Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
3 (2020)
Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil
MARIE-LAURE RYAN
Pesquisadora Independente
(Genebra, Suíça/EUA)
(marilaur@gmail.com)
RESUMO: O termo narrativa transmídia viralizou nos estudos de mídia. Mas até
que ponto ele rotula um fenômeno verdadeiramente novo, diferente dos
conceitos mais antigos de adaptação e transficcionalidade? O que realmente
significa contar uma história por meio de diferentes mídias e em que condições
isso é desejável? Neste artigo, examino vários tipos de projetos que podem ser
considerados como “narrativas transmídia”, sem necessariamente os encaixar
no paradigma transmídia “Costa Oeste” (ou seja, Hollywood), e percebo três
tipos de discurso associados ao fenômeno – o discurso da indústria, o discurso
dos fãs e o discurso acadêmico – na esperança de distinguir o discurso
acadêmico dos outros dois e de definir alguns de seus objetivos.
ABSTRACT: The term transmedia storytelling has gone viral in media studies.
But to what extent does it label a truly new phenomenon, different from the
older concepts of adaptation and transfictionality? What does it really mean to
tell a story through different media and under what conditions is it desirable?
In this article, I examine several types of projects that could be considered as
‘transmedia storytelling’, without necessarily fitting within the paradigm of
‘West Coast’ (i.e. Hollywood) transmedia, and I look at three types of discourse
associated with the phenomenon – the industry discourse, the fan discourse
and scholarly discourse – in the hope of distinguishing scholarly discourse from
the other two and defining some of its goals.
INTRODUÇÃO
"navalha de Ockham", estabelece que "as entidades não devem ser multiplicadas além
do necessário, a natureza é por si econômica e não se multiplica em vão".
3 Ver: <http://www.producersguild.org/?page=coc_nm#transmedia>.
Todos esses projetos envolvem o que pode ser chamado de uso de mídia
top-down, por meio do qual o conteúdo é deliberadamente distribuído por vários
meios de expressão ou canais de distribuição. Mas, para muitas pessoas, esses
exemplos não são realmente transmídia. Transmídia real é o modelo da Costa
Oeste, ou seja, a expansão de mundos das histórias populares além de sua
mídia original.
A transmídia da Costa Oeste inclui romances que geram filmes, filmes que
inspiram romances, séries de TV relacionadas a ARGs, quadrinhos
transformados em séries de TV, jogos de computador se tornando filmes e vice-
versa. Mas toda narrativa que alcança um certo grau de reconhecimento
cultural inspira tais recontos e adaptações – pense na Bíblia, na mitologia grega,
em Sherlock Holmes, nos romances de Jane Austen e no desfile de super-heróis
de quadrinhos que estão invadindo a tela grande: Superman, Batman, Capitão
América e assim por diante. Isso levanta a questão se há algo novo e diferente
em relação ao modelo de narrativa transmídia da Costa Oeste. Vamos usar a
definição frequentemente citada por Jenkins como um ponto de partida para a
discussão dessa questão:
4 Observe que aqui Jenkins considera a mídia como canais de entrega, ou seja, como
tecnologias; mas se minha distinção for válida, ele deve falar de meios de expressão.
diferentes mídias: “E para muitos de nós, uma simples adaptação pode ser
'transmídia', mas não é 'narrativa transmídia' porque é simplesmente
reapresentar uma história existente, em vez de expandir e anotar o mundo
ficcional” (JENKINS, 2009, n.p.). Jenkins certamente está certo ao afirmar que
contar histórias transmídia não é a mesma coisa que adaptação, mas seria
errado excluir releituras do mesmo material em mídias diferentes de mundos
narrativos transmídia, porque isso eliminaria a redundância desses sistemas.
Pelo contrário, os recontos são a espinha dorsal da transmídia, e o público as
ama porque permitem que as pessoas revivam histórias e revisitem seus
mundos de uma maneira diferente. As franquias Lord of the Rings e Harry Potter
começaram quando romances populares foram adaptados para a grande tela.
As franquias transmídia normalmente apresentam muitas sobreposições entre
os documentos, mas como cada mídia tem um poder expressivo diferente, não
há dois recontos que transmitam exatamente a mesma informação.
Longe de excluir adaptações, então, as franquias transmídia podem ser
descritas como uma combinação de adaptações com outra operação narrativa
de longa data, a operação que Richard Saint-Gelais chama de
transficcionalidade. Saint-Gelais define transficcionalidade como o
compartilhamento de elementos – principalmente personagens, mas também
locais imaginários, eventos e mundos ficcionais inteiros – por duas ou mais
obras de ficção. Essa operação normalmente vincula obras literárias e se apoia
em três operações fundamentais: (1) extensão, que agrega novas histórias ao
mundo ficcional, respeitando os fatos estabelecidos no original; (2) modificação,
que muda o enredo da narrativa original, por exemplo, dando-lhe um final
diferente; e (3) transposição, que transporta o enredo para um cenário temporal
ou espacial diferente, por exemplo, quando a história de Romeu e Julieta se
passa na cidade de Nova York nos anos 1950. Destas três operações, apenas a
primeira é comum em franquias transmídia, pois é a única que respeita a
integridade do mundo da história. A operação (2), modificação, cria eventos não
canônicos que desafiam a consistência lógica do mundo da história; é
encontrada em fanfiction, mas fanfiction por definição não é canônica; quanto à
operação (3), transposição, ela entra em conflito com o principal motivo da
popularidade das franquias transmídia: a fidelidade do público a um
determinado mundo e seu desejo de obter mais informações sobre esse mundo.5
uma cultura participativa crescente que não deseja apenas assistir, mas
interagir, comentar, ajudar a moldar o curso do conteúdo e buscar respostas
(ocultas)” (DOWD et al., 2013, p. 31). Esta declaração contém dois conselhos
práticos. O primeiro, permitir que os usuários ajudem a definir o curso dos
eventos que parece bom no papel, mas na prática pode levar ao desastre.
Como Bernardo observa, se você der ao seu público poder sobre a história,
eles vão se livrar do antagonista, resolver todos os grandes problemas e
apagar todo o drama (BERNADO, 2011, p. 53). O segundo conselho, fazer
com que as pessoas procurem respostas ocultas, é muito mais viável. A
criação de problemas para resolver motivará os usuários a se reunir e trocar
informações para quebrar o código. A validade desse conselho é
demonstrada pela popularidade dos ARGs e pela intensa atividade dos fãs
gerada por narrativas particularmente herméticas, como House of Leaves ou
‘S’, criação recente de J.J. Abrams e Doug Dorst. Mas essas são obras
monomidiais; encorajar o público a resolver problemas não é, portanto, uma
característica distintiva da narrativa transmídia.
Embora seja necessário o discurso espontâneo dos fãs para criar o tipo
de narrativas cult que tornem o desenvolvimento transmídia lucrativo, a relação
entre o discurso do fã e o discurso da indústria tem sido frequentemente tensa.
Jenkins relata os esforços da empresa Lucas para incentivar, mas também
controlar e limitar a produção de fãs por meio da criação de um site,
Starwars.com, onde algumas criações de fãs são exibidas, por exemplo, os filmes
que ganharam a competição anual de fanmovies, julgado pelo próprio George
Lucas. Mas, ao enviar seu trabalho, os fãs abrem mão de seus direitos de
propriedade intelectual para as empresas Lucas e, agora, Disney. Pois, como diz
Jim Ward, um executivo da empresa Lucas, “Amamos nossos fãs... Mas se de
fato alguém está usando nossos personagens para criar uma outra história, isso
não está no espírito do que pensamos que é o fandom. Fandom é comemorar a
história do jeito que ela é” (WARD citado por Jenkins, 2006, p. 149).
A história do jeito que é (como criada pela empresa Lucas ou Disney) é
uma escritura sagrada, e é um sacrilégio mudar qualquer coisa nela porque Star
Wars é mais do que uma história, é uma religião universal, a mitologia comum
do mundo globalizado do século XXI. E como qualquer religião baseada nas
sagradas escrituras, a franquia considera de extrema importância definir um
corpus de obras canônicas. Quando a Disney comprou o direito à marca Star
Wars da empresa Lucas, ela revisou o cânone para acompanhar os fatos do
mundo da história, que proliferaram fora de controle, e manteve apenas os seis
filmes produzidos por Lucas, além de uma série de TV e um filme de animação
produzido em 2008, The Clone Wars. Todo o resto foi expurgado do cânone e
renomeado Star Wars Legends. No jargão da teoria dos Possible Worlds (RYAN,
1991), o corpus das Lendas de Star Wars representa mundos possíveis
alternativos, o que significa descrições do que poderia ter sido, em oposição aos
textos canônicos que representam os fatos do mundo real da franquia. Mas,
assim como nenhuma religião pode impedir que cultos alternativos se
ramifiquem, a delimitação de um corpus canônico não pode impedir os fãs de
explorar o reino do "que poderia ter sido" e de compartilhar suas produções
contrafactuais. Enquanto isso, a reinicialização da franquia trouxe uma
explosão de novos filmes, histórias em quadrinhos, romances e jogos de
computador (nada menos que 21 somente em 2015), todos os quais fazem parte
do novo cânone.7
7 Ver: <https://en.wikipedia.org/wiki/Star_Wars_canon>.
8Essa pode, no entanto, ser uma questão puramente acadêmica, visto que quase todos
os leitores já terão visto o filme, fato que o autor do romance pode (ou não) ter levado
em consideração.
uma série de problemas para resolver. Que tipo de problemas? Como o jogo se
encaixará no filme? Como os mundos da história da maioria das franquias
transmídia são fantasia ou ficção científica, e como esses gêneros são
tradicionalmente ricos em ação, não deve ser muito difícil “gamificar” suas
histórias, já que o meio do videogame depende tanto da luta, uma das atividades
mais fáceis de simular por computador.
Por meio de minha discussão sobre Star Wars, espero ter sugerido que
mesmo as franquias mais descaradamente comerciais podem recompensar uma
abordagem narratológica. Eu imagino a contribuição da narratologia para a
narrativa transmídia dividida nos seguintes componentes: (1) Um componente
transficcional que descreve como histórias pertencentes ao mesmo mundo da
história estão interligadas; este componente avaliará a consistência dos mundos
das histórias. (2) Um componente adaptativo que estuda como o conteúdo
narrativo viaja pelas mídias e como as propriedades das mídias afetam as
histórias; este componente estudará como os vários tie-ins tiram proveito das
possibilidades de seu meio. (3) Um componente mítico que estuda o que
transforma histórias e mundos das histórias em narrativas cult, uma vez que o
sucesso popular é o pré-requisito para o desenvolvimento de franquias
transmídia. Este componente pode gerar perguntas como: por que os mundos
da maioria das franquias são fantásticos ou de ficção científica?; por que os
super-heróis de quadrinhos são tão populares hoje em dia?; Star Wars se tornou
uma religião? e que tipos de estruturas míticas estão por trás do mundo da
história de Star Wars? (4) Um componente de comportamento do público que
estuda o que as pessoas realmente fazem com narrativas cult em geral e com os
sistemas transmídia de hoje em particular. Públicos ativos não são novidade –
há exemplos na Renascença e no século XVII de leitores jogando jogos baseados
em narrativas populares ou personificando personagens fictícios – mas a
participação certamente assumiu novas formas graças à tecnologia digital. Este
componente perguntará: quantas mídias diferentes os públicos-padrão
consultam, em comparação com aqueles altamente envolvidos? Qual é o
sucesso da extensão transmídia do projeto? (Considere Matrix: se a grande
maioria dos fãs se limitarem aos três filmes, como eu suspeito, o projeto é
realmente transmídia?) Pode-se dizer que esse componente do comportamento
do público é mais sociológico do que estritamente narratológico, mas a marca
registrada da narratologia pós-clássica é que suas fronteiras com outras
disciplinas não são mais estanques.
O que, afinal, é narrativa transmídia: uma nova maneira de contar
histórias, o meio narrativo do século XXI, ou uma jogada de marketing, o que
The Economist, comentando sobre Star Wars, chamou de “industrialização da
mitologia”? Pode parecer estranho considerar "transmídia" como uma mídia,
uma vez que seria uma mídia de mídias. Mas se definirmos as mídias como
meios de expressão, e se, ao usar documentos pertencentes a várias mídias, for
possível criar experiências que não podem ser alcançadas com uma única mídia,
então a transmídia poderia muito bem ser considerada como um novo meio de
expressão e, portanto, como uma mídia em seu próprio direito. Para alcançar
este status honorário, a transmídia terá que encontrar uma forma de explorar
os recursos da mídia que utiliza e terá que aprender a distribuir o conteúdo
narrativo entre eles sem frustrar os usuários; isto é, sem danificar a integridade
dos componentes individuais. Em seu pior aspecto comercial, a transmídia é a
prática altamente lucrativa de dar ao público mais do que ele deseja. Em sua
melhor forma criativa, pode inspirar o público a deixar a zona de conforto de
seu meio favorito para obter uma experiência mais completa do mundo da
história, convidando assim as pessoas a refletir sobre o poder expressivo da
mídia.
REFERENCES
DOWD, T. [et al.]. Storytelling Across Worlds: Transmedia for Creatives and
Producers. New York: Focal Press, 2013.
JENKINS, H. Convergence Culture: Where Old and New Media Collide. New York:
New York University Press, 2006.
JENKINS, H.; FORD, S.; GREEN, J. Spreadable Media. New York: New York
University Press, 2013.
RYAN, M.-L. (2004). “Introduction”. In: Narrative Across Media: The Languages
of Storytelling. Lincoln: University of Nebraska Press, 2004, p. 1-40.