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35ª bienal de são paulo coreografias do impossível

(orgs.)
diane lima
grada kilomba
hélio menezes
catálogo manuel borja-villel
35ª bienal de são paulo
coreografias do impossível
Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio
da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo
e Itaú apresentam
35ª bienal de são paulo
coreografias do impossível
ahlam shibli → 52
aida harika yanomami, edmar tokorino yanomami e roseane yariana yanomami → 54
aline motta → 56
amador e jr. segurança patrimonial ltda. → 58
amos gitaï → 60
ana pi e taata kwa nkisi mutá imê → 62
anna boghiguian → 64
anne-marie schneider → 66
archivo de la memoria trans (amt) → 68
arthur bispo do rosário → 70
aurora cursino dos santos → 72
ayrson heráclito e tiganá santana → 74
benvenuto chavajay → 76
bouchra ouizguen → 78
cabello/carceller → 80
carlos bunga → 82
carmézia emiliano → 84
castiel vitorino brasileiro → 86
ceija stojka → 88
charles white → 286
citra sasmita → 90
colectivo ayllu → 92
cozinha ocupação 9 de julho – mstc → 94
daniel lie → 100
daniel lind-ramos → 102
davi pontes e wallace ferreira → 104
dayanita singh → 106
deborah anzinger → 108
denilson baniwa → 110
denise ferreira da silva → 112
diego araúja e laís machado → 114
duane linklater → 116
edgar calel → 118
elda cerrato → 120
elena asins → 122
elizabeth catlett → 285
ellen gallagher e edgar cleijne → 124
emanoel araujo → 126
eustáquio neves → 128
flo6x8 → 130
francisco toledo → 132
frente 3 de fevereiro → 134
gabriel gentil tukano → 136
george herriman → 138
geraldine javier → 140
gloria anzaldúa → 142
grupo de investigación en arte y política (giap) → 144
guadalupe maravilla → 146
ibrahim mahama → 154
igshaan adams → 156
ilze wolff → 158
inaicyra falcão → 160
januário jano → 162
jesús ruiz durand → 164
john woodrow wilson → 287
jorge ribalta → 166
josé guadalupe posada → 168
juan van der hamen y león → 170
judith scott → 172
julien creuzet → 174
kamal aljafari → 176
kapwani kiwanga → 178
katherine dunham → 180
kidlat tahimik → 182
leilah weinraub → 184
leopoldo méndez → 289
luana vitra → 186
luiz de abreu → 188
m'barek bouhchichi → 190
mahku → 192
malinche → 194
manuel chavajay → 196
margaret taylor goss burroughs → 288
marilyn boror bor → 198
marlon riggs → 200
maya deren → 202
melchor maría mercado → 204
min tanaka e françois pain → 206
morzaniel ɨramari → 208
mounira al solh → 210
nadal walcot → 220
nadir bouhmouch e soumeya ait ahmed → 222
nikau hindin → 224
niño de elche → 226
nontsikelelo mutiti → 228
patricia gómez e maría jesús gonzález → 230
pauline boudry / renate lorenz → 232
philip rizk → 234
quilombo cafundó → 236
raquel lima → 238
ricardo aleixo → 240
rolando castellón → 242
rommulo vieira conceição → 244
rosa gauditano → 246
rosana paulino → 248
rubem valentim → 250
rubiane maia → 252
sammy baloji → 260
santu mofokeng → 262
sarah maldoror → 264
sauna lésbica por malu avelar com ana paula mathias, anna turra, bárbara esmenia e marta supernova → 266
senga nengudi → 268
sidney amaral → 270
simone leigh e madeleine hunt‑ehrlich → 272
sonia gomes → 274
stanley brouwn → 276
stella do patrocínio → 278
tadáskía → 280
taller 4 rojo → 282
taller de gráfica popular → 284
taller nn → 290
tejal shah → 292
the living and the dead ensemble → 294
torkwase dyson → 296
trinh t. minh-ha → 298
ubirajara ferreira braga → 300
ventura profana → 302
wifredo lam → 304
will rawls → 306
xica manicongo → 308
yto barrada → 310
zumví arquivo afro fotográfico → 312
ensaios residências artísticas redes

grada kilomba → 12 auá mendes ëntun fey azkin (território mapuche)


hélio menezes → 14 juliana dos santos nls / new local space (jamaica)
manuel borja-villel → 20 mario lopes sertão negro (brasil)
diane lima → 28 natali mamani
hagar kotef → 42 queen gloria "mama g" simms
gladys tzul tzul → 96 xadalu tupã jekupé
rizvana bradley e
denise ferreira da silva → 148
tiganá santana → 212
ilenia caleo → 254
leda maria martins → 314
colaborações cartas institucionais +

abigail campos leal josé olympio da veiga pereira → 336 biografias → 330
ana longoni margareth menezes → 337 créditos → 340
barbara copque itaú cultural → 338 agradecimentos → 344
beatriz martínez hijazo instituto cultural vale → 338 parceiros → 346
carles guerra bloomberg → 339 créditos fotográficos → 348
cíntia guedes sesc são paulo → 339 créditos da publicação → 352
claudinei roberto
david pérez
déba tacana
emanuel monteiro
fernanda carvajal
getsemaní guevara
heitor augusto
horrana de kássia santos
igor de albuquerque
isabel tejeda
josé antonio sánchez
juliana de arruda sampaio
kaira cabañas
kênia freitas
kike españa
luciana brito
luciane ramos silva
marco baravalle
maria luiza meneses
mario gooden
miro spinelli
natalia arcos salvo
nicole smythe-johnson
oluremi onabanjo
omar berrada
pérola mathias
phillipe cyroulnik
rafael garcía
renato menezes
rocío robles tardío
rossina cazali
sara ramos
sol henaro
sylvia monasterios
tarcisio almeida
tatiana nascimento
thiago de paula souza
coreografias diane lima grada kilomba
do impossível

coreografias do impossível ganha forma a partir de um exercício conceitual


que se reflete em nossa própria formação e prática curatoriais. Nós nos
reunimos para criar um grupo horizontal, sem a hierarquia de um curador-
-chefe ou a homogeneidade de um coletivo. Trata-se de um modo de
coreografar que considera nossas diferentes trajetórias, formações, áreas
de atuação e que, sobretudo, buscou criar estratégias que nos permitis-
sem encarar os desafios institucionais e curatoriais inerentes a um projeto
desta envergadura.
Expandir os processos colaborativos e as nossas perspectivas foi o que
nos motivou a conceber um conjunto de interlocuções, que vão desde a
lista de participantes e grupos e espaços – que nos ofereceram exemplos
de gestão alternativa para os modos vigentes – até pesquisadoras e práti-
cas de aprendizagem não necessariamente ligadas aos campos convencio-
nais do conhecimento. Houve também muito diálogo com a dupla de assis-
tentes de curadoria, composta por Sylvia Monasterios e Tarcisio Almeida,
e com o conselho curatorial, formado por Omar Berrada, Sandra Benites,
Sol Henaro e Thomas Lax.
Como veremos nos diversos textos que compõem este catálogo, tal
princípio espiralar se irradia pela seleção de obras e por todas as demais
estruturas que organizam uma Bienal, como o projeto de arquitetura e
expografia, o programa de educação e mediação, além do próprio convite
à leitura deste material.
Concebido como um tramado de vozes, ou uma “trança” de mundos
– como nos incita a pensar a artista e educadora Nontsikelelo Mutiti, que
assina a identidade visual da 35ª Bienal de São Paulo –, este projeto editorial
reúne um grande conjunto de autoras e autores que aceitaram o desafio de
atualizar, reler, traduzir ou desenvolver pensamentos e diálogos inéditos,
os quais ampliam as formas de conceber as coreografias do impossível.
Essa trama, que se faz como um fluxo, é constituída por quatro ensaios
assinados individualmente pela equipe curatorial, por textos referenciais e
por um coro de ensaios críticos comissionados, dando corpo ao perfil dos
121 participantes.
Já no espaço expositivo, fez-se uma coreografia de percursos, como
define o Vão, escritório responsável pelo projeto de arquitetura e expogra-
fia das coreografias do impossível, sem temas e categorias cronológicas.
É uma proposta capaz de nos fazer sentir no corpo o que as mudanças
de fluxos e as intervenções no prédio produzem, como a inversão dos
pavimentos, uma ilusão criada pelo envelopamento do vão central – uma
das estruturas mais emblemáticas do projeto original de Oscar Niemeyer
–, e um desenho expográfico que arranja uma sequência de movimen-
tos que aceleram, atrasam, pausam e sugerem diferentes velocidades,

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hélio menezes manuel borja-villel

encadeando ritmos e contrapontos distintos, para além da escala monu-


mental do Pavilhão.
Essas coreografias de narrativas trazem grande centralidade ao tra-
balho formativo realizado pela equipe de educação da Fundação Bienal,
especialmente pelo desafio de criar ferramentas de mediação que nos
ajudem a elucidar, com o público, o modo como tais percursos desafiam,
na prática, as relações com o tempo e o espaço.
O modo como a equipe conta o seu percurso nos três movimentos –
nome que se deu às publicações educativas que vão se complementando
e se revelando ao longo da construção das coreografias do impossível – é
também um bom exemplo do modo como o conceito se irradia. Por meio
da fabulação de um amplo programa de estudos e convites para diferentes
artistas e pesquisadoras, a equipe entende que os diferentes procedimen-
tos educacionais são ferramentas de liberação e liberdade, ou mesmo um
chamado, no qual as práticas artísticas, intelectuais e políticas se tornam
fundamentais na construção de conhecimentos baseados em troca, com-
partilhamento e experimentação.
Desenvolvemos também uma rede de programas de residências
artísticas, formada por New Local Space (Kingston, Jamaica), Sertão
Negro (Goiânia, Brasil) e Ëntun Fey Azkin (Wallmapu, Território Ancestral
Mapuche). Esses espaços e iniciativas autônomas são circuitos que fomen-
tam arte, educação e novos modelos de gestão, além de proporcionarem
formação e redistribuição de acessos para a cena local, tendo em vista as
crises e os impactos sociais e econômicos que esses territórios enfren-
tam. Acreditamos no papel de plataformas como as Bienais na construção
de processos formativos, de pesquisa e de fortalecimento de movimen-
tos coletivos. Acreditamos também que, junto às discussões que nosso
projeto propõe, podemos contribuir para a manutenção e a consolidação
de redes de solidariedade como a Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC,
que está presente na 35ª Bienal tanto como participante quanto como
responsável pela alimentação.
As coreografias do impossível contam ainda com uma extensa progra-
mação pública, composta por ativações, performances, mesas, conversas,
exibições de filmes, oficinas e laboratórios ao longo da exposição.
O que essas práticas, que coreografam o impossível em seus locais,
podem gerar quando postas em diálogo aqui? Que rupturas e encontros,
consensos e dissensos, essa reunião pode criar? Para nós, essas pergun-
tas têm um papel central. Elas possibilitam inventar e descobrir novas e
desconhecidas coreografias.
planta do terceiro andar espaço fechado espaço aberto

planta do segundo andar espaço fechado espaço aberto


imagem: Vão Arquitetura
c-o-r-e-o-g-r-a-f-i-a-s
grada kilomba

o que é coreografia? tempo?


o que é uma coreografia?
o que são coreografias? podemos, assim, abstrair a ideia de coreografia?
e o que são as coreografias do impossível?
tempo lento?
o que é impossível? tempo rápido?
o que é o impossível? tempo devagar?
e a impossibilidade? tempo fragmentado?
tempo parado?
pode uma coreografia contornar o impossível? pode uma mesma coreografia variar,
segundo o tempo em que se dança?
como se define coreografia?
como uma arte? permitindo várias interpretações?
como um desenho? criando múltiplas danças?
como uma escrita?
um movimento? danças, antes inimagináveis?
ou uma dança?
danças, que ultrapassam o poder da imaginação?
é a coreografia, a arte de dançar? ou daquilo que se imaginou?
ou arte de desenhar um movimento que se dança? ou que foi imaginado para nós?

a arte de escrever um movimento? pode uma coreografia interromper o impossível?


de desenhar um conjunto de movimentos? e pode uma coreografia ocupar o impossível?
a sequência destes?
em todas as suas parcelas e frações? espaço?

a grafia de um movimento? espaço vazio?


espaço cheio?
a grafia de um movimento, que irá compor uma dança? espaço horizontal?
a grafia, que descreve como uma dança irá ser feita? espaço vertical?
antecipando-a? espaço diagonal?

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como se ocupa o espaço o que é impossível?
para uma coreografia? o corpo?

presente? o corpo impossível?


ausente?
longe? a negação de um corpo?
perto? ou o desejo deste?
a violência contra um corpo?
pode a coreografia atravessar as noções de espaço? ou o desejo reprimido?
da mesma forma que atravessa as noções do tempo? a recusa de um corpo?
criando infinitas danças? ou a obsessão por ele?

atravessando o impossível? pode a coreografia


apesar da impossibilidade? desmantelar o impossível?

e o corpo? criando múltiplas danças?


quem dança a coreografia? em múltiplas variações?
em múltiplas formas?
será, então, a coreografia a escrita do corpo? e em múltiplos corpos?
e o corpo, o centro da coreografia?
atravessando as várias noções de tempo,
o corpo? espaço, presença e corpo?
o corpo físico?
o corpo, e não o objecto? o que são as coreografias do impossível?
e o que é a 35a Bienal de São Paulo?
o corpo possível?
o revelar dos impossíveis?
quem é possível? o afirmar das possibilidades perante o impossível?
quem é impossível? ou a revelação daquilo que sempre foi possível?
e quem se torna uma impossibilidade? revelando múltiplas possibilidades?

Berlim, 20 de junho, 2023


coreografias do impossível,
encruzilhadas do tempo
hélio menezes

Aprendi desde cedo que Tempo é outro nome do inquice de São Paulo como temporalidades que se realizam em
Kitembo, deus do infinito, ser que habita e atravessa todos episteme a cada movência que busca escapar à rigidez deste
os seres e tempos. Entidade que habita e se faz corpo em mundo dilacerado pela cotidianidade dos ritos e práticas de
árvore sagrada. Um Tempo a quem se dá de comer. Sua violência total. E que tornam a ideia de vida plena e justa um
gemelaridade com os tempos indetermináveis dos ciclos acontecimento impossível. Um horizonte inalcançável, há
naturais e mais-que-humanos e o consequente colapso pelo menos cinco séculos, para os mesmos e cada vez mais
da sequencialidade como dimensão ontológica do tempo numerosos condenados da terra.2 Um mundo contra o qual,
encarnam, me parece, uma possibilidade interessante e afinal, se impõem as tentativas, tão inadiáveis quanto impro-
radical de alteração do rijo binômio tempo-espaço. Uma váveis, de gingar e escapar, recusar, fazer frente, reverter
capacidade inerente de desnarrar histórias pelo próprio e reparar as consequências desses mesmos contextos que
movimento no/do tempo. tornam a vida de uns mais impossível que a de outros.
Em cadência similar, a pensadora Leda Maria Essas compreensões espiralares do tempo, que
Martins vem sugerindo que o tempo pode ser experien- o percebem e o concebem como um saber localizado e
ciado pelo princípio do movimento: uma curva que gira, corpori­ficado, matriz de toda motricidade e, portanto, de
vai e re/volta, embaralha a cronologia, conjuga rememo- toda possibilidade, lastreiam e encontram eco nas coreo-
rar e devir como verbos siameses. A autora nos relembra grafias do impossível. O desejo de reunir e propor relações
que se pode vivenciar tempos fora da mecânica linear, entre um conjunto de práticas artísticas e sociais que rei-
irredutíveis à ideia moderna (ou seja, à ideia colonial) de vindicam outras cosmopercepções do tempo, que tratam
um encadeamento sequencial ou progressivo. Um tempo de coreografar outras configurações de mundo — não obs-
ontologicamente vivido com e como corpo. E que encontra tante lidarem com a impossibilidade como condição —, foi
tradução em sistemas linguísticos e de pensamento para os baliza para as pesquisas que resultaram nesta 35a Bienal,
quais a separação entre ética, estética, corpo, tempo e vida bem como nos ensaios e nas imagens que compõem esta
carece de força explicativa. publicação, agora disponível para sua leitura.
Como Leda ensina: São vários, e mesmo infinitos, os tempos aqui em
jogo: há o tempo onírico, e sua capacidade de transmuta-
numa das línguas Banto do Congo, o kicongo, o ção para acessar outros planos e mundos, de que nos conta
mesmo verbo, tanga, designa os atos de escre- Mãri hi [A árvore do sonho], do diretor Morzaniel Ɨramari; o
ver e de dançar, de cuja raiz deriva-se, ainda, tempo ancestral das mulheres-mangue de Rosana Paulino,
o substantivo ntangu, uma das designações do poderosas figuras em forma de raízes e árvores antropomór-
tempo, uma correlação plurissignificativa. Aqui, ficas, onde vida, lama e renovação se indistinguem; o tempo
numa coreografia de retornos, dançar é inscre- telúrico da cerâmica, desenterrando histórias de exploração
ver no tempo e como tempo as temporalidades mas também de cura, como nos ensinam Marilyn Boror Bor
curvilíneas.1 e Simone Leigh, ou ainda M’barek Bouhchichi, ao suprimir
a distância entre os versos de Dave the Potter, a letra de
Ntangu. — Tanga — Matanga — Tango — Matanza. M’barek Ben Zida e a escrevivência de Conceição Evaristo.
Escrever, dançar n/o tempo. Há o tempo-sem-tempo de quem vive “no tempo da cap-
Essas coreografias de retornos, movimentos do
impossível, são entendidas no contexto dessa 35a Bienal

1/ Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo- 2/ Frantz Fanon (1961), Os condenados da terra, trad. Lígia Fonseca e
-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, p. 81. Regina Salgado Campos. São Paulo: Zahar, 2022.

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tura”, como relata Stella do Patrocínio em seus Falatórios;3 o Tempo que Fala — terreiro de candomblé cujo nome é já
tempo que habita na dobradiça da re/memória com o delírio, anúncio desse tempo que é tudo, menos estático.
de que nos contam Aurora Cursino e Ubirajara Ferreira; o Outros artistas-coreógrafos, como Bouchra
tempo do horror e seus efeitos encarnados, sobre o qual é Ouizguen, Luiz de Abreu, Will Rawls, Inaicyra Falcão e a
impossível narrar (mas ainda assim dele se fala), como o fez dupla Davi Pontes e Wallace Ferreira, participam da mostra
Ceija Stojka. com proposições que também trazem o corpo como veículo
Há o tempo de um tempo que finda, como o da primeiro do tempo, e vice-versa, expandindo os diálogos
“Marcha do Silêncio”, promovida pelo Exército Zapatista (antiquíssimos e sempre atuais) entre os campos da dança,
de Libertação Nacional em 21 de dezembro de 2012 — dia da música e das artes visuais. Seja na câmera de Maya
em que o mundo acabou, de acordo com o calendário maia. Deren, que, ao filmar Chao-Li Chi numa dança-transe de
O tempo vagaroso de semear e o tempo incerto da colheita, rigor e exatidão, acaba ela mesma também dançando; seja
propostos pela horta de milhos crioulos, e insubmetíveis nos movimentos compassados de Katherine Dunham, entre
à monocultura, que Denilson Baniwa aterra nesta Bienal; Áfricas, Caribes e Américas, desenvolvendo um vocabu-
o tempo de re/de/composição dos fungos, plantas e outros lário coreográfico influente ainda hoje em várias gerações
seres além-de-humanes, em ciclos de longa duração em de artistas, aqui, tempo e corpo são instâncias plena-
que vida e morte são marcadores indistinguíveis, como mente intercambiáveis.
Daniel Lie sugere.
Há o tempo cumulativo dos “objetos encontrados e
desimportantes”, coletados por Rolando Castellón ao longo ●●●
da sua vida na Nicarágua e Costa Rica; o tempo e a dança
maquínicos, em seus vínculos umbilicais com o colonia-
lismo-capitalismo industrial, que Warp Trance [Trama em De uma perspectiva curatorial, pensar essas dobras do
transe], de Senga Nengudi, Tales of the Copper Cross Garden: tempo das/nas expressões artísticas implicou também
Episode I [Contos do jardim de cruzes de cobre: Episódio I], relocalizar o sentido de coreografia. Tomando-a em acep-
de Sammy Baloji, e Sumidouro nº2 — diáspora fantasma, de ção alargada e poética, para além de sua historicidade dis-
Laís Machado e Diego Araúja, apreendem e decodificam. ciplinar. Assim, requereu, consequentemente, contrariar a
Há o tempo do luto e da reconstrução (impossível, embora suposição de autenticidade de seu significado etimológico,
inevitável) de laços de parentesco inter/rompidos, como liberando o olhar para os movimentos, realizados em um
em A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta, que mundo que parece irresolúvel, por onde a improvisação e a
embaralha histórias coloniais afro-atlânticas e histórias criatividade desdobram novos e insuspeitos moveres.
familiares de morte e escrita de si; ou como na Palestina
sob o olhar de Ahlam Shibli, povoada por imagens de már- A coreografia era uma arte, uma prática de se
tires e jovens assassinados, tanto na rua como nos espaços movimentar mesmo quando não havia outro
domésticos, retratados na série Death [Morte]. lugar para ir, nenhum lugar para onde fugir. Era
Há o tempo dos pés andarilhos, dos jeitos de corpo um arranjo do corpo que escapava à captura, um
que vão e desvão entre Senegal, França e Brasil, como esforço para tornar o inabitável habitável,4
remarca a coreógrafa Ana Pi, em parceria com Taata Kwa
Nkisi Mutá Imê, sacerdote-chefe da Casa dos Olhos do
4/ Saidiya Hartman (2019), Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias
3/ Stella do Patrocínio, Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, org. e íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers
apres. Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Azougue, 2001. radicais, trad. Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 315.
conta Saidiya Hartman a respeito de Mabel Hampton, uma refletir sobre o risco, sempre à espreita, do apresamento
jovem corista negra do Harlem dos anos 1920, em um dessa mesma liberdade bailarina pelos dispositivos de con-
significado coextensível ao que esta Bienal enseja. “Em seu dução de corpos (não quaisquer corpos, todos sabemos)
sentido mais amplo, a coreografia — essa prática de corpos e da codificação de movimentos disruptivos, não raro con-
em movimento — era um chamado de liberdade”.5 vertidos em mercadoria. Isso tanto por meio das relações
Nesse passo, coreografar o impossível conota as interpessoais hierarquizadas por marcadores sociais da
tecnologias sociais e práticas artísticas que buscam driblar diferença (raciais, de classe, gênero, sexualidade et alii),
a gramática da violência, referindo-se aos exercícios poéti- quanto pelo Estado, pelo Capital e suas derivadas institui-
cos de resiliência, estratégias sociais, estéticas e curatoriais ções de vigilância e de controle (as da arte, especialmente).
de evasão à norma; um convite permanente à fabulação de A ilusão e a irrealidade da liberdade de an/dança,
um porvir ainda desconhecido — apesar de toda inviabili- de movimentar-se de modo verdadeiramente livre, é carac-
dade. Uma meia-lua de compasso, como se diz na capoei- terística fúnebre desses tempos de claridade extrema em
ragem: a destreza de combinar uma manobra fugidia, no que vivemos. Dessa modernidade-colonialidade engen-
instante mesmo de sua realização, com um chute circular drada pelo tráfico transatlântico de gente e de destinos,
reverso, num jogo que é também uma dança, uma dança pelos deslocamentos forçados e pelas barreiras de conten-
que também é uma briga.6 “Ao lado da derrota e do terror, ção, ideias regulatórias de fronteira e divisões racializadas
haveria isso também: o vislumbre de beleza, o instante de do espaço, campos de concentração e de refugiados, polí-
possibilidade”,7 Saidiya reforça. ticas de encarceramento e manicomialização de dissidên-
O que é necessário para fazer surgir esses instan- cias sexuais e de gênero, grilagem e disputa de terras, das
tes? Que impactos a derrota e o terror podem gerar na consequências irreversíveis do racismo ambiental — dos
linguagem? De que maneira artistas têm lido ou como vêm estertores, enfim, de um mundo que agoniza.
contornando os efeitos desses contextos impossíveis? Que Ou melhor, de certos mundos impossíveis que
proposições estéticas emergem de subjetividades insub- coabitam n/o mundo. Lugares físicos e simbólicos que vêm
missas e estratégias coletivas de emancipação a partir, sendo tomados como espaços de expropriação e de des-
contra e a despeito da ruína? Além da reação combativa, da truição há longa data e mais aceleradamente que outros,
descrição figurativa e das políticas de representatividade, e que, não obstante, são lugares de resistência e de fabu-
que outras formas expressivas a imaginação radical pode lação. Refiro-me ao lago Atitlán, rodeado por três vulcões
despertar, para além das expectativas de resistência por e incontáveis camadas do tempo — o tempo maia, o tempo
meio da frontalidade responsiva? colonial (ainda tão vivo), o tempo repressivo do estado e
“O que queremos, afinal, da linguagem? Tudo, tudo da sociedade guatemaltecos, o tempo do neoliberalismo
que nos permita ser no mundo sem que nossas costas se extrativista —, e que serve de cenário e protagonista para
curvem”,8 na formulação de Edimilson de Almeida Pereira. Oq Ximtali, de Manuel Chavajay — uma coreografia de
Sob outras lentes, o termo coreografia convida ainda a barcos de pesca em movimento sincronizado, gerando um
instável círculo quase perfeito. Esses mundos impossíveis
também se encontram na Terra Indígena Raposa Serra do
5/ Id., ibid., p. 322.
Sol, cujo monte Roraima brilha em multicor nas telas de
6/ Referência à letra da canção “Capoeira de benguela”, de Paulo César
Pinheiro, do álbum Capoeira de besouro. Gravadora Quitanda, 2010. Carmézia Emiliano, a despeito da invasão e do garimpo
7/ Saidiya Hartman, “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa e
ilegais que ameaçam com contaminação e chumbo a possi-
Marcelo Ribeiro. ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, pp. 12-33, 2020, p. 24. bilidade de vida na região; nos locais de exílio permanente,
8/ Edimilson de Almeida Pereira, Um corpo à deriva. Juiz de Fora: Macon- de que nos conta Mounira Al Solh; nos bares de e para
do, 2020, p. 147. mulheres lésbicas funcionando no centro de São Paulo,

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fotografados por Rosa Gauditano nos anos 1970, em plena se localizam em protestos das ruas, em suas esquinas e
ditadura militar; referem-se também aos espaços arquite- encruzilhadas — e que se realizam no encontro entre a lin-
tônicos e abstratos do pensamento composicional negro, guagem escrita e a linguagem visual de modos e geografias
como define Torkwase Dyson; aos espaços de vigilância e os mais diversos: nos mais de 30 mil registros do Zumví —
encarceramento, metaforizados por Kapwani Kiwanga em Arquivo Afro Fotográfico, um arquivo que guarda a produ-
pink-blue [rosa-azul]; às somatizações advindas do trauma ção de Lázaro Roberto, Rogério Santos, Aldemar Marques,
da patrulha e da morte que rondam as rotas de travessia Jônatas Conceição, Geremias Mendes, Lúcio Guerreira
migratória, das quais nos recorda Guadalupe Maravilla. Ou, e Raimundo Monteiro, fotógrafos negros atuantes na
ainda, às paisagens abstratas de Deborah Azinger, compos- Bahia desde 1980; nos cartazes do Taller NN, no Peru dos
tas de cabelo crespo e dos azuis de um Caribe não idílico; anos 1980; no Taller 4 Rojo, em meio ao conflito armado
às plantations açucareiras da República Dominicana, colombiano dos anos 1970; no ativismo visual do Taller
reimaginadas por Nadal Walcott em desenhos onde o trilho de Gráfica Popular e seus processos coletivos de criação,
do trem se encontra com trabalhadores, danças e seres no México dos anos 1940; nos tecidos e ações de rua do
fantásticos; aos campos de algodão e seu papel no controle Colectivo Ayllu; nas faixas e lambe-lambes da Cozinha
colonial britânico sobre o Egito, a que nos remete Woven Ocupação 9 de Julho – mstc.
Winds — The Making of an Economy — Costly Commodities Territórios impossíveis se estendem às aldeias e a
[Ventos entrelaçados — A formação de uma economia — seus enunciados de florestania, uma possibilidade de vida
Commodities custosas], de Anna Boghiguian. cidadã dentro da floresta, como propõe Ailton Krenak,11 e se
Essa cartografia impossível, onde se localiza boa pode inferir dos desenhos fantásticos e “eróticos” de Gabriel
parte das proposições artísticas que dão corpo à 35a Bienal Gentil Tukano; da filmografia das práticas cotidianas reali-
de São Paulo, não resulta de um movimento curatorial zada por Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami
expansivo, nem de uma busca enciclopédica pelos quartos e Roseane Yariana Yanomami; bem como da Floresta de infini-
de despejo9 do mundo. Tampouco faz residência, embora tos, povoada por inquices, orixás, caboclos, bichos e humanos
boa parte dos participantes desta Bienal proceda dessa encantados, proposta por Ayrson Heráclito e Tiganá Santana.
região austral do mundo, no chamado Sul Global — conceito Territórios que se coadunam ao quilombo, simultaneamente,
que, desprovido de uma analítica da racialidade10 como espaço e operação ética, “a continuidade de vida, o ato de criar
princípio ordenador das iniquidades fundantes da moder- um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso.
nidade, acaba por escamotear desigualdades “internas” Uma possibilidade nos dias da destruição”,12 na feliz defini-
irreconciliáveis, tornando-se demasiado abrangente. ção de Beatriz Nascimento — e que ressoa no arquivo vivo do
Esses espaços impossíveis aos quais nos referimos Quilombo do Cafundó.
se situam, antes, nos territórios nativos, existenciais, espi- Essas coreografias do impossível acontecem, elas
rituais e ancestrais que encontram maneiras de coreogra- mesmas, em um território impossível chamado Brasil. E
far o impossível em que vivem, concebendo seus próprios em um contexto igualmente impossível — nos quatro anos
instrumentos, movimentos e linguagens. Territórios que que antecederam esta 35a Bienal, 570 crianças Yanomami
foram mortas por contaminação por mercúrio, desnutri-

9/ Carolina Maria de Jesus (1960), Quarto de despejo: diário de uma favela-


da. 10. ed. São Paulo: Ática, 2019. 11/ Ailton Krenak, Futuro ancestral, pesq. e org. Rita Carelli. São Paulo:
10/ Sueli Carneiro, Dispositivo de racialidade: a construção do outro como Companhia das Letras, 2022.
não ser como fundamento do ser. São Paulo: Zahar, 2023; Denise Ferreira 12/ Maria Beatriz Nascimento, Beatriz Nascimento, quilombola e intelec-
da Silva, Homo Modernus:para uma ideia global de raça, trad. Jess Oliveira tual: possibilidade nos dias de destruição, org. e ed. União dos Colectivos
e Pedro Daher. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022. Pan-Africanistas (UCPA). São Paulo: Filhos da África, 2018, p. 190.
ção e fome neste país, segundo dados do Ministério dos Esse conjunto possibilita destacar, quero crer, o intenso
Povos Indígenas.13 Esse, entre outros tantos e inumeráveis trânsito entre linguagens, realçando experimentações
impossíveis que se cotidianizam neste lugar, choca espe- formais que embaralham as delimitações, por exemplo,
cialmente pela reencenação do momento seiscentista de entre artes visuais, arquivo e práticas de resistência.
invasão europeia — o loop de um tempo que jamais passou. Como não lembrar do cinema-palco de Marlon Riggs,
Como canta Gilberto Gil: “aqui é o fim do mundo”.14 ousando declamar poemas de amor entre bichas pretas
A urgência e a persistência de tais questões levaram e pessoas vivendo com hiv, em plenos anos 1980? Ou
estas coreografias do impossível a pôr em relevo uma série de da “câmera dos despossuídos” de Kamal Aljafari, expan-
artistas, coletivos, personagens históricos, arquivos, poetas dindo a possibilidade de fazer cinema utilizando-se de
e organizações sociais, movidos pela possibilidade radical, filmagens improváveis, feitas por câmeras de segurança,
como propõe Denise Ferreira da Silva, de “pensar o mundo registradas pelo exército de Israel ou comissionadas por
Outra-mente”.15 Implicados em movimentos de criação de agências de publicidade do Estado? As maneiras expan-
entre-espaços e entretempos, ainda que efêmeros, férteis didas de diálogo entre diferentes linguagens encontram
à prática de geração e transmutação de vida. Que atendem guarida também nas instalações “cinematográficas” de
“ao mandato ético de desafiar nosso pensamento, de liberar Kidlat Tahimik, onde as histórias de Igpupiara e Syokoy,
nossa imaginação e dar boas-vindas ao fim do mundo como seres das mitologias indígena-brasileira e filipina, são
nós o conhecemos, isto é, a descolonização, que é o único contadas por meio de assemblages em tudo similares a
nome adequado à justiça”,16 ainda nos termos de Denise. um roteiro de filme. Cineastas como Sarah Maldoror,
Amos Gitaï, Leilah Weinraub e Trinh T. Minh-ha; poetas
como Gloria Anzaldúa, Ricardo Aleixo e Raquel Lima —
●●● para quem os campos das artes visuais, do corpo e da
escrita caminham de mãos dadas —, são outros exemplos
de práticas que se desenvolvem em trânsito.
Como numa coreografia de retornos, as obras apresentadas Tal diversidade guiou a proposta curatorial de
nesta 35a Bienal foram concebidas entre o século 17 e 2023 organizar os trabalhos em vizinhanças expográficas que
— embora as proposições e provocações que ensejam, em privilegiam afinidades sensíveis, conexões de ordem mais
diálogo e relação, excedam e invalidem tais datações. E se propriamente poética do que guiadas por aproximações em
realizam em múltiplas linguagens, trafegando entre o cinema, núcleos temáticos, por tipos de linguagem, propriedades
as artes visuais, a música, a arte ritual, a dança e a poesia, formais ou matéricas. Tampouco por orientação cronoló-
entre outras que mal se encaixam nas categorias mais ou gica. São arranjos que permitem realçar outras genealogias
menos habituais. do contemporâneo, trançados que não foram incorporados
ou subsumidos à teleologia constitutiva da história da
13/ Ministério dos Povos Indígenas, “Presidente Lula convoca ação arte, e que fazem encontrar, por exemplo, as amarrações,
emergencial interministerial na TI Yanomami”. , 20 jan. 2023. Disponível torções e telas-corpo do vocabulário escultórico de Sonia
em: www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2023/01/presi- Gomes, os inextricáveis tramados de cordas e tecidos das
dente-lula-convoca-acao-emergencial-interministerial-na-ti-yanomami .
Acesso em: 7 jul. 2023. densas composições de Judith Scott, com as linhas, verga­
14/ “Marginália II”, canção de Gilberto Gil e Torquato Neto, do álbum lhões, poesia e dança amalgamados nas instalações de
Gilberto Gil, 1968, São Paulo, Philips Records. Julien Creuzet. E, por isso, se declinam na configuração de
15/ Denise Ferreira da Silva, op. cit. um espaço expositivo avesso à linearidade, composto de
16/ Id., Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo: Croco- ritornelos, reaparições imprevistas; sem um trajeto prede-
dilo, 2021, p. 198. terminado ou um sentido ideal de direção.

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“O tempo, em sua dinâmica espiralada”, conta Leda, “só mentação de qualidade, resultante de uma cadeia produ-
pode ser concebido pelo espaço ou na espacialidade do tiva responsável.
hiato que o corpo em voltejos ocupa. Tempo e espaço tor- Tais propostas curatoriais decorrem de uma com-
nam-se, pois, imagens mutuamente espelhadas”.17 preensão de nosso grupo — composto de minhas colegas
O projeto de arquitetura para a 35a Bienal, desen- Diane Lima, Grada Kilomba, meu colega Manuel Borja‑Villel
volvido em parceria com o escritório Vão, privilegiou, e eu —, em diálogo com os assistentes curatoriais Sylvia
assim, a construção de uma dinâmica entre espaços Monasterios e Tarcisio Almeida, como uma tentativa de
amplos e delimitados, alternando movimentos de contra- desarranjar as estruturas verticais de poder e seus modos
ção e de abertura, sístoles e diástoles. O partido arquitetô- imperativos de funcionamento.
nico se inspira fundamentalmente nas formas curvilíneas Deriva desse encontro uma concepção das coreogra-
do edifício — o mezanino e vão central. Os contornos fias do impossível como uma Bienal — na forma de exposi-
desses espaços, quando somados, resultam em um corpo ção, publicações, residências artísticas, programa público
arquitetônico que busca desobedecer à ortogonalidade de debates, ações performativas, mediações e ações educa-
estruturante do Pavilhão, funcionando de modo invertido cionais e redes de colaboração com espaços autônomos de
em cada pavimento. Em um andar, a periferia externa ao arte e pensamento — que é também uma plataforma para
espaço oco é repleta de salas fechadas; no outro, o espaço práticas de redistribuição, um laboratório aberto à experi-
central é ocupado por galerias fechadas, enquanto seus mentação, aos exercícios de gestão coletiva. Uma encruzi-
arredores se abrem em um amplo espaço não seccionado. lhada, nos termos de Leda Maria Martins, outra vez:
Buscamos desdobrar esse conceito também nos
locais de convivência e de encontro que permeiam o a possibilidade de interpretação do trânsito sis-
espaço das coreografias do impossível. Projetos de natureza têmico e epistêmico que emerge dos processos
gregária, que funcionam a um só tempo como instalação, inter e transculturais, nos quais se confrontam e
lugar expositivo e espaço aberto a encontros — como o se entrecruzam — nem sempre amistosamente —
Assay, proposto pela dupla Nadir e Soumeya; os tetraedros práticas performáticas, concepções e cosmo-
re/des/montáveis que conformam Metafísica dos elementos visões, princípios filosóficos e metafísicos,
— O E/Studio, de Denise Ferreira da Silva; o Parliament of saberes diversos, enfim.18
Ghosts [Parlamento de fantasmas], de Ibrahim Mahama; e
a Sauna lésbica, organizada por Malu Avelar com Ana Paula Nem sempre amistosamente, as coreografias do impossível
Mathias, Anna Turra, Bárbara Esmenia e Marta Supernova podem, quero acreditar, revolver o chão sobre o qual se
—, são exemplos dessas diástoles que se espalham entre os assenta este mundo em colapso. Alterando-lhe o ritmo,
andares expositivos. revertendo-lhe a cadência, essas encruzilhadas do tempo
O mesmo se pode dizer da presença da Cozinha realizam o impossível: trazem outra vez ao baile o tudo-
Ocupação 9 de Julho – mstc — a partir de suas formas -pode-ser dos tempos ainda não vividos.
espirais e tecnologias coletivas de governança, gesta-
das no prédio homônimo ocupado pelo Movimento dos
Sem Teto do Centro (mstc), em São Paulo —, que cria um
entre-espaço no qual se fundem comida, cultura visual
das ruas, o debate­-em-prática do direito à cidade e à ali-

17/ Leda Maria Martins, op. cit., p. 134. 18/ Ibid., p. 51.
seis momentos para um tempo outro
manuel borja-villel

1. Cairo. 14 de março de 1932. A pedido do rei Fuad I, do A derrubada da dominação, a subversão ela
Egito, um importante congresso internacional é organi- mesma, depende do ato decisivo de voltar-se
zado para discutir e documentar as tradições sonoras do infinitamente contra as próprias fundações e
mundo árabe. Depois de conquistar a independência do as próprias origens, aquelas origens minadas
Reino Unido em 1922, o governo egípcio está empenhado por toda a história da teologia, do dom divino e
em afirmar sua identidade mostrando uma história que do patriarcado, se é possível definir assim as
se diferencie da inglesa e que sirva como um exemplo de contribuições permanentes e estruturais desse
modernização para a cidadania. A convenção contou com mundo árabe. É esse abismo, esse desconhe-
a participação de acadêmicos e músicos do Magrebe e do cimento de nossa decadência e nossa depen-
Oriente Médio, como Muhammad Fathi, Ali Al-Darwish, dência, que deveria ser trazido à luz, de algum
Rauf Yekta Bey e Mohamed Cherif, além de compositores modo nomeado em sua destruição e transforma-
europeus como Béla Bartók e Paul Hindemith. ção para além de suas possibilidades.2

Uma das conclusões mais importantes dessa reunião foi Em um artigo intitulado “What it Means to Curate for My
solicitar que se restringisse a improvisação e que se padro- Native American Community” [O que significa fazer cura-
nizasse seu sistema de afinação, que não era temperado. doria para minha comunidade nativa norte-americana],
O delegado do governo no congresso, Muhammad Fathi, a pesquisadora e ativista Tahnee Ahtone, do povo Kiowa-
recomendou que os grupos musicais da região usassem Muscogui-Seminola, se pergunta acerca da forma como as
instrumentos ocidentais, que ele acreditava terem qualida- culturas indígenas foram incluídas nos museus estaduni-
des expressivas superiores. Se a música vernácula egípcia denses.3 Ela não duvida das boas intenções de seus cole-
havia produzido o que um comentarista britânico chamou gas, mas questiona se havia uma vontade real de mudar
de “terrible sounds” [sons horríveis], agora a harmonia as estruturas. Ahtone lamenta que os curadores indígenas
estava garantida. A reinvenção constante das regras tam- muitas vezes sejam forçados a desenvolver suas carreiras
bém foi limitada, favorecendo a normatização e o controle em um sistema que é alheio aos costumes e às formas de
estatal. Alterava-se a narrativa, reivindicava-se o nacional, fazer de suas comunidades.
mas mantinha-se a conformação do pensamento ociden- Quando alternativo ou independente é usado ape-
tal. Isso permitiu a participação, desde que ocorresse nas como um estilo, ele não designa nada fora da cultura
conforme parâmetros preestabelecidos e pretensamente convencional. Uma visita a algumas das feiras, exposições
científicos de ordenação e classificação − e também de e museus de arte confirma isso. O racismo é denunciado,
posse e destruição.1 a racialidade é reivindicada, mas essa crítica tende a
Sabemos que os processos de descolonização não se referir a padrões estabelecidos, que não apenas não
têm sido sempre bem-sucedidos e que, inclusive, podem questionam o que torna o racismo possível, mas o revali-
levar a períodos contrarrevolucionários. Assim, é essen- dam. Isso não implica uma mudança de paradigma, pois a
cial saber por que fracassaram e analisar suas causas e dominação permanece intacta. Quando certas abordagens
consequências. Daí resulta a relevância do que o pensador
marroquino Abdelkebir Khatibi (1938-2009) denominou
“crítica dupla”, ou seja, o questionamento contínuo da 2/ Abdelkebir Khatibi, Plural Maghreb: Writings on Postcolonialism (1974).
razão colonial e de nossa posição em relação a ela. Londres: Bloomsbury Academy, 2019, pp. 26-27. Tradução nossa.
3/ Tahnee Ahtone, “What it Means to Curate for My Native American
Community”. Hyperallergic, dez. 2021. Disponível em: hyperallergic.
1/ Agradeço a Philip Rizk por compartilhar comigo sua pesquisa sobre com/702775/what-it-means-to-curate-for-my-native-american-commu-
essa conferência. nity/. Acesso em: 2 jul. 2023.

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se tornam moda, quando uma obra de arte se torna um 2. Londres. 1º de maio de 1851. O Crystal Palace, a
produto separado do contexto no qual teve origem, quando fantástica arquitetura de Joseph Paxton (1803-1865), é
não entendemos que somos todos parte de um ecossistema inaugurado no Hyde Park. Com ele, pode-se dizer que
compartilhado no qual nada é nosso, quando se valida a tem início o fenômeno das grandes exposições, que
separação sujeito-objeto, a relação senhor-escravo se man- substituíram as feiras locais, aproveitando a ocasião
tém, independentemente de as imagens retratadas serem para evitar a desordem e os distúrbios sociais que elas
afro-americanas ou de povos autóctones. provocavam. Sob o olhar hipnótico do espetáculo, ser-
Trata-se de transformar a história, não apenas de viram para regenerar as cidades e fortalecer o orgulho
se lembrar dela. Isso requer a reformulação da governança nacional, construindo um senso de unidade enganoso
das instituições, compreender o papel do artista em cada entre classes e grupos desiguais.
sociedade e reconhecer que não podemos falar do fato
artístico de uma perspectiva moderna, ou seja, como se As grandes mostras surgiram logo após o que, aparente-
fosse um objeto universal e infinitamente intercambiável. mente, era seu oposto: o panóptico, que foi imposto a par-
Não devemos nos esquecer de que em algumas línguas tir do século 18 no sistema prisional ocidental. O Crystal
indígenas, como a maia, a palavra arte sequer existe. Para Palace era aberto, não se baseava no confinamento nem
se referir à prática artística, as línguas maias usam outros em uma visão unidirecional. Do lado de fora, era possível
termos que têm a ver com a cura, a biosfera, a tradição ou ver o que ocorria em seu interior, e, do lado de dentro,
o que é feito com as mãos, e que se aplicam a coisas que podia-se distinguir o que acontecia no exterior. O olhar
pertencem a todos e, portanto, são inseparáveis de sua tornou-se onipresente e a vigilância externa deixou de ser
comunidade e de seu território. Da mesma forma, para as essencial, porque tudo estava disponível para todos. Assim
culturas iorubás, o prazer estético não está separado da como na prisão, o controle era exercido pelo sujeito sobre
funcionalidade de suas canções ou de suas danças, de seus si mesmo.
artesanatos, de suas esculturas, suas representações sim- O espectador observava de um local que preten-
bólicas, suas ciências ou música. Como nos relembra Leda dia ser neutro. Ao serem atravessados por uma perspec-
Maria Martins, enquanto no Ocidente o triunfo do econô- tiva única, os corpos não existiam como tais, mas eram
mico sobre o espírito imaginativo possibilitou a terrível transparentes. Entretanto, essa transparência ocultava os
ruptura entre a vida e a arte, para os iorubás o prazer esté- conflitos e tornava impossível distinguir os mecanismos
tico se agrega e não se dissocia de uma compreensão ética por meio dos quais os enunciados eram produzidos, inter-
fundamental, constitutiva de todas as qualidades do fazer.4 pretados e distribuídos. Com a modernidade, a experiência
Isso implica uma mudança radical com relação às formas deixou de ser uma irrupção do desconhecido, tornando-se
eurocêntricas de colecionar, ordenar, exibir e explicar. cativa de um design geral totalizante que causava a perda
das esferas relacionais e performativas.
No sistema cognitivo de muitos povos, as palavras
são investidas de eficácia e de poder. Para isso, elas se
expressam por meio de circunlocuções, das diferentes
sonoridades da voz e do movimento do corpo. Elas não
apenas representam uma coisa, elas são a própria coisa.
Elas contêm aquilo que evocam. Ao contrário do que a
modernidade acreditava, o conhecimento não é guardado
4/ Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo- apenas em bibliotecas, museus, arquivos ou monumen-
-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, pp. 70-71. tos oficiais, mas constantemente revivido e recriado por
meio de repertórios orais e corporais, gestos e hábitos.5 gem uma ruptura com a camisa de força do dispositivo
Esse caráter performativo permeia as obras exibidas moderno, fugindo da transparência e do optocentrismo
em coreografias do impossível. característicos dos “Palácios de Cristal”. Não há separação
Em seu sentido etimológico, o substantivo coreogra- entre sujeito e objeto. Assim, as “paisagens” de Gallagher
fia significa inscrição no espaço. Os gregos, cuja cultura foi e Cleijne em Highway Gothic (2017) fazem parte de uma
menos a origem da civilização ocidental do que a conti- memória comum, não são experiências externas ao ser
nuidade de uma série de conhecimentos que já existiam humano. Da mesma forma, o Auto Sacramental Invisible
no Oriente e na África, distinguiam dois termos para se [Auto sacramental invisível] (2020), de Niño de Elche, ins-
referir ao lugar: topos e chora. O primeiro responde a uma pirado em uma composição de 1949 do artista e inventor
noção aristotélica que é estática e envolve a dissociação espanhol José Val del Omar (1904-1982), é material e mís-
entre agente e espaço. É possível mover-se livremente pelo tico. Esse é o caso de Between the Waves [Entre as ondas]
espaço, mas não sair dele, pois o espaço é sempre idêntico. (2021), de Tejal Shah, uma máquina desejante, na qual
Por outro lado, chora é um conceito platônico que implica tempos e gêneros fluem e o ancestral é atual. Nela, se apre-
uma relação dinâmica entre ser e lugar, não há separação sentam poemas e imagens que interrogam o espectador,
entre um e outro. Ambos formam uma dança de encontros devolvendo seu olhar a si mesmo, solicitando que reflita
e deslocamentos, que nos ensinam a nos relacionar com o acerca de sua capacidade de percepção.
que sabemos e, sobretudo, com o que ignoramos sobre nós As vozes, imagens e objetos nessas e em outras
mesmos e sobre os outros. peças são fragmentos de um todo, sempre incompleto, que,
A hegemonia da escrita sobre outros modos de a cada vez, tem de ser atualizado. Não são exibidos para
comunicação foi absoluta a partir do século 16. Apontemos que o visitante se reconheça neles, nem para explicar uma
uma coincidência histórica notável: a publicação na ordem superior, mas para introduzir elementos de ruptura
Espanha, em 1492, ano da chegada dos espanhóis à em seu modo de ser e agir, gerando reconfigurações políticas
América, da Gramática de Nebrija, que foi fundamental e epistemológicas alternativas, unindo tipos muito diferen-
para transformar a língua em um instrumento de controle tes de conhecimento. Assim, a Bienal não é organizada de
e de conquista. A regulamentação, então recém-introdu- acordo com afinidades temáticas, formais ou cronológicas.
zida, evitava variações constantes e foi fundamental na Um artista conceitual como stanley brouwn, que trabalhou
tentativa de suprimir os conhecimentos considerados na Europa na segunda metade do século passado, pode fazer
heréticos e indesejáveis pelos europeus.6 sentido, por exemplo, com um artista estadunidense de
Soletrar ou grafar um conhecimento é sinônimo quadrinhos do início do século 20, como George Herriman
de uma experiência que encontra seu local de inscrição (1880-1944). Ou um espaço como a Cozinha Ocupação 9
no corpo em performance, não no domínio de uma lin- de Julho – mstc pode se aproximar da dança butô do filme
guagem escrita alfabeticamente. Muitos dos participantes Meditation on Violence [Meditação sobre a violência], reali-
da 35ª Bienal, como Tejal Shah, Niño de Elche, Pauline zado por Maya Deren (1917-1961) em 1948. Essa coreogra-
Baudry e Renate Lorenz ou Ellen Gallagher e Edgar Cleijne, fia, que reúne práticas artísticas eruditas e locais, propõe
projetaram instalações que vão além do binômio cubo uma insurreição do conhecimento.
branco/caixa preta. Elas se transformam continuamente,
incentivam a mobilidade consciente do público e exi-

5/ Ibid., p. 40.
6/ Ibid., p. 34.

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3. Pavilhão da Bienal, Ibirapuera. 6 de setembro relato histórico também é história, não apenas crônica ou
de 2023. Uma mulher vestida com um traje tradicional descrição. No pedestal permanecem as pegadas dos pés, da
maia de San Juan Sacatepéquez, Guatemala, está de pé ação, o pódio se mantém, mas não a figura que oprime por
sobre uma base de cimento cuja superfície ainda está conta do poder que detém; não é algo que se transmite ou
fresca. À medida que o material seca, seus tornozelos que se exerce, ele só existe na ação.7 Dessa forma, a artista
afundam no cimento e ficam cobertos, e ela permanece guatemalteca questiona tanto a linguagem da opressão
como um monumento. Antes que o cimento se solidifi- quanto a opressão da linguagem. Ela propõe uma espécie
que, ela desce do pedestal. Agora, não há nenhuma figura de contra-história, expondo a maneira como as relações
comemorativa. Uma placa em sua base parece assumir de poder ativam certos dispositivos de conhecimento
essa função. Nela se lê: “Liberdade para os rios, as colinas, e políticas de verdade. Esses dispositivos consistem na
as montanhas, as flores e os lagos!” A ação é uma recria- capacidade de contar a história de outras pessoas e, ao
ção de uma peça intitulada Monumento vivo, que a artista mesmo tempo, convertê-la na história definitiva dessas
de origem maia-caqchiquel Marilyn Boror Bor realizou na pessoas.8 Começar a história do continente que conhece-
praça Central da Cidade da Guatemala, em 2021. mos como América com a chegada de Cristóvão Colombo
não é o mesmo que iniciá-la com as comunidades que
Os memoriais estão na moda, tanto no que se refere à sua originalmente o povoaram, assim como começar a história
construção quanto à sua demolição. Uma tendência natural da África com o fracasso do Estado africano não é o mesmo
e lógica de qualquer sociedade reprimida é tentar derrubar que começá-la com sua criação colonial.
os símbolos daqueles que a subjugam. Entretanto, uma Boror denuncia o perigo da história única, porque
coisa é remover, do espaço público, os monumentos dos não ser reconhecido por ela ou não aceitar seu reconhe-
repressores, outra, bem diferente, é amputar a história. Essa cimento condena a pessoa à não existência. Todas as
supressão é muitas vezes a maneira pela qual uma ordem exclusões, opressões, desprezos e espoliações derivam
de poder se camufla e sobrevive. Depois de 1989, a maioria desse despejo. Mas também as heresias e as dissidên-
dos países que constituíam o bloco soviético destruiu ou cias, as críticas e a criação de mundos insubmissos. Os
escondeu quase todos os monumentos referentes ao antigo “sem história” são tanto aqueles que são expulsos por ela
regime. Isso não significa que a oligarquia tenha deixado de quanto aqueles que resistem à sua captura. Assim foi com
existir na Rússia e em outros países. Os grandes monopólios as civilizações que não entraram no que foi considerado a
substituíram o aparato do Partido. genealogia legítima da cultura ocidental. “Como suportar o
O monumento de Boror não se destina a um ser nada? Como resistir não sendo?”, pergunta Marina Garcés
superior que se eleva acima dos demais. Ele foi erguido no epílogo da edição em espanhol do livro de Chimamanda
para aqueles que aparentemente não têm história e para Ngozi Adichie, O perigo de uma história única.9
os não humanos. Ele propõe a ideia de uma sociedade
na qual não há separação entre comunidade e território,
e na qual nossos vínculos com outras espécies se reconfi-
guram. A sustentabilidade de nossas vidas está enraizada
em uma política de cuidado e afeto, e se opõe à noção de
7/ Michel Foucault, Genealogía del racismo. Madri: Las Ediciones de la
crescimento indefinido que tem distinguido a sociedade Piqueta, 1992, p. 28.
ocidental há séculos. 8/ Chimamanda Ngozi Adichie, El peligro de la historia única. Barcelona:
O testemunho que nos oferece esse monumento de Penguin Random House, 2019, p. 19. [Edição brasileira: O perigo de uma
Boror não está nem no centro nem fora dos conflitos. Sua história única, trad. Júlia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.]
verdade se baseia no fato de ele ser parte do problema. O 9/ Ibid., pp. 43-44.
4. Chiapas. 21 de dezembro de 2012. Marcha do para a frente e para trás simultaneamente, sempre em
Silêncio. Quarenta e cinco mil zapatistas ocupam processo de prospecção e retrospecção, de lembrança e
pacificamente e de surpresa alguns dos municípios que devir.12 Tempo e memória são imagens que se refletem.
tomaram à força em 1994. A manifestação ocorre sem Elas configuram um conhecimento enigmático, que nos
proclamações ou cantos. Durante algumas horas, uma captura ainda que seu significado nos escape, porque ten-
multidão de homens e mulheres encapuzados marcha tar apreender um enigma significa compreender as manei-
pelas praças, com seus passos compondo efêmeras ras pelas quais aquilo que não pode ser visto se manifesta.
formas em espiral. A data é reveladora, pois marca o fim Toda lembrança pode provocar um acontecimento ines-
do mundo no calendário maia e anuncia o início de uma perado que supõe uma abertura para futuros não inimagi-
nova era para os povos oprimidos. nados. Passado e futuro não são parte de um continuum, e
sim interrupções. Isso é fundamental para comunidades e
A modernidade confundiu realidade com visão e, ao raças que viveram escravizadas e que tiveram de se mover
fazê-lo, transformou toda a epistemologia em estética. O entre impossibilidades, entre o que se esperava delas e o
mundo moderno não era o resultado do escrutínio ou da que de fato faziam.
análise de certos traços ou vestígios, e sim uma verdade
evidente, porque percepção e representação eram a mesma Suas epistemes e todo um complexo corpo de
coisa.10 Isso produziu uma falsa ideia de espaço e tempo. conhecimentos e valores foram reterritoriali-
Este último respondia a uma concepção linear, progressiva zados, reimplantados, refundados, reciclados,
e teleológica do Universo. Imaginava-se o espaço como um reinventados, reinterpretados, nas inúme-
terreno vazio a ser conquistado. Um não lugar abstrato e ras encruzilhadas históricas derivadas des-
colonial, incapaz de admitir que, nos territórios ocupados sas jornadas.13
pelo homem moderno, já existiam outros seres humanos e
formas de vida.11 Em uma canetada, foram apagadas todas
as catástrofes ecológicas, tragédias pessoais e fraturas
sociais causadas pela pilhagem de recursos. Em contrapar-
tida, depois de alguns anos de pouca atividade pública, o
Exército Zapatista de Libertação Nacional (ezln) ressur-
giu anunciando um tempo e um espaço próprios, os dos
Caracoles ("caracóis"), denominação dos distritos governa-
dos pelos zapatistas em Chiapas. Não houve discursos por-
que há uma linguagem que não é discursiva nem narrativa,
é a linguagem do corpo vivo.
O tempo reivindicado pelos zapatistas se opõe à
ideia de cronos do calendário ocidental, no qual o tempo
consiste meramente em uma sucessão de eventos. O tempo
da Marcha do Silêncio é, como diz Leda Maria Martins em
outro contexto, espiral, uma temporalidade que se curva

10/ Rolando Vázquez, Vistas of Modernity: Decolonial Aesthesis and the End
of the Contemporary. Amsterdã: Mondrian Fund, 2020, p. 26. 12/ Leda Maria Martins, op. cit., p. 23.
11/ Ibid., p. 34. 13/ Ibid., p. 45.

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5. Estados Unidos. Final do século 19. “Se eu não ainda incipiente.17 A partir de então, essa subordinação
posso dançar, não estou interessada em sua revolu- só cresceu e constitui a base da necropolítica atual em
ção.” Essa frase é atribuída à ativista feminista Emma escala planetária.
Goldman (1869-1940), quando um colega a repreendeu A dança é o lugar no qual os fantasmas reprimidos
por dançar. pela história podem aparecer. Bojana Kunst explica que,
pelo fato de não estar preso a nada, sempre no limite da
Admiradora de um Nietzsche “rebelde e inovador”, fixação de sua imagem, exposto a desaparecer a qualquer
Goldman proclamava que “a revolução nada mais é que momento, o corpo performático interfere nos modos ins-
um pensamento em ação”.14 Revelava assim a natureza de tituídos de figuração. Os seres excluídos podem emergir
uma história que, apesar de todas as rupturas revolucio- por meio desse corpo que dança, descobrindo movimen-
nárias que pudesse conter, ainda era concebida como um tos e gestos esquecidos ou reprimidos. O passado revive
processo evolutivo contínuo. Reivindicava uma história em nós por meio da dança. Por isso, seus movimentos
contada por meio do movimento da dança. Ou seja, uma e ritmos constituem uma práxis política. Na década de
história diferente, com suas leis paradoxais, singularidades 1940, as coreografias que Katherine Dunham (1909-2006)
irredutíveis, diferenças sexuais inauditas e incalculáveis.15 criou com base em sua pesquisa antropológica realizada
O capitalismo teve origem, entre outras causas, no Caribe seriam um exemplo claro disso. Eram guiadas
na expropriação de terras comunais. Uma vez que isso foi por um impulso de denúncia que se escondia nas costu-
consumado, ao menos parcialmente, houve outro objeto ras e rachaduras de um sistema de conhecimento esta-
e forma de expropriação, a dos corpos, que teve início no belecido. Em suas danças, o corpo brilhava sem forma,
decorrer do século 17. Como aponta Silvia Federici, isso foi e a alegre tensão entre presença e desaparecimento agia
facilitado pela reorganização do Estado e da Igreja, pelos livremente.18
critérios filosóficos de René Descartes e Thomas Hobbes,
bem como pelas novas ciências da anatomia e da estatísti-
ca,16 levando a um disciplinamento do corpo que visava a
transformá-lo em mera ferramenta de trabalho, um objeto
que poderia ser usado, trocado ou até mesmo destruído de
acordo com a vontade de seu proprietário ou senhor. Em
suma, tratava-se de tornar os corpos submissos e obedien-
tes ao cronograma de trabalho capitalista, de transformar
o corpo em uma máquina, o que era particularmente
necessário em um estágio de desenvolvimento tecnológico

17/ Victoria Pérez Royo, “Corporalidades disidentes en la celebración.


14/ Jacques Derrida e Christie McDonald, “Coreografias”. Lectora: revista Fiesta y política en la escena contemporánea”, in Bárbara Hang e Agustina
de dones i textualitat, Barcelona, n. 14, pp. 157-172, 2008, p. 157. Muñoz (orgs.), El tiempo es lo único que tenemos. Buenos Aires: Caja Negra,
15/ Ibid., p. 160. 2019, pp. 138-140.
16/ Silvia Federici, Caliban y la bruja: mujeres, cuerpo y acumulación origi- 18/ Bojana Kunst, “Los cuerpos autónomos de la danza”, in Bárbara Hang
naria. Madri: Traficantes de Sueños, 2018, pp. 183-221. e Agustina Muñoz, op. cit., pp. 58-59.
6. São Francisco, 1987. Aunt Lute Books publica o livro Posso pertencer não pertencendo? Ser um cida-
de Gloria Anzaldúa, Boderlands/La Frontera: The New dão, sim, mas de segunda classe. Por acaso isso
Mestiza. Esse livro é ensaístico, autobiográfico, combina não é pertencer por não pertencer, ou melhor,
poesia e prosa, é escrito em vários idiomas (espanhol, pertencer fingindo pertencer? Essas ainda são
inglês, nahuatl, tex-mex, chicano e pachuco) e aborda a duas posições em tensão que deveriam ser
ideia de fronteira, de limites e divisões. Um dos poemas mutuamente exclusivas e, no entanto, são duas
do livro começa e termina com as seguintes linhas: posições cuja sobreposição molda uma identi-
dade social.20
Viver nas Borderlands
Significa que você Acostumados como estamos ao fato de que somente aque-
Não é uma hispana indígena negra espanhola les que habitam um território têm narrativa própria, não
Nem gabacha, você é mestiça, mulata, meia casta conseguimos construir uma história na qual as narrati-
Presa no fogo cruzado entre os dois bandos vas tenham mais a ver com relacionamentos do que com
Enquanto carrega as cinco raças nas costas identidades. Ao contrário dessas últimas, as narrativas
Sem saber para qual lado se voltar, de qual não são fixas. Além de categorias reducionistas como "arte
lado fugir americana", "latino-americana" ou até mesmo conceitos
mais recentes como “afro-americana”, devemos falar
[…] sobre os fluxos e os encontros que ocorreram em ambos
os lados do Atlântico. Por outro lado, enquanto Foucault
Para sobreviver nas Borderlands entendia a imobilização de pessoas na prisão como uma
Você deve viver sem fronteiras forma de controle, o controle hoje é exercido com base na
Ser uma encruzilhada19 mobilidade. A diáspora se tornou um estado de deportação
permanente, que é a condição de muitas pessoas sem voz
Anzaldúa argumenta que é necessário desenhar um mapa na história.
que faça jus à realidade territorial da fronteira, esse lugar As migrações forçadas, as realocações planejadas,
transgeográfico e trans-histórico onde ocorre a recons- os exílios fazem parte da nossa condição. Os silêncios da
trução das identidades coletivas da diáspora ou daqueles história são marcados por isso. O movimento de auto-
localizados além da colonialidade. Para isso, é essencial res que trabalharam na fronteira, que construíram uma
reduzir a escala a fim de assimilar o fato de que o território linguagem híbrida, a qual se baseia no passado ao mesmo
em conflito, pelo simples fato de ser compartilhado, abriga tempo que o subverte, a qual mantém raízes que desapa-
mais histórias do que aquelas que compõem a narrativa receram em suas regiões de origem, é irrefreável. Essa lin-
nacional. Essas histórias são alimentadas pelo que cada guagem encontra seu espaço na encruzilhada, que é “um
um nega do outro e, entre a negação mútua, cria-se o lugar sagrado de intermediação entre diversos sistemas
espaço no qual o rumor da narrativa da população expulsa, e instâncias de conhecimento”. 21 Na cosmogonia iorubé,
que foi suprimida e que é estabelecida contra a corrente essa encruzilhada é representada por Èsù, que é constitu-
dos outros, toma forma. tivo de tudo, do material e do sobre-humano, do feminino e
do masculino. Não em um sentido binário, mas em fluxo, já

20/ Martha Palacio Avendaño: Gloria Anzaldúa: poscolonialidad y feminis-


19/ Gloria Anzaldúa, Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Fran- mo. Barcelona: Gedisa Editorial, 2020, pp. 67-68. Tradução nossa.
cisco: Aunt Lute Books, 1987, pp. 261-62. Tradução livre. 21/ Leda Maria Martins, op. cit., p. 51.

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que não pode ser classificado em nenhuma categoria. Èsù “extramusicais” [...] precisamente porque ouvi-
representa a ontologia do tempo na cosmogonia iorubá, mos algo neles que nos lembra que nosso desejo
pois ele é, em si, a própria ontologia, o tempo que se dobra de harmonia é arbitrário e, em outro mundo,
para a frente e para trás. a harmonia soaria incompreensível. Ouvir a
A reinvenção de novas subjetividades, olhares que cacofonia e o ruído nos diz que há um além
impedem a dominação colonial que ocorre contra aqueles selvagem nas estruturas que habitamos e que
que são rejeitados por causa de sua raça ou orientação nos habitam.23
sexual, é inescapável. Resistir ao discurso da vergonha
e buscar estratégias para reescrever a história são atos
políticos radicais, que rompem com muitas das divisões
epistemológicas estabelecidas e unem autores de diferen-
tes continentes, gerando cartografias inesperadas.
Em sua introdução ao livro de Stefano Harney e
Fred Moten, Jack Halberstam menciona o famoso livro
de Maurice Sendak, Where the Wild Things Are, de 1963.22
Para Halberstam, o protagonista da narrativa de Sendak
se encontra imerso em uma jornada para um mundo que
não é mais aquele que ele deixou, mas também não é
aquele para o qual ele originalmente pretendia voltar. Esse
é, segundo Halberstam, o elemento mais importante do
texto de Harney e Moten. Não podemos realmente imagi-
nar um futuro quando partimos de uma realidade que é
intrinsecamente injusta, cuja forma de conhecimento nos é
imposta e não permite ver além de seus limites. É impossí-
vel acabar com o colonialismo se o combatermos com suas
mesmas ferramentas, com suas mesmas verdades. É inevi-
tável que nos situemos em um espaço que foi abandonado
pelo regulado e pelo normativo. É um espaço indominável
e fronteiriço que existe além da razão colonial, não é uma
utopia idílica, já existe em muitas situações: no jazz, na
improvisação da performance, no ruído, no enigma da
poética. Esse “outro lugar" está presente em nosso desejo.
Como afirma Moten:

Os sons desordenados aos quais nos referimos


como cacofonia sempre serão considerados

22/ Jack Halberstam, “The Wild Beyond: With and for the Undercom-
mons”, in Stefano Harney e Fred Moten, The Undercommons: Fugitive
Planning and Black Study. Nova York: Minor Compositions, 2013, p. 6.
Tradução nossa. 23/ Ibid., p. 7.
o impossível
diane lima

“Beleza não é luxo; ao contrário, é uma forma pelo pensamento de Christina Sharpe de que a beleza é uma
de criar possibilidade no espaço da clausura, prática e um método. “Do que a beleza é feita?",2 ela per-
uma arte radical da subsistência, o acolhimento gunta. “Atenção sempre que possível a um tipo de estética
do que é horrível em nós, uma transfiguração que escapou da violência sempre que possível — mesmo que
daquilo que é dado. É um desejo de adornar, seja apenas a organização perfeita de alfinetes."3
uma tendência ao barroco e o amor pela Se a única forma de encontrar a beleza é recusar
abundância."1 todas as impossibilidades e escapar da violência sempre que
— saidiya hartman possível, talvez essa seja uma primeira definição livre do
que possam vir a ser as coreografias do impossível. Um belo
Quando, naquele outro dia, você me perguntou por que experimento, para também citar meu arrebatamento pelo
eu disse sim ao impossível, me lembro de ter respondido modo como Hartman vê a beleza no cotidiano das vidas
quase sem pensar que foi para sobreviver: um jeito de rebeldes, um gesto que recusa o que foi dado como destino e
encontrar a liberdade ou, simplesmente, de tornar as coi- as sempre poucas opções possíveis. Uma vida que recusa a
sas mais possíveis na vida. impossibilidade, mas que “exige o impossível — reparação”.4
As perguntas “o que é o impossível” ou “o que é Acredito que ter estado na Jamaica me tocou profun-
impossível” logo saltaram pela boca, pois, se conside- damente por ser um tipo de encontro com algumas noções
rarmos o impossível a ontologia das mulheres negras, do que considero a beleza que eu, há muito, gostaria de expe-
tenderemos sempre a encarar essas perguntas com certa rienciar. Em uma das conversas que tive com a pesquisadora
intimidade e, principalmente, com absoluto senso de e cantora lírica Inaicyra Falcão, que me presenteou com
recusa, tendo em vista estar implícita em nosso cotidiano a pensamentos como “a dança é o cotidiano transformado” e
revolta contra a condição compulsória que torna o impos- “vovó era o meu mundo novo”, ela me fez reviver como os
sível mais possível para uns do que para outros. trânsitos do Atlântico negro se refazem na Bahia, ao contar
Hoje, vendo em retrospectiva os dias de trabalho como, desde pequena, nutriu um ímpeto cosmopolita ao ter
como curadora da 35ª Bienal de São Paulo a partir dos pou- acesso a todo um repertório cultural atlântico que passava
cos que ainda me restam nessa posição, permaneço com a pelo Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador.
mesma sensação que tive durante uma viagem de pesquisa O Afonjá é o terreiro onde ela aprendeu com Mãe
à Jamaica, quando entendi que, caminhando sempre com a Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo, sua avó paterna
tarefa de sobreviver, é para encontrar a beleza que desafia- e reconhecida ialorixá, a ser uma articuladora de mundos.
mos o impossível. Por lá, ficaram impressionados nomes como os filósofos
“A beauty of life” foram as palavras que comecei a franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que
repetir incansavelmente até o momento em que eu não aprenderam por meio da célebre frase de Mãe Senhora “da
podia mais discernir entre o que era a água do mar, a água porteira para dentro, da porteira para fora” como se dão as
dos olhos ou as gotas da chuva. “A beauty of life” parecia ser dinâmicas de produção e transmissão do conhecimento
a revelação de um compromisso ou de uma promessa que,
em algum momento, havia sido feita, e de que, até ali, nem
eu mesma sabia. 2/ Christina Sharpe, “Beauty is a Method”. e-flux, n. 105, dez. 2019. Dispo-
A essa altura, eu já estava totalmente contaminada nível em: www.e-flux.com/journal/105/303916/beauty-isa-method/. Acesso
em: 12 jul. 2023. Tradução livre.
3/ Ibid.
1/ Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas 4/ Saidiya Hartman, “Extended Notes on the Riot”. e-flux, n. 105, dez.
de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, 2019. Disponível em: www.e-flux.com/journal/105/302565/extended-no-
trad. Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 53. tes-on-the-riot/. Acesso em: 12 jul. 2023.

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nos espaços circulares de herança africana no Brasil. Um gravação de um disco, à publicação de um livro e à apre-
conhecimento que se aprende em performance, que faz e sentação de sua performance lírica. Mas como “toda roda
se refaz no cotidiano, em uma dinâmica participativa na de movimento se transforma em um centro irradiador de
qual se aprende com o corpo todo e não apenas por uma força e energia vibratória que expande suas fronteiras”,8
dimensão ocularcêntrica, categórica e binária entre corpo dois dias depois Falcão me escreve dizendo que o projeto
e mente. Que é dedicado a todos aqueles que habitam as havia sido batizado. Quando o li, fiquei surpresa, pois
portas5 e que ganha, com a imagem da porteira, a determi- foi a mesma expressão pela qual eu havia sido chamada,
nação do que é o conhecimento litúrgico, que deve ser com naquela noite, por uma pesquisadora que passava pela
os seus segredos preservado na comunidade de iniciados, cidade, que me explicou o significado da palavra em
e do que pode ser transmitido e recriado como expressão iorubá. Respondi ofegante a Falcão, que me contou o
intelectual e artística para a sociedade em geral. motivo da sua escolha: quando ela foi para a Nigéria, logo
Ensinamentos que Falcão incorporou ao musicali- passou a ser chamada de tokunbó. E quando passou a
zar os orikis, poemas memoriais que narram a herança dos frequentar o Ilê Axipá, os ancestrais também lhe deram o
saberes de tradição nagô-iorubá e que, antes mesmo de se título de tokunbó. “Estou sempre pairando, eu vou para
tornarem os Autos coreográficos: Mestre Didi, 90 anos,6 ou a Nigéria e venho de fora, depois estou aqui e venho de lá”.
qualquer outro dos muitos livros dedicados a Deoscoredes tokunbó: sons entre mares. Temos um título.
Maximiliano dos Santos, Alapini, supremo sacerdote no
culto aos ancestrais Egunguns, artista, dramaturgo, escri- a Mona Lisa
tor e seu pai, já mobilizavam seu desejo por uma coreogra-
fia dos deslocamentos. Eu cresci em uma cidade chamada Mundo Novo (BA), em
Com um timbre sonoro sentido na pele, as fre- uma casa com uma bela vista para duas montanhas, em
quências da voz dessa soprano dramática alcançaram que a janela era palco da minha imaginação e da minha
nas fronteiras seus mais plurais modos de expressão. De sede de descobrir o que tinha para além do vale, ou o que
sua longa carreira acadêmica refazendo os fluxos Brasil- eu poderia ver por detrás da serra. Nessa casa, cresci com
Nigéria, terminamos o dia conversando sobre como essa abundância e prosperidade e, por volta do final dos anos
trajetória havia influenciado sua “proposta pluricultu- 1980, minha mãe havia sido a primeira a realizar e con-
ral de dança-arte-educação”,7 em que os exercícios e as quistar muito daquilo que não estava largamente disponí-
tecnologias ancestrais, do aprofundamento das escutas vel na cidade como campo de possibilidades. E aquilo era
coletivas aos exercícios de coletivização dos processos muito para mim. Não sei se mais alguém da minha família
coreográficos através de movimentos cotidianos, cons- percebia da mesma maneira, então, não conto isso como
troem uma arqueologia do rodar que encontra, na voz, sua um fato, mas como um ímpeto, um fogo, um sentimento.
própria dança. Como suponho que o impossível construa sua morada no
Ao fim do dia, a única coisa da qual não falamos foi acreditar, as paredes, por mais inacreditável que possa
o título para o projeto que comissionamos e que se refere à parecer essa história, eram tomadas por reproduções de
obras clássicas da história da arte ocidental. Nas fotos dos
aniversários, bolas nas paredes contracenam com per-
5/ Dionne Brand, Um mapa para a porta do não retorno: notas sobre per-
tencimento, trad. Jess Oliveira e Floresta. Rio de Janeiro: Bolha, 2022.
6/ Deoscoredes Maximiliano dos Santos, Autos coreográficos: Mestre Didi, 8/ Id., “Tramas criativas de corpo e ancestralidade”, in Fundação Bienal
90 anos. Salvador: Corrupio, 2007. de São Paulo (org.), Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever
7/ Inaicyra Falcão dos Santos, Corpo e ancestralidade: uma proposta pluri- no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo — coreografias do
cultural de dança-arte-educação, 2. ed. São Paulo: Terceira Margem, 2006. impossível. Movimento 1. São Paulo: Bienal, 2023.
sonagens devidamente emolduradas, entre elas a Mona Isso quer dizer que é possível enxergar a vida das mulhe-
Lisa (1503), de Leonardo da Vinci; a obra Busto de homem res negras, não somente como um “inventário de violên-
(o atleta) (1909), de Pablo Picasso; Passeio ao crepúsculo cia”,10 mas como uma “arquitetura de possibilidades”,11
(1889-90), de Vincent van Gogh; além de duas naturezas- de modo a encontrarmos uma “linguagem crítica capaz de
-mortas, uma Virgem Maria com um menino no colo, um transmitir o alcance épico do ordinário negro e a monu-
palhaço e uma mulher com um cavalo — pelos dois últimos, mentalidade do cotidiano”.12
sempre tive menos apreço. Foi tanto essa vida ordinária da cosmopolita Salvador
Cresci com elas, falando com elas, nomeando-as e, que o canto lírico de Falcão transcendeu, quanto esse re/
literalmente, criando minhas próprias histórias para elas. conhecimento ordinário da produção criativa e intelectual
A Mona Lisa, claro, era a que mais nos impressionava. Ao das mulheres negras que se materializa nas muitas imagens,
cair da noite ou quando o medo de ficar sozinha aparecia, esculturas e encontros criados por Simone Leigh, que me
crescia também o medo daquele olho que nos perseguia. tornaram pronta para responder, na palestra que fizemos em
E, no caso de alguma desobediência ou inquietação, bas- colaboração com o New Local Space (nls), em Kingston, na
tava relembrar que o fantasma estava pendurado e que, se Jamaica, o que havia me levado até ali.
eu não tivesse coragem, em algum momento aqueles olhos Fomos recebidas por Deborah Anzinger, que, além
iriam me pegar. de seu trabalho com pintura, escultura, vídeo e instalação,
Não sei o que me parece ser mais impossível: ter é fundadora do nls, um espaço independente de arte que
conhecido nessa condição a Mona Lisa ou ter conseguido surgiu na garagem de um estúdio de música, por onde
fugir dela. passaram grandes nomes do reggae music que a Jamaica
Como cresci em uma casa com uma mãe comunista exportou para as muitas baías do Atlântico. Eu já conhe-
e sindicalista, e uma bisavó que, falecendo aos quase 104 cia o trabalho de Anzinger havia alguns anos, mas foi no
anos, nos deixou como herança, entre tantos ensinamen- Loophole of Retreat, grande seminário promovido por
tos, o provérbio “o amanhã é escuro”, resolvi contar essa Leigh e organizado por Rashida Bumbray, como parte da
história, pois voltei da casa de Falcão me perguntando se exposição da artista no Pavilhão dos Estados Unidos na
não foi a partir desse episódio que a beleza se transformou Bienal de Veneza, que nos encontramos pela primeira vez.
em um sinônimo de fuga para mim. Também, para desta- Penso então que mais dois outros eventos haviam
car como são múltiplos os modos como o impossível nos me levado até ali: An Unlikely Birth [Um nascimento
constitui ao longo da vida. Aquilo que Hartman, ao falar do improvável] (2018), série de Anzinger selecionada para
trabalho da artista Simone Leigh, chama de “monumentali- as coreografias do impossível, na qual a artista, ao combi-
dade do cotidiano”: nar materiais sintéticos e naturais, tensiona através da
abstração paradigmas geográficos, ecológicos e espaciais
Seu trabalho, como o meu, se preocupa com a “para desenvolver uma sintaxe que centraliza e desloca as
questão da escala: como desfazer presunções formas como a corporificação da mulher negra é colocada
sobre o caráter provinciano e estreito da vida e em paralelo à terra"; 13 e também um nascimento impro-
do trabalho das mulheres negras, de modo que
as dimensões de sua existência no mundo, sua 10/ Ibid.
contribuição, sua maneira de fazer e de agir 11/ Ibid.
possam ser recalibradas.9 12/ Ibid.
13/ Ver palestra da artista no Loophole of Retreat. Disponível em:
www.youtube.com/watch?v=mH9oGYiBGNE. Acesso em: 19 jul. 2023.
9/ Saidiya Hartman, “Extended Notes on the Riot”, op. cit. Tradução nossa. Tradução nossa.

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vável por meio da música, que foi o que de fato consegui desenvolvidos nas Maroon towns, cidades quilombolas que
dizer na palestra de abertura me referindo à chegada do se formaram nas montanhas da Jamaica desde o século 17,
reggae music à Bahia e à reinvenção, nas últimas décadas, tendo em vista a intensificação do tráfico atlântico sob o
de suas células sônicas, mediante a criação do samba- domínio britânico e do trabalho forçado nas plantações.
-reggae e da cultura soundsystem. Movimentos que desde Para ela, a improvisação é a raiz da coreografia e, quando
muito jovem incorporei como conhecimento, antes mesmo dança, é coreografada pelos espíritos.
de ter lido A cena em sombras, Os dias anônimos, Afrografias Nossa passagem pela Jamaica cumpria o objetivo
da memória e Performances do tempo espiralar, todos títulos que tínhamos desde o início: construir as redes de relacio-
clássicos da poeta, ensaísta, dramaturga, e rainha de Nossa namento da Bienal, através de aproximações com espaços
Senhora das Mercês da Irmandade de Nossa Senhora independentes, comunidades autônomas, movimentos
do Rosário do Jatobá, Leda Maria Martins, com quem sociais e coletivos. A partir desse evento criamos outra
aprendi o que considero um provérbio e sigo repetindo ponte, dessa vez entre nls e Sertão Negro, espaço do
com convicção: “aquilo que na voz e no corpo se repete é artista Dalton Paula em Goiânia, Centro-Oeste do Brasil,
uma episteme”.14 por meio da qual organizamos um programa de residência
Nas décadas de 1970 e 1980, a música tornou-se a que contará com a participação dos artistas Juliana dos
forma privilegiada da expressão da política do ser negro Santos, Mário Lopes e MaMa G. No Pavilhão da Bienal, a
em Salvador e, apesar de não haver consenso sobre a lista de movimentos cresce: Cozinha Ocupação 9 de Julho
origem do samba-reggae,15 o que sabemos é que, tendo — mstc, MAHKU e Zumví, apenas para citar alguns.
nascido no contexto de entidades carnavalescas denomina- Como veremos a seguir, para além de um debate
das blocos-afro, é um ritmo que, com o ijexá, batida matriz que perpassa a regulação dos corpos, a natureza e a geogra-
dos cultos de candomblé, nasce como uma das forças fia; para além das disputas de terra, das migrações e dos
precursoras das variadas concepções de movimento negro deslocamentos forçados; das noções de lar, de casa e de
organizado. E foi a força generativa e performativa que fun- fronteira; das estratégias de sobrevivência e dos fluxos de
damenta a ideia de movimento que havia me contaminou. comunicação e conhecimento que se organizam no movi-
Nesse mesmo programa que desenvolvemos com o mento, o que essas práticas têm em comum é o modo como
NLS, que contou ainda com a leitura de portfólios de jovens encontram soluções diversas e, muitas vezes, inimaginá-
artistas e um debate adensado com importantes agentes veis para performar seus contextos impossíveis em termos
da cena de arte de Kingston, conhecemos também Queen de expressão e de linguagem.
Gloria “MaMa G” Simms, uma artista multidisciplinar,
líder cultural e espiritual quilombola jamaicana que criou uma história que se dá na linguagem e através
o Maroon Indigenous Women Circle. Detentora de um da linguagem
profundo conhecimento sobre as diversas tradições rituais
e culturais jamaicanas, como a kumina, rastafari e revival, Viver entre um velho e um novo mundo, entre fronteiras físi-
MaMa G compartilha ainda das práticas e dos saberes cas e espirituais, entre imagem e textos, era como podemos
dizer que também vivia a autodenominada “chicana, tejana,
classe trabalhadora, poeta feminista sapatão, escritora e
14/ Leda Maria Martins, “Performances do tempo espiralar”, in Graciela teórica” Gloria Anzaldúa. Em mais de um de seus muitos
Ravetti e Márcia Arbex (org.), Performance, exílio, fronteiras: errâncias terri-
toriais e textuais. Belo Horizonte: FaLe/UFMG/PosLit, 2002.
desenhos apresentados nesta Bienal, observamos como a
autora mobiliza o conceito de nepantla — que significa “lugar
15/ Para uma discussão mais aprofundada, ver Goli Guerreiro, “As trilhas
do Samba-Reggae: a invenção de um ritmo”. Latin American Music Review, no meio” na língua indígena da Mesoamérica Nahuatl — para
v. 20, n. 1, pp. 105-40, 1999. articular como a psique se assemelha às cidades fronteiriças.
Descrevendo a fronteira Estados Unidos-México como um encontram estratégias para driblar os efeitos desses mes-
lugar onde “o Terceiro Mundo se opõe ao Primeiro e sangra” mos contextos nos modos de se manifestarem, se expres-
e mostrando como a força vital desses dois mundos se funde sarem e produzirem arte. São obras que fogem da norma
“para formar um terceiro país — uma cultura de fronteira”,16 tema-figura, da autoimagem da regulação, dos sistemas de
ela apresenta como a teoria de nepantla desorganiza o modo captura encenados pelos regimes de ultravisibilidade, da
como os eventos são ordenados no tempo, por justamente história enciclopédica da arte ocidental e da literalidade
sustentar experiências vividas que emergem entre espaços.17 representativa comumente presente nas aproximações
Essas notas, diagramas e desenhos de transparên- entre arte e política. Poéticas que são da ordem do impro-
cia que, na década de 1990, eram projetados nas muitas viso, mas que também se referem a movimentos organiza-
paredes por onde Anzaldúa apresentou seus workshops dos, desobedientes, irregulares, monstruosos ou suficien-
e palestras como professora, destacam também como a temente fugitivos para sequer serem enquadrados. É essa
autora entende a construção de sua identidade como per- impossibilidade de essencializá-las, torná-las previsíveis
formativa, e como essa mesma expressão performava por ou contê-las que provoca também a sensação de estarmos
meio da linguagem. Ao escrever em primeira pessoa articu- construindo uma Bienal que, apesar de extremamente polí-
lando a experiência vivida como episteme, ela declara: tica, mobiliza múltiplos sistemas de representação.
“Quando estudei pintura e escrita, descobri que eu poderia Um exercício de abstração e imaginação radical
criar universos concretos. Porém, eu não os criei; eu era a que está por trás da provocação “imagine se existisse
condutora para eles, o canal”.18 uma sauna lésbica”, do projeto Sauna lésbica, que esti-
Os desenhos de Anzaldúa se relacionam com outros mula o público a romper com os estereótipos e com
espaços radicais de imaginação e ajudam a expandir as dis- aquilo que podíamos imaginar, mas com o qual o espaço
cussões entre arte e política e as dimensões poéticas e utili- instalativo, por sua capacidade disruptiva, brinca, além
tárias da linguagem. Afinal de contas, o que criam em termos de tensionar e subverter. Ou o que nos diz a instalação
de linguagem esses contextos impossíveis e como a produ- pink-blue [rosa-azul] (2017), da artista Kapwani Kiwanga,
ção artística tem sido mais ou menos capaz de expressá-los? na qual as luzes rosa e azul transcendem seus significados
As formas como esses contextos éticos incidem diretamente normativos e revelam sofisticadas tecnologias de vigilân-
no trabalho/esforço (labor) de criação, regulando, definindo cia. Também no modo como Julien Creuzet encontra a
ou (im)possibilitando as escolhas estéticas, constituíram um beleza e espacializa sua poesia em materiais que poderiam
elemento importante que mobilizou a seleção de artistas e ser considerados “sem valor”, criando esculturas anima-
de obras para a exposição. das pelo canto das mães das águas, de onde brotam peixes
Como veremos em muitos trabalhos, o impossível transgênicos, velas de barco plantadas por sementes e
refere-se aos contextos políticos, jurídicos, econômicos e outras tantas imagens indecifráveis. Ou no modo como
sociais nos quais estão inseridos muitos dos artistas, mas, seu Otávio Caetano atraiu, como ele mesmo disse, “vidas
também, à maneira como tais práticas artísticas e sociais de valor” para o Quilombo Cafundó e fez da comunidade
destaque nos jornais, ao fazer com que a cupópia, língua
“secreta” falada no quilombo derivada do Quibumbo, pro-
16/ Gloria Anzaldúa (1987), Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, 4. duzisse curiosidade, visibilidade e mobilizasse a sociedade
ed. San Francisco: Aunt Lute Books, 2012, p. 3.
contra a violenta disputa de terra enfrentada nos anos
17/ Id., “Border Arte: Nepantla, el Lugar de la Frontera”, in AnaLouise
Keating (org.), The Gloria Anzaldúa Reader. Durham: Duke University
1970, ao estrategicamente performá-la entre uma esquina
Press, 2009, pp. 176-86. ou outra da cidade. Estratégia de autodefesa e de expressão
18/ Id., “Creativity and Switching Modes of Consciousness”, in AnaLouise sonora semelhante à que encontrou Stella do Patrocínio,
Keating, op. cit., pp. 103-10. Tradução nossa. uma vítima das políticas eugenistas e do encarceramento

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psiquiátrico, que encontrou na voz e no que ela mesma Denise Ferreira da Silva é a pensadora e artista que, ao
chamava de Falatórios uma forma de se rebelar contra o longo de décadas de extensa produção intelectual, tem
espaço da clausura. Como afirmou Do Patrocínio, segundo possibilitado nomear o impossível. Oferecendo-nos ferra-
um jornal sem assinatura e sem data reconhecidas: “Eu mentas analíticas e modos de intervenção mediante uma
vim pra ficar. Aqui vou assistir ao fim do mundo”.19 poética feminista negra, o conceito de “dívida impagável”
tem sido fundamental para expandir as reflexões sobre
o impossível reparação no país. Por meio desse conceito, a autora, em
vez de produzir uma crítica institucional sobre casos espe-
O projeto da 35ª Bienal de São Paulo — coreografias do cíficos em que a aplicação da lei se revela irrealizável, mos-
impossível — nasce em um importante e decisivo contexto tra por que a justiça sempre falha diante de corpos negros
de mobilização coletiva e social no que se refere aos deba- e territórios indígenas: a dívida é, portanto, impagável,
tes sobre justiça, relações de poder, crítica institucional e
representação na arte contemporânea. Como alguém que pois a forma jurídica do título que rege a relação
acompanhou ativamente essas discussões ao longo dos econômica (propriedade) senhor-escravo auto-
últimos dez anos, e considerando a relevância da Bienal de riza o uso da violência total de modo a extrair o
São Paulo no contexto internacional, a ausência de cura- valor total criado pelo trabalho escravo, o que
dores negros brasileiros, que marcou as suas últimas 34 resulta em descendentes de escravos vivendo na
edições, no mínimo indica, com as coreografias do impossí- escassez ou defasagem econômica.22
vel, a singularidade do Brasil no debate, sobretudo levando
em conta o conhecimento que a experiência do impossível, Reconhecendo que a gramática racial organiza o espaço
a partir daqui, tem produzido. global, sua proposta poética negra feminista
Considerando que quase 60% da população auto-
declarada do país é negra e indígena,20 e que o sistema vislumbra a im/possibilidade da justiça, a qual,
colonial brasileiro recebeu o maior número de escraviza- desde a perspectiva do sujeito racial subalterno,
dos africanos do mundo, o que uma explicação sociológica requer nada mais nada menos do que o fim do
pautada pela lógica da exclusão não revela sobre essa mundo no qual a violência racial faz sentido,
singularidade é que foi a diferença racial, a ferramenta isto é, do Mundo Ordenado diante do qual a
mais eficaz utilizada no século 20 para camuflar os modos decolonização, ou a restauração do valor total
como o acúmulo de capital se deu através da exploração expropriado de terras nativas e corpos escravos,
dos corpos escravizados e das terras nativas indígenas, é tão improvável quanto incompreensível.23
“transubstancializando os efeitos de mecanismos colo-
niais de expropriação em defeitos naturais (intelectuais e É esse acúmulo negativo que nos trouxe até aqui e que ajuda
morais) que são sinalizados por diferenças físicas, práticas a formular a seguinte definição: as coreografias do impossí-
e institucionais”.21 vel apresentam estratégias e políticas do movimento, que
um conjunto de práticas artísticas e sociais vêm criando,
tanto para imaginar mundos quanto para acelerar o fim de
19/ Stella do Patrocínio: a história que fala. Disponível em: www.youtube.
com/watch?v=ev10K_1JEmg. Acesso em: 19 jul. 2023.
um mundo, onde as ideias de liberdade, justiça e igualdade
20/ Conforme dados do censo de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE).
21/ Denise Ferreira da Silva, A dívida impagável. São Paulo: Oficina de 22/ Ibid., p. 153.
Imaginação Política e Living Commons, 2019, p. 35. 23/ Ibid., p. 37.
são realizações impossíveis. Considerando que o sistema ele se perde no próprio ato de se encontrar, o
da arte é também um campo de disputa do impossível, lugar onde a perda constitui o fundamento do
podemos entender como políticas do movimento práticas autodomínio. Portanto, a consciência da arte
que: 1) desafiam, resistem ou recusam sistemas globais de nada mais é do que a consciência de si.24
violência que conformam nosso imaginário social e delimi-
tam as noções do possível e do impossível. Ao fazê-lo, elas: Estar em performance, estar em gerúndio, considerando
2) especulam e antecipam o que ainda virá-a-ser (pode vir tudo o que há dentro, para “fazer da subsistência uma
a ser) através de movimentos improváveis que intervêm arte”,25 uma tática, um improviso, é um movimento poé-
nos fluxos regulados de movimentos e em suas representa- tico, uma prática feminista negra, que, como um gesto
ções, criando um descontínuo no tempo em que a natureza crítico e criativo, “está sempre em referência a um modo
enigmática do fazer artístico se realiza. Esse entre-lugar é de existir como condição do mundo, e não como a con-
o espaço no qual a imaginação busca ganhar movimento e dição de estar no mundo, desse modo produzindo aquilo
onde se situa a produção dos artistas e agentes que com- que é ao mesmo tempo uma façanha, uma ação, um fardo
põem a 35ª Bienal de São Paulo. e um artefato”.26 Dançar as coreografias do impossível
significa então o modo como vejo a prática curatorial
a diferença como um enunciado performativo, em que a produção de
sentido é constituída por meio de atos ou práticas repeti-
Lembro-me de que Ferreira da Silva foi uma das primeiras das de um falar que é fazer, no qual o discurso constitui
pessoas a radicalmente me incentivar a refletir sobre o a realidade.
porquê de esta formação curatorial ainda se fazer neces- O primeiro acordo que fiz, então, quando consegui
sária. Porque ela ainda era um gesto impossível. Ou uma nomear o impossível, foi produzir saúde. O segundo foi pro-
porcentagem, uma parcela do que poderia ser completa- duzir saídas, praticar a recusa: momento em que aprendi que
mente impossível. Um risco, portanto, para todos os lados. “ela celebraria o fato de que todos os dias algo tentava matá-la
Um risco produzido pela sua excepcional diferença. E que e falhava”.27 Entrar e sair viva (me recordo do conselho) seria
carregava uma diferença potencial, capaz de produzir um um sucesso. Nesse trabalho, parte considerável do esforço
valor suficientemente “diferente” e, por assim dizer, espe- passava por recusar a ideia de que, ao fim, a beleza não havia
tacular e inovador. O impossível, o mais que impossível ou sido possível para mim: “Agir de acordo com o desejo de ser
o quase impossível haviam acontecido, e foi a condição da oposto, o desejo de não colaborar, é objetar. Como tal resistên-
possibilidade da significação — o que a equipe curatorial cia pode suspender o processo de sujeição”?28 Moten pergunta
significava (precisamente a nossa diferença) — aquilo capaz e responde:
de produzir a sintaxe da obra/manobra (de arte) curatorial,
tornando-a uma performance que merecia ser assistida. É isto o que a objeção é, o que a performance
E vivida. é — uma complicação interna do objeto que é,
É curioso que, sempre que estou perdida, me perca
nas palavras do pensador e poeta Fred Moten, e, então,
me encontro: 24/ Fred Moten, Na quebra: a estética da tradição radical negra, trad. Ma-
theus Araujo dos Santos. São Paulo: n-1; Crocodilo, 2023, p. 340.
Mas essa diferença interna da obra de arte nada 25/ Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos, op. cit., p. 250.
mais é do que o espelho através do qual o obser- 26/ Denise Ferreira da Silva, “How”. e-flux, n. 105, dez. 2019. Tradução nossa.
vador é absorvido pelo perigoso turbilhão da 27/ Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos, op. cit., p. 250.
sua própria interioridade diferente, o lugar onde 28/ Fred Moten, op. cit., p. 341.

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ao mesmo tempo, sua retirada para o mundo e inquietante, que a artista manipula. Por meio de um
externo. Tal retirada torna possível a comunica- conjunto de tetraedros feito por estruturas de ferro igual-
ção entre espaços, tempos e pessoas aparente- mente manipuláveis, Ferreira da Silva reconfigura a forma
mente intransponíveis.29 geométrica do fogo na filosofia mediterrânea clássica para
construir um espaço coletivo-colaborativo-implicativo. Em
A fuga de uma posição salvacionista, melancólica e român- sua inseparabilidade, sua iteração é incontida e só existe
tica, que buscava, no entanto, sustentar práticas de solida- com e em combinação com a exposição como um todo. Se a
riedade, e um saudável pessimismo, foi o tom encontrado princípio as esculturas de tetraedro ficam soltas pelo pavi-
para expor os limites e as contradições das políticas de lhão, quando reunidas formam O E/Studio, espaço no qual
representação que o mercado-da-diferença organiza, bem se estuda e se pratica o fim do mundo e que, recebendo
como as idiossincrasias que o projeto da 35ª Bienal revela. atividades como o Fórum Feminista Negro e o Echo Tarot
Considerando que a diferença cultural é o que deli- Reading Room, é arte fazendo arte.
mita, no texto moderno, o alcance da noção ética de huma-
nidade, e que as ferramentas críticas disponíveis, preci- as políticas do movimento
samente por também serem construções do pensamento
moderno, “não são capazes de efetivamente interromper Quando aproximamos o termo “coreografia” dos estudos
o emprego de uma violência total que em outro contexto da dança e da performance, observamos que está implí-
seria inaceitável contra aqueles que estão do ‘Outro’ lado cita na relação histórica do Ocidente com o coreográfico
(cultural) da humanidade”,30 Ferreira da Silva deixa-nos a criação de um corpo disciplinado, que se move de acordo
uma proposição: com os comandos de determinada escrita. Em sua reflexão
precisa sobre os diferentes modos em que o coreográfico
apenas o fim do mundo tal como o conhecemos, se relaciona com a lei, André Lepecki, ao exaurir a his-
estou convencida, será capaz de dissolver a ideia tória da dança ocidental, propõe uma análise crítica ao
de coletividades humanas como “estrangeiras” apresentar o episódio em que “a dança ocidental fundiu
com os atributos morais fixos e irreconciliáveis o seu ser com a escrita para criar o neologismo orcheso-
que as diferenças culturais engendram.31 graphie (uma escrita, graphie, da orchesis, dança), título do
famoso manual de dança de Thoinot Arbeau, de 1589”. “Eis
É essa liberação radical da capacidade criativa da imagi- aqui um poderoso dueto inaugural para considerarmos a
nação que sustenta a Metafísica dos elementos – O E/Studio relação onto-histórica da coreografia com a força de lei”,33
(2023), instalação na qual a artista, por meio de ferra- ele diz. “No momento crítico em que a dança encontra seu
mentas, práticas e textos, nos leva a pensar: “E se o fim destino como coreografia, vemos o trabalho coordenado de
do mundo como o conhecemos for logo ali, em qualquer um advogado e de um padre.”34
lugar, e em todo lugar, como uma dimensão oculta?”32 É o Esse episódio que inaugura a inscrição do vocá-
fogo, matéria incontrolável, inapreensível, imprevisível bulo e do significado de coreografia na história ocidental
é importante, pois revela como a produção moderna do
29/ Ibid., p. 356. conhecimento se mantém e ganha força de lei se inscre-
30/ Denise Ferreira da Silva, “Sobre diferença sem separabilidade”, in vendo no tempo e no espaço através de uma “homossocia-
Jochen Volz e Júlia Rebouças (orgs.), Incerteza viva: 32a Bienal de São Paulo,
catálogo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016, p. 58. 33/ André Lepecki, Exaurir a dança: performance e a política do movimento,
31/ Ibid. trad. Pablo Assumpção Barros Costa. São Paulo: Annablume, 2017, p. 63.
32/ Tradução nossa. 34/ Ibid.
bilidade pedagógica”35 que permanece mesmo através da da conformação de um imaginário social guiado por um
ausência. Do ponto de vista filosófico, serve ainda como sentido progressivo do tempo.
imagem para questionar o projeto cartesiano de mundo e No entanto, se “a lei é uma cadência, um ritmo que
para nos ajudar a refletir sobre os modelos de governança e circula pelos corpos”38 como esses corpos impossíveis, para
as economias da lei, que regulam as noções de movimento os quais a lei serve não para fazer acontecer uma demanda
e liberdade. por direitos, mas para enquadrar como criminalidade, deso-
Tomada por essas reflexões, em uma viagem a bedecem e criam suas próprias coreografias para transfor-
Nova York para uma pesquisa, encontrei Saidiya Hartman mar seus corpos impossíveis em possíveis? Ao proporcionar
em um restaurante próximo da Columbia University. uma leitura dos diversos meios pelos quais o movimento se
Estava interessada em avançar nas leituras sobre as polí- produz, seja como liberdade ou como ameaça, encontramos
ticas do movimento quando ela trouxe como referência o nas múltiplas naturezas discursivas, ideológicas, espaciais
nome da autora Hagar Kotef, que eu imediatamente come- e temporais em que essas práticas artísticas, que compõem
cei a ler, assim que cheguei à rua Adam Clayton Powell com as coreografias do impossível, se situam sintomas comuns a
a avenida 137. contextos e regimes disciplinares em que a violência total se
O cruzamento entre as duas leituras foi funda- aplica como modelo de governança.
mental para articular como “a criação deste ser-para-o- Se, por um lado, há um esforço ativo para impe-
-movimento”36 moderno, racional e universal, de que fala dir essa liberdade e uma impossibilidade de conceber os
Lepecki, está intimamente ligada aos modos pelos quais, movimentos como manifestação de liberdade, por outro,
para Kotef, “a ideia de mover-se livremente permanece no quando damos às coreografias o impossível como seu
cerne de uma concepção liberal de liberdade” em que “o espaço de contexto, quando alargamos sua perspectiva
movimento foi construído como uma ameaça ao invés de nomeando-as poeticamente como coreografias do impossí-
uma articulação da liberdade”.37 vel, já no título se produz uma formulação desobediente,
Refletindo sobre os efeitos da colonização mediante que desorganiza, escapa e tensiona a coreografia do sujeito
uma análise que considera os mecanismos de controle dos moderno e o cerco etimológico da palavra. Como nos
movimentos dos palestinos por Israel, Kotef mostra como ensina Leda Maria Martins, como um lugar terceiro, aqui
a fundação dessas estruturas contemporâneas de (i)mobi- nasce uma encruzilhada, “lugar de interseções, onde reina
lidade global pode ser atribuída a um pensamento político o senhor das encruzilhadas, portas e fronteiras, princípio
liberal, que equacionou liberdade e cidadania com movi- dinâmico mediador de todos os atos de criação e inter-
mento, enquanto regulava a mobilidade de acordo com uma pretação do conhecimento”.39 Como operador semântico,
matriz de exclusões raciais, de classe e de gênero. Questões Èsù Elegbara instaura o processo de dupla fala, as relações
que, do ponto de vista das políticas do movimento, levam a dialógicas e a encruzilhada dos sentidos e dos discursos.
considerar que quem escreve e produz a coreografia são os Como ouvi certa vez do pensador quilombola Antônio
próprios contextos impossíveis nos quais cada um de nós Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, “Quem nunca esteve na
vivemos: são as leis, as normas, as violências que regulam, encruzilhada não sabe escolher caminhos”.
restringem e impossibilitam a liberdade do movimento, Considerando que a história do humanismo ociden-
tanto no sentido da regulação e vigilância dos corpos quanto tal se confunde com o comércio de escravizados do Atlântico
e o colonialismo, e que a liberdade do movimento é o que
35/ Ibid.
36/ Ibid.
37/ Hagar Kotef, Movement and the Ordering of Freedom: On Liberal Gover- 38/ André Lepecki, op. cit., p. 62.
nances of Mobility. Durham: Duke University Press, 2015, p. 4. 39/ Leda Maria Martins, A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.

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condiciona o sistema da escravidão, uma parte considerá- ceito liberal de liberdade e também de justiça e igualdade.
vel de nosso projeto se dedica a entender os mais diversos Práticas que constroem espaços e tempos de percepção
efeitos da expropriação total dos corpos e dos recursos que desafiam a rigidez da linearidade do tempo ocidental.
naturais na diáspora africana e nos territórios indígenas. No
entanto, ganha atenção redobrada em nossas discussões a o tempo
busca por compreender como a força expansiva do pensa-
mento ocidental tornou-se universal, através da ciência e de Foi, portanto, por meio do livro Performances do tempo
tecnologias modernas, e da construção de um eixo global do espiralar: poéticas de um corpo-tela, conceito e título do
tempo em que a modernidade europeia se torna a métrica de livro de Leda Maria Martins, que encontramos as bases
sincronização de todas as civilizações. fundamentais que dão contorno àquilo que chamamos
São os efeitos dessa ordem imperativa do tempo coreografias do impossível. Como reflete a capa do pri-
ocidental nas mais variadas geografias que nos leva- meiro movimento, título de nosso material educativo,
ram não somente a olhar para determinados territórios, “aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever
fronteiras e contextos geopolíticos, como reivindicar uma no tempo”.40 E são essas poéticas do corpo-tela que irra-
epistemologia do tempo que fosse capaz de romper com a diam performativamente encruzilhando as linguagens
linearidade histórica e com o livro coreográfico. Também, artísticas, disciplinas, mídias e materialidades que se
e principalmente, que nos oferecesse estratégias metodo- encontram reunidas no Pavilhão da Bienal. São corpos
lógicas que nos permitissem fugir do complexo totalitário movidos por um tempo espiralar, em que grafar o saber é
e enciclopédico imanente aos conceitos de bienais como “sinônimo de uma experiência corporificada, de um saber
eventos históricos — apesar de conscientes de que do efeito encorpado, que encontra nesse corpo em performance
da sua historicidade não poderemos escapar. seu lugar e ambiente de inscrição”.41
Tensões que ajudam a compreender como o termo Acredito também que, como possibilidade meto-
“coreografia” vem sendo alargado através de sua habili- dológica para a exposição, foi por meio dessas tempora-
dade de incorporar e refletir o contexto social em que vive- lidades curvilíneas que recusamos a ambição de tentar
mos, por considerar que são os conhecimentos praticados encerrar, esgotar, cobrir globalmente, tematizar e catego-
nas performances do cotidiano aqueles capazes de oferecer rizar historicamente todas as possibilidades de criação
um conjunto de estratégias, tecnologias e múltiplos modos e de fuga que, ao longo do tempo, seguem em curso nas
de fazer. mais diferentes regiões do planeta. Assim como as formas
É o que estamos aprendendo com os artistas e suas de opressão e as violências são inimagináveis, também
práticas, quando, por exemplo, essas práticas ressoam os são inimagináveis, generativos, situados e plurais os
modos de governar as populações no quadro das democra- movimentos que estão tentando criar o possível, apesar
cias liberais, dos regimes ultranacionalistas, imperialistas, de todo o impossível. É esse eixo espiral que possibilita ir
autoritários e neofascistas, mas também quando se voltam e vir, através de um gesto que se inicia com e a partir dos
aos sistemas de governança que possibilitaram o acúmulo modos como alguns eventos, situações e dinâmicas globais
do capital em suas mais remotas origens mediante movi- refletem e rebatem no contexto brasileiro, possibilitando
mentos de expropriação, vigilância, controle, despejo, des- incorporar, no processo curatorial, os aprendizados e os
locamento, prisão, apagamento, despossessão, exclusão, encontros do caminho.
extração e domesticação. Por isso, gosto de partir também
da compreensão de que as políticas do movimento nas 40/ Id., Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de
coreografias do impossível são aquelas que negociam os Janeiro: Cobogó, 2021, p. 81.
limites entre o possível e o impossível, desafiando o con- 41/ Ibid., p. 36.
Nesse percurso, são muitos os artistas que buscam deses- para escolas católicas], da escritora Sonora Reyes, propor-
tabilizar como o tempo se inscreve no espaço ou a sua cionou, por meio de uma reaproximação da equipe com o
sequencialidade e causalidade. É o caso do caminho que Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal
faz stanley brouwn rumo ao vazio; ou da busca por criar de Educação de São Paulo para pensar a sexualidade no
movimentos que estão fora do tempo, como os exercícios ambiente escolar. Destaque da segunda publicação educa-
de autodefesa que propõe a dupla Davi Pontes e Wallace tiva, o objetivo era evitar reações semelhantes à minha ou à
Ferreira; ou do modo como Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá de outros leitores, como teve a própria pensadora e psicóloga
Imê propõem uma investigação que tem o nkisi Tempo/ guarani Geni Núñez, a quem comissionamos um texto sobre
Kitembo, divindade dos cultos do candomblé de nação e a partir do livro, e que logo nas primeiras linhas exclama:
Angola, como sua força criadora. Ou dos muitos outros “como queria ter lido isto antes!”.
parágrafos que espero que passemos não neste texto, mas Enquanto escrevo este texto, o terceiro movimento
caminhando, vivendo, sentindo e aprendendo no espaço. da publicação educativa está em desenvolvimento. Serão
A construção dessa narrativa expositiva, que se as reverberações dos três meses de exposição que darão o
coreografa sem temas nem categorias cronológicas, e que, tom desse novo conteúdo. Cientes da incompletude desses
na arquitetura, desafia a geometria moderna incontornável movimentos, permanece o desejo de que as coreografias do
do prédio, pode gerar sentimentos de frustração e sensa- impossível ampliem nossas capacidades tanto de perceber
ções de falta e de falha. Penso, no entanto, que esses des- quanto de antecipar estratégias de sobrevivência coletiva
contínuos, lacunas, vazios, quebras e respiros cumprem de um mundo que está por vir. Sentimentos comparti-
outra função. Eles são um convite e um chamado à ação, no lhados intensamente com Sylvia Monasterios e Tarcisio
qual cada visitante pode, seja por curiosidade, provocação Almeida, dupla de assistência da curadoria e pessoas sem
ou empatia, refletir sobre os acontecimentos passados ou as quais este projeto não seria viável.
cotidianos com base em suas perspectivas. Assim como No entanto, se essas práticas produzem o dissenso
encontrar momentos de introspecção e expansão, por meio nos espaços aos quais pertencem, quando aqui reunidas o
dos volumes, recintos e escalas que a experiência expo- que criariam? Quais consensos e dissensos as coreografias
gráfica oferece nas coreografias de percursos criadas pelo do impossível, quando em diálogo no espaço, nos possi-
escritório de arquitetura Vão. bilitarão adentrar? A coreografia de retornos de que fala
Narrativa expositiva que torna os trabalhos de Leda Maria Martins é o fim e o começo de um ensaio que se
mediação e de educação realizados pela equipe educativa da escreve por um desejo literal de circulação.
Fundação Bienal ainda mais fundantes no projeto. Tanto por
reafirmar a relevância de se fazer uma Bienal, que é gratuita a beleza terrível
e também movida por recursos públicos, quanto pelo desafio
de criar ferramentas de mediação que ajudem a elaborar a Observando a condição fantasmagórica do livro coreográ-
complexidade de alguns debates com o público. Um bom fico, sua força de lei e seu devir-espectral, gosto de pensar
exemplo é a mobilização que a proposta de trabalhar com o na assombração ancestral que quem dança com o impossí-
livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School42 [Guia lésbico vel produz. E tenho mzuitas razões para isso. Elas me levam
àquelas pinturas penduradas nas paredes e às paredes
da minha memória — para retomar a obra emblemática
42/ Geni Núñez, “Desviar para se encontrar: reflexões com base no livro de Rosana Paulino. Se a Mona Lisa, em algum momento,
The Lesbiana’s Guide to Catholic School”, in Fundação Bienal de São Paulo foi meu fantasma, devo ao som os pontos de fuga que
(org.), Meu modo de pensar é um pensar coletivo / Antes de estar em mim já
esteve nelas. Publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo — coreografias encontrei para desviar de seus olhos: “o som nos devolve
do impossível. Movimento 2. São Paulo: Bienal, 2023, p. 38.

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a visualidade que o ocularcentrismo reprimiu”,43 afirma fica “fazer do viver uma arte”,45 uma manobra que Hartman
Fred Moten. chamou de “beleza terrível”. A pergunta que permanece é:
Na abundância, na riqueza e na prosperidade das seria possível não reencenar o espetáculo da sujeição?46
“oralituras” transmitidas por gerações na minha casa, nas Pensar os regimes de hipervisibilidade imanentes
quais tive a chance de ter acesso a quase dois séculos de à ideia de uma exposição, os limites entre espetáculo e
história, era a qualidade fantasmagórica da ancestralidade, terror, violência e prazer, olhar e ser olhado, é, sem dúvida,
seus falsetes, sobretons, gemidos e gritos que colocavam um dos principais desafios das coreografias do impossível.
a tremer as molduras que me separavam do velho mundo. Quais estratégias curatoriais disponíveis se podem mobi-
Conselhos, contos, casos e provérbios perturbavam a fron- lizar para manter a integridade dessa beleza terrível? Eu
teira imperativa do visual e me aproximavam de expres- me apego à intuição de que essa é uma questão de medida,
sões artísticas, que independentemente da linguagem dosagem, energia e sensações, em vez de pensar na
eram animadas por essa energia vital. Seis gerações onde tragédia do fetiche e do elogio. Penso também que talvez
o ver não era a base do respeito e da crença no que estava seja menos uma questão de tentar evitar a incontornável
sendo ensinado. Gerações que acreditaram cegamente no reprodutibilidade da cena primária da violência originária
que sentiam e que, apesar das poucas provas materiais, que anima as performances do impossível, e confiar nas
sabiam que “aquilo que na voz e no corpo se repete é uma condições que perturbam a linguagem abrindo espaço
episteme”.44 Em casa, era a ancestralidade que espiralava, para inimagináveis formas de expressão. A arte não paga
colapsava o olhar, fazia a sua guarda, dava os seus pulos. o impossível assim como “o blues não vale o preço da dor
Difícil esquecer de Luiz de Abreu, que mesmo sem enxer- pago para produzi-lo, mas é parte da condição da possibili-
gar transferiu um samba, O samba do crioulo doido (2004) dade do fim da extorsão”.47
— o mais clássico dos clássicos fenômenos da música e da Encontrar a medida entre a beleza e sua dimensão
dança brasileira, tornando-se um doutor na arte contem- terrível: essa é a coreografia que persegue a personagem da
porânea da transmissão. Já os ângulos da perspectiva nos escritora de uma história que fala.
quais o olhar da Mona Lisa não penetra me levam ao movi-
mento espacial que aprendi, há alguns anos, com Torkwase
Dyson, a partir de seu pensamento composicional negro
e seu questionamento sobre a experiência ocular das
pessoas negras tanto nos espaços emancipatórios quanto
nos espaços de clausura, produzindo através da abstração,
de seus desenhos e esculturas, formas inimagináveis e
desconhecidas, de ver.
Encontrar essas formas e suas belezas e recusar
o impossível como destino ontológico jamais foi, desde o
início deste texto, uma expressão ingênua, ilusória e dis-
simulada sobre como a história de degradação e violação
sustenta a produção da especulação do valor no campo da
arte. Acredito que todos aqui são conscientes do que signi-
45/ Saidiya Hartman, 2022, op. cit., p. 12.
46/ Id., Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-
43/ Fred Moten, op. cit., p. 337. -Century America. Nova York: W.W. Norton & Company, Inc., 2022, p. xvi.
44/ Ver nota 14 deste texto. 47/ Fred Moten, op. cit., p. 277.
Croqui em corte. Sugestão de percurso de visitação, inversão do
segundo com terceiro andar. Imagem: Vão Arquitetura
movimento e o ordenamento da liberdade —
breve introdução
hagar kotef

“As pessoas sempre se moveram — fosse por sob a condição de que parta quando não for mais neces-
desejo ou por meio da violência. Especialistas sária; a imigrante “sem documentos”, contudo, que está
também escreveram sobre esses movimentos efetivamente na mesma posição social, é sempre já “ilegal”
por muito tempo e sob uma diversidade de pelo simples fato de estar ali. Esses sistemas políticos
perspectivas. O que é interessante é que agora também operam determinando quem (ou o quê) deve ser
viradas teóricas particulares se organizaram contido e reprimido: jovens homens afro-americanos nas
como novas conjunturas, que dão a esses fenô- prisões, pessoas em busca de asilo político em campos de
menos mais visibilidade analítica do que nunca. detenção, manifestantes em enclaves altamente policiados.
Nós, portanto, [...] temos questões antigas, mas Eles determinam quanto de imposto deve ser pago para
também algo bastante novo." cada bem (ou capital) em circulação; e qual tipo de bem
— liisa malkki (ou capital, ou pessoas) deve ter sua exportação impedida
ou promovida. Eles controlam quais segmentos de fron-
“De todas as liberdades específicas que podem vir à teira, espaços públicos e propriedades privadas devem ser
nossa mente ao ouvirmos a palavra ”liberdade”,1 disse entrincheirados e quais podem ser rompidos.
Hannah Arendt, Como Michel Foucault demonstra em sua obra,
esses sistemas são a substância por meio da qual o sujeito
a liberdade de movimento é historicamente a moderno emerge. De seu estabelecimento inicial como
mais antiga e também a mais elementar. Ser sistemas de confinamento até modos mais complexos
capaz de partir para onde se queira é o gesto de distribuir corpos no espaço − que Foucault identifica
prototípico do ser livre, na medida em que a como a essência do poder disciplinar − e uma atenção
limitação à liberdade de movimento tem sido posterior à circulação, que eventualmente se torna, de
desde tempos imemoriais a precondição para a acordo com ele, “a única aposta política e o único espaço
escravidão.2 real de luta e contestação política”,3 esses sistemas
funcionaram como meio de transmissão para a formação
Assim, Arendt afirma que a liberdade de movimento é a da subjetividade moderna. Em outras palavras, tanto
“substância e [o] sentido de todas as coisas políticas”. os sujeitos quanto os poderes ganham forma por meio
Vivemos em sistemas políticos que têm um cres- do movimento e de sua regulação. Diferentes tecnolo-
cente interesse no movimento físico, ou talvez somente gias de regulação, limitando, produzindo ou incitando
um crescente controle efetivo sobre ele. Esses sistemas o movimento são, portanto, conforme William Walters,
são, em grande medida, organizados em torno tanto do diferentes “tecnologias de cidadania”,4 assim como de
desejo quanto da capacidade de determinar quem pode colonização, domesticação com base em gênero, explora-
entrar em quais tipos de espaço: quem pode entrar em um ção e exclusão.
Estado nacional, uma comunidade com portões, uma rua
específica, um playground? Quem tem autorização para
residir em tais espaços e por quanto tempo? A trabalha-
dora “convidada”, por exemplo, pode ficar, mas somente
3/ Michel Foucault, Security, Territory, Population: Lectures at the Collège de
France, 1977-78. [Edição brasileira: Michel Foucault, Segurança, território,
1/ Hannah Arendt, Men in Dark Times. Londres: Cape, 1970, p. 9. [Edição população: curso no Collège de France (1977-1978), trad Eduardo Brandão.
brasileira: Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios. São Paulo: Com- São Paulo: Martins Fontes, 2008.]
panhia das Letras, 1988.] 4/ William Walters, “Deportation, Expulsion, and the International Police
2/ Ibid. of Aliens”. Citizenship Studies, v. 6, n. 3, pp. 265-92, 2002, p. 267.

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Se eu tenho um ponto nesse livro5, ele pode ser resu- Em seguida, examino esse argumento em relação a uma
mido — de modo um tanto redutor — no seguinte: em uma posição de sujeito historicamente privilegiada: a do sujeito
longa tradição, que a teoria política em geral define como liberal. Suas qualidades particulares mudaram ao longo
“liberal”, e no interior da qual nós, em grande medida, da história (incluindo e excluindo diferentes grupos) e há
ainda vivemos hoje, movimento e liberdade estão com bem pouca concordância na literatura sobre onde ele — e,
frequência identificados entre si. Ou seja, o movimento mais amplamente, o discurso do liberalismo — começa e
é a substância material de uma longeva concepção de termina. Não tenho interesse por marcar essas mudanças
liberdade. No entanto, para que ele se tornasse tão profun- e divergências. Para nosso propósito, é suficiente dizer que
damente entrelaçado com a liberdade, uma matriz inteira podemos, apesar de tudo, caracterizar tal sujeito por meio
de mecanismos, tecnologias e práticas teve que ser posta das tentativas de marcá-lo como “universal”, em geral
em funcionamento, de modo que esse movimento fosse como entidade abstrata. Em outras palavras, trata-se de um
suficientemente moderado (poderíamos dizer: aman- sujeito que é uma mera âncora para direitos e liberdades,
sado, domesticado). O movimento tornou-se a ordem da cuja essência é a racionalidade ou a “mente”. Por meio de
liberdade. Um pouco mais elaborados, proponho quatro uma leitura da liberdade liberal como girando em torno
argumentos principais. do livre movimento, argumento — contrariamente a esse
Primeiro, sustento que as posições de sujeito (ou as entendimento da subjetividade liberal — que, ao menos
categorias identitárias) e as ordens políticas nas quais elas até o fim do século 18, essa subjetividade era largamente
ganham sentido não podem ser divorciadas do movimento. configurada como corpórea. Meu ponto não é meramente
Não podemos entender, por exemplo, a formação de cate- repetir a bem estabelecida crítica de que essa figura era
gorias de gênero sem compreender a história das esferas na verdade racializada, com marcadores de classe ou de
separadas e a do confinamento de mulheres de certas raças e gênero, mas que, nos séculos 17 e 18, mesmo no interior da
classes à casa. Não podemos entender a pobreza sem pensar lógica do liberalismo, o sujeito no coração da teoria liberal
a história da vadiagem, do trabalho migrante ou sobre a falta tinha uma dimensão corporal: a capacidade de locomoção.
de moradia (como situação concreta ou fantasma). Não pode- Além disso, mesmo depois de esse sujeito liberal passar
mos dar conta das relações raciais nos Estados Unidos sem por um processo de abstração, aproximadamente na virada
considerar, por um lado, o encarceramento em massa e, por para o século 19, ele não obstante aparece como uma
outro, a história do comércio de escravizados e a Passagem entidade corporificada em todos os momentos nos quais
do Meio. Não conseguimos explicar a atual situação jurídica pode ser imaginado como um corpo que se move. De fato,
dos beduínos em Israel — os repetidos atos de demolição de mesmo que depois do século 18 o movimento não seja
casas, de expropriação, de negação sistemática de direitos mais explicitamente proclamado como um dos direitos
de propriedade — sem entender o mito do nomadismo. A mais importantes dos sujeitos liberais, a liberdade de
história do movimento, assim como suas imagens; as prá- movimento permanece no coração da conceituação liberal
ticas para controlá-lo, assim como o medo que se tem dele; de liberdade.
a tradição de valorizá-lo como um direito, assim como as Perguntar sobre os significados políticos do movi-
muitas exclusões embutidas nela — todas são cruciais para mento é, acima de tudo, perguntar como nossos corpos
compreender hierarquias políticas e sociais, práticas de afetam, são afetados por, tornam-se veículos ou destinatá-
governo e identidades. rios de ordens políticas, ideologias, instituições, relações
ou poderes. Fazer essa pergunta em relação aos discursos
liberais nos distancia das leituras prevalentes sobre essa
5/ Este texto é uma breve introdução editada pela autora e traduzida para
o português a partir do seu livro Movement and the Ordering of Freedom: On tradição política, uma vez que o liberalismo percebe e
Liberal Governances of Mobility. Durham: Duke University Press, 2015. produz sujeitos como entidades jurídicas essencialmente
racionais. Meu propósito, contudo, vai além de propor um movimentos como uma manifestação da liberdade, e, por
entendimento mais nuançado do sujeito liberal. Elidir o outro, um esforço ativo para negar e impedir essa liberdade.
corpo em movimento da subjetividade liberal obscurece Há certa coprodução entre essas duas direções, mas sua
modalidades importantes do exercício do poder liberal. natureza muda ao longo de diferentes campos discursivos,
Assim, o objetivo dessa análise é trazer essas formas de ideologias e tempos. Ao fornecer uma leitura dos muitos
poder para a superfície. Isso é feito não somente a fim meios por meio dos quais o movimento é produzido como
de mostrar suas operações históricas, mas também para liberdade ou ameaça, como uma iconografia da autorregu-
ressoar ordens políticas contemporâneas; para assinalar lação ou uma prova de indisciplinabilidade, essa terceira
uma razão política que ainda governa as tendências políti- camada também oferece uma crítica dos modos de gover-
cas contemporâneas. nança que se cristalizaram ao redor dessas duas principais
Para tanto, mostro como esse conceito liberal de configurações do movimento: vigilância, cercamento,
liberdade emergiu em conjunto com outras configurações expulsão, aprisionamento, cerco.
de movimento, nas quais ele era construído como uma A quarta camada desse livro é uma tentativa de
ameaça em vez de como uma articulação de liberdade. mostrar como essa separação na configuração do movi-
Neste ponto, chegamos ao terceiro argumento central mento, bem como nos modos de governança que são
desse livro. O movimento por meio do qual a subjetivi- formados simultâneos a tal separação, são mapeados nos
dade liberal obteve presença material e mediante o qual espaços contemporâneos. Nesse mapeamento, meu foco
a “liberdade” tornou-se um fenômeno físico não foi um é o regime atualmente vigente nos territórios palestinos
movimento ilimitado e irrestrito. Ao contrário, deu-se ocupados (TPO). O ponto de interesse nesse regime (e
entre muitas restrições e foi garantido por muitas âncoras, tecnologia política central) é a maximização do controle
que lhe conferiram alguma estabilidade. Além de questões sobre o movimento de pessoas e bens; em outras palavras,
de volição e intenção, que restringem elas mesmas o movi- é um regime de movimento. Como um dos mais perfeitos
mento, ele foi conceitualizado e materializado no interior e elaborados sistemas de controle de uma população, por
de conjuntos de condições materiais, raciais, geográficas meio do controle de seu movimento, tal regime oferece
e de gênero de modo a permitir somente a alguns sujei- um laboratório condensado para examinar as tecnolo-
tos parecerem livres enquanto se moviam (e oprimidos, gias de regulação do movimento e os sujeitos que emer-
quando impedidos). O movimento (ou o impedimento) de gem delas. Ainda que anormal em sua radicalidade, esse
outros sujeitos foi configurado de modo diferente. Sujeitos contexto particular não é de modo nenhum privilegiado,
colonizados que foram definidos como nômades, pobres mas, sim, mais uma manifestação de uma tendência global
que eram considerados vagabundos ou jogados na vadia- — tendência que está longe de ser nova, mas que tem se
gem na medida em que perdiam acesso a terras, mulheres intensificado de modo crítico em anos recentes.6 Pensar
cuja natureza histérica presumida era ligada à sua ina- sobre e com base nesse contexto particular é um modo de
bilidade para controlar fluidos corporais — todos foram delimitar algumas das apostas contemporâneas de minha
constituídos (ou melhor, desconstituídos) como sujeitos análise teórica. Conforme o argumento se desenvolve,
indisciplinados cujo movimento era um problema a ser esse contexto não supõe circunscrever essas apostas nem
administrado. Essa configuração era a base para justificar
momentos — e espaços — não liberais no interior de regi-
mes liberais. 6/ Nicholas De Genova e Nathalie Mae Peutz, The Deportation Regime:
Esse argumento tem duas trajetórias opostas, cujas Sovereignty, Space, and the Freedom of Movement. Durham: Duke University
Press, 2010; Liisa Malkki, “National Geographic: The Rooting of Peoples
relações causais não são completamente claras. Por um and the Territorialization of National Identity among Scholars and Refu-
lado, nós observamos uma inabilidade para conceber alguns gees”. Cultural Anthropology, v. 7, n. 1, 1992.

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sugerir que podemos ver uma única estrutura política, fechamento e de controle do movimento, uma elaborada
estendendo-se da Inglaterra no século 17 a Israel/Palestina ideologia e teoria do Estado foi desenvolvida, que liga esses
do século 21, ou mesmo certo continuum. Esse contexto modos de confinamento à liberdade. Cercamentos, obstá-
visa, antes, a abrir muitos outros pontos de ressonância, culos (ou outros modos de desacelerar as coisas) e barrei-
que acabam por demonstrar como diferentes configura- ras de vários tipos foram consideradas precondicionando
ções de movimento concorrem para justificar diferentes a liberdade, em vez de se opondo à circulação, ao fluxo e,
modos de governo das populações no interior de democra- sobretudo, à liberdade. A maior parte dos grandes pensa-
cias liberais.7 dores do Estado não conseguiu conceitualizar a liberdade
sem a possibilidade desse gerenciamento, sem alguma
regimes forma de cercamento que tornaria o movimento um princí-
pio da ordem, mais que do caos.
Diferentes formas e tecnologias de ordenamento do Essa compreensão do Estado moderno talvez seja
movimento foram desde sempre centrais para a formação mais explícita na obra de John Torpey. Se Max Weber vê a
de diferentes ordens e ideologias políticas. Do ato de amar- formação do Estado moderno como uma função da mono-
rar servos até a terra sob o feudalismo e ao Estado terri- polização da violência legítima, Torpey segue essa formula-
torial moderno e sua demarcação de fronteiras, as ordens ção para propor que esse Estado se consolidou também ao
políticas são, de muitas maneiras, regimes de movimento. monopolizar os “meios legítimos do movimento”. Enquanto
O Estado moderno — para tomar o que seja talvez um dos Torpey apresenta sua análise como paralela à de Weber,
exemplos mais relevantes —, especialmente depois da proponho que esses dois processos ou ideologias estão
invenção do passaporte,8 e de modo crescente com a evolu- inextricavelmente ligados e busco explorar como ambos
ção das tecnologias de fechamento e regulação das frontei- operam em conjunto. Algum desses processos de mono-
ras, é em grande medida um sistema de regulação, orde- polização condicionou o outro? Será um deles meio para
namento e disciplinarização de corpos (e outros objetos) o outro? Ou serve para justificá-lo? Pode algum deles ser
em movimento.9 De fato, ao lado desses dispositivos de pensado nos termos do outro (violência como movimento;
movimento como violência)? A violência terá sido somente
mais um movimento a ser monopolizado?
7/ É importante sublinhar que é altamente problemático definir Israel
como “liberal” ou “democrático”, dado que aproximadamente um terço das A violência de Estado, além disso, tem seus
pessoas sob seu governo não são cidadãos e têm negados direitos e liber- próprios movimentos: invasão, infiltração, conquista.
dades básicos. No entanto, se observarmos as práticas, mais que o mero John Stuart Mill oferece uma manifestação lúcida de como
ideal de democracia, essa é a regra, e não a exceção. Desde o surgimento da
democracia, em Antenas, da escravidão institucional nos Estados Unidos
eles se baseiam em mitos ou imaginários de outros movi-
ou da ausência do voto feminino na maioria das democracias liberais até a mentos. Para Mill, a Europa é um lugar de movimento. Ela
metade do século 20, regimes democráticos incluem (e se poderia dizer: são tem uma “admirável diversidade”, que constantemente o
baseados em) uma exclusão de grandes grupos de pessoas de seus princí- facilita: “os povos da Europa”, ele escreve,
pios igualitários. Em menor grau, esse é o caso da maior parte — senão todas
— democracias ainda hoje. É possível dizer, portanto, que Israel compartilha
a lógica das democracias liberais que foram — muitas ainda são — coloniais e abriram uma grande variedade de caminhos,
imperiais em sua natureza. cada um deles levando a algo valorável; e ainda
8/ John C. Torpey, The Invention of the Passport: Surveillance, Citizenship, que, em todas as épocas, aqueles que viajaram
and the State. Cambridge; Nova York: Cambridge University Press, 2000.
por caminhos diferentes tenham sido intole-
9/ James C. Scott, Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the rantes uns com os outros, e que cada um tenha
Human Condition Have Failed. Yale Agrarian Studies. New Haven: Yale
University Press, 1998; Tim Cresswell, On the Move: Mobility in the Modern pensando que seria excelente se todos os outros
Western World. Nova York: Routledge, 2006. tivessem sido compelidos a viajar pela sua
estrada, suas tentativas de impedir o desenvol- deve resistir em seu movimento — uma resistência que
vimento alheio raramente tiveram qualquer Mill parece simplesmente presumir. (E é bastante impres-
sucesso duradouro.10 sionante que essa presunção ocorra simultaneamente a
seu alerta aterrorizado de que tal resistência está prestes
A Europa da perspectiva de Mill é um espaço no qual a ceder.) Talvez fosse possível especular que a movida em
as pessoas estão em perpétuos movimentos não homo- direção ao Oriente foi um modo de garantir a liberdade-co-
gêneos (para lugares variados, usando uma miríade de mo-movimento da Europa.
“estradas” e “caminhos”), que facilitam (talvez produzam) No início do século 17, a representação da América
um movimento homogêneo da sociedade como um todo: como lugar de movimento excessivo serviu para justificar
o progresso. Esse progresso é precisamente o que justi- projetos semelhantes de expansão. Os movimentos de
fica a expansão europeia para a “maior parte do mundo” exércitos, empresas de comércio, forças militares privadas,
que “tornara-se estacionária”.11 “As obsessões tutorial e colonos, capital e bens constituíam zonas caracterizadas
paradigmática do império e especialmente dos imperia- por seus regimes de movimento: as colônias. A colônia
listas são todas parte do esforço de mover as sociedades — que Ann Stoler define como um espaço não estável de
ao longo do gradiente ascendente do progresso histórico”, administração, re-domesticação, confinamento, contenção,
diz Uday Mehta. Assim, “a justificação liberal do império” disciplinarização e reformulação do movimento — veio
repousa sobre o argumento que, uma vez que a maior parte abordar, mas também demonstrar, e portanto construir, os
do mundo perdeu sua capacidade própria de movimento, movimentos supostamente perigosos e selvagens do colo-
sem as forças móveis (quase motoristas) da Europa, ela não nizado. Como Stoler sustenta, esse regime de movimento
seria capaz de se mover (leia-se: melhorar). O progresso, foi estabelecido em oposição às “convenções normativas
em sua articulação global, “é como ter um carro parado de ‘livre’ colônia e [a] uma população normal”.14 Assim,
rebocado por outro que é mais forte e portanto consegue essas oposições embutidas no movimento ocorreram em
carregar o fardo de um gradiente ascendente”.12 um regime de movimento mais amplo que se estende ao
A combinação do movimento europeu e da estag- menos da colonização à globalização. Essa também deveria
nação asiática situa-se na base da justificativa de Mill para ser considerada um “governo da mobilidade”,15 mais que
o projeto imperial. No entanto, essa estagnação ameaça a mera abertura de fronteiras.16 O que Didier Bigo observou
própria Europa: “a menos que a individualidade consiga
afirmar-se contra esse jugo, a Europa, não obstante seus
antecedentes nobres e sua professa cristandade, tende a 14/ Ann Stoler, “Colony”. Political Concepts: A Critical Lexicon, n. 1. Disponí-
vel em: www.politicalconcepts.org/colony-stoler/. Acesso em: 26 jul. 2023.
tornar-se outra China”. A Europa pode, em outras pala-
vras, “tornar-se estacionária”.13 Para evitar tal destino, ela 15/ Serhat Karakayali e Enrica Rigo, The Deportation Regime, eds. Nicholas
De Genova and Nathalie Peutz. Durham, NC: Duke University Press, 2010,
p. 127, in Nicholas De Genova e Nathalie Peutz (ed.), op. cit., p. 127; ver
também Saskia Sassen, Territory, Authority, Rights: From Medieval to Global
10/ John Stuart Mill, On Liberty. Cambridge Texts in the History of Poli- Assemblages. Princeton: Princeton University Press, 2006.
tical Thought. Cambridge; Nova York: Cambridge University Press, 1989, 16/ Como William Walters define: testemunhamos uma conjunção entre
p. 72 (grifos meus). [Edição brasileira: John Stuart Mill, Sobre a liberdade, lógicas e esquemas de governança que produz “uma política própria da
trad. Alberto da Rocha Barros. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2019.] mobilidade, cujo sonho não é deter a mobilidade, mas domá-la; não cons-
11/ Ibid., pp. 70, 72. truir muros, mas sistemas capazes de utilizar mobilidades, domando suas
energias e, em certos casos, utilizando-as contra os elementos sedentários
12/ Uday Singh Mehta, Liberalism and Empire: A Study in Nineteenth-Cen- e ossificados na sociedade; não uma imobilização generalizada, mas uma
tury British Liberal Thought. Chicago: University of Chicago Press, 1999, aplicação estratégica da imobilidade para casos específicos acoplada à pro-
pp. 81-2, 94. dução de (certos tipos de) mobilidade”. In William Walters, “Secure Borders,
13/ John Stuart Mill, op. cit., p. 72. Safe Haven, Domopolitics”. Citizenship Studies, v. 8, n. 3, 2004, p. 248.

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em relação à globalização — que a “liberdade diferencial de podem ser removidas, e é precisamente esse o sentido de
movimento (de diferentes categorias de pessoas) cria novas sua liberdade. Dado que Hobbes define a liberdade como
lógicas de controle que, por razões práticas e institucio- movimento desimpedido, a liberdade surge como produto
nais, estão situadas em outros lugares, em espaços trans- mesmo de sua limitação, desde que essa seja uma limitação
nacionais” — tem caracterizado os movimentos globais interna. John Locke pode ser lido como apresentando um
do mundo desde, ao menos, o século 17.17 “Lacunas de modelo distinto, que, não obstante, obedece a um princípio
mobilidade” é a definição precisa de Ronen Shamir para o bastante similar: a liberdade — como movimento — é pos-
que resulta dessa lógica.18 sível apenas em um sistema de cercamentos. Em última
análise, essa combinação de estabilidade e movimento
sujeitos possibilitou ao liberalismo forjar a ideia de uma liberdade
ordenada. O sujeito liberal foi esculpido no interior de
A oposição mencionada anteriormente entre colonização “certa ‘epistemologia da caminhada:’” foi um sujeito “cami-
e movimento não domesticado operou em dois níveis. O nhando sobre seus dois pés” de modo estável e firme;20 um
primeiro foi o corpo individual. Nele, essa oposição emerge sujeito cuja estabilidade veio a definir seu corpo, assim
mais como equilíbrio: entre movimento e estabilidade, que como seu pano de fundo social e material: uma casa, uma
é também equilíbrio entre liberdade e segurança. Em jogo, terra natal, um domínio próprio.
para o liberalismo, estava sempre a reconciliação desse No segundo nível do equilíbrio imaginado entre
conceito de liberdade com ordem social. A ideia de uma colonização e movimento, constatamos que essas noções
individualidade autônoma, que não pode ser controlada se sobrepõem, uma e outra vez, a divisões espaciais. “Casa”,
despoticamente (que não mais precisava ser controlada localização, enraizamento e outros fatores que tornam o
despoticamente) baseava-se na presunção de que essa movimento desejável e “livre” são, de vários modos, reserva-
individualidade se controlasse e se autorregulasse. A obra dos para sujeitos muito específicos. A despeito de variados
de Foucault é um ponto privilegiado, digno de nota para modelos de localização, africanos, indígenas da América ou
estudar as articulações dessa ideia, mas, já em Thomas asiáticos, assim como mulheres e indigentes, continuam
Hobbes, antes das tecnologias de poder exploradas por sendo descritos em textos de pensadores liberais seja como
Foucault serem postas em vigor ou mesmo sistematica- demasiado estagnados, seja como demasiado móveis. Assim,
mente teorizadas, encontramos essa questão. A liberdade o equilíbrio presumivelmente alcançado no interior do
do sujeito, em Hobbes, é também uma função de sua corpo do sujeito liberal torna-se um cisma, um contraste
vontade de controlar e confinar seus movimentos: uma vez entre aqueles que conseguem controlar seus movimentos
que ele concorde em “não fugir”19 e submeta suas ações e, portanto, podem governar, e aqueles cujo movimento é
à vontade do soberano, as correntes que o aprisionam impedido ou excessivo, e portanto não podem governar. Esse
mapeamento bissecciona a liberdade de movimento dos cor-
pos brancos, masculinos e com propriedades das ameaças
17/ Didier Bigo, “Detention of Foreigners, States of Exception, and the So-
cial Practices of Control of the Banopticon”, in Carl Grundy-Warr e Prem supostas carregadas pelos colonizados (“selvagens”), pobres
Kumar Rajara (ed.), Borderscapes: Hidden Geographies and Politics at Terri- (“vagabundos”) ou mulheres (consideradas confinadas à
tory’s Edge. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007, pp. 9-10. esfera doméstica ou histéricas — ou ambos).
18/ Ronen Shamir, “Without Borders? Notes on Globalization as a Mobi- Tim Cresswell mostra que essa divisão binária se
lity Regime”. Sociological Theory, v. 23, n. 2, pp. 197-217, 2005.
19/ Thomas Hobbes, Leviathan. Cidade: Editora, data, p. 141. [Edição
brasileira: Thomas Hobbes, Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma 20/ Andrew Hewitt, Social Choreography: Ideology as Performance in Dance
república eclesiástica e civil, org. Richard Tuck, trad. João Paulo Monteiro e and Everyday Movement. Post-Contemporary Interventions. Durham: Duke
Maria Beatriz Nizza Da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.] University Press, 2005, p. 801.
encontra no cerne da cidadania liberal. Enquanto a mobi- detenção e de deportação, encarnações modernas de hos-
lidade dos cidadãos é quase santificada como um direito, e pícios, zonas “internacionais” nos aeroportos.25 O fluxo que
usada para construir “agentes individuais autônomos que, é frequentemente celebrado como subversivo repetida-
por meio de sua mobilidade, [contribuem] para produzir a mente serviu para restringir o movimento-como-liberdade,
própria nação”, há sempre “outros não mencionados [que] para facilitar movimentos não livres (expulsão, tráfico de
se movem diversamente”; outros cuja mobilidade é “cons- escravizados, negação da propriedade da terra).
tantemente impedida”: “árabes-americanos parados na
imigração do aeroporto, hispano-americanos nos campos corpos
do agronegócio norte-americano ou motoristas afro-ameri-
canos parados desproporcionalmente por agentes de trân- Os estudos sobre indivíduos que têm necessidades espe-
sito”,21 e neste ponto podemos acrescentar os palestinos ciais há tempo chamam a atenção para a relação entre
nos postos de controle — um caso que se situa no coração capacidade física e cidadania; entre presunções específi-
desse livro. Assim, como regra geral, o sujeito com mais cas sobre os modos “normais” de portar nossos corpos no
mobilidade é o “cidadão” (ocidental): uma posição-de-su- espaço e a construção de espaços democráticos, que são,
jeito geralmente ligada à estabilidade e ao sedentarismo.22 em última análise, espaços de acessibilidade — de movi-
Em jogo estão processos complementares por meio mentos possíveis e impossíveis. Desse modo, o processo
dos quais uma “metafísica sedentária do enraizamento” e de formação subjetiva é, em grande medida, um projeto
uma “metafísica do movimento” se encontram em uma só de “normalização” de movimentos. De fato, uma leitura
ordem: primeiro, a cidadania repousa sobre um processo da teoria política revela quase uma obsessão com essa
de “domesticação da mobilidade”,23 que serve para dar necessidade de educar o corpo em modos “próprios” de
apoio à ideologia sedentária do Estado-nação no contexto movimento.26 Tal obsessão é tão forte que, de acordo com
de uma factualidade na qual os povos são, e foram, sempre Andrew Hewitt, no século 19, caminhar havia se tornado
móveis.24 Segundo, uma vez que essa imagem de estabi- aquilo que encarnava a “autoconsciência burguesa”.27
lidade tenha sido estabelecida para categorias específi- “Como os sujeitos se movem ou não, isso nos diz
cas de povos então-”enraizados”, ela serve para facilitar muito sobre o que conta como humano, como cultura e
sua mobilidade crescente. Finalmente, essas categorias como conhecimento”, defende Caren Kaplan.28 De fato.
específicas são formadas frente a outros grupos, que são ao Mas isso traz só parte da história. Como o movimento
mesmo tempo presumivelmente-menos-enraizados e, no de sujeitos é descrito ou imaginado nos traz quase tanto
entanto, constantemente barrados. O imigrante, o nômade quanto. Movimento é uma tecnologia de cidadania ou
e certas formas do que chegamos a definir como subjetivi-
dades híbridas representam, todos eles, posições de sujeito
25/ Zonas que são definidas como extraterritoriais e nas quais aqueles
que são configuradas por sua mobilidade, mas que, com que buscam asilo ou imigrantes na Europa podem se encontrar detidos.
frequência, habitam espaços de confinamento: campos de Cf. Council of Europe, Report by the Committee on Migration, Refugees
and Demography (2000) Arrival of Asylum Seekers at European Airports,
Doc. 8761, 8 June)
21/ Tim Cresswell, On the Move: Mobility in the Modern Western World. 26/ Ver Barbara Arneil, “Disability, Self-Image, and Modern Political
Nova York: Routledge, 2006, p. 161. Theory”. Political Theory, v. 37, n. 2, 2009.
22/ Id., ibid.; Liisa Malkki, “National Geographic: The Rooting of Peoples 27/ Andrew Hewitt, Social Choreography: Ideology as Performance in Dance
and the Territorialization of National Identity among Scholars and Refu- and Everyday Movement. Durham: Duke University Press Books, 2005, p.
gees”. Cultural Anthropology, v. 7, n. 1, pp. 24-44, 1992. 81.
23/ Serhat Karakayali e Enrica Rigo, op. cit. 28/ Caren Kaplan, “Transporting the Subject: Technologies of Mobility
24/ Saskia Sassen, Guests and Aliens. Nova York: New Press, 1999. and Location in an Era of Globalization.” PMLA, v. 117, n. 1, 2002, p. 32.

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subjetividade, como dito anteriormente. Por meio da por meio do movimento é mais que um compromisso com
produção de padrões de movimento (apatridia, deportabi- pensar a flexibilidade, se não a impossibilidade, da identi-
lidade, cercamento, confinamento), diferentes categorias dade. É também (e os dois estão intimamente conectados)
de subjetividade são produzidas. Regimes de movimento um compromisso com pensar a possibilidade de corpos
nunca são, portanto, simplesmente modos de controlar, não individuais e com estar sintonizado aos momentos nos
regular ou incitar o movimento, mas são essenciais para quais a impossibilidade de corpos individuais é revelada.
a formação de diferentes modos de ser. Além disso, o Às vezes, os movimentos nos machucam. Alguns abrem
movimento é também uma perspectiva sobre a qual pensar feridas em nosso corpo. Outros movimentos abrem feridas
sobre a subjetividade. Nas palavras de Erin Manning: “Um em nossa vontade. O Ishmael de Herman Melville, narra-
compromisso com os modos pelos quais se movem os cor- dor de Moby Dick, provavelmente o diz melhor. Do deque
pos”29 é um compromisso com pensar os sujeitos de modos do navio, preso a Queequeg por uma corda, ele observa os
próprios. Manning, como muitos antes dela, propõe que movimentos dos companheiros de tripulação tornando-se
esse compromisso seja um modo de pensar contra a esta- os seus próprios movimentos: “minha própria individua-
bilização do corpo no interior de “imaginários nacionais”.30 lidade estava então fundida em uma empresa de dois…
Como já sugeri brevemente, penso que essa afirmação seja Meu livre arbítrio recebera uma ferida mortal”,34 como ele
um tanto apressada. A tendência a celebrar os efeitos de diz. Nesse momento, ele compreende que somos ligados
desterritorialização do movimento em geral “negligencia a “uma pluralidade de outros mortais” em uma espécie
as relações de poder coloniais que produzem tais ima- de “conexão siamesa” que transforma os movimentos de
gens, em primeiro lugar”.31 Manning, no entanto, faz outra alguns também nos movimentos de outros; que corta os
afirmação em relação a esse compromisso que vale a pena laços entre a vontade individual e a ação35 mas também:
explorar: pensar os corpos por meio do movimento, ela diz, abre a própria volição. Por vezes, os movimentos nos forta-
é pensar o sujeito contra o nexo da identidade, uma vez lecem; aumentam nossos movimentos com a movimenta-
que “um corpo em movimento [...] não pode ser identifi- ção coesa de outros corpos, que são maiores que nós. Um
cado”.32 A questão do movimento é portanto também a movimento coletivo de pessoas — uma marcha, uma guerra
questão dos contornos e dos limites de sujeitos/corpos. ou uma ocupação, como as recém-observadas na praça
Se o movimento é um modo de pensar sobre certa Tahrir (no Cairo, Egito) ou no Occupy Wall Street — carrega
abertura desses contornos; se é um movimento que, nosso movimento individual com um sentido e poder que
eventualmente, chega a conter uma pluralidade de povos ele não poderia habitar e produzir sozinho. Importante
nos quais, como Arendt afirma, “cada homem mova-se em observar que há também um movimento entre esses dois
meio a seus pares”;33 se é um movimento por meio do qual polos: a injúria e a fortalecimento.
a pluralidade se torna um corpo (um movimento social,
um império, um Estado como movimento coletivamente
orquestrado), então um compromisso com pensar a partir e

29/ Erin Manning, Politics of Touch: Sense, Movement, Sovereignty.


Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007, p. xv. 34/ Herman Melville, Moby Dick. Oxford; Nova York: Oxford University
30/ Id., ibid., p. xv. Press, 1988, p. 287.
31/ Tim Cresswell, op. cit., p. 54. 35/ Id., ibid. Ou, nas palavras de Hannah Arendt, “nenhuma vida huma-
na, nem mesmo a do eremita na natureza selvagem, é possível sem um
32/ Erin Manning, ibid., p. xviii. mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe o processo de outros
33/ Hannah Arendt, The Promise of Politics. Nova York: Schocken Books, seres humanos”. In Hannah Arendt, The Human Condition. 2a. edição.
2005, p. 117. (Grifos meus). Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 22
tecnologias jogo japonês Go. Em vez de derrotar seu opo-
nente, como no xadrez, no Go você ganha o jogo
Tomemos um caso específico por meio do qual a lógica imobilizando o oponente, conquistando o con-
que desenhei pode ser examinada: o “regime de movi- trole de pontos-chave da matriz, de modo que
mento” que Israel aplica nos TPO; um extenso sistema sempre que ele/ela se move, encontra algum
burocrático de autorizações, sustentado por uma densa tipo de obstáculo.
rede de obstáculos físicos e administrativos, que fragmen-
tam tanto o espaço quanto o tecido social, regulando de Tendo escrito no ano 2000, Jeff Halper poderia ter visto
modo penetrante a circulação de pessoas e de bens, e que somente as sementes de uma densa rede de postos de con-
administra a população palestina por meio dessa regula- trole que se tornaria o componente predominante dessa
ção. Uma vez que muitos desses obstáculos estão situados matriz. É possível ver esses postos como válvulas, nas
também no interior de territórios palestinos (e não só em quais, primeiro, os corpos individuais em movimento são
“fronteiras” imaginárias e inexistentes entre os TPO e inspecionados e autorizados (ou não) a passar, e, segundo,
“Israel”), esse sistema impede — ou, ao menos, restringe a circulação de toda uma população, bem como dos bens
severamente — o que muitos consideram a banalidade do que ela consome e produz, é administrada. Além disso,
dia a dia das pessoas: ir ao trabalho, ao casamento de um gostaria de propor que a operação regular dos postos de
parente, fazer compras no mercado ou ir à escola. Todas controle tem como implicação práticas disciplinares pró-
essas são atividades simples para grande parte das pes- prias e peculiares: em uma de suas facetas, eles são parte
soas, mas são negadas para a maioria dos palestinos ou são de tecnologias corretivas destinadas a falhar. Essas práticas
“adquiridas” a custo de um tempo precioso; tempo que é semidisciplinares constituem os palestinos que passam
roubado, como descreve Amira Hass, e que “nunca poderá pelos postos de controle como produtos considerados sem-
ser devolvido”.36 pre fracassados de um sistema que opera conforme uma
Em outras palavras, “a escassez de tempo inabilita lógica disciplinar, que tem uma forma disciplinar, e que, no
o espaço”.37 E estreita a terra e inabilita a possibilidade entanto, foi construído para falhar, precisamente porque
de formação de uma comunidade política. O que então o que está em jogo não é a construção de sujeitos normali-
emerge é um modo de controlar o espaço e a população zados e autogovernáveis. O que está em jogo, ao contrário,
que o habita por meio do controle da temporalidade e da é a possibilidade de conectar modos não democráticos de
continuidade do movimento nele. governo (ocupação) a uma estrutura que insiste em sua
Jeff Halper definiu esse sistema como “a matriz democratibilidade. Uma genealogia da circulação e das
do controle”: tecnologias políticas que a regulam pode se tornar, conse-
quentemente, uma genealogia dos regimes e dos poderes
Trata-se de uma série de mecanismos interliga- que a circunscrevem.
dos, dos quais só alguns requerem a ocupação Muitos estudiosos dos espaços militarizados tra-
física do território, que permite a Israel con- balharam para mostrar como a violência de Estado opera
trolar cada aspecto da vida dos palestinos nos no nível das populações, mais do que no de corpos indivi-
Territórios Ocupados. A matriz funciona como o duais. A descrição do campo feita por William Walters é
um bom exemplo. De acordo com ele, o campo não é mais
36/ Amira Hass, “The Natives’ Time Is Cheap”. Ha’aretz, 23 fev. 2005.
um espaço disciplinar, uma vez que os Estados não estão
mais interessados por produzir um “tipo positivo de sub-
37/ Ariel Handel, “Where, Where to and When in the Occupied Palesti-
nian Territories: An Introduction to a Geography of Disaster”, in Adi Ophir
et al. (org.), The Power of Inclusive Exclusion. Nova York: Zone Books, 2009.

50
51
jetividade”38 em relação às populações que os habitam: os visto como uma investigação sobre o constante acopla-
deportáveis.39 Argumentos similares podem ser encontra- mento e desacoplamento entre liberdade e segurança (ou
dos em muitas outras análises contemporâneas de diferen- ordem) mediado por modalidades cambiantes de movi-
tes regimes de movimento. Busco compreender como uma mento: o projeto normalizador por meio do qual surge o
população, controlada pelo movimento, é produzida por sujeito disciplinar; as tecnologias de movimento por meio
tecnologias de subjetivação. Em outras palavras, pergunto das quais tais sujeitos são desconstituídos; o mapa marí-
sobre os dispositivos locais e concretos por meio dos quais timo por meio do qual tanto a ordem quanto suas disrup-
sujeitos se tornam corpos em movimento, que podem ser ções são globalizados.
governados primariamente pela administração de sua
localização e de sua circulação. traduzido do inglês por gabriel bogossian
O foco em postos de controle, cercamentos, cer-
cos, muros, deportações e outras medidas de regulação
do movimento nos territórios palestinos ocupados pode
ser tomado como apenas um aspecto de minha afirma-
ção sobre a conjunção entre movimento e liberdade. Se o
movimento é, de fato, a manifestação da liberdade e, além
do mais, encontra-se interligado a noções de subjetividade
liberal e portanto de cidadania, como esse livro busca
sustentar, então é quase trivial que um estado de ocupa-
ção — que é, por definição, uma eliminação da cidadania
e a negação da maior parte dos direitos políticos — incor-
pore algum controle do movimento em suas tecnologias
políticas. No entanto, esse caso permite enxergar muito
além. Enquanto de facto as limitações ao movimento na
Cisjordânia são limitações à(s) liberdade(s) dos palestinos,
o livre movimento é dado nesse contexto, primariamente,
em um paradigma de segurança (como ocorre em pressu-
postos contemporâneos relacionados à imigração e às via-
gens internacionais em geral). Nas palavras da organização
israelense de direitos humanos B’tselem, “a liberdade de
movimento palestina passou de um direito humano funda-
mental para um privilégio que Israel concede ou suspende
conforme julga adequado”.40 Este livro, portanto, pode ser

38/ William Walters, “Deportation, Expulsion, and the International


Police of Aliens”, op. cit.
39/ Id., ibid., p. 95.
40/ “Ground to a Halt: Denial of Palestinian’s Freedom of Movement in
the West Bank”, pp. 7-8. Bt’selem, ago. 2007. Disponível em: www.btselem.
org/publications/summaries/200708_ground_to_a_halt. Acesso em: 17
jul. 2023.
ahlam shibli Em um texto sobre a obra de Ahlam
Shibli, o crítico e historiador da arte
T.J. Demos faz referência ao teórico
e filósofo Roland Barthes e afirma:
“A morte é o eidos da fotografia,
sua forma ideal e mais destacada
expressão. De fato, não há fotografia
que não mostre ausente aquilo que
representa”.1
Nas 68 fotografias da série Death
[Morte] (2011-2012), Shibli parece
confirmar e, ao mesmo tempo, inver-

Sem título (Death n. 48), Palestina, 2011-2012


Morte n. 48. Impressão cromógena, 38 × 57 cm
Centro Histórico, Bairro de al-Kasaba, Nablus, 5 de fevereiro de 2012. Numa loja de legumes, um cartaz onde se
veem os mártires ‘Abd al-Rahman Shinnawi, ‘Amar al- ‘Anabousi e Basim Abu Sariyah dos grupos de resistência
52
53
ter essa afirmação. Shibli a confirma Na série Death, a perda de vidas um ato de rebelião contra a elimi-
na medida em que o tema da série humanas ecoa mediante a perda nação física e política da Palestina
é o regime de imagens e a cultura potencial do eidos fotográfico e de seus habitantes. Constitui,
visual do martírio na Palestina. Mas a de Barthes. principalmente, um testemunho da
obra questiona a afirmação quando, Cartazes, fotografias, pinturas onipresença da morte na sociedade
desde que a morte é seu objeto, a e banners de mártires palestinos palestina. De fato, suas imagens de
ausência cessa de pairar como um da Segunda Intifada (2000-2005) mártires povoam tanto o espaço
espectro sobre a imagem fotográ- povoam as imagens de Shibli. público quanto o privado.
fica. Trazida à luz e detectada, a A obra é certamente uma forte Observando a composição das
morte desafia o status da fotografia, tomada de partido, um testemunho fotografias que integram a série,
ameaçando-a com a perda de suas da violência exercida pelo Estado poderíamos ser tentados a con-
qualidades de ausência. israelense contra os palestinos e siderá-la uma única imagem e,
retomando Barthes, uma imagem
da qual aprendemos a reconhecer
o punctum, ou seja, o detalhe que
promove uma quebra na relação
entre o espectador e a intenciona-
lidade do fotógrafo. Há ao menos
duas imagens/detalhes que pon-
tuaram minha visão nessa panorâ-
mica. A primeira delas mostra dois
garotos, que parecem serenos, em
um cemitério palestino. A segunda
captura duas mulheres sorriden-
tes em casa, sob a imagem de um
mártir que carrega uma criança.
O punctum é uma ruptura, uma
pontada, uma ferida; consequente-
mente, esses dois detalhes na série
não oferecem um consolo banal
diante da penetração da morte, de
sua presença constante na vida em
um regime colonial, como esse que
sujeita os palestinos. Por outro lado,
eles ainda emitem vida como uma
ondulação no status quo, um rasgo
em um presente necropolítico.

marco baravalle

traduzido do inglês por


gabriel bogossian

_
1/ T. J. Demos, “Disappearance and precari-
ty: On the photography of Ahlam Shibli,” in
Ahlam Shibli: Phantom home. Essays by T.J.
Demos and Esmail Nashif. Exhibition Catalog.
Barcelona/ Paris/ Porto/ Ostfildem: Museu d’Art
Contemporani de Barcelona (macba) / Jeu de
Paume / Museu de Arte Contemporânea de
Serralves / Hatje Cantz, 2013, p. 16.

armada Faris al-Leil (Cavaleiro da Noite) que pertecem às Brigadas dos Mártires de al-Aqsa. Nas margens do
cartaz, um retrato de Naif Abu Sharkh, líder das Brigadas al-Aqsa em Nablus. O cartaz traz um adesivo onde
se vê um punho erguido com as cores da Palestina e os dizeres “Queremos que a ocupação fracasse. Boicote o
Tapuzina [um refrigerante israelita]. Iniciativa Nacional Palestina”.
aida harika yanomami, Em 2023 vimos escancarados os Yuri u xëatima thë [A pesca com
edmar tokorino yanomami ataques e o genocídio promovi- timbó] e Thuë pihi kuuwi [Uma
e roseane yariana dos contra o povo Yanomami. As mulher pensando] contam histórias
yanomami ameaças do garimpo ilegal e suas íntimas do povo Yanomami sobre
consequências socioecológicas dois de seus rituais. O primeiro
não são de hoje e já faz tempo que aborda o hábito da pesca realizada
os Yanomami buscam se proteger com cipó macerado e colocado em
através de organizações, mas tam- balaios em determinados trechos do
bém reforçando sua cultura e tradi- rio em tempo de seca. O segundo
ção. O cinema indígena yanomami nos faz acompanhar o pensamento e
é recente, mas se mostra potente, o olhar de uma indígena sobre a pre-
dinâmico e assertivo. paração da yãkoana para uso ritual

Thuë pihi kuuwi, 2023


Uma mulher pensando. Dirigido por: Aida Harika Yanomami, Ed-
mar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana. Still do vídeo. Vídeo,
cor, som; 9’.
54
55
dos xamãs. Ambos são dirigidos realidade e ficção. Já em Thuë que protege toda a comunidade e,
por Aida Harika Yanomami, Edmar pihi kuuwi, a narradora nos coloca como descreve Davi Kopenawa no
Tokorino Yanomami e Roseane dentro de sua mente e vemos o que livro A queda do céu, os xamãs mais
Yariana Yanomami, membros da ela vê ao longo de um dia inteiro antigos ensinam as novas gerações
organização Hutukara, e foram fil- em que assiste à preparação da a responder ao chamado dos
mados na comunidade Watorikɨ. yãkoana. O ritual é um dos mais espíritos, pois, se não o fizerem,
Yuri u xëatima thë começa nos importantes entre os Yanomami: ficarão ignorantes.
inserindo em um cenário coletivo e é quando os xamãs entram em Os rituais, as tradições, a ligação
nos conduz a uma virada de roteiro contato com os espíritos xapiri, do povo Yanomami com o sonho e
que passa a acompanhar o conflito os chamam para dançar e entram suas cosmologias estruturaram um
envolvendo uma única persona- em estado de transe e sonho. É o sistema de crenças sobre a preser-
gem, borrando a fronteira entre contato dos xamãs com os xapiri vação da existência mundana e são
armas poderosas através das quais
pulsa a vida e a nossa possibilidade
de futuro.

pérola mathias

Yuri u xëatima thë, 2023


A pesca com timbó. Still do vídeo. Vídeo, cor, som; 10’
aline motta

56
57
Aline Motta organiza o material dade, encontram-se as narrativas parentescos, novas linhagens e até
da história para criar significados. íntimas que ela revela. A constru- mesmo uma nova de filiação?”1
Ora poeta, ora cineasta, ora fotó- ção da história colonial brasileira Do berço à sepultura, do útero à
grafa, ora performer, sua prática fraturou, desbotou, sobrecarregou tumba,2 Motta se move meticulosa-
é especulativa. Construindo ou suas linhagens familiares, que mente por entre os vestígios de sua
transformando mundos, por meio ela reconstrói – puxando o cor- família. Enquanto isso, ela examina
do processo da anotação e da dão umbilical que faz nascer sua a força matriarcal que torna tudo
edição, ela dialoga com o silêncio mãe, depois sua avó. Por meio de possível. Mares de páginas, fios
do esquecimento do arquivo no imagens e textos, sua obra épica, de tinta, poças de sangue – tudo é
intuito de tornar visível o que não A água é uma máquina do tempo engolido na espiral de tempo, ilu-
é familiar e não é conhecido. Além propõe a seguinte pergunta: “Seria minado por formas de cuidado que
da estrutura imperial da fecundi- possível fabular novos laços de Motta coloca no coração pulsante
de sua prática artística. No entanto,
esses gestos não são simples nem
configuram significações norma-
tivas do amor ou da feminilidade.
Antes, são formas feridas e esfo-
ladas, insistentemente enegreci-
das, de apoio. A bem dizer, como
argumenta a teórica em estudos
afro-americanos Saidiya Hartman,
essas mesmas “formas de cuidado,
de intimidade, e de sustento,
exploradas pelo capitalismo racial,
sobretudo, não são reduzíveis ou
esgotáveis por ele... Esse cuidado,
que é coagido e dado livremente,
é o coração negro de nossa poiesis
social, do fazer e do relacionar”.3

oluremi onabanjo

traduzido do inglês por


alexandre barbosa de sousa

_
1/ Aline Motta, “A água é uma máquina do tem-
po”. eLyra: Poesia e Arquivo, n. 18, p. 333-337,
2021. (Depoimentos). Disponível em: elyra.org/
index.php/elyra/article/view/422/457. Acesso
em: 28 maio 2023.

2/ Aqui invoco Christina Sharpe, In the Wake:


On Blackness and Being. Durham: Duke Univer-
sity Press, 2016, p. 87.

3/ Saidiya Hartman, “The Belly of the World: A


Note on Black Women’s Labors”. Souls: A Critical
Journal of Black Politics, Culture, and Society,
v. 18, n. 1, p. 166-173, jan./mar. 2016, p. 171.

A água é uma máquina do tempo, 2023


Still do vídeo
amador e jr. A inteligência artificial logo, logo e Jr. Segurança Patrimonial Ltda.
segurança patrimonial vai nos dar uma rasteira das boas, Devidamente uniformizados –
ltda. mas por enquanto ainda podemos terno e gravata sempre –, eles vão
vislumbrar resquícios de humani- imprimindo sua marca no mer-
dade em alguns ofícios cuja exis- cado ao longo dos anos. A dupla
tência melindra entre contradições especializou-se na salvaguarda de
e resistências. É o caso do crítico galerias de arte, mostras, salões,
de arte e também do segurança, bienais e afins. Às vezes você vai
profissional que inspira a investiga- vê-los postados bem diante de
ção artística de Antonio Gonzaga uma obra, empatando a apreciação
Amador e de Jandir Jr. Surge daí a (Sem título, 2016); noutras, é pos-
empresa de performance Amador sível encontrá-los mergulhados na

Sem título, 2016


Registro de performance, Museu Nacional de
Belas Artes, Rio de Janeiro (2016)

58
59
leitura de livros (Ler, 2023), olhando armar bombas lógicas através de Patrimonial Ltda. tem a expertise de
fixamente para baixo (Chão, 2023) uma presença tensionada; eles dobrar os espaços onde performa;
ou até mesmo de olhos bem minam um campo onde as estrutu- se a área útil é de cem metros qua-
fechados durante o expediente ras de nossa formação vão explo- drados, dá para chegar tranquilo aos
(Vigilante, 2016). Tudo para melhor dindo sob nossos pés: o racismo duzentos metros quadrados, ou até
servi-los, senhoras e senhores. institucional, a exploração dos mais. No entanto, vale lembrar que
Nessas performances, as armas trabalhadores, o precariado, a per- esse fenômeno insólito só poderá
usadas para defender o patrimônio sistência sinistra da escravidão, ou ser concluído na superfície cerebral
alheio são o deboche e a ironia, seja, a manutenção das elites que do público, que, se não ganhar o
mas o jogo não se restringe ao consomem arte. terreno adicional, pelo menos vai
escopo humorístico. Antonio e Formalmente, trata-se de sobre- poder sair de lá dando boas risadas,
Jandir usam o próprio corpo para posição. A Amador e Jr. Segurança sem ter entendido a piada.

igor de albuquerque

Nada! Artes aquáticas, 2019


Registro de performance, Centro Esportivo e
Educacional Golfinhos da Baixada, Queimados (2019)
amos gitaï

Bait, 1980
Casa. Stills do filme. Filme 16 mm transferido para
vídeo; 51’

60
61
“Gitaï quer que essa casa se Amos Gitaï vem documentando uma casa / Lar] (2005). Nesses fil-
torne algo bem simbólico e bem uma única casa em Jerusalém oci- mes, o espaço arquitetônico revela
concreto, que ela vire um perso- dental por mais de quatro décadas uma dimensão política.
nagem. Uma das coisas mais a fim de narrar a história de uma Bait é o primeiro trabalho de
bonitas que os filmes podem região complexa por meio de varia- Gitaï, filmado em 1980 imediata-
alcançar: pessoas olhando para das formas artísticas. Seus projetos mente depois de seu retorno de
a mesma direção e vendo coisas começaram com uma trilogia de Berkeley, onde ele terminara um
diferentes. E sendo movidas por documentários realizada ao longo doutorado em arquitetura. Esse
essa visão.” de mais de 25 anos: Bait [Casa] documentário em preto e branco
(1980), A House in Jerusalem [Uma realizado em 16 mm identifica os
− serge daney, casa em Jerusalém] (1998) e News diferentes proprietários e ocupantes
Libération, 1º mar. 1982 from a House / Home [Notícias de de uma casa, desde o primeiro, um
médico palestino que a abandonou
em 1948. O governo israelense então
a confiscou e alugou, com base em
uma lei “da ausência”, para um casal
de judeus imigrantes da Argélia. Na
época da filmagem, um professor
de economia israelense comprou
o imóvel. Ele decidiu transformá-la
de casa térrea em um casarão de
três andares. Mas, para executar
a construção, teve que contratar
palestinos do campo de refugiados
e usar pedras das montanhas de
Hebron. O espaço arquitetônico da
Casa, assim, tornou-se ao mesmo
tempo um microcosmo das rela-
ções israelense-palestinas e uma
metáfora para Jerusalém. O filme
constitui um palco aberto para
diferentes ocupantes, trabalhadores
e empreiteiros compartilharem suas
vidas e perspectivas. A transmissão
de House, o filme de 1980, foi banida
pela televisão israelense na época.

editado por juliana de arruda


sampaio

traduzido do inglês por gabriel


bogossian
ana pi e “A unidade é submarina…”
taata kwa nkisi mutá imê − edward kamau brathwaite

EXERCÍCIOS DAS MARGENS DO TEMPO, 2023


Fotografia e manipulação digital. Estudo para a obra comissionada pela
Fundação Bienal de São Paulo para a 35a Bienal

62
63
Ana Pi é uma artista do corpo e do a diáspora africana, envolvendo Essa parceria deu origem a um pro-
espírito, que integra noções de trân- inquices, voduns, orixás, caboclos e jeto expressivo transnacional que
sitos e de deslocamentos a seus tra- encantados, por meio de movimen- triangula Brasil, França e Senegal.
balhos, por meio de gestos, cores e tos que equilibram as dimensões Na forma, “as redes dessas escritas
sons comuns. Taata Kwa Nkisi Mutá mental, física e espiritual. Juntos, tocantes e entrecruzadas compõem
Imê é diretor da Casa dos Olhos do “esses praticantes fazem uso de uma história múltipla que não tem
Tempo que Fala da Nação Angolão espaços que não podem ser vistos”.1 autor nem espectador, moldada a
Paketan Malembá-Nzo Mutá Lombô Em conjunto, Pi e Mutá Imê escre- partir de fragmentos de trajetórias
Ye Kayongo. Desde a década de vem com o corpo, costurando e alterações de espaços”.2 É uma
1980, Mutá Imê vem moldando espaços e memórias para ir além da ruminação poética corporificada
uma metodologia para o ensino e a coreografia do palco e adentrar os em caminhos percorridos em
pesquisa da dança sagrada em toda movimentos da vida cotidiana. praias e ruas de paralelepípedos,
entrando e saindo de coleções insti-
tucionais do Institut Fondemental
d’Afrique Noire (IFAN), em Dacar,
no Senegal, e do Musée du Quai
Branly, em Paris, França. Esses ato-
res compartilham um compromisso
com a errância, que, na realidade,
é a “postulação do sagrado, que
nunca se dá e nunca se apaga”.3
Ao mesmo tempo que reconhecem
uma forma de pensar inscrita na
visão, acolhem o conhecimento que
emana do corpo nos vestígios que
deixamos, nos suspiros que emiti-
mos. São parceiros comprometi-
dos com o periférico – um espaço
mental no qual o inseguro pode
se tornar um lugar de construção;
um lugar em que se vai em busca
da imagem gravada na mente, mas
volta com sementes, prontas para
fazer crescer novos mundos.

oluremi onabanjo

traduzido do inglês por


naia veneranda
_
1/ Michel de Certeau, “Walking in the City”, in
The Practice of Everyday Life (1980), trad. Steven
Rendall. Berkeley: University of California
Press, 2010, p. 93.

2/ Ibid., p. 93.

3/ Édouard Glissant, Poética da relação. Tradu-


ção de Marcela Vieira e Eduardo Jorge Oliveira;
revisão técnica Ciro Oiticica; prefácio Ana
Kiffer, Edimilson de Almeida Pereira. 1ª ed. Rio
de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 44.

esta participação é apoiada por: Institut


français.
anna boghiguian A obra de Anna Boghiguian compõe an Economy – Costly Commodities
uma narrativa polifônica que se des- [Ventos entrelaçados − A formação
dobra em desenhos, pinturas, diora- de uma economia – commodities
mas, instalações e textos. Ao mesmo custosas] (2016-2022), em que, por
tempo, ela constitui um extraordi- meio de desenhos, textos, colagens
nário instrumento de investigação e recortes de papel, Boghiguian (re)
histórica que, sem ceder em termos conta a gênese e o desenvolvimento
poéticos, é capaz de analisar contex- do comércio de algodão, atividade
tos específicos, fragmentos de vidas que tanto antecipa quanto profetiza
individuais e um amplo espectro de a globalização atual da economia.
fenômenos. É o caso de seu traba- Malcom Ferdinand, especia-
lho Woven Winds − The Making of lista em ecologia política, prefere

64
65
referir-se à nossa era com o termo algodão (entre outras), plantios de seu carregamento de europeus
Plantationceno – a era da planta- esses que substituíram formas pobres (como os irlandeses, força-
tion1 – para enfatizar as responsa- indígenas tradicionais de cultivo e dos a fugir da Grande Fome, ocor-
bilidades do colonialismo na atual de circulação de produtos a fim de rida entre 1845 e 1849), aterrissados
crise social e ecológica. A obra de abrir caminho para um modelo de em solo estadunidense, para con-
Boghiguian parece vir corroborar produção extrativista e totalmente tribuir com a formação da grande
essa tese. De fato, diante de sua voltado ao lucro. riqueza daquela nação, que, como
obra, o espectador vê-se imerso As dramáticas histórias dos a artista menciona, deve muito ao
em uma história populada por escravizados se entrelaçam às nar- cultivo do algodão e ao fato de que
escravizados do oeste da África, rativas sobre os imigrantes euro- esse cultivo se organizou em torno
deportados para o Novo Mundo peus. Boghiguian representa um da escravidão.
para trabalhar em plantations de navio no momento do desembarque Viajante incansável, Boghiguian
estudou entre Egito, Canadá e
México. Sua produção apresenta
uma forma de registrar realidade
e contexto, jamais com um olhar
distanciado. Ao contrário, a obra
dessa artista é sempre posta com
respeito às condições sociais do
presente e, geralmente, inclui o
questionamento sobre os even-
tos históricos que as produziram.
Ao mesmo tempo, sua paixão
pela pintura simbolista − Gustave
Moreau e William Blake, por exem-
plo − emerge de uma veia surreal
que é parte integral de sua poé-
tica, desconstruindo as linguagens
oficiais do poder ao dessacralizar
suas representações sagradas: um
sonho alucinante e irônico no qual a
artista move seu ataque poético em
direção ao poder absoluto e a suas
encarnações.

marco baravalle

traduzido do inglês por


gabriel bogossian

_
1/ Sistema de produção agrícola baseado em
grandes latifúndios e monoculturas, em geral
utilizando trabalho escravizado, praticado por
países europeus em suas colônias na América,
África e Ásia a partir do século 16. [n.e.]

Aquarelas da instalação Woven Winds − The Making of an


Economy − Costly Commodities, 2016. Ventos entrelaçados.
A formação de uma economia – commodities custosas. Grafite e
aquarela sobre papel, 18 peças, 41,8 × 29,5 cm (cada)
anne-marie schneider De seus primeiros desenhos na
década de 1980, centrados no poten-
cial transbordante da escrita e da
linha, a suas incursões posteriores
em planos de cor e a experiência de
uma policromia orientada ao sensí-
vel, o traço parece ser o elemento
que oferece unidade ao imaginário
deliberadamente fragmentário da
artista Anne-Marie Schneider.
Schneider explica que, enquanto
cria, trabalha com a consciência e

Sem título (interior azul), 2012


Acrílica sobre papel, moldura de madeira
e acrílico. 10 peças, 30 × 30 cm (cada)

66
67
a inconsciência ao mesmo tempo. Suas obras estão repletas de per- que os cerca “como um complexo
Desse modo, as peças selecionadas sonagens solitários ou de relacio- instável trabalhado pela violência
para coreografias do impossível namentos perturbadores, rostos dos afetos”.2
configuram um repositório de ima- distorcidos que se confundem Essas deformações grotescas
gens mentais transferidas para o com suas máscaras, corpos que abrem caminho para uma prática
papel. Carregadas de ressonâncias sofrem mutações e se prolongam que contempla a distorção e a
biográficas e alusões a questões no espaço doméstico, arquiteturas fábula ao um só tempo, partindo
sociais, a artista tenta registrar − emocionais nas quais as fronteiras do absurdo, da ironia ou da crítica.
ou coreografar −, por meio delas, entre pessoa e estrutura se des- Assim, os desenhos e as pinturas
o tremor que constitui o eu, que, vanecem. Nas palavras do crítico de Schneider esboçam um sem-
conforme o aforismo rimbaudiano, francês Jean-François Chevrier, blante autoconstruído: que jamais
também “é um outro”.1 esses corpos-casa entendem o deixa de se recompor por meio da
recuperação do gesto, dos vestígios
e das confusões do discurso, das
cenas que − como explicou uma
de suas referências, a escritora
Virginia Woolf − produzem uma
onda na mente.3

beatriz martínez hijazo

traduzido do espanhol por


ana laura borro

_
1/ Frase do poeta francês Arthur Rimbaud,
“Je est un autre” (Eu é um outro) está presente
em uma carta de 13 de maio de 1871, endere-
çada a seu professor Georges Izambard. El País,
Madri, 16 nov. 2016.

2/ Jean-François Chevrier (posfácio), “Trazo


película color” [Traço filme cor], in Anne-Marie
Schneider. Madri; Paris: Museo Nacional Centro
de Arte Reina Sofía; Éditions L’Arachnéen, 2016.

3/ Virginia Woolf, “Esta ola en la mente”


(Essa onda na mente), trecho de uma carta de
16 de março de 1926, endereçada à escritora
e jornalista Vita Sackville-West. In Federico
Sabatini (ed.), Sobre la escritura. Virginia Woolf.
Barcelona: Alba Editorial, 2015, p. 34.

Sem título (porta de tijolos com personagem), 2019 esta participação é apoiada por:
Acrílica sobre papel, 46 × 42,3 cm Institut français.
archivo de la memoria O Archivo de la Memoria Trans
trans (amt) (AMT) visa proteger, construir e
recuperar a memória da comunidade
trans por meio de fotografias, vídeos
e recortes de jornais e revistas.
Criado na Argentina e com uma
coleção de aproximadamente 15 mil
peças, o arquivo vive e cresce a cada
dia através de doações. Desafiando
as narrativas predominantes, o AMT
serve como repositório de uma
memória coletiva deliberadamente

Fondo Documental [Fundo Do- Fondo Documental [Fundo Documental]


cumental] Malva Solís, c. 1965 Marcela Soldavini – La Rompecoche,
Fotografia c. 1985. Fotografia

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69
apagada, lembrando a sociedade Archivo de la Memoria Trans, com esse objetivo se alargou e logo se
das experiências de pessoas trans, o objetivo de se conectar com as tornou um esforço coletivo para
que sofreram negligência do Estado pessoas envolvidas nessa história construir a memória comum.
e enfrentaram incompreensão e de luta. Em 2018, o grupo tinha O AMT tem um forte significado
hostilidade da sociedade. mais de mil mulheres trans parti- como um lugar de memória e pre-
O Archivo surgiu com as ideias cipantes, tanto argentinas quanto servação, além de ser outra forma
visionárias das ativistas María Belén estrangeiras. A ideia inicial do de ativismo.1 Ele serve ao duplo
Correa e Claudia Pía Baudracco. projeto era reunir as companheiras, propósito de construir um arquivo
Após o falecimento de Claudia suas memórias e suas fotografias, que lança luz sobre a vida e as ale-
em 2012, María Belén embarcou preservando esse material primeiro grias das pessoas trans, ao mesmo
no desenvolvimento do projeto. em uma biblioteca e depois em um tempo que registra os desafios
Ela criou um grupo no Facebook, espaço virtual. Em pouco tempo, enfrentados pela comunidade na
Argentina. O conteúdo é acessível
ao público em geral por meio de
várias plataformas on-line, promo-
vendo um espaço inclusivo para
engajamento, discussão e ação
sobre identidade e resistência. Ao
preservar álbuns de fotografias e
outras tantas lembranças pessoais,
o arquivo assume o papel de uma
espécie de reunião de família. Esses
conjuntos de imagens guardam as
narrativas visuais de uma rede afe-
tiva baseada no apoio, na proteção
e na celebração da vida, e preser-
vam a memória das companheiras
que não estão mais aqui.
O Archivo está presente na
35ª Bienal de São Paulo na forma de
um mural de memórias, uma cola-
gem de mais de 3 mil peças, entre
artigos de jornal e revista, fotos
pessoais, imagens de momentos
íntimos e retratos do cotidiano. Por
meio dessa instalação, documentos
se tornam janelas para vidas de
um passado que ecoa com força
nos dias de hoje. Cada fotografia
guarda uma recordação, e o mural
se transforma em um monumento
de luta.

sylvia monasterios

_
1/ Ver Memorias reveladas, de Quentin Wor-
thington (França, 2019, 23’), documentário
sobre a criação do amt.

Fondo Documental [Fundo Documental] Vanesa Sander, c. 1990


Fotografia
arthur bispo do rosário o olhar que deseja indecretar até hoje a loucura tem sido tratada
a feiura atribuída à loucura, às como uma ferida feia engavetada
loucuras, precisa ser tudo, menos em muros mais altos que os alvos
clínico. é uma mirada que precisa pés-direitos dos museus. então,
alcançar tudo, com o cuidado de alguns museus tomam pra si a
desacertar alvos (em geral escu- tarefa de romper a interdição que
ros). e à qual imprescinde um se coloca quando chamada de
gesto que não precisa abarcar feiura, quando condenada à escon-
tudo, fora do delírio colonial da didão, atribuindo ininteligibilidades
conquista, da catalogação, da programadas à loucura.
categorização que não escuta a ainda assim me pergunto com
voz da autodeterminação. qual manto foi enterrado o corpo

70
71
de arthur bispo do rosário (1909 será que algum dos mantos cum- do juízo final, por entre as peças
[1911]-1989) depois de sua passa- priu o sonho do profeta negro de expografadas, museológicas, per-
gem; me pergunto se algum dos cobrir seu corpo, y desvelar sua feitamente iluminadas de museu,
mantos que teceu escapou da sina alma, no dia de seu juízo final? que trilhamos caminho sobre o silêncio
ou sanha que fez, pelo “descobri- afinal tem sido vivido (ou morrido) que sua não resposta encerra.
mento da beleza”, retirá-los dos parceladamente mesmo, conforme se há beleza na feiura com que
cubículos psiquiátricos em que o cada pessoa morre, ainda que descuidamos a loucura, quando é
marinheiro, o boxeador, o coxo, nesses tempos, ainda de encarcera- possível chamá-la de arte? tal-
interditado por ser dado como mento psiquiátrico negro massivo. vez importe dizer que o bordador
louco antes de intitulado artista essa é uma pergunta retórica, morreu longe, muito longe, do
– rótulo que recusou –, lá onde dramática. enquanto atravessamos museu; trancafiado, muro enorme,
os coseu. nossa matéria, livre por enquanto hospício adentro. que antes mesmo
de morrer, lá bem trancafiado, já
ia sendo separado de seus mantos,
suas faixas, panos todos e vitrinas
que bordou, coseu, teceu, por não
ser artista nem ser ateu.
e bispo do rosário é hoje nome
de museu! coberto do manto invisí-
vel de artista que não teceu.

tatiana nascimento

Arthur Bispo do Rosário com


a obra Semblantes, sem data
aurora cursino dos santos com quantas facadas se faz essa
dor? e quantas pinceladas, para
desfazê-la? há tantos olhos, nas
pinturas, quase tantos quanto há
palavras – mais, ou menos legíveis.
os olhos parecem olhar de lá, do
antes quando foram pintados, se
o agora trouxe alguma novidade,
menos facadas, menos sangue der-
ramado, menos dessa dor.
é uma dor de muitos nomes:
machismo, misoginia, patriarcado,

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opressão, violação, desrespeito, destinos programados para o fim. mas a moça é drapetômana! dada
desumanização… alguns dos pares para a servidão. para a violência. às fugas, às derivas, aos destinos
de olhos traduzem alguns desses para a dor. reescritos pelo traçado próprio
nomes, se você prestar atenção, um pouco antes da virada do do desejo.1
se você tiver coragem de olhar de século, nasce Aurora. naquele Aurora foge, se separa, tenta de
volta lá dentro deles, dentro dos tempo, a categorização via suposta um tudo nessa vida: inclusive as
quadros, dentro do tempo que ten- biologia era ainda mais rígida que artes, nas europas, pois que sonha,
tou de tantas formas, tantas vezes, agora: e Aurora nasce menina. e os sonhos também têm fome.
calar Aurora (1896-1959). menina filha de uma mãe, e de uma fome dessas é que deve tê-la
profecias, devaneios, desconju- um pai. levado à profissão que dizem a mais
ros, previsões. um desejo: prever-se e quando essa menina vira moça, antiga do mundo, não? tão antiga
um futuro feliz. a arte de fugir dos o pai obriga a moça a se casar. quanto aquela dor? mais antiga?
profissões, servidões: esposa, puta,
doméstica. inadequações: louca.
mas Aurora, antiga, contam seus
quadros, ia meio que prevendo um
mundo novo, por mais que escom-
bros, que ruínas de mundos tão
arcaicos, tão demorados de passar,
a tentassem soterrar:
talvez seja meu devaneio, meu
desejo, mas parece que, além de
tantas facadas, os tantos olhos
que pintou buscam vestígio desse
mundo-sonho – em que mulheres,
qualquer profissão que tenham
(ou não), independentemente do
quanto tentem os muros das casas
de patroa, das celas manicomiais,
estrangular, sufocar, silenciar… um
mundo em que qualquer mulher,
por mais indigna que seja conside-
rada, “psicopática amoral”, possa
prever-se futuro feliz.
& eu sonho junto.

tatiana nascimento

_
1/ Os poucos e incertos dados biográficos de
Aurora Cursino dos Santos estão sinalizados
nas suas pinturas e desenhos, quase sempre
autorreferenciados, habitando um lugar entre
a memória e o delírio. Estão também presentes
em relatos médicos e documentos psiquiátricos
que, como todo arquivo da violência, excedem
pela parcialidade e exigem uma leitura descon-
fiada e crítica. [n.e.]

Sem título, sem data (frente e verso)


Óleo sobre papel, 47,5 × 32 cm
ayrson heráclito
e tiganá santana

74
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Agô! Tiganá Santana, olhos que nunca sobre as quais caminhamos. Flores,
Pede-se licença para entrar na dormem, realizam um sonho: um pererecas, insetos e outros biomas
mata sagrada. tributo à floresta, uma oferenda às extintos convivem com ancestrais
forças da natureza, louvando sua originários, com caboclos, com
Povoada de vidas materiais, inani- energia resguardada entre plantas e Chico Mendes, com Bruno e Dom,
madas ou que se tornaram ances- árvores, que tornam possível a exis- com mãe Stella de Oxóssi. Quando
trais, nela habitam diversas ener- tência da humanidade. essa floresta chora as dores da vio-
gias, que, em conjunto, formam Das projeções que refletem lência, do colonialismo e da destrui-
uma floresta de infinitos. imagens múltiplas, produzindo ção, é Oyá, agora guardiã de todos
Sob a proteção sempre alerta de sons e sensações que surgem em esses Eguns, mãe de tudo que já
caboclos, encantados, de Oxóssi e uma floresta fria e colorida, saltam foi vivo, que os/as convida a dançar
de Mutalambô, Ayrson Heráclito e rios, pássaros e folhas amassadas alegremente e celebrar a vida que se
preserva e se renova na natureza.
A floresta de infinitos, instalada
no centro da maior cidade da
América Latina, é uma façanha da
arte, fruto de uma coragem de
caçador. É uma história impossível
materializada em nome de um
projeto político em defesa da vida
e da preservação da natureza, que
propõe uma ruptura radical com a
ignorância e o extermínio.
Agô, é hora de deixar a floresta.
Deixemos a mata voltar a seu silên-
cio misterioso, com seus encanta-
dos, rios e formas de vida infinitas.
Com a ausência humana, os bam-
buzais balançam novamente sinali-
zando o reestabelecer do equilíbrio.
Seres invisíveis fundem-se em
uma só potência vital e estão livres
novamente no anoitecer das matas
de Oxóssi e Mutalambô. A respeito
da visita humana, perguntam-se:
será que aprenderão que toda vida
é sagrada?

Agô.
A bênção.
Olorum Modupé.

luciana brito

Ayrson Heráclito e Tiganá Santana


benvenuto chavajay

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Me concederam a palavra para falar gem de tortura ou execução, e por
de Benvenuto Chavajay a vocês, os isso a ação de Chavajay nos per-
outros. Aqui na 35ª Bienal de São turba. No entanto, no mundo maia,
Paulo, ele, como alguns outros par- ao contrário, as pessoas que se
ticipantes da mostra, não se enqua- deixam cair de cabeça para baixo
dra apenas no papel de artista: ele dançando se associam à fertilidade
é um ritualista que convoca mun- e à celebração da vida digna.
dos, submundos, supramundos. O artista fica de cabeça para
Outros mundos possíveis. baixo com um chocalho que convoca
No Ocidente, a ação de uma as almas: mas ele está enquadrado
pessoa pendurada de cabeça para em uma moldura para que a rituali-
baixo é em geral relacionada à ima- dade, para nós, que estamos deste
lado, “apareça como arte”. Aqui,
então, surgem todas as questões
sobre os limites entre os paradig-
mas que tornam invisíveis outras
existências – transformando seres
humanos, animais e espíritos em
pura mercadoria (conceitos segundo
os quais nos movemos diariamente,
classificando a realidade sob parâ-
metros impostos a ferro e fogo)
– e aquilo que ressoa dentro de
nós, ainda... e apesar dos quinhen-
tos anos.
Chavajay se apresenta como
filho de analfabetos; isso significa,
na realidade, que ele é herdeiro de
uma linhagem de des-conhecedores
das lógicas simbólicas da domina-
ção e do extermínio colonial. Com
ele dançam um território, uma
comunidade, uma língua e uma
história de resistência.
Benvenuto reivindica esses
elementos tanto quanto a honra
perdida das pedras, consideradas
sagradas em muitas das culturas
do continente americano. Portanto,
suas ações performativas são de
grande generosidade: ele mobiliza
forças não como um espetáculo
vazio, não como uma excentrici-
dade, mas como um pequeno fogo
que vai dissolver a alma das pedras.

natalia arcos salvo

traduzido do espanhol por


ana laura borro

Camino/en la grieta a Xibalbá, 2023


Caminho/na fenda de Xibalbá. Stills do vídeo.
Videoinstalação em 2 canais; 6’, 7’
bouchra ouizguen A coreografia excede a composi- num deserto. O coro de Corbeaux
ção do movimento no espaço; ela [Corvos] é formado por mulheres
envolve o trabalho com o tempo, de diferentes idades e origens,
com a voz, com os afetos de algumas das quais são membros
quem assiste e com os invisíveis da Compagnie O desde seu início.
que flutuam entre as imagens na Mas Fatna, Kabboura, Fatéma e
forma de palavras, memórias ou Halima já eram profissionais antes
alusões furtivas. O coreográfico de seu encontro com Bouchra,
pode ocorrer no palco, mas tam- pois já haviam trabalhado como
bém em um espaço público, ou shikhat, dançarinas e cantoras
numa tela de vídeo que mostra a que se apresentam em festivais e
ação de um grupo de mulheres celebrações populares. Se a função

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de shikhat pode ser considerada locamento em relação aos modos experiências cotidianas dessas
subversiva por si só, devido à sua hegemônicos da dança contempo- atrizes. É essa cotidianidade que é
liberdade de abordar temas proibi- rânea, evitando ao mesmo tempo mostrada em Fatna, onde Bouchra
dos às mulheres em espaços públi- a exotização e a domesticação da materializa a ideia de uma dança
cos, em seu trabalho com Bouchra tradição típicas do turismo cultural que pode acontecer em qualquer
elas se desfizeram de seus trajes e de entretenimento. circunstância, enquanto lê, cozinha
e máscaras espetaculares para Nessa proposta coreográfica ou conduz as ovelhas. Seu reverso
expor seus corpos, treinados no singular, a poesia árabe clássica é a ação coletiva e ritualizada em
aita e na dança popular, e construir constitui um elemento mobiliza- uma comunidade estendida que
situações de sororidade poética. dor, mas não ocupa uma posição impressiona em suas apresentações
Com um simples gesto, Bouchra e privilegiada em relação ao canto ao vivo, não apenas pelos gestos
a Compagnie O produzem um des- berbere, o vigor criativo ou as e ritmos vocais repetidos, mas
também pela força com que esse
coletivo se manifesta, e que, em
sua simultaneidade imperfeita, coe-
xiste com a afirmação da singulari-
dade de cada um dos participantes.
Essa peça, em algum lugar entre a
escultura viva e o ritual ao nível do
solo, surgiu, segundo Bouchra, de
um impulso, afetado pela beleza
agitada do mercado de Marrakech.
Voando para o deserto, esse bando
de corvos [corbeaux] mostra toda a
beleza, ao mesmo tempo sagrada
e lúdica, dos corpos [corps beaux]
graças à câmera que voa com eles
e pousa nos detalhes como uma
visão encarnada.

josé antonio sánchez

traduzido do espanhol por


ana laura borro

Corbeaux, 2017
Corvos. Still do vídeo. Vídeo; 8’
cabello/carceller Desde seu surgimento no cenário complexa biografia de Antonio de
da arte contemporânea em meados Erauso. Conhecido como “A freira
da década de 1990, o trabalho de alferes”, foi um personagem do
Helena Cabello e Ana Carceller barroco colonial espanhol famoso
questiona os dispositivos e as con- por ter conseguido contornar o
venções de representação de sexua- binarismo de gênero imposto aos
lidades e identidades fora da norma. corpos do Império.
Em Una voz para Erauso. Un A obra se desenvolve em um jogo
epílogo para un tiempo trans [Uma de distanciamento que tece uma
voz para Erauso. Um epílogo para temporalidade queer e quase fanto-
um tempo trans] (2021-2022), as lógica.1 Quatro séculos depois, três
artistas trazem para o presente a pessoas trans não binárias questio-

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nam o retrato do alferes e, por meio que se aprofundam em vários dissidentes. Seja em uma olhada
dele, desdobram uma questão fun- aspectos importantes. O primeiro é rápida ou por meio de palavras
damental: o direito de ser nomeado. que todo retrato é sempre performa- conotadas, essas notas de rodapé
No entanto, longe de criar uma nova tivo. O segundo, como explica Paul revelam genealogias elusivas, des-
hagiografia queer, xs protagonistas B. Preciado, é que a figura de Erauso contínuas e bastardas. Como outra
tensionam a narrativa e expõem suas é um território discursivo e visual em adição à pintura a óleo de Van der
áreas obscuras: o racismo confesso disputa, um lugar “onde uma multi- Hamen, como Una voz para Erauso.
de Erauso, sua participação no geno- plicidade de identidades conflitantes Un epílogo para un tiempo trans,
cídio mapuche, os altos níveis de é construída e desconstruída”.2 as palavras e cenas de Cabello/
violência que permeiam sua história. Num gesto queer historicamente Carceller desafiam a integridade do
Dessa forma, Cabello/Carceller denso, Cabello/Carceller coreogra- hegemônico e fazem da arte uma
expõem uma série de estratégias fam nas margens contra-imagens ferramenta para abordar o hori-
zonte sempre trêmulo das subjetivi-
dades que estão por vir.

beatriz martínez hijazo

traduzido do espanhol por


ana laura borro

_
1/ No francês hantologie, conceito criado por
Jacques Derrida em seu livro Espectres de Marx
(1993), em que une os termos hanter [assom-
brar] e ontologie [ontologia], referindo-se ao
persistente retorno às teorias do passado. [n.e.]

2/ Paul B. Preciado, “Una voz para Erauso. Epí-


logo para un tiempo trans”, in Cabello/Carceller.
Una voz para Erauso. Epílogo para un tiempo
trans. Catálogo de exposição. Bilbao: Azkuna
Zentroa – Alhóndiga Bilbao, 2022, p. 14. [n.e.]

Video stills. Una voz para Erauso. Un epílogo para un tiempo trans,
2021-2022
Uma voz para Erauso. Epílogo para um tempo trans. Stills do vídeo.
Vídeo 4k transferido para HD, cor, som; 28’15’’
carlos bunga Quando o assunto da conversa for insistem em bagunçar as noções de
a escala dos trabalhos de Carlos grandeza e de medida no espaço-
Bunga, teremos sempre um lugar -tempo. A monumentalidade da cor,
animado. Primeiro, por uma razão por exemplo. Para ir além da pintura
óbvia, porque o tema chega a ser e da tela, a cor precisará de uma
comum no contexto da site-specific pele (Superfície cutânea, 2015), e de
art e da instalação. Mas o verdadeiro uma poética de explosão-expansão
motivo reside na singularidade gra- através do continuum sensorial. Será
vitacional dos corpos em questão. possível, assim, Habitar el color
Há aproximadamente duas décadas, [Habitar a cor] (2015-em processo)
Bunga vem construindo e destruindo obra que espalha no chão uma
uma obra cujos eixos evanescentes enorme área de tinta e convida o

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público a tirar os sapatos e entrar transformam em palco para perfor- porânea. A quais sistemas teremos
nela, a ver a cor com os pés, a sentir, mances de dança (Occupy, 2020). de recorrer se ainda quisermos
na própria pele, a pele. Se um dia a Interessa-lhe a estrutura bamba que insistir na tarefa de narrar e contar
cor se quis eterna nos quadros dos anuncia com clareza a coreografia o Universo? Os passos de Bunga –
grandes mestres, nesta obra ela se de sua própria ruína; pôr montagem a sua dança – descrevem, se não
mostra tão esplendorosamente apo- e desmontagem em processo de respostas, a coragem para seguir
drecível quanto nossa carne. retroalimentação. Interessam-lhe em movimento diante daquelas três
Em outros espaços expositivos, essas zonas intersticiais onde as questões fundamentais de nosso
Bunga será visto na labuta de levan- medidas escapam à racionalidade sempiterno big bang: quem? De
tar estruturas grandiosas utilizando suméria e indo-arábica – ao dez onde? Para onde?
papelão e fita adesiva como suporte e ao sessenta, ou mesmo às onze
em suas instalações, que às vezes se dimensões da física/mística contem- igor de albuquerque

Reflejo, 2015 esta participação é apoiada por: República


Reflexo. Vista da instalação, Museo de Arte de la Universidad Portuguesa – Cultura / Direção-Geral
Nacional de Colombia, Bogotá (2015) das Artes.
carmézia emiliano As cores vibrantes dos quadros de
Carmézia Emiliano dão vida ao dia
a dia dos povos Macuxi, seus ritos,
mitos, trabalho e natureza. Seu
vigor estilístico afirma uma cultura
única que se desenvolveu na região
do monte Roraima e se contrapõe à
realidade de seu entorno, marcado
por conflitos com o garimpo e pela
explosão migratória.
Carmézia cresceu na região
da terra indígena Raposa Serra

Lenda do casal americano, 2023


Óleo sobre tela, 70 × 70 cm

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do Sol. No final dos anos 1980, ela A mulher indígena é a protago- destaca a questão de gênero,
se mudou para Boa Vista e ini- nista na maior parte da obra de tensionando aspectos que pode-
ciou sua prática em pintura. Suas Carmézia, que acaba por demons- riam passar despercebidos ao
inspirações partem sempre da trar seu papel e atuação em todos debate público.
memória da vida na comunidade, os âmbitos da vida Macuxi, seja Quando Carmézia pinta cenas
reforçando continuamente seus tecendo, preparando o beiju, que evocam a cosmologia de seu
laços com a ancestralidade. fazendo a colheita, produzindo povo, abre espaço para a complexi-
A afirmação de sua cultura cerâmica, tomando banho de rio ficação do cotidiano que busca evi-
através das telas é também uma ou cuidando das crianças. A artista, denciar. Bons exemplos são a lenda
forma de elaboração do real e do assim, através de seu trabalho, sobre o monte Roraima (que teria
imaginado, em que desenvolve uma tanto apresenta um comprometi- vindo da Wazaká, a Árvore da Vida)
poética do cotidiano. mento com a luta indígena quanto e a lenda do Caracaranã, que nos
transportam para a dimensão do
fantástico. A abertura para a imagi-
nação que a obra da artista pro-
voca é uma potente manifestação
política transmitida com sutileza,
envolvendo não apenas os Macuxi,
mas todos os povos originários.

pérola mathias

Assando castanha de caju, 2023 Buritizeiro no lavrado, 2023


Óleo sobre tela, 70 × 70 cm Óleo sobre tela, 70 × 70 cm
castiel vitorino brasileiro A que serve a insistência em lizada, em geral, são elaboradas
perseguir a falência da negritude? conforme o repertório daquilo que
Que garantia de pertencimento à a artista define como mitologia
humanidade pode ser posta a per- da modernidade sobre as raças.
der? O trabalho de Castiel Vitorino Estudando as implicações do dis-
Brasileiro enfrenta a mais bem positivo racial, Brasileiro transmuta
assentada das ficções moderno-co- os sentidos da presença das corpo-
loniais, a raça, tensionando-a como reidades escuras com base em um
ferramenta que hierarquiza a vida repertório banto e nas religiosida-
na Terra. des de matriz africana.
Perguntas sobre a condição de Destaco então a torção do con-
des/humanidade da vida racia- ceito de liberdade que, liberada da

A linguagem dos seres híbridos, 2023 Sem título (Marrakech), 2023


Carvão sobre papel Fotografia digital

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concepção moderna-colonial de As intervenções éticas demanda- nos lembra que a polícia é quem
autodeterminação, é experimentada das pelas artes negras e indígenas executa a cena na qual as diferen-
na condição de impermanência. No são acionadas pela convocação da ças psicofisiológicas atribuídas aos
livro Quando o Sol não mais aqui bri- memória e da alma dos elementos corpos escuros justificam a narrativa
lhar: a falência da negritude (2023), que compõem o espaço instalativo. moderna de superioridade racial.
assim como em Montando a história Existe ainda uma investida arquite- Os assassinatos desses corpos são
da vida – Museu fictício dos objetos tônica, presente em Quarto de cura performados como confirmação de
roubados pela polícia (2023), a liber- (2018-2022), a questionar as formas que existem tipos de gente – uma
dade surge também como prática de habitação do planeta. mentira sustentada pelo privilégio
radical de intimidade interespecífica, O museu em ruína torna aparente do olhar antropológico que fun-
assentada na indistinção do que con- a ligação entre biologia e história damenta a iconografia das artes
sideramos biótico e abiótico. da arte, e no nome da obra Castiel e abastece o imaginário sobre os
outros-do-humano, ditando quem
pode e deve ser aniquilad_. Assim,
o trabalho anuncia o fim do dispo-
sitivo racial como possibilidade de
viver infinitamente.

cíntia guedes
ceija stojka

Sem título, 1995 Z6399, 1994 Sem título, 1993


Acrílica sobre cartão, Acrílica sobre cartão, Acrílica sobre cartão,
69 × 99 cm 81 × 110,5 cm 50 × 65 cm

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Somente quarenta anos após sua poética. Paradoxalmente, enquanto Muitos de seus desenhos e pinturas
deportação é que Ceija Stojka parte do povo Roma,1 Stojka é são marcados por palavras, signos
(1933-2013) foi capaz de fazer res- herdeira de uma tradição oral. Uma e frases breves. Uma melopeia
surgir de suas mãos a tragédia que verdadeira desvantagem memorial gráfica desenrola-se em uma obra
foi seu mergulho, aos onze anos, e cultural quando se trata de dar cuja policromia confere às paisa-
no inferno do genocídio. Exumados conta do “genocídio esquecido” de gens do desastre uma intensidade
dos limbos de sua memória, a que seu povo foi vítima. Sua escolha trágica. Seus trabalhos associam
perseguição e o genocídio nazistas de “entrar” na pintura, no desenho alucinações, antecipações visuais e
foram a matiera prima de sua obra, e na escrita foi um ato de ruptura os sinais desses territórios da morte
composta de desenhos, pinturas e radical com sua tradição. Ligados, e de seus protagonistas. Em suas
textos que impressionam por sua os três se cruzam e se entrelaçam, paisagens, os olhares dos perse-
intensidade e sua extraordinária sem se fundir completamente. guidores e dos assassinos cintilam
como prefigurações do inominável.
Seu desenho conjuga os contor-
nos nítidos dos mártires anônimos
com os fantasmas dos ausentes, já
dissolvidos na morte.
Sua obra oscila do paraíso
perdido da vida de antes ao tempo
da caça, ao momento em que a
carroça dá lugar ao vagão do “trem
da catástrofe”, e termina nesse
arquipélago onde “nem os mortos
estarão seguros”.2 Ela configura
a trajetória trágica desses corpos
arrancados de suas humanidades e
lançados no inferno do genocídio.
Há algo do Inferno de Dante. Uma
grande beleza transcende seu “não
savoir-faire” em qualidade.

philippe cyroulnik

traduzido do francês por


celia euvaldo
_
1/ Ceija Stojka pertencia a uma família Lovara
Roma, grupo étnico tradicionalmente nômade
que vive atualmente em diferentes regiões da
Europa e falam variações da língua Romani.
[n.e.]

2/ Walter Benjamin, “Sobre o conceito de


história – Tese V” (1940), in Walter Benjamin, O
anjo da história, org. e trad. João Barrento. Rio
de Janeiro: Autêntica, 2013.

Sem título, 1993 Zum Krematorium, 2003 esta participação é apoiada por: Phileas
Nanquim sobre papel, Ao crematório. Nanquim sobre – The Austrian Office for Contemporary
29 × 41 cm papel, 30 × 42 cm Art e Federal Ministry Republic of Austria –
Arts, Culture, Civil Service and Sport.
citra sasmita A artista balinesa Citra Sasmita
recorre ao estilo Kamasan − um tipo
de pintura secular − para produzir
uma arte que reconhece a beleza
das tradições, mas que também
faz uma crítica do patriarcado e do
colonialismo na cultura de seu país.
O estilo de origem tradicional era o
modo com o qual os povos indoné-
sios mais antigos − nos séculos 15
ao 18 −, representavam calendários,
e, sobretudo, feitos supostamente

The Age of Fire, 2020


A idade do fogo. Acrílica sobre tela de
Kamasan, 70 × 90 cm

90
91
heróicos das elites masculinas tra- mulheres indonésias de longos cado, que afetam essas mulheres,
dicionais, como guerras e demais cabelos negros trançam a existên- ainda que elas estejam no centro
atos de bravura. Mas, na versão cia umas com as outras e com ele- de tudo. Cabeças cortam-se e são
artística de Sasmita, essa iconogra- mentos da natureza. O vermelho do cortadas. Porém, curiosamente,
fia ganha um novo sentido. sangue e do fogo jorra da cabeça, essas mulheres produzem vida, pois
Por meio de suas mãos e de seu do ventre; corpos inteiros estão em de seu ventre brotam árvores, assim
olhar artístico e político, em sua chamas ou formam um invólucro como brotam também da cabeça
obra, a pintura Kamasan, também que as recobre por inteiro. dessas figuras. Os galhos, abrindo
feita sobre couro ou tecido, tem Com corpos que se incendeiam em folhas verdes, crescem em dire-
novas personagens como prota- e que se mutilam em sofrimento, ção ao céu.
gonistas. Em seu projeto artístico Sasmita expressa as dores e as Essas mulheres deusas que com-
Timur Merah [Leste vermelho], opressões sofridas sob o patriar- põem figuras femininas mitológicas
em geral não aparecem sozinhas.
Criando, procriando natureza ou
em sofrimento, elas produzem
dor e prazer umas às outras; elas
estão juntas, em um só corpo, ou
vivenciam suas experiências umas
ao lado das outras. Várias cabeças
femininas povoam a existência de
uma só mulher, demonstrando que
elas fazem parte de uma experiên-
cia circular, coletiva.
Corpos incompletos e pernas
resumem o desejo de fuga. Rios for-
mados por mulheres compõem um
círculo ribeirinho em suas margens
nos remetendo à mitologia da socie-
dade tradicional, relembrada pela
ótica feminista da artista. Mulheres
são deusas das águas e do fogo.
No projeto Timur Merah, com o
protagonismo das mulheres mito-
lógicas, musas, deusas, criaturas
meio-humanas, meio-feras, meio-
-árvores, Sasmita encontra formas
possíveis por meio das quais final-
mente ganham vida perspectivas
impossíveis. Se isso não foi pos-
sível na arte Kamasan tradicional,
séculos depois a artista reconta a
história através da arte.

luciana brito
colectivo ayllu

Residência artística no Australian Print Whitenography I, 2018


Workshop, Melbourne (2019) Segundo a imagem publicada em: Louis Dubroca, Vida de J. J.
Dessalines, gefe de los negros de Santo Domingo. México: M. de
Zúñiga y Ontiveros, 1806. Impressão sobre cartão e madeira
92
93
O Colectivo Ayllu cuja prática se Godoy Vega, Lucrecia Masson antropocentrados e individuali-
engaja em modos coletivos de cria- Córdoba e Iki Yos Piña Narváez zantes sobre o amor, costuram um
ção e de crítica, e na produção de Funes – e colaboradoras seleciona- portal de fuga do cotidiano, satu-
epistemes alternativas aos modos das em chamada aberta, realizam rado pela codificação capitalística
coloniais do pensamento, propõe a escrita de cartas para ancestrais das relações e pela brutalidade das
uma investigação colaborativa em passadas ou futuras. Para isso, uti- coreopolíticas civilizatórias.
torno do amor. Na 35a Bienal, por lizam materiais diversos e tecidos Se a ferida colonial que perpassa
meio de painéis criados e manufa- trazidos pelas participantes, em e constitui os sistemas geopolíticos
turados coletivamente por artistas uma escritura que proporciona a correntes se alarga e se aprofunda
integrantes do coletivo – composto transmissão de um saber/sentir que por meio das relações interpessoais,
por Alex Aguirre Sanchez, Leticia/ ocorre entre o físico e o metafísico. fazendo da intimidade mais uma via
Kimy Rojas Miranda, Francisco Para além dos debates políticos, de acesso à violência que uma ferra-
menta de fortalecimento comunitá-
rio, é a prática coletiva que possi-
bilita o exercício de um amor não
conciliatório. Ao contrário da função
estética que gera sujeitos aprecia-
dores de objetos, desimplicados em
sua transparência, neste trabalho é
o próprio fazer que constitui o modo
de operação do que se apresenta
como obra e o tipo pensamento que
se faz possível por meio dessa obra.
Assim, artistas e colaboradoras evo-
cam modos de existência que prece-
dem o corpo subjetificado (e racia-
lizado, e genereficado), mirando na
retomada de uma sensibilidade que
não distingue corpo e entorno, um
modo de estar e de sentir que se
encontra, ao mesmo tempo, antes e
depois da invenção/roubo do corpo
pelas tecnologias coloniais.

miro spinelli

The Cannibal, 2019 esta participação é apoiada por: Acción


A canibal. Litografia sobre papel, Cultural Española (AC/E) e Embaixada da
101 × 68 cm Espanha no Brasil.
cozinha ocupação
9 de julho – mstc

94
95
Da dinâmica de um prédio ocupado e a potência do trabalho coletivo
por quase quinhentas pessoas do em torno de questões como direito
Movimento dos Sem Teto do Centro ao uso pleno do espaço urbano.
(MSTC) nasceu a Cozinha Ocupação Com almoços periódicos abertos
9 de Julho. Desde 2017, ela atua em ao público, a Cozinha trouxe maior
uma ampla rede multidisciplinar, visibilidade à luta por moradia em
com políticas de redistribuição, lixo São Paulo. Promove formas de
zero e uma grande preocupação uso social de espaços relegados à
com segurança alimentar. Trata-se especulação imobiliária e também
de um espaço que vai além do funciona como proteção contra
preparo e do consumo de refeições. o despejo. A estratégia de abrir o
Representa a força da solidariedade movimento reforça o trabalho da
Ocupação e permite que a tecno-
logia social desenvolvida possa ser
aplicada em outras comunidades,
outras periferias.
“Quem ocupa cuida”, frase
presente em todos os espaços da
Cozinha, é ao mesmo tempo um
guia para as relações do MSTC e
o compasso que rege a confec-
ção das refeições. Empatia e afeto
são os motores que impulsionam
o trabalho.
A Cozinha atua em parceria não
só com outros movimentos de luta
por moradia e organizações sociais,
mas também com a classe artística,
transformando-se em um importante
centro cultural e um espaço ativo
de encontro entre ativistas, intelec-
tuais, artistas e lideranças políticas.
Essa nova perspectiva fortalece as
conexões do MSTC com a cidade e
fornece resposta direta aos ataques
desferidos pela grande mídia e pelos
poderes estabelecidos, interessados
em criminalizar a luta social.
Essa forma de coreografar
estratégias de sobrevivência numa
megalópole como São Paulo é
especialmente importante para
a 35ª Bienal, que se inspira na
Cozinha e em sua forma de orga-
nização, sempre coletiva, hori-
zontal, sonhando o impossível,
criando pontes no marco das
im/possibilidades.

sylvia monasterios

Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC


comunidade indígena,
um projeto histórico do governo
gladys tzul tzul — instituto amaq’

política comunitária/instituições comunitárias para a substituição da liderança política de suas estruturas


de governo; produz práticas deliberativas em assembleias
Neste texto, proponho pensar a política comunitária indí- para decidir questões do bem comum. A espinha dorsal
gena, considerando o complexo amálgama político que é desse sistema político seriam as extensas jornadas de tra-
produzido pelas instituições comunais, como prefeituras balho comunal para cuidar da água, da floresta, das festivi-
indígenas, comitês de água, comitês de melhorias, irman- dades, do luto e para liderar, porque a liderança é também
dades, órgãos de coordenação, comitês de vítimas, redes uma tarefa do trabalho comunal. Com esses elementos,
organizadas de mulheres, entre outras. podemos entender a política comunal indígena.
As instituições comunitárias mencionadas estão
vinculadas e se distinguem entre si como segmentos comunidade em territórios e em migração
autônomos que constituem um todo e que, em diferen-
tes níveis, têm se relacionado de modo antagônico com o A substituição de liderança, a assembleia deliberativa e o tra-
governo estatal. Isso ocorre de tal modo que a comunidade balho comunal constituem e são parte fundamental da arqui-
indígena é um projeto histórico de governo que hoje se tetura comunitária indígena. Essas instituições conseguiram
recria na vida cotidiana de nossos povos. se relançar além de seus territórios e, principalmente, fora
Em sua implantação cotidiana, essas instituições do país, especialmente nos Estados Unidos, país para o qual
comunitárias produzem uma energia social que impede a centenas de comunidades indígenas tiveram que se deslocar.
totalização do Estado e do capital como paradigmas únicos de Os motivos para o deslocamento indígena podem ser
organização social. A resposta do Estado a essa tentativa de compreendidos em várias camadas históricas. A primeira
totalização terá duas facetas: a primeira é a violência aberta, delas é o deslocamento de comunidades indígenas que
ou seja, a política estatal organizada para a repressão e o tiveram de deixar seus territórios em razão da guerra. Após
extermínio de povos indígenas. A segunda é a criação de um a assinatura dos Acordos de Paz, surgiram novas formas
sistema de prebenda, que consistiria em técnicas de adminis- estatais de desapropriação e de repressão. Grande parte das
tração de populações por meio da entrega de benefícios que comunidades desalojadas foi despejada por causa da apro-
provocam a fragmentação das comunidades indígenas. priação de terras para monoculturas, assim como para mine-
Esses complexos processos sociais de vincula- ração e hidrelétricas. Essa condição estrutural da Guatemala,
ção e distinção das instituições da política comunal, em país de economia extrativista, explica o alto número de
antagonismo com os órgãos estatais em diferentes níveis, indígenas que vivem nos Estados Unidos atualmente.
permitem que eu apresente uma definição preliminar de Portanto, hoje, ao dizermos “comunidade indígena”,
resistência indígena. não nos referimos apenas às comunidades nos territórios,
Por séculos, a resistência indígena criou um mas também às centenas de comunidades indígenas que
sistema de arquitetura política comunal que defende, se estabeleceram nos Estados Unidos.
recupera e governa suas terras comunais e bens comuns.1 Nos territórios, não se pode mais dizer que os
Por comunidade indígena compreendemos um sistema caqchikel vivem apenas em Sololá, na Guatemala. Hoje
político que produz instituições e estratégias de cuidado sabemos que também há comunidades caqchikel no
e relançamento em suas formas de governo comunal em estado norte-americano do Texas e em Los Angeles,
seus territórios e na cidade; estabelece uma temporalidade Califórnia. Assim como há K’iche’s de San Francisco El
Alto e de Totonicapán em Los Angeles, Nova York, Texas
e Boston. Ou Ixiles em Miami, Washington, D.C., ou Nova
1/ Gladys Tzul Tzul, Gobierno comunal indígenas y estado guatemalteco:
Claves para comprender su tensa relación. Ciudad de Guatemala: Ediciones York, e essa mesma dinâmica se encontra nos povos Maia,
Bizarras, 2018. Garífuna e Xinka, e abrange toda a Mesoamérica.

96
97
São povos indígenas que trabalham como mão de obra em Bartolomé Zoogocho, no México.4 Isso nos apresenta várias
construção, jardinagem, alimentação, cuidados, costura, esferas de existência comunitária, relançadas nas cidades
entre outros serviços. Eles constituem não apenas uma força norte-americanas.
de trabalho, mas desenvolveram uma infraestrutura política A existência de comunidades indígenas nos Estados
para dar forma comunitária a sua vida. São circuitos de Unidos e suas múltiplas formas de conexão com suas
conexão com suas comunidades de origem. A tecnologia de comunidades de origem ampliam nossas noções de política
comunicação virtual possibilita o fluxo de informações entre e de resistência indígenas. Pois a capacidade de governar,
as redes familiares. O funcionamento dessa dinâmica foi recuperar e defender as comunidades da Guatemala ocorre
documentado pelo jornalista mixteca Kau Sirenio.2 na vida cotidiana. De tal modo que o trabalho e o esforço
Os migrantes relançaram e criaram seu sistema dos migrantes dão suporte aos processos de reprodução
político comunitário nos Estados Unidos e, por meio dele, comunitária; de fato, algumas trajetórias de avanço social,
organizam a repatriação dos corpos de seus compatriotas de saúde e educação foram possíveis graças a remessas dos
que morrem em solo norte-americano e que são enter- integrantes da comunidade que migraram.
rados em seus povoados de origem, além de organizar e
colaborar nas festividades comunitárias. Mas eles também política comunal no arquipélago
criam redes de organização para apoiar suas comunidades
afetadas por projetos hidrelétricos e de mineração. De acordo com Nina Pacari,5 as comunidades indígenas têm
Instituições como a União Social Zoogochense, o se desdobrado como um contrapoder ao Estado latino-a-
Comitê de Emergência Franciscano e a Lei de Apoio ao Chuj3 mericano. Entretanto, esse contrapoder não configura uma
são apenas três das centenas de instituições comunitárias força dispersa e amorfa. São instituições políticas comunitá-
que há nas cidades dos Estados Unidos. Essas comunida- rias que, à medida que se contrapõem ao Estado, são capazes
des funcionam com líderes encarregados de organizar e de deformá-lo e moldá-lo às sociedades indígenas.
gerenciar lutos e festivais, seguindo as diretrizes do traba- Para analisar essas formas antagônicas, é necessá-
lho comunitário situadas em suas condições de vida. Essas rio ter em mente os momentos de ruptura social que, ao
comunidades são formadas por redes de famílias ampliadas longo dos séculos, impediram a totalização do Estado gua-
e, conforme a ética de obrigatoriedade do trabalho e de apoio, temalteco e do capital nos territórios indígenas. Ou seja, a
conseguiram tecer a vida comunitária de várias maneiras. capacidade comunitária de governança que as estruturas
Algumas instituições existem há mais de cinquenta indígenas tiveram ao administrar a reconstrução da vida
anos, como a União Social Zoogochense, formada por após os momentos de guerra e violência.
zapotecas das terras altas do norte, originalmente de San Para entender o antagonismo comunidade/Estado, é
preciso analisar ao menos duas maneiras pelas quais esses
dois sistemas se contrapõem, a saber: a prebenda e a violência
como relação tutelar do Estado em relação às comunidades.

4/ Em uma pesquisa recente, documentei a existência dessas múltiplas


2/ Kao Sirenio, Jornaleros migrantes: explotación transnacional. Cidade do instituições de política comunitária, tanto na Califórnia quanto em Nova
México: Sudemir; Unam, 2021. York. Ver Gladys Tzul Tzul (2022), Indigenous Communal Politics in Los
3/ A União Social Zoogochense é uma organização zapoteca das terras Angeles [Política comunitária indígena em Los Angeles]. Não publicado.
altas do norte do estado mexicano de Oaxaca. O Comitê de Emergência 5/ Nina Pacari, “Reflexiones sobre el proyecto político de la CONAIE:
Franciscano é uma das várias instituições maias q’iche’s em San Francis- logros y vigencia”, in F. Simbaña e A. Rodriguez (ed.), Así encendimos la
co El Alto, em Totonicapán, e a Lei de Apoio ao Chuj é formada por comu- mecha! Treinta años del levantamiento indígena en Ecuador: una historia
nidades Chuj em San Mateo Ixtatán, Huehuetenango, na Guatemala. permanente. Quito: Abya Yala Editorial, 2018.
As prebendas tiveram o efeito de disciplinar a subjetivi- governo comunal em toda a Guatemala e também nos
dade coletiva, embora jamais totalmente, mas a dividiram Estados Unidos. Pensar a existência das comunidades e
e fragmentaram temporariamente. Um efeito de uma polí- seu sistema político descontínuo leva a entender por que,
tica de prebenda é o clientelismo, que modifica e refuncio- historicamente, elas foram capazes de impedir a totaliza-
naliza os sistemas comunitários. Por outro lado, a violência ção do Estado.
aberta: o genocídio, como mecanismo planejado para o A noção de arquipélago pressupõe a existência de
extermínio de povos, teve como efeito o deslocamento de territórios comunais limitados por territórios privados
seus territórios, a perseguição a suas estruturas organi- e estatais. Por um lado, os territórios comunais, em sua
zacionais, a queima de colheitas e a morte dos animais existência descontínua na república, estabelecem níveis de
domésticos. Mas as comunidades reconstruíram e recria- ordem social que colocam a totalidade do Estado e do capital
ram seu mundo comunitário. em crise em diferentes níveis. Isto é, sociedades organiza-
Diante dessas formas de antagonismo, as comuni- das em uma estrutura comunal que buscam administrar
dades e seus sistemas políticos desenvolveram um pro- coletivamente a vida, pois compartilham e produzem fontes
fundo grau de fluidez social para se atualizarem diante das de água, cuidam de florestas, consertam estradas, guardam
ameaças ou transformações necessárias para preservar a zelosamente suas terras. Em outras palavras, elas não vivem
vida e foram capazes de deformar o Estado.6 como mera soma de pequenos proprietários individuais.
As condições antagônicas mencionadas anterior- Por outro lado, é no arquipélago que se relança a
mente foram, de muitas maneiras, respondidas com rebe- política comunal indígena na cidade, com suas variantes
liões e levantes que perduram na memória da vida cotidiana. e diferentes expressões que vão assumindo suas estru-
A respeito do mencionado anteriormente, apresento três turas comunais para o apoio e a gestão de festividades e
distinções para compreender as formas como as estruturas dos lutos, o apoio a suas famílias e as lutas nas quais suas
da política comunal aparecem: a) governo comunal indígena comunidades estão envolvidas.
que controla e defende suas terras, por exemplo, os 48 can- Enquanto o arquipélago é a forma geográfica de
tões de Totonicapán e a municipalidade indígena de Sololá, pensar a singularidade da existência comunitária no ter-
entre outros; b) governos comunitários indígenas que são ritório, a noção de tecidos de assembleias permite pensar
reconstituídos ao mesmo tempo em que recuperam terras, os espaços de deliberação e discussão que, gradualmente,
por exemplo, o gabinete do prefeito indígena do município estabelecem interligações entre si. Essas redes de assem-
de Nebaj, Guatemala, e várias comunidades q’eqchi’s; c) bleias comunais têm tido a salvaguarda das terras comu-
governos comunais indígenas que se relançam na cidade; nais no centro de seus interesses e, a partir disso, extensas
neste ponto podem-se mencionar as inúmeras comunidades redes de comunicação fluem entre elas.
indígenas com suas formas de organização em cidades dos Desse modo, a comunicação, o acordo e a articulação
Estados Unidos. dos governos comunais se baseiam na lógica da autorregula-
À luz dessa classificação, proponho a metáfora ção, por exemplo, o princípio “nenhuma autoridade governa
do arquipélago7 para pensar a presença de estruturas de sobre outra autoridade”, o que significa que nenhuma comu-
nidade governa sobre outra comunidade, mostrando assim
a calidad autonómica situada [qualidade regionalmente
6/ Gladys Tzul Tzul, Una forma ética de existencia. Montevidéu: Minerva situada] dos processos de articulação e de trabalho conjunto.
Ediciones, 2017.
A compreensão da política comunal e da resistência
7/ A noção de “arquipélago” para pensar as lutas na política comunal à luz do “arquipélago/tecidos de assembleias” mostra a
indígena por suas terras comunais dialoga com o pensamento de Raquel
Gutiérrez Aguilar, que utiliza essa noção para analisar o poder e a força vitalidade e a força das lutas comunais, as quais têm como
das lutas que as mulheres estão desenvolvendo no contemporâneo. cerne o controle das terras comunais e, ao mesmo tempo, o

98
99
governo de si mesmas de acordo com seu processo histó- também a variedade inclassificável de alimentos relaciona-
rico. Em todo caso, elas também mostram a arquitetura da dos às festividades em épocas de celebração, bem como os
luta, as densidades, as formas de articulação. O processo usos do cotidiano, às artes do fazer a vida coletiva.
de resistência, portanto, é constituído com base em um Da mesma forma, há mais de duas décadas, circui-
sistema político comunal. tos de comercialização de tecidos, huipiles e outras peças
Conforme Silvia Rivera Cusicanqui,8 pensar a resis- de vestuário foram introduzidos nos Estados Unidos. Essas
tência nos coloca em camadas múltiplas e não resolvidas expressões da cultura comunitária, reativadas em um
de um passado não digerido, que emergem como fúria acu- tempo e uma geografia dispersos e em diferentes eventos
mulada, mas também como bricolagem barroca e subver- comemorativos, seriam uma das muitas formas de expres-
siva. Minha leitura sugere que, para entender a existência são comunitária da estética.
desses sistemas políticos, é preciso não apenas pensar que Se a política comunal também produz esse uni-
o Estado queira suprimir essas instâncias políticas, mas, verso simbólico, que, por conseguinte, produz iconografia,
sim, que o Estado, em suas expressões locais, foi defor- imagens, sabores e sons criados de modo coletivo, e se
mado pela força e pela capacidade insurgente das comu- o comunal é um projeto histórico de governo, a política
nidades. A figura do arquipélago da resistência comunal comunal também governa com imagens.
iluminaria, assim, o funcionamento da política comunal.
Totonicapán, 1º de julho de 2023
considerações finais
_
O trabalho comunitário, a deliberação política e a rotação referências
de cargos constituem a base a partir da qual se produzem
Comunidades Indígenas en Liderazgo. “Racismo y desplazamiento:
projetos políticos de longo prazo, aqueles que os povos situación de la criminalización y violencia lingüística en Estados
indígenas incorporam e vivem diariamente. Mas é uma Unidos contra migrantes indígenas”, Tzul Tzul, G (ed.). Informe parcial
vida cotidiana que se constitui em singularidade, e, por apresentado em audiência pública no período 186 de audiências da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Los Angeles: 2023.
isso, a metáfora do arquipélago comunal é fundamental PACARI, Nina. “Reflexiones sobre el proyecto político de la CONAIE:
para compreender a continuidade e a descontinuidade de logros y vigencia”, in Simbaña, F. e Rodriguez, A. (comp.), Así encendimos
sua existência, e ainda possibilita mostrar a força de sua la mecha! Treinta años del levantamiento indígena en Ecuador: una historia
existência, bem como os ritmos desiguais em que existem. permanente. Quito: Abya Yala Editorial, 2018.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la Imagen: miradas ch’xi’ desde
Sob essa marca das comunidades do arquipélago, la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015.
produziu-se um rico universo iconográfico e imagé- __________. Un mundo Ch’ixi es posible: Ensayos desde un presente en crisis.
tico para a realização simbólica. Me refiro a uma parte Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.
SIRENIO, Kau. Jornaleros migrantes: explotación transnacional. Cidade do
da grande produção comunitária de estética, diversão México: Sudemir; Unam, 2021.
e prazer nas sociedades indígenas, como as festas dos TZUL TZUL, Gladys. Gobierno comunal indígena y estado guatemalteco.
santos padroeiros das comunidades, em que os processos Claves para comprender su tensa relación. Ciudad de Guatemala: Ediciones
Bizarras, 2018.
econômicos e o prazer são ativados. Ainda não é possível TZUL TZUL, Gladys; RAMÓN, Simón Antonio. “Guatemala más allá de las
calcular o número de huipiles [roupas tecidas à mão usadas elecciones”. Ojalá, 10 maio 2023.
pelas mulheres maias], tecidos e faixas que são comprados
e vendidos para celebrar as festividades. Pode-se somar

8/ Silvia Rivera Cusicanqui, Un mundo Ch’ixi es posible: Ensayos desde un


presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.
daniel lie Em uma visita ao ateliê de Daniel Lie
em 2017, senti um forte aroma que
permeava o ambiente. Produto da
decomposição das flores, das frutas
e dos vegetais mantidos em seu
estúdio, aquele odor era a manifes-
tação de um universo de seres ocul-
tos que daria novos rumos para sua
prática artística. A investigação em
curso se debruçava sobre os efeitos
do tempo e a ação de microorganis-
mos, como fungos e bactérias, na

100
101
transmutação de matéria orgânica. que posiciona a espécie humana onde relações entre fungos, plantas,
Presenciar as mudanças na mate- no topo da escala evolutiva. Desde animais, minerais e outres-além-de-
rialidade daqueles elementos, e então, elu desenvolve “instalações- -humanes possam romper com uma
acompanhar ciclos naturais diversos, -entidades”: grandes esculturas de leitura binária sobre vida e morte.
possibilitou que Lie refletisse sobre materiais orgânicos, resultado do Para a 35ª Bienal de São Paulo,
as complexidades das relações processo de degradação/transfor- Lie apresenta Outres (2023) e
interespecíficas e seu papel na gera- mação dos elementos que lhe dão busca criar um espaço onde o
ção e na manutenção da vida. forma. Apesar de responderem ao silêncio, não as palavras, conduza
Lie ampliou suas noções de contexto e ao lugar em que são apre- a relações entre os presentes.
temporalidade e tem se empenhado sentadas, em cada uma delas, Lie Outres é resultado da maturação
em encontrar formas de colaboração recorre a novos métodos para a cria- das técnicas e dos modos de fazer
que quebrem a noção hierárquica ção de ecossistemas harmônicos, desenvolvidos ao longo dos últimos
anos de sua pesquisa. A instalação
imersiva será composta por vasos
de terracota, colunas e arranjos de
crisântemos amarelos e brancos,
além de tecidos de algodão tin-
gidos com cúrcuma. Somam-se à
composição do trabalho, os efeitos
da passagem do tempo nos mate-
riais e a eventual geração de novas
vidas derivadas das relações esta-
belecidas entre os agentes orgâni-
cos presentes no ambiente.

thiago de paula souza

Non-Negotiable Condition, 2021


Condição não negociável. Vista da instalação,
Metabolic Rift, Berlim (2021)
daniel lind-ramos De certa maneira, o trabalho de sempre aberto, alguns habitantes
Daniel Lind-Ramos é algo extre- de Loíza levam para o artista itens
mamente local. Suas grandes que consideram interessantes,
assemblages encenam um encontro de um belo pedaço de cachimbo
com sua cidade natal, Loíza, Porto a utensílios de cozinha herdados
Rico, área na qual são coletados os de uma avó querida.
objetos que compõem sua obra. Essa especificidade geográfica
Ao longo de décadas, os vizinhos não é insignificante. A cidade de
o observaram vagar pelas ruas Loíza é o célebre centro da vida
e praias da cidade, coletando e afro-porto-riquenha, que tem a
reunindo peças da vida comunitá- maior população negra da ilha.
ria. Acostumados com seu estúdio Fundada no século 16 por africanos

102
103
fugitivos das plantações da então da negritude de Porto Rico: “Cuidar ção era encontrar uma linguagem,
colônia espanhola, a cidade é o de objetos é cuidar da memória”, encontrar um processo, encontrar
berço dos estilos musicais plena e afirma Lind-Ramos. Ele preserva a materiais que estabeleçam o vínculo
bomba. Também é conhecida pela memória nesses raladores, vassou- entre nossa experiência coletiva…”.
comida de rua, chamada localmente ras, cabaças e címbalos; memórias Essa experiência coletiva que ele
de frituras, e seu Carnaval anual, de criação alegre, de trabalho, de menciona vai além de sua cidade e
reconhecido pelas tradicionais más- ancestralidade. Memórias que, de de seu estado natal. Falando sobre
caras de vejigante feitas com cascas outra forma, poderiam se desvane- artistas afro-americanos de Los
de coco. Desse modo, a prática de cer ou ser apagadas. Angeles, que trabalharam nas déca-
Lind-Ramos constitui uma espécie Mas essa não é a história com- das de 1960 e 1970, a historiadora de
de testemunho da história e do sig- pleta. Lind-Ramos afirmou certa vez arte Kellie Jones argumentou que
nificado de Loíza, um primeiro plano sobre seu trabalho: “Minha inten- “a estética da assemblage” é de
“ligação e conexão”.1 Ela também
defende a história da forma na arte
africana e sua estética vernacular e
cotidiana, que fornece “uma justi-
ficativa para as pessoas negras rei-
vindicarem as técnicas assemblage
[...] e as estratégias ordinárias de
fazer beleza que foram permitidas às
pessoas que se encontram à margem
da sociedade”.2 Isso não poderia
ser mais verdadeiro na prática de
Lind-Ramos e vincula sua arte a um
campo mais amplo da estratégia
afro-diaspórica. Suas esculturas
conectam-se no tempo e no espaço,
assim como o cortejo carnavalesco
que sua obra Con-Junto nos traz à
mente. O Carnaval abrange Porto
Rico, Trinidad e Tobago, Brasil, Nova
Orleans e tantas outras partes da
diáspora africana, ligadas por uma
história de migração forçada e de
violência, mas também de persistên-
cia, criatividade e inovação. Tanto o
Carnaval quanto a assemblage, lin-
damente fundidos em seu trabalho
são momentos da mais requintada
criação de algo que poderia ter sido
condenado a ser nada.

nicole smythe-johnson

traduzido do inglês por


naia veneranda

_
1/ Kellie Jones, South of Pico: African American
Artists in Los Angeles in the 1960s and 1970s.
Durham: Duke University Press, 2017, p. 69.
(Tradução livre).

2/ Ibid.

Con-Junto (The Ensemble), 2015


Assemblage, 289,6 × 304,8 × 121,9 cm
davi pontes e Falar da produção de Davi Pontes e
wallace ferreira de Wallace Ferreira é, antes de mais
nada, reconhecer o encontro de
ambos que, desde 2018, desenvol-
vem juntos uma série de trabalhos
com base na identificação e na ela-
boração radical de suas vivências
e pesquisas comuns relacionadas à
dança e à experiência do corpo dis-
sidente negro no mundo. Entre seus
trabalhos produzidos, como Mata
leão, morto vivo (2020), Delirar o

104
105
racial (2021), e a trilogia Repertório mediante repressão. Com referên- fazer coreográfico estratégias
(2018 – em curso) a dupla utiliza a cias às artes marciais e à capoeira, possíveis para reelaborar imagi-
mimese, a repetição e a marcação com a crítica ontoepistemológica nários, propondo alterações nos
rítmica do contratempo, feita com à filosofia moderna e à história da significados simbólicos da presença
os pés, como recursos para dilatar dança, tomam o ato de criação negra em um mundo que ainda
a percepção de tempo-espaço. performática e visual como pos- não é capaz de garantir a existên-
Partindo da pergunta “como ela- sibilidade de ativar e ressignificar cia e a dignidade a essas vidas.
borar uma dança de autodefesa?”, os arquivos mnemônicos coletivos Enquanto a dança moderna instruiu
Pontes e Ferreira experimentam sobre essas corporalidades. Se o o público espectador a esperar por
desvios simbólicos da violência corpo negro em repouso é suspeito acontecimentos impressionantes
programada pelo Estado e por e em movimento, uma ameaça, e grandiosos, a repetição reforça
instituições garantidoras da ordem Pontes e Ferreira encontram nesse a expectativa do porvir e a incer-
teza rompe com a previsibilidade
sobre a dança. Ao tomar contato
com a performance em andamento,
o público se encontra imerso na
imprecisão sobre início e fim. É
possível dizer que Pontes e Ferreira
desenvolvem uma anticoreografia
contracolonial, o que, na prática da
vida negra, pode significar a recu-
peração e a fundação de modos
estratégicos de caminhar em
autodefesa no cotidiano, desviando
da violência racial, reelaborando a
percepção de si e do tempo-espaço
em direção ao fim da organização
do mundo atual.

maria luiza meneses

Delirar o racial, 2021


Stills do vídeo. Vídeo, cor, som
dayanita singh

Mona Montage, 2021


Impressão pigmentada e gelatina de prata,
41,3 × 61,3 cm

106
107
A aproximação entre fotografia e fico quando exposto, presente nas Mona Ahmed, amiga de longa data
dança, em virtude de uma dispa­ estruturas/coleções que chama de de Singh que também protagoniza
ridade ontológica entre esses meios, museus, encontra ainda mais com- as demais obras expostas, destaca-
produz uma tensão inicial e imediata plexidade e nuance nos trabalhos -se pela recorrência.
entre movimento e paragem. Como apresentados na 35a Bienal. Em De acordo com Singh, no con-
se a fotografia estivesse sempre Museum of Dance (Mother Loves texto indiano, Ahmed foi iden-
atrás do movimento da dança, sem to Dance) [Museu da dança (Mãe tificada como eunuco, ou como
jamais conseguir capturá-lo com- ama dançar)] (2021), não apenas as hijra. No entanto, em determinado
pletamente. A prática de Dayanita impressões fotográficas encontram- momento ela se afastou da comu-
Singh emerge e se alimenta justa- -se móveis no espaço expositivo, nidade de eunucos e passou a ques-
mente dessa tensão. Seu interesse também os retratados estão em tionar a expectativa de feminilidade
pela mobilidade do objeto fotográ- movimento, dançando. Entre eles, que havia em relação a ela. “Você
realmente não entende. Eu sou o
terceiro sexo, não um homem ten-
tando ser mulher. É um problema da
sua sociedade que você reconheça
apenas dois sexos”.1 Assim, pouco
importa “descrever” Ahmed com
precisão identitária, mas interessa
pensar o movimento infindo que
excede o sistema binário de gênero
e que podemos chamar de tran-
sição. Para além de um retrato da
transição como alegoria de movi-
mentos estético-políticos, como
frequentemente ocorre quando
produzido por lentes cisnormativas,
a intimidade e o pacto de confiança
estabelecidos na colaboração entre
Singh e Ahmed, ao perpassar a uni-
direcionalidade etnográfica (o “eu”
que vê/descreve/produz o “outro”),
permite que algo formidável acon-
teça: a imagem estática evoca e
performa o movimento incapturável
da transição.

miro spinelli

_
1/ Frase de Mona Ahmed extraída do texto
do site de Dayanita Singh sobre o livro Myself
Mona Ahmed. Zurique: Scalo Pusblishers, 2001.
Disponível em: dayanitasingh.net/myself-mo-
na-ahmed/. Acesso em: 26 maio, 2023.
deborah anzinger Sempre considerei o trabalho de seus descritores verbais, são fun-
Deborah Anzinger essencialmente damentados no material da obra
relacionado à sintaxe. Isto é, a de Anzinger, e uma materialidade
estrutura da linguagem, tanto a lin- rigorosa pode ser considerada o
guagem verbal quanto a visual. Seu segundo princípio em torno do qual
trabalho convida a pensar as rela- sua prática se organiza.
ções que produzem a linguagem − a As pinturas de Anzinger se recu-
relação entre sujeito e objeto, o eu e sam a permanecer nas paredes, não
o outro, masculino e feminino, natu- se rendendo à suposta bidimensio-
ral e artificial; binários que se opõem nalidade da tela. Elas insistem em se
e se constituem mutuamente. Esses projetar, refletir, crescer e se retor-
conceitos, aqui identificados por cer nas telas não esticadas. Nelas,

Deborah Anzinger: An Unlikely Birth


Um nascimento improvável. Vista da exposição, Institute of
Contemporary Art, University of Pennsylvania, Philadelphia (2019)

108
109
encontramos linhas e gradientes se unirem, desestabilizando nosso Birth [Um nascimento improvável]
pintados à mão tão perfeitamente pensamento binário e a taxonomia, (2018) constitui uma referência
processados que parecem digitais, exigindo, em vez disso, o reconheci- inconfundível à negritude, assim
plantas vivas crescendo a partir de mento de uma terceira via escorre- como os desenhos de linhas pretas
isopor sintético mortal e espelhos gadia, lúdica e sensual. que perturbam a paisagem abstrata,
que transformam o observador em Especificamente neste corpo aparentemente em processo de vir a
observado. No universo de Anzinger, de trabalho, concluído entre 2016 existir. Como mulher negra, nascida
linhas e pinceladas tornam-se e 2019, o foco de Anzinger está e criada no Caribe, Anzinger está
esculturas, íris tornam-se línguas. voltado para o trabalho reprodutivo: atenta às formas como a negritude é
Onde deveria haver um buraco, há sua sensualidade, sua fecundidade, frequentemente excluída ou circuns-
um desenrolar. O trabalho da artista mas também sua violência. O cabelo crita à subserviência em represen-
está sempre forçando os opostos a crespo sintético da obra An Unlikely tações da região. A pintura rompe
o tipo de paleta que normalmente
se associa ao Caribe (alegres céus
azuis, a o típico azul-esverdeado do
mar do Caribe e gramados verdejan-
tes), com rabiscos desenhados em
forma de seios, símbolo máximo de
nutrição e sexualidade; e, segurando
folhas com formato de mão − lem-
brando-nos que a natureza tem a
própria subjetividade −, um agente
que toma − como fazem anualmente
os furacões nessa região − tanto
quanto fornece. E então, é claro,
aquela mecha de cabelo preto
crespo. Não exatamente na pintura,
é uma espécie de excedente em que
as plantas de aloe vera, reconheci-
das por suas qualidades curativas,
crescem a despeito de todas as
probabilidades, do poliestireno
hostil que obstrui os cursos-d’água
envenenando a fauna. Essa, eu diria,
é a questão principal de Anzinger,
mesmo nas condições mais inóspitas
o que é curativo cresce, e mesmo
em lugares de beleza inspiradora a
violência espreita.

nicole smythe-johnson

traduzido do inglês por


naia veneranda
denilson baniwa A organização linear do tempo fundamentos míticos, que se reins-
tal como concebida pela Europa crevem na vida cotidiana através
moderna, movida pelas noções dos ritos. Entre esses ritos está o
de progresso e de não retorno, é da transmissão do conhecimento
incompatível com as concepções e o da partilha dos afetos, que, no
do tempo entre as culturas ame- mundo ocidental, chamamos edu-
ríndias. Determinada pela intera- cação. É baseado no entendimento
ção entre o corpo e a natureza, da educação como um processo
organizada através da observação não linear, processual e coletivo,
empírica das transformações do que Denilson Baniwa vem, nos
meio, a experiência do tempo últimos anos, investigando formas
indígena se assenta, em geral, em de introdução de temporalidades

110
111
indígenas em instituições artísticas caráter instalativo e participativo, e ao contato, resgatando a imagem
não indígenas. Baniwa realiza intromissões no do cultivo da roça e da vida na
Um dos mais destacados artistas arquivo com o objetivo de tensionar floresta como métrica do tempo e
de sua geração, Denilson Baniwa e fragilizar o tempo acelerado da metáfora da educação.
propõe, em sua obra, uma reela- conquista e da colonização e fazer Em Kwema/Amanhecer, Denilson
boração da ideia de arquivo como emergir o tempo da reflexão, da Baniwa aprofunda sua pesquisa
instrumento pedagógico de reflexão espera e da escuta. Em obras mais sobre a integração entre obra
e de fábrica da história. Desde seus recentes, como Nada que é dourado e comunidade, complexifica os
trabalhos iniciais, de intervenção permanece, hilo, amáka, terra preta proce­dimentos técnicos que per-
sobre gravuras produzidas no con- de índio (2021), Ygapó – terra firme mitem a passagem do campo da
texto da colonização das Américas, (2022) e Escola Panapaná (2023), o representação para o da vivência
até os trabalhos mais recentes, de artista investe no estímulo à relação e faz aparecer a possibilidade da
colheita e da alimentação como
efetivação do ato da partilha e da
reelaboração da memória.

renato menezes

Colheita maldita, 2022


Fotografia digital
denise ferreira da silva Uma série de pirâmides se encon- suas produções artísticas e filosó-
tram espraiadas pelo Pavilhão da ficas. Na capacidade de transfor-
Bienal e, ocasionalmente, ganham mação radical e na recondução do
novas formas. Cada uma delas con- fogo em combinação com os outros
figura a presença de um tetraedro, elementos, a forma-conceito anun-
sólido platônico que representa cia a abertura de um aqui-agora
o fogo e compõe Metafísica dos para o fim do mundo como o conhe-
elementos – O E/Studio (2023), de cemos. Percebo Metafísica dos
Denise Ferreira da Silva. elementos – O E/Studio como uma
O fogo atualiza o exercício pelo rachadura que tenciona engolir
qual a artista persegue estetica- silenciosamente o pavilhão, o par-
mente uma questão que retorna em que, a cidade... Não em uma cena

112
113
dramática e apocalíptica, e sim jamais partiram do pressuposto de desmantelamento das formas anti-
como espaço para a emergência de que existe uma separação ontoló- negritude do mundo, e em deman-
coletividades e imaginações que se gica entre o humano e as demais das ecológicas pelo direito à vida, à
mantêm vibrando em frequências presenças que habitam o mundo. terra e ao território.
de afinidade ética. Quando as estruturas de insepa- A obra dá sequência a uma série
O fim reapresenta uma disputa e rabilidade, os tetraedros, se reú- de práticas artísticas pelas quais
a necessidade de abandonar as fer- nem e se transformam em mesas, Denise Ferreira da Silva responde
ramentas do pensamento moderno, bancos e arquibancadas, o studio ao projeto de ocuparmo-nos
que promove a dominação como funciona como plataforma para a do mundo através do elemental
finalidade, convocando à cena emergência de encontros com inte- thinking [pensamento elemental],
práticas do pensamento constan- lectuais negras feministas, artistas promovendo um deslocamento ver-
temente performando o fim, pois e movimentos sociais engajados no tiginoso e necessário aos projetos
de descolonização que, no contexto
brasileiro, seguem confinados a
imaginar a correção das institui-
ções, o que não tem conseguido
evitar que o colapso siga dando
contorno a esse território.

cíntia guedes

vista de Poetical Readings/Intuiting the Political


Leituras poéticas/Intuindo o político, uma conversa aberta com Denise Ferreira da Silva e
Valentina Desideri no episódio 7 de Arika, We can’t live without our lives [Nós não pode-
mos viver sem nossas vidas]. Tamway. Glasgow, 18 de abril de 2015
diego araúja e “Quero me acabar no sumidô.”1
laís machado Esse dito popular remonta ao verso
de um vissungo2 registrado em 1929
em Minas Gerais, e provavelmente
entoado por todo território onde
havia gente negra explorada. Sumir
como oportunidade para embarcar
em uma temporalidade na qual
o lambá – desgraça do trabalho
escravizado e seus encadeamen-
tos seculares – não seja o único
destino da vida negra. Cantar para

114
115
uma desaparição produtiva que ao emergir como plataforma e e no jogo espectatorial promovido
relaciona vida e morte não como congregar artistas afro-atlânticos. com a palha, matéria de funções
oposições, mas como possibilidade Encantar-se no Sumidouro n. 2 é a litúrgicas, arquitetônicas e artesa-
de viver a vida outramente. É no oportunidade de estar na presença nais. Definida pel_s artistas como
rastro desse cântico que Sumidouro de trabalhos que, contrariamente instalação-performer, a fantasma-
n. 2 – Diáspora fantasma se recusa às forças coloniais de desaparição, goria que se performa não aparece
a se entregar ao olhar que tudo jamais deixaram de ser realizados como aposta surrealista de revela-
revela. Apostando na opacidade em experimentações e linguagens ção do inconsciente, mas sim como
formal de uma arquitetura monu- próprias. Como em outros traba- possibilidade de dançar com tudo
mental, a obra liga-se ao chamado lhos em artes visuais de Araúja e aquilo que foi sumido. Em movi-
ético dos trabalhos em parceria Machado, a obra conserva funções mento, Sumidouro n. 2 promove
de Laís Machado e Diego Araúja cênicas, dessa vez em sua escala, des/aparições; o que virá se revela
em fragmentos, as obras abrigadas
ofertam-se à apreensão integral
e rítmica, mas não totalizante.
É possível apenas contemplá-lo,
mas, para estar no Sumidouro n. 2,
demanda-se um corpo inteiro com
qualidades da presença alarinjo –
que, em iorubá, significa um corpo
que canta e dança enquanto cami-
nha, implicado no desejo de re/des/
conhecer.3 Essa é uma plataforma
sinuosa, na qual se destacam o
pacto coletivo, a intencionalidade
do rito e o desejo de intervir nas
dinâmicas de desaparição.

cíntia guedes
_
1/ “Ei ê lambá / quero me acabá no sumidô /
quero me acabá no sumidô / lamba de vinte dia
/ ei lambá / quero me acabar no sumidô / Ei ere-
rê.” Vissungo registrado em 1929, pelo filólogo
e linguista Aires da Mata Machado Filho (1909-
1985), em pesquisa sobre o repertório banto em
Diamantina (mg), foi re(en)cantado elo cantor
e compositor Geraldo Filme (1927-1995) no ál-
bum O canto dos escravos, de Geraldo, Clementi-
na de Jesus e Tia Doca, Estúdio Eldorado, 1982.

2/ Canto entoado por escravizados negros nas


lavras de diamantes em Diamantina (MG) com
palavras em português e línguas africanas. [n.e.]

3/ Alarinjo foi também um termo usado por


Laís Machado para definir sua prática perfor-
mática em Artes Cênicas.

Estudos para Sumidouro n. 1, 2022


Instalação composta por cortinas de palha da costa e sisal em trilhos de alumínio
movidos por Arduino
duane linklater Os trabalhos de Duane Linklater aferir, diante de nossos olhos, a
jogam com conceitos de paisagem. vasta documentação dos proces-
Sabemos que o referido termo car- sos de dominação junto à mudança
rega o peso de um gênero histórico simbólica e aplicada dos usos dos
da pintura, além das complexas territórios. Não me refiro a todo tipo
implicações presentes em uma de de paisagem, mas àquelas que mais
suas facetas: as representações genuinamente se apresentam como
dos espaços dominados produzidas campo aberto ao alcance da visão,
pelos artistas via comissionamento a violenta representação do que é
dos colonizadores. Na relação sem- tornado posse.
pre presente entre arte e sociedade, Linklater se propõe a pensar
nessas representações podemos a paisagem como experiência

116
117
perceptiva da manifestação dos apropria de elementos da arquite- 2015, quando inicia essa pesquisa,
fenômenos naturais, como estado tura moderna e contemporânea e ele retoma as geometrias da capela
físico e espiritual dos seres atraves- os assimila em sua produção. Bishop Fauquier, construída com
sados pelas forças do mundo. Mas Para a 35a Bienal de São Paulo o base no trabalho de crianças que
a referência e o peso da história artista apresenta uma série de pin- frequentaram a Escola Residencial
oficial são importantes pontos a turas que tensionam, a partir de um Indígena Shingwauk (com funciona-
serem lembrados, pois os trabalhos jogo entre forma e matéria, os lega- mento entre 1873 a 1970). Além de
do artista trincam a imagem fre- dos nefastos dos sistemas escola- obrigadas a fornecer o trabalho bra-
quentemente romantizada, embe- res1 destinados a crianças indígenas çal nas construções, essas crianças
bida de nostalgia, ao questionar sua – em funcionamento no Canadá realizavam sacrifícios quaresmais
natureza original. Parecem mesmo entre 1880 e 1996. Nas composi- relacionados ao xarope de bordo.
habitar essa rachadura. Linklater se ções que Linklater persegue desde Como se lê no projeto apresentado
pelo artista à 35a Bienal, “As comu-
nidades Anishinabek desenvolve-
ram uma metodologia específica de
produção de xarope de bordo com
seu conhecimento íntimo das esta-
ções, da terra e de seus processos.
Portanto, não apenas as crianças
foram solicitadas a renunciar ao
consumo de xarope, mas isso criou
uma desconexão simbólica com
essas práticas e metodologias
comunitárias”. Divididas em nove
partes, as geometrias da capela são
manejadas com outros delineamen-
tos feitos a partir de carvão, cocho-
nilha, chá, tabaco e outros corantes
que denotam o trabalho das crian-
ças que edificaram a construção.
As pinturas que levam o título
they have piled the stone / as they
promised / without syrup [elas
empilharam a pedra / como pro-
meteram / sem xarope] seguem
ecoando as perguntas do artista:
Como podemos, como povos indí-
genas, viver, tomar decisões, falar,
dançar e nos mover em contextos e
lugares tão impossíveis?

emanuel monteiro

_
1/ O Sistema de Escolas Residenciais no
Canadá foi um sistema violento e prolongado
imposto pelo governo e pelas igrejas que o
acompanhavam, criado especificamente para
que crianças indígenas fossem separadas de
suas famílias, aculturadas e colonizadas.

they have piled the stone / as they promised / without syrup, 2023
eles empilharam a pedra / como prometeram / sem xarope. Vista da exposição,
Art Gallery of Hamilton (2023)
edgar calel

118
119
A onça-pintada é uma figura No vídeo XAR – Sueño de Obsidiana ocupado pelos indígenas que habi-
proeminente nas culturas mesoa- [XAR – Sonho de Obsidiana] (2020), taram originalmente esse território.
mericanas, aparecendo em realizado com o cineasta brasi- Isso constitui, a um só tempo, uma
vários tipos de representações. leiro Fernando Pereira dos Santos transmutação entre humanos e não
Na cultura e mitologia maia, a no interior do Pavilhão Ciccillo humanos e uma transcendência do
onça-pintada tem a capacidade Matarazzo da Bienal de São Paulo, espaço e do tempo. É também um
de transcender o espaço e o durante a primeira onda da pande- ato de construção de solidariedade
tempo, e de atravessar entre o mia de Covid-19 no Brasil, o artista ou de prática comunitária. Ao longo
dia e o espiritual para facilitar maia Edgar Calel veste a pele de do vídeo, Calel veste um moletom
as comunicações e as conexões uma onça enquanto caminha pelo azul bordado com os nomes das
entre os mundos dos ancestrais e pavilhão procurando ver e enten- 22 línguas maias, enquanto recita
dos vivos. der como o local foi originalmente na língua caqchikel um poema seu,
composto a partir de sonhos que
teve no Brasil durante a pandemia,
cujo título é homônimo do filme.
A partilha em comunidade é um
tema fundamental para a produção
artística de Calel. A instalação da
Casa Guarani de Calel na 35a Bienal
de São Paulo é um grande desenho
imersivo sobre tela de uma casa
guarani, cercada por bordados de
plantas de iúcas. O desenho é uma
imagem arquitetônica e, também,
uma representação da epistemolo-
gia indígena − um mapa da prática
da comunidade em torno de uma
fogueira enquanto compartilha his-
tórias, rituais, música e meditação.
O desenho reorienta o espaço da
horizontal para a vertical e convida
o espectador a participar do imagi-
nário comunitário da indigeneidade.
O povo Guarani é o maior grupo
indígena do Brasil, cuja população
sobrevivente é estimada em 51 mil
pessoas. Hoje, três aldeias guaranis,
com população total de aproximada-
mente setecentos indígenas, vivem
no bairro do Jaraguá, na periferia da
cidade de São Paulo.

mario gooden

Esboços para Nimajay Guarani, 2023


A grande casa guarani. Grafite sobre
papel, 50 x 50 cm (cada)
elda cerrato O que são essas estranhas formas ao curta-metragem de animação
que vibram, se aproximam, se agre- RF: Segmentos_CPV: Okidanokh
gam? Células-tronco mutantes? (1964-2022) – realizado em conjunto
Fragmentos de corpos celestes? com Ramiro Larraín, Luis Zubillaga
Momentos de vida desconhecida? e Luciano Zubillaga. De fato, há
Máquinas orgânicas? Paisagens uma rigorosa invenção de mundos.
domésticas ou estelares? Desde seus primeiros trabalhos
Parece não haver figuração surge a questão do mistério da
nem abstração na série de pintu- vida e da transformação da energia
ras que Elda Cerrato (1930-2023) em suas formas mais insuspeitas,
produziu após o nascimento do desconhecidas, secretas. Até certo
filho, em 1964, e que deu origem ponto, essas imagens funcionam

Algunas experiencias relativas al Okidanokh, da


série Producción de Energía, 1965
Algumas experiências relativas ao Okidanokh, da série
Produção de energia. Óleo sobre tela, 115 × 145 cm
120
121
como investigações ou hipóteses, Quarto Caminho, fundada por Muitas dessas imagens também
especulações ou alucinações, pro- Georges Gurdjieff, da qual Cerrato devem ser abordadas em uma
jeções esotéricas. e seu companheiro de vida, o chave erótica: iminência de conjun-
Mas e se conseguíssemos músico experimental Luis Zubillaga, ção entre órgãos, encontro, fusão,
encadear alguns indícios que a eram praticantes ativos desde os montagem, penetração, gestação.
artista deixa a nosso alcance para anos 1950. Sangue fluido. Órgãos pulsantes.
desvendar seu enigma? Os títulos Com a concretização em imagens Essas imagens podem ser com-
fornecem pistas (as menções do de uma busca espiritual, nota-se um preendidas como mapas e diagra-
Ser Beta, do Laboratório da Fonte conhecimento preciso de bioquí- mas de uma viagem estelar até
Sagrada de Energia, Okidanokh) mica (curso que a artista completou pousar na Terra, precisamente em
ao remeterem a visões de mundo integralmente) e a prática da obser- uma América Latina abalada pela
alternativas, como a filosofia do vação ao microscópio. radicalização política que assolava
o continente, onde se situa a série
de pinturas e heliogravuras que a
artista produziu nos anos 1970. Do
Ser Beta à multidão nas ruas: esse
é o trânsito que transfigura seu
olhar partindo da busca interior ao
mundo do entorno. A organicidade
de seus mapas é a de um corpo
vivo, que vai se alterando sem
abandonar os rastros percorridos,
mas retomando-os. “Visões de
mundo como memórias de outros
tempos”, diz Cerrato.1 Um exercício
de memória e, ao mesmo tempo,
projeção para o futuro.
O seu tenaz desejo de não acei-
tar convenções e de conhecer por
seus próprios meios talvez seja a
chave principal para nos aproximar-
mos de uma trajetória que ilumina
desde as margens, o seu “estar à
margem” das instituições ou de
tendências artísticas hegemônicas.
É essa capacidade de descentra-
lizar e entrelaçar que nos incita a
continuar em busca de formas para
desvendar o enigma que Cerrato
nos legou.

ana longoni

traduzido do espanhol por


ana laura borro

_
1/ Elda Cerrato, La memoria en los bordes:
entrevista, dibujos. Buenos Aires: Nobuko,
2011, p. 7.
elena asins

detalhe de Sem título (Variações offset), 1975


Impressão offset em papel, 75 × 836 cm

122
123
No final da década de 1960, Elena de um ponto – descobre seu poten- do cânone de Bach). De acordo
Asins (1940-2015) começou a dese- cial dimensional ao virar, ao girar: com Javier Maderuelo: “Sua arte
nhar estruturas que se desdobram ela dança, ela soa? De fato, para é musical não apenas porque suas
silenciosamente em uma superfície Asins, o que é desenhado é tão formas plásticas têm uma relação
bidimensional; às vezes, a artista relevante quanto o que é pensado e de semelhança estrutural com
desenvolvia um elemento modu- não dito, conectado como está ao certos desenvolvimentos compo-
lado com base em uma sequência e pensamento de Wittgenstein. sicionais na música, mas também
um ritmo específicos, exigindo que Ela mesma apontou o cruza- porque, como a música é imaterial,
o espectador fizesse uma recons- mento de seu trabalho com a ela é puro processo mental”.1
trução mental que tensionava e música (além da literalidade dos Se pelo menos desde a Grécia
ampliava o limite do papel ad infi- títulos que evocam os Quartetos clássica a música é escrita com sig-
nitum. A linha – o desenvolvimento prussianos de Mozart ou a estrutura nos a serem interpretados – notas
mudas para os não alfabetizados –,
a alfabetização é supérflua na obra
de Asins, uma vez que seus signos
carecem de um código consen-
sual; suas estruturas disciplinadas,
desenvolvidas com rigor, permitem
que sejam traduzidas em con-
ceito, expandindo assim a autoria
em direção ao leitor. São poemas
visuais ou partituras – concebi-
dos em um sentido performativo,
aberto e sonoro que vem do Fluxus
– nos quais o espaço e o tempo se
tornam visíveis com signos linguís-
ticos muito simples, quase leves,
inscritos em preto e branco de
forma minimalista: porque nada
mais é necessário. De fato, em
2023, Cantos de Orfeo (1970), uma
partitura inédita dedicada ao artista
Eusebio Sempere, foi executada
pela primeira vez na Espanha, inter-
pretada pelo Trío Poesía Acción
H,GLAJERU;G e pelo CoroDelantal.
Sinais incorporados em corpos
que soam e se movem no espaço e
no tempo.

isabel tejeda

traduzido do espanhol por


ana laura borro

_
1/ Javier Maderuelo, “Menhir dos”, in Elena
Asins: Menhir dos. Ayuntamiento de Madrid,
1995.

esta participação é apoiada por: Acción


Cultural Española (AC/E) e Embaixada da
Espanha no Brasil.
ellen gallagher Vivemos o Antropoceno − no predatórias e aceleradas da geo-
e edgar cleijne senso comum, período compreen- biosfera, contestar sua essência,
dido como uma nova era geoló- que mantém a figura humana no
gica sobredeterminada pela ação centro da cena em detrimento das
humana. Mas torna-se necessário relações interespécies. Assim, é
refletir sobre esse conceito, que é essencial vivenciar as obras de
incerto e não designa apenas um Ellen Gallagher e Edgar Cleijne
momento geológico nem se refere que, em meio às violências raciais
ao humano genérico. Assim, é fun- e ambientais, fazem cruzar fic-
damental reconhecer as estruturas ções e realidades com pântanos,
da supremacia masculina branca oceanos e ícones e símbolos
como parte das transformações racializados, levando à construção

124
125
de outras paisagens políticas e com o holandês Cleijne. Juntes, e dos paradigmas da arte eurocên-
poéticas para perceber e narrar o assinam a instalação multimídia trica em um processo que envolve
mundo multiespécies. Highway Gothic (2017), seguida dos o afrofabular1 e o afrofuturismo
Pois é na água e no mar que trabalhos pictóricos de Gallagher combinados a pinturas, cianotipias,
Ellen Gallagher e Edgar Cleijne Watery Ecstatic [Êxtase aquoso] instalações fílmicas e sonoras (a
se ancoram. A artista nasceu em (2007, 2017 e 2021), Morphia (2008 música é mnemônica e contracul-
Rhode Island, Estados Unidos, e e 2012) e Ecstatic Draught of Fishes tural) e obras teóricas da diáspora
vive entre o Brooklyn, Nova York, [O caldo extasiante dos peixes] africana, como o Atlântico negro,
e Roterdã, Holanda − cidades com (2019 e 2021). Essas obras tensio- do escritor Paul Gilroy.2 Por meio
um papel relevante no comércio nam questões acerca do legado do de estéticas aquáticas, Gallagher e
transatlântico de escravizados. colonialismo, dos impactos ecoló- Cleijne propõem uma imersão nas
Desde 2024, ela divide o trabalho gicos, dos deslocamentos negros profundezas dos oceanos em um
diálogo com as criaturas marinhas,
biomórficas, histórias/estórias e
mitos que habitam essas profun-
dezas. É importante salientar que,
como um lugar de esquecimento,
o mar traz consigo apagamentos
que expressam narrativas coloniais
expansionistas. Desse modo, em
suas obras, em devir, es artistes
imaginam a vida após a morte do
tráfico atlântico.

barbara copque

_
1/ Esse é um termo-conceito trabalhado por au-
tores como Saidiya Hartman e Tavia Nyong’o.

2/ Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e


dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira
2. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: 34; Univer-
sidade Cândido Mendes – Centro de Estudos
Afro-Asiáticos, 2012.

Highway Gothic, 2017-2019 esta participação é apoiada por:


Vista da instalação. Cianótipo, filme 70mm e banners Mondriaan Fund.
de tecido, caixas de luz de cianotipia, filme 16mm e
projeções de filme em cianótipo, som
emanoel araujo

Emanoel Araujo no ateliê da ladeira do


Desterro, Salvador, sem data

126
127
Emanoel Araujo (1940-2022) foi Araujo iniciou sua carreira em tações simbólicas da cosmogonia
um artista e curador brasileiro, Santo Amaro (BA) como tipógrafo das religiões de matriz africana e
conhecido por suas inúmeras con- e desenvolveu habilidades em afro-brasileira.
tribuições para o fortalecimento gravura e escultura, explorando, ao Na obra exposta na 35ª Bienal,
da história e da arte afro-brasi- longo de sua trajetória artística, a um monumental relevo, é possível
leira. De família de ourives, Araujo abstração geométrica. Como escul- constatar o modo como o artista
teve uma formação diversificada, tor, Araujo atentava à seleção dos constrói ritmo e movimento, criando
aprendeu técnicas de marcena- materiais, incorporando elementos peças que transmitem dinamismo
ria, o que o levou a apurar, dentre das culturas ameríndias, africanas visual e sensação de fluidez marcan-
outros aspectos formais e estéti- e afro-brasileiras a suas obras. Suas tes. A cor também desempenha um
cos, sua prática como gravurista esculturas frequentemente aludem papel fundamental em seu trabalho;
e escultor. a navios, a máscaras e a represen- Araujo utilizava cores vibrantes e
contrastantes que conferiam vita-
lidade e impacto a suas esculturas
– características formais que ajudam
a definir a estética e a identidade de
seu trabalho.
Embora o conceito de riscadura
brasileira seja associado à obra do
artista baiano Rubem Valentim,
é possível notar reverberações
desse conceito na obra de Araujo,
conforme ele próprio assumia.
Suas esculturas frequentemente
abordam temas da cultura afro-bra-
sileira, incorporando símbolos e
motivos relacionados às tradições e
à espiritualidade afrodescendentes.
Além de sua atuação artística,
Araujo atuou de modo relevante
como curador e gestor cultural.
Organizou exposições no Brasil
e no exterior, exibindo obras de
artistas africanos e afro-brasilei-
ros, além de ter dirigido o Museu
de Arte da Bahia, a Pinacoteca de
São Paulo e ter fundado o Museu
Afro Brasil. A dedicação de Araujo
em promover a arte e a cultura
afro-brasileira teve impacto signi-
ficativo no reconhecimento e na
valorização da herança africana
nas cenas artísticas brasileira e
internacional. Sua influência ajudou
a moldar o cenário da arte con-
temporânea no Brasil e no exterior,
tornando-o uma figura inspiradora
e influente até hoje.

horrana de kássia santoz

Ateliê de Emanoel Araujo em São Paulo, com a obra


Espaço expandido, 2017
eustáquio neves A tenacidade de Eustáquio Neves Graças a seu conhecimento dos
em observar e pesquisar os ritos e processos químicos, adquirido
as festividades das comunidades com sua formação técnica, Neves
negras remanescentes torna-o um interfere manualmente nos negati-
notável restaurador de memórias. vos das fotografias, gerando efeitos
As séries Arturos (1993-1994) e os diversos. É um gesto enigmático,
dípticos Encomendador de almas quase lomográfico, que penetra a
(2006-2007), apresentadas na 35a operação do equipamento e expõe
Bienal, registram uma visão abran- o caráter indeterminável e coreo-
gente do sagrado, da educação gráfico do olhar que as compõem.
hereditária e do cotidiano des- No início da década de 1990,
sas comunidades. Neves realizou a série Arturos, retra-

Sem título, da série Arturos, 1993-1995


Fotografia sobre papel, impressão Fine Art

128
129
tando um grupo familiar que reme- e crianças no centro, todos elegan- Jequitinhonha. O encomendador
mora seu antepassado mais antigo, temente trajados. A segunda foto de almas é uma figura presente nas
Artur, no município de Contagem, retrata um homem da guarda, em festividades da Nossa Senhora do
Minas Gerais. Esse grupo é carac- uma postura ereta e central, e na ter- Rosário e é responsável pelos cantos
terizado por suas práticas sagradas, ceira, “O rei”, enquadrado em busto, de trabalho chamados vissungos.
baseadas no entrecruzamento do veste uma coroa e um manto. Nos dípticos apresentados na Bienal,
catolicismo com as religiões de A segunda obra apresentada é um deles mostra o sr. Crispim,
matriz africana, durante a celebra- da série Encomendador de almas e uma pessoa muito importante na
ção da Festa de Nossa Senhora do retrata a comunidade quilombola do hierarquia do catopê (nome dado
Rosário, protetora das irmandades Ausente ou do Córrego do Ausente, às Congadas na região de Minas
negras no Brasil colonial. Na pri- localizada próxima ao município de Gerais), sentado, vestindo uma
meira foto, há um grupo de adultos Milho Verde, na região do Vale do blusa clara e um manto que cobre
os ombros, as mãos unidas sobre as
pernas. Ao lado, há uma foto de uma
espada usada para abrir caminho
para o cortejo de Nossa Senhora do
Rosário. No segundo díptico, o sr.
Antonio aparece junto à sua casa.
As imagens de Neves desafiam
os limites técnicos da fotografia e
performaram “uma realidade que
não pode ser nomeada”, como
mencionou a voz autora da publi-
cação educativa da 35ª Bienal.1
Os povos remanescentes são uma
extensão do quilombismo e, ao
reconstituir tempos e personagens
em uma memória aparentemente
estática, Neves indica um resgate
de tradições e de paisagens, como
a própria incongruência da constru-
ção da memória.

horrana de kássia santoz

_
1/ Referência à frase “uma realidade que não
posso nomear”, in “Correspondências entre
vozes, uma carta para abrir conversas”, in Aqui,
numa coreografia de retornos, dançar é inscrever
no tempo: publicação educativa da 35a Bienal de
São Paulo – coreografias do impossível. São Paulo:
Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 15.

Sem título, da série Crispim/Comendador, 2007-2008


Fotografia sobre papel, impressão Fine Art
flo6x8

130
131
Pouco tempo depois da queda da bancário sua responsabilidade no internet e foi usado para convocar
Lehman Brothers, surgiu o coletivo empobrecimento da população. a manifestação contra os cortes
“ativista-artístico-situacionista- As filiais do medo e da violência sociais que ocorreu em 15 de março
-performático-folclórico-não-vio- se transformaram, ao menos por de 2011 – um dos muitos preceden-
lento” flo6x8 na cidade de Sevilha, um tempo, em espaços de poten- tes do movimento 15-M1. flo6x8
Espanha, ocupando temporaria- cial político e artístico para virar a antecipou algumas de suas inova-
mente diversas agências bancárias história de cabeça para baixo: “isso ções políticas: espontaneidade na
por meio da dança e do canto fla- não é crise, chama-se capitalismo”. ocupação do espaço, transforma-
menco, batendo os calcanhares no O vídeo de uma dessas ações, ção radical da narrativa da crise,
chão daqueles que são os respon- chamado Flashmob Rumba Rave alegria subversiva e inventiva,
sáveis por tirar o sono e o teto dos “banqueiro” e publicado em dezem- abertura e porosidade contagiosas.
cidadãos, cantando para o sistema bro de 2010, espalhou-se pela flo6x8 consegue se mover na
concatenação entre arte e revo-
lução, onde o que importa não
é tanto o que pertence a cada
campo, mas como seus compo-
nentes são coreografados de forma
localizada. Suas ações fazem uso
do canto e da dança para produzir
uma desobediência suave. Elas não
utilizam os mecanismos do fla-
menco para serem vivenciadas pas-
sivamente, pois essa é a maneira de
manter um grito de indignação por
tempo suficiente para transgredir
os códigos formais do protesto polí-
tico e entrar em um novo terreno
de incerteza no qual o público
começa a duvidar, a prestar aten-
ção, no qual a transgressão penetra
de forma muito mais profunda no
corpo, até doer.

kike españa

traduzido do espanhol por


ana laura borro

_
1/ 15-M é como ficou conhecido o movimento
dos indignados na Espanha. Em 15 de maio
ocuparam um grande número de praças espa-
nholas, protestando contra os cortes sociais
causados ​​pela crise econômica de 2007. [n.e.]

Bankia, pulmones y branquias. Bankia sale a bolsa 2, 2012 esta participação é apoiada por: Acción
Bankia, pulmões e brônquios. Bankia vai a público 2. Stills do vídeo Cultural Española (AC/E) e Embaixada da
Espanha no Brasil.
francisco toledo Conhecido por seus trabalhos feitos como El Maestro – o mestre e pro-
em papel, especialmente gravuras fessor – investiu intensamente na
e pinturas, Francisco Toledo (1940- construção de projetos dedicados
2019) navegou por diversas lingua- à educação e à manutenção das
gens, como colagem, tapeçaria e práticas culturais no México, como
cerâmica, sempre mantendo um o Museu de Arte Contemporânea
único olhar: a construção de uma e o Instituto de Artes Gráficas
prática artística implicada com as de Oaxaca.
heranças culturais, tradições e polí- A obra de Toledo alimenta-se
ticas de sua comunidade (Oaxaca, do que o artista experimenta em
no México). Nesse amplo percurso, livros de viagem e em memórias da
Toledo, que também era conhecido infância, mas, sobretudo, no que

detail of detalhe de Papalotes de los desaparecidos, 2014


Pipas dos desaparecidos. Papel chinês e estrutura de junco com fotografias
impressas em madeira gravada a laser, 43 peças, 58,2 × 51 cm (cada)

132
133
ele observa em seu meio. As cos- em Papalotes de los desaparecidos Normal Rural Raúl Isidro Burgos,
mologias zapotecas de Juchitán, [Pipas dos desaparecidos] (2014) com sede em Ayotzinapa, foram
o legado cultural pré-hispânico e – projeto exposto na 35a Bienal de sequestrados pela polícia municipal
o dinamismo e as atualizações dos São Paulo. Nesse trabalho, as pipas de Iguala, Guerrero.
costumes tradicionais são algu- criadas com a colaboração dos fre-
mas, entre muitas, bússolas que quentadores da Oficina de Arte e Quando chega o Dia dos
guiam a prática de um artista que Papel de San Agustín Etla tiveram o Mortos, soltam-se pipas por-
passou boa parte de sua vida-obra desejo de se agregarem aos muitos que se acredita que as almas
empinando papalotes (pipas) como protestos instaurados no México, descem pelo fio e chegam a
forma de ação política. desde 2014, quando um grupo de terra para se alimentar das
Um dos marcos de sua expressão 43 estudantes secundaristas, em oferendas; então, no final da
e de seu engajamento social surge sua maioria indígenas, da escola festa, eles voam novamente.
Como já haviam procurado os
alunos de Ayotzinapa no sub-
solo e na água, mandamos as
pipas procurá-los no céu.1

Desde 2014, além das muitas vozes


que se reuniram deflagrando uma
das grandes feridas do México, os
rostos dos normalistas seguem per-
correndo diversos contextos, dese-
jando romper o silêncio instaurado
pelas instituições governamentais.
Até hoje as famílias dos jovens
desaparecidos procuram construir
sentidos de justiça, assim como os
cortes produzidos no vento pelas
pipas de Toledo.

tarcisio almeida

_
1/ Depoimento do artista veiculado em diver-
sos canais que cobriram as ações-protesto reali-
zadas por Francisco Toledo desde novembro de
2014, quando passou a ativar a obra Papalotes
de los desaparecidos (2014).

Papalotes de los desaparecidos, 2014


Pipas dos desaparecidos. Vista da exposição. Museo Universitario
Arte Contemporáneo, Cidade do México (2018)
frente 3 de fevereiro o Brasil pode ser entendido, do
ponto de vista da negridade, como
um projeto anti-negro. por outro
lado, podemos entender a negridade
como a prática teimosa y incansável
de tentar viver quando não era pra
você ter sobrevivido. Zumbi dos
Palmares, constantemente reto-
mado no trabalho artístico radical
da Frente 3 de Fevereiro, sobretudo
em Zumbi somos nós, aparece aqui,
então, como o mistério que une

ONDE ESTÃO OS NEGROS?


Campeonato Brasileiro, Corinthians x Ponte Preta, Estádio Moisés Lucarelli, Campinas,
14 de agosto de 2005

134
135
essas duas formulações, colocando performance, literatura y uma fins, o coletivo cria um complexo
em xeque o Mundo que as produziu. infinidade de formas, a Frente 3 de ambiente sônico-imagético, rea-
essas duas formulações cruzam com Fevereiro elabora práticas artísti- nimando os movimentos, gestos
a história da Frente, que surge como cas radicais de intervenção social y sons de Dona Marinete Lima
uma forma de fazer vingar a mor- como forma não apenas de denun- (1942-2018), integrante do coletivo
te-vida de Flávio Ferreira Sant’Ana, ciar a situação brutal vivida pelas y matriarca ancestral. além dessa
jovem dentista negro assassinado pessoas negras no Brasil, mas de animação, a videoinstalação conta
cruelmente por policiais militares de promover a sua imprevisível força com arquivos de som y imagens do
São Paulo em 2004. de criação y transmutação. para as coletivo, registros de suas interven-
por meio de uma prática que coreografias do impossível, utili- ções radicais que tanto denunciam
faz cruzar ação direta y estética, zando tecnologias de voice cloning o plano de morte quanto maquinam
transitando entre imagem, música, y deep fake contra seus próprios o combinado da vida.
a experiência dessa videoinstala-
ção encruzilha passado-presente,
vida-morte, revolta-alegria, como
um feitiço tecnológico para fazer
vingar a vida preta em sua ingover-
nável performance de ressurrei-
ção infinita.

abigail campos leal

ZUMBI SOMOS NÓS


Campeonato Brasileiro, Corinthians x Internacional, Estádio do Pacaembu, São Paulo,
20 de novembro de 2005
gabriel gentil tukano

136
137
O dedo da criação toca em mim e Aqui o corpo do mundo está em
pulsa. É assim a luz dos Yepá Mahsã, gestação, transmuta-se e atualiza-se
Gente da Terra. Entre os mundos em todo e qualquer olhar que espia
desenham a boca dos tempos em a presença, a escrita e o desenho do
explosões seminais e espirais primor- meu parente Gabriel Gentil Tukano
diais. O meu coração escapole e volta (1953-2006). É um aceno que acon-
a viver. Fita o inverificável, habita o tece. É um sopro quente. O mor-
invisível. Tudo acontece no instante maço da mata fala. Redemoinhos
agora, entre movido e em arrancos. desenham no chão o prenúncio: não
Corpo, pulsão, fricção, união. É o existe um metro quadrado sobre
cosmo acontecendo fértil na saúde nossos pés que não seja criação
da terra. sagrada de território ancestral. É
perpétuo o que se cria em linhas.
Um corpo desenha.
E o traço ocorre quando a luz
o revela. Uma luz que anda entre
mundos criando outros mundos no
centro dos inícios de todos os tem-
pos, dos riscos e dos ritos primei-
ros. Na próxima luz, os meus olhos
alcançarão as mãos do meu parente,
pois o ponto é demarcado nos dois
mundos, e o risco do nosso amor é
alto, coisa de medicina forte.
Um corpo escreve.
Letras são desenhos amontoados
que se transformam em sentidos e
corpos, mas, uma vez organizadas
a partir do pensamento universali-
zante do velho mundo, operam um
habitar infértil, infante, gasto, vene-
noso e cadavérico.
Medicina forte não cura corpo
que nasce morto.
Gabriel Mira. Desenha a mira.
Mira e desenha. Ele é a mira. Seu
corpo é o desenho e a continuidade
de gestos sonhados aqui e agora,
está à vista, está nas visões e nos
sopros muito antigos. Continua
a desenhar e mirar a ligação dos
corpos antepassados que estão no
futuro do mundo.
Reverência
São obras vivas!
Gabriel Gentil Tukano é o pró-
prio desenho acontecendo entre os
mundos.

déba tacana

Desenho / n. 18, c. 1970


Grafite e caneta esferográfica sobre papel
21 × 29,7 cm
george herriman “[...] é apenas uma sombra
presa na teia desse carretel
mortal. Nós o chamamos
‘gato’, nós o chamamos ‘louco’
[...] Perdoem-no, pois vocês
não o entenderão melhor do
que nós que estamos deste
lado da cerca.”

Krazy Kat
Desenho original para página inteira de jornal, 8 de maio, 1917
Nanquim sobre papel, 55,8 × 48,2 cm

138
139
Com essas palavras, George cabeça, são mal interpretadas pelo binarismo de seu protagonista, a
Herriman (1880-1944) refletiu sobre a felino, que as considera declarações experimentação contínua na compo-
condição inescrutável de Krazy Kat. de amor. Por sua vez, Krazy tem um sição de suas páginas, as novas for-
Em essência, a influente história em admirador secreto, o cão policial mas de linguagem criadas pelo autor
quadrinhos narra as desventuras de Offisa Pupp, cuja vigilância cons- etc. Mas o que coloca Herriman em
Krazy, um gato cujo sexo é incerto tante do rato tem o objetivo de evitar um dos dois lados da cerca? A ten-
− a ambiguidade de seu gênero essas agressões e prendê-lo quando são no enredo de Krazy Kat deu
jamais foi esclarecida −, loucamente as comete. origem a uma infinidade de leituras,
apaixonado pelo rato Ignatz. Esse Tudo em Krazy Kat parece querer sendo uma delas a biografia do
amor não é correspondido por superar as imposições tradicionais: autor, por meio de sua racialização.
Ignatz; suas constantes agressões ao a inversão de papéis entre o trio Alguns querem ver em Krazy Kat
protagonista, no qual atira tijolos na principal de personagens, o não uma representação dos conflitos que
Herriman enfrenta com relação a sua
identidade, como homem mestiço
em um mundo totalmente branco,
sob as leis segregacionistas de Jim
Crow.1 A ambiguidade, não apenas
do gato, mas de toda a série, poderia
revelar a dualidade entre ser ou não
ser algo, o que se pode extrapolar
para questões não apenas de raça,
mas de gênero e de classe.
Hoje, a releitura dessas obras per-
mite vislumbrar Krazy Kat e George
Herriman saltando e se movendo
de um lado para o outro da cerca,
rompendo os limites desse cercado
e lançando os tijolos do rato Ignatz
como mísseis para desarmar e desa-
tivar hierarquias e identidades.

rafael garcía

traduzido do espanhol por


ana laura borro

_
1/ Leis segregacionistas que vigoraram em
vários estados do sul dos Estados Unidos entre
os anos de 1877 e 1965. [n.e.]

Krazy Kat
Desenho original para página inteira de jornal, 2 de maio, 1922
Nanquim sobre papel, 54,6 × 48,2 cm
geraldine javier

140
141
Geraldine Javier vive e trabalha na grande escala que forma uma ampla remetem a arranjos cósmicos que
turbulência de uma crise climática nuvem suspensa, as imagens entre- se adequam perfeitamente à com-
em que culpa e extinção andam laçadas de vegetais improváveis são posição all over [que recobre toda a
de mãos dadas. Em suas obras, as penduradas em meio a espelhos. Os superfície pictórica], típica da pin-
reações em geral pessimistas e nos- reflexos fugazes dos espectadores tura moderna. Convidam, assim, a
tálgicas a uma economia necroespe- nesses espelhos insistem em mostrar uma experiência imersiva, coerente
culativa são abertamente confronta- uma humanidade indiferenciada, com a recusa a um engajamento
das com instalações e pinturas que desafiando seu antagonismo – pro- político direto. Como afirmam os
apresentam um mundo automutante fundamente enraizado – com o títulos de suas obras mais recen-
de plantas não mais reconhecíveis. mundo natural. tes, Javier posiciona-se em meio a
Em Oblivious to Oblivion [Alheios ao Os efeitos visuais resultantes de incertezas. Oscilando entre espe-
esquecimento] (2017), instalação de suas livres composições flutuantes rança e desespero, sua obra apoia-
-se em um horizonte de reparações.
Ainda que tenha se definido como
uma artista que não aborda temas
políticos, a impressão geral de seus
trabalhos é de uma prática afirma-
tiva, que evita o lamento e a queixa.
Diante de processos de degra-
dação, poluição e extinção, The
Creatures in Search of Their Species
[As criaturas à procura de suas
espécies] (2012) afirmam-se como
uma matriz de seres transforma-
dores. Em vez de apresentarem
um mundo morto, fixo e perdido −
caso do pensamento catastrófico e
retrospectivo −, essas obras trazem
à luz a gramática para o enfrenta-
mento de um futuro regenerativo.
Ao destino de destruição Javier
contrapõe uma política do cuidado,
que não tem similaridade com
as formas políticas do passado.
Enquanto suas pinturas derivam de
uma prática individual, suas ins-
talações envolvem uma atividade
comunal que revela sensibilida-
des singulares no tratamento dos
materiais, expressão da interdepen-
dência de formas de vida e coope-
ração intergeracional.

carles guerra

traduzido do inglês por


gabriel bogossian

impressão ecológica de folhas de árvores


nativas em tecido de algodão
gloria anzaldúa A importância da obra de habitam territórios e culturas de
Gloria Anzaldúa (1942-2004) se fronteira, sobretudo mulheres “de
encontra na radicalidade de suas cor”1 do terceiro mundo. A fronteira
contribuições para o pensamento de que Anzaldúa trata é aquela
crítico dos estudos decoloniais, que divide os Estados Unidos e
feministas e da sexualidade, sobre- o México, atual estado do Texas,
tudo ao incluir a geografia como faixa que foi “comprada” pelos
categoria de diferença social. Estados Unidos em 1848, por meio
Professora, escritora e ativista, do Tratado Guadalupe Hidalgo.
Anzaldúa denuncia e questiona as Nascida nesse contexto, a autora
violências às quais estão subme- articula a fronteira como espaço
tidas as pessoas que nasceram e geográfico em disputa e como

“Transparencies for Gigs”, drawing 13, sem data


“Transparências para apresentações”, desenho 13. Tinta sobre
papel, 21,6 × 27,9 cm

142
143
metáfora para a experiência social morder uma maçã. Abaixo do dese- feminino, o movimento sinuoso da
das pessoas que cotidianamente nho, escrita em vermelho, a frase: sexualidade, da criatividade, a base
são pressionadas a escolher uma “O proibido”. De imediato o desenho de toda energia e de toda vida”.2
identidade única, mesmo que suas remete à cena com a serpente mais A escolha por formular o pensar em
realidades sejam constituídas pelo conhecida na história cristã ociden- visualidades tem origem mexica, cul-
encontro entre culturas. tal. No entanto, aqui o fruto proibido tura indígena ancestral de Anzaldúa
Exposto na 35ª Bienal de invoca não o signo de repulsa e do e referência epistemológica, que
São Paulo, um dos desenhos por temor cristão, mas o mais impor- “não separava o artístico do funcio-
meio dos quais Anzaldúa elabora tante signo da América pré colom- nal, o sagrado do secular, a arte da
sua teoria em forma de imagem biana, a serpente que para Anzaldúa vida cotidiana”.3
apresenta uma serpente roxa e é “o símbolo do obscuro impulso Enquanto escrevo este texto, me
sinuosa com uma enorme boca a sexual, o ctônico (o inframundo), o deparo com a notícia4 de que os
agentes de imigração dos Estados
Unidos são orientados a atirar ao rio
bebês e crianças imigrantes encon-
trados na fronteira do Texas com o
México. Enquanto as políticas de
vigilância e de genocídio ora criam,
ora reencenam modos de manter
a violência e o terror, as obras de
Anzaldúa permanecem evocadas,
atualizadas e em performance, nos
relembrando de que “a guerra de
independência é uma constante”.5

maria luiza meneses

_
1/ No inglês “women of color”. Ver Cherrie
Moraga e Gloria Alzandúa, This Bridge called my
Back: Writings by Radical Women of Color (1967),
4. ed., Nova York: State University of New York
Press, 2015.

2/ Gloria Alzandúa, Borderlands/La Frontera:


La nueva mestiza, trad. de Carmen Valle Simón.
Madri: Capitán Swing, 2016, p. 80. [tradução
nossa ao português]

3/ Ibid., p. 120.

4/ “Agentes da imigração dos eua são orien-


tados a empurrar crianças e bebês em rio na
fronteira como México”, O Globo, 20 jul. 2023.
Disponível em: oglobo.globo.com/mundo/
noticia/2023/07/20/agentes-da-imigracao-dos-
-eua-sao-orientados-a- empurrar-criancas-e-be-
bes-em-rio-na-fronteira-com-o-mexico.ghtml.
Acesso em: 24 jul. 2023.

5/ Anzaldúa, 2016, op. cit., p. 55.

“Transparencies for Gigs”, drawing 4, sem data


“Transparências para apresentações”, desenho 4. Tinta sobre
papel, 21,6 × 27,9 cm
grupo de investigación en O Grupo de Investigación en Arte y O interesse do grupo reside na
arte y política (giap) Política (GIAP) [Grupo de Pesquisa poética que surge dos movimentos
sobre Arte e Política] foi fundado sociais com raízes indígenas. Essa
em 2013 no México pela teórica pesquisa militante concentrou-se
e curadora chilena Natalia Arcos nos dispositivos que constituem a
Salvo e pelo sociólogo italiano implantação estética do Exército
Alessandro Zagato. O grupo produz Zapatista de Libertação Nacional, o
publicações, exposições e pales- EZLN, um corpus que é interpretado
tras sobre estética e autonomia, e como um elemento central tanto da
desde 2017 também organiza resi- ética e da estrutura política zapa-
dências para artistas e acadêmicos tista quanto da ação autônoma de
em Chiapas. suas comunidades.

natalia arcos salvo


La danza del trabajo colectivo del maíz. Bases de apoyo del Ejército
Zapatista de Liberación Nacional, 2016
A dança do trabalho coletivo do milho. Bases de apoio do Exército Zapatista
144 de Libertação Nacional. Fotografia digital
145
O EZLN é um movimento guer- orgânico dentro da política revo- na esfera da mídia,1 com a intenção
rilheiro indígena de alto impacto lucionária do movimento. Um de mostrar a definição ampla de
global que, em profunda consonân- exemplo maravilhoso dessa fusão sua autonomia. Isso aconteceu no
cia com usos e costumes ancestrais, é a grande performance em massa mesmo dia proclamado pela mídia
define comunitariamente a originali- que ocorreu em 21 de dezembro de como o dia do “fim do mundo”,
dade que o caracteriza: porta-vozes, 2012, quando os zapatistas mobi- de acordo com o calendário maia.
comunicados, roupas, ações, pala- lizaram 45 mil de seus membros, Mas, com essa coreografia, os
vras e obras de arte configuram um ocupando de surpresa e pacifi- zapatistas anunciaram nesse
imaginário que funciona como uma camente as mesmas cidades de momento o início de uma nova era
arma de sedução em massa. Chiapas que haviam tomado à força para os povos oprimidos.2
No zapatismo, a estética e a em 1994. Esse evento encenado Agora, o GIAP traz pela primeira
poética desempenham um papel marcou o reaparecimento do EZLN vez – não só ao Brasil, mas também
à América do Sul – outras artes
zapatistas que narram seus proces-
sos de resistência e disseminam a
prática da autonomia, tendo como
centro os Caracoles, os Conselhos
de Bom Governo e toda a constru-
ção desse outro mundo possível:
bordados, pinturas, danças e ações
milicianas. Porque nas montanhas
do sudeste mexicano as baleias
estão dançando há muito tempo.3

natalia arcos salvo

traduzido do espanhol por


ana laura borro

_
1/ Os zapatistas guardavam silêncio na mídia
desde 2008, longe de câmeras e microfones para
estabelecer as bases do Bom Governo autônomo.

2/ A Marcha do Silêncio não teve discursos


nem proclamações. Somente no dia seguinte
apareceu um comunicado do ezln na forma
de um poema: vocês ouviram? / É o som do
seu mundo desmoronando. / É o som do nosso
mundo ressurgindo. / O dia que foi o dia era
noite. / E a noite será o dia que será o dia. /
democracia! / liberdade! / justiça!

3/ Comunicado do festival de dança zapatista,


jan. 2017. Disponível em: enlacezapatista.ezln.
org.mx/2019/12/15/baila-una-ballena/.

La marcha del silencio. Acción masiva de Bases de Apoyo del natalia arcos
Ejército Zapatista de Liberación Nacional, 2012 Ejercicio del caracol encadenado. Milicianos del Ejército
A marcha do silêncio. Ação massiva das Bases de Apoio do Zapatista de Liberación Nacional, 2017
Exército Zapatista de Libertação Nacional. San Cristóbal de las Exercício do caracol encadeado. Milicianos do Exército Zapatista
Casas, México. Still do vídeo, editado por Rompeviento TV de Libertação Nacional. Fotografia digital
guadalupe maravilla Na atualidade, uma das narrativas Triângulo Norte da América
da América Latina é a da problemá- Central, formado por Guatemala,
tica das migrações. A mais conhe- Honduras e seu país de origem,
cida, sem dúvida, é a do México, El Salvador. Na década de 1980,
como um país de migrantes que se quando El Salvador se encontrava
deslocam sem documentação e dos no auge das guerras de contrainsur-
encontros e dos mal-entendidos gência da região, o trânsito forçado
na travessia da fronteira com os de pessoas que fugiam da violência
Estados Unidos. Como contrapeso, e buscavam refúgio era particular-
Guadalupe Maravilla conduz nosso mente extremo. Maravilla foi uma
olhar para um sul mais profundo das muitas crianças que fizeram a
e desconhecido, o chamado viagem para a fronteira sem docu-

146
147
mentos e sem estar acompanhadas marcadas por essa vasta cicatriz linhas, bem como desenhos reti-
dos pais. Hoje, o artista revisita chamada fronteira. rados de códices e tecidos antigos
essa experiência para desenvolver Como resultado, suas propostas estampados com histórias pictográ-
uma abordagem conceitual que artísticas são performances e cola- ficas que remetem a comunidades
alude às somatizações − no sentido borações multitudinárias, ceno- pré-colombianas e sua participação
mais amplo do termo − do que ele grafias sobrecarregadas de gestos, na conquista, suas redes de conheci-
viu e vivenciou nessa travessia. objetos e mecanismos que são ins- mento, fluxos comerciais e recursos.
Como uma extraordinária caixa talados como retábulos. Em muitas O conjunto resulta em um mapa
de ressonância, os projetos de delas encontramos traços do jogo de deslocamentos, miscigenação,
Maravilla contam sua história, infantil tradicional conhecido em entrecruzamentos, perseverança e
mas narram também as histórias El Salvador como Tripa Chuca, que formas de sobrevivência histórica.
de milhares de pessoas que foram resulta da união de números com No centro dessa jornada épica,
Maravilla dispõe esculturas em
grande escala intituladas Disease
Throwers [Lançadores de enfermi-
dades] (2019-em curso). Essas for-
mas estranhas, que têm caracterís-
ticas orgânicas, são montadas com
materiais moldáveis e instrumentos
musicais que, com uma vibração
específica, geram espaços terapêu-
ticos que convidam à resiliência.
As “máquinas de cura” do artista
sugerem a abertura de portais para
o ancestral e a realização de uma
cerimônia sonora que, nesta edição
da Bienal, é a possibilidade de cele-
brar um ritual coletivo para curar
traumas e condições do corpo.

rossina cazali

traduzido do espanhol por


ana laura borro

trabalhos em andamento no ateliê de esta participação é apoiada por:


Guadalupe Maravilla Y.ES Contemporary.
quatro teses sobre estética
rizvana bradley
e denise ferreira da silva

Por que repensar a estética agora, quando Uma conversa pode ser, e geralmente é, enten-
catástrofe tem se tornado a palavra de ordem dida como um encontro, uma convergência, que
e quando tudo, exceto o pragmatismo mais pode apenas ser — e as melhores conversas (que
restritivo, poderia facilmente ser interpretado também são outro nome para colaborações) são
como pouco mais do que frivolidade burguesa? — nada mais do que o que acontece ali, naquele
Não é esta, afinal, a era dos “sintomas mór- momento, sob aquelas circunstâncias, visando
bidos — conceito criado pelo filósofo Antonio determinados fins particulares. Esta conversa, a
Gramsci [1891-1937] —, em que as muitas nossa convergência, não é tanto uma oferenda,
mentes defensoras do fascismo têm se erguido é mais um convite à leitora para juntar-se a ela
em todo o mundo? No entanto, o fascismo que a e ir além.
modernidade liberal e a sociedade civil sempre
exigiram jamais respeitou a falaciosa separação — denise ferreira da silva
entre político e estético. O genocídio, tanto hoje
como antes, é um projeto estético. A questão,
então, não deveria ser por que repensar a esté-
tica agora, e sim como sobreviver ao regime
estético que esculpe e delimita a forma de nossa
questão? “A busca/questão da negridade”,1 para
evocar por minha boca as palavras de minha
cúmplice Denise Ferreira da Silva, só pode ser
enunciada mediante a perda da voz, ou melhor,
mediante o ato de se render à polivocalidade,
que é − sempre − a condição da possibilidade
de falar. Assim, ao escrevermos juntas, Ferreira
da Silva e eu não buscamos tanto uma síntese
teórica quanto uma reticulação, um desenrolar
dos fios de nossos pensamentos, já retorcidos
e desgastados em textos e tessituras de ambas.
Quatro teses, outra declinação da tríade hege-
liana. Nossa proposição aberta.

— rizvana bradley

1/ No original, “The quest(ion) of blackness”. [n.e.]

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infinito

O mundo, como a ontoepistemologia totalizante que é não pode deixar de evocar, ela não pode senão refratar e
gênese, limite e horizonte da modernidade, é um conceito fraturar o cardume transparente (o limiar da transparên-
completamente estético. Trabalhar dentro do campo da cia) que protege a ontoepistemologia do Sujeito através
representação, ou discursar contra ela, já significa enredar- de seus momentos científicos e estéticos. A exposição
-se na estética, pois é por meio do estético que o terreno total da negridade permite e extingue a força do programa
ontológico, no qual se diz que estamos, se torna experiên- moderno ético, na medida em que sua capacidade disrup-
cia. Nesse registro, o Homem — o Eu transparente, o sujeito tiva da negridade é uma busca/uma questão para o fim do
universal que constrói o mundo não somente como lhe mundo.
agrada — aparece, conforme a filósofa e ensaísta Sylvia A negridade é uma ameaça ao sentido, um questio-
Wynter, como ninguém menos que homo aestheticus. namento radical do que vem a aparecer sob o(s) (termos do)
Essa é a figura ontológica consolidada no pensa- “comum”. Se o mundo ordenado assegura significado por
mento europeu pós-iluminista, cuja pressuposta capaci- ser supostamente cognoscível, e apenas pelo Homem, se
dade de autodeterminação e autodesenvolvimento é tanto esse mundo for tudo o que o comum consegue compreender,
indiscernível do deslocamento expropriativo do emara- então a negridade devolve/dirige 2 a existência à expansão:
nhado ecológico, que anima a (bio)história, quanto equiva- nos destroços do espaço-tempo, corpus infinitum.
lente à capacidade de experiência e julgamento estéticos.
O sensus communis do Sujeito, é claro, só emerge
por meio da excomungação constitutiva do Selvagem (o
conquistado), do Negro (a mercadoria), do Primitivo (o
outro) e do Tradicional (o subdesenvolvido) — figuras
que, ainda assim, surgem para assombrar o Homem como
portadoras de uma dissonância ontológica, uma declinação
imanente, que poderíamos chamar negridade.
O que mais pode ser dito sobre o conquistado, sobre
a mercadoria, sobre outro e o subdesenvolvido, além do
fato de que eles correspondem a todos aqueles que não se
encaixam nas fronteiras espaçotemporais pós-iluministas
da figura do Homem, ou seja, do Eu transparente? Não muito,
seria uma resposta apropriada, se tudo o que for levado em
consideração corresponder ao que é oferecido por meio das
restrições do pensamento dicotomista. Isto é, se não houves-
sem questões sobre as condições em que a força protetora
universal, mantida pelo ético, se estende a alguns humanos
(seja essa força legada pelo regente ou autor divino, em seu
domínio da forma transcendental, ou seja, a razão). Ou seja,
se não se fizesse a pergunta: Por que a negridade é visitada
tão “naturalmente” pela violência total e simbólica.
Quando a força categórica da negridade é con-
frontada com a violência total que sua trajetória histórica 2/ No original, (re)turns. [N.T]
re/de/composição

Pensar a obra de arte como po/ética, como “composição As intensidades axiais de verticalidade e horizontalidade,
que é sempre já recomposição e decomposição de com- a linearidade estrita, a coloração primária que sinalizam o
posições anteriores e posteriores”,3 requer uma prontidão legado formal da abstração, não indicam tanto a geometria
para o advento do devir como matéria e sua interrogação restritiva ou a cromaticidade truncada quanto um con-
imanente da temporalidade das formas. Em contraposição junto aberto, em que, por exemplo, até mesmo a fideli-
a compreender a obra de arte como totalidade autônoma dade de uma linha ou os vértices de um quadrado podem
ou a compreendê-la consignando-a a alguma iteração da ser impostos com ênfase improvisatória. A obra poética
forma finalis kantiana — isto é, a atribuição redutora de deforma o imperativo teleológico da finalidade e a demar-
uma finalidade formal ao objeto —, uma leitura po/ética cação racial da (in)capacidade de julgamento estético que
enfatiza o terreno provisório onde colidem questões acerca esse imperativo necessariamente (re)inscreve. O trabalho
da forma, da falta de forma e da abstração. po/ético tende a revelar que tal esforço para reduzir, dis-
A obra de arte, uma composição singular, não ciplinar e conter a materialidade intransigente do mundo
necessita simplesmente antecipar ou reiterar perguntas constitui sempre uma tentativa falha.
que supõem os princípios formais da causalidade externa Pode-se pensar a serialidade e a deformação não
(causa efficalis), da determinação interior (causa finalis) como desvios formais dos principais paradigmas de arte
ou da percepção abstrata (causa formalis). Esses juízos, moderna, mas como práticas estéticas que executam a
consolidados como únicas ferramentas para compreender decomposição do cânone histórico da arte e da canonici-
a natureza (o reino da objetividade) e o mundo (o reino da dade como tal. Essa decomposição se obtém não por um
subjetividade), sustentaram a tautologia do pensamento método de subversão, mas pela acumulação de re/tornos5
moderno por terem sido articulados como axiomáticos. furtivos, que se reúnem ruinosamente sob o signo da obra
Uma vez desprendida da antecipação da ordem e da de arte autoritária. A proliferação serial de retornos expõe
pressuposição do significado, a obra de arte liberta-se de a obra de arte autônoma em si como nada mais que uma
suas obrigações representacionais para com a natureza re/de/composição, uma assemblage contaminada de cita-
e o mundo. Como peça po/ética, a obra de arte expande ções e de/formações.
as questões e os questionamentos da causa materialis, o
indeterminável da contemplação. Re/tornando(-se)/como
forma(s), um descritor po/ético para a existência não
pressupõe linearidade, tampouco seus predicados: sepa-
rabilidade e determinação. A reorientação convocada pela
arte po/ética expressa as infinitas re/de/composições que o
espaço-tempo normativo submeteria à foraclusão.4

3/ Denise Ferreira da Silva, “In the Raw”. e-flux journal, n. 93, set. 2018.
Disponível em: www.e-flux.com/journal/93/215795/in-the-raw/. Acesso
em: jul. 2023.. Idem. “Em estado bruto”. Trad. Janaína Nagata Otoch. ARS
(São Paulo), v. 17, n. 36, pp. 45—56, 2019. Disponível em: www.revistas.
usp.br/ars/article/view/158811. Acesso em: 20 jun. 2023.
4/ Conceito psicanalítico proposto por Jacques Lacan (1901-1981) a par-
tir do termo alemão Verwerfung [rejeição], empregado por Freud. [n.e.] 5/ No original, (re)turns. [n.t.]

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151
serialidade

A falha perene do homo aestheticus requer a renovação não pode ser compreendida como algo redutível à separa-
perpétua do estético, operação que, independentemente bilidade, à sequencialidade ou ao determinismo de formas
de suas belezas ou de seus terrores, não deixa de ser a e de objetos individuados. Em outras palavras, nosso pen-
renovação da catástrofe. Mas essa história de revitalização samento estético recusa-se a presumir a serialidade negra
estética é precedida e excedida por outro tipo de inovação, como inteiramente coincidente ou coextensiva à imposição
que podemos chamar de estética, mesmo que o estético em série da violência antinegra, que constitui o campo
jamais possa dar conta dela. moderno da representação e a história da forma, como se
Mas o que, então, pode abrir e ser aberto por a enumeração violenta de corpos negros fosse, de fato, um
uma investigação das práticas negras de serialidade? O registro ou meramente uma contabilização de danos.
que toma forma ou se deforma na “difusão do terror e da Nesse ponto, a arte negra encontra um entro-
violência perpetuadas sob a rubrica do prazer, do paterna- samento antecipatório com movimentos artísticos de
lismo e da propriedade”,6 como profere Saidiya Hartman? vanguarda e suas respectivas performances de recusa — a
Então, como lidar com essa automoldagem em série sem rejeição da expropriação gradeada do modernismo, por
recorrer à ideia de abertura, na qual a ausência de limites exemplo, que é também uma cartografia da descartabili-
se torna apenas outro nome para fronteira, ou seja, um dade, do desrespeito, da violação abusiva, do apagamento
cercado, uma expropriação, um descampado?7 Afinal, a cultural e da morte cultural. No entanto, o fato de essas
historicidade interminável e a história impossível da negri- performances serem ao mesmo tempo negadas e recusadas
dade sempre anteciparam a horizontalidade da liberdade pela negridade torna nítida a disjunção radical entre essas
do Homem, como posição apagada e como limite inexo- respectivas modalidades e tradições de trabalho artístico.
rável desse caráter horizontal. Como encarar a insistente O trabalho artístico negro, que toma o tecido e a
e contínua re/de/composição da figura (negra) em meio à substância da existência social como meio alternativo
abordagem da arte contemporânea, que, a um só tempo, a de produção, refrata os legados conceituais da totalidade
exalta e a reduz, ou relega o figural à cena da representação autônoma da obra de arte e questiona a imagem que
racial? Como compreender essas figurações como parte permanece na retina. Em vez de pensar a negridade como
de um conjunto de intervenções — uma serialidade epigrá- diferença, apesar da violência do mundo, encaramos a
fica, como diria Fred Moten —,8 que denota não a recusa da recomposição e a decomposição em série da negridade
violência imposta serialmente como fim político, mas, sim, como incitação a uma imaginação gestual totalmente
os meios reanimados pelos quais devem transitar quais- divergente. Nossa atenção crítica para essas incitações
quer investigações estéticas da vida social? Insistimos segue alerta para uma diferença gestual irredutível, tanto
que, mesmo que esses meios carreguem o terrível fardo do à violência em série do regime racial de representação
terror difusivo e do terror da difusão, a serialidade negra quanto à suposta política, que clama por reconhecimento
dentro desse regime.9

6/ Saidiya V. Hartman, Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making


in Nineteenth-Century America. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 4.
7/ Cf. Tiffany Lethabo King, In the Clearing: Black Female Bodies, Space and
Settler Colonial Landscapes. Tese de Doutorado. College Park, Maryland:
Departamento de Estudos Americanos, Universidade de Maryland, 2013.
8/ Fred Moten, The Universal Machine. Durham: Duke University Press, 9/ David Lloyd, Under Representation: The Racial Regime of Aesthetics.
2018, p. 230. Nova York: Fordham University Press, 2018.
generatividade

Se a obra de arte po/ética não se preocupa mais com os às ferramentas críticas da filosofia contemporânea um
perigos de seu afastamento da ontoepistemologia da conjunto de conceitos, formulações e questões que burla,
modernidade e de sua articulação da existência mediante sem de fato ignorar, o núcleo eurocêntrico dessa filoso-
as certezas do ser, então, como podem as considerações fia que, de outro modo, permaneceria imperturbável.
estéticas partirem do e permanecerem com o objeto — A Estética Negra — ou seja, aquilo que promove, viabiliza
que é ao mesmo tempo “coisa”, “mercadoria” e “outro” e modula a enunciação negra — sinaliza outro lugar para
— sem retornar ao Homem ou ao Sujeito, ao Humano ou à a análise da criação artística, da existência coletiva e da
Humanidade, ao Ego ou à Subjetividade? prática política. Assim, provê uma base para um projeto
Se o pensamento estético se inicia com o “outro” que combate e, de maneira serial, enfraquece a arquitetura
como mercadoria, como menciona Hortense Spillers, liberal política moderna, em suas violentas configurações e
tal pensamento inevitavelmente (re)confronta a violência operações pós-Iluminismo, assim como os duplos fascistas
que é a condição de possibilidade da modernidade, devas- que o liberalismo exige, solicita e condena a contragosto.
tando qualquer alívio encontrado por meio das figura- A Estética Negra é um enunciado que, em sua imanente
ções da matriz colonial, racial e cis-heteropatriarcal.10 perturbação da gramática da modernidade, marca e é mar-
Tal pensamento inevitavelmente (re)inscreve a subjuga- cada pela arte da passagem, sem coordenadas ou destino
ção como origem e como horizonte? Ou será que o esté- de chegada, a arte da vida em partida.
tico, como (tematizado na) existência negra, como orien-
tação ética radicalmente disruptiva, encena um confronto traduzido do inglês por jess oliveira e bruna barros
devastador com a filosofia moderna, que, em última instân-
cia, tem como alvo seu campo estético, teórico e ético? O que
acontece quando a negridade guia considerações do estético,
do ético e do teórico?
Aqui há duas proposições: a) o Black Study [Estudo
Negro] evoca o sonoro e mobiliza-o contra o encerra-
mento discursivo da negritude na patologia; e b) ao fazê-lo,
desorganiza o campo ontoepistemológico pós-iluminista.
A negridade (como objeto) perturba o terreno (estético) em
que surge o Eu transparente. Portanto, a análise e a poiesis
da Existência Negra desafiam os princípios da Teoria Social
e da Teoria Estética, precisamente porque, como referente
da violência total, rompe as fronteiras do discurso expondo
as limitações de ambas as versões pós-iluministas da onto-
logia moderna: a filosófica e a sociológica.
O Estudo Negro reorienta a conversa na cena
internacional de arte contemporânea, pois apresenta

10/ Hortense J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American


Grammar Book”. Diacritics, v. 17, n. 2, Culture and Countermemory: The
“American” Connection, pp. 64-81, verão de 1987.

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ibrahim mahama O trabalho dos alquimistas tem sido de Ibrahim Mahama, artista nascido
muitas vezes rotulado como “magia em Gana, abordam o possibilismo
negra”, uma vez que o termo latino e a transmutação da colonialidade.
nigredo (em português escuridão, Seja a plantação colonial, seja o
negrura, negridão) constitui o pri- salão do parlamento, a ferrovia
meiro passo do processo alquímico ou outros elementos do espólio
e significa putrefação ou decompo- colonialista, os cercos erguidos
sição. Assim, as expressões magia pela colonialidade são sistemáticos
negra e negritude assumem impli- e interligados.
cações niilistas. Assim, o trabalho de Mahama
No entanto, os processos alquí- vislumbra possibilidades nas con-
micos da obra negra e da negritude dições materiais desses recintos e

154
155
nas habilidades de contar histórias as transmutações produzidas pelo e consertar sapatos. Essas caixas
e conectar momentos no tempo artista geram condições poéti- continham os utensílios dos engra-
ao longo de um arco amplamente cas de assemblagem, montagem xates, jovens empobrecidos que,
estendido: do colonialismo à globa- e coletividade. para sobreviver, percorrem a cidade
lização. Esses momentos entrecru- Em sua instalação Non-Orientable diariamente polindo ou limpando
zam-se com questões do trabalho, Nkansa II [Nkansa não orientável II] sapatos. Mahama reúne e empilha
do extrativismo, da produção, da (2017), Mahama, com vários cola- essas centenas de caixas em uma
exploração e da justiça. Os mate- boradores, produziu centenas de parede de dimensões monumentais,
riais que compõem sua prática são “caixas de sapateiro” de madeira, em que cada caixa parece precária,
os extraordinários objetos proba- utilizando materiais de sucata ainda que impossivelmente mantida
tórios que revelam sistemas de encontrados nas cidades de Kumasi no lugar.
crise ou de fracasso. No entanto, e Acra, em Gana, usados para polir Parliament of Ghosts [Parlamento
de fantasmas] (2019) é um con-
junto de objetos descartados e
perdidos, reunidos para formar o
cenário de uma sala parlamentar
e relembrar a história da empresa
ferroviária de Gana, a Ghana Railway
Company. Os objetos presentes
nessa obra remetem à história da
produção e à crise da industrializa-
ção nos territórios coloniais. Entre
esses objetos estão assentos de pol-
tronas de vagões de trens abando­
nados, dormentes de ferroviários
que foram desinstalados, documen-
tos governamentais, ferramentas e
utensílios de uma oficina de locomo-
tivas, mapas, diários, livros e mobi-
liário de arquivo.
Em seu último trabalho, Mahama
cria um espaço de montagem
que dialoga com a obra anterior,
Parliament of Ghosts, se transmu-
tando para configurar um local de
trabalho coletivo negro, produção
cultural e discurso ao longo da 35ª
Bienal de São Paulo. Esse espaço
reproduz as arquibancadas feitas
de tijolos vermelhos do salão de seu
estúdio RED CLAY [Argila verme-
lha], em Tamale, Gana. Na insta-
lação, também há um conjunto de
vasos típicos de Gana e trilhos de
ferrovias, remetendo à geografia do
norte de seu país, onde seu estúdio
se localiza.

mario gooden

Parliament of Ghosts, 2019


Parlamento de fantasmas. Red Clay Studio, Tamale (2019)
igshaan adams A produção artística de Igshaan
Adams consiste em produzir
beleza a partir de materiais consi-
derados sem muito valor, mas que
estão profundamente ligados ao
cotidiano das classes populares
não brancas que ainda vivem nas
chamadas townships sul-africa-
nas.1 Seus trabalhos materializam
experimentações por mulheres
e homens trabalhadores, a partir
da sua agência tensionadora do

Kicking Dust, 2022


Chutando poeira. Vista da instalação, Kunsthalle Zürich (2022)

156
157
cotidiano marcado pela segregação mano e cristão, influenciado por caminhos alternativos, rios, estru-
racial, desigualdade e pobreza. tradições múltiplas. As linhas que turas mediante as quais a urbe se
Linhas urbanas bastante demarca- dividem rigidamente os dois lados (des)organiza.
das fraquejam, envergam, ganham da cidade inspiram Desire Lines Essa tapeçaria é composta de
sinuosidade e desafiam linhas retas [Linhas de desejo] (2022), obra objetos ordinários, miçangas colori-
e rígidas impostas pelo regime do que representa os atalhos criados das, conchas, búzios, fios de arame,
Apartheid e suas reminiscências por trabalhadoras e trabalhadores tecidos coloridos firmemente tran-
na contemporaneidade. menos favorecidas que desafiam cados, produzindo imensos tapetes
Bonteheuwel, fundada em 1960, a dureza dos traçados urbanos. multicoloridos. Além da tapeçaria,
é o local de nascimento e cenário A tapeçaria, produção sul-afri- outras produções de Adams também
das memórias de infância deste cana tradicional, é a arte através demonstram esse esforço das clas-
artista que viveu num lar muçul- da qual Adams materializa esses ses trabalhadoras para enfeitar seu
cotidiano, e, paradoxalmente, reafir-
mam e relembram seu lugar social,
de alegria ou de dor, de pobreza e de
esperança de dias melhores.
É nessa beleza um tanto oní-
rica, que revela sentidos tanto
materiais quanto estéticos, que o
artista protagoniza a agência das
classes populares. Desses materiais
empobrecidos − vistos como sem
valor, comuns, que, se trouxessem
vestígios da vida das elites seriam
considerados relíquias, peças de
museu −, Adams compõe flores,
poeiras no ar resultantes de pes-
soas que dançam e se vestem com
tecidos ecumênicos inspirados
em objetos sagrados. O domés-
tico ganha significado sensível e
íntimo, ultrapassando a realidade
e ganhando formas impensadas,
quase impossíveis.

luciana brito

_
1/ Áreas criadas durante o Apartheid para
confinar negros e mestiços.

Igshaan Adams em colaboração com Kyle Morland Desire Lines, 2022


Stoflike oorskot, 2016 Linhas do desejo. Vista da instalação, The Art Institute
Resíduo empoeirado. Corda de nylon trançada, barbante e aço of Chicago (2022)
macio, 300 × 120 × 240 cm
ilze wolff

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159
A “prática do cuidado” é um exer- recursos exauridos e detalhes e exis- No fim da década de 1970, o
cício de recusa que gera conside- tências negligenciados na vida coti- projeto e a construção do Centro
ração, generosidade e convívio em diana. Esse tipo de cuidado constitui Comunitário de Steinkopf foram
determinadas condições que, de uma recuperação da história, do encomendados pela empresa
outro modo, seriam representadas indivíduo, das epistemologias e da anglo-americana de extração de
como abjetas. A prática do cui- liberdade que a priori se associam platina, cobre, diamantes, car-
dado de Ilze Wolff tem início com à colonização e ao esclarecimento vão térmico e minério de ferro no
o reconhecimento das relações europeus. É uma produção cultural território sul-africano. A cidade
espaciais, seguido de um processo do previamente inimaginável ainda de Steinkopf, na África do Sul,
de revelação do inesperado e do que conhecido, e que produz um foi fundada em 1817 pela London
estranhamente familiar entre os resí- tipo de poesia não romantizada, nem Missionary Society como uma mis-
duos, detritos, condições esgotadas, fetichizada ou sentimentalista. são religiosa dirigida ao povo nativo
San, do noroeste do país. A popula-
ção da cidade, na época da cons-
trução do centro comunitário, era
de aproximadamente 6 mil pessoas,
em sua maioria mulheres e crian-
ças, pois grande parte dos homens
vivia e trabalhava nos campos de
mineração na província do Cabo
Ocidental. “A intenção foi propor-
cionar um edifício convidativo, que
acomodasse todas as necessidades
das pessoas e que também abrisse
mais opções ambientais para a
comunidade. Ele foi projetado para
servir à comunidade e não o contrá-
rio.”1 A ironia dessa afirmação e do
projeto arquitetônico não se perde
no Hophuis, de Ilze Wolff, palavra
africâner que se traduz em inglês
como hop house [casa do lúpulo].
No entanto, utilizando narrativa
pessoal, música e som, história
fotográfica, representações arqui-
tetônicas e elementos da ecologia
natural do local, a instalação de
Wolff revela uma “coreografia de
cuidado e convívio” que sobrevive
às vicissitudes da repressão reli-
giosa, do racismo sistêmico e da
exploração e extração econômicas.
Wolff revela como esse edifício é
testemunha de saberes, memórias
e histórias nativas locais de alegria,
libertação, apoio mútuo e solidarie-
dade dessas pessoas que usaram o
centro como espaço de reunião e
local de resistência.

mario gooden

_
1/ Architecture SA, primavera 1980, p. 13.
criando som no Steinkopf Community Centre com o
baterista Fernando Damon e Heinrich Wolff, 2020
inaicyra falcão O ser histórico e artístico de Inaicyra exala memórias de movimentos anti-
Falcão poderia constituir a trans- gos e refinados, repetidos milenar-
gressão de conceitos, como erudito, mente no cotidiano humano e das
lírico ou do que é aceito como divindades sagradas, o que se pode
possível. Sua ancestralidade, como ainda observar hoje, quando estão
motor e inspiração, e as coreografias na Terra.
do seu mundo, amplo, transnacio- Como mostra a arte de Inaicyra,
nal e diaspórico, rompem com a o impossível acontece quando a
rigidez da academia e da arte. Da potência do corpo, da explosão
voz poética, poderiam surgir outros física provocada pela necessidade
sons, mas o que brota é um canto de movimento, se encontra pre-
ancestral. Solto e liberto, seu corpo sente até mesmo nas divindades

Grupo de dança da Universidade Federal Ebó Iyê, c. 1989


da Bahia (UFBA), sem data

160
161
sagradas. Por isso, para a artista, Dessa perspectiva, a educação para trazer a herança africana para
todo corpo é dotado de memórias, seria mais um caminho de autono- os currículos.
inscrições ancestrais, que se revelam mia, mas, nesse ponto, por meio Longe de significar estar presa
na consciência corporal forjada na da dança. A valorização de cada a um passado estanque, sua per-
tradição. Esse movimento é cultural, história individual, o abraçar das cepção de mundo e da arte revela
memória coletiva, mas, sobretudo, memórias conscientes ou adorme- mudança, dinamismo e constante
resulta de nossas histórias pessoais cidas, fariam parte dessa aprendi- transformação de movimentos e
e de atravessamentos que habitam zagem, que percorre um caminho cantos ancestrais. Assim, Inaicyra
os corpos de pessoas negras da contrário ao do saber das repeti- Falcão se autodefine uma “articu-
diáspora. A liberdade pessoal, por- ções, do que é considerado harmô- ladora de universos”, de mundos
tanto, depende desse corpo estar nico ou erudito. Assim, esse foi o multidimensionais, que ela faz se
em movimento. caminho encontrado por Inaicyra conectarem ao corpo e à voz.

luciana brito

Ayán – Símbolo do Fogo, sem data


januário jano

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Na instalação Baptism [Batismo] angolanos. O tecido, 100% algo- mente quando se dispõe a propor
(2019), observamos um conjunto dão, faz referência aos campos da outros mundos.
de vinte fotografias que mostram Baixa do Cassange, onde em 1961 Vídeo, escultura, pintura, foto-
Januário Jano despindo-se de uma houve o massacre que insuflou grafia, instalação, costura, ou arte
roupa branca. A imagem do todo a luta pela libertação de Angola. interdisciplinar, se quiserem. É vasto
chama a atenção pela exuberân- Tal dimensão da violência – sobre- o repertório de linguagens que Jano
cia. No entanto, na pesquisa dos tudo da resposta a ela – emerge aciona para pôr em prática suas
materiais, qualquer contempla- de uma artesania que entende a ideias, assim como é vasto e pertur-
ção desinteressada é dissolvida: pesquisa não como uma etapa bador o alcance das forças subjacen-
as roupas brancas são memórias para se chegar num produto, mas, tes a todo fazer artístico como con-
das imposições civilizatórias dos sim, como a matéria viva à qual o sequência da história e da cultura.
colonizadores portugueses aos olhar precisa retornar constante- São muitas as mídias, as camadas
e os temas em fricção quando se
consideram as complexidades do
campo das identidades culturais,
terreno no qual ele atua para ins-
tigar o debate. Desde Luanda, em
português, mas também desde a
terra dos Ambundu, em Kimbundu
– língua Bantu –, ou em inglês
desde Londres, onde se formou e se
estabeleceu. Os próprios trânsitos
biográficos do artista evidenciam as
marcas da colonização, tema central
em seu trabalho; também por isso,
é diante de si mesmo – do espelho,
de sua história –, que Jano encontra
a matéria-prima que ocasional-
mente lhe escapa à própria vida e
acaba ecoando nas palavras de uma
conterrânea sua: “sobreviver à nossa
história é parecido com sobreviver
numa cidade implacável” – disse
Djaimilia Pereira de Almeida, como
poderia ter dito ele.1

igor de albuquerque

_
1/ Djaimilia Pereira de Almeida, "Morrer de
Nostalgia" in Revista Quatro cinco um, São Paulo,
jun. 2023, p. 8.

Baptism, 2019
Batismo. Edição 1/3 + 2 PA. Jato de tinta sobre papel fine art
100% algodão. 50 × 44 × 2 cm (20 peças)
jesús ruiz durand Entre 1969 e 1974, Jesús Ruiz dos líderes da mais feroz insur-
Durand produziu uma série de gência andina do século 18 contra
cartazes para divulgar a Reforma a invasão espanhola, dando-lhe
Agrária iniciada pelo governo do uma fisionomia vibrante que podia
general Velasco Alvarado no Peru. sofrer mutações, multiplicar-se e
Sob a noção de pop achorado – iluminar-se por meio de sobrepo-
expressão que significa “rebelde, sições e efeitos de luz. Por meio
insolente, sublevado, indignado, de uma síntese formal cinética, ele
vulgar, colérico, insurgente, insub- sincronizou o messianismo anti-
misso” –, esse estilo gráfico inspi- colonial de Tupac Amaru II com a
rou-se na população indígena que revolução em andamento.
estava rompendo com a submissão Mas nos contornos ondulados
escravagista que, durante sécu- e amarelados que envolvem os
los, fizera das propriedades rurais corpos dos camponeses exibindo
peruanas e da relação entre os ferramentas ou trabalhando a terra,
pongos e os gamonales1 um viveiro também é possível ver a luz dos
de crueldade. eclipses, sob a qual os habitantes
Através de seu trabalho na do altiplano “caminham cheios de
Direção de Promoção e Difusão pressentimentos”, como escreve
da Reforma Agrária (DPDRA), Ruiz Arguedas. A Reforma Agrária,
Durand viajou por todo o país, como uma continuação da guerra
fotografando e conversando com anticolonial por outros meios, foi
camponeses de língua quíchua e é um instante de perigo. Essa
que recuperavam suas terras. luz cintilante antecipa, em suas
Desenvolveu uma técnica que con- sombras, o murmúrio de violên-
sistia em fragmentar a imagem por cia que viria apenas alguns anos
meio de um processo de solariza- depois, com a guerra interna entre
ção (ou efeito sabattier), distribuir o Sendero Luminoso e o Estado
cores planas por áreas, enqua- peruano. Ela retém a raiva sem fim
drá-las como histórias em quadri- do pongo, “aquela raiva que arde na
nhos e imprimir em offset usando semente de seu coração, como um
o processo de quadricromia. Ao fogo que não se apaga”. 2
experimentar com pontos e tramas,
ele investiu um contorno de fosfo- fernanda carvajal
rescência, vitalidade e otimismo
nos corpos indígenas, que pareciam traduzido do espanhol por
sair da sala de espera da história, ana laura borro
incinerando as bases simbólicas e
materiais da servidão e da expro- _
priação no Peru.
Por meio da estilização de uma 1/ Pongos eram os camponeses e indígenas
que trabalhavam como criados nas fazendas
antiga ilustração escolar do rosto no Peru e os gamonales eram latifundiários da
de Tupac Amaru II, Ruiz Durand região serrana, que em geral exploravam a força
desenhou o logotipo da Reforma de trabalho dos pongos num regime de servidão
muito parecido com a forma feudal. [n.t.]
Agrária, que foi a figura central
de dois cartazes, um amarelo e 2/ José María Arguedas, “Carta a Hugo Blan-
outro azul. Ao eclipsar a silhueta de co-1969”, in Hugo Blanco (ed.), La verdadera
frente e de perfil, inserindo-a em historia de la Reforma Agraria. Lima: Ediciones
composições geométricas e rever- Lucha Indígena, 2009.
berações ópticas e cromáticas, Ruiz
Durand dinamizou o rosto de um

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da série Reforma Agraria Peruana – Grandes cosas están pasando, 1970
Reforma agrária peruana – Grandes coisas estão acontecendo. Impressão offset sobre
papel, 100 × 70 cm
jorge ribalta Faute d’argent [Falta de dinheiro] A abordagem é dupla: a manifestação
(2016-2020) é o terceiro e último epi- de Carlos V como chave interpre-
sódio de uma investigação artística tativa do mundo ocidental na era
e histórica de Jorge Ribalta sobre o da grande recessão econômica que
período final de Carlos V (1500-1558), começou em 2007 e um exercício de
rei da Espanha e imperador do Sacro revisão e luto do passado colonial
Império Romano-Germânico. Sob espanhol/imperial, resultando em
seu reinado, a formação de uma ideia uma coreografia crítica de retorno.
de nação correu paralelamente à A série se baseia na “ideia docu-
conquista e à colonização das Índias mental”, que atravessa todo o traba-
Ocidentais, herdada na sua condi- lho de Ribalta, seja como fotógrafo,
ção de neto dos monarcas católicos. teórico-pesquisador ou curador, pois

Seville, Emporium of the Indies (detalhe),


da série Faute d’argent (Eight Short Pieces), 2016-2020
Sevilha, Empório das Índias, da série Falta de dinheiro (Oito pequenas peças). Impressões
sobre papel de gelatina e prata
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167
ele argumenta que a fotografia con- Seu título resume a relação dialética citações nas margens – que rastreia
tribui para explicar a complexidade entre o imperador em declínio e seus os nomes e a geografia sobre os
social – as relações de classe e seus banqueiros, a saga dos Fugger, ou quais o Império Habsburgo e a nação
conflitos, bem como a relação das seja, entre a necessidade e o endi- espanhola foram construídos, a fim
subjetividades com a história – e não vidamento que garantiu o status de submetê-los a uma crítica contra
apenas para representá-la. Em Faute imperial no século 16, em detrimento a corrente dos desconfortos herda-
d’argent, Ribalta questiona tanto a de Castilla, a nação, e das Índias, dos. Assim, a fotografia atua como
história da nação espanhola quanto transformadas em meros instrumen- um contradiscurso na revisão de um
a lógica imperial-financeira do tos de uma política colonial extrati- dos mitos fundadores do Império
capitalismo desde o início da Idade vista. Sem metáforas, o episódio é Espanhol e é um instrumento para
Moderna na Europa, que transborda uma tragicomédia composta por 76 questionar a modernidade europeia a
em uma colonialidade do poder. fotografias – ritmadas por notas e partir da perspectiva da colonialidade
na América. Nesse sentido, a série
busca o espectro desses banqueiros
hoje no eixo geográfico Augsburgo
– Sevilha – México, em suas ruas,
capelas e igrejas, museus, bibliote-
cas, minas e oficinas, que são uma
transcrição do ouro, da prata e do
chocolate transformados em moe-
das, lingotes e grãos.

rocío robles tardío

traduzido do espanhol por


ana laura borro

esta participação é apoiada por: Acción


Cultural Española (AC/E) e Embaixada da
Espanha no Brasil, e realizada em parceria
com o Institut Ramon Llull.
josé guadalupe posada

Calavera oaxaqueña, calaveras rotas y garbanceras, sem data


Caveira de Oaxaca, caveiras fraturadas e caveiras Garbanceras.
Zincografia, 14,6 × 25,5 cm

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Brincar com a morte, de pega-pega, viralizar em impressões, reim- calaveras [esqueletos ou caveiras]
pique-esconde ou, para os mais pressões e reapropriações que se retiram energia das páginas baratas
cerebrais, uma partida de xadrez. repetem diante dos olhos dos vivos. às quais se destinavam e fazem parte
Só para matar o tempo, nosso Um memento mori coral – traba- da história morta-viva do México.
coveiro. Mas isso sem esquecer de lhos ecoando em latim a litania do A Gran calavera eléctrica (1907),
levar os materiais necessários para “lembre-se de que você também a La calavera oaxaqueña (1900), a
eternizar o encontro: pedra, papel, vai morrer”. La calavera revolucionária (c. 1910)
tesoura, lápis, tintas, buril… No Posada pertence àquele redu- e, sobretudo, a La calavera Catrina
caso de José Guadalupe Posada zido grupo de artistas cujas obras (1910/1913) são memes de memento
(1852-1913), foi escolhido o instru- são automaticamente reconhecí- mori anteriores à rede mundial de
mental da litografia, pois somente veis, mesmo que se ignore o nome computadores. A um só tempo,
assim suas gravuras poderiam de quem as assina. Suas célebres piada e reflexão filosófica, festa da
morte e resistência cultural à colo-
nização. Interessado em produzir
na tradição do que se convencionou
chamar de arte popular – categoria
questionável e ambígua –, o alcance
de Posada estendeu-se aos analfabe-
tos (a maioria da população à época)
e recrudesceu ao longo do século 20
em um contexto de valorização das
culturas indígenas, pré-colombianas
e contemporâneas.
Ele produziu caricaturas e ilus-
trações para diversos periódicos em
circulação durante o tumultuado
final de século 19 até 1913, quando
morreu no anonimato. Publicou em
muitos jornais pró-classe trabalha-
dora, mas sua filiação aos ideais
revolucionários não é ponto pací-
fico. No entanto, resta uma cons-
tante inegável em sua verve satí-
rica: ridicularizar a burguesia que se
nutre da exploração do povo. Fato
presente nas linhas que vão da fase
costumbrista às produções tardias,
que culminam no chapelão sobre o
esqueleto da socialite Catrina.

igor de albuquerque

Calavera de muchachos papeleros, sem data El jarabe de ultratumba, sem data


Caveira de meninos jornaleiros. Zincografia, A dança Jarabe de além-túmulo. Zincografia,
15,1 × 23,1 cm 28 × 43 cm
juan van der hamen y león

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Entre 1625 e 1628, depois de ser como mulher em 1592 e desafiou norma quanto as identidades sem
absolvido pelo papa e pouco antes padrões de gênero no século 17. uma definição preestabelecida.
de embarcar em sua viagem de volta Até não muito tempo atrás, muitos No entanto, embora imagens
para a chamada Nova Espanha, estudiosos do período, provavel- desse tipo tenham sido particu-
Antonio de Erauso foi imortali- mente influenciados pela leitura da larmente abundantes no contexto
zado por Juan van der Hamen y biografia de Erauso, consideravam espanhol na primeira metade
León (1596-1631) no Retrato de a pintura como parte da tendência do século 17, o Retrato de Doña
Doña Catalina de Erauso. La monja barroca de representar “o mons- Catalina de Erauso parece ques-
alferez [Retrato de Dona Catalina de truoso”. Essa tendência, que deu tioná-las com base em sua própria
Erauso. A freira alferes]. origem a um gênero inteiro por si excepcionalidade. A particulari-
Erauso, também conhecido só, formou um amálgama no qual dade da obra faz ainda mais sentido
como “a freira alferes”, nasceu se incluíam tanto os corpos fora da se considerarmos que a escrita
a seu redor – aquela que estabelece
uma clara dissonância entre ima-
gem e texto, razão pela qual essa
anomalia foi explicada – foi um
acréscimo posterior.
Ao espelhar as convenções de
representação do “masculino” de
sua época, a composição do per-
sonagem feita por Van der Hamen
involuntariamente contraria o título
póstumo da pintura. Vestindo trajes
militares e sustentando um olhar
firme, a imagem do alferes adere
inequivocamente ao regime domi-
nante de visualidade da era colo-
nial, com todos os seus ditames de
gênero, sexualidade, raça e classe.
Essa constelação de interpreta-
ções, de apêndices visuais e discur-
sivos, foi recuperada por Cabello/
Carceller. Na exposição Una voz
para Erauso. Epílogo para un tiempo
trans [Uma voz para Erauso. Epílogo
para um tempo trans] (2021-2022), a
obra mostra novamente seu caráter
mutável e excepcional e, entre o
passado e o presente, confirma a
performatividade inerente a todo
retrato, toda história e toda cons-
trução de identidade.

beatriz martínez hijazo

traduzido do espanhol por


ana laura borro

Retrato de Doña Catalina de Erauso. La monja alferez, c. 1625


Retrato de Dona Catalina de Erauso. A freira alferes. Óleo sobre tela, 57 × 46 cm
judith scott

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Judith Scott (1943-2005) realizou Por vezes, suas composições jamais deu título às suas obras.
suas primeiras esculturas em 1988. coloridas são estruturas abertas, Não indicou como esses trabalhos
Embora as formas de seus trabalhos que revelam o número infinito de deveriam ser exibidos e sequer
tenham se tornado mais complexas extensões de materiais subjacentes registrou seus pensamentos sobre
ao longo do tempo, todas elas em seu interior. Em outros momen- seu trabalho artístico. Na ausên-
compartilhavam um princípio tos, os fios estão entrelaçados em cia de uma narrativa, quando
semelhante: uma estrutura estruturas compactas e labirínti- Scott começou a atrair a atenção
central de objetos encontrados, cas, e suas entranhas só podem da crítica, uma série de rótulos e
envoltos em um entrelaçado de ser reveladas mediante proces- tentativas de interpretação gravitou
fios de novelos de lã, de tiras de sos radiográficos. em torno de seus trabalhos. Muitas
tecidos fibras e outros elementos Em mais de uma década e meia desses indícios se apoiaram no
do cotidiano. de produção incansável, a artista que estava para além do entorno
artístico, recorrendo à sua biografia
incerta ou à redução de sua prática
a classificações preconcebidas.
No entanto, precisamente por
serem inescrutáveis, suas obras –
que permeiam o mágico e o coti-
diano, o visível e o oculto – resistem
à classificação. Estão inscritas no
enigma, naquelas coreografias
impossíveis que escapam da rigidez
do unívoco e nos lembram que o
significado de um objeto artístico
sempre permanece inacabado e
incompleto: irredutível a deter­
minado discurso, determinada ima-
ginação ou sistema de mediação.

beatriz martínez hijazo

traduzido do espanhol por


ana laura borro

Sem título, 1993


Tecido e objetos encontrados,
91,4 × 50,8 × 25,4 cm
julien creuzet Poética da relação, obra do pensa- aterroriza. Nós gritamos o grito da
dor martinicano Édouard Glissant, poesia. Nossas barcas estão aber-
se inicia com “A barca aberta”, um tas, nós as navegamos em nome
texto curto mas denso, ao qual de todos”.1 Para mim, a obra de
retornei muitas vezes desde que o Julien Creuzet é uma escancarada,
encontrei há cerca de quinze anos. confusa e excitante barca aberta.
O ensaio termina com o seguinte Entrar em uma das instalações de
trecho: “está, à frente da proa Creuzet é dominar-se por cores,
doravante comum, esse rumor texturas e linhas – fios felpudos,
ainda, nuvem ou chuva ou fumaça plásticos neon, redes de pesca-
tranquila. Nós nos conhecemos na dores, metais brilhantes, líquidos
multidão, no desconhecido que não coloridos não identificados dentro

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de garrafas suspensas exatamente associações surgindo e lembrando mesmo que o conceito do Black
assim, entre outros elementos. a “sopa de signos” de Benitez-Rojo.2 Power. Seria a Mami Wata [Mãe
É um assalto, é assustador em Tudo isso é deliberado, obvia- Água] do Haiti, a Mami Wata da
sua indecifrabilidade e cintilante mente. Creuzet está comprometido Louisiana? Mami Wata é a Yemayá
em sua sensualidade. É mais um com uma cadeia interminável de de Cuba? A Iemanjá do Brasil?
poema do que um ensaio; não há referência que invoca “a multidão” Seria a River Mumma da Jamaica?
figuras sólidas, apenas contor- do pensamento e da experiência Essas recorrentes mulheres surgi-
nos de coisas. Onde os objetos são pan-africanista. Seu trabalho nos das das águas, com sua cauda de
decifráveis, como em seus vídeos, lembra que muito é compartilhado peixe, em si mesmas uma espécie
eles se reúnem em combinações pela diáspora africana, mas muito de entrecruzamento, agrupando-se
inusitadas, rebatendo uns nos não é. O conceito de negritude como “nuvem ou chuva ou fumaça
outros, alterando seus significados, está relacionado, mas não é o tranquila”, gotículas suspensas
no ar, ligadas por algo invisível,
elusivo, mas inegavelmente per-
ceptível. Creuzet não aceitaria isso
de outra maneira. A exigência de
transparência é por vezes violenta,
porque não se deleitar na opaci-
dade do outro, de si? Afinal, se
você pudesse adentrar a instalação
de Creuzet e saber exatamente
o que ela é, consumindo e dige-
rindo sem maiores consequências,
afinal, seria tão bom? Você a sen-
tiria de modo tão profundo? Acho
que não. Melhor demorar, vagar,
deixar seus pensamentos voltarem-
-se sobre si mesmos, estabelecer
associações livres, dialogar com um
amigo. Prazeres além do que você
pode imaginar te aguardam.

nicole smythe-johnson

traduzido do inglês por


naia veneranda


1/ Édouard Glissant, Poética da Relação (1997).
Tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge de
Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021,
pp. 20-30.

2/ Ver Antonio Benitez-Rojo, The Repeating


Island: the Caribbean and the Postmodern Pers-
pective. Durham: Duke University Press, 1997.
(Tradução livre).

ZUMBI ZUMBI ETERNO, 2023 esta participação é apoiada por: Institut


Stills do vídeo. Vídeo, cor, som français.
kamal aljafari

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A obra de Kamal Aljafari parte da Aljafari, o povo palestino é dupla- ficção israelenses produzidos em
crença e da exploração do poder mente desenraizado – na vida real e Jaffa, sua cidade natal, em busca
do cinema de prestar testemunho. também no cinema. daquilo que os fotogramas involun-
Para um artista palestino traba- Mas nenhuma expropriação tariamente preservam: a imagem
lhando após a Nakba,1 essa afir- jamais é total. Assim como as da arquitetura da cidade como
mação pode parecer paradoxal. pessoas, os pixels também resis- foi um dia, e a imagem de muitos
Nas mãos de Israel, o cinema tem tem. Em Recollection [Recordação] palestinos, incluindo seus fami-
constantemente servido como fer- (2015), Aljafari se envolveu em liares, que acidentalmente apare-
ramenta de colonização, excluindo um esforço minucioso e brilhante cem ao fundo porque, por acaso,
os palestinos das representações para desfazer o que ele chama de passavam ali quando a cena estava
de suas próprias paisagens e espa- “ocupação cinematográfica”. Ele sendo filmada. Munido de uma
ços urbanos. Assim, como observa explorou três décadas de filmes de confiança em imagens de baixa
resolução, ele usa a montagem e a
manipulação de imagens como fer-
ramentas cinecoreográficas, para
trazer esses fantasmas silenciosos
ao primeiro plano, fazendo que a
representação espectral surja de
sua impossibilidade.
Em outros projetos, como Port of
Memory [Porto da memória] (2010),
Aljafari enfoca espaços íntimos e
familiares os quais, em uma espécie
de tempo suspenso, a repetição de
rituais diários aparece como uma
maneira de impedir a catástrofe
iminente. Em The Camera of the
Dispossessed [A câmera dos despos­
suídos] (2023), seu projeto para a
Bienal de São Paulo, ele experimenta
com o formato da instalação, empre-
gando justaposição, montagem e
efeitos visuais para se reapropriar
criticamente de imagens históricas
saqueadas do Centro de Pesquisa
Palestino, em Beirute, em 1982, pelo
exército israelense.

omar berrada

traduzido do inglês por mariana


nacif mendes

_
1/ O termo árabe Nakba significa “catástrofe”
ou “desastre” em português, e remete ao êxodo
palestino de 1948, quando mais de 700 mil ára-
bes palestinos, conforme dados da Organização
das Nações Unidas (onu), fugiram ou foram
expulsos de suas casas em razão da guerra civil
de 1947-1948 e da Guerra Árabe-Israelense de
1948. [n.e.]

A Fidai Film, 2023


Um filme Fidai. Stills do vídeo
kapwani kiwanga o trabalho de Kapwani Kiwanga nos ativa não apenas um trabalho de
afeta através de sentimentos de destituição como descolonização,
confusão. essa afetação não é tanto mas, sobretudo, nos convida a
um método, mas um caminho. por imaginar formas radicalmente outras
meio de vídeos, sons, performan- de conceber y de nos implicar –
ces y instalações, bem como de um para recuperar Denise Ferreira da
estudo profundo, sua arte confunde Silva – com o Mundo que somos. um
os fundamentos rígidos do mundo Mundo de permeios, atravessamen-
moderno-colonial, sobretudo sua tos y confusões.
perversa lógica binária. ao abalar a para a 35a Bienal, Kiwanga traz
rigidez dessas estruturas, como ver- pink-blue [rosa-azul] (2017), conce-
dade/ficção, por exemplo, Kiwanga bida a partir de sua pesquisa sobre

178
179
instituições totais – caso das institui- azul (neon), dificultaria a localização uma complexidade técnica não mais
ções psiquiátricas y dos presídios – das veias, inibindo usuários de dro- eurocêntrica, através da disposição
y o impacto da arquitetura e design gas injetáveis (prevenção de danos das cores (azul-rosa, branco) y das
punitivista sobre nossas carcaças, ou aumento de riscos?). formas (entrada-saída, retilíneo-dia-
além da vigilância constante. a diante desse trabalho y de seus gonal) em sentido contrário daquele
instalação traz à tona mecanismos desdobramentos, também podemos utilizado para cercear y oprimir.
que, na surdina, moldam, regulam y atravessar esse caminho de confu- talvez aí, quando nós fazemos a pas-
preveem as formas de sociabilidade. são, imaginação y implicação por sagem rumo a rotas de fuga, inven-
assim, a cor rosa, de modo espe- meio do que nele há de embate con- tamos uma nova dança da tempora-
cial a Baker Miller Pink, acalmaria tra o tempo colonial, marcado pela lidade. se nos deixamos desorientar
instintos agressivos (reabilitação ou linearidade rígida entre passado, pela passagem de pink-blue, numa
política de controle?), enquanto o presente y futuro, dando lugar a confusão entre entrada y saída,
podemos ainda sentir essa instala-
ção como uma grande y estranha
lupa, geométrica, diagonal y colo-
rida, por meio da qual podemos vis-
lumbrar (y fazer parte de) um tempo
não linear , adentrando y inventando
espaços não mais comandados pela
lógica do cativeiro colonial.

abigail campos leal

pink-blue, 2017
rosa-azul. Tinta rosa Baker-Miller, tinta branca, luzes brancas
fluorescentes, luzes azuis fluorescentes. Vista da instalação,
Yuz Museum, Xangai (2018)
katherine dunham A trajetória singular de Katherine etnografando danças do Caribe e
Dunham (1909-2006) como antro- da América do Sul com um jogo de
póloga e bailarina permitiu imprimir corpo vigoroso e pioneiro, fez
sentidos outros ao corpo negro, emergir a antropologia da dança
fissurou os clichês e imaginários como disciplina, e edificou poste-
coloniais sobre danças, corpos riormente uma técnica de dança e
e contextos de origem africana e uma escola de formação que hoje
respondeu às contingências de seu são legados fundamentais.
momento histórico mais amplo. Rigorosa em suas criações e
Ao fomentar a conversa entre ideias, colocou em relação elemen-
a antropologia e a dança de modo tos do balé clássico europeu e as
tanto insuspeito quanto inovador, danças rituais caribenhas, cons-

Apresentações de Katherine Dunham, filmadas em 1947 e 1956


Stills dos filmes Shango, Charm Dance from “L’Ag’Ya”, Ag’Ya Fight from “L’Ag’Ya” and
Washerwoman. Xangô, Dança do encanto de L’Ag’Ya, briga Ag’Ya de L’Ag’Ya e Lavadeira

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truindo uma técnica com linhas, Em seus espetáculos, acendiam-se nava os modos coloniais de ver o
isolamentos e ondulações, além de narrativas diaspóricas ilustrativas mundo negro.
variedades de tempos e ritmos mais de ritualísticas, dramaticidades, Sua articulação com a diáspora
amplos do que as formas de dança espiritualidades e modos da vida negra em termos práticos e con-
de concerto da primeira metade do cotidiana que eram catalisadores ceituais foi de tamanha relevância
século 20. Ao apontar semelhanças, da experiência comunitária. Sua que pode ter antecipado a própria
deixou igualmente emergirem as investida nas realidades caribe- ideia de Atlântico Negro. Dunham
diferenças, sem temer as contradi- nhas tornou-se uma maneira de vislumbrava a noção de diáspora
ções inevitáveis desse movimento, estabelecer laços com a memória africana em sua dimensão intercul-
causando surpresa aos olhares euro- e a ancestralidade africanas e de tural e geográfica, mostrando ainda
cêntricos, por demais convencidos retomar arquivos para recriá-los, à como o modernismo das danças
da limitação do corpo dos Outros. luz de uma percepção que questio- negras contribuiu para o campo
mais expandido da dança.
O trabalho da coreógrafa eviden-
ciava como a dança podia se rela-
cionar às questões que atravessa-
vam a vida social. Em 1950, durante
turnê pelo Brasil, sofreu uma ofensa
racista no Hotel Alvorada, em São
Paulo, que desencadeou intensas
discussões no campo das relações
raciais, culminando na promulga-
ção da Lei Afonso Arinos no país
(Lei n. 1.390/1951), que considerava
as práticas racistas como contra-
venção penal. Cabe ressaltar que
nessa mesma época a coreógrafa
estabeleceu contato com a baila-
rina brasileira Mercedes Baptista,
que posteriormente ingressaria em
sua companhia em Nova York.
Dunham, através de suas coreo-
grafias e de seus movimentos ao
redor do mundo, imaginou e fez
circular representações sobre o que
pode ser o corpo afro-diaspórico,
e com isso disseminou um conhe-
cimento próprio e de toda uma
comunidade. Sua visão humanista
e seu ativismo contribuíram de
maneira multidimensional para os
campos das artes, da educação e
da luta antirracista, entrelaçando
esferas artísticas e acadêmicas de
modo pertinente e necessário.

luciane ramos silva


kidlat tahimik

Indio Genius Brazil Remix, 2023


Índio Gênio Brasil Remix. Colagem digital

182
183
Mais conhecido como cineasta plas histórias e as muitas cenas que lado, figuras mitológicas ancestrais:
independente, Kidlat Tahimik é autor ganham forma em suas esculturas de Igpupiara (termo tupi que significa
também de instalações feitas em madeira parecem saídas da mente monstro marinho) e Syokoy (espé-
grande escala. Enormes e comple- de um roteirista de Hollywood. cie de homem-sereia), originárias
xas, suas cenografias desenvolvem Por fim, personalidades históricas respectivamente de povos indígenas
narrações indígenas que confrontam mesclam-se a personagens fictícias, brasileiros e de povos filipinos. Esse
as narrativas coloniais e imperia- promovendo um colapso no tempo, é apenas um capítulo da viagem
listas. Preocupado principalmente nos períodos consolidados e em de circunavegação do explorador
com o extermínio e a destruição geografias distantes. Fernão de Magalhães, na qual a
de figuras mitológicas genuínas, o Para a instalação na 35ª Bienal invasão abre espaço para a necro-
artista recria, com nuances épicas, de São Paulo, Tahimik propõe um política que se estende para muito
os choques entre culturas. As múlti- friso improvável que dispõe, lado a além dos seres humanos. Primeiro
representadas como monstros,
depois exterminadas, as figuras de
Igpupiara e Syokoy personificam o
assassinato de imaginários tribais,
um profundo e implacável genocídio
cultural que amplifica sua tragédia
com o capitalismo ecocida racial.
Helicópteros, motosserras e mísseis
num confronto desigual com criatu-
ras meio humanas, meio animais, em
cenas que ecoam parques temáti-
cos interculturais, de algum modo
inspirados na lógica das exposições
do século 19, organizadas pela
empresa colonial.
Ao desorganizar os cronótopos
herdados dos discursos moder-
nos, que fizeram do saque e do
extrativismo formas legítimas de
governo planetário, o artista dispõe
em primeiro plano outra sombra
da violência. Desfazer as narrati-
vas imperiais por meio da lógica
degenerativa das histórias contadas
uma e outra vez constrói uma forte
contraimagem do progresso. Em
um mundo pós-colonial, a capaci-
dade inventiva apoia-se em torções,
combinações e mesclas do pas-
sado, a despeito das categorias que
mantêm separadas formas de vida,
construções imaginárias comuns
e conhecimento. Desse modo,
estabelecer contato com as instala-
ções de Tahimik é como entrar em
um ferro-velho legado por todos os
regimes imperiais.

carles guerra

traduzido do inglês por


gabriel bogossian
Rain Forest Manugal Jar, 2023
Jarra de floresta tropical de Manugal. Colagem digital
leilah weinraub O tempo no filme SHAKEDOWN espacialidades que entrelaçam pas-
(2018) é um habitat, como afirma sua sado, presente e futuro, Weinraub
realizadora. Por mais de dez anos, apresenta uma obra-pesquisa de 72
entre 2002 e 2014, Weinraub reuniu minutos desmontada em mais qua-
um precioso acervo de entrevistas trocentas horas de filmagens, flyers
e imagens do clube de strip-tease e inúmeras fotografias produzidas
Shakedown, de e para lésbicas quando a artista trabalhava como
negras, em uma Los Angeles à beira fotógrafa e videolady do clube que dá
da gentrificação e com violentas título ao longa-metragem. O resul-
incursões policiais. Interrompendo a tado é um filme-experiência, íntimo,
concepção linear e consecutiva oci- ousado e celebrativo da lesbiandade
dental e suscitando temporalidades e negra afro-americana.

SHAKEDOWN, 2018
Still do filme; 60’22’’

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185
Em 2020, SHAKEDOWN se tornou dade, o dinheiro, o poder, o erótico, Weinraub resiste à ideia de docu-
o primeiro filme não pornográfico a excitação, os afetos, as intimida- mentário e o define como sendo
lançado na plataforma Pornhub. des, as personas performáticas, a “sua própria cápsula”, realizado em
O filme, que remonta em novas sen- ilegalidade, as sexualidades fluidas, determinado momento como um
sibilidades, visualidades e tempora- as famílias, os conceitos de cinema e espaço para a curiosidade e a fanta-
lidades as histórias de Ronnie-Ron de imagem, o tempo e o clube como sia. Além disso, o que Weinraub fez
e das Shakedown Angels − Egypt, abrigo e possibilidade de ser. Aos em SHAKEDOWN foi uma obra de
Ms Mahogany e Jazmyne −, é um desavisados, SHAKEDOWN poderia arte visceral.
documento no qual se entrecruzam ser compreendido apenas como um
várias camadas, como as indagações documentário de resistência da cena barbara copque
sobre o que é trabalho? e sua ligação underground de Los Angeles, capital
com o indivíduo e com a privaci- e refúgio queer estadunidense, mas
luana vitra A transmissão de histórias orais ainda promovem a degradação dos
é uma das fontes da pesquisa de ecossistemas locais. Desses rela-
Luana Vitra. De origem mineira, tos, Vitra se recorda de ouvir sobre
cresceu ouvindo relatos de pessoas escravizadas que costuma-
parentes que envolvem desde vam levar canários para o trabalho
celebrações, saberes e tecnologias em minas de ouro. Pássaro de canto
afro-diaspóricas, aos traumas do incessante e metabolismo acele-
passado escravista da região de rado, era utilizado como sentinela.
Ouro Preto, onde vive sua família. Seus pulmões reagiam em instantes
Assunto constante são as histórias à presença de gases tóxicos ema-
que envolvem o legado de séculos nados pela extração mineral, e seu
de economias extrativistas que silêncio era o alerta para que os

186
187
mineiros abrissem caminhos para talação tem como elemento prin- Vitra, essa composição cria um
escapar daquelas galerias, evitando cipal uma série de flechas-patuás caminho que espacializa os signifi-
os perigos de uma intoxicação letal. preparadas para o desbloqueio de cados e as possibilidades que cada
A sobrevivência daquelas pes- caminhos. Feitas de ferro, material agrupamento carrega. Somam-se
soas significava a morte das aves, paradigmático e de uso recorrente à composição do trabalho, cuias
evidenciando como o regime escra- em seus trabalhos, elas atuam de cobre, pássaros banhados em
vagista não devastou apenas vidas como condutores, apontando para prata e cobre, metais de alto cará-
humanas, mas estendeu seu terror lugares de prosperidade onde a ter condutivo e pó de anil, substân-
sobre outras espécies. “possibilidade prevalece”. Ao centro cia frequentemente utilizada para
A narrativa acima é o ponto de da instalação, nota-se que algumas limpeza energética.
partida da obra de Luana Vitra para delas estão agrupadas e posicio-
a 35ª Bienal de São Paulo. A ins- nadas diagonalmente entre si. Para thiago de paula souza

Registro de produção da obra comissionada pela


Fundação Bienal de São Paulo para a 35a Bienal
luiz de abreu

188
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A investigação em dança e em racial em níveis econômicos, socio- Black Fashion [Moda negra] (2006),
performance conduzida por Luiz de políticos e subjetivos. As coreogra- como bandeira que veste o palco e
Abreu presentifica o corpo negro em fias presumidas para pessoas negras o artista em Samba do crioulo doido
estado de denúncia. Os vídeos que no contexto do mito da democracia (2004), ou mediante temas clássicos
compõem sua participação na 35a racial são exploradas no trabalho da brasilidade que compõem a trilha
Bienal constituem documentos do do artista, que entrega seu corpo sonora das obras. Mas, afinal, como
Brasil entre meados dos anos 1990 para responder aos estereótipos dança um corpo negro? E que efei-
e meados dos anos 2000. Neles, o que surgem e confinam o repertório tos e afetos uma pergunta elaborada
artista enfrenta a experiência de um simbólico esperado para as artes nesses termos é capaz (ou não) de
racismo que resistia à elaboração negras. O país é a presença que gerar? Embora o artista relate que
coletiva e institucional, mas com sustenta e conforma as cenas, seja não cria com base em gêneros,1 o
pungentes efeitos de subjugação como pano de fundo do cenário em riso branco, cisgênero e perverso da
plateia afirma comédia, uma vez que
é acionado em cenas que poderiam
causar profundo desconforto caso o
público fosse capaz de reconhecer a
tragédia vivida pela negritude. O riso
do performer, ao contrário, entra e
sai de cena demonstrando a marca-
ção coreográfica; trata-se de uma
alegria que revela sua artificialidade,
porque é decomposta enquanto
gesto, assim como todas as qua-
lidades e movimentos atribuídos
ao corpo negro o são. Em Autópsia
(1997), o espaço do riso se fecha. Na
insuportável reprodução do horror
dos relatos de violência narrados em
off, abre um espaço gregário para
solidariedade e para o ritual, retor-
nando, talvez, à memória de uma
dimensão litúrgica que sua dança,
sem dúvida contemporânea, apreen-
deu desde os terreiros de umbanda.

cíntia guedes

_
1/ Conforme entrevista concedida à Rádio
França Internacional Brasil, no programa RFI
Convida Luiz de Abreu, em 13 mar. 2020. Dispo-
nível em: www.youtube.com/watch?v=g0ALs1c-
TW0Q&ab_channel=RFIBrasil. Acesso em: 18
maio, 2023.

Samba do crioulo doido, 2004


Registro de performance
m’barek bouhchichi

190
191
A questão da raça é surpreendente- marroquino: as texturas do que as vida nova a ela. Com seu modo tátil
mente ausente na produção artís- mãos negras produzem, a textura de testemunhar uma história de
tica do norte da África. Pelos últi- do tempo passado com famílias racialização, eles desempenham
mos dez anos, M’barek Bouhchichi artesãs, ouvindo suas palavras, um papel semelhante ao dos poetas
vem elaborando formas e métodos vendo suas reiterações culturais orais Amazighs que, uma geração
para abordá-la. Sua intenção não é de gestos ancestrais e sua ética de após a outra, têm registrado a vida
tanto confrontar a brutal realidade paciência diante da discriminação. de suas comunidades em canções
do racismo antinegritude, mas Para Bouhchichi, esses cera- e recitações. A poesia é importante
resgatar a substância e os ritmos mistas e ferreiros são poetas (no para a prática de Bouhchichi. Ele
da vida negra que, para ele, são sentido grego do verbo poiein, tem prestado especial atenção a
principalmente aqueles do trabalho que significa “fazer”). Eles criati- M’barek Ben Zida (1925-1973), poe-
artesanal, em especial no sudeste vamente moldam a matéria e dão ta-camponês negro que se revoltou
contra seu status de parceiro de
arrendamento no sul do Marrocos.
Bouhchichi coleta as palavras em
grande parte esquecidas de Ben
Zida e as grava em esculturas.
Para a Bienal de São Paulo,
Bouhchichi une poesia e cerâmica
enquanto transpõe lacunas geo-
gráficas que mantêm a diáspora
africana dispersa. Inspirado pela
obra do ceramista estadunidense
escravizado David Drake (c. 1800-
1870), ele cria uma série de vasos
gravados com versos de poetas
negros do norte da África, afro-bra-
sileiros e afro-americanos – como
uma partitura para uma dança
alternativa de emancipação que
elimina as fronteiras nacionais ao
encenar debates entre mãos negras
de ambos os lados do Atlântico.
Com esse trabalho, o artista busca
desaprender as hierarquias da
arte ocidental, ao mesmo tempo
em que aponta para um mundo
estruturado, não pela reação à
opressão, mas por uma trama ativa
e poética de relações entre línguas
e geografias.

omar berrada

traduzido do inglês por


mariana nacif mendes

projeto para Nous sommes ce qui vous ne voulez pas voir, 2023
Nós somos aqueles que vocês não querem ver. Nanquim, grafite e
aquarela sobre papel
mahku

acelino sales tuin


Nahene Wakame, 2022
Acrílica sobre tela, 163,5 × 260 cm

192
193
Desde 2013, quando foi fundado pinturas corporais ao mesmo tempo ções de narrativas míticas e histórias
por Isaías Sales (Ibã), Txaná dos que reservam pequenas áreas de ancestrais, descritas nos cânticos
cânticos Huni Meka, e seus filhos cores intensas, a pintura do MAHKU rituais, cujo aspecto comum é a pre-
Acelino, Bane e Maná, o Movimento dispensa as codificações ocidentais: sença viva dos entes da natureza e a
dos Artistas Huni Kuin vem esta- renuncia à mimesis, à perspectiva, relação de continuidade entre eles.
belecendo uma iconografia sin- às regras de proporção e à técnica Resulta desses procedimentos uma
gular, cujas soluções formais per- canônica, para se comprometer uni- combinação de formas e cores, que
mitem uma rápida identificação. camente com às forças de miração, reacende o problema do movimento
Caracterizadas pela presença de experiências de visões estimuladas em pintura, deslocando-o do terreno
figuras humanas e não humanas, pela ingestão de ayahuasca durante da ilustração para o da experiência
integradas por uma complexa trama os rituais de nixi pae. As pinturas interior (que Ibã chama de “arte espi-
gráfica que reflete a estrutura das podem apresentar também tradu- ritual”), e procuram dar conta dos
diferentes ritmos de narração dos
mitos nos cantos.
Na iconografia Huni Kuin, a área
de imprecisão entre o sonho e o
mito é frequentemente marcada
por uma moldura que se adapta ao
suporte trabalhado, assegurando a
autonomia da história e garantindo
sua livre manifestação. No períme-
tro da miração, não há hierarquias
entre os entes representados e a
fratura entre abstração e figuração
perde todo sentido. O que encon-
tramos é o resultado de uma ima-
gem-processo, realizada por muitas
mãos, a partir do diálogo e do
aprendizado entre os envolvidos,
cujo objetivo final é a cura, tanto de
quem a realizou quanto do observa-
dor que a acessa, transformando-a
em experiência espiritual.

renato menezes
malinche

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entre os anos de 1500 e 1529, viveu mente ter atuado como tradutora ensurdecedor dos mosquetes, crian-
Malinche, uma Nahua que nas- y conselheira de Hernán Cortés na ças que choram diante do cadáver
ceu provavelmente no que hoje invasão y destruição do Império de seus pais ensanguentados,
chamamos de costa do Golfo do Asteca (1519-1521). cabanas incendiadas, jovens sendo
México, y Malinche seria a forma em Lienzo de Tlaxcala1 depa- violentadas por espanhóis, saques,
distorcida de Malintzin captada ramos com a recriação de um destruição, soldados espanhóis
pelo ouvido espanhol, que é apenas momento histórico cuja violência assassinados sem ao menos saber de
mais um dos tantos nomes atribuí- poética apenas podemos vislumbrar: onde partiu a flecha. mas podemos
dos a ela, cujo nome de nascimento o brutal encontro entre Tlaxcalanos também nos questionar: que histó-
é desconhecido. y Castelhanos. diante dessa imagem rias guardam essas manchas estra-
nos registros oficiais da História, misteriosa, somos convocadas a nhas? ou que acontecimentos impre-
Malinche é conhecida por suposta- presenciar o inominável: o barulho visíveis anunciam esses rasgos?
Malintzin foi conhecida por
ser uma colaboradora da invasão
ibérica. entretanto, podemos ques-
tionar: será que ela apenas estava
tentando sobreviver ao extermínio
que se anunciava? será, ao contrá-
rio, que seu trabalho silencioso era
de um ataque interno, por meio de
sabotagem y contágio? de qualquer
forma, suas habilidades linguísticas
notáveis podem nos servir como
caminho para ir além da História,
erodindo a sua linguagem. será que
em Lienzo de Tlaxcala se encontra
criptografada alguma pista? talvez
aí estejam contidos elementos
para fabularmos um outro tipo de
refeitura profética do passado.
assim, esse mapa não indica as
coordenadas para um país geo-
gráfico, mas para lugares há muito
esquecidos y que ainda estão para
serem imaginados.

abigail campos leal

_
1/ O Lienzo de Tlaxcala é um códice colonial
pintado por volta de 1552. Ele conta a história
da conquista do México da perspectiva dos Tla-
xcallans, antigos inimigos dos Astecas. Dispo-
nível em: nmdigital.unm.edu/digital/collection/
achl/id/1609/. Acesso em: jul 2023.

Lienzo de Tlaxcala, 1522


Desenho policromado sobre papel de casca de árvore, 65 × 26,5 cm
manuel chavajay Atitlán é o lago que banha as mar-
gens de diversos vilarejos no depar-
tamento de Sololá, na Guatemala.
Protegido por três gigantescos
vulcões, ele é o produto de uma
erupção ocorrida há 84 mil anos.
Em suas margens, habitam des-
cendentes dos grupos Caqchiquel
e Tzutuhil. Manuel Chavajay,
nascido na cidade guatemalteca
San Pedro la Laguna, é um desses
descendentes.

196
197
Como uma extensão desse lugar esse lugar são superiores a qual- gem, registrada por um drone,
surpreendente, seu trabalho o quer clichê. Em sua performance é um círculo quase perfeito dos
explora como um local sagrado, em vídeo Oq Ximtali (2017/2023), vinte barcos que carregam vários
onde sua existência acontece e pode-se observar isso. Esse projeto recursos e objetos simbólicos. As
é tecida com o conhecimento de é o registro de uma ação comuni- embarcações fluem com as corren-
seus ancestrais. Para os habitantes, tária, surgida da preocupação do tezas da água ou exercem forças
Atitlán é um epicentro do turismo artista com esse local e do con- opostas. No final da ação, o artista
e um lugar que contribuiu com a vite a um grupo de pescadores sugeriu aos participantes que
ideia do que constitui o repertó- para que amarrassem seus barcos poderiam se desamarrar, moven-
rio nacional. Mas, para Chavajay, tradicionais − conhecidos como do-se de acordo com sua vontade
as forças vinculantes que surgem cayucos − enquanto remavam nas ou coordenando-se para retornar
da experiência de pertencer a águas translúcidas do lago. A ima- juntos à margem, o que gerou um
momento de confusão. A expressão
Oq Ximtali, na língua tzutuhil, sig-
nifica “eles nos amarraram” ou “nós
estamos amarrados”. Essa ação
explora ou recupera a dinâmica
da comunidade que está se desar-
ticulando e desaparecendo em
razão da interferência de culturas
opostas. No trabalho de Chavajay,
sempre se encontram reflexos de
um intenso senso de dor histórica
que se alterna ao senso de espe-
rança; certo medo que surge com
a resiliência; a força do trabalho na
terra e na água funde-se ao grande
senso de vulnerabilidade. Em uma
poética excepcional, Oq Ximtali
sugere esse sentimento recorrente
de impossibilidade que se tornou
uma característica proeminente do
presente e que ameaça o equilíbrio
das comunidades, das relações
humanas e interespécies.

rossina cazali

traduzido do espanhol por


ana laura borro

Oq Ximtali, 2017/2023
Fotografia digital, 91 x 61 cm
marilyn boror bor

198
199
Para a Bienal de São Paulo, a cionado por estereótipos e por pre- Simulando breves ficções, Boror
artista de origem Maya-Caqchiquel conceitos. Monumento vivo (2023) Bor substitui o milho da comida
Marilyn Boror Bor apresenta dois é uma ação na qual o corpo da pelo cimento, a argila dos potes
projetos que exploram seu com- artista, vestido com o traje maia, é pelo peso desse outro material, por
promisso com a visão contraetno- disposto em uma base na qual suas meio do qual a alma (cux, na língua
gráfica e com a desarticulação de pernas ficam momentaneamente caqchiquel) e o valor simbólico
formas de colonialidade. Seguindo presas no cimento. Nos quitaron la originais dos objetos vão se per-
os modelos do monumento euro- montaña, nos devolvieron cemento dendo. Ambas as obras constituem
peu e da museografia etnográfica, [Tiraram a montanha de nós, nos uma resposta aos debates sobre
os objetos e as ações de Bor modifi- devolveram cimento] (2022) con- o modelo de desenvolvimento
cam as percepções hegemônicas e siste em uma série de objetos tra- econômico na Guatemala e o
o escrutínio de um público condi- dicionais produzidos com cimento. extrativismo feroz que afeta tantas
pessoas no continente e, em parti-
cular, em San Juan Sacatepéquez,
cidade onde a artista nasceu. Tanto
o monumento quanto os objetos
configuram um ato de enuncia-
ção dos conflitos gerados pela
implementação de uma indústria
que literalmente recobre de pó
de cimento os campos férteis, as
fontes de água e todos os recursos
vivos dessa região.
Não existe a palavra arte entre
os povos nativos. O uso de ele-
mentos ocidentais associados ao
mundo da arte é uma estratégia
para revelar a situação difícil, mas
também para resgatar a presença e
a reverberação dos referentes origi-
nais. A intenção de Boror Bor é tirar
proveito de certas características
dessas linguagens totalizantes, ins-
titucionalizadas e acadêmicas para
desmantelar os lugares-comuns que
o multiculturalismo proporcionou.
Como artista indígena contemporâ-
nea, seu desejo é resgatar cosmo-
gonias que foram invisibilizadas e
fragmentadas ao longo dos séculos.

rossina cazali

traduzido do espanhol por ana laura


borro

Monumento vivo, 2021


Registro de performance, Bienal Sur, Ciudad de Guatemala
marlon riggs

Tongues Untied, 1989


Línguas desatadas. Stills do filme; 55’

200
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Desde que passou por uma O cinema de Riggs é da ordem do inventiva da carreira de Riggs e
revaloração por meio do traba- antissilêncio e, como tal, promove reúne os traços estilísticos que
lho de pesquisadores, curadores a valorização do expressar-se. Voz costumamos associar à sua obra.
e distribuidores,1 os filmes de e ritmo constituem as principais Como muitos de seus filmes sub-
Marlon Riggs (1957-1994) têm sido estratégias formais de sua obra. sequentes, Tongues Untied transita
frequen­temente reverenciados Não representa um acaso que a do radicalmente pessoal – avizi-
pelo conteúdo e pelo potencial poesia, com suas infinitas possibili- nhando-se, assim, de um confessio-
de identificação que geram. dades de arranjos sonoros e elípti- nário – ao indubitavelmente cole-
Proponho, contudo, que destaque- cos, representa um traço inconfun- tivo – enamorando-se, portanto,
mos sua obra como integrante de dível de seus filmes. da polifonia.
uma história das formas nas artes, Tongues Untied [Línguas desa- Falar de Riggs é também reco-
em especial no cinema. tadas] (1989) inaugura a fase mais nhecer que o paradigma da política
dos autores na análise fílmica – ou
seja, atribuir o que emana da mise
en scène quase exclusivamente ao
diretor – impõe limites. Para melhor
compreendê-lo, seria útil obser-
vá-lo como um criador em inter-
locução com uma coletividade de
indivíduos artisticamente brilhan-
tes e intelectualmente rigorosos:
ativistas negros-gays, intelectuais
do feminismo negro e poetas, como
Essex Hemphill.
As realizações de Riggs empe-
nharam-se para que homens
negros-gays tanto fizessem parte
da experiência negra como da
americanidade. Investidos de uma
reconciliação de identidades, seus
filmes buscaram o acerto de contas
rumo a uma redenção possível
junto a três identidades estruturan-
tes: negro, estadunidense e gay.
Em Tongues Untied, Riggs pos-
tula essa reconciliação assertiva
como projeto estético e político.

heitor augusto

_
1/ entre eles, destaco Bruno F. Duarte,
Cornelius Moore, Louis Massiah e Rhea L.
Combs, além de meu trabalho como curador e
professor.
maya deren A principal contribuição de Maya poesia e sua produção não literal
Deren (1917-1961) para a coreogra- de significado; a fluidez inatingível
fia é considerar a própria câmera do movimento é consistente com
como parte integrante da realidade a ideia do cinema como uma arte
dinâmica da dança. A câmera não do tempo, não da representação.
é apenas um instrumento para Para ela, a arte é a produção formal
registrar um evento cênico diante de uma realidade e experiência
do qual é colocada, mas para ela autônomas. Em suas próprias
mesma dançar em uma estrutura performances, Maya mergulha
holística. E com a câmera, quem nessa realidade, que não é dada,
a segura. Maya se interessa pela mas construída por meio de recur-
dança pela sua afinidade com a sos técnicos com os quais nunca

202
203
deixa de experimentar: montagem é o inverso dos rituais de possessão sua construção formal. Perfeito
invisível, slow motion, quadros que tanto a fascinaram (e que ela em sua precariedade: um conjunto
congelados, uso de diferentes mesma praticou) no Haiti. Em con- de papel fotográfico e um manu-
lentes, inversão de movimento, traste com esses rituais, a dança seio hábil da edição nos permitem
dissociação de imagem e som. E é mostrada aqui é um exercício de transcender o plano de Maya e a
essa dupla experiência, de atuar autocontrole, que a câmera com- singularidade de Chao-Li Chi para
e fazer, de estar dentro e fora, partilha, assumindo a própria gravi- produzir um movimento circular e
no trabalho técnico e na criação dade do dançarino, aquela aparente infinito, a forma perfeita que con-
poética, no mundo material e no leveza que só é alcançada por meio tém todas as formas. A desperso-
transcendente, que se revela em do treinamento e da inteligência do nalização do dançarino e da câmera
Meditation on Violence [Meditação corpo. O resultado é um filme que é tocada pelo abandono típico dos
sobre a violência] (1948). Esse filme pode ser considerado perfeito em rituais de posse, mas aqui a violên-
cia é contida, silenciada, não para
negá-la, mas precisamente para
mostrá-la à distância, em sua conti-
guidade com a beleza e com a vida.
O olhar distanciado nos aproxima
do divino de uma maneira quase
oposta à do corpo em transe: aqui
isso é alcançado graças ao trabalho
com a matéria (o corpo, o papel, a
arquitetura, a flauta, os tambores)
e a forma (movimento, velocidade,
enquadramento, edição de imagem
e som) como meios da dança e
do cinema.

josé antonio sánchez

traduzido do espanhol por


ana laura borro

Meditation on Violence, 1948


Meditação sobre a violência. Stills do filme. Filme digital HD, preto e branco,
som (do original em 16mm); 12’25’’
melchor maría mercado Embora tenha sido exibido pela pri- As centenas de aquarelas que com-
meira vez quase um século depois, põem a obra traça uma genealogia
em 1991, o Álbum de paisajes, tipos própria por meio de diferentes gru-
humanos y costumbres [Álbum de pos humanos, costumes e regiões
paisagens, tipos humanos e cos- do país, nos quais as populações
tumes] foi produzido entre 1841 e indígenas e as cholas desem-
1869, nos primórdios da República penham um inegável papel de
da Bolívia. Indo na contramão da liderança. No entanto, ao mesmo
historiografia tradicional e do gosto tempo em que captura a cultura, a
neoclássico predominante, Melchor arquitetura e a natureza boliviana,
María Mercado (1816-1871) tece o artista aponta a fragilidade do
outras formas de “narrar a nação”. poder político (que vivenciou em

Sem título (Los pecados capitales), século 19


Os pecados capitais. Aquarela sobre papel, 20,5 × 33 cm

204
205
primeira mão) e satiriza a corrupção Há uma maneira particular de abor- e contraditórias. Assim, longe de
das elites coloniais. dar o espaço e o tempo em Álbum. prefigurar o que mais tarde seria
Dessa forma, além de uma tenta- Contra a visão única e linear da his- instituído como um mapa, a obra
tiva inicial de implantar uma memória tória escrita, propõe-se um formato de Melchor María Mercado sugere
e uma episteme andinas, também é sequencial e dialógico, em que cada zonas de encontro e conflito em
possível perceber as fraturas e ambi- obra é – em si mesma e em relação uma alegoria entre o vivido e
valências que marcaram o período: a às outras – uma cintilação discursiva. o significado.
marginalização de certas identidades A socióloga Silvia Rivera
ou classes sociais e uma obstinada Cusicanqui, que estudou detalha- beatriz martínez hijazo
dominação colonial que se revelou damente a prática de seu compa-
como o outro lado do célebre triunfo triota, falou da terra natal como traduzido do espanhol por
do mercado e da democracia. um punhado de imagens queridas ana laura borro

República Boliviana. Paz. Danzantes, século 19


República Boliviana. Paz. Dançantes. Aquarela sobre papel,
20,5 × 33 cm
min tanaka Uma pessoa vestida com trapos
e françois pain caminha com dificuldade. As
roupas modestas talvez tenham
alguma relação com o filme A louca
de Chaillot.1 Desajeitada, a figura
quase parece que está aprendendo
a andar. No entanto, seu aprendi-
zado não é nada funcional, e sua
maneira de se relacionar com o
mundo não é comum. Mas essa
dificuldade resulta em uma beleza
de movimentos que se torna algo

206
207
mais belo do que uma simples na clínica francesa La Borde, onde afeto e aprendizado mútuo. Esse é
sequência de passos: é uma dança. Félix Guattari trabalhou por um o elemento coreográfico do impos-
Todas as partes do corpo atuam tempo com Jean Oury, fundador da sível que permeia esta obra. Tanaka
e interagem entre si, mas não da clínica. Ambos psicanalistas, Félix é um dançarino japonês que atua
forma esperada. Pés, pernas e e Jean procuraram criar um espaço na contramão da dança tradicional.
braços se movem de forma inve- que não reproduzisse relações Desde 1974, tem desenvolvido um
rossímil, gerando correlações e hierárquicas de poder, um lugar modelo muito específico de perfor-
reciprocidades inesperadas com de intercâmbio entre assistentes e mance que rompe com as discipli-
tudo o que está à sua volta, seja pacientes, entre equipes de servi- nas e que ele chama de hiperdança,
humano ou não. Essa ação foi rea- ços e médicos. A forma como ele enfatizando a unidade psicossocial
lizada pelo dançarino e ator (como se relaciona com os pacientes de de um corpo sem órgãos ou fun-
ele mesmo se descreve) Min Tanaka La Borde evoca acompanhamento, ções predeterminadas. Ao longo
de sua carreira, desenvolveu uma
prática que é impossível de ser
classificada. Em suas palavras:
“uma dança sem nome”. Tanaka já
disse em alguma ocasião que juntos
encarnamos um corpo único que
não pertence a ninguém: o corpo
da terra.
Min Tanaka à La Borde
[Min Tanaka em La Borde] (1986)
foi realizado por François Pain, um
cineasta francês que colaborou com
Félix Guattari em La Borde, e cuja
obra se concentra em questões de
esquizoanálise e antipsiquiatria,
entendendo o cinema como uma
máquina para gerar espaços
de cuidado.

sylvia monasterios e tarcisio almeida

_
1/ Dirigido por Bryan Forbes, A louca de Chaillot
(1969) é um filme de comédia dramática, de
coprodução britânica e estadunidense, baseado
na peça La Folle de Chaillot (1945), de Jean
Giraudoux.

Min Tanaka à La Borde, 1986


Min Tanaka em La Borde. Stills do vídeo.
Vídeo, cor, som; 24’
morzaniel ɨramari

Mãri Hi, 2023


A árvore do sonho. Still do vídeo. Vídeo, cor, som; 17’.

208
209
Estamos diante de Watorikɨ – a de São Paulo, Mãri Hi [A árvore do que a floresta é o mesmo planeta
casa dos espíritos –, uma presença sonho] (2023) e Urihi Haromatimapë compartilhado por todos nós.
rochosa que os não indígenas ten- [Curadores da terra-floresta] (2014), Nessa jornada sonho adentro,
tam traduzir pelas palavras serra do o cineasta investiga a realidade dos a voz-guia é soprada pelo corpo
vento. Mas, a partir de agora, escu- sonhos dos Yanomami, para quem de Davi Kopenawa. O discurso,
taremos a língua dos Yanomami ao as dimensões dos mundos físico, então, infiltra-se nos desvãos das
longo de percursos traçados entre onírico e espiritual se encontram imagens e materializa zonas de
os sons das matas. Caminhos que intimamente conectadas a cada criação cuja existência seria impos-
Morzaniel Ɨramari, decide percor- elemento da vida na floresta. Ou sível em registros literais ou etno-
rer modulando as perspectivas melhor, da terra-floresta – como gráficos. Vemos vultos em meio à
a partir de sua cosmovisão. Nos costumam chamá-la –, pois é folhagem, as lentes não enfocam o
filmes apresentados na 35a Bienal preciso que eles nos relembrem de óbvio; um brilho excessivo cintila
de repente; a sensação do pó de
Yãkoana. O que os Yanomami veem
no sonho? “Outras coisas que vocês
brancos”, diz Kopenawa.
Se a fumaça lógica da colo-
nização ameaça os Yanomami
– garimpo ilegal, doenças e des-
matamento –, ela também volta-se
contra os não indígenas coloni-
zando cada centímetro da vida, até
mesmo as recônditas regiões dos
sonhos, quantificando-os e algorit-
mizando-os para domesticá-los nas
cidades. A filmografia de Ɨramari
propõe visões desse mesmo-mun-
do-outro que os demais terráqueos
insistem em ignorar, como quem
foge às responsabilidades. No final
de Mãri Hi, os esforços tradutórios
fecham as rotas de fuga com a
seguinte fala-sonho de Kopenawa,
que surge na tela com um caderno
na mão: “essas palavras foram
traduzidas em outras línguas dos
brancos e agora são capazes de
entendê-las. Vamos compartilhar
este pensamento para juntos ficar-
mos mais sábios”.

igor de albuquerque
mounira al solh

210
211
Em décadas recentes, as guer- vestígios de experiências biográfi- experiência nômade. Um exemplo
ras em curso no Líbano e na Síria cas, emerge como matéria-prima emblemático é Lackadaisical
pairam sobre a obra de Mounira da artista, partindo o corpo político Sunset to Sunset [pôr do sol a pôr
Al Solh. Ao contato com migrantes anteriormente unificado que a lín- do sol] (2022), pequeno tapete
e pessoas deslocadas, ela responde gua árabe poderia ter representado que a artista estendeu ao longo do
com uma prática conversacional em infinitas histórias, contadas por tempo nos diferentes lugares em
frenética, que reconecta todos pessoas ao redor do mundo. que viveu, recolhendo fragmentos
esses indivíduos que adquiriram Cada obra de Al Solh exala uma e marcas de uma vida cotidiana.
status diaspórico pelo distancia- patologia não declarada do exílio. Como muitos de seus trabalhos, o
mento de sua terra natal. Por meio Vídeos, patchworks e performan- resultado é absolutamente tera-
desses encontros, uma língua ces costuram fragmentos cole- pêutico e insiste na dimensão
cotidiana, popular, que carrega tados durante as conversas e sua patológica e na condição daqueles
representantes de uma cidadania
global marcada pela exclusão e
pela vida precária.
Em séries de patchworks como
Sama’ / Ma’as (2014-2017), Al Solh
apresenta a arbitrariedade radical
que, ao desestabilizar sentidos
fixos, faz as palavras funcionarem
como signos polissêmicos. As obras
dessa série enfatizam a fonética – e,
portanto, o performativo e o itera-
tivo –, como se uma vida precária
fosse uma vida a ser vivida por meio
de identidades mutantes e hetero-
gêneas. O desejo pelo coletivo e
uma agência feminista com fre-
quência redimem as consequências
dramáticas de guerras e de exílios.

carles guerra

traduzido do inglês por


gabriel bogossian

Sama’/Ma’as – (‫توت‬-‫( – )توت‬Fruto/Buzina), 2014


Cortina dupla-face com patchwork de tecidos, 273 × 278 cm
pensamento filosófico, linguagem e
corpo-pessoa em performance: o cosmograma,
as vibrações e o “v”
tiganá santana

A sentença em linguagem proverbial, que se encontra em antenas (mièkese), para que as ondas e as radiações possam
um lugar especial no processo de comunicação, é a depu- presentificar conteúdos e símbolos ancestrais. É impor-
ração do conhecimento de trocas de ondas e de radiações tante enfatizar que, de acordo com o que interpretamos da
(minika ye minienie, na língua africana kikongo) no ato da cultura bantu-kongo, à luz do que indica Bunseki Fu-Kiau
enunciação de certas palavras (com ressonâncias pretéritas em sua obra, a ancestralidade não é algo pretérito, encer-
dos antepassados e atuais para as diversas circunstâncias). rado em um passado com marcos temporais definitivos.
Há uma energia (ngolo) que não é proveniente da sonori- Ela é sempre atualizada por uma ideia de origem, à qual
zação das palavras ou dos significantes, mas aquela que se deve referir uma pessoa kongo (mukongo), uma vez
evoca toda uma maneira de se referir à existência, uma conferido o sentido (necessariamente, coletivo) à sua vida.
cosmologia e cosmograma (Dikenga dia Kongo) inerentes e, O ku mpemba, insondável mundo espiritual, é um espa-
sobretudo, a crença em um efetivo poder de realização.1 ço-tempo do qual partem os referenciais do todo viven-
Há também o reconhecimento de que esse é um ciado e imaginável, mas é, a cada devir, a proximidade do
princípio sistêmico, apenas (de)codificado por aquelas último porvir experienciado no ku nseke, mundo físico.
pessoas que compartilham certa forma de experienciar a No ku mpemba, locus ancestral por excelência, encontram-
linguagem e ser/viver culturalmente, conforme sublinhado -se, conforme desenha o Dikenga dia Kongo (cosmograma
pelo pensador congolês Bunseki Fu-Kiau: Kongo),4 forçosamente, os estágios Musoni e Luvemba de
qualquer ser existente, ou seja, o início invisível e o fim
Um entendimento sistêmico, portanto, é pos- visível, de tudo o que há e pode ser capturado pela expe-
sível apenas se alguém pode experimentar e riência humana kongo. Assim, vamos ao encontro do que
sentir a beleza da radiação [n’niènzi a minienie] afirma Jarbas Siqueira Ramos, no que tange à sua pesquisa
da língua que gera a cultura em questão.2 acerca da ação performativa no Congado:

Em sua obra Self-Healing Power and Therapy: Old Teachings Assim, o corpo-voz durante a ação performativa
from Africa [Poder de autocura e terapia: antigos ensi- […] não se limita apenas a repetir um hábito;
namentos da África], ainda de modo mais assertivo, esse como sugere Martins (2003), ele institui, inter-
autor afirma: “Ondas e radiações podem se converter em preta, revisa e reatualiza periodicamente o pró-
formas e imagens que podem falar”.3 As sentenças em prio ato performativo, sendo a memória grafada,
linguagem proverbial, portanto, como síntese e cabeceira registrada, transmitida e modificada conforme a
de narrativas existenciais, são receptores (tambudi), com ação acontece.5

1/ Este texto é parte do ensaio de Tiganá Santana, “Cosmologie en per- Ao analisar aspectos da epistemologia africana dogon
formance: sentences proverbiales africaines bantu”, publicado original- (no contexto da acepção “epistemologia — e filosofia — da
mente em Agnès Levécot e Ilda Mendes dos Santos (orgs.), Littératures
Africaines d’Expression Portugaise, n. 21, Paris, Presses Sorbonne Nouvelle,
pp. 93-127, 2021. 4/ Lembramos, nesse ponto, que o aludido cosmograma, conforme já
2/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, African Cosmology of the Bantu- asseveramos em trabalhos anteriores, é uma interpretação inscrita do
-Kongo: Principles of Life and Living. 2. ed. Nova York: Athelia Henrietta mundo que lê sua lógica da perspectiva de eventos que se dividem (e
Press, 2001a, p. 11. Cf. idem, ibidem. No original em inglês: “A systematic entrecruzam) entre estágios (Musoni, Kala, Tukula e Luvemba) a represen-
understanding therefore is possible only if one can taste and feel the radia- tar, respectivamente, o não visto, o que desponta, o que atinge o ápice —
tion beauty [n’niènzi a minienie] of the language that generates that culture”. ontológico — e o morrer.
3/ Idem, Self-Healing Power and Therapy: Old Teachings from Africa. Clif- 5/ Jarbas Siqueira Ramos, “O corpo-encruzilhada como experiência per-
ton: African Tree Press, 2001b, p. 97. No original em inglês: “Waves and formativa no ritual congadeiro”. Revista Brasileira de Estudos da Presença,
radiations can change to forms and images that can speak”. Porto Alegre, v. 7, n. 2, pp. 296-315, maio/ago. 2017, p. 308.

212
213
ancestralidade” por ele cunhada), estabelecendo diálogo dessa dinâmica, porque ele a vive-pensa e dela emana,
com os antropólogos franceses Marcel Griaule (1898-1956) assim como observa Oliveira no exemplo dogon:
e Germaine Dieterlen (1903-1999) − notáveis investigado-
res da cosmologia dos dogon, do Mali −, o filósofo Eduardo O homem é síntese do processo de germinação
Oliveira conduz à especial reflexão quanto ao conceito (e à da semente, o universo síntese da germinação
experiência) de vibração. Essa vibração anima a existência e humana e tudo é processo iniciado e veicu-
pode se desdobrar, se irradiar a partir do humano seminal, lado pela vibração que anima tanto a pequena
conforme, em similar compreensão, Fu-Kiau defende no semente quanto a imensidão do universo. Cada
âmbito dos bakongo. Oliveira assim afirma: qual é processo em si mesmo e síntese do outro.
Toda essa dinâmica é relacional, processual,
A pequena semente é ao mesmo tempo a menor e sua dinâmica articula a singularidade da
parte do Universo e o Universo inteiro, posto existência territorializada como a cosmovi-
que se alastra por todo planeta, germinando-o. são da cultura estruturante. Ao mesmo tempo
Diferentemente das metafísicas que concebem cada qual é inteiro o que se é! Mais!, ao mesmo
o Ser como uma mônada, seja ela estática ou tempo é coisa e símbolo, signo e objeto, fagulha
dialética, os Dogon entendem que o que anima a e escuridão. Ao mesmo tempo, e encerrados no
existência é uma vibração.6 Já os Bantos — cf. Pe. mesmo instante, é-se processo e evento, acon-
Altuna — concebem a Força Vital como a energia tecimento e passado, acontecimento e futuro.
que anima o mundo. Se isto é uma verdade no É-se realização e possibilidade, desconstrução e
Sul da África, o é também na África Setentrional construção, criatividade e conservação.8
(por exemplo, entre os Dogon). Pensa-se a exis-
tência a partir de uma vibração, da energia e da Para que o existente cumpra sua vocação para a transmu-
emanação. A fonte dessa metafísica que é mais tação (nsoba) é necessário que vibre (tatala). O existir é
uma infra-física nos permitirá elencar mais parte do humano, mas deve expandir-se para o extra-hu-
um princípio fundamental da Forma Cultural mano que, muitas vezes, constitui a anterioridade geratriz
Africana, a saber: O Princípio da Emanação.7 do humano. Pode, assim, vir antes, ainda que por meio do
humano, todo um fio de memória a se reportar à “categoria
Não colocaríamos, nesse ponto, como contrastivas a analítica”9 da ancestralidade. A memória viceja no tempo
“Força Vital”, resgatada por Oliveira da afirmação do autor presente — eis onde vige o ancestral — como ntima, mesmo
Raul Ruiz Altuna, e a “vibração” dogon. As ondas e radia- termo, em kikongo, para coração. Aliás, assim como nos
ções bantu, a partir dos ba-kongo, constituem tal força. A desenhos etimológicos latinos, nos quais saber de cor é
movência, as transmutações, o que permanece, o que se saber de coração. A memória vibrátil é encarnada pelo que
desconhece, o que se experiencia, o que se virtualiza, tudo, pulsa no tempo, sangra, se dilata, se comprime, não pode
substanciando e sendo substanciado por essa força, acon- parar, fazendo parte das interioridades mais individualiza-
tece de modo vibrátil. O ser humano (muntu) é a síntese das e a mesma coisa ou princípio em qualquer pessoa.
Se tentarmos uma transposição conceitual (que não nos
parece estúrdia), o fio da memória diz do planeta que
6/ Os grifos desse excerto são do autor do excerto.
7/ Eduardo Oliveira, “Epistemologia da ancestralidade”, pp. 5-6. Dis-
ponível em: filosofia- africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/
eduardo_oliveira_—_epistemologia_da_ancestralidade.pdf. Acesso em: 23 8/ Id., ibid., p. 7.
jun. 2023. 9/ Ibid.
humanamente habitamos, nos reportando- ao Sistema sente, o devir. Tudo vibra memória — linha de força que
Solar, que, depreendido da Via Láctea, nos leva a perceber reúne as temporalidades possíveis.
uma ancestralidade desdobrada, chegando ao insondável. As sentenças em linguagem proverbial são, por
O maior de todos os ancestrais é o insondável, o que não se sua vibração e ininterrupta memória, o que o pesquisador
sabe. Nzambi (ou Kalunga) é, até onde, por ora, consegui- angolano Óscar Ribas (1909-2004) chamou de “património
mos chegar, ser (verbal) existindo a partir de si e de onde espiritual dum povo — a riqueza tradicional acumulada
advêm as outras coisas que são. Toda essa comunicação desde a primitividade de sua consciência”; ou, como afir-
memorial ressoa e faz ressoar. Entre os bantu zulus, para mou, em seguida, “os provérbios constituem o píncaro de
ratificar essa linha de pensamento, o historiador sueco sua sabedoria. Na profundidade das sínteses, quais cristali-
Bengt Sundkler (1909-1995), em sua obra Bantu Prophets zações do pensamento, contêm a essência dos ensinamen-
in South Africa (Profetas bantu na África do Sul),10 lem- tos da vida”.12
bra-nos de que o deus elevado, uNkulunkulu, designa o A professora e pesquisadora Maria Antonieta
antigo. Assim, em um contexto no qual a ancestralidade é Antonacci, por seu turno, ao retomar Marcel Griaule e
a cavidade originária, o mistério é sempre o amorfo corpo os encontros desse antropólogo “com o sábio africano
central a (re)fecundar o que é. Ogotemmêli”,13 lembra que ele
O escritor-pensador congolês Zamenga
Batukezanga (1933-2000) afirmou: já enfatizara, em relação aos dogon, a força de
coesão social alcançada em sociedades tradicio-
[…] o corpo inteiro é emissor e receptor. O que nais africanas, onde a noção de pessoa, indis-
somos, nossos gestos, nossa vibração, afetam sociável da palavra, conecta-se à de sociedade,
nosso ambiente e atuam como ondas na água, visão de mundo e divindade.14
no oceano. Os choques das nossas vibrações,
isto é, nossos gestos, falas, transmitem-se a Conforme nossa reflexão, também, entre os ba-kongo, a
longas distâncias, ainda mais, por serem muni- ideia e a vivência que delineiam a pessoa (muntu) estão
dos de uma potência energética. As técnicas e ligadas à palavra como experiência. Especificamente, no
energias modernas só servem para aumentar as que diz respeito à palavra incorporada na sentença prover-
naturais dispostas em nosso corpo.11 bial, Antonacci, agora em diálogo com o linguista francês
Jean Cauvin, citando-o, menciona que:
Os corpos tangíveis vibram tanto quanto o imaterial. E
tudo, como estamos a ver, vibra a anterioridade, o pre- Desfazendo ideias preconceituosas a comunida-
des orais africanas, Jean Cauvin, que ficou oito
anos junto aos Minyanka (Mali), a propósito do
10/ Bengt G. M. Sundkler (1948), Bantu Prophets in South Africa. 2. ed. viver proverbial registrou: “O homem mynianka
Oxford: Oxford University Press, 1961. ‘diz’ e ‘faz’ a sociedade pelos provérbios”,
11/ Zamenga Batukezanga, Kindoki: source des philosophies et des chamando atenção para injunções, imaginário
religions africaines. Kinshasa: Zabat, 1996, p. 19. No original em francês:
“[...] le corps tout entier est à la fois émetteur et récepteur. Ce que nous
e realidade proverbial [Cauvin, 1977, p. 39].
sommes, nos gestes, notre vibration influent sur notre environnement
et opèrent commes des vagues dans l’eau, dans l’océan. Les chocs de 12/ Óscar Ribas, Missosso I. Luanda: Ministério da Cultura, 1958, p. 154.
nos vibrations, c’est-à-dire, nos gestes, nos paroles se transmettent à de
longues distances d’autant plus qu’ils sont chargés par une puissance 13/ Maria Antonieta Antonacci, Memórias ancoradas em corpos negros. 2.
énergétique. Les techniques et les énergies modernes ne nous servent ed. São Paulo: EDUC, 2015, p. 354-55.
qu’à augmenter celles naturelles disposées dans notre corps”. 14/ Id., ibid. (Grifo nosso.)

214
215
Conforme esse linguista, na Costa do Marfim, que produzem juntos um sentido global, que
nem toda “população fala via provérbios, mas também não é redutível à adição de sentidos
todos estão aptos a compreendê-los. Provérbios particulares. Neste sentido, a obra é por natu-
formam a armadura e a fina base de um tipo de reza teatral; o teatro é a sua forma acabada, mas
comunicação mais vasta: a linguagem por ima- toda performance o sustenta de alguma forma.
gens” [Cauvin, 1981, p. 3].15
• do texto, a voz em performance18 extrai a obra.
Como desdobramento do que estamos a tratar, no tocante Ela se submete a este fim, ao funcionalizar todos
à palavra e a seus vetores de realização imagético-ma- os elementos aptos a sustentá-la, amplificá-la, a
terial, lembremo-nos de que, segundo o pensador suíço declarar sua autoridade, sua ação, sua intenção
Paul Zumthor (1915-1995), no primeiro ensaio de seu persuasiva. Utiliza o próprio silêncio que ela
livro Escritura e nomadismo, a vocalidade — não somente motiva e torna significante.19
a oralidade — é o que pode trazer uma “presentificação
performancial” vinculada a uma recepção. O “investimento Há uma “voz em performance” que lê-enuncia-desloca-
de energia corporal” que interfere ou mesmo estabelece -traduz, ou “tradiz” (como concebe Alexandre Nodari na
uma intermediação com o contato com um texto (poético) porta de entrada do livro Algo infiel: corpo performance
define, de acordo com Zumthor, o que seja poesia.16 tradução,).20 O/a performer não é somente quem apre-
Portanto, assumindo a leitura zumthoriana, as senten- senta uma obra, poiesis, ao mundo, com base no fato de
ças em linguagem proverbial configuram realização poética, ser enunciador(a) original de um texto. Quem recebe tal
requerem performance, em sua disposição originária (na obra, e a interpreta, gerando novas poéticas, pode vocalizar
acepção do que o estudioso classificou como “performance (considerando-se as pausas e os silêncios) e oferecer obras
completa”), assim como podem requerer “performance ao ao mundo, igualmente. São obras suas provenientes de
mesmo tempo truncada e interiorizada” no ato da “leitura, outrem. Entre os primeiros ensaios do livro supracitado,
visual e solitária”.17 Assim, Zumthor, em um contraste entre Guilherme Flores e Rodrigo Gonçalves afirmam que:
texto e obra, gera a seguinte ideia de performance: No dom da poesia há algo que se troca sempre, algo
que em sua materialidade recusa o partido das coisas, a
• o texto é a sequência linguística que constitui mercancia fácil das coisas; a troca da poesia, troca impos-
a mensagem, e cujo sentido global (o sabemos) sível em algum nível, tem base no comércio (Hermes,
não é redutível à soma dos efeitos de sentido Mercúrio — deus do mercado, dos ladrões, da linguagem, da
particulares produzidos por seus componen- hermenêutica, do truque) e ainda assim o rompe, a troca
tes sucessivos; da poesia poderia ser uma troca de promessas: o poeta,
o aedo, o bardo, o xamã, o exu, o performer entrega a obra
• a obra é aquilo que é poeticamente comuni- e na obra uma promessa de mundo; nessa promessa o
cado, aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, jogo se encena de ainda lançar mundos no mundo, abrir
elementos visuais e situacionais: o termo abarca brechas no mundo dado; ao leitor, ouvinte, corpo que
a totalidade dos fatores da performance, fatores
18/ Grifo do autor do excerto.
15/ Id., ibid., p. 355. 19/ Paul Zumthor, op. cit., p. 142.
16/ Paul Zumthor, Escritura e nomadismo, trad. Jerusa Pires Ferreira e 20/ Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves. Fotografias
Sônia Queiroz. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. Rafael Dabul. Algo infiel: corpo performance tradução. São Paulo: n-1
17/ Ibid. edições, 2017.
joga, caberia a contrapromessa interminável: interpretar, zilhada: “De modo geral, entendo o corpoencruzilhada
nos dois sentidos de uma interpretação, fazer o jogo da como uma metáfora que permite localizar no corpo em ato
hermenêutica, fundar sentido nas promessas de mundo, performativo o ponto nodal de atravessamentos”.23
sim, analisar, descrever, pensar a obra-mundo e seu Em conversa com Jarbas Siqueira Ramos, pode-
efeito-mundo, mas mais, incorporar a obra no seu próprio mos pensar que o corpo que performa a enunciação-ato
mundo, dar um corpo à obra, dar-se corpo à obra, dar seu de sentenças em linguagem proverbial, ao tempo em que
corpo à obra, enfim, assumir o lugar do poeta, bardo, xamã, estabelece a mediação entre universos temporais distintos
como intérprete (ou inter-pres, inter-pretium21 — mediação, (considerando-se a existência do tempo ancestral e do tem-
comércio, mensagem) da música. Esse é o potencial mais po-espaço circunstancial, que, presente, indica um abismal
profundo das promessas de mundo em jogo na poesia: uma devir), entrega a outrem novas possibilidades de preenchi-
performance exige outra performance, porque o dom é um mento do relevante lugar ocupado por sentenças que vêm
performativo. “Eu te dou isto”, diz o poeta; e ao ouvinte não de longe e atravessam tempos.
cabe resposta fácil, como “Não quero”; o poeta retorna “Eu De modo análogo, poderíamos mencionar neste
já te dei”, algo aconteceu, performou-se no momento de ponto, ao dizer (inteiramente corporal) de um oriki (poema
uma entrega. “Está dado.22 sagrado iorubá) ou à ação dos cânticos públicos nos
O orixá Exu, evocado pelos autores, força esférica terreiros (espaços sagrados) de Candomblé, Umbanda,
de todas as mediações, de acordo com a cosmologia afri- Quimbanda, Xambá, Xangô, Tambor de Mina, Batuque,
cana iorubá, de maneira sincrético-tradutória, no Brasil, entre tantos outros, como poéticas de realização com base
associou-se à imagem da encruzilhada. Tal configuração é nas presenças corporais e no que não se vê/tangencia.
bastante cara aos bantu-kongo. Na realidade, como a yowa Note-se que a bifurcação categórica entre performances
que sintetiza o cosmograma mencionado anteriormente artísticas e perfomances culturais não abrange o que
neste ensaio. A encruzilhada (sobretudo, a de quatro pon- trazemos neste ensaio. Identificam-se poéticas (no sentido
tas), desse modo, diz sobre o não visto, sobre o que ontica- grego de um conjunto de feitos) que podem ser interpreta-
mente desponta, sobre o que atinge o ápice do realizar e o das como arte-cultura-filosofia-ciência a um só tempo. O
que se desintegra, como o sol no ocaso. “inacabamento” dos feitos artísticos afro-diaspóricos, con-
Nas práticas de espiritualidade afro-brasileiras, forme reflexão do pensador britânico Paul Gilroy,24 termo
Exu, igualmente força da comunicação, do movimento e que talvez substituíssemos, em nossa análise, por abertura,
das sínteses, é também, em outra leitura e tradição, Nzila, não permite trazer tais acontecimentos performativos em
ou seja, caminho. O caminho repleto de frequências e epistemologias estanques; ao contrário, em epistemologias
convivências intertemporais que se estabelecem entre o/a abrangentes, entrecruzadas e, para seguir um conceito-
performer-poeta de uma sentença proverbial e o ativo cor- -imagem bantu-kongo trazido à tona por Bunseki Fu-Kiau,
po-ouvinte que realiza e completa a obra poética de enun- em sua obra,25 abertas em forma de V.
ciação-ato é a manifestação desse orixá ou nkisi — com base
nas tradições bantu-kongo — no que podemos cunhar como
uma ética negra do dizer. Jarbas Siqueira Ramos, com base
na ideia de cultura de encruzilhada, assinalada por Leda
Maria Martins, apresenta-nos o conceito de corpo-encru- 23/ Jarbas Siqueira Ramos, op. cit., p. 310.
24/ Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência, trad.
21/ Todos os grifos são dos autores do excerto. Cid Knipel Moreira, 2. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: 34; Universidade
22/ Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves, op. cit., pp. Cândido Mendes, 2012.
23-24. 25/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, 2001a, op. cit.

216
217
kula crescer, amadurecer, desenvolver[-se]) e as coisas e
Tukula
situações em seu estado de zênite, de mais ativa profi-
cuidade, de ação propriamente dita. Por fim, Luvemba29
configura o estágio de desintegração física, o morrer, o
findar-começar, as grandes transmutações das coisas que
são, ou seja, o desintegrar-se da dimensão tangível e o ir a
um plano insondável.
Conforme o cosmograma, dispomos de quatro “Vs”
Luvemba Kala
demarcados graficamente pelos espaços Musoni-Kala, Kala-
Tukula, Tukula-Luvemba, Luvemba-Musoni. Como havíamos
afirmado, ressaltamos, assim, segundo Fu-Kiau,30 um dos
principais conceitos bantu-kongo, o V, difundido ao mundo
de leitores, pela primeira vez, pelo pensador:

Musoni Foi aos pés de alguns desses mestres secretos


que aprendi não somente a respeito do “V”
(a base de todas as realidades), como também
O cosmograma kongo (Dikenga dia Kongo) pode auxiliar da fundamentação do sistema de pensamento
a ampliar a compreensão do que diz respeito à enuncia- dos Bântu, suas cosmologias. Ninguém pode,
ção-ato de sentenças em linguagem proverbial. Seguindo verdadeiramente, compreender o “V” sem
ainda a lógica do que explica Fu-Kiau,26 há um primeiro algum conhecimento básico sobre a cosmovi-
estágio de ser, Musoni (a guardar o radical sona:27 registrar, são Bântu ou suas cosmologias. Nosso trabalho,
gravar, ter a memória de), que não se dá a ver ao mundo segundo escreveriam mais tarde dois estudio-
físico (ku nseke). Musoni é, em linhas gerais, não ser ainda sos americanos, é o primeiro no assunto...31
físico, tangível. Kala, que vem a significar, literalmente,
ser (em sua acepção principalmente verbal),28 corporifica Ainda sobre o V, Bunseki Fu-Kiau salientou:
o estágio em que esse ser como ação torna-se ente visível.
Em um terceiro estágio, encontramos Tukula (do verbo O “V” é a base de todas as realidades inspiradas,
tais quais as grandes ideias, imagens, ilustra-
26/ Id., ibid.
27/ Cf. Wyatt Macgaffey, Religion and Society in Central Africa: the Bakongo 29/ Metaforicamente, com base no que explicita Bunseki Fu-Kiau, Mac-
of Lower Zaire. Chicago: University of Chicago Press, 1986. MacGaffey, Gaffey (op. cit., p. 43), na perspectiva da vida humana, lembra que se trata
a propósito da semana kongo − dividida em quatro dias: nkandu, konzo, esse estágio, um “pôr do sol”, daquele que “significa a morte do homem
nkenge, nsona, observa que: “Nsona e nkandu eram dias dos ancestrais e de e o despontar do seu renascimento, ou a continuidade da sua vida”. No
ressurreição, próprios para emergir de isolamento ritual (sona, ‘fazer mar- original em inglês: “[…] signifies man’s death and its rising his rebirth, or
cações rituais no corpo’)” (Id., ibid., p. 51). No original em inglês: “Nsona and the continuity of his life”.
nkandu were days of the ancestors and of resurrection, suitable for emer- 30/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, 2001a, op. cit.
ging from ritual seclusion (sona, ‘to make ritual markings on the body’)”. 31/ Id., ibid. p. 129. No original: “It is at the feet of some of these un-
28/ Em kikongo, “ser”, como substantivo, é denominado, frequentemente, derground masters that I learned not only about the ‘V’ (the basis of all
kadi ou be, na acepção de Bunseki Fu-Kiau. Conforme o Novo dicionário realities), but the foundation of the Bântu people system of thought as well,
português-kikongo (compilação de Francisco Narciso Cobe. Luanda: Ma- their cosmologies. No one can truly understand the ‘Vee’ without any basic
yamba, 2010), encontramos, ainda, para “ser”, em sua forma substantiva, knowledge upon Bântu world view, or their cosmologies. Our own work, as
os termos vangwa, ma, kima, zingu e nkala. would later write two American scholars, is the first on the subject…”
ções, invenções de todas as ordens (incluindo-se estágio, cuja “função completa-se em fwa,34 ato de morrer”.35
as obras de arte), guerras e concepções, tanto Alicerçado nos “feixes do V” (presentes no cosmo-
biológicas quanto ideológicas. Ele é o processo grama), o corpo que enuncia kingana (sentença prover-
[dingo-dingo] para todas as mudanças: sociais e bial) pressupõe etapas de expansão e foco, como sugere a
institucionais; naturais e não naturais; vistas e própria forma do V. Diante de uma sentença em linguagem
não vistas. proverbial bantu-kongo, deparamos com uma concentração
de ondas e radiações (minika ye minienie) culturais, de pen-
Falar do “V” é falar das realidades, quer sejam samento, de linguagem, de narrativas que se amparam nos
biológicas, inspiradas ou ideológicas; materiais ancestrais (bakulu), isto é, no mundo invisível, ku mpemba.
ou imateriais. Todas elas estalam em nossas Todo esse registro concentrado remete-nos ao estágio, no
mentes nas formas do “V” (feixe de extensão processo de enunciação e realização, de Musoni, bem como
do “V”) dentro de nós, na zona do Musoni da à figuração de uma sentença em linguagem proverbial
cosmologia Kôngo. Buscamos ideias e imagens (kingana) que simboliza o afunilamento de um facho de
através do ”feixe aberto do V” dentro de nossas expansão anterior, ancestral, ou, se quisermos, narrativas
mentes, e, ao contrário, focalizamos os detalhes acumuladas sobre o mundo e um novo ponto de partida
e especificidades sob o feixe reverso do “V”.32 para expansões ou deslocamentos vindouros. Essa dinâ-
mica entre o que se faz concentrar para de novo expandir,
Cada estágio que demarca o cosmograma kongo possui o seu em uma cinética sem-fim das experiências hermenêuticas
V, isto é, sua disposição para expandir-se e retrair-se, com e de criação da pessoa kongo (mukongo), poderíamos cha-
denominações e significações específicas. O V da concep- mar de dingo-dingo — o processo, sempre em movimento,
ção, emanado por Musoni, chama-se Vangama. O segundo V de cada coisa, para tornar-se, necessariamente, outra coisa,
desponta no estágio ontológico Kala e denomina-se Vaika. de rumar a outro estado ôntico. Há uma necessidade, por
O advindo de Tukula se faz conhecer pelo nome Vanga, que, princípio, de imprimir a devida relevância filosófica ao
conforme Bunseki Fu-Kiau, é uma denominação “a derivar- desfazimento. O corpo que enuncia-age, em conformi-
-se do termo arcaico ‘ghânga’ — realizar, fazer”,33 represen- dade com as sentenças proverbiais, concilia construções e
tando o V crucial da vida humana no mundo físico. Vunda desintegrações diante de sua presença e de outras presen-
— de repousar, extinguir; pensemos, também, que o verbo ças. É a vida-morte, kala-zima (acender-apagar), despon-
vonda designa matar — é o V encontrado em Luvemba, último tando a um só instante em um acontecimento performativo
negro, que, como sabemos, não permaneceu somente no
continente africano.
A seguir, temos exemplos de algumas sentenças em
32/ Ibid., p. 130-31. No original: “The ‘Vee’ is the basis of all inspirational
realities such as great ideas, images, illustrations, inventions of all orders linguagem proverbial, mesmo na ausência de corpos que
(including works of art), wars and conceptions, both biological and ideo- as enunciem e da cena das realizações-presença. Os textos
logical as well. It is the process [dingo-dingo] to all changes, social and de outras realidades pluridimensionais não se encerram
institutional; natural and unnatural; seen and unseen. To talk about the
‘V’ is to talk about realities, whether they are biological, inspirational or nas paredes deste ensaio a cumprir certos ritos acadêmi-
ideological, material or immaterial. They all pop into our minds in forms cos. Ei-las:
of the Vee (beam span of the Vee) inside us at the Musoni zone of the
Kôngo cosmology. We seek for ideas and images through ‘the open beam
of the Vee’ inside our mind and on the contrary we focus details under
reverse beam of the ‘Vee’”. 34/ Grifo nosso.
33/ Ibid. No original: “[…] derived from the archaic word ‘ghânga’ to 35/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, 2001a, op. cit., p. 141. No origi-
perform, to do”. nal: “function is completed under the fwa, die action”.

218
219
Kutombi didi dia (ngolo za) zunga ko kwidi zungwa.
Não procure conhecer o centro regional das forças motri-
zes; elas confinam.

Nga nzenza muntu katunga fu kia bwala?


Uma pessoa alheia faz um sistema de sua não aldeia?

Wampana nsengo, kunkambi kwe ngatu bwe isadila yo ko.


Dando-me a enxada, saberei como usá-la.

Kanda diasala nsang’a n’kento ka ditumbukanga ko.


A comunidade, pela mulher, não se extingue.

Mbungi a kanda va kati kwa nsi ye yulu.


O vão originário da comunidade, no centro, entre a terra e
o céu.

Kanda kandu: ka kiloswa; ka kisambu.


Comunidade é tabu: não se deixa; não se venera.

Kolo diakanga nganga, kutula nganga.


Kolo feito e desfeito por nganga: cada nó tem seu mestre.
nadal walcot

Jamaica, 1986
Serigrafia sobre papel, 54,5 × 36 cm

220
221
No ato da repetição reside a e mais tinta no papel. Ninguém faz cenas do dia a dia para a linguagem
potência da variação. Nesse teatro a mesma coisa duas vezes: é isso do desenho. As locomotivas fume-
de sombras da memória, as ima- o cotidiano. Nos canaviais, nas gantes, a exploração do trabalho
gens vão e vêm, mas nunca são cidades ou nos ateliês. O artista nos engenhos de açúcar, as tramas
as mesmas, pois, no detalhe, toda dominicano Nadal Walcot (1945- e transações da mercancia nos
coisa é outra coisa. O punho que 2021) estava ativamente a par portos. As paisagens são sempre
inclina o facão no corte da milio- desse estado de coisas – sem humanas, mesmo se virmos ape-
nésima cana-de-açúcar, o quadril esconder uma dívida que tinha com nas a figura de um trem. Quando
espiralando-se nos bailes de rua, M.C. Escher. Walcot, que apren- criança, Walcot costumava entrar
ano após ano, a mão curvando-se dera muitas línguas em seu ofício escondido em um vagão e passava
à vontade imperiosa de um dese- juvenil de intérprete, acaba por dias fugido de casa, para, na volta,
nho que exige mais esforço físico operar outro tipo de tradução: das ser chicoteado pela avó.
Também na dança revela-se a
inteligência de seu traço, inclu-
sive quando incorpora e recria as
expressões da música e dos bailes
cocolos (termo usado na República
Dominicana para designar os imi-
grantes hispanofalantes de ascen-
dência africana do Caribe). Nessas
obras, as linhas das figuras huma-
nas carregam-se na mesma matriz
energética das culturas que com-
põem as coreografias da memória
pessoal e coletiva. Assim, emergem
dos assuntos – bem como da forma
– a força das contradições subja-
centes a uma realidade histórica,
testemunhada e modificada por um
artista que interpreta a violência
colonial mas também a euforia do
povo nas festas; que vê o avanço da
industrialização chegar apenas para
os poderosos.

igor de albuquerque

Davi & Golias, 2010


Nanquim sobre papel, 53,3 × 44,5 cm
nadir bouhmouch Cada projeto de Soumeya Ait
e soumeya ait ahmed Ahmed e Nadir Bouhmouch é
uma tentativa de esculpir espaços
coletivos para criar e compartilhar
“a partir de baixo”. Em sua opi-
nião, a arte deve estar conectada
às formas populares de cultura e
aprender com os modos ances-
trais de relação. A dupla não visa
representar uma cultura “nacional”,
tampouco busca a “universalidade”.
Para os artistas, tais categorias

Fadma Boutalaa, Zahra Hicham e Aicha Amoum numa


sessão de gravação musical no pomar de maçãs, 2022

222
223
servem apenas para homogeneizar Marrakesh do qual Bouhmouch e rural contra a maior mina de prata
a produção cultural. Ao contrário, Ait Ahmed são integrantes desta- da África, que se apropriou de sua
eles evidenciam tradições locais cados. É também um mecanismo água e a poluiu, destruindo oásis
e específicas, e se esforçam para essencial de seu projeto Awal, que e amendoeiras. O filme destaca o
fazê-las existir em uma escala maior investiga maneiras de documentar cotidiano e os gestos dos aldeões e
por meio de formas de solidarie- artes tradicionais orais e de deco- suas formas autóctones e criativas
dade que se estendem além das lonizar práticas contemporâneas de organização política e cons-
fronteiras nacionais. nas regiões do Atlas e do sudeste trução de memórias (círculos de
Esse modo de pensar tornou-se do Marrocos. diálogo multigeracionais, poesia
evidente durante a Documenta Amussu (2019), longa-metragem oral etc.). O processo de produção
15, no espaço de hospitalidade dirigido por Bouhmouch, retrata cinematográfica adotou esses mes-
oferecido pelo Le 18, coletivo de a resistência de uma comunidade mos mecanismos como referência:
Bouhmouch colaborou ativamente
com a comunidade de aldeões, que
se tornaram os produtores do filme.
O projeto de Bouhmouch e
Ait Ahmed para a Bienal de São
Paulo reúne os diversos formatos
de seu trabalho (vídeo, publica-
ções, performances, encontros)
em torno de um desafio: a área da
exposição deve aspirar a ser uma
assays, ou seja, uma praça central
na tradição Amazigh, um espaço
de assembleia, como declaram em
sua proposta para a exposição:
“uma tecnologia na qual a oralidade
produz mecanismos horizontais
para a tomada de decisões popula-
res, resolução de conflitos, criação
artística, troca de conhecimento e
produção agrícola – tudo de uma
só vez”.1

omar berrada

traduzido do inglês por mariana


nacif mendes

_
1/ Nadir Bouhmouch & Soumeya Ait Ahmed,
texto do projeto submetido à 35a Bienal.

Um piquenique com Fadma ao lado de um de seus campos, desta


vez com a presença de Nabil Himich, artista visual e ilustrador das
capas da série de publicações Against Monoculture [Contra a
monocultura], 2023
nikau hindin

Nikau Hindin aplicando a wai tohu (textura


em relevo) final na fibra aute

224
225
Nikau Hindin recupera a prática um trabalho de reconexão dos que
tradicional Maori – desaparecida há estão aqui com seus ancestrais.
mais de um século – de confecção Da criação e do uso de ferramen-
de aute: tecido obtido a partir de tas típicas para produzir incisões na
um longo processamento da casca casca da amoreira e abri-la até os
da amoreira. As operações de utensílios para bater e abrir a trama
Hindin se desdobram na transmis- dessa pele de árvore, embebida
são dessa prática em ações coleti- em água, tornando a secá-la para
vas, de modo que todo o sistema depois banhá-la outra vez, a maté-
de conhecimento e a cosmovisão ria-prima desse processo é feita de
envolvidos possam renascer e se tempo, e é nele e por ele que se dá
restabelecer atualmente, como a transformação mágica da quali-
dade material da casca em tecido.
Tanto a casca quanto essa
matéria derivada da fibra vegetal
são um invólucro, um tipo de pele.
Os poetas sabem que casa e corpo
partilham da mesma natureza. Que a
árvore quando em pé nos faz sonhar
altitudes do céu e que suas raízes
nos levam às profundezas do ser.
Quando deitada, facilmente o deva-
neio pode transformá-la em canoa.
As imagens são ricas em proteção e
em potencial deslocamento.
O sistema gráfico elaborado com
pigmentos à base de terra nas pintu-
ras de Hindin fazem referência aos
mapas estelares, método dos anti-
gos Maori para observar os deslo-
camentos das estrelas no céu, como
forma de orientação no espaço e no
tempo, para navegar e viver. Linhas
e setas produzem dinamismo em
movimentos de subida e descida,
representando a oscilação das
estrelas, tomando o horizonte como
ponto de referência. Sua pesquisa
abrange um sistema de valores e nos
convoca a realizar uma genealogia
dos processos, uma genealogia da
memória e o exercício do respeito
aos ciclos e padrões da natureza, no
balanço entre água e tempo.

emanuel monteiro

Nikau Hindin batendo o pano de casca em seu marae,


Ngai Tūpoto ki Motukaraka no extremo norte de
Aotearoa, Nova Zelândia
niño de elche Niño de Elche, que se identifica do espiritual. Essa segunda busca,
como “ex-flamenco”, compartilha que durante séculos foi o domínio
com o “cinemista” Val del Omar uma do religioso, pode entrar em conflito
inquietação transcendental e uma com a primeira e produzir confusões
disposição experimental. A inquie- ideológicas e lamentações pessoais.
tação transcendental o incentiva Niño de Elche não os evita, assim
a se aventurar em direção às mar- como Val del Omar, que não con-
gens da realidade social e política, seguiu escapar de seu contexto,
colocando o canto flamenco em um nos anos mais sombrios da ditadura
lugar de envolvimento e denúncia, de Franco, sob a ideologia católica
ou em direção à realidade viven- nacional de inspiração falangista.
ciada nas profundezas do carnal e Entretanto, sua criação não teve

vista da exposição: Auto Sacramental Invisible. Una representación sonora


a partir de Val del Omar. Auto sacramental invisível. Uma representação
sonora baseada em Val del Omar. Museo Reina Sofía, Madri (2020)

226
227
motivação política, mas foi visio- Auto Sacramental Invisible. Una fontes, o pecado original, a bomba
nária. A sua busca pelo absoluto representación sonora a partir de atômica, a experiência de um tempo
o levou à produção de um cinema Val del Omar [Auto sacramental à margem da história, Granada como
total, que ele chamou de “mecamís- invisível. Uma representação sonora um caldeirão de culturas, entre
tica” e que consistia em uma série baseada em Val del Omar] (2021) outros. Em sua realização projetada,
de invenções técnicas que foram é um projeto que revela a devoção esse auto assumiu a forma de uma
patenteadas e que conceberam de Val del Omar à experimentação instalação sonora; o “invisível” refe-
uma expansão do cinema por meio acústica. Em seu título e estrutura, re-se à ideia de uma meia-luz que
do transbordamento da tela, o som se refere aos autos sacramentales, favorece a audição em um espaço
diafônico, a TactilVisión e outros, peças teatrais com conteúdo alegó- iluminado apenas por lâmpadas voti-
nos quais trabalhou até sua morte no rico, que reinterpretou para expres- vas. Foi daí que Niño de Elche partiu,
laboratório PLAT. sar suas obsessões: a água das de uma escuta ativa, de uma leitura
atenta do roteiro e de suas instru-
ções de palco e do arquivo de som,
composto por centenas de fitas cas-
sete. As fonografias do “cinemista”
atravessam o corpo do “ex-fla-
menco” em uma espécie de ritual de
posse. A técnica vocal é colocada a
serviço dessa experiência transcen-
dental e poética, que não precisa se
desprender do material para alcan-
çar o invisível. A carne também é
barro, a voz também é água, mas seu
meio pode ser a eletrônica. O canto
é transferido para o meio magnético
(agora digital), torna-se concreto,
realizando o sonho de Manuel de
Falla (que havia especulado sobre
a música mecânica e o som gra-
vado como meios que possibilitam
dispensar o intérprete). E a coletivi-
dade teatral desaparece do palco,
mas se manifesta na multidão de
vozes que compõem o palimpsesto
do roteiro e na multidão de olhos e
mãos que intervieram ao longo dos
anos para tornar essa instalação
possível. O teatral também é reali-
zado no convite ao espectador para
participar dessa outra coreografia
não espetacular: aquela composta
com os movimentos na escuta ativa
de um som espaçado, sempre fugaz,
como as lâmpadas e as imagens
que contribuem para a invisibilidade.

josé antonio sánchez

traduzido do espanhol por


ana laura borro

esta participação é apoiada por: Acción


Cultural Espanola (AC/E) e Embaixada da
Espanha no Brasil.
nontsikelelo mutiti Ao longo da diáspora negra
podemos nos maravilhar com a
capacidade dos povos africanos de
afirmar a força de suas tradições,
de sua imaginação e sua capaci-
dade criativa. De tão marcante,
além de intensa e plástica, a
produção africana disseminou-se
por diversos territórios, resultando
uma cultura nova e ancestral. Na
diáspora, a beleza das permanên-
cias e das releituras deram origem

228
229
a uma cultura afro-americana, só sentidos políticos e estéticos, A trama de tranças que ornamenta
atraindo novos símbolos e sentidos, mas subjetivos, que dizem muito os oris de pessoas negras, sobre-
sobretudo estéticos e políticos, do cotidiano, das experiências e tudo mulheres, além de estar dire-
fruto de elementos e vivências da história das pessoas negras na tamente ligada ao desejo de mani-
cotidianas que constantemente diáspora. A capacidade de produzir festar beleza, desde a década de
ganham novos sentidos. uma técnica e uma cultura visual 1970 também está ligada ao desejo
A produção artística de que se manifesta em determinado de afirmação da ancestralidade
Nontsikelelo Mutiti, nascida no tipo de trançado, cujas repetições, africana. O corpo como instru-
Zimbábue, promove um mergulho no todo, produzem um padrão sin- mento político, que deixa mensa-
nos significados das tranças e dos gular, são consideradas pela artista gens por onde passa, foi habilido-
cabelos como um dos elementos da uma técnica carregada de sentidos samente utilizado como ferramenta
diáspora africana que carregam não culturais de intensa força política. de demonstração da beleza e da
conexão com o continente afri-
cano, seja nas ruas do Brasil, dos
Estados Unidos, Inglaterra, França,
Colômbia, Cuba, assim como em
todo o continente africano. Assim,
ocorreu a apropriação que trans-
formou em artístico-político-cultu-
ral aquilo que antes, talvez, fosse
artístico-cultural-ancestral.
Para mergulhar nesse universo
de apropriações na diáspora, Mutiti
explorou o espaço das lojas de
produtos de beleza (Beauty Supply
Stores), identificando elementos
estéticos e visuais que se repetem e
que demonstram anseios de beleza
e humanidade, que se manifestam
através de uma gramática particu-
lar dos desejos de pessoas negras
na diáspora: African Pride, Africa’s
Best, Dark and Lovely, Africare,
Black Thang são expressões que,
antes de chegarem às embalagens
dos produtos de beleza, fizeram
parte de um vocabulário político.
Tão fluidas como os fios que atra-
vessam o espaço entre os dentes do
pente, para Mutiti são a imaginação
e a capacidade criativa africana e
afro-diaspórica.

luciana brito

T(H)READ postcard, 2023


Cartão-postal T(H)READ. Impressão digital
patricia gómez 1. os projetos e as intervenções des- 2. essas periferias de sentidos arti-
e maría jesús gonzález sas duas artistas partem de espaços culam discursos de tensões e satu-
conflituosos e residuais: bairros rações semânticas que, aludindo ao
gentrificados, prisões desativadas, marginal, escrevem a centralidade
hospitais psiquiátricos em desuso do que não vemos porque não que-
ou, como em À tous les clandestins remos ver.
[Para todos os clandestinos] (2019),
centros abandonados de detenção
de imigrantes.

acima, da esquerda para a direita:


Celda 3-3. Centro de Retención de Migrantes de Nouadhibou, Mauritania, 2015
Please don’t paint the wall. CHARLIE-I. 1-d. CIE El Matorral, Fuerteventura, 2014
Please don’t paint the wall. CHA-D-1i-8689. CIE El Matorral, Fuerteventura, 2014
230 Favor não pintar a parede. Impressão mural sobre tela
231
3. ler no esquecimento dessas 4. o centro de detenção de imigran- 5. a proposta de María Jesús
margens − na degradação desses tes de Nouadhibou, na Mauritânia, González e de Patricia Gómez ajus-
resíduos sociais − implica escrever, criado para controlar o movimento ta-se, em essência, a essa realidade
com base nas ruínas do silêncio, o migratório feito pelo mar, da África física. De fato, nesse e em outros
núcleo de uma memória que consti- para as Ilhas Canárias, responde projetos, elas trabalham seguindo
tui uma sobreposição de textos. a uma realidade física e, portanto, diretrizes artístico-técnicas tradi­
simultaneamente, a uma reali- cionais: estamparia, gravura,
dade moral. arranque de murais, fotografia e
vídeo. Por sua vez, a exposição das
dessas obras produzidas também
se faz de modo tradicional. No
entanto, o que se propõe, além do
estético, não nos coloca diante de
um objeto, mas de um sujeito: um
sujeito ativo que nos ativa e nos
desafia eticamente.

6. o sujeito proposto parece que


diz respeito, narrativamente, à
memória, uma vez que todas as
intervenções das artistas têm um
sentido arqueológico que se baseia
na recuperação sistemática de
estratos diferenciados de signos.
Apesar disso, essa arqueologia
não se baseia nem em uma restau­
ração da experiência vivida nem em
seu resgate documental, mas em
nos fazer experimentar a recupe­
ração que foge à nostalgia da
memória e a seus desvios românti-
cos tardios.

7. assim, o trabalho apresentado


não configura um resultado, mas
as pegadas de um processo: o
de nossa experiência como sujei-
tos éticos.

david pérez

traduzido do espanhol por


ana laura borro

duas imagens abaixo, da esquerda para a direita terceira imagem abaixo esta participação é apoiada por: Acción
Le Centre, 2015-2023 Le processus, 2015-2023 Cultural Española (AC/E) e Embaixada da
O centro. Stills do vídeo. Vídeo HD, cor O processo. Still do vídeo. Espanha no Brasil.
Vídeo HD, cor
pauline boudry / Paredes, pisos, tecidos, persianas vem, sorrateira, espelhando a linha
renate lorenz e vidros. Luz e fumaça. Superfícies do tempo sem jamais revelar seus
escuras e opacas, foscas, brilhosas, pontos de virada. O fim é o início é
transparentes ou semirreflexivas. o fim é o início. Assim é o desloca-
Caixas pretas recortadas pelo mento coreográfico dessas peças:
enquadramento do olho de vidro multidirecional. Exercícios para
da câmera, que também dança. despistar o olhar que, condicionado
Correntes e perucas em locais à linearidade, espera encontrar
improváveis, sapatos coloridos, tempo progressivo e continuidade
invertidos, mirando duas direções espacial. Ensaios para guerrilha e
simultaneamente. A frente é o verso fuga na pista de dança portátil que
é a frente é o verso. A edição vai e são os corpos. Permanecer na som-

(No) Time, 2020 Les Gayrillères, 2022


(Sem) tempo. Videoinstalação HD Instalação em vídeo em 2 canais (projeção
e 3 cortinas; 20’ e LED); 18’

232
233
bra por escolha, desaparecer. Voltar Tanto o movimento das perfor- cidos e aproximam-se da dinâmica
o foco de luz para fora, ofuscar o mers como os elementos visuais e subatômica que também os consti-
olhar de quem vê. fílmicos dos trabalhos são regidos tui. Adentramos a esfera quântica,
As videoinstalações apresenta- por paradoxos fundamentais às na qual tudo existe em inesgotáveis
das por Pauline Boudry e Renate vidas minoritárias: a congruência dimensões se movendo em infini-
Lorenz experimentam espaço-tem- entre hipervisibilidade e opacidade, tas direções; onde tudo é essen-
poralidades não mensuráveis pela transparência e reflexividade. Aqui cialmente não localizável e, por
física newtoniana. A linearidade é possível se mover simultanea- isso, incapturável; onde se pode,
progressiva e hierárquica (algo mente em mais de uma direção. finalmente libertos das amarras do
sempre fica atrás, ou abaixo, ou no Corpos fílmicos e corpos dançantes tempo, imaginar outros mundos.
passado), que rege a visão moderna desconfiguram os condicionamen-
sobre a matéria, entra em colapso. tos político-culturais preestabele- miro spinelli

Moving Backwards, 2019 esta participação é apoiada por: Fundação


Movendo-se para trás. Videoinstalação HD; 23’ Suíça para a Cultura Pro Helvetia América
Set de Moving Backwards, Pavilhão da Suíça, do Sul.
Veneza, 2019.
philip rizk Terrible Sounds [Sons terríveis] encontrou a tumba de Tutancâmon,
(2022) consiste em um tríptico com- que daria início a um movimento
posto de uma projeção de vídeo em de egiptomania em escala mun-
dois canais, acompanhada de uma dial. Por desentendimentos com as
série de gravuras. elites locais, a expedição britânica
Três elementos conceituais de Carter foi forçada a abandonar
embasam essa obra. o local. A tumba, como todas as
O primeiro deles nos leva a 1922, antiguidades egípcias, servira para
ano em que os britânicos consenti- alegações sobre a grandeza dos
ram em dar ao Egito sua indepen- britânicos. Ela foi reaberta em 1924,
dência. Foi nesse ano que o arqueó- a pedido do rei Fuad I, como sím-
logo Howard Carter (1874-1939) bolo do passado glorioso do Estado

234
235
africano e de suas demandas por que tinha o intuito de ocidentali- músico alemão que, fascinado pelo
independência nacional. zá-la. Em um texto que acompa- caráter afrofuturista da obra do
O segundo elemento concei- nha Terrible Sounds, Rizk elabora compositor afro-americano Sun Ra
tual é a música, tanto como poder algumas perguntas centrais: “Como (1914-1993), mudou-se em 1967 para
libertador quanto por seus laços nos dirigirmos para os sons do o Cairo, onde foi um dos criadores
com o colonialismo e o neoco- colonialismo? Como nos dirigirmos do primeiro grupo egípcio de free
lonialismo. Em 1932, como parte para os sons do neocolonialismo? jazz. A segunda projeção mostra
de um movimento geral de elites Mas, mais importante, como nos uma gravação musical de 2021, na
ansiosas pelo reconhecimento do dirigirmos para o som de nenhum qual Geerken, ao lado de músicos
Egito como participante da moder- deles?”. A resposta à última per- egípcios e libaneses, responde
nidade ocidental, foi organizada gunta é sugerida pela história de com uma sessão de improvisa-
a Conferência da Música Árabe, Hartmut Geerken (1939-2021), ção à intenção da Conferência de
ocidentalizar a música árabe em
formas europeias.
O terceiro elemento conceitual,
que surge nas duas projeções,
assim como nas gravuras em
exibição, são alusões às revoltas
camponesas que levaram os britâ-
nicos a anunciar a independência
nominal do Egito em 1922. Em
Terrible Sounds, é possível reco-
nhecer alguns dos traços típicos
da obra de Rizk, que utiliza com
maestria materiais de arquivo, rom-
pendo a linearidade cronológica e
espacial, reorganizando a narrativa
hegemônica de uma perspec-
tiva decolonial.

marco baravalle

traduzido do inglês por


gabriel bogossian

Terrible Sounds, 2022


Sons terríveis. Stills do filme
quilombo cafundó No dia 20 de novembro de 2009, de Salto de Pirapora, a doze quilô-
o presidente Luiz Inácio Lula da metros do centro de Sorocaba, no
Silva decreta o reconhecimento da estado de São Paulo.
comunidade Quilombo Cafundó Seu Otávio Caetano era músico,
como área de interesse social, mas sanfoneiro de primeira, dono das
sua história vem de muito antes, melhores festas, contador de
pelo menos desde 1887, quando histórias, responsável por manter
o casal Joaquim e Ricarda Congo e transmitir o dialeto1 para os mais
herda as terras do seu senhor novos. A gente está aqui graças à
depois de ganhar a alforria. Até estratégia do sr. Otávio, grande mes-
hoje seus descendentes habitam o tre. Em meados de 1970, quase um
território localizado na área rural século depois de Joaquim e Ricarda,

Registro fotográfico do Dona Cida, benzedeira, rezadeira, yá do terreiro do Quilombo do Cafundó e


Quilombo Cafundó, liderança comunitária nas décadas de 1980 e 1990, sem data
agosto de 1980
Registro fotográfico do Quilombo Cafundó, 1978-déc. 1990
236
237
os quilombos da região de Sorocaba preto não tinha valor. E que, se eles A notícia tem uma grande reper-
começaram a cair. O último a ser quisessem continuar vivos, precisa- cussão, atraindo alguns pesquisa-
extinto foi o do Caxambu, que era vam ir atrás de vidas de valor. Então dores, antropólogos e linguistas,
um quilombo irmão. E testemu- ele vai até o centro sorocabano e que vêm até o quilombo e ficam
nhando esses ataques, o seu Otávio começa a cupopiar, isto é, a falar no aqui para estudar esse dialeto. E a
temia que o mesmo acontecesse dialeto, o que chama tanta a aten- presença dos acadêmicos dentro
com o Quilombo Cafundó, que ção, a ponto de o Jornal Cruzeiro do Quilombo Cafundó fez com que
na época tinha diminuído até sete do Sul fazer uma reportagem em os ataques diminuíssem. Aquelas
alqueires e meio de terra. E quando que afirma que no Cafundó, que na eram as vidas que importavam,
essas ações começaram a ficar mais época ainda era um bairro, há um que o seu Otávio tanto queria
violentas, seu Otávio juntou a sua povoado onde se fala uma lín- trazer e trouxe para a comunidade.
família e entendeu que a vida do gua “estranha”. E com essas pessoas brancas e
poderosas (orofombe, em cupópia)
dentro da comunidade a conversa
ficou diferente.
O sonho do seu Otávio Caetano
era saber ler e escrever. Ele mor-
reu sem conseguir isso, mas hoje
a gente sabe que ele dominava
outros saberes que foram pouco
valorizados. Hoje a gente tem a
certeza de que ele era um homem
muito além do seu tempo. A sua
estratégia muito ajudou o Cafundó
nesse processo de resistência e
sobrevivência.2

cintia delgado, uma das líderes da


comunidade, em conversa com
sylvia monasterios

_
1/ A cupópia é uma língua falada no Quilombo
Cafundó, em Salto de Pirapora, São Paulo, Brasil.
A língua combina a estrutura do português com
palavras de origem africana, especialmente
do quimbundo.

2/ O sr. Otávio também foi quem entrou com um


processo de usucapião, que garantiu a perma-
nência dos quilombolas na Gleba A (os 7,5 alquei-
res que restaram para a comunidade).

Seu Jovenil segurando o retrato do seu Seu Otávio Caetano, Dona Dita Pires e
tio Otávio Caetano, mestre da cupópia e outros moradores do Quilombo Cafundó,
festeiro da comunidade, sem data sem data
raquel lima Em Rasura (2021), Raquel Lima encontra maneiras de atravessá-lo,
revisita e reinventa uma história moldá-lo com sua voz e decifrá-lo
permeada por traumas − traumas com o corpo em movimento.
íntimos, sociais, coletivos. Entre Usa a palavra “rasura” para
abandonos, ruínas, camadas de além de sua semântica, tendo nela
escritas e hábitos, sua poesia- a chave de decodificação e de
-performance transpõe os muitos tradução. E se essa palavra não for
séculos precedentes por meio de o ponto de partida de seu pensa-
reminiscências que subsistem e vol- mento, é, com certeza, seu ponto
tam à superfície como em um ciclo de chegada. Em contraponto a
eterno. Não é possível interrom- “apagamento”, a anulação total de
per o tempo que corre, mas Lima uma ideia, de uma identidade ou de

Rasura, 2021
Stills do vídeo

238
239
uma história, “rasura” pressupõe o Na ilha de São Tomé, no golfo da humano tornado coisa, rasurado,
erro ou a intenção de apagar algo Guiné, em São Tomé e Príncipe, as mas não apagado.
parcialmente ou um refazer sem casas coloniais outrora abandona- O trauma dos séculos de escra-
disfarces. Na obra, “rasura” signi- das guardam rachaduras, vazios vidão cujas consequências seguem
fica também resistência. assombrosos, paredes com tintas tendo reflexos no destino das popu-
Do interior de pequenos barcos descascadas, ruínas sobre ruínas lações negras é elaborado com
abandonados, Lima nos põe a olhar que, ainda assim, são habitadas em cuidado nas palavras com as quais
pela janela o oceano ao redor e, seu precário permanecer. Quem a artista se expressa performática-
nele, vemos outros barcos aban- ocupa esse cenário são corpos -poética-visualmente. As palavras
donados à deriva. Mais do que negros, parte da história primordial estão inscritas na “oratura” – uma
vida, houve ali exploração e algo do lugar para o qual seus ancestrais dimensão ontológica que propõe
sucumbiu – mas não foi apagado. foram levados como mercadoria − o outras formas de narrar o cotidiano
e a história; uma cosmovisão – que
coreografa sentidos em tempos
distintos.
Nenhum passado pode ser
apagado, mas seus vestígios podem
ser transmutados pela arte. Ao
menos pela arte emancipatória,
um caminho transpassado pela
interseccionalidade consciente,
que é percurso, movimento e que
dá novas possibilidades aos tempos
históricos.

pérola mathias

esta participação é apoiada por:


República Portuguesa – Cultura / Direção-
-Geral das Artes.
ricardo aleixo

240
241
Ricardo Aleixo compõe poemas, “escutar a letra e escrever a voz” é a
performa palavras, dança ideias síntese do que é sua obra e atua-
e vocaliza imagens. Seu trabalho ção artística.
destrincha a inter-relação dos A poesia de Ricardo Aleixo,
códigos nos processos – não neces- que se dedica ao ofício há mais
sariamente lineares – de criação. de quarenta anos, se conecta com
No entanto, a ideia de códigos o dia a dia, mas não só. Informa
é insuficiente, porque, antes da afetos, mas não só. Ela é/pode ser o
palavra, a letra pode expressar próprio sentimento; pode narrar um
não uma linguagem, e sim várias: a sonho ou ser ela mesma o sonho.
imagem, a vocalização e seu som. Ao “Palavrear”, abre os caminhos
Nas palavras do próprio poeta, para que possamos perambular
pelo labirinto que ele conhece “por
tê-lo / de cor na ponta dos pés”.
Nesse percurso, a paisagem de
suas “composições” é continua-
mente alterada pelos contextos,
reais e históricos, que impõem
contingências ao poeta, ao indiví-
duo, ao local onde habita e à língua
que fala.
Aleixo atualiza o conceito
utilizado pelos poetas concretos
a partir da obra de James Joyce e
chama sua poesia de “reverbivo-
covisual”, trabalhando a dimensão
escrita, visual e sonora. O corpo
soma-se a isso como instrumento
que emula, incorpora, apresenta e
até carrega a poesia. E nesse corpo
poético tudo é expressão, como nas
performances com o “poemanto”,
uma espécie de parangolé com o
qual ele faz as “corpografias”.

pérola mathias

Ricardo Aleixo: Afro-atlântico, 2023


Still do filme. Direção: Rodrigo Lopes de Barros
rolando castellón “Minha religião é a natureza e o com água. Herdeiro daquele gesto,
museu, minha igreja”, declara o durante muitos anos, Castellón
artista Rolando Castellón, uma formou seu itinerário de rituais e
das grandes referências da arte poéticas, e a lama e todo objeto
na América Central. Nascido na inerte descartado ou substância
Nicarágua e com fortes laços com viva, de origem vegetal ou animal,
a Costa Rica, Castellón iniciou eram sua matéria-prima. As cami-
sua vida artística a partir de uma nhadas na praia ou na cidade, sua
lembrança, a de sua tia Rosa, que aguda observação, a coleção de
costumava desenhar com a ponta objetos e elementos desvalorizados
de uma vassoura no chão de sua levados para seu estúdio, os efeitos
casa, depois de varrê-lo e molhá-lo do clima, o abandono, a escuridão,

Dossier – Inventário abreviado, 1960-2010


Livro de artista

242
243
a presença de vermes e os ciclos extraordinário, que inclui o que ele a contemporaneidade. Esse corpus
das plantas, são as dinâmicas chama de “objetos encontrados”, de múltiplos trabalhos também
que ele usa para moldar estraté- bem como desenhos feitos com identifica uma produção artística
gias performáticas. lama, imagens e composições nas cuja ética se baseia na peculiari-
Na impossibilidade de reduzir quais o acidental impera. Mas o dade dos materiais, sua harmonia
seu trabalho a um único projeto, a todo não compõe algo simples ou visual, seu poder conceitual e o
presença de Castellón nesta edição meramente naturalista. Em toda respeito pelo contexto físico e natu-
da Bienal de São Paulo consiste a obra de Castellón estão embu- ral. Como um observador atento
em uma seleção − ou melhor, um tidas a ironia e os paradoxos dos do micro, Castellón explora a
inventário − de obras. No espaço possíveis diálogos entre as culturas plasticidade e a harmonia visual de
expositivo estão depositados industriais e a natureza, a história folhas secas, cadáveres de insetos,
apenas fragmentos de um universo pré-colombiana e pós-colombiana e sementes ou espinhos, para reintro-
duzi-los no regime do simbólico e
do ritualístico.

rossina cazali

traduzido do espanhol por


ana laura borro
rommulo vieira conceição

244
245
Milton Almeida dos Santos (1926- afirmava que a cidade moderna de espaços inorgânicos que se abrem
2001) talvez tenha sido o mais hoje é “luminosa” e que a “natura- e, por escaparem às racionalida-
proeminente e importante geógrafo lidade” da tecnologia e da infor- des hegemônicas, as populações
brasileiro do século 20 que se mação resulta em uma condição pobres, excluídas e marginalizadas,
especializou em estudos urbanos rotineira e mecânica da vida coti- são fonte de criatividade e de possi-
e teorizou as condições sociais e diana. Por outro lado, os espaços da bilidades futuras.
políticas da urbanização brasileira, cidade ocupados pelos pobres são Em seu último trabalho, Rommulo
antes que os estudos pós-coloniais áreas urbanas “opacas”; no entanto, Vieira Conceição recorre às teorias
ganhassem base acadêmica. Em elas representam os espaços de espaciais de Santos, bem como a
seu livro A natureza do espaço: aproximação e de criatividade em fotografias das condições espa-
Técnica e tempo. Razão e emoção. oposição às zonas luminosas e ciais cotidianas, elementos arqui-
Razão e Emoção, de 1997, Santos aos “espaços de exatidão”. São os tetônicos e detalhes de espaços
opacos margina­lizados de cidades
brasileiras, como a Favela Nova
Jaguaré, em São Paulo, a Favela
Santa Marta, no Rio de Janeiro, e
o Bairro Humaitá, em Porto Alegre.
Nesses espaços opacos, que por
vezes estão sob pressão da polícia
militar, Conceição aborda a constru-
ção criativa de experiências localiza-
das e suas críticas implícitas à fusão
entre capitalismo, colonialismo e
poder. Em sua instalação escultórica
para a 35ª Bienal de São Paulo, o
artista constrói paredes com mate-
riais de construção e com detalhes
comumente usados em favelas e
bairros das periferias, como tijolo
de barro seis furos, telha cerâmica e
balaústres coloniais. Essas paredes
e colunas dóricas greco-romanas
sustentam frontões neoclássicos
que expressam valores sociocultu-
rais e políticos. Eles são justapostos
por escudos suspensos da brigada
militar com imagens de batalhões
de choque, remetendo a janelas
ou espelhos. Por fim, uma série de
carrinhos de supermercado são
dispostos e espalhados pela obra,
uma referência ao capitalismo e ao
consumo, mas também à mobilidade
que oferece a possibilidade dos
encontros, além da construção e do
redesenho de valores.

mario gooden

O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção, 2021


Vista da instalação, Instituto Inhotim, Brumadinho (2021). Metal, madeira, resina,
fibra de vidro, polipropileno, poliuretano e pintura automotiva
rosa gauditano As fotografias relacionam-se com
o tempo. E essa experiência insere-
-se em uma dinâmica do olhar, que
parte de um lugar no passado que
aponta para outro tempo que jamais
cessa de se reconfigurar. É desse
modo que as fotografias de Rosa
Gauditano abrem para nós o tempo.
Era 1964 quando a ditadura interveio
nos costumes visando a moralização
da sociedade. A repressão era, explí-
cita e predominantemente, dirigida

246
247
aos “subversivos”, aos “comunistas”, revista Veja e sensível aos aconte- liares, e expunham, esteticamente,
às pessoas “anormais” e às pessoas cimentos políticos, tornou visível o uma resistência política. Apesar de
com comportamentos “desviantes”. invisibilizado ao registrar e celebrar o ensaio ter sido censurado, a jovem
Assim, pessoas negras e LGBTs1 os corpos lésbicos, durante dois fotojornalista não imaginava que seu
foram perseguidas, detidas de modo meses, no Ferro’s Bar, em São Paulo. olhar apontaria para o futuro, tempo
arbitrário, violentadas e mortas. São registros marcados por uma em que as mulheres lésbicas do pre-
Ao mesmo tempo, em um contra- forte proximidade entre a fotógrafa sente ocupariam o mesmo espaço
ponto, lésbicas criavam movimen- e as frequentadoras. São imagens das mulheres do passado. Assim,
tos de resistências. E uma dessas que, para além das estigmatizações as cenas captadas suscitam novas
ações foi a manutenção de locais de vigentes, narraram a intimidade dos experiências, recriando memórias e
sociabilidades, como bares e boates. casais, os elos afetivos estabelecidos sendo renovadas por elas, pois, em
Em 1979, Gauditano, contratada pela no bar, as novas configurações fami- 19 de agosto de 1983, o bar, teste-
munha do processo de formação
política do grupo Lésbica-Feminista
(LF), protagoniza o Levante do
Ferro’s Bar – a primeira manifesta-
ção organizada por lésbicas contra
a discriminação e o silenciamento
da sexualidade entre mulheres. Essa
data, desde 2008, é reconhecida em
São Paulo como o Dia do Orgulho
Lésbico. E, em 2023, Lésbicas de
Rosa Gauditano retornam como pro-
positoras de novas reflexões.

barbara copque

_
1/ Aqui optou-se por manter a grafia da época.

Vidas proibidas, da série Lésbicas, 1979


Impressão sobre papel de gelatina e prata
rosana paulino Hipersexualização, trabalho servil e Em um movimento de contestação
mãe preta. Esses são alguns estereó- que perpassa toda a sua trajetó-
tipos de mulheres negras presentes ria, Rosana Paulino, ao confrontar
no imaginário brasileiro. Essa coisifi- as tais violências, desconstrói
cação e apropriação sexual do corpo estereótipos e as representações
regulam condutas e constroem iden- do corpo feminino racializado,
tidades sempre nocivas. Naturalizam, ao tensionar (ou revelar) como as
reduzem e fixam esses corpos em teorias científicas fundamentaram
uma relação de dominação que as teorias raciais na história oficial.
perpassa gênero, raça e classe, sujei- Educadora, pesquisadora com dou-
tando as mulheres negras a situações torado em artes visuais e intérprete
de grande vulnerabilidade social. do Brasil, Paulino faz do corpo um

248
249
lugar de memória; um corpo que séries de 2019 Búfala, Senhora das de outras sabenças, todas enreda-
opera pensamento e abriga ques- plantas e Jatobá, ao questionar a das pela ancestralidade.
tões a serem revisitadas. Falando construção de uma subjetividade E estar enredado, nas religiões de
por e para esse corpo, ela tece, que não contempla o feminino base africana e afro-brasileira, é ser
desestabiliza e subverte as certezas negro, Paulino constrói outros um pouco as coisas, ou seja, nessas
da colonialidade que nos atravessa. arquétipos e reivindica as afetivi- religiões, as mulheres são constituí-
O corpo da artista também dades e as psiques expropriadas, das e constituem a natureza. Como
carrega o tempo. Um tempo trans- revelando a proximidade dessas é o caso da série Mulheres-Mangue
formador que interrompe violên- mulheres com a natureza, cujos (2022-2023), a avó das avós da série
cias e que perturba o sossego do corpos se fundem com plantas e Jatobá, que, com suas raízes aéreas
rio, reconfigura memórias e tece animais, enraizando, cultivando − já não é mais necessário se escon-
outras narrativas e mitologias. Nas galhos e ampliando a valorização der – e conectadas, como é o pen-
samento afro-diaspórico, possibilita
trocas e vivem entre mundos: é vida
e morte, começo e fim, terra e água,
salgado e doce, preto e branco, e é o
meio, como a lama.

barbara copque

Rosana Paulino em seu ateliê, São Paulo, 2023


rubem valentim

250
251
O artista Rubem Valentim (1922- giosos, oriundos da cosmogonia do
1991) combinava elementos do candomblé, abrindo caminho para
modernismo e da abstração geo- uma geometria numinosa e abstrata
métrica com as culturas africanas que impregnava suas pinturas, rele-
e afro-brasileiras, e com várias vos e esculturas.
correntes filosóficas e místicas Por meio de círculos, triângulos,
orientais, sempre em busca de uma trapézios, retângulos e cores do
consciência da terra, do povo. panteão dos orixás, o artista criou
Em um trabalho vigoroso por a cada obra uma nova rítmica.
constituir uma linguagem universal, Rigoroso e inventivo, o artista
Valentim incorporava símbolos e alcançou o equilíbrio entre forma
motivos inspirados em rituais reli- e cor, que pode ser observado na
monumentalidade do conjunto de
esculturas e relevos que compõem
a obra Templo de Oxalá, exibida
parcialmente e pela primeira vez
em 1977 na 14ª Bienal de São Paulo.
Um dos textos fundamentais
para a historiografia da arte, foi
com o emblemático “Manifesto
ainda que tardio” (1976), em que
Valentim declarou seu propósito
político e conceitual, e lançou as
bases de sua contribuição estética
radical para a tradição artística
brasileira e internacional. Desse
modo, a presença integral do
Templo de Oxalá na 35ª Bienal de
São Paulo, sem dúvida, concretiza
o pensamento e o legado do artista.
O templo é a celebração e a mani-
festação de uma poética visual bra-
sileira, que estabelece a riscadura
brasileira, uma identidade mobili-
zadora de insígnias geométricas e
elementos simbólicos para expres-
sar suas conexões entre o físico e o
metafísico. O templo é um ato que
cinde o tempo, é como flecha que
nunca tarda.

horrana de kássia santoz

Rubem Valentim em seu ateliê,


sem data
rubiane maia Atirar insistentemente uma sequên- alguns (entre os muitos) gestos que
cia de pedras em direção ao estruturam a tessitura conceitual e
oceano, investigar o corpo como transdisciplinar de Rubiane Maia.
receptáculo da força dos ventos, O que está em jogo nas situa-
realizar deslocamentos em sinergia ções propostas pela artista, que
com o reino mineral, esgarçar o tem sua produção guiada por um
tempo da escrita em relação à dura- híbrido entre performance, imagens
ção das plantas, respirar memórias e escrita, é sempre a construção
a partir da capacidade sônica para de um estado de percepção que
acessar tempos imemoriais, lixar permite ao seu próprio corpo (e ao
madeiras para escavar os textos de quem com ele se afeta) a pos-
presentes na própria pele, são sibilidade de alargamento e trans-

Speirein, 2021
Espiões. Registro de performance, PSX: a decade of
performance art in the UK, Londres

252
253
mutação do que nele está inscrito performática, ela deixa de ser mobilizar novas paisagens, saídas
através do tempo. memória ou fantasma para se e saúdes. Sempre considerando
tornar uma percepção coletiva, a paisagem e o meio (sobretudo
Um corpo que escuta, alimenta uma constelação.1 não humano) como cocriadores de
e multiplica as frequências, suas obras, a artista [re]afirma seu
vozes e gritos que nos antece- Nesse sentido, o corpo, nos con- compromisso com a vida em um
dem. Se cada um de nós é a textos que são evocados por Maia, jogo que envolve tanto um exercí-
condensação da história vivida extrapola (ou mesmo recusa) as cio de fabulação crítica (e clínica)
desde o nascimento e antes concepções biológico-histórico-o- como um brotamento daquilo que
dele, quando uma memória [ou cidentais a ele atribuídas, tornan- poderíamos chamar de cuidado.
um conjunto de memórias] se do-se um conjunto de forças em Esse cuidado, contudo, eleva-se,
atualiza por meio de uma ação estado de diferenciação capazes de amplia-se em direção a um estado
coletivo, carregando em si uma
rede de histórias, relacionamentos
e perceptos coletivos e individuais.
Em Book-Performance
[Performance-Livro], projeto em
desenvolvimento e apresentado na
35a Bienal de São Paulo, Rubiane
Maia organiza uma série de ações,
pensadas em resposta a textos
autobiográficos particularmente
influenciados por memórias trans-
geracionais traumáticas ligadas a
questões de gênero e raça. Através
do gesto e da colaboração com
outras performers (sempre atra-
vessadas por questões comuns a
sua história, inscrita pela migra-
ção, pela maternidade e pelo
pensamento diaspórico), a artista
elabora uma metodologia texto-
-corporal que deseja “metabolizar
memórias complexas ou indigerí-
veis em pequenas doses de cura e
liberdade”.2

tarcisio almeida

_
1/ Notas sobre a prática da artista. Ver mais
em: www.rubianemaia.com/.

2/ Ibid.

Preparação para Exercício aéreo, a montanha, 2016


Still do vídeo de Rubiane Maia e Manuel Vason
criar instituições transcorpóreas: coreografias
transfeministas para corpos e espaços
ilenia caleo

um corpo é um corpo é um corpo / a descrição de como funciona o espaço público. Vetores,


coreografias políticas tensões, inclinações, movimentos: coreografias, ou seja,
escrituras políticas dos corpos.
Um corpo está ao lado de um corpo que está ao lado Relacionada não aos objetos, mas a movimentos,
de um corpo. O corpo é sempre um corpo em um espaço. transições, sequências, a escritura coreográfica nos põe em
O ambiente é gerado pelo corpo: pelo volume que ocupa, contato com o informe, com a variação contínua, treinando
pela duração, pela postura, por como se move. Os corpos a percepção e a sensibilidade. Assim, entendida como
estão em relação não somente entre si, mas também com escrita dos corpos e do movimento no espaço, a coreogra-
o espaço conectivo que os ativa. Um corpo não fica ali, fia pode ser considerada não tanto uma disciplina, mas
sozinho, não é um objeto isolado, hermético, apoiado no um modo de pensar os problemas, para compor novos
ambiente como se este fosse um fundo inerte. Esse espa- problemas no contexto da dimensão da corporeidade.2
ço-entre é uma matéria ativa: pode-se imaginá-lo como um Corporeidade de todos os corpos, não somente dos corpos
fluxo vibrante e viscoso, uma casa infestada de temporalida- humanos. Uma ideia de coreografia expandida.
des distintas e simultâneas, um todo pleno e denso de afetos.
O corpo modifica o espaço ao redor e vice-versa, e corpos híbridos, corpos artificiais
a relação que se cria entre os corpos modifica os corpos e
o espaço; o espaço habilita ou desabilita a relação entre os Nas artes ao vivo, a copresença de performers e espectado-
corpos, modificando-a, por sua vez. Nesse campo de forças, res gera um espaço de comunalidade artificial e transitório
o trânsito é multidirecional e as influências, recíprocas. — uma artificialidade que oferece bons exercícios de ima-
Cedem as fronteiras entre os corpos, onde um ginação política. De fato, na performance as condições que
acaba e o outro inicia, e afloram zonas intermediárias, que tornam qualquer coisa visível, perceptível, legível, mudam
permanecem sem nome. Nem um nem outro. Essas zonas continuamente e divergem do senso comum. Às vezes,
de subsidência nos interessam particularmente, porque ocorre um curto-circuito: não estamos em condições de
nelas, naquele contato, naquele esfregar-se de superfícies, reconhecer imediatamente um corpo na cena, ou um movi-
ocorrem misturas. As fronteiras das identidades distintas mento, ou uma composição de corpos no espaço. E, assim,
se desfazem, as matérias mesclam-se. Deixamos de consi- algo está acontecendo; quando a percepção habitual oscila,
derar os corpos entidades singulares e uma dimensão de novas assemblages corpóreas se criam.
transcorporeidade emerge.1 A artificialidade própria das artes, que nas artes per-
O espaço-entre é regulado por uma série de condi- formativas diz respeito a corpos vivos, fornece, portanto, um
ções, por vezes explícitas, mais frequentemente implícitas: instrumento ulterior para desmontar o binarismo nature-
a proximidade que os corpos podem manter entre si, a za-cultura em uma aliança com os pensamentos feministas.
possibilidade de contato, a liberdade para um corpo se Mais que no campo da análise, estamos em um terreno de
mover em direção ao outro, se pode se inclinar, se esticar, experimentação: novos órgãos de percepção despontam e
tombar sobre o outro ou ser forçado à verticalidade, quanto ramificam-se, todo um mapeamento impensado do sensível
espaço cada corpo está autorizado a ocupar, se esse espaço aflora — as partituras ficcionais da performance movem o
é o mesmo para todos os corpos, e assim por diante. Essa corpo entre o natural, o cultural e o artificial, interpelando o
é a descrição de uma prática coreográfica, mas também estatuto mesmo da corporeidade. Concebendo novas assem-
blages, criam um efeito de realidade.
1/ Stacy Alaimo, “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of
Nature”, in Stacy Alaimo e Susan Hekman (eds.), Material Feminisms. Bloo- 2/ Bojana Cvejić, Choreographing Problems: Expressive Concepts in European
mington; Indianápolis: Indiana University Press, 2008, pp. 237-64. Contemporary Dance and Performance. Londres: Palgrave Macmillan, 2015.

254
255
É desse modo que a arte gera zonas impuras, interstícios É na performatividade, ou seja, nos comportamentos, nas
entre os corpos dotados de uma autonomia singular, corpos condutas, nos repertórios e na repetição dessas partituras
ambíguos, híbridos, não formados. Ela os torna visíveis. dadas que os corpos se tornam socialmente inteligíveis, legí-
Corpos impossíveis, ilegíveis e impensáveis podem ganhar timos, “straight”. Mas o pensamento queer feminista sobre o
vida em cena, mesmo que apenas de passagem. Corpos habi- performativo não é apenas um instrumento de desconstru-
tados, incorporações que deixam entrever novas misturas, ção e desnaturalização de corpos, sexualidades, identidades
novos compostos. Nas artes ao vivo, fazemos desse vivente e instituições existentes, mostrando sua artificialidade.6 A
mesclado, impuro, incerto, transitório, artificial, uma expe- performatividade é um modo de ação que modifica o mundo
riência direta. Uma experiência compartilhada, que conso- e é também uma atividade transformativa, subversiva, ins-
lida um espaço comum de sensibilidade, intensificando e tituinte. Sara Ahmed inaugura uma leitura feminista da pro-
modificando os sistemas de percepção.3 ximidade entre corporeidade e instituições. “Fazer coisas”
Podemos reconhecer na arte uma capacidade de depende não tanto de uma capacidade que o sujeito possui,
“antecipar” algumas mutações — antecipação que não é da individualmente, mas “dos modos pelos quais o mundo está
ordem da declaração intencional, mas de um deixar entre- disponível como espaço para ação”,7 um espaço plástico no
ver, de um fazer brilhar. Uma modalidade queer da visão, qual as coisas podem ter lugar.
como de soslaio, não inteira, que nos aproxima da utopia.4 A instituição é assim definida em termos materiais
Uma atividade de prefiguração, um atributo eminente- e espaciais — um modo corpóreo. Ela consiste em modelos,
mente político da imaginação. protótipos e esquemas de ações incorporadas, mas tam-
bém em repertórios, partituras, posturas, gestualidades,
corpos e instituições: partituras comportamentos. As coreografias e as partituras postu-
rais e gestuais instalam-se tão profundamente em nossos
Na tradição mais heterodoxa da filosofia política ocidental, corpos que se tornam automáticas. Como se movem os
de David Hume a Gilles Deleuze, a relação entre artifício corpos no espaço? Quais partituras os corpos seguem?
e instituição é fundante,5 e conecta o plano da política ao Podemos nomear essas partituras? Que história tem esse
da fantasia, da imaginação, da capacidade de estabelecer meu gesto? Como liberar outras partituras, como mudar as
associações. Há, portanto, certa intimidade entre a arte e as codificações dadas, como dar corpo a coreografias políti-
instituições. As instituições não são um dado da natureza, cas subversivas?
mas uma invenção, uma convenção, e essa é uma verdade Em meio a insurgências, movimentos sociais, com-
tanto no nível macrossocial como no âmbito das singulari- portamentos coletivos autorregulados, formas de vida não
dades corpóreas: o corpo é instituído por forças simbólicas normativas ou minoritárias se inventam novas instituições,
e materiais, lugar de fantasias, espectros, imagens, memó- novos modelos de agir compartilhado. Não só instituições
rias, depósitos, contratos e identificações. É um campo de cristalizadas e lugares de poder, portanto: os processos
batalha. Não há nada de natural em nossos corpos. instituintes, generativos, sociais, de baixo, são práticas
abertas que possibilitam a capacidade de agir, potencia-
lizando-a — materialmente, tomam forma em termos de
3/ Jacques Rancière, Le Partage du sensible: Esthétique et politique. Paris: proximidade corpórea, de tendências: aquilo com que
La Fabrique Éditions, 2000.
4/ José Esteban Muñoz, Cruising Utopia: The Then and There of Queer Futu-
rity. Nova York: NYU Press, 2009. 6/ Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity.
5/ David Hume, A Treatise of Human Nature: Being an Attempt to Introduce Nova York: Routledge, 1990.
the Experimental Method of Reasoning into Moral Subjects, 1739; Gilles 7/ Sara Ahmed, “A Phenomenology of Whiteness”. Feminist Theory, v. 8, n.
Deleuze, Instincts et institutions. Paris: Hachette, 1953. 2, pp. 149-168, 2007, p. 153.
entramos em contato nos modela, “os corpos são plasma- As lutas da década de 2010 põem em foco a prática da
dos por esse contato com os objetos”.8 Fazer ao nosso redor ocupação, com declinações diversas nos diferentes contex-
um mundo comum. tos. A materialidade da dimensão corpórea e espacial foi
determinante. Foram ocupados espaços públicos, estra-
práticas de novas instituições: um posicionamento das, praças e parques urbanos, que se tornaram locais de
assembleias, de sociabilidade, de organização política e de
Eu também, agora, falo de um espaço específico, e de cuidado coletivo. Mas também algumas instituições exis-
práticas que atravessei e que produziram pensamentos e tentes foram assim tomadas e ressignificadas: os teatros
saberes coletivos, em particular as lutas dos comuns e as e os espaços culturais na Itália e na Grécia, onde foram
lutas feministas queer. A partir da crise econômica de 2008, ativadas subjetividades precárias da arte e da cultura; e, no
e em reação às políticas neoliberais de privatização e cortes caso específico da Grécia, a ocupação e o autogoverno dos
de direitos sociais, ou como uma demanda por inclusão hospitais. A dimensão transnacional foi forte: foram desen-
democrática na gestão da crise, foram desenvolvidos no sul volvidas redes e networks, e multiplicados os contatos. Sem
da Europa e em torno do espelho do Mediterrâneo movimen- que houvesse um programa ou um acordo prévio, palavras e
tos sociais que experimentaram de maneira radical o tema práticas comuns ressoaram nas margens do Mediterrâneo: a
das instituições do comum: na Itália, os movimentos locais ocupação como prática performativa que mobiliza os corpos
pelos bens comuns e a luta pela água como bem público, no espaço e o transforma; o autogoverno como prática de
seguidos das ocupações culturais,9 o 15M e o movimento dxs democracia direta; o comum como contestação da proprie-
Indignados na Espanha, mas também os protestos em torno dade e invenção de outras instituições. As subjetividades
do Parque Gezi, em Istambul, e depois em toda a Turquia, as ativadas foram as transversais, precárias, trabalhadores
praças da revolução árabe na Tunísia e no Egito.10 É também temporários, profissionais da arte e da cultura, estudantes e
como reação à força dessas mobilizações que se pode ler a pesquisadorxs precárix da universidade, cidadãos, ativistes
onda soberanista e reacionária em curso hoje na Europa e o dos movimentos sociais, para a defesa dos territórios, pelo
fechamento dos espaços de viabilidade política em direcio- direito à cidade e ao habitar. Nesse emaranhado de inespera-
namento autoritário na Tunísia, na Turquia e no Egito. das subjetividades, pensar os processos em curso não como
Nesses momentos de insurgência, emergiu dos reação de protesto, mas como matriz de novas instituições,
movimentos a nomeação de um espaço político que prefi- fortaleceu a ação e a experimentação.
gurou o Euromediterrâneo. Apostando, como europeus, na
ideia de uma Europa alternativa à das finanças, federativa partilha dos comuns — uma arte do conflito
e construída de baixo. Uma Europa meridional.
Esta sequência — ocupação/autogoverno/comuns — assinala
uma vocação que vai além da autorrepresentação e flui em
8/ Ibid., p. 152. uma ação imediatamente performativa, ou seja, produtiva,
9/ A partir de 2011: Teatro Valle Occupato (Roma), Torre Galfa e Macao que envolve a gestão dos meios de produção, a construção de
(Milão), L’Asilo Filangieri (Nápoles), Teatro Coppola (Catânia), Teatro
Garibaldi (Palermo), Teatro Rossi Aperto (Pisa), Sale Docks (Veneza), La economias informais e de novos sistemas relacionais. Uma
Cavallerizza (Turim), Cinema Palazzo e Cinema America (Roma). Ver arte do governar-se “de outra forma”.
também Silvia Jop (ed.), Com’è bella l’imprudenza. Arti e teatri in rete: una Dessa experiência política aprendi que considerar
cartografia dell’Italia che torna in scena, Il Lavoro Culturale, 21 dez. 2012.
Disponível em: www.lavoroculturale.org/imprudenza/silvia- jop/ (em
a dimensão corpórea e de contato das novas instituições
italiano). Acesso em: 2 jul. 2023. significa pôr continuamente em foco a questão do conflito.
10/ Lampejos que encontram ressonância nos movimentos #occupy, nos Não por acaso, a prática assim difusa da ocupação impli-
Estados Unidos. cou amplas margens de ilegalidade. Ocupar como modo

256
257
de fazer-espaço, para fazer-mundo: a cena não é a de uma hoje ainda mais fraturado, espaço de relações de força e de
demanda por reconhecimento por parte de instituições necropolíticas13 — a ideia de uma Fortaleza chamada Europa
constituídas ou estatais, mas, em vez disso, de uma parti- conseguiu erguer muros no corpo líquido das águas.
lha dos comuns que institui de outro modo, de uma reapro- Mas em pouco tempo, se acenderia outro ciclo de
priação que se transforma em redistribuição — de espaço, lutas, a maré transfeminista do Nem Uma a Menos que, da
de economias, de relações, de potência e de alegria. Argentina, se estendeu ao Chile, ao México e a outros luga-
A partilha dos comuns convoca não o plano das res da América Latina, e, depois, pelo sul da Europa , Itália e
coisas existentes, mas o dos processos e das ações. Um Espanha com mais intensidade, e em uma modalidade espe-
deslocamento que faz emergir a qualidade performativa e cífica na Polônia.14 Outras alianças, outras correntes. Outras
transformativa da cooperação social, capaz de autorregu- ressonâncias, outras partituras. É das perspectivas feminis-
lar-se e de inventar modelos próprios. O foco se desloca tas geradas por essa última onda que podemos voltar a olhar
da ontologia, que define o que são os bens comuns em si, para as relações entre corpos e instituições.15 A questão dos
para a performatividade dos comuns, ou seja, o como das gêneros e da violência masculina nos forçou a pôr em foco
práticas e das subjetividades encarnadas.11 Transformar outras zonas de ativação política: a intimidade, a sexuali-
para re/criar. dade, a corporeidade, o trabalho afetivo e de reprodução, e o
Em “Performing the Institution ‘As If It Were cuidado. E as instituições que as governam.
Possible’” [Performar a instituição “Como se ela fosse Um corpo não permanece ali sozinho, dizíamos:
possível”], Athena Athanasiou define a “reconfiguração a interdependência radical é um traço constitutivo das
performativa das instituições como um infinito e não comunidades lésbicas, bichas, trans, queer, de mulheres e/
determinado lugar de conflito”.12 Desse modo, a prática do ou racializadas; das subjetividades mais vulneráveis. Não é
instituir-de-outro-modo se desvincula dos processos de um sinal de inferioridade, mas um potencial político, e nos
institucionalização e de cristalização. Pensar instituições leva a imaginar instituições-outras, que imprimam consis-
autônomas, comuns, queer, feministas, decoloniais signi- tência aos sistemas relacionais mais informais e às redes de
fica prefigurar sistemas relacionais em contínua transfor- outras intimidades.16 Esse é um ponto sobre o qual os recen-
mação, que escapem da oposição binária entre movimento tes movimentos queer feministas na Itália e na Espanha
e instituição. Ou, em termos coreográficos, entre codifica-
ção e improvisação.
13/ Na obra de estudiosxs e ativistxs decoloniais, tem se desenhado a
ideia de um Mediterrâneo Negro. Para a Itália, ver Camilla Hawthorne,
por instituições transcorpóreas “Geografie del Mediterraneo Nero”. Geographica Helvetica, n. 77, pp. 179-
192, 2022, e Gabriele Proglio, Mediterraneo Nero: Archivio, memorie, corpi.
O espaço de imaginações e de alianças aberto pelos movi- Roma: Manifestolibri, 2019.
mentos da década de 2010 foi quebrado pela violência das 14/ Para um olhar interno a esses movimentos, ver Verónica Gago, La po-
políticas migratórias mais recentes e pelo desfecho repres- tencia feminista: O el deseo de cambiarlo todo. Buenos Aires: Tinta Limón,
2019.
sivo das revoluções no norte da África. O Mediterrâneo é
15/ Para uma perspectiva feminista dos commons ver Federica Giardini,
“Politica dei beni comuni: Un aggiornamento”. DWF, n. 2, 2012; Idem, “Beni
comuni, una materia viva”, in Laboratório Verlan (org.), Dire, fare, pensare
11/ Michael Hardt e Antonio Negri, Commonwealth. Cambridge; Londres: il presente. Macerata: Quodlibet, 2011; Silvia Federici, “Il femminismo e la
Harvard University Press, 2009; Pierre Dardot e Christian Laval, Commun: politica dei beni comuni”. DEP. Deportate, esuli, profughe, n. 20, 2012.
Essai sur la révolution au XXIe siècle. Paris: Éditions La Découverte, 2014. 16/ Sobre a ideia de infraestrutura queer caracterizada por uso e movi-
12/ Athena Athanasiou, “Performing the Institution ‘As If It Were Possib- mento, ver Laurent Berlant, “The commons: Infrastructures for troubling
le’”, in M. Hlavajova e S. Sheikh,(eds.), Former West: Art and the Contempo- times”. Environment and Planning D: Society and Space, v. 34, n. 3, pp.
rary after 1989. Cambridge; Londres: The MIT Press, 2016, p. 684. 393-419, 2016.
insistiram muito: consolidar infraestruturas de mutualismo Para gerir a emergência sociossanitária, as retóricas esta-
para construir uma economia alternativa da intimidade, dos tais adotam as metáforas relacionadas à guerra, ao inimigo,
afetos, do cuidado dos corpos, do habitar. É assim que as à invasão e à imunidade entendida como defesa militar dos
formas de cuidado coletivo se tornam práticas verdadeiras e corpos. Reforçar as fronteiras, erguer muros, individuar
próprias de autodefesa, no ponto em que violência e preca- um inimigo — discursos de guerra que, no plano simbólico,
riedade se adicionam, multiplicando seus efeitos. Constitui prepararam a guerra material (na Ucrânia). Os posiciona-
um inventar novas coreografias políticas que componham mentos transfeministas, ao contrário, nos proporcionaram
corpos, relações e afetos com a materialidade e a precarie- outras palavras, outras linhas de fuga, aproveitando a oca-
dade das vidas mais expostas. Instituições táteis, tentacula- sião para repensar o humano e suas hierarquias. Nos anos
res, úmidas, transcorpóreas. Mesmo nas instituições artís- de pandemia, aprendemos a reconhecer concretamente
ticas e culturais há a necessidade desses locais de conflito a condição difusa de interdependência — dos corpos, dos
e, ao mesmo tempo, de modelos de ação comum, de outras sujeitos, mas também das causas entre eles. E a identifi-
formas de vida, bem diferentes das etiquetas queer ou decolo- car formas diversas de vulnerabilidade, de outro modo
nial em voga na Europa, que deixam o sistema inalterado. A invisibilizadas. A interdependência é um traçado que
questão da vulnerabilidade e da interdependência emergiu desenha mapas políticos ocultos, que nos sugerem como
com força na pandemia de Covid-19, tomando o centro do tecer alianças imprevistas. Conectar as diversas formas
discurso público e politizando, muito além do âmbito da de precariedade, as múltiplas formas de violência.18 Se a
militância feminista, o tema do cuidado.17 autossuficiência do indivíduo é um mito liberal e patriar-
cal, do mesmo modo o é a separação dos corpos.
para políticas mais-que-humanas da Remediar o individuado, cicatrizar os cortes pro-
interdependência duzidos pela ideia de que a autossuficiência é sinônimo
de liberdade.19 Assim, a atividade performativa e transfor-
Soa tão intuitivo e evidente dizer onde acaba um corpo e mativa que plasma o que nos circunda, aquela capacidade
onde começa um outro, o dentro e o fora dos vivos, seja a criadora e instituinte, pode ser entendida como uma forma
pele, a superfície ou o exoesqueleto. Uma linha clara. No de cuidado; para as pensadoras feministas neomateria-
entanto, o vírus SARS-CoV-2, do Covid-19, pôs em crise o listas, cuidado é sinônimo de re-criar,20 refazer o mundo.
conceito de corpo hermético e autossuficiente, unitário e O cuidado, então, não é mais simples atividade de manu-
homogêneo — o vírus é corpo entre os corpos; é minúsculo, tenção, mas transformação em um mundo mais-que-hu-
invisível e, apesar disso, atuante. Não respeita as fronteiras
impostas pela pele. No contágio, convém pensar não por 18/ As cartografias da violência e da exploração nos servem para criar
corpos individuais, mas por transcorporeidades, por siste- outras alianças. Ver Veronica Gago, op. cit. As lutas dos entregadores na
mas complexos e inter-relacionados. Somos já habitados Itália e na Europa, durante a pandemia, quando, de uma subjetividade
por outros corpos, somos permeáveis. fragmentada e violentamente precarizada, se tornaram setor estratégico
na logística urbana, adotaram o slogan “Não para nós, mas para todxs”.
19/ Para o conceito de reparação, amplamente empregado na questão das
17/ Ver The Care Collective, The Care Manifesto: The Politics of Interdepen- restituições de objetos de arte no contexto das conquistas coloniais, ver K.
dence. Londres; Nova York: Verso, 2020. Para um mapeamento das prá- Attia, “La Réparation c’est la conscience de la blessure”, in L. Cukierman
ticas de auto-organização na crise do cuidado, ver Pirate Care Collective, et al. (eds.), Décolonisons les arts! Paris: L’Arche, 2018.
Pirate Care Syllabus, 2020. Disponível em: syllabus.pirate.care. Acesso em: 20/ Valeria Graziano, “Recreation at Stake”, in Ana Vujanović e Livia An-
2 jul. 2023. Sobre violência racista e transformação, ver Grada Kilomba, drea Piazza (eds.), A Live Gathering: Performance and Politics in Contem-
Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, porary Europe. Berlin: b_books, 2019. Sobre o conceito de worlding [fazer
2008. [Ed. bras.: Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. o mundo], ver D. J. Haraway, Staying with the Trouble: Making Kin in the
Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.] Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.

258
259
mano, atividade que é exercida por um emaranhado de
forças, entidades e sujeitos humanos e não humanos.21 Um
fazer coletivo que se encarrega da dependência recíproca,
uma manutenção que é também um manter-na-vida, forma
de autogoverno que se assemelha à capacidade regulatória
de um ecossistema. Reconhecer a capacidade expressiva e
atuante das muitas forças em jogo, além das forças huma-
nas, tem impacto político imediato.22 E nos restitui a visão
de uma materialidade vital, mas não harmônica, não paci-
ficada, composta de forças que colidem, de coreografias de
corpos humanos e de corpos não humanos.

traduzido do italiano por gabriel bogossian

21/ Maria Puig de la Bellacasa, “Matters of Care in Technoscience: As-


sembling Neglected Things”. Social Studies of Science, v. 41, n. 1, 2011, pp.
85-106.
22/ Essa é uma perspectiva encontrada no neofeminismo materialista, mas
que o pensamento e a cosmologia das culturas indígenas e não eurocêntri-
cas desenvolveram de modo autônomo. Ver Jane Bennet, Vibrant Matter: A
Political Ecology of Things. Durham: Duke University Press, 2010, e Michel
Serres (1977), Lucrezio e l’origine della fisica. Palermo: Sellerio, 2000.
sammy baloji Há 130 anos era concluída a obra do um display em estilo art nouveau,
Hotel Tassel em Bruxelas, na Bélgica. incorporando alguns padrões ins-
Assim nascia a art nouveau, estilo pirados pela tradição têxtil congo-
que celebrava a modernidade e sua lesa. Padrões similares, na reali-
classe dirigente, a burguesia indus- dade, foram integrados ao design
trial, que acumulara enorme riqueza do Museu Real da África Central,
ao entrelaçar seu destino com o dos em Tervuren, na Bélgica, para não
assuntos coloniais. mencionar a arquitetura e os obje-
Em Hobé’s Art Nouveau Forest tos geralmente feitos com materiais
and Its Lines of Color [A floresta art da colônia congolesa: cobre, mar-
nouveau de Hobé e suas linhas de fim e madeira. Baloji enfatiza essa
cor] (2021), Sammy Baloji reproduz conexão entre o estilo floral da art

260
261
nouveau e a expropriação colonial. dessas obras ao enfatizar o aspecto processamento de cobre na pro-
Além disso, as cores escolhidas moderno dessas práticas antigas”.1 víncia de Katanga, na República
pelo artista foram as mesmas que o O arquivo colonial é explorado Democrática do Congo, são acom-
escritor e historiador W.E.B. Dubois para romper o monopólio ocidental panhadas da gravação de cantos
utilizou para os diagramas mos- da modernidade. católicos da era colonial. As canções
trados em Exhibit of American Assim, duas liturgias coloniais, são executadas pelo coro congolês
Negroes [Exposição de negros a missa católica e o trabalho na dos Cantores da Cruz de Cobre. Em
americanos] durante a Exposição fábrica, são apresentadas no filme uma fotografia em preto e branco
Universal de 1900, em Paris. Essa Tales of the Copper Crosses Garden: que Baloji justapõe ao filme, a cruz
escolha, de acordo com Baloji, Episode I [Conto do Jardim das de cobre, também conhecida como
alude à intenção de “confundir a lei- Cruzes de Cobre: Episódio 1] (2017). Cruz de Katanga, decora as batinas
tura etnográfica que se poderia ter Nele, imagens de uma fábrica de dos coralistas. Esse tipo de cruz, no
entanto, era utilizado como moeda
na região desde o século 13. Chamar
a atenção para esse fato demonstra,
mais uma vez, a habilidade desse
artista para desnudar conexões
ocultas do colonialismo, dessa vez
com a religião, o extrativismo e
a economia.

marco baravalle

traduzido do inglês por gabriel


bogossian

_
1/ Portfólio do artista. Disponível em: ima-
nefares.com/wp-content/uploads/2020/04/
if-sammybaloji-portfolio-eng-1.pdf. Acesso em:
jul. 2023.

Hobé’s Art Nouveau Forest and Its Lines of Color, 2021


A floresta art nouveau de Hobé e suas linhas de cor. Vista da exposição,
Beaux-Arts de Paris (2021)
santu mofokeng “Quem foram essas pessoas? Essas questões e provocações
Quais foram suas aspirações? mesmerizantes feitas pelo fotó-
Qual era a ocasião? grafo Santu Mofokeng (1956-2020)
Quem está olhando? surgem entremeadas aos cativantes
Olhe para mim.” retratos de famílias negras traba-
lhadoras e de classe média de um
período em que o mundo foi à guerra
duas vezes e o regime do Apartheid
tomou conta das regiões meridionais
do continente africano. Feito em
colaboração com dez famílias das
províncias de Gauteng, Noroeste e

262
263
Estado Livre de Orange (África do espectrais e materiais. Como con- sul-africana, quando Mofokeng
Sul), The Black Photo Album / Look junto, The Black Photo Album / Look trabalhou no departamento de
At Me: 1890-1950 [O álbum de fotos At Me: 1890-1950 constitui tanto um documentação visual do Instituto de
negro / Olhe para mim: 1890-1950] é arquivo quanto uma assemblagem, Estudos Africanos da University of
uma monumental instalação de ima- formulação que o teórico Achille the Witwatersrand, em Joanesburgo,
gens e textos disfarçada como uma Mbembe considera “uma história África do Sul. Embora muitos se
apresentação de slides de um álbum que adquire coerência pela capaci- limitassem a representar o futuro
de fotografias. Revelando mais de dade de produzir vínculos entre o da esfera pública em technicolor,
oitenta diapositivos (35 imagens e início e o fim”.1 Mofokeng voltou-se para den-
45 textos), a obra contrapõe formas Abarcando múltiplos recortes tro, orquestrando esse projeto de
conceituais e vernáculas; sujeitos temporais, a peça começa durante pesquisa aprofundado, fundamen-
individuais e coletivos; mundos os anos iniciais da democracia tado no passado monocromático.
Ele disse que “estava fazendo esse
projeto, não para negar outras
histórias, outras narrativas, mas
tentando inserir esse trabalho no
conjunto de conhecimentos sobre o
passado”.2 Apresentado pela pri-
meira vez na Bienal de Joanesburgo
de 1997, The Black Photo Album /
Look At Me: 1890-1950 ressoa de
modo ainda mais poderoso hoje,
em São Paulo, no início de outro
século. A obra subverte as narrativas
dominantes do Estado nacional ao
se concentrar em minorias históricas,
por meio de conturbadas formas
de relação que somente podem ser
geradas fotograficamente.

oluremi onabanjo

traduzido do inglês por alexandre


barbosa de souza

_
1/ Achille Mbembe, “The Power of the Archive
and its Limits”, in C. Hamilton et al. (ed.), Refi-
guring the Archive. Cidade do Cabo: David Philip,
2002, p. 21.

2/ Santu Mofokeng, citado em entrevista a


Tamar Garb. Figures and Fictions: Contemporary
South African Photography. Göttingen: Steidl,
2011, p. 283.

The Black Photo Album / Look at me: 1890-1950, 1997


O álbum de fotos negro / Olhe para mim: 1890-1950. Slides de 35 mm
sarah maldoror

suzanne lipinska
Retrato de Sarah Maldoror em Guiné Bissau, c. 1970
Impressão sobre papel de gelatina e prata

264
265
Desde a escolha do próprio nome, resistência constituem traços mar-
retirado dos cantos de Lautréamont, cantes da obra de Maldoror.
Sarah Maldoror (1929-2020) sempre Franco-antilhana no Movimento
uniu sua visada de poeta a um gesto Popular de Libertação de Angola,
político que rechaça narrativas ins- filmou a guerra colonial pelos olhos
titucionalizadas para compor cada de uma mulher, em Sambizanga
uma de suas obras: sejam as escritas (1972) – filme em exibição na
ou as cinematográficas, que somam 35a Bienal – convicta de que a luta
mais de vinte produções entre estaria fadada ao fracasso se não
documentários e ficções. Diferentes envolvesse toda a população em
facetas do pensamento pan-africano ações em seu dia a dia e não como
e protagonistas de processos de mera operação de militares.
Esse trabalho que deflagra o que
historicamente foi invisibilizado é
também o legado artístico cons-
truído da perspectiva daquela
que, na Paris de 1956, foi a única
mulher entre os 63 delegados no
Primeiro Congresso de Escritores e
Artistas Negros e contribuiu para a
construção de um teatro no qual a
presença africana suplantasse per-
sonagens serviçais, com a fundação
da companhia Les Griots.
Ao se tratar do trabalho de
Sarah Maldoror, torna-se incontor-
nável abordar o que não foi pos-
sível realizar. Os enfrentamentos
todos, de gênero e de raça, além
das dinâmicas Primeiro-Terceiro
Mundo – hoje Norte-Sul Global –,
das complexidades dos Estados-
nações que emergiram da descolo-
nização africana a partir de meados
da década de 1950, se expressam
ainda em projetos e roteiros nunca
filmados e por isso também inte-
gram as coreografias do impossível.
Dos achados entre seus documen-
tos pessoais se reforça, sobretudo,
seu projeto poético e singular em
favor do coletivo.

heitor augusto

Sarah Maldoror, 1974


Impressão sobre papel de gelatina e prata
sauna lésbica Quando questionada sobre sua
obra Sauna lésbica, Malu Avelar
por malu avelar responde, cruzando memórias
pessoais e coletivas, que não há
com como pensá-la sem a compreensão
ana paula mathias, de seu corpo e do lugar de onde ela
anna turra, veio. Retomando questões que per-
bárbara esmenia passam seus marcadores de identi-
e marta supernova dade, Malu ressalta as formas como
reage a um território que estrutu-
ralmente violenta, muitas vezes de
modo silencioso, tudo aquilo que

266
267
dele se diferencia. “Estruturada em Alemanha3 e o desejo de assentar nas últimas décadas reivindicada
um modelo binário de gênero, essa seu corpo levaram a artista à pro- por um sentido coletivo e politi-
é uma cidade que leva as pessoas posição desse trabalho. zado. Com base em negociações
de outras identidades a viver em A obra, que teve sua primeira e ações provocativas de artistes
permanente estado de alerta e de edição em 2019 no Festival convidades, Malu Avelar com Ana
vulnerabilidade”.1 E esse silencioso Internacional Valongo, em Santos Paula Mathias, Anna Turra, Bárbara
habitar a morte iminente somado (SP), é relacional, instalativa e traz Esmenia e Marta Supernova pro-
ao questionamento sobre as saunas em sua fachada um letreiro em põem um projeto coletivo e trans-
gays − “imagine se existisse uma neon: Sauna lésbica. Cabe lembrar formam a obra em um espaço a ser
sauna lésbica?”2 −, o encontro que que a lesbianidade foi construída coreografado por aqueles que o
teve com artistas sapatões durante com base em políticas de esque- ocupam. Um espaço que se orga-
a residência artística PlusAfroT/ cimentos e silenciamentos, sendo niza em torno do desejo de encon-
tros que atravessam os limites
visíveis e invisíveis que impedem
as existências dissidentes e confor-
mam os seus estereótipos. Através
de um exercício de abstração e
imaginação radical a instalação
tensiona as contradições das
políticas identitárias ao mesmo
tempo que celebra a presença de
mulheres pretas lésbicas e sapato-
nas: um espaço de escutas, fabula-
ções, de deslocamentos de subjeti-
vidades e de performatividade dos
corpos em contato com a Sauna.

barbara copque

_
1/ Malu Avelar em conversa gravada com
a autora.

2/ Ibid.

3/ A residência PlusAfroT aconteceu em 2019


na Villa Waldberta, em Munique, Alemanha.
Disponível em: amlatina.contemporaryand.com/
pt/editorial/plusafrot/. Acesso em jun. 2023.

malu avelar
Sauna lésbica, 2019
Vista do Festival Valongo, Santos (2019)
senga nengudi

268
269
É a partir de duas obras concebi- elaboradas as implicações entre Nengudi aposta em práticas cole-
das em um período de quase trinta artes visuais e política. No contexto tivas, estratégias de engajamento,
anos, o tríptico Masked Taping [Fita de suas primeiras produções, o intervenções estéticas territorial-
adesiva/mascarada] (1978-1979) mergulho da artista na abstração mente situadas e no que define
e a videoinstalação Warp Trance transbordou a ecologia simbólica como reflexões abstraídas de corpos
[Trama em transe] (2007), que Senga que sitiava o que era reconhecido usados.1 Na pesquisa de mate-
Nengudi responde à provocação como arte afro-americana, e o gesto riais efêmeros e profundamente
curatorial da 35a Bienal − coreo- da artista demandou que os ambien- assentados em usos cotidianos,
grafias do impossível. De inegável tes das artes fossem afetados pelo como meias-calças de segunda
relevância histórica, suas obras pro- que se apresentava fora dos limites mão da famosa instalação R.S.V.P.
movem a re/de/composição radical estabelecidos pelas categorias (1997/2003) ou a fita adesiva branca
das coreografias com as quais eram da representação. com a qual a artista mascara seu
corpo em Masked Taping, Nengudi
trabalha os múltiplos usos da maté-
ria transformada. Na performance,
o corpo em movimento íntimo com
a matéria ordinária atualiza a dimen-
são do rito, e percebe-se o tríptico
Masked Taping como a presenti-
ficação de um rastro de memória
ancestral, a artista dançando para
incorporar uma herança transcul-
tural. Em Warp Trance, a profunda
implicação do material utilizado com
o campo social persiste; desta vez,
a máquina é quem dança e opera a
modificação da matéria. Projetada
em cartões Jacquard, invenção
que revolucionou a padronagem de
tecidos, a obra abre uma fenda de
imagens em composições abstratas
inicialmente ruidosas, que ganham
ritmo, embalando sonoramente
a sobreposição de texturas e, por
fim, de cores. Experimentamos a
duração da confecção da linha em
tecido, em dimensões poéticas,
como uma espécie de reflexão sen-
sual sobre o tempo.

cíntia guedes

_
1/ Esta definição encontra-se em “Declaração
sobre trabalhos com malha de náilon”, de 1997,
publicada no catálogo Senga Nengudi − Topolo-
gias. Munique; São Paulo: Lenbachhaus; masp,
2020, p. 117.

Masked Taping, 1978-1979


Fita adesiva/mascarada. Folha de contato,
impressão em gelatina e prata
sidney amaral Na parte final de sua vida, Sidney e da arte clássica são às vezes
Amaral (1973-2017) trabalhou reinterpretados em suas narra-
como professor de arte na rede tivas plásticas e incorporados a
pública de ensino do município elas, as quais não excluem, igual-
de Mairiporã, em São Paulo. Essa mente, aspectos psicológicos e
experiência, aliada à sua sensibili- dados biográficos do autor que,
dade e a seu projeto político-ideo- mesmo perturbadores, são por ele
lógico, acabou por galvanizar uma assim enfrentados.
obra que ressaltava do cotidiano O amálgama do artista, pesquisa-
proletário uma complexidade que dor e professor resultava na realiza-
frequentemente lhe é sonegada. ção de uma constelação de propo-
Daí que elementos da literatura sições poéticas, que especularam
intensamente com as linguagens do
desenho, da pintura, da escultura,
da gravura e da instalação.
Em O estrangeiro (2011), o artista
realiza, com tinta acrílica, mais um
de seus característicos autorretra-
tos. De fato, de maneira recorrente,
Sidney Amaral apresenta o próprio
corpo como território conflagrado
pelas expressões mais introvertidas,
íntimas e particulares – e ainda por
aquelas de caráter extrovertido
e social.
Na obra em questão, Amaral
assume o papel de Caronte, bar-
queiro que na mitologia grega
transporta as almas do reino dos
vivos para o dos mortos. Essa tra-
vessia também era a do artista, que
enfrentava os obstáculos de um
momento muito menos favorável
do que hoje à circulação da pro-
dução simbólica afro-diaspórica.
Estrangeiro em ambos os domínios,
da vida e da morte, o artista e sua
obra são os elementos que conec-
tam esferas díspares. Essa penosa
jornada não era, claro, apenas a
dele, e o artista compreendia isso.
É muito significativo que, na sua
35ª edição, a Bienal de São Paulo
inverta essa equação e a obra de
Amaral, precocemente morto, seja
agora consagrada no Olimpo que
ele antes retratou como obstáculo.

claudinei roberto da silva

270
271
O estrangeiro, 2011
Acrílica sobre tela, 210 × 138 cm
simone leigh e Simone Leigh e Madeleine Hunt- nas nos Estados Unidos, criado
madeleine hunt-ehrlich ‑Ehrlich trabalham juntas há muitos por ex-escravizadas em 1867. Esse
anos como parte de uma associa- envolvimento levou ao “documentá-
ção informal de mulheres artistas, rio surrealista” de Hunt-Ehrlich, Spit
acadêmicas e outras produtoras on the Broom [Cuspir na vassoura]
culturais, em sua maioria negras, (2019), que buscava demarcar o
várias das quais aparecem em significado do grupo, sem revelar
Conspiracy [Conspiração] (2022). os segredos que ajudaram aquelas
Antes desse projeto, ambas mulheres a sobreviver por mais de
participaram do arquivo da United um século. Essa preocupação –
Order of Tents – o mais antigo como falar sobre uma história que
grupo de mulheres afro-america- é secreta e cujo poder deriva desse

Conspiracy, 2022
Conspiração. Stills do vídeo; 24’

272
273
segredo – é central para as práticas resses das artistas fica clara em do significado dela para a história
dessas duas artistas. ambos os textos, que discutem da arte e o lugar que as mulheres
Em Conspiracy, Leigh e Hunt- as práticas tradicionais na África negras ocupam (ou deixam de
‑Ehrlich sobrepõem fotos renderiza- Central e no Caribe, respectiva- ocupar) nesse campo. Você tam-
das das ferramentas e processos do mente. A voz de Deborah Anzinger, bém vai perder alguma coisa se não
ofício de Leigh, com vocalizações e também participante da 35a Bienal, conhecer a exploração contínua de
narrações fantasmáticas extraídas e a canônica artista performática Ehrlich-Hunt sobre a interioridade
dos livros Flash of the Spirit: arte e Lorraine O’Grady também apare- e os arquivos das mulheres negras
filosofia africana e afro-americana,1 cem no filme. – como seu trabalho sobre Suzanne
de Robert Farris Thompson, e Tell Uma apreensão completa Roussi-Césaire, escritora martini-
My Horse, de Zora Neale-Hurston.2 desse trabalho requer que você cana e ativista feminista anticolo-
A amplitude diaspórica dos inte- tenha ideia de quem é O’Grady, nial. Há também algo na inclusão
de Deborah Anzinger, sua leitura de
Hurston, ela mesma um pivô dias-
pórico. Se por acaso você reconhe-
cer a autora Sharifa Rhodes-Pitts,
outra co-conspiradora de longa
data, e conhecer o suficiente de
seu trabalho para entender por que
ela foi incluída, terá entendido um
pouco mais. O filme nos provoca,
pois nem os nomes de Anzinger
nem de Rhodes-Pitts aparecem nos
créditos. Afinal, é uma conspiração.
Entendedores entenderão.
Você pode tentar se inscrever
nesses acontecimentos como eu fiz,
por exemplo, procurando o álbum
de 1974 de Jeanne Lee que deu
nome ao filme. E olha, estou feliz
por ter feito isso. O que você está
esperando? Não vou te dizer. Já
listei muitos nomes. O que posso te
contar é que existe uma razão para
este ser um filme sobre o trabalho.
Até então, sente-se e fique assis-
tindo aquela coisa que foi investida
de tanto valor, aqueles objetos mais
exaltados que os pobres mortais
que os produziram, queimar.

nicole smythe-johnson

traduzido do inglês por


naia veneranda

_
1/ Robert Farris Thompson, Flash of the spirit:
arte e filosofia africana e afro-americana (1984).
São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011.

2/ Zora Neale-Hurston, Tell My Horse (1938).


Nova York: Harper Collins, 2008.
sonia gomes “Um fio invisível e tônico Os materiais pedem à artista que
Pacientemente cose a rede lhes dê outra vida. Ela, então,
De nossa milenar resistência.” costura, torce, encapa, amarra e
transforma retalhos, tecidos, fios e
– conceição evaristo1 arames em objetos escultóricos.
Ato contínuo, a artista convida a
espectadora a se mover, se deslocar,
ver com o corpo suas criações.
Impossível apreciar o trabalho
de Sonia Gomes apenas com os
olhos. Suas criações convocam a
nos deslocarmos de uma posição

Véu de Maia, 2022


Tecidos diversos, 203 × 265 cm

274
275
passiva para a de uma espectadora nas várias leituras críticas sobre a capa de proteção, a calça de linho
engajada, que se movimenta, se seu trabalho artístico. Quais são as etc. – para um novo tempo em que,
abaixa, inclina o corpo, levanta a histórias, as memórias, os afetos amarrados, torcidos, esgarçados
cabeça, ginga, em uma dança com guardados nos tecidos e nos panos e costurados, se transformam em
o objeto, a fim de percebê-lo de utilizados por Sonia Gomes? Quais objetos escultóricos.
outro ângulo, de descobrir e atentar são as origens dos materiais e quais Na 35ª Bienal de São Paulo serão
ao detalhe que se esconde na caminhos eles ainda percorrerão apresentadas dezenas de obras da
próxima torção, no outro lado, ali depois desta exposição? O tempo artista mineira, formando um corpo
embaixo ou lá em cima. em que esses objetos ainda tinham robusto e representativo de sua poé-
Suas obras não são figurativas uma função utilitária – o vestido de tica e trajetória. Obras de parede,
e, ainda assim, temas como raça, casamento, a blusa de festa, o uni- pendentes, vergalhões e algumas
gênero e temporalidades surgem forme da escola, a toalha de mesa, peças da série Torção – marca
registrada de Gomes – irão compor
o espaço. Desse modo, o tempo
condensado, tônico e de memórias
enredadas da milenar resistência
de mulheres negras ganha forma
e se manifesta nas coreografias
do impossível.

juliana de arruda sampaio

_
1/ Conceição Evaristo, “A noite não adormece
nos olhos das mulheres”, in Cadernos negros,
vol. 19, org. Márcio Barbosa, Sônia Fátima
Conceição & Esmeralda Ribeiro. São Paulo:
Quilombhoje; Ed. Anita, 1996.

Sem título, da série Torção, 2004-2021


Costuras, amarrações, diversos tecidos e rendas,
180 × 100 × 80 cm
stanley brouwn

276
277
stella do patrocínio Como pouco se sabe sobre a história dessas gravações, Patrocínio opera
de Stella do Patrocínio (1941-1992), uma nova dobra no tempo, fazendo
as palavras que movimentamos para curvar aquelas linhas horizontali-
falar dela, sempre fugitivas, preci- zadas – das que foram desenhadas
sam fabular a partir das coreografias pelo manicômio às da literatura
do impossível. É assim também que o –, que lhe roubaram o corpo, que
falatório, sua prática corpo-vocálica quiseram lhe roubar a palavra. Essa
da palavra, requer que nos conec- debandada, até pouco tempo atrás
temos com ele – cerrando os olhos ecoada por taras degenerativas,
para ouvir o colapso das fronteiras. eugenias, o fetiche da loucura, a
A cada minuto que se passa em poesia!, se vê estraçalhada por
1 hora, 39 minutos e 15 segundos um falatório que refunda a própria

278
279
arena de guerrilha. E afirma: apesar mas o tempo espirala: atravessada Se eu rasgar aquela pesada
de Eco, estes são os meus termos. por forças de asfixia – a polícia, a no meio de meio a meio, der
literatura, o serviço doméstico, o der der lambada no chão, na
Eco, a ninfa forçada a repetir eletrochoque –, Stella do Patrocínio parede, jogar fora, no meio do
as palavras de outros. Ou ainda abre seu falatório exuriano à criação mato, ou do outro lado de lá do
Eco – o consenso branco.1 de rotas de fuga e ao revide, à fabu- muro, é um malezinho prazeres
Exu, movimento, força vital lação estética no espaço da clausura. [...] Matar a família [do cientista]
– faz circular o tempo e E é nessa opacidade que baila o toda. Que faça um carro, bote
a mensagem. falatório – nem somente poesia, nem tudo morto e vá pra longe.2
testemunho, tampouco quaisquer
No conclave entre Eco e Exu, o placar outras classificações que, sozinhas, Stella afirma ser do tempo do
não está zerado, tampouco a dívida; não se bastam: cativeiro, porque compreende a
maquinaria-fantasiosa que há por
detrás dos encarceramentos de
corpos pretos desde os tempos
de sua bisavó. Diz em voz alta:
Clarice, Celeste, Meritempe,
Luzadia, Adelaide – nomes sobre os
quais talvez nunca saibamos muito
além do carinho com o qual ela
os profere.
Numa linguagem que vadia em
pretuguês3 ritmado, sincopando
a repetição das diferenças, Stella
desaloja noções prévias do que
seja o tempo, espaço, casa, família,
ciência, o corpo e seu estudo – e
segue para o mais longe possível.
Sua vocálica contém vértebras, e
constrói mundos de linguagem para
lançar um falatório-exu que rasga
o tempo e que mata, hoje, os ecos
de ontem.

sara ramos

_
1/ Referência a Grada Kilomba, Ilusões vol. I –
Narciso e Eco. In Grada Kilomba: Desobediências
poéticas. Catálogo de exposição. São Paulo:
Pinacoteca de São Paulo, 2019.

2/ cd2_01. Terceira parte dos depoimentos/en-


trevistas/falas. 6’53’’. In: Sara Martins Ramos,
Stella do Patrocínio: entre a letra e a negra gar-
ganta de carne. 2022. Dissertação de Mestrado.
Disponível em: dspace.unila.edu.br/hand-
le/123456789/6465. Acesso em: 2 jun. 2023.

3/ Referência a Lélia González, “Racismo e


sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências
Sociais Hoje, Anpocs, pp. 223-44, 1984.

Stella do Patrocínio em liberdade antes da


internação forçada
tadáskía

Ave preta mística, 2022


Grafite, lápis de cor, pastel oleoso e spray
sobre papel, 65 × 50 cm

280
281
Logo no início de Ave preta mística matriarca do bando, “the mother of
(2022), o primeiro livro de páginas the house” [mãe da casa]. Nós nos
soltas de Tadáskía, a artista anuncia unimos a ela em seu voo onírico e,
que as palavras que vêm na sequên- como se fosse uma prece, a cada
cia são dedicadas a suas aliadas. mudança de página, a cada batida
Orientando-nos durante a revoada, de asa, percebemos em seus versos
ela se apresenta como uma irmã e que uma vida sem amarras é um
corporifica a ave que se dirige aos exercício constante e coletivo.
membros de sua confraria. Ela está A obra se divide em escritos
entre nós, porém a vibração altiva bilíngues, com referências à pen-
de suas palavras sobressai a seu sadora feminista negra Audre
tom amável e a posiciona como a Lorde, e desenhos de diferentes
cores e espessuras, que parecem
“plumagens arrepiadas”. As linhas
tortas e curvas traçadas naquelas
folhas, seja em seus versos ou em
seus desenhos, são o gesto matriz
de Ave preta mística. A alternância
entre os escritos e as páginas com
imagens coloridas dá a forma e o
ritmo da narrativa. Como a forma-
ção de uma revoada, cada parte
do livro é uma expressão singular:
são elementos que se relacio-
nam e se reconfiguram a cada
nova passagem.
Para a 35ª Bienal de São Paulo,
além de apresentar as páginas do
livro espacializadas em uma sala,
Tadáskía exibirá um grupo de traba-
lhos que deriva de materiais usuais
em sua produção: são três escultu-
ras feitas de bambu, palha e taboa,
semelhantes na forma, mas com
elementos diferentes em suas bases
– na primeira delas, um prato com
ovos costurados; na segunda, uma
seleção de frutas que deve ser con-
sumida pelo público e pela equipe
da instituição ou ser renovada antes
de se deteriorar; na terceira, uma
quantidade de pó facial de dife-
rentes cores. Na parede interna da
sala, Tadáskía exibirá um desenho
de grande dimensão feito de pastel
seco e carvão.

thiago de paula souza


taller 4 rojo No início da década de 1970, o Nesse contexto, o Taller 4 Rojo
Taller 4 Rojo articulou uma visua- fundou uma escola popular e vincu-
lidade crítica e realizou ações lou-se a comunidades camponesas
diretas acompanhando movimen- e indígenas, sindicatos e setores de
tos sociais durante os governos da marginalização urbana, realizando
Frente Nacional. Essa aliança entre trabalho de campo e documentando
os partidos Liberal e Conservador suas experiências. Seus registros,
resultou em um dos períodos mais juntamente com imagens coletadas
autoritários da Colômbia, com vio- da imprensa, eram a substância
lação aberta de direitos humanos, testemunhal que o grupo trans-
assim como consolidou o conflito figurava por meio de operações
armado no país. emprestadas da arte gráfica e do

282
283
cinema latino-americano da época: ao longo dos anos de colaboração América II, a montagem e a serigra-
a montagem, a formação de séries e com o sindicalismo independente. fia fotográfica partem do corpo tor-
sequências e o trabalho com tramas A pasta Testimonios [Testemunhos] turado e o reinserem em uma trama
e alto contraste. (1974) foi uma das primeiras a pôr mais complexa, que parece assinalar
A gramática visual do Taller em evidência as práticas de tortura a natureza teológico-política dos
4 Rojo não foi o produto de uma conduzidas pelas forças militares em pactos de poder como continui-
distância analítica, mas do caminhar meio à perseguição de movimentos dade histórica.
lado a lado com as comunidades políticos dissidentes em todo o país. A emblemática trilogia fotosseri-
que logo foram trazidas para suas As gravuras mostram corpos feridos gráfica Agresión del imperialismo a
imagens. Cartazes como A la huelga e amarrados, com os olhos vendados los pueblos, A la agresión del impe-
100 a la huelga 1000 [À greve 100 à ou gritando em meio a paisagens rialismo: guerra popular e Vietnam
greve 1000] (1978) foram realizados abertas e despovoadas. Na trilogia nos señala el caminho [Agressão do
imperialismo às aldeias, À agressão
do imperialismo: guerra popular e
Vietnã nos mostra o caminho] foi
feita em 1971-1972 em solidariedade
à resistência popular no Vietnã,
mas também a outros processos de
luta anti-imperialista na América
Latina e na África.
O que nos acontece hoje, qua-
renta anos depois, quando vemos
a sequência da nota de dólar se
desintegrando e o avião de guerra
despedaçado em um campo?
Por um momento, essas imagens
parecem antecipar o ponto em
que a guerra e o capital se mole-
cularizam, abrindo caminho para a
financeirização, para a sofisticação
tecnologizada do massacre. Mas
esse ponto de virada também é um
ponto de interrupção dos impulsos
totalizantes da história do capital.
Entre as três imagens, é possível
reter o movimento do corpo de uma
camponesa, que vai adquirindo
diferentes tonalidades, ganhando
espaço e proximidade, sinalizando
esse outro tempo dos corpos que
não tiram os pés do chão, e se
regeneram entre as ruínas que a
mercadoria e o necropoder deixam
em seu rastro.

fernanda carvajal

traduzido do espanhol por


ana laura borro

Agresión del imperialismo a los pueblos, A la agresión del imperialismo:


guerra popular, Vietnam nos señala el caminho, 1971-1972
Agressão do imperialismo às aldeias, À agressão do imperialismo: guerra popular,
Vietnã nos mostra o caminho. Serigrafia sobre papel, 100 × 216,6 cm
taller de gráfica popular reza coletiva, por meio de reuniões e no contexto dos novos feminismos
assembleias, como se pode observar e da depatriarcalização da história,
charles white pelas fotografias. Nelas, discutia-se têm sido reavaliados e ressituados.
elizabeth catlett o que representar, como formar o Dado o grande desempenho
john woodrow wilson grupo de voluntários que produzi- artístico e a profusa atividade
leopoldo méndez ria a imagem, cuidando para que o política do TGP, vários artistas
margaret taylor agente responsável fosse reconhe- estrangeiros (principalmente
goss burroughs cido e, ao mesmo tempo, o exercício estadunidenses) se ligaram tempo-
coletivo por meio do carimbo/logo- rariamente à oficina para contribuir
tipo característico do TGP. com seus trabalhos na produção
Em março de 1938, o TGP apro- de gravuras sociopolíticas. Esses
vou um documento no qual seus artistas eram chamados “artistas
interesses e objetivos foram deta- convidados” e alguns deles eram
“Sou negra, mulher, escultora lhados. Esse documento era uma John Woodrow Wilson, Hannes
e gravurista. Também sou espécie de manifesto ou declaração Meyer, Lena Bergner, Charles
casada, mãe de três filhos no qual concordaram em trabalhar White, Eleanor Coen, Margaret
e avó de cinco garotinhas com litografia, gravura em metal, Taylor Goss Burroughs, Rini
(agora sete meninas e um madeira e linóleo. Templeton, Elizabeth Catlett, entre
menino) [...] todos esses esta- outros. Esses vínculos consolidaram
dos-de-ser influenciaram meu Esta oficina é constituída o caráter internacional do TGP e, de
trabalho e os tornaram isso com o objetivo de estimular a certa forma, fizeram surgir outros
que você vê hoje.” produção gráfica em benefí- projetos relacionados, como os
– elizabeth catlett cio dos interesses do povo do Workshops of Graphic Art [Oficinas
México e, para isso, propõe- de Arte Gráfica], em Los Angeles,
-se a reunir o maior número San Francisco e Nova York, nos
Os processos colaborativos têm de artistas em torno de um Estados Unidos.2
uma tradição fecunda no México, trabalho constante, principal-
e uma das iniciativas amplamente mente por meio do método de _
difundidas é a do Taller de Gráfica produção coletiva.1
Popular [Oficina de gráfica popu- 1/ Humberto Musacchio, El Taller de Gráfica
Popular. México: FCE, 2007, p. 25.
lar], mais conhecido como TGP, que Embora esse documento não tenha
data de 1937. Vários dos fundadores sido publicado, anos depois, em 2/ Ver Alberto Hijar Serrano, Catálogo TGP 80
dessa iniciativa vieram da Liga de março de 1945, eles publicaram sua años. Taller de Gráfica Popular. Cidade do Méxi-
Escritores e Artistas Revolucionários Declaração de princípios, na qual se co: Museo Nacional de la Revolución, 2017, p.
39; Humberto Musacchio, op. cit., pp. 30-60.
(LEAR). Trazendo a reverberação dos autorreafirmaram como um centro
preceitos promovidos pelo mura- de trabalho coletivo cuja função
lismo, eles promoveram uma pro- consistia na realização de uma arte
dução visual comprometida com as a serviço do povo, de modo que sua
lutas e a justiça social, denunciando produção deveria refletir as realida-
situações vividas por camponeses des sociais de seu tempo.
e trabalhadores e, principalmente, Como outras estratégias cole-
resistindo e questionando mensa- tivas empreendidas ao longo do
gens, efeitos ou práticas ligados aos tempo, o TGP teve vários momen-
fascismos dominantes. tos de coesão e tensão interna, seus
Os trabalhos gráficos do TGP participantes variaram em número
– que traziam o espírito de agita- e origem geográfica. Entre eles
ção e de propaganda – circulavam estavam artistas como Leopoldo
também por meio de cartazes, Méndez, Pablo O’Higgins, Luis
folhetos e calendários, apelando Arenal e Adolfo Mexiac. Também
para a militância visual e a crítica aos contou com importante partici-
modelos de produção centrados no pação de mulheres artistas, como
artista individual. Mariana Yampolski, Rini Templeton,
O TGP promovia, em vez disso, Elizabeth Catlett e Margaret Taylor
recursos organizacionais de natu- Goss Burroughs, cujos trabalhos,

284
285
A produção de Elizabeth Catlett em mulheres trabalhadoras da
(1915-2012) se distingue pela repre- Carver School, com a qual ela pôde
sentação visual determinada e poli- viajar para o México acompanhada
tizada de mulheres trabalhadoras e por Charles White. Catlett declarou
de outros agentes que desafiaram que, a partir do TGP, ela desenvol-
o racismo e a violência imposta às veu “uma nova compreensão de
comunidades violentadas, princi- como queria trabalhar como artista
palmente as comunidades afro-a- e pelo que exatamente queria
mericanas e indígenas. Em 1946, lutar”,3 ao realizar um trabalho para
Catlett ganhou uma bolsa da Julius o povo mexicano, em vez de enqua-
Rosenwald Fund e deu início a um drá-lo em circuitos de galerias
trabalho com uma série inspirada ou museus.
Da mesma forma, a presença de
Catlett acrescentou novos eixos
de trabalho ao TGP, como a cons-
cientização sobre raça e gênero.
Uma de suas séries emblemáticas é
The Black Woman [A mulher negra]
(1946), composta de quinze gravuras
feitas em linóleo, nas quais ela ins-
taura uma espécie de manifestação
da opressão, resistência e sobrevi-
vência das mulheres negras norte-
-americanas. Após ter permanecido
por um período no TGP, a produção
de Catlett continuou a se concentrar
em temas afro-americanos, produ-
zindo obras que se tornaram icô-
nicas no movimento pelos direitos
civis dos cidadãxs afro-americanxs,
como Negro es bello [Negro é
lindo] (1969) e Malcolm X nos habla
[Malcolm X fala conosco] (1969).

_
3/ Dina Comisarenco Mirkin, “Negro woman
y la postmemoria de la esclavitud en Elizabeth
Catlett”. La Ventana − Revista de estudios de
género, v. 6, n. 54, pp. 110-42, 2021. Dispo-
nível em: www.scielo.org.mx/scielo.php?pi-
d=S1405-94362021000200110&script=sci_art-
text_plus&tlng=es. Acesso em: 16 jul. 2023.

elizabeth catlett
Negro es bello II, 1969
Negro é lindo. Litografia, 78 × 57 cm
Outro artista convidado foi Charles e, ao entrar em contato com o TGP, da arte gráfica social, especial-
White (1918-1979), como Catlett, de reafirmou seu interesse pela gra- mente na defesa dos direitos dos
origem afro-americana, cuja produ- vura, dado o alcance que ela poderia afro-americanos. Alguns de seus
ção se concentrou principalmente ter em virtude da reprodutibilidade, retratos se sobressaem, como o de
no combate às distorções e aos da diáspora e da circulação que as Bessie Smith, pioneira desse estilo
estereótipos sobre os afro-ameri- tiragens permitiam e de seu baixo e popularmente conhecida como a
canos, que eram disseminados na custo de produção. “imperatriz do blues”, que foi enter-
cultura visual popular. Com o passar White retornou a Nova York em rada em um túmulo sem lápide até
do tempo, seus interesses ligaram-se 1949 e colaborou com o New York que Janis Joplin escreveu o seguinte
a realidades políticas, sindicais e de Graphic Workshop, que, assim epitáfio: “A maior cantora de blues
gênero. White viajou para o México como o TGP mexicano, teria um do mundo jamais deixará de cantar.
em 1946, acompanhado por Catlett, importante efeito na disseminação Bessie Smith, 1895-1937”; ou o retrato
de Frederick Douglass, que esteve
ligado a várias iniciativas anties-
cravagistas e promoveu o abolicio-
nismo. Douglas nasceu no cativeiro
e, portanto, desenvolveu perspecti-
vas críticas sobre liberdade e direitos
humanos, principalmente em relação
às comunidades afro-americanas
que, como ele, foram submetidas ao
regime da escravidão.

charles white
Exodus, 1961
Êxodo. Linoleogravura sobre papel,
80 × 125 cm
286
287
No caso de John Woodrow Wilson contexto coletivo de produção de
(1922-2015), o artista afro-ameri- imagens amplamente distribuídas
cano foi ao México com o interesse por meio da gravura. No TGP, foi
de conhecer um dos principais contemporâneo de Catlett e White,
representantes do muralismo com quem compartilhava o inte-
mexicano, José Clemente Orozco, resse por trabalhar com e para a
cujas exposições ele havia visitado comunidade afro-americana, pro-
e se identificado com a maneira de movendo sua visibilidade.
representar o contexto das clas- Um exemplo disso é a obra The
ses oprimidas no México. Embora Trial [O julgamento] (1951), litografia
Orozco já tivesse falecido, Wilson na qual um jovem de origem afro-
entrou para o TGP e encontrou um -americana está em pé (proporcio-
nalmente diminuído) diante de três
juízes brancos que o observam de
modo ameaçador, tornando claro
o tratamento desigual e vertical ao
qual foram submetidos os afro-a-
mericanos. Em sua produção no
México, Woodrow pintou um mural
que posteriormente foi destruído,
chamado The Incident [O incidente]
(1952), que narra de forma pictórica
a violência e o terror do lincha-
mento de um afro-americano pela
Ku Klux Klan. Esse título funciona
como um terrível sarcasmo diante
da violência xenofóbica e suprema-
cista normalizada.

john woodrow wilson


The Trial, 1951
O julgamento. Litografia em papel velino
creme, 40,8 × 32,4 cm
Em 1952, a artista e poeta esta- um espaço de ateliê para artistas
dunidense Margaret Taylor Goss afro-americanos, e do DuSable
Burroughs (1915-2010) também Museum of African American
se ligou ao TGP. Seus interesses History (1961), ambos em Chicago,
também estavam concentrados Estados Unidos. Durante sua esta-
na expressão de sua identidade dia no México, pintou um retrato
racial e cultural, e em ensinar arte. da intérprete Bessie Smith, contri-
Ela esteve envolvida na formação buindo para a representação dos
de importantes projetos políticos afro-americanos proeminentes em
nas artes visuais, foi cofundadora um contexto temporal no qual o
do Sur Side Community Art Center racismo prevalecia de forma ampla
(1939), que incluía uma galeria e e sem críticas.

margaret taylor goss burroughs


Bessie Smith, Queen of the Blues, 1953
Bessie Smith, rainha do blues. Litografia, 46,5 × 40 cm

288
289
Em relação à participação do Trabalhadores Latino-Americanos. Essas obras – pioneiras na confor-
artista mexicano Leopoldo Méndez A produção artística de Méndez mação de outras subjetividades
(1902-1969), considerado um dos tomou forma quando ele se ligou – longe de operarem em um nível
mais importantes gravuristas ao movimento estridentismo, e exclusivamente retiniano, contri-
mexicanos, uma perspectiva social seu trabalho promoveu ideais de buíram para a inserção de outros
e coletiva se refletia nas produções esquerda e pós-revolucionários sujeitos de representação conti-
que realizou para várias organiza- que lhe possibilitaram gerar um nuamente insultados na tradição da
ções, como a Liga de Escritores amplo vocabulário visual ligado à representação artística ou, alterna-
e Artistas Revolucionários, o história sociopolítica do México, tivamente, realocando-os e enqua-
Partido Comunista Mexicano, além de criticar e denunciar a drando-os de forma digna e em
o Partido Socialista Popular do violência promovida por projetos outra ordem estético-político-sim-
México e a Confederação dos fascistas europeus. bólica, que hoje pode ser lida de
uma perspectiva proto-decolonial.

A validade da TGP – em um pre-


sente em que se disputam direitos,
novos surtos de violência existem e
no qual a produção artística pode
atravessar a encruzilhada arte/
política por meio das artes gráficas
– demanda não apenas reflexão,
mas também que sustentemos de
modo permanente pontos de vista,
representações e enquadramentos
que incitam uma leitura crítica a
partir do e no presente.

getsemaní guevara e sol henaro

traduzido do espanhol por


ana laura borro

leopoldo méndez
Fusilado (para la película Un día de vida), 1950
Fuzilado (para o filme Um dia de vida). Linoleogravura
sobre papel, 47,7 × 58,8 cm
taller nn Impressa em Lima, em 1988, Carpeta e os corpos anônimos do massa-
negra [Pasta negra], do coletivo cre, são marcadas pelo capital, que
Taller NN, foi, na época de sua publi- inscreve seus signos nelas – o código
cação, um dispositivo visual e textual de barras, o logotipo –, talvez como
insuportável tanto para a cultura uma senha para o antigo nó entre
oficial como para a cultura peruana capital e colonialidade, que precede
de esquerda. Suas folhas ousavam e excede a cronologia do trabalho.
tocar o intocável, manchando com Carpeta negra constrói um dis-
uma maquiagem cromática mons- positivo móvel de memória parcial
truosamente sedutora os rostos e precária dos anos que fizeram
míticos da revolução de um amplo do Peru um depósito de horror a
espectro da esquerda, de Mao céu aberto, atuando como chave
Tsé-tung a José Carlos Mariátegui, para a nova fase de acumulação
de José María Arguedas a Edith de capital em escala global. Mas, a
Lagos ou Che Guevara. Nelas estava partir da audácia de sua ironia anti-
impresso um código de barras, com dogmática, sem um Estado ou um
o enigmático número 424242 (em partido como interlocutor, o Taller
referência ao número de telefone NN gerou um dispositivo capaz de
para o qual a população era incenti- construir uma inter-relação com
vada a ligar a fim de fazer denúncias o tempo, em todos os tempos. O
anônimas de pessoas suspeitas de que acontece quando essas ima-
terrorismo). A imagem do estudante gens olham para trás e entram em
Javier Arrasco Catpo, morto pela contato com o período anterior da
guarda civil durante um protesto em Reforma Agrária (1969-1975)? Ou
1988, é o ponto de virada para outro que imagem Carpeta negra devolve
conjunto de imagens, que mostram ao Peru hoje, nas revoltas que
diferentes massacres – Guragay, eclodiram de forma descentralizada
El Sexto, Pucayacu, Uchuraccay em meio à população principal-
e El Frontón –, e a palavra “Peru” é mente indígena e camponesa em
sobreposta a elas como uma marca- dezembro de 2022, e que mais uma
-país. Imagens de valas comuns ou vez mostram uma ferida colonial,
de corpos de jornalistas em sacos de impossível de suturar?
lixo, extraídas do circuito aneste-
siado dos meios de comunicação de fernanda carvajal
massa, também são coloridas como
uma forma de lhes devolver a capa- traduzido do espanhol por
cidade de gritar. Ambas as séries, os ana laura borro
rostos individualizados da revolução

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NN Perú (Carpeta negra), 1988
NN Peru (Pasta negra). Serigrafia e fotocópia sobre papel, 43 × 30 cm
tejal shah

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Between the Waves [Entre as ondas] entre si e com o entorno produzem trai-se um elemento central dos
(2012), instalação de Tejal Shah, excitante estranheza. A sensuali- discursos modernos e universalizan-
evoca paisagens que parecem ser dade rege o contato entre os corpos tes: o sujeito que produz a si mesmo
simultaneamente extraterrestres – sejam eles vegetais, animais ou como humano pela separação, clas-
e demasiado terrenas. É possível minerais, materiais brutos ou manu- sificação e consequente posse das
reconhecer o deserto, a varanda, o faturados –, assim como a forma coisas do mundo. Nessa obra, tudo é
mangue, a cidade, o aterro sanitário, como são retratados: detalhada- tocado e retratado como superfície
o mar ou a piscina como locações mente. Cores, texturas e sons desse sensível, excitável, inseparável de
corriqueiras, lugares comuns do universo igualmente cru e imaginado todo o restante.
planeta. Ao mesmo tempo, a indu- não são diferenciados ou organiza- Os ornamentos de cabeça
mentária das performers e o tipo dos por hierarquias taxonômicas. destacam-se pelo contraste da cor
de relação que elas estabelecem Nessa horizontalização sensorial, branca e pela verticalidade por
meio da qual cortam a imagem,
aspecto fálico sem necessária
correspondência genital. Apesar de
assumirem uma função penetrativa
nas cenas mais explícitas, também
passam por chifre, nadadeira, funil
ou cone, conferindo uma espécie
de animalidade e objetualidade aos
corpos em movimento. Além dessas
próteses contrassexuais,1 há outro
elemento cuja carga simbólica e
performativa vale a pena notar: o
arranjo de flores artificiais, espon-
jas de banho e outros objetos colo-
ridos cuidadosamente depositado
no fundo de uma piscina, na qual
as performers nadam ao redor dele,
como peixes em volta de corais
marinhos. Não há contradição entre
natureza e artifício, há apenas bri-
lho e beleza, e, entre as ondas, os
corpos orbitam seu entorno.

miro spinelli

_
1/ Sobre as noções de contrassexualidade e
prótese, ver Paul B. Preciado, Manifesto contras-
sexual. São Paulo: n-1, 2014. Nesse livro, o autor
lembra que o falo não é uma substituição do
pênis, mas o contrário, e que o pênis, por sua
vez, não passa de um dildo de carne.

Between the Waves, 2012


Entre as ondas. Stills do vídeo. Videoinstalação em 5 canais. Cor & preto e
branco, som multicanal; 85’25’’
the living and A espiral é a imagem que abre coletivo, criar é uma questão de
the dead ensemble Ouvertures (2019), primeiro filme percorrer, deslocar − Haiti-França,
do coletivo transnacional The floresta-praia, passado-futuro,
Living and The Dead Ensemble revolução-crise. Poesia, perfor-
[algo como Conjunto dos Vivos e mance, cinema, música e teatro
dos Mortos]. A imagem é a síntese mesclam-se com intensidades
do que move o processo de cria- variadas e indistintas − como em
ção do grupo: uma linha sinuosa The Wake [A vigília] (2019 - em
em contínuo movimento de apro- curso), o segundo trabalho do
ximação/afastamento, de dentro/ grupo, que é a um só tempo ins-
para fora, sem começo ou fim. talação multicanal, peça, filme e
Nos filmes e nas instalações desse manifesto preto radical.

The Wake, 2021


A vigília. Stills do vídeo. Videoinstalação em 3 canais,
full HD, cor, som; 35’

294
295
A espiral dá forma ao processo do grupo anuncia. Frankétienne, em sons que são ecoados pelos
criativo que se constrói em ato, Toussaint Louverture, Édouard integrantes do grupo que estão
em encarnação e em evocação Glissant, Patrick Chamoiseau e sobre um palco. Nesse amálgama
dos fantasmas − tornando visível tantos outros artistas/intelectuais/ proposto pelas criações, raps,
e vivo aqueles e aquilo que jamais revolucionários confabulam na pro- discursos, narrativas de revoltas
deixaram de estar ali. Assim, ao posição de uma imaginação caribe- pretas, forma-se um coro caco-
ritmo do créole, poetas e revolucio- nha utópica, urgente e atemporal. fônico no qual a materialidade
nários de diferentes épocas encon- Nessa sinuosidade, as vozes − caótica de sons e de histórias é
tram-se e conversam por meio de dos fantasmas, dos revolucionários intrínseca aos sentidos das obras.
processos de fabulação e ativação. e dos integrantes do coletivo − E o fogo (elemento recorrente des-
A fala dilui as fronteiras entre os sobrepõem-se em imagens multi- sas produções) arde nas noites em
mortos e os vivos − como o nome plicadas em telas simultâneas ou que se sonham e se lembram das
revoluções. As chamas destroem e
transformam − também em movi-
mento contínuo. Seguindo esse
deslocamento por entre (mundos,
tempos, países), a música e a dança
performada pelos integrantes do
coletivo convocam o corpo tam-
bém a queimar, e convidam a quem
assiste a vislumbrar na carne das
obras utopias (im)possíveis.

kênia freitas
torkwase dyson Ao ser perguntado, na edição de tal sistema. [...] A liberdade é uma
março de 1982 da revista de arqui- prática... a liberdade é o que se deve
tetura Skyline, se “há algum projeto exercer”.1 No entanto, o exercício da
arquitetônico, passado ou presente, liberdade compreendido em relação
que lhe pareça representar forças de ao espaço, ao tempo e ao ser leva ao
libertação ou resistência”, o teórico entendimento de que a libertação é
francês Michel Foucault respon- uma prática espacial. Fundamental
deu: “não importa quão terrível para essa compreensão é o ques-
determinado sistema seja, sempre tionamento acerca das condições
restam possibilidades de resistên- locais e das relações entre poder e
cia, desobediência e de constitui- espaço, corpo e autonomia, subjeti-
ção de grupos que se oponham a vidade e percepção.

Liquid a Place, 2021


Líquido um lugar. Aço, latão pintado, espelho e grafite,
3 peças, 243,8 × 365,8 × 121,9 cm (cada)

296
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A construção da perspectiva existe no infinito. Compreender lar de pessoas Negras nos porões de
europeia baseia-se em um sujeito a prática espacial da libertação tumbeiros? Nos espaços autoeman-
sob o disfarce do “homem” ideal desafia a noção de universalismo cipatórios do sotão ou do caixote?2
vitruviano, cujos olhos são a ori- e do sujeito ideal cujo olhar vigia, Ou sob a arquitetura medieval de
gem de uma linha ao longo do objetifica e busca subsumir o castelos e fortes escravagistas?
centro de visão, que designa todo o mundo à epistemologia e ao colo- Ou sob as condições do capitalismo
conhecimento a ser compreendido. nialismo europeus. racial, da escravidão, do imperia-
Além disso, a pintura e o desenho Em seu trabalho que aborda a lismo, da colonização e de todas as
em perspectiva posicionam esse construção espacial arquitetônica do formas de terror, invasão e clausura?
homem ideal num mirante com pensamento composicional Negro, Na obra On Ocular Brutality
um ângulo de visão de 60 graus a artista Torkwase Dyson levanta as [Sobre brutalidade ocular] (2023),
para uma linha do horizonte que questões: Qual foi a experiência ocu- em referência específica ao Castelo
Garcia d’Ávila/Forte Garcia d’Ávila,
em Mata de São João, Bahia, Dyson
questiona: “Como olhar se tornou
algo extraordinário?” Nesse castelo
do século XVI, com vistas para o
oceano Atlântico e para os engenhos
coloniais de cana-de-açúcar onde
povos indígenas eram escravizados,
e que abrigava uma câmara dupla de
tortura, onde pessoas que tentavam
fugir da escravização eram presas e
submetidas ao terror e à morte por
um animal capturado e submetido
a um longo período de inanição
forçada, Dyson investiga o trabalho
ocular de corpos ocultados, obscu-
recidos, encobertos ou irrastreáveis.
As esculturas da artista constituem
instrumentos para novas – e ainda
desconhecidas – formas de ver e
são ferramentas para refletir sobre
o “estado de vida” das pessoas que
morreram em cativeiro.

mario gooden

traduzido do inglês por


bruna barros e jess oliveira

_
1/ Tradução nossa. Texto completo com tradu-
ção de Pedro Levi Bismarck disponível em www.
revistapunkto.com/2015/04/espaco-saber-e-
-poder-michel-foucault_88.html. Acesso em jul.
2023. [n.t.]

2/ Ver, por exemplo a autobiografia de Harriet


Ann Jacobs e de outras pessoas escravizadas,
como o caso de Henry Box Brown, que se
libertou da escravização organizando o envio
de si mesmo em uma caixa de madeira para a
Filadélfia, no estado abolicionista da Pensilvâ-
nia. [n.t.]

Force Multiplier 1 (Bird and Lava), 2020 Force Multiplier 2 (Bird and Lava), 2020
Multiplicador de forças 1 (Pássaro e lava). Multiplicador de forças 2 (Pássaro e lava).
Grafite, acrílica e nanquim sobre papel, Grafite, acrílica e nanquim sobre papel,
27,9 × 35,6 cm 27,9 × 35,6 cm
trinh t. minh-ha Partir do pressuposto mais elemen- pologia, da pós-colonialidade, da
tar do filme – o olhar – rumo ao música e da teoria literária, áreas
desconhecido, até às últimas con- nas quais vem produzindo intensa-
sequências, até chegar novamente mente desde os anos 1980.
ao olhar. Questionado, expandido, O olhar em xeque: o fazer
recortado, revirado, esse ato-motor fílmico, a observação do outro,
a todo momento pulsa na obra de as regiões intersticiais que nos
Trinh T. Minh-ha, obra que escorre constituem enquanto indivíduos e
– como a água de Surname Viet grupos. “O que eu vejo é a vida me
Given Name Nam [Sobrenome Viet olhando”, diz a voz off de Minh-ha
primeiro nome Nam] (1989) – pelos em Reassemblage [Remontagem]
caminhos do cinema, da antro- (1982), filme-ensaio que contesta

298
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a visão de uma etnografia fundada acordo com os escritos teóricos são os interesses e culturas que
na objetividade científica e na da própria Minh-ha). Assim, algu- movem a artista: Senegal, China,
ansiedade do registro totalizante mas questões se retroalimentam a música experimental do grupo
do real. Essa contestação é mate- sem cessar: Quem está olhando? The Construction of Ruins, Japão,
rializada sobretudo na forma, na Quem está olhando quem ou o quê? Togo, Vietnã… Também montanhas
linguagem, na artesania de quem, Quem está olhando de volta? Quem e desertos (The Desert Is Watching
ao invés de pensar no binômio vai olhar quem estava olhando de [O deserto está assistindo], 2003,
“forma-conteúdo”, produz tendo em volta para quem estava olhando? E e Bodies of the Desert [Corpos do
conta tudo o que escapa ao con- a espiral pode seguir dando vol- deserto], 2005), onde os transportes
trole quando se considera a política tas indefinidamente. e percursos do olhar refletem sobre
das “formas e forças” resistentes à Tão dinâmicos e complexos a fugaz estadia humana no contexto
lógica unificadora dos gêneros (de quanto as abstrações de forma-força geológico deste planeta cujo ritmo
e dança – através do entrelugar
fundado por Minh-ha – já não nos
permitem nenhuma contempla-
ção desinteressada.

igor de albuquerque

Bodies of the Desert, 2005


Corpos do deserto. Vídeo; 20’
ubirajara ferreira braga “o artista plástico mais profícuo da
colônia”: quase 3 mil telas pintadas.

Autorretrato, 1987
Guache sobre papel, 66,5 × 50 cm

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301
dos quase sessenta anos até quase ciente” da colônia (psi-qui-á-tri-ca) lação externa das obras feitas
morrer, no ano 2000 (quando o do Juquery. pelos moradores.
milênio não bugou, diferentemente e os arquivos públicos que a um outro tipo de história, con-
da psiquê), Ubirajara Ferreira www guarda contam que ele foi, tada à boca-menor dos que lutam
Braga (1928-2000) pintou milhares também, por um período breve, por justiça, chama também aquela
de quadros. traficante de suas próprias obras – cidade de “a cidade dos mortos”:
e imprimiu também um cartão naquele outro tipo de morada que 50 milhares.
de visitas, no qual orgulhosa- era mesmo um manicômio, que pois foi na rocha franca sobre
mente expunha sua profissão: entrou pra história como a “cidade a qual essa cidade ambígua, dos
“artista plástico”. diz um filme que dos loucos”, construída na cidade loucos, dos mortos, se ergueu, que
sua ficha diagnóstica o pintava de franco da rocha, e que tinha Ubirajara Ferreira Braga, de prenome
como um “morador calmo, cons- regras pétreas quanto à circu- tupi, cujo significado O Senhor da
Lança revela tanto de sua história,
pintou seus quase 3 mil quadros.
nessas voltas etimogeográficas,
reside alguma coisa ali entre Ogum,
o ferreiro (como o sobrenome do
pintor; Deus da forja, das tecno-
logias de sobrevivência), o Xangô
da verdade, que é um tipo – sem-
pre – de justiça (e da pedreira,
como a que abrigava a cidade da
cidade dos loucos), e, é claro – aqui
era onde essas palavras queriam
chegar, desde o início – o Oxóssi:
caçador, lançador, enlouquecido,
enlouquecedor. morador da mata.
tem uma lenda que diz que foi
por enlouquecer (de amor?) que
Oxóssi foi parar no meio da mata,
querendo apartar-se do mundo. só
sua filha amada, Iansã, dançou sua
morte, por muitas noites e dias,
permitindo assim que seu espírito
chegasse ao Orum, um outro tipo
de céu. um outro tipo de morada.
talvez calma. onde talvez Ubirajara
agora resida. sem tanto vermelho,
como vi nas obras que pintava den-
tro das paredes do Juquery.

tatiana nascimento

Artistas-pacientes, 1987
Guache sobre papel, 66,5 × 50 cm
ventura profana É fim de tarde em um domingo enso- vem aqui, rápido! O que é isso? Está
larado. Em um bairro residencial, voando?” Aos poucos, todos come-
crianças brincam na calçada, algu- çam a olhar na direção indicada.
mas com bola, outras de corda, algu- Cegos por um brilho irradiante,
mas em casa no celular. Há homens veem se aproximar uma figura muito
e mulheres na frente das casas, bonita, brilhante e dourada, res-
conversando e olhando suas crias, plandecente como o Sol, deslizando
filhas, sobrinhas. Em uma das casas sobre brumas em direção ao chão.
há música enquanto o churrasco Ao se aproximar, a criança pergunta:
começa a beirar o início da noite. Em “Você é Deus?”, e a resposta é clara:
certo momento, uma criança aponta “Podem me chamar de Deize, tenho
para o céu e anuncia: “Mãe, pai, algo a dizer a vocês”.1

RESPLANDECENTE, 2019
Videoclipe; 5’20’’

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Ventura Profana é uma artista com a artista se refere são as travestili- patórias. Em outras palavras, sua
práticas diversas, profeta gloriosa, dades, guardiãs das fontes da vida, produção elabora modos de episte-
pastora em sua função divinal. Ao das florestas e dos mangues, aque- mologia crítica aos sistemas de ver-
produzir músicas, videoclipes, cola- las que se fazem vivas em meio dades e crenças conservadoras e
gens digitais, instalações e foto- ao mar Morto, que são como os coloniais. Para isso, Profana realiza
grafias, cria visualidades e perfor- montes de Sião que não se abalam, inversões e inserções nos recursos
mances de vida que edificam novos guardiãs de ecossistemas e da vida linguísticos, visuais e performáti-
imaginários sobre religião e fé. sagrada. Em seu trabalho é possível cos neopentecostais herdados do
Nesses imaginários, as existências reconhecer as corporalidades dissi- contexto familiar. Entre algumas
que fogem aos controles tradicio- dentes como ponto de torção entre de suas intervenções na ordem
nais de gênero e de sexualidade são uma tradição inflexível e a criação do discurso, ao substituir Senhor
possíveis. As existências às quais de outras perspectivas emanci- pela travesti, a artista coloca esse
modo de existência como elemento
central e disruptivo do pensamento
tradicional, elaborando um discurso
sem Senhor, tecendo tanto uma
crítica aos dogmas neopentecos-
tais, quanto antipatriarcal, quanto
antimilitarista. Assim, é possível
reconhecer que a produção de
Ventura Profana clama por vida em
abundância, ela mesma o corpo
missionário que profetiza e louva
por saúde, amor e liberdade para
todas as travestis. No limite, sua
produção artística amplia a percep-
ção de que, ao fundar um mundo
no qual a vida travesti é possível,
todas as vidas serão possíveis,
imersas em poder e glória.

maria luiza meneses

_
1/ Fabulação da autora sobre como poderia
ser a descida de Deize à Terra, com base em
referências visuais da artista. [n.e.]

CONCÍLIO DAS LAMENTAÇÕES, 2020


Impressão pigmentada sobre Photo Matt Fibre 200g,
140 × 100 cm
wifredo lam O artista cubano Wifredo Lam de meio mulher, meio cavalo, que
(1902-1982) realizou as ilustrações se tornou sua célebre femme-che-
para a obra Fata Morgana (1941),1 val interespécie, observada em
do escritor francês André Breton, Mujer sentada [Mulher sentada]
em um contexto de exílio político (1949). Em sua obra, Lam dá ênfase
e de uma iminente jornada tran- à cultura negra por meio de uma
satlântica. Os desenhos incluem o sinédoque visual com a santería
repertório visual característico que (também conhecida como Regla
ele desenvolveu em obras poste- de Ocha e Lucumí), religião afro-
riores: criaturas dotadas de chifres, -diaspórica amplamente assentada
cabeças em formato quadrado, luas em crenças e tradições iorubás,
crescentes com olhos e a figura temperada com certos aspec-

Le Matin vert, 1943


A manhã verde. Óleo sobre papel montado
em tela, 186,7 × 123,8 cm

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tos do catolicismo. Títulos como jornada do artista em seu retorno do uso do material, como a tinta
Le Sombre Malembo, Dieu du car- a Cuba. É chave para essa obra o diluída em Omni Obini (1943) e seu
refour [Malembo sombrio, Deus das modo como ele decoloniza códi- aspecto de aquarela, que intensifica
encruzilhadas] (1943) identificam gos representacionais, com figuras o deslocamento intencional da cor
Malebo, centro de comércio de híbridas que deslocam as distinções – azuis e verdes, com passagens
escravizados na África Ocidental, e entre homem/mulher, humano/ani- de vermelhos, laranjas e amarelos
Eleguá, um orixá ou deidade iorubá mal, animal/planta e que desafiam – para animar as relações entre ele-
que é o guardião das encruzilha- sistemas de classificação ocidentais mentos de seus mundos pictóricos.
das, representado por Lam com e divisões ontológicas. Ao fazer isso, Lam utiliza a força
chifres e olhos redondos. Aqui, as Lam também dá corpo a esses vital dos orixás, seu aché,2 como
encruzilhadas podem se referir à deslocamentos em transmutações método decolonial que flui através
Passagem do Meio, assim como à pictóricas que operam no nível do humano, do animal e do vegetal,
e que ele traduz visualmente não
só em seres híbridos, mas também
por meio de seu entrelaçamento
com o entorno e da interpenetração
de figura e fundo. Seu deliberado
emaranhado de oposições também
sugere como diferentes entidades
podem se interligar em modos não
hierárquicos para serem recipro-
camente transformadas. No centro
do que chamo de modernismo aché
de Lam se encontra, portanto, a
natureza cambiante da identidade
e da corporificação, por meio da
qual cruzamentos ontológicos e
aberturas relacionais chamam
a atenção para a vivacidade das
relações entre os mundos material
e imaterial.

kaira cabañas

traduzido do inglês por gabriel


bogossian

_
1/ A edição apresentada na 35a Bienal é a
seguinte: André Breton, Fata Morgana. Ilustrada
por Wifredo Lam. Buenos Aires: Éditions des
Lettres Françaises, 1942.

2/ Este termo, no contexto da santería cubana,


é o equivalente ao axé, associado às religiões
afro-brasileiras, sendo ambos derivados do
termo iorubá àṣẹ, ou axę.

Omi Obini, 1943 esta participação é apoiada por: Institut


Óleo sobre tela, 178 × 126 cm français.
will rawls A prática artística do coreógrafo, rearranjar, arranjar de outro jeito,
dançarino, escritor e professor numa coreografia aberta e em
Will Rawls investiga as poéticas construção. PELE é a versão para
negras, se interessa pelos limites e o público da Bienal de São Paulo
encontros da dança com a lingua- da performance Uncle Rebus [Tio
gem, explora as ambiguidades, Rebus], realizada anteriormente
questiona as noções de poder em outros espaços.
e forma. A própria dinâmica da perfor-
Mexer o corpo, dançar com mance convida os espectadores a
letras, (des)construir e jogar com ler as palavras formadas, as quais
palavras e frases, soletrar em voz se transformam em outras ao longo
alta a letra escolhida, arranjar, da ativação.

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Em Uncle Rebus, o texto que serve histórias são escritas a partir do que um outro texto servirá de base
de base para a ação é o conjunto de o autor interpreta como sendo o para a ativação da obra. Podemos
fábulas Brer Rabbit, narrado pelo dialeto dos negros do Sul na época. esperar a formação de palavras
personagem Uncle Remus e escrito Ao manipularem as letras dispo- tanto conhecidas como inusitadas.
pelo folclorista Joel Chandler níveis, os performers vão ao mesmo O convite é para a abertura e o
Harris, um homem branco do Sul tempo soletrando em voz alta partes reconhecimento de diversos sota-
dos Estados Unidos. Tio Remus é do texto, desestabilizando os diale- ques e acentos, para a formação
uma espécie de identidade compó- tos ficcionalizados pelo autor, explo- coletiva e interativa de palavras que
sita criada com base nas histórias rando os limites da normatividade geram reflexões.
da cultura oral das plantações às linguística e do discurso escrito.
quais Harris teve acesso. Repletas Na versão da performance PELE/
de preconceitos linguísticos, as para a 35ª Bienal de São Paulo, LEPE/
EPLE/
PEL/
PLE/
ELP/
ELE/
EE…

juliana de arruda sampaio

Uncle Rebus, 2018


Tio Rebus. Registro de performance, High Line – 17th Street,
Nova York
xica manicongo esse documento deveria nos pos- posta a essa pergunta é irrelevante.
sibilitar imaginar um rosto, entre- o estrago já foi feito. chegamos
tanto, diante dele nos deparamos tarde demais.
apenas com um túmulo. é a História o que importa, no entanto, é
quem jaz no túmulo. o arquivo da que, passados mais de quatrocen-
história da escravidão transatlântica tos anos, nem sabemos o nome
é a marca de um desaparecimento. desse tal de... mas lembramos
esses documentos não passam, com muito carinho o nome de
portanto, de cinzas. Xica Manicongo. esse nome que é
porque se escolheu preservar o também uma fábula. Manicongo
relato de um colono europeu, y não é uma forma distorcida de dizer
a vida de uma estrela preta? a res- Mwene Kongo, senhor do Congo;

308
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já Xica foi uma forma que dissiden- teria se incomodado com a perfor- o que podemos imaginar diante
tes de gênero, sobretudo pretas, matividade de gênero y sexualidade dessas letras tortas dispostas nesse
utilizaram para resgatá-la de uma radicalmente livres de Xica, denun- papel mofado? uma memória. a
nomeação violenta cujo mundo da ciando-a para a Santa Inquisição. memória de que mesmo o esqueci-
escravidão lhe havia endereçado: Xica defendeu sua recusa, escolheu mento nunca é absoluto. a memória
Francisco. assim, Xica Manicongo é permanecer livre. por fim, para da imprevisibilidade, na qual aquilo
uma forma de fabular a assinatura evitar a morte, decidiu recuar, que deveria ter sido aniquilado
sônica dessa criatura cuja beleza enganar os usurpadores usando suas ressurge de outra maneira num
insondável jamais iremos ouvir. fantasias de homem. teria sido esse outro lugar: Sertransneja, Coletiva
Xica foi trazida forçadamente o primeiro registro de Drag King da Xica Manicongo, Jaqueline Gomes
para Salvador em fins de século 16. história do território invadido cha- de Jesus, Bixarte, Xica a peça, Xica
segundo relatos, um tal de... , um... , mado Brasil? Manicongo... a memória da risada
aberta, do gingado sereno, da
força bruta y da coragem indomá-
vel, dessa que hoje chamamos de
Xica Manicongo.
as cinzas são usadas há muito
em África y Abya Yala como um
componente de fertilização dos
solos. aí, então, somos convocadas
a imaginar, diante desse túmulo,
novos frutos selvagens da diáspora
de África no Brasil que rebentam
y rebolam uma outra forma de
escrever para atravessar o Tem/po.

abigail campos leal


yto barrada Yto Barrada leva o jogo a sério.
Para essa eterna aprendiz, o jogo é
uma poderosa ferramenta edu-
cacional que apela tanto para os
sentidos quanto para o intelecto.
Por exemplo, Land and Water
Forms [Formas da terra e da água]
(2019), uma série de trabalhos de
acrílica e gesso sobre papelão,
revela uma gramática de formas
naturais adaptada de bandejas de
moldes Montessori. Por outro lado,

310
311
o jogo educacional é um quadro locução, sonoplastia e brinquedos questões sérias são mais bem
ideal para experimentação artís- Montessori animados. abordadas com humor. Veja a
tica – a alegria de criar e quebrar Historiadora de formação, leveza dos trocadilhos em seus
regras. O vídeo Tree Identification Barrada se interessa pelas inúme- cartazes (“Não sou exótica, estou
for Beginners [Identificação de ras maneiras pelas quais eventos exausta”; “Sheik Spear é árabe”...)
árvores para iniciantes] (2017) históricos e o tecido social se ou o texto satírico “Uma modesta
narra a história da primeira viagem constituem mutuamente. Como proposta para modernizar o
da mãe da artista para os Estados artista, ela está sempre buscando Marrocos e maximizar seus recur-
Unidos – e histórias maiores da formas que possam traduzir a sos e eficiência” (2010), atribuído
Guerra Fria e de ativismo pelos complexidade dessas relações. a um personagem fictício cujo
direitos civis – através de uma A política permeia seu trabalho, nome, Yahia Sari, é uma adaptação
montagem cativante e hilária de mas sempre obliquamente, pois árabe de Jonathan Swift.
Muitos personagens reais tam-
bém vieram povoar seus traba-
lhos fotográficos e videográficos
ao longo dos anos. The Sleepers
[Os adormecidos] (2006), The
Smuggler [O traficante] (2006) e
The Magician [O mágico] (2003)
são belos marginais que encontram
maneiras criativas de resistir ao
domínio neoliberal. Além disso,
alguns personagens históricos se
repetem; o maior deles é Hubert
Lyautey, o primeiro Residente Geral
francês no Marrocos (1912-1925),
um colonizador brutal admirado por
alguns por sua introdução do urba-
nismo modernista e sua (seletiva)
preservação de tradições artesanais
locais. Além do afeto superficial,
Barrada expõe a figura de Lyautey,
jogando com suas citações muito
conhecidas e o famoso bigode em
cartazes e colagens, ou oferecendo
seu nome como uma brincadeira de
(des)construção nas várias versões
de seu Lyautey Unit Blocks. Nesta,
como na maior parte de sua obra,
política e jogo, seriedade e irreve-
rência, caminham juntos.

omar berrada

traduzido do inglês por


mariana nacif mendes

Sem título (Blocos de unidades de Casablanca – com Bettina), 2023


Modelo para obra comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo para 35a Bienal
zumví arquivo O que significa constituir um
afro fotográfico arquivo fotográfico da vida afro-
-brasileira, através dela e para ela?
O Zumví Arquivo Afro Fotográfico é
a resposta mais próxima que temos
para essa pergunta. Fundado em
1990 por Lázaro Roberto, Ademar
Marques e Raimundo Monteiro,
e fisicamente instalado entre o
Pelourinho e a Fazenda Grande, em
Salvador, Bahia, Zumví abriga 30
mil fotografias (além de documen-

Desfile de Carnaval do bloco afro Olodum, com Protesto da Irmandade do Rosário dos Pretos no
o tema “Os tesouros de Tutancâmon”, largo do Largo do Pelourinho, durante as comemorações da
Pelourinho, Salvador, BA, 1993 Independência da Bahia, dia 2 de julho, 2012
Ampliação digital de fotografia analógica, 70 × 105 cm Ampliação digital de fotografia analógica, 80 × 120 cm
312
313
tos pessoais, cartazes, cartões-pos- nas últimas décadas do século 20. da finalidade do arquivo é imedia-
tais e documentos diversos) que Envolvendo várias perspectivas tamente legível em seu nome: uma
abrangem três décadas. Em sua fotográficas, essas imagens captam contração simultânea de zum-vi
essência, é um arquivo comunitário, a dor e o orgulho, o amor e a insis- (zoom da lente fotográfica e o verbo
que existe sem apoio institucional tente possibilidade incorporada ver no modo pretérito perfeito do
nem burocracia. Seu vasto acervo à negritude. indicativo) e uma invocação a Zumbi,
de imagens combina pontos turísti- De modo geral, Zumví constitui líder do quilombo dos Palmares, uma
cos e rotas de protesto com cenas uma afirmação da existência e da monumental comunidade de quilom-
cotidianas de rua, formando um autonomia afro-brasileiras, articu- bos que resistiu aos portugueses e
espaço visual que revela de modo lada por meio da noção de aquilom- aos holandeses por um século inteiro
preciso como as esferas social e bamento. Mais do que um acúmulo (1595-1695). Por meio dos esfor-
política se desenrolaram na Bahia de representações, a clareza política ços contínuos de Lázaro Roberto
e de seu sobrinho José Carlos, o
espírito de autodeterminação do
Zumví Arquivo Afro Fotográfico
integra a fotografia como um local
de luta sociopolítica, um lugar em
que o trabalho de movimento pode
acontecer. A acadêmica e ativista
sergipana Beatriz Nascimento (1942-
1995) argumenta que “o quilombo é
fundamentalmente uma condição
social, um lugar onde se pratica
a liberdade [...], é a aceitação da
cultura negra”.1 Levando-se a sério
esse seu argumento, o arquivo então
pode ser considerado uma extensão
pictórica dessa condição social.
Zumví é uma passagem fugitiva
tornada fotográfica, um lugar onde
a consciência negra é cultivada na
fixação da imagem e se expande
para além do enquadramento.

oluremi onabanjo

traduzido do inglês por


naia veneranda

_
1/ Beatriz Nascimento, “O conceito de
quilombola e a resistência afro-brasileira.”
Afrodiáspora, n. 6-7, 1985, pp. 41-49.

Autorretrato do fotógrafo Lázaro Roberto, 1980 Roda de capoeira no Dia da Consciência Negra, parque
Ampliação digital de fotografia analógica, 50 × 75 cm São Bartolomeu, Subúrbio Ferroviário, Salvador, BA, 2013
Ampliação digital de fotografia analógica, 70 × 105 cm
performances da oralitura:
corpo, lugar da memória
leda maria martins

“Entre silêncio e som nas já vinham, há tempos, produzindo os seus.


riem tambores e sombras. E assim como os europeus transportaram para
Os meninos criaram memória cá um dilatado e fecundo repertório textual,
antes de criar cabelos." também os africanos, engajados à força no
maior processo migratório de toda a história da
— edimilson de almeida pereira, humanidade, conduziram suas formas verbais
Nós, os Bianos, 1996 criativas ao outro lado do Atlântico. Logo, ao se
voltar pioneiramente para a história do texto
criativo em nossa extensão geográfica, o roman-
“Partir de uma palavra. Partir numa palavra. tismo deveria se defrontar, em tese, com os con-
Texto, lugar do encontro." juntos formados por textos ameríndios e textos
— ruy duarte de carvalho, africanos. Em tese. De fato, não foi bem isto o
Hábito da terra, 1988 que aconteceu. [...] O texto criativo africano foi
ladeado ou ignorado, invariavelmente, naquele
Observando-se o belo programa deste evento,1 nota-se o nosso ambiente. [...] Dito de outro modo, pala-
reiterado uso do significante memória, orquestrado em um vras negras passaram em brancas nuvens.3
de seus lugares de reconhecimento, a escrita. Este texto lhes
é oferecido como um convite para pensarmos a memória em Nessa ordem, o domínio da escrita torna-se metáfora de
um de seus outros ambientes, nos quais também se inscreve, uma ideia quase exclusiva da natureza do conhecimento,
se grafa e se postula: a voz e o corpo, desenhados nos âmbi- centrada no alçamento da visão, impressa no campo ótico
tos das performances da oralidade e das práticas rituais.2 pela percepção da letra. A memória, inscrita como grafia
Na literatura escrita no Brasil predomina a herança pela letra escrita, articula-se assim ao campo e processo
dos arquivos textuais e da tradição retórica europeia. da visão mapeada pelo olhar, apreendido como janela
Mesmo os discursos que se alçaram como fundadores da do conhecimento. Tudo que escapa, pois, à apreensão
nacionalidade literária brasileira, no século 19, tinham na do olhar, princípio privilegiado de cognição, ou que nele
série e na dicção literárias ocidentais sua âncora e base da não se circunscreve, nos é ex-ótico, ou seja, fora de nosso
criação literária. A textualidade dos povos africanos e indí- campo de percepção, distante de nossa ótica de compreen-
genas, seus repertórios narrativos e poéticos, seus domí- são, exilado e alijado de nossa contemplação, de nossos
nios de linguagem e modos de apreender e figurar o real, saberes. E somos férteis em nossos recursos de resguardo
deixados à margem, não ecoaram em nossas letras escritas. dessa memória: os nossos livros, arquivos, bibliotecas,
[Roger] Bastide já isto antes observara. Risério o reitera: monumentos, parques temáticos e, mais recentemente, os
avanços tecnológicos, como hardwares e softwares cada
Quando os europeus principiaram a produzir vez mais sofisticados. Mnemosyne, a musa das lembranças,
textos no território hoje brasileiro, os indíge- certamente com isso se inquieta, pois na narrativa mítica,
todo o saber que se quer reminiscência não pode pres-
cindir de Lesmosyne, o esquecimento, esquecimento este
1/ Palestra proferida na XXXI Semana de Letras — VII Seminário Inter- que se inscreve em toda grafia, em todo traço que, como
nacional de Língua e Literatura promovidos em conjunto pelo curso de
Letras e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa
significante, traz em si mesmo as lacunas e rasuras do pró-
Maria (UFSM) em outubro de 2002.
2/ Texto originalmente publicado na revista Língua e Literatura: Limites e
Fronteiras, Santa Maria (RS), n. 26, pp. 61-81, jun. 2003. 3/ Antônio Risério, Textos e tribos. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 69-70.

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prio saber. Nessa perspectiva o graphen grego é muito mais antropologia. Daí o seu alcance e as possibilidades ímpares
expansivo e inclusivo do que as seculares seleções semân- que nos oferece em termos macroscópicos para pensarmos
ticas, eleitas pelo Ocidente, nos fazem crer, pois os locais os âmbitos das teorias da performance e as adjunções temá-
de memória não se restringem, na própria genealogia do ticas, conceituais e metodológicas que daí derivam. Nesse
termo, à sua face de inscrição alfabética, à escrita. O termo viés, o termo performance se acomoda quer no âmbito, por
nos remete a muitas outras formas e procedimentos de exemplo, do teatro ou das narrativas orais, quanto escapa
inscrição e grafias, dentre elas à que o corpo, como portal a uma colagem sinonímica com os termos representação e
de alteridades, dionisicamente nos remete. encenação já também inflacionados e saturados semanti-
Nos voltejos das etimologias, tentemos uma outra camente. Todas essas práticas, no entanto, ostensivamente
aproximação. Em umas das línguas banto, do Congo, da revelam o que Schechner denomina “estruturas profundas”,
mesma raiz, ntanga, derivam os verbos escrever e dan- que os conectam performaticamente, por modulações ou
çar, que realçam variantes sentidos moventes, que nos qualidades (repetitividade, provisoriedade, incompletude,
remetem a outras fontes possíveis de inscrição, resguardo, transitoriedade, modos de duração e de consignação do
transmissão e transcriação de conhecimento, práticas, pro- espaço etc.), pelas técnicas e procedimentos; pelas relações
cedimentos, ancorados no e pelo corpo, em performance. entre os performers e sua audiência, real ou virtual; pela
Mas o que é performance? inclusão ou exclusão de atividades pré e pós-performance
Pelos vários prismas mesmo de seu uso conceitual que, em muitas práticas, constituem a própria performance;
e metodológico, pelo alcance e quiçá amplitude desmesu- pelos seus efeitos imediatos e/ ou extensivos, em termos
rada, o termo performance, conforme Richard Schechner,4 históricos, culturais e sociais.
é inclusivo, podendo a performance ser abordada tanto Cada uma dessas práticas (o teatro, a dança, o ritual,
quanto um leque (ou ventilador) quanto como uma rede. o esporte, as atividades lúdicas, os jogos, encenações coleti-
Como um leque inclui por aderência modal ritos, perfor- vas, atos artísticos e mesmo expressões pulsionais emotivas)
mances do cotidiano, cenas familiares, atividades lúdicas, são modos subjuntivos, liminares, gêneros performáticos
o teatro, a dança, processos do fazer artístico, assim como, cujas convenções, procedimentos e processos não são ape-
dentre outras práticas, performances de grande magnitude. nas meios de expressão simbólica, mas constituem em si o
No leque, todas essas práticas, com seus modos próprios e que institui a própria performance. Numa performance da
convenções específicas, estão dispostos como ambientes oralidade, por exemplo, o gesto não é apenas uma repre-
não hierarquizados, numa paisagem horizontilínea, pro- sentação mimética de um sentido possível, veiculado pela
cessando-se como um continuum. Pensado como rede, em performance, mas também institui e instaura a própria per-
um outro desenho e visada epistemológica, esse sistema formance. Ou ainda, o gesto não é simplesmente narrativo
organiza-se mais dinamicamente, não mais pelas relações ou descritivo, mas performativo. As práticas performáticas
de disposição no continuum, mas sobretudo pelas intera- não se confundem com a experiência ordinária, são sempre
ções ali processadas. provisórias e inaugurais, mesmo quando se sustentam em
A teoria de Schechner, que abraça e tem por objeto modos e métodos de transmissão profundamente enraiza-
tanto as performances teatrais experimentais (no sentido dos e tradicionais; sempre se apoiam em convenções, estilos
estrito da ação teatral), quanto as cerimônias litúrgicas de e molduras espaciais e temporais, ainda que escorregadias
culturas predominantemente ritualísticas, desenvolve-se na (por exemplo, a constituição e designação do espaço, seja ele
liminaridade mesma das relações entre a prática teatral e a o edifício-teatro, a rua, um beco, a praça pública, a igreja, um
auditório; ou ainda a modulação da duração temporal em
4/ Richard Schechnner. Performance Theory. Revised and expanded edi- horas, dias, anos). Pensar, pois, uma poética da performance
tion. New York and London: Routledge, 1988, p. xii e xiii. 1988, p. xii-xiii. exigiria de nós considerar não apenas o modo, o escopo, o
tamanho e a duração da performance, como também seu É dentre desse amplo espectro epistemológico que venho
deslocamento e “extensão através das fronteiras culturais e atualmente desenvolvendo minhas pesquisas, que têm por
sua penetração nos mais profundos estratos da experiência objeto a performance e as cenas rituais, por meio das quais
humana pessoal e histórica”.5 penso o corpo e a voz como portais de inscrição de sabe-
Esse modo inclusivo de se pensar a performance, res de vária ordem. Minha hipótese é a de que o corpo em
tanto como uma qualidade contingente e um atributo de performance é, não apenas, expressão ou representação de
algumas práticas artísticas e culturais, assim como um uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido,
possível sistema de universais que encontra seus modos e mas principalmente local de inscrição de conhecimento,
convenções particulares culturalmente, não encontra uma conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento,
fácil definição, sendo o termo utilizado por Schechner6 na na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos
acepção de restored behavior conditioned/permeated by play adereços que performativamente o recobrem. Nesse sen-
ou twice-behaved behavior, ou seja, como dupla repetição tido, o que no corpo se repete não se repete apenas como
de uma ação já repetida, repetição provisória, sempre hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição,
sujeita à revisão, sempre passível de reinvenção; repetição recriação, transmissão e revisão da memória do conheci-
que nunca se oferece da mesma maneira, mesmo quando mento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico,
sustentada pela constância da transmissão. tecnológico etc. No âmbito dos rituais afro-brasileiros (e
Explorando a rica arqueologia do termo e as rela- também nos de matrizes indígenas), por exemplo, essa
ções entre performance e memória, corpo e conhecimento, concepção de performance nos permite apreender a com-
Joseph Roach propõe-se pensar as genealogias da perfor- plexa pletora de conhecimentos e de saberes africanos que
mance através de três princípios básicos: imaginação ciné- se restituem e se reinscrevem nas Américas, recriando-se
tica, vórtices de ação (hábitos) e transmissão deslocada: toda uma gnosis e uma episteme diversas. Nessa perspec-
tiva e sentido, como afirma ainda Roach, “as performances
As genealogias da performance apoiam-se na revelam o que os textos escondem”.8 Afinal, como também
concepção dos movimentos expressivos como nos alerta Pierre Nora,9 a memória do conhecimento não
reservas mnemônicas, incluindo movimen- se resguarda apenas nos lugares de memória (lieux de
tos padronizados, rememorados pelo corpo, mémoire), bibliotecas, museus, arquivos, monumentos
movimentos residuais retidos implicitamente oficiais, parques temáticos etc., mas constantemente se
em imagens ou palavras (ou no silêncio entre recria e se transmite pelos ambientes de memória (milieux
elas), movimentos imaginários fabulados de mémoire), ou seja, pelos repertórios orais e corporais,
pela mente, rião anteriores à linguagem, mas gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de trans-
constitutivos da linguagem, um ensaio psíquico missão são meios de criação, passagem, reprodução e de
para ações físicas retiradas do repertório que a preservação dos saberes. As performances rituais, ceri-
cultura provê.7 mônias e festejos, por exemplo, são férteis ambientes de
memória dos vastos repertórios de reservas mnemônicas,
ações cinéticas, padrões, técnicas e procedimentos cultu-
rais residuais recriados, restituídos e expressos no e pelo
5/ Richard Schechner, 1988, op. cit., p. 283.
6/ Idem, 1988, op. cit., p. 95. Cf. Também Richard Schechner, “O que é
performance?”, in Percevejo. Revista de Teatro, Crítica e Estética, ano 11, n. 8/ Ibid., p. 61.
12, 2003, p. 34. 9/ Pierre Nora, “Between Memory and History: Les Lieux de memoire”, in
7/ Joseph Roach, Cities of the Dead: Circum-Atlantic Performance. Nova Geneviève Fabre e Robert O’Meally (ed.), History and Memory in African-A-
York: Columbia University Press, 1996, p. 26. merican Culture. Nova York; Oxford: Oxford University Press,1994.

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corpo. Os ritos transmitem e instituem saberes estéticos, percebido e definido como “poético”. [...] Na
filosóficos e metafísicos, dentre outros, além de procedi- verdade, a expressão “oriki” designa nomes,
mentos, técnicas, quer em sua moldura simbólica, quer epítetos, poemas. Cobre portanto de uma ponta
nos modos de enunciação, nos aparatos e convenções que a outra o espectro da criação oral em plano
esculpem sua performance. poético.10
No âmbito dos rituais afro-brasileiros, a palavra
poética, cantada e vocalizada, ressoa como efeito de uma No oriki-poema, por exemplo, Risério observa a expan-
linguagem pulsional e mimética do corpo, inscrevendo o são de uma célula temática mínima que se desdobra e se
sujeito emissor, que a porta, e o receptor, a quem também expande, “agregando outras unidades que a ela se vincu-
circunscreve, em um determinado circuito de expressão, lam por laços de parentesco linguístico, ou por afinidades
potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e aconteci- sintáticas”; “o giro hiperbólico da palavra”; as imagens
mento performático, a palavra proferida e cantada grafa- “amplas, coruscantes e contundentes”; o insólito das metá-
-se na performance do corpo, portal da sabedoria. Como foras, a nominação encadeada “de uma série de sintagmas
índice de conhecimento, a palavra não se petrifica em que, dispostos em sequência ou justapostos, atualizam
um depósito ou arquivo estático, mas é, essencialmente, um paradigma do excesso”, configurando a fisionomia do
kinesis, movimento dinâmico, e carece de uma escuta objeto recriado; a técnica de encaixes e o jogo de intertex-
atenciosa, pois nos remete a toda uma poiesis da memória tualidades descentradas, aspectos que, em síntese, fazem
performática dos cânticos sagrados e das falas cantadas do oriki uma “fanomelopeia intertextual”.
no contexto dos rituais. O estudo dessa textualidade Na paisagem textual de reminiscência banto,
realça a inscrição da memória africana no Brasil em vários outras formas poéticas não apenas recriam, na ordem dos
domínios: nos feixes de formas poéticas, rítmicas e de enunciados, a memória das diásporas africanas no Brasil,
procedimentos estéticos e cognitivos fundados em outras como também a inscrevem, como responsos, nas técnicas
modulações da experiência criativa; nas técnicas e gêneros e performances de muitos gêneros narrativos, nas treliças
de composição textual; nos métodos e processos de res- da enunciação criativa da palavra e dos jogos poéticos de
guardo e de transmissão do conhecimento; nos atributos e linguagem, transcriando a memória de muitos saberes, de
propriedades instrumentais das performances, nas quais o outras dicções e fraseados, de outras nervuras poéticas,
corpo que dança, vocaliza, performa, grafa, escreve. Dentre assim manifestos e vibrantes nesse belíssimo cântico, per-
esse repertório formal e processual, Antônio Risério des- formado em variados timbres vocais e rítmicos, nos rituais
taca os orikis, forma poética nagô-iorubá, como uma das dos Congados:
muitas artes da palavra transplantadas de África:
Zum, zum zum
O oriki nasce no interior da rica malha de jogos Lá no meio do mar Zum, zum, zum Lá no meio
verbais, de ludi linguae, que se enrama no do mar
cotidiano iorubá. [...] A expansão de uma célula
verbal é fenômeno comum no mundo dos textos. É o canto da sereia
Joles fala de provérbios que se expandem até Que me faz entristecer Parece que ela adivinha
se converterem em longos poemas proverbiais. O que vai acontecer
Coisa semelhante se passaria entre o oriki-
-nome e o oriki-poema, com o nome atributivo
se expandindo verbalmente em direção ideal
à constituição de um corpo sígnico claramente 10/ Antônio Risério, Oriki orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 35.
Ajudai-me, rainha do mar cia, penso que os sobreviventes tentam criar
Ajudai-me, rainha do mar Que manda na terra alternativas satisfatórias.12
Que manda no ar
Ajudai-me, rainha do mar A cultura negra também é, epistemologicamente, o lugar
das encruzilhadas. O tecido cultural brasileiro, por exem-
Zum, zum zum plo, deriva-se dos cruzamentos de diferentes culturas e
Lá no meio do mar Zum, zum, zum sistemas simbólicos, africanos, europeus, indígenas e, mais
Lá no meio do mar recentemente, orientais. Desses processos de cruzamentos
transnacionais, multiétnicos e multilinguísticos, variadas
É o canto da sereia formações vernaculares emergem, algumas vestindo novas
E seus prantos muito mais Naquele mar pro- faces, outras mimetizando, com sutis diferenças, antigos
fundo estilos. Na tentativa de melhor apreender a variedade
Adeus, minas gerais. dinâmica desses processos de trânsito sígnico, interações
e interseções, utilizo-me do termo encruzilhada como uma
Ajudai-me, rainha do mar... clave teórica que nos permite clivar algumas das formas e
(Cântico dos Congados Mineiros) constructos que daí emergem.13 A noção de encruzilhada,
utilizada como operador conceitual, oferece-nos a possibili-
A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla voz, dade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que
e expressa, nos seus modos constitutivos fundacionais, a emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se
disjunção entre o que o sistema social pressupunha que os confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente,
sujeitos deviam dizer e fazer e o que, por inúmeras práticas, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princí-
realmente diziam e faziam. Nessa operação de equilíbrio pios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim.
assimétrico, o deslocamento, a metamorfose e o recobri- Na concepção filosófica nagô/iorubá, assim como
mento são alguns dos princípios e táticas básicos operado- na cosmovisão de mundo das culturas banto, a encruzi-
res da formação cultural afro-americana, que o estudo das lhada é o lugar sagrado das intermediações entre sistemas
práticas performáticas reiteram e revelam. Nas Américas, e instâncias de conhecimento diversos, sendo frequente-
as artes, ofícios e saberes africanos revestem-se de novos e mente traduzida por um cosmograma que aponta para o
engenhosos formatos. Como afirma Soyinka,11 sob condições movimento circular do cosmos e do espírito humano que
adversas as formas culturais se transformam para garantir a gravitam na circunferência de suas linhas de interseção.14
sua sobrevivência. Ou como argumenta Roach: Da esfera do rito e, portanto, da performance, a encruzi-
lhada é lugar radial de centramento e descentramento,
Na vida de uma comunidade, o processo de interseções e desvios, texto e traduções, confluências e
substituição não começa ou termina, mas, sim, alterações, influências e divergências, fusões e rupturas,
continua quando lacunas reais ou pressentidas multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade,
ocorrem na rede de relações que constitui o
tecido social. Nas cavidades criadas pelas perdas,
12/ Joseph Roach, 1996, op. cit., p. 2.
seja pela morte, seja por outras formas de vacân-
13/ Leda Maria Martins, A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.
14/ Cf. Robert Farris Thompson, Flash of the Spirit, African and African:
11/ Wole Soyinka, “Theatre in African Traditional Cultures: Survival American Art and Philosophy. Nova York: Vintage Books, 1984; Leda Maria
Patterns”, in Michael Huxley e Noel Witts (ed.). The Twentieth-Century Martins, Afrografias da memória, o reinado do rosário no Jatobá. São Paulo;
Performance Reader. Londres: Routledge, 1996, p. 342. Belo Horizonte: Perspectiva; Mazza, 1997.

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origem e disseminação. Operadora de linguagens e de dis- concepções estéticas e na própria cosmovisão que os ins-
cursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz tauram. Performados por meio de uma estrutura simbólica
de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos e litúrgica complexa, os ritos incluem a participação de
plurais. Nessa concepção de encruzilhada discursiva grupos distintos, denominados guardas, e a instalação de
destaca-se, ainda, a natureza cinética e deslizante dessa um Império negro, no contexto do qual autos e danças
instância enunciativa e dos saberes ali instituídos.15 dramáticas, coroação de reis e rainhas, embaixadas, atos
No âmbito da encruzilhada, a própria noção de cen- litúrgicos, cerimoniais e cênicos, criam uma performance
tro se dissemina, na medida em que se desloca, ou melhor, é mitopoética que reinterpreta as travessias dos negros da
deslocada pela improvisação. Assim como o jazzista retece África às Américas. Relatos de viajantes e outros registros
os ritmos seculares, transcriando-os dialeticamente numa orais e escritos mapeiam sua existência desde o século
relação dinâmica, retrospectiva e prospectiva, as culturas 17, em Recife, e sua disseminação por outras regiões
negras, em seus variados modos de asserção, fundam-se do território brasileiro, em muitos casos vinculados às
dialogicamente, em relação aos arquivos e repertórios das Irmandades dos Pretos.
tradições africanas, europeias e indígenas, nos voltejos das Em sua estrutura, os festejos dos Congados são
linguagens, nos ritos e em muitas outras práticas performá- ritos de aflição e religação fundados por um enredo cosmo-
ticas que instauram. Nesse ambiente de reminiscências, os gônico que se desenvolve através de elaborada estrutura
Congados e Reinados negros, por exemplo, merecem uma simbólica; um teatro do sagrado, cuja performance festiva
especial atenção. Para além de todo um aparato representa- nos remete ao cenário do ritual, concebido por Turner17
cional do sagrado que as cerimônias litúrgicas dos Congados como uma orquestração de ações, objetos simbólicos e
restauram (por mim já revisitados no livro Afrografias da códigos sensoriais, visuais, auditivos, cinéticos, olfativos,
memória: o reinado do rosário no Jatobá),16 há que se enfa- gustativos, repletos de música e de dança. Como tal, por-
tizar nas performances dos Congados toda uma plêiade de tam valores estéticos e cognitivos, transcriados por meio
procedimentos mnemônicos e de técnicas estilísticas por de estratégias de ocultamento e visibilidade, procedimen-
meio das quais alguns dos mais caros princípios filosóficos tos e técnicas de expressão que, cinética e dinamicamente,
africanos são reprocessados e inscritos na formação etno- modificam, ampliam e recriam os códigos culturais entre-
-cultural brasileira, como veículos de civilização, verdadei- cruzados na performance e no âmbito do rito, em cujo
ros, dentre eles os princípios da ancestralidade, ou seja, de contexto a realidade cotidiana, por mais opressiva que seja,
celebração dos antepassados e o de uma concepção alterna e é substituída e alterada, na ordem simbólica e mesmo na
alternativa do tempo. série histórico-social.
Os Congados, ou Reinados, são um sistema reli- Todos os atos rituais emergem de uma narrativa de
gioso alterno que se institui no âmbito mesmo da encruzi- origem, que narra a retirada da imagem de N. S. do Rosário
lhada entre os sistemas religiosos cristãos e os africanos, das águas. O resumo de uma das versões conta-nos que
de origem banto, através do qual a devoção a certos santos na época da escravidão uma imagem de Nossa Senhora do
católicos, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Rosário apareceu no mar. Os escravizados viram a santa nas
Ifigênia e Nossa Senhora das Mercês, processa-se por meio águas, com uma coroa cujo brilho ofuscava o sol. Eles cha-
de performances rituais de estilo africano, em sua simbolo- maram o senhor da fazenda e lhe pediram que os deixasse
gia metafísica, convenções, coreografias, estrutura, valores, retirar a senhora das águas. O fazendeiro não permitiu, mas
lhes ordenou que construíssem uma capela para ela e a

15/ Leda Maria Martins, ibid., pp. 25-6. 17/ Victor Turner, From Ritual To Theatre, the Human Seriousness of Play.
16/ Id., ibid. Nova York: PAJ Publications, 1982, p. 109.
enfeitassem muito. Depois de construída a capela, o sinhô -se de calças e camisas brancas. Os Congos, entretanto,
reuniu seus pares brancos, retiraram a imagem do mar e além dos saiotes, geralmente de cor rosa ou azul, usam
a colocaram em um altar. No dia seguinte, a capela estava vistosos capacetes ornamentados por flores, espelhos e
vazia e a santa boiava de novo nas águas. Após várias tenta- fitas coloridas. Movimentam-se em duas alas, no meio
tivas frustradas de manter a divindade na capela, o branco das quais se postam os mestres, os solistas, e performam
permitiu que os escravos tentassem resgatá-la. Os primeiros coreografias de movimentos rápidos e saltitantes, às vezes
negros que se dirigiram ao mar eram um grupo de Congo. de encenação bélica e de ritmo acelerado. O grupo de
Eles se enfeitaram de cores vistosas e, com suas danças ligei- Congos representa a vanguarda, os que iniciam os corte-
ras, tentaram cativar a santa. Ela achou seus cânticos e dan- jos e abrem os caminhos, rompendo, com suas espadas
ças muito bonitos, ergueu-se das águas, mas não os acom- e/ou longos bastões coloridos, os obstáculos. O terno de
panhou. Os pretos mais velhos, então, muito pobres, foram Moçambique, que mais se aproxima do som original dos
às matas, cortaram madeira, fizeram três tambores com os candombes, recobre-se, geralmente, de saiotes azuis,
troncos das árvores, os candombes sagrados, e os recobri- brancos ou rosa por sobre a roupa toda branca, turbantes
ram com folhas de inhame. Reuniram o grupo e, cantando nas cabeças, gungas (guizos) nos tornozelos, portando
e dançando, entraram nas águas. Com seu ritmo sincopado, tambores maiores, de sons mais surdos e graves. Dançam
surdo, com sua dança telúrica e cânticos de fortes timbres agrupados, sem nenhuma coreografia de passo marcado.
africanos, cativaram a santa que se sentou em um de seus Seu movimento é lento e de seus tambores ecoa um ritmo
tambores e os acompanhou até à capela, onde todos, negros vibrante e sincopado. Os pés dos moçambiqueiros nunca
e brancos, cantaram e dançaram para celebrá-la. se afastam muito da terra e sua dança, que vibra por todo o
Durante as celebrações, esse mito fundador é corpo, exprime-se, acentuadamente, nos ombros meio cur-
recriado e aludido nos cortejos, falas, cantos, danças e vados, no torso e nos pés. O terno de Moçambique é o guar-
fabulações, em um enredo multifacetado, em cujo desenvol- dião das majestades, o que representa o poder espiritual
vimento o místico e o mítico interagem com outros temas e maior e a força telúrica dos antepassados, que emanam
narrativas que recriam a história de travessias do negro afri- dos tambores sagrados e guiam o rito comunitário. Seus
cano e de seus descendentes brasileiros. Os protagonistas do cantares acentuam, na enunciação lírica e rítmica, a pulsa-
evento são muitos, dependendo da região e das comunida- ção lenta de seus movimentos e os mistérios do sagrado.
des. As festividades rituais apresentam uma complexa estru- Todas as variantes da lenda, nas mais diversas
tura, incluindo: novenas, levantamento de mastros, cortejos, regiões brasileiras, permitem sublinhar o núcleo comum
danças dramáticas, banquetes, embaixadas, cumprimento narrado, através do qual se processa essa reengenharia
de promessas, sob a batuta dos reis Congos. de saberes e poderes na estrutura dos Reinados negros.
Em Minas Gerais, a diversidade de guardas18 Há, basicamente, nas dramatizações e performances, três
engloba, dentre outros, Congos, Moçambiques, Marujos, elementos que insistem na rede de enunciação e na cons-
Catopés, Vilões e Caboclos. Dentre esses, dois grupos, no trução do seu enunciado: 1o) a descrição de uma situação
entanto, destacam-se: o Congo e o Moçambique, os que de repressão vivenciada pelo negro escravo; 2o) a reversão
agenciaram a retirada da santa das águas. Ambos vestem- simbólica dessa situação com a retirada da santa das águas,
sendo o canto e dança regidos pelos tambores; 3o) a insti-
tuição de uma hierarquia e de um outro poder, o africano,
18/ No léxico próprio dos congadeiros o termo “guarda” ou “terno” desig- fundados pelo arcabouço mítico e místico.
na um grupo específico de dançantes com suas vestes, funções litúrgicas Ao retirar a santa das águas, imprimindo-lhe movi-
e características próprias. Outras variações da narrativa, assim como um
estudo mais detalhado sobre os Congados, podem ser encontradas no mento, o negro escravo performa um ato de apropriação
meu livro Afrografias da memória: o reinado do rosário no Jatobá, op. cit. e reconfiguração, invertendo, na dicção do sagrado, as

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posições de poder entre brancos e negros. A linguagem dos força guerreira de vanguarda. O Moçambique, alçado como
tambores, investida de um ethos divino, agencia os cantares líder dos ritos sagrados e guardião das coroas que repre-
e a dança e, de forma oracular, prenuncia uma subversão sentam as nações africanas e a Senhora do Rosário, conduz
da ordem social, das hierarquias escravistas e dos saberes reis e rainhas. O timbre de seus tambores representaria,
hegemônicos. Esse deslocamento interfere na sintaxe do numa relação especular engendrada pela fábula, a voz
texto católico, engravidado agora por uma linguagem alterna mais genuinamente africana, a reminiscência da origem
que, como um estilo e um estilete, grafa-se e pulsa na con- que, iconicamente, traduziria a memória de África. Senhor
jugação do som dos tambores, do canto e da dança, entre- das coroas e guardião dos mistérios, o Moçambique é a
laçados na articulação da fala e da voz de timbres africanos. força telúrica e também guerreira que gerencia o conti-
O próprio fundamento do texto mítico católico é rasurado, nuum africano, reorganizando as relações de poder, nem
nele se introduzindo, como um palimpsesto, as divindades sempre amistosas, entre os povos negros dispersos pela
africanas. Assim, a santa do Rosário evoca também, por Diáspora. Estabelecem-se, portanto, na estrutura paralela
deslocamento, as grandes mães ctônicas africanas, senhoras de relações espaciais dos Reinados negros, novas hierar-
das águas, da terra e do ar. quias fundadoras do microsistema social, que operacio-
Numa perspectiva que transcende o contexto sim- nalizam as redes de comunicação e as relações de poder
bólico-religioso, esse ato de deslocamento e repossessão entre os próprios negros, e entre negros e brancos.
induz à possibilidade de reversibilidade e transformação A fábula nos revela ainda um processo de subs-
das relações de poder do contexto histórico-social adverso. tituição na produção de objetos e adereços litúrgicos e a
Cresce, portanto, em significância o fato de as narrativas e ressignificação do ambiente geográfico e simbólico. Assim
as performances realçarem o agrupamento de diferentes os escravos produzem seus tambores sagrados com tron-
nações e etnias africanas, sobrepondo-se às históricas cos, folhas e cipós, e utilizam as contas-de-lágrimas e os
divergências e rivalidades étnicas e linguísticas. O coletivo materiais disponíveis na geografia americana, no lugar dos
superpõe-se, pois, ao particular, como operador de formas opelês e de outros adereços. Importa-nos assinalar que, em
de resistência social e cultural que reativam, restauram África, assim como nas culturas afro-americanas, um dos
e reterritorializam, por metamorfoses emblemáticas, um modos de escrita do corpo está na utilização de conchas,
saber alterno, encarnado na memória do corpo e da voz. sementes e outros objetos côncavos, em tamanhos e cores
Tanto no enunciado da narração mítica, quanto na per- diferentes, para a feitura de colares, pulseiras e outros
formance dramática que cenicamente a representam, a adornos que revestem o sujeito, além de outros arabescos
superação parcial das diversidades étnicas recria o ethos que ornamentam sua pele e cabelo. Alinhadas numa certa
comum e o ato coletivo negro como estratégias de subs- posição e ordem contíguas, as contas, sementes e conchas,
tituição e reorganização das fraturas do conhecimento. assim como certos desenhos, funcionam como morfemas
Torna-se possível, assim, ler nas entrelinhas da enuncia- formando palavras, palavras formando frases e frases com-
ção fabular o gesto pendular: canta-se a favor da divindade pondo textos, o que faz da superfície corporal, literalmente,
e celebram-se as majestades negras e, simultaneamente, texto, e do sujeito, signo, intérprete e interpretante, simul-
canta-se e dança-se contra o arresto da liberdade e contra a taneamente. Escrita nos e pelos adornos, “a pessoa emerge
opressão, seja a escravidão, no passado, seja a do presente. dessas escrituras, tecida de memória e fazendo memória”.19
Desse gesto emerge o segundo movimento drama-
tizado nas narrativas: o estabelecimento de uma estrutura
alterna de poder que reorganiza as relações étnicas negras 19/ Mary N. Roberts e Allen F. Roberts, “Body Memory. Part. 1: Defining
the Person”, in Mary N. Roberts e Allen F. Roberts (ed.), Memory, Luba Art
e as posições estratégicas aí imbricadas. As guardas de and the Making of History. Nova York; Munique: The Museum for African
Congo abrem os cortejos e limpam os caminhos, como uma Art; Prestei, 1996, p. 86.
Toda a história de constituição dos Congados (violenta- cognição expresso nos rituais dos Congados transcria, nas
mente reprimidos e perseguidos da segunda metade do Américas, estilos artísticos africanos, modos de vivência e
século 19 até meados do século 20), e das culturas negras de pertencimento, uma percepção e uma compreensão do
em geral, parece-nos revelar a primazia desses processos cosmos diferenciadas, assim como uma singular reflexão
de deslocamento, substituição e ressemantização, sutu- sobre o sagrado que transcende os idiomas metafísicos oci-
rando os vazios e as cavidades originadas pelas perdas. dentais. Um conhecimento, enfim, veiculado pela palavra
A instituição desse poder alterno, que ainda hoje fermenta proferida e cantada, e pela música, coreografada na dança.
várias comunidades negras, prefigura as estratégias de Segundo o filósofo Bunseki Fu-Kiau, a África é o “conti-
resistência cultural e social que pulsionaram as revoltas nente dançante”, na medida em que a música e a dança
dos escravos, a atuação efetiva dos quilombolas e de várias permeiam toda e qualquer atividade, sendo uma forma de
outras organizações negras contra o sistema escravocrata. inscrição e transmissão de conhecimentos e valores. Todo
Como nos revela o aforismo popular, “as contas do meu som, todo gesto, em África, significam, o que faz Robert
rosário são balas de artilharia”. Ou como afirma Roach, “os Farris Thompson afirmar que a “África introduz uma dife-
textos podem obscurecer o que a performance tende a rente história da arte − a história de uma arte dançante”.21
revelar: a memória desafia a história na construção das No âmbito da performance dos Congados, por exem-
culturas circum-atlânticas, e revisa a épica ainda não plo, em seu aparato − cantos, danças, figurinos, adereços,
escrita de sua fabulosa cocriação”.20 objetos cerimoniais, cenários, cortejos e festejos −, e em sua
Na narrativa mitopoética, nos cantares, gestos, dan- cosmovisão filosófica e religiosa, reorganizam-se os repertó-
ças e em todas as derivações litúrgicas do cerimonial do rios textuais, históricos, sensoriais, orgânicos e conceituais
Reinado, o congadeiro canta e dança a divindade católica da longínqua África, as partituras dos seus saberes e conhe-
e, com ela, as nanãs das águas africanas, Zâmbi, o supremo cimentos, o corpo alterno das identidades recriadas, as
Deus banto, os antepassados e toda a sofisticada gnosis lembranças e as reminiscências, o corpus, enfim, da memó-
africana, resultado de uma filosofia telúrica que reconhece ria que cliva e atravessa os vazios e hiatos resultantes das
na natureza uma certa medida do humano, não de forma diásporas. Os ritos cumprem, assim, uma função pedagógica
animística, mas como expressão de uma complementari- paradigmática exemplar, como modelo e índice de mudança
dade cósmica necessária, que não elide o sopro divino e a e deslocamento, pois, segundo Turner, “como um ‘modelo
matéria, em todas as formas e elementos da physis cósmica. para’ o ritual pode antecipar, e até mesmo gerar mudança;
A fábula, portanto, configura o rito de passagem de como um ‘modelo de’ pode inscrever ordem nas mentes,
uma situação de aflição, fragmentação e desordem para corações e vontade dos participantes”.22
uma nova ordem social, política, artística e filosófica que Esse processo de intervenção no meio e essa poten-
reconfigura o corpus cultural, subverte a relação domina- cialidade de reconfiguração formal e conceitual fazem dos
dor/dominado e insemina o tecido religioso católico com a rituais um modo eficaz de transmissão e de reterritorializa-
telúrica teologia africana. ção de uma complexa pletora de conhecimentos, dentre eles
Toda a memória desse conhecimento é instituída uma instigante concepção de cronos, o tempo. No caso brasi-
na e pela performance ritual dos Congados, por meio de leiro, os ritos de ascendência africana, religiosos e seculares,
técnicas e procedimentos performáticos veiculados pelo reterritorializam uma das mais importantes concepções
corpo, em vários de seus atributos, dentre eles a voz, numa filosófica e metafísica africanas, a da ancestralidade que
refinada estilização estética e artesanal. O universo de
21/ Robert Farris Thompson, African Art in Motion: Icon and Act. Los
Angeles: University of California Press, 1979, p. xii.
20/ Joseph Roach, 1995, op. cit, p. 61. 22/ Victor Turner, op. cit., p. 82.

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constitui a essência de uma visão que os teó- gências naturais, necessários na dinâmica mutacional e
ricos das culturas africanas chamam de visão regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas
negra-africana do mundo. Tal força faz com que espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. Para Bunseki
os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, Fu-Kiau,25 nas sociedades nicongo, vivenciar o tempo
os elementos cósmicos e os sociais interajam, significa habitar uma temporalidade curvilínea, concebida
formando os elos de uma mesma e indissolúvel como um rolo de pergaminho que vela e revela, enrola e
cadeia significativa....23 desenrola, simultaneamente, as instâncias temporais que
constituem o sujeito. O aforisma kicongo, “Ma’kwenda!
A concepção ancestral africana inclui, no mesmo circuito Ma’kwisa!, o que se passa agora, retomará depois” traduz
fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a com sabor a ideia de que o que flui no movimento cíclico
fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e permanecerá no movimento. Essa mesma ideia grafa-se em
os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma uma das mais importantes inscrições africanas, trans-
complementariedade necessária, em contínuo processo de criada de vários modos nas religiões afro-brasileiras, os
transformação e de devir. Segundo Ngũgĩ wa Thiong’o, na cosmogramas, signos do cosmos e da continuidade da
cosmovisão africana, existência, também presentes nas coreografias dos Congos.
Nessa sincronia, o passado pode ser definido como o lugar
nós que estamos no presente somos todos, de um saber e de uma experiência acumulativos, que habi-
em potencial, mães e pais daqueles que virão tam o presente e o futuro, sendo também por eles habitado.
depois. Reverenciar os ancestrais significa, A mediação dos ancestrais, manifesta nos Congados pela
realmente, reverenciar a vida, sua continuidade força (axé) dos candombes (os tambores sagrados), é a clave-
e mudança. Somos os filhos daqueles que aqui -mestra dos ritos e é dela que advém a potência da palavra
estiveram antes de nós, mas não somos seus vocalizada e do gestus corporal, instrumentos de inscrição e
gêmeos idênticos, assim como não engendra- de retransmissão do legado ancestral. Na performance ritual,
remos seres idênticos a nós mesmos. [...] Desse o congadeiro, simultaneamente, espelha-se nos rastros vin-
modo, o passado torna-se nossa fonte de inspi- cados pelos antepassados, reificando-os, mas deles também
ração; o presente, uma arena de respiração; e o se distancia, imprimindo, como na improvisação melódica,
futuro, nossa aspiração coletiva.24 seus próprios tons e pegadas. Nos rituais, “cada repetição
é em certa medida original, assim como, ao mesmo tempo,
Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo nunca é totalmente nova”.26 Esse processo pendular entre a
circuito de significância, o tempo, a ancestralidade e a tradição e a sua transmissão institui um movimento curvilí-
morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de ins- neo, reativador e prospectivo que integra sincronicamente,
piração, matiza as curvas de uma temporalidade espira- na atualidade do ato performado, o presente do pretérito e
lada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia do futuro. Como um logos em movimento do ancestral ao
linear, estão em processo de uma perene transformação. performer e deste ao ancestre e ao infans, cada performance
Nascimento, maturação e morte tornam-se, pois, contin- ritual recria, restitui e revisa um círculo fenomenológico no

23/ Laura Cavalcante Padilha, Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade 25/ K. K. Bunseki Fu-Kiau, “Ntangu-Tandu-Kolo: The Bantu-Kongo
na ficção angolana do séc. XX. Niterói: EDUFF, 1995, p. 10. Concept of Time”, in Joseph K. Adjaye (ed.), Time in the Black Experience.
24/ Ngũgĩ Ngugi wa Thlong’o, Writers in Politics: a Re-engagement with Westport; Londres: Greenwood Press, 1994, p. 33.
Issues of Literature and Society. A revised and enlarged edition. Oxford; 26/ Margaret Thompson Drewal, Yoruba Ritual, Performers, Play, Agency.
Nairóbi; Ports Mouth: James Currey; EAEP; Heineman, 1997, p. 139. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1992, p. 1.
qual pulsa, na mesma contemporaneidade, a ação de um Para o congadeiro, esse saber institui-se também espa-
pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade cialmente. Espaço visitado é sítio consagrado, reterri-
presente que atrai para si o passado e o futuro e neles tam- torializado. Os cortejos e caminhadas revisitam lugares
bém se esparge, abolindo não o tempo, mas a sua concepção reconhecidos, refazem os círculos em torno de mastros,
linear e consecutiva. Assim, a ideia de sucessividade tempo- cruzeiros e igrejas, percorrem caminhos antes talhados
ral é obliterada pela reativação e atualização da ação, similar pelos antepassados, e trilham novas estradas. As coreogra-
e diversa, já realizada tanto no antes quanto no depois do fias das danças mimetizam essa circularidade espiralada,
instante que a restitui, em evento. quer no bailado do corpo, quer na ocupação espacial que o
Na genealogia performática dos Congados, a palavra corpo em voleios sobre si mesmo desenha. Por meio dessa
vocalizada ressoa como efeito de uma linguagem pulsional evocação constitutiva, o gesto e a voz da ancestralidade
do corpo, inscrevendo o sujeito emissor num determinado encorpam o acontecimento presentificado, prefigurando o
circuito de expressão, potência e poder. Como sopro, hálito, devir, numa concepção genealógica curvilínea, articulada
dicção e acontecimento, a palavra proferida grafa-se na per- pela performance. Nesta, o movimento coreográfico ocupa
formance do corpo, lugar da sabedoria. Por isso, a palavra, o espaço em círculos desdobrados, figurando a noção
índice do saber, não se petrifica num depósito ou arquivo ex-cêntrica do tempo. Em outras palavras: o tempo, em sua
imóvel, mas é concebida cineticamente. Como tal, a palavra dinâmica espiralada, só pode ser concebido pelo espaço ou
ecoa na reminiscência performática do corpo, ressoando na espacialidade do hiato que o corpo em voltejos ocupa.
como voz cantante e dançante, numa sintaxe expressiva Tempo e espaço tornam-se, pois, imagens mutuamente
contígua que fertiliza o parentesco entre os vivos, os ances- espelhadas. Essa temporalidade enunciativa não concebe
tres e os que ainda vão nascer. Força e princípio dinâmicos, a o presente como “presente do próprio ser que se delimita,
palavra faz-se linguagem “porque expressa e exterioriza um por referência interna, entre o que vai se tornar presente e
processo de síntese no qual intervêm todos os elementos o que já não o é mais”.31
que constituem o sujeito”.27 Por isso necessita da música, Pelo contrário. No âmbito do tempo espiralar, o
da dança, do ritmo, das cores, do gestus performático e da corpo em performance, nos Congados, é o lugar do que
adequação para a sua realização. Daí a natureza numinosa curvilíneamente ainda e já é, do que pôde e pode vir a ser,
da voz e o poder aurático do corpo nas religiões afro-brasilei- por sê-lo na simultaneidade da presença e da pertença. O
ras, ressonâncias da sua africanidade. Segundo Sodré, junto evento encenado no e pelo corpo inscreve o sujeito e a
“com as palavras, junto com o som, deve dar-se a presença cultura numa espacialidade descontínua que engendra
concreta de um corpo humano, capaz de falar e ouvir, dar uma temporalidade cumulativa e acumulativa, compacta
e receber, num movimento sempre reversível”.28 Assim, e fluida. Como tal, a performance atualiza os diapasões da
“cantar/dançar, entrar no ritmo, é como ouvir os batimen- memória, lembrança resvalada de esquecimento, tranças
tos do próprio coração − é sentir a vida sem deixar de nela aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos e
inscrever a morte”;29 sendo o próprio ritmo o movimento “do vestígios africanos em novas formas expressivas. Assim, a
impulso que leva o corpo a garimpar a falta”.30 representação teatralizada pela performance ritual, em sua
engenhosa artesania, pode ser lida como um suplemento
27/ Juana Elbein dos Santos, Os nagô e a morte: Pàde, Àsese e o culto Egum que recobre os muitos hiatos e vazios criados pelas diáspo-
na Bahia, 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 49. ras oceânicas e territoriais dos negros, algo que se coloca
28/ Muniz Sodré, Samba, o dono do corpo, 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, em lugar de alguma coisa inexoravelmente submersa nas
1998, p. 67.
29/ Id., ibid., p. 23. 31/ Émile Benveniste, Problemas de linguística geral, trad. Eduardo Gui-
30/ Ibid., p. 68. marães et al. São Paulo: Pontes, 1989, v. II, pp. 85-6.

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travessias, mas perenemente transcriada, reincorporada e e simbólico da ação ali reapresentada, mas constituem
restituída em sua alteridade, sob o signo da reminiscência. em si mesmas a própria ação instituída e constituída pela
Um saber, uma sapiência. performance do corpo. Dançar é performar, inscrever. A per-
A esses gestos, a essas inscrições e palimpsestos formance ritual é, pois, um ato de inscrição. Nas culturas
performáticos, grafados pela voz e pelo corpo, denomi- predominantemente orais e gestuais, como as africanas e as
nei oralitura, matizando na noção deste termo a singular indígenas, por exemplo, o corpo é, por excelência, o local da
inscrição cultural que, como letra (littera) cliva a enuncia- memória, o corpo em performance, o corpo que é perfor-
ção do sujeito e de sua coletividade, sublinhando ainda no mance. Como tal esse corpo/corpus não apenas repete um
termo seu valor de /litura, rasura da linguagem, alteração hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reen-
significante, constitutiva da alteridade dos sujeitos, das cenado. Daí a importância de ressaltarmos nas tradições per-
culturas e de suas representações simbólicas.32 formáticas sua natureza metaconstitutiva, nas quais o fazer
O significante oralitura, da forma como o apresento, não elide o ato de reflexão; o conteúdo imbrica-se na forma,
não nos remete univocamente ao repertório de formas e a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e
procedimentos culturais da tradição verbal, mas especifi- modifica dinamicamente. O corpo, nessas tradições, não é,
camente, ao que em sua performance indica a presença de portanto, apenas a extensão de um saber reapresentado, e
um traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente nem arquivo de uma cristalização estática. Ele é, sim, local
constituinte, inscrito na grafia do corpo em movimento e de um saber em contínuo movimento de recriação formal,
na vocalidade. Como um estilete, esse traço cinético ins- remissão e transformações perenes do corpus cultural. Nas
creve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e esti- tradições rituais afro-brasileiras, arlequinadas pelos seus
los. A oralitura é do âmbito da performance, sua âncora; diversos cruzamentos simbólicos constitutivos, o corpo
uma grafia, uma linguagem, seja ela desenhada na letra é um corpo de adereços: movimentos, voz, coreografias,
performática da palavra ou nos volejos do corpo. Como já propriedades de linguagem, figurinos, desenhos na pele e no
grifamos, em uma das línguas banto do Congo, o mesmo cabelo, adornos e adereços grafam esse corpo/corpus, esti-
verbo, tanga, designa os atos de escrever e de dançar, de lística e metonímicamente como locus e ambiente do saber
cuja raiz deriva-se, ainda, o substantivo ntangu, uma das e da memória. Os sujeitos e suas formas artísticas que daí
designações do tempo, uma correlação plurissignificativa, emergem são tecidos de memória, escrevem história.
insinuando que a memória dos saberes inscreve-se, sem O corpo em performance restaura, expressa e, simul-
ilusórias hierarquias, tanto na letra caligrafada no papel, taneamente, produz esse conhecimento, grafado na memó-
quanto no corpo em performance. Nessa perspectiva pode- ria do gesto. Performar, nesse sentido, significa inscrever,
mos pensar, afinal, que não existem culturas ágrafas, pois repetir transcriando, revisando e representa “uma forma de
nem todas as sociedades confinam seus saberes apenas conhecimento potencialmente alternativa e contestatária”.33
em livros, arquivos, museus e bibliotecas, mas resguardam, A memória dos saberes dissemina-se por inúmeros atos de
nutrem e veiculam seus repertórios em outros ambientes performance, um mais-além do registro gravado pela letra
de memória, suas práticas performáticas. alfabética; por via da performance corporal − movimentos,
Nas danças rituais brasileiras, sejam de ascendência gestos, danças, mímica, dramatizações, cerimônias de cele-
banto ou nagô-iorubá, as coreografias côncavas e conve- bração, rituais etc. − a memória seletiva do conhecimento
xas que criam um espaço de circunscrição do sujeito e do prévio é instituída e mantida nos âmbitos social e cultural.
cosmos remetem-nos não apenas ao universo semântico Assim, na oralitura dos Congados, o corpo é um portal que,

32/ Cf. Leda Maria Martins, 1997, op. cit., p. 21. 33/ Joseph Roach, op. cit., pp. 46-7.
simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é signi- Família Lugar
ficado, sendo projetado como continente e conteúdo, local,
ambiente e veículo da memória, “um lugar de transferência, Um rio não divide duas margens.
[...] um espelho que contém o olhar do observador e o objeto O que se planta nos lados
do olhar, mutuamente refletindo-se um sobre o outro”.34
Conta-se que, há muito tempo atrás, escravizados é que o separa.
africanos nas Américas desenhavam, no casco de tartarugas ....................
marinhas e nas plumagens de certos pássaros, cosmogramas Para um devoto tudo é muitas coisas. Uma
de, suas culturas de origem, para comunicar aos ancestrais, ravina de águas que envolve
que repousavam em Africa, suas paragens nas longínquas vivos e mortos.
paisagens americanas. Nas formas poéticas que nos sustêm, ....................
em responso aos gestos da ancestralidade podemos ecoar o Estamos nós, os Bianos, de enigma resolvido.
poeta angolano Ruy Duarte de Carvalho: A lagoa onde somos tem ideias de rio.

Não há lugar achado Aqui e lá são peças


sem lugar perdido. dos olhos em movimento.
Casam-se além as falas de um lugar, Como são na diferença os mesmos Deus
no encontro da memória e Zambiapungo.
com a matriz.35
A textualidade afro-brasileira e as performances da orali-
Os Congados nos testemunham que, assim como não há dade nos oferecem um amplo feixe de possibilidades de per-
uma reminiscência total, absoluta e eterna, o esqueci- cepção, caligrafando a história e a memória dos negros. Essa
mento também é da ordem da incompletude. Nas genealo- memória do conhecimento grafa-se, também, como aletria,
gias de sua performance, os congadeiros irrigam os perga- nas pautas do papel e do corpo. Um saber que se borda pela
minhos da História e nos restituem um sujeito que, clivado fina lâmina da palavra ou no delicado gesto. Littera e litura.
de memória, cartografa, com seu corpo negro arlequinado, Gravuras da letra, do corpo e da voz.
os muitos matizes da cultura brasileira e dos territórios
americanos. Afinal, a numinosidade da voz, como alethéa, _
aparição, e o corpo, domus dos saberes, confirmam ao
olhar e aos ouvidos os cursos dos sons, dos gestos, tra-
zendo consigo os seres e os âmbitos em que são, recriando
uma outra arkhé, um outro axé, espelho de um outro logos.
Como diz o poeta Edimilson:36

34/ Mary N. Roberts e Allen F. Roberts, op. cit., p. 86.


35/ Ruy Duarte Carvalho, Lavra: poesia reunida 1970-2000. Lisboa: Coto-
via, 2005, p. 231.
36/ Edimilson de Almeida Pereira, op. cit.

326
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ensaios e colaborações

ensaios

diane lima é curadora, pesquisadora, escritora e uma hélio menezes é antropólogo e internacionalista pela
das principais vozes do feminismo negro na arte con- Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador associado
temporânea brasileira. Em 2021 foi premiada com o Ford do BrazilLab, da Universidade de Princeton. Foi curador de
Foundation Global Fellowship, programa que celebra a arte contemporânea do Centro Cultural São Paulo de 2019 a
próxima geração de líderes de justiça social ao redor do 2021, onde também atuou como curador de literatura entre
mundo. Sua trajetória composta por projetos que desafiam março e outubro de 2019, e coordenador internacional do
as práticas institucionais e curatoriais resultou na organi- Fórum Social Mundial de Belém (2009), Dakar (2011) e Túnis
zação do livro Negros na Piscina: Arte contemporânea, cura- (2013). Alguns de seus trabalhos mais recentes são Carolina
doria e educação (2023) e Textes à lire à voix haute (2022). Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros (IMS Paulista),
Outros projetos recentes incluem as exposições Paulo Histórias afro-atlânticas (MASP e Instituto Tomie Ohtake) e
Nazareth: Vuadora (Pivô, São Paulo, 2022); Antônio Obá: dos brasis (Sesc). Em 2021, foi reconhecido pela ArtReview
Path (Oude Kerk, Amsterdam, 2022) e Frestas – 3ª Trienal Magazine como uma das cem pessoas mais importantes da
de Arte Sesc-SP – O rio é uma serpente (Sesc Sorocaba, São arte contemporânea no mundo.
Paulo, 2020-21). Mestra em comunicação e semiótica pela
PUC-SP, suas palestras e textos tem ressoado em diversas manuel borja-villel é doutor em história da arte pela City
instituições e publicações internacionais. University de Nova York, foi diretor do Museu Reina Sofía
(Madri, Espanha) entre 2008 e 2022, sendo responsável
grada kilomba é artista interdisciplinar, escritora e pelo desenvolvimento e profunda releitura da coleção do
doutora em filosofia pela Universidade Livre de Berlim, museu. Nos últimos anos, o Reina Sofía fortaleceu sua
Alemanha. Lecionou em diversas universidades interna- posição como referência para a produção cultural pelo
cionais, como a Universidade de Artes de Viena, na Áustria. trabalho realizado com uma rede assimétrica de insti-
Suas obras levantam questões sobre conhecimento, poder tuições que inclui, entre outros, museus, universidades
e violência cíclica, e foram exibidas em eventos significa- e instituições independentes. Dirigiu a Fundación Antoni
tivos como a 10ª Berlin Biennale; Documenta 14; La Biennale Tàpies (Espanha) desde sua criação, em 1990, até 1998, e
de Lubumbashi VI; e 32ª Bienal de São Paulo; assim como fez da fundação uma instituição experimental com uma
em inúmeros museus e teatros internacionais. Seu tra- programação centrada na crítica institucional. Já à frente
balho dispõe de diferentes formatos como performance, do Museu d’Art Contemporani de Barcelona de 1998 a
leitura cênica, textos, vídeo e instalação, tendo como foco 2008, colocou a gestão pública a serviço da agenda cidadã,
memória, trauma, gênero e pós-colonialismo. Obras de sua criando um lugar de dissidência por meio da pedagogia
autoria integram coleções públicas e privadas como a da radical, da crítica e da experimentação institucional. Ele
Tate Modern (Inglaterra). reflete sobre esses e outros temas em seu último livro:
Campos magnéticos: escritos de arte y política (2020).

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331
denise ferreira da silva é artista, filósofa, professora e leda maria martins é poeta, ensaísta, dramaturga e
diretora do The Social Justice Institute-GRSJ da University professora. Publicou, entre outros, Afrografias da memória:
of British Columbia (Canadá). Entre seus trabalhos estão O reinado do Rosário no Jatobá (2021) e Performances do
os filmes Serpent Rain (2016), 4 Waters: Deep Implicancy tempo espiralar: Poéticas do corpo-tela (2021).
(2018) e Soot Breath/Corpus Infinitum (2020), este último
em colaboração com Arjuna Neuman. rizvana bradley é professora assistente de filme e mídia
na University of California, Berkeley (EUA). Suas pesqui-
gladys tzul tzul, do povo Maya K’iche’, é doutora em sas e textos sobre arte contemporânea, cinema e mídia
sociologia e autora de livros de ensaios. Tem atuado como têm sido publicados em vários periódicos e oferecem um
testemunha especialista em tribunais da Guatemala, em exame crítico do corpo negro em distintas práticas artísti-
defesa de autoridades comunitárias encarceradas, e em cas experimentais.
Honduras apresentou perícia de gênero no julgamento
pelo assassinato da ativista ambiental Berta Cáceres. tiganá santana é compositor, poeta, multiartista, tradutor
e pesquisador, além de professor de artes na Universidade
hagar kotef é professora de teoria política no Federal da Bahia (UFBA) e no Instituto de Estudos
Departamento de Políticas e Estudos Internacionais Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Foi
da SOAS University of London (Inglaterra). É autora de o primeiro compositor, no Brasil, a apresentar um álbum
The Colonizing Self: Or Home and Homelessness in Israel/ com canções em línguas africanas.
Palestine (2020) e Movement and the Ordering of Freedom:
On Liberal Governances of Mobility (2015).

ilenia caleo é performer, ativista e investigadora. Mestra


em filosofia contemporânea, é pesquisadora da Università
Iuav di Venezia e cofundadora do programa de mestrado
em estudos de gênero e política da Università Roma Tre
(Itália). Sua pesquisa se concentra em corpos, epistemo-
logias feministas, artes cênicas experimentais e novas
instituições culturais.
colaborações

abigail campos leal transita entre arte e filosofia para claudinei roberto da silva é curador convidado do Museu
criar poéticas anticoloniais. É professora no curso de Afro Brasil Emanoel Araujo. Foi curador das exposições
especialização em Ciências Humanas e Pensamento Sidney Amaral: O banzo, o amor e a cozinha (2015), no
Decolonial da PUC-SP. Apresentou performances no Museu Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, 13ª Bienal Naïfs do
da Imagem e do Som do Ceará e no Itaú Cultural (SP). Entre Brasil (2016), no Sesc, e 37º Panorama da Arte Brasileira:
suas publicações está ex/orbitâncias: os caminhos da deser- Sob as cinzas, brasa (2022), no Museu de Arte Moderna de
ção de gênero (2021). São Paulo (MAM-SP).

ana longoni é escritora, curadora, pesquisadora e profes- david pérez é professor de chaves do discurso artístico
sora na Universidad de Buenos Aires (UBA) (Argentina). contemporâneo na Universitat Politècnica de València e
Estuda as intersecções entre arte e política na Argentina e membro do Centro de Investigación Arte y Entorno, na
na América Latina de meados do século 20 até o presente. mesma universidade (Espanha). É autor de vários ensaios
É autora de Parir/Partir (2022), entre outros. sobre arte, estética e pensamento.

barbara copque é professora na Universidade do Estado do déba tacana é artista visual, pesquisadora e professora
Rio de Janeiro (UERJ), antropóloga-que-fotografa, membra na Universidade Federal do Acre (UFAC). Desenvolve uma
do Comitê de Antropologia Visual da Associação Brasileira investigação poética das dimensões visíveis e invisíveis
de Antropologia e conselheira do Museu Afrodigital Rio de por meio da matéria: corpo cerâmico × corpo indígena ×
Janeiro. Participa do grupo Afrovisualidades, do projeto corpo-território, em diálogo com transformações das fron-
Mapeando Arte e Cultura Visual Periférica e possui obras no teiras e paisagens de guerra em Abya Yala.
acervo do Museu de Arte do Rio.
emanuel monteiro é artista e professor de artes visuais
beatriz martínez hijazo é pesquisadora. Mestra em na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Desenvolve
história da arte contemporânea e cultura visual pela pesquisa nas linguagens de desenho e pintura.
Universidad Complutense de Madrid, foi cocuradora da
mostra Un acto de ver que se despliega – Colección Susana y fernanda carvajal é socióloga e trabalha com a inter-
Ricardo Steinbruch (2022) no Museo Reina Sofía (Espanha). secção entre arte, sexualidade e políticas. Atualmente é
pesquisadora no Consejo Nacional de Investigaciones
carles guerra é artista, escritor e pesquisador indepen- Científicas y Técnicas (Conicet) (Argentina) e membra da
dente. Foi diretor de La Virreina Centre de la Imatge, cura- Red Conceptualismos del Sur (RedCSur).
dor-chefe do Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona
(MACBA) e, de 2015 a 2020, diretor executivo da Fundació getsemaní guevara romero é historiadora da arte,
Antoni Tàpies (Espanha). Foi curador da mostra Francesc arquivista e curadora. Atualmente colabora no Centro de
Tosquelles: Like a Sewing Machine in a Wheat Field (2022) no Documentación Arkheia, do Museo Universitario Arte
Museo Reina Sofía (Espanha). Contemporáneo (MUAC) (México). Seus interesses de pes-
quisa giram em torno de feminismos, memória e arquivo.
cíntia guedes é artista multidisciplinar, professora e
pesquisadora. Doutora em comunicação pela Universidade heitor augusto atua nas intersecções entre curadoria e pro-
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com ênfase em rela- gramação de filmes, pesquisa, escrita e ensino no campo do
ções raciais e colonialidade do poder e produção da cinema. É programador-chefe do Instituto Nicho 54.
subjetividade.

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333
horrana de kássia santoz é curadora, educadora e kênia freitas é curadora e programadora do Cinema do
realizou a pesquisa curatorial das mostras 40 anos do Dragão (CE). Doutora em comunicação e cultura pela
Videobrasil, da Associação Cultural Videobrasil, e Zonas Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pesqui-
de sombra, na Pinacoteca de São Bernardo do Campo (SP). sadora independente com foco em afrofuturismo, cinemas
Desde 2007, atua no desenvolvimento de novas práticas negros, curadoria e crítica de cinema. Integra o FICINE –
educativas em museus e espaços culturais. Fórum Itinerante de Cinema Negro.

igor de albuquerque é editor, tradutor e ensaísta. Editou kike españa é pesquisador e ativista, baseado em Málaga
a Revista Barril e hoje edita a Revista Canarana. Em 2022 (Espanha). É editor na casa editorial Subtextos e faz parte
venceu o prêmio de ensaísmo da Serrote. Autor de -13, -38: da livraria coletiva Suburbia e do centro social e cultural La
Amanhã de novo (2019), atualmente prepara uma tese na Casa Invisible (Espanha).
Universidade de São Paulo (USP) sobre arte e filosofia na
obra de Carlo Michelstaedter. luciana brito é historiadora e professora na Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É autora de Temores
isabel tejeda é professora titular na Universidad de da África: Segurança, legislação e população africana na
Murcia (Espanha). Foi curadora de mais de oitenta mostras Bahia oitocentista (Prêmio Thomas Skidmore, 2019) e colu-
na Espanha, Itália, Marrocos, França, Reino Unido, Porto nista do Nexo Jornal.
Rico e Argentina. É especialista em feminismos e artistas
modernas e contemporâneas. luciane ramos silva é artista da dança, antropóloga e
educadora. Doutora em artes da cena e mestra em antropo-
josé antonio sánchez é autor de Brecht y el expresionismo logia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
(1992), Dramaturgias de la imagen (1994), Prácticas de lo real pesquisa as corporeidades afrodiaspóricas e africanas, arti-
en la escena contemporánea (2007) e Cuerpos ajenos (2017). culando as ideias de pluralidade, transformação e escritas
É professor na Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM) contra-hegemônicas. É coeditora da revista O Menelick 2º Ato.
e fundador do grupo de pesquisa ARTEA (Espanha). Tem
colaborado em mostras e programas públicos em diferentes marco baravalle é pesquisador, ativista e curador.
museus na Espanha, no México e na Colômbia. Membro do Sale Docks, espaço coletivo e autogerido para
artes visuais e ativismo em Veneza, faz parte do Institute
juliana de arruda sampaio é antropóloga e atua como pes- of Radical Imagination (IRI) e é bolsista de pesquisa na
quisadora e assistente curatorial. Mestra em antropologia Università Iuav di Venezia (Itália). É autor de L’autunno
social pela Universidade de São Paulo (USP), tem se dedicado caldo del curatore: Arte, neoliberismo, pandemia (2021) e
à pesquisa sobre artes visuais, feminismo negro e curadoria. coeditor de Art for UBI (Manifesto) (2022).

kaira cabañas é diretora associada para Programas maria luiza meneses é curadora independente.
Acadêmicos e Publicações no Center for Advanced Study Graduanda em história da arte pela Universidade Federal
in the Visual Arts (The Center) da National Gallery of de São Paulo (Unifesp), integra os coletivos Red LEHA,
Art, Washington, D.C. (EUA). É autora, entre outros, de Nacional Trovoa e Rede Graffiteiras Negras. Realiza o pro-
Immanent Vitalities: Meaning and Materiality in Modern and jeto Pinacoteca Digital Mauá e foi curadora da exposição
Contemporary Art (2021) e Learning from Madness: Brazilian Travessias do moderno em Mauá.
Modernism and Global Contemporary Art (2018), que será
lançado em 2023 no Brasil.
mario gooden é arquiteto de práticas culturais e diretor pérola mathias é socióloga, pesquisadora da música brasi-
do Mario Gooden Studio: Architecture + Design. Sua prá- leira contemporânea e atua como jornalista.
tica envolve a paisagem cultural e a interseccionalidade
entre arquitetura, raça, gênero, sexualidade e tecnologia. É philippe cyroulnik foi diretor do Le Crédac e do Le 19,
professor na Graduate School of Architecture, Planning and Crac (França). Foi curador de exposições individuais e
Preservation (GSAPP) da Columbia University, onde é diretor coletivas, além de autor de textos sobre Magdalena Jitrik,
do programa de mestrado em arquitetura e codiretor do Martin Reyna, Ceija Stojka, Alain Clément, Jean-Louis
Global Africa Lab (GAL) (EUA). É autor, entre outros, de Dark Delbes, Joël Kermarrec, entre outros.
Space: Architecture, Representation, Black Identity (2016).
rafael garcía faz parte do Departamento de Exposições
miro spinelli é artista e pesquisador. Doutorando em Temporárias do Museo Reina Sofía (Espanha) desde 2003,
estudos da performance pela New York University (NYU) tendo sido responsável pela coordenação e gestão de mais
(EUA), atua nas imbricações entre performance, escrita, de quarenta exposições, várias delas organizadas com
artes visuais e teoria. Sua prática artística e intelectual está museus como o Museum of Modern Art (MoMA) (EUA) e a
engajada em estratégias anticoloniais elaboradas através Pinacoteca de São Paulo.
de um irmanamento radical com coisas, matérias e os invi-
síveis produzidos nas relações com e entre elas. renato menezes é doutorando em teoria e história da arte
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (França).
natalia arcos salvo é curadora, pesquisadora e teórica da Coeditou o livro França Antártica: Ensaios interdisciplinares
arte. É uma das fundadoras do Grupo de Investigación en (2020). Atualmente é curador da Pinacoteca de São Paulo.
Arte y Política (GIAP) em Chiapas (México), onde dirige o
centro de residências artísticas desde 2013. rocío robles tardío é PhD em história da arte e profes-
sora assistente no Departamento de História da Arte
nicole smythe-johnson é escritora e curadora indepen- da Universidad Complutense de Madrid. É curadora
dente de Kingston (Jamaica). Doutoranda no Departamento de diferentes instituições (Museo Reina Sofía, Artium
de Arte e História da Arte da University of Texas at Austin Museoa), pesquisadora em projetos nacionais/internacio-
(EUA), foi curadora da mostra If we are here… (2023-2024) nais e autora de vários ensaios e livros, como Dora Maar:
no Visual Arts Center da UT Austin e trabalhou na Kingston codificado documentário para la serie fotográfica “Guernica”
Biennial de 2022 e na exposição John Dunkley: Neither Day de Picasso (2023) e Informe “Guernica”: Sobre el lienzo de
Nor Night (2017-2018), no Pérez Art Museum Miami. Picasso y su imagen (2019).

oluremi onabanjo é curadora associada do Departamento rossina cazali é curadora independente e pesquisadora.
de Fotografia do Museum of Modern Art (MoMA) e douto- Recebeu o John Guggenheim Fellowship e o Prince Claus
randa no Departamento de História da Arte e Arqueologia Award por seu trabalho. Foi curadora de exposições de arte
da Columbia University (EUA). contemporânea da Guatemala, em museus como o Museo
Universitario Arte Contemporaneo (MUAC) (México), o
omar berrada é um escritor e curador marroquino cujo tra- Museo de Arte y Diseño Contemporáneo (MADC) (Costa
balho se concentra na política de tradução e na transmissão Rica) e o Museo Reina Sofía (Espanha). Atualmente dirige o
intergeracional. É autor da coleção de poesia Clonal Hum e projeto LABORAL e é cofundadora do projeto LAICA de pes-
atualmente estuda a dinâmica racial no norte da África. quisa e experimentação em arte contemporânea e design.

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sara ramos é pesquisadora, editora, tradutora e poeta tocan-
tinense. Mestra em literatura comparada pela Universidade
Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), é autora
da plaquete pequeno manual da fúria (2022).

sol henaro é curadora especializada em políticas da(s)


memória(s) e integrante da Red Conceptualismos del Sur
(RedCSur) desde 2010. É curadora do Acervo Documental
e responsável pelo Centro de Documentación Arkheia
do Museo Universitario Arte Contemporáneo (MUAC)
(México).

sylvia monasterios é curadora, gestora cultural e tradu-


tora venezuelana. Mestra em arte, educação e história da
cultura, foi curadora do Núcleo de Artes Visuais do Centro
Cultural São Paulo e programadora na Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo.

tarcisio almeida é curador independente e pesqui-


sador. Doutorando pelo Núcleo de Estudos de Cultura
Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso
(ECCO-UFMT) e mestre em psicologia clínica pelo Núcleo
de Estudos da Subjetividade (PUC-SP), atualmente dedica
sua pesquisa a experimentos artísticos e modos de criação
baseados em liberação, liberdades e justiças cognitivas a
partir do campo das artes visuais.

tatiana nascimento é artista e pesquisadora em poéticas


negras sexual-dissidentes. Publicou, entre outros livros,
Palavra preta (2021), Lundu (2016), Oriki de amor selvagem
(2018) e Leve sua culpa branca pra terapia (2019).

thiago de paula souza é curador, educador e pesquisador.


Doutorando pela HDK-Valand – Academy of Art and Design
da Universidade de Gotemburgo (Suécia), é responsável
pela cocuradoria do Nomadic Program 2022/2023 do
Vleeshal Center for Contemporary Art (Holanda) e integra o
comitê de curadores da Nesr Art Foundation (Angola).
josé olympio da veiga pereira
presidente – fundação bienal de são paulo

​ cada dois anos, o Pavilhão Ciccillo Matarazzo é palco das


A sinalizar o espaço, amarrar textos e imagens. Trabalhando
obras e dos assuntos mais urgentes do mundo da arte. O em consonância com a saúde financeira e administrativa
visitante que caminha entre as pinturas, esculturas, dese- do evento, juntas, essas equipes fornecem o ambiente pre-
nhos, pesquisas, instalações e tantas outras linguagens em ciso para a realização da Bienal.
constante transformação, e realizadas por artistas oriundos A montagem ocorre em um prazo apertado, e
dos mais diversos cenários, pode imaginar o esforço que cada passo dessa etapa deve ser previamente estudado e
há por trás de cada trecho da exposição. Orquestrar uma medido. Em um primeiro momento, as paredes são ergui-
mostra da envergadura da Bienal de São Paulo, e com o das e a arquitetura ganha vida. O pavilhão é tomado por
grau de excelência que ela demanda, é uma tarefa possível construtores, madeira, gesso e ferro. Uma vez preparado
somente graças ao trabalho coletivo de profissionais das o edifício, chega a hora de acolher as obras e suas caixas
mais diferentes áreas de especialização. de acondicionamento, que são desembaladas para que os
Tudo começa com a escolha do projeto curatorial, montadores fixem com precisão e delicadeza os trabalhos.
sempre novo, sempre renovador. A partir desse momento, Em meio a um oceano de detalhes e acabamentos, legendas
se iniciam os preparativos, que terminam somente quando de obras são instaladas, luzes se acendem, orientadores de
a exposição se encerra. As infinidades de reuniões e de deci- público se posicionam, e mais uma Bienal abre suas portas.
sões difíceis, as trocas de correspondência e os contratos que Para a 35ª Bienal de São Paulo, o coletivo curatorial
precisam ser assinados, os cronogramas e suas múltiplas formado por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes
revisões, o orçamento e a captação de recursos, e o estreita- e Manuel Borja-Villel selecionou mais de uma centena de
mento de laços com o poder público e a iniciativa privada em participantes que, de incalculáveis maneiras, coreogra-
uma rede de patrocinadores, apoiadores e parceiros. Tudo faram o impossível. A Fundação Bienal de São Paulo tem
deve ser negociado com transparência e projetado de modo orgulho de realizar esta mostra e de também, à sua própria
a respeitar os limites de conservação do próprio pavilhão, maneira, fazer parte dessa coreografia do impossível, com-
uma joia da arquitetura modernista, e do meio ambiente, em passada pelo trabalho coletivo.
acordo com as diretrizes institucionais que buscam mitigar,
inclusive, a pegada de carbono do próprio evento.
A produção da mostra transforma o abstrato em
concreto. Estabelece pontes entre as coleções, trabalha
lado a lado com fornecedores dos mais variados ofícios,
alinha deslocamentos, trata da programação e cria as
condições necessárias para que as obras façam parte da
exposição com segurança, zelo e criatividade. A equipe de
educação apresenta cursos de formação para educadores,
estabelece ações de difusão em escolas e em centros de
pesquisa, produz publicações educativas, suas ferramentas
de trabalho, e media a relação entre as obras e os visitantes
interessados em criar novas conexões entre suas vivências
e a arte ali exibida. A comunicação, por sua vez, leva a notí-
cia e anuncia os conteúdos da mostra para um público da
Bienal cativo e exigente; ao mesmo tempo, convida pessoas
que nunca tiveram a oportunidade de conhecer a exposi-
ção de perto. Também cabe a ela coordenar as publicações,

336
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margareth menezes
ministra da cultura do brasil

Compartilhando da histórica missão do Ministério da


Cultura do Governo Federal de promover o crescimento do
campo cultural e torná-lo mais acessível, além de fomentar
a economia criativa, a Bienal de São Paulo chega agora a
sua 35a edição com mais um projeto curatorial inovador
e afinado com as questões mais urgentes de nossa época.
Esta é uma marca na trajetória deste evento, cujo objetivo
sempre foi o de receber um público amplo e mostrar o que
há de mais atual no mundo das artes, ao mesmo tempo
que promove a sustentabilidade e os direitos humanos,
essenciais para o fortalecimento de uma cultura cada vez
mais cidadã.
Desde a sua primeira edição, em 1951, a Bienal de
São Paulo tem ocupado um lugar de prestígio na cultura
nacional que vai muito além de suas exposições. Sua con-
sistente continuidade ao longo dos anos foi responsável
por formar e capacitar trabalhadoras e trabalhadores da
cultura nos mais variados campos, como educadores, crí-
ticos de arte, montadores, arquitetos, produtores, editores,
comunicadores, designers e tantos outros ofícios, com cada
projeto impactando direta e indiretamente um contingente
extraordinário de pessoas, famílias e vidas.
Dentre os impactos da mostra, é importante
destacar a impecável atuação educativa da Bienal. Cada
uma de suas edições cria as condições necessárias para se
alcançar novos públicos e fomentar o conhecimento crítico
de novos visitantes de todas as idades. Com uma equipe
de educação permanente, a Fundação Bienal de São Paulo
desenvolve cursos livres, ações de mediação e programas
de formação para educadores e mediadores, além de pro-
duzir as publicações educativas, ferramentas de trabalho
imprescindíveis para projetos artístico-pedagógicos.
Nesse quadro colorido e múltiplo da Bienal de São
Paulo, são criadas oportunidades para aprendermos mais
sobre nós mesmos, apreciarmos a diversidade do mundo e
celebrarmos a cultura. Para o Governo Federal, aqui repre-
sentado pelo Ministério da Cultura, não há união nacional
sem arte, e não há arte sem democracia. Vamos festejar
mais uma Bienal de São Paulo. Viva a arte!
itaú cultural instituto cultural vale

Em sua trajetória de 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem O Instituto Cultural Vale tem a alegria de fazer parte da
desempenhado um papel fundamental para a valorização realização desta 35ª Bienal de São Paulo — coreografias do
da arte e da cultura nas suas mais diversas linguagens e impossível e de seu programa educativo, que nesta edição
manifestações. Essa atuação se dá por meio da pesquisa, experimenta novos formatos e abordagens.
da produção de conteúdo, do mapeamento, do incentivo Diante da proposta curatorial de criar um “espaço
e da difusão, mas também das parcerias firmadas com de experimentação aberto às danças do inimaginável”,
agentes alinhados com os nossos valores, como a Fundação como definem os curadores, nos unimos a essa iniciativa
Bienal de São Paulo. que conecta arte e educação, expande o acesso à cultura
O apoio à Bienal de São Paulo – importante espaço e aproxima estudantes, professores e famílias de vivên-
de encontro e intercâmbio entre artistas, curadores, cias interdisciplinares.
críticos e público – reafirma o compromisso do IC com a Com uma curadoria conjunta, horizontal e diversa,
promoção das artes visuais e o seu papel transformador. a Bienal — maior exposição de arte contemporânea do
Nesse campo, a organização articula diversas ações, sejam hemisfério Sul — nos convida a pensar a arte como exer-
exposições físicas e em ambientes virtuais, sejam ativida- cício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como
des de caráter formativo. espaço de aprendizado.
Entre as exposições recentes, Um século de agora Nesse sentido, também se conecta ao propósito do
apresentou um panorama da arte e da cultura produzi- Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para
das atualmente no Brasil a partir da curadoria conjunta aprender, refletir, desenvolver novos olhares e comparti-
de Júlia Rebouças, Luciara Ribeiro e Naine Terena. A arte lhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em
urbana também teve seu espaço, com Além das ruas: todo o Brasil.
histórias do graffiti, em cartaz até o fim de julho. No site
itaucultural.org.br, o público encontra as mostras virtuais
Filmes e vídeos de artistas, que traz produções audiovisuais
de caráter experimental, e Livros de artista na Coleção Itaú
Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem
uma apreciação detalhada.
No âmbito formativo, o programa Entreolhares pro-
move cursos e oficinas voltados para o desenvolvimento
daqueles que atuarão profissionalmente no campo das
artes visuais. Essa e outras formações são disponibiliza-
das na Escola Itaú Cultural (escola.itaucultural.org.br). Já
a Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia.itaucultural.org.
br) é uma importante ferramenta de compartilhamento de
saberes, oferecendo acesso a verbetes de personagens, de
obras e de eventos de artes visuais.

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bloomberg sesc são paulo

A Bloomberg se orgulha de patrocinar coreografias do Diante das incessantes questões da humanidade, tal-
impossível, a 35a edição da Bienal de São Paulo. Há mais de vez valha a pena conviver um pouco mais com algumas
uma década temos apoiado as excepcionais exposições de perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que
arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão permitam escavar e construir proces­sualmente as respos-
Ciccillo Matarazzo no Parque Ibirapuera, e também pelo tas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece
Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de
A edição deste ano continua a tradição de apresentar insta- nós mesmos.
lações de arte cativantes e provocativas, que são gratuitas e O encontro entre arte e educação — ambas entendi-
abertas ao público. das como campos do saber — permite a torção do tempo e
Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes do espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutrali-
tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informa- dades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde
ções, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários essa aproximação é capaz de inferir o real e nele interfe-
em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de rir? Ela permite (re)povoar imaginários, descompassar o
negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e
dedicação à inovação e às novas ideias se estende através pessoas, e assim talhar a realidade com narrativas que arti-
do apoio de longa data às artes, que, segundo acredita- culem o individual e o coletivo, de modo processual e coe-
mos, constituem um caminho importante para motivar rente em relação às questões que atravessam a existência.
cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e
patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a a Fundação Bienal, por meio da 35ª Bienal de São Paulo,
empoderar artistas e organizações culturais para atingir reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida
novos públicos. em fomentar experiências de convívio com as artes visuais,
ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício
da alteridade.
Esta parceria, que se constitui e se renova há mais
de uma década, tem resultado na promoção de projetos
como exposições simultâneas, encontros públicos, seminá-
rios e formações para educadores, bem como a consolidada
mostra itinerante com recortes da Bienal entre unidades
do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e
proposições se integra à perspectiva institucional da cul-
tura como um direito, e concebe, junto a uma das maiores
mostras do país, um horizonte acessível para a arte con-
temporânea no Brasil.
fundação bienal de são paulo Joaquim de Arruda Falcão Neto Diretoria
José Olympio da Veiga Pereira José Olympio da Veiga Pereira ·
Fundador (licenciado) presidente
Francisco Matarazzo Sobrinho · Kelly de Amorim
1898 –1977 presidente perpétuo Ligia Fonseca Ferreira Marcelo Mattos Araujo · primeiro
Lucio Gomes Machado vice-presidente
Conselho de administração Luis Terepins Andrea Pinheiro · segunda
Eduardo Saron · presidente Maguy Etlin vice-presidente
Ana Helena Godoy Pereira de Manoela Queiroz Bacelar Ana Paula Martinez
Almeida Pires · vice-presidente Marcelo Mattos Araujo (licenciado) Daniel Sonder
Miguel Wady Chaia Francisco J. Pinheiro Guimarães
Membros vitalícios Neide Helena de Moraes Luiz Lara
Adolpho Leirner Octavio Manoel Rodrigues de Barros Maria Rita Drummond
Beno Suchodolski Rodrigo Bresser Pereira
Carlos Francisco Bandeira Lins Ronaldo Cezar Coelho
Cesar Giobbi Rosiane Pecora
Elizabeth Machado Sérgio Spinelli Silva Jr.
Jens Olesen Susana Leirner Steinbruch
Julio Landmann Tito Enrique da Silva Neto
Marcos Arbaitman Victor Pardini
Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa
Pedro Aranha Corrêa do Lago Conselho fiscal
Pedro Paulo de Sena Madureira Edna Sousa de Holanda
Roberto Muylaert Flávio Moura
Rubens José Mattos Cunha Lima Octavio Manoel Rodrigues de Barros

Membros Conselho consultivo internacional


Alberto Emmanuel Whitaker Maguy Etlin · presidente
Alfredo Egydio Setubal Pedro Aranha Corrêa do Lago ·
Ana Helena Godoy Pereira de vice-presidente
Almeida Pires Andrea de Botton Dreesmann e
Angelo Andrea Matarazzo Quinten Dreesmann
Antonio Henrique Cunha Bueno Barbara Sobel
Beatriz Yunes Guarita Catherine Petitgas
Camila Appel Frances Reynolds
Carlos Alberto Frederico Mariana A. Teixeira de Carvalho
Carlos Augusto Calil Mélanie Berghmans
Carlos Jereissati Miwa Taguchi-Sugiyama
Claudio Thomaz Lobo Sonder Paula Macedo Weiss e Daniel Weiss
Daniela Montingelli Villela Sandra Hegedüs
Danilo Santos de Miranda
Eduardo Saron
Fábio Magalhães
Felippe Crescenti
Flavia Buarque de Almeida
Flávia Cipovicci Berenguer
Flavia Regina de Souza Oliveira
Flávio Moura
Francisco Alambert
Gustavo Ioschpe
Heitor Martins
Helio Seibel
Isay Weinfeld
Jackson Schneider

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Equipe Superintendência de comunicação Administrativo-financeiro
Ana Elisa de Carvalho Price ·
Superintendências coordenadora – design Finanças
Antonio Thomaz Lessa Garcia · Adriano Campos Amarildo Firmino Gomes · gerente
superintendente executivo Eduardo Lirani Edson Pereira de Carvalho
Felipe de Melo Gomes Fábio Kato
Felipe Isola · Francisco Belle Bresolin Silvia Andrade Simões Branco
superintendente de projetos Julia Bolliger Murari
Joaquim Millan · Luciana Araujo Marques Gestão de materiais e patrimônio
superintendente de projetos Marina Fonseca Valdomiro Rodrigues da Silva Neto ·
Rafael Falasco gerente
Caroline Carrion · Larissa Di Ciero Ferradas ·
superintendente de comunicação Arquivo Bienal coordenadora
Ana Luiza de Oliveira Mattos · gerente Angélica de Oliveira Divino
Superintendência executiva Laís Barbudo Carrasco · gerente Daniel Pereira
Giovanna Querido Amanda Pereira Siqueira Victor Senciel
Marcella Batista Ana Helena Grizotto Custódio Vinícius Robson da Silva Araújo
Anna Beatriz Corrêa Bortoletto Wagner Pereira de Andrade
Relações institucionais e parcerias Antonio Paulo Carretta
Irina Cypel · gerente Daniel Malva Ribeiro Planejamento e operações
Deborah Moreira Kleber Costa Timoteo Rone Amabile
Laura Caldas Marcele Souto Yakabi Vera Lucia Kogan
Marjorie Faria Melânie Vargas de Araujo
Raquel Silva Pedro Ivo Trasferetti von Ah Recursos humanos
Viviane Teixeira Raquel Coelho Moliterno Higor Tocchio
Sheila Virginia Rocha de Juarez Fonseca dos Reis Junior
Superintendência de projetos Oliveira Castro Matheus Andrade Sartori
Leandro Melo · consultor
Produção de conservação Tecnologia da informação
Dorinha Santos · Aila Passeto Castro de Sousa · Ricardo Bellucci
coordenadora de produção estagiária Jhones Alves do Nascimento
Ariel Rosa Grininger Fernanda Lustosa · estagiária Matheus Lourenço
Bernard Lemos Tjabbes Júlia Maia Lisboa · estagiária
Camila Cadette Ferreira Julia Schettini Alves · estagiária
Camilla Ayla Milena Ondichiatti Bessan · estagiária
Carolina da Costa Angelo
Manoel Borba
Nuno Holanda de Sá do Espírito Santo
Tatiana Oliveira de Farias

Educação
Simone Lopes de Lira ·
coordenadora de produção
Thiago Gil de Oliveira Virava ·
coordenador de conteúdo
André Leitão
Danilo Pera
Diana Dobránszky
Giovanna Endrigo
Regiane Ishii
Renato Lopes
35ª Bienal de São Paulo – Audiovisual Editorial
coreografias do impossível Maxi Cristina Fino · coordenação editorial
Mit Arte · consultoria de audiovisual Igor de Albuquerque · pesquisa e
Curadoria conteúdo
Diane Lima Bombeiro civil Mariana Leme · assistência editorial
Grada Kilomba Local Serviços Especializados Ltda. Pérola Mathias · pesquisa e conteúdo
Hélio Menezes – Me
Manuel Borja-Villel Educação
Cenografia Bruna de Jesus Silva · assessoria
Sylvia Monasterios · assistência de Cinestand Tailicie Paloma Paranhos do
curadoria Metro Cenografia Nascimento · assessoria
Tarcisio Almeida · assistência de Guilherme Batista Leite · auxiliar
curadoria Conservação Maria Eduarda Sacramento de Sousa
Alice Gontijo · auxiliar
Matilde Outeiro · assistência de Camila Marchiori
curadoria 2022 Carolina Lewandowski Educação · estágio
Daniel Mussi Amira Rodrigues Varteresian
Conselho curatorial Luanda Andrade Ana Beatriz de Andrade
Omar Berrada Patrícia Reis Cangussu Lima
Sandra Benites Pollynne Santana Ana Beatriz Nascimento Pazetto
Sol Henaro Beatriz Soares Rodrigues
Thomas Jean Lax Consultoria de acessibilidade Beatriz Teles
Mais Diferenças Bruno Felipe Tavares Corrêa
Arquitetura e expografia Caroline de Alencar Goncalves
Vão – Autoria: Consultoria de acústica Eduardo André
Anna Juni João Miguel Torres Galindo Gal Rodrigues
Enk te Winkel Gladys UJU Balbino Agbanusi
Gustavo Delonero Consultora da programação pública Gustavo Albanese Pose Ribeiro
Equipe: Dora Silveira Corrêa da Fonseca
Luiza Souza Hellen Nicolau
Gabriela Rochitte Conteúdo audiovisual e registro Henrique Camargo Vidigal
Luisa Barone fotográfico Larissa Morales
Bruno Fernandes Maria Giovana de Lira Pereira
Identidade visual Danilo Komniski Marina Akemi Fukumoto
Nontsikelelo Mutiti Freddy Leal Rafael Santos Silva
Leo Eloy Rafael Tae Hyun Kim
Agência publicitária Levi Fanan Tuca Palhares de Macedo
DOJO
Desenvolvimento da área externa
Ambulância e posto médico Movediça + Junta · arquitetura
Premium Serviços Médicos Ltda. Sagaz Esportes · produção

Assessoria de imprensa Design


Index · assessoria de imprensa Tamara Lichtenstein · assistência de
nacional design
Sutton PR · assessoria de imprensa
internacional Distribuição elétrica
AGR Elétrica Ltda.

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Educação · mediação Gerência da exposição
Ana Krein Danilo Lorena Garcia
Anali Dupré Sergio Faria Lima · assistência
Andre Pereira de Almeida
Ânella Fyama de Sousa Barbosa Iluminação
Bruno Costa dos Santos Fernanda Carvalho
Caio de Sousa Feitosa Emília Ramos
Camila Aparecida Padilha Gomes Luana Alves
Caroline Luz Cristina Souto
Cristina Alejandra Mena Bastidas
Dandara Kuntê Internet
Dani Silva ITS Online
Dilma Ângela da Silva
Fauston Henrique Della Flora Limpeza
Zandona MF Produção e Eventos e
Gabri Gregório Floriano Serviços Ltda.
Giuliana Takahira
Iberê Terra de Souza Oliveira Logística de transporte
Jacob Alves Bezerra Junior Luiz Santório · internacional
Janaina Eleuterio Nilson Lopes · nacional
Jhow Carvalho
Júlia Iwanaga Montagem
Kennedy Maciel da Silva Gala Art Installation
Leonel Vicente Mendes
Lia Cazumi Yokoyama Emi Recepção de convidados
Lua internacionais
Luis Carlos Batista Janaina Fainer
Luiz Fernando Dias Diogo
Malu Bandeira Segurança
Maria Trindade Prevenção Vigilância e
Mario Tadeo Urzagaste Galarza Segurança Ltda.
Mira Lima
Mohamed de Azambuja de Ávila Seguro
Natália Dias da Mota Santos Geco corretora de seguros
Nivea Matias Silva Chubb
Pietra de Ofa Cunha Serra Liberty
Rafaella Canuto
Ricarda Wapichana Transportadoras
Roberta Uiop Alves Tegam
Rose Mara Kielela Millenium
Selva Campos
Sonia Cristina Guirado Cardoso Website
Stephanie Oliveira da Silva Namibia Chroma e
Tui Xavier Isnard Fluxo
Vinícius Quintas Massimino
Yurungai
Cleusa Garfinkel Luísa Matsushita
agradecimentos Dalton Paula Luiza Adas
Dandara Queiroz Mabel Tapia
Daniel Rangel Mami Kataoka
Daniella Conceição Mattos Araújo Manuel B. Burbano
Danielle Freire Manuela Gómez
David de Jesus Nascimento Mara e Marcio Fainziliber
Djamila Ribeiro Marcelo Expósito
Douglas Rodrigues Márcia e Marcus Martins
Eduardo F. Costantini Marco Antonio Nakata
Eduardo Guzman Cordero Marco Túlio e Vanessa Gomes
Elielton Ribeiro Margareth Menezes
Elisa Salazar y Jaime Soubrie Margherita Belcredi
Emilio Payán Mari Stokler
Emily Epelbaum-Bush María Amalia García
Eskil Lam María Amalia León de Jorge
indivíduos Facundo Guerra Maria Aparecida Weiss
Fernanda Simon Maria Carolina Casati
Adele Nelson Florencia Malbran Maria Elena Ortiz
Agar Ledo Francis Djiwornu Maria Lucia Veríssimo
Alba Sagols Françoise Vergès Maria Luisa Marinho
Alberto Cruz Gabril Planella Maria Luiza Meneses
Alice Olausson Gabriel Calparsoro Maria Prata
Alicia Pinteño Garry Trudeau Marie-Ann Yemsi
Aline Torres Geni Núñez Marie-Christine Dunham Pratt
Almudena Díez García Geraldo Sena Mario Cader-Frech
Amanda Carneiro Gilson Rodrigues Marjolaine Calipel
Ana Carolina Ralston Gustavo e Cristina Penna Marta Rincón
Ana Hikari Hacco de Ridder Max Levai
Ana Longoni Henda Ducados Mercedes Vilardell
Ana Roman Henilton Parente de Menezes Mel Duarte
Ana Tomé Henry Jackman Michelle Louise
Andrea Meneghelli Hilde Koch-Ockier & Rudy Koch-Ockier Miguel López
Anielle Franco Holly Bynoe Mira Bernabeu
Annabelle Birchenough Igi Ayedun Monique du Plessis
Annouchka de Andrade Irene Larraza Aizpurua Naine Terena
Antoine Frerot Iris Fabre Natalia Delgado
Aquiles Coelho Silva Isaac Rudman Nesrine Miloudi
Astrid Fontenelle Isaac Silva Nicola Liucci-Goutinkov Pompidou
Audrey Hörmann Isabel de Naverán Nicola Wohlfarth
Augusto Luitgards Isabel Izquierdo Noëlig Le Roux
Barbara Alves Janaron Uhãy Pataxó O'Neil Lawrence
Beatriz Martínez Hijazo Jardis Volpe Pamela Joyner
Benedita Aparecida da Silva Javier Mora Patrice Pauc
Betty Rudman João Fernandes Paula Alves de Souza
Bruce Brouwn João Paulo Quintella Paulo Borges
Bruno Duarte Johanna Stein Paulo Petrarca
Camila e Francisco Horta Jorge Fernández Philip Berg
Calixto Neto José Andrés Torres Mora Philippe Gellman
Carina Kurta José Antonio Sánchez Rachel Maia
Carla Guagliardi José Carlos Ferreira Rafael García Horrillo
Carlos Vogt José Paulo Agrello Rania Moussa Morin
Carmen Accaputo Juan Manuel Casado Raphaële Bianchi
Carmen Silva Julia Borja Regina Casé
Carmo Jonhson Juliana de Arruda Sampaio Regina Pereira
Carolina González Julie Ludwig Renan Quinalha
Caroline Bourgeois Justo Navarro Ricardo Resende
Caroline Thompson & Jean-Pierre Weill Kananda Eller Rita Carreira
Cecilia Sicupira Kathleen Fuld Rodrigo Toledo
Cécile Zoonens Kevin David Roger Buergel
Chantal Wong Kim Dang Roland Groenenboom
Charlene Vollenhoven Laís Franklin Rolando Ignacio Bulacios
Charles Esche Léa Chikhani Rongomai Kapiri-Marama
Chema González Leon Macedo Weiss Rosario Peiró
Christophe Cherix Letícia Velozo Ruli Moretti
Chia Lee Lluís Alexandre Casanovas Ryan Lynch
Cintia Delgado Lorraine Leu Sabina Sabolovic
Claudia Marchetti Lourdes Fernández Sabrina Fidalgo
Luanda Vieira Saidiya Hartman
Luciano Zubillaga Sam Krack
Lucimery Ribeiro Sandra Birmaher
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Santiago Herrero Amigo Conselho de Defesa do Patrimônio Mendes Wood DM
Sasha-Kay Nicole Histórico, Arqueológico, Artístico e Michel Rein Brussels
Sepake Angiama Turístico do Estado de São Paulo – Ministério da Cultura
Simone Leigh Condephaat Ministério da Educação
Soledad Liaño Conselho Municipal de Preservação Ministério da Igualdade Racial
Sônia Guajajara do Patrimônio Histórico, Cultural e Ministério das Relações Exteriores
Sonia Sassi Ambiental da Cidade de São Paulo – Ministerio de Culturas, Descolonización y
Stefano Carta Conpresp Despatriarcalización de Bolivia
Stephanie Ribeiro Consulado General y Centro de Promoción Ministerio de las Culturas, las Artes y el
Stuart Bernstein de la República Argentina en San Pablo Patrimonio – Gobierno de Chile
Sueli Carneiro Consulado Geral da Bolívia em São Paulo Ministerio de Relaciones Exteriores de
Suely Rolnik Consulado Geral da França em São Paulo Bolivia
Teresa Carvalho Consulado Geral da República Dominicana Ministério do Meio Ambiente
Teresa Velázquez em São Paulo Ministério do Turismo
Thai de Melo Consulado Geral da República Federal da Ministério dos Direitos Humanos e da
Thais Blucher Alemanha em São Paulo Cidadania
Thiago Baron Consulado Geral do Reino dos Países Ministério dos Povos Indígenas
Tony Webster Baixos em São Paulo Mitre Galeria
Valeria Intrieri Contemporary & Creative MO.CO. Esba
Vasif Kortoun Growth Art Center Museo de Teruel
Victoria Fernández-Layos Cultura Museo del Estanquillo
Vivi Villanova E. Righi Collection Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía
Yann Mazéas Edições Globo Condé Nast Museo Nacional de la Estampa
Yina Jiménez Suriel Editora Abril Museu Afro Brasil
Yolanda Romero Embaixada da Bolívia no Brasil Museu Amazônico – Universidade Federal
Yvette Mutumba Embaixada do Brasil em La Paz do Amazonas (UFAM)
Zoe B. Martínez Ensatt Museu Bispo do Rosário Arte
Escola Superior de Propaganda e Contemporânea – Coleção PCRJ
instituições Marketing Museu de Arte do Rio de Janeiro – MAR
Estadão Museu de Arte Osório Cesar
1 Mira Madrid Etxepare Basque Institute National Center for Art Research, Japão
A Gentil Carioca Fábricas de Cultura New Local Space – NLS
Acervo Centro Cultural São Paulo Folha de São Paulo P·P·O·W
Agência Nacional do Cinema – Ancine Fonds Kervahut / Collection Laurent Fiévet Peter Freeman, Inc.
Agência Solano Trindade Fundação Nacional de Artes – Funarte Pinacoteca do Estado de São Paulo
Alexandra Mollof Fine Art Fundação Roberto Marinho Pinault Colletion
Arario Gallery Fundación Cultural Banco Central de Practicing Refusal Collective
Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia Bolivia R/E Collection
Arsenal – Institut für Film und Videokunst Fundación Kutxa Record
Arte1 Fundación Mapfre Rede TV
ARTINGENIUM Galeria Simões Assis Samdani Art Foundation
Aruac Filmes Galerie Christophe Gaillard Santu Mofokeng Foundation
Banco de España Galerie Imane Farès Scott Mueller Collection
Banco Itaú S.A Globo Secretaria de Economia Criativa e
Band Governo do Estado Plurinacional Fomento Cultural do Governo Federal
Benson Latin American Collection, LLILAS da Bolivia Secretaria de Formação, Livro e Leitura do
Benson Latin American Studies and Hutukara Associação Yanomami Governo Federal
Collections, The University of Texas at Imec Secretaria Especial de Cultura do
Austin Infoglobo Governo Federal
Brooklyn Museum Instituto Arte na Escola Secretaria Estadual de Educação de
Catriona Jeffries Instituto Brasileiro de Museus – Ibram São Paulo
CBN Instituto do Patrimonio Histórico e Secretaria Municipal de Educação de
Ceija Stojka International Fund Artístico Nacional – Iphan São Paulo
Central Galeria Instituto Guimarães Rosa Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes
Centre Pompidou – Musée national Instituto Inhotim Sharjah Art Foundation
d’art moderne Instituto Prebisteriano Mackenzie Sprüth Magers Gallery
Centro de Documentação Cultural Jan Mot Terremoto
“Alexandre Eulalio" JCDecaux The Charles White Archives
Centro de Documentación Arkheia, MUAC Joven Pan The Elizabeth Catlett Mora Family
(DiGAV, UNAM) Konrad Fischer Galerie Living Trust
Centro de Educação Tecnológica Centro Kunstinstituut Melly The Gloria E. Anzaldúa Literary Trust
Paula Souza, Governo do Estado de KW Contemporary Art The Museum of Fine Arts, Houston
São Paulo Light Cone (Paris) Tumurun Museum Collection
Cineteca di Bologna LUMA Arles Van Abbemuseum
CNN Malba – Museo de Arte Latinoamericano Villa Arson
Colección Art Situacions de Buenos Aires
Colección Carla Barbero Marcelle Alix, Paris
Colección Mariano Yera Areyhold Marcus Meier Collection
Colección Patricio Supervielle Mario Cader Collection
Collection Antoine de Galbert, Paris Matthew Marks Gallery
Collection Prignitz, Berlin Meio e Mensagem
patrocínio master

patrocínio
agência oficial apoio

apoio internacional

apoio mídia

parceria
parceria cultural realização
créditos de imagens

aida harika yanomami, edmar ayrson heráclito e tiganá santana colectivo ayllu
tokorino yanomami e roseane yariana Foto: Leo Monteiro / Fundação Bienal [dir.] Edição de 10 cópias produzidas
yanomami de São Paulo em colaboração com Australian Print
[esq.] Foto: Roseane Yariana Yanomami Workshop, Melbourne
[todas as imagens] Cortesia: Aruac bouchra ouizguen Coleção: Museo Reina Sofía e CA2M,
Filmes © Compagnie O; Production Madri
Association Rokya / Association
amador e jr. segurança Originale; Co-production MuCEM / cozinha ocupação 9 de julho – mstc
patrimonial ltda. Festival de Marseille Foto: Edouard Fraipont
[dir.] Foto: Mônica Coster
carmézia emiliano daniel lie
amos gitaï Foto: Abreu Mubarac Comissionada por Berlin Atonal
Coleção: Museo Nacional Centro de Cortesia: Central Galeria, São Paulo Foto: Savannah van der Niet
Arte Reina Sofía, Madri Gerente de projetos de Studio Dan Lie:
Doação: Amos Gitaï, 2015 castiel vitorino brasileiro Ruli Moretti
Foto: Archivo Fotográfico Museo Foto de Sem título (Marrakech):
Nacional Centro de Arte Reina Sofía Rodrigo Jesus daniel lind-ramos
Foto: Field Studios Photography
anna boghiguian ceija stojka Cortesia do artista e The Ranch,
Coleção: E. Righi [esq. – dir.] Montauk
Pinault Collection, Paris. Foto: Rebecca
anne-marie schneider Fanuele dayanita singh
[esq.] Foto: Vincent Everarts © Dayanita Singh
[todas as imagens] Cortesia da artista e Foto: Rebecca Fanuele. Cortesia: Cortesia da artista e Frith Street
Michel Rein, Paris/Bruxelas Galerie Christophe Gaillard, Paris Gallery, Londres

archivo de la memoria trans (amt) Coleção: Marcus Meier deborah anzinger


Coleção: Archivo de la Memoria Trans Foto: Constance Mensh
Foto: Rebecca Fanuele. Cortesia:
arthur bispo do rosário Galerie Christophe Gaillard, Paris denilson baniwa
Foto: Hugo Denizart Foto: Jamille Pinheiro
Cortesia: PCRJ/SMS/IMAS-JM/ Coleção: Antoine de Galbert, Paris.
Museu Bispo do Rosário Arte Foto: Diego Cestellano Cano denise ferreira da silva
Contemporânea Foto: Alex Woodward
citra sasmita
aurora cursino dos santos Foto: Yeo Workshop diego araúja e laís machado
Coleção: Museu de Arte Osório Cesar, Comissionado e coproduzido por Sesc
Franco da Rocha São Paulo e SAVVY Contemporary
Foto: Everton Ballardin / Fundação
Bienal de São Paulo

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duane linklater george herriman igshaan adams
Cortesia do artista e Art Gallery of [todas as imagens] Coleção: Garry [esq]
Hamilton Trudeau, Nova York Foto: Annik Wetter
[esq. tradução] Ahhh… tudo Cortesia do artista e Kunsthalle Zürich,
edgar calel tranquilo…/ Plup / Ahhh… / Tudo bem Suíça © Igshaan Adams
Foto: Julio Calel / Slup / Ehhhh… / Tudo estupendo / [dir. acima]
Cortesia do artista e Proyectos Dlup / ? / Glup / Zlup / Tudo muito Coleção particular
Ultravioleta bem / Sim, tudo está como deveria Foto: Kyle Morland
estar, “calmo” !!! Cortesia do artista e blank projects,
elda cerrato [dir. tradução] Ai meu deus, meu Cidade do Cabo © Igshaan Adams
Coleção: Archivo Elda Cerrato (ECET) deus! Onde está Ignatz? / Tenho aqui [dir. abaixo]
Foto: Luciano Zubillaga este lindo ladrilho e aquele gato em Cortesia do artista e The Art Institute
nenhuma parte - é exasperante! / Oh of Chicago © Igshaan Adams
elena asins senhor Belzebu, Belzibeel, pode me
Coleção: Museo Nacional Centro de dizer por onde anda o rato Inácio? jesús ruiz durand
Arte Reina Sofía, Madri / Mas ele está em Kaibito, com o Coleção: Museo Nacional Centro de
Doação da artista, 2012 ladrilho mais doce que você já viu - e Arte Reina Sofía, Madri
Foto: Archivo Fotográfico Museo ele está esperando por você. / Sim Comodato de longa duração da
Nacional Centro de Arte Reina Sofía senhor, Krazy está em Coconino e,de Fundación Museo Reina Sofía, 2017
acordo com seus olhos, parece que Foto: Archivo Fotográfico Museo
ellen gallagher e edgar cleijne está o esperando. / Oh! obrigado Nacional Centro de Arte Reina Sofía
Coleção dos artistas senhor Grou, eu teria ficado aqui para
Coreografia/performance: Harry sempre se você não tivesse aparecido jorge ribalta
Alexander, Julie Cunningham, Werner / Coconino!!! Coconino!!! / Kaibito! Produzido com o apoio da Fundación
Hirsch, Nach, Joy Alpuerto Ritter e Kaibito!!! / Bem, não senhor, Krazy MAPFRE, Madri
Aaliyah Tanisha não está aqui, ele acabou de sair para
Cortesia: Ellen de Bruijne Projects, Kaibito. Você o encontrará lá, tenho josé guadalupe posada
Amsterdã, e Marcelle Alix, Paris certeza. / É uma pena, ele acaba de Coleção: Museo Nacional de la
sair, foi para Coconino - sim, é lá que Estampa, Cidade do México
emanoel araujo você pode encontrá-lo / Coconino!!
Cortesia: Simões de Assis, São Paulo / Coconino!!! / Kaibito!! Kaibito!!! / Não juan van der hamen y león
Curitiba vou perdê-lo outra vez, te garanto! Coleção: Kutxa Fundazioa, San
- eu ficarei aqui mesmo neste lugar Sebastián
eustáquio neves até que ele apareça… meu anjinho do Foto: Juantxo Egaña
[esq.] Coleção: Museu Afro Brasil, São amor / Eu ficarei aqui à vontade e vou
Paulo, e acervo do artista esperar aqui mesmo até que ele venha judith scott
[dir.] Coleção: Ivory Press, Londres, e - não vou mais perdê-lo, vocês podem Coleção e foto: Creative Growth Art
acervo do artista apostar Center, Oakland

francisco toledo gloria anzaldúa kapwani kiwanga


Coleção: “Visualidades y Movilización Coleção: The Nettie Lee Benson Latin Cortesia da artista, Gucci e Goodman
Social”, Centro de Documentación American Collection Gallery, Cidade do Cabo, Joanesburgo,
Arkheia, Museo Universitario Arte Cortesia: The Gloria E. Anzaldúa Londres / Galerie Poggi, Paris / Galerie
Contemporáneo, MUAC (DiGAV- Literary Trust & Benson Latin American Tanja Wagner, Berlim
UNAM), Cidade do México Collection, LLILAS Benson Latin
Doação: Amigos del Instituto de Artes American Studies and Collections, The katherine dunham
Gráficas Oaxaca, IAGO University of Texas at Austin Coleção: Library of Congress,
[vista da instalação] Washington, D.C.
Foto: Oliver Santana guadalupe maravilla Cortesia: Marie-Christine Dunham
Foto: Maxwell Runko Pratt
gabriel gentil tukano Cortesia: Guadalupe Maravilla e
Coleção: Museu Amazônico - UFAM, P·P·O·W, Nova York
Manaus
kidlat tahimik mounira al solh raquel lima
[esq.] Imagem: Kabunyan de Guia Cortesia da artista e Sfeir-Semler Criação: Raquel Lima
[dir.] Imagem: Kabunyan de Guia e Gallery Beirute / Hamburgo Realização: Lubanzadyo Mpemba e
Nona Garcia Raquel Lima
nadal walcot
luana vitra Coleção particular ricardo aleixo
Foto: Victor Galvão Foto: Rodrigo Lopes de Barros
nadir bouhmouch e soumeya ait
luiz de abreu ahmed rommulo vieira conceição
Foto: Gil Grossi / Instituto Itaú Cultural, [esq.] Foto: Soumeya Ait Ahmed & Comissionada pelo Instituto Inhotim,
São Paulo Nadir Bouhmouch Brumadinho
[dir.] Foto: Basma Rkioui Foto: Rafael Muniz
malinche
Coleção: The Nettie Lee Benson niño de elche rosana paulino
Latin American Collection, LLILAS Foto: Juan Carlos Quindós Foto: Ricardo Paulino
Benson Latin American Studies and
Collections, The University of Texas at patricia gómez e maria jesús gonzález rubem valentim
Austin [paredes] Foto: Patricia Gómez & Maria Cortesia: Instituto Rubem Valentim,
Cópia de exibição Jesús González São Paulo
[stills] Foto: Fran Condor
marilyn boror bor rubiane maia
Foto: José Oquendo pauline boudry / renate lorenz [esq.] Foto: Fenia Kotsopoulou
Cortesia da artista e José Oquendo [todas as imagens] Cortesia: Ellen de
Bruijne Projects, Amsterdã e Marcelle sammy baloji
marlon riggs Alix, Paris Foto: Martin Argyroglo
Foto: Signifyin’ Works [coreografia/performance]: Harry
Alexander, Julie Cunningham, Werner santu mofokeng
maya deren Hirsch, Nach, Joy Alpuerto Ritter, Coleção: Santu Mofokeng Foundation
© Todos os direitos reservados aos Aaliyah Tanisha (Les Gayrillères); © Santu Mofokeng Foundation
artistas Julie Cunningham, Werner Hirsch, Cortesia: Lunetta Bartz, MAKER,
Cortesia: Light Cone Latifa Laâbissi, Marbles Jumbo Joanesburgo
Radio, Nach (Moving Backwards);
melchor maría mercado Julie Cunningham, Werner Hirsch, sarah maldoror
Coleção: Archivo y Biblioteca Joy Alpuerto Ritter, Aaliyah Thanisha [esq.] © Suzanne Lipinska
Nacionales de Bolivia (No) Time) [dir.] © Bildtjänst H. Nicolaisen
[todas as imagens] Cortesia:
morzaniel ɨramari quilombo cafundó Annouchka de Andrade &
Cortesia: Aruac Filmes Cortesia: CEDAE - Centro de Henda Ducados
Documentação Cultural Alexandre
Eulálio, Universidade Estadual
de Campinas

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sauna lésbica por malu avelar com taller de gráfica popular ubirajara ferreira braga
ana paula mathias, anna turra, charles white Coleção: The Charles Coleção: Museu de Arte Osório Cesar,
bárbara esmenia e marta supernova White Archives Franco da Rocha
Foto: Marina Lima elizabeth catlett Coleção: The Foto: Everton Ballardin / Fundação
Elizabeth Catlett Mora Family Living Bienal de São Paulo
senga nengudi Trust
Foto: Adam Avila john woodrow wilson Coleção: ventura profana
© Senga Nengudi, 2023 Brooklyn Museum, Emily Winthrop [esq.] Realização: Ventura Profana,
Cortesia: Sprüth Magers e Thomas Miles Fund, 1996.47.3 © John Wilson / podeserdesligado, Rainha F., Davi
Erben Gallery, Nova York AUTVIS, Brasil, 2023 de Jesus do Nascimento, Davi
leopoldo méndez Coleção: Carlos Nascimento, Vedroso, Antoine Golay,
sidney amaral Monsiváis, Museo del Estanquillo, Carlos Queirozi
Coleção: Banco Itaú, São Paulo Cidade do México [dir.] Comissionada pelo Instituto
Foto: João Liberato margaret taylor goss burroughs Moreira Salles, São Paulo
Coleção: Prignitz, Berlim. Foto: © Coleção: Pinacoteca de São Paulo
sonia gomes Prignitz
[dir.] Foto: Bruno Leão wifredo lam
[todas imagens] Cortesia da artista e taller nn [esq.] Coleção: Museo de Arte Latino
Mendes Wood DM, São Paulo, Nova Coleção: Museo Nacional Centro de Americano de Buenos Aires; Fundación
York, Bruxelas Arte Reina Sofía, Madri Costantini 43.10
Comodato de longa duração da [dir.] Coleção: Eduardo F. Costantini,
stanley brouwn Fundación Museo Reina Sofía, 2017 Buenos Aires
De acordo com o desejo do artista, o Doação: Mirko Lauer Holoubek e Juan [todas as imagens] © Lam, Wifredo/
catálogo não reproduz nenhum dado Carlos Verme, Lima, Peru AUTVIS, Brasil, 2023
biográfico, nem imagens, nem textos Foto: Archivo Fotográfico Museo
sobre ele. Nacional Centro de Arte Reina Sofía will rawls
Esta participação tem o apoio do Foto: Liz Ligon
Consulado Geral do Reino dos Países tejal shah Comissionada por High Line,
Baixos em São Paulo. Cortesia: artista, Barbara Gross Nova York
Galerie, Munique, e Project 88,
stella do patrocínio Bombaim yto barrada
Acervo pessoal de seu sobrinho, Direção de produção Yto Barrada
cedido à pesquisadora Anna Carolina torkwase dyson Studio: Ragini Bhow
Vicentini Zacharias [esq.] Foto: Damian Griffiths
[dir. cima e baixo] Foto: Rich Lee
taller 4 rojo [todas as imagens] Cortesia: Pace
Coleção: Museo Nacional Centro de Gallery, Londres
Arte Reina Sofía, Madri
Doação: Fundación Proyecto Bachué trinh t. minh-ha
(José Darío Gutiérrez e María Victoria Body Art e Land Art: Jean-Paul
Turbay), 2021 Bourdier
Foto: Archivo Fotográfico Museo © Moongift Films
Nacional Centro de Arte Reina Sofía
créditos da publicação Organizado por Coordenação editorial
Cristina Fino
Diane Lima Equipe de Comunicação da Fundação
Grada Kilomba Bienal de São Paulo
Hélio Menezes
Manuel Borja-Villel Assistência de edição
Mariana Leme
Sylvia Monasterios ·
assistência de curadoria Projeto gráfico e diagramação
Equipe de Comunicação da Fundação
Tarcisio Almeida · Bienal de São Paulo
assistência de curadoria Tamara Lichtenstein · assistente

Preparação e revisão
Sandra Brazil
Tatiana Allegro

Tradução
Alexandre Barbosa de Souza
Ana Laura Borro
Bruna Barros e Jess Oliveira
Celia Euvaldo
Gabriel Bogossian
Mariana Nacif Mendes
Naia Veneranda

Produção gráfica
Márcia Signorini
Equipe de Comunicação da Fundação
Bienal de São Paulo

Famílias tipográficas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) LL Circular e Bagatela
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Impressão
35� Bienal de São Paulo : coreografias do impossível : catálogo – Ipsis
São Paulo : Bienal de São Paulo, 2023.

Vários autores. © Copyright da publicação: Fundação


ISBN 978-85-85298-85-2 Bienal de São Paulo. Todos os direitos
reservados.

1. Arte - São Paulo (SP) - Exposições As imagens e os textos reproduzidos nesta


2. Bienal de São Paulo (SP) publicação foram cedidos por artistas,
fotógrafos, escritores ou representantes
legais e são protegidos por leis e contratos
23-166963CDD-709.8161 de direitos autorais. Todo e qualquer uso é
proibido e condicionado à expressa autori-
zação da Bienal de São Paulo, dos artistas
e dos fotógrafos. Todos os esforços foram
Índices para catálogo sistemático: feitos para localizar os detentores de direi-
tos das obras reproduzidas. Corrigiremos
1. Bienais de arte : São Paulo : Cidade 709.8161 prontamente quaisquer omissões, caso
nos sejam comunicadas.
2. São Paulo : Cidade : Bienais de arte709.8161
Este catálogo foi publicado em setembro
Eliane de Freitas Leite Bibliotecária CRB 8/8415 de 2023, como parte do projeto da
35ª Bienal de São Paulo – coreografias
do impossível.
Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria
Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam
978-85-85298-85-2

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