esse “bene-

1
Pedagoga e Mestranda em Educação da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.
2
Professora do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), campus de
Campo Mourão. Doutora em Educação. E-mail: prof.fabianefreire@gmail.com.
3
Professor do Departamento de História e do Mestrado Profissional em História da Universida-
de Estadual de Maringá, pós-doutor em História e Doutor em Educação.
4
Eram vinte acadêmicas, todas mulheres.
128
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

fício”, e, portanto, se “considera inferior” em relação aos brancos que não necessitam
desse caminho “fácil” para ingressar no vestibular ou concurso público.
Partindo desse contexto e das minhas experiências e vivências enquanto
criança, e hoje como mulher negra, percebi que se faz necessário trabalhar as repre-
sentações que foram objetivadas sobre a população negra no Brasil e como elas são
construídas socialmente. Compreendemos o conceito de representação social, com
base em Moscovici (2011), como forma de produção coletiva que envolve interação
e comunicação para nomear e classificar aspectos do mundo, da história individual
e pessoal. Ocorre que essas representações são objetivadas por alguns grupos como
legítimas ou únicas, mediante as relações de poder envolvidas (FRANÇA, 2014).
A população negra, por exemplo, teve sua história e memória invisibilizadas em di-
versos espaços, e um deles é o estado do Paraná. Por isso, a necessidade de problema-
tizar as bases históricas do racismo e da desigualdade social que ainda afetam parte
significativa da população negra brasileira.
Se em um curso de graduação, que formará profissionais para a área da edu-
cação, existe uma visão ainda restrita atribuída à população negra, a situação torna-
-se mais preocupante ainda em outros espaços, em que a discriminação racial existe
de forma rotineira e naturalizada.
Com efeito, respaldamos a preocupação e inquietação em abordar essas dis-
cussões na educação infantil, na formação inicial das crianças, para que desnatu-
ralizem discursos como estes e conheçam outras narrativas e histórias da cultura
negra. Selecionamos para a experiência didático-pedagógica uma turma com vinte
crianças com idade entre 4 e 5 anos de idade, que estudam no Nível II em período
integral.
As relações cotidianas com as crianças da educação infantil e do ensino fun-
damental, como professora da rede básica de ensino, me propiciaram uma abertura
ao diálogo com a escola e com os alunos e alunas. Foi nesse locus que encontrei in-
dagações para a realização dessa pesquisa, em vista disso, problematizamos: quais as
representações de raça que circulam na educação infantil? De que maneira podemos
contribuir para discussões nesse espaço?

129
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Optamos pela contação de histórias como um dos recursos para a abertura


do diálogo acerca das representações que as crianças têm sobre a população negra.
As histórias selecionadas apresentaram como tema central a discriminação racial,
a representação negra e o racismo. Trabalhar como essas temáticas em uma escola
localizada no interior do Paraná, além de contribuir para o cumprimento da Lei
Federal nº 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana na educação básica, nos ajuda a problematizar o
discurso da não existência da população negra no Paraná.
Por que a opção de trabalhar essa temática na escola? O espaço escolar é per-
meado por diversas narrativas sociais, que podem ou não construir processos de
visibilidades das identidades dos sujeitos sociais, nessa perspectiva o sentindo de
quem somos é construído por meio de narrativas. Ou seja, as histórias de vida são
tomadas como produtoras de identidades, havendo uma relação estreita entre aqui-
lo que somos e as narrativas que ouvimos, que lemos e que contamos. Narrar é um
processo de construção que confere sentidos aos saberes sociais, pois é a forma com
que o sujeito imprime uma ordem lógica e temporal às suas sensações, percepções,
vivências e recordações, constituindo, assim, representações sobre seus traços cultu-
rais (FELIPE; TERUYA, 2015).
Por acreditar que a escola é um espaço propício para ouvir e narrar histórias,
este texto visa relatar uma experiência didático-pedagógica utilizando a contação
de história realizada em uma escola localizada na região periférica do município de
Campo Mourão no Paraná.
Na região Sul, o estado do Paraná é que apresenta a maior população negra,
com 28%, seguido do Rio Grande do Sul com 18,3% e Santa Catarina com 13,9%
da população negra. Esses dados são oriundos dos estudos coordenados pelo Grupo
Clóvis Moura, coordenado pela historiadora Clemilda Santiago Neto. “São mais de
100 comunidades, sendo 36 já certificadas pela Fundação Palmares. Mesmo com a
presença maciça no Estado, o processo de invisibilidade é forte.” (LUCAS, 2011).
Para Paulo Vinicius Baptista, diretor da Associação Brasileira de Pesquisa-
dores Negros (ABPN), a invisibilidade da população negra está ancorada nas ideias
racistas predominantes do século XIX e da “ideologia do branqueamento” justi-

130
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

ficada pela representação social de que os/as negros/as africanos/as seriam incivi-
lizados/as; enquanto os europeus brancos eram civilizados e desenvolvidos (LU-
CAS, 2011). Essas são representações que justificam o porquê da necessidade das
pesquisas sobre a população negra nas diversas instâncias sociais, sendo uma delas,
a educação infantil.

Por que trabalhar as relações raciais na educação infantil?


A partir da aprovação da Lei Federal nº 10.639/2003 e das Diretrizes Cur-
riculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), torna-se obri-
gatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar.
Além disso, professores/as, desde a educação infantil e todos/as que fazem parte do
contexto escolar:

[...] desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e


modalidades de ensino, como conteúdo de disciplinas, particular-
mente, Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem pre-
juízo das demais em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas
de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização
de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, qua-
dra de esportes e outros ambientes escolares. (BRASIL, 2004, p. 2).

O texto supracitado reverbera a necessidade de ações didáticas que abordem


as questões raciais nas diferentes etapas de aprendizagem e modalidades de ensino.
A seleção da educação infantil e o trabalho com as crianças expressa as experiências e
o contato da pesquisadora com essa etapa, além do processo de formação e constru-
ção de identidades, pois, no convívio com o universo adulto, as crianças aprendem
atitudes de discriminação racial, sexual, social e gênero.
Assim, faz-se necessário que docentes, desde essa etapa, desenvolvam práticas
que valorizem a história e cultura das pessoas em suas variadas diferenças. Além
disso, é possível fomentar que essas ações pedagógicas voltadas para essas temáticas
somente seriam válidas se realizadas durante todo o ano letivo e não somente em
datas comemorativas, como 20 de novembro no “Dia da Consciência Negra” ou o

131
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

“Dia Internacional da Mulher”, celebrado em 8 de março. Quando esses temas são


trabalhados de maneira fragmentada, corre-se o risco de serem compreendidos de
maneira equivocada: a população negra é inferior à população branca, pois
na história essa população é tratada sempre como escrava e subalterna ou
mulheres são sensíveis, por isso merecem um dia especial.
De acordo com Cavalleiro (2003, p. 10), “a relação diária com crianças de
quatro a seis anos permitiu identificar que, nesta faixa de idade as crianças negras
apresentam uma identidade negativa em relação ao grupo étnico ao qual perten-
cem”, nesse sentido, é importante ressaltar e valorizar as conquistas da população
negra, favorecendo, desse modo, que as crianças se identifiquem e tenham orgulho
de suas histórias, memórias, raízes e patrimônios. Partindo desse pressuposto, é pre-
ciso trabalhar com essas questões mesmo que não tenha nenhuma criança negra
presente na sala de aula, é importante destacar a diversidade cultural e as relações
raciais no ambiente escolar para que todas as crianças conheçam e se aproximem de
outras culturas. Gomes (2003) complementa que:

construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, his-


toricamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito
é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros
brasileiros. Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será
que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável
quando discutimos, nos processos de formação de professores, sobre
a importância da diversidade cultural? (GOMES, 2003, p. 171).

Nesse sentido, a partir das vivências com a família e a escola, a criança pode-
rá desenvolver uma autoimagem positiva ou negativa. Para desconstruir a imagem
negativa e produzir outras perspectivas positivas acerca da população negra, é neces-
sário que práticas rotineiras, excludentes e preconceituosas deem lugar para outros
olhares. Nessa perspectiva, Araújo (2002) fomenta que:

cada ser humano constrói para si uma imagem que julga represen-
tá-lo, com a qual de identifica e se confunde [...] essa auto-imagem
possui uma dimensão efetiva em sua constituição, que também se re-
laciona com os valores da cultura e com a constituição biofisiológica
do corpo que a sedeia [...] a auto-estima; o valor, ou os sentimentos

132
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

que cada um projeta a atribui a si mesmo. Sem poder falar de pa-


drões definidos ou de normalidade, essa auto-estima pode ser mais
negativa ou positiva, com consequências visíveis sobre as interações
do sujeito com o mundo e consigo mesmo. (ARAÚJO, 2002, p. 68).

Sendo assim, se o ser humano é constituído por meio das relações sociais
com o mundo, e a sociedade define um padrão ideal de sujeito, porte físico, cor da
pele, altura etc., a formação docente necessita problematizar esses padrões e as “his-
tórias únicas”, que apresentam somente um ponto de vista e geralmente consideram
como anjos crianças brancas e, como heróis, homens brancos.
É pensando em questões como estas que o/a docente em sala de aula precisa
refletir e trabalhar para o reconhecimento, valorização e representatividade de suas
alunas e alunos. É necessário que a escola, local de conhecimentos e aprendizagens,
seja um ambiente em que professores/as e toda a comunidade escolar se envolvam
com questões de raça, etnia, gênero, classe, sexualidade, para que os/as alunos/as se
sintam representados/as nesse espaço. Afinal, de que maneira essas crianças teriam
uma imagem positiva de si mesmas se, no local onde ficam a maior parte do tempo,
são consideradas como incapazes de aprender devido à cor da pele, classe social ou
gênero? Preocupa-nos saber que ainda muitos/as são os professores/as que não rea-
lizam ações necessárias diante de situações de preconceito entre as crianças por não
saberem lidar com a temática ou simplesmente por pensarem que essas questões não
cabem nesse espaço.
Partindo desse pressuposto, desde a infância as crianças ouvem as histórias
de contos de fadas, entre elas “A bela adormecida” e “A branca de neve” que incitam
que os meninos brancos são considerados os príncipes e que podem beijar as meni-
nas quando quiserem. Outra história que se repete é a do filme produzido pela Walt
Disney, “A princesa e o sapo”, em que a única princesa negra dos contos de fadas é
uma garçonete chamada Tina. No filme, o príncipe vira sapo e, para o feitiço termi-
nar, ela tem que beijá-lo.
Diante disso, é possível perceber que a maioria das princesas espera a vida
toda para se casar com um príncipe, é rica e branca, já a personagem Tina é uma
jovem de origem pobre e negra que também espera por esse príncipe. Isso mostra,

133
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

de acordo com Giroux (2003, p. 133), que “por trás do apelo ideológico à nostalgia,
aos bons tempos e ao ‘lugar mais feliz sobre o globo’, existe o poder institucional e
ideológico de um conglomerado multinacional que exerce uma enorme influência
social e política”.
A partir desse olhar, é possível enfatizar que muitas são as crianças negras que
se limitam ao brincar de faz de conta, silenciam para não serem notadas e desejam
ser brancas para sentirem-se princesas ou príncipes dos contos de fada que assistem,
ou como as bonecas e os bonecos que passam nas propagandas, que são em sua gran-
de maioria brancas/os.
Dessa forma, em pleno século XXI, ainda há problemas de sexismo e racismo
desde a educação infantil até a universidade, o que fomenta que crianças neguem
sua identidade e seu grupo social, e cresçam silenciando suas angústias, medos e re-
ceios diante da sociedade. E é por acreditarmos que um trabalho contínuo voltado
à formação docente e à educação infantil seja um caminho para produzir mudanças
nesse quadro educacional que realizamos esta pesquisa.

Caminhos da pesquisa: tecendo trilhas possíveis


Para a coleta de dados da pesquisa, utilizamos as observações participantes
no ambiente escolar registradas no diário de campo (MINAYO, 1993) com o ob-
jetivo de compreender as representações de raça na infância, bem como a maneira
que as crianças constroem a visão de si mesmas e do mundo que as cerca por meio
das interações estabelecidas no cotidiano escolar. As observações foram feitas no
interior da escola, nos espaços e nas salas de aulas voltados à educação infantil.
Para anotar a fala das crianças, utilizamos um diário de campo, pois este
nos permitiu os relatos das crianças livremente, possibilitando que suas represen-
tações sobre o mundo, mesmo que de forma provisória, viesse à tona. Pérez (2003,
p. 101) diz que: “o ato de narrar se torna um ato de conhecimento, isto é, uma
rede tecida de representações diversas, traduções variadas sobre o mundo e sobre
o objeto da história que cria sonhos, utopias e compartilha outras realidades. ”
Foi assinada uma carta de autorização pela direção da escola contendo as ati-
vidades que seriam realizadas no contexto escolar. As literaturas selecionadas foram

134
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

apresentadas aos demais colegas docentes. A partir da contação de histórias, foram


registradas as opiniões das crianças sobre o que consideram importante na questão
da corporeidade, do que gostam de brincar e o que consideram como características
de meninas ou meninos, entre outras.
A escola, locus da pesquisa, atende cerca de 414 alunos/as matriculados/as e,
de acordo com o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, a população possui
nível socioeconômico baixo, com renda mensal de um salário mínimo, e 80% rece-
be auxílio financeiro do governo como complemento.
Outra informação que consta no PPP da escola e foi significativa para o de-
senvolvimento da experiência didático-pedagógica é o objetivo proposto pela insti-
tuição de propiciar uma educação de qualidade a todos/as os/as envolvidos no pro-
cesso de ensino-aprendizagem, por meio de educação sem preconceitos, aceitando
as diferenças e particularidades dos/as educandos/as. Essa proposta nos remeteu às
leituras de Busatto (2003, p. 38), quando afirma que a contação de história, ao ser
trabalhada no ambiente escolar, possibilita enxergar as diferenças culturais e cons-
tatar que a diversidade é saudável e ainda auxilia “a expansão da nossa consciência
ética e estética”.
No primeiro dia da experiência didático-pedagógica, compareceram todas
as crianças matriculadas no Nível II, oito meninas e doze meninos, sendo duas
crianças negras, uma menina e um menino. Ao iniciar as atividades, apresentamos
às crianças duas bonecas, uma de cor preta e outra branca como uma “atividade sen-
sibilizadora”, o que nos permitiu perceber as representações dos alunos/as sobre a
estética e corporeidade referentes à população negra de uma forma geral. A partir
disso, as crianças começaram a responder quais as representações que tinham acerca
das bonecas, sendo que sete das oito meninas responderam: “a cor de pele”, “a que
tem olho azul”, “a branca é mais bonita”. Apenas uma das meninas relatou: “eu acho
a preta a mais bonita porque ela é da minha cor”. Entre os meninos, onze dos doze
meninos responderam: “a cor de pele”, “a salmão”, “a bege”, “a clarinha é bem mais
bonita” e apenas um dos meninos respondeu que a boneca mais bonita era a preta
e a pesquisadora questionou: “por que você acha a boneca preta a mais bonita? ” e
ele comentou: “porque ela parece comigo”, além disso, uma questão foi levantada pe-

135
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

las crianças acerca dos anjos, quando estávamos falando sobre as cores um menino
fomentou que a boneca branca era bonita porque “era da cor de um anjo” e uma
menina que se considerava negra respondeu: “também tenho cor de anjo” (registro
do caderno de campo). Nesse sentido, consideramos que:

O entendimento da simbologia do corpo negro e dos sentidos da


manipulação de suas diferentes partes, entre elas, o cabelo, pode ser
um dos caminhos para a compreensão da identidade negra em nossa
sociedade. Pode ser, também, um importante aspecto do trabalho
com a questão racial na escola que passa despercebido pelos educa-
dores e educadoras. (GOMES, 2003, p. 134).

Nessa perspectiva, percebemos que a imagem da população negra ainda é


vista de forma preconceituosa, considerada esteticamente feia e inferior à imagem
branca devido à cor da pele e atributos como o cabelo crespo. Consideramos que a
escola deve trabalhar essas questões raciais desde a educação infantil, para proble-
matizar e desconstruir o modelo de branquitude estabelecido pela sociedade, que
considera pessoas brancas e o cabelo liso sinônimos estéticos de beleza.
Após os relatos das crianças, solicitamos que as meninas respondessem se elas
achavam mais bonito os meninos com a cor branca ou preta. Seis meninas respon-
deram que os meninos brancos eram os mais bonitos, uma respondeu que ambos,
e somente uma delas, a que se reconhece como negra, respondeu que os meninos
pretos são mais bonitos porque parecem com o seu pai.
Quando questionadas, as meninas que responderam que meninos brancos
eram os mais bonitos em um cenário de sorrisos, olhares para cima, cochichos e afir-
mações como: “os dois são bonitos”, “branco é mais bonito”. Ao questionar os meninos
em relação às meninas, surgiram discursos como: “acho menina branca porque tem
cabelo liso e cor de pele, dá pra ver melhor”, “branca é mais bonita porque pretinha tem
cabelo ruim (risos)” (registro de caderno de campo).
A autora Maria Aparecida Silva Bento (2012) evidencia que, nos levanta-
mentos que fez acerca da identidade racial de crianças, identificou que algumas
representações se repetem e uma delas vai ao encontro do que identificamos nas
falas supramencionadas: “crianças pequenas brancas se mostram confortáveis em

136
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

sua condição de brancas e raramente explicitam o desejo de ter outra cor de pele
ou outro tipo de cabelo. Com frequência explicitam que branco é bonito e preto é
feio (apontando bonecas, personagens de livros, colegas, professoras) ” (BENTO,
2012, p. 101).
Esses aspectos nos evidenciam que as narrativas que circulam na escola, as
histórias que são contadas e as representações que são consideradas como referên-
cias precisam ser revisitadas e pluralizadas. E o modo que encontramos para apre-
sentar outras perspectivas às crianças foi a contação de histórias.

A contação de história como recurso didático-pedagógico para a


visibilidade da população negra
Keu Apoema, ao falar das contribuições da contação história para o processo
pedagógico, afirma que “contar histórias é uma arte. Ela provoca prazer, surpresas,
suscita emoções, logo, é uma experiência estética. Ao mesmo tempo, as narrativas
estão cheias de enredos que tratam da humanidade, de experiências humanas” (FE-
LIPE; FRANÇA, 2016, p. 12). E, no intuito de propiciar aos/as alunos/as um con-
tato com as experiências humanas vinculadas à população negra brasileira, realiza-
mos a contação de história baseada em três literaturas infantis, sendo elas: Menina
bonita do laço de fita (MACHADO, 2005), O menino marrom (PINTO, 1986) e
Bruna e a galinha d’Angola (ALMEIDA, 2003).
Em um de seus escritos, Abramovich (1995, p. 17) argumenta que “é através
duma história que se podem descobrir outros lugares, outros tempos, outros jeitos
de agir e ser, outra ética, outra ótica”, nesse sentido, as histórias infantis têm muito a
contribuir para o processo de ensino-aprendizagem das crianças no ambiente escolar.
A escola é um espaço de possibilidades reais de convivência entre os múl-
tiplos sujeitos sociais que se conhecem e se reconhecem como sujeitos iguais no
processo de construção social. Ao utilizar a contação de história como forma de
conhecer “eu” e o “outro”, não se está substituindo um saber por outros nas salas de
aula, mas propiciando aos estudantes a compreensão das conexões entre culturas e
relações de poder envolvidas nas hierarquizações das diferentes manifestações cul-
turais (FELIPE; TERUYA, 2016).

137
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Dessa maneira, o ambiente para a contação de histórias foi dividido em


três sessões. Na primeira, o ambiente foi preparado com tapete no chão para que
as crianças pudessem se sentar e a história foi contada por meio de fantoches, uti-
lizando como personagem a Menina bonita do laço de fita (MACHADO, 2005).
As crianças ficaram curiosas para verem o que estaria atrás da cortina, co-
chichavam entre elas palpitando sobre qual história seria contada e, ao verem o
fantoche, ficaram atentas até o final. Após esse momento, continuaram sentadas
no tapete, mas em círculo e sentadas com elas perguntamos se gostaram da his-
tória e pedimos que cada um levantasse a mão como combinado antes de come-
çarem a falar. Questionamos ainda se as crianças acharam bonita a menina da
história, algumas delas disseram que sim, outras riram sem responder, e uma me-
nina respondeu: “se ela fosse branca, ela seria mais bonita porque ia ter cabelo liso”.
Duarte (2012), em pesquisa sobre as representações sociais de raça na educa-
ção infantil, considera que o cabelo crespo é apresentado como algo a ser domado e
sinônimo de inferioridade na sociedade. Por isso, as representações que as crianças
apresentam sobre o cabelo estão atreladas ao projeto de branqueamento promovido
no estado do Paraná. E outras respostas das crianças legitimaram essa idealização
ao branco como referência de beleza: “a cor dela é meio marronzinha, branca é mais
bonita”.
Nesse contexto, a pesquisadora negra indagou: “então eu não sou bonita?
Porque eu sou pretinha igual a menina bonita do laço de fita”. As crianças riram e a
maioria disse: “você é bonita”, “sua cor é marrom e não preta”, “a menina é bem pre-
ta”. As discussões corroboram com o imaginário social de branqueamento, de que,
quanto mais branca é a pessoa, ela representa a pureza e a beleza, em contrapartida a
cor preta é associada à sujeira e discriminação, como explicitado também em outra
pesquisa, no excerto a seguir:

Provavelmente, a consciência que a criança adquire é de que seu cor-


po provoca essas rejeições, e essa percepção pode estabelecer uma
relação ruim com esse corpo. A associação da cor preta com sujeira
apareceu seguidamente em situações de discriminação. Dessa e de
outras formas, o corpo negro passa a ser sentido como corpo que traz
dor, corpo indesejado, que precisa ser modificado. E, como corolá-

138
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

rio, coloca-se o desejo de ter um corpo branco, aquele considerado


bonito, agradável. (BENTO, 2012, p. 111).

Após os relatos, as crianças disseram que gostaram da história, e a parte que


mais chamou a atenção delas foi quando o coelho da história perguntava: “Menina
bonita do laço de fita, qual é o seu segredo para ser tão pretinha?”, e alguns fizeram
questionamento como: “se cair na tinta fica preto mesmo, mas a tinta sai depois, né?”,
“se gente preta tomar banho, fica branca?”, “já tomei café e não fiquei preto” (registro
de caderno de campo). O fato de as crianças conhecerem a história e mencionarem
suas dúvidas e curiosidades pressupõe outros olhares para as representações da ne-
gritude.
Na segunda sessão, foi contada a história O menino marrom (PINTO, 1986).
Nesse dia, o ambiente foi preparado com cadeiras em círculo e cada criança sentou-
-se em uma cadeira, e no meio do círculo havia uma bacia de plástico com água
dentro. As pesquisadoras mostraram um boneco preto e perguntaram às crianças se
já tinham visto um menino daquela cor. As crianças apontaram para o colega negro,
da classe. Perguntamos ainda se aquele boneco tinha a cor bonita, e algumas crian-
ças responderam rapidamente: “não (risos)”, enquanto o menino que as crianças
apontaram respondeu: “é bonito porque é igual eu” (registro do caderno de campo).
O intuito de trabalhar essas literaturas foi o de problematizar as narrativas que são
contadas e apresentar outras perspectivas às crianças, como menciona a autora a
seguir:

[…] não existe nada de inocente nas histórias infantis que apresen-
tam, exclusivamente, um tipo físico como o portador da beleza, da
bondade, da riqueza ou da magia. Por isso, cada vez que essas pro-
fessoras possibilitam para as crianças ouvirem e verem histórias com
outras representações, elas estão travando uma luta contra os discur-
sos vigentes e dominantes sobre os modos como as crianças devem se
reconhecer como sujeitos e reconhecer o Outro. Também rompem
com as hierarquias nas quais se valoriza o branco europeu e se desva-
lorizam todas as outras formas de ser diferencias desse tipo, como o
não étnico, ou seja, o padrão. (DIAS, 2012, p. 667).

139
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Na sequência da história, com o boneco e a bacia com água, as crianças imagi-


naram que iríamos dar um banho no boneco negro, porque era um bebê. Dissemos
que iríamos contar uma história, e que cada uma das crianças teria que nos ajudar.
Levamos um material de papel dobradura, já confeccionado, pintado com
diferentes cores em formato quadrado e numerado pela quantidade de alunos/as;
cada criança recebeu um papel. As crianças não conseguiam visualizar a cor que
havia dentro do quadrado. Com o boneco no colo de uma das pesquisadoras, inicia-
mos a história e a cada trecho da narrativa era solicitado que um aluno (começando
pelo número um) colocasse dentro da bacia com água o material em formato de
quadrado que recebeu. Ao se envolver com a água, o quadrado em dobradura se
abria e as crianças conseguiam ver a cor que estava em seu papel. Todas as crianças
ficaram ansiosas até chegar a sua vez e, a cada nova cor, ficavam surpreendidas, até
que se encheu a bacia com diferentes cores, durante o processo de contação da his-
tória do “Menino marrom”.
No final da história, indagamos as crianças se tinham percebido a varieda-
de de cores que havia na história e que podíamos observar com as próprias figuras
na bacia. Todos responderam que sim. A partir disso, as crianças ficaram ouvindo
atentas e disseram: “minha cor é linda, né?”, “eu sou igual o menino marrom, mas
sou mais marrom que ele”, “todo mundo é bonito, até bem pretinho” (registro de ca-
derno de campo). Essas experiências evidenciam o quanto a literatura e atividades
que apresentem diferentes percepções da cultura da população negra são de extrema
relevância para a produção de outras representações sociais, como expresso também
em outras pesquisas:

[...] se na primeira metade do século XX, a literatura infantil na-


cional conserva estereótipos do negro, a produção contemporânea
sob influência da negritude e do próprio movimento negro, numa
tentativa de eliminação do racismo, lança mão de outras formas de
representação, tais como: inserção de traços e símbolos da cultura
afro-brasileira; representação dos mecanismos de resistência para
enfrentar os preconceitos e a realidade social; consciência crítica da
escravidão; valorização da identidade afro e das diferenças culturais.
Nesse sentido, a presença do negro na literatura infantil brasileira
participa de um processo que vai da manutenção à desconstrução do
estereótipo negativo (FRANÇA, 2006, p. VI).
140
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

Para finalizar, a última história contada foi Bruna e a galinha d’Angola (AL-
MEIDA, 2003), para diferenciar dos outros ambientes preparados, levamos as
crianças no gramado da escola e elas sentaram-se em círculo. Contamos a história
por meio do livro, mostrando as imagens e dialogando com as crianças. Ao término
da literatura foi questionado sobre o que acharam da história, se conheciam pessoas
parecidas com a personagem. Um menino, que tinha resistência quando se falava de
pessoas negras, mencionou: “essa Bruna é bem feia, nem dá pra ver essa pele escura
direito”. Indagamos: “mas você se parece com ela e é bonito”. Ele respondeu: “eu sou
bonito porque sou moreno e ela é feia porque é bem pretona” (registro de caderno de
campo). O trabalho com as histórias e memória da população negra deve ser con-
tínuo, com diversas histórias e ações didático-pedagógicas que problematizem as
representações sociais fixas e hegemônicas apresentadas, como a do menino.
Outras crianças comentaram sobre a história e disseram que, assim como a
avó de Bruna, suas avós também pintavam panos de prato e bordavam, além disso,
mais uma vez indagamos: “qual é mais bonita, a Bruna dessa história ou a menina
bonita do laço de fita?” E algumas crianças responderam: “as duas são feias, mais bo-
nita é a Branca de Neve e a Elza do Frozen”. Em meio aos diálogos, uma das meninas
respondeu: “a Bruna é uma princesa, porque eu sou pretinha igual ela e eu também
sou uma princesa”. Um menino disse: “não! Princesa é branca”. Aproveitamos para
reiterar que tanto a Bruna quanto a Elza podem ser princesas, e que os conceitos do
belo e do feio são construções sociais que precisam ser indagadas:

As oposições beleza/feiúra, masculino/feminino estão inscritas


numa relação de poder. Aquilo que é considerado fe, não somente no
que concerne aos corpos, mas também ao espetáculo social, se man-
tém nos lugares onde reinam a miséria, as condições subumanas de
vida. A pobreza, as trevas, a escuridão, sujeira, os negros são facilmen-
te associados à feiura humana ou a feiura das coisas. O luxo, o brilho,
a higiene, os brancos são associados à beleza. São signos de beleza
e da feiura que demonstram o quanto o julgamento estético é tam-
bém atravessado pelas questões políticas. (GOMES, 2002, p. 371).

Perguntamos se as crianças tinham heróis e bonecas marrom/preta em suas


casas e um menino respondeu: “não existe herói preto, eu só tenho o Bem 10 e o ho-

141
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

mem-aranha” (todos os meninos disseram não ter bonecos pretos), uma das meni-
nas disse: “eu só tenho barbie”. Questionamos: “se você ganhasse uma boneca preta,
você iria brincar com ela?” E ela respondeu: “não, porque preto é sujo”.
Novamente, a menina que se reconhece como preta igual a Bruna, persona-
gem da história, respondeu: “eu tenho boneca branca, mas a minha preferida é a bem
pretinha porque minha mãe disse que é igual eu” (registro de caderno de campo). São
essas falas que expressam a representatividade da negritude e são essas discussões
que precisam ser potencializadas em todos os espaços sociais, sobretudo, nas escolas.

Considerações finais
Com a pesquisa e as temáticas desenvolvidas na escola, e no decorrer das
observações, discussões e atividades desenvolvidas/realizadas, esperamos que os/as
profissionais da educação desenvolvam outros projetos, atividades e estratégias para
lidar com a história da população negra na educação infantil.
É preciso o reconhecimento da necessidade de se trabalhar em sala de aula
a representatividade negra, afinal é uma temática que precisa ser dialogada com
docentes, estudantes e funcionários/as que pertencem ao ambiente escolar e não
apenas por especialistas. O trabalho pode propiciar, ainda, que as diferenças sejam
colocadas em diálogo e, principalmente, em práticas e não sejam apenas reprimidas
ou ignoradas, como pesquisas recentes evidenciam (FELIPE, 2009).
Diante do trabalho com a contação de histórias e das ações na escola, é pos-
sível também a realização de outros trabalhos coletivos, que sejam estendidos à co-
munidade, às famílias. Ao convidar os responsáveis pelas crianças a apreciarem os
resultados de ações como estas na escola, as representações sobre a população negra
podem ser compreendidas como conteúdos curriculares que precisam ultrapassar
os muros da escola e problematizar os preconceitos presentes em outros espaços.
O nosso trabalho promoveu momentos de diálogos com as crianças que pro-
piciaram que elas vivenciassem e percebessem diferentes narrativas sobre a popula-
ção negra e como essas representações são produções sociais. Por fim, pretendemos
que os/as professores/as busquem mais recursos, realizem mais trabalhos sobre as te-

142
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná

máticas abordadas, inventando e reinventando práticas que oportunizem e ampliem


as possibilidades pedagógicas de um novo olhar para as crianças e suas infâncias.

Referências
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 5. ed. São Paulo:
Scipione, 1995.
ALMEIDA, Gercilga de. Bruna e a galinha d’Angola. 3. ed. Rio de Janeiro: EDC/Pallas,
2003.
ARAÚJO, Ulisses Ferreira de. A construção de escolas democráticas: histórias sobre a
complexidade, mudanças e resistências. São Paulo: Moderna, 2002.
BENTO, Maria Aparecida Silva. A identidade racial em crianças pequenas. In: ______.
Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, concei-
tuais. São Paulo: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT,
2012.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”,
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
______. Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das
relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.
Brasília, DF: MEC/Secad, 2004.
______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 1, de 17
de 17 de junho de 2014. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jun. 2014. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf>. Acesso em: 12 mar.
2016.
BUSATTO, Cléo. Contar & encantar: pequenos segredos da narrativa. Rio de Janeiro:
Vozes, 2003.
CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, pre-
conceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2003.
DIAS, Lucimar Rosa. Formação de professores, educação infantil e diversidade étnico-
-racial: saberes e fazeres nesse processo. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, v. 17, n. 51, p.
661-674, 2012.
DUARTE, Carolina de Paula Teles. A abordagem da temática étnico-racial na educação
infantil: o que nos revela a prática pedagógica de uma professora. In: BENTO, Maria Apa-
recida Silva (Org). Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos,
jurídicos, conceituais. São Paulo: Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigual-
dades – CEERT, 2012. p. 138-162
FELIPE, Delton Aparecido. Narrativas para alteridade: o cinema na formação de
professores e professoras para o ensino de história e Cultura Afro-Brasileira e Africana na
Educação Básica. 152 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de
Maringá, 2009.

143
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

FELIPE, Delton Aparecido; FRANÇA, Fabiane Freire. Contação de história no timor


leste: algumas experiências de uma professora brasileira. Revista Educação e Linguagens,
v. 4, p. 9-13, 2016.
FELIPE, Delton Aparecido; TERUYA, Teresa Kazuco. Processo identitário na educação
escolar e as narrativas sobre a negritude brasileira. Revista Fórum Identidades, v. 17, p.
29-48, 2015.
FRANÇA, Fabiane Freire. Representações sociais de gênero na escola: diálogo com
educadoras. 2014. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá,
Maringá, 2014.
FRANÇA, Luiz Fernando de. Personagens negras na literatura infantil brasileira: da
manutenção à desconstrução do estereótipo. 2006. Dissertação (Mestrado em Estudos de
Linguagem) – Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, 2006.
GIROUX, Henry A. Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney. In: SILVA,
Tomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos cultu-
rais em educação. Petrópolis: Vozes, 2003.
GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da iden-
tidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. 2002. Tese (Doutorado em Antro-
pologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
______. Educação, identidade negra e formação de professores: um olhar sobre o corpo
negro e o cabelo crespo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 167-182, 2003.
LUCAS, Diego. Negros no sul? Tem, sim senhor. NEAB, nov. 2011. Disponível em:
<ttp://afroneab.blogspot.com.br/2011/11/negros-no-sul-tem-sim-senhor.html>. Acesso
em: 17 abril 2018.
MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. 7. ed. São Paulo: Ática, 2005.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em
saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitex, 1993.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de
Janeiro: Vozes, 2011.
PÉREZ, Carmen, Lúcia Vidal. Cotidiano: história(s), memória e narrativa. Uma expe-
riência de formação continuada de professores alfabetizadoras. In: GARCIA, Regina Leite
(Org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 97-118.
PINTO, Ziraldo Alves. O menino marrom. São Paulo: Melhoramentos, 1986.

144
Oralidades afro-paranaenses:
fragmentos da presença negra na
história do Paraná
Mel e Candiero

Resistência Afro-Paranaense:

1864-2014 sesquicentenário da maior Pra irem a São Paulo.


revolta negra do Brasil colonial Chegando foram vitimados por uma
Fazenda Capão Alto, Castro-PR. epidemia...
Ou foi mandinga da escravaria?
Nego bão são os negros do Capão... Sei lá... Sou menino, não vivi este tempo.
Negros do partido alto! Só ouvi os mais velhos contarem
Preto velho, nega véia, Que a fazenda Capão Alto ficou esquecida.
Afroparanaenses, Lá passaram um século...
Negros do sul. Elegendo seus líderes... Trabalhando,
Quilombolas do Paraná Reconstruindo suas identidades africanas,
Com força, inteligência, sagacidade Se informando...
Espalharam sua história pela cidade. Criando mulas, porcos, galinhas, gado.
Hoje pedimos agô para os mais velhos Com a benção de Nossa Senhora do Carmo,
Pro seu legado começarmos a contar. Dos Nkises e Orixás,
Vila Sant’Ana do Iapó, Nasce uma nova geração de afrodescendente
Atualmente Castro, livres
Campos Gerais. Que em pleno período da escravidão
País dos Tropeiros, Não conheceu correntes, tronco, pelourinho,
Fazenda Capão Alto chicote... Patrão.
Onde aconteceu este entrevero: Por mais de cem anos não conheceram os
A maior revolta negra do Brasil Império, senhores
No Paraná. E os horrores da escravidão...
A língua pequena conta Um século de abandono
Que os padres carmelitas receberam um Dos frades feitores escravizadores carmelitas.
chamado Foi uma benção!

145
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

A fazenda virou um nascedouro Chegaram, viram negras e negros


De almas azeviches... Livres. entusiasmados,
Mas o que é bom, dura pouco. Tremeram na base...
Passando uma centena de anos, Muito barulho, carroça vazia.
Apareceram os novos donos para tomar posse Tentaram nos enfrentar... Saíram correndo,
E, surpresos, encontraram mais negros que o Desmoralizados.
esperado. Não entenderam que Deus é justo
Rapidamente quiseram levá-los E Nossa Senhora está do nosso lado.
Para São Paulo na condição de escravizados Aí vieram os reforços de Curitiba com toda
E negociá-los. sua artilharia
Deixamos bem claro que não aceitamos E aliados com outras cidadezinhas... Muitos
cativeiro, soldados,
Preferíamos a morte. Depois de dias intensos de combates...
Os caucasianos não entenderam... Mortes de ambos os lados,
A nossa resistência, Nos botaram pra correr...
Nossa liberdade sendo violentada mais uma Nos venceram na quantidade
vez... Exorbitante de soldados e no cansaço.
Nosso brado bárbaro ecoou bem alto: Acabara ali a maior Revolta negra do Brasil
Só servimos a Nossa Senhora do Carmo Império.
E tivemos que reagir de forma igualmente Cem anos de resistência cultural negra,
violenta Invisibilizada, ocultada, apagada da
Contra o ódio e a cegueira dos novos patrões. História do Paraná.
Na tentativa de conter a revolta Resistência quilombola...
Dos Escravizados Livres do Capão Alto, Abafada pela força militar... Vencida.
Chamaram a Guarda Militar de Castro... Mas não desmoralizada.
Não deu nem pro começo, um café pequeno. Fugimos pro mato... Para a Serra do Socavão
Pegamos facão, enxada, foice, pedra... E começamos tudo do nada novamente.
As únicas armas que tínhamos. Resistência negra
E munidos com a nossa fé Na serra do Apon.
Fomos para o enfrentamento.
O estouro da boiada... Dos muares, cercas “Sô iguar a pica-pau
arrebentadas, Que quarqué madera fura
Casas queimadas... E o nosso rio tingiu-se de Sô nas cartas o rei d’espada
sangue. Desaforo não atura...
Muitos anos de luta. Sô quinem touro de briga
Chamaram a guarda militar de Ponta Por nadinha armo turra
Grossa... Nego bão da minha raça

146
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

Não tem chão que se apura”

Negro Adeodato
Líder do Contestado
(REINEHR; SILVA, 2016)

Quem disse que o Paraná não teve a forte e brilhante contribuição dos povos
afrodescendentes? Os paranistas Wilson Martins e Bento Munhoz da Rocha Neto
disseram: “Assim é o Paraná. [...] acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de
uma civilização original construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão,
sem negro, sem português e sem índio, dir-se-ia que sua formação humana não é
brasileira” (MARTINS, 1955). “A contribuição do negro foi diminuta na formação
étnica do Paranaense” (NETTO, 1969).
Fontes primárias e secundárias demonstram a falácia do discurso paranista,
eugenista e racista. Entre estas, ressaltamos a Coleção correspondência do governo,
publicada pelo Arquivo Público do Paraná. A coleção reúne um coeso conjunto
documental dos atos oficiais do governo paranaense, desde a instalação da província
do Paraná, em 1853. Trata-se do Catálogo seletivo de documentos relativos aos africa-
nos e afrodescendentes livres e escravos (PARANÁ, 2005). Para o diretor do Museu
Paranaense, Renato Carneiro Jr., no prefácio da obra supracitada, “a presença do
negro na história paranaense foi por muitas vezes negada por quem adotava postura
de superioridade em relação à esta população: [...] Vem em muito boa hora as ações
do Governo do Paraná para permitir a recuperação da história de nossa população
negra, por acrescentar novas luzes sobre a nossa formação histórica.”
Segundo Gilberto Freyre, no livro Ferro e civilização (1988, p. 76 e ss.), da-
tam de 1550 as primeiras referências aos faiscadores, especialistas africanos da Costa
do Ouro trazidos para trabalhar na extração e que formaram as primeiras povoações
no território hoje chamado de Paraná.
Segundo o Dicionário histórico-biográfico do estado Paraná (CHAIN, 1991,
p. 12-13), no verbete “Africanos na Formação da População Paranaense”:

O mito da remota branquitude dos paranaenses e aquele da inexis-


tência do regime escravo tiveram origem na obra de Saint-Hilaire.
Mitos estes que tem sido retomados, sobretudo pela avassaladora
147
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

presença, a partir dos meados do século XIX dos imigrantes euro-


peus, notadamente de origem eslava. O número e a composição dos
habitantes que viviam, nas terras paranaenses, a partir dos meados do
século XVII até o seu final, não pode ser precisados até o momento
pela carência de dados. Todavia, é certo que desde 1697 os africanos
estavam presentes em Curitiba. Estimativas do Ouvidor Rafael Pires
Pardinho apresentam em 1720 a população do Paraná com 3.400
pessoas de confissão, ou seja, maiores de sete anos e livres, não sendo
considerados as crianças e os escravizados. O primeiro censo com-
pleto da capitania de São Paulo abrangendo o Paraná data de 1772.
A Comarca possuía 5.915 moradores livres e 1.712 escravizados. Ou
seja, a população escrava representava 28,8% do total dos habitan-
tes atingidos pelo censo. Observa-se, todavia, que em Paranaguá a
presença de escravizados alcançava proporções mais elevadas, como
44,2% do total dos seus habitantes. As listas nominativas de 1798
a 1830 permite acompanhar a participação de pretos e pardos na
população paranaense, a maior em 1816, com 46,2% e a menor em
1830, com 41,7%. Mostram ainda que a população do Paraná con-
tou entre 20,3% de escravizados em 1798 e 17% em 1830. Verifica-se
ainda a numerosa presença de pardos e pretos na população livre do
Paraná, com 25,2% em 1798, 34,8% em 1816 e 29,8% em 1830.

Apesar das lacunas, podemos perceber nessas estatísticas a quantidade im-


portante de presença preta e parda na população do Paraná, segundo os dados dos
primeiros censos: 45,5% (em 1798), 81% (em 1816) e 71,5% (em 1830). Chama
atenção a grande presença preta e parda em meio à população livre do Paraná:
25,2% (em 1798); 34,8% (em 1816) e 29,8% (em 1830).
Cecília Maria Westphalen aponta em suas análises o problema da falta de
fontes históricas:

O Paraná se constitui um exemplo desolador pois, apesar de consti-


tuir terra nova, muito pouco conservou de sua documentação histó-
rica. Nada, ou quase nada, possui em matéria de fontes relativas ao
século XVII. Muito pouco do século XVIII. Alguma coisa apenas,
ainda que fragmentária, do século XIX. Mas esse é o Paraná tradi-
cional, do ouro de lavagem, da sociedade campineira, do caminhar
das tropas, da erva-mate. O que dizer do Paraná moderno? Do Pa-
raná do Norte, com os pioneiros do café? Do Paraná do Sudoeste,
com os excedentes populacionais vindos do Rio Grande do Sul e de
Santa Catarina? Com raras exceções, também tudo que diz respeito

148
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

a ocupação do Paraná moderno, por conveniência, negligência ou


ignorância, está se perdendo. (WESTPHALEN, 2006).

Vale ressaltar que, quando se trata de memória afrodescendente, houve ações


oficiais de apagamento das contribuições e, mais especificamente no Paraná, até
mesmo da presença da comunidade afrodescendente. Apesar de já haver uma certa
consciência política e de ter sido produzida grande quantidade de material de qua-
lidade sobre a memória e a herança afro no Brasil e no mundo, ainda existe pouco
material disponível e de fácil acesso sobre a nossa realidade local. As políticas afir-
mativas e suas estratégias de reversão daquelas políticas de apagamento herdadas
do período pós-colonial sofrem a resistência do racismo estrutural e institucional
profundamente arraigados em nossas instituições seculares. Esse fato ainda atrasa
a efetivação de ações de reparação das injustiças cometidas no passado e que perpe-
tuamos ainda, seja por inconsciência, seja por interesses econômicos.
Essas ações oficiais estão fartamente documentadas no livro comemorativo
dos 300 anos da Câmara de Curitiba. Por exemplo, em 1807:

se passou um Edital para se evitarem os fandangos e principalmen-


te nos que costumam entrar os Escravos cativos na qual se declarou
a pena aos mesmos cinqüenta açoites no Pelourinho, e trinta dias
de cadeia, e seis mil réis de condenação aos que dessem casas para
esse fim. [...] Entre 1829 e 1860, constata-se uma escassez de pos-
turas com alusão a escravos. A partir de 1861, assiste-se a uma pro-
liferação de normas regulando as atividades dos escravos. Ou seja,
à medida que se aproximava o fim do escravismo, multiplicavam-se
os dispositivos legais que procuravam regulamentar a participação
da população cativa na trama social. Tendo sido sem proveito todas
as providências policiais até agora dadas para se extirparem os ba-
tuques, que sem mais razão que a corrupção dos costumes, se tem
arraigado neste povo, e que dão azo a perpetração de muitos delitos
que resultam da promiscuidade de ambos os sexos da classe imoral
de escravos, e libertos, que não fazem tais ajuntamentos senão para
dar pasto à devassidão e à desordem da crápula, com ofensa manifes-
ta da moral pública, e tranquilidade dos povos, por isso provém =
Artigo primeiro = que nenhum indivíduo deste Município faça nem
consinta fazer-se em sua casa dentro desta vila, suas freguesias, cape-
las e seus subúrbios, ajuntamento para batuques, sem prévia licença
por escrito do respectivo Juiz de Paz, cuja licença será apresentada ao

149
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Competente Oficial de quarteirão: sob pena de pagar uma multa de


4 a 8 dias de prisão, que será julgada pelo mesmo Juiz de Paz = Ar-
tigo segundo = os Juízes de Paz não concederão tais licenças, senão
com muito justificado motivo: inda em tais casos especificarão em
suas licenças, que os donos da casa em que tais ajuntamentos tiverem
lugar não consintam aí escravos de ambos os sexos, furtivamente sub-
traídos das casas de seus senhores bem como filhos famílias e pupilos
sem consentimento de seus pais ou tutores, debaixo das penas comi-
nadas no artigo antecedente, além da responsabilidade por qualquer
desordem que por ocasião acontecer = Artigo terceiro = se não com-
preendem nas antecedentes disposições aqueles bailes ou funções,
que por motivo de regozijo público ou particular a qualquer família
tiver lugar em casas descentes e entre gente morigerada. Curitiba, 24
de setembro de 1829. (PEREIRA, 1993, p. 23).

Segundo Octavio Ianni (IANNI, 1962), citando o Arquivo Municipal de


Curitiba, no livro Metamorfose dos escravos, outra ação institucional para cercear as
manifestações culturais de origem africana aconteceu em 1773, quando “José Lou-
reiro Fernandes, visitador ordinário do bispado de São Paulo estipulou que deveria
ser condenado em duas patacas as pessoas que assistissem aos batuques.”
Em contrapartida, inúmeros esforços articulados de valorização e proteção
dos povos afrodescendentes e de suas heranças culturais vêm sendo empreendidos
desde que o Brasil assumiu os compromissos ao ratificar a Convenção das Nações
Unidas para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, em 1968; os
compromissos assumidos ao ratificar a Convenção nº 111, de 1958, da Organização
Internacional do Trabalho, que trata da Discriminação no Emprego e na Profissão.
Mais recentemente podemos destacar a declaração e o plano de ação emanados da
III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia
e Intolerâncias Correlatas, conhecida como Conferência de Durban, em 2001; a
promulgação da Lei Federal nº 10.639/2003 e do Estatuto da Igualdade Racial; a
criação do programa Para um Brasil sem Racismo e da Secretaria Especial de Políti-
cas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que abrange a implementação de
políticas públicas nas áreas do trabalho, emprego e renda; cultura e comunicação;
educação; saúde, terras de quilombos, mulheres negras, juventude, segurança e re-
lações internacionais; a campanha “Somos Todos Filhos do Brasil” contra a intole-

150
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

rância religiosa e o direito à liberdade de crença; o dever do Estado e da sociedade


de garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro,
independentemente da etnia, raça ou cor da pele, o direito à participação na comu-
nidade, especialmente nas atividades política, econômica, empresarial, educacional,
cultural e esportiva, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais;
bem como a realização das conferências municipais, estaduais e federais da igual-
dade racial. Em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou o Ano
Internacional dos Povos Afrodescendentes e, não alcançando o impacto necessário,
propôs o Decênio dos Povos Afrodescendentes para 2015-2024, cujo tema é reco-
nhecimento, justiça e desenvolvimento. Em âmbito local, destacamos a assinatura
do Pacto Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Paraná, em 2010), em 2014
e a criação do Conselho Estadual de Promoção de Igualdade Racial do Paraná. Em
2005, o governo do estado do Paraná instituiu o Grupo de Trabalho Clóvis Mou-
ra (GTCM), cuja tarefa foi a de realizar o levantamento básico das comunidades
negras tradicionais e comunidades remanescentes de quilombos do Paraná. O le-
vantamento está registrado no livro Quilombos do Paraná, do GTCM de 2010. No
município da Lapa, o GTCM registra o maior número de quilombolas do estado,
distribuídos em três comunidades remanescentes de quilombos: Feixo, Restinga e
Vila Esperança. Há 37 comunidades certificadas em 17 municípios paranaenses e
quase 90 em fase de registro.
Diante da presença negra invisibilizada no Paraná, impõe-se o desafio de aju-
dar a reverter o falso quadro de apagamento imposto historicamente. Assim come-
ça, em 2006, a caminhada de ações e reflexões do Centro Cultural Humaita, cujo
trabalho culmina, em 2015, com a permissão de uso do Viaduto Capanema para a
construção de um Centro de Referência da Cultura Afro em Curitiba. Na ocasião,
tínhamos sido incumbidos de realizar a abertura do Encontro de Educadores Ne-
gros em Faxinal do Céu, na então chamada Universidade do Professor, com uma
atividade artística. A partir daquele momento, percebemos que nossa contribuição
deveria ir além de fazer apresentações artísticas. Percebemos que, para aprender e
ensinar os conteúdos de história e cultura afro, os/as educadores/as precisavam
vivenciar alguns elementos civilizatórios de matriz africana, entre eles, podemos

151
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

destacar a roda, a musicalidade e a corporeidade, elementos centrais das atividades


culturais afro-brasileiras.
A história e a cultura afro nos colocam diante de uma percepção diferenciada
da transmissão de conhecimentos. Esse aspecto metodológico da transmissão tradi-
cional de conhecimentos abrangendo o corpo, a musicalidade e a oralidade vai além
do pensamento racional e da assimilação de informações. A história e a cultura afro
nos convidam a novas formas de relações étnico-raciais e nos colocam em situação
de olhar com outros olhos, sentir com outra pele e virar o mundo de ponta cabeça,
literalmente. Para os não melaninados, receber uma formação profissional que os
convide a se colocarem na pele do Outro significa abrir mão do conforto eurocên-
trico. Para os/as educadores/as conscientes da sua história e de seu pertencimento
negro, colocar-se na pele do Outro significa ter que criar estratégias para ajudar os
colegas, pois a grande parte dos/as educadores/as está absolutamente convicta de
uma série de conceitos equivocados... herdados do pensamento colonial, escravo-
crata, excludente, racista etc. Ainda que de forma inconsciente.
O grande desafio que permanece mobilizando as energias do Centro Cul-
tural Humaita diante desse panorama foi: “Como valorizar a presença negra e dar
visibilidade à herança cultural afrodescendente no Paraná?” E, a partir de 2013, um
novo desafio se coloca: “Como ampliar este trabalho e compartilhar os saberes de
ponta que vêm sendo produzidos nos restritos meios acadêmicos com seus herdei-
ros legítimos e expropriados?”
Após mais de dez anos de atividades em Curitiba, sentimos a necessidade
de ir ao encontro dos mestres e mestras das cerca de 40 comunidades quilombo-
las registradas no Paraná. Nesses encontros, as tradicionais cantorias, improvisos e
versejados começaram a se redesenhar e narrar realidades diversas encontradas nas
comunidades remanescentes de quilombos e comunidades tradicionais negras. Por
outro lado, ao compartilhar os conhecimentos produzidos em linguagem acadêmi-
ca, percebemos que era necessário traduzir as estórias e histórias, sagas, contribui-
ções e agruras da nossa história. Escolhemos o viés da oralidade e da poesia, também
chamado de “oralitura”, porque esse gênero textual é o que melhor se identifica com
as oralidades de origem africana. Ressaltamos que em diversos lugares do Brasil es-

152
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

tão surgindo propostas similares buscando traduzir o pensamento afro-brasileiro e


dando lugar a uma “literatura negro-brasileira”. Assim teve início a coleção Oralida-
des afro-paranaenses.
Como bem observou a professora Romilda (SANTOS, 2016):

A escritura poética do Zelador Candiero traz para o debate e conhe-


cimento dos negros e seus descendentes a cultura negra reavivada nas
congadas, nas rodas de samba, trazidas pelos escravizados, através de
suas memórias. A descendência negra do poeta lhe confere o direito
de ser o protagonista dos seus versos e clamar seu povo para o co-
nhecimento da história negra. As vozes ecoadas ao longo do poema
mostram a identificação dos envolvidos com as memórias dos ances-
trais, individual e coletiva. O tom de celebração do orgulho negro
ancestral e o chamamento para o momento presente reivindica o
reconhecimento da cultura e das tradições de seu povo. O poeta re-
lembra o tempo da escravização, o tratamento recebido, ao pedir que
seus irmãos busquem no fundo do baú da história suas memórias,
o contexto em que obrigados a viver, para logo depois afirmar que
apesar do tratamento indigno, o futuro do povo é aquele que cada
um constrói.

Essas oralidades afro-paranaenses resultam de uma série de leituras (nas en-


trelinhas) e de uma série de escutas vivenciadas no levantamento básico realizado
junto a fontes bibliográficas e orais, pois no contexto da cultura afro há que se levar
em consideração a memória dos mestres e mestras. Os anciãos são fontes de inco-
mensurável riqueza para a compreensão de processos históricos invisibilizados pelos
poderes públicos. Há muita coisa fora dos livros sendo compartilhada “ao pé do
ouvido”.
O Paraná e suas cidades são centros irradiadores de negritude, embora quase
não apareçam na historiografia afro-brasileira. Fatos e personalidades negras im-
portantes da história estão saindo da invisibilidade, bem como suas contribuições
na poética, gastronomia, música, artes, religiosidade, farmacopeia, tecnologias, po-
lítica, engenharia, comércio, educação, entre outros. O sesquicentenário da maior
revolta escrava do Brasil Colônia, em Castro, merece a devida atenção.
De modo geral, desconhecemos as histórias das cerca de noventa comuni-
dades remanescentes de quilombos em fase de registro ou já certificadas. Pouco se

153
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

fala da importante contribuição negra no Ciclo do Ouro. O Ciclo dos Tropeiros


tampouco remete à compreensão da história afro-brasileira, apesar de ter sido o
mais importante foco de alforrias por compra da própria liberdade, devido à facili-
dade comercial que os negros peões tropeiros encontravam no caminho. As cidades
mais antigas abrigam conjuntos arquitetônicos centenários construídos com mão
de obra e tecnologias afrodescendentes. Temos manifestações culturais originárias
do período colonial, como a última Congada do Paraná, preservada todo dia 26
de dezembro, no maior santuário do mundo dedicado ao santo negro São Bene-
dito, no município da Lapa. Curitiba é a capital e o Paraná é o estado com maior
número de afrodescendentes no Sul do Brasil. O maior portal africano do mundo
e o segundo clube social negro construído no Brasil estão em Curitiba. O escravo
Zacarias, alforriado pelo famoso milagre de Nossa Senhora Aparecida, a santa negra
padroeira do Brasil, é originário das terras de Curitiba. Somos cerca de seiscentos
mil afro-curitibanos e três milhões de afrodescendentes no Paraná.
Não se pode mais escamotear a escravização e a contribuição negra na his-
tória do Paraná, como queriam os paranistas. Com o advento da Lei Federal nº
10.639/2003, que determina a inclusão de história e cultura africana e afro-brasilei-
ra em sala de aula, foi preciso superar estereótipos racistas, preconceituosos, repletos
de vícios eugênicos, que permeavam a noção estabelecida de história e de sociedade;
vieram à luz uma série de conhecimentos e informações sobre a longa caminhada do
homem desde a pré-história na África, berço da humanidade; ainda temos muito
a aprender com a história das poderosas civilizações africanas, que antecederam as
civilizações europeias longamente estudadas em nossas escolas, e com as aguerridas
lutas abolicionistas ocorridas desde o início do período colonial no Brasil e em toda
a diáspora.
Esse aprofundamento e amplitude gradativa da chamada “consciência negra”
se reflete em gestos políticos, como, por exemplo, o feriado do dia 20 de novembro
aprovado por unanimidade na Câmara de Vereadores de Curitiba, como já o foi em
mais de mil cidades brasileiras. Apesar de barrado na justiça por motivos econômi-
cos, está se ampliando o processo de compreensão desse fenômeno de visibilidade e
valorização da presença negra e da cultura afro no Paraná. Pouco a pouco, o estado

154
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

mais negro do Sul vai se conformando com o movimento inevitável de largar os


grilhões da exclusão e os chicotes do racismo para cantar a plenos pulmões suas
oralidades afro-paranaenses.
Serão cada vez mais intensos os contatos com uma infinidade de saberes so-
bre a contribuição positiva dos povos afrodescendentes em todo o mundo. Fica para
a historiografia oficial o desafio de aprofundar esses fragmentos da presença negra
na história do Paraná e produzir uma bibliografia especializada sobre os cerca de tre-
zentos anos de presença negra no Paraná antes da chegada dos primeiros imigrantes.
Rogamos apenas que esses saberes sejam construídos de um ponto de vista menos
eurocêntrico e mais afrocêntrico. Essa contribuição, os mestres da cultura popular
e das culturas de matriz africana poderão dar ao universo acadêmico, se esta puder
se colocar em pé de igualdade. Caso contrário, os saberes escritos permanecerão
restritos aos seletos círculos acadêmicos.
Para nos aproximarmos dessa realidade ocultada na historiografia oficial e
valorizar os saberes mais afrocêntricos, optamos por nos afastar da academia e da
urbanidade, colocar o Centro Cultural Humaita nas malas e passar alguns anos
mais próximos dos quilombos e expressões culturais afro-paranaenses. Nesse per-
curso poético, compartilhamos saberes garimpados com os mestres e as mestras de
notório saber nos mais diversos campos culturais e artísticos do Paraná e do Brasil,
nas entrelinhas da literatura histórica paranaense e no diálogo com intelectuais e
pesquisadores de diversas áreas do conhecimento.
Cada poema, crônica, manifesto ou pensamento azeviche contido na cole-
ção Oralidades afro-paranaenses busca dar força a quem lê, positivando a identidade
negra no Paraná, em contraponto às historiografias antigas que teimam em reduzir
a presença do povo negro à condição de escravizado pelo branco. Essa postura está
alinhada ao pensamento afrocêntrico: filosofia banto de axé/n’guzo. Quais os mui-
tos motivos de sua urgência? O trágico genocídio da nossa juventude negra; as altas
taxas de evasão escolar; o racismo explícito em diversos setores da sociedade, em
especial nos poderes públicos e nos veículos de comunicação de massa; os índices
socioeconômicos ainda desiguais; a dificuldade na efetivação de políticas públicas
de valorização dessa etnia fundante da nossa sociedade; a intolerância contra as reli-

155
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

giões de matriz africana, este último gravíssimo, pois ataca justamente um dos pila-
res fundamentais de qualquer comunidade, que é o âmbito do sagrado.
Mais que uma questão de legislação, a inclusão da história e cultura africana
e afro-brasileira nos currículos escolares é uma questão ética. E “nós somos capa-
zes, somos competentes para fazê-lo”, como bem disse o então secretário estadual de
Educação do Paraná, Sr. Flávio Arns, na abertura do AboliSom – Ecos da Abolição
da Escravatura, em 2012. Estamos no início do Decênio Internacional dos Povos
Afrodescendentes, proposto pela ONU para debater justiça, reconhecimento e de-
senvolvimento para os povos afrodescendentes no mundo todo, entre 2015 e 2024.
“Em todo o mundo, africanos e a diáspora africana continuam a sofrer desigual-
dade e desvantagem em razão do legado da escravidão e do colonialismo. Libertar-se da
violência, do preconceito e da discriminação é um sonho distante para muitos”, como
bem disse Ban Ki-moon, o secretário-geral das Nações Unidas, no livreto da ONU
sobre a Década Internacional de Afrodescendentes.
Lutar contra o racismo pode parecer uma tarefa complexa e difícil demais,
mas nossos passos vêm de longe e passam por lugares às vezes inesperados! Quando
estivermos mais conscientes da nossa história e mais certos do Brasil que queremos
para os próximos 20, 30 anos (um Brasil sem fome, sem racismo, sem violência,
sem analfabetismo funcional...), poderemos nos debruçar sobre a Lei Federal nº
12.288/2010, mais conhecida como a lei que instituiu o Estatuto da Igualdade Ra-
cial, e concluir uma história que ficou pendente no dia 13 de maio de 1888. Então,
estaremos mais próximos de nos livrar dos grilhões que ainda pesam nos calcanhares
da nação. Como diz o ditado africano: “Nunca é tarde para voltar atrás e recuperar
o que foi esquecido.”

Trajetórias de muitas vidas:


pequeno fragmento da presença negra em Palmas
Dona Maria Arlete, professora querida, Que o sul do Brasil tem muitas histórias pra
Me empresta seu olhar, sua filosofia de vida, contar.
Preciso enxergar... Sou quilombola do Paraná
Falar para os afrodescendentes do nosso país E estou atrás da minha história,

156
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

Das minhas negras raízes... pensamento Plantaram as sementes de cidades que


azeviche, vingaram,
Me religar... às matrizes afrocêntricas Trilharam os milenares carreiros indígenas,
Que me sustentam e me conectam Viram picadas virar estradas.
Aos meus ancestrais. Uma corrente ancestral... A cada dia de
Vamos estudar a escravidão branca, viagem
Mas também a contribuição Em suas paradas, cidades eram fundadas.
Dos afrodescendentes no Paraná. Palmas... Batam palmas para São Sebastião,
Pisar no chão Okê Arô!
Do estado mais negro do sul do Brasil. Padroeiro protetor.
Buscar os fragmentos das histórias O preto velho, peão tropeiro, meu bisavô
Que eram pra ser esquecidas Contou pro meu avô
Revolta... E pro meu pai que me ensinou
Não dei a volta na árvore do esquecimento, Os fundamentos do santo neste local.
Tenho pertencimento. Palmas... Batam palmas!
Sei que as mãos negras muito contribuíram O povo negro se levantou... O cativeiro
Para o desenvolvimento do meu país e do acabou.
mundo. A guerra do Paraguai ainda não acabou,
Construíram pirâmides, pontes... Está lacrada.
Os primeiros papiros, A escravidão quase acabou.
Inteligência negra africana. A verdadeira abolição, em transição,
As primeiras civilizações, as maiores religiões Está em nossas mãos.
A matemática... Ficou pra nossa geração
Os muros de taipa, Botar o bloco na rua,
Ainda presentes no Estado do Paraná. E efetivar as políticas públicas.
Os conhecedores do garimpo Olho pra roda e dou a volta ao mundo,
Fundaram cidades Trazendo o futuro
Do nosso imenso Brasil negro. Para reconstruir o nosso passado.
Contestado, contestando, A ancestralidade se faz presente.
Contextualizando uma história O machado de Xangô desceu
Apagada do imaginário... Cortando o véu da invisibilidade,
Palmas... Batam palmas Construída dia a dia pelos desmelaninados...
Para os negros tropeiros andantes Vamos catar as folhas e juntar as pedras,
Que saíam do Viamão para ir até Sorocaba. Refazer o passado,
Caminhos ancestrais, Reconstruir nossa história
Um verdadeiro corredor cultural. E os muros de taipa,
Afrodescendentes desbravadores... Pedra por pedra.

157
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Remontando as peças E das pedras.


Do quebra-cabeça imaginário. É outono, as folhas caem... fujo do mundo,
Nosso trabalho forçado... Me perco, tento entender...
Até hoje não indenizado. Zara Tempo!!!
Negros e negras assassinados É sobre a história do Quilombo de Palmas
E até hoje ninguém foi julgado. que penso escrever.
O genocídio dos jovens negros Palmas,
Continua sendo pouco noticiado... Uma história centenária
E o Estado acovardado Construída pelos herdeiros da benção de
Se escondendo de uma história difícil de Can.
assumir. Palmas para a diversidade paranaense,
Mas que está sendo reescrita Palmas para os afroparanaenses
Fora das regras da ABNT, Que ousaram sobreviver.
Nas trajetórias de muitas vidas, Palmas para o município mãe
Nas entrelinhas da história pra inglês ver. Do Sudoeste paranaense.
Com a energia dos erês,. Palmas
Em Palmas, Resgata a história dos nossos ancestrais
Uma pequena cidade que pensa ser européia, No ciclo da erva mate e da extração da
Quebraram o cachimbo da paz madeira,
E escutaram o canto de guerra. Da exploração do couro, do ouro, da lã...
Pensamento africano é circularidade, Palmas é uma das maiores produtoras de
Ancestralidade... Continuidade. maçã.
Em 2015 Uma região repleta de belezas naturais,
Iniciamos uma nova era De cachoeiras, rios.
A ONU acenando para o mundo, Uma paisagem verde repleta de pinheirais
Kaô, Kabiesilê! E de povos indígenas sacrificados pelo
O decênio dos povos afrodescendentes progresso.
Justiça e igualdade Botocudos, guaranis, caingangues...
Reconhecimento e desenvolvimento Palmas da Catedral do Senhor Bom Jesus
Um machado de dupla face. E de sua cruz de dez toneladas,
Minha alma chora, se alegra, canta... Palmas da gruta sagrada
Implora. De Nossa Senhora de Lurdes
Brada por isonomia E das nossas histórias veladas,
E vaia a falta de justiça social, Da fazenda Pitanga e da fazenda São Pedro,
O apagamento do povo negro, Patrimônios da humanidade.
O genocídio da nossa juventude, Terras tratadas pelas mãos dos antepassados.
Vítima da violência

158
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

Mãos negras da África, berço da Mais um capítulo da saga quilombola do


humanidade. Paraná.
Mãos negras limpas do sangue indígena. Nossa história não escrita,
Palmas para o município pioneiro na Mas cantada de uma forma singular,
instalação Ao lado de um fogão a lenha
Da primeira usina de energia limpa do Com a cuia de chimarrão a circular.
Brasil. As meninas com uma peneira
Palmas dos meus ancestrais... A limpar e escolher o feijão...
Palmas pro seu aniversário dia 14 de abril. Os mais velhos na mata,
O bairro São Sebastião do Rocio, Em busca da caça e do pinhão.
O primeiro bairro da cidade, Na mesa beiju, bolo de cará,
Fundado por melaninados alforriados Bolinho de chuva, pamonha,
Que se estabeleceram no local Canjica com torresmo,
Bem antes de existir a cidade, Quirera, farofa, tutu de feijão,
A partir de 1836. Pirão, buchada, paçoca de pinhão.
Negros libertos e escravizados Do lado de fora
Vindos do Rio Grande do Sul, As senhoras cantam e socam o milho no pilão.
Lanceiros negros, Do outro lado as mulas, os bois, os porcos
Negros da Revolução Farroupilha, Em frente ao mata-burro.
Da guerra do Paraguai, do Contestado. E as crianças brincam, correm, fazem
Memórias que começam a ser escritas algazarra
E graças à lei 10.639/03 Em cima do muro de taipa,
E à educação escolar quilombola, Tecnologias antigas.
Memórias resgatadas do nosso povo. As yalodês nos contam um pouco
De mulheres negras guerreiras Do que foi a crueldade branca
Como a escravizada liberta, a matriarca, Da maldita escravidão.
Dona Adelaide Maria Trindade. Palmas para os que aprenderam nos livros
Mulher negra livre fundadora da E para os que beberam da sabedoria
comunidade, Dos mais antigos.
Com São Sebastião do Rocio, Sou menino a procura de minha identidade.
Seu padroeiro e protetor. No meio da cidade ainda tento aprender.
Okê Arô! Fico perplexo com a matemática do preto
Protegeu a guria gaúcha que recebeu a velho.
alforria, Da primeira comunidade nasceram outras
Com as bênçãos e a justiça de Xangô, duas
E partiu para o sudoeste do Paraná E das três formaram uma:
Recomeçar a sua vida. A Freguesia de Palmas,

159
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Em 1855. A tia Chica cortava a couve que nem


Comunidade Castorina Maria da fiozinho.
Conceição, A roupa tinha que ser comprida,
Comunidade negra do Lagoão, Deus me livre de usar calça.
Conhecida posteriormente como Tobias A tia Tó e a tia Mariana usavam uma
Ferreira, rouparada
Em homenagem ao patriarca que ali chegou E por baixo três meias e uma anágua
Com as primeiras expedições engomada.
Vindas do Rio Grande do Sul, em 1836. A gente sentava no chão
Terra do meu avô. E ficava ouvindo as histórias da vó,
A nossa oralidade nos conta que Em volta do fogo.
Quando Dona Adelaide fundou a cidade, E se não prestasse atenção o couro comia,
A língua pequena corria, Dizia a Sra Juvina.
Entre os negros revolucionários Palmas para a nossa história
Que conheciam os caminhos de cabo a rabo Preservada na memória de nossas
Deste país inteirinho. matriarcas.
Já se falava desta iniciativa Preciosidades
Que socorria uma parcela da população negra Que atravessaram os tempos,
A vagar. Apesar do latifúndio, dos grileiros, da
No começo eram poucas pessoas, violência,
Mas graças ao correio nagô Da orelha hoje pregada na televisão.
Todo mundo ficou sabedor Apesar das brasas nos olhos, nas falas,
Que no sudoeste do Estado No fogo ardido do racismo escondido
O santo tinha sido assentado Queimando Palmas.
E o povo negro tinha mais um espaço pra Nossa história ancestral começa a aparecer.
viver, A caneta da História está em nossas mãos.
Se proteger, reconstruir os laços da vida... É fundamental continuarmos contando
Juntos. Aos nossos filhos e netos
Sem muros, com respeito. As nossas vivências positivas
Cada um sabia o seu pedaço. Para o nosso legado não se perder.
A vida sendo reconstruída com muito suor... (REINEHR; SILVA, 2016)
Com muita dor,
Em torno desta mulher negra de valor,
Que viu a sua comunidade se desenvolver.
A nossa oralidade diz que
Antigamente tudo era feito à mão.
Mesa, banco, cama.

160
Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná

Referências
BALHANA, Altiva Pilatti; MACHADO, Brasil Pinheiro; WESTPHALEN, Cecília
Maria. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969. 1 v.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasilei-
ra”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial;
altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de
24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 21 jul. 2010.
CHAIN, Livraria. Dicionário histórico-biográfico estado do Paraná. Curitiba: Livraria
Chain, 1991.
FREYRE, Gilberto. Ferro e civilização no Brasil. Recife: Fundação Gylberto Freire,
1988.
GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA. Relatório do grupo de trabalho Cló-
vis Moura. Curitiba: GTCM, 2010. Disponível em: <http://www.gtclovismoura.pr.gov.
br/arquivos/File/relatoriofinal2005a2010.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2017.
IANNI, Octavio. As metamorfoses dos escravos. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1962.
MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente: ensaio sobre o fenômeno da aculturação no
Paraná. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.
NETO, Bento Munhoz da Rocha. Prefáfio. In: EL-KHATIB, Faissal (Org.). História do
Paraná. Curitiba, Grafipar, 1969.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDADES (ONU). Década Internacional de
Afrodescendentes. 2015-2024. Reconhecimento. Justiça. Desenvolvimento. ONU, 2016.
Humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2016/05/
WEB_BookletDecadaAfro_portugues.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2016.
PARANÁ. Arquivo Público do Paraná. Catálogo seletivo de documentos referentes aos
africanos e afrodescendentes livres e escravos. Curitiba: Imprensa Oficial, 2005.
PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Livro dos 300 anos da Câmara de Curitiba:
1693-1993. Curitiba: Câmara, 1993. Disponível em: <https://www.cmc.pr.gov.br/down/
livro_300anos.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2018.
REINEHR, Melissa; SILVA, Adegmar José da. Oralidades afroparanaenses: fragmentos
da presença negra na História do Paraná. Curitiba: Editora Humaita, 2016.
SANTOS, Romilda Oliveira. Zelador Cultural Candiero: a poesia como forma de resis-
tência. Curitiba: UFPR, 2016.
WESTPHALEN, Cecília. Boletim LVII. Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.
Curitiba: IHGP, 2006.

161
Zelador Candiero, a poesia
como forma de resistência
Romilda Oliveira Santos1

Zelador Candiero, a voz da tradição negra


A voz negra do poeta e militante, Zelador Candiero vem espalhando luz, na
penumbra da história paranaense sobre o existir do negro. O calor do canto africano
e dos tambores espalha-se pelas ruas curitibanas nas festas do Rosário, nos saraus
de poesia e nas feiras dos poetas contanto a sua história, contando a nossa história,
desvelando algo que há muito tempo tentava-se encobrir: a presença negra.
O pensamento dos brasileiros, sejam eles de perto, vizinhos do território pa-
ranaense ou de longe, do Norte brasileiro, sobre a formação da sociedade paranaen-
se ser de origem europeia ainda predomina nos dias atuais. Até 1999, ao se falar
do Paraná e mais especificamente de Curitiba, o que se tem no imaginário popular
é de que esta é a cidade mais europeia do Brasil, devido à sua arquitetura, cultura,
manutenção de tradições como festivais de dança, comida e música dos imigrantes
europeus. Estes são os povos que formataram o povo paranaense com seu riquíssimo
caldo cultural. Cultura que para aqui trouxeram quando da sua vinda para as terras
tropicais do Brasil, segundo Wilson Martins (1989). Portanto, não é de admirar
que tais crenças perdurem até nossos dias. A força das afirmações na escritura de
Gilberto Freyre, com Casa grande e senzala (1933), com a teoria da democracia
racial, – a ideia de que no Brasil brancos e negros mantêm relações pacíficas e har-
moniosas – e, segundo Oliveira (2005), os estudos de Wilson Martins, com Brasil
diferente (1989), que, se posicionando sobre a formação da sociedade paranaense,
1
Especialista em Educação das Relações Étnicos Raciais pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR), especialista em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC Minas), membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPM) e pro-
fessora da Rede Estadual de Educação do Paraná.
162
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

afirma ser esta obra dos imigrantes que contribui para que a elite dominante ca-
mufle os direitos de cidadania da etnia negra. Para Oliveira (2005), em nenhum
momento Martins reconhece os 35% de população negra existente nessas terras. E
que Martins ao se posicionar diferentemente da questão da miscigenação de Freyre,
afirmando que, na formação social do Paraná, “o português se fazia ausente”; e “a
inexistência da escravatura” nessas terras, ou melhor, nas terras paranaenses, confir-
mava as ideias de uma elite de um Paraná branco e europeu. Sendo, pois, o imigrante
o único elemento responsável pela formação social, cultural e política do povo do
Paraná (OLIVEIRA, 2005).
Na década de 1930, do século passado, um projeto de Estado diferente co-
meçou a ser pensado e planejado para essas terras pela elite paranaense. E com a cria-
ção da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná, em 1938, esse projeto foi
gerado e alicerçado no imaginário dos que aqui viviam, por interesse de uma classe
dominante em ser reconhecida, pela Europa, como branca. E assim foi criado um
conceito de sociedade com uma identidade singular e de acordo com o processo de
branqueamento pensado para a população aqui existente.
Como bem demonstrou Eduardo David de Oliveira, filósofo e antropólogo,
ao prefaciar o livro Africanidades paranaenses (2010), que o imaginário de um esta-
do originado da colonização europeia, e o mito de um estado branco, sem elementos
negros nasceu nessas terras. E os arautos das ciências, na Faculdade do Paraná, rea-
firmaram e reificaram esse imaginário racista em suas produções acadêmicas tantas
e tantas vezes que se acreditou ser verdade.
Oliveira (2005) observa ainda: “Vale notar que, durante a gestão do pre-
feito de Curitiba Rafael Greca de Macedo (1993-97), várias etnias são homena-
geadas com parques e bosques públicos. Contudo, quando perguntado se haveria
um parque para a comunidade negra, o prefeito teria respondido que não, porque
não havia negros na cidade” (nota de rodapé, p. 221). O Paraná, assim como os
demais estados brasileiros, não fugiu à regra de ter a mão de obra escrava fazen-
do os trabalhos pesados. E Curitiba, sua capital, assim como as demais cidades
paranaenses, foi construída com a mão de obra escrava dos negros africanos que
ergueram ruas, igrejas, prédios, ferrovias, e também contribuíram com músi-

163
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

ca, arte, seu cotidiano. Assim, um grande contingente de africanos e de afrodes-


cendentes fizeram os alicerces físicos e sociais do estado do Paraná. Entretan-
to, essa parte da história é invisibilizada por conveniências sociais e políticas.
Após muitas lutas dos movimentos negros, de pesquisadores negros e inte-
lectuais junto às academias e da Lei Federal nº 10.639/2003, homens e mulheres
negros vêm lutando para o reconhecimento das suas tradições, da sua cultura e do
seu importante papel na formação da sociedade paranaense e brasileira. Essa luta
consiste em mostrar que a identidade paranaense tem cores e nuances diversos.

Precursores e tradição poética do negro brasileiro


O interesse deste artigo são autores que assumiram sua negritude e cujos eu
enunciadores falam das questões referentes a problemas, dificuldades, discrimina-
ções, lutas e conscientização dos irmãos negros e mulatos. Observa-se que, desde
o século XVIII, registros de poetas e escritores que utilizaram da sua escritura para
assumir “a condição negra como sujeito” e ser o protagonista do seu discurso. Assim,
veremos, a seguir, os principais precursores e como a tradição poética afro-brasileira
vem desenvolvendo o discurso literário.
Gayatri Chakravorty Spivak (2010), em sua obra Pode o subalterno falar?,
faz uma reflexão sobre a condição do subalterno, utilizar a sua voz para fazer seus
questionamentos sobre a sua condição histórico social. No caso da poesia negra, a
necessidade de voltar no tempo se faz presente para falar da tradição poética afro-
-brasileira e identificar os momentos nos quais a poesia negra dos poetas negros
brasileiros libertam sua “voz” e começam a contar a história segundo seu ponto de
vista, passando à posição de protagonistas da sua história. Assim, a voz negra des-
perta e inicia um diálogo com os outros diferentes sujeitos na sua subalternidade,
de modo que juntos e fortalecidos pelos grupos diversos possam expor seus desejos
e seus interesses.
Para Cuti (2010, p. 11), o “sujeito étnico do discurso é portador de traços de
uma subjetividade coletiva ao falar traz à luz através da memória subterrânea social
‘os elementos de origem africana’ intrinsecamente ligados a si”. O “eu” protagonista,

164
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

ao relembrar os elementos simbólicos da sua tradição, constrói o sentimento de per-


tença que o enraizará ao lugar que entende como sua terra.
O lugar de pertencimento, no caso, o Brasil, deveria viabilizar condições
e oportunidades para que seus direitos como brasileiros afrodescendentes fossem
respeitados, tanto na legalidade dos papéis de lei quanto na convivência física do
cotidiano. Esse sentimento de pertença tem sido elaborado pelos poetas, escritores
e intelectuais negros brasileiros e seus descendentes a partir da mobilização de ele-
mentos simbólicos que se inscrevem em uma memória literária afro-brasileira de
longa duração.
O poeta negro tem utilizado a palavra como importante meio de expressão
do seu fazer e do seu existir. A prática literária é o espaço para o eu enunciador trazer
para o debate as questões negras. Dessa forma, as vozes negras e as tradições escritas
de Luiz Gonzaga Pinto da Gama, poeta baiano (Salvador, 1830-1882); Maria Fir-
mina dos Reis, maranhense de São Luís (1825-1917); Cruz e Souza (1861-1898);
Carolina Maria de Jesus, mineira de Sacramento (1917-1977); Solano Trindade
(1908-1974); Cuti (1951-); e Oswaldo de Camargo (1936-), entre outros, no sé-
culo XX, têm por meta a conscientização e o empoderamento do povo negro como
sujeito do seu destino.
A historiografia do discurso literário em que o negro se autorrepresenta de
maneira autônoma nasce no final do século XIX, ainda sob a égide do Romantismo,
quando, em meio às discussões sobre o fim do regime monárquico e do trabalho
escravo, a questão étnico-racial se tornou tema central. Nesse contexto, Maria Fir-
mina dos Reis, Luiz Gama e o simbolista Cruz e Souza, poetas negros, apresentam
nas suas obras as primeiras rupturas no campo literário, um discurso em que o “eu
enunciador” se coloca do ponto de vista do negro. O eu poético se assumindo ne-
gro na poesia satírica “Quem sou eu?”, de Luiz Gama (1859): “Eu bem sei que sou
qual Grilo [...] / Se negro sou, se sou bode, / pouco importa. O que isto pode? [...]”
(p.112). O eu enunciador em Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, expressa
sua origem através da memória e da voz de mãe Suzana que conta a história de sua
vida na África e as condições da sua vinda para o Brasil. “E logo dois homens apa-

165
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

receram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! [...]”
(REIS, 2004, p. 112-113).
Maria Firmina dos Reis aparece entre as mulheres negras que marcaram ou
ainda marcam a história literária negra. Para Eduardo de Assis Duarte (2005), a
poeta/escritora Maria Firmina age de maneira inovadora e ousada ao constituir sua
personagem com mulher que tem voz própria e, como eu enunciador, resolve contar
a sua história. Contemporâneo de Maria Firmina dos Reis, Luiz Gonzaga Pinto da
Gama, como poeta engajado, põe em questão a ordem escravocrata. Seguido pelo
simbolista Cruz e Souza que, através do seu poema Emparedado, revela um elemen-
to estruturante das nossas relações sociais, o racismo:

– Tu és de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em Abs-


trações, em Formas, em espiritualidades, em Requintes, em Sonhos!
Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses de aria-
nos, depurados por todas as civilizações, célula por célula, tecido
por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de ideias,
de sentimentos – direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios
convencionalmente ilustres! [...] (CRUZ E SOUZA, 1995, p. 672).

Luiz Gama e Cruz e Souza são considerados os primeiros alicerces para o sur-
gimento de produções literárias ao pós-abolição. Suas obras mostraram um modo
diferente de pensar o negro, como eu enunciador que, ao assumir sua negritude,
o seu “fazer literário por meio da escrita” (BERND, 1988) se torna marco para a
literatura negro-brasileira.
O fazer poético de Luiz Gonzaga Pinto da Gama registra o “modo negro de
ver e sentir o mundo”. A poética de Luiz Gama reúne um conjunto de elementos
simbólicos relacionados à sua trajetória de vida. Ao reafirmar a identidade afro-bra-
sileira através da articulação dos elementos da ancestralidade africana na sua escritu-
ra, o poeta reivindica a pertença ao universo cultural afro-brasileiro.
Silva (2013), acerca da elaboração da cultura afro-brasileira sobre as raízes
africanas, afirma:

Concebemos a cultura afro-brasileira como um sistema simbólico


orientador das práticas sociais referenciadas em princípios ancestrais
africanos. [...] As práticas culturais afro-americanas, embora orien-

166
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

tadas pelos referenciais africanos, não são, portanto, reproduções ou


cópias de África nas Américas, mas reelaborações, de caráter dinâmi-
co, flexível, plástico e em constante mutação. (SILVA, 2013, p. 1).

Segundo Ferreira (2011), a primeira vez que se observou a filiação poética


à cultura afro-brasileira foi na obra Primeiras trovas burlescas de Getulino, de Luiz
Gama: “O próprio pseudônimo Getulino, refere-se a uma área geográfica outrora
nomeada “Getúlia”, localizada ao norte da África” (p. 39-38).
O eu enunciativo do poema Quem sou eu se afirma “negro sou”, além de afir-
mar sua ancestralidade africana, também, se diz rebelde e insubmisso, por ser filho
de Luiza Manhin, Luiz Gama assim, descreve a mãe:

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô
de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o ba-
tismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra,
bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes al-
víssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida, vingativa.
(CÂMARA, 2010, p. 35).

E avisa, “filho de insurgente, insurgente é” (AZEVEDO, 1999, p. 69).


Os poetas e escritores dão voz aos eu enunciativos em seus poemas e prosas
denunciando o contexto discriminativo que vivem e presenciam.
Lima Barreto, no início do século XX, em sua obra Recordações do Escrivão
Isaías Caminha, publicada em 1909, denuncia o preconceito observando a “arro-
gância dos oficiais em relação aos demais componentes da tropa composta por ne-
gros e mulatos, em um desfile militar” (SCARPELLI; DUARTE, 2002, p. 54).
Lima Barreto (1881-1922), filho mulato, chegou a ingressar na faculdade de
Direito do Rio de Janeiro, mas as dificuldades financeiras de sua família o obrigaram
a abandonar os estudos e buscar trabalho. As situações de discriminação e dificulda-
des econômicas pelas quais o escritor passou são denunciadas pelo eu enunciador, o
protagonista Isaías Caminha, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicada
em Portugal em 1909. Tanto na vida real como escritor quanto na ficção através
do protagonista, situações cotidianas de ofensas veladas e discriminações subjetivas
levam ambos, Lima Barreto e Isaías, ao desencanto com a nova República:

167
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Hoje, comigo, deu-se um caso que, por repetido, mereceu-me repa-


ro. Ia eu pelo corredor afora, daqui do Ministério, e um soldado di-
rigiu-se a mim, inquirindo-me se era contínuo. Ora, sendo a terceira
vez, a coisa feriu-me um tanto a vaidade, e foi preciso tornar-me de
muito sangue frio para que não desmentisse com azedume. (SAN-
TOS, 2012, p. 15).

A sua obstinada crítica à hipocrisia da sociedade brasileira, que negava a dis-


criminação racial ao mesmo tempo em que pregava o branqueamento, se aliava às
suas críticas a atores políticos e à denúncia de injustiças sociais. Sendo Lima Barreto,
um escritor negro na cor e no discurso num período em que “‘apagar a cor’ era medi-
da cautelosa e necessária” para ser aceito na intelectualidade literária, se negar a esse
comportamento era “viver em permanente dilema, conflito e contradição entre a pro-
jetada inclusão e a realidade da exclusão social” (SCHWARCZ, 2011, p. 23-24-29).
O precursor Lino Guedes, autor, entre outros títulos, do poema Negro preto
cor da noite (1936), usa da ironia, quando nos primeiros versos do poema Novo
rumo, o eu enunciador relembra ao irmão de cor a sua cor e o sofrimento passado e
que deve se endireitar.
Abdias Nascimento, um dos grandes ícones da literatura e da luta negra, poe-
ta, ator, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ati-
vista dos direitos civis e humanos das populações negras, funda o Teatro Experimen-
tal do Negro (TEN), em 1944, dedicado à produção de uma arte feita por negros.
Em 1954, surge o escritor e poeta Oswaldo de Camargo com o livro de poe-
mas O homem tenta ser anjo, e a partir daí uma produção de literatura negra surge
tanto na prosa quanto na poesia, onde o escritor apresenta um eu lírico enunciador
que, ao procurar construir sua identidade, se vê preso entre duas culturas. Porém,
mesmo diante desse hibridismo cultural, as marcas da negritude se fazem presentes
como ferramenta de um discurso em favor da construção de identidade.
Acerca da poesia de Oswaldo de Camargo, afirma, Zilá:

A poesia de Oswaldo de Camargo reflete a crise do poeta que


toma consciência de seu hibridismo cultural: de um lado, suas raí-
zes africanas e os elementos culturais ligados a esta ancestralidade
pulsam dentro dele, lembrando-lhe de sua origem e do outro, o

168
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

apelo cultural do mundo branco e dos valores morais do ocidente


não deixam de exerce rum enorme fascínio (BERND, 1992, p. 64).

Solano Trindade é outro ícone da poesia negra brasileira, reconhecido pelo


posicionamento político-social e pela tradição literária brasileira. No poema Navio
negreiro (1962) enaltece as qualidades da etnia negra. O poeta diz que o tumbeiro
traz uma carga de poesia, resistência e inteligência apesar da melancolia.
Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, registra a consciência da necessidade de afir-
mação como se pode observar no poema Ferro (1986), no qual o poeta ressignifica
a palavra “ferro”, transformando-a em um objeto que lembra a “violência histórica”
impingida ao escravo através do acoite, das algemas, das mordaças e marcador. Num
segundo momento, o ferro serve para modificar as características fenotípicas, como
alisar o cabelo carapinha se adequando ao modelo de sociedade que valoriza o ca-
belo liso, afastando o negro das características raciais de sua gente. A voz forte deste
propaga a necessidade de mudanças através do orgulho valorizador das caracterís-
ticas negras. Assim, Cuti em seus poemas mostra a realidade brasileira através da
revelação das discriminações físicas e psicológicas imposta ao negro. Ao valorizá-lo,
sua escritura torna-se produto cultural afirmativo forte.
Dos anos 1990 até os dias atuais, a jornada continua com contornos mais
definidos, agora o objetivo é a conscientização da população negra. O comprome-
timento da poesia negra se faz presente nas escrituras de Éle Semog, Adão Ventura,
Arnaldo Xavier, Carolina Maria de Jesus, Mestre Didi (Dioscóredes M. dos Santos),
Geni Mariano Guimarães, Paulo Colina, W. J. de Paula, José Alberto de Oliveira de
Souza, Maria da Paixão, Eduardo de Oliveira, Mirian Alves, Oliveira Silveira Antô-
nio Vieira, Jônatas Conceição da Silva, Ronald Tutuca, Carlos Assumpção Romeu
Crusoé, o historiador e professor Joel Rufino dos Santos, Aline França, Paulo Co-
lina, Carlos Assumpção e Zelador Candiero, entre outros. O objetivo é denunciar
as injustiças, gritar por direitos já adquiridos pelo povo negro na “coparticipação da
construção da nacionalidade”, na necessidade urgente de que a história da cultura
negra seja revelada a toda população negra e afrodescendente. A luta de escritores
antigos e novos que, juntos, fortalecem o conceito de identidade negra, de resistên-
cia e reconhecimento social, entre outros.

169
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

A poesia do Zelador Candiero


O vocábulo “zelador” vem do grego e significa zelos “cuidados” e Adegmar
José da Silva é aquele que cuida para que as tradições de seu povo não sejam esqueci-
das, é, assim, um dos pilares da luta contra a discriminação, a negação dos direitos, a
invisibilização, o esquecimento das artes, da cultura, da religiosidade do povo negro.
E como negro empoderado utiliza a arte da palavra, a poesia, para conscienti-
zar e instrumentalizar seus irmãos para a luta, para a resistência com palavras, atitu-
des e ações contra a inviabilização imposta por um racismo cordial. O poeta procura
manter vivos as tradições, os costumes, herdados de seus antepassados, através de
projetos organizados e selecionados pelo Centro Cultural Humaita para o trabalho
com crianças e adolescentes na área da educação; atua como coordenador dos saraus
de poesia, cujo objetivo é mostrar a poesia negra e dar visibilidade aos poetas negros;
além de organizar as comemorações religiosas e festivas da negritude em solo para-
naense. Também já publicou artesanalmente três coletâneas de poesia.
Um dos instrumentos de resistência negra é a poesia e o Zelador Candiero,
assim como outros poetas negros paranaenses e curitibanos, mostra suas dores e seus
questionamentos diante da realidade agressiva deste século. Na poesia do Zelador
Candiero, o eu lírico enunciador traz à tona as memórias dos antepassados, as lutas
e a resistência. E a música, a dança, a arte, a religiosidade, o registro das vivências
servem como armas para luta, cujo objetivo é se mostrar, é ser sujeito. Sua poesia fala
do sincretismo religioso, da religiosidade africana ligada aos orixás, das rodas de ca-
poeira, o toque dos tambores, dos guerreiros e guerreiras africanas, dos terreiros, dos
egunguns (antepassados), das histórias, dos griots, das árvores sagradas as gameleiras
moradas do “tempo”, do seu compromisso com a história do negro e sua história.
Adegmar José da Silva é poeta ativista e zelador das tradições culturais negras
no Paraná. Em suas vivências, exprime seus desejos, suas expectativas, suas dores, sua
luta e trajetória de negro brasileiro e paranaense. Falar da tradição, dos ancestrais, da
luta e do empoderamento é um dos vieses da poesia negra do Zelador Candiero. O
registro de suas vivências é a luta contra o esquecimento da história e cultura africa-
na. É o rememorar. É o lembrar.

170
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

Antes conhecido pelo codinome “Sombra”, apelido dado pelos amigos, cole-
gas da capoeira, recebeu o nome de Zelador Candiero – aquele que ilumina – após
muito tempo de observação pelos seus mestres, os quais chamam de “os mais velhos”.
O cotidiano do Zelador Candiero é fortemente marcado pelo sentimento
de pertencimento à cultura e às tradições negras herdadas dos ancestrais. O poeta
descobriu-se pedra alicerçante da sua história no rap, no break na música negra afro-
-americana e foi construindo sua identidade negra e se empoderando como sujeito
transformador da sua história e orgulhoso das suas tradições e origem negra. A par-
tir dessa descoberta, muitas trilhas foram surgindo e o caminhante ora passeia por
elas, ora as desbrava deixando a sua marca de rebeldia. Rebeldia esta transformada
em muitas formas de lutas contra um único modelo de cultura, de história e de co-
nhecimento. O caminhante vai trançando seu caminho e registrando suas vivências
– como capoeira, poeta, zelador das tradições culturais, além de militante das causas
negras no Paraná –, com uma linguagem cheia de significados e sentimentos. O
poeta é negro, e se orgulha em demonstrar sua luta e preferência pela temática negra.
Em entrevista que nos foi concedida em 9 de fevereiro de 2016, o poeta e es-
critor Zelador Candiero diz não escrever poesia e sim registrar em forma de poema
suas vivências e recordações. E que a cada passo, a cada atitude, cada irmão negro
que encontra vai emergindo em palavras, borbulhando, querendo mostrar e contar
a história de seu povo. Assim, registra na folha branca o pensamento, o sentimento
e sua negritude.
Nesse aspecto, pode-se considerar que a memória atua na obra do Zelador
Candiero como uma força de resistência pessoal e cultural, tal como indica Eduardo
de Assis Duarte (2005, p. 100), ao sugerir que “a força dessa memória ressalta o sen-
tido da resistência cultural e de luta ideológica [...] pois se trata de marcar posições
para além do campo artístico, visando atuar na construção psicológica e cultural
desse sujeito, bem como na definição de seu lugar na sociedade e na própria história”.
As vivências, expressão que o poeta usa para referir-se aos seus versos, traduz
o sentido dos costumes, recordações e tradições dos ancestrais, e conta suas expe-
riências sociais e individuais à comunidade.

171
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Segundo o poeta, a escolha de pseudônimo é um ato político de empodera-


mento da sua condição de homem negro. É chegada a sua vez de falar, de sair, deixar
de ser “Sombra”, agora é Candiero. Nome recebido dos mais velhos como manda
a tradição. A luz que tem por responsabilidade e objetivo, nas rodas de conversas,
nos saraus, nos festejos, nos sons dos tambores, despertar seu povo para as questões
inerentes à tradição negra. Os costumes devem ser relembrados, devem ser pratica-
dos pelos adultos e contados às crianças, pois “é necessário uma comunidade inteira
para educar uma criança” segundo um ditado africano, diz Candiero. O poeta luta
por equidade para seu povo, negros, afrodescendentes, acima de tudo, negros bra-
sileiros e seus descendentes utilizando como arma a palavra, nas suas vivências, no
seu cotidiano.
N’Zinga, é um poema de tom forte, cujo conteúdo louva uma grande guer-
reira que ofereceu resistência a Portugal, quando com grande visão de estrategista
venceu a guerra contra os portugueses, em sua terra natal, o reino de Angola. O
poema é composto por 31 versos. O orgulho de sua negritude emerge no início do
poema; emerge através das palavras e do ritmo, o jogo de capoeira:

Dois capoeiras jogando No Paraná, os Reis Congos


É como galo na rinha Mantêm viva sua memória ancestral
Cada um de um lado Dos tempos da escravidão até nossos dias
Dá esporada, canta Buscar fundo na história
Se arrepia... É fundamental para o povo negro
O negro quando dança Pois um povo sem memória é um povo sem
Faz louvor a sua rainha história
N’Zinga N’Bandi Tratado como escória
Reino de Angola, da Matamba Temos um futuro sim: aquele que nós
Sozinha uniu todas as etnias construímos.
Enfrentou os portugueses com sabedoria Valeu o exemplo, Rainha da nossa ginga!
Uma guerreira estrategista EPARREI OYÁ
Conhecia de política Senhora dos ventos e das tempestades
E a religião dos seus ancestrais Aquela que cega os mentirosos
Venceu todas as demandas europeias Mas protege quem anda com a verdade.
Viveu e morreu na sua terra Motumbá
Seu nome espalhou-se pelo mundo (CANDIERO; REINEHR, 2015, p. 52)

172
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

O eu enunciador trata a capoeira como uma dança para louvar a rainha


N’Zinga N’Bandi recontando a história de valentia e de resistência do povo negro,
que aparece como agregador de todas as etnias, indicando que a luta é de todos.
Além de inteligente e grande estrategista, a guerreira tinha conhecimentos de políti-
ca e da religião dos ancestrais. O poeta trabalha assim para desconstruir, através des-
sa imagem, “o estereótipo de negro que inferioriza a inteligência e a capacidade dos
povos negros” (CUTI, 2010, p. 55) cunhado pela ideologia racista da elite brasileira.
A memória cultural se faz presente no poema, identificando o lugar em que
essa memória está fincada e como: “No Paraná, os Reis Congos mantêm viva sua
memória ancestral” o eu poético fala do “enraizamento” do negro paranaense e de
suas memórias culturais reavivadas através das festas dos reis Congos. O eu lírico
saúda o orixá dos ventos e das tempestades e diz que quem mente é cegado por
ela. Assim, faz referência às verdades que são ocultadas sobre o continente africano
para fazer os afrodescendentes se sentirem pequenos e sem força. E diz que todos
precisam conhecer a sua história, a sua origem, as tradições dos antepassados para
se orgulharem e não deixarem que os tratem como escória. Que existe futuro, que
podem construir seu futuro.
Andrade (apud CASCUDO, 1965) coloca que:

A eleição de reis negros meramente titulares, a coroação deles, e as


festas que provinham disso, Congos, Congadas, sempre até hoje se
ligaram intimamente à festa, e mesmo à confraria do Rosário. Inda
mais: as procissões católicas eram cortejos que relembravam ao ne-
gro os seus cortejos reais da África. (p. 315).

O poema faz referência à festa da Congada da Lapa, no Paraná, é uma celebra-


ção que traz os reis do Congo, sua coroação e séquito de súditos. A riqueza da conga-
da tem por objetivo de despertar as lembranças ancestrais de poder, beleza e riqueza
do elemento negro em terras distantes, a terra dos antepassados, onde eram reis.
A escritura poética do Zelador Candiero traz para o debate e conhecimento
dos negros e seus descendentes a cultura negra reavivada nas congadas, nas rodas de
samba, trazidas pelos escravizados, através de suas memórias. A descendência negra
do poeta lhe confere o direito de ser o protagonista dos seus versos e clamar seu

173
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

povo para o conhecimento da história negra. O eu lírico afirma que “um povo sem
memória é um povo sem história”. O poeta, como militante que é, utiliza em seus
poemas a frase de Chico de Assis, advogado, jornalista, poeta e ex-preso político.
As vozes ecoadas ao longo do poema mostram a identificação dos envolvidos
com as memórias dos ancestrais, individual e coletiva. O tom de celebração do or-
gulho negro ancestral e o chamamento para o momento presente, reivindicando o
reconhecimento da cultura e das tradições de seu povo. O poeta relembra o tempo
da escravização, o tratamento recebido, ao pedir que seus irmãos busquem no fundo
do baú da história suas memórias o contexto em que eram obrigados a viver, para
logo depois afirmar que, apesar do tratamento indigno, o futuro do povo é aquele
que cada um constrói.
O eu enunciador procura empoderar o povo negro ao chamar atenção para
a inteligência e a valentia da rainha N’Zinga e, assim, forjar uma nova autoestima
e para despertar o orgulho de ser afrodescendente. A essa intenção, Cuti (2010,
p. 43) intitula como “gostar-se negro”, aceitar-se negro de forma completa, senti-
mento normalmente recalcado pelo racismo que, por muito tempo, levou o negro
a se transvestir ao assimilar a moda, os pensamentos, os modos de agir e sentir do
branco, também conceituado por Frantz Fanon “de pele negra e máscaras brancas”
(2008, p. 34).
O eu enunciador termina fazendo uma saudação a uma divindade africana
Iansã, orixá que domina os ventos e tempestades que protege e ilumina aqueles que
estão com a verdade na linguagem dos nagôs, Motumbá é um pedido de bênçãos. O
eu lírico enunciador se mostra comprometido com a religiosidade de matriz africana.

EPARREI OYÁ
Senhora dos ventos e das tempestades
Aquela que cega os mentirosos
Mas protege quem anda com a verdade.
Motumbá.
(CANDIERO; REINEHR, 2015, p. 52)

No poema Resistência cultural II (CANDIERO; REINEHR, 2015, p. 59),


o poema apresenta 33 versos:

174
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

Combatentes do bom combate, uni-vos... Combativo, assíduo


Ser representante de rainhas e reis Sigo minha sina
africanos Pelos poderes legados dos meus
Em solo brasileiro antepassados
Não é fácil Vou à luta
Trabalho duro Não tenho o direito de ficar no cômodo
Tornei-me flexível... Sensível silêncio
Viver no mundo humano Respiro fundo
Clamando por ajuda do Espírito Atendo à minha consciência
Santos... Minhas lágrimas são de força
Fazendo a colcha de detalhes E não de fraqueza
Costurando com a agulha de ouro Perdoem minha franqueza
Os fios prateados da memória Os estalos do chicote do Neo-Escravismo
Aparecem... Mostram-me um norte desconhecido
Minha alma transborda Enquanto muitos dormem...
Brada por justiça Armado com meu berimbau
No meio desta carnificina de verdades Invoquei o poder ancestral
escondidas Recomeço a caminhada
Holocausto de sonhos

O eu lírico enunciador chama para a luta, os bons combatentes. Anuncia que


é difícil “ser representante de Rainhas e Reis africanos”, fazendo referência a toda
carga de discriminação e racismo que existe na sociedade paranaense, afirma que é
a luta “não é fácil”, que “é trabalho duro” vencer os obstáculos colocados nos cami-
nhos dos negros e seus descendentes. Mas afirma também que se tornou mais flexí-
vel, referência talvez às negociações por seus direitos, que às vezes cede um pouco
para ganhar. Aqui, aparece a questão do misticismo religioso, quando diz que clama
por ajuda do “Espírito Santos” para viver no mundo humano. O eu lírico enuncia-
dor termina colocando usando o termo “Santos” seguido de reticências como que
deixando no ar, dando outra conotação à palavra, talvez implicitamente se referindo
aos “Santos” da religiosidade africana.
O eu enunciador, ao mencionar “enquanto muitos dormem...”, dá a entender
que está falando dos afrodescendentes que ainda não se conscientizaram da luta do
seu povo para conquistar seus espaços na sociedade.
E ao se referir à memória, diz que vai juntando “os fios prateados”, ou seja, as
lembranças e vai costurando-as umas às outras com “agulha de ouro”, sugerindo tal-

175
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

vez o grande valor dessas lembranças, dessas memórias que, juntadas umas às outras,
deixam vir à tona “a verdade escondida” no meio de todo sofrimento.
Segundo Michael Pollak (1989, p. 8), as “memórias subterrâneas” são culti-
vadas e desenvolvidas nos espaços da “informalidade” em rede de sociabilidades afe-
tivas, “são zelosamente guardadas em estruturas de comunicação informais e passam
despercebidas pela sociedade englobante”.
O eu poético grita por justiça, em meio a tantas mortes de sonhos, de expec-
tativas. E não se rende, segue adiante, combativo, assíduo. É o destino que lhe foi
legado pelos antepassados. O eu lírico diz não poder ficar calado, que suas lágrimas
não são de fraqueza e sim por perceber novas formas de exploração do povo negro.
E enquanto muitos dormem, ele, armado com seu berimbau (instrumento de toque
da capoeira), invoca os ancestrais para ajudá-lo e segue na sua caminhada de luta.
Nota-se nesse posicionamento do eu poético o chamamento do conheci-
mento dos mais antigos (os ancestrais) para direcionar a luta, os direitos pleiteados,
e a conquista dos objetivos pretendidos.

Considerações finais
Diversas são as possibilidades de leitura da poesia do Zelador Candiero. En-
tretanto, se o pano de fundo for uma sociedade elitista que se acredita herdeira de
tradições e culturas unicamente europeias que prevalece o conceito de democracia
racial, muita luta ainda tem a população negra e seus descendentes para serem reco-
nhecidos como sujeito coprodutores da cultura brasileira e paranaense. O Zelador
Candiero é um dos pilares dessa luta, no solo paranaense. O poeta não esconde a
sua negritude, orgulho, paixão pela tradição e costumes dos ancestrais. Produz uma
poesia carregada de simbolismo, deixando transparecer através do eu poético, que
fala mesmo cansado, que não se cala ao ver e sentir os sofrimentos e dores do povo
negro. A sua poética deixa entrever nas linhas da sua escritura toda a riqueza cultural
do povo “subalterno”.
Como “subalterno” em sua negritude, o poeta dá voz e representatividade ao
lugar de onde fala das suas origens, da sua religiosidade e da sua história. “Subalter-
no” que, apesar de construir praças, igrejas e monumentos históricos com sangue e

176
Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência

suor, teve como pagamento o apagamento da sua história e a negação da sua pre-
sença.
O “subalterno” agora tem voz e fala e luta para sair da penumbra, do esqueci-
mento, ao qual foi lançado. Não mais existe a história só de um único ponto de vista.
A literatura negro-brasileira lança mão da poesia, da prosa, da dança, da música, dos
costumes como instrumentos de luta. São elas as armas utilizadas pelos poetas, es-
critores, pesquisadores, artistas, em geral, para contar a história e a cultura do povo
cor de ébano e seus descendentes.

Ubuntu, para vocês! “Sou quem sou, porque somos todos nós.”

Referências
AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luis Gama na imperial cidade
de Campinas: Ed. UNICAMP, 1999.
BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
______. Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre: AGE/IGEL, 1992.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasilei-
ra”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
CÂMARA, Nelson. O advogado dos escravos: Luiz Gama. São Paulo, Ed. Lettera.doc,
2010.
CANDIERO, Adegmar José da Silva; REINEHR, Melissa. Afrocuritibanos: crônicas,
manifestos e pensamentos azeviche. Curitiba: Editora Humaita, 2015.
CASCUDO, Luís da Câmara. Os congos (Mário de Andrade). In: _­­ _____. Antologia do
folclore brasileiro. 3. ed. São Paulo: Martins Editora, 1965. 2 v.
CRUZ E SOUZA, João da. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1995.
CUTI, Luiz Silva Literatura negro-brasileira. São Paulo: Ed. Selo Negro, 2010.
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afrodescendência. In: Literatura, política,
identidades. Belo Horizonte: FALE-UFMG: 2005. p. 113-131.
FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FERREIRA, Ligia F. Com a palavra Luiz Gama, poemas, artigos, cartas, máximas. São
Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 29. ed. Rio de Janeiro: Record, 1994.
GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. 3. ed. São Paulo: Bentley Junior,
1904.
MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente: ensaio sobre fenômenos de aculturação no
Paraná. 2. ed. São Paulo: T. A Queiroz, 1989.
177
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

MUZART, Zahidé Lupinacci. Maria Firmina dos Reis. In: ______. (Org.). Escritoras
brasileiras do século XIX. 2. ed. rev. Florianópolis, Santa Cruz do Sul: Editora Mulheres/
EDUNISC, 2000.
OLIVEIRA, Márcio. O Brasil diferente de Wilson Martins. Cadernos CRH, Salvador, v.
18, n. 44, p. 215-221, 2005.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janei-
ro, v. 2, n. 3, p. 3-19, 1989.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. 4. ed. Atualização do texto e posfácio de Eduardo de
Assis Duarte. Florianópolis: Mulheres; Belo Horizonte: PUC-Minas, 2004.
SANTOS, Luciany Aparecida Alves. Diário íntimo de Lima Barreto: autobiografia de
uma identidade negra. In: ENCONTRO DA ABRALIC. 13., 2012, Campina Grande.
Anais... Campina Grande, 2012.
SCARPELLI, Marli Fantini; DUARTE, Eduardo de Assis. Poéticas da diversidade. Belo
Horizonte: UFMG, 2002.
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). Introdução – Lima Barreto: termômetro nervoso de
uma frágil república. In: BARRETO, Lima. Contos completos. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
SILVA, José Carlos Gomes da. Culturas africanas e cultura afro-brasileira: uma abor-
dagem antropológica através da música. São Paulo: UNIFESP, 2013. Disponível em:
<http://www2.unifesp.br/proex/novo/santoamaro/docs/cultura_afro_brasileira/cultu-
ras_africanas_e_afro-brasileira.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2016.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1985.

178
Valorizando o conhecimento
etnobotânico dos estudantes da
licenciatura em Educação do Campo
- UFPR Litoral, da comunidade
quilombola João Surá
Claudemira Vieira Gusmão Lopes1
Lourival de Moraes Fidelis2
Michelle Bocchi Gonçalves3

Introdução
A cena educacional brasileira passou por transformações significativas nas
duas últimas décadas. Uma dessas transformações é o protagonismo do Movimento
de Educação do Campo, que articula as “exigências do direito à terra com as lutas
pelo direito à educação” (MOLINA, 2011, p. 18). A partir de um projeto que não se
restringe somente à escolarização, o próprio espaço escolar pode ser compreendido
como o lugar onde os processos educativos estão diretamente relacionados aos pro-
cessos sociais, culturais e políticos. Estes, por sua vez, integram-se ao ser humano e à so-
ciedade, incluindo aí as comunidades regionais com suas especificidades e demandas.
Com o olhar voltado para os diversos sujeitos sociais do campo e com sua
origem nos processos de luta dos movimentos sociais pela desapropriação de terras,
a Educação do Campo inaugura um projeto de educação da classe trabalhadora, bus-
cando garantir, para seus sujeitos, o acesso ao conhecimento e o direito à educação.
1
Doutora em Produção Vegetal, professora do curso de licenciatura em Educação do Campo da
Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral. E-mail: claudemira.lopes@bol.com.br.
2
Doutor em Agronomia, professor do curso de licenciatura em Educação do Campo da UFPR
Litoral. E-mail: lourivalfidelis@gmail.com.
3
Doutora em Educação, professora do curso de licenciatura em Educação do Campo da UFPR
Litoral. E-mail: michellebocchi@gmail.com.
179
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

O parágrafo primeiro da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) Lei nº 9.394/1996,


alterada pelas Leis 10.639/2003 e 11.645/08, estabelece a obrigatoriedade de as
escolas públicas e privadas ministrarem conteúdos que incluem aspectos da his-
tória e cultura dos grupos étnicos negros e indígenas, matrizes formadoras da
nação brasileira. Entretanto, salvo as exceções, muitas escolas, incluindo as es-
colas do campo, não cumprem a lei, alegando falta de formação dos professo-
res, falta de material didático, entre tantos outros motivos (BRASIL, 2008).
Por outro lado, o curso de licenciatura em Educação do Campo – Ciências da
Natureza foi pensado pelo Setor Litoral da Universidade Federal do Paraná (UFPR
Litoral) para atender aos sete municípios do litoral paranaense, a saber, Guaraque-
çaba, Antonina, Morretes, Matinhos, Paranaguá e Pontal. Nesses municípios, en-
contram-se população de ilhéus, povos da floresta, ribeirinhas, caiçaras, pescadores,
quilombolas, assentados, acampados e agricultores familiares. Além do litoral do
Paraná, o Setor Litoral tem uma imersão significativa na região do Vale do Ribeira
no estado do Paraná, que engloba os municípios de Adrianópolis, Bocaiúva do Sul,
Cerro Azul, Doutor Ulysses, Itaperuçu, Rio Branco do Sul e Tunas do Paraná. Nesses
municípios, a maioria dos seus habitantes é considerada população do campo. Essa
região compreende a maior faixa contínua da Mata Atlântica do Brasil, possui deze-
nas de ilhas nas quais os Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) são baixíssi-
mos. Um importante dado é o fato de os municípios do Vale do Ribeira ocuparem os
últimos lugares do estado do Paraná no IDH (UFPR LITORAL, 2012).
Cabe explicar que essa licenciatura não tem suas turmas alocadas no Setor
Litoral, mas o curso funciona em regime de itinerância, ou seja, são os professores
que se deslocam da universidade até o local onde estão as turmas, sendo que uma
delas funciona na comunidade quilombola de João Surá, em Adrianopólis (UFPR
LITORAL, 2012).
O Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de licenciatura do Setor Litoral pres-
supõe a valorização dos saberes dos estudantes como forma de promover a igualda-
de das relações étnico-raciais. Esse fato fica evidente no módulo intitulado Educa-
ção do Campo e as Ciências da Natureza, cuja ementa prevê o estudo das Diretrizes

180
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o En-


sino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena (UFPR LITORAL, 2012).
Buscando atender à legislação e o PPC da licenciatura em Educação em
Campo, propusemos um estudo do conhecimento etnobotânico da comunidade
quilombola de João Surá, com a participação dos quilombolas licenciandos em
Educação do Campo, a partir da Análise do Discurso (AD) de linha francesa. Essa
metodologia compreende o discurso como algo sócio-histórico, ao perceber a re-
lação da linguagem com sua exterioridade, referindo-se às condições de produção
do discurso, ou seja, considera o falante, o ouvinte, o contexto da enunciação, assim
como o contexto sócio-histórico.
O objetivo deste texto é reconhecer a importância dos conhecimentos tra-
dicionais, demonstrando que é possível aprender e ensinar botânica, tendo como
ponto de partida os conhecimentos etnobotânicos das comunidades quilombolas e
de outras populações campesinas, além de desvelar dados do conhecimento etnobo-
tânico a partir das falas dos quilombolas entrevistados, usando como metodologia
analítica a AD. Assim, todo o conhecimento etnobotânico desses quilombolas po-
derá subsidiar a produção de materiais didáticos para as aulas de botânica dos estu-
dantes da licenciatura em Educação do Campo, bem como assegurar a valorização
do conhecimento tradicional quilombola.
Ressaltamos que, atualmente, a botânica ministrada no ensino fundamental,
médio e até no ensino superior é ensinada apenas do ponto de vista da botânica oci-
dental, ou seja, considera apenas os pressupostos civilizatórios judaico-cristãos e os
valores greco-romanos. Mudar essa forma de se trabalhar a botânica e outros conhe-
cimentos das Ciências da Natureza poderá contribuir para promover a igualdade
das relações étnico-raciais a partir da afirmação de valores formadores de identidade
em nossos estudantes.

Projeto Político Pedagógico do curso de licenciatura em Educação do


Campo – Ciências da Natureza (Setor Litoral)
A proposta do curso de licenciatura em Educação do Campo fundamenta-
-se em Paulo Freire, que pensa a educação enquanto emancipação do sujeito, tendo

181
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

como base da aprendizagem a capacidade de autorreflexão como desenvolvimento


da consciência crítica, que reorganiza as experiências vividas, transformando a reali-
dade. Nessa perspectiva, a aprendizagem modifica o homem que, ao mesmo tempo
que se renova, mantém a própria identidade. Portanto, trata-se de uma aprendiza-
gem libertadora de conquista e aumento de autonomia (UFPR LITORAL, 2012).
Há uma preocupação com a educação enquanto princípio da educação liber-
tadora e progressista, ao considerar os envolvidos no curso como sujeitos construto-
res da história e transformadores do mundo.
A licenciatura em Educação do Campo, pensada a partir da pedagogia da
alternância, pretende organizar os tempos e os espaços educativos de maneira a ga-
rantir que seja priorizada a realidade do campo onde vivem os estudantes, campo
esse cheio de especificidades no que diz respeito ao calendário de plantio e colheita.
Ressaltamos a necessidade de pensar em estratégias específicas de atendimento à
formação e à flexibilização da organização do calendário escolar à vida e ao trabalho
do campo (UFPR LITORAL, 2012).
A alternância a que nos referimos envolve a conjugação de períodos alterna-
tivos de formação na universidade e na família e/ou escola e/ou agricultura familiar
desenvolvida pelo acadêmico, com a utilização de instrumentos pedagógicos espe-
cíficos (UFPR LITORAL, 2012).
Nesse sentido, temos o Tempo Universidade (TU) e o Tempo Comunidade
(TC). O TU corresponde ao período em que o acadêmico permanece na univer-
sidade em contato direto com o saber mais sistematizado, planejando e recebendo
orientações dos docentes. Nesse período, os acadêmicos desenvolvem as atividades
comuns, previstas na formação de todos os acadêmicos independentemente da me-
todologia. O TC, por sua vez, diz respeito ao período em que o acadêmico é motiva-
do a partilhar seus conhecimentos e experiências de sua atividade profissional e/ou
familiar, na comunidade ou nas instâncias de participação social e de classe. No TC,
o estudante tem a oportunidade de desenvolver pesquisas, projetos experimentais,
atividades grupais, entre outras atividades, com o auxílio do planejamento e acom-
panhamento pedagógico dos docentes. Nesse tempo, o direcionamento da formação
será na busca da aproximação dialética entre as atividades desenvolvidas em suas co-

182
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

munidades e as atividades curriculares, desenvolvidas na universidade, de outro lado,


cabe aos docentes conhecer e/ou aprofundar o modo de vida e de trabalho dos licen-
ciandos, como possibilidade de melhor planejar as atividades formativas. Levando
em consideração que teoria e prática são indissociáveis (UFPR LITORAL, 2012).
Alguns aspectos dessa licenciatura, baseados no verbete “educação do cam-
po” que integra o Dicionário em Educação do Campo (CALDART et al., 2012), au-
xiliam a compreensão de alguns limites e escolhas imprescindíveis a quem pretende
investigar esse conceito ainda em processo de constituição histórica. O primeiro
deles diz respeito ao acesso dos trabalhadores do campo a uma educação “feita por
eles mesmos e não apenas com seu nome” (CALDART et al., 2012, p. 263). Esse
processo é, por sua vez, constituído pela luta social, de modo que os camponeses
tenham a posse da sua educação, isto é, não são meros agentes receptores ou partici-
pantes de uma política ou causa. Eles são a própria causa, legitimando o que queria
Paulo Freire, ao defender a pedagogia do oprimido (FREIRE, 1980).
Outro aspecto a se considerar é o fato de que é preciso pensar nas particula-
ridades de cada grupo social que compõe a Educação do Campo, olhando para as
especificidades pela via do direito e não dos impedimentos para que o processo de
conhecimento se estabeleça como prioridade. É aí que, no coletivo, a consciência de
pressão por políticas públicas mais amplas e direcionadas às necessidades de cada
realidade se tornam pautas de embate que implicam rediscutir a própria política
educacional brasileira, que ainda se prende a uma perspectiva macroglobalizante
que não consegue atender às demandas do campo.
Assim, entre os objetivos da licenciatura, destacamos: valorizar os conhe-
cimentos que os educandos, núcleos familiares e comunidades possuem, estabe-
lecendo um diálogo permanente com os saberes produzidos nas diferentes áreas
do conhecimento; possibilitar que a pesquisa seja um dos eixos direcionadores
do processo formativo, trazendo-a como uma forma de intervenção na realida-
de dos sujeitos; estabelecer espaços de diálogo entre as áreas de conhecimento,
contribuindo para ampliar a compreensão das práticas pedagógicas sociais como
produtoras de significados; integrar os conhecimentos do currículo de forma in-
terdisciplinar, conectando os diversos saberes, por meio da reflexão-ação; e pro-

183
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

mover atividades político-pedagógicas fundamentadas em metodologias inovado-


ras dentro de um processo de emancipação e inclusão (UFPR LITORAL, 2012).
Assim, o curso de licenciatura em Educação do Campo, por sua vez, com-
preende três espaços de aprendizagem, quais sejam, fundamentos teóricos-práticos;
projetos de aprendizagem; e interações culturais e humanísticas (UFPR LITO-
RAL, 2012).
Cabe salientar que a organização do curso abrange espaços diferenciados de
aprendizagem a partir da alternância. Os módulos são permeados pelos eixos te-
máticos que explicitam os conteúdos fundamentais do curso, em sintonia com a
fase de cada período. Os conteúdos representam importantes elementos de ligação
licenciandos e seus Projetos de Aprendizagem (PAs). As Interações Culturais e Hu-
manísticas (ICHs) articulam-se com os demais espaços de aprendizagem e possibi-
litam uma troca de saberes, por meio de seminários e oficinas locais, articulando e
integrando os diferentes sujeitos envolvidos no processo com as diferentes comuni-
dades (UFPR LITORAL, 2012).

A comunidade quilombola de João Surá


O termo “quilombo”, que recentemente ganhou visibilidade no Brasil, tem
origem na palavra Kilombo, língua Mbundo, tronco linguístico Banto e significa
sociedade como manifestação de jovens africanos guerreiros. Também “deriva de
Quimbundo, nesse caso significa ‘acampamento’, ‘povoação’ ou ‘arraial” (ITCG,
2008).
Após a Constituição Federal de 1988 estabelecer que os quilombolas pos-
suem direito ao título de suas terras, houve um amplo debate na sociedade brasileira
sobre o significado da palavra “quilombo” e “quilombola”. A Associação Brasileira
de Antropologia (ABA) e pesquisadores da área foram chamados para ressemanti-
zar o termo. Neste artigo, “comunidade quilombola” tem o mesmo significado da-
quele adotado no Decreto nº 4.887/2003: “grupos étnico-raciais, segundo critérios
de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida” (BRASIL, 2003).

184
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

A comunidade quilombola de João Surá, formada pelos núcleos de Guara-


cuí e Poço Grande, situa-se em Adrianópolis, região do Alto do Vale do Ribeira
do Iguape, entre Paraná e São Paulo. Essa comunidade existe há mais de 200 anos,
época em que havia atividade mineradora na região do Alto do Rio Ribeira. Foi for-
mada por descendentes de negros e negras que trabalhavam na condição de escra-
vizados na mina de ouro de Apiaí em São Paulo. Os indígenas que viviam no local
estabeleceram vínculos com os negros e originaram as famílias que hoje moram na
comunidade (ITCG, 2008).
São 41 famílias, totalizando 149 pessoas que habitam João Surá. Há um pos-
to de saúde para a comunidade e uma escola que atende os estudantes até o final da
educação básica.
Os quilombolas de João Surá só começaram a ter acesso às políticas pú-
blicas a partir de 2004 e 2005, época em que foi formado no Paraná o Grupo de
Trabalho Clóvis Moura (GTCM). Portanto, foram os seus conhecimentos de me-
dicina tradicional, de manejo do solo e do agroecossistema local que possibilita-
ram a sobrevivência das famílias no que diz respeito à saúde e à produção agrícola.

O conhecimento etnobotânico dos quilombolas no contexto da Mata


Atlântica
De acordo com Lopes (2010a), o prefixo “etno” tão popular hoje na acade-
mia é o atalho mais usado para quando alguém quer se referir ao modo como indí-
genas, quilombolas, caiçaras e outras comunidades tradicionais observam o mundo
(MARTIN, 1995). Esse prefixo diante da palavra “botânica” expressa o recorte aca-
dêmico que os pesquisadores estabelecem diante do conhecimento desses grupos
com relação às plantas.
Neste estudo, compreendemos a etnobotânica de acordo com a ampliação
de Lopes (2010a, p. 33), ou seja, como o “estudo das interações existentes entre
homens, mulheres e crianças com o ecossistema onde vivem (plantas, animais, rios,
florestas, etc.), seus mitos, crenças e empirismos necessários para sua reprodução
física, social e espiritual”.

185
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

O conhecimento etnobotânico dos quilombolas, de uma maneira geral, tem


a contribuição dos negros, dos indígenas que eram os povos originais e de brancos
de origem europeia, os quais contribuíram com sua matriz étnica para formação
dos quilombos. Embora, as comunidades quilombolas tenham em sua constituição
a matriz indígena e europeia, a matriz africana é preponderante. Vale ressaltar que
os negros que hoje formam essas comunidades são descendentes de diversas etnias
africanas, os quais foram trazidos para o Brasil de forma compulsória durante a co-
lonização do país pelos portugueses.
Portanto, compreender esse conhecimento etnobotânico dos quilombolas
pressupõe conhecer e compreender a cosmologia dos indígenas e do povo negro
que se orientam por pressupostos civilizatórios diferentes do judaico-cristão. Au-
tores como Barros (1993), por exemplo, afirmam que culturalmente a relação ser
humano/vegetal é de suma importância para o negro, seja ele oriundo de qualquer
país da África. Assim, para o negro, o conhecimento e a ligação que estabelece com
os vegetais, indiferente do local em que esteja, estão ligados à sua própria existência
material. O negro conhecia e interagia com a floresta quando estava na África por-
que esse conhecimento dizia respeito à sua identidade. Ao chegar ao Brasil, precisou
conhecer e compreender a floresta brasileira, visando substituir as espécies que usa-
va em seu país de origem não só para sanar seus problemas de saúde, mas, sobretu-
do, para manter sua identidade. Para conhecer e compreender a biodiversidade das
florestas brasileiras, o negro contou com o conhecimento indígena.
Nesse sentido, não há como realizar estudos etnobotânicos em comunidades
quilombolas ignorando conceitos como energia vital, axé e ancestralidade. Porque
só assim será possível perceber que para os quilombolas a noção de saúde e doença
tem significado mais amplo do que o preconizado pela Organização Mundial da
Saúde (OMS). Por isso, acreditamos que entender o uso de plantas como remédio
nessas comunidades precisa partir do contexto social e ecológico, e os fatores cul-
turais envolvidos nas etiologias das doenças precisam ir além do ambiente físico
(LOPES, 2010b).
Por outro lado, o fato de a comunidade quilombola de João Surá se situar
no Bioma Mata Atlântica, aumenta a relevância do estudo etnobotânico, pois, ape-

186
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

sar deste se encontrar fragmentado e reduzido, ainda apresenta a maior diversidade


biológica brasileira, abrigando mais de 20 mil espécies de plantas vasculares, sendo
que cerca de 40% delas são exclusivas da Mata Atlântica (MITTERMEIER et al.,
2005).
No local onde a comunidade quilombola de João Surá se encontra, predo-
mina a Floresta Ombrófila Mista, com apenas 7,3% da cobertura florestal original,
prevalecendo as formações florestais secundárias (FUNDAÇÃO SOS MATA
ATLÂNTICA – INPE, 1998). De acordo com Guerra e Nodari (2007), a maior
parte da cobertura original de Floresta Atlântica, por possuir relevo ondulado e for-
te ondulado, solos rasos e ácidos, limita a sua utilização para usos que permitam a
manutenção permanente da floresta. O contrário aponta para a destruição do ecos-
sistema por meio de erosão e empobrecimento do solo.
Nesse sentido, o conhecimento etnobotânico e o do manejo florestal por
parte da comunidade desse importante bioma poderá ser um importante instru-
mento para o desenvolvimento desta e para os pesquisadores da área.
Para ilustrar o conhecimento etnobotânico dos quilombolas de João Surá,
apresentaremos os resultados de uma pesquisa realizada pelo GTCM, sobre os di-
ferentes usos que dão para os vegetais da Mata Atlântica, destacando os usos medi-
cinais, dos quais elencamos alguns: Açoita-cavalo (Solanum hasslerianum Chodat),
indicam para problema de rins; Aroeira (Schinus terebinthifolius Raddi), infecções
na pele; Assa-peixe (Vernonanthura tweedieana (Baker) H. Robisnson), infecções
de garganta e intestino; Calção-de-velha ou (Buddleja brasiliensis Jacq. ex Spreng),
para curar reumatismo; Carqueja (Baccharis trimera (Less.) DC.), para combater
infecções de garganta; Cipó-mil-homens (Aristolochia triangularis Cham.), usado
para combater vermes; Embaúba (Cecropia glaziovi Snethl.), usada para eliminar
pedra no rim e para curar bronquite; Erva-de-lagarto (Casearia sylvestris), indicam
para inibir a ação do veneno de cobras peçonhentas; Gabiroba (Campomanesia
xanthocarpa O. Berg), apontaram diversos usos, entre eles, o diurético; Gervão (Sta-
chytarpheta cayennensis (Rich.) Vahl), usam sobre a pele para curar hematomas); Pa-
cová (Renealmia petasites Gagnep.), o chá feito com os frutos cura dor de estômago;
Pariparoba (Piper gaudichaudianum Kunth), o banho com chá das folhas cura sarna

187
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

e a ingestão do chá serve para problemas renais; Pata-de-vaca (Bauhinia fortificata


Link), indicam para problemas renais; Quina-branca (Solanum pseudoquina A. St.-
Hil.), tem ação antipirética em disenterias e dor de cabeça; Rubim (Leonurus sibiri-
cus L), o uso tópico cura hematomas oriundos de pancadas; Salsa- parrilha (Smilax
cognata Kunth), usam como depurativo do sangue; Sapé (Imperata brasilensis Trin),
indicam para sanar artrite e coqueluche; Taiuiá (Cayaponia espelina (Silva Manso)
Cogn.), indicam o chá da raiz para diversas doenças: cólica de intestino, rins, prisão
de ventre, depurativo do sangue e mastite em vacas (ITCG, 2008).
Por outro lado, apesar de sua importância, o conhecimento etnobotânico
dos quilombolas e de outras comunidades tradicionais vem sendo relegado, igno-
rado e desprestigiado ao longo da história do Brasil. Observamos que durante as
aulas de Ciências, no ensino fundamental, e de Biologia, no ensino médio, esse co-
nhecimento não é mencionado. Essa desqualificação não foi e não é por acaso. É
sabido que a ciência, do jeito que conhecemos e valorizamos hoje, iniciou-se no
século XIV com Bacon e com Descartes no século XVII, cujo discurso sobre o mé-
todo legitimou a ciência moderna, tomando por base a observação, interpretação e
validação experimental dos fenômenos naturais (SAYAGO; BURSZTYN, 2006).
No entanto, as populações que viviam nas Américas, antes da legitimação da ciên-
cia e da chegada dos colonizadores, já possuíam um estágio bem avançado de de-
senvolvimento. Entretanto, “o conhecimento europeu sempre fez do ‘outro’ um ser
distante, folclórico, quando não apenas um resignado, subordinado, subserviente”
(SAYAGO; BURSZTYN, 2006, p. 92).
Vale ressaltar que esses conhecimentos que, no passado, foram considerados
“saberes periféricos”, hoje, estão sendo legitimados por meio das ciências formais e
alimentam o banco de dados de grandes empresas, como, por exemplo, a farmacêu-
tica, que lucra bilhões de dólares todos os anos.
No curso de licenciatura em Educação do Campo, esses conhecimentos ad-
quirem um novo status ao se valorizar as pessoas cujo conhecimento e as capacida-
des foram adquiridas por “autoaprendizagem” (SAYAGO; BURSZTYN, 2006).
Ressaltamos que há uma grande diferença entre o conhecimento dos quilombolas e
o da academia. Essa diferença aparece, principalmente, quando observamos que as

188
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

populações tradicionais produzem interpretações e análises a partir de critérios en-


dógenos, bem diferentes da nossa sociedade que orienta suas ações para o consumo.

Análise do discurso: o que dizem as mulheres quilombolas da comunidade


João Surá sobre o conhecimento etnobotânico
A AD é uma disciplina que surgiu na França na década de 1960 e teve como
seu percussor o estudioso Michel Pêcheux. É uma área do conhecimento que en-
trelaça três vertentes distintas: a Linguística, a Psicanálise e o Marxismo Histórico.
Como o próprio nome diz, o objeto de estudo da AD é o discurso. O conceito de
discurso aqui é concebido como algo sócio-histórico, pois considera primordial a
relação da linguagem com a sua exterioridade. Nesse contexto, a exterioridade re-
fere-se às condições de produção do discurso: o falante, o ouvinte, o contexto da
enunciação, assim como o contexto sócio-histórico (GONÇALVES, 2013).
O ponto de vista da AD é de interesse para a compreensão do processo de
como o conhecimento e a sociedade constituem-se mutuamente por meio da lin-
guagem. A partir da retomada de alguns aspectos históricos e epistemológicos que
caracterizam a AD de linha francesa, como um campo teórico-metodológico do
estudo linguareiro, discute-se a intersecção do discurso, do sujeito e da história na
elaboração de sentidos (ALMEIDA; CASSIANI; OLIVEIRA, 2008). O discurso,
assim, é tomado não como mero transmissor de informações, mas como o efeito de
sentido entre os locutores, por meio do qual se faz a mediação entre o homem e sua
realidade natural.
Dessa maneira, a AD não concebe a língua como algo abstrato, fechada em si
mesma e ideologicamente neutra, mas sim na maneira que significa e está recoberta
de significância. Para Orlandi (1996, p. 63), “[...] se considera que o que se diz não
resulta só da intenção de um indivíduo em informar um outro, mas da relação de
sentidos estabelecidas por eles num contexto social e histórico.” Assim, a linguagem
passa a ser um fenômeno que deve ser compreendido não só em relação ao seu sis-
tema interno, que exige dos seus usuários apenas uma competência específica, mas
como forma de interação do homem com o seu meio.

189
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

O discurso, pois, é dissociável do homem, já que a linguagem é entendida


como um sistema de interação entre locutores, por meio do qual se produzirá o
efeito de sentido, a partir de objetos simbólicos, os quais revelarão que a linguagem
não é transparente. Tem-se, pois, dessa maneira, que a ideologia é fator essencial na
constituição do sujeito, já que está presente na constituição do sentido e do na cons-
tituição do sujeito em si (ALMEIDA; CASSIANI; OLIVEIRA, 2008).
A linguagem é ainda um lugar de múltiplas contradições como um confron-
to de imaginários, matéria e instrumento de trabalho, reflexão e refração; é uma
teoria crítica que trata de determinação histórica dos processos de significação. Par-
tindo da constituição simbólica do homem, da busca de sentidos, a AD situa as
práticas de linguagem no eixo tempo-espaço (GONÇALVES, 2013).
Por isso, pensar a AD como viés metodológico para compreender o discur-
so de homens e mulheres quilombolas, que são também estudantes da licenciatura
em Educação do Campo, com idades distintas e pertencentes à comunidade João
Surá, objetivando coletar informações sobre o uso de vegetais para as mais diversas
funções, é oportunizar a reflexão sobre os dizeres, sobre os silêncios, sobre os per-
tencimentos.
Além disso, de acordo com a concepção de sujeito da AD, que trata o sujeito
do discurso como alguém, que, por sua vez, não será um ser totalmente livre, uma
vez que seu discurso sempre estará repleto do discurso do outro, e é a partir desse ou-
tro que o sujeito constituirá identidade. Nessa perspectiva, o discurso dessas mulhe-
res/estudantes quilombolas está impregnado de sentidos advindos de sua condição
histórica e social, de alguém que cresceu em uma comunidade quilombola repleta
de tradições, ritos e crenças que inevitavelmente estarão refletidas em seus dizeres.
Em outras palavras, a voz do outro estará alojada no seu inconsciente.
De acordo com Orlandi (2001, p. 20), “o sujeito de linguagem é descentrado
pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o con-
trole sobre o modo como elas a afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discur-
sivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.” Dessa maneira, o sujeito é afetado
pelo inconsciente e pela ideologia, e o que determina o sentido de seu discurso são a

190
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

historicidade e as condições de produção do discurso no qual o sujeito está imerso,


logo o sujeito não é dono do discurso que produz.

Gestos de análise
Para ilustrar este texto, selecionamos dois fragmentos de entrevistas que ti-
nham como objetivo investigar o uso de ervas medicinais para a prática do aborto
realizada por mulheres em uma comunidade quilombola do Vale do Ribeira, nas
proximidades de João Surá. Esses discursos foram organizados e analisados toman-
do por base princípios metodológicos da AD. A seguir, apresentamos os fragmentos
das entrevistas:

Fragmento 1: D. Fulana de Tal: (74 anos, faz 10 anos que se tornou evangé-
lica)
Pergunta 1: A senhora conhece alguma erva que serve para fazer uma mu-
lher abortar?
D. Fulana: Não conheço não senhora. Abortar é pecado.
Pergunta 2: A senhora conhece alguma erva que faz vir a menstruação atra-
sada por mais de um mês?
D. Fulana: Conheço sim, venha comigo que vou te mostrar.

Fragmento 2: D. Beltrana: (35 anos, não se converteu ao cristianismo)


Pergunta 1: A senhora nasceu aqui na comunidade? Teve quantos filhos?
D. Beltrana: Não nasci aqui. Casei com um quilombola, por isso vim morar
aqui. Tive cinco filhos, fora os que perdi.
Pergunta 2: As perdas que a senhora mencionou foram naturais? A senhora
usou alguma erva?
D. Beltrana: Vou dizer uma coisa: aqui ninguém gosta que a gente fale que
sabe nome de planta que serve para abortar porque quase toda a comunidade
é crente. Se as outras mulheres souberem que te falei o nome dessas plantas
vão falar mal de mim. Já falam porque não sou crente. Dizem que traio meu

191
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

marido, etc..etc...Vou contar para você o nome das plantas, desde que você
não conte para as outras que fui eu que te contou.

O conjunto das análises indica que os efeitos de sentido sobre o uso de er-
vas medicinais para a prática do aborto presentes no discurso dessas duas mulheres
quilombolas está relacionado a duas principais atribuições: o uso do conhecimento
tradicional quilombola das ervas medicinais para a cura de doenças, e também para
o processo abortivo e a religiosidade-medo-preconceito impregnados em seus dize-
res quanto à prática do aborto.
A resposta da D. Fulana: “Não conheço não senhora. Abortar é pecado”, reme-
te-nos ao efeito de sentido de religiosidade. A palavra “pecado” indica que se trata de
uma senhora religiosa, que se importa com o que a ideologia cristã ensina sobre “ser
pecado” praticar o aborto, e, por isso, não se sente nem um pouco à vontade quando
é indagada a esse respeito.
Sabemos que essa comunidade quilombola na qual essa senhora reside é uma
comunidade com maioria adepta ao cristianismo, de religião católica e, sobretudo,
evangélica. Assim, a ideologia cristã não permite a prática do aborto, nem mesmo
se for realizada com plantas medicinais, por isso, ao ser indagada sobre a questão,
imediatamente responde que abortar é pecado, evidenciando que se trata de uma
senhora religiosa e que, aparentemente, segue os preceitos recebidos por essa insti-
tuição.
Em qualquer sociedade ou país transitam discursos que são reconhecidos
como pertencentes àquela e não a outra sociedade ou país. Alguns desses dizeres são
fundadores, outros, embora funcionem como elemento identitário, não constituem,
no entanto, enunciados fundadores. Para essas mulheres quilombolas que foram
entrevistadas nesta pesquisa, temos dizeres que remetem à sua identidade cultural,
identidade esta de mulheres quilombolas que têm passado seus conhecimentos de
geração em geração. Trata-se de enunciados fundantes de uma tradição quilombola:
o discurso religioso, que temos na entrevista da primeira mulher, desvela um sentido
de enunciado fundante na religiosidade. Dessa forma, no campo da AD, o discurso
se constitui sobre o primado do interdiscurso: todo discurso produz sentidos a par-

192
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

tir de outros sentidos já cristalizados na sociedade. Nesse caso, discursos já ditos na


comunidade quilombola, que foram passados, cristalizados de geração em geração.
Contudo, quando esta mesma senhora é indagada de outra forma, também
sobre o aborto, seu discurso desvela uma contradição:

Pergunta 2: A senhora conhece alguma erva que faz vir a menstruação atra-
sada por mais de um mês?
D. Fulana: Conheço sim, venha comigo que vou te mostrar.

Cientificamente, sabemos que, quando o período menstrual de uma mulher


atrasa por um longo período, uma das causas pode ser o indício de uma gravidez. As-
sim, ao perguntar à D. Fulana sobre conhecer uma erva que “faz vir a menstruação
atrasada por mais de um mês”, a pesquisadora usou outra forma de perguntar sobre
o aborto. O que nos surpreendeu foi a resposta da senhora diferente da anterior
(mesmo sendo indagada sobre o mesmo assunto: o aborto): “conheço sim, venha
comigo que vou te mostrar”, que sem perceber deixou evidenciado em seu discurso
que conhece ervas medicinais que “induzem ao aborto” ou em outras palavras “fa-
zem vir a menstruação atrasada”. Implicitamente em seu discurso, essa senhora que,
há poucos instantes em resposta a outra pergunta, revelou-se religiosa ou, ainda, que
apresentou em seu discurso um enunciado fundante com marcas de religiosidade,
agora de forma natural e sem constrangimento confirmou conhecer as ervas medi-
cinais que podem ser abortivas.
Assim, vemos nesse enunciado, de acordo com a AD francesa, que a lingua-
gem não é transparente, e os sentidos implícitos em um discurso sempre podem ser
outros, nesse caso, a pesquisadora utilizou outra forma de indagar sobre um mesmo
assunto, mesmo que implicitamente. Ainda corroborando a nossa perspectiva de
análise, a AD francesa, o processo de produção do discurso se dá por meio das cha-
madas condições de produção, as quais levam em conta o lugar de onde o sujeito
pronuncia seu discurso, ou o papel social que o sujeito representa. Nesse âmbito, o
sujeito é capaz de criar representações do outro e de si mesmo, baseando-se no lugar
que estes ocupam no interior das condições de produção.

193
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Comparando a primeira resposta com a segunda, no fragmento 1, observa-


mos a contradição. Mas e por que aparece essa contradição no discurso dessa senho-
ra? Onde está a mulher religiosa?
Novamente de acordo com as condições de produção do discurso, a palavra
“aborto”, que está historicamente impregnada de conceitos e preconceitos sociais e
históricos, não estava implícita na segunda pergunta da pesquisadora, o que mudou
parcialmente as condições de produção, sendo possível obter uma resposta contrá-
ria à primeira. Isso pode ser explicado já que a forma sujeito histórico que corres-
ponde à da sociedade atual representa bem a contradição e é um sujeito ao mesmo
tempo livre e submisso. Ele é capaz de uma liberdade sem limites e uma submissão
sem falhas: pode tudo dizer, contanto que se submeta à língua para sabê-la. Essa é a
base do que chamamos assujeitamento (ORLANDI, 2001).
Com base nessa relação da linguagem com a exterioridade, com o assujeita-
mento da ideologia, a AD recusa as concepções de linguagem que a reduzem ora
como expressão do pensamento, ora como instrumento de comunicação. A lingua-
gem para a AD é entendida como ação, transformação, como um trabalho simbóli-
co em “que tomar a palavra é um ato social com todas as suas implicações, conflitos,
reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidade etc.” (ORLANDI,
2001, p. 17).
Em outras palavras, na ótica da AD, o sujeito é atravessado tanto pela ideo-
logia quanto pelo inconsciente, o que produz não mais um sujeito uno, mas um
sujeito cindido, clivado, descentrado, não se constituindo na fonte e origem dos pro-
cessos discursivos que enuncia, uma vez que estes são determinados pela formação
discursiva na qual o sujeito falante está inscrito.
Essas questões apontam para o fato de que, na constituição do sujeito do
discurso, intervêm dois aspectos: primeiro, o sujeito é social, interpelado pela ideo-
logia, mas se acredita livre, individual; e, segundo, o sujeito é dotado de inconscien-
te, contudo acredita estar o tempo todo consciente. Afetado por esses aspectos e
assim constituído, o sujeito (re)produz o seu discurso. No entanto, esse sujeito tem
a ilusão de ser a fonte do discurso, origem do seu discurso, como, por exemplo, essas
duas mulheres da entrevista, que têm a ilusão de serem a origem se seus dizeres, mas

194
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

não sabem que seus enunciados estão impregnados de outros dizeres historicamente
construídos na sua comunidade por seus antepassados, seus familiares, que estão
sempre reproduzindo dizeres já ditos anteriormente, que estão ecoando dizeres fun-
dantes, ideológicos, de tradição, com marcas identitárias de sua comunidade qui-
lombola quando falam isso ou aquilo, nesse caso, quando falam acerca do aborto,
ou das plantas medicinais.

Considerações finais
Do ponto de vista humano e social, a situação educacional no campo é in-
justa e discriminatória, bem como as políticas públicas gerais de universalização do
acesso à educação não têm dado conta da realidade específica dos povos do campo.
Nesse contexto, surge a Educação do Campo como mobilização de movimentos
sociais por uma política educacional para comunidades camponesas articuladas às
lutas por reforma agrária, partindo-se de uma compreensão de campo carente de
terra e condições de trabalho, de escolas apropriadas para as pessoas que ali residem
visando maior desenvolvimento de seu território (CALDART et al., 2008).
Muitos estudos etnobotânicos são realizados tomando como ponto de par-
tida a fala dos entrevistados, observação participante e diagnósticos participativos.
Como esses saberes são de tradição oral, o pesquisador conta com a boa vontade dos
detentores de saber das comunidades que, por questões culturais e/ou ideológicas,
muitas vezes se recusam a abordar sobre determinados saberes considerados co-
nhecimentos femininos, masculinos, interditos, entre outros, expressos no silêncio
diante de determinadas perguntas. Esse fato não só empobrece os levantamentos,
como contribui para o desaparecimento de muitos conhecimentos. Consideramos
que o uso da AD contribuirá para minimizar essas perdas, garantindo o cumpri-
mento do objetivo inicial, levantar dados do conhecimento etnobotânico a partir
do discurso implícito na fala dos quilombolas por meio da AD, visando subsidiar a
produção de materiais didáticos para as aulas de botânica e assegurar a valorização
do conhecimento tradicional quilombola.

195
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Referências
ALMEIDA, Maria José P. M. de; CASSIANI, Suzani; OLIVEIRA, Odisséia Boaventura
de. Leitura e escrita em aulas de ciências: luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2008.
BARROS, José Flávio Pessoa de. O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais
no candomblé jêje-nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/UERJ, 1993.
BRASIL. Decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupa-
das por remanescentes quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 2003.
______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educa-
ção nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.
______. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasilei-
ra”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
______. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, modificada pela Lei nº 10639 de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obriga-
toriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 11 mar. 2008.
CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOT-
TO, Gaudêncio (Orgs.). Dicionário da educação no campo. Rio de Janeiro, São Paulo:
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1980.
FUNDAÇÃO SOS Mata Atlântica/Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Atlas da
evolução dos remanescentes florestais e ecossistemas associados do domínio da Mata
Atlântica no período 1985 – 1990. 1992.
GONÇALVES, Michelle Bocchi. Atividades experimentais em discurso: com a palavra
os professores do Estado do Paraná. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Univer-
sidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.
GUERRA, M. P.; NODARI, R. O. Biodiversidade: aspectos biológicos, geográficos, legais
e éticos. In: SIMÕES, C. M. O. et al. (Org.). Farmacognosia: da planta ao medicamento.
Porto Alegre: Editora da UFRGS; Florianópolis: Editora da UFSC, 2007. p. 13-28.
INSTITUTO DE TERRAS, CARTOGRAFIA E GEOCIÊNCIAS (ITCG). Terra e
cidadania. Curitiba: ITCG, 2008.
LOPES, Claudemira Vieira Gusmão. O conhecimento etnobotânico da comunidade
quilombola do Varzeão, Dr Ulysses (PR): no contexto do desenvolvimento rural susten-
tável. 2010. Tese (Doutorado em Ciências) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2010a.
______. O conhecimento etnobotânico dos quilombolas no contexto do ensino de
botânica. In: MARQUES, S. M. dos S.; COMAR, S. R.; ESTRADA, A. A.; LOPES, M.

196
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes

G. (Orgs.). Educação, cultura e etnia: aportes teórico-metodlógicos para formação de


professores. Francisco Beltrão: UNIOESTE, 2010b.
MITTERMEIER, Rusell A.; FONSECA, Gustavo A. B. da; RYLANDS, Anthony B.;
BRANDON, Katrina. A brief history of biodiversity conservation in Brazil. Conservation
Biology, v. 19, n. 3, p. 601-607, 2005.
MARTIN, GARY JOHN. Ethnobothany: a methods manual. Londres: Chapman &
Hall, 1995. Disponível em:< https://www.scribd.com/document/311438001/Martin-
-1995-Ethnobotany-A-Methods-Manual-pdf>. Acesso em: 10 dez. 2016.
MOLINA, Mônica Castagna; FREITAS, Helana Célia de Abreu. Avanços e desafios na
construção da educação do campo. Em Aberto, Brasília, v. 24, n. 85, p. 17-31, 2011.
ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. São
Paulo: Vozes, 1996.
______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
SAYAGO, Doris; BURSZTYN, Marcel. A tradição da ciência e a ciência da tradição: rela-
ções entre valor, conhecimento e ambiente. In: GARAY, I.; BECKER, B. (Orgs.). Dimen-
sões humanas da biodiversidade: o desafio de novas relações sociedade-natureza no século
XXI. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 89-109.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR LITORAL (UFPR LITORAL).
Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura de Educação do Campo. Matinhos:
UFPR Litoral, 2012.

197
Beatriz e o abandono: anotações a uma
ação de liberdade no Paraná (1876-1881)
Carlos Alberto Medeiros Lima1

O fato de escravos terem sido, simultaneamente, pessoas e mercadorias


permanecia fonte de perplexidade durante os últimos anos da escravidão no Bra-
sil (GRINBERG, 2002). Creio poder resumir a influente argumentação de Hebe
Mattos sobre o assunto escrevendo que, sob o intricado e transitivo mundo insti-
tucional do Império brasileiro, era de dois modos diferentes que as instituições se
afastavam do tratamento dos escravos como propriedade. Um deles foi o do legado
da legislação portuguesa. O outro, o da concessão de direitos civis aos cativos, sem
eliminar sua condição escrava. O primeiro, que a autora exemplifica incisivamente
com a possibilidade estabelecida legalmente de revogação de alforrias por “ingrati-
dão”, implicava uma concepção do cativeiro marcada pela relação entre pessoas, en-
volvia os agentes num conjunto de relacionamentos societários desiguais, marcados
pela dominação crua. O outro, moderno, embora hesitante e ainda muito escravista,
supunha a capacidade do Estado de legislar para senhores e escravos, tornando estes
últimos, embora súditos menores, ainda assim súditos, no bojo do estabelecimento
legal de direitos e obrigações mediante lei positiva; supunha um Estado que se ins-
titucionalizava e expandia suas atribuições (MATTOS, 1995).
Essas ambivalências não eram reduzidas, antes o contrário, pelo fato de es-
sas diversas percepções acerca dos cativos terem podido aparecer, combinadas, no
interior de uma mesma iniciativa legal. Argumento que a Lei do Ventre Livre foi
um desses textos, e para examiná-lo enfatizo um aspecto específico dela, o problema

1
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Uni-
versidade Federal do Paraná; bolsista de Produtividade em Pesquisa – nível 2 – do CNPq. Dou-
tor em História Social pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: carlima3@gmail.com.
198
Beatriz e o abandono

do abandono. A Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871 estabelecia, no artigo 6º,


parágrafo quarto, que seriam libertos “os escravos abandonados por seus senhores.
Se estes os abandonarem por invalidos, serão obrigados a alimental-os, salvo caso de
penuria, sendo os alimentos taxados pelo juiz de orphãos”. O Regulamento (estabe-
lecido pelo Decreto nº 5.135, de 13 de novembro de 1872) feito no ano seguinte
para regular a execução dessa lei definia o abandono de uma maneira diferente. Para
fazer referência a esse Regulamento, lanço mão de uma paráfrase feita pelos envolvi-
dos em uma ação de liberdade que será examinada ao longo deste trabalho:

Considerando que o artigo setenta e seis do Regulamento numero


cinco mil cento e trinta e cinco de treze de Novembro de mil oito
centos e setenta e dous, define como abandono para o fim de apro-
veitar o favor da Lei citada de vinte e oito de setembro de mil oito
centos e setenta e um, artigo sexto paragrafo quarto, o escravo cujo
senhor residindo no lugar e sendo conhecido, não o mantem em su-
jeição e não manifesta querer mantel-o sob sua authoridade.

Esse trecho provém de um documento denominado Sentença cível da Rela-


ção de São Paulo que annullou o processo de liberdade, da libertanda Beatriz, perten-
cente ao espolio do finado Manoel Manço dos Santos, 1881, relacionado ao Juízo de
Orfãos da Villa da Palmeira, Vara Cível de Palmeira, Fórum de Palmeira (doravante
FP-VCP). Trata-se de um translado de 55 fólios sem paginação (no decorrer deste
trabalho, apenas a ortografia dos nomes foi atualizada).
Daquilo que se lê nele, podem-se pontuar alguns elementos. Uma coisa era
a obrigação de cumprir ditames legais sem dano a terceiros; outra coisa era a mani-
festação da intenção de preservar o poder senhorial. A libertação, se descumprido o
preceito legal, significava a absorção da nova lógica de um Estado que, relacionando
escravos a si, recheava de direitos uma instituição moribunda. Se, na lei, se escrevia
sobre abandono apenas para evitar trambiques, o preceito do Regulamento apelava
para, e, portanto, impunha, a antiga lógica dos deveres e direitos recíprocos de se-
nhores e escravos, com uma concepção tradicional até de propriedade. Se desconhe-
cida a antiga tônica, através da nova o Estado garantiria direitos. A implicação dessa
combinação, que será examinada ao longo deste trabalho, é a de que essa mistura se
manifestou em um momento no qual o poder senhorial parecia contraditório em
199
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

relação aos vínculos comunitários de âmbito local, caso estes envolvessem escravos,
o que, inclusive, talvez tenha contribuído para que o “abandono” não fosse dos ele-
mentos mais invocados nas ações de liberdade instauradas subsequentemente à Lei
do Ventre Livre.
Embora a matriz da alforria por abandono fosse romana, referindo-se a
escravos idosos e doentes (isso aparentemente desde Claudio; ver MALHEIRO,
1976, cap. 3º, SEÇÃO 3ª, art. II), as ações correspondentes, baseadas no que po-
deria ser visto como o direito romano, não foram frequentes, do mesmo modo que
as referências aos “códigos romanos” tiveram pouca importância nas ações de li-
berdade imperiais (GRINBERG, 2002). A Lei do Ventre Livre e seu Regulamento
realmente devem ser considerados os elementos que acionaram o dispositivo, com
todos os seus limites. Em paralelo a essas novidades ao redor da dimensão legal do
abandono, outro elemento aumentou sua importância, nomeadamente o avanço da
clivagem entre livres pobres e senhores de escravos. É sabido que, durante o século
XIX brasileiro, aumentou a distância social entre os diversos segmentos dos livres, e
a irrupção das duas coisas mais ou menos ao mesmo tempo elevou, como se verá, a
importância política do abandono, mas de um modo que pode ter conduzido a uma
inviabilização do recurso ao dispositivo.
A historiografia das ações de liberdade não dá muita ênfase aos casos de aban-
dono. As alegações em ações de liberdade no Sudeste das décadas de 1830 a 1860
estudadas em Mattos (1995) não dão a impressão de que fenômenos semelhantes
a ele fossem comuns nas cortes do Sudeste. Para Chalhoub (1990), após 1871, o
caso dominante nas ações de liberdade do Rio de Janeiro passou a ser a tentativa de
redução do preço a ser pago pela manumissão. Regina Xavier sugere que as ações
de manutenção da liberdade de Campinas se ligavam à preservação da liberdade de
pessoas livres sob ameaça (XAVIER, 1996). A discussão de Spiller Pena sobre ações
de liberdade em Curitiba, apesar da proximidade e da semelhança com Palmeira
(que fizera parte de Curitiba até 1869) também não sugerem que o abandono fosse
alegação frequente (PENA, 1990). Os meros dois casos de abandono localizados
por Ricardo Tadeu Caires Silva na Bahia do fim dos anos 1870 e início da década
seguinte tiveram como resultado a rejeição da liberdade (SILVA, 2007).

200
Beatriz e o abandono

Outra observação sobre as leis e questões institucionais deve intervir na lei-


tura do processo que será examinado: a legislação imperial teve um caráter que é
difícil deixar de ver como intencionalmente lacunar. Parece ter-se tratado de uma
aposta em liberação adicional do jogo de forças implícito à implementação de qual-
quer peça de legislação em qualquer lugar. As lacunas abriam a possibilidade de que
esse jogo de forças tivesse ainda menos aspectos predeterminados, o que penso po-
der ser compreendido levando em conta alguns fatores fundamentais na história
brasileira do século XIX. Deixava-se muita margem para a negociação entre as for-
ças burocratizantes, imperiais, e as forças locais cuja expropriação política ainda não
fora plenamente alcançada. Reforçava a posição dos juízes como árbitros da relação
precedente, dando vazão a seu papel de placas giratórias, de vetores de negociação
de forças sociais e políticas, capazes de transformar os resultados dessas negociações
em regulação implícita e em um senso muito casuístico de justiça. Pelo menos é o
que se infere do trabalho de Flory sobre os juízes de paz (FLORY, 1986).
O artigo supracitado da Lei do Ventre Livre pode ter aberto canal de expres-
são para uma relação nova, em cada localidade, entre os senhores e os livres pobres,
com suas relações comunitárias intragrupais, e especialmente quando estas envol-
viam escravos. Argumenta-se que até então essas relações com os senhores tinham
sido de marcada continuidade, de apoio recíproco: o poder escravista apoiara-se
frequentemente na capacidade senhorial de comandar e reter autoridade sobre uma
vizinhança livre e depauperada. Em um nível mais amplo, a autoimagem patriarcal
embutida no domínio escravista não era apenas percepção acerca da relação entre
senhores e escravos como pessoas ou como classes, embora isso não fosse pouco. Era
uma visão de sociedade.
A partir disso, examina-se uma ação de liberdade tramitada em Palmeira,
Paraná, e na Relação de São Paulo durante o final dos anos 1870. Com base nessa
discussão, será possível obter alguns relances importantes acerca da vida social desse
intervalo crucial. As respostas dos atores às questões postas pelas instituições e suas
mudanças são muito reveladoras, como espero mostrar. Além disso, como o tema
do abandono se ligava muito diretamente à relação entre senhores e escravos, ele
como que forçava os agentes a explicitarem seus pressupostos acerca do significado

201
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

de escravidão, propriedade e liberdade. Mesmo nas situações em que esses pressu-


postos não eram diretamente expressos pelos envolvidos, eles apareciam em seus
relatos de contexto e nas leituras que realizavam das instituições e da legislação.
Os vários estudos sobre ações de liberdade referidos neste trabalho chamam
a atenção para os apoios que litigantes cativos obtinham entre livres circundantes,
de advogados a pessoas interessadas em criar laços de dependência envolvendo os
eventuais ex-escravos. Gostaria de acrescentar a isso que, para além de afetos e de in-
teresses políticos, materiais e institucionais imediatos, estavam implicados aspectos
da história específica das comunidades rurais que cercavam as relações escravistas,
e observar o modo como esses aspectos foram mobilizados nos anos 1870 e 1880
ajuda muito a compreendê-los.
Essas tendências ganhavam muito sentido nas condições decadentes de Pal-
meira, como se verá, mas alguns dados podem ser passíveis de aplicação ao estudo de
áreas mais dinâmicas. Assim, é de se pensar, tendo em vista qualquer tipo de área es-
cravista brasileira, o quanto as alianças comunitárias com escravos podem ter rede-
finido a aplicação do artigo 4º, parágrafo 3º, da Lei do Ventre Livre, que facultava a
cativos contratar com terceiros a prestação futura de serviços, se houvesse aprovação
pelo senhor e pelo Juízo de Órfãos (BEIGUELMANN, 1968). Por outro lado, tal-
vez se possa aproximar o caso de Quitéria e Beatriz, as escravas citadas no processo
de Palmeira aqui analisado, aos processos do Rio de Janeiro em que apareciam sus-
peitas de “sedução” do(a) candidato(a) a forro(a) por pessoas livres que prometiam
dinheiro para a manumissão. Esses casos foram analisados por Chalhoub (1990).
Também evoca muitas associações o uso por Maria Papali (2003, p. 102) da catego-
ria “redes de proteção clientelísticas” para abordar curadores, tomadores de serviços
e outros apoiadores de cativos. Tratar-se-ia, nessa hipótese, de outra cunha para que
os relacionamentos comunitários interferissem nos cativeiros, e uma ação como a de
Beatriz acabou por constituir um terreno para a expressão de uma certa tensão entre
a vida comunitária local e o poder senhorial.
Em 1876, em virtude do anúncio da arrematação em praça da escrava Bea-
triz, pertencente ao espólio de Manoel Manso dos Santos, ingressou-se em Palmei-
ra, Paraná, com ação de liberdade por abandono, nos termos da Lei do Ventre Livre.

202
Beatriz e o abandono

Como a ação obteve uma primeira sentença contrária à liberdade, houve apelação ex
officio dirigida à Relação de São Paulo. Lá, em 1878, o fato de ter ocorrido trâmite
no Juízo de Órfãos de Palmeira conduziu à anulação, relaxando-se o depósito que
havia sido feito da escrava. Em vista desse trâmite, a maior parte do documento
a que se teve acesso no Fórum de Palmeira constitui translado não paginado dos
autos, a que se acrescentou o “cumpra-se” pelo juiz municipal de Campo Largo, o
termo de conclusão e uma petição de um interessado no cativeiro de Beatriz, Pedro
Ferreira Maciel, no sentido daquele relaxamento de depósito.

O caso de Quitéria e Beatriz


O seguinte pode ser um resumo do caso. Quitéria, a mãe de Beatriz, era es-
crava do patrimônio pro indiviso de Manoel Manso dos Santos, que parece ter fa-
lecido na passagem da década de 1850 para a seguinte. Após a morte dos senhores,
ela precisou se virar. Circulava intensamente pela região de Palmeira, pedindo es-
molas, segundo algumas pessoas, e “parando algumas vezes em casa” de benfeitores
(Sentença cível da Relação de São Paulo, 1881, FP-VCP, testemunho de Antônio
de Moraes Perpétua). De acordo com outros, a escrava era portadora de uma auto-
rização dos herdeiros que lhe permitia ou obrigava a cuidar de sua existência e da de
seus filhos mediante jornais (ninguém mencionou entrega de ao menos parte desses
jornais a seus proprietários). Por vezes, dizia-se que ela ficava alugada, normalmente
por um mês, a diversas pessoas da localidade, entre as quais Pedro Ferreira Maciel,
importante fazendeiro local, ou o conselheiro Jesuíno Marcondes (Sentença cível
da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Francisco Generoso Vieira).
Conseguiram-se reunir testemunhos tanto de gente que deu esmolas a Quitéria,
quanto de proprietários que disseram ter alugado seus serviços. Essa situação incer-
ta, de extensa circulação, foi duradoura. Antônio de Moraes Perpétua, por exemplo,
a alugara por um mês no final dos anos 1850.
Sabe-se de pelo menos quatro filhos seus. Um deles era Bartolomeu, que pela
altura de 1876 era escravo do capitão Pedro Ferreira Maciel, o qual, além de possuir
aquele escravo, adquirira parte da herança de um dos senhores de Quitéria. Outra
filha era Beatriz, parda, provavelmente nascida em 1864 e libertanda no proces-

203
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

so aqui abordado. Como Quitéria passou um bom tempo doente antes de morrer,
permaneceram, ela e Beatriz, na casa de Jerônimo Romão Ferreira, ferreiro e curan-
deiro, que morava de favor em casa de Pedro Ferreira Maciel ( Jerônimo costuma-
va “dar remedios na vezinhança”; sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP,
testemunho de Antônio de Moraes Perpétua). Mencionava-se uma terceira filha,
Maria, também pertencente ao espólio de Manoel Manso dos Santos, mas de desti-
no igualmente incerto no interior da vizinhança. Quanto a ela, o que se sabe é que,
segundo Antônio de Morais Perpétua, parente de alguns dos herdeiros e que vivia
de seus negócios, Quitéria visitava sua casa para pedir esmolas e para “ver uma filha
que lá tinha”. Antônio chegou a conversar com os herdeiros sobre “tratar da acção
de cobrar a creação” de Maria. Acrescentou que outra filha de Quitéria, Madalena,
também vivia em sua casa, mas, nesse caso, ele próprio era senhor de metade dela
(Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Antônio de Mo-
raes Perpétua, que era sobrinho de Manoel Manso dos Santos).
No início de sua doença, Quitéria chegou a procurar alguém da família de
Rosaura Soares, viúva, nora de uma filha de Manoel Manso dos Santos. Talvez por
isso tenha passado algum tempo, já doente, morando com Maria da Luz, neta do
mesmo Santos (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Je-
rônimo Antunes de Góes). Mas, tendo ficado carente de respostas no médio prazo,
Quitéria procurou seu compadre, David Rodrigues da Maia, de Campo Largo, que,
soberanamente, e mostrando a mistura de reciprocidade e domínio implícita nas
relações de compadrio, mandou oferecer aos herdeiros o valor da avaliação de Qui-
téria. Como os de Manso dos Santos não quisessem vendê-la, “disse o mesmo David
á sua comadre que procurasse outro recurso que esse não a podia valer”. A escrava,
assim, teve que se acomodar na casa de Jerônimo, onde ficou “de cama” (Sentença cí-
vel da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Manoel Cardoso dos Santos).
Quitéria morreu em 1866 ou 1867, e Beatriz foi levada para viver com Ma-
ria Domingues e David Rodrigues da Maia em Campo Largo, local próximo da
parte de Palmeira chamada dos Papagaios, onde tudo se desenrolou. Pedro Ferreira
Maciel contratou o sepultamento, fazendo com que Bartolomeu, órfão da defunta,
fosse à sacristia pagar pela cerimônia. Foi na sequência do enterro, ao qual aparen-

204
Beatriz e o abandono

temente compareceram os filhos de Quitéria e o casal de Campo Largo, que Beatriz


foi levada por David para essa localidade, onde permaneceria por cerca de nove anos
(Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Francisco Gene-
roso Vieira).
Conhecem-se pelo processo duas tentativas de herdeiros na direção da recu-
peração da escravinha. Em uma delas, Ana Pires quis pagar a Francisco Generoso
Vieira para que buscasse Beatriz na casa de David da Maia, o que ele recusou (Sen-
tença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Francisco Generoso
Vieira). Na outra, um filho de Ana, juntamente com um sorocabano que migrara
para Palmeira cerca de cinco anos antes disso, Jerônimo Antunes de Góes, foi “a
casa de David fazer com esse uma concordata para que entregasse a Beatriz”, no que
não teve sucesso (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de
Jerônimo Antunes de Góes). É possível que uma tentativa frustrada de comprar par-
te da herança tenha motivado tanto a recepção de Beatriz na casa de Maia quanto
uma relação aparentemente simpática que o casal terminou por ter com a ação de
liberdade por abandono.
Duas coisas estão começando a aparecer quase que a todo momento no rela-
to. Uma delas é a pobreza imperante no ambiente rural de Palmeira. Outra, um certo
ambiente de decadência prevalente até mesmo entre os proprietários de escravos lo-
cais. Assim, antes de prosseguir, vale a pena avaliar o estado do município no período.

Palmeira e a desestruturação das relações com o mercado


Algumas informações relativas aos próprios herdeiros ajudam a obter relan-
ces sobre o ambiente em que Quitéria e Beatriz se moviam. Em 1876, o escrivão dos
órfãos reviu o título dos herdeiros no inventário de Manoel Manso dos Santos e
listou estes últimos, permitindo algumas comparações dos nomes dos homens com
a lista de qualificação de votantes de Palmeira feita em 1880 (QUALIFICAÇÃO
PALMEIRA, 1880)2.
Dos três filhos homens de Manoel, só um sabia ler, mas os três (Hermente
José de Deus, Roberto Pedro dos Santos e Antônio Manso dos Santos), lavradores,
2
Junta de Qualificação de Palmeira à presidência da província, 1880, Oficios, Departamento
Estadual do Arquivo Público, AP0592, fólios 1-20, doravante.
205
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

só conseguiram demonstrar rendimentos da ordem de duzentos mil-réis, o mínimo


para a cidadania ativa nessa época. Das três filhas vivas, uma era solteira, uma casa-
da com homem que não apareceu na lista de qualificação (provavelmente por não
ter alcançado a renda mínima para a cidadania ativa) e a terceira era viúva, tendo
vendido antecipadamente sua herança ao capitão Pedro Ferreira Maciel, fazendeiro
letrado em 1880, e além do mais declarante de renda anual de dois contos de réis. À
frente esse patamar será qualificado, mas já se adianta que, nos quadros de Palmeira,
ele era gigantesco. Uma quarta filha que chegou à idade adulta havia falecido, assim
como seu marido. Dos filhos deste último casal, havia dois homens adultos vivos;
deles, só um aparecia na lista de qualificação, mas fazia-o do mesmo modo que seus
tios, isto é, como lavrador iletrado de renda mínima para a cidadania ativa. Das cin-
co filhas mulheres, três eram solteiras e duas casadas, e entre elas só uma tinha ma-
rido presente na lista de qualificação; é quase desnecessário dizer que foi registrado
como lavrador de duzentos mil-réis iletrado. Havia ainda um homem casado, faleci-
do como sua mulher, do que resultava a inclusão de nove bisnetos, sendo os homens
divididos entre ausentes da lista de qualificação e designados como “idiotas” no in-
ventário consultado pelo escrivão. Como se não bastasse, devia-se acrescentar uma
bisneta falecida solteira, e, portanto, os filhos desta, computando-se quatro trinetos
herdeiros (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP).
O patrimônio a ser herdado já não era grande, a julgar pela escassez de escra-
vos e pelo fato de serem possuídos em comum (caso de uma das filhas de Quitéria).
Os herdeiros já não eram abastados, pois os que conseguiam renda suficiente para a
cidadania ativa só logravam mesmo obter o mínimo, valor respeitável para a Palmei-
ra dessa época, mas ainda assim medíocre. Para que se tenha ideia do que represen-
tava estar excluído da qualificação como votante, podem ser lembradas observações
feitas quanto a outros municípios paranaenses, cujas listas continham informações
sobre todos os moradores homens, incluindo os destituídos de rendimentos que
bastassem para obterem cidadania ativa. Elas sugerem que esse patamar de duzentos
mil réis deixava de fora cerca de dois quintos dos homens autônomos e chefes de
seus domicílios, e, portanto, a minoria deles (COSTA, 2008).

206
Beatriz e o abandono

Rematava o quadro o fato de tratar-se de 27 herdeiros. Suas legítimas seriam


desiguais, é verdade, em função de diversas distâncias genealógicas quanto a Manoel
Manso (além do fato de que muita gente dessa população, provavelmente, já teria
morrido na época da ação de liberdade de Beatriz). Mas ainda assim pessoas demais
clamando por direitos ao controle do trabalho de Quitéria ou Beatriz.
Tudo isso, acrescente-se, ocorria numa época em que Palmeira se afundava
na falta de alternativas econômicas, o que se passava em função da decadência do
negócio de tropas, grosso modo iniciada um pouco antes da época da Guerra do Pa-
raguai (KLEIN, 1989; SUPRINYAK, 2006). É muito ilustrativo fazer uma rápida
comparação entre Palmeira e São José dos Pinhais por volta de 1830 e no final dos
anos 1870. Ao redor da primeira data, Palmeira sediava unidades importantes de
um negócio então em seu auge, o comércio de tropas e a criação de gado a ele articu-
lada, ao passo que São José dos Pinhais havia sido mantida à margem dessa atividade
durante a maior parte de sua duração. Essa comparação mostra que, na segunda
metade do século XIX, localidades paranaenses mais envolvidas com a coleta da
erva-mate saíam-se muito melhor que a antiga região das imensas fazendas de gado
e de invernagem de tropas (BALHANA et al., 1968; BALHANA; MACHADO;
WESTPHALEN, s/d.).
Palmeira havia sido mais pujante ao redor de 1830. 16% dos domicílios ti-
nham escravos em São José (1827), proporção que em Palmeira (1835) atingia mais
de um terço (36%). Entre os fogos com cativos, mais de um quarto dos de São José
em 1824 contava com apenas um escravo, proporção que na Palmeira de 1835 não
chegava a um quinto. Acrescente-se que na São José de 1827 só havia um domicílio
com mais que nove cativos, compondo 1% do total de proprietários de escravos, ao
passo que na Palmeira de 1835 havia 14, atingindo 19% dos escravistas (MACHA-
DO, 2008)3. Em resumo, havia mais domicílios escravistas em Palmeira, e suas es-
cravarias eram um pouco mais alargadas. No final dos anos 1870, no entanto, as
relações entre as duas localidades estavam decididamente invertidas, e em relação a
vários critérios.
Em São José (1878), os rendimentos eram muitíssimos superiores aos alcan-
çados em Palmeira (1880). Na primeira vila, 109 pessoas declararam rendimentos
3
Maços de população, Palmeira, 1835, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
207
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

anuais iguais ou superiores aos quatro contos de réis, correspondendo a 9% dos qua-
lificados para votar e tendo os maiores rendimentos sido de dez contos (11 casos;
ver QUALIFICAÇÃO PALMEIRA, 1880). Em Palmeira, por outro lado, o maior
rendimento declarado foi de quatro contos, com apenas um caso entre 471 quali-
ficados. Aliás, tratava-se de pessoa que aparecia no processo em análise exatamente
na posição de juiz de órfãos: o padre José Antonio de Camargo e Araújo. Isso é
significativo, pois aponta para um conjunto de agricultores depauperados sobre o
qual se estabelecia uma elite de alguma forma articulada ao exercício de funções
estatais e religiosas.
A comparação feita acima é estratégica, pois São José nunca foi tão tocada
pelo negócio de tropas e pela criação de gado quanto Palmeira, na época em que as
duas áreas faziam parte do termo de Curitiba. O tráfico interno de escravos tinha
relação certeira com isso, denunciando essa crise ao mesmo tempo que a aprofunda-
va, pois Palmeira era área fornecedora de cativos para o comércio interprovincial4.
Observando cerca de uma vintena dos inventários post mortem que sobreviveram
na Vara Cível de Palmeira (anos de 1874, 1875, 1880 e 1881), tem-se uma viva im-
pressão acerca dessa decadência5. De 24 inventários, 16 faziam referência a alguma
forma de posse de escravos. Parece muito, mas o que estava escondido nisso apon-
tava para uma situação bem difícil: propriedade de apenas parte desses escravos, de
cativos com titulação problemática ou, ainda, de plantéis arruinados e inviáveis em
termos econômicos. Só em alguns pouquíssimos casos se tratavam de ínfimas es-
cravarias que pareciam organizadas para produzir; mas enfatize-se que eram muito
pequenas. Além do mais, trinta e dois dos sessenta escravos inventariados eram se-
nhoras de idade, mulheres e meninas. Acrescente-se ter sido preciso que um inven-
tariado possuísse mais de vinte contos de réis de fortuna – um império na Palmeira
dessa época – para que a parcela dos animais em seus bens ultrapassasse um pouco
os dez por cento do total de seu patrimônio.
A parcela média dos bens de raiz nesses patrimônios, por faixa de fortuna,
ultrapassava os três quintos nas fortunas menores (menos de dois contos) e nas
maiores (mais de vinte contos). Mas a quase ausência de outros ativos nos montes
4
Sobre o tráfico interprovincial de escravos, ver Slenes (1986) e Motta (2012).
5
Inventários post mortem, FP-VCP, processos cíveis, pacotes 1874, 1875, 1880 e 1881.
208
Beatriz e o abandono

inventariados sugere que muito pouca coisa era feita com essas terras de agricultores
modestos e de fazendeiros. Do valor dos bens de raiz inventariados, cerca de um
décimo correspondia a bens de titulação duvidosa, anexos a terras alheias, em mau
estado, detidos em comum com outras pessoas, pertencentes a patrimônios pro in-
diviso ou coisa semelhante. Caso se leve em conta que isso podia estar incidindo,
inclusive, nas avaliações desses bens, depreciando-os, a importância dessa tranquei-
ra dentro das atividades pode ter sido bem maior que o sugerido pelas avaliações.
Nos extremos dos inventários, como visto as faixas em que os bens de raiz eram
mais importantes, a incidência desse tipo de coisa chegava a um quinto do total das
avaliações de bens de raiz. Além de isso ser muito, não se deve esquecer de que essa
era a situação dos bens dos inventariados no momento de suas mortes; as partilhas
para cuja realização os inventários eram feitos estavam adicionando ainda mais des-
truição a tudo isso.
Nesse quadro de retração, a vida comunitária em Palmeira deve ter assumido
um papel ainda mais relevante que o tradicionalmente detido por ela, com senhores
empobrecidos, maior dependência coletiva da reciprocidade e da redistribuição e
completa ausência de processos de crescimento e acumulação que de alguma for-
ma pudessem vazar para os homens e mulheres livres pobres. Examina-se isso, aqui,
através do próprio caso abordado na ação de liberdade de Beatriz.

Voraz comunidade
Jerônimo Romão Ferreira, o ferreiro curandeiro mencionado anteriormen-
te, era uma espécie de eixo de redistribuição. Ele “dava” remédios “na vezinhança”
(Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Antônio de Mo-
raes Perpétua). Abrigou Quitéria quando ela esteve “de cama”, e a única referência
a pagamento parecia-se mais com uma troca de favores, pois, segundo um testemu-
nho, “Quiteria antes de morrer esteve curando-se em casa de Jeronymo, mandada
por sua senhora que promettera a Jeronymo uma gratificação se curasse a referida
escrava” (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Jerônimo
Antunes de Góes). Isso não era um preço, como se vê, além do fato de o juiz não ter
julgado que esses fatos tivessem sido comprovados. No entrecho, Jerônimo Romão

209
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

também abrigou Beatriz, bem pequena nessa época. Pessoas aparentemente pobres
davam esmolas por seu intermédio. É o que se vê pelo caso de Maria Joaquina de
Moraes, costureira aparentada mas não dependente dos herdeiros (embora estivesse
apenas na casa dos 30 anos de idade e não se mencionasse marido), que deu esmolas
à escrava enquanto ela estava “enferma de cama” na casa de Romão (Sentença cível
da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Maria Joaquina de Moraes).
Francisco Generoso da Silva fez referência a uma “mulher que cuidava de
Quiteria” durante a doença, mostrando haver mais gente envolvida com caridade
na casa de Jerônimo. Essas pessoas, aliás, recebiam tanto quanto doavam, pois Je-
rônimo mesmo “mandava alguma cousa” àquela mulher, o que constituiria “um re-
conhecimento dos obsequios que lhe faria” (Sentença cível da Relação de São Pau-
lo, FP-VCP, testemunho de Francisco Generoso da Silva). O solicitador Carlos de
Araújo Silva, de 40 anos, natural do Rio de Janeiro, informou saber que a própria
Quitéria “esmolava para sua caridade”, inclusive na época em que estava em casa de
Jerônimo (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, perguntas dirigidas ao
informante Carlos de Araújo Silva. Não foi testemunha porque se recusou a ajoe-
lhar para jurar). Pedro Ferreira Maciel chegou a alegar (sempre por intermédio de
Bartolomeu, filho de Quitéria) que enviou reses para o sustento da adoentada (Sen-
tença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Joaquim Hermente da
Silva, lavrador que tinha 200$000 de renda anual e era letrado; cf. QUALIFICA-
ÇÃO PALMEIRA, 1880, fl. 11). O próprio Jerônimo morava em casa situada em
terreno pertencente a Maciel. Ninguém sabia direito quem era o dono da casa, ape-
sar de ninguém duvidar da propriedade do terreno, fato comum nesse mundo rural
de propriedade de benfeitorias marcadamente distinta da propriedade de terrenos
(CASTRO, 1986; Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de
Antônio de Moraes Perpétua).
Hierarquia e tensão atravessavam esses eixos que congregavam receber favo-
res, favorecer outras pessoas, transmitir beneficência e oportunizar reciprocidades.
O próprio Jerônimo era visto como merecedor de caridade. Manoel Cardoso dos
Santos, carpinteiro natural e residente de Palmeira, descreveu-o como “homem po-
bre, carregado de filhos e que vivia de seu officio de ferreiro” (Sentença cível da Re-

210
Beatriz e o abandono

lação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Manoel Cardoso dos Santos). A rede,
assim, era ampla. Segundo um informante que opinava contrariamente à ideia do
abandono, “todos, como é de costume no bairro lhe levavão alguma cousa quando
ella esteve doente, sem que essa precisasse” (referia-se a Quitéria; cf. Sentença cível
da Relação de São Paulo, FP-VCP, perguntas dirigidas ao informante Salvador de
Oliveira Franco; não era testemunha por ser parente de vários dos herdeiros).
As parentelas eram marcadas por esse tipo de tensão. Antônio Perpétua e
Maria Joaquina de Moraes nitidamente estavam do lado oposto ao dos herdeiros
na questão da liberdade de Beatriz e em outras questões. Mas eram parentes. Lin-
da Lewin sugeriu, a partir do caso paraibano do século XIX, que mesmo famílias
de elite (inclusive de escopo nacional, ultrapassando o meramente regional) eram
marcadas por segmentação, conflitos internos e parentesco “raso” (isto é, sem contar
muitas gerações antecedentes), embora seus incentivos para a coesão fossem muito
grandes. Isso se devia à própria expressão das estratégias concentradoras nas rela-
ções de parentesco: Lewin (1993) argumenta, polemicamente, com o casamento
preferencial com a prima paralela patrilateral; ele se ligava a um máximo na busca
de concentração de autoridade e recursos, e exatamente por isso travava as relações
mais recíprocas que poderiam tecer com firmeza laços que poderiam ser mais está-
veis se fossem negociados.
O eixo de redistribuição, além de hierarquia e tensão, continha competição
(FRANCO, 1976). Em Campo Largo, Maria Domingues e David da Maia pilota-
vam seu próprio eixo redistributivo. Na abertura do processo, retardaram a apresen-
tação de Beatriz ao juizado de órfãos de Palmeira alegando que “Marianno de tal”
estava doente em sua casa, na verdade aguardando a morte. Ter-lhe-iam fornecido
“tratamento”, pois este só contava com o “fraco e único socorro” propiciado por eles.
Até Marianno falecer, em 29 de outubro, Maria não podia negar-lhe seu “auxílio”,
pois de outro modo faltaria “com a caridade a que somos obrigados pela lei natu-
ral e religiosa” (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, petição de Maria
Domingues). Não fica claro se havia alguma conexão entre as situações de Beatriz
e Mariano junto a Maria Domingues, mas transparece a contiguidade entre uma
visão caritativa e hierárquica da sociedade, o auxílio mútuo comunitário e o relacio-

211
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

namento que essas pessoas estabeleciam com o cativeiro nesse período. Note-se que
se apostava em ainda fazer sucesso no judiciário aquela concepção de direito natural
objetivo expressa na “lei natural e religiosa”.
Essas relações comunitárias, apesar de atravessadas por hierarquias, tensões e
competição (ou exatamente por causa disso), eram hospitaleiras. O próprio curan-
deiro Jerônimo chegou a ser tratado por uma testemunha como “estranho”, tendo
a estadia de Quitéria em sua casa sido vista por ele como um período durante o
qual a escrava estivera “abandonada” ali (Sentença cível da Relação de São Paulo,
FP-VCP, testemunho de Antônio de Moraes Perpétua). Além do mais, muitas das
tarefas da atualização desses laços e conflitos comunitários eram executadas por mi-
grantes. Um destes era Francisco Generoso Vieira, natural de Apiaí e que residia em
Palmeira havia muitos anos. Ele apareceu nessa história sabendo de coisas como a
existência de autorização senhorial para que Quitéria trabalhasse, ou do fato de ela
ter estado a jornal na casa do conselheiro Jesuíno Marcondes. Tinha informação
sobre o trajeto de Bartolomeu após o enterro de sua mãe, sobre o apelido da herdeira
de Manoel Manso que mais dizia assumir responsabilidades quanto a Quitéria (Ana
Pires, conhecida como Sinhá Anica) e sobre o fato de que Quitéria chamava regu-
larmente Bartolomeu de filho. Morava nos Papagaios havia vinte anos, em terreno
que fora de seu irmão e que passara para Pedro Ferreira Maciel, tendo se tornado
necessário solicitar o consentimento deste para residir ali (Sentença cível da Relação
de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Francisco Generoso Vieira). O migrante em
tela podia esclarecer até mesmo relações íntimas: não tinha dúvidas quanto a David
Rodrigues da Maia e Maria Domingues de que “elles vivem juntos” e que “a domina
por ser sua concubina” (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemu-
nho de Francisco Generoso Vieira).
Havia tradições, inclusive legais, ditando que, de alguma forma, relações de
propriedade precisavam ser referendadas por vidas comunitárias como essa. O juiz
municipal de Campo Largo, que proferiu a sentença que será referida adiante, mas
que já se pode deixar dito ter sido desfavorável a Beatriz, lembrava a presença desse
tipo de imperativo nas Ordenações Filipinas: “senhor se presume sempre aquelle
que o foi por algum tempo aque se mostre o contrário, Ordenação livro terceiro

212
Beatriz e o abandono

título cinquenta e três paragrapho terceiro”. A referência está correta, mas a cópia ou
a memória do juiz truncou o texto. Deve-se ler o seguinte: “o que em algum tempo
foi senhor da cousa, presume-se por Direito ainda agora o ser, até que se mostre o
contrário” (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1966, p. 193).
Voltando à referência ao texto das Ordenações, lê-se nela que, de certo
modo, ou bem senhores mostravam seu vínculo de pessoa a pessoa com os escravos,
necessidade ainda presente na legislação, ou então a personalização moderna da re-
lação senhor-escravo se abateria sobre eles através da libertação por abandono; mas
senhores precisavam fazê-lo, e não a comunidade circundante, pois, se esta última
pilotasse os auxílios, seria por expressão falha do domínio senhorial, pelo menos nas
condições instauradas pela Lei do Ventre Livre.
O migrante a que se faz referência participou igualmente da plateia para esse
tipo de exibição pública dos ritos constitutivos da relação de propriedade, exibição
essa revivida na legislação (o Regulamento) como requisito para senhores de escra-
vos. Como a posse precisava passar pelas atitudes quotidianas do proprietário, ne-
cessitava apoiar-se no crivo comunitário: Vieira sabia perfeitamente, por ser “referi-
do pelos herdeiros e geralmente na vezinhança, que Anna Pires mandou procurar a
negrinha” (Beatriz).
Os testemunhos de migrantes reforçam muito essa impressão de uma co-
munidade que se reforçava incorporando estranhos. Uma das testemunhas foi Je-
rônimo Antunes de Góes, de 34 anos, natural de Sorocaba e residente em Palmeira
por oito a nove anos. Essa migração, ocorrida por volta de 1870, diz muita coisa,
especialmente quando comparada à de Francisco Generoso Vieira, partida de Apiaí
nos anos 1850 ou 1860. Ambas ocorreram durante a decadência do comércio de
animais que ligara por muitos anos Palmeira e os Campos Gerais paranaenses a par-
tes do atual estado de São Paulo. Isso é bastante sugestivo quanto a deslocamentos
geográficos e ocupacionais de membros das redes que viabilizavam aquele comércio.
Possivelmente, essas pessoas estavam caminhando na direção de uma agricultura de
escala bem menor, e procurando terra para isso em lugares mais vazios, como Pal-
meira. Jerônimo Antunes de Góes era, em 1880, lavrador declarante de 200$000 de
renda, situação muito semelhante à de Francisco Generoso Vieira, à exceção do fato

213
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

de que o primeiro, diferentemente deste, tinha filiação desconhecida e não sabia


ler (QUALIFICAÇÃO PALMEIRA, 1880, fl 11). Ainda assim, mexiam-se com
alguma desenvoltura no tecido comunitário que o caso de Beatriz mobilizava. Góes
presenciou a tentativa de acerto feita por Sinhá Anica com Francisco Generoso para
que este fosse buscar Beatriz (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, tes-
temunho de Francisco Generoso Vieira), e foi ele que terminou por acompanhar
um herdeiro à casa de David Rodrigues da Maia para tentar reaver a escravinha.
Além disso, conhecera Quitéria quando ela, já doente, ainda morava com os her-
deiros, além de ter ouvido falar na vizinhança sobre a compra de parte da herança
por David da Maia e sobre o oferecimento, por Ana Pires, de uma gratificação a Je-
rônimo Romão para que curasse Quitéria (Sentença cível da Relação de São Paulo,
FP-VCP, testemunho de Jerônimo Antunes de Góes).
Outras pessoas falantes no processo executaram esses trajetos para a roça.
Um sujeito que não migrou, mas tornou-se roceiro, foi José Pedro Romão: filho do
curandeiro ferreiro, aparecia aos 33 anos de idade como lavrador, tendo passado por
deslocamento ocupacional intergeracional (Sentença cível da Relação de São Paulo,
FP-VCP, testemunho de José Pedro Romão). Os próprios herdeiros faziam parte de
processo semelhante, pois não tinham uso para dar ao trabalho de seus escravos e
não ostentavam muitos sinais de abastança, como foi visto através de suas posições
na lista de qualificação de votantes de 1880.
Embora se tenha escrito muito aqui sobre a comunidade de Palmeira, tam-
bém é necessário referir os laços tecidos estritamente entre os cativos. Quitéria e
Beatriz às vezes pareciam muito isoladas e sem paradeiro, o que se nota também
pelo silêncio desta última em todo o processo; isso pode ser atribuído à desarruma-
ção da escravidão local pela decadência das relações com o mercado e pelo tráfico
interprovincial de escravos. Por outro lado, nessas condições a separação entre as co-
munidades livre e escrava era muito relativa. Assim, em outras situações, o silêncio
de Beatriz deixava construir uma imagem diferente: a interferência do compadre/
senhor David da Maia mantinha ligações entre mãe e filha, e essas relações também
atravessavam as interações delas com Antonio de Moraes Perpétua, que se posicio-
nava como escravista/parente de senhor/litigante contra proprietário, pois Quitéria

214
Beatriz e o abandono

visitava Maria e Madalena na casa dele; a estadia de Quitéria na casa de Jerônimo


Romão Ferreira fazia o mesmo (Beatriz também ficou lá); o laço de Bartolomeu
com sua genitora atravessava o senhorialismo intrusivo de Ferreira Maciel. É difícil
classificar esses laços como estáveis ou instáveis. No acanhamento escravista de Pal-
meira, a comunidade escrava e a livre pareciam imbricadas, sendo possível, no en-
tanto, que dos laços escravos só sobrassem os de maternidade/filiação, pois nenhum
outro escravo além de Quitéria e seus filhos foi mencionado nos autos.

A linha
Não deve passar despercebida outra questão envolvida nisso tudo: a circula-
ção de escravos sem estrito controle senhorial era fato normal até mesmo em comu-
nidades rurais como Palmeira. Senhores podiam passar longos períodos sem sequer
esbarrar com cativos seus. Isso ajudava a tornar ainda mais tênue a linha entre a
propriedade e o abandono, da mesma forma que entre o aluguel e o ganho.
Pedro Ferreira Maciel, que parecia ser o interessado mais mobilizado no
processo, trouxe à análise um documento aparentemente feito posteriormente aos
fatos, mas incluído como original, e que representaria uma prova de ausência de
incúria. Tratava-se de uma autorização por escrito, e com testemunhas, para que
Quitéria trabalhasse por si. A impressão de ter-se tratado de documento produzido
posteriormente parece não ser somente do analista, pois ele, embora inserto nos
autos, foi simplesmente ignorado na sentença referida abaixo, talvez porque o texto
previa bem demais o que aconteceria com Quitéria após a data de sua elaboração.
Ele é reproduzido aqui por julgar-se que é interessante a respeito das definições so-
bre aquilo que não seria considerado abandono no período:

Autoriso a minha escrava Quiteria para trabalhar ou justar-se com


qualquer pessoa e dar-me jornal assim fica a authoridade sciente e
qualquer que se interessar do procedimento da dita escrava sem que
primeiro entenda-se comigo, e por assim ter feito passo a presente
que servirá de documento para a dita escrava poder trabalhar para
darme o jornal, e authoriso mais quando esteja a dita escrava doen-
te do mesmo jornal que tiver ganho empregará no seo tratamento e
vistuario de si e da filha que abrange o mesmo, e por isso ser verdade,
mandei pasar o presente. Paiól, vinte e quatro de setembro de mil
215
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

oito centos e sessenta e sete. Assigno a rogo de Anna Pires por me


pedir José de Sá Oliveira Ribas. Testemunhas presentes – Manoel
Corrêa de Bittencourt – Bento João do Espírito Santo – Theodoro
Teixeira = (Estava o sello de duzentos reis em uma estampilha devi-
damente enutelisada[?]). Nós abaixo assignados, declaramos e jura-
remos se preciso for que as assignaturas supra são dos próprios pu-
nhos de José de Sá de Oliveira Ribas, Manoel Corrêa de Bittencourt,
Bento João do Espirito Santo e Theodoro Teixeira, por dellas termos
pleno conhecimento. Palmeira, vinte e três de fevereiro de mil oito
centos e setenta e sete. Manoel José Dias da Costa - Aquelino Fran-
cisco Rosa -. Reconheço verdadeiras as firmas supra, as próprias de
Manoel José Dias da Costa, e Aquelino Francisco Rosas por dellas
ter pleno conhecimento, que dou fé. Palmeiras, vinte e três de feve-
reiro de mil oito centos e setenta e sete. Eu Antonio Pereira Bueno
Stockler, Tabellião reconheci e assigno em publico e ra[ilegível] Em
testemunho de verdade (Estava o signal publico) Antonio Pereira
Bueno Stockler (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP,
identificado à margem como Doc f 41).

Entre os partícipes da produção do documento, só um foi encontrado na


lista de qualificação de votantes: José de Sá de Oliveira Ribas, lavrador letrado de
300$000 anuais (QUALIFICAÇÃO PALMEIRA, 1880, fl. 11). Os restantes não
parecem ter tido renda suficiente para a cidadania ativa. Os interessados em Beatriz
estavam diversificando a composição de seu pequeno exército, provavelmente por
terem que defrontar-se com laços estabelecidos entre muitas pessoas depauperadas.
A sentença dada em Campo Largo pelo juiz da comarca, Walfrido da Cunha
e Figueiredo, não reconheceu o abandono. Ao contrário, enfatizou que os réus –
os herdeiros e interessados na colocação de Beatriz em praça – “revelaram sempre”
a “intenção de quererem manter a autora sob sua autoridade”, não incorrendo na
definição de abandono dada pelo artigo 76 do Regulamento geral para a execução
da Lei do Ventre Livre. Para ele, eram inócuos os argumentos de que a situação pro
indiviso do patrimônio atrapalhava a administração e de que, por isso, não havia
exatamente um senhor dos bens. Isso não podia justificar a ausência de controle
das escravas, pois esta resultava de incúria do cabeça do casal ou inventariante no
sentido de apresentar os bens e de administrá-los enquanto se processasse o inven-
tário. Mas isso também não poderia prejudicar todas aquelas dezenas de herdeiros,

216
Beatriz e o abandono

pois – recordava a partir das Ordenações, livro quarto, título oitavo – “culpa alheia
não deve, a outros, trazer danno”. Mesmo que o inventariante tivesse abandonado
as escravas, o mesmo não poderia ser dito dos outros herdeiros, e além do mais Ana
Pires tentou tirar Beatriz da casa de David, julgava o magistrado. Tudo era ambíguo,
no entanto, em virtude da coexistência na legislação de princípios diversos para con-
ceituar e garantir, ou não, o domínio sobre as escravas, assim como devido à ambiva-
lência intrínseca aos requisitos para o domínio de escravos inscritos na temática do
abandono. Talvez por isso a Relação de São Paulo tenha resolvido a coisa com uma
autêntica patada: o processo foi simplesmente anulado em fevereiro de 1878, diante
da “incompetência”, no sentido de carência de jurisdição, do juiz de órfãos.

Escravos e pobres na elaboração institucional do abandono


A possibilidade de tensão entre mecanismos intracomunitários e poder se-
nhorial foi pressentida na elaboração da Lei do Ventre Livre. Há duas razões para
acompanhar isso nas discussões do Conselho de Estado: primeiramente por ter sido
nele que a lei foi elaborada intelectualmente; em segundo lugar, em virtude de a
tramitação do decreto para sua regulamentação, editado em novembro de 1872 e
decisivo para a questão aqui abordada, ter ocorrido entre uma dissolução da Câmara
e a reunião da Legislatura subsequente.
Anteriormente, quando se fez referência aos tratamentos da questão do
abandono na Lei do Ventre Livre e no Regulamente do ano seguinte, deve ter sido
notado que cada documento abordava o problema de um modo diferente. Na lei,
muito lacônica, a remissão ao abandono parece conter uma referência à questão
da efetividade da imposição da lei, sem lugar a truques, num mundo institucional
que buscava não mais contemporizar com a prepotência senhorial e que reconhecia
direitos e obrigações dos escravos e proprietários ante um Estado que se configurava
consolidado e garantidor daqueles direitos. O Regulamento, diversamente, abor-
dava o abandono fazendo referência a senhores que deviam manter escravos em su-
jeição, que necessitavam manifestar seu desejo de que cativos persistissem sujeitos a
sua autoridade, o que abria caminho, conforme o manifestado pelo juiz e por diver-
sos dos que falaram no processo, à leitura que ligava o problema ao antigo direito

217
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

demandante de “mostrar-se dono” e de afirmar-se o possuidor da coisa perante uma


comunidade local. O conjunto formado pela lei e pelo Regulamento mobilizava
tomadas de posição e exprimia rearranjos ligados a dados fundamentais das institui-
ções brasileiras no período, especialmente sobre consolidação estatal, redefinição
das relações da escravidão com a sociedade circundante, posição senhorial na vida
política e dilemas atinentes à propriedade diante da inexistência de um código civil.
As oscilações na vida legislativa mencionadas anteriormente ecoaram difi-
culdades políticas instauradas pela própria Lei de setembro de 1871. Em abril do
ano seguinte, o ministério Paranhos foi reformulado em virtude da movimentação
da escravocracia empedernida na câmara baixa. Os conservadores não questiona-
ram a lei, já que compunham a situação, embora dividida. Além disso, o impulso ini-
cial para a reforma tinha partido da Coroa. Mas o ministério cedeu alguma coisa ao
escravismo, e fez isso com Parlamento a meio mastro, pois as iniciativas para recom-
por o Partido Conservador puderam contar com a Coroa, que em julho concedeu
a Rio Branco a dissolução da Câmara. O Regulamento saiu uns vinte dias antes da
reunião dos representantes (relato em HOLANDA, 1985, p. 146-149; BEIGUEL-
MANN, 1968, p. 46-49, acrescenta um forte acento na dimensão partidária para a
compreensão da dinâmica da tramitação e das reações dos conservadores). Saben-
do-se que a Lei do Ventre Livre foi gestada em debates no Conselho de Estado, a
partir de vários projetos de Pimenta Bueno (CHALHOUB, 1990), vale a pena ver
que tomadas de posição nesse debate se relacionavam à temática do abandono, ou,
mais amplamente, que referências foram feitas às comunidades livres residentes ao
redor de senhores e escravos.
Essas relações apareceram no Conselho nas sessões de 2 e 9 de abril de 1867,
mas apenas de forma indireta (BRASIL, 1865-1867). Aparentemente, foi o pró-
prio conselheiro Paranhos o mais preocupado com o relacionamento entre escravos
ou ingênuos e as pessoas livres das vizinhanças. Comentou por escrito, na primeira
daquelas sessões, o posicionamento do governo francês de 1838 diante de proje-
to de libertação do ventre das escravas nos domínios franceses. Sustentava-se, dizia
Paranhos, que uma lei daquela natureza romperia os vínculos entre os senhores de
escravos e os filhos destes últimos.

218
Beatriz e o abandono

A posição de Paranhos sobre uma proposta de juntas protetoras da emanci-


pação. Segundo o primeiro e o segundo dos cinco projetos de São Vicente, essas jun-
tas teriam, em cada município, a função de zelar pela efetividade: da libertação do
ventre; da entrega a pessoa proba ou associação reconhecida pelo governo da criação
dos ingênuos ou eventualmente de seus pais (se isso não ocorresse haveria necessida-
de dos serviços da criança ao senhor de sua mãe); da correção na alienação das mães
de ingênuos (em que condições seus filhos ingênuos deveriam acompanhá-las); da
entrega dos ingênuos a suas mães eventualmente alforriadas e da necessidade de cui-
dado aos filhos das filhas de escravas. Paranhos parecia referir-se mais a essas juntas
municipais que às centrais, a serem criadas nas capitais das províncias. Aquelas de-
veriam ser compostas por: pároco, juiz municipal, curador local da emancipação,
coletor das rendas públicas e dois a quatro grandes proprietários locais. Elas, além
do já referido, seriam tutoras e curadoras legais dos escravos, de seus filhos e dos li-
bertados. Deveriam limitar o “poder dominical”, cuidar da educação, especialmente
a religiosa, dos filhos de escravos e procurar ocupação para libertos, assim como
atentar para seus costumes. Teriam adicionalmente as funções de fazer avançar as
“causas de liberdade”, de cuidar dos legados destinados à redenção de escravos e gerir
a aplicação dos fundos estabelecidos pela Junta Central para alforrias, assim como
auxiliar na colocação dos manumitidos e buscar abrigar as filhas de escravas em ca-
sas de outras famílias. Deveriam ainda realizar gestões amigáveis junto a senhores
para a libertação de escravos que detivessem pecúlios, assim como designar louvados
para o estabelecimento de valores; interfeririam igualmente nas alforrias de escravos
que entregassem achados preciosos aos proprietários ou que salvassem as vidas de
senhores ou familiares destes.
Paranhos tratou a ideia de criar essas juntas como algo “perigoso”: o risco
estaria no “ruído dessa instituição” e na probabilidade de “frequente ingerência da
autoridade entre os senhores e os escravos”. Aparelhos de “proteção”, acrescentava,
afrouxariam “os laços da escravidão [...] sem desatá-los”, o que também seria arrisca-
do. Além disso, a eliminação do interesse senhorial na sorte das crianças libertadas
poderia resultar em “abandono” e “descuido” (BRASIL, 1865-1867). A escravidão,
para ele, relacionava-se a uma sociedade com mecanismos de domínio constituídos

219
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

em cadeia: a proteção estatal aos infantes libertados criaria diferença de condição


entre filhos livres e pais escravos e desmoralizaria a autoridade senhorial, sendo de
se elaborar a hipótese de que enxergava algum tipo de impacto positivo da autori-
dade paterna naquela dos senhores. Aparentemente, o Estado poderia imiscuir-se
nas relações entre senhores e cativos; mas a sociedade circundante não deveria. Na
sessão de 9 de abril, Paranhos levou mais longe o argumento, insistindo em que uma
reforma precipitada do cativeiro poderia “sobressaltar toda a população” (BRASIL,
1865-1867).
O barão de Muritiba, em 2 de abril, preocupou-se em enviar umas bases para
um projeto em que tocou apenas de passagem em questão relacionada ao abandono.
Segundo essas bases, a partir de janeiro de 1890, senhores seriam obrigados a con-
ceder a seus escravos um dia por semana para trabalhar em proveito próprio, o que,
no entanto, não eximiria os proprietários da obrigação de alimentar, vestir e curar os
escravos em suas enfermidades. Na sessão seguinte, o mesmo barão voltou a passar
perto do abandono ao contrapor-se à libertação do ventre (nada menos que ela): te-
mia que senhores sem nenhum desejo de arcar com o custo da criação dos ingênuos
recorressem à exposição deles, do que resultariam mortes maciças. Nesse caso, o que
se manifestava no discurso manipulador era uma visão contraditória a respeito da
comunidade livre: ela receberia aquelas crianças como expostos, mas deixaria que
elas morressem. De fato, para ele as juntas seriam o “suplício das famílias”, tendendo
a “importar nelas toda sorte de ódios e vinganças”, ao passo que, no tocante às asso-
ciações, nem as haveria em número suficiente, “nem a caridade é tão comum”.
O conselheiro Nabuco também aludiu à relação entre os escravos e a comu-
nidade livre circundante, e o fez ao posicionar-se sobre as associações autorizadas
pelo governo para a criação dos ingênuos. Julgava necessário que alguma coisa tor-
nasse essas sociedades interessadas na criação dos ingênuos e em arcar com seus cus-
tos, para o que defendia a concessão às mesmas do “serviço gratuito dos menores,
como [um dos projetos de Pimenta Bueno] concede aos senhores” (BRASIL, 1865-
1867). Além disso, seria preciso fixar até que idade de cada menor as sociedades
teriam funções em sua criação, o que seria importante porque sua “transição [...]
em tenra idade” seria “uma crise perigosa para eles e para a sociedade” (BRASIL,

220
Beatriz e o abandono

1865-1867). A atitude de Pimenta Bueno quanto aos cuidados e quanto à relação


das crianças e jovens com livres outros que não seus senhores e ex-senhores era a de
evitar os abusos na implementação. Não seria desejável que se libertassem crianças
apenas para abandoná-las, sendo impossível que o Estado se encarregasse de sua ma-
nutenção. Seria, porém, justo, havendo pais livres dessas crianças, que eles pudessem
educá-las e dar-lhes “futuro melhor” (BRASIL, 1865-1867).
Era, assim, de um modo hesitante que aparecia nos debates do Conselho de
Estado a possibilidade de entreveros envolvendo senhores de escravos e seus vizi-
nhos livres. Surgia, basicamente, em virtude da potencialidade de que a semiliberda-
de dos ingênuos criasse conflitos novos entre livres no âmbito local, embora talvez
se enfatizassem mais os enfrentamentos intraelites que aqueles com os pobres cir-
cundantes. Somente Paranhos parecia mais aberto à percepção de que o problema
do abandono poderia sobressaltar as vidas das comunidades locais. Entende-se que
isso tenha aparecido no Regulamento, que seu ministério elaborou em momento
no qual a vida parlamentar estava parcialmente suspensa.

Lugares de propriedade
Tendo ou não sido específicos de lugares como Palmeira aqueles conflitos
entre senhores de escravos e comunidades locais, circulavam no Império outras
abordagens do problema. Podem-se obter algumas luzes comparativas observando
um caso ocorrido em Mar de Espanha, Minas Gerais, caso este no qual o abandono
talvez pudesse ter sido mobilizado, sem ter sido. Deve-se lembrar que Mar de Espa-
nha fazia parte da área cafeeira de Minas Gerais, tendo apenas seu contingente es-
cravo sido maior que toda a população (livres somados a cativos) de Palmeira. Eram,
em Minas, 5.500 escravos (43% da população local), confrontados a 7.405 livres.
Em Palmeira, no mesmo ano de 1872, foram contados 4.502 livres e 614 escravos
(12% da população). Acrescente-se que em Mar de Espanha a população escrava era
marcadamente “plantacionista” o que, em definitivo, nunca se passara em Palmei-
ra. Tratava-se de 3.187 homens e 2.313 mulheres, ou quase três homens para cada
par de mulheres, indicando que na vila mineira o recurso ao tráfico de escravos (o

221
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

distante comércio de almas africanas e o mais recente tráfico interno de cativos) era
mais intenso (Recenseamento Geral do Império, 1872).
Em 1880, em Mar de Espanha, o curador de Paulina solicitou mandado de
liberdade para viger até que ação competente a declarasse livre, o que ela dizia es-
perar com alguma segurança. Paulina, então, estava na cadeia da cidade, tendo sido
aprisionada pelo delegado de polícia, que a julgou escrava. Passara um bom tempo
“no uso e gozo de plena liberdade”, tendo, no decorrer desse intervalo, vivido fora
da cidade, embora a apenas “meio quarto de légua” (menos de um quilômetro) de
distância. Não se ocultara, portanto, e ia frequentemente ao núcleo municipal. Nes-
se intervalo, “sempre foi tida e havida por livre”. O curador sustentou na mesma
petição que Paulina estivera “em a posse da liberdade durante mais de anno e dia”. É
fundamental acentuar a expressão escolhida, pois ela deixa entrever concepções de
escravidão e de liberdade que estavam em circulação no período. Originariamente,
a liberdade de Paulina (e não a própria Paulina) fora possuída por seu proprietário.
Ela, no entanto, conseguiu tomar posse, para si, dessa sua liberdade. O “ano e dia”
referido pelo curador mostra que nada disso era metáfora. Tratava-se de posse velha,
demandando, para seu questionamento, rito ordinário. A liberdade de Paulina era
mesmo uma coisa, um bem, e ela tomou posse desse bem. A linguagem era a da pro-
priedade (SOARES, 1938, p. 140-147).
Tratando a petição de mandado de manutenção de liberdade como justi-
ficação, o juiz, Antonio Joaquim de Macedo Soares, sentenciou que ela procedia.
Mas houve embargos, pois o processo deveria correr, diziam os embargantes, em
São Fidelis, Rio de Janeiro, estando Paulina descrita entre os bens inventariados por
morte da mãe deles. Isso podia querer dizer muitas coisas. Podia apontar para expec-
tativas de maior apoio a senhores no norte fluminense, ou então podia ser tentativa
de impossibilitar que Paulina proclamasse abandono, dado que este só podia ser
invocado no caso de senhores habitantes do mesmo município que seus escravos.
Ninguém, no entanto, usou o termo no sentido da Lei do Ventre Livre nem no do
respectivo Regulamento. Um desses interessados expôs ter havido, em 1877, en-
gano burocrático que fez todos pensarem que Paulina não havia sido matriculada
– resultando disso a “fama de liberdade” – e que, precisando ele transferir-se para

222
Beatriz e o abandono

São Fidelis, “deixou n’este lugar a manutenida”. Prosseguia dizendo que, além de o
erro ter sido detectado, por ter sido encontrada a matrícula da moça, não se podia
de modo algum falar em “prescripção d’escravidão”, pois para isso seria necessário
o lapso de cinco anos exigido pelo alvará de 10 de março de 1682 e pelo Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de dezembro de 1862 (GRINBERG, 2006, p.
111 e seguintes). Sublinhe-se isso: mesmo após a Lei de 1871 e o Regulamento de
1872, o abandono era definido nos termos da “prescrição de escravidão”. Com o uso
da ideia de prescrição, da mesma forma que com o manejo, bem diferente, da posse
velha pelos de Paulina, se estava caminhando muito perto de um jargão ligado à
propriedade. Em um caso, fazia-se referência à propriedade exercida sobre a pessoa
de Paulina. No outro, proclamava-se a posse de sua liberdade.
O juiz Macedo Soares manteve o percurso. Considerou a posse exercida por
Paulina “boa, mansa e pacífica”. Fez referência a “abandono”, mas em acepção muito
próxima à do curador: “os RR. confessam que, mudando-se para S. Fidelis, abando-
naram a A. como livre, e d’isso estavam persuadidos”. A alegação de “dominio” dos
réus era impertinente, “porque n’essa acção só se tracta da posse”; “não ha dominio
sobre escravos”. Rejeitava a aplicação do assento de 16 de fevereiro de 1786, segundo
o qual “não se deve julgar a posse em favor d’aquelle á quem se mostra evidentemen-
te não pertencer a propriedade”. Isso não poderia beneficiar os réus porque “não há
propriedade d’escravo”. Além disso, não podendo os réus provar sua propriedade,
era vedado à autora provar a “prescripção quinquennal”, a que se acrescentava que
o assento só cogitou da “propriedade no seu verdadeiro e juridico sentido de do-
minação da pessoa sobre a coisa apropriavel”. Em suma, “é inadmissível nas ações
possessórias a excepção de dominio” (SOARES, 1938, p. 140-147).
No jargão mobilizado em Palmeira, circulavam as obrigações recíprocas de
senhores e escravos, tendo ganhado muito peso para qualificar tais relações a in-
trusão da comunidade depauperada circundante. Em Mar de Espanha, por outro
lado, e pelo menos no caso referido, o vocabulário da posse e da propriedade estava
no centro da querela. A questão da “prescrição da escravidão”, de origem palmarina
(1682), era decisiva para os pretensos senhores de Paulina, fazendo referência a re-
lações de propriedade sobre escravos.

223
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

A visibilidade de Paulina pela comunidade, como se fosse livre, não foi usada
por seu curador para mostrar abandono por parte dos senhores. Foi, antes, mane-
jada para defender que ela tinha posse velha, se não de si, de sua liberdade. Mar de
Espanha deveria testemunhar o seu desembaraço e, em virtude dele, a posse velha.
Isso era algo bem diferente do que se passaria em Palmeira, onde Beatriz, e Quitéria
antes dela, seriam definidas como membros de uma rede de reciprocidades, estando,
portanto, desvinculadas de seus proprietários.
O juiz Macedo Soares, reputado abolicionista, e rematando o caso de Mar
de Espanha, negou o domínio e a prescrição. Deixou de lado até mesmo o esquivo
argumento da posse velha da liberdade vista como um bem. Mas permaneceu no
terreno de quem avalia a partir de uma concepção de propriedade, sentenciando
não haver escravidão a entrar em prescrição por não existir propriedade (“domínio”)
sobre escravos.

Considerações finais
Em tudo chamou muito a atenção o fato de a rede comunitária mobilizada
em favor da hipótese do “abandono”, e, portanto, da libertação de Beatriz, não ter
mostrado muitos sinais de abolicionismo. Afinal, um ponto importante dessa rede
de apoio à interpretação que garantiria a liberdade de Beatriz era David Rodrigues
da Maia, que tentara comprar Quitéria e buscava adquirir Beatriz. Mais que pela
ideia de abolição, essas pessoas pareciam articular-se movidas pela proteção do te-
cido comunitário. Maia desejava o trabalho de Quitéria ou Beatriz? Seus ventres?
Seus encantos, caso não fosse o pai da menina? Provavelmente tudo, mas o funda-
mental aqui é aquilo que ele mobilizava na tentativa de consegui-lo.
No entanto, e isso parece ser fundamental, a Lei do Ventre Livre criou opor-
tunidade para a plena exibição da cunha que vinha se formando entre o vínculo
comunitário e o poder senhorial. A partir dela, se houvesse muita ajuda mútua, se
escravos estivessem envolvidos demais com os livres pobres circundantes para mi-
norar suas agruras, ficaria configurado o abandono, resultando a liberdade; embo-
ra isso não tenha sido frequente, para dizer o mínimo, a possibilidade desse tipo
de processo deu oportunidade a que o conflito transparecesse nos documentos. É

224
Beatriz e o abandono

curioso que até a tentativa de aquisição de Quitéria e de Beatriz por David Rodri-
gues da Maia tenha podido ser usada no interior da trama discursiva favorável à
liberdade, em virtude de ter deixado claro que a rede estava se fazendo necessária
demais, que o poder senhorial estava distante demais. A temática do abandono, por-
tanto, acrescentava mais uma gota à clivagem entre livres pobres e escravistas que se
aprofundava durante o século XIX, desde o fim do tráfico africano.
A visível retração econômica de Palmeira ajudava a esquentar o assunto, por
produzir proprietários escravistas que, imensamente descapitalizados, não eram ca-
pazes sequer de por seus cativos para trabalhar. Mas tornava o tema mais candente
também de outra forma: com a retração, sofria radicalização a colossal pobreza im-
perante entre os homens e mulheres livres, acompanhada da duradoura desigual-
dade; isso reforçava e tornava mais urgentes os laços comunitários que, nessa hora,
escravistas passavam a ter que temer.
Além do mais, as características dessa vida comunitária que ganhava novo
papel em relação ao cativeiro eram muito aptas a, em um nível miúdo, quotidiano,
tornar essa tensão mais explosiva. Elas não eram antitéticas em relação a momentos
de tensão, conflito e competição. Também conviviam com hierarquias às vezes qua-
se imperceptíveis a uma primeira mirada. Havia litígio dentro dela.
Já foi muito bem defendido terem caminhado rapidamente para a indiferen-
ça, após 1850, as relações dos livres pobres com a escravidão, com a posse de escra-
vos cada vez mais monopolizada pelos grandes proprietários. Esse processo foi uma
das etapas da história da persistente desigualdade brasileira, expressando-se em um
distanciamento social bastante sólido e sustentado entre grupos. O processo que se
aborda aqui, de tensão expressa juridicamente entre os laços comunitários e o poder
senhorial, consistiu em um capítulo desse trajeto, embora, talvez, sua expressão jurí-
dica tenha sido um curto capítulo. É difícil de imaginar sua extensão. Como se viu
pelo caso de Paulina, que obteve sentença favorável de Macedo Soares, a problema-
tização das prerrogativas senhoriais podia passar por linguagem articulada à posse e
à propriedade aplicada a escravos que viviam e trabalhavam longe de seus supostos
senhores; tais escravos teriam a posse de si, sendo isso que nos permite compreender
o vocabulário de “ano e dia” manejado em petições e sentenças. Mas, difundida ou

225 225
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

não a tônica do Regulamento, se não a da Lei de 1871, ela criou a possibilidade


de que se ativassem dois mundos potencialmente contraditórios: a ressurreição de
um antigo ambiente de obrigações e direitos, bem como de rentismo, ao lado de
uma revigorada reciprocidade comunitária. Assim, abriu caminho a um tipo intei-
ramente diferente de conflito – ao menos judicial – entre escravistas e campesinato.
Ter-se-ia tratado de efeito não antecipado do que parece ter sido uma concessão aos
escravistas.
Tudo isso implicava concepções políticas acerca da propriedade, elemento
decisivo nessa quadra de intensas mudanças de rumo da escravidão e do país. Essas
concepções não foram veiculadas diretamente pelos envolvidos, mas estavam impli-
cadas nos relatos sobre os contextos que ativavam para fundamentar argumentos,
bem como nas avaliações da escravidão inscritas em suas abordagens das instituições
e da legislação. Familiarizamo-nos há muito tempo com uma definição marcada-
mente arcaica de liberdade centrada no pertencimento (MEILLASSOUX, 1992).
É controverso, dado o que se viu sobre as discussões do Conselho de Estado, se a
ideia de um estado de natureza marcado pela sociabilidade esteve ou não implícita
em sua plenitude no dispositivo que associava o abandono à alforria; mas essa certa-
mente era uma leitura possível na época – e foi efetivamente realizada por comuni-
dades como a de Palmeira, tendo sido possível ler no processo de Beatriz uma noção
bem explícita de direito natural objetivo.
É bem verdade que a inserção na comunidade havia sido, por muito tempo,
justificação da escravidão ibérica. Ocorre que, no período estudado, essa inserção
passava a ser porta de saída do cativeiro, apesar de isso ter ocorrido mais na teoria
que na prática, ou, antes, mais na lei que nas sentenças.
Inversamente, ao caso de Paulina, de Mar de Espanha, não se julgou possível
associar esse tema do pertencimento e do abandono. Segundo seu curador, Paulina
era livre porque se apropriou de sua pessoa, ou antes de sua liberdade, vista esta
última como um bem. O que parecia associado a isso era a concepção de liberdade
negativa que as condições modernas instauraram (BERLIN, 1981); o relato sobre
Paulina enfatizava seu isolamento, seu desligamento frente ao poder senhorial, sen-
do essa a razão pela qual ela deveria ser considerada livre. Mesmo não tendo compra-

226 226
Beatriz e o abandono

do essa conversa de posse velha, o juiz de Mar de Espanha permaneceu no terreno


da propriedade, mas para dizer, nos termos do juspositivismo, que esta última não
existia porque a lei não instaurara o domínio sobre os escravos. A propriedade não
se aplicava a escravos apenas porque a legislação não criara a relação respectiva, re-
petindo-se o mote da ilegalidade da escravidão. O argumento aparecia em diversos
intelectuais que enfatizavam não haver legislação instituindo a propriedade sobre o
escravo no Brasil, de modo que a escravidão seria apenas um direito de uso do traba-
lho dos cativos, provisório e revogável, segundo Perdigão Malheiro (MALHEIRO,
1863). Para Joaquim Nabuco, tratar-se-ia apenas de costume, de “fato” tolerado pela
lei (NABUCO, 1999). A propriedade não era um direito natural nessas circunstân-
cias, e isso era decisivo. Rui Barbosa também pensava dessa forma, indicando que “a
legislação civil que herdamos da metrópole, nunca legitimou a escravidão” (BAR-
BOSA, 1988, p. 704). Isso, em que pese o fato de as tradições imperiais quanto ao
problema terem sido ambivalentes, como se vê não só nas discussões historiográficas
sobre a carência que se sentia de um código civil, mas também por uma solução eclé-
tica que parecia predominar nos meados do século, como se lê em Pimenta Bueno.
Para este, “a propriedade real, assim como a intelectual ou moral, tem pois a sua
origem na natureza e é sagrada”. Simultaneamente, contudo, escrevia que “o homem
vive em sociedade, [...] tem deveres para com esta, para com a defesa do Estado ou
outras relações do bem comum. Consequentemente, se o bem público legalmente
verificado exige o uso ou emprego da propriedade do cidadão, a sociedade deve ter o
direito de realizar a desapropriação” (KUGELMAS, 2002, p. 509-510).
A profissão de fé no juspositivismo, por pressupor a consolidação estatal,
também punha em jogo, de certa forma, uma concepção de liberdade negativa.
Conforme historiadores do pensamento jurídico, ele, como versão acerca das fon-
tes do direito, centra as finalidades deste no direito subjetivo do indivíduo. Isso se
dá porque, só encontrando normatividade na lei escrita, torna direito individual
tudo o que escapa à legislação, diferenciando direito e lei (VILLEY, 2005). Nabuco
absorveu essa lição, e expôs isso abertamente. Escreveu que “quod non prohibitum
licitum est”, embora tenha ligado isso à vigência da escravidão. Acrescentou: sob o
cativeiro “praticamente nada é proibido” (NABUCO, 2000, p. 25). Uma sociedade

227 227
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

escravista, segundo ele, tinha lei de menos, e não lei demais. Assim, articulou lei
positiva e liberdade individual, apontando que a vigência disso seria problemática
enquanto perdurasse a escravidão.
A vigência disso como projeto estaria relacionada, como se sabe, àquilo que
Foner definiu como o “nada além da liberdade” do pós-abolição (FONER, 1988);
mas a noção não prevalecia sozinha, da mesma forma que a radical exclusão quan-
to à apropriação do solo não atingiu, no Brasil, os níveis norte-americanos, deven-
do ser lembradas as recomendações de abolicionistas formados no juspositivismo,
como Nabuco, na direção da promoção do acesso de libertos à terra, com muitas
ambiguidades (AZEVEDO, 1988).
O juiz de Campo Largo, por fim, não duvidava da relação de propriedade,
entendida esta última nos termos tradicionais das Ordenações Filipinas. Desse
modo, não se pronunciou sobre liberdade, tendo-a negado a Beatriz. De fato, mobi-
lizou uma argumentação de parentesco sombrio com aquela da comunidade depau-
perada circundante, pois também apoiava a relação de propriedade no reconheci-
mento pelos vizinhos. A diferença, crucial para Beatriz, estava no fato de julgar que
o referendo comunitário da posição dos Santos existia efetivamente, negando-se o
abandono. Em verdade, o que ele tentava cancelar era a própria Lei do Ventre Livre.
A questão do abandono talvez tenha representado o elemento dessa Lei mais
passível de ser visto como letra morta. Até mesmo o processo de Beatriz foi anulado
por um suposto defeito de jurisdição. Mas aquela questão fez falar, ao menos em
Palmeira, uma comunidade circundante às relações escravistas. Talvez por isso mes-
mo o abandono tenha sido deixado praticamente de lado.
Em resumo, não aconteceu nada, mas muitos elementos tornaram-se visíveis
para o analista. A entrada mais decidida da questão do abandono na lei fez brotarem
aqui e ali novas tensões entre comunidades locais e senhores de escravos, sendo de
se pesquisar se essas novas tensões não estiveram por trás dos apoios livres a outras
iniciativas de escravos em favor de suas libertações. Isso atenderia à necessidade, que
vem sendo sentida por historiadores, de contextualizar diversos aspectos da escra-
vidão a partir das relações entre cativos e os homens e mulheres livres que circunda-
vam as unidades em que viviam.

228 228
Beatriz e o abandono

A motivação inicial para abordar essa e outras ações de liberdade foi uma
pesquisa sobre doenças escravas no século XIX brasileiro. Desse ponto de vista, é
importante por muita ênfase no caráter muito difuso, descentralizado e por isso
mesmo quotidiano da ajuda mútua em relação às questões sanitárias. Ao mesmo
tempo que essa ajuda recíproca era extremamente dramática, respondendo a anseios
e necessidades urgentes, ela era constante o suficiente para dar origem a instituições
insuspeitadas, como o internamento difuso em casas particulares. Nessas institui-
ções tocadas por não profissionais destituídos de qualquer auxílio oficial, gente afli-
gida por males sem nome (porque também difusos e quotidianos, e não por serem
desconhecidos) era tão contumaz que chegava a passar anos fora das vistas de pode-
rosos locais, mesmo que se tratasse de escravos que permaneciam fora do controle de
seus senhores. Sendo evidente não valer a pena forçar a versão de que isso teria tido
um papel causal em relação à estruturação da vida social, ainda assim é inegável que
casos como o tratado neste texto chamam a atenção para a circunstância de essas re-
des difusas terem podido, no final do século XIX, afetar as percepções sobre e as prá-
ticas relacionadas a diversas outras instituições sociais, o que foi facilitado, embora
sem eficácia, pela recolocação do problema do abandono pela Lei do Ventre Livre.

Referências
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Batismo da liberdade: os abolicionistas e o destino
do negro. História, Questões e Debates, Curitiba, v. 9, n. 16, p. 38-65, 1988.
BALHANA, Altiva Pilatti et al. Campos Gerais, estruturas agrárias. Curitiba: Departa-
mento de História da UFPR, 1968.
BALHANA, Altiva Pilatti; MACHADO, Brasil Pinheiro; WESTPHALEN, Cecília
Maria. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, s/d. 4 v.
BARBOSA, Rui. Parecer N. 48A, formulado em nome das Commissões Reunidas de
Orçamento e Justiça Civil acerca do projecto de emancipação dos escravos pelo Sr. Ruy
Barbosa. In: A abolição no Parlamento: 65 anos de lutas. Brasília, DF: Senado Federal,
Subsecretaria de Arquivo, 1988. 2 v.
BEIGUELMANN, Paula. A formação do povo no complexo cafeeiro: aspectos políti-
cos. São Paulo: Pioneira, 1968.
BERLIN, Isaiah. Quatro ensaios sobre a liberdade. Brasília, DF: UnB, 1981.
BRASIL. Atas do Conselho de Estado Pleno. Terceiro Conselho de Estado, 1865-1867.
Disponível em: <https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS6-Tercei-
ro_Conselho_de_Estado_1865-1867.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2013.
CASTRO, Hebe. Ao sul da história. São Paulo: Brasiliense, 1986.
229 229
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
COSTA, Gladisson Silva da. Nos quarteirões de São José: um estudo sobre poder e
sociedade em São José dos Pinhais na segunda metade do século XIX (1852-1878). 2008.
Trabalho de Conclusão de Curso (História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2008.
FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil Imperial. México, DF: Fondo de
Cultura Económica, 1986.
FONER, Eric. Nada além da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília DF: CNPq,
1988.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo:
Ática, 1976.
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In:
LARA, Silvia e MENDONÇA, Joseli (Org.). Direitos e justiças no Brasil. Campinas:
Unicamp, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil monárquico. 4. ed. São Paulo: Difel, 1985.
INVENTÁRIOS POST MORTEM, Fórum de Palmeira, Vara Cível de Palmeira, Proces-
sos cíveis, pacotes 1874, 1875, 1880 e 1881.
JUNTA DE QUALIFICAÇÃO DE PALMEIRA à presidência da província, 1880, Ofi-
cios, Departamento Estadual do Arquivo Público, AP0592, fólios 1-20.
JUNTA DE QUALIFICAÇÃO DE SÃO JOSÉ DOS PINHAIS à presidência da pro-
víncia, 1878, Ofícios, Departamento Estadual do Arquivo Público.
KLEIN, Herbert S. A oferta de muares no Brasil Central: o mercado de Sorocaba, 1825-
1880. Estudos econômicos, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 347-372, 1989.
KUGELMAS, Eduardo (Org.). José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente.
São Paulo: Ed. 34, 2002.
LEWIN, Linda. Política e parentela na Paraíba. Rio de Janeiro: Record, 1993.
MACHADO, Cacilda da Silva. A trama das vontades. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
MAÇOS DE POPULAÇÃO, Palmeira, 1835, Arquivo Público do Estado de São Paulo.
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. Illegitimidade da propriedade constituída
sobre o escravo – natureza de tal propriedade. – justiça e conveniência da abolição da
escravidão; em que termos. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros,
Rio de Janeiro, ano II, tomo II, 1863.
______. Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, INL, 1976.
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
MOTTA, José Flávio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos na
expansão cafeeira paulista. São Paulo: Alameda, 2012.
NABUCO, Joaquim. A escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
______. O abolicionismo. São Paulo: PubliFolha, 2000.

230 230
Beatriz e o abandono

ORDENAÇÕES FILIPINAS. Ordenações do rei de Portugal recopiladas por manda-


to d’el Rei D. Felipe, o Primeiro. São Paulo: Saraiva, 1966. 3 v.
PAPALI, Maria Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos. A construção da liberdade
em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2003.
PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face. 1990. Dissertação (Mestrado em História) – Uni-
versidade Federal do Paraná, Curitiba, 1990.
SENTENÇA CÍVEL DA RELAÇÃO DE SÃO PAULO que annullou o processo de
liberdade, da libertanda Beatriz, pertencente ao espolio do finado Manoel Manço dos
Santos, 1881, Juízo de Orfãos da Villa da Palmeira, Fórum de Palmeira, Vara Cível de
Palmeira.
SILVA, Ricardo Tadeu Caires da. Caminhos e descaminhos da abolição. Escravos,
senhores e direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). 2007. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.
SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira
da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: COSTA, Iraci del Nero da (Org.). Brasil:
história econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1986.
SOARES, Julião Rangel de Macedo (Org.). Campanha jurídica pela libertação dos
escravos (1867 a 1885). Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.
SUPRINYAK, Carlos Eduardo. Comércio de animais de carga no Brasil Imperial: uma
análise quantitativa das tropas negociadas nas províncias do Paraná e São Paulo. 2006.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2006.
VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
XAVIER, Regina Célia de Lima. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na
segunda metade do século XIX. Campinas: Centro de Memória/Unicamp, 1996.

231
Racismo e antirracismo no Brasil:
uma base teórica para a promoção da
igualdade racial a partir das políticas
redistributivas e de reconhecimento1
Fernanda da Silva Lima2

Introdução
Em pleno século XXI ainda é necessário lutar para que haja, no Brasil, uma
sociedade livre do racismo, do preconceito e da discriminação racial. A temática que
envolve a construção de uma política pública de igualdade racial capaz de assegurar
os direitos humanos dos grupos raciais negros, sem dúvida, é medida emergencial,
ainda que esse tema seja desafiador, principalmente por ser multifacetado e com-
plexo.

1
Este breve ensaio sobre a luta antirracista no Brasil e as políticas de garantia de igualdade racial
faz parte da pesquisa desenvolvida pela autora em sua tese de doutorado intitulada “Os direitos
humanos e fundamentais de crianças e adolescentes negros à luz da proteção integral: limites e
perspectivas das políticas públicas de igualdade racial no Brasil” e apresentada no Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFSC. Parte deste material foi apresentado no evento III Copene
Sul, sendo que as contribuições que surgiram a partir do debate promovido no evento serviram
para revisão do texto ora apresentado.
2
Doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em direi-
to pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Professora Permanente no Programa de Pós-
-Graduação em Direito da UNESC (Mestrado em Direito). Professora titular da disciplina de
Direitos Humanos na UNESC. Integrante do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança
e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC). Vice-líder do Núcleo de Estudos em Direitos Humanos
e Cidadania (NUPEC/UNESC). Líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Relações
Raciais e Feminismo[s]. Pesquisadora na área de Direito Público com linha de pesquisa Direitos
Humanos, Cidadania e novos direitos com interesse nos seguintes temas: relações étnico-raciais,
feminismo negro e políticas de promoção da igualdade racial; direito da criança e do adolescente
e políticas públicas.
232
Racismo e antirracismo no Brasil

O Brasil deu grandes passos em direção à desmistificação que circunda o tema


das relações raciais, e reconheceu pela primeira vez o problema do racismo apenas
neste século, tendo sido negligente durante mais de cem anos, desde a abolição da
escravidão. As teorias raciais de cunho biológico – que acreditavam na hierarquiza-
ção das raças –, as práticas eugenistas, o discurso da mestiçagem e, por último, o da
democracia racial se fundem no imaginário coletivo não como mitos e inverdades,
mas são forjados no cotidiano de tão enraizados que ainda estão.
Portanto, ao mesmo tempo que o tema das relações raciais se descortina e sai
da zona de invisibilidade, percebe-se em algumas situações o acirramento de tensões
raciais. Logo, o objetivo deste artigo é estudar a construção de políticas públicas
de igualdade racial no Brasil a partir da dupla dimensionalidade do princípio da
igualdade, que se materializa por meio de políticas públicas distributivas e políticas
públicas voltadas ao fortalecimento das identidades e valorização das diferenças.
Para isso, é importante compreender a teoria das relações raciais e a luta an-
tirracista em afirmação histórica; analisar o princípio da igualdade a partir de uma
abordagem crítica dos direitos humanos; e compreender os limites e possibilidades
das políticas redistributivas e de reconhecimento.
Nesta pesquisa, será utilizado o método indutivo, envolvendo a técnica de
pesquisa da documentação indireta, uma vez que o trabalho se baseia também em
pesquisa bibliográfica e documental, e como método de procedimento, o mono-
gráfico.

A luta antirracista no Brasil: uma análise sociojurídica


A luta pela igualdade racial na sociedade brasileira não é fenômeno recen-
te, sendo anterior à própria abolição da escravatura, ocorrida legalmente em 13 de
maio de 1888, e passando por várias fases, de avanços e retrocessos ao longo do sécu-
lo XX. De acordo com Fernandes (2007), a abolição da escravatura não significou
aos grupos raciais negros melhores condições de vida, ao contrário, os negros per-
maneceram à margem da sociedade, com baixos índices de participação econômica,
social e cultural, que ainda, como se verá, estão presentes na ordem social atual. Por
isso, Fernandes (2007) menciona a necessidade alcançar uma segunda abolição, e

233
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Davis (2009) afirma que é necessária uma abolição da própria democracia, capaz de
assegurar a garantia de direitos humanos e fundamentais à população negra.
Assim, a aprovação da Lei Áurea em 1888 e a Proclamação da República
no ano seguinte não trouxeram mudanças significativas na vida dos grupos raciais
negros, ao contrário, não houve uma mudança na racionalidade e na cultura so-
cial para o respeito à diversidade étnico-racial. No Brasil, por exemplo, o projeto de
branqueamento foi implementado através do investimento em políticas imigrató-
rias, antes mesmo do fim da escravidão.
De acordo com Rizzini (1997, p. 39), os ideais positivistas e republicanos
de “ordem e progresso” impulsionaram a crescente industrialização, o crescimento
e desenvolvimento dos centros urbanos de forma acentuada e desordenada, propi-
ciada pela entrada maciça de imigrantes europeus. Viveu-se no país, pela primeira
vez, uma condição em que a moradia se tornou um problema nas suas principais
capitais. Muitas pessoas habitavam conglomerados urbanos em periferias, e entre
estes grupos estavam os negros, deixados à margem da sociedade:

A não inclusão dos grupos sociais negros na agenda política do país


feria os ideais abolicionistas, pois conforme esses anseios manter a
escravidão no Brasil impediria o crescimento econômico e o progres-
so de uma sociedade que sentia a necessidade de ser civilizada. E essa
civilidade não incluía o negro. A abertura dos mercados, a instalação
de fábricas e indústrias e a circulação de mercadorias transformaram
o trabalhador assalariado em consumidor, nesse novo modelo eco-
nômico que procurou se afirmar, o modo de produção capitalista.
Portanto, para alcançar esse desiderato, a escravidão era modelo que
precisava ser extinto. (LIMA; VERONESE, 2011, p. 30-31).

A compreensão da dinâmica social no que se refere às relações raciais no


Brasil perpassa pelo estudo das teorias raciais que chegaram ao Brasil na segunda
metade do século XIX, por influência de pesquisadores europeus, principalmente
aqueles vinculados à tese evolucionista em contraposição ao criacionismo. Muitos
dos mitos atribuíveis à noção de raças humanas e sua “hierarquização”, que ainda se
encontram impregnadas no imaginário social, remontam desse período histórico.
É possível, de forma breve e resumida, destacar que o Brasil absorveu ao
longo do século XX algumas teorias raciais que justificavam a hierarquia das raças,
234
Racismo e antirracismo no Brasil

destaca-se aqui, por exemplo, as teses do evolucionismo, a tese da eugenia de Fran-


cis Galton, a tese do branqueamento, a tese da mestiçagem e a tese da democracia
racial. Dar-se-á destaque às duas últimas, pois elas não possuem, de forma direta,
justificação no campo das ciências biológicas, mas foram igualmente construídas
com base no racismo científico.
A tese da mestiçagem se desenvolve no Brasil na década de 1930, tendo como
maior fomentador dessa ideia Gilberto Freyre, cujas obras percorreram o mundo,
com destaque a sua obra famosa Casa-grande & senzala. Freyre e seus seguidores
ideológicos constaram que, como o fenômeno da mestiçagem era predominante
na sociedade brasileira, as teorias raciais não serviam mais. Era necessário repensar
as relações raciais na sociedade brasileira abarcando a mestiçagem como fenômeno
predominante e formador da identidade dos brasileiros.
Freyre (2000) destacou as características da sociedade patriarcal e relacionou
a mestiçagem racial à ideia de convivência harmoniosa entre as diferentes raças que
compõem a sociedade brasileira. Para Freyre, a identidade nacional era formada por
três raças principais: do negro, do índio e do europeu, fazendo um forte apelo para
aceitação da mestiçagem no país (SCHWARCZ, 1993).
Já a tese da democracia racial se desenvolve em decorrência da tese da mes-
tiçagem. Assim, a ideia de “democracia racial” não reconhece que no Brasil houve
ou há práticas que envolvam discriminação fundada na cor da pele, pois, se todos
são mestiços, é possível concluir que corre nas veias do povo brasileiro o sangue
europeu, indígena e africano. A democracia racial aparece como um subterfúgio
ideológico para dar conta de explicar no Brasil a inexistência de preconceitos de
raça, e o emprego da mestiçagem como sinônimo de harmonia social entre os diver-
sos grupos étnicos do país.
Por isso, em razão da tese da democracia racial e da superação dos estudos
raciais estruturados em base econômica e classe social, que foi primordial tanto aos
movimentos sociais negros quanto à academia remodelar ou reconceituar o termo
“raça”. Para Hall (2003), raça é uma categoria não científica, mas sim uma constru-
ção política e social. É uma categoria discursiva que em torno da qual se organiza
um sistema de poder socioeconômico, que gera exploração e exclusão. Acrescenta-se

235
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

ainda que raça também passa a ser categoria cultural para expressar as diferentes
identidades que compõem os sujeitos e grupos que vivem em sociedade, que em ra-
zão de sua identidade ou de sua cultura também podem sofrer processos de exclusão
– não necessariamente socioeconômica (SANTOS, 2003a).
Logo, atualmente, negar a existência de raças é negar a existência do pre-
conceito racial, do racismo e da discriminação racial. Contar a trajetória de luta
antirracista é também conhecer a luta impulsionada pelos três movimentos negros
de grande expressão no país, foram eles: a Frente Negra Brasileira (1931), o Teatro
Experimental do Negro (1944) e o Movimento Negro Unificado (1978). Cada um
surgiu um determinado momento histórico. O último em destaque, o Movimen-
to Negro Unificado, surge conjuntamente com o processo de redemocratização do
país, tendo algumas de suas reivindicações sido incorporadas na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
A Constituição de 1988 constitui-se num marco jurídico importante para a
garantia dos direitos dos grupos negros, por assentar os direitos fundamentais das
pessoas sob a perspectiva do princípio da igualdade (substantiva e formal no art.
5º) e do princípio da dignidade humana, além de expressar rechaço total contra
qualquer forma de discriminação, inclusive a discriminação racial, criminalizando a
injúria racial e o racismo.
Além disso, a força da sociedade civil, aliada com segmentos governamen-
tais, foi responsável pela criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) no ano de 2003. Constata-se que a pauta da igualdade
racial entrou na agenda política do país precisando ainda ser fortalecida.3

3
Em meio à crise político-institucional que assola o país, acompanhados de eventos de corrupção
e deposição do cargo da presidente eleita democraticamente no ano de 2016, sob o manto legal
do processo de impeachment, a SEPPIR, bem como a Secretaria Especial de Direitos Humanos e
a Secretaria Especial dos Direitos Humanos das Mulheres foram extintas e alocadas junto ao Mi-
nistério da Justiça e Cidadania. A história política brasileira, bem como a luta antirracista no país,
é acompanhada, como já mencionado, de momentos de avanços e retrocessos. Neste momento,
estamos vivendo um retrocesso social imenso e uma ameaça iminente às conquistas pelos direitos
humanos, pelos direitos dos grupos raciais negros, pelos direitos das minorias.
236
Racismo e antirracismo no Brasil

Igualdade, diversidade e direitos humanos


Somente nos últimos anos, na transição do século XX para o XXI é que apare-
ceram mudanças significativas no campo das políticas públicas para a população ne-
gra. Estado e sociedade se uniram para um objetivo comum: garantir a igualdade racial.
E é em razão disso que não mais é possível ignorar na análise do direito de
igualdade o direito à diferença, pois este envolve, nos casos dos grupos raciais ne-
gros, a necessidade de respeito e valorização da sua identidade étnico-cultural, razão
pelo qual se faz urgente transcender ao direito de igualdade meramente formal, por-
que a busca de uma efetiva igualdade racial está amparada em outros valores, que o
mero legalismo ou a literalidade pura e simples da lei não permite que se alcancem.
É importante constar que uma primeira fase do direito de igualdade esteve
assentada sob a concepção de uma igualdade meramente formal, típica do modelo
de Estado liberal, segundo a qual o direito de igualdade se expressava a partir e tão
somente da noção de que “as pessoas são iguais perante a lei” (SARLET, 2014, p.
541). E, ainda, o princípio da igualdade representava a conquista do direito de liber-
dade, que reconhece uma sociedade de sujeitos livres e iguais.
Em decorrência desse aspecto de formalidade pura e simples é que Sarmento
(2008) afirma que o direito de igualdade, reconhecido como a igualdade perante a
ordem jurídica, serviu de instrumento que beneficiava apenas a elite econômica (de-
tentora de direitos e privilégios), numa sociedade negadora, das injustiças, opressões
e desigualdades sociais profundas.
Essa igualdade formal foi muito bem descrita por Orwell (2007) na sua fá-
bula A revolução dos bichos. Na fazenda dos bichos, em analogia ao modelo de Esta-
do liberal-burguês, “todos os bichos eram iguais, mas alguns eram mais iguais que
outros”.
Foi necessário, portanto, ressignificar o direito de igualdade, uma vez que se
devia alcançar uma igualdade como contraponto daquilo que seria a desigualdade.
É no reconhecimento das desigualdades que se procura alcançar o que seria o pos-
tulado da igualdade.
As desigualdades, é importante frisar, vão passando a ser inaceitáveis no de-
correr do tempo e em cada sociedade de formas distintas. Tome-se como parâmetro

237
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

a discussão sobre a igualdade racial no Brasil, que alcança seu apogeu apenas no
final do século XX, em razão das lutas do movimento negro que negaram a ideia
de democracia racial na sociedade brasileira (LIMA; VERONESE, 2011). Assim,
foi necessário repensar outra configuração de igualdade que reconhecesse os grupos
raciais negros como desiguais, socioeconomicamente, mas não tão somente isso.
Portanto, falar de igualdade implica falar de desigualdade, que apresenta como fator
determinante nesta, a diferença:

Só na fase final do século XX, a preocupação com o direito à diferen-


ça incorpora-se definitivamente ao discurso de igualdade. Torna-se
evidente, então, que o direito de cada pessoa de ser tratada com igual-
dade em relação aos seus concidadãos exige uma postura de profun-
do respeito e consideração à sua identidade cultural, ainda quando
esta se distancie dos padrões hegemônicos da sociedade envolvente.
O respeito, a preservação e a promoção das culturas dos grupos mi-
noritários convertem-se assim numa das dimensões fundamentais do
princípio da igualdade. (SARMENTO, 2008, p. 68).

Barros (2004) argumenta que a desigualdade é intrínseca à natureza humana


e à própria sociedade, composta por seres multifacetários. “A afirmação do direito
à diferença é necessária quando utilizada em projetos antidiscriminatórios, sobre-
maneira quando pensamos em minorias étnico-raciais descobertas de direitos mais
fundamentais.” (CAMILO, 2014, p. 62).
Não é possível garantir direitos iguais sem que haja o reconhecimento das di-
ferenças, sendo que é nas diferenças que a exclusão e a desigualdade operam (SAN-
TOS, 2006). Logo, a noção de igualdade formal perde força, também, porque o
próprio reconhecimento formal de direitos não assegura, consequentemente, a sua
efetivação. Por isso, Sedek (2007, p. XV) afirma que:

O fato, porém, das relações concretas não espelharem a igualdade


prevista em lei não diminui o valor da legalidade. Ao contrário, indi-
ca a existência de um desafio assumido pelos grupos sociais que tive-
ram força política suficiente para conferir para tais direitos o estatuto
legal. Em consequência, ainda que não respeitados, não dá no mes-
mo a presença ou não de direitos formalizados em diplomas legais. A
não coincidência entre o mundo real e o legal adverte para a necessi-
dade de se construir mecanismos que garantam a sua aproximação.

238
Racismo e antirracismo no Brasil

O princípio da igualdade é, por assim dizer, pedra angular do direito cons-


titucional moderno, principalmente porque guarda referência com o modelo de
Estado de Direito Democrático e Social, possuindo conexão íntima com os valores
de justiça, embora com ele não se confunda (SARLET, 2014). Sarmento (2008)
aponta que foi apenas no século XX, com a vitória de um constitucionalismo de
base democrática, que se passa a ter uma releitura do princípio da igualdade, numa
igualdade não mais meramente formal, e sim substancial.
É possível deduzir do texto constitucional a existência de uma dupla di-
mensão do direito de igualdade, uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva,
compreendida sob dois aspectos, um negativo (defensivo) e outro positivo (pres-
tacional). Na dimensão subjetiva do direito da igualdade, Sarlet (2014) situa, por
exemplo, a proibição de tratamentos contrários aos valores de igualdade, bem como
compreende a necessidade de assegurar a igualdade mediante medidas compensa-
tórias, que poderão ser adotadas pelo próprio Estado, a fim de afastar eventuais de-
sigualdades, como é o caso das políticas de redistribuição na modalidade de ações
afirmativas.
Nesse sentido, o direito de igualdade material ou substantiva só é alcançável a
partir da percepção para quem ou para quais grupos essa igualdade é conferida, pois,
em muitas situações em que se observa uma verdadeira desigualdade entre grupos
e pessoas, conferir igualdade significa proporcionar a esses grupos ou pessoas trata-
mento desigual, ou até mesmo políticas de discriminação positiva.
Numa sociedade pluriétnica e multirracial, o Direito tem o dever de amparar
as adversidades jurídicas e contribuir para a resolução efetiva das distorções sociais
existentes. Os desafios lançados à efetivação do direito de igualdade possuem ali-
nhamento teórico com as críticas travadas aos direitos humanos e fundamentais,
que, construídos sobre uma matriz liberal-ocidental, negaram o reconhecimento do
direito à diferença, algo que atualmente deve ser imprescindivelmente incorporado
para a garantia plena de direitos aos mais diversos indivíduos, nas suas complexas e
múltiplas diferenças.

239
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Políticas distributivas ou de reconhecimento? Desvelando uma falsa


antítese
Consideradas as diferenças interculturais4 que compõem a sociedade brasi-
leira, Santos (2006, p. 316) indica que o novo caminho, para romper com os pro-
cessos de exclusão e desigualdades, será repensar a política de igualdade articulada
com as políticas de identidade, segundo afirmou no seguinte enunciado: “temos o
direito a ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o do direito a ser
diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.
A teoria valorativa do princípio da igualdade reconhece ser imprescindível
que o ideal de igualdade corresponda à garantia de justiça social, aliada com a con-
cepção de uma justiça redistributiva, orientada muitas vezes pelo critério econômi-
co, e que possibilite combater o binômio desigualdade-exclusão. E também que a
interpretação do princípio da igualdade esteja alinhada com o constitucionalismo
democrático, e no caso brasileiro impõe que o Sistema de Justiça alcance a interpre-
tação da cláusula da igualdade, almejando maiores possibilidades quanto à redistri-
buição de direitos, em consonância com os fundamentos e objetivos da República
Federativa do Brasil (FRISCHEISEN, 2007).
Ainda que se prefira o termo “interculturalidade” no lugar de “multicultu-
ralismo”, pode-se também tecer considerações acerca do que representa na teoria
social o multiculturalismo de tendência conservadora criticado tanto por Boaven-
tura de Sousa Santos quanto por Herrera Flores. O multiculturalismo de tendência
conservadora, embora reconheça a pluralidade e a diversidade culturais presentes
na sociedade, é incapaz de possibilitar uma visão que fuja à lógica de um univer-
salismo abstrato, pois parte da ideia, de forma exemplificativa, de que se existem
desigualdades entre pessoas, as políticas de ação afirmativa – nesse caso as políticas
de redistribuição – seriam suficientes para sanar as desigualdades e os possíveis con-
flitos entre os grupos.
4
Prefere-se o termo “interculturalidade” no lugar de “multiculturalismo”. Flores (2002, p. 12) ar-
gumenta a preferência pelo termo “interculturalidade” no lugar de “multiculturalismo” por com-
preender que “[...] os problemas culturais estão estritamente interconectados com os problemas
políticos e econômicos. A cultura não é uma entidade alheia ou separada das estratégias de ação
social; ao contrário, é uma resposta, uma reação à forma como se constituem e se desenvolvem as
relações sociais, econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados.”
240
Racismo e antirracismo no Brasil

Assim, compreender as relações raciais no Brasil, a partir da concepção do


multiculturalismo de matriz conservadora – com investimento em ações afirmati-
vas – pode potencializar processos de subordinação e dominação de alguns grupos
em detrimento de outros, um se sobrepõe ao outro, mantendo-se a estrutura hierár-
quica na sociedade, por exemplo, os negros em relação de subordinação aos brancos.
Assim descreve Flores (2002, p. 20):

[...] existem muitas culturas, mas somente uma pode considerar-


-se o padrão ouro do universal. Por sua parte, a visão localista nos
conduzirá a um multiculturalismo liberal de tendência progressista:
todas as culturas são iguais, não há mais que se estabelecer um sis-
tema de quotas ou de afirmative action, para que as ‘inferiores’ ou
‘patológicas’ possam aproximar-se à hegemonia, mas, ao estilo do
politicamente correto, respeitando sempre a hierarquia dominante.
Outorgar voz e presença, em razão das diferentes posições sociais, é
uma forma de ocultar a ‘diferença’; em muitas ocasiões, não é mais
que uma conseqüência das desigualdades que ocorrem, no início, ou
bem no desenvolvimento do processo de relações sociais.

Embora as políticas de ação afirmativa sejam ferramentas importantes no


campo das políticas públicas, para pôr em equilíbrio os diferentes grupos raciais
ou, ainda, promover uma igualdade racial, essas políticas, na visão de Flores (2002),
seriam mecanismos insuficientes para superar a lógica de dominação e subordinação
imposta aos grupos (negros) receptores de tais políticas.
Por isso, o movimento intercultural se baseia “[...] no reconhecimento da
diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em
comum além de diferenças de vários tipos.” (SANTOS, 2003b, p. 33). A concepção
intercultural de direitos humanos fundamenta-se na retomada crítica do pensamen-
to ocidental como contraponto da concepção universalista, que permite, de fato,
assegurar um mundo comum sob os anseios da pluralidade e da diversidade entre os
indivíduos (LAFER, 1997). “O respeito, a preservação e a promoção das culturas
dos grupos minoritários convertem-se assim numa das dimensões fundamentais do
princípio da igualdade.” (SARMENTO, 2008, p. 68).
A luta pela igualdade racial no Brasil não pode ser uma fórmula vazia, ou ba-
sear-se apenas em sistemas numéricos, como os sistemas de quotas (ações afirmati-
241
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

vas), mas deve prevalecer o entendimento de que é fundamental o reconhecimento


das identidades e o respeito pelo diferente. E ao mesmo tempo falar sobre igualdade
não implica homogeneização forçada, pois todos devem ter igual liberdade de ser
diferente e de viver de forma plena de acordo com essas diferenças (SARMENTO,
2008).
Em razão disso é que surgem novas teorizações acerca do direito à diferença
e à luta contra as desigualdades provenientes destas. Trata-se da política do reconhe-
cimento amparada na ideia de promoção de justiça social. Não se tenta mais com-
preender as diferenças culturais pela via assimilacionista, pois esta, como se sabe,
é negadora do reconhecimento e da valorização das identidades e, em razão disso,
propulsora da manutenção da dicotomia dominadores/dominados, pois haveria
sempre a prevalência de uma cultura em detrimento de outra, à qual se atribuiria o
status de superior ou dominante.
Fraser (2008) aponta novos caminhos que conduzem à percepção de justiça
social. Se antes as demandas por justiça social baseavam-se tão somente em políticas
redistributivas, agora cede-se o espaço também para a construção da justiça social
voltada para as demandas por reconhecimento, reconhecimento de identidades, re-
conhecimento do outro. Para a autora, em universos desiguais, lutar por políticas de
redistribuição e por políticas de reconhecimento de forma separada ou antagônica
não representa mais do que uma falsa antítese. Para ela, nenhuma das duas teses é
suficiente para responder às demandas por justiça social. Por isso, a base da teoria
da autora se sustenta em construir uma orientação político-programática capaz de
integrar o melhor da política de redistribuição com o melhor da política de reco-
nhecimento da diferença.
As políticas de redistribuição e de reconhecimento se diferem em pelo menos
três situações pontuais. A primeira delas relaciona-se com o fato de as duas políticas
abordarem concepções diferenciadas de injustiça, uma vez que a política de redis-
tribuição dá ênfase no combate às injustiças de ordem socioeconômica, enquan-
to a política de reconhecimento centra-se nas injustiças de ordem cultural, e estão
enraizadas nos padrões sociais de representação, geradores de dominação cultural
(por aquela de status predominante), de não reconhecimento de identidades e de

242
Racismo e antirracismo no Brasil

desrespeito. Em segundo lugar, o que diferencia uma política da outra é a estratégia


que cada uma adota para resolver o problema da injustiça social. Enquanto a polí-
tica de redistribuição investe numa reestruturação político-econômica (programas
de transferência de renda são exemplo), a política de reconhecimento aposta que o
remédio para enfrentar a injustiça social é a transformação cultural, o respeito e a
valorização das identidades consideradas até então subalternas. Há uma aposta na
diversidade cultural nas políticas de reconhecimento. E, em terceiro lugar, as duas
políticas são direcionadas para grupos diferentes, a política de redistribuição aten-
deria os grupos injustiçados em razão de sua classe social, já a do reconhecimento
atende aquele grupo que, dada a sua cultura, apresenta baixo status, visto pelo padrão
cultural como diferente e, portanto, possui baixo prestígio social (FRASER, 2008).
O enfrentamento da discussão étnico-racial no Brasil e a possível promoção
da igualdade racial deve perpassar pelo investimento nestas duas políticas: de redis-
tribuição e de reconhecimento, pois, como se viu, não são, na concepção de Fraser
(2008), antagônicas. Assim, a luta pela igualdade racial deve estar pautada pela me-
lhoria das condições de trabalho das pessoas negras em equivalência às condições
de trabalhos ocupados por brancos e, ao mesmo tempo, travar uma luta contra o
eurocentrismo e enfatizar as especificidades da cultura negra, de forma a valorizá-la.
A dificuldade parece estar em como conciliar a igualdade e a diferença, pois a polí-
tica de redistribuição busca alcançar uma isonomia substantiva entre os diferentes
grupos raciais, enquanto a política de reconhecimento ressalta o valor da “diferença”
(MATTOS, 2006).

À guisa de conclusão
Abordar as diferenças e as desigualdades no mundo contemporâneo é tarefa
extremamente complexa, uma vez que as diferenças poderão ser reconhecidas ou
negadas, e ao mesmo tempo as desigualdades podem ser contestadas ou sofridas de
forma passiva (BARROS, 2004). A valorização e o resgate das diferenças se apre-
sentam como instrumental imprescindível na luta contra as desigualdades que se
constituem a partir da negação das diferenças. Pode-se falar em desigualdades de
gênero, raça, idade, nacionalidade e tantas outras.

243
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

A cultura de respeito e educação em direitos humanos deve, portanto, am-


parar-se na construção de uma cultura dos direitos, como já ressaltou Herrera Flo-
res. Por isso, é possível afirmar que o problema moral do racismo no Brasil não se
resolverá com a política de ações afirmativas enquanto políticas de redistribuição,
embora essas políticas venham possibilitar a criação, por exemplo, de uma classe
média negra, podendo de fato promover o equilíbrio e a igualdade racial em termos
econômicos.
No entanto, o problema das relações raciais não se esgota na dicotomia bran-
co/negro e na negação do racismo científico. É necessário investir na “própria auto-
compreensão de uma identidade cultural que passa inevitavelmente pela construção
de elementos raciais, manifestos em práticas racistas de exclusão social, desrespeito e
falta de reconhecimento” (OLIVEIRA, 2011, p. 60).
Warat (1988) afirmou que um dos grandes desafios que se impõem aos direi-
tos humanos é percebê-los não mais de forma autônoma e ideologicamente neutra,
uma vez que essa concepção serviu como elemento instituidor de práticas totalitá-
rias – baseadas na desumanização e na despolitização do social. É, portanto, urgente
ressignificar a própria concepção de universalidade dos direitos humanos. Que essa
universalidade ressignificada seja capaz de contemplar a proteção de categorias vul-
neráveis, tais como as mulheres, crianças e adolescentes, negros, deficientes, homos-
sexuais, entre outras. É imprescindível desvencilhar a teoria dos direitos humanos
dos velhos resquícios eurocêntricos, cuja simbologia sempre se apresentou como
um verdadeiro obstáculo à consolidação dos direitos humanos de fato, seja porque
sempre procurou a manutenção de um status quo insensível aos direitos de minorias
– incluindo as minorias étnicas – seja como barreira instrumental de processos de
luta e processos políticos de luta por direitos (LIMA, 2015).

Referências
BARROS, José D’Assunção. Igualdade, desigualdade e diferença. Rio de Janeiro: LESC,
2004.
CAMILO, Christiane de Holanda. Direitos humanos, modernidade, colonialidade, e re-
lações étnico-raciais no Brasil. In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; LEAL,
César Barros (Orgs.). Igualdade e não discriminação. Fortaleza: IBDH/IIDH/SLADI,
2014.
244
Racismo e antirracismo no Brasil

DAVIS, Angela. A democracia da abolição: para além do império das prisões e da tortu-
ra. Tradução de Artur Neves Teixeira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. Apresentação de Lilia Mo-
ritz Schwarcz. 2. ed. rev. São Paulo: Global, 2007.
FLORES, Joaquín Herrera. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resis-
tência. Seqüência, Florianópolis, UFSC, v. 23, n. 44, p. 9-28, 2002.
FRASER, Nancy. Redistribuição, reconhecimento e participação: por uma concepção
integrada da justiça. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia
(Coords.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 40. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A construção da igualdade e o sistema de
justiça no Brasil: alguns caminhos e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução de Adelaine la
Guardia Resende et al. Belo Horizonte: UFMG Editora, 2003.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt.
Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, p. 55-65, 1997.
LIMA, Fernanda da Silva. Os direitos humanos e fundamentais de crianças e adoles-
centes negros à luz da proteção integral: limites e perspectivas das políticas públicas
de igualdade racial no Brasil. 2015. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2015.
LIMA, Fernanda da Silva; VERONESE, Josiane Rose Petry. Mamãe África, cheguei ao
Brasil: os direitos da criança e do adolescente sob a perspectiva da igualdade racial. Floria-
nópolis: Ed. da UFSC, Fundação Boiteux, 2011.
MATTOS, Patrícia de Castro. A sociologia política do reconhecimento: as contribui-
ções de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. São Paulo: Annablume, 2006.
OLIVEIRA, Nythamar de. Racismo, reconhecimento, respeito: Axel Honneth e o déficit
fenomenológico da teoria crítica. In: BAVARESCO, Agemir; BARBOSA, Evandro; ET-
CHEVERRY, Kátia Martins. Projetos de filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.
ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas. Tradução de Heitor
Aquino Ferreira. Posfácio Christopher Hitchens. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância
no Brasil. Rio de Janeiro: USU, 1997.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução para ampliar o cânone do reconhecimento,
da diferença e da igualdade. In: ______ (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos
do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003a.
______. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In: ______ (Org.).
Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003b. 3 v.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.
São Paulo: Cortez, 2006. 4 v.
SARLET, Ingo Wolfgang. Teoria geral dos direitos fundamentais. In: ______; MARINO-
NI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel (Orgs.). Curso de direito constitucional. 3.
ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

245
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

SARMENTO, Daniel. Direito constitucional e igualdade étnico-racial. In: SOUZA,


Douglas Martins; PIOVESAN, Flávia (Coords.). Ordem jurídica e igualdade étnico-ra-
cial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEDEK, Maria Tereza Aina. Prefácio. In: FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. A
construção da igualdade e o sistema de justiça no Brasil: alguns caminhos e possibilida-
des. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
WARAT, Luis Alberto. O abuso estatal do direito. Palestra pronunciada por ocasião
do I Seminário Latino-Americano sobre a "Universidade, o Ensino Jurídico e os Direitos
Humanos", realizado em Santa Maria, entre os dias 21 e 24 de março de 1988.

246
O Estado e as políticas públicas de
promoção da igualdade racial
Ana Zaiczuk Raggio1
Regina Bergamaschi Bley2

Introdução

O presente artigo tem por objetivo discorrer a respeito do papel do Estado


no que concerne a uma das relevantes questões que habitam o campo das políticas
públicas de direitos humanos, que é a promoção da igualdade racial. Para isso, pro-
curou-se contribuir, do ponto de vista teórico, com a explanação sobre o racismo
em suas variadas formas e expressões, em especial, o racismo institucional, assim
como sobre as estratégias para o seu enfrentamento, como é o caso das políticas
afirmativas.
A Década Internacional de Afrodescendentes, de 2015 a 2024, foi aprova-
da pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) como um
reconhecimento da comunidade internacional de que a promoção e proteção dos
direitos humanos dos povos de ascendência africana merecem especial atenção por
parte dos estados nacionais.
1
Graduada em Direito, pelo Centro Universitário Curitiba, é especialista em Direito Constitu-
cional, pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, e em Gestão Pública, pela Univer-
sidade Estadual de Ponta Grossa. Advogada, atualmente é responsável pela Divisão de Políticas
para LGBT e pela Divisão de Políticas para Igualdade Racial do Departamento de Direitos Hu-
manos e Cidadania da Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos.
2
Professora, mestre e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
com doutorado sanduíche pela Universidade Nova de Lisboa, Portugal. É pesquisadora da
PUC/PR, integrante do Grupo de Pesquisa Sociologia da Educação: da prática do ensino ao
estudo das ações educativas no âmbito das desigualdades sociais. É membro da Comissão de
Credenciamento de Profissionais Docentes dos Programas de Formação e Capacitação da Esco-
la de Educação em Direitos Humanos do Paraná (ESEDH/SEJU). Atualmente, é diretora do
Departamento de Direitos Humanos e Cidadania da Secretaria de Estado da Justiça, Trabalho e
Direitos Humanos do Paraná.
247
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

No Brasil, o assunto ganha especial relevância, considerando que é o país


com maior população negra fora da África. De acordo com o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto mais de 50% da população brasileira é
formada por pessoas negras, 81,6% da população mais pobre é negra (IBGE, 2010).
Este e outros indicadores sociais demonstram a necessidade de construção de
políticas de promoção da igualdade racial e de enfrentamento ao racismo.
O Paraná é o estado com maior população negra da região do Sul do país, com
28,2% de pessoas pretas e pardas (IBGE, 2010). Não diferente da realidade nacional,
essa população demonstra especial necessidade de atenção governamental, visto a sua
condição de vulnerabilidade social expressada a partir de indicadores sociais relevan-
tes, como renda, escolaridade e moradia.
Da mesma maneira que em âmbito nacional, a população negra paranaense,
de acordo com o IBGE (2010), encontra-se à frente nos níveis de renda familiar per
capita de até 1 salário mínimo e meio. No nível de 3 salários-mínimos ou mais, a
população branca está em 13,3% e a população negra em 4,3%. As famílias chefiadas
por pessoas brancas que se encontram em situação adequada de moradia formam
55,9% e, de outra sorte, aquelas chefiadas por pessoas negras formam 46,2%. Ou seja,
também no Paraná o olhar sobre a situação da moradia demonstra que as famílias
chefiadas por pessoas brancas possuem condições adequadas de moradia em maior
número que as famílias chefiadas por pessoas negras. Por derradeiro, de acordo com
estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sobre a Pesquisa Na-
cional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2015), o número de anos de estudo con-
cluídos é maior entre pessoas brancas de 15 anos de idade ou mais, sendo que 21,9%
de pessoas brancas nessa faixa etária possuem 12 anos ou mais de estudo concluídos,
perante 8,2% de pessoas negras com 15 anos de idade ou mais.
Werneck (2013) refere-se ao racismo como sendo uma ideologia que se
manifesta e se realiza não só nas relações entre pessoas e grupos, mas também no
desenvolvimento das políticas públicas, nas estruturas de governo e nas formas de
organização dos estados. Com isso, a autora chama a atenção para a complexidade
desse fenômeno, que, dada a sua abrangência, penetra na cultura, na política, na
ética e “requisita uma série de instrumentos capazes de mover os processos em favor

248
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

de seus interesses e necessidades de continuidade, mantendo e perpetuando privi-


légios e hegemonias” (WERNECK, 2013, p. 11). Além disso, segue a autora, em
razão da sua ampla e complexa atuação, se organizando e desenvolvendo por meio
de estruturas, políticas, práticas e normas que definem oportunidades e valores para
pessoas e populações a partir de sua aparência, o racismo deve ser reconhecido tam-
bém como um sistema que atua nos níveis pessoal, interpessoal e institucional.
Por meio da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as For-
mas de Discriminação Racial (CIEDR), adotada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas, em 1965, e ratificada pelo Brasil, em 27 de março de 1968, os Estados-par-
tes condenam a discriminação racial e se comprometem a adotar uma política de
eliminação da discriminação racial em todas as suas formas e de promoção de enten-
dimento entre todas as raças. Ou seja, essa convenção impõe aos Estados a respon-
sabilidade de adotar medidas destinadas a eliminar qualquer incitação ou quaisquer
atos de discriminação baseadas na superioridade racial.
Pode-se dizer que a CIEDR foi, sem dúvida, uma das primeiras grandes con-
venções das Nações Unidas na área dos direitos humanos, tendo como base legislati-
va o artigo 1º, parágrafo 3º, da Carta das Nações Unidas ou Carta de São Francisco3,
que se refere à promoção dos direitos humanos de todas as pessoas “sem distinção
de raça, sexo, língua ou religião”, e do artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, que reconhece o direito de todos os seres humanos de invocar as liberda-
des e os direitos ali proclamados, “sem distinção de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou outro
estatuto” (ONU, 2009).
A Constituição de 1988 acolheu em seu texto a proteção aos direitos hu-
manos, como pode se depreender, entre outros, do artigo 1º, III, da Carta Magna.
Pode-se afirmar, portanto, que a dignidade da pessoa humana é o fundamento últi-

3
A Carta das Nações Unidas ou Carta de São Francisco foi assinada em São Francisco, em 26
de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Inter-
nacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano. O Estatuto da Corte Interna-
cional de Justiça é parte integrante da Carta. Corresponde ao acordo que originou a criação da
Organização das Nações Unidas logo após a Segunda Guerra Mundial, em substituição à Liga
das Nações, como entidade máxima da discussão do direito internacional e fórum de relações e
entendimentos supranacionais.
249
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

mo do Estado brasileiro, ou seja, cabe ao Estado garantir e promover as condições


assecuratórias da dignidade de todas as pessoas.
Construir, portanto, uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desen-
volvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualda-
des sociais e “promover o bem estar de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fun-
damentais do Estado Brasileiro”, conforme destacam Bley e Josviak (2007, p. 204).
Isso significa reconhecer, por parte do poder público, o caráter multicultural
e multiétnico da sociedade brasileira; reconhecer a desigualdade histórica no acesso
aos direitos baseadas em raça e etnia. Significa, também, reconhecer a necessida-
de de, por meio de cooperação e assistência técnica internacional, de intercâmbio
de experiências, criar condições, instrumentos legais e demais providências que te-
nham como meta o efetivo enfrentamento à desigualdade racial e à superação das
injustiças sociais.

Racismo institucional: do que estamos falando?


O conceito de racismo institucional foi cunhado por integrantes do mo-
vimento Panteras Negras4 para expressar as consequências e formas pelas quais o
racismo presente em uma sociedade se manifesta e se reproduz através das institui-
ções. Assim, o racismo institucional deve ser entendido como práticas institucionais
que impedem o acesso da população negra aos benefícios gerados pelas instituições,
sejam elas públicas ou privadas.
Essas manifestações nem sempre se expressam sob a forma explícita de discri-
minação no cotidiano das instituições. Não raro, elas se expressam de forma difusa,
implícita, o que torna a sua identificação dificultada.

4
O revolucionário Partido dos Panteras Negras (Black Panthers Party) foi formado em 1966 por
Huey Newton e Bobby Seale, na cidade de Oakland, na Califórnia. O movimento tinha como
base ideológica o marxismo e seu objetivo era proteger os negros contra a violência policial, e
para isso faziam o patrulhamento dos chamados guetos negros. Defendiam, entre outras coisas,
o armamento dos negros, a isenção do pagamento de impostos para o que consideravam ser uma
“América branca”. A ala mais radical do movimento defendia, ainda, a luta armada. Tendo fun-
cionado até os anos 1980, o movimento teve, no seu auge, mais de 2 mil filiados e representação
em importantes cidades americanas.
250
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

Werneck (2013) entende o racismo institucional, ou sistêmico, na concep-


ção da autora, como sendo aquele que induz, que mantém e condiciona não só a
organização e a ação do Estado, as suas instituições e as políticas públicas, mas tam-
bém as instituições privadas, de modo a produzir e reproduzir a hierarquia racial:

O racismo institucional é um dos modos de operacionalização do


racismo patriarcal heteronormativo - é o modo organizacional - para
atingir coletividades a partir da priorização ativa dos interesses dos
mais claros, patrocinando também a negligência e a deslegitimação
das necessidades dos mais escuros. E mais, restringindo especialmen-
te e de forma ativa as opções e oportunidades das mulheres negras
no exercício de seus direitos. Dizendo de outro modo, o racismo ins-
titucional é um modo de subordinar o direito e a democracia às ne-
cessidades do racismo, fazendo com que os primeiros inexistam ou
existam de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência
dos grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordina-
ção deste último. (WERNECK, 2013, p. 17).

Esse fenômeno pode ser facilmente percebido pela sub-representarão da po-


pulação negra nos espaços de poder, bem como em práticas violadoras de direitos.
No acesso aos cargos do funcionalismo público, pessoas negras encontram-se em
posições de auxiliar e intermediário, de menor remuneração. Dados acerca da com-
posição do Ministério Público do Paraná (MPPR), por exemplo, demonstram essa
situação: enquanto 11,45% dos funcionários das carreiras auxiliares se autodecla-
ram negros, somente 3,3% dos membros e 5,3% dos comissionados se colocam
da mesma forma (dados do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico Racial do
MPPR, 2017).
Outro dado relevante é a maior presença de jovens negros que se encontram
em atendimento socioeducativo no Paraná. Enquanto a população paranaense é
formada por menos que 30% de pessoas negras (IBGE, 2010), 60% dos jovens em
cumprimento de medida socioeducativa de restrição de liberdade são negros (dados
do Departamento de Atendimento Socioeducativo da Secretaria de Estado da Jus-
tiça, Trabalho e Direitos Humanos do Paraná, 2015).
Estudos no campo da criminologia, tais como os de Adorno (1995), já in-
dicaram não haver diferenças entre o “potencial” para o crime violento praticado

251
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

por pessoas negras, quando comparadas com as brancas. Entretanto, os réus negros
tendem a ter maiores dificuldades de acesso à justiça criminal e a ser mais perse-
guidos pela vigilância policial, além de apresentar maiores dificuldades de usufruir
do direito de ampla defesa, conforme asseguram as normas constitucionais. Con-
sequentemente, segundo Adorno (1995, p. 63), “tendem a merecer um tratamento
penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos com-
parativamente aos réus brancos”.
No âmbito da segurança pública, administração penitenciária e justiça, é
preciso especial enfoque para enfrentamento ao racismo institucional. De outra sor-
te, tem-se nessas instâncias importante rede de atenção a pessoas vítimas de discri-
minação racial, visto que são elas as responsáveis por elucidar casos e responsabilizar
agressores. A relevância dessas áreas para a promoção da igualdade racial foi reconhe-
cida com a inserção da temática no Estatuto da Igualdade Racial (artigos 51 a 55).
Assim, compreender o racismo institucional, na perspectiva sistêmica, con-
forme coloca Werneck (2017), significa compreendê-lo como sendo um mecanismo
estrutural de exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados. Como nos lem-
bra a autora, “trata-se da forma estratégica como o racismo garante a apropriação dos
resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos raciais privilegiados na
sociedade, ao mesmo tempo em que ajuda a manter a fragmentação da distribuição
destes resultados no seu interior” (p. 17).
Portanto, é preciso adotar medidas capazes de promover mudanças sistêmicas
nas instituições desde sua estruturação, para enfrentamento do racismo institucional.
Inicialmente, é preciso levantar dados sobre a presença da população negra e o acesso
desta aos serviços prestados. Além disso, é necessário promover capacitações para
permitir a reflexão sobre o tema, mas, principalmente, deve-se adotar políticas, como
as de cotas, que permitam o ingresso de pessoas negras nos quadros da instituição.

O papel do Estado na implementação das Políticas de Promoção da


Igualdade Racial
É objeto do presente texto discutir o papel do Estado na definição e na im-
plementação das políticas públicas em geral, e, em particular, as de promoção da

252
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

igualdade racial, na medida em que é necessário que se criem estratégias e formas de


assegurar o atendimento ao princípio constitucional de concretização da igualdade
racial, conforme coloca Gediel e Milano (2014):

Para a Constituição de 1988, a concretização da igualdade racial


tem como ponto de partida a proibição de todas as formas de pre-
conceito e discriminação, mas exige o compromisso de, por parte do
Estado e da sociedade, ampliar as políticas públicas e as estratégias,
para permitir o acesso diferenciado dos negros à cidadania plena e
aos direitos fundamentais como saúde, educação, trabalho, moradia
e terra. (p. 352).

Para a reflexão que se propõe, parte-se da concepção de Estado, na perspec-


tiva de Boneti (2011), como sendo uma instituição não neutra, ou seja, perpassada
por valores ideológicos, éticos e culturais que apresenta, organiza, institucionaliza
um conjunto de regras, normas e leis de interesse social.
Compreende-se, ainda na perspectiva do mesmo autor, as políticas públicas
como sendo as ações derivadas de um processo de construção social, ou seja, as ações
resultantes da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito das relações
de poder, constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e orga-
nizações da sociedade civil. Essas relações vão determinar um conjunto de ações
que serão atribuídas ao Estado, provocando o direcionamento ou redirecionamen-
to de investimentos e de intervenção administrativa na realidade social (BONETI,
2011).
Partindo-se dessa perspectiva, pode-se dizer, portanto, que o papel do Esta-
do diante das políticas públicas é, não única, mas, precipuamente, o de agente de
organização e de institucionalização de decisões surgidas a partir do debate público,
conforme bem lembra Boneti.
Essa concepção de Estado e de políticas públicas compatibiliza-se com o mo-
mento histórico e a nova configuração social, perpassada não só por interesse de
classes, mas também pelos interesses de vários outros segmentos constituintes da
sociedade civil. A partir dessa compreensão, é possível “desconstruir a ideia fun-
cionalista das políticas públicas pensadas exclusivamente a partir do ordenamen-
to jurídico e/ou administrativo e levar em conta a participação dos integrantes da
253
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

sociedade civil como sendo agentes definidores das políticas públicas”, conforme
analisa Bley (2014, p. 338).
Tomando de empréstimo as palavras de Boneti, na perspectiva anteriormente
apresentada, é impossível se pensar, como comumente se faz, o Estado e a sociedade
civil como duas instituições separadas. Se assim fosse, “as políticas se apresentariam
como se se constituíssem de ourtogas de direitos atribuídas à sociedade civil pela
instituição estatal. Os direitos sociais e as políticas públicas, porém, se constituem,
na verdade, de construções coletivas e sociais” (BONETI, 2011, p. 17).
Como dever constitucional, o Estado deveria fornecer aos cidadãos, de for-
ma independente de sexo, idade, classe social ou raça, uma ampla estrutura de prote-
ção contra a possibilidade de tornarem-se vítimas de violência. Esse é um direito do
qual nenhum indivíduo poderia ser legitimamente excluído, fundamento do pró-
prio contrato social. Contudo, a segurança pública é uma das esferas da ação estatal
onde a seletividade racial se torna mais patente.
Em termos de legislação, destaca-se a CIEDR, das Nações Unidas, que entrou
em vigor em 1969 e foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 65.810/1969. A
partir dela, a Constituição de 1988 abarcou o direito à igualdade e não discriminação
em razão de raça e cor.
São evidentes os avanços que têm ocorrido com relação ao marco regulatório
do enfrentamento ao racismo no Brasil, desde a promulgação da Constituição de
1988 até a publicação do Estatuto da Igualdade Racial, em 20 de julho de 2010
(Lei no 12.288/2010), que passa a estabelecer um conjunto de princípios jurídicos
e de regras com o objetivo de coibir toda e qualquer forma de discriminação racial,
garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos
direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate às demais formas de
intolerância étnica.
O Estatuto define, ainda, as principais áreas a serem trabalhadas pelos órgãos
públicos para a superação das desigualdades, asseverando direitos na área da saúde,
educação, cultura, esporte, lazer, liberdade de consciência e de crença, bem como
acesso à terra, moradia e trabalho.

254
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

As políticas públicas de promoção da igualdade racial ganharam força, no


Brasil, a partir da criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) e do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), em
2003, atualmente localizados na estrutura do Ministério dos Direitos Humanos.
Ainda, as conferências sobre a temática vêm ocorrendo desde 2005, convocadas em
âmbito nacional e replicadas pelo estado do Paraná.
A Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) foi insti-
tuída pelo Decreto nº 4.886/2003, organizando ações de promoção da igualdade
racial no planejamento do governo federal e prevendo o monitoramento das ações
voltadas à redução das desigualdades que atingem a população negra, povos indí-
genas, ciganos e ciganas, entre outros segmentos sociais discriminados em razão da
cor, etnia ou religião.
Também deve se levar em consideração o Decreto nº 6.872/2009, que apro-
vou o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que estabelece um conjun-
to de ações resultantes das definições da I Conferência Nacional de Promoção da
Igualdade Racial (I CONAPIR).

A Política de Promoção da Igualdade Racial no estado do Paraná


No estado do Paraná, as Conferências Estaduais de Promoção da Igualdade
Racial de 2005 e 2009 foram organizadas por meio da Secretaria Especial de Assun-
tos Estratégicos (SEAE), órgão que congregava ações pela melhoria das condições
de vida de grupos sociais em situação de vulnerabilidade. A III Conferência Esta-
dual, em 2013, foi promovida pela então Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania
e Direitos Humanos, junto à qual estruturou-se o Conselho Estadual de Promoção
da Igualdade Racial (CONSEPIR) e o Conselho Estadual de Povos Indígenas e
Comunidades Tradicionais (CPICT). Posteriormente transformada em Secretaria
de Estado da Justiça, Trabalho e Direitos Humanos (SEJU), cabe a essa Secretaria
de Estado a adoção de medidas destinadas à preservação dos direitos humanos e à
garantia das liberdades individuais e coletivas.
Atendendo à demanda por uma área de coordenação de políticas de promo-
ção da igualdade racial, em 2014, foi criada a Divisão de Políticas para Igualdade

255
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Racial, vinculada à estrutura organizacional do Departamento de Direitos Huma-


nos e Cidadania da SEJU. Outras Secretarias de Estado já possuíam áreas destinadas
à construção de políticas para promoção da igualdade racial, destacando-se a Coor-
denação da Educação das Relações da Diversidade Étnico Racial, do Departamento
da Diversidade da Secretaria de Estado da Educação.
Entretanto, o maior destaque deve ser dado ao Plano Estadual de Políticas
Públicas de Promoção da Igualdade Racial, aprovado pelo CONSEPIR em 2016.
O plano prevê ações de 10 Secretarias de Estado, a serem executadas nos anos de
2017 e 2018. As ações foram elaboradas em processo coordenado pela SEJU e por
meio do debate entre sociedade civil e representantes governamentais no CON-
SEPIR, tendo como base as propostas aprovadas durante as II e III Conferências
Estaduais de Promoção da Igualdade Racial.
Em 2018 foi promovida pela SEJU, em conjunto com o CONSEPIR, a IV
Conferência Estadual de Promoção da Igualdade Racial. O evento destacou-se como
a conferência paranaense acerca da temática que contou com o maior número de eta-
pas preparatórias. Foram promovidas 33 conferências municipais, intermunicipais e
livres, que envolveram representantes de 89 municípios. A mobilização demonstra
o avanço e fortalecimento das políticas de promoção da igualdade racial no estado.

Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial


Para que as desigualdades sócio-históricas e culturais herdadas sejam enfren-
tadas e combatidas, é necessária a atuação do Estado na definição e implementação
das políticas públicas, buscando alcançar a justiça social.
A inclusão da temática racial nas agendas públicas, tanto no âmbito federal
quanto no estadual e no municipal, embora não seja recente, ainda se faz premente,
na medida em que mudanças sociais no Brasil, em especial no que diz respeito à
igualdade racial, também se mostram prementes.
Para a reflexão que se propõe sobre o Estado e as políticas públicas de pro-
moção da igualdade racial, parte-se da concepção de políticas públicas, baseada em
Boneti (2011), como sendo as ações derivadas do processo de construção social, ou
seja, as ações resultantes da dinâmica do jogo de forças que se estabelece no âmbito

256
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

das relações de poder, constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes so-
ciais e organizações da sociedade civil. Essas relações vão, por sua vez, dar origem a
um conjunto de ações que serão atribuídas ao Estado.
Nessa perspectiva, pode-se pensar, portanto, que a função primeira do Esta-
do, no que diz respeito às políticas públicas, é organizar e institucionalizar as deci-
sões que emergem dos debates públicos, conforme coloca Boneti (2011).

Políticas afirmativas: reconhecimento e inclusão social


As políticas afirmativas têm sido adotas como uma estratégia eficaz para
inserção da população negra em espaços dos quais esta tem sido historicamen-
te excluída, de modo a enfrentar desigualdades sociais e promover a igualdade de
oportunidades. Em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) implantou o sistema de
cotas para pessoas negras e indígenas. A reserva teve sua constitucionalidade ques-
tionada perante o Supremo Tribunal Federal (STF), através da Arguição de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186. Acompanhando o voto
do ministro relator, Ricardo Lewandowski, o STF decidiu por unanimidade pela
constitucionalidade da medida, em abril de 2012.
No Paraná, destaca-se a Lei Estadual nº 14.274/2005, que assegura a reserva
de 10% das vagas de concursos públicos, efetuados pelo poder público estadual,
para provimento de cargos efetivos, para afrodescendentes. Em âmbito federal, ain-
da, têm-se a Lei nº 12.711/2012, que fixou a política de cotas das universidades e
instituições federais de ensino técnico de nível médio, e a Lei nº 12.990/2014, que
reserva vagas para pessoas negras nos concursos públicos das instituições públicas
federais.
Por sua vez, uma estratégia para garantia de participação da população ne-
gra no processo de construção e definição de políticas públicas tem sido a criação
de Conselhos de Promoção da Igualdade Racial paritários, ou seja, com o mesmo
número de cadeiras para representantes governamentais e da sociedade civil. O
CNPIR foi criado pela Lei nº 10.678, de 23 de maio de 2003, e regulamentado pelo
Decreto nº 4.885, de 20 de novembro de 2003. Com 44 membros, o conselho conta
com 22 cadeiras para sociedade civil, que se subdividem nos seguintes segmentos:

257
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

movimento negro, comunidades tradicionais de matriz africana, juventude, LGBT,


mulheres, quilombolas, trabalhadores(as), povos indígenas, comunidades cigana,
judaica e árabe e instituições dedicadas às temáticas comunicação, educação, pes-
quisa, meio ambiente ou saúde.
No estado do Paraná, o CONSEPIR foi criado pela Lei Estadual nº
17.726/2013, com 28 membros, sendo 50% das cadeiras para representantes de
Secretarias de Estado e da Assembleia Legislativa do Paraná e 50% para entidades
da sociedade civil com atuação na promoção da igualdade racial. Destaca-se que
a gestão atual conta com integrantes dos seguintes segmentos: movimento negro,
LGBT, mulheres, comunidades muçulmana e nigeriana. Vale apontar que o estado
conta também com o CPICT, criado pela Lei Estadual nº 17.425/2012.
A criação de conselhos encontra respaldo no artigo 50 do Estatuto da Igual-
dade Racial, assim como nos artigos 47 e seguintes, que tratam do Sistema Nacional
de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR). O sistema permite a gestão articula-
da de políticas de promoção da igualdade racial, além de ensejar aos estados e mu-
nicípios que aderem a ele maior pontuação em projetos apresentados no âmbito
de editais publicados pela SEPPIR, facilitando o acesso a verbas para execução de
projetos na temática.
Uma das medidas a serem adotadas pelos entes que aderem ao SINAPIR é a
elaboração e publicação de Planos de Promoção da Igualdade Racial. No estado do
Paraná, a adesão foi efetivada em fevereiro de 2018. Para tanto, o Paraná compro-
vou o atendimento aos requisitos de manutenção de órgãos para gestão de políticas,
conselho acerca da temática e publicação de Plano Estadual de Políticas Públicas de
Promoção da Igualdade Racial, aprovado pelo CONSEPIR em 2016.
Em relação à educação, têm-se as Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, as
quais alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, firmando a obrigatoriedade
do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, nos estabelecimentos de
ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados. Assim, na educação
básica deve se abordar, em todo o currículo escolar, de forma sistemática e contínua,
a contribuição da população negra e indígena na formação do país, suas lutas para
conquista de direitos, especificidades culturais, assim como a história da África.

258
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

Faz-se mister ressaltar que, para atendimento da legislação, é necessário que


os profissionais das diferentes áreas tenham acesso, em sua formação superior, a
conteúdos que possam ser reproduzidos nesse sentido. Assim, cabe às faculdades
e universidades a inserção das temáticas no currículo, como também o estímulo à
pesquisa da história e cultura afro-brasileira e indígena.
Ainda no âmbito do ensino superior, é imperioso compreender que o pro-
cesso de exclusão social histórica vivenciada pela população negra impede seu aces-
so ao ensino superior. Em 2005, um ano após o início das medidas afirmativas de
cotas, 5,5% dos jovens negros em idade universitária (entre 18 e 24 anos) estavam
cursando ensino superior no país (IBGE, 2010). Dez anos após, o número de jovens
negros mais do que dobrou, chegando a 12,8% (IBGE, 2010). Entretanto, a desi-
gualdade em relação a jovens brancos em idade universitária permanece: em 2005,
17,8% estavam no ensino superior; em 2015, eram 26,5%.
Ademais, o direito à educação e cultura encontra-se também disciplinado
no Estatuto da Igualdade Racial, nos artigos 11 a 20. As leis citadas trazem um pri-
meiro passo para promoção da cultura afro-brasileira. Todavia, se fazem necessárias
ações que permitam a difusão e valorização das manifestações culturais tradicionais
e contemporâneas, tendo em vista, em especial, o importante papel que desempe-
nham na cultura brasileira, face ao papel fundante da população negra na história
do país.
A liberdade religiosa é direito fundamental assegurado pelo artigo 5º, VI,
da Constituição de 1988, e também está disposta nos artigos 23 a 25 do Estatuto
da Igualdade Racial. Como tal, assegura a liberdade de crença e não crença, bem
como protege o direito de culto, seus locais e liturgias. A violência e discriminação
em razão de religião pode constituir crime de racismo e injúria racial, nos termos da
Lei nº 7.716/1989 e do artigo 140, § 3º, do Código Penal, respectivamente. Ainda,
o artigo 208 do mesmo Código prevê o crime de ultraje a culto e impedimento ou
perturbação de ato a ele relativo.
Assim sendo, cabe aos poderes públicos a adoção de medidas para garantir o
pleno exercício da liberdade religiosa, com foco nas religiões de matrizes africanas

259
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

que, pelo que se denota facilmente a partir de notícias veiculadas pela mídia, são o
principal alvo de violências e discriminação.
Nesse sentido, a comunicação mostra-se como importante área para enfren-
tamento da discriminação e promoção da igualdade racial, visto que pode ser fer-
ramenta que possibilita a difusão de dados, que demonstram a desigualdade racial
existente, e promove a reflexão através de campanhas. Além disso, pode multiplicar
conhecimentos acerca de direitos e órgãos cuja atribuição é a responsabilização de
pessoas e instituições que cometam discriminação.
Por outro lado, a comunicação pode ser utilizada como agente de manuten-
ção, o que precisa ser combatido. Por vezes, o retrato da população negra trazido
pelos meios de comunicação, ainda que baseado na realidade, reafirma estereótipos,
naturalizando desigualdades. Ainda que sejam dados da realidade, esses estereótipos
acarretam reflexos no mundo simbólico que limitam mais uma vez as oportunida-
des da população negra e outros grupos étnico-raciais historicamente discrimina-
dos. Assim, a estética da linguagem apresenta desafios e potencialidades. Enfim, o
Estatuto da Igualdade Racial dedica os artigos 43 a 46 aos meios de comunicação.

Direitos humanos, justiça, acesso à terra e à cidade


A discriminação racial pode ser enquadrada enquanto crime de racismo, pre-
visto na Lei nº 7.716/1989, ou injúria racial, do artigo 140, § 3º, do Código Penal.
Ambos envolvem a ofensa em razão de raça, cor, etnia, religião ou origem, sendo
que na injúria racial a ofensa se direciona a uma única pessoa. Por outro lado, no
racismo a ofensa é direcionada a um grupo, por exemplo, étnico, como um todo,
de modo generalizado. Em qualquer das situações, caberá ao Ministério Público o
ajuizamento da ação penal, sendo que os casos de injúria racial dependem de repre-
sentação da vítima.
Todavia, é preciso incentivar a denúncia, assim como instruir os agentes de
segurança pública e do Ministério Público acerca da relevância do correto registro
desses crimes. Inicialmente, o registro é devido tendo em vista que a ofensa é pu-
nível. Ainda, é necessário compreender que os registros demonstram a realidade

260
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

de desigualdade racial existente e que, a partir deles, é possível construir políticas


públicas adequadas.
Uma das problemáticas a serem enfrentadas nesse âmbito é também a tipifi-
cação errada dos crimes. Por vezes, casos de injúria racial são registrados enquanto
injúria simples. Ocorre que a injúria simples é crime de menor potencial ofensivo e,
como tal, é encaminhada ao Juizado Especial. Assim, para além do enquadramento
em desacordo com a legislação, o caso não conta com o Ministério Público como
parte autora, fazendo com que a vítima tenha que buscar profissional da advocacia
para ter acesso à promoção de acusação e orientação jurídica.
Por sua vez, o acesso à terra e à cidade, é uma problemática a ser enfrentada.
A Constituição de 1988, em seu artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, assegura às comunidades remanescentes de quilombolas a propriedade
definitiva sobre suas terras. No estado do Paraná, foram reconhecidas pela Funda-
ção Cultural Palmares, por meio da certificação adequada, 35 comunidades, entre-
tanto, até a atualidade, somente uma comunidade teve a terra titulada e a efetivação
desse processo continua em trâmite. O acesso à terra encontra-se disciplinado tam-
bém no Estatuto da Igualdade Racial entre os artigos 27 e 34.
De outra sorte, a situação de vulnerabilidade social em que vive a população
negra restringe também seu acesso à cidade, os benefícios que ela produz e os servi-
ços que disponibiliza. Essa realidade exige também políticas públicas, em especial,
de moradia, conforme previsto também no Estatuto nos artigos 35, 36 e 37.
Por fim, o olhar de direitos humanos possibilita a compreensão da população
negra e outros segmentos étnicos, raciais e religiosos historicamente discriminados
em sua própria diversidade. Nesse sentido, é necessário compreender a transversali-
dade das discriminações, que atinge de forma sobreposta indivíduos que acumulam
determinadas características. Assim, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais (LGBT) negras, por exemplo, vivenciam o preconceito por orientação
sexual e/ou identidade de gênero, somada à discriminação racial. Quando se trata
da violência de gênero, segundo o Mapa da Violência 2015 (WAISELFISZ, 2015),
entre 2003 e 2013, o número de homicídios de mulheres brancas diminuiu 9,8%,
enquanto o de mulheres negras cresceu 54%. Ainda de acordo com o Mapa da Vio-

261
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

lência 2015, as taxas das mulheres e meninas negras vítimas de homicídios aumen-
taram de 22,9% em 2003 para 66,7% em 2013, tendo havido, nessa década, um
aumento de 190,9% na vitimização de negras, índice que resulta da relação entre as
taxas de mortalidade brancas e negras, expresso em percentual.
Cabe apontar que à gestão de políticas públicas de direitos humanos incum-
be promover não apenas atividades de execução direta de políticas, como também a
articulação junto a políticas setoriais. Seu objetivo é assegurar que as especificidades
da população negra e outros segmentos étnicos, raciais e religiosos historicamente
discriminados sejam reconhecidas, de maneira que esses grupos sejam atendidos de
forma digna e integral pelas políticas universais.

Trabalho, moradia, desenvolvimento social, juventude, esporte, turismo,


meio ambiente e saúde
O direito à não discriminação no ambiente de trabalho é expresso na Cons-
tituição de 1988, assim como na Consolidação das Leis do Trabalho e, especifi-
camente em relação à população negra, nos artigos 38 e seguintes do Estatuto da
Igualdade Racial. Entretanto, permanece a desigualdade racial. Segundo o Censo
2010 (IBGE, 2010), o rendimento nominal médio mensal de todos os trabalhos
das pessoas brancas de 10 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência,
encontra-se na casa dos 1.500,00 reais (mil e quinhentos reais), enquanto de pessoas
pretas o valor cai para pouco mais de 1.000,00 (mil) reais e de pessoas pardas não
ultrapassa 950,00 (novecentos e cinquenta) reais.
Diante da situação de vulnerabilidade econômica, as políticas de desenvolvi-
mento social, notadamente de assistência social, devem ter como foco a promoção
de acesso a benefícios a famílias chefiadas por pessoas negras. Ainda que se trate de
uma política universal, a realidade da população negra deve ser levada em conta no
planejamento de ações.
Em relação à juventude negra, a Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial do Ministério dos Direitos Humanos compilou o Plano Juven-
tude Viva. Esse plano se fundamenta no fato de que o homicídio é a principal cau-
sa de morte de jovens (de 15 a 29 anos) negros do gênero masculino. Assim, visa

262
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

enfrentar a vulnerabilidade de jovens em situação de violência física e simbólica.


Para tanto, prevê ações em diversas áreas, que visam promover a inserção de jovens
negros na saúde, cultura, educação, trabalho, emprego e esporte, assim como ações
de capacitação de servidores públicos e de acesso à justiça.
Para implementação do plano foram selecionados municípios prioritários,
ou seja, aqueles onde encontram-se os maiores índices de homicídio de jovens. No
estado do Paraná foram identificados três municípios: Curitiba, Londrina e Foz do
Iguaçu.
As iniciativas em torno do turismo, por sua vez, são capazes de promover o
desenvolvimento local e, principalmente, reconhecer pontos nas cidades que pos-
suem relevância para a história e cultura da população negra e outros segmentos
étnicos, raciais e religiosos historicamente discriminados. Dessa forma, colaboram
para a construção de uma visão positiva e enfrentamento à invisibilidade a que estão
sujeitos esses segmentos sociais.
Ainda, a compreensão da organização e costumes das comunidades tradi-
cionais negras, comunidades de matrizes africanas e outras populações tradicionais
se faz necessário, a fim de construir políticas de meio ambiente que possibilitem
sua manutenção e desenvolvimento sustentável. O racismo ambiental pode ser en-
frentado por meio do diálogo constante com a sociedade, com intuito de conhecer
práticas, como também plantas com significados religiosos.
Por fim, encontra-se estruturada a Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde da População Negra. Instituída pela Portaria nº 992/2009, essa política, ao
identificar as especificidades da saúde da população negra, proporciona a efetivação
do princípio da equidade, que rege a política de saúde universal. Portanto, ficam
estabelecidas responsabilidades aos entes federados para consolidação da atenção
integral à população negra. O direito à saúde aparece também disciplinado no Es-
tatuto da Igualdade Racial, no artigo 6º e seguintes. Tendo em vista outros grupos
sociais historicamente discriminados, cabe trazer também a Política Nacional de
Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, instituída pela Portaria nº
2.866/2011.

263
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Considerações finais
É fato que, para o enfrentamento a toda e qualquer forma de violência contra
a população negra, é necessária a implementação de políticas públicas que reafir-
mem o dever do Estado como garantidor de direitos, especialmente a partir da pro-
moção de políticas que possam corrigir históricas desigualdades raciais, coibindo
práticas racistas e discriminatórias. Cabe ao Estado, portanto, como entidade polí-
tica, a responsabilidade precípua de “organizar, fomentar e implementar, a partir das
demandas da sociedade civil, as políticas públicas que tenham esse fim”, conforme
analisa Bley (2014, p. 333).
Entende-se que a violência contra a população negra, expressa sob variadas
formas de racismo, é, sem dúvida, um problema social de grandes proporções e se
traduz como uma das principais formas de violação dos direitos humanos dessa po-
pulação. Como tal, deve ser coibida, enfrentada e modificada.
Entende-se, também, que o Estado deve ser instrumento a serviço da digni-
dade da pessoa humana, e não o contrário. O princípio da dignidade da pessoa hu-
mana exige, portanto, o compromisso do poder público e o firme repúdio a toda e
qualquer forma de discriminação, seja em razão da cor, da origem, da etnia, religião
ou qualquer outra.
Assim, destaca-se a necessidade imperiosa de que sejam implementadas, por
parte do poder público, políticas, programas e ações – tanto no âmbito federal, es-
tadual quanto municipal – capazes de promover, em consonância com o que reza
a Declaração de Durban (2001), em seu item 10, “o desenvolvimento social iguali-
tário para a realização de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de
todas as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata,
inclusive através do acesso mais efetivo às instituições políticas, jurídicas e adminis-
trativas”.

Referências
ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos:
CEBRAP, São Paulo, n. 43, p. 45-63, 1995.

264
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial

BAZZO, Mariana Seifert. “Mesa Redonda: do Reconhecimento às Estratégias de


Enfrentamento ao Racismo Institucional” (palestra). Secretaria de Estado da Justiça,
Trabalho e Direitos Humanos do Paraná, Curitiba, Paraná, 07 de março de 2017.
BLEY, Regina Bergamaschi. Estado, sociedade e as políticas públicas para as mulheres. In:
SILVA, Eduardo Faria; GEDIEL, José Antônio Peres; TRAUCZYNSKI, Silvia Cristina
(Orgs.). Direitos humanos e políticas públicas. Curitiba: Universidade Positivo, 2014.
BLEY, Regina Bergamaschi; JOSVIAK, Mariane. Programa de aprendizagem para o ado-
lescente em conflito com a lei. In: ARAÚJO, Adriane Reis; FONTENELE-MOURÃO,
Tânia (Orgs.). Trabalho de mulher: mitos, riscos e transformações. São Paulo: LTr, 2007,
BONETI, Lindomar. Políticas públicas por dentro. 3. ed. rev. Ijuí: Unijuí, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,
Centro Gráfico, 1988.
______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial;
altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24
de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasí-
lia, DF, 21 jul. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em: 15 out. 2015.
GEDIEL, José Antônio Peres; MILANO, Giovanna Bonilha. Igualdade racial e territórios
tradicionalmente ocupados por quilombolas. In: SILVA, Eduardo Faria; GEDIEL, José
Antônio Peres; TRAUCZYNSKI, Silvia Cristina (Orgs.). Direitos humanos e políticas
públicas. Curitiba: Universidade Positivo, 2014. p. 351-369.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo
demográfico, 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br>.
Acesso em: 29 nov. 2017.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração e Programa de
Ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação
Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Durban: ONU,
2001.
______. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro UNIC Rio,
agosto 2009. Disponível em: <www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em:
21 nov. 2017.
SECRETARIA DE ESTADO DA JUSTIÇA, TRABALHO E DIREITOS HUMA-
NOS DO PARANÁ – Departamento de Atendimento Socioeducativo. Sistema Infor-
matizado de Medidas Socioeducativas. Paraná: SIMS, 2015.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil.
Brasília: Flacso Brasil, 2016.
______. Mapa da Violência 2016: homicídios por armas de fogo no Brasil. Brasília: Mi-
nistério da Justiça e Cidadania, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (SEPPIR), Flacso Brasil, 2016.
WERNECK, Jurema. Geledés: Instituto da Mulher Negra. CFEMEA: Centro Feminista
de Estudos e Assessoria. Racismo institucional: uma abordagem conceitual. Rio de Janei-
ro: Instituto Geledés, 2013.

265
O papel do Ministério Público na
promoção da igualdade racial: um
olhar sobre a mulher negra
Amanda Ribeiro dos Santos1
Francisco de Jesus de Lima2

Introdução
A promoção da igualdade racial é um dos compromissos assumidos pelo
Poder Constituinte de 1988, com base em movimentos e compromissos interna-
cionais que envolvem o Estado brasileiro, como a Convenção Internacional sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – CIEDR (1965) e a
Conferência Mundial contra o Racismo de Durban (2001). O avanço nessa seara
exige necessariamente a compreensão acerca das bases fundantes da sociedade, sob
a perspectiva das relações de raça, gênero e classe, as quais exigem um olhar diferen-
ciado sobre a mulher negra, em situação de vulnerabilidade nessas três dimensões.
É preciso reconhecer que o negro é visto por muito tempo sem his-
tória. Os ensinamentos proporcionados na educação básica, por exemplo, se
limitam ao sujeito escravo. Não há um questionamento sobre a origem das
pessoas de origem africana que forçadamente pisaram em solo brasileiro e ti-
veram suas vidas modificadas radicalmente.
1
Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Bacharela em Direito pela
Universidade Católica de Brasília. Pós-Graduada em Direito Constitucional pela Universida-
de Católica de Brasília. Membro do Fórum Permanente de Justiça e Igualdade Racial. E-mail:
amandards@mppr.mp.br.
2
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Piauí, com atuação no enfrentamento
à violência doméstica e familiar contra a mulher. Bacharel em Direito pela Universidade Federal
do Piauí. Pós-Graduado em Direito Público pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Mem-
bro do Fórum Permanente de Justiça e Igualdade Racial. E-mail:franciscodejesus@oi.com.br.
266
O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial

Trata-se de narrativa que se inicia do meio ou, mais honestamente, do pró-


prio fim trágico. Não obstante tal omissão histórica, não se pode negar a grande
contribuição dos esforços do povo escravizado neste solo brasileiro para a constru-
ção e desenvolvimento do país, além de toda a influência cultural e filosófica, que de
todo modo é silenciada.
A percepção no sentido de que o racismo é o instrumento necessário para
propiciar a dominação dos negros e fazê-los escravos durante tanto tempo se reve-
la essencial. É uma engrenagem complexa e muito eficaz ainda hoje utilizada para
mantê-los em posições inferiores definidas socialmente.
Modernamente, os teóricos em regra abordam conceitualmente o racismo
como um sistema complexo e amplo, o qual se evidencia arraigado e naturalizado
nas estruturas da sociedade, de modo a ser determinante no tratamento dispensado
às pessoas em situação de vulnerabilidade racial ( JONES, 2002).
É necessário compreender como o racismo é estruturado e afeta, especifi-
camente, a mulher negra na sociedade brasileira, a fim de ressaltar a extrema vul-
nerabilidade social e possibilitar a atuação adequada e eficaz. Não há como negar
as falhas em políticas, práticas, normas, percepções e comportamentos, capazes de
definir oportunidades e valores para pessoas e populações a partir de sua aparência.
Nesse contexto, há que se questionar o papel do Ministério Público como
agente de transformação social, tão festejado desde o advento da Constituição de
1988. Há como falar em justiça social dissociado das questões raciais? Há como
pensar em igualdade para todos, omitindo-se a discussão sobre o racismo institucio-
nal? E a mulher negra?

O Ministério Público e a promoção da igualdade racial


Com o advento da Constituição de 1988, o perfil do Ministério Público
como ente estatal foi renovado, de forma que a instituição alcançou um papel de
relevante e renomado destaque como agente de transformação social, sob a ótica
especialmente dos artigos 127 e 129, os quais tratam expressamente da missão fun-
damental de combater as disfuncionalidades da realidade social.

267
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

No que diz respeito ao enfrentamento ao racismo, o Poder Constituinte ex-


pressou mandamentos constitucionais de atuação, na medida em que o tornou, por
exemplo, crime inafiançável e imprescritível, além de enfatizar o direito de igualda-
de, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5°, caput, da Constituição de 1988).
O racismo precisa ser compreendido sob a perspectiva de formação da socie-
dade brasileira e os reflexos na atuação do Estado e, por conseguinte, nas políticas
públicas. É preciso enfrentar o tema de maneira adequada, sob a perspectiva do en-
tendimento reflexivo sobre as bases civilizatórias da sociedade, as relações de poder,
assim como as dimensões raça, classe e gênero.
O Estado brasileiro deve se questionar sobre a solução dessa discrepância da
sociedade brasileira. É sabido que é um processo longo, porém deve ser iniciado sob
um olhar amplo, que passa necessariamente pela educação, inclusão social e cons-
cientização. Essa complexidade é um desafio para atuação do Ministério Público e o
cumprimento efetivo das suas missões institucionais.
É importante refletir ainda que a concretização dos direitos de maneira igua-
litária para todos é fundamental para o alcance do seu caráter libertador e, por con-
seguinte, a justiça social e racial:

[…] no que toca às classes marginalizadas da população, uma inefe-


tividade das normas de direitos humanos sob o aspecto preventivo
(ou pré-violatório), o que acaba por desencantar o discurso utópico
previst0 na teoria. Por isso, é possível afirmar, parafraseando Bobbio,
que as classes marginalizadas da população vivem uma verdadeira
‘era do desrespeito dos direitos’, já que as normas internacionais de
direitos humanos muitas vezes não possuem qualquer efetividade
perante os menos favorecidos, servindo apenas como mero instru-
mento ideológico para a manutenção do status quo. Em síntese, os
direitos humanos encantam na teoria, com seu conteúdo emancipa-
tório e libertário, mas na prática não chegam ao menos favorecidos
de forma preventiva, restando ao Direito apenas a dimensão repres-
siva, ou seja, atuar na reparação de violações de direitos humanos já
ocorridas. (PAIVA; HEEMANN, 2017, p. 633-634).

O Ministério Público deve fomentar a consciência aprofundada e valoriza-
ção da diversidade brasileira, a produção do conhecimento científico, a capacitação
dos profissionais, a promoção de mudanças de comportamento, por meio da for-
268
O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial

mação e treinamento adequados para lidar com a invisibilidade da questão racial na


sociedade brasileira, bem como as peculiaridades da vulnerabilidade da população
negra.

O reconhecimento da vulnerabilidade da mulher negra
O racismo brasileiro é extremamente perverso, porque naturalizou as viola-
ções da população negra. O próprio oprimido necessita de um processo de autoco-
nhecimento e, também, da construção de uma percepção reflexiva da sociedade para
compreender a dinâmica diária da desumanização. É um longo processo, ainda em
andamento, para quem vivencia e também para o outro que não percebe, tampouco
sente diariamente. É preciso um esforço para sair da zona de conforto e buscar, jun-
tos, todo o entendimento necessário e iniciar o tão desejado processo de mudança
social.
Nessa tessitura, a situação da mulher negra na sociedade brasileira deve ser
objeto de uma profunda e muito mais complexa reflexão, tendo em vista a extre-
ma vulnerabilidade do grupo social. Há que se pensar na condição social, gênero e
raça de maneira diferenciada, visto que ao longo da história sofrem as mais diversas
violações. Ressalte-se que, por vezes, essa mesma mulher que ora tem seus direitos
violados encontra-se sujeita à culpabilização pela violência sofrida, em especial, as
mulheres negras, cujo contexto social amplifica a dimensão da violência e se traduz
em espaço de isolamento e enfraquecimento.
Em razão do passado escravocrata, a mulher negra sempre exerceu atividade
laborativa penosa, ora como escrava, ora como empregada doméstica. Dessa manei-
ra, políticas públicas adequadas não podem distanciar-se dessas vivências específi-
cas, sob pena de falha inicial de estratégia e enfrentamento. Nesse sentido (SILVA,
2013):

Decerto, é imprescindível concentrar estratégias de superação em


um grupo social reconhecidamente mais afetado pela pobreza e
atuar sobre as dimensões que mais precarizam as condições de vida
desta população. Contudo, é igualmente demandado que o foco das
políticas públicas direcione-se para a análise dos processos que con-
tribuíram para este estado de coisas, remetendo à necessidade de in-

269
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

serir a perspectiva de raça e gênero nas políticas públicas, promoven-


do a realização da proposta da transversalidade, como ressignificação
das políticas públicas.
Desse modo, a incorporação da perspectiva racial e de gênero nas po-
líticas públicas deve perpassar desde sua formulação até os mecanis-
mos de avaliação, de maneira a contemplar meios de empoderamen-
to destes grupos e de superação das desigualdades, bem como avaliar
como estratégias pretensamente neutras atuam sobre estes aspectos.
Ademais, neste contexto, propõe-se aprofundamento da adoção de
ações afirmativas e o essencial desenvolvimento de instrumentos de
gestão que possam dar o devido suporte a estas iniciativas […] (SIL-
VA, 2013, p. 129).

Uma das maiores dificuldades é compreender a dinâmica e o caráter multifa-


cetário do racismo institucional. De acordo com Djamila Ribeiro (2017), o próprio
feminismo universalizou a categoria mulher, o que impossibilitou o aprofundan-
do diálogo sobre as variadas formas de pensar a mulher. Tal perspectiva inviabili-
zou também o tratamento adequado da posição mais vulnerável da mulher negra.
Como bem pontua a filósofa (2017, p.41):

Quando muitas vezes é apresentada a importância de se pensar po-


líticas públicas para mulheres, comumente ouvimos que as políticas
devem ser para todos. Mas quem são esses ‘todos’ ou quantos cabem
nesses ‘todos’? Se mulheres, sobretudo, negras, estão num lugar de
maior vulnerabilidade social justamente porque essa sociedade pro-
duz essas desigualdades, se não se olhar atentamente para elas, se im-
possibilita o avanço de modo mais profundo. Melhorar o índice de
desenvolvimento humano de grupos vulneráveis deveria ser entendi-
do como melhorar o índice de desenvolvimento humano de uma ci-
dade de um país. E, para tal, é preciso focar nessa realidade, ou como
as feministas negras afirmam há muito: nomear. Se não se nomeia
uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade
que segue invisível.

Nesse contexto, diversos estudos identificam e apontam os maiores riscos


sociais a que estão sujeitas as mulheres negras:

As mulheres negras/indígenas são o conjunto populacional que


apresentam condições de vida mais adversas nas nossas sociedades.
Estas decorrem de duas fontes de discriminação social: de um lado,

270
O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial

da maior dificuldade de mobilidade social das pessoas de raça negra/


indígena, e de outro, da precariedade da inserção social no mercado
de trabalho. Ser mulher, pobre e negra/indígena define uma situação
socioeconômica extremamente vulnerável. (PEREIRA, 2004, p. 5).

Dessa forma, o Ministério Público, precisa disponibilizar espaços institucio-


nais para que as vivências dos grupos vulneráveis tenham lugar para ser externadas e
compreendidas de modo aprofundando, com o objetivo de fomentar a articulação
de políticas públicas específicas e direcionadas para o tratamento adequado da desi-
gualdade racial, especialmente da mulher negra por se encontrar sujeita a múltiplas
violações de direitos.

Um novo olhar e o papel do Ministério Público


O Ministério Público, como agente transformador da realidade social, assim
como o Constituinte de 1988 desenhou, tem o papel de buscar atuações de sensibi-
lização do grupo social e político, com base principalmente nos dados estatísticos
que demonstram a extrema desigualdade social e racial, integrando um esforço inte-
rinstitucional cumprindo à risca sua missão de produzir, articular e contribuir para
que seja gerado conhecimento capaz de alterar, de fato, a realidade ainda vivenciada
neste país.
É inadiável fomentar a desconstrução e iniciar o processo de transformação
que é tanto necessária para a sociedade brasileira. Esse questionamento deve orien-
tar a prática diária, os atendimentos na promotoria, a postura no âmbito coletivo e
em todos os espaços que o promotor e a promotora de Justiça buscam concretizar a
vocação constitucional.
De forma igualmente importante, o Ministério Público tem o dever de pro-
mover a articulação dos agentes em busca de políticas públicas voltadas para as desi-
gualdades que afetam de forma direta a mulher negra, tendo em vista as dimensões
raça, classe e gênero.
É sabido que durante muito tempo e até hoje mesmo após a edição da Lei
nº 10.639 de 2003, a importância do povo negro para a construção social, política,
econômica e cultural do país ainda é colocada em segundo plano. Essa introdução

271
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

normativa inseriu modificações curriculares, a fim de tornar obrigatório o ensino


sobre a histórica e cultura da África na educação básica, essencial para a superação
do racismo profundamente arraigado na sociedade brasileira.
No ambiente escolar, o racismo se revela na disseminação de estereótipos ne-
gativos da população negra, no eurocentrismo dos conteúdos curriculares, na resis-
tência de discussão sobre a literatura e cultura afrodescendentes, principalmente de
cunho de preconceito religioso. Tal contexto que permanece em muitos ambientes
escolares é uma das facetas do racismo institucional e afeta diretamente a percepção
da mulher negra na sociedade brasileira, muitas vezes desumanizada e ridicularizada.
Esse conjunto de ideias e pensamentos necessariamente se reproduz nos es-
paços de poder de maneira irreflexiva, combinando-se com a estrutura sistemática,
política e ideológica de exclusão, que se perpetua ao longo do tempo.
Com o advento do Estatuto da Igualdade Racial, Lei nº 12.288, de 20 de
julho de 2010, após longos dez anos de tramitação legislativa e muitos outros de
debate sobre a temática racial, fixou-se um importante marco, nada obstante a na-
tureza muitas vezes meramente programática, sobre as relações sociais pautadas na
discriminação racial e a necessidade de construção de outra visão de mundo.
Dessa maneira, é imprescindível a busca da valorização da identidade dentro
da diversidade brasileira, de modo a propiciar práticas destinadas a “uma das formas
de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz
muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da
realidade” (SOUSA, 1983, p. 17).
Não se pode olvidar que “a história da submissão ideológica de um estoque
racial em presença de outro que se lhe fez hegemônico. É a história de uma identi-
dade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam o preço do reconhe-
cimento ao negro com base na intensidade de sua negação” (SOUSA, 1983, p. 23).
No tempo da escravidão, o racismo veio para a sociedade ideologicamente
aceitar a submissão de um ser humano aos horrores das senzalas. Primeiro, foi preci-
so retirar a humanidade daquelas pessoas, cortando os laços familiares e de amizade
e apagando a sua história. Uma das faces do silenciamento, que modernamente as-
sume outras formas igualmente cruéis de violação naturalizada.

272
O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial

O horror da escravidão foi especificamente mais doloroso para as mulheres.


A filósofa americana Angela Davis, em sua obra Mulheres, raça e classe, apresenta um
paralelo sobre as relações homem-mulher nas comunidades escravizadas, as quais
incomodavam os motores da escravidão de tal forma a provocar castigos mais seve-
ros como forma de dominação e sujeição da mulher negra.
O desmembramento de integrantes da mesma família também foi utilizado
como estratégia de silenciamento e enfraquecimento das forças de resistência apli-
cadas pelo colonizador, o qual afeta diretamente a mulher negra e escravizada que
convivia com a perda de filhos e marido para o comércio de pessoas. Na sociedade
atual, a mulher negra percebe tal prática de modo reformulado, com a violência
urbana que atinge em percentuais superiores os jovens negros.
Dessa maneira, é necessário o olhar sensível, diferenciado e contextualizado
sobre a mulher negra na sociedade brasileira. Na atuação do Ministério Público em
prol da defesa coletiva de interesses e direitos de promoção racial, a atuação deve
partir do conhecimento aprofundado da história do negro, do seu ponto de vista,
dentro da sua humanidade, para sensibilizar e direcionar a prática diária.
É sabido que a sociedade brasileira é marcada por racismo institucional, o
que necessariamente atinge a própria estrutura do Ministério Público. Assim, como
agente transformador em busca da justiça social, o Ministério Público deve passar
primeiro por uma transformação ainda mais profunda da própria percepção de
agente social que se desenvolve desde a inaugurada pela Constituição de 1988.
Os agentes públicos têm o dever de buscar a desconstrução ideológica do
mito da democracia racial em que contraditoriamente há um padrão branco euro-
peu estabelecido. Essa forma de pensar permeia a nossa educação, a cultura e, por
consequência, reflete nas engrenagens do sistema judiciário.
E principalmente os atores do sistema judiciário precisam entender o racis-
mo institucional como ele interfere na sociedade e desequilibra o pacto democrá-
tico, visto que são o palco em que há busca de reparação e repressão às violações de
direitos rotineiramente vivenciadas e naturalizadas.
Nessa tessitura, o Ministério Público também deve se envolver no processo
de ruptura do silenciamento histórico da vulnerabilidade da mulher negra, prin-

273
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

cipalmente porque “livre de contingências ou vicissitudes político-institucionais,


pode o Ministério Público em muito contribuir para um eficaz sistema de acompa-
nhamento e promoção da igualdade racial no Brasil” (SILVA; SOARES FILHO,
2013, p. 6). É preciso pontuar e identificar as violações pelas vozes do próprio su-
jeito, de maneira a desencadear o reconhecimento da sua humanidade e, por conse-
guinte, a sua emancipação e autonomia, o que deve ser potencializado pela atuação
ministerial.

A construção de políticas públicas de promoção de igualdade racial


voltadas para a mulher negra
Nos dias atuais, surge a importância de pensar em políticas públicas segundo
uma dimensão mais ampla, de modo a abranger as fases de planejamento, progra-
mação e atuação, com o intuito de avaliar os melhores caminhos que devem ser
seguidos pelo Estado para alcançar tão logo a concretização dos direitos fundamen-
tais de promoção da igualdade racial.
Não vivenciar a potencialidade das nossas diversidades implica necessaria-
mente desigualdade chancelada pela própria sociedade e seus agentes estatais, de
maneira que o Ministério Público não pode ser coadjuvante na necessária mudança
dessa triste realidade.
Nessa temática, é importante reconhecer as diversas nuances que envolve o
racismo. O gestor público tem o dever de compreender a dinâmica das relações so-
ciais de gênero, raça e classe, a fim de possibilitar o reconhecimento das atitudes,
palavras e atos que consistem em violações diárias. São diversas posturas do coti-
diano que não são percebidas, pois foram naturalizadas, nas quais a mulher negra é
retratada em um patamar inferior e principalmente silenciada.
A formulação de políticas públicas adequadas não pode se olvidar de refletir
sobre esses aspectos, pois todos somos responsáveis pela reconfiguração da socieda-
de brasileira. É preciso aprofundar a percepção no sentido de que a violência racial
à mulher negra não se resume apenas a uma dimensão excludente, mas também en-
volve violência moral e psicológica, que prejudicam o reconhecimento da sua iden-
tidade e a compreensão do seu lugar na sociedade.

274
O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial

É imprescindível inaugurar a postura de escuta qualificada das pessoas em


situação de vulnerabilidade dentro da estrutura social. Assim:

Uma afirmação da importância da autodefinição e da autoavaliação


das mulheres negras é o primeiro tema chave que permeia declarações
históricas e contemporâneas do pensamento feminista negro. Auto-
definição envolve desafiar o processo de validação do conhecimento
político que resultou em imagens estereotipadas externamente de-
finidas da condição feminina afro-americana. Em contrapartida, a
autoavaliação enfatiza o conteúdo específico das autodefinições das
mulheres negras, substituindo imagens externamente definidas com
imagens autênticas de mulheres negras (COLLINS, 2016, p. 102).

A filósofa Djamila Ribeiro defende novas bases civilizatórias. Aborda os si-


lêncios e questiona a dimensão dos silêncios que compõe a população negra. Nesse
contexto, é preciso questionar também os silêncios institucionais: a necessidade de
entender o racismo dentro da estrutura da sociedade brasileira e na resistência de
políticas públicas de promoção da igualdade racial.
Os gestores públicos precisam incentivar espaços para uma escuta verdadeira
e a disposição para desconstrução racista, de formar a conferir a importância para a
narrativa e perceber as questões raciais vinculadas. Para Crenshaw (2002):

[…] do mesmo modo que as vulnerabilidades especificamente liga-


das a gênero não podem mais ser usadas como justificativa para negar
a proteção dos direitos humanos das mulheres em geral, não se pode
também permitir que as diferenças entre mulheres marginalizem
alguns problemas de direitos humanos das mulheres, nem que lhes
sejam negados cuidado e preocupação iguais sob o regime predomi-
nante dos direitos humanos. (CRENSHAW, 2002, p. 173).

Nessa tessitura, o Ministério Público tem o dever constitucional de incenti-


var os questionamentos sobre o modelo de sociedade que seus integrantes desejam.
A revolução necessita de revisitação da nossa herança escravocrata, para enfrenta-
mento das desigualdades raciais e promoção de microrrevoluções diárias, traduzin-
do-se como uma necessidade coletiva de uma organização em prover um serviço
apropriado e profissional considerando a multiplicidade de sujeitos e contextos.

275
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Considerações finais
Diante de todo o exposto, considera-se que no contexto brasileiro a ausência
de uma reflexão que articule as relações raciais, de gênero e geracionais em diversos
espaços de sociabilidade tem impedido a promoção de relações interpessoais respei-
táveis e igualitárias entre as pessoas que integram o cotidiano de nossa sociedade.
Silenciar sobre os impactos dessas questões contribui para que as diferenças – entre
os indivíduos e grupos – sejam entendidas como desigualdades naturais.
É necessário apontar e enfatizar o imaginário socialmente construído sobre a
naturalização das violações de direitos, baseadas nas dimensões raça, classe e gênero,
o qual justifica a inércia da sociedade e do Estado diante da urgente reformulação
do pacto de humanidade, resgatando sujeitos que são sistematicamente excluídos.
Entende-se que, por meio da prevenção, monitoramento, avaliação e, ainda,
oferecendo novos elementos para a construção de diagnósticos, planos de ação e
indicadores que permitam o enfrentamento do racismo, contribuir-se-á para a cria-
ção de um ambiente favorável à formulação e implementação de políticas públicas,
buscando uniformizar o acesso a seus benefícios.
A vulnerabilidade da mulher negra em seus diversos aspectos deve sensibi-
lizar e transformar a atuação do Ministério Público na busca da igualdade racial,
considerando ainda a riqueza de vivências das múltiplas narrativas, a fim de orientar
a atuação prioritária sob o viés democrático.
É preciso concretizar a convenção do Estado e sociedade no sentido de em-
preender esforços para alcançar a igualdade racial, por meio de políticas públicas
que levem em consideração as vozes historicamente silenciadas nos espaços cole-
tivos. A conscientização, inclusão social e educação são instrumentos necessários
também para propiciar o compromisso individual com a ética e a justiça social.
Não há mais espaço para inércia do Estado e da sociedade e, nesse contexto, o
Ministério Público tem a missão constitucional de assumir o protagonismo no lon-
go processo de lançamento de novas bases civilizatórias e democráticas, permeadas
pela efetiva concretização dos direitos humanos para todos.

276
O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,
Centro Gráfico, 1988.
______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; al-
tera as Leis n.7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de
julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 21 jul. 2010.
COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica
do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-113, 2016.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00099.pdf>.
Acesso em: 28 fev. 2018.
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discrimi-
nação racial relativo ao gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p.
171-188, 2002.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo:
Bointempo, 2016.
JONES, C. P. Confronting institutionalized racism. Phylon, Atlanta v. 50, n. 1, p. 7-22,
2002.
PAIVA, Caio Cézar; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência internacional de
direitos humanos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2017.
PEREIRA, Hildete. Gênero e pobreza: uma agenda em debate. Quito: CEPAL, 2004.
Disponível em: <https://www.cepal.org/mujer/reuniones/quito/HildeteQuito2.pdf>.
Acesso em: 15 fev. 2018.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? São Paulo: Letramento, 2017.
SILVA, Eliezer Gomes da; SOARES FILHO, Almiro Sena. O racismo institucional e
o papel do Ministério Público Brasileiro na implementação do Estatuto da Igualda-
de Racial (lei 12288/10) – ou por que não devemos esperar mais 45 anos para levar
a sério a Convenção da ONU contra a Discriminação Racial. Curitiba: Ministério
Público do Paraná, 2013. Disponível em: <http://www.mppr.mp.br/arquivos/File/im-
prensa/2013/ESTATUTOIGUALDADERACIAL_DrEliezerDrAlmiro.pdf>. Acesso
em: 19 nov. 2017.
SILVA, Tatiana Dias. Mulheres negras, pobreza e desigualdade de renda. In: MARCON-
DES, Mariana Mazzini et al. (Orgs.). Dossiê mulheres negras: retrato das condições de
vida das mulheres negras no Brasil. Brasília, DF: IPEA, 2013. p. 109-131. Disponível em:
<http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/livro_dossie_mulheres_negras.pdf>.
Acesso: 07/03/2018.
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro
em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

277
Classe média negra de Maringá
Rosângela Rosa Praxedes1

Introdução
O estudo sobre a mobilidade social ascendente da população brasileira, em
particular o aumento apontado por diferentes estudos demográficos das classes mé-
dias em relação aos demais segmentos populacionais, leva-nos a uma reflexão sobre
as desvantagens raciais relacionadas à ascensão social dos indivíduos considerados
negros. Pesquisas indicam que a sociedade brasileira tem proporcionado algumas
oportunidades de mobilidade social aos seus membros.
Em números, a proporção da população de classe média, em relação ao con-
junto da população brasileira, é de “um pouco mais de 15,4 milhões de famílias de
classe média, o que equivaleu a 31,7% do total de famílias existentes no país.” A
quantidade de indivíduos que podem ser considerados como de classe média no
Brasil é de aproximadamente 57,8 milhões de brasileiros. De acordo com alguns
levantamentos de dados, embora a classe média no Brasil tenha crescido em termos
relativos e absolutos, entre a população negra esse crescimento foi significativamen-
te menor. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a
quantidade de negros pertencentes à classe média ainda é muito pequena. Apesar
disso, a classe média negra das capitais brasileiras teve um crescimento relativo de
10% entre os anos de 1992 e 1999, chegando ao patamar de um terço da classe
média brasileira.
Este estudo refere-se à cidade de Maringá, que está situada ao norte do estado
do Paraná, a 440 quilômetros da capital, Curitiba, e a 720 quilômetros da cidade de
São Paulo. A população estimada no ano de 2003, segundo o Instituto Brasileiro de
1
Mestre em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em
Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Doutoranda em Antropologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
278
Classe média negra de Maringá

Geografia e Estatística (IBGE), foi de 300.300 habitantes. Maringá está presente no


ranking das 100 cidades com maior número de famílias de classe média, em 2005,
ocupando a 52ª posição, com um número de 42.700 famílias de classe média. Com
relação à classificação racial realizada pelo IBGE, de acordo com o Censo demográ-
fico do Brasil, em 1991, no Paraná, a população da cidade era de 240.292 habitan-
tes, sendo que a população branca era composta por 177.427 habitantes, a preta era
composta por 5.485 habitantes, a parda por 47.541 habitantes, a indígena por 114
e a amarela por 9.683 habitantes.
Convém esclarecer que a questão central que orientou o desenvolvimento
deste artigo objetivava evidenciar algumas variáveis que contribuem para a iden-
tificação das posições sociais e estilo de vida de indivíduos negros e que indicam a
formação de uma classe média negra em Maringá. No desenvolvimento deste estu-
do levou-se em consideração uma representação do espaço social como um espaço
em que é possível a ascensão social. Entretanto, os cidadãos negros de classe média
muitas vezes desconsideram o fato de o racismo existente na sociedade brasileira
tornar suas perspectivas de ascensão frustradas, o que corresponde a reconhecer-
mos que um conjunto de possibilidades teoricamente existentes, na prática, pode
se tornar inviável para um negro no Brasil, limitando efetivamente o campo de suas
possibilidades, já que nem sempre o capital cultural acumulado pelos negros pode
ser convertido em uma posição social correspondente.
Uma hipótese investigada neste artigo é a existência de um determinado pa-
drão de consumo que influenciaria na constituição da identidade dos indivíduos
negros, de modo a levá-los a utilizarem-se do consumo como estratégia de distinção
e distanciamento em relação aos outros negros e demais segmentos que se situam na
base da pirâmide socioeconômica do país. Além da busca por um consumo diferen-
ciado, investigamos se o pertencimento a uma categoria de profissionais com nível
de escolaridade universitário, com prestígio social, que não desempenha atividades
manuais e que possui um nível de remuneração que propicia o consumo menciona-
do acima, pode também ser considerada uma outra âncora da identidade da classe
média negra em Maringá.

279
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Posição social e estilo de vida de um conjunto de indivíduos considerados


negros de classe média na cidade de Maringá
Na pesquisa sobre um conjunto de negros de classe média na cidade de Ma-
ringá, realizei a aplicação de um questionário que possibilitou o levantamento de
informações sobre parte da trajetória e o estilo de vida, abordando origem geográfi-
ca, nível de escolaridade dos pais, religião, trajetória educacional, e um conjunto de
questões que buscavam evidenciar a posição social e estilo de vida dos informantes.
É importante frisar que se levou em consideração neste estudo uma ressalva apresen-
tada por Oracy Nogueira, no tocante à constatação da existência ou não de agrupa-
mentos classificáveis segundo “cor ou raça” dos seus membros, uma vez que:

as expressões ‘grupo preto ou negro’, ‘grupo branco’ ou ‘grupo par-


do’ empregadas em relação ao Brasil, têm antes o sentido de conjunto
de indivíduos com esta ou aquela aparência física, do que de ‘grupos
sociais’, já que estes implicam uma organização específica, não cor-
respondente à mera soma ‘estatística dos indivíduos’. (NOGUEIRA,
1979, p. 89).

A ideia que norteou a elaboração das questões foi inspirada no raciocínio de


Bourdieu, segundo o qual:

a cada classe de posições corresponde uma classe de habitus (ou


de gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados
à condição correspondente e, pela intermediação desses habitus
e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens
e de propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo.
(BOURDIEU, 1996, p. 21).

Para a elaboração desse questionário objetivei coletar informações que pos-


sibilitassem a análise das posições sociais ocupadas, relacionadas às disposições, ou
habitus, segundo Bourdieu (1996), e as tomadas de posição (escolhas) estabelecidas
pelos agentes em sua trajetória. Nesse sentido, as respostas às questões forneceram
informações sobre o espaço social de origem do agente, como o local e ano de nasci-
mento, grau de instrução, tipo de instituição em que realizou seus estudos (escolas
e faculdades, particulares ou públicas), grau de instrução e profissão dos pais, dados

280
Classe média negra de Maringá

que possibilitaram uma comparação com as posições sociais já ocupadas pelo infor-
mante e pelos membros do seu grupo familiar de origem.
Considera-se, assim, que quanto mais se aproximam as dimensões capital
econômico e capital cultural, mais elementos existem em comum, que podem fa-
vorecer a identificação e o sentimento de pertencimento a um segmento social. Os
dados também possibilitaram a constatação de possíveis situações de mobilidade
social ascendente do informante comparando com sua posição social atual. Outras
questões respondidas trouxeram informações sobre a possibilidade da existência
de marcas de distinção, relações de proximidade ou distanciamento de padrões de
consumo e de hábitos mais comuns associados a determinados grupos sociais. Em
algumas questões o objetivo era avaliar a posição social ocupada pelo agente relacio-
nando-a a rendimentos pessoais associados ao seu estilo de vida.
Realizei a aplicação dos questionários entre julho de 2004 e fevereiro de
2005. Um aspecto que constatei durante a aplicação do questionário foi que alguns
dos informantes sentiam-se constrangidos em falar de situações de discriminação
racial sofridas diretamente, enquanto outros discorriam longa e detalhadamente
sobre o tema, estes argumentaram sobre as poucas oportunidades de falarem aber-
tamente a respeito de discriminação contra negros em nosso país. Um desconfor-
to aparente surgia na questão referente à escolaridade dos pais, que em geral eram
analfabetos ou com poucos anos de escolaridade. Alguns informantes mostraram-se
constrangidos em admitir a pouca ou nula escolaridade dos pais.

“Cor ou raça” e discriminação


Uma das questões iniciais do questionário aplicado referia-se à “cor” do
informante. Nesse momento, é importante ressaltar como se deu a escolha desses
informantes, quais os critérios que utilizei para classificá-los como negros. Para a
classificação de negros recorri à classificação de “cor ou raça” congruente com as
reflexões teóricas de Nogueira (1979) sobre o preconceito de marca existente no
Brasil, e utilizei também o critério adotado pelo IBGE de classificação racial, consi-
derando a autoidentificação e considerando negros os indivíduos que se autoclassi-
ficam como preto ou pardo.

281
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Por outro lado, a dificuldade de identificação dos informantes que surgia


quando a questão era cor trouxe-me algumas situações inusitadas. Em certa situa-
ção, uma amiga indicou-me uma pessoa para a pesquisa. Minha amiga é “branca” e
definiu tal pessoa, que é ocupante de uma profissão prestigiosa e muito respeitada
socialmente, como negra. Fui conversar com esse informante de pele quase escura,
lábios grossos, nariz achatado, cabelos muito crespos e que se autoidentificou como
branco, o que me levou a descartar o questionário respondido pelo mesmo. Porém,
além da minha amiga, no decorrer da pesquisa mantive contato com outras pes-
soas que me indicaram esse mesmo profissional, pois o viam como negro. Durante
a pesquisa outro momento mostrou como a autoidentificação às vezes não coincide
com a identidade atribuída pelos outros, a chamada heteroatribuição. Nesse caso,
o informante se considera um afrodescendente, falou de sua ancestralidade negra
miscigenada entre portugueses e espanhóis, mas me disse enfaticamente que nunca
sofreu discriminação racial, dando a entender que os outros não o viam como negro,
mas sim como um profissional que ocupa uma posição de prestígio elevado. Ocorre,
porém, que as indicações que me deram sobre esse profissional, expressando res-
peito pelo seu profissionalismo e retidão ética, identificavam-no como negro. Em
duas ocasiões, em círculos de conversa em que eu não estava presente, mas no qual
participava um outro informante desta pesquisa, só havia brancos e a discussão era
sobre problemas envolvendo irregularidades na administração pública da cidade, e
as atitudes e encaminhamentos legais defendidos pelo primeiro informante foram
nas duas ocasiões “explicados” como decorrentes de ele ser negro. Em uma reunião
de pessoas influentes na cidade, descontentes com atitudes legais tomadas por esse
profissional negro, um alto dirigente do campo educacional de Maringá chegou a
tecer o seguinte comentário: “não se pode falar isso, mas olha a cor dele.” Ou seja, as
atitudes do meu informante não eram aceitas por essas pessoas por motivos políti-
cos e legais, mas a argumentação de refutação de seus atos era pautada na questão
racial.
Apesar desses impasses de definições no decorrer da pesquisa, ao final es-
colhi os questionários dos informantes cujo fenótipo não deixava dúvidas sobre a
sua ancestralidade negra, mas que ao mesmo tempo assumiam a autoidentificação

282
Classe média negra de Maringá

como negros, algumas vezes recorrendo à memória de sua ancestralidade. Em casos


mais difíceis, considerei a identidade atribuída socialmente para utilizar ou não o
questionário aplicado, mas, em alguns casos em que o possível informante não era
passível de ser classificado como negro no Brasil, não apliquei o questionário, mes-
mo que a pessoa se considerasse negra, por ter mãe negra.
É necessário levarmos em consideração os problemas de classificação de “cor
ou raça” mencionados acima, pois os mesmos nos remetem à percepção das dificul-
dades enfrentadas por esses afrodescendentes com relação à sua identidade, o que
corrobora com a afirmação do professor Kabengele Munanga, segundo a qual “con-
fundir o fato biológico da mestiçagem brasileira (a miscigenação) e o fato transcul-
tural dos povos envolvidos nessa miscigenação com o processo de identificação e
de identidade cuja essência é fundamentalmente político-ideológico, é cometer um
erro epistemológico notável.” (MUNANGA, 1999, p. 108).

Posição social e escolaridade


A partir do questionário aplicado, tivemos acesso a algumas informações so-
bre as posições sociais ocupadas pelos informantes, permitindo uma comparação
com as posições sociais já ocupadas anteriormente pelos mesmos e com as posições
sociais ocupadas por seus pais, possibilitando a indicação de “mobilidade social in-
tergeracional”2. Também obtivemos informações sobre as origens geográficas, reli-
giosas e educacionais dos agentes sociais pesquisados. Esses indicadores possibilita-
ram a compreensão das condições socioculturais familiares dos informantes.
Dos 32 questionários aplicados, 20 informantes eram do sexo masculino e
12 do sexo feminino. Essa presença desigual dos dois gêneros foi aleatória, muito
embora possa indicar uma maior presença de homens negros que podem ser classi-
ficados como pertencentes à classe média, o que condiz com as informações sobre
o mercado de trabalho nacional disponibilizadas pelo IPEA, que apontam as mu-
lheres negras como ocupantes das posições menos prestigiosas e que percebem os
menores rendimentos (SOARES, 2000).
Pudemos constatar que os informantes eram filhos de pais que, na maioria
dos casos, não tiveram uma quantidade de anos de formação escolar que se aproxime

283
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

da situação atual destes, ou seja, os informantes fazem parte da primeira geração em


suas famílias nucleares que puderam alcançar níveis mais elevados no que se refere à
educação formal, tendo acesso à obtenção de títulos que esta proporciona. Entre os
pais dos informantes, quatro não obtiveram nenhum tipo de instrução escolar, seis
cursaram o primário incompleto, quatro eram analfabetos, dois alfabetizaram-se
quando adultos, quatro cursaram o ensino secundário ou médio e quatro o ensino
superior completo.
Nesse sentido os estudos de Pastore e Silva nos indicam que:

quando se analisam os indivíduos que estão no estrato baixo inferior


(trabalhadores rurais), verifica-se que mais de 90% têm origem no
mesmo estrato. Entre eles, a imobilidade é grande. Quem está nesse
estrato é porque, seus pais também estiveram nele. Em outras pala-
vras, para quem está nessa situação, o peso da herança social foi de
grande importância. (PASTORE; VALLE SILVA, 2000, p. 50).

Voltando ao questionário da pesquisa, recordo que alguns dos informantes


apresentaram argumentos interessantes sobre a sua trajetória escolar. Vários disse-
ram que eram alunos que se destacavam em termos de notas e que este foi um dos
elementos favoráveis para continuarem os estudos. Outro aspecto relevante foi que
os informantes que estudaram em seminários obtiveram uma base escolar que fa-
voreceu o destaque nos vestibulares de universidades públicas. Para outros, os pais
tinham como projeto de vida “estudar os filhos”, como disse uma informante: “Meu
pai era caminhoneiro, estudou até a quarta série do ensino fundamental, mas valo-
rizava tanto o estudo quanto outras formas de conhecimento.” Segundo ela, seu pai
lia muitos livros e jornais, e adquirira muito conhecimento através das viagens que
fazia a trabalho e, além de obrigar os filhos a serem muito estudiosos, sempre que
podia os levava em viagens para o Brasil e países vizinhos. Segundo a informan-
te, esses valores que seu pai passava para os filhos, valorizar a escola, ler, e também
procurar conhecer outros lugares e regiões, contribuíram de maneira decisiva no
seu desempenho escolar. Concluiu afirmando que talvez por isso tenha sido sem-
pre uma das melhores alunas de seu colégio, embora não fosse muito disciplinada,
pois conversava em demasia assim que terminava as tarefas escolares. Esta conseguiu

284
Classe média negra de Maringá

concluir todas as etapas de estudo, situação não alcançada pelos vizinhos e colegas
de infância do bairro de periferia em que morava.
No que se refere às profissões dos genitores, utilizei-me das nomenclaturas
atribuídas pelos próprios informantes sobre as profissões dos pais. É necessário es-
clarecer que quando os informantes se referiam aos pais como agricultores ou la-
vradores, em ambos os casos, significava que eram trabalhadores do campo e que
não eram proprietários agrícolas, mas vendiam sua força de trabalho, ou se tratava
de meeiros. Outro dado importante é que pedi que nomeassem a profissão dos pais
quando estes (informantes) estavam em idade entre a infância e a adolescência e não
sobre a atual profissão dos pais.
Ao analisarmos as profissões exercidas pelas mães dos informantes verifica-
mos que, entre as mesmas, 19 (ou seja, a maioria) realizavam trabalhos domésticos,
cuidando da própria casa, dos filhos e do marido e foram classificadas pelos infor-
mantes como “do lar” ou “dona de casa”. Três eram lavradoras; uma era lavradora e
empregada doméstica; duas empregadas domésticas; uma diarista e costureira; uma
costureira; uma comerciante; e uma zeladora. Apenas três das mães dos entrevis-
tados tinham curso superior (uma professora, uma pedagoga e uma promotora de
justiça).
No que concerne à profissão do pai de cada informante, verificou-se a forte
presença de trabalhadores braçais, sem qualificação, sendo que destes, 11 exerciam
trabalhos no meio rural (agricultores, lavradores e meeiros). As outras profissões que
apareceram e que não exigiam necessariamente qualificação escolar foram: ensaca-
dor, servente e peixeiro (vendedor de peixe), comerciante, pedreiro e caminhoneiro.
Houve um sitiante; segundo o informante, um pequeno proprietário que se tornou
depois funcionário público. Dos pais que completaram o ensino superior, três ao
todo, as profissões exercidas eram as seguintes: médico, advogado e escrivão de po-
lícia. Outras profissões que apareceram foram: músico, mecânico, funcionário pú-
blico e comerciário (proprietário de estabelecimento comercial de pequeno porte).
Quanto à profissão dos pais (tanto pai quanto mãe) dos entrevistados, po-
demos concluir que entre as atividades ocupacionais houve uma predominância de
trabalhos exercidos no meio rural e trabalhos urbanos que exigiam pouca qualifica-

285
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

ção, o que era de se esperar em decorrência da baixa escolaridade dos mesmos. Nesse
sentido, da mesma forma que ocorreu quando consideramos o grau de instrução, a
distância em que se encontravam pais e filhos também era muito acentuada, poden-
do-se inferir dessa situação uma mobilidade social intergeracional ascendente para
a grande maioria dos entrevistados.
As questões discutidas a seguir tratam da escolaridade dos informantes,
instituição e curso superior realizado e se os mesmos estudaram ou não em escola
particular antes de realizar o ensino superior. Em relação ao grau de instrução dos
informantes, apenas dois não cursaram o ensino superior (atualmente são empresá-
rios) e um está em fase de conclusão (e atualmente é funcionário público). Todos os
demais, 30 informantes, concluíram pelo menos um curso superior.
Entre os entrevistados, o curso escolhido com mais frequência foi o de Di-
reito, realizado por seis dos informantes, seguido pelo de História, realizado por
quatro dos informantes. O terceiro curso superior em ordem de preferência dos in-
formantes foi o de Física, realizado por três dos informantes. Os cursos de Ciências
Sociais, Letras e Matemática foram realizados, cada um, por dois informantes. Ou-
tros cursos que apareceram foram cursados por apenas um informante: Geografia,
Comunicação Social, Agronomia, Jornalismo, Administração, Pedagogia, Psicolo-
gia, Educação Física e Estudos Sociais. Entre os entrevistados, cinco realizaram dois
cursos de graduação. Dezenove informantes se dedicavam atualmente à docência.
Ao considerarmos os dados acima, a realização de cursos que atribuem o grau de
licenciado e permitem o ingresso nas carreiras do magistério totalizaram mais da
metade dos cursos realizados pelos participantes desta pesquisa, o que pode ser
entendido como uma tendência nacional também verificada nos cursos avaliados
pelo Exame Nacional de Cursos Superiores (ENC-2001), no qual se percebe “uma
concentração de concluintes negros e pardos/mulatos em alguns cursos específicos”,
como os de Matemática, Letras, Pedagogia, Química, Física e Biologia (LOPES,
2002, p. 31).
De acordo com as respostas obtidas, podemos constatar que os informantes
estudaram majoritariamente em universidades públicas, 30 respondentes, ao todo,
contra 2 que estudaram em faculdades particulares. Por outro lado, apenas nove

286
Classe média negra de Maringá

estudaram em escolas particulares de ensino fundamental e médio antes do ingresso


no ensino superior.
Para compreendermos o que pensavam os participantes da pesquisa em re-
lação à sua situação profissional, foi indagado aos mesmos se estão satisfeitos com a
ocupação atual e condições de trabalho, uma vez que, em alguns estudos sobre a dis-
criminação de homens e mulheres negros no mercado de trabalho, constata-se que
os negros geralmente ocupam cargos que não condizem com seu nível de escolari-
dade, sendo que essa situação se evidencia mais quanto mais anos de escolarização o
indivíduo tiver (SOARES, 2000).
No caso dos respondentes ao questionário, as respostas em relação a gostar
ou não de seu local de trabalho, mostraram ampla satisfação, pois apenas um não
quis responder e todos os demais (31) afirmaram que estavam satisfeitos com seu
local de trabalho e alguns disseram inclusive que “gostam muito” e “adoram”. Refor-
çando a satisfação indicada, apenas três afirmaram que não estavam satisfeitos com
a sua profissão, entre estes, dois eram professores do ensino fundamental e argumen-
taram que a sua insatisfação ocorria em virtude do salário que consideravam muito
baixo; o outro informante insatisfeito com a sua profissão atuava como vereador e
sua insatisfação se devia à “falta de tempo para resolver todos os problemas em que se
vê envolvido”, segundo suas palavras. Um outro informante que declarou não ter
opinião formada sobre sua satisfação em relação à sua profissão atuava como pro-
fessor universitário. Este me explicou que estava satisfeito “em termos”, pois gostava
de ensinar e de pesquisar, mas considerava o ambiente universitário um espaço de
conflitos estimulados por “vaidade e carreirismo que atrapalham quem tem como
maior objetivo a competência, o profissionalismo como professor e pesquisador”, segun-
do as suas palavras.
O rendimento médio de um trabalhador de classe média no Brasil “alcança
9,9 salários mínimos mensais, enquanto o total dos chefes de família recebe somen-
te 4,8 salários mínimos, ou seja, 51,5% a menos.” (GUERRA et al., 2006, p. 85), o
que condiz com o nível de renda constatado entre os informantes, ou seja, a renda
mensal obtida por 26 informantes situava-os num patamar acima, entre 7 e 23 salá-

287
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

rios mínimos mensais aproximadamente, e apenas 6 informantes percebiam rendi-


mento individual entre 3 e 6 salários mínimos mensais.

Estilo de vida e consumo


Ao analisarmos o local de moradia declarado pelos informantes, percebemos
que todos residiam no meio urbano e a quantidade que residia no centro ou em
bairros centrais era maior do que a quantidade que residia em bairros mais distantes
do centro de Maringá. Verificamos que 24 pessoas, do total de entrevistados, pos-
suíam casa própria e, entre estes, apenas um a adquiriu por herança. Oito informan-
tes residiam em imóveis alugados. Doze dos entrevistados possuíam mais do que
uma propriedade imóvel e, entre estes, nenhum recebeu por herança. Também é in-
dicativo das condições socioeconômicas dos informantes o fato de que vinte de-
clararam que empregavam trabalhador doméstico, sendo que um dos entrevistados
tinha dois empregados domésticos.
O consumo realizado pelos informantes pode se constituir em uma variável
importante para uma discussão sobre as influências do acesso a determinados bens
e serviços como simbolicamente representativos da sua posição social e estilo de
vida, e que, portanto, pode incidir sobre a construção da identidade de indivíduo
negro de classe média. Deve-se mencionar também que o consumo representa um
diferencial importante na caracterização de toda a classe média, especialmente para
aqueles indivíduos pertencentes a postos de trabalho assalariado. Por conseguinte,
vamos, então, discutir alguns aspectos do padrão de vida individual e familiar dos
informantes.
Dos entrevistados, 20 eram casados e 12 estavam solteiros. Dos 32 parti-
cipantes, nove não tinham filhos e 23 os tinham, entre estes, o número médio da
quantidade de filhos por informante era de dois cada um, apenas um informante
tinha quatro filhos, quatro tinham três filhos e os outros tinham um filho. É flagran-
te a coincidência entre os dados obtidos relativos aos pesquisados de Maringá e as
informações relativas à classe média brasileira. Segundo Guerra et al. (2006):

quanto ao estado civil, a classe média possui um número maior de


chefes de família casados, se comparado à população em geral. Dessa
288
Classe média negra de Maringá

maneira, 2/3 dos chefes de família da classe média são casados, en-
quanto numa totalidade brasileira, esse número atinge pouco mais
de ½ da população. [...] O chefe de família de classe média possui
uma escolaridade média quase 40% superior ao do conjunto dos che-
fes de família que trabalham. Também possui 1,2 filho a menos que o
total dos chefes de família do país. (p. 83; 85).

Algumas questões possibilitaram conhecermos quais os locais prediletos


para os momentos de lazer e se os informantes frequentavam clubes de acesso restri-
to aos associados. A variedade de espaços de lazer constatada nas respostas contrasta
com a baixa frequência a clubes fechados. Apenas quatro eram sócios de clubes mais
restritos, como o Maringá Clube, Country Club de Maringá, Clube Olímpico de
Maringá e Clube Hípico de Maringá. Essa informação é indicativa do que é possível
constatar nos clubes de lazer da cidade, que não são clubes de profissionais de de-
terminadas categorias ou que não são associações profissionais, e apresentam uma
quantidade muito pequena de associados negros. Para ser associado de um desses
clubes anteriormente nomeados, é necessário comprar uma cota, pagar uma mensa-
lidade e ser apresentado por um antigo sócio do clube. Os dois primeiros fatores, de
ordem financeira, não apareceram como indicadores decisivos entre esses informan-
tes para a não associação. Por outro lado, a associação a esses clubes está ligada à par-
ticipação em redes de relações informais da cidade, nas quais poucos negros estão
diretamente ligados. É relevante ressaltar que, entre os poucos informantes (quatro
ao todo) que eram associados a esses clubes, um não frequentava por que não gosta-
va, somente sua esposa e filhos pequenos iam para o clube; uma das informantes era
sócia e frequentava dois desses clubes; um outro frequentava esporadicamente; e o
último era frequentador assíduo e já fez parte da diretoria de um desses clubes. Nes-
se caso, vale ressaltar que entre os quatro que se declararam associados a clubes de
lazer da cidade, este era o único ex-atleta, aliás um ex-atleta de futebol que já obteve
reconhecimento na cidade, fator que talvez tenha contribuído para que ele tenha
alcançado postos de direção em que normalmente não se encontram negros em seu
clube de lazer. Também pode ser considerado um indicador importante sobre as
condições de vida dos informantes o fato de que ao serem indagados se pratica-
vam algum esporte, 23 dos entrevistados responderam que sim, ou seja, praticavam

289
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

algum esporte, e apenas nove não praticavam nenhuma modalidade esportiva. Os


esportes praticados eram bem variados (musculação, estepe, futebol, dança, dança
do ventre, bocha, natação, capoeira, tênis, vôlei, caminhada, xadrez, atletismo, aca-
demia e basquete). É relevante ressaltarmos que, embora a maioria dos informantes
praticasse atividades esportivas regularmente, como vimos, poucos eram sócios dos
clubes de lazer e esporte da cidade.
Associado ao hábito de praticar esporte, que envolve a posse de informação
sobre a importância da atividade esportiva para a saúde e qualidade de vida, e tam-
bém disponibilidade de tempo para a atividade, para avaliarmos se os informantes
adotavam um estilo de vida que pode ser considerado favorável a uma maior longe-
vidade, foi indagado se os informantes eram ou não fumantes e se possuíam o hábito
de ingerir bebidas alcoólicas. Ainda relacionado a um estilo de vida que expressa
cuidado com a saúde e a perspectiva de longevidade e qualidade de vida, foi indaga-
do se os informantes possuíam plano de saúde, o que implica não só a preocupação
com o acesso aos serviços de saúde, mas também uma renda disponível para arcar
com a mensalidade do convênio médio. Dos informantes, 26 responderam que ti-
nham plano de saúde e apenas seis declararam que não tinham.
Sobre o hábito de tirar férias, entre os 32 informantes, apenas três não costu-
mavam tirar férias anuais. Dos que tiravam férias anualmente, 13 tiravam um mês
ou mais de férias, cinco tiravam de 15 a 20 dias de férias, e seis informantes tiravam
entre sete e dez dias anuais de férias. Das questões que se referia às viagens, perce-
beu-se que poucos não tinham o hábito de viajar nas férias, cinco no total. Entre as
variações em termos de quantidade de dias que permaneciam viajando nas férias, o
mínimo foi de uma semana e houve os que ocupavam as férias todas para viajar, 30
dias ou mais. Dois viajavam anualmente para o exterior, e vários utilizavam a época
das férias também para visitar os parentes que moram em outros estados, como Rio
de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraíba, entre outros. Um dos informan-
tes afirmou não ter preferência por lugares para viajar e quando se aproximavam as
férias buscava por destinos turísticos elaborados por agências de viagens. Os infor-
mantes também foram indagados se já realizaram viagens para outros países.

290
Classe média negra de Maringá

Algumas questões apresentadas aos informantes permitiram o levantamento


de dados que podem evidenciar um estilo de vida voltado para o chamado consumo
de bens de luxo. Leva-se em consideração, a esse respeito, que em um contexto social
e histórico o acesso ao consumo pode ser uma estratégia para a obtenção e conserva-
ção do reconhecimento por parte dos outros. Levando em consideração tal pressu-
posto sociológico sobre o consumo nas sociedades modernas, foi indagado se os in-
formantes possuíam o hábito de usar perfume e qual era a marca do mesmo, em caso
afirmativo. Todos os informantes tinham suas preferências, alguns preferiam mais
de um perfume. Uma avaliação dos perfumes citados indica que os informantes da
pesquisa utilizavam perfumes que, embora tivessem um valor talvez proibitivo para
a maioria da população, eram relativamente de fácil acesso no mercado nacional.
Quanto à marca de roupa preferida, entre os entrevistados, 24 responderam que não
tinham predileção por roupa de determinada marca. Alguns complementaram que
vestiam o que “lhe caia bem”; outros eram as esposas que compravam suas roupas; e
outros disseram que avaliavam o preço relacionado à qualidade da roupa, mas que
não se preocupavam com a marca. Apenas oito dos informantes tinham preferência
por marcas de roupas.
Um outro conjunto de questões referia-se ao padrão de consumo de bens
simbólicos. De fato, uma parcela considerável da renda dos informantes era destina-
da a custear o acesso à informação e ao entretenimento.

Participação política
Pudemos observar, ao analisarmos as questões relativas à participação políti-
ca dos informantes, se existia mesmo uma proximidade no espaço social quanto às
concepções e práticas políticas institucionais. Uma das questões apresentadas aos
respondentes dizia respeito à sua preferência por algum partido político e, em caso
afirmativo, qual seria o partido. Dos informantes, 15 afirmaram não ter preferência
por partido político, e 17 afirmaram que tinham preferência por um determinado
partido. Entre os partidos, o PT foi o preferido por 13 dos informantes que tinham
preferências partidárias, depois apareceram: uma vez o PP, uma vez o PFL, uma vez

291
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

o PMDB, e uma resposta em que o informante disse preferir partidos de esquerda


sem nomear um partido específico.
As informações apresentadas indicam que a maioria dos informantes não pri-
vilegiavam a participação política através de partidos políticos, embora um número
considerável não desprezasse essa via de participação. Entretanto, ao correlacionar-
mos tais informações com as obtidas através da questão seguinte, na qual foi inda-
gado se os informantes eram favoráveis, contrários, desconheciam ou eram indife-
rentes às atividades dos movimentos sociais negros, pudemos perceber que também
está fortemente pronunciada no conjunto dos indivíduos pesquisados a necessidade
de participação política através dos movimentos sociais. Entre os entrevistados, 31
se declararam favoráveis e apenas um afirmou desconhecer as atividades do movi-
mento negro.
A questão anterior discutida, sobre a favorabilidade dos informantes às ati-
vidades desenvolvidas pelos movimentos sociais negros, também pode ser correla-
cionada com a questão seguinte, referente à adoção de políticas de ações afirmativas
por parte do Estado brasileiro, mais especificamente sobre a adoção de cotas para
negros em instituições universitárias. A questão apresentada aos respondentes ge-
rou a necessidade de uma maior e mais demorada reflexão por parte de vários infor-
mantes, que demonstravam sentir muitas dúvidas sobre o tema da adoção de cotas
para o ingresso de negros nas universidades; sendo que 20 se declararam favoráveis à
adoção de políticas de ações afirmativas por parte do Estado brasileiro, mais especi-
ficamente à adoção de cotas para negros em instituições universitárias.
Para finalizar, é importante ressaltar o fato de que as informações coletadas
também indicaram que os informantes não herdaram uma quantidade de capital
econômico que pudesse ter alavancado o seu processo de mobilidade social ascen-
dente, o que também indica que o acesso à educação escolar de qualidade e a conclu-
são de pelo menos um curso superior foram fatores que possibilitaram a mudança
da condição socioeconômica familiar originária para a atual, indicando a ocorrência
de uma mobilidade social intergeracional ascendente. Como vimos, os informantes,
em sua maioria, originaram-se de famílias pobres ou extremamente pobres, mui-
tos de origem rural, com pais analfabetos ou com pouco estudo formal, que não se

292
Classe média negra de Maringá

enquadrariam em uma definição de classe média. Portanto, os pesquisados compu-


nham a primeira geração de classe média de suas famílias, o que implica que, para
se adequarem ao campo que permeia as relações de classe média, necessitaram se
envolver com um novo habitus de classe.

Considerações finais
Ao analisarmos as relações sociais desses indivíduos negros que obtiveram
mobilidade social ascendente de Maringá, pudemos constatar que estes, mesmo
ocupando posições valorizadas socialmente, vantajoso poder aquisitivo, acesso a
espaços permitidos para uma elite econômica e cultural, continuaram como alvos
de preconceito e discriminação racial. Nesse sentido, os elementos levantados nesta
pesquisa indicam que o racismo em relação aos negros no Brasil, e em Maringá, em
particular, não é apenas um problema provocado pelo pertencimento dos negros às
classes sociais populares, como muitos ainda acreditam, mas é resultado de precon-
ceitos raciais arraigados.
Considero que as situações de discriminação narradas podem ser interpre-
tadas de acordo com as formulações de Nogueira (1979) sobre as relações raciais
no Brasil, que indicam que em muitas situações a discriminação aparece como pre-
terição do negro em determinados lugares e situações. Embora não sendo explícita
no sentido verbal ou de atitude conscientemente racista, os danos causados por tais
acontecimentos, que se repetem durante toda a vida dos negros em uma sociedade
racista, ainda não foram devidamente dimensionados por psicólogos, sociólogos,
e outros estudiosos do comportamento humano, porém, não é difícil de perceber
as marcas deixadas por tais lembranças. Em alguns depoimentos, os informantes
marejavam os olhos no decorrer de seus relatos, alguns deixaram que as lágrimas
rolassem em suas faces, ou aparentaram conter as emoções para parecerem objeti-
vos nas descrições. As fortes emoções trazidas por essas lembranças foram expressas
tanto por homens quanto por mulheres, militantes de movimentos negros, de par-
tidos políticos ou profissionais distantes de discussões politizadas que se mostraram
feridos pelas marcas de um racismo que nem sempre é passível de ser imputado cri-
minalmente como tal.

293
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Pode-se, portanto, a partir dessas reflexões, apontar uma considerável coin-


cidência entre os elementos definidores dos atributos próprios das classes médias
apontados por Guerra et al. (2006) e as informações fornecidas pelos informantes,
que residiam e atuavam profissionalmente na cidade de Maringá. Em sua quase to-
talidade, estes encontravam no trabalho assalariado o meio principal para a obten-
ção dos seus proventos, ressaltando-se que a sua atuação profissional era resultante
do esforço meritocrático de buscar melhores oportunidades de formação cultural,
educacional e profissional, que oportunizaram para cada qual a ocupação de sua
posição social e resultaram na possibilidade de cultivo de um padrão de consumo
que pode ser considerado proibitivo para as camadas populares da população bra-
sileira, mas que está ainda muito distante do padrão de consumo das classes sociais
formadas pelos grandes proprietários capitalistas; o que indica, ainda, segundo os
resultados apresentados ao longo deste estudo, a ocorrência de um processo de mo-
bilidade social intergeracional ascendente dos informantes em relação aos seus ge-
nitores. Outro aspecto a ser ressaltado é que a mobilidade social alcançada se deu
em decorrência da adoção de estratégias individuais e familiares dos informantes,
e não através dos benefícios gerados pelo pertencimento a instituições sociais ou
agrupamentos associativos.
Com relação à formação de uma identidade coletiva de classe, os indivíduos
pesquisados consideraram importante a participação política através dos movi-
mentos sociais, entidades representativas de categorias profissionais e partidos po-
líticos. Também cabe recordarmos que nada menos do que 31 informantes dos 32
pesquisados se declararam favoráveis às atividades dos movimentos negros, e 20 se
declararam favoráveis à adoção de políticas de ações afirmativas por parte do Esta-
do brasileiro, mais especificamente à adoção de cotas para negros em instituições
universitárias. Ao correlacionarmos essas respostas com a autoidentificação dos in-
formantes no que se refere à “cor ou raça”, de acordo com a qual os informantes
se declararam negros; ressaltando-se, ainda, que 22 informantes responderam que
já foram vítimas de atitudes racistas, podemos concluir que os informantes deixa-
ram bastante explícito o seu sentimento de pertencimento a um conjunto social que

294
Classe média negra de Maringá

é classificado como negro pelos não negros e possui uma trajetória social própria de
sujeitos que também se autoidentificam como negros.
Pode-se considerar, então, que os informantes desta pesquisa estão em pro-
cesso de formação identitária no que se refere à sua autoidentificação como negros
e como membros de uma classe social, buscando para si e para seus descendentes
formas de relações sociais e políticas, posições sociais e estilos de vida vinculados a
um padrão de consumo diferentes das condições de vida dos seus genitores, o que
permite que os consideremos como uma camada social em formação na cidade de
Maringá a partir da sua inserção no espaço social e político da cidade como negros
de classe média.

Referências
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas. Campinas: Papirus, 1996.
GUERRA, Alexandre et al. (Orgs.). Classe média desenvolvimento e crise. São Paulo,
Cortez, 2006.
LOPES, Ana Lúcia. “Alunos negros-mestiços concluintes do Ensino Superior”. In:
DURHAM, Eunice R.; BORI, Carolina M. (Orgs.). Seminário: o negro no ensino supe-
rior. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1999.
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo:
T. A. Queiroz, 1979.

295
Relato de experiência de implantação da
Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra no estado do Paraná –
Secretaria de Estado da Saúde
Lucimar Pasin de Godoy1
Juliano Schmidt Gevaerd2

Introdução
De acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica (IBGE), 50,7% da população do Brasil é constituída por pessoas negras (pretos
e pardos). A população negra tem contribuído para o processo de desenvolvimen-
to do país desde a época da escravidão até os dias de hoje. No entanto, verifica-se
que existe um grau elevado de discriminação racial no país. Atos discriminatórios
ocorrem de diversas formas e se configuram como racismo. O racismo impede as
pessoas de exercerem a plena cidadania, o que contribui para as iniquidades sociais
existentes com a população negra no Brasil. Na perspectiva das políticas públicas,
em especial no Sistema Único de Saúde (SUS), quando uma pessoa sofre restrição
de acesso, ou o mesmo lhe é negado ou negligenciado devido à questão de sua raça/
cor, verifica-se atos de Racismo Institucional (RI). O racismo institucional é, por-
tanto, praticado pelos agentes públicos quando em exercício de sua função pública.
O racismo institucional atua de forma difusa no funcionamento do cotidiano de
instituições e organizações, provocando uma desigualdade na distribuição de servi-

1
Graduada em Serviço Social e especialista em Saúde Coletiva. Atua na Secretaria de Estado da
Saúde, Superintendência de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção às Condições Crôni-
cas. E-mail: lucimargodoy@sesa.pr.gov.br.
2
Graduado em Fisioterapia e especialista em Saúde Coletiva. Atua na Secretaria de Estado da
Saúde, Superintendência de Atenção à Saúde. E-mail: julianogevaerd@sesa.pr.gov.br.
296
Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral

ços, benefícios e oportunidades aos diferentes segmentos da população do ponto de


vista racial (LÓPEZ, 2012).
No combate ao racismo, os movimentos sociais tiveram um importante pa-
pel no sentido de trazer à luz as discussões sobre o fenômeno, em especial sobre o
racismo institucional. Vários foram os avanços no campo das políticas sociais advin-
dos dos movimentos sociais quanto ao combate ao racismo em suas diversas formas.
Como fruto da luta desses movimentos, na área da saúde, destaca-se a Política Na-
cional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), lançada pelo Ministério
da Saúde através da Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009 (BRASIL, 2013).
A PNSIPN é uma política de equidade em saúde3 e tem como objetivo geral
“promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigual-
dades étnico-raciais, e tendo como mote o combate ao racismo institucional e a
discriminação nas instituições e serviços do SUS.” (BRASIL, 2009).
Outra conquista foi a publicação do Estatuto da Igualdade Racial, instituí-
do pela Lei Federal nº 12.288, de 20 de julho de 2010. O Estatuto visa garantir à
população negra direitos sociais já adquiridos, conforme pressupostos do artigo 6º
da Constituição Federal de 1988: “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimen-
tação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.”
A partir dos marcos legais citados anteriormente, a Secretaria do Estado da
Saúde do Paraná (SESA) iniciou a implantação de ações estratégicas visando dar
visibilidade à saúde da população negra no estado, com o enfoque na desconstrução
do racismo institucional no âmbito dos serviços do SUS no Paraná.
O Paraná tem 399 municípios e uma população estimada de 11.081.692 de
habitantes (IBGE, 2014). Dessa população, 25,8% são negros (pardos e pretos) –
aproximadamente 2.847.995 de habitantes. A SESA é responsável pela implanta-
ção, formulação e indução das políticas de saúde do SUS, através das 22 regionais de
saúde, juntamente com os municípios que compõem o estado, conforme demonstra
a Figura 1.
3
A equidade é um dos princípios do SUS e norteia a construção de políticas de saúde, reconhe-
cendo necessidades de grupos específicos. Essas políticas contribuem para reduzir o impacto dos
determinantes sociais da saúde aos quais estão submetidos. Dentro desses grupos destaca-se a
população negra.
297
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Figura 1 – 4 macrorregionais e 22 regionais de saúde.

Fonte: Paraná (2016).

Objetivando iniciar o debate sobre a saúde da população negra no âmbito


do SUS no Paraná, a SESA criou algumas ações estratégicas, descritas no Quadro 1.

298
Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral

Quadro 1 – Ações estratégicas criadas pela SESA.


Ação Objetivo
Resolução SESA nº Instituir incentivo financeiro para municípios com comunidades
253/20091 quilombolas no Estado.
Instituir o Grupo de Trabalho Executivo de Saúde da População
Resolução SESA nº
Negra no Paraná para subsidiar o avanço da equidade na Atenção
0614/20102
à Saúde da População Negra no âmbito do SUS Paraná.
Implementar a Política Nacional de Saúde Integral da População
Plano Estadual de Saúde
Negra, por meio de capacitação de profissionais de saúde das
2012-20153
regionais e municípios em saúde da população negra.
Rede Mãe Paranaense – Conjunto de ações com foco no cuidado e captação precoce da
Maio de 20124 gestante, acompanhamento pré-natal e pós-parto.
Nota: 1 Em maio de 2009, por meio da Resolução SESA nº 253/2009, visando implantar estratégias
para fortalecimento da atenção à saúde da População Quilombola do Paraná, foi criado o Incentivo
Estadual para Comunidades Quilombolas no valor de R$ 600,00 mensais por comunidade. O repas-
se é realizado do fundo estadual de saúde para os fundos municipais de saúde dos 17 municípios com
comunidades remanescentes de quilombolas ou comunidades negras tradicionais que fizeram adesão
ao incentivo. 2 Em novembro de 2010, foi criado o Grupo de Trabalho Executivo de Saúde da Popu-
lação Negra no Paraná. O grupo se reúne bimestralmente e é composto por representantes da SESA,
Conselho Estadual de Saúde e por representantes da sociedade civil que lutam pela causa no Paraná. 3
O Plano Estadual de Saúde do Paraná (2012-2015) tem como objetivo aperfeiçoar o SUS no estado
para reduzir as distâncias e o tempo de resposta do atendimento às necessidades da atenção à saúde
do cidadão, levando a Saúde para mais perto das pessoas por meio das Redes de Atenção à Saúde
organizadas em todas as 22 regiões do estado do Paraná. Na implementação da Política Nacional de
Saúde Integral da População Negra, consta como ação na “Diretriz 7 - Melhoria do Acesso e do Cui-
dado das Comunidades Vulneráveis (população negra, indígena, populações privadas de liberdade).”
(BRASIL, 2009). 4 A Rede Mãe Paranaense propõe a organização da atenção materno-infantil nas
ações do pré-natal e puerpério, e o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento das crianças,
em especial no seu primeiro ano de vida. Além da captação precoce das gestantes do Paraná, a Rede
Mãe Paranaense prevê no mínimo sete consultas de pré-natal, sendo seis no pré-natal e uma no
puerpério. Prevê a realização de 17 exames, com a inclusão do exame de eletroforese de hemoglobina,
que permite o diagnóstico e tratamento precoce das doenças falciforme e as talassemias. Entre as
ações preconizadas na Rede, estão a estratificação de risco das gestantes e das crianças, a garantia de
ambulatório especializado para as gestantes e crianças de risco, e a garantia do parto por meio de um
sistema de vinculação ao hospital conforme o risco gestacional. As gestantes negras e as indígenas são
estratificadas pelo risco intermediário, pois apresentam fatores de risco relacionados às características
individuais, sociodemográficas e de história reprodutiva anterior. Em relação à criança, o teste do
pezinho é realizado em 100% das crianças que nascem no Paraná. O teste do pezinho diagnostica
as seguintes doenças: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, fibrose cística, doença falciforme
e outras hemoglobinopatias, além da deficiência da biotinidase e da hiperplasia adrenal congênita.
Estas são doenças congênitas, de herança genética, que, se diagnosticadas e tratadas precocemente,
oportunizam o desenvolvimento normal das crianças afetadas (PARANÁ, 2014).

299
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Objetivos da experiência
As ações estratégicas estabelecidas pela SESA para consolidar a PNSIPN no
Paraná foram definidas a partir de alguns critérios, entre eles, destaca-se a redução
das taxas de mortalidade materna e infantil, através da Rede Mãe Paranaense, que
traz em seu escopo a estratificação de risco e define que gestantes e crianças negras
são estratificadas no risco intermediário. Outro critério utilizado foi o enfrentamen-
to das iniquidades sociais, por meio de ferramentas de educação permanente e do
incentivo financeiro estadual aos municípios com comunidades remanescentes de
quilombolas. Essas ações estão incluídas no Plano Estadual de Saúde (2012-2015).
Enfatiza-se também o foco no fortalecimento da participação social, por meio da
criação do Grupo de Trabalho Executivo de Saúde da População Negra, que é um
espaço indutor e formulador de propostas ligadas à saúde da população negra no
Paraná.
Diante do exposto, surgiu a necessidade de criar espaços para divulgar e im-
plantar a PNSIPN, bem como ampliar as discussões sobre a temática nos municí-
pios do Paraná, em especial sobre o enfrentamento do racismo institucional no âm-
bito do SUS. Nessa perspectiva, a SESA iniciou em 2012 a realização de encontros
macrorregionais no estado.
O enfoque quanto ao racismo institucional foi pautado no viés da transver-
salidade, considerando que as barreiras de acesso às políticas públicas nas áreas da
saúde, educação, geração de trabalho e renda, segurança pública, entre outros, são
os principais determinantes sociais que causam impacto direto na saúde das pes-
soas. Dessa forma, as discussões enfatizaram a necessidade de ampliar o olhar para a
população negra junto aos profissionais de saúde que atuam nos diversos pontos de
atenção do SUS. O olhar ampliado tem impacto positivo desde o acolhimento até
o cuidado integral da pessoa, considerando algumas doenças e agravos prevalentes
na população negra4.
4
No Brasil, existe um consenso entre os diversos estudiosos acerca das doenças e agravos prevalen-
tes na população negra, com destaque para as seguintes categorias: a) geneticamente determina-
dos – doença falciforme, deficiência de glicose-fosfato desidrogenase, foliculite; b) adquiridas por
condições desfavoráveis – desnutrição, anemia ferropriva, doenças do trabalho, IST/HIV/Aids,
mortes violentas, mortalidades infantil e materna elevadas, abortos sépticos, sofrimento psíquico,
estresse, depressão, tuberculose, transtornos mentais (derivados do uso abusivo de álcool e outras
300
Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral

O público-alvo dos encontros foram os gestores e profissionais das áreas da


saúde, em especial os profissionais que atuam na atenção primária, tendo em vista
que as equipes desse nível de atenção (médicos, equipes de enfermagem, dentistas,
agentes comunitários de saúde) são os atores mais próximos ao território em que
as pessoas vivem, trabalham e se relacionam. No enfoque da transversalidade, no
público-alvo foram incluídos profissionais das áreas da educação (professores e es-
tudantes) e da assistência social, representantes de movimentos sociais que militam
na causa da população negra e do controle social e do ministério público.

Apresentação da experiência

Encontros macrorregionais
Optou-se por realizar encontros macrorregionais como forma de descentra-
lizar e capilarizar as discussões, possibilitando a participação de representantes das
22 regionais de saúde e dos municípios que compõem as regiões de saúde.
Foram realizados cinco eventos macrorregionais, considerando que a Ma-
crorregional Leste foi dividida em dois encontros, em virtude da dimensão da área
de abrangência e a composição dos municípios, conforme Quadro 2.

Quadro 3 – Dados da realização dos cinco encontros macrorregionais.


Cidade e data do Número de
Macrorregional Regionais representadas
seminário participantes
Maringá – 4 de abril Paranavaí, Cianorte, Umuarama,
Macro Noroeste 170 pessoas
de 2012 Maringá e Campo Mourão
Londrina – 13 de Londrina, Apucarana, Ivaiporã,
Macro Norte 55 pessoas
novembro de 2012 Cornélio Procópio e Jacarezinho
Foz do Iguaçu – 23 Cascavel, Foz do Iguaçu, Toledo,
Macro Oeste 90 pessoas
de abril de 2013 Francisco Beltrão e Pato Branco
Guarapuava – 19 de Irati, Guarapuava e Telêmaco
65 pessoas
novembro de 2013 Borba
Macro Leste
Curitiba – 4 de abril Paranaguá, Curitiba, Ponta Gros-
79 pessoas
de 2014 sa e União da Vitoria
Fonte: Paraná,2015.
drogas); c) evolução agravada ou tratamento dificultado – hipertensão arterial, diabetes melito,
coronariopatias, insuficiência renal crônica, câncer e miomatoeses (BRASIL, 2013).
301
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

Metodologia
Foram utilizados momentos expositivos e dialogados que contribuíram para
promover o debate e a troca de experiências entre os participantes sobre a saúde da
população negra no âmbito do SUS, bem como os impactos do racismo institucio-
nal na qualidade de vida dessa população.
Os seguintes temas nortearam as discussões nos encontros realizados:

1. Equidade e Saúde – cenário atual da saúde da população negra no Brasil


e no Paraná (indicadores gerais e indicadores sobre causas externas, com
enfoque nas violências);
2. Racismo institucional como determinante social da saúde;
3. Divulgação da PNSIPN;
4. Saúde do homem – o acolhimento do homem negro na atenção primá-
ria à saúde;
5. Saúde da mulher e da criança – o acolhimento na atenção primaria à
saúde com enfoque para a Rede Mãe Paranaense;
6. Boas práticas – experiências de municípios com acompanhamento das
equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), junto a comunidades
quilombolas.

Destaca-se que os participantes dos encontros foram estimulados a serem


multiplicadores da temática nos espaços de trabalho e a desenvolverem ações que
contribuam para a implementação da política nos municípios do Paraná.

Resultados
Os cinco eventos realizados contaram com a participação de 459 pessoas,
entre profissionais e gestores de saúde, representantes das 22 regionais de saúde e
dos respectivos municípios, representantes de universidades (docentes e alunos),
controle social, ministério público, representantes dos movimentos sociais que mi-
litam na causa da população negra e representantes das comunidades remanescentes
de quilombos.
302
Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral

Os encontros foram importantes canais de aproximação para o debate sobre


a saúde da população negra e forneceram subsídios para o aprofundamento das
discussões, pois os temas abordados possibilitaram despertar o olhar para o cui-
dado dessa população por profissionais de saúde que atuam em todos os níveis de
atenção, a partir das políticas que já estão consolidadas no âmbito do SUS (saúde
do homem, saúde da mulher, da criança, promoção da saúde e cultura da paz, saúde
mental, segurança alimentar, entre outras).
As reflexões sobre o racismo institucional foram momentos provocativos
para os participantes, pois possibilitaram a desconstrução de que não há racismo
no Brasil e a percepção de que esse fenômeno interfere no processo de adoecimen-
to dessa população.
A abordagem sobre a saúde das gestantes e das crianças, com o enfoque para
as ações da Rede Mãe Paranaense, trouxe como ênfase a necessidade do cuidado
ampliado a gestantes e crianças negras, a partir da estratificação do risco, que de-
fine essa população como risco intermediário devido às características individuais
e sociodemográficas. Ressalta-se que o estado do Paraná obteve uma redução de
33,3% na taxa de mortalidade materna no período de 2010 a 2014. Em relação à
mortalidade infantil, a redução foi de 7,90% no mesmo período (Paraná,2014).
O momento de exposição de boas práticas das ações que estão sendo desen-
volvidas pelas equipes de ESF em comunidades remanescentes de quilombos em
alguns municípios foi riquíssimo. Embora essas comunidades tenham dificuldades
de acesso aos serviços de saúde, constatou-se que muitas ações de saúde estão sen-
do desenvolvidas nessas comunidades. Muitas equipes deslocam-se até as comu-
nidades e desenvolvem atividades de promoção da saúde e prevenção de agravos.
O agente comunitário de saúde é um profissional muito importante no cuidado
dessa população, pois é o elo principal entre a unidade de saúde e as comunidades
remanescentes de quilombos. No entanto, ainda há muito que avançar quanto ao
direito do acesso da população remanescente de quilombos aos serviços de saúde
do SUS.

303
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

A partir das avaliações dos participantes, nos cinco eventos realizados, po-
de-se destacar os principais desafios apontados pelos presentes e que devem ser
trabalhados no âmbito do SUS no Paraná:

 Os indicadores demonstram que os agravos de saúde têm cor no Brasil;


 A PNSIPN deve ser amplamente divulgada e discutida entre gestores,
trabalhadores de saúde e participação social;
 Treinamento para os profissionais de saúde em relação à importância do
preenchimento correto nos sistemas de informação do SUS quanto ao
quesito raça/cor, para que os dados epidemiológicos possam ser gerados
e analisados de acordo com a realidade;
 O assunto de saúde da população negra deve ser trabalhado de forma
transversal;
 Intensificar ações de educação permanente sobre o tema;
 Implantar a PNSIPN em todo o estado, de forma que seja reafirmada a
universalidade e integralidade do cuidado;
 Divulgar, dialogar e combater o racismo institucional nos serviços do
SUS;
 Humanizar o atendimento, qualificar a escuta, ampliar o acesso;
 O papel fundamental da equipe da atenção primária quanto ao olhar
dos principais agravos da população negra;
 Ênfase nos fatores externos – determinantes sociais da saúde – que in-
fluenciam no adoecimento dessa população.

Considerações finais
Conclui-se que a realização dos encontros foi um canal importante no marco
inicial para a implantação da PNSIPN no estado do Paraná. As discussões possibi-
litaram dar visibilidade à temática no âmbito das 22 regionais. Os eventos também
contribuíram para o debate do racismo institucional presente nos serviços do SUS.
A partir desses encontros, outras ações foram promovidas pela SESA em for-
ma de videoconferência, com abordagem do racismo institucional como determi-

304
Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral

nante social da saúde (com enfoque da prática do racismo na educação, segurança


pública e na saúde) e da doença falciforme (como identificar a doença e o atendi-
mento nas crises nos diversos níveis de atenção à saúde, doença falciforme e saúde
bucal).
Enfatiza-se que os atores dos movimentos sociais, que constituem o Grupo
de Trabalho Executivo de Saúde da População Negra no Paraná, foram importan-
tes parceiros para a realização dos eventos, com destaque para a Rede de Mulheres
Negras do Paraná.
Há muitas ações a serem ainda desenvolvidas no estado para a desconstru-
ção do racismo institucional e para a implementação da PNSIPN, que contribuirão
para ampliar o acesso e, consequentemente, o cuidado integral de saúde da popula-
ção negra no SUS.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,
1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.
htm>. Acesso em: 4 ago. 2015.
______. Ministério da Saúde. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13
maio 2009. <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.
html>. Acesso em: 4 ago. 2015.
______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial;
altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24
de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 21 jul. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2010/Lei/L12288.htm> Acesso em: 5 ago. 2015.
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departa-
mento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da Popula-
ção Negra: uma política para o SUS. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA ESTATÍSTICA (IBGE). Sinopse do
Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
______. Paraná IBGE Cidades. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/
panorama>.Acesso em 16.set.2015.
LÓPEZ, Laura Cecília. O conceito de racismo institucional: a aplicação no campo
da saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 16, n. 40, p. 121-34, jan./
mar. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1414-32832012000100010>. Acesso em: 8 jul. 2014.

305
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná

PARANÁ. Secretaria Estadual da Saúde. Linha Guia Rede Mãe Paranaense. Curitiba:
SESA, 2014. Disponível em: <http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File/MaeParanaen-
se_2014_LinhaGuia_Ed03_148x210mm__1.pdf.>.Acesso em: 4 ago. 2015.
______. Secretaria Estadual da Saúde. Mapa das macrorregionais. Disponível em:
<http://www.saude.pr.gov.br/arquivos/File/mapa_das_macrorregionais_colorido_.jpg>.
Acesso em: 11 nov. 2016.
______. Secretaria Estadual da Saúde. Superintendência de Atenção à Saúde. Departa-
mento de Atenção às Condições Crônicas. Área Técnica das Comunidades Vulneráveis.
Relatório Técnico. Curitiba. 2015.

306
SECRETARIA NACIONAL DE
POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA MINISTÉRIO DOS GOVERNO
IGUALDADE RACIAL DIREITOS HUMANOS FEDERAL

ISBN 978-85-66413-14-4

9 78 8 5 6 6 4 1 3 1 4 4

Você também pode gostar