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Scripta Uniandrade, v. 20, n.

1 (2022)
Revista da Pós-Graduação em Letras – UNIANDRADE
Curitiba, Paraná, Brasil

O QUE É NARRATIVA TRANSMÍDIA?

Dra. BRUNILDA REICHMANN


Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE)
Curitiba, Paraná, Brasil
(brunilda.reichmann@gmail.com)

Narrativa transmídia é a expressão utilizada para designar tanto o


produto da narração transmidiática quanto a própria narração transmidiática,
ou seja, o processo de criação de um universo ficcional coeso e unificado, que
tem como ponto de partida (a) uma narrativa existente que impulsiona, ao longo
do tempo, a criação de vários produtos em outras mídias, possibilitando a
extensão do mundo da história e a participação ativa do interessado ou (b) uma
narrativa fragmentada em várias plataformas de mídias, cujos fragmentos são
disponibilizados ao público ao mesmo tempo ou em momentos diferentes,
possibilitando a extensão do mundo da história e a participação ativa do
interessado.
Para responder a pergunta “O que é narrativa transmídia?”, além da
definição acima, recupero os conceitos de Henry Jenkins e Marie-Laure Ryan.
Ele, professor da University of Southern California, autor do livro Cultura da
convergência (2006/2009), uma das publicações mais conhecidas sobre
convergência na sociedade atual, além da contribuição em mais de 20 livros
sobre o assunto. Convergência, para Jenkins, diz respeito “ao fluxo de conteúdo
através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos
mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de
comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de
entretenimento que desejam” (2009, p. 29). Marie-Laure Ryan, pesquisadora
independente radicada nos EUA, autora de Possible Worlds, Artificial Intelligence
and Narrative Theory (1991), além de vários textos em coletâneas e artigos, e
editora de Narrative Across Media: The Languages of Storytelling (2004), discute

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a NT sob a ótica da narratologia, dando ênfase especial à expansão dos mundos


das histórias populares.
Para Jenkins, a NT é uma narrativa fragmentada e multimidiática1 que
leva a um universo ficcional coordenado e unificado; para Ryan a NT pode ser
também impulsionada por uma narrativa monomidiática já estabelecida, sem a
fragmentação descrita por Jenkins. Como exemplo ela inclui a publicação dos
primeiros livros da coletânea Harry Potter e sua imensa popularidade. Nesse
caso, o início do que vem a ser uma franquia transmídia é monomidiático – o
produto inicial é tradicional, disponibilizando ao leitor uma narrativa íntegra
em uma única mídia. Twin Peaks, por outro lado, tem um universo implantado
por meio de uma série, um longa-metragem e vários livros ao mesmo tempo. A
narrativa se apresenta fragmentada em várias mídias e o público tem que
recorrer aos fragmentos para conhecê-la completamente.
Jenkins volta-se principalmente para a transmídia como manifestação de
massa da Comunicação e Marketing. Para ele o trabalho de narração é parte
integrante dos projetos transmídia: uma parte presente em uma mídia não pode
ser compreendida sem conhecer as outras partes em outras mídias. Há uma
interdependência de todas as partes distribuídas em múltiplas plataformas.
Jenkins abre a possibilidade para dois tipos de projetos transmídia: (a) projetos
nativos: a arquitetura transmídia da obra é criada e pensada como um todo e
não é retocada após seu lançamento; (b) projetos de apoio: a arquitetura do
universo não é fixa e evolui pouco a pouco. Jenkins fundamenta sua teoria em
três conceitos básicos: convergência midiática, inteligência coletiva e cultura
participativa. A convergência midiática é a conexão das mídias de massa com a
tecnologia digital, ambas em constante desenvolvimento. O participante, ao
contrário do antigo leitor, deve dominar a evolução das tecnologias das mídias
para usufruir as criações multimidiáticas. Inteligência coletiva, termo de Pierre
Levy alusivo às novas estruturas sociais, permite a produção e circulação do
conhecimento em rede. Refere-se à nova forma de consumo como um processo
conjunto, uma nova forma de recepção e compartilhamento. Cultura
participativa refere-se à cultura em que fãs e outros consumidores são
motivados a participar ativa e conjuntamente da criação e circulação de novos
conteúdos. Na sociedade contemporânea, desde o início da Internet, o público
tem se afastado cada vez mais da condição de receptor passivo. A Internet é
reconhecida como um veículo para ações coletivas – “soluções de problemas,
deliberação pública e criatividade alternativa”. Jenkins considera a NT como a
estética ideal da cultura da convergência e acrescenta: “Uma narrativa
transmídia desenrola-se através de múltiplas plataformas de mídia, com cada
novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo” (JENKINS,
2009, p. 138). Deve haver expansão da história por meio de múltiplas mídias e

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Multimidiática (multimedia) no sentido de envolver diversas mídias nas extensões da
narrativa transmídia – termo utilizado por Jenkins.

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o consumidor deve participar do processo para que a narrativa possa ser


considerada transmídia. Outra distinção feita por Jenkins refere-se à
adaptação, embora ele diga que ambas, tanto a NT quanto a adaptação, criam
uma ponte entre diferentes mídias. Ryan cita Jenkins sobre o assunto: “E para
muitos de nós, uma simples adaptação pode ser ‘transmídia’, mas não é
‘narrativa transmídia’ porque é simplesmente a reapresentação de uma história
existente, ao invés da expansão e desenvolvimento do mundo ficcional”
(JENKINS citado em RYAN, 2020, p. 9).
Segundo Ryan, a importância da transmídia como um modo de contar
histórias veio quando o Producers Guild of America (PGA)2 emitiu um manifesto
definindo a transmídia e reconhecendo oficialmente produtores transmídia
como membros em potencial da associação. O PGA assim se manifesta sobre a
franquia transmídia: “um projeto ou franquia transmídia deve consistir em três
(ou mais) tramas narrativas existentes dentro do mesmo universo ficcional em
qualquer uma das seguintes plataformas: filme, televisão, curta-metragem,
banda larga, publicação, quadrinhos, animação, celular, locais especiais, DVD
/ Blu-ray / CD-ROM [...]. Essas extensões narrativas não são o mesmo que o
reaproveitamento de material cortado ou modificado em plataformas
diferentes”.3 Ryan também utiliza a terminologia de Brian Clark (2012), um
desenvolvedor mais conhecido por um post no Facebook intitulado “Transmídia
é uma mentira”, ao apresentar a classificação de transmidialidade da Costa
Leste vs. Costa Oeste, referindo-se à geografia dos EUA. Algumas formas
possíveis de transmidialidade da Costa Leste, segundo Ryan, são: jornalismo
transmídia, instalações, jogos de realidade alternativa (ARGs), livros
aumentados, TV interativa, etc. Uso de transmídia top-down, ou seja, quando o
conteúdo é deliberadamente concebido e planejado como multimidiático. A NT
“real”, a que interessa aos pesquisadores da narrativa, no entanto, segundo
Ryan, é o modelo da Costa Oeste, ou seja, a expansão de mundos das histórias
populares além de sua mídia original. É assim que a maioria de consumidores
entende a NT, a saber, como megas franquias comerciais da indústria do
entretenimento de Hollywood, como Star Wars, Lord of the Rings, Harry Potter e
Matrix. Este modelo implica no uso de transmídia bottom up, ou seja, uma
narrativa monomidiática já estabelecida se expande em múltiplas plataformas,
tornando-se multimidiática. A relação entre mídias pode ser concebida em dois
modelos, segundo Ryan: no primeiro modelo, as partes se encaixam em um
todo, e esse todo é mais do que a soma de suas partes; no segundo modelo, os
muitos componentes são mantidos juntos por uma estrutura comum, que
podemos chamar de mundo da história. Neste segundo modelo cada
componente conta uma história relativamente autônoma, embora os elementos

2
Producers Guild of America é uma associação comercial, fundada em 1950, que
representa produtores de programas de televisão, de filmes e de produtos em novas
mídias nos Estados Unidos. A associação do PGA inclui mais de 8.000 membros. Seus
copresidentes são Gail Berman e Lucy Fisher.
3 Ver: http://www.producersguild.org/?page=coc_nm#transmedia.

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maiores devem geralmente ser consumidos antes dos menores, porque fornecem
um amplo pano de fundo sobre os quais elementos menores podem ser
construídos. Esses grandes elementos representam o que a indústria da mídia
chama de Mother-Ship ou Ur-Text. Quanto mais histórias os usuários
consomem, mais eles conhecem o mundo da história, mas não é necessário
consultar todos os elementos para usufruir a história.
Jenkins, por outro lado, explica que na franquia Matrix, por exemplo,
informações importantes são transmitidas por meio de três filmes de ação, uma
série de curtas animados, duas coleções de histórias em quadrinhos e vários
videogames. Não há um Mother-ship ou Ur-text aos quais se possa recorrer para
obter todas as informações necessárias para compreender o universo Matrix,
cujo início é multimidiático e fragmentado. Para Ryan, como vimos, pode-se
recorrer a um Mother-ship como na franquia Harry Potter, porque os livros
fornecem um amplo pano de fundo sobre os quais outros elementos são criados.
Segundo Ryan, o termo mais apropriado seria mundo transmídia, onde as
narrativas se inserem.
Ryan inclui também o conceito de transficcionalidade de Saint-Gelais,
pesquisador francês. Falando em adaptação, ele explica que, longe de excluir
adaptações, as franquias transmídia podem ser descritas como uma
combinação de adaptações com outra operação narrativa de longa data, que ele
denomina de transficcionalidade. Ele define transficcionalidade como o
compartilhamento de elementos – principalmente personagens, mas também
locais imaginários, eventos e mundos ficcionais inteiros – por duas ou mais
obras de ficção. Essa operação normalmente vincula obras literárias e se apoia
em três operações fundamentais, sendo a primeira a mais importante para a
NT: (1) extensão, que agrega novas histórias ao mundo ficcional, respeitando os
fatos estabelecidos no original; (2) modificação, que muda o enredo da narrativa
original, por exemplo, dando-lhe um final diferente; e (3) transposição, que
transporta o enredo para um cenário temporal ou espacial diferente, por
exemplo, quando a história de Romeu e Julieta se passa na cidade de Nova York
nos anos 1950. As extensões podem servir a uma variedade de funções
diferentes: podem fornecer informações sobre os personagens e suas
motivações, podem detalhar aspectos do mundo ficcional ou podem fazer a
ponte entre eventos descritos em uma série de sequências. As extensões
também podem adicionar um maior senso de realismo à ficção como um todo,
mais uma das características do mundo transmídia ou da NT.
Voltemos a Harry Potter, para finalizar. Durante a publicação dos sete
livros, a história foi sendo recontada em filmes e em os jogos relacionados. No
entanto, apesar de à leitura da coletânea ser acrescentada a visualidade dos
filmes e a participação nos jogos, a mesma história é recontada e não expandida
em mídias diferentes. Alguns afirmam que somente com a publicação do oitavo
volume, Harry Potter and the Cursed Child (2016), há expansão da história em
mídias diferentes e não “apenas a reapresentação de uma história existente”.

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Diagramas e conceitos simplificados

Diagramas da autora.

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REFERÊNCIAS

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Trad. Susana Alexandria. São Paulo:


Aleph, 2009.

PRODUCERS GUILD OF AMERICA. Disponível em:


http://www.producersguild.org/?page=coc_nm#transmedia. Acesso em: 21 jul.
2022.

RYAN, M.-L. Introduction. In: Narrative Across Media: The Languages of


Storytelling. Lincoln: University of Nebraska Press, 2004, p. 1-40.

RYAN, M.-L. Possible Worlds, Artificial Intelligence and Narrative Theory.


Bloomington: University of Indiana Press, 1991.

RYAN, M.-L. (Ed.). Narrative Across Media: The Languages of Storytelling.


Lincoln, Nebraska: University of Nebraska Press, 2004.

RYAN, M.-L. Narratologia transmídia e narrativa transmídia. Trad. Brunilda


Reichmann. Scripta Uniandrade, v. 18, n. 3 (2020), p. 1-20. Disponível em:
https://revista.uniandrade.br/index.php/ScriptaUniandrade/issue/view/126
Acesso em: 21 jul. 2022.

SAINT-GELAIS, R. Fictions transfuges: La transfictionnalité et ses enjeux. Paris:


Seuil, 2011.

Texto recebido em: 26 abr. 2022.


Aceito em: 23 maio 2022.

BRUNILDA REICHMANN é Doutora em Literatura Comparada pela University of


Nebraska in Lincoln (UNL), realizou pós-doutorado na UFMG em Estudos de
Intermidialidade. Foi Professora de Literatura Norte-Americana nos EUA e
Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa na UFPR. Atualmente
coordena o Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária da Uniandrade –
PR. Participa do GT Intermídia: Estudos sobre Intermidialidade (CNPq) e foi
proponente e coordenadora do GT Intermidialidade: Literatura, Artes e Mídias
(ANPOLL). Traduziu textos de Claus Clüver, Walter Moser, Jürgen E. Müller,
Marie-Laure Ryan, entre outros. Organizou a coletânea Assim transitam os
textos: ensaios sobre intermidialidade e publicou artigos sobre o assunto em
livros e periódicos do Brasil e do exterior.

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