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Scripta Uniandrade, v. 18, n.

3 (2020)
Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil

NARRATOLOGIA TRANSMÍDIA E NARRATIVA TRANSMÍDIA

MARIE-LAURE RYAN
Pesquisadora Independente
(Genebra, Suíça/EUA)
(marilaur@gmail.com)

RESUMO: O termo narrativa transmídia viralizou nos estudos de mídia. Mas até
que ponto ele rotula um fenômeno verdadeiramente novo, diferente dos
conceitos mais antigos de adaptação e transficcionalidade? O que realmente
significa contar uma história por meio de diferentes mídias e em que condições
isso é desejável? Neste artigo, examino vários tipos de projetos que podem ser
considerados como “narrativas transmídia”, sem necessariamente os encaixar
no paradigma transmídia “Costa Oeste” (ou seja, Hollywood), e percebo três
tipos de discurso associados ao fenômeno – o discurso da indústria, o discurso
dos fãs e o discurso acadêmico – na esperança de distinguir o discurso
acadêmico dos outros dois e de definir alguns de seus objetivos.

Palavras-chave: narrativa transmídia, narratologia, discurso da indústria,


comportamento dos fãs, mitologia, transficcionalidade, definição de mídia,
transmídia da "costa leste" vs. da "costa oeste", transmídia top-down vs. bottom
up, Star Wars.

RYAN, Marie-Laure. Narratologia transmídia e narrativa transmídia. Tradução de Brunilda


Reichmann. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 1-20.
Curitiba, Paraná, Brasil
Data de edição: 07 dez. 2020.
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TRANSMEDIA NARRATOLOGY AND TRANSMEDIA STORYTELLING

ABSTRACT: The term transmedia storytelling has gone viral in media studies.
But to what extent does it label a truly new phenomenon, different from the
older concepts of adaptation and transfictionality? What does it really mean to
tell a story through different media and under what conditions is it desirable?
In this article, I examine several types of projects that could be considered as
‘transmedia storytelling’, without necessarily fitting within the paradigm of
‘West Coast’ (i.e. Hollywood) transmedia, and I look at three types of discourse
associated with the phenomenon – the industry discourse, the fan discourse
and scholarly discourse – in the hope of distinguishing scholarly discourse from
the other two and defining some of its goals.

Keywords: transmedia storytelling, narratology, industry discourse, fan


behaviour, mythology, transfictionality, media definition, ‘east coast’ vs. ‘west
coast’ transmedia, top-down vs. bottom up transmedia, Star Wars

INTRODUÇÃO

O título deste artigo pode parecer redundante à primeira vista. Não é


“narrativa” praticamente a mesma coisa que “história” e, consequentemente,
não é “narratologia transmídia” basicamente a mesma coisa que “narrativa
transmídia”? Quando comecei a usar o termo “narratologia transmídia" (RYAN,
2004), eu quis dizer que a narratologia deve reconhecer mídias narrativas
diferentes daquelas em linguagem escrita e oral, embora a linguagem seja
provavelmente o meio mais antigo e poderoso de criação narrativa. Eu também
defendi um estudo comparativo do poder narrativo de diferentes mídias. Tanta
atenção tem sido dedicada, nesse meio tempo, a formas não literárias e não
verbais de narrativa que essa sugestão se tornou auto evidente. Mas com a
ascensão do fenômeno da narrativa transmídia – não uma prática nova de
qualquer forma, mas daquela que está recebendo uma grande publicidade
devido aos megassucessos como Star Wars, Harry Potter e Lord of the Rings –

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pode-se facilmente concluir que a narratologia transmídia é o estudo da


narrativa transmídia. A preocupação da narratologia transmídia é, na verdade,
muito mais abrangente. Inclui questões como: qual é o potencial narrativo das
mídias e das modalidades que as codificam; como podem as possibilidades
narrativas de uma determinada mídia serem emuladas em outra mídia; o que é
que as narrativas em uma determinada mídia podem fazer que outras não
podem, e assim por diante. Nenhuma dessas questões requer a análise de uma
franquia transmídia. No entanto, a narrativa transmídia continua sendo uma
preocupação legítima da narratologia transmídia.1 Neste artigo, proponho
comparar e contrastar três tipos de discurso: o discurso da indústria, o discurso
de fãs no que se refere ao discurso da indústria e, por último, o discurso da
narratologia. Minha pergunta principal é: como podemos liberar o estudo da
narrativa transmídia do hype do discurso da indústria e abri-lo para a
narratologia?
Antes de prosseguir, gostaria de comentar sobre a noção de mídia, que
está no centro do fenômeno da narrativa transmídia. Mídias são muito difíceis
de definir e categorizar porque o termo mídias, ou mídia, não é uma categoria
analítica criada por teóricos para servir a um propósito específico. É uma
palavra da linguagem natural e, como a maioria das palavras da linguagem, tem
significados diferentes. Mas, em virtude do princípio da navalha de Ockham 2,
não devemos multiplicar definições gratuitamente se pudermos fazer o trabalho
com um número menor delas. Achei oportuno basear a teoria da mídia em duas
definições propostas pelo Webster English Dictionary (RYAN, 2004):

1. Um canal ou sistema de informação, comunicação ou entretenimento.


2. Meios materiais ou técnicos de expressão artística.

Enquanto a definição n. 1 diz respeito à transmissão de informações, a


definição n. 2 diz respeito à criação de informação a partir de diversas
substâncias semióticas. De acordo com a definição n. 1, exemplos de “mídia”
são a imprensa, TV, rádio, Internet e os diversos sistemas de distribuição
possibilitados pela tecnologia digital. De acordo com a definição n. 2, exemplos
de mídia são formas de expressão culturalmente reconhecidas, como música,
dança, pintura, escultura, literatura, quadrinhos e jogos de computador. As

1 Não faço distinção entre transmedial e transmídia. Usei transmedial em meus


primeiros trabalhos, mas agora me inclino para o uso dominante, portanto utilizo
transmídia.
2 Guilherme de Ockham demonstra que o princípio da economia, conhecido como a

"navalha de Ockham", estabelece que "as entidades não devem ser multiplicadas além
do necessário, a natureza é por si econômica e não se multiplica em vão".

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duas categorias não são mutuamente excludentes; por exemplo, a tecnologia


digital se qualifica como mídia em ambos os sentidos, pois desenvolveu novas
formas de expressão, como o hipertexto ou os videogames, além de funcionar
como um poderoso canal de comunicação.
A ideia de mídia como canal de transmissão tem sido criticada,
notadamente por Walter Ong (1982), com o fundamento de que a mídia não é
um canal passivo por meio do qual a informação é enviada e recuperada,
inalterada, na outra extremidade. É por isso que gosto de visualizar a mídia
como bicos de sacos de confeitar. A substância informe do glacê é colocada no
saco de confeitar, é espremido no bico e sai em forma decorativa. Diferentes
bicos de saco de confeitar produzem diferentes formatos. Se as histórias são
concebidas como uma construção mental, elas podem existir na mente como
puro significado, o que significa puro potencial narrativo; mas o ato de
codificação atualizará esse potencial, moldando-o em uma narrativa distinta.
Selecionar uma mídia para uma ideia narrativa é como escolher um bico
de confeiteiro. Assim como alguns bicos são melhores que outros dependendo
do tipo de decoração que você deseja criar, da mesma forma algumas mídias
são melhores do que outras dependendo do tipo de material narrativo e do efeito
que você deseja obter. Pode-se argumentar que minha analogia não descreve
com precisão o processo criativo, porque a maioria dos criadores se especializa
em uma mídia e, portanto, é muito mais provável que perguntem “que tipo de
história é melhor para a mídia que tenho em mente?” do que “qual mídia é a
melhor para a história que eu quero contar?“, mas no caso da narrativa
transmídia, o material narrativo é um dado, e o problema é mesmo uma escolha
de bicos de confeiteiro, para que o glacê possa produzir sempre novos bolos.
Se transmídia vai ser uma forma verdadeiramente inovadora de contar
histórias, ela deve envolver a mídia na definição n. 2, e não simplesmente na
definição n. 1. Por exemplo, uma história entregue na forma de livro, como um
audiolivro em um CD, por meio do Kindle da Amazon ou da Internet não seria
um caso de narrativa transmídia. A ascensão à proeminência da ideia de contar
histórias transmídia na primeira década do século XXI é principalmente devido
à popularidade dos escritos de Henry Jenkins sobre a cultura contemporânea.
É ele quem identifica o fenômeno e o rotula. Em nossa cultura louca por marcas,
receber um rótulo é equivalente a vir à existência. A 'coroação' da transmídia
como um modo de contar histórias veio quando o Producers Guild of America
emitiu um manifesto definindo a transmídia e reconhecendo oficialmente
“produtores transmídia” como membros em potencial da associação:

Um projeto ou franquia de narrativa transmídia deve consistir em três (ou mais)


tramas narrativas existentes dentro do mesmo universo ficcional em qualquer

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uma das seguintes plataformas: filme, televisão, curta-metragem, banda larga,


publicação, quadrinhos, animação, celular, locais especiais, DVD / Blu-ray /
CD-ROM, lançamentos de narrativa comercial e de marketing e outras
tecnologias que podem ou não existir atualmente. Essas extensões narrativas
NÃO são o mesmo que reaproveitar o material de uma plataforma para ser
cortado ou reaproveitado em plataformas diferentes.3

DOIS MODELOS DE TRANSMIDIALIDADE

Se há pessoas que se autodenominam produtores transmídia, e se essa


ocupação é reconhecida pelo Producers Guild of America, o fruto de seus
esforços, a narrativa transmídia, deve realmente existir. No entanto, a questão
de quais tipos de trabalhos podem ser qualificados como transmídia é altamente
discutível. A natureza evasiva da narrativa transmídia se reflete no contraste
entre a transmidialidade da Costa Leste vs. Costa Oeste, dois termos propostos
por Brian Clark (2012), um autoproclamado desenvolvedor da Costa Leste mais
conhecido por um post no Facebook intitulado “Transmídia é uma mentira”. A
Costa Oeste representa o que a maioria de nós entende por transmídia; a saber,
as mega franquias comerciais da indústria do entretenimento de Hollywood,
como Star Wars, Lord of the Rings, Harry Potter e Matrix. Costa Leste significa
qualquer coisa que não seja Costa Oeste.

2.1. Aqui estão algumas formas possíveis da Costa Leste:

1. Jornalismo transmídia. Um exemplo desta forma de transmídia é um site


sobre as Olimpíadas de Sochi que contém uma variedade de documentos:
textos, vídeos, fotos, depoimentos orais, destinados a retratar o complexo
olímpico como uma vila Potemkin, ou seja, como uma fachada luxuosa que
esconde o sofrimento humano. Pessoalmente, acredito que a transmídia é
um modo de apresentação muito apropriado para projetos não ficcionais,
porque as notícias vêm naturalmente até nós através de vários meios de
comunicação: artigos de jornal, anúncios de TV, áudio, livros e filmes. Esse
tipo de projeto pode ser tratado como um arquivo ou banco de dados, o que
significa que o usuário pode selecionar e escolher quais objetos de mídia
consumir.

3 Ver: <http://www.producersguild.org/?page=coc_nm#transmedia>.

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2. Instalações que requeiram o uso simultâneo de múltiplas mídias, tanto no


sentido de mídias como um meio de expressão, quanto da mídia como
sistema de entrega. Um exemplo disso seria o Mapping Ararat, um projeto
que comemora a tentativa de criar uma nova pátria judaica perto das
Cataratas do Niágara por um ativista judeu do século XIX chamado Mordecai
Noah. A instalação envolve três mídias: tecnologia de realidade aumentada
(AR), que permite aos participantes ver as construções da comunidade
planejada; um guia de áudio, que fornece informações básicas; e um mapa
em papel, que os orienta durante a instalação. Nesse caso, todas as três
mídias devem ser ativadas para que a história seja contada de maneira
apropriada.

3. Jogos de Realidade Alternativa (ARGs). Nesses jogos, os jogadores


reconstituem uma história como se fosse um quebra-cabeça, seguindo uma
trilha de pistas que chega até eles através de vários sistemas de entrega:
principalmente de sites na internet, mas também de telefones celulares, e-
mail, pôsteres no mundo real ou até mesmo atores ao vivo. Aqui, as mídias
funcionam como canais de informação. É necessário seguir toda a trilha de
pistas para completar o jogo. Embora esses jogos tenham um núcleo
narrativo, eles são jogados mais por um interesse em resolver problemas do
que em descobrir a história.

4. Livros aumentados. Um exemplo é Night Film de Marisha Pessl (2013). O


principal suporte físico do trabalho é um livro padrão preenchido com
documentos multimodais, por exemplo, páginas da Web falsas e artigos de
jornal. Isso é multimodalidade, não transmidialidade. A dimensão
transmídia vem de um aplicativo que pode ser baixado em um tablet ou
smartphone com uma câmera. Ao tirar fotos de um símbolo de pássaro em
algumas das páginas, o usuário pode desbloquear conteúdo adicional que
não poderia ser impresso ou que seria muito divergente para incluir no livro:
conteúdo como a heroína tocando piano, entrevistas com personagens ou a
leitura em voz alta de um conto de fadas. Por alguma razão, não há vídeos
no Night Film, mas é fácil imaginar que os futuros livros aumentados
incluirão clipes de filmes e animações. Nesse caso, mídias podem ser
entendidas como meios de expressão, uma vez que o conteúdo adicional diz
respeito a informações que não poderiam ser transmitidas por escrito.

5. TV interativa. Aqui estou pensando em projetos que vinculem um programa


de TV a informações disponíveis em outros canais de distribuição. Tal projeto
foi descrito por Elizabeth Evans (2015). O programa de TV inglês The X-

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Factor, um programa de talentos, também tinha um aplicativo que entregava


conteúdo interativo durante a exibição do programa. O aplicativo fornecia
informações de bastidores sobre os competidores, convidava os espectadores
a avaliar o desempenho e a prever como os competidores se sairiam na
competição. A transmidialidade dessa forma de TV interativa reside nas telas
duplas necessárias para acompanhar o programa: a tela grande da TV e a
tela pequena do smartphone.

Todos esses projetos envolvem o que pode ser chamado de uso de mídia
top-down, por meio do qual o conteúdo é deliberadamente distribuído por vários
meios de expressão ou canais de distribuição. Mas, para muitas pessoas, esses
exemplos não são realmente transmídia. Transmídia real é o modelo da Costa
Oeste, ou seja, a expansão de mundos das histórias populares além de sua
mídia original.
A transmídia da Costa Oeste inclui romances que geram filmes, filmes que
inspiram romances, séries de TV relacionadas a ARGs, quadrinhos
transformados em séries de TV, jogos de computador se tornando filmes e vice-
versa. Mas toda narrativa que alcança um certo grau de reconhecimento
cultural inspira tais recontos e adaptações – pense na Bíblia, na mitologia grega,
em Sherlock Holmes, nos romances de Jane Austen e no desfile de super-heróis
de quadrinhos que estão invadindo a tela grande: Superman, Batman, Capitão
América e assim por diante. Isso levanta a questão se há algo novo e diferente
em relação ao modelo de narrativa transmídia da Costa Oeste. Vamos usar a
definição frequentemente citada por Jenkins como um ponto de partida para a
discussão dessa questão:

A narrativa transmídia representa um processo em que elementos integrais de


uma ficção são entregues sistematicamente por vários canais de distribuição 4 com
o objetivo de criar uma experiência de entretenimento unificada e coordenada.
Idealmente, cada mídia dá sua contribuição única para o desenrolar da história.
(JENKINS, 2007, n.p., ênfase no original)

Ao insistir em uma experiência de entretenimento coordenada e unificada, a


definição de Jenkins pressupõe uma distribuição deliberada de conteúdo de top-
down em muitas mídias. Os exemplos de projetos da Costa Leste que dei são
todos de top-down, concebidos desde o início como transmídia, mas a maioria,

4 Observe que aqui Jenkins considera a mídia como canais de entrega, ou seja, como
tecnologias; mas se minha distinção for válida, ele deve falar de meios de expressão.

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se não todas as grandes franquias da Costa Oeste, surgem bottom up,


explorando o sucesso de uma narrativa monomidial já estabelecida, e eles
crescem de maneira aleatória e descontrolada. Veja a franquia Star Wars: agora
é um sistema narrativo com uma gestão rigorosa de top-down, mas nunca teria
decolado se a primeira trilogia não tivesse tido tanto sucesso e se os fãs não
tivessem começado a criar todos os tipos de histórias baseado no universo Star
Wars. Uma das razões pelas quais temos tão poucos projetos transmídia
verdadeiramente de top-down é que os produtores não querem correr o risco de
criar os vários objetos de mídia e depois ver o projeto fracassar. Por depender
de mídias que são muito dispendiosas para serem produzidas, como filmes e
séries de jogos de computador para TV, o modelo de transmídia da Costa Oeste
é acessível para grandes corporações, mas não para indivíduos criativos.
Se o conteúdo é deliberadamente distribuído entre muitas mídias, isso
abre a questão da relação entre os elementos do sistema. Essa relação pode ser
concebida de duas maneiras: em um modelo, as partes se encaixam em um
todo, e esse todo é mais do que a soma de suas partes. Se esse todo é uma
história, isso significa que os usuários devem reunir todas as partes para uma
experiência satisfatória, porque as histórias são definidas por segmentos que
vão da exposição à complicação, à resolução, e todo segmento deve ser seguido
para descobrir como termina. Mas seria muito frustrante se uma história fosse
cortada e seu conteúdo distribuído em muitos documentos pertencentes a
várias mídias, e se as pessoas tivessem que caçar esses documentos dispersos
para montar a história. No segundo modelo, os muitos componentes são
mantidos juntos por uma estrutura comum, que podemos chamar de mundo
da história. Cada componente conta uma história relativamente autônoma,
embora os elementos maiores devam geralmente ser consumidos antes dos
menores, porque fornecem um amplo pano de fundo sobre quais elementos
menores podem ser construídos. Esses grandes elementos representam o que a
indústria da mídia chama de Mother-Ship. Quanto mais histórias os usuários
consomem, mais eles conhecem o mundo da história, mas não é necessário
consultar todos os elementos. Os fãs hardcore saberão muito sobre o mundo da
história, enquanto os usuários casuais saberão menos, mas os dois tipos de
usuários podem ter uma experiência satisfatória. Se esse modelo for o correto,
contar histórias transmídia é um termo impróprio – o fenômeno deveria ser
chamado de construção de mundo transmídia.
De acordo com Jenkins, uma característica importante da narrativa
transmídia é sua distinção de adaptação, embora ambas criem uma ponte entre

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diferentes mídias: “E para muitos de nós, uma simples adaptação pode ser
'transmídia', mas não é 'narrativa transmídia' porque é simplesmente
reapresentar uma história existente, em vez de expandir e anotar o mundo
ficcional” (JENKINS, 2009, n.p.). Jenkins certamente está certo ao afirmar que
contar histórias transmídia não é a mesma coisa que adaptação, mas seria
errado excluir releituras do mesmo material em mídias diferentes de mundos
narrativos transmídia, porque isso eliminaria a redundância desses sistemas.
Pelo contrário, os recontos são a espinha dorsal da transmídia, e o público as
ama porque permitem que as pessoas revivam histórias e revisitem seus
mundos de uma maneira diferente. As franquias Lord of the Rings e Harry Potter
começaram quando romances populares foram adaptados para a grande tela.
As franquias transmídia normalmente apresentam muitas sobreposições entre
os documentos, mas como cada mídia tem um poder expressivo diferente, não
há dois recontos que transmitam exatamente a mesma informação.
Longe de excluir adaptações, então, as franquias transmídia podem ser
descritas como uma combinação de adaptações com outra operação narrativa
de longa data, a operação que Richard Saint-Gelais chama de
transficcionalidade. Saint-Gelais define transficcionalidade como o
compartilhamento de elementos – principalmente personagens, mas também
locais imaginários, eventos e mundos ficcionais inteiros – por duas ou mais
obras de ficção. Essa operação normalmente vincula obras literárias e se apoia
em três operações fundamentais: (1) extensão, que agrega novas histórias ao
mundo ficcional, respeitando os fatos estabelecidos no original; (2) modificação,
que muda o enredo da narrativa original, por exemplo, dando-lhe um final
diferente; e (3) transposição, que transporta o enredo para um cenário temporal
ou espacial diferente, por exemplo, quando a história de Romeu e Julieta se
passa na cidade de Nova York nos anos 1950. Destas três operações, apenas a
primeira é comum em franquias transmídia, pois é a única que respeita a
integridade do mundo da história. A operação (2), modificação, cria eventos não
canônicos que desafiam a consistência lógica do mundo da história; é
encontrada em fanfiction, mas fanfiction por definição não é canônica; quanto à
operação (3), transposição, ela entra em conflito com o principal motivo da
popularidade das franquias transmídia: a fidelidade do público a um
determinado mundo e seu desejo de obter mais informações sobre esse mundo.5

5 A transposição ocorre no novo gênero estranho do mash-up, representado por Orgulho


e preconceito e zumbis, uma releitura do romance de Jane Austen.

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UMA REVISÃO COMPARATIVA DE TRÊS DISCURSOS SOBRE


TRANSMÍDIA

Vamos agora examinar mais de perto os três tipos de discurso que,


respectivamente, promovem, constroem e descrevem a transmídia.

3.1. O discurso da indústria


Uma pergunta que me faço como narratologista é o que é preciso para
que uma história se estenda por múltiplas mídias? Em outras palavras, o que é
necessário para que um mundo ficcional e suas histórias despertem a
imaginação do público? Para responder a essa pergunta, decidi estudar o
discurso das pessoas que supostamente têm mais conhecimento sobre o
assunto, as pessoas que escrevem guias de narrativa transmídia. Consultei três
deles: The Producer’s Guide to Transmedia (BERNARDO, 2011); A Creator’s
Guide to Transmedia Storytelling (PHILLIPS, 2012); e Storytelling across Worlds
(DOWD et al., 2013). Este último livro foi o mais substancial, mas acho o título
estranho porque sugere uma transposição – a migração de personagens e
enredo para outro mundo. Na grande maioria dos casos de transmídia, o mundo
da história permanece constante porque funciona como o recipiente que
mantém as várias histórias e suas mídias juntas. Nenhum dos livros me
mostrou como construir uma história de grande sucesso ou mundo da história
porque isso é uma questão de talento e de sorte e, como diz o ditado, os poetas
nascem poetas, não apreendem a ser poetas. Ainda assim, a leitura dos guias
proporcionou uma excelente oportunidade para analisar o discurso da indústria
e distingui-lo do tipo de discurso acadêmico é algo que os narratologistas
deveriam desenvolver. Destes três manuais podemos extrair uma retórica típica
do discurso da indústria:

• Elogio hiperbólico: graças à transmídia, a narrativa nunca mais será a


mesma. “Nunca houve um momento mais emocionante para ser um
contador de histórias” (PHILLIPS, 2012, p. Xi). Transmídia é “incrível”,
“inovador”; uma “ideia fascinante” (BERNARDO, 2011, p. xviii) que exigirá
radicalmente “novas formas de pensar” sobre o desenvolvimento (DOWD et
al., 2013, p. 35). Os consumidores não são leitores, jogadores ou
espectadores, mas invariavelmente fãs, um termo que sugere devoção
fanática e acrítica ao mundo da história.

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• Atitude capitalista: o material narrativo e o mundo das histórias são


chamados de "propriedade intelectual". Os criadores possuem esta
propriedade, apesar da tendência dos fãs e outros escritores de roubá-la, e
é dever do proprietário proteger sua propriedade. O objetivo da narrativa
transmídia é "monetizar" a propriedade intelectual, espalhando-a por tantos
meios de comunicação quanto possível, porque cada meio tem seus próprios
devotos e aumenta o tamanho do público. O valor de uma propriedade
intelectual é inteiramente função de seu sucesso popular: na indústria do
entretenimento não existe “sucesso de estima”, nem transmídia movida por
uma visão artística. Como Jenkins et al. coloca (2013), a não difusão do
conteúdo significa morte.6

• Ênfase em "dar ao público o que ele quer". Em um estudo das relações


entre falante e ouvinte, Karl Renner (2010) distingue uma orientação do
falante, pela qual ele se expressa e o público deve se adaptar à sua
individualidade, de uma orientação do ouvinte, pela qual o falante se adapta
aos desejos do público. Enquanto a orientação do falante é típica da arte
erudita, que supostamente sacode o público em relação aos seus hábitos de
pensamento, a orientação do ouvinte é típica da cultura popular. A retórica
transmídia cai diretamente no domínio da orientação do ouvinte. As
necessidades do público são expressas por meio de metáforas alimentares;
por exemplo, lê-se na contracapa de Storytelling across Worlds que o livro
oferece as ferramentas para atender às "demandas insaciáveis do público de
hoje por sua propriedade criativa favorita". O papel do designer transmídia
é criar e encorajar esse desejo exacerbado por mais conteúdo.

• A interatividade como forma de salvar mídias antigas. Na era digital, as


mídias tradicionais como TV, filmes e livros precisam se reinventar para
sobreviver, e a maneira de fazer isso é se tornarem mais interativas e
participativas. Pode-se dizer que o processo de pular de uma plataforma ou
meio para outro é uma forma de envolvimento ativo, mas isso significa que
o público da transmídia é por definição ativo, pois os usuários têm que
consultar muitos documentos. Mas os autores de livros de aconselhamento
têm em mente formas mais substanciais de interatividade. De acordo com
Dowd et al., a transmídia “assume que o espectador / usuário faz parte de

6Eu considero o tratamento de Jenkins da narrativa transmídia mais promocional do


que crítico e, portanto, mais próximo do discurso da indústria do que do discurso
acadêmico.

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uma cultura participativa crescente que não deseja apenas assistir, mas
interagir, comentar, ajudar a moldar o curso do conteúdo e buscar respostas
(ocultas)” (DOWD et al., 2013, p. 31). Esta declaração contém dois conselhos
práticos. O primeiro, permitir que os usuários ajudem a definir o curso dos
eventos que parece bom no papel, mas na prática pode levar ao desastre.
Como Bernardo observa, se você der ao seu público poder sobre a história,
eles vão se livrar do antagonista, resolver todos os grandes problemas e
apagar todo o drama (BERNADO, 2011, p. 53). O segundo conselho, fazer
com que as pessoas procurem respostas ocultas, é muito mais viável. A
criação de problemas para resolver motivará os usuários a se reunir e trocar
informações para quebrar o código. A validade desse conselho é
demonstrada pela popularidade dos ARGs e pela intensa atividade dos fãs
gerada por narrativas particularmente herméticas, como House of Leaves ou
‘S’, criação recente de J.J. Abrams e Doug Dorst. Mas essas são obras
monomidiais; encorajar o público a resolver problemas não é, portanto, uma
característica distintiva da narrativa transmídia.

3.2. O discurso dos fãs vs. o discurso da indústria


A contribuição do discurso dos fãs para o desenvolvimento das franquias
transmídia foi tão bem documentada, especialmente por Henry Jenkins em
Convergence Culture, que realmente não há nada que eu possa fazer aqui além
de reafirmar sua importância. O discurso dos fãs assume duas formas: uma
criativa, manifestada por fanfiction, remixes, filmes amadores e participação em
eventos de cosplay; e uma crítica, manifestada por grupos de discussão online
e por comentários na Amazon. Ambas as formas demonstram o poder das
histórias e de seus mundos para formar comunidades. Se a cultura de hoje é
participativa, é tanto no sentido de motivar os fãs a adorarem juntos no altar de
uma narrativa cult quanto no sentido de encorajar a criação colaborativa. Em
outras palavras, você não precisa escrever fanfiction para participar das
comunidades de Star Wars ou Harry Potter.
A participação ativa do fã pode ser um fenômeno bottom up, de base,
espontâneo ou um comportamento ditado top-down pela indústria do
entretenimento. Um exemplo de uma tentativa top-down para inspirar a
participação ativa é uma exibição no meu supermercado local (Figura 1), que
apareceu em setembro de 2015, três meses antes do lançamento do último filme
de Star Wars – The Force Awakens. Com publicidade como essa, não é surpresa
que The Force Awakens tenha se tornado o filme de maior bilheteria de todos os
tempos.

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Figura 1. Display de supermercado anunciando o filme Star Wars – The Force


Awakens, setembro de 2015.

Embora seja necessário o discurso espontâneo dos fãs para criar o tipo
de narrativas cult que tornem o desenvolvimento transmídia lucrativo, a relação
entre o discurso do fã e o discurso da indústria tem sido frequentemente tensa.
Jenkins relata os esforços da empresa Lucas para incentivar, mas também
controlar e limitar a produção de fãs por meio da criação de um site,
Starwars.com, onde algumas criações de fãs são exibidas, por exemplo, os filmes
que ganharam a competição anual de fanmovies, julgado pelo próprio George
Lucas. Mas, ao enviar seu trabalho, os fãs abrem mão de seus direitos de
propriedade intelectual para as empresas Lucas e, agora, Disney. Pois, como diz
Jim Ward, um executivo da empresa Lucas, “Amamos nossos fãs... Mas se de
fato alguém está usando nossos personagens para criar uma outra história, isso
não está no espírito do que pensamos que é o fandom. Fandom é comemorar a
história do jeito que ela é” (WARD citado por Jenkins, 2006, p. 149).
A história do jeito que é (como criada pela empresa Lucas ou Disney) é
uma escritura sagrada, e é um sacrilégio mudar qualquer coisa nela porque Star

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Wars é mais do que uma história, é uma religião universal, a mitologia comum
do mundo globalizado do século XXI. E como qualquer religião baseada nas
sagradas escrituras, a franquia considera de extrema importância definir um
corpus de obras canônicas. Quando a Disney comprou o direito à marca Star
Wars da empresa Lucas, ela revisou o cânone para acompanhar os fatos do
mundo da história, que proliferaram fora de controle, e manteve apenas os seis
filmes produzidos por Lucas, além de uma série de TV e um filme de animação
produzido em 2008, The Clone Wars. Todo o resto foi expurgado do cânone e
renomeado Star Wars Legends. No jargão da teoria dos Possible Worlds (RYAN,
1991), o corpus das Lendas de Star Wars representa mundos possíveis
alternativos, o que significa descrições do que poderia ter sido, em oposição aos
textos canônicos que representam os fatos do mundo real da franquia. Mas,
assim como nenhuma religião pode impedir que cultos alternativos se
ramifiquem, a delimitação de um corpus canônico não pode impedir os fãs de
explorar o reino do "que poderia ter sido" e de compartilhar suas produções
contrafactuais. Enquanto isso, a reinicialização da franquia trouxe uma
explosão de novos filmes, histórias em quadrinhos, romances e jogos de
computador (nada menos que 21 somente em 2015), todos os quais fazem parte
do novo cânone.7

3.3. O discurso da narratologia


Como o discurso da narratologia pode se diferenciar do discurso da
indústria? Não estou dizendo que a narratologia deva rejeitar inteiramente esse
discurso; a indústria criou um vocabulário que pode ser útil à narratologia,
como os termos reboot, Mother Ship e tie-ins, ou com novas práticas envolvendo
conceitos antigos, como o contraste entre elementos canônicos e não canônicos.
Graças ao discurso da indústria também é permitido voltar a falar de conteúdo,
termo que foi considerado tabu pelo New Criticism e pela desconstrução. A
narratologia deve permanecer cética em relação ao exagero criado pelo discurso
da indústria e em suas pretensões à inovação radical, mas também deve evitar
a tentação de declarar que não há nada de novo sob o sol. Como uma
combinação de adaptação e transficcionalidade, a narrativa transmídia tem
raízes óbvias no passado. A narratologia não precisa começar do zero para lidar
com isso; por exemplo, os princípios pelos quais o mundo da história pode ser
expandido na mesma mídia também podem operar através das mídias, e
podemos aplicar à transmídia muito do que Saint-Gelais descreve como práticas
transficcionais. Estou pensando aqui em princípios como estender a linha do

7 Ver: <https://en.wikipedia.org/wiki/Star_Wars_canon>.

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tempo, criar prequelas e sequências, contar a história de personagens


secundários, estender a geografia do mundo da história, contar a história de um
ponto de vista diferente e deixar algumas questões não resolvidas que podem
ser respondidas em outra narrativa. Esses princípios são atemporais e
independentes da mídia.
Uma dificuldade para uma abordagem narratológica da transmídia é o
tamanho da maioria das franquias comerciais. Como observa Jenkins, os
mundos transmídia são geralmente muito grandes para que alguém os conheça
em sua totalidade (JENKINS, 2006, p. 95). O grande número de elementos
significa que precisamos do tipo de abordagem de big data defendida por Franco
Moretti (2013), em vez da leitura atenta geralmente preferida por estudiosos da
literatura. A maioria das abordagens tem sido teórica (como a minha) ou
enumerativa, ao invés de envolvida com documentos individuais. Por
enumerativa, quero dizer abordagens que registram o número de tie-ins e o
desenvolvimento de uma franquia ao longo do tempo, mas não vão muito além
de listar os documentos. Exemplos dessa abordagem de big data são o estudo
de Colin Harvey sobre a franquia Dr Who (2015) e o estudo de Rüdiger Heinze
sobre o universo Alien (2015). Para restaurar a leitura atenta, será necessário
enfocar as relações entre um número limitado de documentos, como a relação
entre a série de TV Lost e o ARG dedicado ao programa, como fez Jason Mittell
(2014), ou a relação entre o filme Star Wars – The Force Awakens e o romance
homônimo. A comparação entre o romance e o filme deve levantar questões
como: o romance ajuda a compreender alguns dos pontos mais obscuros da
trama do filme? Transmite mais informações do que o filme ou reproduz
servilmente o roteiro em palavras? Ele pode se sustentar sozinho? Como a
ordem em que os usuários veem o filme e leem o romance afeta sua
experiência?8
Dada a natureza comercial da maioria das franquias transmídia, um
possível tópico de exploração narratológica poderia ser como o documento
Mother Ship é projetado para abrir oportunidades para a expansão narrativa e
transmídia. Pegue o exemplo da trama de The Force Awakens, que pode ser
considerada Mother Ship na reinicialização da franquia. É o número sete em
uma série de filmes, mas ocorre cerca de 30 anos após o episódio seis –
aproximadamente o mesmo intervalo de tempo que separa o lançamento dos
episódios seis e sete. Isso significa que alguns dos personagens do episódio seis
ainda estão vivos; a saber, Luke Skywalker, Han Solo e Princesa Leia, e os

8Essa pode, no entanto, ser uma questão puramente acadêmica, visto que quase todos
os leitores já terão visto o filme, fato que o autor do romance pode (ou não) ter levado
em consideração.

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mesmos atores podem ser usados. Consequentemente, há alguma continuidade


entre os episódios seis e sete, e os fãs saberão que estão no mesmo mundo, um
sentido fortalecido por paisagens familiares, tecnologia e temas musicais. O
império do mal dos episódios três a seis e seu vilão principal, Darth Vader,
desapareceram, mas foram substituídos por antagonistas igualmente malignos:
a First Order, uma organização semelhante à nazista, e Kilo Re, filho de Han
Solo. Assim como o mundo real produziu, em sucessão, os nazistas, o Khmer
Vermelho e agora o autoproclamado Estado Islâmico, o universo de Star Wars
nunca irá parar de gerar poderes do mal, e podemos ter certeza de um número
infinito de sequelas, mesmo após a First Order ser derrotada. Os 30 anos entre
os episódios seis e sete permitem que uma nova geração de personagens assuma
o controle da trama. Esses personagens vêm do nada, e isso abre possibilidades
infinitas para contar suas histórias de novo. Outra oportunidade para expansão
é contar como o Império Galáctico do passado foi substituído pela First Order
do presente. A maior parte da trama de The Force Awakens gira em torno de
uma tentativa de encontrar Luke Skywalker. Um mapa revelando sua
localização está escondido em um robô carismático chamado BB-8, que é um
brinquedo fantástico que está à venda. O mapa foi colocado em BB-8 por um
personagem do filme, mas de onde vem o mapa e quem o criou permanece um
mistério: um vazio na trama que a empresa Disney ficará feliz em preencher
através de outros produtos lucrativos. O filme termina quando a heroína Rey se
conecta com Luke Skywalker, criando ao mesmo tempo uma sensação de
fechamento e um final aberto, já que não sabemos o que ela vai pedir a ele e
como Luke pode ajudar a derrotar a First Order. Fique ligado no próximo filme.
Ou os próximos sete para esse assunto. Ou os dez que poderiam preencher a
lacuna entre Return of the Jedi e The Force Awakens.
Essa análise permanece no nível da transficcionalidade; não aborda a
questão da seleção de mídia. Idealmente, o meio deve ser ditado pela natureza
do conteúdo, mas com um projeto tão descaradamente comercial como Star
Wars é melhor inverter a questão e ter o conteúdo ditado pela mídia. Em vez de
perguntar "qual é a melhor mídia para contar como o jovem Poe Dameron se
tornou um piloto a serviço da República?", os desenvolvedores se perguntarão:
"precisamos atingir o público dos quadrinhos de super-heróis. Qual parte do
The Force Awakens seria um bom candidato?” A resposta será: a história de Poe
Dameron porque, de todos os personagens do filme, ele tem as melhores
credenciais para se tornar um super-herói: homem, jovem, bonito, arrojado e
ousado.
Outra questão será: “precisamos atrair jogadores: como ‘gamificar’ o
enredo?” Para fazer isso, o usuário terá que assumir o papel de um dos
personagens, ou talvez se tornar um personagem inteiramente novo, e ser dada

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uma série de problemas para resolver. Que tipo de problemas? Como o jogo se
encaixará no filme? Como os mundos da história da maioria das franquias
transmídia são fantasia ou ficção científica, e como esses gêneros são
tradicionalmente ricos em ação, não deve ser muito difícil “gamificar” suas
histórias, já que o meio do videogame depende tanto da luta, uma das atividades
mais fáceis de simular por computador.
Por meio de minha discussão sobre Star Wars, espero ter sugerido que
mesmo as franquias mais descaradamente comerciais podem recompensar uma
abordagem narratológica. Eu imagino a contribuição da narratologia para a
narrativa transmídia dividida nos seguintes componentes: (1) Um componente
transficcional que descreve como histórias pertencentes ao mesmo mundo da
história estão interligadas; este componente avaliará a consistência dos mundos
das histórias. (2) Um componente adaptativo que estuda como o conteúdo
narrativo viaja pelas mídias e como as propriedades das mídias afetam as
histórias; este componente estudará como os vários tie-ins tiram proveito das
possibilidades de seu meio. (3) Um componente mítico que estuda o que
transforma histórias e mundos das histórias em narrativas cult, uma vez que o
sucesso popular é o pré-requisito para o desenvolvimento de franquias
transmídia. Este componente pode gerar perguntas como: por que os mundos
da maioria das franquias são fantásticos ou de ficção científica?; por que os
super-heróis de quadrinhos são tão populares hoje em dia?; Star Wars se tornou
uma religião? e que tipos de estruturas míticas estão por trás do mundo da
história de Star Wars? (4) Um componente de comportamento do público que
estuda o que as pessoas realmente fazem com narrativas cult em geral e com os
sistemas transmídia de hoje em particular. Públicos ativos não são novidade –
há exemplos na Renascença e no século XVII de leitores jogando jogos baseados
em narrativas populares ou personificando personagens fictícios – mas a
participação certamente assumiu novas formas graças à tecnologia digital. Este
componente perguntará: quantas mídias diferentes os públicos-padrão
consultam, em comparação com aqueles altamente envolvidos? Qual é o
sucesso da extensão transmídia do projeto? (Considere Matrix: se a grande
maioria dos fãs se limitarem aos três filmes, como eu suspeito, o projeto é
realmente transmídia?) Pode-se dizer que esse componente do comportamento
do público é mais sociológico do que estritamente narratológico, mas a marca
registrada da narratologia pós-clássica é que suas fronteiras com outras
disciplinas não são mais estanques.
O que, afinal, é narrativa transmídia: uma nova maneira de contar
histórias, o meio narrativo do século XXI, ou uma jogada de marketing, o que
The Economist, comentando sobre Star Wars, chamou de “industrialização da
mitologia”? Pode parecer estranho considerar "transmídia" como uma mídia,

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uma vez que seria uma mídia de mídias. Mas se definirmos as mídias como
meios de expressão, e se, ao usar documentos pertencentes a várias mídias, for
possível criar experiências que não podem ser alcançadas com uma única mídia,
então a transmídia poderia muito bem ser considerada como um novo meio de
expressão e, portanto, como uma mídia em seu próprio direito. Para alcançar
este status honorário, a transmídia terá que encontrar uma forma de explorar
os recursos da mídia que utiliza e terá que aprender a distribuir o conteúdo
narrativo entre eles sem frustrar os usuários; isto é, sem danificar a integridade
dos componentes individuais. Em seu pior aspecto comercial, a transmídia é a
prática altamente lucrativa de dar ao público mais do que ele deseja. Em sua
melhor forma criativa, pode inspirar o público a deixar a zona de conforto de
seu meio favorito para obter uma experiência mais completa do mundo da
história, convidando assim as pessoas a refletir sobre o poder expressivo da
mídia.

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MARIE-LAURE RYAN nasceu em Genebra, Suíça. Ela é uma pesquisadora


independente nos Estados Unidos, especializada na influência de (novas) mídias
na narratividade. Escreveu vários livros e artigos sobre narratologia, ficção e
cibercultura, e recebeu vários prêmios por seu trabalho. Seu livro Narrative as
Virtual Reality: Immersion and Interactivity in Literature and Electronic Media
(2001) ganhou o prêmio MLA Comparative Literature. Em 2017, recebeu o
prêmio Wayne Booth da International Society for the Study of Narrative pelo
conjunto de sua obra. Seguem os títulos de outras obras de Marie-Laure Ryan:
Possible Worlds, Artificial Intelligence, and Narrative Theory (1991); Cyberspace
Textuality (1999); Narrative as Virtual Reality: Immersion and Interactivity in
Literature and Electronic Media (2001); Avatars of Story (2006 – no qual adota
uma definição transmídia de narrativa baseada em premissas cognitivas),
Narrative as Virtual Reality 2: Revisiting Immersion and Interactivity in Literature
and Electronic Media (2015); Narrating Space / Spatializing Narrative: Where
Narrative Theory and Geography Meet (2016). Ela publicou amplamente sobre
narratologia, teoria dos mundos possíveis e cibercultura.

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