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Abordagem Historica Populcao Negra PR Vol2
Abordagem Historica Populcao Negra PR Vol2
A POPULAÇÃO NEGRA NO
ESTADO DO PARANÁ
ORGANIZADORAS
ANA ZAICZUK RAGGIO
REGINA BERGAMASCHI BLEY
SILVIA CRISTINA TRAUCZYNSKI
VOL. 2
Curitiba, Paraná, Brasil
2018
Governo do Estado do Paraná
Departamento de
Direitos Humanos e Cidadania
Organizadoras
Ana Zaiczuk Raggio
Regina Bergamaschi Bley
Silvia Cristina Trauczynski
Capa
Ana Carolina Gomes
P831
População Negra no Estado do Paraná: Coletânea de Artigos - Abordagem
Histórica - v. 2 / Organizadores: Ana Zaiczuk Raggio, Regina Bergamaschi Bley,
Silvia Cristina Trauczynski - Curitiba: SEJU, 2018.
306 p.
ISBN 978-85-66413-14-4
CDD-300
É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte.
Reproduções para fins comerciais são proibidas.
Apresentação
Introdução
O direito à memória hoje no Brasil é visto como um direito fundamental, em
que todos os sujeitos sociais têm direito ao acesso ao seu passado e às informações
que lhe permitem pensar suas identidades culturais, dito isso, discutir a memória
negra no estado do Paraná implica entender que muitas das práticas de vida da po-
pulação afro-brasileira no decorrer do século XX foram vistas como obstáculo para
a constituição do projeto nacional pensado pela elite, e na história do Paraná não foi
muito diferente, a construção de uma identidade paranaense, ou mesmo paranista,
se fez a partir da omissão ou do esquecimento da presença da população negra no
estado e, consequentemente, de sua memória.
Como argumenta Michael Pollak (1992), a memória coletiva é em parte
herdada, e não se refere apenas à vida física da pessoa, a memória remete tanto aos
mecanismos de acumulação vinculando-se às formas de conservação, atualização e
reconhecimento de uma lembrança, quanto aos processos de compartilhamento de
representações sociais. Afeita ao universo de interações e significações de um sujeito em
seu mundo, é essa reinterpretação constante do passado, sua reconfiguração e formas
de ação no presente. Pollak ainda afirma que a memória também sofre flutuações em
função do momento em que ela é articulada, em que está sendo expressa, estabelecen-
do o que aqui chamaremos de políticas da lembrança ou políticas do esquecimento.
1
Pós-doutor em História, na linha de pesquisa em Fronteiras, Populações e Bens Culturais no
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá-Paraná. Doutor
em Educação com estágio de doutoramento junto ao Centro de Investigação Didática e Tecno-
logia na Formação de Formadores, da Universidade de Aveiro, Portugal. Mestre em Educação e
graduado em História. E-mail: ddelton@gmail.com.
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A presença negra na história do Paraná
(2016), começaram a ser questionadas de forma mais incisa a partir do final das
décadas de 1970 e de 1980, dentro do processo de redemocratização da sociedade
brasileira e como resultado da organização e pressão do Movimento Negro Unifica-
do (MNU) e as novas perspectivas de pesquisa histórica baseada na Nova História
Cultural, que apregoam que as manifestações de origem africana deixaram de ser
vistas como exóticas e passaram a ser reconhecidas e valorizadas como formas de
expressão da cultura afro, como referência às identidades negras nas diversas regiões
do país, inclusive no Paraná.
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O ouro brasileiro era encontrado no barranco das margens dos rios ou em seu leito.
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XX. Martins foi o autor da primeira obra sobre a historicidade do estado, intitulada
História do Paraná, publicado em 1892. José Iurkiv (2002), ao analisar o livro de
Martins, afirma que, por ser um texto extremamente narrativo, jornalístico e infor-
mativo, elencando uma série de informações detalhadas, abrangendo localidades e
épocas de uma forma sequencial:
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Outro argumento utilizado por Romário Martins (1995) em sua obra é que
o pequeno contingente populacional de negros e mulatos no Paraná se deve à pe-
cuária desenvolvida no estado no século XVIII, a cargo de índios e seus mestiços, e
não a agrícola, para qual o negro era preferido como a cana-de-açúcar no Nordeste,
e o café no Sudeste brasileiro, argumento que tem sido refutado por pesquisas mais
atuais sobre a participação da população negra no desenvolvimento econômico pa-
ranaense. Dessa forma, podemos afirmar que a obra de Martins colabora com a polí-
tica de esquecimento por omissão para construção de uma política da memória, que
construa uma identidade paranaense alinhada com as políticas de branqueamento
da época, ou seja, o paranista.
Nesse sentido, o conceito de paranista foi definido por Romário Martins
como:
Paranismo é todo aquele que tem pelo Paraná uma afeição sincera,
e que notavelmente a demonstra em qualquer manifestação de ati-
vidade digna, útil à coletividade paranaense. [...] Paranista é simbo-
licamente aquele que em terra do Paraná lavrou um campo, vadeou
uma floresta, lançou uma ponte, construiu uma máquina, dirigiu
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Ao analisar a população dos estados que compõem a região Sul do país, per-
cebe-se que o Paraná é o estado que concentra o maior número de negros. De acor-
do com Silva (2010):
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tivas, como Minas Gerais, ou mesmo o Sudeste com o café. Nesse sentido, houve uma
interpretação segundo a qual se minimizou o trabalho escravo feito na província.
A economia paranaense, embora não rivalizasse com os grandes ciclos, usou
a mão de obra escrava. Santos (2001) afirma que a economia colonial paranaense
cresceu baseada na ocupação do solo, na valorização de atividades econômicas e no
uso sistemático da mão de obra escrava. As atividades econômicas mais significativas
que envolveram a escravidão foram a produção do mate e do tropeirismo, conjunto
de homens que transportavam gados, iniciado ainda no século XVIII e que seguiu
por todo o século XIX, com algumas interrupções devido à exploração da prata.
Na segunda metade do século XVI, a presença negra em território paranaen-
se é detectada, junto com colonizadores portugueses marginalizados e outros aven-
tureiros. Gutierrez (2006) afirma que, na região onde atualmente fica a cidade de
Paranaguá, no decorrer do século XVII e XVIII, foram identificados dois grupos de
africanos em terras paranaenses, os bantos e os sudaneses.
Essa informação se torna relevante pois nos ajuda explicar a existência de
patrimônios culturais materiais vinculados à população negra desde da segunda
metade do século XVI, como, por exemplo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, em
Paranaguá, considerara uma das primeiras em solo paranaense e a primeira dedicada
à Nossa Senhora do Rosário no Brasil, construída no período de 1575-1578. Sofreu
sucessivas reformas, adaptações, saques e destruição de peças, tendo sido tombada
pelo Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná, em 1967.
Temos ainda a Igreja Nossa Senhora do Benedito, também em Paranaguá.
Foi a primeira igreja construída no Sul do Brasil por escravos negros devotos de
São Benedito, acredita-se que por volta de 1600 a 1650. Padroeira da Irmandade
de São Benedito, santo negro que os escravos chamavam de o “Glorioso São Bene-
dito”. Construída para a encomendação dos corpos dos negros mortos, para missas,
casamentos e também batizados dos cativos, que não podiam frequentar a igreja dos
brancos. Até hoje é preservada, porém já foi reformada várias vezes. Tombada pelo
Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná, em 1962 e pelo Instituto do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1967.
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Considerações finais
A identidade de um grupo se constrói por meio de uma relação direta com a
memória coletiva na história. No caso do Paraná, percebemos que houve uma ges-
tão da memória a partir do “paranismo”, para alicerçar uma identidade paranaense
a partir dos imigrantes europeus que chegaram ao estado na segunda metade do
século XIX. Essa gestão da memória, muitas vezes, empreendida pelo governo e re-
ferenciada por uma literatura historiográfica que minimizou ou apagou a presença
negra da história oficial do Paraná.
Esse quadro tem mudado devido à luta do povo negro por reconhecimento e
valorização de suas memórias, e pelas novas formas de se construir as narrativas his-
tóricas a partir dos grupos que foram silenciados. Esses novos estudos sobre a iden-
tidade étnico-racial paranaense têm realizado o que chamamos no decorrer do texto
de política da lembrança, que nada mais é do que a construção de uma historiografia
que considera os lugares de resistência da população afro-brasileira no estado, como,
por exemplo, as comunidades quilombolas.
No entanto, empreender um direito à memória que vise lembrar a presença
da população negra no estado não é feito sem conflitos com o governo, ao ques-
tionar a história oficial do estado e outros grupos sociais, como os descentes dos
imigrantes de europeus que viviam na região. Cabe ressaltar que as comunidades
quilombolas, ao se organizarem pelo direito aos territórios ancestrais, não estão ape-
nas lutando por demarcação de terras, sobretudo, estão fazendo valer seus direitos
para salvaguardar um modo de vida. Os territórios quilombolas são vistos como um
espaço físico que garante a sobrevivência dos descendentes de homens e mulheres
escravizados, e, não só isso, com as reformulações do conceito de patrimônio que
tivemos no decorrer do século XX, os territórios quilombolas passam a ser vistos
como um espaço de referência para a construção da identidade da população negra
paranaense.
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Processos migratórios da
população negra no Paraná
Ana Maria Rufino Gillies1
1
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná e professora Adjunta do Departa-
mento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Campus de
Irati. E-mail: amrgillies@irati.unicentro.br.
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
moradia, saúde e trabalho os negros libertos, e também realizava bailes para arreca-
dar dinheiro para ajudar os que precisavam de auxílio.
No caso das motivações para migrações dos negros no Brasil após a aboli-
ção, Costa destaca que muitos autores tenderam a destacar a migração como perda,
ligada a condicionantes econômicos, em que as trajetórias desses migrantes, vitimi-
zados pelas mazelas da escravidão, levaram a insucessos (como a marginalização e o
favelamento). Embora seja um fato indiscutível que elevadas parcelas da população
negra no país ainda estejam à margem das possibilidades de forjar condições ideais
de vida, Costa deseja enfatizar o negro no pós-abolição como agente do processo
migratório, ou seja, convidar-nos a perceber que, para migrar, eles fizeram avaliações
e escolhas baseadas numa racionalidade que apenas o conhecimento das situações
específicas podem nos ajudar a avaliar e compreender.
Algumas pesquisas realizadas nesse sentido procuraram conhecer as traje-
tórias de vidas após a promulgação da Lei Áurea, e elas revelaram que, no Vale do
Ribeira, região das grandes fazendas produtoras de café, nem todos os libertos mi-
graram, mas, pelo contrário, permaneceram nas fazendas, trabalhando sob outras
condições. No caso do Paraná, que não fazia parte do grande circuito agroexpor-
tador da economia brasileira, o processo de abolição gradual da escravidão ocorreu
ao mesmo tempo que o governo imperial incentivava a vinda de imigrantes com o
intuito de formar uma classe de pequenos agricultores para o abastecimento de víve-
res, no entorno de Curitiba e em localidades do interior, e para substituir os escravos
e/ou libertos, enfim, os negros, nas atividades que exerciam no meio urbano e no
meio rural. Todavia, há que se ressaltar que, apesar do hábito de tratar como irreme-
diavelmente opostos os negros escravos e libertos, de um lado, e os imigrantes e seus
descendentes, de outro, existem evidências na documentação sobre imigração, em
processos criminais e ações cíveis, indicando que, apesar das ocasionais tensões e dos
esforços da administração pública provincial, relações de sociabilidades e de outras
naturezas se desenvolveram entre esses grupos.
Nas situações em que senhores desejavam manter seus libertos, uns podem
ter permanecido, mas outros escolheram se distanciar e recomeçar suas vidas onde
pudessem forjar algo completamente novo no meio de pessoas que não conheciam
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as condições em que viveram antes. Num texto em que discute vivências no pós-
-abolição, Lúcia Helena Oliveira Silva (2005) conta uma história extraída de um
processo cível em que libertos, que haviam recebido uma herança de seu falecido
senhor, sofriam na justiça contestação por parte da viúva, Rosa, e seu novo marido,
que buscavam reverter a doação em seu favor. A alegação da viúva era que, após
serem beneficiados com a herança, os libertos haviam mudado de conduta, isto é,
recusaram-se a permanecer com ela, a seu serviço, e mudaram-se para outras locali-
dades. Os libertos beneficiados recusaram-se a serem “reescravizados”, como enten-
diam ser o objetivo real da viúva. A autora concluiu que Rosa desejava que os ex-es-
cravos permanecessem com o mesmo comportamento dos tempos de cativeiro, para
servi-la, o que não aconteceu, pois, entre outros fatores, a liberdade para os libertos
era, sobretudo, o direito de ir e vir, de estar onde quisesse. Ou seja, migrar era cla-
ramente uma reafirmação da autonomia em relação à condição de livres. Nenhum
deles permaneceu na cidade em que haviam vivido, Palmeira, mas mudaram-se para
cidades próximas, atitude importante que expressava o desejo de viver sua nova con-
dição e estabelecer relações em outros lugares.
Se muitos desejaram distanciar-se dos contextos antigos, alguns, beneficia-
dos com heranças de seus antigos senhores, usualmente na forma de doações de
terras, mas também pela compra, permaneceram cuidando de suas roças com pe-
quena ou média produção enquanto possível. Outros, remanescentes da escravidão,
e mesmo bem antes da abolição, estabeleceram-se em comunidades quilombolas e/
ou “terras de pretos”, formadas por negros livres ou fugitivos, oriundos do Paraná e
de outras províncias, e localizadas em lugares distantes e de difícil acesso; algumas,
enfrentando desafios, ainda existem em seus locais de formação original e outras
foram extintas (MEZZOMO; SEMPREBOM, 2013). No Paraná, a pesquisa rea-
lizada pelo Grupo Clóvis Moura (GOMES JÚNIOR; SILVA; BRACARENSE,
2008) descobriu a existência de 90 dessas comunidades.
Migrar é possível, para aqueles que detêm o direito e a liberdade de dispor de
si, privilégio de que o negro, no Brasil, não pode usufruir por quase quatro séculos.
A condição escrava a que o sujeitaram implicava limitações que, quando não respei-
tadas, levavam a severas punições. Assim como não podia fugir ao trabalho cativo,
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pela fuga. Esse imaginário também desconsiderou o fato demonstrado por Octavio
Ianni (1988), de que uma outra e desejada migração também ocorrera, qual seja,
uma migração étnico-racial, através da miscigenação, ou, para tomar emprestado o
conceito do autor, houvera uma “metamorfose”, através da qual o africano passara
a crioulo, a mestiço, a mulato, a pardo, a “branco”. Ou seja, no Paraná que celebra
sua diferença em relação a outras regiões do Brasil, nada há de tão diferente assim,
uma vez que os dados dos censos entre os séculos XIX e XX mostram ter havido
um processo de branqueamento na população, o que implica a existência de raízes
negras em considerável parcela da população paranaense.
Não é tarefa fácil descobrir a extensão dos processos migratórios da popula-
ção negra no Paraná. Ainda são poucas as pesquisas e estas circunscrevem espaços
específicos. Já foi mais fácil. Conforme Sebastião Ferrarini, após a emancipação po-
lítica da província do Paraná, ocorrida em 1853, a administração passou a manter
registros sobre o número de habitantes, livres e escravos. Assim sendo, no ano de
1866, por exemplo, a população total era de 87.491 livres e 11.596 escravos, os quais
se encontravam distribuídos pelas seguintes localidades: Curitiba, Príncipe (Lapa),
Castro, Antonina e Paranaguá, possuindo entre 1.086 e 1.204 escravos cada; São
José dos Pinhais, 769; Ponta Grossa, 753; Jaguariaíva, 622; Guarapuava, Morretes,
Campo Largo e Palmeira, entre 576 e 518 cada; Guaraqueçaba e Votuverava, 230 e
203, respectivamente; Guaratuba, Iguaçu e Rio Negro, entre 196 e 114 cada (FER-
RARINI, 1971).
Ainda segundo Ferrarini, até um determinado momento, houve no Paraná
um controle da circulação da população negra, demandado pelo governo imperial.
Para tanto, a fim de produzir um levantamento estatístico minucioso, a delegacia
de polícia mandava realizar periodicamente uma contagem, informando quantos
entrados ou saídos em determinadas épocas, além do sexo, idade, estado civil, profis-
são, se habitante no meio rural ou urbano. Produziu-se, em função dessa exigência,
considerável quantidade de dados.
De acordo com Octavio Ianni (1988), na composição demográfica do Pa-
raná, em 1872, os pardos reuniam 34,59% dos habitantes; em 1890 eles corres-
pondem a 31,03%, ao mesmo tempo em que se verifica a queda relativa de negros;
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Aspectos históricos da
presença do negro no Paraná
Edson Lau Filho1
lheres, crianças e idosos. As crianças trabalhavam junto com suas famílias nas fazen-
das, nos ervais e nos engenhos, realizando diversas atividades.
Em muitas regiões, a mão de obra escrava (já misturando os escravos negros
com os escravos índios capturados na ocupação do interior) foi especialmente im-
portante, para se consolidar os povoados em formação como em Paranaguá, Anto-
nina, Guaratuba, Castro, Curitiba, Lapa e São José dos Pinhais.
A população negra foi inserida como mercadoria na compra, venda e aluguel
e rendia impostos ao governo. Produzia riquezas com seu trabalho e era importante
para a economia do mercado interno e externo de bens. A Província do Paraná,
já em 1872, possuía registro de cerca de 10.500 negros escravizados. Em 1887, o
número teria diminuído para 3.600 e esse declínio foi atribuído mais às mortes, ven-
das e transferências para outras províncias do que pela libertação concedida pelos
senhores escravocratas. (TUMA, 2008):
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Aspectos históricos da presença do negro no Paraná
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dos quilombolas ali residentes em serviçais dos cooperados suábios, os quais busca-
vam um novo começo de suas vidas marcadas pelo conflito mundial.
Da mesma forma, os remanescentes de quilombos na região dos Campos
Gerais, no entorno da Fazenda Capão Alto, no município de Castro, passaram pelo
mesmo processo de aculturação ao receberem na região nova leva de imigrantes ho-
landeses que formaram a Cooperativa Castrolanda.
Considerando que, ao longo do século XX, o projeto nacional brasileiro
com base na europeização2 do Brasil apagou ou minimizou a presença do negro no
Paraná, buscar identificar o pouco que se tem de informações dessa população no
estado, seus lugares, seus saberes e suas celebrações é no mínimo questionar o silen-
ciamento da história em relação à população afro-brasileira.
Ao analisar os quilombos paranaenses como lugar de memória negra, é per-
ceptível que a maioria dos fatores converge para a questão da importância do ter-
ritório como espaço identitário e da preservação de seus saberes e de seus fazeres.
Um resgate da história da população negra que habitou o Paraná em situação de
escravidão e no pós-abolição. Podemos afirmar que, para os quilombolas paranaen-
ses hoje, é muito importante poder reconhecer um determinado modo de vida em
um espaço, mesmo que apenas histórico, dando continuidade a seu modo de vida,
mesmo que de forma mutável, ao estabelecer relações com outros grupos e com os
interesses dos tempos atuais. Dessa forma, as comunidades quilombolas remanes-
centes precisam de muito estudo e pesquisa, pois são as melhores referências para a
construção da identidade da população negra paranaense.
Após 1888, os ex-escravos continuaram sendo usados como carregadores,
estivadores, jornaleiros, serventes, encarregados de limpeza das casas, lavadores de
vidros e de casas, vendedores ambulantes, carpinteiros, pintores, pedreiros e todo
tipo de emprego de menor valia, perpetuando-se, ainda, até os dias atuais, especial-
mente nos serviços domésticos.
2
Ideologia de branqueamento da população brasileira, institucionalizada legalmente por Ge-
túlio Vargas, por meio do Decreto-Lei nº 7.667, em 18 de setembro de 1945, que regulava a
entrada de imigrantes no Brasil de acordo com a necessidade de preservar e desenvolver na com-
posição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia.
As políticas de branqueamento implementadas no Brasil buscavam restringir qualquer forma de
crescimento da população negra.
42
Aspectos históricos da presença do negro no Paraná
No estado do Paraná, como nos outros estados do Sul, durante muito tempo
se acreditou que a escravidão negra havia sido muito pouco significativa nessas re-
giões por terem prevalecido as invernadas e fazendas de criação de gado, que neces-
sitavam de muito menos mão de obra que os engenhos do Nordeste açucareiro e as
fazendas de café da região Sudeste. Regiões onde prevaleciam a grande propriedade
sustentada pelo trabalho escravo, com produção destinada a abastecer o mercado
externo, e abastecidas pela pecuária das províncias do Sul que configuravam eco-
nomias de abastecimento do mercado interno. Mas as pesquisas recentes têm de-
monstrado o contrário e comprovado, paulatinamente, que a influência do negro
na formação do caráter paranaense é de igual importância de todas as outras etnias
que aqui se estabeleceram.
O resgate dessa parte esquecida, deliberadamente, pelos livros de história de
nosso estado tem por objetivo demonstrar características e elementos socioculturais
presentes na história do nosso estado, desconstruir ideias sobre a invisibilidade da
população negra no Paraná, analisar a presença da população negra nos diversos
espaços sociais e suas dinâmicas culturais, destacar características da cultura afrodes-
cendente como parte do estado e visibilizar contribuições da população negra nas
diversas áreas de atuação em momentos históricos diferentes no Paraná.
Desde 2003, existe uma lei federal que obriga o ensino de história da África
e cultura africana nas escolas. A Lei nº 10.639/2003 torna obrigatório o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra bra-
sileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil.
Ato contínuo, o Conselho Estadual de Educação do Paraná estabeleceu nor-
mas para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana. Assim, a Deliberação nº 04/2006, aprovada em 2 de agos-
to de 2006, do Conselho Estadual de Educação de Estado do Paraná, estabelece
normas complementares às diretrizes curriculares nacionais para a educação das re-
lações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, a
serem desenvolvidas pelas instituições de ensino públicas e privadas que atuam nos
níveis e modalidades do sistema estadual de ensino no Paraná. O ensino de história
43
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
44
Aspectos históricos da presença do negro no Paraná
Referências
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Paiol de Telha em um contexto de reivindicação de terras. 2009. Dissertação (Mestrado em
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TUMA, Magda Madalena Peruzin. Viver é descobrir: história do Paraná. São Paulo:
FTD, 2008.
45
Negros no Paraná na primeira
década do século XXI: características
demográficas e desigualdades raciais
Paulo Roberto Delgado1
Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar um retrato da situação da população
negra no Paraná ao fim da primeira década do atual século, considerando a evolução
de sua participação na população do estado, sua distribuição regional e algumas ca-
racterísticas demográficas, relacionadas ao sexo, idade e composição familiar. Além
disso, dada a importância que a educação e a obtenção de trabalho possuem para
as condições de vida da população, procurou-se verificar se essas dimensões apre-
sentaram melhoria na última década e em que medida tais mudanças contribuíram
para reduzir os níveis de desigualdade que historicamente têm marcado a população
negra no estado e no país.
O censo demográfico, base das informações abordadas neste artigo, é uma
das principais fontes sobre a situação social da população segundo classificação por
cor ou raça2. Porém, além de alguns censos (1920 e 1970) não trazerem esse quesito,
o sistema de classificação passou por alteração ao longo do tempo, bem como o
modo de captação da informação – se atribuído pelo recenseador ou autodeclarado
pelo entrevistado.
Apenas duas categorias se mantiveram em todos os censos que incluíram o
quesito cor/raça: branca e preta3. A categoria amarela foi introduzida a partir de
1
Sociólogo, pesquisador do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES).
2
Outra fonte importante é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), a qual traz
dados para o país, grandes regiões, estados e regiões metropolitanas, mas não, como o censo, para
municípios.
3
No primeiro censo após a abolição da escravatura (1890), a categoria preta foi restrita aos afri-
46
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
48
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Nota: A participação, nos diversos anos, não totaliza 100% devido à exclusão dos casos de não decla-
ração e dos grupos que foram sendo incluídos ao longo dos censos (amarela e indígena), mas que têm
pequena participação na população brasileira.
Fonte: IBGE, Censos Demográficos de 1940/2010.
4
No meio século que se estende de 1890 a 1940, o número de pretos foi incrementando em 208%
e o de pardos em 130%. Os dados históricos sobre a composição populacional por cor foram ob-
tidos em http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=10&op=0&vcodigo=POP106&-
t=populacao-presente-residente-cor-raca-dados (consulta em 6 fev. 2017).
49
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Esse autor, como outros (DUARTE, 2011; ANJOS, 2013), relaciona essa
mudança à maior presença do movimento negro, o qual, entre outras ações de mobi-
lização, realizou, por ocasião do censo de 1991, uma campanha de conscientização,
para as pessoas se reconhecerem a partir de sua origem étnica. Além disso, é possível
que, a partir dos anos 2000, a adoção de políticas de combate à discriminação e à de-
5
Nesse mesmo período, a população total brasileira aumentou em 29,9%.
6
Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, realizada nacionalmente pelo IBGE com pe-
riodicidade anual, exclusivamente nos anos de realização do censo demográfico, e desde 2012,
trimestral.
50
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
7
Ressalte-se que este foi um período de expansão da fronteira agrícola paranaense, levando o es-
tado a apresentar taxas de crescimento populacional superiores à do Brasil; e, apesar desse intenso
crescimento se manifestar entre os diferentes grupos de cor/raça, as taxas referentes aos pardos
foram as mais elevadas, particularmente entre os anos de 1950 e 1980.
51
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
9
Conforme Magalhães, Cintra e Angelis (2014), na primeira década do século XXI, no Paraná,
houve redução no número de imigrantes e de emigrantes interestaduais, com expressiva queda no
saldo migratório que foi praticamente nulo no período 2005/2010; essa queda acentua um pro-
cesso que já se observava no período censitário anterior (1995/2000). Se as trocas interestaduais
perdem peso, o mesmo não se verifica com os movimentos migratórios no interior do estado, os
quais podem contribuir para mudanças na composição por cor da população nas regiões e municí-
pios do estado, juntamente com os fatores endógenos de crescimento mencionados anteriormente.
53
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Cor/Raça
Mesorregião Geográfica
Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
Distribuição (%)
Noroeste Paranaense 5,4 8,0 6,4 9,3 2,6 6,5
Centro Ocidental Paranaense 2,7 3,5 2,9 4,6 1,6 3,2
Norte Central Paranaense 18,7 23,0 36,5 20,4 22,5 19,5
Norte Pioneiro Paranaense 5,1 7,1 7,0 5,2 7,0 5,2
Centro Oriental Paranaense 7,0 5,9 3,2 5,9 6,1 6,6
Oeste Paranaense 11,5 10,8 9,4 12,4 12,0 11,7
Sudoeste Paranaense 5,1 3,0 2,4 4,2 4,7 4,8
Centro-Sul Paranaense 4,9 4,7 3,9 6,1 22,1 5,2
Sudeste Paranaense 4,3 2,2 1,3 2,9 1,7 3,9
Metropolitana de Curitiba 35,3 31,8 27,1 29,0 19,8 33,5
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
10
O quociente locacional relaciona a participação de uma região na população total de uma cate-
goria de cor com a sua participação no total da população estadual; quando essa relação é maior
que 1, significa que essa região tem um peso maior na distribuição da população de uma dada ca-
tegoria de cor do que sua participação no total da população estadual. Na Tabela 2, por exemplo,
a norte central concentra 23,0% das pessoas pretas e uma participação de 19,5% na população
total do estado.
54
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Cor/Raça
Mesorregião Geográfica
Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
Quociente locacional
Noroeste Paranaense 0,83 1,23 0,98 1,44 0,40 1,00
Centro Ocidental Paranaense 0,85 1,09 0,92 1,42 0,49 1,00
Norte Central Paranaense 0,96 1,18 1,87 1,05 1,15 1,00
Norte Pioneiro Paranaense 0,98 1,35 1,34 1,00 1,34 1,00
Centro Oriental Paranaense 1,05 0,89 0,48 0,89 0,93 1,00
Oeste Paranaense 0,98 0,93 0,80 1,06 1,03 1,00
Sudoeste Paranaense 1,07 0,62 0,50 0,88 0,99 1,00
Centro-Sul Paranaense 0,93 0,90 0,75 1,18 4,25 1,00
Sudeste Paranaense 1,12 0,57 0,32 0,76 0,43 1,00
Metropolitana de Curitiba 1,05 0,95 0,81 0,87 0,59 1,00
Total 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00 1,00
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.
55
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
56
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Sexo Distribuição %
Cor/Raça
Masculino Feminino Masculino Feminino
Branca 3.536.973 3.780.336 48,3 51,7
Preta 177.134 151.815 53,8 46,2
Amarela 59.759 64.520 48,1 51,9
Parda 1.344.220 1.303.675 50,8 49,2
Indígena 12.742 13.045 49,4 50,6
Ignorado 166 140 54,3 45,7
Total 5.130.994 5.313.532 49,1 50,9
Fonte: IBGE (2010).
Figura 5 – Razão de sexo na população segundo faixa etária e cor/raça – Paraná – 2010.
Cor/Raça
Faixa Etária
Branca Preta Amarela Parda Indígena Total
0a5 8,7 4,2 5,4 7,7 11,1 8,3
6 a 14 14,0 10,6 10,6 16,8 18,0 14,6
15 a 17 5,1 4,6 3,8 6,4 5,3 5,4
18 a 24 11,9 12,0 11,2 12,7 11,8 12,1
25 a 64 52,3 60,3 54,6 50,1 45,8 52,0
65 e + 7,9 8,2 14,5 6,2 8,0 7,6
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: IBGE (2010).
59
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Razão de
42,4 45,4 46,4 47,1 62,9 43,8
dependência
Relação idoso/
36,5 24,9 70,9 24,5 20,9 32,8
criança
Nota: como a referência são as pessoas nos domicílios, os totais desta tabela são diferentes dos
contingentes específicos dos grupos de cor/raça (ver Tabela 1, ano 2010), uma vez que em muitos
domicílios há pessoas de cor/raça diferentes.
Fonte: IBGE (2010).
60
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Figura 6 – taxa de endogamia dos matrimônios segundo sexo e cor/raça – Paraná – 2010.
62
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Nos domicílios com responsáveis pardos, 63,7% dos membros têm a mesma
cor/raça do responsável pelo domicílio; naqueles chefiados por brancos, 87,6% dos
demais membros reproduzem a cor dos responsáveis.
63
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Escolaridade
A Tabela 9 apresenta o nível de instrução alcançado pelas pessoas de 15 anos
e mais de idade. Essa informação permite uma aproximação às mudanças que vêm
ocorrendo com a escolaridade ao longo das gerações14 e, também, verificar a evolu-
ção dos diferenciais de desempenho entre os grupos de cor/raça.
Iniciando a leitura pelos idosos (65 anos e +), verifica-se tratar de um grupo
que na quase totalidade não chegou a concluir o ensino fundamental, podendo-se
supor mesmo que a maioria se deteve no que corresponderia aos anos iniciais dessa
etapa de ensino. Mesmo nesse quadro de baixa escolaridade, chama atenção a alta
desigualdade entre brancos e negros; enquanto 21,1% dos brancos tinham comple-
tado o ensino fundamental ou nível mais elevado, entre os pretos e os pardos esse
percentual não ultrapassa a 8%.
Entre a população adulta (30 a 64 anos), o percentual que concluiu o ensino
fundamental ou nível mais elevado sobe para 51,5%, contra 18,1% no grupo de
idosos. Essa melhoria pode ser observada nos três segmentos raciais, mas entre os
negros quase 2/3 não chegou a concluir o ensino fundamental. Vale lembrar que
esta é uma população que tem elevada taxa de participação no mercado de traba-
lho, sendo que esses diferenciais de escolaridade devem afetar as oportunidades de
acesso ao trabalho, seja na obtenção de uma ocupação, seja em relação ao tipo de
ocupação que poderá exercer.
14
Fala-se em “aproximação” geracional por que, particularmente entre os idosos, o que o censo
traz é a informação de escolaridade dos sobreviventes, não expressando totalmente a situação
dessa coorte quando ela estava em idade escolar.
64
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Cor/Raça
Faixa Etária Nível de Instrução
Branca Preta Parda Total
Sem instrução e fundamental incompleto 20,4 35,2 34,4 24,6
Fundamental completo e médio incompleto 29,0 30,0 32,8 30,0
Médio completo e superior incompleto 39,0 30,2 28,7 36,0
15 a 29
Superior completo 10,5 3,7 3,2 8,4
Não determinado 1,0 0,9 1,0 1,0
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
Sem instrução e fundamental incompleto 43,3 59,5 63,0 48,5
Fundamental completo e médio incompleto 15,6 15,4 15,3 15,5
Médio completo e superior incompleto 24,7 19,0 16,8 22,5
30 a 64
Superior completo 16,2 6,0 4,8 13,3
Não determinado 0,2 0,2 0,2 0,2
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
Sem instrução e fundamental incompleto 78,8 92,0 92,4 81,9
Fundamental completo e médio incompleto 7,3 4,0 3,8 6,5
Médio completo e superior incompleto 7,9 2,6 2,6 6,7
65 e +
Superior completo 6,0 1,3 1,2 4,8
Não determinado 0,1 0,0 0,0 0,1
Total 100,0 100,0 100,0 100,0
Fonte: IBGE (2010).
Uma síntese dessa evolução pode ser observada na Figura 7, que destaca a
parcela da população que, em cada grupo etário, concluiu o ensino fundamental ou
etapa mais elevada do ensino. Há inegável avanço no nível de escolaridade da popu-
lação no Paraná, mas o diferencial entre a coluna que representa o desempenho dos
65
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
66
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Cor/Raça
Ano Faixa Etária
Branca Preta Parda Total
Taxa bruta de escolarização (%)
7 a 14 96,2 93,3 94,0 95,7
2000 15 a 17 75,6 62,9 64,6 73,1
18 a 24 31,1 21,9 22,3 29,3
Trabalho
A primeira década do atual século foi um período marcado por intenso cres-
cimento da ocupação no país. No Paraná, segundo dados dos censos demográficos,
entre 2000 e 2010 o número de pessoas ocupadas foi acrescido em 1,2 milhão de
pessoas, uma variação relativa de 31% no período; com isso, em 2010 havia um con-
tingente de 5,3 milhões de pessoas trabalhando no estado. A Tabela 11 permite ve-
rificar que esse dinamismo do mercado de trabalho significou um aumento na taxa
de ocupação, com 63,9% da população de 14 anos e mais de idade encontrando-se
na condição de ocupado. Percebe-se, ainda, que o nível de ocupação é praticamente
igual entre negros e brancos.
68
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Mediana
2000 1,23 0,93 0,93 1,12
2010 1,67 1,37 1,37 1,57
Variação (%) 36,1 47,4 47,4 40,8
Nota: inclui apenas os ocupados com rendimento no trabalho principal; os valores de 2000 foram atualiza-
dos para julho de 2010, pelo IPCA (fator: 1,896265) e transformados em salários mínimos dessa data.
Fonte: IBGE (2010).
16
A mediana separa uma distribuição em duas partes, significando que uma metade das pessoas
tem rendimento inferior a esta medida, e a outra ganhos acima; a média é uma medida mais
sensível a valores extremos, o que, no caso de distribuições de renda, significa ser mais afetada por
rendimentos mais elevados.
70
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Considerações finais
O Paraná continua sendo um estado com participação majoritária de po-
pulação branca, mas é, na região Sul, o que possui maior peso de pretos e pardos
em sua composição populacional. Na realidade, o crescimento desse grupo segue a
tendência observada nacionalmente, desde os anos 1940, com contínuo aumento
de sua participação no total populacional do estado.
No estado, esse processo contou com a contribuição dos elevados fluxos mi-
gratórios oriundos de outros estados, quando da expansão da fronteira agrícola es-
tadual entre os 1940 e 1970, processo este que ainda marca a distribuição regional
dessa população, com a porção norte do estado concentrando os municípios em que
os negros têm maior participação relativa na população dos municípios.
Nas duas últimas décadas, voltou a verificar-se maior incremento relativo da
população negra no estado. O número de pretos foi ampliado em 73% entre 1991 e
2010 e, na última década, quase todo crescimento populacional do Paraná decorreu
do incremento no número de pardos. Novamente, essa dinâmica demográfica segue
um padrão observado nacionalmente, no qual o crescimento mais elevado dos ne-
gros relaciona-se, para além dos fatores endógenos de crescimento populacional, a
uma mudança na autoidentificação racial da população.
Os homens têm um peso maior na composição da população negra, parti-
cularmente entre os pretos, cuja razão de sexo indica um excedente importante de
homens relativamente às mulheres, entre os jovens e adultos. A distribuição da po-
pulação negra entre os grupos etários (crianças, adultos e idosos), caracterizada pela
razão de dependência, não difere da verificada entre os brancos. Mas se observou
tram que a obtenção desse tipo de credencial não é suficiente para reduzir as diferenças entre
negros e brancos, pois o acesso a carreiras de maior prestígio – medicina, engenharias e direito
– continua muito desigual. Além disso, segundo esses autores, “entre as carreiras escolhidas (de
nível superior), há diferenças na inserção nos estratos ocupacionais e, mesmo entre aqueles que
têm qualificações e inserções semelhantes, as distorções salariais persistem” (p. 188).
72
Negros no Paraná na primeira década do século XXI
Referências
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IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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Sergei (Orgs.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a
abolição. Brasília, DF: IPEA, 2008. p. 97-117.
74
O Paraná e a educação da
população negra1
Celso José dos Santos2
Claudinei Magno Magre Mendes3
Eduardo David Oliveira4
Introdução
O estado do Paraná foi palco da recepção de imigrantes europeus de forma
tão significativa que influenciou sensivelmente sua composição étnico-racial. Mais
que um embranquecimento biológico, com a significativa ampliação da população
branca residente, a partir da vinda dos imigrantes europeus, houve sobretudo um
embranquecimento cultural, seja pela exaltação, apoio e incentivo às tradições cul-
turais de imigrantes europeus, seja pela invisibilidade, negação e boicote aos valores
e manifestações culturais de matriz africana mantidos pela população negra.
O mesmo estado que financiou as políticas de embranquecimento, de forma
sistemática e abundante, agora, de forma homeopática, é capaz de produzir peque-
nas formas de políticas públicas para resgatar sua identidade negra escondida ao
longo do tempo. Esse breve olhar sobre a história paranaense visa reconhecer os ato-
res sociais que propiciaram essa inflexão na história, particularmente da educação
paranaense, de modo a produzir mecanismos institucionais de reafirmação, valori-
1
Adaptação de parte da Seção 2 e da Seção 3 da Dissertação “Equipes Multidisciplinares das
Escolas Estaduais da Região Noroeste do Paraná na aplicação da Lei 10.639/03: limites e poten-
cialidades”, apresentada por Celso José dos Santos ao Programa de Pós-Graduação em Ensino da
Universidade Estadual do Paraná – Campus de Paranavaí, como um dos requisitos para a obten-
ção do título de Mestre em Ensino. Área de Concentração: Formação docente interdisciplinar.
2
Mestre em Ensino, professor da rede Estadual de Educação do Paraná, membro do Conselho
Estadual do Promoção da Igualdade Racial do Paraná, representando a APP – Sindicato dos
Trabalhadores em Educação Pública do Paraná e Dirigente da CUT-Paraná.
3
Orientador da Dissertação de Mestrado.
4
Coorientador da Dissertação de Mestrado.
75
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
zação e resgate da identidade negra, ao mesmo tempo que mantém viva as tradições
culturais europeias.
Este artigo aborda aspectos históricos da presença da população negra no
estado do Paraná e de políticas voltadas para a recuperação da identidade de matriz
africana, visando reconhecer as contradições presentes nesse estado e os movimen-
tos contra-hegemônicos de resgate da identidade negra paranaense, invisibilizada
por séculos.
Para tanto inicia essa discussão com uma pequena imersão na omissão histó-
rica da educação da população negra no Brasil.
76
O Paraná e a educação da população negra
77
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
decorre de uma visão política e ideológica, referendada por uma concepção de his-
tória, como revela Bittencourt (2005, p 199):
78
O Paraná e a educação da população negra
80
O Paraná e a educação da população negra
Desse modo, não se trata de conferir ao termo “raça” sua conotação biológi-
ca, mas sociológica, uma vez que não há como se apagar as origens e consequências
do racismo, pelo simples fato de que do ponto de vista biológico somos todos homo
sapiens. A raça foi utilizada como instrumento de dominação e de segregação. O
termo “raça”, ressignificado, passa a ser utilizado como instrumento de identidade
social e de luta para superação dos efeitos do racismo criminoso.
82
O Paraná e a educação da população negra
cia do
Estrangeira
Estrangeira
Analfabeto
Analfabeto
Brasileira
Brasileira
Caboclo
Caboclo
Branco
Branco
Paraná
Pardo
Pardo
Preto
Preto
Livre 35.936 15.358 3.292 4.718 33.762 15.278 3.449 4.369 19.014 40.290 12.802 44.056 57.224 2.080 56.049 809
Escravo 2.010 3.496 2.099 2.955 6 5.500 2 5.052 5.029 477 4793 261
Total 35.936 17.368 6.788 4.718 33.762 17.377 6.404 4.369 19.020 45.790 12.804 62.253 2.557 60.842 1.070
83
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
84
O Paraná e a educação da população negra
Cabe destacar que esse movimento é fruto do passado, tendo em vista que
novos historiadores resgatam a presença e a participação da população negra na
construção social, política, econômica e cultural do estado do Paraná. Todavia, é
inegável que o “paranismo” deixou marcas profundas na história, na cultura e nas
políticas públicas de incentivo ou de exclusão da mobilidade de grupos étnico-ra-
ciais, de acordo com os setores dominantes, nos quais não se encontra a popula-
85
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
5
Em 2015, apenas uma cidade do Paraná teve feriado no Dia da Consciência Negra, celebrado no
dia 20 de novembro. O município de Guarapuava, na região dos Campos Gerais, tem esse feriado
desde o ano de 2009. No mesmo ano, a cidade de Londrina, na região Norte, também decretou
feriado municipal. Contudo, a Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP) conseguiu
uma liminar na Justiça para evitar as paralisações no comércio e repartições públicas. Curitiba
também chegou a aprovar o feriado em 2013, mas um pedido da Associação Comercial do Para-
ná (ACP) e do Sindicato da Construção Civil foi acatado pela Justiça, que suspendeu o feriado.
86
O Paraná e a educação da população negra
Parece, no entanto, que essas políticas públicas são de Governo e não de Es-
tado, uma vez que é perceptível a contradição no âmbito do Poder Executivo para-
naense, de um lado criando conselhos e espaços de monitoramento dessas políticas
públicas, de outro com redução de orçamento para a execução de ações que já fazem
história no Paraná, como, por exemplo, os encontros anuais do FPEDER/PR e os
encontros de educadores e educadoras negros e negras do Paraná, que só se efeti-
varam por uma atuação do movimento sindical (APP-Sindicato e CUT/PR) e do
movimento negro (participantes do FPEDER/PR). É nesse contexto de profundas
contradições, perpassando diferentes governos de Estado6 e intensas ações do mo-
vimento negro e dos(as) trabalhadores(as) em educação, que emergiram as equipes
multidisciplinares como um instrumento de política pública para implementação da
Lei nº 10.639/203 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Rela-
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.
Cabe destacar que a atuação da APP-Sindicato e do movimento negro para-
naense se confunde com o desenvolvimento, na Rede Pública Estadual de Educação
do Paraná, do debate acerca da história e cultura africana nos currículos escolares e
com as políticas para uma educação das relações étnico-raciais.
O acúmulo de atuação e de debate sindical em favor da educação das relações
étnico-raciais fez com que uma cobrança da APP-Sindicato, logo após a publicação
da Lei nº 10.639/2003, tenha resultado na instalação de um Grupo de Trabalho
(GT) paritário entre a SEED e a APP-Sindicato para formular propostas que fa-
vorecessem a inserção da temática nos currículos escolares e o acompanhamento da
implementação da referida lei nas escolas da Rede Pública Estadual. Esse GT serviu
de base para a criação posteriormente, no âmbito da SEED, do Núcleo de Educação
das Relações Étnico-Raciais e Afrodescendência (NEREA), hoje transformado em
Coordenação da Educação das Relações da Diversidade Étnico-Racial (CERDE).
6
Merece destaque que grande parte das políticas destacadas como inovadoras ocorreram durante
os governos de Roberto Requião, particularmente no segundo e terceiro mandatos (01/01/2003
a 04/09/2006 e 01/01/2007 a 01/04/2010). Os mandatos do atual governador (01/01/2011
a 31/12/2015 e 01/01/2015 até a presente data) é marcado pela instituição de conselhos de
políticas públicas, porém há significativa redução de investimentos para continuidade de ações
de promoção da igualdade racial em favor da população negra paranaense, particularmente no
campo educacional.
87
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Referências
BATISTELLA, Alessandro. O paranismo e a invenção da identidade paranaense. História
em Reflexão, Dourados, v. 6, n. 11, 2012.
BITTENCOURT, Circe. Identidade nacional e ensino de história do Brasil. In: KARNAL,
Leandro (Org.). História na sala e aula: conceitos práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005.
BRASIL. Recenseamento do Brazil Império em 1872. (Obra Rara). Rio de Janeiro, Typ.
Leuzinger/Tip. Commercial, [1874?], Biblioteca do IBGE, Livro 25477_v.1. Disponível
em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v1_br.pdf>. Acesso em:
15 out. 2015.
______. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP nº 03, de 10 de março de
2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial da União,
89
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Introdução
Pensar historicamente sobre o acesso da população negra ao universo escolar
pode trazer elementos interessantes para debates atuais que versam o tema das desi-
gualdades que caracterizaram e ainda caracterizam a conquista da cidadania plena
por parte dos grupos marcados pela exclusão. No bojo desses debates, emerge o as-
sunto das medidas de combate às desigualdades e ao racismo, no interior das quais
se situam as políticas de ação afirmativa, que visam equilibrar a inserção de brancos
e negros em repartições públicas como as instituições de ensino. O assunto é ainda
frutífero quando se toma o Paraná como ponto de partida, uma região marcada pela
memória hegemônica de supervalorização da imigração europeia e de negação da
prática da escravidão, consonante com as políticas de branqueamento em alta na
passagem do século XIX ao XX2.
Este artigo busca caminhar em sentido contrário a essas proposições do cam-
po da memória, ao salientar a importância da escravidão na formação e consolida-
ção do Paraná, através de uma análise que privilegie os entremeios trilhados por
escravizados e seus descendentes para obterem a educação formal, as desigualdades
1
É doutoranda em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Cecult - Unicamp).
Seu mestrado, desenvolvido na Universidade Federal do Paraná, se dedicou às propostas e expe-
riências de educação de escravos, libertos e ingênuos no Paraná oitocentista. -mail: noemihist@
gmail.com.
2
Refiro-me em especial às declarações de Wilson Martins (1989).
91
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
que caracterizaram esse processo, e os significados atribuídos por esses sujeitos para
a educação em escolas públicas. Atribuíamos à ideia de educação seu sentido escolar,
já que educação e instrução estavam agregadas no conceito de “instrução elementar”
durante o século XIX. Como nos indica Faria Filho (2009), nesse período o espaço
escolar foi interpretado não apenas como instrumento de transmissão de educação
para as novas e velhas gerações, mas também como meio de regeneração das cama-
das mais pobres. Cabia à escola comportar os saberes e valores propagados com o
fim de integração, mesmo que desigual, dos mais pobres à vida social.
No âmbito legal, escravizados estavam alheios do direito às escolas públicas.
A Constituição do Império não previa o contato deles com o ensino público, direi-
to reservado exclusivamente aos cidadãos no seu formato básico, o de “instrução
primária”. Escravos, não sendo considerados cidadãos perante a lei, não estavam au-
torizados à formação escolar básica na escola pública. Essa proibição foi reforçada
em decretos posteriores nas províncias, inclusive no Paraná, onde em 1857 o art. 39
do Regulamento da Instrução Pública assim sintetizava as limitações às matrículas:
3
Regulamento da Instrução Pública da província do Paraná.
4
Filhos livres de mulheres escravas nascidos após a Lei do Ventre Livre de 1871.
92
A educação da população negra
95
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Cleto chama atenção para o caráter filantrópico para justificar seu empreen-
dimento – algo dentro dos limites da normalidade para um homem que pretendia
seguir carreira política, porém, evidencia que sua ação não foi motivada pelos se-
nhores da região, mas sim que estes apenas “consentiriam” na iniciativa que estava
prestes a realizar.
5
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná; Livro: BR APPR nº 385, p. 123.
96
A educação da população negra
6
Art. 71.
97
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
8
Assim afirmava o inspetor paroquial num “Relatório de Visita” DEAP – PR, Ref: BR APPR
659, p. 122.
9
Modalidade da documentação escolar onde são mencionados alguns detalhes sobre os alunos
matriculados, tais como idade, profissão, condição e, em alguns casos, rendimento.
99
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
de frequentarem a escola pública de menores, e que por desleixo dos pais e tutores
acham-se jazendo nas trevas”13. Alguns anos depois, em correspondência de mesmo
teor, o professor contestava a permanência de menores ingênuos nas aulas noturnas
mesmo após uma condenação partida diretamente do imperador D. Pedro II em
visita à província do Paraná que reprovou a frequência de menores no ensino notur-
no, ao menos que as crianças comprovassem exercerem algum ofício durante o dia14.
Essa alta incidência de crianças negras no ensino escolar noturno reforça um
ideal de instrução para essas crianças nutrido por muitos pensadores sociais e eli-
te proprietária, que vinculava a escolarização de ingênuos ao trabalho, revelando a
disparidade das propostas de educação para brancos e negros durante esse período.
Alertava Perdigão Malheiro:
Mas pergunta-se, que educação devem receber estas crias, que aos 21
anos, por exemplo, têm que entrar no gozo pleno de seus direitos?
O essencial é que além da educação moral e religiosa, tomem uma
profissão, ainda que seja lavradores ou trabalhador agrícola: ele con-
tinuará a servir aí se lhe convier, ou irá servir a outrem. (MALHEI-
ROS, 1866, p. 156).
Nota-se, além do apelo pela instrução dos filhos de mulher escrava, que o
modelo educacional proposto para os ingênuos, na visão de Perdigão Malheiro, de-
veria condizer à classe social à qual seria destinado, de forma semelhante ao que era
projetado quanto à educação dos pobres nos tantos debates realizados em todo o
Ocidente, dedicados a pensar a questão. Sendo assim, embora a universalização da
instrução fosse um aspecto notável em seu pensamento, o conteúdo a ser transmi-
tido por essa espécie de ensino de forma alguma se encontrava uniformizado para
todos os segmentos sociais. Mesmo assim, escravos ou negros livres buscaram a es-
cola e a interpretaram enquanto um direito, basta atentar para a presença deles em
abaixo-assinados pela abertura de escolas noturnas no Paraná em regiões de ampla
presença de trabalhadores especializados, como foi Curitiba, Antonina e Morretes
naquele período.
13
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR nº 662, p. 241.
14
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR nº 603, p. 209.
101
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
entre elas, havia uma escola regida por um descendente de imigrantes alemães, que
chegou a lecionar para 70 alunos, os quais, também, obtiveram a abertura da mesma
aula mediante seguidos abaixo-assinados enviados aos presidentes de província, 52
alunos eram livres, entre eles, 12 eram escravos19.
Esses pedidos aconteciam porque a maior parte dessas escolas noturnas era
atingida instabilidade político-administrativa que afetava o governo provincial e
os municípios. Eram escolas criadas, em sua maioria, após a recomendação do pre-
sidente Carlos Augusto de Carvalho, que, em 1882, recomendou às autoridades
municipais a abertura de escolas de adultos tendo em vista que a Lei do Voto de
1881 passara a exigir a alfabetização para o alistamento de eleitores. Mas eram esco-
las que tinham uma existência de curta duração, suprimidas pelas próprias câmaras
logo após o término do mandato do governante, um fenômeno típico de manobra
praticada entre esses representantes locais para garantir favores durante os curtos
mandatos dos presidentes.
À parte dessas experiências, algumas situações diferentes apontadas na do-
cumentação oficial chamam atenção para outras formas encontradas por escravos e
negros livres para o acesso à instrução, como foi o caso da fundação de uma escola
de instrução básica aos presos da penitenciária de Curitiba, cujas aulas eram regidas
por um detento e escravo, no trânsito entre as décadas de 1870 e 1880. O chefe de
polícia Luiz Barreto Corrêa de Menezes registrou em relatório o funcionamento de
uma escola que tomara a iniciativa de abrir na cadeia para cumprir com o “dever que
temos todos de pugnar pela regeneração moral dos presos”20.
A cadeia da capital localizava-se no centro da cidade, entre as praças da igreja
matriz e do mercado público. Nessa época, de acordo com Carlos Augusto de Car-
valho, que substituiu Luiz Barreto no cargo de chefe de polícia, havia 29 detentos,
alocados nas mesmas celas sem discriminação da espécie de pena, juntando autores
de crimes leves e graves, homens e mulheres, e até mesmo “alienados”, que ali perma-
neciam por não haver hospício na cidade. As condições eram insalubres, não havia
19
Ofício encaminhado ao Ilmo. Exmo. Sr. Dr. Carlos Augusto de Carvalho, presidente da Pro-
víncia, pelo professor Miguel José Lourenço Schleder. 13/08/1882. DEAP –PR. Ref: BR APPR
667, p. 281.
20
Relatório do chefe de polícia Luiz Barreto Corrêa de Menezes ao presidente da província Ma-
nuel Pinto Souza Dantas Filho (PARANÁ, 1879, p. XV).
103
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
aproveitadas por esses sujeitos em suas buscas pela instrução. Esse corpo documen-
tal, embora limitado para fornecer indícios sobre os empreendimentos particulares
de instrução de adultos, sugere a existência de outros caminhos escolares possíveis
de serem seguidos na procura pela instrução. Em Curitiba, duas instituições par-
ticulares foram mais expressivas no fornecimento da instrução primária aos adul-
tos trabalhadores no período investigado: a Sociedade Protetora dos Operários e o
Clube Treze de Maio.
A Sociedade Protetora dos Operários foi fundada em 1883 pelo pedreiro
Benedito Marques, e tinha por objetivo promover o auxílio mútuo aos trabalha-
dores no ápice da implantação do trabalho livre. Na Figura 1, a seguir, vemos os
primeiros associados em frente ao prédio que sediava a agremiação, situado na Rua
da Imperatriz, bairro do Alto São Francisco:
Como sugere a imagem, parte significativa dos associados era composta por
negros livres ou libertos, sendo esta a condição do próprio fundador, Benedito Mar-
ques. A associação foi nomeada sociedade coirmã ao Clube 13 de Maio, fundado
em 1888 também na capital. No mesmo ano de inauguração, a Sociedade Protetora
dos Operários solicitou ao governo um professor público que pudesse servir na di-
105
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
reção da escola noturna aberta aos associados. Mesmo sem saber sobre a resposta do
governo provincial em relação ao pedido, a Sociedade manteve sua escola noturna
com regularidade nos anos posteriores, como assegura o estatuto do clube, aprova-
do em 189722.
A relação entre a Sociedade Protetora dos Operários e o Clube Treze de
Maio (ou Sociedade Operária Beneficente Treze de Maio) perpassa pela partilha do
cotidiano associativo e do perfil plural de associados, demarcando, assim, um dos
caminhos para a garantia de direitos básicos pelos negros no pós-abolição. O clube
também manteve uma escola noturna para os associados, o que fortalece a ideia
de que a educação pudesse ser vista como via para a melhoria das condições desses
sujeitos no pós-abolição.
As tantas histórias até aqui apresentadas indicam alguns caminhos seguidos
por escravizados e negros livres em suas buscas pela escolarização no Paraná, seja
através da participação em reivindicações dirigidas às autoridades, seja por meio
do aproveitamento de “brechas” nos programas de instrução popular em vigor na
província, por vezes com a colaboração de professores. Mesmo assim, há de se con-
siderar a grande quantidade de pessoas negras que, ao longo desse processo, seguiu
sem ter acesso ao direito à educação, seja pelas poucas possibilidades, ou mesmo por
escolhas pessoais, já que a busca pela instrução poderia estar relacionada às neces-
sidades surgidas do mundo do trabalho. Em relação às crianças negras, filhas de es-
cravas, os obstáculos podiam abranger outros patamares, que vão desde a limitação
etária estabelecida para frequência nas aulas noturnas, à precoce inserção no mundo
do trabalho, que excluía essas crianças das escolas infantis. Essas experiências ain-
da denotam uma fragilidade das propostas de instrução popular, que favoreceram
quase na totalidade, apenas ao sexo masculino, mesmo havendo boa quantidade de
mulheres trabalhadoras, possivelmente em busca de instrução. O alcance daqueles
projetos e práticas de instrução popular foi para essas mulheres negras ainda mais
restrito, na medida em que, fora da infância, nas escolas noturnas, elas não teriam
possibilidades de escolarização, ao menos na iniciativa pública.
22
Estatuto da Sociedade Protetora dos Operários. Capítulo VII. 9/05/1897. Acervo do centro
de documentação da Casa da Memória de Curitiba.
106
A educação da população negra
periência de liberdade por muitos cativos. Isso, no momento de transição pelo qual
passava a nação brasileira – do trabalho escravo para as relações de trabalho livre –,
revela o quanto esses indivíduos vivenciaram condições de “fronteira”, entre a escra-
vidão e a liberdade e demais obstáculos para a aquisição da liberdade e cidadania
plena e buscaram alternativas para driblá-las.
Considerações finais
Os casos aqui apresentados demonstram que os negros do Paraná provincial
por vezes aproveitaram as parcas chances de escolarização oferecidas especialmente
a adultos trabalhadores no período noturno. Entretanto, não devemos concluir que
esse segmento da sociedade teve plenas chances de instrução na escola pública, basta
atentar para o público restrito de escravos e libertos presentes nessas escolas: eram
quase exclusivamente do sexo masculino, moradores de áreas urbanizadas onde es-
sas escolas existiram, e que exerciam trabalhos especializados. Nossa abordagem res-
trita ao século XIX, também não contempla os possíveis percalços enfrentados pela
população negra para a inserção educacional no trânsito entre os séculos XX e XXI,
época em que a racialização das práticas sociais certamente surtiu efeitos nas possi-
bilidades de acesso e permanência desses sujeitos nas escolas24. O uso dos clubes as-
sociativos como ferramenta de acesso a direitos no pós-abolição, como vimos, pode
revelar certa inoperância do Estado no oferecimento de condições básicas de digni-
dade e acesso a cidadania (SCHUELER, 1997; MATTOS, 2009; MAC CORD,
2012), fazendo com que a conquista desses valores fosse resultado de experiências
pessoais e coletivas da população negra.
Referências
BRASIL. Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854. Approva o Regulamento para
a reforma do ensino primario e secundario do Municipio da Côrte. Coleção de Leis do
Império do Brasil, 1854. Página 45, volume 1 pt I (Publicação Original).
DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil, 1917-1945. Tra-
dução de Cláudia Santana Martins. São Paulo: Editora da UNESP, 2006.
DOMINGUES, Petrônio. “O recinto sagrado: educação e anti-racismo no Brasil”. Cader-
nos de Pesquisa, v. 39. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2009.
24
Cf. entre outros, Jerry Dávila (2006) e Domingues (2009).
108
A educação da população negra
FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de
educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no
Recife oitocentista. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio político, jurídico e social. Petró-
polis: Vozes, INL, 1866.
MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente. Ensaios sobre fenômenos de aculturação no
Paraná. 2. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 1989.
MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. In: CARVALHO, José
Murilo de e NEVES, Lucia Bastos Pereira das (Orgs.). Repensando o Brasil do Oitocen-
tos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos
da abolição no Brasil. 2. ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2008.
MIGUEL, Maria Elisabeth Blank; MARTIN, Sonia Dorotea (Orgs.). Coletânea da do-
cumentação educacional paranaense no período de 1854 a 1889. Brasília, DF: INEP/
SBHE, 2004.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Rio de Janeiro: Best-Bolso, 2010.
NETTO, Fernando Franco. Senhores e escravos no Paraná provincial: os padrões de
riqueza em Guarapuava (1850-1880). Guarapuava: Unicentro, 2011.
PARANÁ. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná no dia 4 de
junho de 1879 pelo presidente da província Manuel Pinto de Souza Dantas Filho.
Curityba: Typographia Perseverança, 1879.
______. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná, pelo presidente da
província Dr. Manuel Pinto de Souza Dantas Filho. Curityba: Typographia Perseveran-
ça, 1880.
PENA, Eduardo S. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e a lei na Curitiba
provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999.
SÁ, Jesuino Marcondes de Oliveira e. Relatório do presidente da província do Paraná.
1882.
SCHUELER, Alessandra Frota Martinez. Educar e instruir: a instrução popular na
Corte imperial – 1870-1889. 1997. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1997.
109
A população negra e a
educação brasileira
João Henrique de Souza Arco-Verde1
Mirian Célia Castellain Guebert2
Introdução
O Brasil, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE, 2010), tem a maior população negra do mundo excluindo o continente
africano. Trata-se, assim, do país que se constitui com a segunda maior população
negra mundial, atrás somente da Nigéria.
No decorrer de sua história, o Brasil produziu um perfil de extrema desigual-
dade entre os grupos étnico-raciais com os negros e brancos, pois não se propôs a
consolidar uma política de equidade da população negra após o período escravocra-
ta, fato que até hoje marca as características sociais em diversas searas sociais.
Ao reconhecer que os negros estão presentes na história de construção do
Brasil, mas, marcadamente como escravos, trabalhadores explorados, habitantes da
periferia, pobres, e é dessa forma que estão descritos e caracterizados nos baixos ín-
dices de desenvolvimento humano, o que possibilitou a construção de ações reacio-
1
Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR (2007), es-
pecialista em Criminologia e Política Criminal pela Universidade Federal do Paraná – UFPR
(2009), graduado em licenciatura em História pela PUCPR (2013), mestre em Direitos Hu-
manos e Políticas Públicas pela PUCPR. Atua, desde 2014, como coordenador da divisão de
Direitos Humanos da Secretaria de Justiça, Trabalho e Direitos Humanos do Paraná. E-mail:
arcoverde.adv@gmail.com.
2
Graduada em Pedagogia pela UFPR (1994), com Especialização em Educação Especial ênfa-
se em Condutas Típicas pela Universidade Tuiuti do Paraná (1996), e Especialização em Edu-
cação Especial com ênfase em Política Públicas pela Universidade Federal do Mato Grosso do
Sul (1998), mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina
(2002), doutora em Educação, História, Política, Sociedade pela PUC de São Paulo (2013).
Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Pú-
blicas na PUCPR. E-mail: mirian.castellain@pucpr.br.
110
A população negra e a educação brasileira
nárias como o racismo, que até pouco tempo no Brasil era velado e que, atualmente,
se apresenta em diversos âmbitos das políticas sociais, embora o país se autodeclara
como não preconceituoso.
O racismo está presente nas relações de poder postas nas relações sociais, eco-
nômicas que influenciaram a percepção sobre o negro, de tal sorte que até o próprio
negro tem dificuldades de se identificar como tal e lutar pela sua plenitude cidadã.
Por outro lado, ao considerar que no país temos a possibilidade de saber
quantos negros somos, com processos de identificação por meio de documentos e
aportes institucionais, as pessoas que se autoidentificam como negros ou morenos
no Brasil correspondem a 53% de população, isto é, cerca de 106 milhões de pessoas.
Conforme estipula o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF),
brasileiros negros com idades entre 12 e 18 anos apresentam uma probabilidade três
vezes maior de serem mortos do que seus pares brancos, isso devido à forma como
são julgadas as pessoas, pela sua aparência.
Esses dados possibilitam afirmar que são os negros que aparecem nas esta-
tísticas de população de vulnerabilidade social, como evidencia uma pesquisa rea-
lizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2015), que apresenta em seus
resultados os números sobre os homicídios dos negros no Brasil:
111
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
112
A população negra e a educação brasileira
está confinada à margem da sociedade, dados do censo de 2010 apontam que cerca
de 70% dos brasileiros que vivem na pobreza extrema são negros, estão quase que
totalmente excluídos das posições de poder, evidenciado tal fato que, entre os anos
de 2010 a 2016, existiu apenas uma mulher negra que respondia justamente pelo
Ministério da Igualdade Racial.
As marcas do início do processo de escolarização da população negra no Bra-
sil estão marcadas neste trabalho, como a Lei do Ventre Livre que versa sobre prá-
ticas educacionais dirigidas aos afrodescendentes nascidos livres de mães escravas.
Existem indícios históricos desse período que presumem uma consciência sobre o
valor da educação como elemento de inclusão social no processo de superação do
escravismo, não obstante ter predominado a tendência a não incluir os filhos livres
de escravas nos benefícios da instrução.
No estudo histórico de Marcus Fonseca, realizado levando em conta o re-
corte temporal de 1850 até 1888, período em que se deu o processo de abolição
da escravatura legal brasileira, é possível verificar que em 1871, através da Lei do
Ventre Livre, dava-se a libertação das crianças filhas das escravas brasileiras. Após a
proibição do tráfico de africanos para o Brasil em 1850, somente se podia renovar a
escravidão por intermédio do útero feminino, portanto libertar o ventre da escrava
significava romper com a renovação da escravidão brasileira.
Perdigão Malheiros assim analisou esse momento histórico:
113
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Magalhães (1996) apontou para o objeto deste artigo questionando: que educação
receberia esses cidadãos do Império?
A educação para os filhos de escravos deveria obedecer ao processo de rom-
pimento da escravidão no Brasil, sendo uma preparação das crianças para o exer-
cício da liberdade. No entanto, essa articulação entre a abolição e educação não
teve o objetivo de proteger as crianças, mas sim objetivou uma tentativa de mini-
mizar o impacto que a abolição da escravatura poderia gerar na sociedade brasi-
leira. Isso fica nítido no parecer apresentado na Assembleia Geral Legislativa:
114
A população negra e a educação brasileira
Para que tão momentosa necessidade seja satisfeita, será preciso que
o Estado se encarregue da instrução primária e secundária, [...] o
Estado deve abrir escolas primárias em todas as freguesias, capelas,
pequenos povoados, onde ainda não existam, especialmente escolas
praticas especiais de agricultura, entre estas algumas industriais au-
xiliares da agricultura, para órfãos e para os ingênuos entregues ao
governo, onde estes desvalidos, a par de um bom ensino elementar,
teórico e prático, recebam a educação santa do trabalho, e que devem
ser distribuídas pelas províncias com relativa igualdade, ao alcance
da grande lavoura, para lhe fornecerem braços, e em lugares d’on-
de seja fácil a exportação, para servirem de núcleo á colonização es-
trangeira. (CONGRESSO AGRÍCOLA, 1878 apud FONSECA,
2002, p. 32).
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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A população negra e a educação brasileira
Dessa forma, e por fim, cumpre ressaltar que a desigualdade entre negros e
brancos na educação brasileira é visível e precisa ser enfrentada a partir da efetivação
das políticas educacionais inclusivas, com estratégias que possibilitem a manuten-
ção do negro na rede de ensino, na busca de educação de qualidade para todos na
tentativa de diminuir as desigualdades construídas historicamente.
Para isso, faz-se necessário readequar o foco educacional de forma a ampliar
a visibilidade da construção histórica no Brasil, assim como repensar os critérios de
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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A população negra e a educação brasileira
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Para Jovino, existe algo intrínseco à escola que impacta na questão racial: “As
pesquisas apontam que, mesmo quando igualamos as variáveis de brancos e negros,
os negros sempre aparecem em piores condições. Existe algo além do socioeconô-
mico”, explica. “Negros são massivamente reprovados e realmente abandonam mais
a escola”. Logo, faz-se necessário estratégias para combatermos o preconceito social
e histórico, há necessidade de todos serem tratados igualmente. Portanto, denunciar
casos de racismo e promover cada vez mais pesquisas que tragam tais temas à tona
são ações fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa.
Considerações finais
As desigualdades existentes e evidenciadas pela população negra no Brasil
perpassam processos educacionais construídos no decorrer do histórico preconcei-
to sofrido por essa população, que são enfatizadas pelas dificuldades sociais como
obstáculos para a formação dos estudantes negros, fazendo aumentar o índice de
abandono escolar desse segmento. Tais reflexões são representações das multiplici-
dades de políticas públicas pensadas, mas não efetivadas para transformar a cultura
existente, mantendo as perspectivas impostas pelo poder econômico a essa popula-
ção considerada vulnerável devido à sua constituição sócio-histórica.
Se, por um lado, temos os processos educativos como política pública que,
em sua vertente de caráter social e transformador, tem como finalidade buscar a
equidade dos sujeitos de direitos, por meio do tratamento social, evitando a dis-
criminação, na busca de garantir oportunidades e viabilizar condições de acesso e
permanência dos estudantes até a conclusão nos processos formativos, a educação
é a política que possui investimento real por parte do estado brasileiro e, em razão
disso, deve ser a que mais produz meios de superar as desigualdades sociais, portan-
to deve ser designada para a população mais vulnerável socialmente.
Por outro lado, temos a garantia que uma educação pública de qualidade está
diretamente relacionada com princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Referências
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasilei-
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______. A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no
Brasil. Bragança Paulista: ESUSF, 2002.
126
A população negra e a educação brasileira
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Contação de histórias em uma
escola do estado do Paraná:
negritude narrada por crianças
Ingrit Yasmin Oliveira da Silva1
Fabiane Freire França2
Delton Aparecido Felipe3
Introdução
O interesse em pesquisar as representações sobre a população negra na edu-
cação infantil, se deu a partir da realização de um trabalho referente a cotas raciais,
na disciplina de Organização do Trabalho Pedagógico I, durante a graduação em
Pedagogia no ano de 2015. Nesse sentido, ao pesquisar sobre o tema, sentimos a
necessidade de conhecer mais o assunto e entendemos que, em observância ao arti-
go 1º, § 1º da Resolução nº 1/2004, do Conselho Nacional de Educação (CNE), e
o artigo 5º da Deliberação 04/2006, do Conselho Estadual de Educação do Paraná
(CEE), são requisitadas propostas curriculares e ementários relativos à inclusão das
relações étnico-raciais nas disciplinas e atividades curriculares dos cursos do ensino
superior.
No decorrer das discussões realizadas na disciplina, algumas das acadêmicas
do curso4 apresentaram um posicionamento contrário à temática de cotas raciais,
justificando que, quando o/a negro/a “aceita” fazer parte das cotas, é porque “sabe
que não é capaz de conseguir” passar no vestibular ou em concurso sem esse “bene-
1
Pedagoga e Mestranda em Educação da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.
2
Professora do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), campus de
Campo Mourão. Doutora em Educação. E-mail: prof.fabianefreire@gmail.com.
3
Professor do Departamento de História e do Mestrado Profissional em História da Universida-
de Estadual de Maringá, pós-doutor em História e Doutor em Educação.
4
Eram vinte acadêmicas, todas mulheres.
128
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná
fício”, e, portanto, se “considera inferior” em relação aos brancos que não necessitam
desse caminho “fácil” para ingressar no vestibular ou concurso público.
Partindo desse contexto e das minhas experiências e vivências enquanto
criança, e hoje como mulher negra, percebi que se faz necessário trabalhar as repre-
sentações que foram objetivadas sobre a população negra no Brasil e como elas são
construídas socialmente. Compreendemos o conceito de representação social, com
base em Moscovici (2011), como forma de produção coletiva que envolve interação
e comunicação para nomear e classificar aspectos do mundo, da história individual
e pessoal. Ocorre que essas representações são objetivadas por alguns grupos como
legítimas ou únicas, mediante as relações de poder envolvidas (FRANÇA, 2014).
A população negra, por exemplo, teve sua história e memória invisibilizadas em di-
versos espaços, e um deles é o estado do Paraná. Por isso, a necessidade de problema-
tizar as bases históricas do racismo e da desigualdade social que ainda afetam parte
significativa da população negra brasileira.
Se em um curso de graduação, que formará profissionais para a área da edu-
cação, existe uma visão ainda restrita atribuída à população negra, a situação torna-
-se mais preocupante ainda em outros espaços, em que a discriminação racial existe
de forma rotineira e naturalizada.
Com efeito, respaldamos a preocupação e inquietação em abordar essas dis-
cussões na educação infantil, na formação inicial das crianças, para que desnatu-
ralizem discursos como estes e conheçam outras narrativas e histórias da cultura
negra. Selecionamos para a experiência didático-pedagógica uma turma com vinte
crianças com idade entre 4 e 5 anos de idade, que estudam no Nível II em período
integral.
As relações cotidianas com as crianças da educação infantil e do ensino fun-
damental, como professora da rede básica de ensino, me propiciaram uma abertura
ao diálogo com a escola e com os alunos e alunas. Foi nesse locus que encontrei in-
dagações para a realização dessa pesquisa, em vista disso, problematizamos: quais as
representações de raça que circulam na educação infantil? De que maneira podemos
contribuir para discussões nesse espaço?
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná
ficada pela representação social de que os/as negros/as africanos/as seriam incivi-
lizados/as; enquanto os europeus brancos eram civilizados e desenvolvidos (LU-
CAS, 2011). Essas são representações que justificam o porquê da necessidade das
pesquisas sobre a população negra nas diversas instâncias sociais, sendo uma delas,
a educação infantil.
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Nesse sentido, a partir das vivências com a família e a escola, a criança pode-
rá desenvolver uma autoimagem positiva ou negativa. Para desconstruir a imagem
negativa e produzir outras perspectivas positivas acerca da população negra, é neces-
sário que práticas rotineiras, excludentes e preconceituosas deem lugar para outros
olhares. Nessa perspectiva, Araújo (2002) fomenta que:
cada ser humano constrói para si uma imagem que julga represen-
tá-lo, com a qual de identifica e se confunde [...] essa auto-imagem
possui uma dimensão efetiva em sua constituição, que também se re-
laciona com os valores da cultura e com a constituição biofisiológica
do corpo que a sedeia [...] a auto-estima; o valor, ou os sentimentos
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Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná
Sendo assim, se o ser humano é constituído por meio das relações sociais
com o mundo, e a sociedade define um padrão ideal de sujeito, porte físico, cor da
pele, altura etc., a formação docente necessita problematizar esses padrões e as “his-
tórias únicas”, que apresentam somente um ponto de vista e geralmente consideram
como anjos crianças brancas e, como heróis, homens brancos.
É pensando em questões como estas que o/a docente em sala de aula precisa
refletir e trabalhar para o reconhecimento, valorização e representatividade de suas
alunas e alunos. É necessário que a escola, local de conhecimentos e aprendizagens,
seja um ambiente em que professores/as e toda a comunidade escolar se envolvam
com questões de raça, etnia, gênero, classe, sexualidade, para que os/as alunos/as se
sintam representados/as nesse espaço. Afinal, de que maneira essas crianças teriam
uma imagem positiva de si mesmas se, no local onde ficam a maior parte do tempo,
são consideradas como incapazes de aprender devido à cor da pele, classe social ou
gênero? Preocupa-nos saber que ainda muitos/as são os professores/as que não rea-
lizam ações necessárias diante de situações de preconceito entre as crianças por não
saberem lidar com a temática ou simplesmente por pensarem que essas questões não
cabem nesse espaço.
Partindo desse pressuposto, desde a infância as crianças ouvem as histórias
de contos de fadas, entre elas “A bela adormecida” e “A branca de neve” que incitam
que os meninos brancos são considerados os príncipes e que podem beijar as meni-
nas quando quiserem. Outra história que se repete é a do filme produzido pela Walt
Disney, “A princesa e o sapo”, em que a única princesa negra dos contos de fadas é
uma garçonete chamada Tina. No filme, o príncipe vira sapo e, para o feitiço termi-
nar, ela tem que beijá-lo.
Diante disso, é possível perceber que a maioria das princesas espera a vida
toda para se casar com um príncipe, é rica e branca, já a personagem Tina é uma
jovem de origem pobre e negra que também espera por esse príncipe. Isso mostra,
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
de acordo com Giroux (2003, p. 133), que “por trás do apelo ideológico à nostalgia,
aos bons tempos e ao ‘lugar mais feliz sobre o globo’, existe o poder institucional e
ideológico de um conglomerado multinacional que exerce uma enorme influência
social e política”.
A partir desse olhar, é possível enfatizar que muitas são as crianças negras que
se limitam ao brincar de faz de conta, silenciam para não serem notadas e desejam
ser brancas para sentirem-se princesas ou príncipes dos contos de fada que assistem,
ou como as bonecas e os bonecos que passam nas propagandas, que são em sua gran-
de maioria brancas/os.
Dessa forma, em pleno século XXI, ainda há problemas de sexismo e racismo
desde a educação infantil até a universidade, o que fomenta que crianças neguem
sua identidade e seu grupo social, e cresçam silenciando suas angústias, medos e re-
ceios diante da sociedade. E é por acreditarmos que um trabalho contínuo voltado
à formação docente e à educação infantil seja um caminho para produzir mudanças
nesse quadro educacional que realizamos esta pesquisa.
134
Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
las crianças acerca dos anjos, quando estávamos falando sobre as cores um menino
fomentou que a boneca branca era bonita porque “era da cor de um anjo” e uma
menina que se considerava negra respondeu: “também tenho cor de anjo” (registro
do caderno de campo). Nesse sentido, consideramos que:
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Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná
sua condição de brancas e raramente explicitam o desejo de ter outra cor de pele
ou outro tipo de cabelo. Com frequência explicitam que branco é bonito e preto é
feio (apontando bonecas, personagens de livros, colegas, professoras) ” (BENTO,
2012, p. 101).
Esses aspectos nos evidenciam que as narrativas que circulam na escola, as
histórias que são contadas e as representações que são consideradas como referên-
cias precisam ser revisitadas e pluralizadas. E o modo que encontramos para apre-
sentar outras perspectivas às crianças foi a contação de histórias.
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná
[…] não existe nada de inocente nas histórias infantis que apresen-
tam, exclusivamente, um tipo físico como o portador da beleza, da
bondade, da riqueza ou da magia. Por isso, cada vez que essas pro-
fessoras possibilitam para as crianças ouvirem e verem histórias com
outras representações, elas estão travando uma luta contra os discur-
sos vigentes e dominantes sobre os modos como as crianças devem se
reconhecer como sujeitos e reconhecer o Outro. Também rompem
com as hierarquias nas quais se valoriza o branco europeu e se desva-
lorizam todas as outras formas de ser diferencias desse tipo, como o
não étnico, ou seja, o padrão. (DIAS, 2012, p. 667).
139
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Para finalizar, a última história contada foi Bruna e a galinha d’Angola (AL-
MEIDA, 2003), para diferenciar dos outros ambientes preparados, levamos as
crianças no gramado da escola e elas sentaram-se em círculo. Contamos a história
por meio do livro, mostrando as imagens e dialogando com as crianças. Ao término
da literatura foi questionado sobre o que acharam da história, se conheciam pessoas
parecidas com a personagem. Um menino, que tinha resistência quando se falava de
pessoas negras, mencionou: “essa Bruna é bem feia, nem dá pra ver essa pele escura
direito”. Indagamos: “mas você se parece com ela e é bonito”. Ele respondeu: “eu sou
bonito porque sou moreno e ela é feia porque é bem pretona” (registro de caderno de
campo). O trabalho com as histórias e memória da população negra deve ser con-
tínuo, com diversas histórias e ações didático-pedagógicas que problematizem as
representações sociais fixas e hegemônicas apresentadas, como a do menino.
Outras crianças comentaram sobre a história e disseram que, assim como a
avó de Bruna, suas avós também pintavam panos de prato e bordavam, além disso,
mais uma vez indagamos: “qual é mais bonita, a Bruna dessa história ou a menina
bonita do laço de fita?” E algumas crianças responderam: “as duas são feias, mais bo-
nita é a Branca de Neve e a Elza do Frozen”. Em meio aos diálogos, uma das meninas
respondeu: “a Bruna é uma princesa, porque eu sou pretinha igual ela e eu também
sou uma princesa”. Um menino disse: “não! Princesa é branca”. Aproveitamos para
reiterar que tanto a Bruna quanto a Elza podem ser princesas, e que os conceitos do
belo e do feio são construções sociais que precisam ser indagadas:
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
mem-aranha” (todos os meninos disseram não ter bonecos pretos), uma das meni-
nas disse: “eu só tenho barbie”. Questionamos: “se você ganhasse uma boneca preta,
você iria brincar com ela?” E ela respondeu: “não, porque preto é sujo”.
Novamente, a menina que se reconhece como preta igual a Bruna, persona-
gem da história, respondeu: “eu tenho boneca branca, mas a minha preferida é a bem
pretinha porque minha mãe disse que é igual eu” (registro de caderno de campo). São
essas falas que expressam a representatividade da negritude e são essas discussões
que precisam ser potencializadas em todos os espaços sociais, sobretudo, nas escolas.
Considerações finais
Com a pesquisa e as temáticas desenvolvidas na escola, e no decorrer das
observações, discussões e atividades desenvolvidas/realizadas, esperamos que os/as
profissionais da educação desenvolvam outros projetos, atividades e estratégias para
lidar com a história da população negra na educação infantil.
É preciso o reconhecimento da necessidade de se trabalhar em sala de aula
a representatividade negra, afinal é uma temática que precisa ser dialogada com
docentes, estudantes e funcionários/as que pertencem ao ambiente escolar e não
apenas por especialistas. O trabalho pode propiciar, ainda, que as diferenças sejam
colocadas em diálogo e, principalmente, em práticas e não sejam apenas reprimidas
ou ignoradas, como pesquisas recentes evidenciam (FELIPE, 2009).
Diante do trabalho com a contação de histórias e das ações na escola, é pos-
sível também a realização de outros trabalhos coletivos, que sejam estendidos à co-
munidade, às famílias. Ao convidar os responsáveis pelas crianças a apreciarem os
resultados de ações como estas na escola, as representações sobre a população negra
podem ser compreendidas como conteúdos curriculares que precisam ultrapassar
os muros da escola e problematizar os preconceitos presentes em outros espaços.
O nosso trabalho promoveu momentos de diálogos com as crianças que pro-
piciaram que elas vivenciassem e percebessem diferentes narrativas sobre a popula-
ção negra e como essas representações são produções sociais. Por fim, pretendemos
que os/as professores/as busquem mais recursos, realizem mais trabalhos sobre as te-
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Contação de histórias em uma escola do estado do Paraná
Referências
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de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
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professores e professoras para o ensino de história e Cultura Afro-Brasileira e Africana na
Educação Básica. 152 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de
Maringá, 2009.
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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Oralidades afro-paranaenses:
fragmentos da presença negra na
história do Paraná
Mel e Candiero
Resistência Afro-Paranaense:
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Oralidades afro-paranaenses: fragmentos da presença negra na história do Paraná
Negro Adeodato
Líder do Contestado
(REINEHR; SILVA, 2016)
Quem disse que o Paraná não teve a forte e brilhante contribuição dos povos
afrodescendentes? Os paranistas Wilson Martins e Bento Munhoz da Rocha Neto
disseram: “Assim é o Paraná. [...] acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de
uma civilização original construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão,
sem negro, sem português e sem índio, dir-se-ia que sua formação humana não é
brasileira” (MARTINS, 1955). “A contribuição do negro foi diminuta na formação
étnica do Paranaense” (NETTO, 1969).
Fontes primárias e secundárias demonstram a falácia do discurso paranista,
eugenista e racista. Entre estas, ressaltamos a Coleção correspondência do governo,
publicada pelo Arquivo Público do Paraná. A coleção reúne um coeso conjunto
documental dos atos oficiais do governo paranaense, desde a instalação da província
do Paraná, em 1853. Trata-se do Catálogo seletivo de documentos relativos aos africa-
nos e afrodescendentes livres e escravos (PARANÁ, 2005). Para o diretor do Museu
Paranaense, Renato Carneiro Jr., no prefácio da obra supracitada, “a presença do
negro na história paranaense foi por muitas vezes negada por quem adotava postura
de superioridade em relação à esta população: [...] Vem em muito boa hora as ações
do Governo do Paraná para permitir a recuperação da história de nossa população
negra, por acrescentar novas luzes sobre a nossa formação histórica.”
Segundo Gilberto Freyre, no livro Ferro e civilização (1988, p. 76 e ss.), da-
tam de 1550 as primeiras referências aos faiscadores, especialistas africanos da Costa
do Ouro trazidos para trabalhar na extração e que formaram as primeiras povoações
no território hoje chamado de Paraná.
Segundo o Dicionário histórico-biográfico do estado Paraná (CHAIN, 1991,
p. 12-13), no verbete “Africanos na Formação da População Paranaense”:
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giões de matriz africana, este último gravíssimo, pois ataca justamente um dos pila-
res fundamentais de qualquer comunidade, que é o âmbito do sagrado.
Mais que uma questão de legislação, a inclusão da história e cultura africana
e afro-brasileira nos currículos escolares é uma questão ética. E “nós somos capa-
zes, somos competentes para fazê-lo”, como bem disse o então secretário estadual de
Educação do Paraná, Sr. Flávio Arns, na abertura do AboliSom – Ecos da Abolição
da Escravatura, em 2012. Estamos no início do Decênio Internacional dos Povos
Afrodescendentes, proposto pela ONU para debater justiça, reconhecimento e de-
senvolvimento para os povos afrodescendentes no mundo todo, entre 2015 e 2024.
“Em todo o mundo, africanos e a diáspora africana continuam a sofrer desigual-
dade e desvantagem em razão do legado da escravidão e do colonialismo. Libertar-se da
violência, do preconceito e da discriminação é um sonho distante para muitos”, como
bem disse Ban Ki-moon, o secretário-geral das Nações Unidas, no livreto da ONU
sobre a Década Internacional de Afrodescendentes.
Lutar contra o racismo pode parecer uma tarefa complexa e difícil demais,
mas nossos passos vêm de longe e passam por lugares às vezes inesperados! Quando
estivermos mais conscientes da nossa história e mais certos do Brasil que queremos
para os próximos 20, 30 anos (um Brasil sem fome, sem racismo, sem violência,
sem analfabetismo funcional...), poderemos nos debruçar sobre a Lei Federal nº
12.288/2010, mais conhecida como a lei que instituiu o Estatuto da Igualdade Ra-
cial, e concluir uma história que ficou pendente no dia 13 de maio de 1888. Então,
estaremos mais próximos de nos livrar dos grilhões que ainda pesam nos calcanhares
da nação. Como diz o ditado africano: “Nunca é tarde para voltar atrás e recuperar
o que foi esquecido.”
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Referências
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Maria. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969. 1 v.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasilei-
ra”, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
______. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial;
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24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União,
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161
Zelador Candiero, a poesia
como forma de resistência
Romilda Oliveira Santos1
afirma ser esta obra dos imigrantes que contribui para que a elite dominante ca-
mufle os direitos de cidadania da etnia negra. Para Oliveira (2005), em nenhum
momento Martins reconhece os 35% de população negra existente nessas terras. E
que Martins ao se posicionar diferentemente da questão da miscigenação de Freyre,
afirmando que, na formação social do Paraná, “o português se fazia ausente”; e “a
inexistência da escravatura” nessas terras, ou melhor, nas terras paranaenses, confir-
mava as ideias de uma elite de um Paraná branco e europeu. Sendo, pois, o imigrante
o único elemento responsável pela formação social, cultural e política do povo do
Paraná (OLIVEIRA, 2005).
Na década de 1930, do século passado, um projeto de Estado diferente co-
meçou a ser pensado e planejado para essas terras pela elite paranaense. E com a cria-
ção da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná, em 1938, esse projeto foi
gerado e alicerçado no imaginário dos que aqui viviam, por interesse de uma classe
dominante em ser reconhecida, pela Europa, como branca. E assim foi criado um
conceito de sociedade com uma identidade singular e de acordo com o processo de
branqueamento pensado para a população aqui existente.
Como bem demonstrou Eduardo David de Oliveira, filósofo e antropólogo,
ao prefaciar o livro Africanidades paranaenses (2010), que o imaginário de um esta-
do originado da colonização europeia, e o mito de um estado branco, sem elementos
negros nasceu nessas terras. E os arautos das ciências, na Faculdade do Paraná, rea-
firmaram e reificaram esse imaginário racista em suas produções acadêmicas tantas
e tantas vezes que se acreditou ser verdade.
Oliveira (2005) observa ainda: “Vale notar que, durante a gestão do pre-
feito de Curitiba Rafael Greca de Macedo (1993-97), várias etnias são homena-
geadas com parques e bosques públicos. Contudo, quando perguntado se haveria
um parque para a comunidade negra, o prefeito teria respondido que não, porque
não havia negros na cidade” (nota de rodapé, p. 221). O Paraná, assim como os
demais estados brasileiros, não fugiu à regra de ter a mão de obra escrava fazen-
do os trabalhos pesados. E Curitiba, sua capital, assim como as demais cidades
paranaenses, foi construída com a mão de obra escrava dos negros africanos que
ergueram ruas, igrejas, prédios, ferrovias, e também contribuíram com músi-
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receram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! [...]”
(REIS, 2004, p. 112-113).
Maria Firmina dos Reis aparece entre as mulheres negras que marcaram ou
ainda marcam a história literária negra. Para Eduardo de Assis Duarte (2005), a
poeta/escritora Maria Firmina age de maneira inovadora e ousada ao constituir sua
personagem com mulher que tem voz própria e, como eu enunciador, resolve contar
a sua história. Contemporâneo de Maria Firmina dos Reis, Luiz Gonzaga Pinto da
Gama, como poeta engajado, põe em questão a ordem escravocrata. Seguido pelo
simbolista Cruz e Souza que, através do seu poema Emparedado, revela um elemen-
to estruturante das nossas relações sociais, o racismo:
Luiz Gama e Cruz e Souza são considerados os primeiros alicerces para o sur-
gimento de produções literárias ao pós-abolição. Suas obras mostraram um modo
diferente de pensar o negro, como eu enunciador que, ao assumir sua negritude,
o seu “fazer literário por meio da escrita” (BERND, 1988) se torna marco para a
literatura negro-brasileira.
O fazer poético de Luiz Gonzaga Pinto da Gama registra o “modo negro de
ver e sentir o mundo”. A poética de Luiz Gama reúne um conjunto de elementos
simbólicos relacionados à sua trajetória de vida. Ao reafirmar a identidade afro-bra-
sileira através da articulação dos elementos da ancestralidade africana na sua escritu-
ra, o poeta reivindica a pertença ao universo cultural afro-brasileiro.
Silva (2013), acerca da elaboração da cultura afro-brasileira sobre as raízes
africanas, afirma:
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Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência
Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô
de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o ba-
tismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra,
bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes al-
víssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida, vingativa.
(CÂMARA, 2010, p. 35).
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Antes conhecido pelo codinome “Sombra”, apelido dado pelos amigos, cole-
gas da capoeira, recebeu o nome de Zelador Candiero – aquele que ilumina – após
muito tempo de observação pelos seus mestres, os quais chamam de “os mais velhos”.
O cotidiano do Zelador Candiero é fortemente marcado pelo sentimento
de pertencimento à cultura e às tradições negras herdadas dos ancestrais. O poeta
descobriu-se pedra alicerçante da sua história no rap, no break na música negra afro-
-americana e foi construindo sua identidade negra e se empoderando como sujeito
transformador da sua história e orgulhoso das suas tradições e origem negra. A par-
tir dessa descoberta, muitas trilhas foram surgindo e o caminhante ora passeia por
elas, ora as desbrava deixando a sua marca de rebeldia. Rebeldia esta transformada
em muitas formas de lutas contra um único modelo de cultura, de história e de co-
nhecimento. O caminhante vai trançando seu caminho e registrando suas vivências
– como capoeira, poeta, zelador das tradições culturais, além de militante das causas
negras no Paraná –, com uma linguagem cheia de significados e sentimentos. O
poeta é negro, e se orgulha em demonstrar sua luta e preferência pela temática negra.
Em entrevista que nos foi concedida em 9 de fevereiro de 2016, o poeta e es-
critor Zelador Candiero diz não escrever poesia e sim registrar em forma de poema
suas vivências e recordações. E que a cada passo, a cada atitude, cada irmão negro
que encontra vai emergindo em palavras, borbulhando, querendo mostrar e contar
a história de seu povo. Assim, registra na folha branca o pensamento, o sentimento
e sua negritude.
Nesse aspecto, pode-se considerar que a memória atua na obra do Zelador
Candiero como uma força de resistência pessoal e cultural, tal como indica Eduardo
de Assis Duarte (2005, p. 100), ao sugerir que “a força dessa memória ressalta o sen-
tido da resistência cultural e de luta ideológica [...] pois se trata de marcar posições
para além do campo artístico, visando atuar na construção psicológica e cultural
desse sujeito, bem como na definição de seu lugar na sociedade e na própria história”.
As vivências, expressão que o poeta usa para referir-se aos seus versos, traduz
o sentido dos costumes, recordações e tradições dos ancestrais, e conta suas expe-
riências sociais e individuais à comunidade.
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
povo para o conhecimento da história negra. O eu lírico afirma que “um povo sem
memória é um povo sem história”. O poeta, como militante que é, utiliza em seus
poemas a frase de Chico de Assis, advogado, jornalista, poeta e ex-preso político.
As vozes ecoadas ao longo do poema mostram a identificação dos envolvidos
com as memórias dos ancestrais, individual e coletiva. O tom de celebração do or-
gulho negro ancestral e o chamamento para o momento presente, reivindicando o
reconhecimento da cultura e das tradições de seu povo. O poeta relembra o tempo
da escravização, o tratamento recebido, ao pedir que seus irmãos busquem no fundo
do baú da história suas memórias o contexto em que eram obrigados a viver, para
logo depois afirmar que, apesar do tratamento indigno, o futuro do povo é aquele
que cada um constrói.
O eu enunciador procura empoderar o povo negro ao chamar atenção para
a inteligência e a valentia da rainha N’Zinga e, assim, forjar uma nova autoestima
e para despertar o orgulho de ser afrodescendente. A essa intenção, Cuti (2010,
p. 43) intitula como “gostar-se negro”, aceitar-se negro de forma completa, senti-
mento normalmente recalcado pelo racismo que, por muito tempo, levou o negro
a se transvestir ao assimilar a moda, os pensamentos, os modos de agir e sentir do
branco, também conceituado por Frantz Fanon “de pele negra e máscaras brancas”
(2008, p. 34).
O eu enunciador termina fazendo uma saudação a uma divindade africana
Iansã, orixá que domina os ventos e tempestades que protege e ilumina aqueles que
estão com a verdade na linguagem dos nagôs, Motumbá é um pedido de bênçãos. O
eu lírico enunciador se mostra comprometido com a religiosidade de matriz africana.
EPARREI OYÁ
Senhora dos ventos e das tempestades
Aquela que cega os mentirosos
Mas protege quem anda com a verdade.
Motumbá.
(CANDIERO; REINEHR, 2015, p. 52)
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
vez o grande valor dessas lembranças, dessas memórias que, juntadas umas às outras,
deixam vir à tona “a verdade escondida” no meio de todo sofrimento.
Segundo Michael Pollak (1989, p. 8), as “memórias subterrâneas” são culti-
vadas e desenvolvidas nos espaços da “informalidade” em rede de sociabilidades afe-
tivas, “são zelosamente guardadas em estruturas de comunicação informais e passam
despercebidas pela sociedade englobante”.
O eu poético grita por justiça, em meio a tantas mortes de sonhos, de expec-
tativas. E não se rende, segue adiante, combativo, assíduo. É o destino que lhe foi
legado pelos antepassados. O eu lírico diz não poder ficar calado, que suas lágrimas
não são de fraqueza e sim por perceber novas formas de exploração do povo negro.
E enquanto muitos dormem, ele, armado com seu berimbau (instrumento de toque
da capoeira), invoca os ancestrais para ajudá-lo e segue na sua caminhada de luta.
Nota-se nesse posicionamento do eu poético o chamamento do conheci-
mento dos mais antigos (os ancestrais) para direcionar a luta, os direitos pleiteados,
e a conquista dos objetivos pretendidos.
Considerações finais
Diversas são as possibilidades de leitura da poesia do Zelador Candiero. En-
tretanto, se o pano de fundo for uma sociedade elitista que se acredita herdeira de
tradições e culturas unicamente europeias que prevalece o conceito de democracia
racial, muita luta ainda tem a população negra e seus descendentes para serem reco-
nhecidos como sujeito coprodutores da cultura brasileira e paranaense. O Zelador
Candiero é um dos pilares dessa luta, no solo paranaense. O poeta não esconde a
sua negritude, orgulho, paixão pela tradição e costumes dos ancestrais. Produz uma
poesia carregada de simbolismo, deixando transparecer através do eu poético, que
fala mesmo cansado, que não se cala ao ver e sentir os sofrimentos e dores do povo
negro. A sua poética deixa entrever nas linhas da sua escritura toda a riqueza cultural
do povo “subalterno”.
Como “subalterno” em sua negritude, o poeta dá voz e representatividade ao
lugar de onde fala das suas origens, da sua religiosidade e da sua história. “Subalter-
no” que, apesar de construir praças, igrejas e monumentos históricos com sangue e
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Zelador Candiero, a poesia como forma de resistência
suor, teve como pagamento o apagamento da sua história e a negação da sua pre-
sença.
O “subalterno” agora tem voz e fala e luta para sair da penumbra, do esqueci-
mento, ao qual foi lançado. Não mais existe a história só de um único ponto de vista.
A literatura negro-brasileira lança mão da poesia, da prosa, da dança, da música, dos
costumes como instrumentos de luta. São elas as armas utilizadas pelos poetas, es-
critores, pesquisadores, artistas, em geral, para contar a história e a cultura do povo
cor de ébano e seus descendentes.
Ubuntu, para vocês! “Sou quem sou, porque somos todos nós.”
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Valorizando o conhecimento
etnobotânico dos estudantes da
licenciatura em Educação do Campo
- UFPR Litoral, da comunidade
quilombola João Surá
Claudemira Vieira Gusmão Lopes1
Lourival de Moraes Fidelis2
Michelle Bocchi Gonçalves3
Introdução
A cena educacional brasileira passou por transformações significativas nas
duas últimas décadas. Uma dessas transformações é o protagonismo do Movimento
de Educação do Campo, que articula as “exigências do direito à terra com as lutas
pelo direito à educação” (MOLINA, 2011, p. 18). A partir de um projeto que não se
restringe somente à escolarização, o próprio espaço escolar pode ser compreendido
como o lugar onde os processos educativos estão diretamente relacionados aos pro-
cessos sociais, culturais e políticos. Estes, por sua vez, integram-se ao ser humano e à so-
ciedade, incluindo aí as comunidades regionais com suas especificidades e demandas.
Com o olhar voltado para os diversos sujeitos sociais do campo e com sua
origem nos processos de luta dos movimentos sociais pela desapropriação de terras,
a Educação do Campo inaugura um projeto de educação da classe trabalhadora, bus-
cando garantir, para seus sujeitos, o acesso ao conhecimento e o direito à educação.
1
Doutora em Produção Vegetal, professora do curso de licenciatura em Educação do Campo da
Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral. E-mail: claudemira.lopes@bol.com.br.
2
Doutor em Agronomia, professor do curso de licenciatura em Educação do Campo da UFPR
Litoral. E-mail: lourivalfidelis@gmail.com.
3
Doutora em Educação, professora do curso de licenciatura em Educação do Campo da UFPR
Litoral. E-mail: michellebocchi@gmail.com.
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Gestos de análise
Para ilustrar este texto, selecionamos dois fragmentos de entrevistas que ti-
nham como objetivo investigar o uso de ervas medicinais para a prática do aborto
realizada por mulheres em uma comunidade quilombola do Vale do Ribeira, nas
proximidades de João Surá. Esses discursos foram organizados e analisados toman-
do por base princípios metodológicos da AD. A seguir, apresentamos os fragmentos
das entrevistas:
Fragmento 1: D. Fulana de Tal: (74 anos, faz 10 anos que se tornou evangé-
lica)
Pergunta 1: A senhora conhece alguma erva que serve para fazer uma mu-
lher abortar?
D. Fulana: Não conheço não senhora. Abortar é pecado.
Pergunta 2: A senhora conhece alguma erva que faz vir a menstruação atra-
sada por mais de um mês?
D. Fulana: Conheço sim, venha comigo que vou te mostrar.
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marido, etc..etc...Vou contar para você o nome das plantas, desde que você
não conte para as outras que fui eu que te contou.
O conjunto das análises indica que os efeitos de sentido sobre o uso de er-
vas medicinais para a prática do aborto presentes no discurso dessas duas mulheres
quilombolas está relacionado a duas principais atribuições: o uso do conhecimento
tradicional quilombola das ervas medicinais para a cura de doenças, e também para
o processo abortivo e a religiosidade-medo-preconceito impregnados em seus dize-
res quanto à prática do aborto.
A resposta da D. Fulana: “Não conheço não senhora. Abortar é pecado”, reme-
te-nos ao efeito de sentido de religiosidade. A palavra “pecado” indica que se trata de
uma senhora religiosa, que se importa com o que a ideologia cristã ensina sobre “ser
pecado” praticar o aborto, e, por isso, não se sente nem um pouco à vontade quando
é indagada a esse respeito.
Sabemos que essa comunidade quilombola na qual essa senhora reside é uma
comunidade com maioria adepta ao cristianismo, de religião católica e, sobretudo,
evangélica. Assim, a ideologia cristã não permite a prática do aborto, nem mesmo
se for realizada com plantas medicinais, por isso, ao ser indagada sobre a questão,
imediatamente responde que abortar é pecado, evidenciando que se trata de uma
senhora religiosa e que, aparentemente, segue os preceitos recebidos por essa insti-
tuição.
Em qualquer sociedade ou país transitam discursos que são reconhecidos
como pertencentes àquela e não a outra sociedade ou país. Alguns desses dizeres são
fundadores, outros, embora funcionem como elemento identitário, não constituem,
no entanto, enunciados fundadores. Para essas mulheres quilombolas que foram
entrevistadas nesta pesquisa, temos dizeres que remetem à sua identidade cultural,
identidade esta de mulheres quilombolas que têm passado seus conhecimentos de
geração em geração. Trata-se de enunciados fundantes de uma tradição quilombola:
o discurso religioso, que temos na entrevista da primeira mulher, desvela um sentido
de enunciado fundante na religiosidade. Dessa forma, no campo da AD, o discurso
se constitui sobre o primado do interdiscurso: todo discurso produz sentidos a par-
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Pergunta 2: A senhora conhece alguma erva que faz vir a menstruação atra-
sada por mais de um mês?
D. Fulana: Conheço sim, venha comigo que vou te mostrar.
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não sabem que seus enunciados estão impregnados de outros dizeres historicamente
construídos na sua comunidade por seus antepassados, seus familiares, que estão
sempre reproduzindo dizeres já ditos anteriormente, que estão ecoando dizeres fun-
dantes, ideológicos, de tradição, com marcas identitárias de sua comunidade qui-
lombola quando falam isso ou aquilo, nesse caso, quando falam acerca do aborto,
ou das plantas medicinais.
Considerações finais
Do ponto de vista humano e social, a situação educacional no campo é in-
justa e discriminatória, bem como as políticas públicas gerais de universalização do
acesso à educação não têm dado conta da realidade específica dos povos do campo.
Nesse contexto, surge a Educação do Campo como mobilização de movimentos
sociais por uma política educacional para comunidades camponesas articuladas às
lutas por reforma agrária, partindo-se de uma compreensão de campo carente de
terra e condições de trabalho, de escolas apropriadas para as pessoas que ali residem
visando maior desenvolvimento de seu território (CALDART et al., 2008).
Muitos estudos etnobotânicos são realizados tomando como ponto de par-
tida a fala dos entrevistados, observação participante e diagnósticos participativos.
Como esses saberes são de tradição oral, o pesquisador conta com a boa vontade dos
detentores de saber das comunidades que, por questões culturais e/ou ideológicas,
muitas vezes se recusam a abordar sobre determinados saberes considerados co-
nhecimentos femininos, masculinos, interditos, entre outros, expressos no silêncio
diante de determinadas perguntas. Esse fato não só empobrece os levantamentos,
como contribui para o desaparecimento de muitos conhecimentos. Consideramos
que o uso da AD contribuirá para minimizar essas perdas, garantindo o cumpri-
mento do objetivo inicial, levantar dados do conhecimento etnobotânico a partir
do discurso implícito na fala dos quilombolas por meio da AD, visando subsidiar a
produção de materiais didáticos para as aulas de botânica e assegurar a valorização
do conhecimento tradicional quilombola.
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196
Valorizando o conhecimento etnobotânico dos estudantes
197
Beatriz e o abandono: anotações a uma
ação de liberdade no Paraná (1876-1881)
Carlos Alberto Medeiros Lima1
1
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Uni-
versidade Federal do Paraná; bolsista de Produtividade em Pesquisa – nível 2 – do CNPq. Dou-
tor em História Social pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: carlima3@gmail.com.
198
Beatriz e o abandono
relação aos vínculos comunitários de âmbito local, caso estes envolvessem escravos,
o que, inclusive, talvez tenha contribuído para que o “abandono” não fosse dos ele-
mentos mais invocados nas ações de liberdade instauradas subsequentemente à Lei
do Ventre Livre.
Embora a matriz da alforria por abandono fosse romana, referindo-se a
escravos idosos e doentes (isso aparentemente desde Claudio; ver MALHEIRO,
1976, cap. 3º, SEÇÃO 3ª, art. II), as ações correspondentes, baseadas no que po-
deria ser visto como o direito romano, não foram frequentes, do mesmo modo que
as referências aos “códigos romanos” tiveram pouca importância nas ações de li-
berdade imperiais (GRINBERG, 2002). A Lei do Ventre Livre e seu Regulamento
realmente devem ser considerados os elementos que acionaram o dispositivo, com
todos os seus limites. Em paralelo a essas novidades ao redor da dimensão legal do
abandono, outro elemento aumentou sua importância, nomeadamente o avanço da
clivagem entre livres pobres e senhores de escravos. É sabido que, durante o século
XIX brasileiro, aumentou a distância social entre os diversos segmentos dos livres, e
a irrupção das duas coisas mais ou menos ao mesmo tempo elevou, como se verá, a
importância política do abandono, mas de um modo que pode ter conduzido a uma
inviabilização do recurso ao dispositivo.
A historiografia das ações de liberdade não dá muita ênfase aos casos de aban-
dono. As alegações em ações de liberdade no Sudeste das décadas de 1830 a 1860
estudadas em Mattos (1995) não dão a impressão de que fenômenos semelhantes
a ele fossem comuns nas cortes do Sudeste. Para Chalhoub (1990), após 1871, o
caso dominante nas ações de liberdade do Rio de Janeiro passou a ser a tentativa de
redução do preço a ser pago pela manumissão. Regina Xavier sugere que as ações
de manutenção da liberdade de Campinas se ligavam à preservação da liberdade de
pessoas livres sob ameaça (XAVIER, 1996). A discussão de Spiller Pena sobre ações
de liberdade em Curitiba, apesar da proximidade e da semelhança com Palmeira
(que fizera parte de Curitiba até 1869) também não sugerem que o abandono fosse
alegação frequente (PENA, 1990). Os meros dois casos de abandono localizados
por Ricardo Tadeu Caires Silva na Bahia do fim dos anos 1870 e início da década
seguinte tiveram como resultado a rejeição da liberdade (SILVA, 2007).
200
Beatriz e o abandono
201
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
202
Beatriz e o abandono
Como a ação obteve uma primeira sentença contrária à liberdade, houve apelação ex
officio dirigida à Relação de São Paulo. Lá, em 1878, o fato de ter ocorrido trâmite
no Juízo de Órfãos de Palmeira conduziu à anulação, relaxando-se o depósito que
havia sido feito da escrava. Em vista desse trâmite, a maior parte do documento
a que se teve acesso no Fórum de Palmeira constitui translado não paginado dos
autos, a que se acrescentou o “cumpra-se” pelo juiz municipal de Campo Largo, o
termo de conclusão e uma petição de um interessado no cativeiro de Beatriz, Pedro
Ferreira Maciel, no sentido daquele relaxamento de depósito.
203
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
so aqui abordado. Como Quitéria passou um bom tempo doente antes de morrer,
permaneceram, ela e Beatriz, na casa de Jerônimo Romão Ferreira, ferreiro e curan-
deiro, que morava de favor em casa de Pedro Ferreira Maciel ( Jerônimo costuma-
va “dar remedios na vezinhança”; sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP,
testemunho de Antônio de Moraes Perpétua). Mencionava-se uma terceira filha,
Maria, também pertencente ao espólio de Manoel Manso dos Santos, mas de desti-
no igualmente incerto no interior da vizinhança. Quanto a ela, o que se sabe é que,
segundo Antônio de Morais Perpétua, parente de alguns dos herdeiros e que vivia
de seus negócios, Quitéria visitava sua casa para pedir esmolas e para “ver uma filha
que lá tinha”. Antônio chegou a conversar com os herdeiros sobre “tratar da acção
de cobrar a creação” de Maria. Acrescentou que outra filha de Quitéria, Madalena,
também vivia em sua casa, mas, nesse caso, ele próprio era senhor de metade dela
(Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Antônio de Mo-
raes Perpétua, que era sobrinho de Manoel Manso dos Santos).
No início de sua doença, Quitéria chegou a procurar alguém da família de
Rosaura Soares, viúva, nora de uma filha de Manoel Manso dos Santos. Talvez por
isso tenha passado algum tempo, já doente, morando com Maria da Luz, neta do
mesmo Santos (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Je-
rônimo Antunes de Góes). Mas, tendo ficado carente de respostas no médio prazo,
Quitéria procurou seu compadre, David Rodrigues da Maia, de Campo Largo, que,
soberanamente, e mostrando a mistura de reciprocidade e domínio implícita nas
relações de compadrio, mandou oferecer aos herdeiros o valor da avaliação de Qui-
téria. Como os de Manso dos Santos não quisessem vendê-la, “disse o mesmo David
á sua comadre que procurasse outro recurso que esse não a podia valer”. A escrava,
assim, teve que se acomodar na casa de Jerônimo, onde ficou “de cama” (Sentença cí-
vel da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Manoel Cardoso dos Santos).
Quitéria morreu em 1866 ou 1867, e Beatriz foi levada para viver com Ma-
ria Domingues e David Rodrigues da Maia em Campo Largo, local próximo da
parte de Palmeira chamada dos Papagaios, onde tudo se desenrolou. Pedro Ferreira
Maciel contratou o sepultamento, fazendo com que Bartolomeu, órfão da defunta,
fosse à sacristia pagar pela cerimônia. Foi na sequência do enterro, ao qual aparen-
204
Beatriz e o abandono
206
Beatriz e o abandono
anuais iguais ou superiores aos quatro contos de réis, correspondendo a 9% dos qua-
lificados para votar e tendo os maiores rendimentos sido de dez contos (11 casos;
ver QUALIFICAÇÃO PALMEIRA, 1880). Em Palmeira, por outro lado, o maior
rendimento declarado foi de quatro contos, com apenas um caso entre 471 quali-
ficados. Aliás, tratava-se de pessoa que aparecia no processo em análise exatamente
na posição de juiz de órfãos: o padre José Antonio de Camargo e Araújo. Isso é
significativo, pois aponta para um conjunto de agricultores depauperados sobre o
qual se estabelecia uma elite de alguma forma articulada ao exercício de funções
estatais e religiosas.
A comparação feita acima é estratégica, pois São José nunca foi tão tocada
pelo negócio de tropas e pela criação de gado quanto Palmeira, na época em que as
duas áreas faziam parte do termo de Curitiba. O tráfico interno de escravos tinha
relação certeira com isso, denunciando essa crise ao mesmo tempo que a aprofunda-
va, pois Palmeira era área fornecedora de cativos para o comércio interprovincial4.
Observando cerca de uma vintena dos inventários post mortem que sobreviveram
na Vara Cível de Palmeira (anos de 1874, 1875, 1880 e 1881), tem-se uma viva im-
pressão acerca dessa decadência5. De 24 inventários, 16 faziam referência a alguma
forma de posse de escravos. Parece muito, mas o que estava escondido nisso apon-
tava para uma situação bem difícil: propriedade de apenas parte desses escravos, de
cativos com titulação problemática ou, ainda, de plantéis arruinados e inviáveis em
termos econômicos. Só em alguns pouquíssimos casos se tratavam de ínfimas es-
cravarias que pareciam organizadas para produzir; mas enfatize-se que eram muito
pequenas. Além do mais, trinta e dois dos sessenta escravos inventariados eram se-
nhoras de idade, mulheres e meninas. Acrescente-se ter sido preciso que um inven-
tariado possuísse mais de vinte contos de réis de fortuna – um império na Palmeira
dessa época – para que a parcela dos animais em seus bens ultrapassasse um pouco
os dez por cento do total de seu patrimônio.
A parcela média dos bens de raiz nesses patrimônios, por faixa de fortuna,
ultrapassava os três quintos nas fortunas menores (menos de dois contos) e nas
maiores (mais de vinte contos). Mas a quase ausência de outros ativos nos montes
4
Sobre o tráfico interprovincial de escravos, ver Slenes (1986) e Motta (2012).
5
Inventários post mortem, FP-VCP, processos cíveis, pacotes 1874, 1875, 1880 e 1881.
208
Beatriz e o abandono
inventariados sugere que muito pouca coisa era feita com essas terras de agricultores
modestos e de fazendeiros. Do valor dos bens de raiz inventariados, cerca de um
décimo correspondia a bens de titulação duvidosa, anexos a terras alheias, em mau
estado, detidos em comum com outras pessoas, pertencentes a patrimônios pro in-
diviso ou coisa semelhante. Caso se leve em conta que isso podia estar incidindo,
inclusive, nas avaliações desses bens, depreciando-os, a importância dessa tranquei-
ra dentro das atividades pode ter sido bem maior que o sugerido pelas avaliações.
Nos extremos dos inventários, como visto as faixas em que os bens de raiz eram
mais importantes, a incidência desse tipo de coisa chegava a um quinto do total das
avaliações de bens de raiz. Além de isso ser muito, não se deve esquecer de que essa
era a situação dos bens dos inventariados no momento de suas mortes; as partilhas
para cuja realização os inventários eram feitos estavam adicionando ainda mais des-
truição a tudo isso.
Nesse quadro de retração, a vida comunitária em Palmeira deve ter assumido
um papel ainda mais relevante que o tradicionalmente detido por ela, com senhores
empobrecidos, maior dependência coletiva da reciprocidade e da redistribuição e
completa ausência de processos de crescimento e acumulação que de alguma for-
ma pudessem vazar para os homens e mulheres livres pobres. Examina-se isso, aqui,
através do próprio caso abordado na ação de liberdade de Beatriz.
Voraz comunidade
Jerônimo Romão Ferreira, o ferreiro curandeiro mencionado anteriormen-
te, era uma espécie de eixo de redistribuição. Ele “dava” remédios “na vezinhança”
(Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Antônio de Mo-
raes Perpétua). Abrigou Quitéria quando ela esteve “de cama”, e a única referência
a pagamento parecia-se mais com uma troca de favores, pois, segundo um testemu-
nho, “Quiteria antes de morrer esteve curando-se em casa de Jeronymo, mandada
por sua senhora que promettera a Jeronymo uma gratificação se curasse a referida
escrava” (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Jerônimo
Antunes de Góes). Isso não era um preço, como se vê, além do fato de o juiz não ter
julgado que esses fatos tivessem sido comprovados. No entrecho, Jerônimo Romão
209
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
também abrigou Beatriz, bem pequena nessa época. Pessoas aparentemente pobres
davam esmolas por seu intermédio. É o que se vê pelo caso de Maria Joaquina de
Moraes, costureira aparentada mas não dependente dos herdeiros (embora estivesse
apenas na casa dos 30 anos de idade e não se mencionasse marido), que deu esmolas
à escrava enquanto ela estava “enferma de cama” na casa de Romão (Sentença cível
da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Maria Joaquina de Moraes).
Francisco Generoso da Silva fez referência a uma “mulher que cuidava de
Quiteria” durante a doença, mostrando haver mais gente envolvida com caridade
na casa de Jerônimo. Essas pessoas, aliás, recebiam tanto quanto doavam, pois Je-
rônimo mesmo “mandava alguma cousa” àquela mulher, o que constituiria “um re-
conhecimento dos obsequios que lhe faria” (Sentença cível da Relação de São Pau-
lo, FP-VCP, testemunho de Francisco Generoso da Silva). O solicitador Carlos de
Araújo Silva, de 40 anos, natural do Rio de Janeiro, informou saber que a própria
Quitéria “esmolava para sua caridade”, inclusive na época em que estava em casa de
Jerônimo (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, perguntas dirigidas ao
informante Carlos de Araújo Silva. Não foi testemunha porque se recusou a ajoe-
lhar para jurar). Pedro Ferreira Maciel chegou a alegar (sempre por intermédio de
Bartolomeu, filho de Quitéria) que enviou reses para o sustento da adoentada (Sen-
tença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Joaquim Hermente da
Silva, lavrador que tinha 200$000 de renda anual e era letrado; cf. QUALIFICA-
ÇÃO PALMEIRA, 1880, fl. 11). O próprio Jerônimo morava em casa situada em
terreno pertencente a Maciel. Ninguém sabia direito quem era o dono da casa, ape-
sar de ninguém duvidar da propriedade do terreno, fato comum nesse mundo rural
de propriedade de benfeitorias marcadamente distinta da propriedade de terrenos
(CASTRO, 1986; Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de
Antônio de Moraes Perpétua).
Hierarquia e tensão atravessavam esses eixos que congregavam receber favo-
res, favorecer outras pessoas, transmitir beneficência e oportunizar reciprocidades.
O próprio Jerônimo era visto como merecedor de caridade. Manoel Cardoso dos
Santos, carpinteiro natural e residente de Palmeira, descreveu-o como “homem po-
bre, carregado de filhos e que vivia de seu officio de ferreiro” (Sentença cível da Re-
210
Beatriz e o abandono
lação de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Manoel Cardoso dos Santos). A rede,
assim, era ampla. Segundo um informante que opinava contrariamente à ideia do
abandono, “todos, como é de costume no bairro lhe levavão alguma cousa quando
ella esteve doente, sem que essa precisasse” (referia-se a Quitéria; cf. Sentença cível
da Relação de São Paulo, FP-VCP, perguntas dirigidas ao informante Salvador de
Oliveira Franco; não era testemunha por ser parente de vários dos herdeiros).
As parentelas eram marcadas por esse tipo de tensão. Antônio Perpétua e
Maria Joaquina de Moraes nitidamente estavam do lado oposto ao dos herdeiros
na questão da liberdade de Beatriz e em outras questões. Mas eram parentes. Lin-
da Lewin sugeriu, a partir do caso paraibano do século XIX, que mesmo famílias
de elite (inclusive de escopo nacional, ultrapassando o meramente regional) eram
marcadas por segmentação, conflitos internos e parentesco “raso” (isto é, sem contar
muitas gerações antecedentes), embora seus incentivos para a coesão fossem muito
grandes. Isso se devia à própria expressão das estratégias concentradoras nas rela-
ções de parentesco: Lewin (1993) argumenta, polemicamente, com o casamento
preferencial com a prima paralela patrilateral; ele se ligava a um máximo na busca
de concentração de autoridade e recursos, e exatamente por isso travava as relações
mais recíprocas que poderiam tecer com firmeza laços que poderiam ser mais está-
veis se fossem negociados.
O eixo de redistribuição, além de hierarquia e tensão, continha competição
(FRANCO, 1976). Em Campo Largo, Maria Domingues e David da Maia pilota-
vam seu próprio eixo redistributivo. Na abertura do processo, retardaram a apresen-
tação de Beatriz ao juizado de órfãos de Palmeira alegando que “Marianno de tal”
estava doente em sua casa, na verdade aguardando a morte. Ter-lhe-iam fornecido
“tratamento”, pois este só contava com o “fraco e único socorro” propiciado por eles.
Até Marianno falecer, em 29 de outubro, Maria não podia negar-lhe seu “auxílio”,
pois de outro modo faltaria “com a caridade a que somos obrigados pela lei natu-
ral e religiosa” (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, petição de Maria
Domingues). Não fica claro se havia alguma conexão entre as situações de Beatriz
e Mariano junto a Maria Domingues, mas transparece a contiguidade entre uma
visão caritativa e hierárquica da sociedade, o auxílio mútuo comunitário e o relacio-
211
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
namento que essas pessoas estabeleciam com o cativeiro nesse período. Note-se que
se apostava em ainda fazer sucesso no judiciário aquela concepção de direito natural
objetivo expressa na “lei natural e religiosa”.
Essas relações comunitárias, apesar de atravessadas por hierarquias, tensões e
competição (ou exatamente por causa disso), eram hospitaleiras. O próprio curan-
deiro Jerônimo chegou a ser tratado por uma testemunha como “estranho”, tendo
a estadia de Quitéria em sua casa sido vista por ele como um período durante o
qual a escrava estivera “abandonada” ali (Sentença cível da Relação de São Paulo,
FP-VCP, testemunho de Antônio de Moraes Perpétua). Além do mais, muitas das
tarefas da atualização desses laços e conflitos comunitários eram executadas por mi-
grantes. Um destes era Francisco Generoso Vieira, natural de Apiaí e que residia em
Palmeira havia muitos anos. Ele apareceu nessa história sabendo de coisas como a
existência de autorização senhorial para que Quitéria trabalhasse, ou do fato de ela
ter estado a jornal na casa do conselheiro Jesuíno Marcondes. Tinha informação
sobre o trajeto de Bartolomeu após o enterro de sua mãe, sobre o apelido da herdeira
de Manoel Manso que mais dizia assumir responsabilidades quanto a Quitéria (Ana
Pires, conhecida como Sinhá Anica) e sobre o fato de que Quitéria chamava regu-
larmente Bartolomeu de filho. Morava nos Papagaios havia vinte anos, em terreno
que fora de seu irmão e que passara para Pedro Ferreira Maciel, tendo se tornado
necessário solicitar o consentimento deste para residir ali (Sentença cível da Relação
de São Paulo, FP-VCP, testemunho de Francisco Generoso Vieira). O migrante em
tela podia esclarecer até mesmo relações íntimas: não tinha dúvidas quanto a David
Rodrigues da Maia e Maria Domingues de que “elles vivem juntos” e que “a domina
por ser sua concubina” (Sentença cível da Relação de São Paulo, FP-VCP, testemu-
nho de Francisco Generoso Vieira).
Havia tradições, inclusive legais, ditando que, de alguma forma, relações de
propriedade precisavam ser referendadas por vidas comunitárias como essa. O juiz
municipal de Campo Largo, que proferiu a sentença que será referida adiante, mas
que já se pode deixar dito ter sido desfavorável a Beatriz, lembrava a presença desse
tipo de imperativo nas Ordenações Filipinas: “senhor se presume sempre aquelle
que o foi por algum tempo aque se mostre o contrário, Ordenação livro terceiro
212
Beatriz e o abandono
título cinquenta e três paragrapho terceiro”. A referência está correta, mas a cópia ou
a memória do juiz truncou o texto. Deve-se ler o seguinte: “o que em algum tempo
foi senhor da cousa, presume-se por Direito ainda agora o ser, até que se mostre o
contrário” (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1966, p. 193).
Voltando à referência ao texto das Ordenações, lê-se nela que, de certo
modo, ou bem senhores mostravam seu vínculo de pessoa a pessoa com os escravos,
necessidade ainda presente na legislação, ou então a personalização moderna da re-
lação senhor-escravo se abateria sobre eles através da libertação por abandono; mas
senhores precisavam fazê-lo, e não a comunidade circundante, pois, se esta última
pilotasse os auxílios, seria por expressão falha do domínio senhorial, pelo menos nas
condições instauradas pela Lei do Ventre Livre.
O migrante a que se faz referência participou igualmente da plateia para esse
tipo de exibição pública dos ritos constitutivos da relação de propriedade, exibição
essa revivida na legislação (o Regulamento) como requisito para senhores de escra-
vos. Como a posse precisava passar pelas atitudes quotidianas do proprietário, ne-
cessitava apoiar-se no crivo comunitário: Vieira sabia perfeitamente, por ser “referi-
do pelos herdeiros e geralmente na vezinhança, que Anna Pires mandou procurar a
negrinha” (Beatriz).
Os testemunhos de migrantes reforçam muito essa impressão de uma co-
munidade que se reforçava incorporando estranhos. Uma das testemunhas foi Je-
rônimo Antunes de Góes, de 34 anos, natural de Sorocaba e residente em Palmeira
por oito a nove anos. Essa migração, ocorrida por volta de 1870, diz muita coisa,
especialmente quando comparada à de Francisco Generoso Vieira, partida de Apiaí
nos anos 1850 ou 1860. Ambas ocorreram durante a decadência do comércio de
animais que ligara por muitos anos Palmeira e os Campos Gerais paranaenses a par-
tes do atual estado de São Paulo. Isso é bastante sugestivo quanto a deslocamentos
geográficos e ocupacionais de membros das redes que viabilizavam aquele comércio.
Possivelmente, essas pessoas estavam caminhando na direção de uma agricultura de
escala bem menor, e procurando terra para isso em lugares mais vazios, como Pal-
meira. Jerônimo Antunes de Góes era, em 1880, lavrador declarante de 200$000 de
renda, situação muito semelhante à de Francisco Generoso Vieira, à exceção do fato
213
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
214
Beatriz e o abandono
A linha
Não deve passar despercebida outra questão envolvida nisso tudo: a circula-
ção de escravos sem estrito controle senhorial era fato normal até mesmo em comu-
nidades rurais como Palmeira. Senhores podiam passar longos períodos sem sequer
esbarrar com cativos seus. Isso ajudava a tornar ainda mais tênue a linha entre a
propriedade e o abandono, da mesma forma que entre o aluguel e o ganho.
Pedro Ferreira Maciel, que parecia ser o interessado mais mobilizado no
processo, trouxe à análise um documento aparentemente feito posteriormente aos
fatos, mas incluído como original, e que representaria uma prova de ausência de
incúria. Tratava-se de uma autorização por escrito, e com testemunhas, para que
Quitéria trabalhasse por si. A impressão de ter-se tratado de documento produzido
posteriormente parece não ser somente do analista, pois ele, embora inserto nos
autos, foi simplesmente ignorado na sentença referida abaixo, talvez porque o texto
previa bem demais o que aconteceria com Quitéria após a data de sua elaboração.
Ele é reproduzido aqui por julgar-se que é interessante a respeito das definições so-
bre aquilo que não seria considerado abandono no período:
216
Beatriz e o abandono
pois – recordava a partir das Ordenações, livro quarto, título oitavo – “culpa alheia
não deve, a outros, trazer danno”. Mesmo que o inventariante tivesse abandonado
as escravas, o mesmo não poderia ser dito dos outros herdeiros, e além do mais Ana
Pires tentou tirar Beatriz da casa de David, julgava o magistrado. Tudo era ambíguo,
no entanto, em virtude da coexistência na legislação de princípios diversos para con-
ceituar e garantir, ou não, o domínio sobre as escravas, assim como devido à ambiva-
lência intrínseca aos requisitos para o domínio de escravos inscritos na temática do
abandono. Talvez por isso a Relação de São Paulo tenha resolvido a coisa com uma
autêntica patada: o processo foi simplesmente anulado em fevereiro de 1878, diante
da “incompetência”, no sentido de carência de jurisdição, do juiz de órfãos.
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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Beatriz e o abandono
Lugares de propriedade
Tendo ou não sido específicos de lugares como Palmeira aqueles conflitos
entre senhores de escravos e comunidades locais, circulavam no Império outras
abordagens do problema. Podem-se obter algumas luzes comparativas observando
um caso ocorrido em Mar de Espanha, Minas Gerais, caso este no qual o abandono
talvez pudesse ter sido mobilizado, sem ter sido. Deve-se lembrar que Mar de Espa-
nha fazia parte da área cafeeira de Minas Gerais, tendo apenas seu contingente es-
cravo sido maior que toda a população (livres somados a cativos) de Palmeira. Eram,
em Minas, 5.500 escravos (43% da população local), confrontados a 7.405 livres.
Em Palmeira, no mesmo ano de 1872, foram contados 4.502 livres e 614 escravos
(12% da população). Acrescente-se que em Mar de Espanha a população escrava era
marcadamente “plantacionista” o que, em definitivo, nunca se passara em Palmei-
ra. Tratava-se de 3.187 homens e 2.313 mulheres, ou quase três homens para cada
par de mulheres, indicando que na vila mineira o recurso ao tráfico de escravos (o
221
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
distante comércio de almas africanas e o mais recente tráfico interno de cativos) era
mais intenso (Recenseamento Geral do Império, 1872).
Em 1880, em Mar de Espanha, o curador de Paulina solicitou mandado de
liberdade para viger até que ação competente a declarasse livre, o que ela dizia es-
perar com alguma segurança. Paulina, então, estava na cadeia da cidade, tendo sido
aprisionada pelo delegado de polícia, que a julgou escrava. Passara um bom tempo
“no uso e gozo de plena liberdade”, tendo, no decorrer desse intervalo, vivido fora
da cidade, embora a apenas “meio quarto de légua” (menos de um quilômetro) de
distância. Não se ocultara, portanto, e ia frequentemente ao núcleo municipal. Nes-
se intervalo, “sempre foi tida e havida por livre”. O curador sustentou na mesma
petição que Paulina estivera “em a posse da liberdade durante mais de anno e dia”. É
fundamental acentuar a expressão escolhida, pois ela deixa entrever concepções de
escravidão e de liberdade que estavam em circulação no período. Originariamente,
a liberdade de Paulina (e não a própria Paulina) fora possuída por seu proprietário.
Ela, no entanto, conseguiu tomar posse, para si, dessa sua liberdade. O “ano e dia”
referido pelo curador mostra que nada disso era metáfora. Tratava-se de posse velha,
demandando, para seu questionamento, rito ordinário. A liberdade de Paulina era
mesmo uma coisa, um bem, e ela tomou posse desse bem. A linguagem era a da pro-
priedade (SOARES, 1938, p. 140-147).
Tratando a petição de mandado de manutenção de liberdade como justi-
ficação, o juiz, Antonio Joaquim de Macedo Soares, sentenciou que ela procedia.
Mas houve embargos, pois o processo deveria correr, diziam os embargantes, em
São Fidelis, Rio de Janeiro, estando Paulina descrita entre os bens inventariados por
morte da mãe deles. Isso podia querer dizer muitas coisas. Podia apontar para expec-
tativas de maior apoio a senhores no norte fluminense, ou então podia ser tentativa
de impossibilitar que Paulina proclamasse abandono, dado que este só podia ser
invocado no caso de senhores habitantes do mesmo município que seus escravos.
Ninguém, no entanto, usou o termo no sentido da Lei do Ventre Livre nem no do
respectivo Regulamento. Um desses interessados expôs ter havido, em 1877, en-
gano burocrático que fez todos pensarem que Paulina não havia sido matriculada
– resultando disso a “fama de liberdade” – e que, precisando ele transferir-se para
222
Beatriz e o abandono
São Fidelis, “deixou n’este lugar a manutenida”. Prosseguia dizendo que, além de o
erro ter sido detectado, por ter sido encontrada a matrícula da moça, não se podia
de modo algum falar em “prescripção d’escravidão”, pois para isso seria necessário
o lapso de cinco anos exigido pelo alvará de 10 de março de 1682 e pelo Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de dezembro de 1862 (GRINBERG, 2006, p.
111 e seguintes). Sublinhe-se isso: mesmo após a Lei de 1871 e o Regulamento de
1872, o abandono era definido nos termos da “prescrição de escravidão”. Com o uso
da ideia de prescrição, da mesma forma que com o manejo, bem diferente, da posse
velha pelos de Paulina, se estava caminhando muito perto de um jargão ligado à
propriedade. Em um caso, fazia-se referência à propriedade exercida sobre a pessoa
de Paulina. No outro, proclamava-se a posse de sua liberdade.
O juiz Macedo Soares manteve o percurso. Considerou a posse exercida por
Paulina “boa, mansa e pacífica”. Fez referência a “abandono”, mas em acepção muito
próxima à do curador: “os RR. confessam que, mudando-se para S. Fidelis, abando-
naram a A. como livre, e d’isso estavam persuadidos”. A alegação de “dominio” dos
réus era impertinente, “porque n’essa acção só se tracta da posse”; “não ha dominio
sobre escravos”. Rejeitava a aplicação do assento de 16 de fevereiro de 1786, segundo
o qual “não se deve julgar a posse em favor d’aquelle á quem se mostra evidentemen-
te não pertencer a propriedade”. Isso não poderia beneficiar os réus porque “não há
propriedade d’escravo”. Além disso, não podendo os réus provar sua propriedade,
era vedado à autora provar a “prescripção quinquennal”, a que se acrescentava que
o assento só cogitou da “propriedade no seu verdadeiro e juridico sentido de do-
minação da pessoa sobre a coisa apropriavel”. Em suma, “é inadmissível nas ações
possessórias a excepção de dominio” (SOARES, 1938, p. 140-147).
No jargão mobilizado em Palmeira, circulavam as obrigações recíprocas de
senhores e escravos, tendo ganhado muito peso para qualificar tais relações a in-
trusão da comunidade depauperada circundante. Em Mar de Espanha, por outro
lado, e pelo menos no caso referido, o vocabulário da posse e da propriedade estava
no centro da querela. A questão da “prescrição da escravidão”, de origem palmarina
(1682), era decisiva para os pretensos senhores de Paulina, fazendo referência a re-
lações de propriedade sobre escravos.
223
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
A visibilidade de Paulina pela comunidade, como se fosse livre, não foi usada
por seu curador para mostrar abandono por parte dos senhores. Foi, antes, mane-
jada para defender que ela tinha posse velha, se não de si, de sua liberdade. Mar de
Espanha deveria testemunhar o seu desembaraço e, em virtude dele, a posse velha.
Isso era algo bem diferente do que se passaria em Palmeira, onde Beatriz, e Quitéria
antes dela, seriam definidas como membros de uma rede de reciprocidades, estando,
portanto, desvinculadas de seus proprietários.
O juiz Macedo Soares, reputado abolicionista, e rematando o caso de Mar
de Espanha, negou o domínio e a prescrição. Deixou de lado até mesmo o esquivo
argumento da posse velha da liberdade vista como um bem. Mas permaneceu no
terreno de quem avalia a partir de uma concepção de propriedade, sentenciando
não haver escravidão a entrar em prescrição por não existir propriedade (“domínio”)
sobre escravos.
Considerações finais
Em tudo chamou muito a atenção o fato de a rede comunitária mobilizada
em favor da hipótese do “abandono”, e, portanto, da libertação de Beatriz, não ter
mostrado muitos sinais de abolicionismo. Afinal, um ponto importante dessa rede
de apoio à interpretação que garantiria a liberdade de Beatriz era David Rodrigues
da Maia, que tentara comprar Quitéria e buscava adquirir Beatriz. Mais que pela
ideia de abolição, essas pessoas pareciam articular-se movidas pela proteção do te-
cido comunitário. Maia desejava o trabalho de Quitéria ou Beatriz? Seus ventres?
Seus encantos, caso não fosse o pai da menina? Provavelmente tudo, mas o funda-
mental aqui é aquilo que ele mobilizava na tentativa de consegui-lo.
No entanto, e isso parece ser fundamental, a Lei do Ventre Livre criou opor-
tunidade para a plena exibição da cunha que vinha se formando entre o vínculo
comunitário e o poder senhorial. A partir dela, se houvesse muita ajuda mútua, se
escravos estivessem envolvidos demais com os livres pobres circundantes para mi-
norar suas agruras, ficaria configurado o abandono, resultando a liberdade; embo-
ra isso não tenha sido frequente, para dizer o mínimo, a possibilidade desse tipo
de processo deu oportunidade a que o conflito transparecesse nos documentos. É
224
Beatriz e o abandono
curioso que até a tentativa de aquisição de Quitéria e de Beatriz por David Rodri-
gues da Maia tenha podido ser usada no interior da trama discursiva favorável à
liberdade, em virtude de ter deixado claro que a rede estava se fazendo necessária
demais, que o poder senhorial estava distante demais. A temática do abandono, por-
tanto, acrescentava mais uma gota à clivagem entre livres pobres e escravistas que se
aprofundava durante o século XIX, desde o fim do tráfico africano.
A visível retração econômica de Palmeira ajudava a esquentar o assunto, por
produzir proprietários escravistas que, imensamente descapitalizados, não eram ca-
pazes sequer de por seus cativos para trabalhar. Mas tornava o tema mais candente
também de outra forma: com a retração, sofria radicalização a colossal pobreza im-
perante entre os homens e mulheres livres, acompanhada da duradoura desigual-
dade; isso reforçava e tornava mais urgentes os laços comunitários que, nessa hora,
escravistas passavam a ter que temer.
Além do mais, as características dessa vida comunitária que ganhava novo
papel em relação ao cativeiro eram muito aptas a, em um nível miúdo, quotidiano,
tornar essa tensão mais explosiva. Elas não eram antitéticas em relação a momentos
de tensão, conflito e competição. Também conviviam com hierarquias às vezes qua-
se imperceptíveis a uma primeira mirada. Havia litígio dentro dela.
Já foi muito bem defendido terem caminhado rapidamente para a indiferen-
ça, após 1850, as relações dos livres pobres com a escravidão, com a posse de escra-
vos cada vez mais monopolizada pelos grandes proprietários. Esse processo foi uma
das etapas da história da persistente desigualdade brasileira, expressando-se em um
distanciamento social bastante sólido e sustentado entre grupos. O processo que se
aborda aqui, de tensão expressa juridicamente entre os laços comunitários e o poder
senhorial, consistiu em um capítulo desse trajeto, embora, talvez, sua expressão jurí-
dica tenha sido um curto capítulo. É difícil de imaginar sua extensão. Como se viu
pelo caso de Paulina, que obteve sentença favorável de Macedo Soares, a problema-
tização das prerrogativas senhoriais podia passar por linguagem articulada à posse e
à propriedade aplicada a escravos que viviam e trabalhavam longe de seus supostos
senhores; tais escravos teriam a posse de si, sendo isso que nos permite compreender
o vocabulário de “ano e dia” manejado em petições e sentenças. Mas, difundida ou
225 225
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
226 226
Beatriz e o abandono
227 227
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
escravista, segundo ele, tinha lei de menos, e não lei demais. Assim, articulou lei
positiva e liberdade individual, apontando que a vigência disso seria problemática
enquanto perdurasse a escravidão.
A vigência disso como projeto estaria relacionada, como se sabe, àquilo que
Foner definiu como o “nada além da liberdade” do pós-abolição (FONER, 1988);
mas a noção não prevalecia sozinha, da mesma forma que a radical exclusão quan-
to à apropriação do solo não atingiu, no Brasil, os níveis norte-americanos, deven-
do ser lembradas as recomendações de abolicionistas formados no juspositivismo,
como Nabuco, na direção da promoção do acesso de libertos à terra, com muitas
ambiguidades (AZEVEDO, 1988).
O juiz de Campo Largo, por fim, não duvidava da relação de propriedade,
entendida esta última nos termos tradicionais das Ordenações Filipinas. Desse
modo, não se pronunciou sobre liberdade, tendo-a negado a Beatriz. De fato, mobi-
lizou uma argumentação de parentesco sombrio com aquela da comunidade depau-
perada circundante, pois também apoiava a relação de propriedade no reconheci-
mento pelos vizinhos. A diferença, crucial para Beatriz, estava no fato de julgar que
o referendo comunitário da posição dos Santos existia efetivamente, negando-se o
abandono. Em verdade, o que ele tentava cancelar era a própria Lei do Ventre Livre.
A questão do abandono talvez tenha representado o elemento dessa Lei mais
passível de ser visto como letra morta. Até mesmo o processo de Beatriz foi anulado
por um suposto defeito de jurisdição. Mas aquela questão fez falar, ao menos em
Palmeira, uma comunidade circundante às relações escravistas. Talvez por isso mes-
mo o abandono tenha sido deixado praticamente de lado.
Em resumo, não aconteceu nada, mas muitos elementos tornaram-se visíveis
para o analista. A entrada mais decidida da questão do abandono na lei fez brotarem
aqui e ali novas tensões entre comunidades locais e senhores de escravos, sendo de
se pesquisar se essas novas tensões não estiveram por trás dos apoios livres a outras
iniciativas de escravos em favor de suas libertações. Isso atenderia à necessidade, que
vem sendo sentida por historiadores, de contextualizar diversos aspectos da escra-
vidão a partir das relações entre cativos e os homens e mulheres livres que circunda-
vam as unidades em que viviam.
228 228
Beatriz e o abandono
A motivação inicial para abordar essa e outras ações de liberdade foi uma
pesquisa sobre doenças escravas no século XIX brasileiro. Desse ponto de vista, é
importante por muita ênfase no caráter muito difuso, descentralizado e por isso
mesmo quotidiano da ajuda mútua em relação às questões sanitárias. Ao mesmo
tempo que essa ajuda recíproca era extremamente dramática, respondendo a anseios
e necessidades urgentes, ela era constante o suficiente para dar origem a instituições
insuspeitadas, como o internamento difuso em casas particulares. Nessas institui-
ções tocadas por não profissionais destituídos de qualquer auxílio oficial, gente afli-
gida por males sem nome (porque também difusos e quotidianos, e não por serem
desconhecidos) era tão contumaz que chegava a passar anos fora das vistas de pode-
rosos locais, mesmo que se tratasse de escravos que permaneciam fora do controle de
seus senhores. Sendo evidente não valer a pena forçar a versão de que isso teria tido
um papel causal em relação à estruturação da vida social, ainda assim é inegável que
casos como o tratado neste texto chamam a atenção para a circunstância de essas re-
des difusas terem podido, no final do século XIX, afetar as percepções sobre e as prá-
ticas relacionadas a diversas outras instituições sociais, o que foi facilitado, embora
sem eficácia, pela recolocação do problema do abandono pela Lei do Ventre Livre.
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Beatriz e o abandono
231
Racismo e antirracismo no Brasil:
uma base teórica para a promoção da
igualdade racial a partir das políticas
redistributivas e de reconhecimento1
Fernanda da Silva Lima2
Introdução
Em pleno século XXI ainda é necessário lutar para que haja, no Brasil, uma
sociedade livre do racismo, do preconceito e da discriminação racial. A temática que
envolve a construção de uma política pública de igualdade racial capaz de assegurar
os direitos humanos dos grupos raciais negros, sem dúvida, é medida emergencial,
ainda que esse tema seja desafiador, principalmente por ser multifacetado e com-
plexo.
1
Este breve ensaio sobre a luta antirracista no Brasil e as políticas de garantia de igualdade racial
faz parte da pesquisa desenvolvida pela autora em sua tese de doutorado intitulada “Os direitos
humanos e fundamentais de crianças e adolescentes negros à luz da proteção integral: limites e
perspectivas das políticas públicas de igualdade racial no Brasil” e apresentada no Programa de
Pós-Graduação em Direito da UFSC. Parte deste material foi apresentado no evento III Copene
Sul, sendo que as contribuições que surgiram a partir do debate promovido no evento serviram
para revisão do texto ora apresentado.
2
Doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em direi-
to pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Professora Permanente no Programa de Pós-
-Graduação em Direito da UNESC (Mestrado em Direito). Professora titular da disciplina de
Direitos Humanos na UNESC. Integrante do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança
e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC). Vice-líder do Núcleo de Estudos em Direitos Humanos
e Cidadania (NUPEC/UNESC). Líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Relações
Raciais e Feminismo[s]. Pesquisadora na área de Direito Público com linha de pesquisa Direitos
Humanos, Cidadania e novos direitos com interesse nos seguintes temas: relações étnico-raciais,
feminismo negro e políticas de promoção da igualdade racial; direito da criança e do adolescente
e políticas públicas.
232
Racismo e antirracismo no Brasil
233
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Davis (2009) afirma que é necessária uma abolição da própria democracia, capaz de
assegurar a garantia de direitos humanos e fundamentais à população negra.
Assim, a aprovação da Lei Áurea em 1888 e a Proclamação da República
no ano seguinte não trouxeram mudanças significativas na vida dos grupos raciais
negros, ao contrário, não houve uma mudança na racionalidade e na cultura so-
cial para o respeito à diversidade étnico-racial. No Brasil, por exemplo, o projeto de
branqueamento foi implementado através do investimento em políticas imigrató-
rias, antes mesmo do fim da escravidão.
De acordo com Rizzini (1997, p. 39), os ideais positivistas e republicanos
de “ordem e progresso” impulsionaram a crescente industrialização, o crescimento
e desenvolvimento dos centros urbanos de forma acentuada e desordenada, propi-
ciada pela entrada maciça de imigrantes europeus. Viveu-se no país, pela primeira
vez, uma condição em que a moradia se tornou um problema nas suas principais
capitais. Muitas pessoas habitavam conglomerados urbanos em periferias, e entre
estes grupos estavam os negros, deixados à margem da sociedade:
235
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
ainda que raça também passa a ser categoria cultural para expressar as diferentes
identidades que compõem os sujeitos e grupos que vivem em sociedade, que em ra-
zão de sua identidade ou de sua cultura também podem sofrer processos de exclusão
– não necessariamente socioeconômica (SANTOS, 2003a).
Logo, atualmente, negar a existência de raças é negar a existência do pre-
conceito racial, do racismo e da discriminação racial. Contar a trajetória de luta
antirracista é também conhecer a luta impulsionada pelos três movimentos negros
de grande expressão no país, foram eles: a Frente Negra Brasileira (1931), o Teatro
Experimental do Negro (1944) e o Movimento Negro Unificado (1978). Cada um
surgiu um determinado momento histórico. O último em destaque, o Movimen-
to Negro Unificado, surge conjuntamente com o processo de redemocratização do
país, tendo algumas de suas reivindicações sido incorporadas na Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
A Constituição de 1988 constitui-se num marco jurídico importante para a
garantia dos direitos dos grupos negros, por assentar os direitos fundamentais das
pessoas sob a perspectiva do princípio da igualdade (substantiva e formal no art.
5º) e do princípio da dignidade humana, além de expressar rechaço total contra
qualquer forma de discriminação, inclusive a discriminação racial, criminalizando a
injúria racial e o racismo.
Além disso, a força da sociedade civil, aliada com segmentos governamen-
tais, foi responsável pela criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR) no ano de 2003. Constata-se que a pauta da igualdade
racial entrou na agenda política do país precisando ainda ser fortalecida.3
3
Em meio à crise político-institucional que assola o país, acompanhados de eventos de corrupção
e deposição do cargo da presidente eleita democraticamente no ano de 2016, sob o manto legal
do processo de impeachment, a SEPPIR, bem como a Secretaria Especial de Direitos Humanos e
a Secretaria Especial dos Direitos Humanos das Mulheres foram extintas e alocadas junto ao Mi-
nistério da Justiça e Cidadania. A história política brasileira, bem como a luta antirracista no país,
é acompanhada, como já mencionado, de momentos de avanços e retrocessos. Neste momento,
estamos vivendo um retrocesso social imenso e uma ameaça iminente às conquistas pelos direitos
humanos, pelos direitos dos grupos raciais negros, pelos direitos das minorias.
236
Racismo e antirracismo no Brasil
237
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
a discussão sobre a igualdade racial no Brasil, que alcança seu apogeu apenas no
final do século XX, em razão das lutas do movimento negro que negaram a ideia
de democracia racial na sociedade brasileira (LIMA; VERONESE, 2011). Assim,
foi necessário repensar outra configuração de igualdade que reconhecesse os grupos
raciais negros como desiguais, socioeconomicamente, mas não tão somente isso.
Portanto, falar de igualdade implica falar de desigualdade, que apresenta como fator
determinante nesta, a diferença:
238
Racismo e antirracismo no Brasil
239
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
242
Racismo e antirracismo no Brasil
À guisa de conclusão
Abordar as diferenças e as desigualdades no mundo contemporâneo é tarefa
extremamente complexa, uma vez que as diferenças poderão ser reconhecidas ou
negadas, e ao mesmo tempo as desigualdades podem ser contestadas ou sofridas de
forma passiva (BARROS, 2004). A valorização e o resgate das diferenças se apre-
sentam como instrumental imprescindível na luta contra as desigualdades que se
constituem a partir da negação das diferenças. Pode-se falar em desigualdades de
gênero, raça, idade, nacionalidade e tantas outras.
243
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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245
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
246
O Estado e as políticas públicas de
promoção da igualdade racial
Ana Zaiczuk Raggio1
Regina Bergamaschi Bley2
Introdução
248
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
3
A Carta das Nações Unidas ou Carta de São Francisco foi assinada em São Francisco, em 26
de junho de 1945, após o término da Conferência das Nações Unidas sobre Organização Inter-
nacional, entrando em vigor a 24 de outubro daquele mesmo ano. O Estatuto da Corte Interna-
cional de Justiça é parte integrante da Carta. Corresponde ao acordo que originou a criação da
Organização das Nações Unidas logo após a Segunda Guerra Mundial, em substituição à Liga
das Nações, como entidade máxima da discussão do direito internacional e fórum de relações e
entendimentos supranacionais.
249
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
4
O revolucionário Partido dos Panteras Negras (Black Panthers Party) foi formado em 1966 por
Huey Newton e Bobby Seale, na cidade de Oakland, na Califórnia. O movimento tinha como
base ideológica o marxismo e seu objetivo era proteger os negros contra a violência policial, e
para isso faziam o patrulhamento dos chamados guetos negros. Defendiam, entre outras coisas,
o armamento dos negros, a isenção do pagamento de impostos para o que consideravam ser uma
“América branca”. A ala mais radical do movimento defendia, ainda, a luta armada. Tendo fun-
cionado até os anos 1980, o movimento teve, no seu auge, mais de 2 mil filiados e representação
em importantes cidades americanas.
250
O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
251
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
por pessoas negras, quando comparadas com as brancas. Entretanto, os réus negros
tendem a ter maiores dificuldades de acesso à justiça criminal e a ser mais perse-
guidos pela vigilância policial, além de apresentar maiores dificuldades de usufruir
do direito de ampla defesa, conforme asseguram as normas constitucionais. Con-
sequentemente, segundo Adorno (1995, p. 63), “tendem a merecer um tratamento
penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos com-
parativamente aos réus brancos”.
No âmbito da segurança pública, administração penitenciária e justiça, é
preciso especial enfoque para enfrentamento ao racismo institucional. De outra sor-
te, tem-se nessas instâncias importante rede de atenção a pessoas vítimas de discri-
minação racial, visto que são elas as responsáveis por elucidar casos e responsabilizar
agressores. A relevância dessas áreas para a promoção da igualdade racial foi reconhe-
cida com a inserção da temática no Estatuto da Igualdade Racial (artigos 51 a 55).
Assim, compreender o racismo institucional, na perspectiva sistêmica, con-
forme coloca Werneck (2017), significa compreendê-lo como sendo um mecanismo
estrutural de exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados. Como nos lem-
bra a autora, “trata-se da forma estratégica como o racismo garante a apropriação dos
resultados positivos da produção de riquezas pelos segmentos raciais privilegiados na
sociedade, ao mesmo tempo em que ajuda a manter a fragmentação da distribuição
destes resultados no seu interior” (p. 17).
Portanto, é preciso adotar medidas capazes de promover mudanças sistêmicas
nas instituições desde sua estruturação, para enfrentamento do racismo institucional.
Inicialmente, é preciso levantar dados sobre a presença da população negra e o acesso
desta aos serviços prestados. Além disso, é necessário promover capacitações para
permitir a reflexão sobre o tema, mas, principalmente, deve-se adotar políticas, como
as de cotas, que permitam o ingresso de pessoas negras nos quadros da instituição.
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O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
sociedade civil como sendo agentes definidores das políticas públicas”, conforme
analisa Bley (2014, p. 338).
Tomando de empréstimo as palavras de Boneti, na perspectiva anteriormente
apresentada, é impossível se pensar, como comumente se faz, o Estado e a sociedade
civil como duas instituições separadas. Se assim fosse, “as políticas se apresentariam
como se se constituíssem de ourtogas de direitos atribuídas à sociedade civil pela
instituição estatal. Os direitos sociais e as políticas públicas, porém, se constituem,
na verdade, de construções coletivas e sociais” (BONETI, 2011, p. 17).
Como dever constitucional, o Estado deveria fornecer aos cidadãos, de for-
ma independente de sexo, idade, classe social ou raça, uma ampla estrutura de prote-
ção contra a possibilidade de tornarem-se vítimas de violência. Esse é um direito do
qual nenhum indivíduo poderia ser legitimamente excluído, fundamento do pró-
prio contrato social. Contudo, a segurança pública é uma das esferas da ação estatal
onde a seletividade racial se torna mais patente.
Em termos de legislação, destaca-se a CIEDR, das Nações Unidas, que entrou
em vigor em 1969 e foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 65.810/1969. A
partir dela, a Constituição de 1988 abarcou o direito à igualdade e não discriminação
em razão de raça e cor.
São evidentes os avanços que têm ocorrido com relação ao marco regulatório
do enfrentamento ao racismo no Brasil, desde a promulgação da Constituição de
1988 até a publicação do Estatuto da Igualdade Racial, em 20 de julho de 2010
(Lei no 12.288/2010), que passa a estabelecer um conjunto de princípios jurídicos
e de regras com o objetivo de coibir toda e qualquer forma de discriminação racial,
garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos
direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate às demais formas de
intolerância étnica.
O Estatuto define, ainda, as principais áreas a serem trabalhadas pelos órgãos
públicos para a superação das desigualdades, asseverando direitos na área da saúde,
educação, cultura, esporte, lazer, liberdade de consciência e de crença, bem como
acesso à terra, moradia e trabalho.
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O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
das relações de poder, constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes so-
ciais e organizações da sociedade civil. Essas relações vão, por sua vez, dar origem a
um conjunto de ações que serão atribuídas ao Estado.
Nessa perspectiva, pode-se pensar, portanto, que a função primeira do Esta-
do, no que diz respeito às políticas públicas, é organizar e institucionalizar as deci-
sões que emergem dos debates públicos, conforme coloca Boneti (2011).
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
que, pelo que se denota facilmente a partir de notícias veiculadas pela mídia, são o
principal alvo de violências e discriminação.
Nesse sentido, a comunicação mostra-se como importante área para enfren-
tamento da discriminação e promoção da igualdade racial, visto que pode ser fer-
ramenta que possibilita a difusão de dados, que demonstram a desigualdade racial
existente, e promove a reflexão através de campanhas. Além disso, pode multiplicar
conhecimentos acerca de direitos e órgãos cuja atribuição é a responsabilização de
pessoas e instituições que cometam discriminação.
Por outro lado, a comunicação pode ser utilizada como agente de manuten-
ção, o que precisa ser combatido. Por vezes, o retrato da população negra trazido
pelos meios de comunicação, ainda que baseado na realidade, reafirma estereótipos,
naturalizando desigualdades. Ainda que sejam dados da realidade, esses estereótipos
acarretam reflexos no mundo simbólico que limitam mais uma vez as oportunida-
des da população negra e outros grupos étnico-raciais historicamente discrimina-
dos. Assim, a estética da linguagem apresenta desafios e potencialidades. Enfim, o
Estatuto da Igualdade Racial dedica os artigos 43 a 46 aos meios de comunicação.
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O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
lência 2015, as taxas das mulheres e meninas negras vítimas de homicídios aumen-
taram de 22,9% em 2003 para 66,7% em 2013, tendo havido, nessa década, um
aumento de 190,9% na vitimização de negras, índice que resulta da relação entre as
taxas de mortalidade brancas e negras, expresso em percentual.
Cabe apontar que à gestão de políticas públicas de direitos humanos incum-
be promover não apenas atividades de execução direta de políticas, como também a
articulação junto a políticas setoriais. Seu objetivo é assegurar que as especificidades
da população negra e outros segmentos étnicos, raciais e religiosos historicamente
discriminados sejam reconhecidas, de maneira que esses grupos sejam atendidos de
forma digna e integral pelas políticas universais.
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O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Considerações finais
É fato que, para o enfrentamento a toda e qualquer forma de violência contra
a população negra, é necessária a implementação de políticas públicas que reafir-
mem o dever do Estado como garantidor de direitos, especialmente a partir da pro-
moção de políticas que possam corrigir históricas desigualdades raciais, coibindo
práticas racistas e discriminatórias. Cabe ao Estado, portanto, como entidade polí-
tica, a responsabilidade precípua de “organizar, fomentar e implementar, a partir das
demandas da sociedade civil, as políticas públicas que tenham esse fim”, conforme
analisa Bley (2014, p. 333).
Entende-se que a violência contra a população negra, expressa sob variadas
formas de racismo, é, sem dúvida, um problema social de grandes proporções e se
traduz como uma das principais formas de violação dos direitos humanos dessa po-
pulação. Como tal, deve ser coibida, enfrentada e modificada.
Entende-se, também, que o Estado deve ser instrumento a serviço da digni-
dade da pessoa humana, e não o contrário. O princípio da dignidade da pessoa hu-
mana exige, portanto, o compromisso do poder público e o firme repúdio a toda e
qualquer forma de discriminação, seja em razão da cor, da origem, da etnia, religião
ou qualquer outra.
Assim, destaca-se a necessidade imperiosa de que sejam implementadas, por
parte do poder público, políticas, programas e ações – tanto no âmbito federal, es-
tadual quanto municipal – capazes de promover, em consonância com o que reza
a Declaração de Durban (2001), em seu item 10, “o desenvolvimento social iguali-
tário para a realização de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de
todas as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata,
inclusive através do acesso mais efetivo às instituições políticas, jurídicas e adminis-
trativas”.
Referências
ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos:
CEBRAP, São Paulo, n. 43, p. 45-63, 1995.
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O Estado e as políticas públicas de promoção da igualdade racial
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O papel do Ministério Público na
promoção da igualdade racial: um
olhar sobre a mulher negra
Amanda Ribeiro dos Santos1
Francisco de Jesus de Lima2
Introdução
A promoção da igualdade racial é um dos compromissos assumidos pelo
Poder Constituinte de 1988, com base em movimentos e compromissos interna-
cionais que envolvem o Estado brasileiro, como a Convenção Internacional sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – CIEDR (1965) e a
Conferência Mundial contra o Racismo de Durban (2001). O avanço nessa seara
exige necessariamente a compreensão acerca das bases fundantes da sociedade, sob
a perspectiva das relações de raça, gênero e classe, as quais exigem um olhar diferen-
ciado sobre a mulher negra, em situação de vulnerabilidade nessas três dimensões.
É preciso reconhecer que o negro é visto por muito tempo sem his-
tória. Os ensinamentos proporcionados na educação básica, por exemplo, se
limitam ao sujeito escravo. Não há um questionamento sobre a origem das
pessoas de origem africana que forçadamente pisaram em solo brasileiro e ti-
veram suas vidas modificadas radicalmente.
1
Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Bacharela em Direito pela
Universidade Católica de Brasília. Pós-Graduada em Direito Constitucional pela Universida-
de Católica de Brasília. Membro do Fórum Permanente de Justiça e Igualdade Racial. E-mail:
amandards@mppr.mp.br.
2
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Piauí, com atuação no enfrentamento
à violência doméstica e familiar contra a mulher. Bacharel em Direito pela Universidade Federal
do Piauí. Pós-Graduado em Direito Público pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina. Mem-
bro do Fórum Permanente de Justiça e Igualdade Racial. E-mail:franciscodejesus@oi.com.br.
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O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Considerações finais
Diante de todo o exposto, considera-se que no contexto brasileiro a ausência
de uma reflexão que articule as relações raciais, de gênero e geracionais em diversos
espaços de sociabilidade tem impedido a promoção de relações interpessoais respei-
táveis e igualitárias entre as pessoas que integram o cotidiano de nossa sociedade.
Silenciar sobre os impactos dessas questões contribui para que as diferenças – entre
os indivíduos e grupos – sejam entendidas como desigualdades naturais.
É necessário apontar e enfatizar o imaginário socialmente construído sobre a
naturalização das violações de direitos, baseadas nas dimensões raça, classe e gênero,
o qual justifica a inércia da sociedade e do Estado diante da urgente reformulação
do pacto de humanidade, resgatando sujeitos que são sistematicamente excluídos.
Entende-se que, por meio da prevenção, monitoramento, avaliação e, ainda,
oferecendo novos elementos para a construção de diagnósticos, planos de ação e
indicadores que permitam o enfrentamento do racismo, contribuir-se-á para a cria-
ção de um ambiente favorável à formulação e implementação de políticas públicas,
buscando uniformizar o acesso a seus benefícios.
A vulnerabilidade da mulher negra em seus diversos aspectos deve sensibi-
lizar e transformar a atuação do Ministério Público na busca da igualdade racial,
considerando ainda a riqueza de vivências das múltiplas narrativas, a fim de orientar
a atuação prioritária sob o viés democrático.
É preciso concretizar a convenção do Estado e sociedade no sentido de em-
preender esforços para alcançar a igualdade racial, por meio de políticas públicas
que levem em consideração as vozes historicamente silenciadas nos espaços cole-
tivos. A conscientização, inclusão social e educação são instrumentos necessários
também para propiciar o compromisso individual com a ética e a justiça social.
Não há mais espaço para inércia do Estado e da sociedade e, nesse contexto, o
Ministério Público tem a missão constitucional de assumir o protagonismo no lon-
go processo de lançamento de novas bases civilizatórias e democráticas, permeadas
pela efetiva concretização dos direitos humanos para todos.
276
O papel do Ministério Público na promoção da igualdade racial
Referências
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Centro Gráfico, 1988.
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Acesso: 07/03/2018.
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro
em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
277
Classe média negra de Maringá
Rosângela Rosa Praxedes1
Introdução
O estudo sobre a mobilidade social ascendente da população brasileira, em
particular o aumento apontado por diferentes estudos demográficos das classes mé-
dias em relação aos demais segmentos populacionais, leva-nos a uma reflexão sobre
as desvantagens raciais relacionadas à ascensão social dos indivíduos considerados
negros. Pesquisas indicam que a sociedade brasileira tem proporcionado algumas
oportunidades de mobilidade social aos seus membros.
Em números, a proporção da população de classe média, em relação ao con-
junto da população brasileira, é de “um pouco mais de 15,4 milhões de famílias de
classe média, o que equivaleu a 31,7% do total de famílias existentes no país.” A
quantidade de indivíduos que podem ser considerados como de classe média no
Brasil é de aproximadamente 57,8 milhões de brasileiros. De acordo com alguns
levantamentos de dados, embora a classe média no Brasil tenha crescido em termos
relativos e absolutos, entre a população negra esse crescimento foi significativamen-
te menor. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a
quantidade de negros pertencentes à classe média ainda é muito pequena. Apesar
disso, a classe média negra das capitais brasileiras teve um crescimento relativo de
10% entre os anos de 1992 e 1999, chegando ao patamar de um terço da classe
média brasileira.
Este estudo refere-se à cidade de Maringá, que está situada ao norte do estado
do Paraná, a 440 quilômetros da capital, Curitiba, e a 720 quilômetros da cidade de
São Paulo. A população estimada no ano de 2003, segundo o Instituto Brasileiro de
1
Mestre em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em
Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Doutoranda em Antropologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
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Classe média negra de Maringá
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280
Classe média negra de Maringá
que possibilitaram uma comparação com as posições sociais já ocupadas pelo infor-
mante e pelos membros do seu grupo familiar de origem.
Considera-se, assim, que quanto mais se aproximam as dimensões capital
econômico e capital cultural, mais elementos existem em comum, que podem fa-
vorecer a identificação e o sentimento de pertencimento a um segmento social. Os
dados também possibilitaram a constatação de possíveis situações de mobilidade
social ascendente do informante comparando com sua posição social atual. Outras
questões respondidas trouxeram informações sobre a possibilidade da existência
de marcas de distinção, relações de proximidade ou distanciamento de padrões de
consumo e de hábitos mais comuns associados a determinados grupos sociais. Em
algumas questões o objetivo era avaliar a posição social ocupada pelo agente relacio-
nando-a a rendimentos pessoais associados ao seu estilo de vida.
Realizei a aplicação dos questionários entre julho de 2004 e fevereiro de
2005. Um aspecto que constatei durante a aplicação do questionário foi que alguns
dos informantes sentiam-se constrangidos em falar de situações de discriminação
racial sofridas diretamente, enquanto outros discorriam longa e detalhadamente
sobre o tema, estes argumentaram sobre as poucas oportunidades de falarem aber-
tamente a respeito de discriminação contra negros em nosso país. Um desconfor-
to aparente surgia na questão referente à escolaridade dos pais, que em geral eram
analfabetos ou com poucos anos de escolaridade. Alguns informantes mostraram-se
constrangidos em admitir a pouca ou nula escolaridade dos pais.
281
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
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Classe média negra de Maringá
concluir todas as etapas de estudo, situação não alcançada pelos vizinhos e colegas
de infância do bairro de periferia em que morava.
No que se refere às profissões dos genitores, utilizei-me das nomenclaturas
atribuídas pelos próprios informantes sobre as profissões dos pais. É necessário es-
clarecer que quando os informantes se referiam aos pais como agricultores ou la-
vradores, em ambos os casos, significava que eram trabalhadores do campo e que
não eram proprietários agrícolas, mas vendiam sua força de trabalho, ou se tratava
de meeiros. Outro dado importante é que pedi que nomeassem a profissão dos pais
quando estes (informantes) estavam em idade entre a infância e a adolescência e não
sobre a atual profissão dos pais.
Ao analisarmos as profissões exercidas pelas mães dos informantes verifica-
mos que, entre as mesmas, 19 (ou seja, a maioria) realizavam trabalhos domésticos,
cuidando da própria casa, dos filhos e do marido e foram classificadas pelos infor-
mantes como “do lar” ou “dona de casa”. Três eram lavradoras; uma era lavradora e
empregada doméstica; duas empregadas domésticas; uma diarista e costureira; uma
costureira; uma comerciante; e uma zeladora. Apenas três das mães dos entrevis-
tados tinham curso superior (uma professora, uma pedagoga e uma promotora de
justiça).
No que concerne à profissão do pai de cada informante, verificou-se a forte
presença de trabalhadores braçais, sem qualificação, sendo que destes, 11 exerciam
trabalhos no meio rural (agricultores, lavradores e meeiros). As outras profissões que
apareceram e que não exigiam necessariamente qualificação escolar foram: ensaca-
dor, servente e peixeiro (vendedor de peixe), comerciante, pedreiro e caminhoneiro.
Houve um sitiante; segundo o informante, um pequeno proprietário que se tornou
depois funcionário público. Dos pais que completaram o ensino superior, três ao
todo, as profissões exercidas eram as seguintes: médico, advogado e escrivão de po-
lícia. Outras profissões que apareceram foram: músico, mecânico, funcionário pú-
blico e comerciário (proprietário de estabelecimento comercial de pequeno porte).
Quanto à profissão dos pais (tanto pai quanto mãe) dos entrevistados, po-
demos concluir que entre as atividades ocupacionais houve uma predominância de
trabalhos exercidos no meio rural e trabalhos urbanos que exigiam pouca qualifica-
285
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
ção, o que era de se esperar em decorrência da baixa escolaridade dos mesmos. Nesse
sentido, da mesma forma que ocorreu quando consideramos o grau de instrução, a
distância em que se encontravam pais e filhos também era muito acentuada, poden-
do-se inferir dessa situação uma mobilidade social intergeracional ascendente para
a grande maioria dos entrevistados.
As questões discutidas a seguir tratam da escolaridade dos informantes,
instituição e curso superior realizado e se os mesmos estudaram ou não em escola
particular antes de realizar o ensino superior. Em relação ao grau de instrução dos
informantes, apenas dois não cursaram o ensino superior (atualmente são empresá-
rios) e um está em fase de conclusão (e atualmente é funcionário público). Todos os
demais, 30 informantes, concluíram pelo menos um curso superior.
Entre os entrevistados, o curso escolhido com mais frequência foi o de Di-
reito, realizado por seis dos informantes, seguido pelo de História, realizado por
quatro dos informantes. O terceiro curso superior em ordem de preferência dos in-
formantes foi o de Física, realizado por três dos informantes. Os cursos de Ciências
Sociais, Letras e Matemática foram realizados, cada um, por dois informantes. Ou-
tros cursos que apareceram foram cursados por apenas um informante: Geografia,
Comunicação Social, Agronomia, Jornalismo, Administração, Pedagogia, Psicolo-
gia, Educação Física e Estudos Sociais. Entre os entrevistados, cinco realizaram dois
cursos de graduação. Dezenove informantes se dedicavam atualmente à docência.
Ao considerarmos os dados acima, a realização de cursos que atribuem o grau de
licenciado e permitem o ingresso nas carreiras do magistério totalizaram mais da
metade dos cursos realizados pelos participantes desta pesquisa, o que pode ser
entendido como uma tendência nacional também verificada nos cursos avaliados
pelo Exame Nacional de Cursos Superiores (ENC-2001), no qual se percebe “uma
concentração de concluintes negros e pardos/mulatos em alguns cursos específicos”,
como os de Matemática, Letras, Pedagogia, Química, Física e Biologia (LOPES,
2002, p. 31).
De acordo com as respostas obtidas, podemos constatar que os informantes
estudaram majoritariamente em universidades públicas, 30 respondentes, ao todo,
contra 2 que estudaram em faculdades particulares. Por outro lado, apenas nove
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Classe média negra de Maringá
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
maneira, 2/3 dos chefes de família da classe média são casados, en-
quanto numa totalidade brasileira, esse número atinge pouco mais
de ½ da população. [...] O chefe de família de classe média possui
uma escolaridade média quase 40% superior ao do conjunto dos che-
fes de família que trabalham. Também possui 1,2 filho a menos que o
total dos chefes de família do país. (p. 83; 85).
289
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Classe média negra de Maringá
Participação política
Pudemos observar, ao analisarmos as questões relativas à participação políti-
ca dos informantes, se existia mesmo uma proximidade no espaço social quanto às
concepções e práticas políticas institucionais. Uma das questões apresentadas aos
respondentes dizia respeito à sua preferência por algum partido político e, em caso
afirmativo, qual seria o partido. Dos informantes, 15 afirmaram não ter preferência
por partido político, e 17 afirmaram que tinham preferência por um determinado
partido. Entre os partidos, o PT foi o preferido por 13 dos informantes que tinham
preferências partidárias, depois apareceram: uma vez o PP, uma vez o PFL, uma vez
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
292
Classe média negra de Maringá
Considerações finais
Ao analisarmos as relações sociais desses indivíduos negros que obtiveram
mobilidade social ascendente de Maringá, pudemos constatar que estes, mesmo
ocupando posições valorizadas socialmente, vantajoso poder aquisitivo, acesso a
espaços permitidos para uma elite econômica e cultural, continuaram como alvos
de preconceito e discriminação racial. Nesse sentido, os elementos levantados nesta
pesquisa indicam que o racismo em relação aos negros no Brasil, e em Maringá, em
particular, não é apenas um problema provocado pelo pertencimento dos negros às
classes sociais populares, como muitos ainda acreditam, mas é resultado de precon-
ceitos raciais arraigados.
Considero que as situações de discriminação narradas podem ser interpre-
tadas de acordo com as formulações de Nogueira (1979) sobre as relações raciais
no Brasil, que indicam que em muitas situações a discriminação aparece como pre-
terição do negro em determinados lugares e situações. Embora não sendo explícita
no sentido verbal ou de atitude conscientemente racista, os danos causados por tais
acontecimentos, que se repetem durante toda a vida dos negros em uma sociedade
racista, ainda não foram devidamente dimensionados por psicólogos, sociólogos,
e outros estudiosos do comportamento humano, porém, não é difícil de perceber
as marcas deixadas por tais lembranças. Em alguns depoimentos, os informantes
marejavam os olhos no decorrer de seus relatos, alguns deixaram que as lágrimas
rolassem em suas faces, ou aparentaram conter as emoções para parecerem objeti-
vos nas descrições. As fortes emoções trazidas por essas lembranças foram expressas
tanto por homens quanto por mulheres, militantes de movimentos negros, de par-
tidos políticos ou profissionais distantes de discussões politizadas que se mostraram
feridos pelas marcas de um racismo que nem sempre é passível de ser imputado cri-
minalmente como tal.
293
Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
294
Classe média negra de Maringá
é classificado como negro pelos não negros e possui uma trajetória social própria de
sujeitos que também se autoidentificam como negros.
Pode-se considerar, então, que os informantes desta pesquisa estão em pro-
cesso de formação identitária no que se refere à sua autoidentificação como negros
e como membros de uma classe social, buscando para si e para seus descendentes
formas de relações sociais e políticas, posições sociais e estilos de vida vinculados a
um padrão de consumo diferentes das condições de vida dos seus genitores, o que
permite que os consideremos como uma camada social em formação na cidade de
Maringá a partir da sua inserção no espaço social e político da cidade como negros
de classe média.
Referências
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GUERRA, Alexandre et al. (Orgs.). Classe média desenvolvimento e crise. São Paulo,
Cortez, 2006.
LOPES, Ana Lúcia. “Alunos negros-mestiços concluintes do Ensino Superior”. In:
DURHAM, Eunice R.; BORI, Carolina M. (Orgs.). Seminário: o negro no ensino supe-
rior. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1999.
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo:
T. A. Queiroz, 1979.
295
Relato de experiência de implantação da
Política Nacional de Saúde Integral da
População Negra no estado do Paraná –
Secretaria de Estado da Saúde
Lucimar Pasin de Godoy1
Juliano Schmidt Gevaerd2
Introdução
De acordo com dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica (IBGE), 50,7% da população do Brasil é constituída por pessoas negras (pretos
e pardos). A população negra tem contribuído para o processo de desenvolvimen-
to do país desde a época da escravidão até os dias de hoje. No entanto, verifica-se
que existe um grau elevado de discriminação racial no país. Atos discriminatórios
ocorrem de diversas formas e se configuram como racismo. O racismo impede as
pessoas de exercerem a plena cidadania, o que contribui para as iniquidades sociais
existentes com a população negra no Brasil. Na perspectiva das políticas públicas,
em especial no Sistema Único de Saúde (SUS), quando uma pessoa sofre restrição
de acesso, ou o mesmo lhe é negado ou negligenciado devido à questão de sua raça/
cor, verifica-se atos de Racismo Institucional (RI). O racismo institucional é, por-
tanto, praticado pelos agentes públicos quando em exercício de sua função pública.
O racismo institucional atua de forma difusa no funcionamento do cotidiano de
instituições e organizações, provocando uma desigualdade na distribuição de servi-
1
Graduada em Serviço Social e especialista em Saúde Coletiva. Atua na Secretaria de Estado da
Saúde, Superintendência de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção às Condições Crôni-
cas. E-mail: lucimargodoy@sesa.pr.gov.br.
2
Graduado em Fisioterapia e especialista em Saúde Coletiva. Atua na Secretaria de Estado da
Saúde, Superintendência de Atenção à Saúde. E-mail: julianogevaerd@sesa.pr.gov.br.
296
Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
Objetivos da experiência
As ações estratégicas estabelecidas pela SESA para consolidar a PNSIPN no
Paraná foram definidas a partir de alguns critérios, entre eles, destaca-se a redução
das taxas de mortalidade materna e infantil, através da Rede Mãe Paranaense, que
traz em seu escopo a estratificação de risco e define que gestantes e crianças negras
são estratificadas no risco intermediário. Outro critério utilizado foi o enfrentamen-
to das iniquidades sociais, por meio de ferramentas de educação permanente e do
incentivo financeiro estadual aos municípios com comunidades remanescentes de
quilombolas. Essas ações estão incluídas no Plano Estadual de Saúde (2012-2015).
Enfatiza-se também o foco no fortalecimento da participação social, por meio da
criação do Grupo de Trabalho Executivo de Saúde da População Negra, que é um
espaço indutor e formulador de propostas ligadas à saúde da população negra no
Paraná.
Diante do exposto, surgiu a necessidade de criar espaços para divulgar e im-
plantar a PNSIPN, bem como ampliar as discussões sobre a temática nos municí-
pios do Paraná, em especial sobre o enfrentamento do racismo institucional no âm-
bito do SUS. Nessa perspectiva, a SESA iniciou em 2012 a realização de encontros
macrorregionais no estado.
O enfoque quanto ao racismo institucional foi pautado no viés da transver-
salidade, considerando que as barreiras de acesso às políticas públicas nas áreas da
saúde, educação, geração de trabalho e renda, segurança pública, entre outros, são
os principais determinantes sociais que causam impacto direto na saúde das pes-
soas. Dessa forma, as discussões enfatizaram a necessidade de ampliar o olhar para a
população negra junto aos profissionais de saúde que atuam nos diversos pontos de
atenção do SUS. O olhar ampliado tem impacto positivo desde o acolhimento até
o cuidado integral da pessoa, considerando algumas doenças e agravos prevalentes
na população negra4.
4
No Brasil, existe um consenso entre os diversos estudiosos acerca das doenças e agravos prevalen-
tes na população negra, com destaque para as seguintes categorias: a) geneticamente determina-
dos – doença falciforme, deficiência de glicose-fosfato desidrogenase, foliculite; b) adquiridas por
condições desfavoráveis – desnutrição, anemia ferropriva, doenças do trabalho, IST/HIV/Aids,
mortes violentas, mortalidades infantil e materna elevadas, abortos sépticos, sofrimento psíquico,
estresse, depressão, tuberculose, transtornos mentais (derivados do uso abusivo de álcool e outras
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Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral
Apresentação da experiência
Encontros macrorregionais
Optou-se por realizar encontros macrorregionais como forma de descentra-
lizar e capilarizar as discussões, possibilitando a participação de representantes das
22 regionais de saúde e dos municípios que compõem as regiões de saúde.
Foram realizados cinco eventos macrorregionais, considerando que a Ma-
crorregional Leste foi dividida em dois encontros, em virtude da dimensão da área
de abrangência e a composição dos municípios, conforme Quadro 2.
Metodologia
Foram utilizados momentos expositivos e dialogados que contribuíram para
promover o debate e a troca de experiências entre os participantes sobre a saúde da
população negra no âmbito do SUS, bem como os impactos do racismo institucio-
nal na qualidade de vida dessa população.
Os seguintes temas nortearam as discussões nos encontros realizados:
Resultados
Os cinco eventos realizados contaram com a participação de 459 pessoas,
entre profissionais e gestores de saúde, representantes das 22 regionais de saúde e
dos respectivos municípios, representantes de universidades (docentes e alunos),
controle social, ministério público, representantes dos movimentos sociais que mi-
litam na causa da população negra e representantes das comunidades remanescentes
de quilombos.
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Abordagem histórica sobre a população negra no estado do Paraná
A partir das avaliações dos participantes, nos cinco eventos realizados, po-
de-se destacar os principais desafios apontados pelos presentes e que devem ser
trabalhados no âmbito do SUS no Paraná:
Considerações finais
Conclui-se que a realização dos encontros foi um canal importante no marco
inicial para a implantação da PNSIPN no estado do Paraná. As discussões possibi-
litaram dar visibilidade à temática no âmbito das 22 regionais. Os eventos também
contribuíram para o debate do racismo institucional presente nos serviços do SUS.
A partir desses encontros, outras ações foram promovidas pela SESA em for-
ma de videoconferência, com abordagem do racismo institucional como determi-
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Relato de experiência de implantação da Política Nacional de Saúde Integral
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SECRETARIA NACIONAL DE
POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA MINISTÉRIO DOS GOVERNO
IGUALDADE RACIAL DIREITOS HUMANOS FEDERAL
ISBN 978-85-66413-14-4
9 78 8 5 6 6 4 1 3 1 4 4