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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE FÍSICA
FÍSICA BACHARELADO

LEONARDO GONÇALVES PINTO

História do Cálculo:
Fermat

São Paulo
2020
Introdução

O cálculo diferencial e integral é uma ferramenta matemática poderosa e até mesmo


essencial em muitas áreas da ciência. Porém, seu desenvolvimento levou séculos para se
aproximar da formalidade e dos diversos teoremas e conceitos que tornam esta ferramenta tão
forte e versátil para o estudo matemático da atualidade. Junto com este longo intervalo de
tempo também foram necessários grandes matemáticos, que marcaram seus nomes na história
pelos seus trabalhos na área. Um dos nomes que se destaca não apenas no desenvolvimento
do cálculo, mas também em diversas outras áreas da matemática e por ter criado um problema
matemático que levou séculos para ser resolvido é Pierre de Fermat. Com isto em mente, duas
questões que surgem são: Quais foram as contribuições de Fermat para o cálculo? E por que o
seu problema matemático levou tanto tempo para ser resolvido? Então, a partir destas
perguntas motivadoras, o seguinte trabalho busca analisar um pouco da história deste
matemático, enfatizando como ele contribuiu para o surgimento do cálculo e elucidando
diversas de suas contribuições para outras áreas da matemática.
1. Um pouco da vida e obra de Fermat

Pierre Fermat nasceu em 17 de agosto de 1601 em Beaumont-de-Lomagne, França.


Tinha um irmão e duas irmãs e era filho de um rico comerciante de couro que também atuava
como segundo cônsul na cidade, o que permitiu que Fermat recebesse uma ótima educação no
mosteiro Franciscano local. Pierre, frequentou a Universidade de Toulouse, onde estudou
direito, e em seguida se mudou para Bordeaux onde há seus primeiros registros de trabalho
matemático. Lá, pôde estudar com profundidade os trabalhos do matemático François Viète, o
que lhe proporcionou não apenas interesse na área, mas também diversas ferramentas para os
seus trabalhos posteriores.

Em 1629, ainda em Bordeaux, Fermat iniciou a restauração da obra Plane Loci de


Apolônio, um geômetra grego do século III a.C. O loci consiste em um conjunto de pontos
que compartilham uma determinada característica, e Fermat notou que esta noção poderia
ligar a álgebra à geometria, porém seus estudos só foram publicados em 1679, 14 após sua
morte, na obra Ad Locos Planos et Solidos Isagoge (Introdução a lugares planos e sólidos).
Em estudos paralelos aos de Fermat, René Descartes observou que certas equações de duas
variáveis poderiam definir curvas em um plano, então, em 1637, ele publicou o que seria a
base para criação da geometria analítica e do plano cartesiano no apêndice La Géométrie da
sua obra Discours de la Méthode Pour Bien Conduire sa Raison, et Chercher La Vérité Dans
les Sciences (Discurso sobre o método de dirigir corretamente a razão e buscar a verdade na
ciência). Estudando a obra Plane Loci, Fermat observou que as cônicas poderiam ser
expressas de forma algébrica e com isso conseguiu encontrar a forma canônica das curvas de
segundo grau, além disso, conseguiu reduzir equações de segundo grau quaisquer para suas
formas canônicas.

Ainda em Bordeaux, Fermat esteve em contato com o matemático Jean Beaugrand, e


durante este período, produziu seu importante trabalho sobre máximos e mínimos, o que viria
a ser de grande importância para o desenvolvimento do cálculo diferencial no futuro. De
Bordeaux, ele se mudou para Orléans, onde se formou em direito, para então, em 1634,
retornar à cidade de Toulouse e se tornar conselheiro da Câmara. Em algum período antes de
1638, ele ficou conhecido como Pierre de Fermat, pois passou a pertencer à nobreza francesa
da época devido ao seu cargo na câmara. Em 1638, passou a trabalhar na câmara superior, até
que em 1652, ele foi promovido ao maior nível da corte criminal. Passou o resto de sua vida
em Toulouse, e quase faleceu com a peste em 1653, onde sua morte foi falsamente reportada,
porém foi corrigida assim que souberam da sua recuperação. Pierre faleceu em 1665 na cidade
de Castres, França.

Mesmo atuando em serviços públicos durante toda sua vida, Fermat manteve seu
interesse na matemática, em que continuou se comunicando com Beaugrand e se tornou
amigo do matemático Pierre de Carcavi. Durante uma viagem a Paris, Carcavi contou para um
outro matemático chamado Marin Mersenne sobre Fermat, fazendo com que começassem a
trocar cartas. Nestas conversas, Fermat relatou sobre como conseguia encontrar áreas abaixo
de espirais numa generalização do método de Arquimedes. Ao final das cartas costumava
deixar alguns problemas que ele já havia obtido as respostas para que os matemáticos do
grupo de Mersenne resolvessem, contudo estes problemas eram considerados muito difíceis, o
que fez com que Mersenne pedisse a divulgação das resoluções e logo recebeu um texto com
o título “método para determinar máximos e mínimos e tangentes a uma curva”, além da sua
restauração de Plane Loci e sua obra Ad Locos Planos et Solidos Isagoge.

Em 1638, Fermat fez diversas críticas à obra La Dioptrique de Descartes, dizendo que
René não havia deduzido corretamente a lei da refração. Quando Descartes teve conhecimento
do trabalho sobre máximos e mínimos e retas tangentes, ele ficou ainda mais irritado com
Fermat, pois estava ofuscando seu trabalho em La Géométrie. Então Descartes atacou os
métodos de Fermat, porém após envolvimento de outros matemáticos, ele admitiu que o
trabalho sobre máximos e mínimos estava correto. Contudo, como na época Descartes tinha
um maior reconhecimento por causa de seus trabalhos já publicados, mesmo se admitindo
errado, a reputação de Fermat foi manchada dentro da academia.

Em 1654, Blaise Pascal começou a trocar cartas com Fermat para discutir o problema
do jogo dos pontos: Como devem ser divididas as apostas num jogo de azar se o jogo terminar
antecipadamente? Eles iniciaram analisando a proporção de resultados favoráveis para cada
jogador em relação a todos resultados possíveis. A correspondência dos dois deu inicio ao
estudo da probabilidade.

Grande parte da exposição matemática de Fermat foi feita após a sua morte pelo seu
filho, pois não possuía a intenção de publicar seus trabalhos, então, dificilmente finalizava-os
e muitos deles eram enviados como cartas para seus amigos matemáticos, sem que o próprio
Fermat possuísse alguma cópia dos textos.
Fermat também realizou trabalhos na teoria dos números, mesmo que em sua época
não tivesse nenhum reconhecimento, já que nem eram entendidos na sua totalidade. Porém,
Euler reviveu muitos de seus trabalhos, prosseguindo com o estudo da teoria dos números.
Muitas vezes, Fermat restringia seus estudos aos números inteiros, o que o levou a se
interessar muito pelos números primos e divisibilidade. Uma de suas conclusões sobre
n
números primos foi que todos os números da forma: 22 +1 são primos, o que Euler pode
mostrar que não é válido para n = 5, pois é divisível por 641. Outro dos trabalhos de Fermat
nesta área foi afirmar que todo número primo da forma 4k +1 poderia ser escrito como a soma
de dois quadrados. Porém, seu trabalho mais famoso ficou conhecido com ‘O último Teorema
de Fermat’, que enunciava que: x n + y n=z n não possui solução para quando x, y, z ∈ N e n > 2.
Tal teorema foi enunciado na margem da tradução da obra Arithmetica de Diofanto, e nela
também escreveu que encontrara uma prova para este teorema, porém que não cabia na
margem daquele livro. Este último teorema só veio à tona após seu filho publicar a tradução
de Arithmetica e encontrar as anotações de seu pai. Muitos matemáticos tentaram provar tal
teorema, alguns conseguiram provar para casos específicos como fez Euler para o caso n = 3,
Legendre para n = 5 e Lamé para n = 14. Matemáticos como Gauss, Sophie Germain e
Kummer falharam em comprová-lo. Este teorema ficou famoso com o passar dos séculos e até
criaram prêmios para quem conseguisse resolvê-lo. Num intervalo de 358 anos, o teorema
permaneceu sem uma prova correta, até que em 1995, o matemático Andrew Wiles
apresentou uma prova correta usando diversas ferramentas matemáticas que não eram
disponíveis no século XVII, o que levanta a hipótese de que a prova encontrada por Fermat
estava incorreta, até mesmo Andrew afirmou que seria impossível para Fermat ter encontrado
aquela exata prova, pois era necessário muitas ferramentas matemáticas modernas, logo, se
Fermat realmente provou seu teorema, há uma prova mais simples ainda desconhecida. A
demonstração de Wiles tem cerca de 200 páginas e fez com que ele recebesse diversos
prêmios e reconhecimento pelo seu feito.
2. Fermat e o Cálculo

2.1 Máximos e Mínimos

Como já mencionado, um dos principais trabalhos matemáticos de Fermat e que


possui uma forte ligação com o cálculo diferencial, diz respeito a obtenção de máximos,
mínimos e retas tangentes a curvas.

O seu desenvolvimento do método de obtenção de máximos e mínimos teve como


motivo inicial um problema em que deveria dividir um seguimento de reta em dois de forma
que o produto dos segmentos fosse maximizado. Sendo um seguimento de valor b que é
dividido de forma que um dos segmentos formados seja x, logo o outro será b-x, e o produto
máximo entre eles um valor c:

2
x ( b−x )=xb−x =c

Se c é o produto máximo, só há apenas uma raiz que satisfaz a equação, de forma que
esta raiz será dupla. Logo, Fermat buscou o valor de c em termos de b que resolvia a equação.
Então aplicando um método que conheceu nos livros de Viète sobre a relação das raízes com
os coeficientes da equação:

{
2
xb−x =c
2
by− y =c

{ xy =c
∴ x + y=b

Mas como já havia notado que a raiz deveria ser dupla, fazendo x = y:

{
b
x=
2
b2
c=
4

Na sua obra, para casos mais gerais do que polinômios do segundo grau, Fermat
explicitou as duas raízes como sendo A e A+E, onde E representava a diferença entre as duas
raízes, do ponto de máximo ou mínimo, logo, E era um número muito pequeno maior que
zero. Aplicando este método para encontrar o valor máximo bx² - x³, onde M é o máximo e A
e A + E são raízes da seguinte equação bx²-x³ = M:
{
2 3
bA −A =M
2 3
b ( A + E ) −( A + E ) =M

∴ bA2 −A 3=b ( A+ E )2−(A + E) ³

∴2bAE + bE² - 3A²E – 3AE² - E³ = 0

Dividindo os dois lados da expressão por E:

2bA + bE - 3A² – 3AE – E² = 0

Assumindo novamente que para a expressão ser máxima as raízes devem ser iguais, isto é,
sendo A = A + E, logo E = 0:

2bA - 3A² = 0

{
2b
A=
∴ 3
4b³
M=
27

O método de máximo e mínimo foi denominado de adégalité, e podia ser aplicado


para qualquer polinômio. Este método de Fermat não era rigoroso já que ele dividia os
resultados por zero e não havia o formalismo de limites naquela época, mesmo que a princípio
ele não fizesse a afirmação de que as expressões eram iguais, e sim usava o símbolo ‘~’.
Contudo, hoje em dia os mesmos resultados podem ser obtidos com a derivada da função
igualada a zero, o que caracteriza o teorema de Fermat que é ensinado na disciplina de
Cálculo I: Para funções contínuas definidas em um intervalo aberto, um ponto de máximo ou
mínimo terá o valor da derivada no ponto igual a zero.

2.2 Método para encontrar tangentes

Em seu trabalho, o estudo das tangentes foi exposto como um corolário do método das
tangentes, com o qual Fermat afirmava que poderia encontrar uma reta tangente a qualquer
curva que o fosse dada.
Utilizando uma abordagem com a notação de coordenadas e eixo cartesiano, o método
utilizava a ideia de subtangente, que consiste em um segmento de reta que vai do ponto de
tangencia perpendicularmente ao eixo das abscissas. Explicitando este método com um
exemplo:
Seja B um ponto de coordenadas (x, y) e B1 de coordenadas (x – K, y 1), que pertencem
à parábola x = y² para encontrar a tangente no ponto B, observamos que:

Figura 1: Representação da parábola e da tangente em B

y 1² = (x – K)
2
y 1 y ²= y ² ( x−K )
2
y 1 x = y (x−K )

( )
2
x y
∴ =
(x−K ) y 1

Sendo O > y 1, o segmento OI será maior que B1I:

( )
2
x y
∴ >
(x−K ) OI
Por semelhança de triângulos e sendo o segmento CE = a, nota-se que:
y CE a
= =
OI IE a−K
x a²
∴ >
(x−K ) (a−K ) ²
a² (x – K) = x (a – K) ²
a ²x – a² K < a²x − 2xaK + K²x
− 2xaK + K²x – a² K > 0
Dividindo os dois lados por K e aplicando o método de anterior (adégalité) para obter
o valor máximo para a, portanto K será igual a zero, assim com a expressão (neste passo
novamente ocorre uma divisão por zero):
− 2xa – a² = 0, a ≠ 0
∴ a=2 x
Com a subtangente estabelecida, facilmente pode ser encontrado o ponto com que a
tangente corta o eixo das abscissas, assim com este ponto e o ponto B, pode-se encontrar a
tangente. Mesmo sem o cálculo diferencial, Fermat conseguiu de forma não rigorosa,
encontrar tangentes a qualquer curva.
Nos dois métodos apresentados por Fermat, nota-se uma maior facilidade para época
de lidar, mesmo que indiretamente, com a ideia de infinitesimal. Muitos dos trabalhos
matemáticos de Fermat foram aproveitados por Newton e Leibniz durante suas pesquisas que
culminaram no surgimento do cálculo.

2.3 Áreas abaixo de curvas

Inspirado no trabalho de Arquimedes, Fermat estudou formas de obter áreas abaixo de


curvas utilizando o método de exaustão. Ele conseguiu generalizar a área abaixo de uma curva
k+1
B
polinomial do tipo y = x k pela expressão: , onde 0≤ x ≤ B .
k +1
O procedimento utilizado consistia em utilizar um número E tal que 0 < E < 1, e
dividiu o intervalo de 0 a B em subintervalos da forma:
2 1 3 2 i i −1
[BE , B ],[B E , B E ], [B E , B E ], ..., [B E , B E ], ...

Figura 2: Representação gráfica da divisão dos subintervalos

A área de cada retângulo Ri formado é:


i−1 i i−1 k
A=( B E −B E )( B E )
A = B E i−1 (1−E)B k Ek (i−1) = B k+1 ( 1−E ) (E k+1 ) i−1

Como i = 1, 2, 3, ... a área dos retângulos forma uma progressão geométrica de


primeiro termo igual a B k+1 ( 1−E ) e razão q = E k+1. Somando as áreas de todos os triângulos
formados com a fórmula de soma da progressão geométrica em que 0 < q < 1:

k +1
k+1 B ( 1−E )
At = B ( 1−E ) (1 + q + q² + ...) =
1−E k +1

Utilizando a soma para uma progressão geométrica finita de k + 1 termos, sendo o


inicial igual a 1 e a razão q = E:

k+ 1
1−E
1 + E + E² + ... + E k =
1−E

k +1
B ( 1−E ) B k +1
∴ At = =
1−E k +1 1+ E+ E ²+...+ E k

O excesso da área diminui quando o valor de E se aproxima de 1, então, sem que


houvesse o conceito de limite na época, Fermat fez E = 1 e assim obteve o resultado:

k+1
B
At =
k +1

Hoje é conhecido o conceito de integral e sabe-se que a integral de uma curva


B k+1
B
polinomial y = x tal que 0≤ x ≤ B é dada pela integral definida: At = ∫ x dx=
k k
.
0 k +1
Conclusão

O seguinte trabalho teve como objetivo relacionar a história e o desenvolvimento


matemático de Fermat com o desenvolvimento do cálculo diferencial e integral, mostrando
como este grande matemático foi de extrema importância para a evolução de diversas áreas da
matemática. Mesmo antes do surgimento formal do cálculo, Fermat ao fazer com que o fator
E de diferença entre as raízes se aproximasse de zero, demonstrou uma noção, mesmo que
meramente intuitiva, da ideia de limite, cuja foi aplicada em diversos de seus trabalhos que
foram materiais de estudo de Newton e Leibniz durante o desenvolvimento do cálculo
diferencial, como os métodos para obtenção de retas tangentes e pontos de máximo e mínimo
(motivações básicas do cálculo diferencial). Também conseguiu encontrar a área abaixo de
curvas através de uma generalização do método da exaustão de Arquimedes, sendo que seus
resultados são os mesmos do que é possível encontrar hoje em dia com o cálculo integral. E
seu teorema mais famoso, que demorou 358 anos para obter uma demonstração, é uma das
partes mais curiosas do seu trabalho matemático, já que na demonstração complexa utiliza
diversas ferramentas da matemática do século XX, incluindo o próprio cálculo, o que torna
improvável que ele realmente tenha encontrado uma prova para este teorema.
Referências Bibliográficas

CALAES, A.M, Teorema de Fermat – Resumo Histórico


MAHONEY, M.S, Dictionary of Scientific Biography
CARVALHO, S.G, A Teoria das Tangentes Antes Da Invenção Do Cálculo Diferencial
HAVEROTH, G.A, As várias faces da derivada
GUIDORIZZI, H.L, Um curso de cálculo – Volume 1
https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/Biographies/Fermat/
https://www.britannica.com/science/analytic-geometry#ref235546
https://www.britannica.com/biography/Pierre-de-Fermat/Work-on-theory-of-numbers
https://www.britannica.com/science/Fermats-last-theorem
https://mathshistory.st-andrews.ac.uk/DSB/Fermat.pdf

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