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DADOS DE ODINRIGHT

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Sarah J. Harris é escritora e jornalista independente com colaborações regulares na imprensa

britânica. No seu trabalho enquanto jornalista, aprofundou algumas perturbações cognitivas,

nomeadamente as sinestesias – relações de diferentes planos sensoriais – e as prosopagnosias –

incapacidades de reconhecimento de rostos. Mora em Londres com o marido e os dois filhos.


Título: As Cores do Assassino

Título original: The Colour of Bee Larkham’s Murder

1.ª edição em papel: junho de 2019

Autora: Sarah J. Harris

Tradução: Fernanda Oliveira

Revisão: Cátia Teixeira

Design da capa: Rute Selésio

© Sarah J. Harris, 2018

All Rights Reserved.

[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil, reservados

por Bertrand Editora, Lda.]

Bertrand Editora

Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1

1500-499 Lisboa

www.bertrandeditora.pt

editora@bertrand.pt

Tel. 217 626 000

ISBN: 978-972-25-3884-8
Para Darren, James e Luke
«Eu podia contar as minhas aventuras… a partir desta manhã», disse

Alice com alguma timidez. «Mas não adianta voltar ao dia de ontem,

porque eu era uma pessoa diferente nessa altura.»

Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll

sinestesia [ ]

nome feminino

1. fisiologia

uma sensação experimentada numa parte do corpo que não a da

parte estimulada

2. psicologia

a sensação subjetiva de um sentido que não o estimulado. Por

exemplo, um som pode evocar sensações de cor

Collins English Dictionary


1

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Tarde

O homicídio de Bee Larkham foi cristais de azul-glacial com arestas

brilhantes e pingentes de gelo prateados e serrilhados.

Foi isso que eu disse ao primeiro agente com quem falámos na

esquadra, antes que o meu pai me pudesse impedir. Queria confessar e

arrumar o assunto de uma vez por todas. Mas ele não consegue perceber

o que eu disse ou esqueceu-se de transmitir a mensagem ao colega que

está agora a interrogar-me.

Nos últimos cinco minutos e vinte e dois segundos, este homem tem

estado a fazer-me perguntas que nada têm que ver com o que aconteceu

à minha vizinha, Bee Larkham, na sexta-feira à noite.

Ele diz que é inspetor, mas não estou cem por cento convencido.

Veste camisa branca e calças cinzentas, em vez de uniforme, e estamos

sentados em sofás carmesins cheios de manchas, rodeados por paredes

beges. Há um espelho na parede à minha esquerda e uma câmara

montada no canto superior direito, junto ao teto.

Eles não interrogam criminosos aqui, pelo menos adultos. Há

brinquedos numa prateleira, juntamente com um velho anuário Top


Gear e um exemplar muito maltratado do primeiro livro de Harry Potter,

que dá ideia de que alguma criança o tentou comer. Se isto era para me

pôr à vontade, não está a resultar. Decididamente, o palhaço maneta está

a lançar-me mau-olhado.

Descrever-te-ias como feliz quando estás na escola, Jasper?

És amigo de algum rapaz do décimo primeiro ano?

Sabes alguma coisa sobre os rapazes que visitam a casa de Bee

Larkham para ter lições de música?

Miss Larkham pediu-te para entregares mensagens ou presentes a

algum rapaz, por exemplo, Lucas Drury?

Sabes para que são utilizados os preservativos?

A última pergunta é engraçada. Sinto-me tentado a dizer ao inspetor

que os invólucros dos preservativos parecem guloseimas reluzentes, mas

aprendi recentemente a resposta correta.

É SEXO: uma palavra cor-de-rosa pastilha elástica, com um

malicioso matiz lilás.

Mais uma vez, o que tem isso que ver com Bee e comigo?

Antes de o interrogatório começar, este homem disse-nos que se

chamava Richard Chamberlain.

Como o ator, acrescentou.

Não faço a mínima ideia de quem é o ator Richard Chamberlain.

Talvez seja de uma das séries policiais americanas preferidas do meu

pai: Mentes Criminosas ou CSI. Não conheço a cor da voz desse ator,

mas a voz deste Richard Chamberlain é laranja de cromo oxidado.

Estou a tentar ignorar o seu matiz, que forma uma mistura

desagradável com o ocre-baço do meu pai e me fere a vista.


Esta manhã, o meu pai recebeu um telefonema a perguntar se podia

levar-me à esquadra para responder a algumas perguntas sobre Bee

Larkham — o pai de um dos seus jovens estudantes de música tinha

feito acusações graves contra ela. A polícia tencionava interrogá-la

também, para saber o seu lado da história.

Eu não estava metido em apuros, assegurou o meu pai, mas percebi

que ele estava preocupado.

Foi ele que teve a ideia de levar os meus cadernos de apontamentos e

pinturas. Diríamos à polícia que costumo ir para a janela do meu quarto

com binóculos para observar os periquitos que fazem ninho no carvalho

de Bee Larkham. E que mantenho registo de tudo o que vejo da janela.

É importante que a polícia pense que estamos a cooperar, Jasper, e

que não estamos a tentar esconder nada.

Eu não queria correr riscos, por isso empilhei dezassete quadros

cruciais e oito caixas de cadernos de apontamentos — todos arquivados

corretamente, com as caixas etiquetadas por ordem de data — junto à

porta da rua.

Detestava o pensamento de os ter todos juntos num lugar escuro e

confinado: a mala do carro do meu pai. E se o carro tivesse um acidente

e irrompesse em chamas? Os meus registos ficariam destruídos. Sugeri

solicitamente que dividíssemos as caixas e viajássemos em dois táxis

diferentes até à esquadra, como os membros da família real, que não

podem viajar juntos no mesmo avião.

O meu pai vetou a proposta e murmurou:

— Até podia ser bom estas caixas pegarem fogo.

Gritei nuvens azul-esverdeadas com rebordos brancos e afiados

contra o meu pai até ele prometer que nunca faria mal aos meus

cadernos de apontamentos e pinturas. Mas o mal estava feito e eu não

conseguia esquecer a sua ameaça nem tirar as cores da minha cabeça;


misturavam-se rancorosamente por trás dos meus olhos. Não suportava

olhar para o meu pai ou pensar nas coisas horríveis que ele era capaz de

fazer.

E nas que já tinha feito.

Voltei para o recanto do quarto que me servia de refúgio e esfreguei

os botões do casaco de malha da minha mãe até me sentir mais calmo.

Quando saí de lá, passados vinte e nove minutos, o meu pai já tinha

guardado as coisas no carro sem mim. Tinha substituído algumas das

caixas numeradas, com os registos sobre as pessoas daquela rua, por

outras muito mais antigas, trazidas do sótão.

Cometeu um erro, disse-lhe. Estes são os meus cadernos de

apontamentos de há anos e listam personagens da Guerra das Estrelas e

artigos para venda.

O meu pai disse-me para não me preocupar, porque o mais provável

era a polícia continuar interessada na totalidade do meu trabalho e a

seleção de livros de apontamentos contribuiria para os distrair.

Não gostei desta explicação. Pior ainda, quando olhei mais

atentamente para a mala do carro, percebi que ele tinha posto a caixa

número quatro em cima da caixa número seis.

— A número quatro é laranja-cenoura traiçoeira — disse. — Não

pode ir em cima da número seis, que é rosa-escura amigável. Nem

sequer estão minimamente associadas! Como é que não sabe disso por

esta altura?

Apetecia-me acrescentar: Porque é que não consegue ver o que eu

vejo?

Não valia a pena, nunca vale. O meu pai é cego em relação a muitas

coisas, sobretudo aquelas que me envolvem. Quando era pequeno, era

sempre a minha mãe que entendia as minhas cores. Mas agora a minha

mãe já cá não está e o meu pai não quer saber.


Ele deixou-me voltar para dentro de casa, para poder girar na cadeira

da cozinha, em vez de ir outra vez a correr para o meu refúgio. Não

tínhamos tempo, mas ambos sabíamos que eu devia evitar novas

preocupações. Sentia-me como um ator a deambular por ali na minha

pele — Jasper Wishart — desde a noite em que Bee Larkham…

Não podia ir lá. Ainda não.

Eu tinha de pôr a longa e sinuosa fita do tempo em ordem na minha

cabeça. Tinha-se enredado com fragmentos cruciais danificados ou

misturados uns com os outros. Não conseguia pensar numa maneira de

repor o que acontecera no seu devido lugar.

Estar atrasado ainda me enervava mais. O meu pai disse que não

fazia mal e para não me preocupar, mas isso é o que ele diz sempre que

recebemos avisos de atraso no pagamento das nossas contas de

eletricidade. Não sei se posso continuar a confiar no seu discernimento.

Depois de ter confirmado uma segunda vez que as minhas caixas

estavam bem acomodadas na mala do carro, certificámo-nos de que

tínhamos posto o cinto de segurança, porque as pessoas têm trinta vezes

mais probabilidades de ser cuspidas de um veículo se não o tiverem.

Quando finalmente chegámos, estávamos atrasados quinze minutos e

quarenta e três segundos. O agente que estava na receção disse-nos que

não havia problema e mandou-nos sentar. Um inspetor havia de receber-

nos em breve.

A voz do agente era de um cobre-claro. Fiz um esforço para reprimir

1
uma gargalhada diante daquela ironia . Mais ninguém naquela esquadra

ia entender a piada, tirando o meu pai, que não riria. Ele não acha graça

às minhas cores.

Ansiei voar pela sala de espera como um periquito. Em vez disso,

cruzei os braços com força e fingi que era um rapaz normal de treze

anos. Olhei fixamente para o meu relógio. A contar.


Cinco minutos, catorze segundos.

A porta abriu-se com um bip, círculos turquesa-acinzentados claros,

e apareceu um homem de fato cinzento que apertou a mão ao meu pai

sem olhar para mim.

— Olá, inspetor — disse o meu pai. — É o senhor que está

encarregado da investigação sobre Bee e os rapazes?

O homem chamou o meu pai à parte e falou calmamente em linhas

cinzentas e brancas em surdina. Não falou comigo nem olhou para mim.

Ouvi o meu pai dizer ao inspetor que duvidava que eu pudesse

ajudar, uma vez que não consigo reconhecer o rosto das pessoas. Tinha

alguma coisa que ver com as minhas profundas dificuldades de

aprendizagem, segundo o meu pai suspeitava. Um dia destes, há de pedir

que avaliem a situação.

Será que o inspetor continuava a querer levar a entrevista por diante?

Podia ser uma perda de tempo para toda a gente.

— Jasper vê cores e formas para todos os sons, mas isso também não

tem grande utilidade para ninguém — acrescentou o meu pai.

Como é que ele se atreve a dizer isso? É útil para mim, porque a cor

característica das vozes das pessoas me ajuda a reconhecê-las. Além

disso, não é apenas útil, é maravilhoso — algo que o meu pai nunca irá

compreender.

A minha vida é um caleidoscópio apaixonante de cores que só eu

posso ver.

Quando olho da janela do meu quarto lá para fora, os tentilhões

fazem-me serenatas de trinados rosa ratinho de açúcar na copa das

árvores e melros indignados criam linhas de luz turquesa que me fazem

rir.

Quando estou deitado na cama nas manhãs de domingo, o meu pai

bombardeia-me com verdes-elétricos, violetas-profundos e framboesas-


verdes vindos do rádio da cozinha.

Ainda bem que não sou como a maior parte dos rapazes

adolescentes, porque consigo ver o mundo em toda a sua glória

multicolorida. Não consigo distinguir os rostos das pessoas, mas vejo a

cor dos sons, e isso é muito melhor.

Desejo desesperadamente dizer àquele polícia que, enquanto ele e o

meu pai veem centenas de cores, eu vejo milhões.

Todavia, também há cores pavorosas neste mundo que ninguém

devia ser obrigado a ver. Desde sexta-feira à noite que não consigo tirar

algumas dessas tonalidade repulsivas da minha cabeça, por muito que

tente.

Desejo ardentemente desobedecer ao meu pai e dizer ao inspetor

que, sempre que fecho os olhos à noite, a paleta torna-se ainda mais

vívida, mais brutal.

Isso acontece porque não consigo deixar de ver a cor do homicídio.

1 Na língua inglesa, a palavra «copper», que aqui se refere à cor acobreada, também tem em

linguagem coloquial a aceção de polícia. (N. da T.)


2

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Ainda nessa tarde

Antes de irmos para a esquadra, o meu pai instruiu-me para evitar

falar da noite de sexta-feira; tinha de me manter fiel ao que tínhamos

combinado. Porém, quando lá chegámos, ele foi o primeiro a desviar-se

do plano, não eu. Embora eles estivessem do outro lado da sala de

espera, conseguia ouvi-lo disparar pergunta atrás de pergunta ao agente

da polícia.

— Esta é uma entrevista formal? — perguntava ele. — Acerca dos

rapazes que iam a casa de Bee?

Ouço murmúrios vindos do inspetor, um ruído de fundo branco-

acinzentado que flutua para longe, como se não quisesse chamar a

atenção sobre si.

— Ah, está bem. Não é formal, mas sim um primeiro relato acerca

de Bee e da sua relação com Lucas Drury em particular. É isso? Tentei

explicar a Jasper aquilo que podia querer perguntar-lhe, mas é difícil

para alguém como ele

As linhas branco-acinzentadas transformaram-se em nuvens fofas e

foram-se afastando pouco a pouco.


— Já tentaram contactar a Bee? — continuava o meu pai.

Mais murmúrios sussurrados, enquanto a cabeça do inspetor se move

para cima e para baixo — qualquer coisa acerca de a polícia ainda não

ter conseguido localizá-la para a interrogar.

O que era um primeiro relato? Porque é que eu estava ali?

Os meus olhos foram de um homem para o outro, mas não descobri

nenhuma pista estampada nos seus rostos. Será que o meu pai e o

inspetor queriam que eu falasse sobre a minha primeira impressão da

voz de Bee Larkham?

Azul-celeste.

Sobre a recordação que tinha do nosso primeiro encontro?

Tenho a sensação de que vamos ser grandes amigos.

Ou quereriam saber da primeira ameaça que me fez?

Faz isto para mim esta noite, senão nunca mais te deixo ver os

periquitos da janela do meu quarto. Vou deixar de lhes dar de comer, a

menos que faças exatamente o que digo.

Eu queria que o meu pai explicasse o que estavam a discutir, mas ele

teve de ir buscar as caixas ao carro. Enquanto esperávamos, observei o

bater cinzento-pombo do meu pé e senti os olhos do inspetor

trespassarem a minha testa como uma faca até ao cérebro, como se

soubesse todos os pormenores, do princípio ao fim. Toda a história

horrivelmente colorida, sem alterações.

As paredes da sala de espera começaram a fechar-se sobre mim. Não

conseguia respirar. Não conseguia ouvir nada nem ver nenhuma cor.

Esqueci-me da história que tinha de contar, aquela que eu e o meu pai

tínhamos ensaiado em casa durante horas. Em vez disso, dirigi-me ao

inspetor, respirei fundo e comecei a confessar tudo enquanto podia. Ele

permaneceu em silêncio à medida que eu lhe contava tudo sobre os

periquitos-de-colar que faziam ninho no carvalho de Bee Larkham.


Eles são incrivelmente inteligentes e interessantes em termos

musicais, como uma orquestra vibrante. Já me arranjaram problemas

com a polícia e com os nossos vizinhos, mas continuam a ser as minhas

aves prediletas.

Mais importante ainda, disse-lhe ainda bem alto e claramente:

— Cristais de azul-glacial com arestas brilhantes e pingentes de gelo

prateados e serrilhados.

Não tive tempo de explicar que estas eram as cores e as formas dos

gritos de Bee na noite de sexta-feira, porque o meu pai regressou

carregando as duas primeiras caixas.

— Não fales sem mim aqui, Jasper — disse. — Senta-te ali.

Uma ruga funda surgiu entre os seus olhos. Estava aborrecido,

zangado ou nervoso pelo facto de eu ter iniciado a história sem ele. O

meu pai não precisava de se preocupar. Eu tinha gasto três minutos e

vinte e três segundos a descrever os periquitos e as suas cores gloriosas,

mas ainda não tinha chegado à parte de atingir Bee Larkham com a faca

afiada e reluzente e àquele sangue todo.

O olho esquerdo do meu pai tremelicou quando ele se virou para o

homem de fato.

— Na escola, a disciplina preferida dele é Artes Visuais. Se o

deixarem, fica todo empolgado a falar sobre cores e pintura.

A sua voz ocre-baça tinha-me transmitido um aviso secreto:

Fica calado ou alguém te irá levar para um mundo diferente.

Voltei para a cadeira de plástico laranja-vivo enquanto o inspetor

premia os números em forma de moedas de prata no painel da porta e

desaparecia. O meu pai andava de um lado para o outro, a carregar as

caixas. Eu descruzei os braços, para o Cobre Claro não pensar que eu

estava na defensiva e que tinha alguma coisa a esconder.

O meu pai diz sempre que as primeiras impressões são importantes.


Foca-te no rosto da pessoa e estabelece contacto visual, caso

contrário vais parecer evasivo.

Se isso for muito difícil, finge que estás a fazê-lo, fixando um ponto

por cima das sobrancelhas da pessoa.

Tenta agir com normalidade.

Não agites os braços.

Não te balances para trás e para a frente.

Não fales sobre as tuas cores.

Não contes a ninguém o que fizeste a Bee Larkham.

Lembra-te, não é por essa razão que eles querem falar connosco

hoje.

Tinha a certeza de que tinha deixado o inspetor bem impressionado.

Tinha-lhe dito toda a verdade. Bem, sessenta e seis por cento dela. Não

lhe tinha contado tudo. Não queria pensar nos restantes trinta e quatro

por cento.

Após três minutos e quinze segundos, o polícia que estava na

receção fez-nos passar pela porta. O meu pai levou as caixas para uma

salinha.

Um homem de camisa branca entrou dez segundos depois. Olhou

para mim e depois para cima, para a câmara.

— Olá, Jasper. Obrigado por teres cá vindo hoje. Para que fique

gravado, eu sou o inspetor Richard Chamberlain. O pai de Jasper, Ed

Wishart, também está presente. Estamos numa terça-feira, doze de abril,

e esta entrevista destina-se a falar sobre uma acusação feita contra a

vossa vizinha Bee Larkham.

A sua voz era uma grande sombra laranja de cromo oxidado.

— Qual é o seu nome? — indaguei eu, estremecendo.

— Richard Chamberlain, como o ator — retorquiu ele. — A minha

única pretensão à fama. Podemos começar?


Sentámo-nos frente a frente nos sofás, eu quase na borda para evitar

o que me parecia ser uma mancha de vomitado e o meu pai a puxar-me

para trás com pulso firme.

O coração tinha-me caído aos pés como um elevador envidraçado

enorme. Este não era o inspetor que tinha encontrado na sala de espera e

que ouvira atentamente e só falara com reconfortantes murmúrios

branco-acinzentados. Este era o Laranja de Cromo Oxidado, a quem

possivelmente deram o nome de um ator misterioso de uma série

policial americana.

Senti uma antipatia imediata por ele devido:

a) à sua cor (obviamente);

b) ao facto de ele falar sobre atores parvos e dizer que era famoso;

c) ao facto de olhar diretamente para mim.

Sem qualquer aviso, ele lançou-se numa série de perguntas

enigmáticas sobre a escola, os meus amigos e professores, presentes para

rapazes e embalagens de preservativos que podiam ser disfarçadas em

rebuçados cintilantes. Mas estas perguntas estavam todas erradas desde

o início — e não melhoravam.

Onde estava o homem de fato cinzento da sala de espera?

— Não quero ser indelicado, mas detesto a sua cor e não quero falar

mais consigo.

— Jasper! Já falámos sobre isto, filho… Sobre ser educado e cortês

quando respondes a perguntas.

— Sim, mas será que o agente que estava na sala de espera e que

falava com sussurros branco-acinzentados pode voltar? Ele parecia

entender-me. Não quero Richard Chamberlain como o ator. Quero o

primeiro inspetor da sala de espera.


Silêncio.

As pessoas dizem que o silêncio é de ouro. Estão enganadas. O

silêncio não tem cor.

Laranja de Cromo Oxidado fala novamente.

— Era eu que estava na sala de espera, Jasper. Conversaste comigo

sobre cores e periquitos.

— O quê?

Pega no seu bloco de apontamentos.

— Cristais de azul-glacial com arestas brilhantes e pingentes de gelo

prateados e serrilhados. Também disseste que os periquitos são

extraordinariamente inteligentes.

Olho de relance para o meu pai para confirmar a história de Laranja

de Cromo Oxidado.

A sua cabeça move-se para cima e para baixo.

— Estavas a falar com o inspetor Chamberlain enquanto eu trazia as

caixas do carro.

Mal posso acreditar. Não consigo olhar para o meu pai nem para o

inspetor da sala de espera que se transformou em Richard Chamberlain,

também conhecido como Laranja de Cromo Oxidado. Olho fixamente

para o casaco cinzento que está em cima do sofá, ao lado do inspetor.

Ele despiu-o. Não o tinha visto trazer o casaco para aqui.

— Oh! — Não me ocorre mais nada para dizer. Oh! é uma palavra

pequena, exatamente como eu me sinto.

Minúsculo. Insignificante.

Oh! Uma cor que as pessoas não conseguem ver.

— Desculpe, esqueci-me. — É mentira, claro, mas é uma mentira

útil. Como desculpe, não o tinha visto. Uso-a pelo menos uma vez por

dia, quando não reconheço alguém que devia.


— Eu tentei avisá-lo — diz a voz ocre-baça do meu pai. — Ele não

me reconhece se eu aparecer na escola sem ele estar à espera.

Tem razão.

Eu não me lembro do rosto do meu pai.

Nem do rosto de Richard Chamberlain.

Nem do de ninguém.

Vejo-os, mas não vejo. Não como uma imagem completa.

Fecho os olhos. Ouço a voz ocre-baça do meu pai, mas não consigo

evocar a imagem do seu rosto. Não conseguiria identificá-lo num

alinhamento de homens de calças de ganga e camisa azul, o seu

uniforme habitual. É isso que o meu pai traz hoje vestido? Não me

consigo lembrar. Não prestei atenção suficiente.

Quando fala, a voz laranja de cromo oxidado de Richard

Chamberlain agride-me os olhos, mas, se viesse ter comigo na rua, não

conseguiria reconhecê-lo, a menos que memorizasse um pormenor

característico: a marca do seu relógio, um chapéu, meias com uma

personagem como Homer Simpson ou a cor da sua voz. É esse o tipo de

coisas que procuro em primeiro lugar, e não a cor do cabelo ou

penteados que mudam sempre que as pessoas passam as mãos pela

cabeça.

Volto a abrir os olhos. Hoje, nenhuma das pistas habituais me

conseguiu ajudar. Laranja de Cromo Oxidado não vestia roupa fora do

vulgar. Enganou-me despindo o seu casaco cinzento e sussurrando, o

que disfarçava a cor genuína da sua voz com linhas brancas e cinzentas.

Os sussurros são sempre frustrantes para mim porque alteram

completamente a cor das vozes das pessoas. A tosse e as constipações

conseguem ludibriar-me da mesma forma, com o mesmo truque

traiçoeiro.

Mais silêncio incolor.


Dura mais do que anteriormente. Conto dez dentes com a língua

antes de Richard Chamberlain aclarar a voz, dando origem a um tom

ocre ofensivo.

— Vocês exageraram! Trouxeram a casa às costas — disse ele,

olhando para as caixas enquanto eu me empoleiro no sofá com uma

nádega levantada sobre a mancha em forma de ovo estrelado.

Suspiro.

— Nós não trouxemos a casa às costas — expliquei. — Viemos

diretamente para aqui, caso contrário, teríamos chegado ainda mais

atrasados.

— Estááá beeeeeem. — O laranja de cromo oxidado prolongou-se

numa cor de lama acastanhada igualmente desagradável.

Richard Chamberlain — tratem-me por Richard — esclarece que

estava surpreendido com a quantidade de cadernos de apontamentos que

eu tenho e repete que não havia necessidade de termos trazido tantos

hoje. Ele só quer saber se eu vi alguma coisa que possa ajudá-lo na

investigação.

Antes que o meu pai me possa impedir, tiro o caderno de

apontamentos crucial para fora da caixa número seis e abro no dia 22 de

janeiro. Este não é realmente o início, mas é um dia extraordinariamente

importante na sequência de acontecimentos que se seguiu:

7h02

Os periquitos pousam no carvalho do número 20 de Vincent

Gardens.

Uma torrente feliz de rosa-vivo, safira e gotículas douradas.

7h06
Um homem vestido com um pijama verde-couve abre a janela

do primeiro andar da casa ao lado da de Bee Larkham. Grita

palavras vermelho-tomate aos periquitos. Pista: o número 22

pertence a David Gilbert.

— Podemos saltar para a frente? — interrompe Laranja de Cromo

Oxidado, deixando-me com os nervos em franja. — Não tenho a certeza

de que isto nos leve a algum lado.

Suspiro. Estamos de volta ao ponto de partida, com Laranja de

Cromo Oxidado a fazer novamente as perguntas erradas.

Se ele fosse um inspetor a sério, ter-me-ia pedido para voltar atrás e

começar ainda mais cedo, a partir do dia em que tudo começou: 17 de

janeiro.

O dia em que Bee Larkham se mudou para a nossa rua.

Consigo compreender a impaciência de Laranja de Cromo Oxidado.

Já passaram quatro dias desde que ela morreu e parece que o inspetor

ainda não sabe que ela morreu, mas precisa de seguir a ordem correta.

Tento novamente com a minha entrada do dia 22 de janeiro, uma vez

que esta parte está nítida na minha cabeça. Não há confusão alguma:

8h29

Calças de Bombazina Vermelho-Cereja com um cão a ladrar

batatas fritas amarelas conversa com o meu pai na rua. O

Homem da Canadiana Preta junta-se a eles, mas não o ouço

falar.

Calças de Bombazina Vermelho-Cereja ameaça matar os

periquitos com uma caçadeira. A cor das suas calças, a voz

granulosa de um vermelho-baço e o cão dão-me as pistas: deve

ser David Gilbert, do número 22.


Não sei qual é a cor da voz do Homem da Canadiana Preta.

Mais tarde, confirmo a sua identidade com o meu pai e ele diz-

me que é Ollie Watkins. Nunca falei com ele. Mudou-se para o

número 18 há duas semanas para cuidar da mãe, Lily Watkins,

que está a morrer de cancro.

Faço uma pausa e espero que Laranja de Cromo Oxidado processe a

informação, pois este é o primeiro sinal de que vai acontecer um

homicídio na nossa rua. Mas ele está a bater com uma caneta no joelho e

não percebeu a pista crucial.

Toc, toc, toc.

Um som castanho-claro orlado de flocos preto-azulados.

Ignoro a cor irritante e avanço nove minutos.

8h38

Saí para a escola com o meu pai, preocupado com David

Gilbert. Ele mora na nossa rua há tanto tempo como a senhora

Watkins. Pergunto ao meu pai porque é que ele falou na

caçadeira. O meu pai diz que ele é um couteiro reformado e que

ainda vai caçar faisões e perdizes todos os anos.

Mas porque é que ninguém tenta travar o potencial

assassino, David Gilbert?

9h02

Chego à escola. Atrasado. O meu pai diz para não me

preocupar. Pede desculpa. Não devia ter mencionado o

passatempo de David Gilbert e a sua antiga profissão. Diz-me

para esquecer o assunto.


9h06

Tenho de salvar os periquitos. Concentrar-me no potencial

assassino, David Gilbert, do número 22. Na casa de banho, ligo

para o 112 do meu telemóvel e denuncio a ameaça de morte.

9h08

A operadora diz…

— Vamos fazer uma pausa, Jasper — interrompe Laranja de Cromo

Oxidado. — Acho que devemos falar sobre isto. Vejo, pelo nosso registo,

que este foi um de uma série de telefonemas que fizeste recentemente

para a polícia através do cento e doze. — Para de falar e depois

recomeça. — Estas chamadas não eram emergências. Ora, telefonemas

desnecessários para o cento e doze mobilizam recursos que podiam ser

usados para emergências reais. Fazem a polícia perder tempo.

Quem é este idiota? Está a fazer-me perder tempo neste preciso

momento, quando podia estar a olhar pelos meus periquitos. Talvez o

ator Richard Chamberlain seja mais inteligente.

— Claro que era necessário. Foi uma emergência, naquele dia. Não

percebe? Eu estava a denunciar uma ameaça iminente à vida. E vocês

deviam tê-la levado mais a sério, se queriam impedir um homicídio.

— Jasper… — começa o meu pai.

— Não faz mal. — Laranja de Cromo Oxidado levanta a mão como

se estivesse a dirigir o trânsito.

Espero que seja melhor a fazer isso do que a interrogar-me sobre

crimes graves.

— O teu pai já me explicou que desconfias que alguém na vossa rua

matou uns quantos periquitos que fazem ninho no jardim de Miss

Larkham.
— Eu sei que morreram doze periquitos. Treze, se contarmos com o

periquito bebé, que morreu a vinte e quatro de março, mas isso foi um

acidente. As outras mortes foram sem dúvida deliberadas.

A cabeça de Laranja de Cromo Oxidado move-se para cima e para

baixo.

— Sei que tens tido dificuldade em aceitar os acontecimentos

recentes.

— Sim — confirmo. — Os crimes de morte perturbam-me.

— Para, Jasper! — adverte o meu pai.

Laranja de Cromo Oxidado para novamente os carros com a mão.

— Não faz mal, senhor Wishart. Eu consigo lidar com isto.

Inclina-se para mim e eu quase caio do sofá para lhe fugir.

— Não te preocupes, Jasper. É claro que podemos discutir as tuas

preocupações relativamente à morte dos periquitos. Mas, primeiro,

gostava de falar sobre os teus amigos, Bee Larkham e Lucas Drury.

Onde é que a Polícia Metropolitana foi desencantar este homem?

Será o último sobrevivente humano de um apocalipse de zombies?

Sinceramente, pensava que era disso que estávamos a falar antes de ele

mudar bruscamente de assunto e trazer à baila o massacre dos meus

periquitos.

Devia dar-lhe outra oportunidade, suponho, apesar de ele ser

suficientemente estúpido para pensar que eu e Lucas somos amigos.

Nunca fomos amigos. Éramos amigos de Bee Larkham. Seus cúmplices

solícitos.

Tento de novo explicar-lhe.

— Cristais de azul-glacial com arestas brilhantes e pingentes de gelo

prateados e serrilhados — digo, sublinhando os pingentes de gelo porque

é um pormenor importante. É a única coisa relacionada com sexta-feira

à noite que me ficou na memória. O resto é demasiado vago; demasiadas


lacunas e pontos de interrogação, mas as pontas denteadas dos pingentes

de gelo lembram-me a faca.

— Já me disseste isso duas vezes, mas receio que as cores dos

artistas não me digam muito — diz Laranja de Cromo Oxidado. —

Olha, peço desculpa se te confundi. Vou ser franco contigo: nenhum dos

rapazes de que estamos a falar está em apuros ou em perigo. Estou a

tentar apurar alguns factos antes de localizar Miss Larkham e falar com

ela.

Tenho estado a tentar dizer-lhe que ele nunca poderá falar com Bee

Larkham, mas ele não está interessado. A sua voz raspa como unhas

num quadro de ardósia.

— Quero ir para casa.

— Por favor, Jasper. Concentra-te. Não demora muito mais tempo.

— A voz ocre-baça do meu pai tem um tom de súplica amarelado.

— Não posso fazer isto. Sou demasiado novo. Não posso fazer isto.

Sou demasiado novo.

Falo alto, mas o meu pai não ouve.

— Jasper não é propriamente a testemunha ideal para a sua

investigação — diz ele. — Deve haver outros rapazes na escola capazes

de ajudá-lo, não? Rapazes que não tenham tantas necessidades

especiais…

Eu preciso de ir para casa. É essa a minha necessidade especial. Dói-

me a barriga. Ninguém me ouve. Nunca ouvem. É como se eu não

existisse. Talvez me tenha volatilizado.

— Compreendo as suas preocupações, senhor Wishart. Irei

apresentá-las na reunião que vamos ter esta semana sobre o caso, mas

precisamos de analisar mais atentamente o relacionamento de Jasper

com Miss Larkham e Lucas Drury. Acreditamos que ele pode ter
informação capaz de ajudar as nossas investigações. Pode ter tomado

nota de horas e datas importantes relativas ao alegado relacionamento.

— Duvido.

Um agitar cor de limão claro.

Um dos meus cadernos de apontamentos protesta ao ser tocado pelos

dedos do meu pai.

— Veja esta entrada. As pessoas que entram e saem de casa de Bee

são descritas apenas com pormenores básicos: Blazer Preto entra,

Casaco Azul-Claro sai, etc. O Jasper não faz ideia da sua fisionomia,

nem mesmo se são adolescentes ou adultos. Duvido que fosse capaz de

identificar Lucas ou qualquer outro rapaz.

O meu pai folheia o caderno de apontamentos.

— A maior parte das entradas de Jasper nem sequer se referem a

pessoas. Têm que ver com os periquitos que fazem ninho na árvore de

Bee e com outras aves. Ele é um perfeito ornitólogo.

A mão de Laranja de Cromo Oxidado entra numa caixa e tira para

fora um caderno de apontamentos azul que tem um coelho branco na

capa.

— Isso não está certo — digo, surpreendido. — O coelho não

pertence aí.

— Está bem, desculpa — diz Laranja de Cromo Oxidado.

O caderno de apontamentos com o coelho branco volta para o seu

esconderijo na caixa.

— Olhe para este caderno — diz o meu pai, segurando um outro. —

Tem tudo que ver com cores. Que interesse tem isso para si? Ou para

quem quer que seja?

Apetece-me gritar, espernear e esbracejar.

O meu pai não vê a minha diferença de forma positiva, do género

vencedor do Fator X. Ele não olha para as cores que podemos ter em
comum, apenas para aquelas que nos separam.

Preciso de me aguentar. Tenho de me concentrar na cor de que mais

gosto no mundo: azul-cobalto.

É tudo o que me resta da minha mãe — a cor da sua voz —, mas,

depois de Bee Larkham se ter mudado para a nossa rua, a tonalidade foi-

se diluindo. Aconteceu gradualmente e só dei por isso quando já era

demasiado tarde.

— Leve-me para casa! — digo. — Agora! Agora! Agora!

A cor e a forma irregular da minha voz deixam-me chocado.

Normalmente, é azul-frio, um tom mais claro do que o azul-cobalto da

minha mãe. Hoje, parece estranho. Na verdade, está um tom mais escuro

do que o da minha mãe, certo? Mais acinzentado. Não me consigo

lembrar. Preciso de me lembrar dela. Quero pintar a voz dela.

— Tenho de me ir embora!

Demasiado tarde. A cor dela está a escapar-me por entre os dedos,

como areia. Cubro os olhos com as mãos. Quero guardar o azul-cobalto

vivo e tranquilizador por trás das minhas pálpebras.

Esfrega, esfrega, esfrega.

Quero o casaco de malha dela. Esqueci-me de trazer um dos botões

para esfregar, porque estava concentrado em certificar-me que as caixas

estavam na ordem correta.

Olho para o outro lado da sala e sinto picadas na nuca. Laranja de

Cromo Oxidado disse-me que o espelho era ornamental, como o quadro

com o barco na parede do fundo. Insistiu que não havia ninguém por trás

dele, mas não posso confiar na sua cor.

Há alguém em pé, atrás do espelho, a analisar o meu rosto, os meus

maneirismos, e a rir-se das minhas confusões. Há três desconhecidos

sentados em sofás carmesins deste lado do espelho.

Não reconheço nenhum deles.


O mais pequeno, o que tem cabelo louro-escuro e se balança para

trás e para diante, abre a boca e grita.

Azul-claro com linhas verticais tingidas de violeta.

Ele vomita em cima do sofá.

O meu pai está calado. Não liga o rádio na Radio 2 nem tamborila

com os dedos no volante. Creio que não é de estranhar, tendo em conta o

episódio embaraçoso de eu ter vomitado. Continua zangado comigo,

embora Laranja de Cromo Oxidado tenha dito para ele não se preocupar.

Que havia muitos miúdos que vomitavam naquela sala e que a polícia dá

emprego a alguém encarregado de limpar aquela porcaria. O meu pai diz

que é o tipo de profissão que me espera se não me esforçar mais por me

controlar.

Decididamente, aquele sofá já tinha levado com muito vomitado. De

que é que Laranja de Cromo Oxidado estava à espera quando pendurou

um espelho psicadélico na parede? Num minuto pensamos que estamos

sozinhos, no minuto seguinte estamos rodeados de estranhos.

Ele mostrou-me o que havia por trás do espelho depois de eu me ter

acalmado; era uma parede normal.

Não havia nenhuma janela escondida para outra sala.

Não havia gravadores.

Tento abstrair-me das cores escuras e formas hostis dos camiões e

carros que passam por nós. O meu pai não disse uma palavra desde que

ligou o motor, laranja-adocicado com notas de amarelo-vivo. Talvez não

esteja zangado comigo. Talvez esteja a pensar em Bee Larkham.

Ele sabe que ambos precisamos de tempo para pensar no que

aconteceu — eu sem a distração de cores e formas desnecessárias, e ele

sem mim a falar continuamente sobre cores e formas.


Devia tentar fazê-lo sentir-se melhor, considerando tudo o que fez

por mim. Ele não me obrigou a sair do meu refúgio nos últimos três

dias, a não ser para ir à esquadra. Ontem, telefonou para a escola e disse

que eu estava cheio de dores de barriga. Pelo menos, não era mentira.

— Não se preocupe, pai — digo finalmente. — Acho que

conseguimos.

— Conseguimos o quê? — pergunta, sem olhar para trás.

— Safámo-nos lindamente. Richard Chamberlain, como o ator, não

sabe de nada.

O meu pai diz uma palavra que parece vomitado amarelado de gato.

Detesto palavrões. Ele sabe que eu detesto palavrões.

Está a vingar-se de mim por ter vomitado em cima do sofá de

Laranja de Cromo Oxidado.

— Desculpa, Jasper. Não devia ter usado essa palavra.

Compreendeste alguma coisa do que te disse? Aconteceu aquilo que

pensavas?

Fecho os olhos com força e enrolo-me numa bola debaixo do cinto

de segurança.

Sim, compreendo. Sim, penso. Foi isso que aconteceu ali.

Apesar dos avisos repetidos dele para ficar calado, tentei confessar.

A sério que sim, porque lamento imenso o que aconteceu na cozinha do

número 20 de Vincent Gardens. Mereço ser castigado.

Laranja de Cromo Oxidado não quis ouvir. Duvido que vá começar a

procurar o corpo de Bee Larkham.

O que me dá tempo.

Tempo para proteger os periquitos sobreviventes. Preciso de mais

tempo, cerca de quatro dias até os filhotes começarem a abandonar o

ninho no carvalho e o beiral de Bee Larkham e voar para longe dos

perigos que os espreitam na nossa rua.


Mas não posso ir-me embora.

Já não posso ignorar as cores. Tenho de enfrentar a verdade. Tenho

de me lembrar do que aconteceu na noite em que assassinei Bee

Larkham.
3

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Noite

Deitado na cama, passo o indicador pelas fotos de periquitos-de-

colar que tenho na minha Enciclopédia de Aves. O periquito macho

adulto é facilmente identificável devido ao colar rosa e preto à volta do

pescoço. As fêmeas também têm estes colares, mas em tons de verde

semelhantes aos do seu corpo, sendo assim mais difíceis de distinguir.

Doze mortes, no total.

Antes de morrer, Bee Larkham não me disse quantos machos versus

fêmeas foram chacinados. Tenho de começar um novo recenseamento,

antes que seja demasiado tarde. Antes que os ninhos sejam

abandonados.

Depois de chegarmos a casa, vindos da esquadra, o meu pai não me

perguntou se me apetecia ir às aulas da tarde. Enquanto ele fazia

torradas com queijo e procurava analgésicos para a minha barriga,

peguei no saco de sementes meio cheio. Consegui chegar ao corredor

antes de ele me impedir.

Não vás a casa de Bee Larkham para dar de comer aos periquitos.

Prometes?
Não ponhas bocados de maçã no chão do nosso jardim para os

pássaros. Vai atrair ratazanas.

Prometes?

Acabaram-se os telefonemas para o 112.

Prometes?

É uma palavra cinzento-rosada de pontas reviradas, que me provoca

sempre uma estranha sensação de dor na barriga — não na parte de fora,

onde queima agora como gelo seco e parece uma boca meio aberta.

Concordei, mas estava a fazer figas atrás das costas, o que significa

que não contava. Alguém tem de alimentar os periquitos, pois Bee

Larkham já não o pode fazer.

O meu pai ainda não se apercebeu, mas a casa de Bee Larkham já

está a tentar chamar a atenção. Os seis comedouros de pássaros no

jardim estão vazios desde sexta-feira à noite. Ela não pendurou

amendoins nem pôs pratos de maçã cortada e sebo.

Bee Larkham não ligou a sua música no máximo como de costume.

Os periquitos não ouviram uma serenata e os vizinhos não se queixaram

do barulho.

Ao princípio do dia, não abriu a porta da frente aos alunos de piano

e guitarra que têm aulas de quarenta e cinco minutos com ela a partir

das quatro da tarde, quando termina a escola. A casa permanece à

escuras e em silêncio desde sexta-feira — o dia azul-índigo em que Bee

Larkham morreu.

Eu sei estes factos importantes porque me barriquei no quarto depois

de o meu pai me ter impedido de sair de casa para dar de comer aos

periquitos. Inicialmente, concentrei-me em pintar a voz da minha mãe,

mas as tonalidades não estavam certas. As cores mostraram-se pouco

cooperantes e rudes. É assim que o meu pai me descreve.

Difícil.
Ele disse que ia trabalhar a partir de casa durante o resto do dia, mas

eu conseguia ver a cor da televisão lá em baixo, enquanto pintava.

Passada meia hora, quando o verdadeiro azul-cobalto da minha mãe

recusou revelar-se e as riscas pretas e prateadas da televisão se tornaram

demasiado perturbadoras, abandonei os meus tubos de tintas azuis e fui

para a janela com os binóculos.

Como de costume, fiz o registo de toda a atividade relevante e

utilizei um caderno de apontamentos novo, azul-violáceo. Comecei-o de

propósito, porque me pareceu a coisa certa a fazer: manter as notas

relativas ao «depois» separadas e não contaminadas pelas notas relativas

ao «antes».

15h35 — Periquito macho voa para os ramos, com bagas no

bico.

16h02 — Aula de piano de Bee. Rapaz com Casaco Azul

Guarda-Rios chega dois minutos atrasado. Sobe o caminho da

entrada a correr. Olha para os comedouros dos pássaros vazios.

Bate à porta com cor de caixa de cartão. A porta não se abre.

Rapaz com Casaco Azul Guarda-Rios desce a rua.

16h11 — Cinco jovens periquitos juntam-se num ramo.

16h45 — Aula de guitarra de Bee. Rapaz com Casaco Verde-Mar

bate ao de leve, castanho-acinzentado. A porta não se abre.

Rapaz com Casaco Verde-Mar volta para o carro preto.

Bee Larkham também teve uma visita inesperada que não fazia parte

do seu horário de aulas habitual.

17h41 — Homem com Boné de Basebol Azul-Escuro.


Bam, bam, bam.

— Abre a porta, Bee! Precisamos de falar! — Nuvens de castanho-

sujo recortadas a antracite.

Senti-me tentado a inclinar-me para fora da janela e gritar: Vá-se

embora e leve as suas nuvens consigo!

É claro que não consegui. Tinha demasiado medo do Homem com o

Boné de Basebol Azul-Escuro. Não tinha a certeza se já o tinha visto

antes, mas sabia que não gostava das suas cores. Nem do seu boné de

basebol.

Eu tinha perscrutado a árvore com os meus binóculos. Os periquitos

continuavam escondidos nos ramos mais altos; até mesmo os mais novos

não chamaram a atenção com os seus grasnidos ruidosos. Pássaros

espertos.

17h43 — Homem com Boné de Basebol Azul-Escuro recua no

caminho da entrada, olhando para a janela do quarto de Bee, lá

em cima. Dá meia-volta.

A caneta tinha-me caído da mão, deixando gotículas de um

impiedoso castanho-claro no tapete verde. Eu mergulhei em direção ao

meu refúgio e escondi-me debaixo dos cobertores. Fiquei naquele casulo

escuro e quente, a passar os dedos pelos botões do casaco de malha da

minha mãe e a cheirar o perfume a rosas.

Por fim, saí de lá e espreitei pela minha janela. O Homem com o

Boné de Basebol Azul-Escuro tinha desaparecido. 18h14. Eu sei porque

verifiquei a hora no meu relógio de pulso e no da mesa de cabeceira. É

importante ser preciso em relação aos pormenores.

Tenho de registar o resto agora, uma hora e quarenta e dois minutos

depois das 19h56, caso contrário não vou conseguir dormir, sabendo que
os meus registos estão incompletos. Pego na caneta de tinta permanente

azul que tenho ao lado da cama e recomeço a frase. Parece melhor

assim, quando a minha escrita não está em pânico e a tentar fugir da

página. Escrevo:

17h43 — Homem com o Boné de Basebol Azul-Escuro recua

pelo caminho, olhando para cima, para a janela do quarto de

Bee. Dá meia-volta e vê-me a observá-lo com os binóculos.

Avança a passos largos em direção à nossa casa.

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18h14 — O Homem com o Boné de Basebol Azul-Escuro

desapareceu.

O que aconteceu durante os trinta e um minutos em que estive

escondido no meu refúgio? Não sei responder aos trinta e três pontos de

interrogação que rabisquei.

Será que o Homem do Boné de Basebol Azul-Escuro planeava

confrontar-me com o facto de eu estar a bisbilhotar e depois mudou de

ideias? Não ouvi o meu pai abrir a porta da rua. Tinha tapado os ouvidos

com as mãos e cantado bem alto «Bad Blood», da Taylor Swift. Ainda

assim, teria ouvido, não é verdade? Teria visto as formas castanho-

escuras das pancadas na nossa porta.

Teria ouvido a cor de vozes.

Atualizo os meus apontamentos:

Quem era o Homem com o Boné de Basebol Azul-Escuro e

o que queria ele com Bee Larkham?


4

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Ainda nessa noite

Depois de atualizar os meus apontamentos, enfio o caderno debaixo

da minha almofada e volto a passar o dedo pela foto do periquito macho.

Não quero pensar no Homem com o Boné de Basebol Azul-Escuro.

Posso voltar a ter pesadelos e isso faz-me dores de barriga, mesmo tendo

tomado os analgésicos que o meu pai me deu.

Também não quero pensar no sangue, mas não posso deixar de me

preocupar. Não desapareceu. Provavelmente, o meu pai enfiou a faca e a

roupa que eu estava a usar na sexta-feira à noite atrás do corta-relva, no

barracão que temos ao fundo do jardim. É aí que ele esconde o

contrabando furtivo, cuja existência crê que desconheço: maços de

cigarros de emergência, embora devesse ter deixado de fumar.

— Está tudo bem aí dentro? — Ocre-baço.

A enciclopédia tenta fugir de cima do meu edredão. Consigo apanhá-

la a tempo, batendo com o cotovelo na almofada para proteger as minhas

anotações. O meu pai não pode descobrir que continuo a fazer registos e

a guardar segredos. Ele não vai gostar de ouvir as coisas de que me

tenho lembrado.
São 19h59. O meu pai vem dar-me as boas-noites mais cedo do que

é costume. Deve estar quase a começar um episódio novo de Mentes

Criminosas.

— Foi um dia duro, mas já chegou ao fim — diz. — Não quero que

te enerves com a polícia. Falei com o inspetor Chamberlain esta tarde e

já tratei de tudo. A Bee agora não é problema nosso.

Concentro-me nas fotografias dos periquitos.

— E o corpo dela?

O meu pai respira fundo com laivos de ocre-esfumado.

— Já falámos sobre isto um milhão de vezes. Eu combinei tudo com

a Bee. Podes deixar de te preocupar com ela.

— Mas…

— Olha, estou a dizer-te que ela não nos vai incomodar mais.

Prometo.

Silêncio. Sem cor.

— Jasper? Ainda estás comigo?

— Sim. Ainda aqui estou. — Infelizmente. Quem me dera não estar.

Quem me dera ser um periquito enroscado no fundo do ninho, no

carvalho sobranceiro à estrada. Aposto que é confortável. Depois de os

esquilos se terem ido embora, foi o ninho de um pica-pau, mas os

periquitos ocuparam-no. Eles expulsam sempre outras aves nidificantes,

como os pica-paus cinzentos, disse David Gilbert.

— Jasper! Olha para mim e concentra-te no meu rosto. Concentra-te

no que estou prestes a dizer.

Não quero.

Desvio o olhar do livro, não vá o meu pai tentar levá-lo, assim como

o saco de sementes. Reúno as suas feições numa imagem concisa na

minha cabeça: os olhos cinzento-azulados, o nariz grande e os lábios


finos. Fecho os olhos e a imagem desaparece novamente, como se nunca

a tivesse desenhado.

— Abre os olhos, Jasper.

Faço o que diz e o meu pai volta a aparecer como que por magia. A

sua voz ajuda. Ocre-baço.

— Já te disse que a polícia não vai encontrar o corpo de Bee, porque

não há corpo para encontrar.

Agora é a minha vez de inspirar a cores entredentes. É um azul mais

escuro e metálico do que antes.

Ele está a tentar distanciar-nos a ambos do que aconteceu na cozinha

de Bee Larkham na sexta-feira à noite. Talvez ele pense que Laranja de

Cromo Oxidado pôs escutas no meu quarto. Podia ter posto aparelhos de

escuta na casa inteira. A polícia está sempre a fazer isso em Lei e

Ordem.

Imagino uma carrinha escura estacionada à porta de nossa casa, com

dois homens lá dentro, de auscultadores nos ouvidos, a escutar tudo o

que eu e o meu pai dizemos, na esperança de que deixemos escapar algo

incriminatório sobre Bee Larkham.

Tenho de me manter fiel à nossa história.

Não há corpo.

Repito as palavras baixinho.

A polícia não pode encontrar o corpo de Bee Larkham se não o

procurar e a polícia não anda à procura do corpo, tal como Laranja de

Cromo Oxidado provou. Ele pisou o rasto de migalhas ao estilo Hansel e

Gretel que lhe deixei, sem notar que elas levam à porta das traseiras da

casa de Bee Larkham. Continuam até ao interior da cozinha e param

abruptamente.

Não sei onde é que as migalhas voltam a aparecer. O meu pai não me

contou o que aconteceu depois de eu ter fugido de cena. O corpo dela


podia ficar a apodrecer durante meses até ser encontrado.

Se alguma vez for encontrado.

Não há corpo para encontrar.

— Está bem, pai. Se tem a certeza…

— Tenho. Fica longe da casa de Bee e deixa de falar sobre ela. Não

quero voltar a ouvir-te mencionar o nome dela. Quero que te esqueças

dela e do que aconteceu entre vocês os dois na sexta-feira à noite. Nada

de bom virá de falar sobre isso.

Movo a cabeça para cima e para baixo.

O meu pai deve saber o que é melhor, porque, diz ele, é mais velho e

mais sensato do que eu. O problema é que, afirme ele o que afirmar,

continua a parecer-me errado.

Tiro uma fotografia de baixo do livro que tenho na mesa de

cabeceira. É nova. Não é nova no sentido de alguém ter acabado de tirar

uma foto à minha mãe, o que seria impossível. Ela morreu quando eu

tinha nove anos. Não me deixaram ir ao funeral porque o meu pai disse

que seria demasiado perturbador para mim. Nunca tinha visto aquela

fotografia — nem nos álbuns nem na gaveta da mesa de cabeceira do

meu pai. Encontrei-a na parte de trás do armário de arquivo do

escritório.

Olho para as seis pessoas ali alinhadas.

— Qual delas é a mãe?

— O quê? — O meu pai está a olhar para o relógio. Estou a privá-lo

de assuntos importantes que envolvem o FBI. Os enredos são

complexos. Nunca irá conseguir perceber o que está para trás.

— Qual delas é a minha mãe? — repito. — Nesta foto?

— Deixa-me ver.

Levanto a fotografia, mas não o deixo tirar-ma. Pode manchá-la com

uma dedada e estragá-la.


— Meu Deus, há anos que não via esta foto. Onde é que a

encontraste?

— Hum… — Não quero admitir que andei outra vez a remexer no

arquivo e nas gavetas do seu escritório.

Depois dos periquitos e de pintar, o meu passatempo favorito é

esquadrinhar as coisas do meu pai quando ele não está por perto.

— Estava presa atrás de outra foto, no álbum. — É só uma

mentirinha no grande esquema das coisas.

As sobrancelhas do meu pai unem-se ao centro.

— Uau! Isto traz-me recordações. É a festa de aniversário dos

setenta e cinco anos da avó.

Interessante, mas não respondeu à minha pergunta.

— Qual delas é a minha mãe?

Ele suspira, formas suaves de botão ocre-claro.

— A sério que não sabes?

— Estou cansado. Não consigo concentrar-me como deve ser. — Lá

está outra vez a mentira útil, uma amiga de confiança, como o número

seis rosa-escuro.

— É aquela — diz ele, apontando. — A que está mais à direita na

fotografia.

— É a mulher de blusa azul com os braços à volta dos ombros

daquele rapaz — repito para comigo, para me ajudar a memorizar a sua

posição na foto.

— Dos teus ombros. Ela está a abraçar-te. Estão ambos a sorrir para

a câmara.

Olho fixamente para os rostos desconhecidos.

— Quem é aquela? — Aponto para outra mulher, mais afastada.

Também está de blusa azul, o que se torna confuso.


— É a tua avó. Faleceu um mês… — A sua voz ocre-baça morre-lhe

nos lábios.

Termino a frase por ele.

— Um mês depois de a mãe ter morrido. O seu coração parou de

bater devido à dor e ao choque de perder a única filha.

O meu pai inspira rapidamente.

— Sim. — A palavra é como uma seta dentada, a assobiar pelo ar.

Rebato o seu ataque gratuito.

— Ela sabia que não podia substituir a mãe. Isso teria sido

impossível.

— Claro que não podia substituir a mãe. Não podemos substituir

pessoas, como se fossem bens. A vida não funciona assim, Jasper.

Compreendes isso, certo?

Lá no fundo, ele deve saber que é um mentiroso, mas não quero

pensar sobre isso, agora.

— De que cor era a voz da minha mãe? — pergunto, mudando de

assunto.

O meu pai volta a olhar para o relógio. Deve ter premido o botão de

«pausa» no comando, antes de ter subido para desejar boa-noite. Perdeu

seis minutos e vinte e nove segundos de Mentes Criminosas.

Provavelmente, algum assassino em série já atacou.

— Tu sabes qual era a sua cor. É a cor que tu dizes sempre que era a

dela.

— Azul-cobalto. — Fecho os olhos, tal como fiz na esquadra. Não

resulta. Abro os olhos e fico a olhar para as minhas pinturas. Alinhei-as

por baixo do peitoril, por baixo dos meus binóculos. Elas lançam-me um

olhar acusador.

— A mãe é azul-cobalto. É o que quero lembrar sobre ela. Fitas

reluzentes de azul-cobalto quando gritava: «Amo-te, Jasper! Hei de


amar-te mesmo quando já cá não estiver.»

— É a sua cor — diz o meu pai. — Azul.

— A sério? Ela era mesmo azul-cobalto?

Ele encolhe os ombros.

— Não faço ideia. Quando a mãe falava comigo, eu via…

— O quê? — Mordo o lábio, à espera. — O que é que via?

— Apenas a mãe. Sem cor. A mim, parecia-me normal. Tal como

parecia normal a toda a gente, menos a ti, Jasper.

Ele dá meia-volta, mas eu não posso deixar a cor da minha mãe

desaparecer.

— Costumava falar sobre a mãe ser azul-cobalto quando era miúdo?

— pressiono. — Nunca mencionei outro tom de azul? Como o azul-

celeste?

— Não vamos fazer isto agora. Já é tarde. Estás cansado e eu

também estou exausto.

Ele quer dizer que não quer voltar a falar das minhas cores. Quer que

eu finja ver o mundo como ele, monocromático e em surdina. Normal.

— Isto é importante. Tenho de saber que estou certo. — Dou um

pontapé ao edredão, que está a estrangular-me os pés.

— Mas onde é que eu tenho a cabeça? Claro que era azul-cobalto. —

A voz do meu pai tem um tom suficientemente ligeiro para ser levado

por uma suave brisa estival. — Não te enerves com isso antes de te

deitares. Precisas de dormir. Amanhã há escola e eu tenho de trabalhar.

Não posso tirar mais um dia de folga. Tens de parar de pensar em Bee.

Ele volta atrás, inclina-se e dá-me um beijo na testa.

— Boa noite, Jasper.

Quatro grandes passadas e o meu pai está junto à porta. Encosta-a

com a fresta habitual de exatamente sete centímetros e meio.

Acabou de dizer mais uma mentira.


Esta noite não é boa. Longe disso.

Espero até ouvir o ranger castanho-avermelhado da poltrona de pele

da sala, antes de saltar da cama e ir buscar novamente as pinturas que fiz

da voz da minha mãe.

O tom exato do seu azul-cobalto não vem pronto num tubo de tinta.

Tem de ser criado. Tentei alterar a tonalidade juntando branco e misturei

preto para alterar o cambiante, mas tudo o que tento sai mal.

Se estas obras de arte me estão a induzir em erro, será que as minhas

outras pinturas também são uma série de mentiras? Examino com

cuidado as caixas no meu roupeiro e tiro todas as pinturas a partir do dia

em que Bee Larkham chegou e daí para a frente. Há setenta e sete no

total, que eu ordeno por categorias: os periquitos; canções de outras

aves; as lições de música de Bee; os sons quotidianos.

Não estou preocupado com estas imagens. As suas cores não podem

fazer-me mal.

Não como as vozes que eu ordeno em pilhas separadas para estudar

as suas cores com mais pormenor: Bee Larkham. O meu pai. Lucas

Drury. Os vizinhos.

Todos os principais protagonistas.

Pintei-as para me ajudarem a lembrar-me dos seus rostos.

Movo as imagens e disponho as vozes em montes separados, para

analisar mais pormenorizadamente as suas cores.

Algumas delas recusam-se a ser postas por ordem. As cores das

conversas fundem-se umas nas outras e transformam-se em matizes

completamente diferentes.

É nessa altura que vejo finalmente o que nunca consegui ver antes.

Foi ali que começaram os meus problemas e é por isso que não consigo

representar a voz da minha mãe a cem por cento: já não sei quais as
cores das vozes que são boas e genuínas, quais as que me estão a

enganar e quais as que são descaradamente mentirosas.

Preciso de começar de novo. Só saberei o que aconteceu se conseguir

pô-las como deve ser. Se conseguir separar as cores boas das más.

Molho um pincel grande e misturo amarelo-cádmio com carmesim-

alizarina na paleta.

Sinto-me mais calmo e mais forte. Tenho tudo sob controlo. Vou

pintar esta história desde o início — desde 17 de janeiro —, o dia em

que começou. A minha primeira pintura chama-se: Laranja-Sanguíneo

Ataca Azul-Brilhante e Círculos Violeta em tela.

Vou obrigar as cores a dizerem a verdade.

Uma pincelada de cada vez.


5

17 DE JANEIRO, 19H02

Laranja-Sanguíneo Ataca Azul-Brilhante

E Círculos Violeta em tela

O dissonante laranja-sanguíneo matizado com um rosa-doentio

exigia toda a minha atenção, ao mesmo tempo que três pegas discutiam

ruidosamente com um pássaro não identificado no carvalho do

maltratado jardim da frente do número 20. A casa estava desocupada até

nos termos mudado para lá há dez meses, e várias espécies de aves

tinham reivindicado as árvores e a folhagem.

Através dos binóculos que o meu pai me tinha comprado pelo Natal,

observei as pegas a bater as asas e a lutar rancorosamente.

Normalmente, utilizava os binóculos para ver os pássaros a fazer cores

em Richmond Park, durante os nossos passeios de domingo à tarde:

pica-paus, aves canoras e gaios, mais difíceis de avistar.

Não conseguia ver qual era o pássaro com que as pegas discutiam,

mas já o respeitava. Embora em inferioridade numérica, defendia

corajosamente o seu território. O pássaro continuava escondido atrás de

um ramo, a cor da sua voz abafada por novas formas pontiagudas.


Uma grande carrinha azul parou à frente da casa, mas as pegas não

desistiram do seu ataque cruel. Um homem de calças de ganga e

camisola azul-marinho saiu da carrinha e percorreu o caminho até à

porta de casa. Pensava que era só um homem que andava a levar a

mobília entre a carrinha e a casa até ver dois homens de calças de ganga

e camisola azul-marinho a carregar uma cómoda.

Não prestei muita atenção porque tinham pousado mais duas pegas

na árvore. As três arruaceiras tinham chamado reforços.

Então algo de extraordinário: um periquito gritou com as pegas —

azul-brilhante e círculos violeta com núcleos de jade — e elevou-se nos

céus.

Volta!

Abri a boca para gritar, mas tinha a garganta seca de excitação e não

me saiu nada. Só tinha visto periquitos em Richmond Park, nunca aqui

na minha rua.

Pousei os binóculos e tomei uma nota sobre o periquito no meu

caderno de apontamentos turquesa-claro, onde registava todos os

pássaros que avistava no parque e na nossa rua. Não me dei a esse

trabalho com as pegas. Nunca gostei das suas cores arrogantes.

Do outro lado da estrada, os homens continuavam o seu trabalho.

Para trás e para a frente. Tiraram colchões e caixas de dentro da casa e

enfiaram-nos na parte de trás da carrinha.

Examinei cuidadosamente os ramos com os meus binóculos, mas

não consegui localizar o periquito nas árvores ao longo da estrada. As

pegas também tinham levantado voo, provando a inutilidade da sua

batalha territorial.

Continuei a vigiar a árvore, furioso por poder ter perdido a

possibilidade de vislumbrar novamente o periquito. Quando o meu pai

me disse que estava na hora de ir para a escola, não arredei pé da janela.


Ele tentou afastar-me de lá, mas eu gritei até começar a deitar sangue

pelo nariz. O sangue escorreu-me pelo peito. Não tinha uma camisa

branca limpa, porque o meu pai se tinha esquecido outra vez de pôr a

roupa a lavar, por isso concordámos que eu não iria à escola e ele ficou a

trabalhar no desenho de uma nova aplicação no escritório.

Muito depois de os gritos desagradavelmente coloridos dos homens

e dos espinhos amarelos afiados do motor da carrinha terem

desaparecido, a rua continuava estranhamente silenciosa. Não ouvi a cor

de um único pardal, da buzina de um carro ou de uma porta a bater.

Talvez tenha bloqueado outros sons enquanto me encontrava de

guarda à janela. Estava concentrado na árvore do jardim do número 20

de Vincent Gardens, e não na casa, mas não creio que alguém tenha

entrado ou saído.

Não aconteceu nada.

Era a calmaria que antecede a tempestade; toda a rua aguardava o

regresso do periquito com a respiração suspensa.

Nessa noite, 21h34

Carnaval dos Animais com um Toque de Ocre-Baço em tela

As janelas do número 20 de Vincent Gardens estavam abertas e

música alta saía delas como uma longa e ruidosa cobra a rastejar através

da rua e para cima em direção ao meu quarto, batendo à janela. Batendo

a todas as janelas da rua.

Estou aqui. Reparem em mim.

As cores chegaram com um estrondo e intrometeram-se nos assuntos

de cada um, perturbando tudo.


Alguns podem considerar que é uma maçada. Certamente que o

fizeram naquela noite e nas semanas e meses que se seguiram.

O polido violoncelo magenta-profundo; os ofuscantes pontos

branco-elétricos do piano e os círculos rosa-claros salpicados de

carmesim das flautas anunciavam formalmente que tinha chegado à rua

uma pessoa nova.

Uma pessoa e um periquito. Queriam ser vistos. Gostavam de música

alta e animada tanto quanto eu.

Mais tarde, muito mais tarde, descobri que esta música gloriosa se

chamava O Carnaval dos Animais. Catorze andamentos de Camille

Saint-Saëns, um compositor francês do período romântico que escreveu

música para animais: cangurus, elefantes e tartarugas. Eu adorava as

cores de «Pássaros», aves da floresta, principalmente, mas naquela noite

era a vez da «Marcha Real do Leão».

Logo que as cores começaram, saltei da cama, corri para a janela e

abri as cortinas. Uma mulher de cabelo louro e comprido segurava um

copo enquanto se lançava pela sala. Dançava como eu, sem querer saber

se havia alguém a vê-la. Sem querer saber se entornava a sua bebida.

Girando, rodopiando, envolveu-se num xaile vivamente colorido com

tons musicais cintilantes, apertando-o bem junto ao corpo.

As cores sobrepunham-se e fundiam-se umas nas outras num ecrã

transparente, diante dos meus olhos. Se estendesse a mão, dava a

sensação de que quase conseguia tocar-lhes.

— Jasper! Baixa o sommmmmm……

A última palavra foi longa e arrastada porque a frase não foi

terminada, como muitas das frases do meu pai quando conversa comigo.

Dirigiu-se a mim, mas eu não conseguia virar-me. A música vibrante

expulsava absolutamente tudo da minha cabeça. A nossa casa podia

arder até ficar em cinzas e eu não teria saído dali voluntariamente.


Pensei que era a combinação de cores mais perfeita que já vira.

Estava enganado, é claro. O melhor estava para vir, quando o bando de

periquitos chegasse. Mas, na altura, não podia saber disso.

Foquei os binóculos na casa em frente. A música colorida tinha

expulsado a maior parte da mobília da sala. O sofá, uma mesinha e

cadeiras estavam encostados à parede, ao lado de um piano. Subsistia

um pufe verde, juntamente com um iPod num suporte.

Reconheci as cortinas castanho-escuras e as redes branco-

acinzentadas, normalmente penduradas nas janelas, muito bem dobradas

em quadrados e pousadas em cima da mesa. Tinham sido despedidas,

consideradas excedentárias.

— Santo Deus! — O meu pai arrancou-me os binóculos da mão. —

O que é que as pessoas vão pensar? Não deves fazer isso, Jasper.

Ninguém gosta de ser espiado.

Não me dava ao trabalho de perguntar o que as pessoas iam pensar.

Há muito que desistira de tentar adivinhar a resposta a esse quebra-

cabeças.

Normalmente, as mãos usurpadoras do meu pai ter-me-iam

indignado. É má educação arrancar as coisas das mãos de alguém. Foi

uma das regras que ele me ensinou. Não lho recordei porque a

profundidade das cores me tinha deixado petrificado.

O seu esplendor contrastava com a alvura dos braços da mulher em

segundo plano, a valsar por ali, com o roupão de motivos florais a adejar

como se tivesse sido apanhado por uma brisa súbita.

Não consegui desviar o olhar para encarar o meu pai.

Ele preparava-se para me explicar o que eu tinha feito de errado

quando a música parou.

— Não! Espere! — gritei.


As cores desapareceram tão depressa quanto o periquito do carvalho.

Não se foram afastando aos poucos nem se foram dissipando.

Desapareceram. Como quando se desliga uma televisão. Porém…

Alguns minutos mais tarde, 21h39

Música Marciana e Torrada Quente com Manteiga em tela

A mulher deve ter ouvido o meu grito.

Atravessou a sala a correr até ao pufe. Sons cintilantes de néon ainda

mais altos e arrojados saíram do iPod.

Música marciana.

Estas cores são visitantes alienígenas que só eu consigo compreender

— cores que pessoas como o meu pai não sabem que existem. Não

parecem pertencer ao mundo real. Elas só existem na minha cabeça,

impossíveis de descrever, muito menos de pintar.

Prateado, verde-esmeralda, azul-violeta e amarelo em simultâneo,

mas de alguma forma não são de todo essas cores.

— Ela gosta de música, não é verdade? — dissera o meu pai. — Os

vizinhos vão ficar radiantes.

Soou-me como uma pergunta, mas eu não tinha resposta. Não sabia

quem «ela» era nem o que estava «ela» a fazer no número 20 de Vincent

Gardens.

Por uma vez, o meu pai escolheu a palavra correta. Eu estava

radiante, juntamente com todos os vizinhos. «Ela» não só gostava de

dançar e de ouvir música clássica em altos berros, como também

adorava música marciana.

Senti que podíamos ser amigos. Grandes amigos.


— Isto não vai correr bem — disse ele. — «Ela» já enervou o David

ao estacionar mesmo à porta da casa dele.

— Quem é ela? — perguntei. — Porque é que não tem roupa como

deve ser? Porque é que os homens lhe levaram a mobília numa carrinha?

O meu pai não respondeu. Ficou a vê-la dançar de forma arrebatada,

a agitar o cabelo de um lado para o outro. Creio que estava com pena

dela por não ter dinheiro para comprar mobília ou cortinas. Ela vestia

um roupão escorregadio com motivos florais que estava sempre a

escapar-lhe dos ombros e a abrir-se até à cintura. Parecia errado olhar

para a sua pele nua alienígena, com ou sem binóculos.

Esta não era a mulher de idade que, segundo o meu pai, morava ali.

Esta «ela» — a Mulher Sem Nome — não me fazia lembrar uma pessoa

velha. De maneira nenhuma. Normalmente, não presto muita atenção ao

cabelo, mas o dela era comprido, louro e flutuante. Ela movia-se

graciosamente pela sala, rodopiando como uma bailarina ou

compositora, a reger uma orquestra de cores.

— Quem é ela? — repeti.

— Não tenho a certeza — replicou o meu pai. — Pauline morreu

num lar há uns meses. Esta mulher pode ser uma amiga, uma sobrinha

ou algo assim. Ou talvez seja a filha há muito perdida da senhora

Larkham. Não sei o nome dela. Deve ter mais ou menos esta idade.

David falou nela aqui há tempos. Disse que nem se deu ao trabalho de

voltar para o funeral da senhora Larkham.

Isto era novidade para mim. Não sabia que a velhota que costumava

ali morar se chamava Pauline nem que tinha morrido num novo lar.

Talvez não gostasse muito deste.

— Bem, qual delas é esta mulher? Uma amiga, uma sobrinha ou uma

filha há muito perdida que não voltou para o funeral e não tem nome?
O meu pai era exasperante. Não compreendia a importância de

esclarecer bem os factos. Eu sabia que uma mulher não podia ser duas

ou três pessoas ao mesmo tempo. Ou era amiga de alguém ou alguém a

tinha perdido e precisava de ajuda para voltar a encontrá-la.

— Não sei, Jasper. Queres que lhe pergunte? — Brincou com a fita

dos binóculos, o que me deixou em pulgas para lhos tirar da mão antes

que estragasse o couro. — Como seus vizinhos, seria cortês da nossa

parte dar-lhe as boas-vindas à nossa rua, não achas? Para a ajudar a

saber onde põe os pés, certo?

Olhei pela janela, confuso. Era óbvio que ela sabia onde punha os

pés e não precisava da ajuda dele para isso. Andava a esvoaçar por ali

em bicos de pés.

Eu não queria chamar a atenção para a estupidez da pergunta. Em

vez de se concentrar nos pés dela, devia ter saído a correr da nossa casa

e subido o caminho que ia dar à dela. Eu podia ter ficado a observar da

janela porque era demasiado cedo para a conhecer pessoalmente. Não

tinha tido tempo para me preparar para a conversa.

Tarde demais!

Um homem subiu o caminho até ao número 20 de Vincent Gardens.

Vestia calças escuras e uma parte de cima igualmente escura. Supus que

fosse um vizinho radiante, para dar as boas-vindas à recém-chegada à

nossa rua.

Bateu à porta com força. Círculos irregulares castanho-

avermelhados.

A música parou abruptamente.

Antipatizei instantaneamente com este visitante. Tinha impedido o

meu pai de se apresentar à Mulher Sem Nome. Pior ainda, tinha

perturbado a sua paleta de cores.

— Oh-oh! — disse o meu pai.


— Oh-oh! — Concordava que este homem tinha ar de portador de

más notícias.

A Mulher Sem Nome amarrou o roupão. Com força. Como se

estivesse a atar uma encomenda natalícia para entregar no posto dos

correios. Passados quinze segundos, apareceu à porta. Abriu a boca

como se estivesse sentada numa cadeira de dentista. Recuou um passo,

afastando-se da porta. Talvez ele não fosse um vizinho radiante, afinal.

Eu não gostava da forma como ele fizera com que a boca dela se

transformasse num «O».

— Porque é que ela está a recuar? — perguntei. — Ele assustou-a? É

melhor chamar a polícia?

— Não, Jasper. É o Ollie Watkins do número dezoito. Voltou para

casa na semana passada para cuidar da mãe. A senhora Watkins está

muito doente, por isso duvido que o vejas muito na rua.

— Tem a certeza de que aquela mulher está bem?

— Absoluta. O Ollie não lhe quer fazer mal. Apanhou-a de surpresa,

só isso. Provavelmente, não estava à espera de ter visitas na sua primeira

noite aqui.

Mais uma vez, as minhas mãos desejaram recuperar os binóculos. O

meu pai agarrou-os com força. Não os queria largar, mas os binóculos

não eram dele. Eram meus. Preparava-me para chamar a atenção para

esse facto importante quando o homem estendeu a mão de repente.

Fiquei sem fôlego. Também recuei um passo, convencido de que ele

estava prestes a agarrar o cinto da Mulher Sem Nome.

— Não te preocupes, Jasper. Ele não está a ameaçá-la nem nada

disso. Quer apertar-lhe a mão. As pessoas fazem isso quando se

apresentam às outras pela primeira vez, lembras-te? É um gesto educado.

A mulher não quis apertar-lhe a mão. Talvez não conhecesse as

regras do meu pai sobre o que fazer em situações sociais. Pôs os braços
à volta do corpo, como se precisasse de embalar ainda melhor a

encomenda, com fita adesiva castanha especialmente forte, para a longa

viagem que a esperava.

— Ah! Isto correu bem — disse o meu pai.

— Eu sei. Significa que não podemos dar-lhe as boas-vindas, agora

que ele já o fez. — A desilusão abateu-se sobre os meus ombros como

um peso enorme, atravessando o tapete e o soalho de madeira, fazendo-

me mergulhar a pique na sala de estar do andar de baixo. O homem

tinha roubado a possibilidade de nos apresentarmos.

— Duvido que ele faça parte da comissão de boas-vindas — disse o

meu pai. — Provavelmente deu-lhe as boas-vindas a esta rua por uma

questão de educação. Mas não creio que tenha sido essa a razão para a

visita desta noite.

— Porquê? E qual foi, então? — Olhei fixamente para o homem

misterioso, Ollie Watkins, com o motivo misterioso para querer furar a

fila e conhecer a Mulher Sem Nome antes de nós.

— Provavelmente, quer ter uma conversa sobre a música. O barulho

passa diretamente pelas paredes das moradias em banda. Ele e a mãe

devem conseguir ouvir tudo ampliado e em tecnicolor.

Foi aí que senti outra emoção estranha.

Inveja. A palavra tem a cor de uma cebola de conserva desenxabida.

Ollie Watkins e a mãe não sofriam de uma irritante diluição da cor.

Esta podia entrar-lhes na sala através das paredes.

— Sorte a deles — disse.

O meu pai inspirou e expirou em simultâneo, produzindo um borrão

de molho cor de mostarda e castanho.

— Nem toda a gente aprecia música muito alta como tu, Jasper.

Tenho a certeza de que está a pedir-lhe que baixe o volume. É uma rua

residencial, não estamos em Ibiza!


Porque é que Ollie Watkins e a mãe haviam de querer que as cores

desaparecessem? Ibiza devia ser um lugar bem divertido.

A porta da entrada fechou-se e o homem fez o caminho de volta.

Olhou para cima e levantou uma mão para nós. O meu pai fez o mesmo,

um gesto secreto.

— Tens de ter pena do Ollie — disse o meu pai. — Está a passar um

mau bocado com a mãe. Agora já não vai demorar muito. O tempo dela

está a esgotar-se.

O pai estava enganado uma vez mais. Eu não sentia nada por Ollie

Watkins. Não sabia quem ele era, de onde vinha e qual a cor da sua voz.

Nunca o tinha visto antes — pelo menos, achava que não. Não reconheci

a sua roupa.

A única coisa que sabia ao certo era que Ollie Watkins não gostava

de música alta e tinha feito parar todas aquelas cores maravilhosas.

Aquilo era uma marca preta no meu livro. Não de um preto puro,

mas um borrão de cor com laivos de cinzento granulado que iria

manchar deliberadamente tudo aquilo em que tocasse.

Tentei concentrar-me, pois senti que as tonalidades estavam a

distrair-me. O meu pai tinha razão numa coisa: o homem seguiu pelo

passeio e percorreu o caminho da entrada da casa ao lado, o número 18

de Vincent Gardens. Era decididamente Ollie Watkins a voltar para o pé

da mãe, cujo tempo se estava a esgotar. Fosse para o que fosse.

— Já chega, Jasper. — O meu pai enrolou a tira à volta dos

binóculos. — Está na hora de ires para a cama. Amanhã, há escola.

Chega de raves. Chega de excitação na nossa rua, por esta noite. —

Parecia tão dececionado quanto eu com o facto de o espetáculo ter

acabado.

Mordi o lábio e fechei os olhos. Não queria deixar as cores

marcianas irem embora; podia esquecê-las enquanto dormia. O meu


despertador ia tocar às 6h50, como de costume, mas eu tinha de as

pintar já.

Escusava de me ter preocupado. A música marciana regressou de

forma dramática passados alguns segundos, ligeiramente mais baixa

antes de voltar a subir. Mais alta. Mais alta do que nunca.

Os meus olhos abriram-se instantaneamente. A Mulher Sem Nome

estava de volta à sala, a rodopiar, com o roupão a adejar como se a brisa

tivesse ficado mais forte.

Não pude evitar. Sabia que o meu pai detestava a minha dança, mas

comecei a agitar os braços e saltei por ali, nadando nas cores. Dancei em

solidariedade com ela, uma mistura de tonalidades perfeita.

Cores desafiadoras que não se importavam com o que as pessoas

pensavam ou diziam.

O meu pai não me ralhou nem exigiu que parasse de dançar, como

de costume. Ficou à janela, a olhar fixamente para a rebelião em

tecnicolor.

— Ali vem David Gilbert para se queixar também do barulho —

murmurou ele. — Não levou muito tempo a vir mostrar quem manda

aqui. Ela vai arrepender-se de se ter mudado para a casa contígua à dele.

O segundo visitante daquela noite, David Gilbert, subiu o caminho

da entrada. Vinha da casa que ficava do outro lado, o número 22. Se não

tivesse visto isto e o meu pai não me tivesse dito o seu nome, teria

pensado que Ollie Watkins estava de volta. De chapéu na cabeça.

— Não me parece que ela vá baixar a música para Ollie Watkins ou

David Gilbert — digo. — Não creio que possa fazê-lo. Esta música tem

de ser tocada muito alto. Os vizinhos hão de acostumar-se.

Vi uma cor ocre um tanto escura e ondulada quando o meu pai se riu

para consigo.
— Eu cá não ia querer enfrentar David. Esta vai dar-lhe água pela

barba. Seja lá ela quem for, Jasper, é uma desordeira.

— A sério?

Ela não me parecia desordeira. Essas pessoas tapam a cara com

lenços e fazem graffiti nas paredes aos fins de semana. Andam pelas

esquinas, pontapeando e esmurrando quem se aproximar demasiado.

O meu pai não me parecia preocupado com a Mulher Sem Nome

nem com o facto de ela se estar a transformar numa desordeira.

Observou-a através dos meus binóculos, embora ninguém goste de

ser espiado.

— Hummmmm…

A sua voz era da cor de uma torrada quente com manteiga.


6

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Mais tarde nessa noite

Alinho os pincéis ao lado do lavatório da casa de banho. Não quero

que o meu pai perceba que ainda estou levantado às 23h47. Abro a

torneira devagarinho, deixando correr um fio de água

Pequenas nuvens circulares de azul guarda-rios.

Adoro esta cor. É feliz, sem nada que a preocupe.

Arrepios de excitação percorrem-me as costas, como acontece

sempre quando abro um tubo de tinta novo. Adoro apertar devagarinho o

tubo liso. Se fizer demasiada força, a tinta sai em jato, o que é um

desperdício; se fizer menos do que devo, é impossível contar uma

história como deve ser do princípio ao fim.

Um pontinho de tinta é sempre o melhor sítio para começar. Posso ir

aumentando a explosão de cor e fazê-lo crescer até ter a quantidade

perfeita. Já me lembrei o suficiente para uma noite — a excitação em

que fiquei ao ver a mulher misteriosa pela primeira vez e como ansiei

pelo momento certo para a conhecer pessoalmente.

Quando a música parou finalmente nessa noite, depois de uma visita

de David Gilbert que durou três minutos e treze segundos, comecei a


planear o dia em que podia conhecer a nossa nova vizinha. Tive de

memorizar o seu aspeto (cabelo louro e comprido, com pouca roupa) e

pensar na apresentação perfeita.

Ambas as coisas eram importantes. Não queria que ela pensasse que

eu era um anormal, como toda a gente.

Tinha esperança: uma palavra cor de ketchup.

Esperança de que ela me entendesse. Como podia não entender?

Adorava música marciana alta e dançar de forma descontrolada. A única

diferença entre nós é que eu não gostava de frio e continuo a não gostar.

Só danço quando estou vestido.

A mesma cor escarlate numa embalagem de apertar abraça-me

enquanto volto em bicos de pés com os pincéis ainda húmidos, depois

de os ter tentado secar numa velha toalha de mãos. A televisão no quarto

do meu pai zumbe linhas cinzentas e granulosas, mas só tenho o ketchup

no pensamento.

Mal subo para a cama, lembro-me de que tenho escola no dia

seguinte e o medo amarelo como pipocas rasteja para debaixo do

edredão, juntamente comigo. Recusa-se indelicadamente a sair dali, por

mais que eu tente expulsá-lo e substituí-lo pelo ketchup.

O medo é o meu companheiro de cama indesejado nas noites de

domingo, lembrando-me o desafio do intervalo, com vagas de rostos

anónimos a vir em direção a mim ao longo dos corredores.

Alguns podiam revelar-se amigáveis, outros não. Os alunos não têm

«bom» ou «mau» estampado na testa, para me ajudar a fazer a triagem

dos seus uniformes idênticos.

Desta vez, é diferente. Amanhã é quarta-feira (branco pasta de

dentes) e o medo é uma cor muito mais dura, pois tenho de voltar a

enfrentar Lucas Drury, pela primeira vez desde que AQUILO aconteceu.
Ele ficou furioso comigo na semana passada por causa do meu Erro

Crasso e Estúpido. Ainda vai ficar mais furioso, agora que a polícia está

envolvida.

Vai berrar comigo em tons de azul-pavão com espinhos.

Salto da cama e junto mais as cortinas para me livrar da nesga de luz

e das linhas preto-arroxeadas de uma mota a passar na rua.

As janelas da casa de Bee Larkham olham-me reprovadoramente

através do tecido azul ovo de pato da cortina.

Por mais que peça desculpa, os vidros das janelas nunca me irão

perdoar.

Lucas Drury também não, se descobrir o que fiz a Bee Larkham.

Quem me dera poder evitá-lo amanhã, na escola, mas não posso.

É impossível escondermo-nos de alguém que não reconhecemos.


7

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Manhã

Digo olá aos novos periquitos através da nesga das cortinas — é a

nossa rotina diária. Calculo que as pequenas aves tenham apenas seis

semanas. Normalmente, respondem-me com alegres matizes de azul-

violáceo e amarelo-ranúnculo. Hoje, alisam as penas com o bico e

tagarelam entre si. Estão a ignorar-me porque não os protegi. Estão

apenas dois na árvore e cinco adultos — muito menos pássaros do que o

habitual. Um está a bicar o comedouro vazio, querendo que ele deite

sementes. Não consegue perceber o que correu mal.

Não abro completamente as cortinas, para o caso de os espiões de

Richard Chamberlain estarem a vigiar-me. Dou uma espreitadela rápida.

Duas meninas de uniforme azul saem a correr do número 24: Molly e

Sara vivem nesta morada. Vem uma mulher atrás delas, provavelmente a

mãe, Cindy. Veste sempre as meninas de igual, mesmo aos fins de

semana, por isso daqui de cima nunca sei qual delas é a Molly e qual

delas é a Sara.
Não consigo ver nenhuma carrinha na nossa rua. Nem carros da

polícia. Nem inspetores a bater à porta da casa de Bee Larkham.

A casa está exatamente igual a ontem à noite.

Deserta.

Recriminadora.

Vingativa.

Mantenho as cortinas fechadas e visto o meu uniforme escolar com

cuidado, movimentando-me o menos possível. A minha barriga trauteia

estrelas espinhosas. Não sei se tenho uma infeção, ainda não fomos ao

médico. Em vez disso, é o meu pai que está a tratar-me. É mais seguro.

Um médico far-nos-ia a ambos muitas perguntas difíceis.

Guardo um dos botões da minha mãe no bolso das calças. Cortei-o

do casaco dela e ando com ele no bolso, o que quer dizer que ela nunca

está longe quando fico stressado.

Em seguida, enfio uma nota de cinco libras no bolso do meu blazer.

Tem os cantos dobrados e está rasgada, o que me deixa com comichão

na cabeça, mas não posso substituí-la. Já não tenho moedas.

Sem olhar, enfio a mão debaixo da cama. Sei exatamente onde quero

chegar. Os meus dedos fecham-se à volta de algo frio e implacável: uma

figura de porcelana mutilada. Dois meses antes, eu estava demasiado

envergonhado para a devolver a Bee Larkham e agora é demasiado tarde

para o fazer.

Escondo o ornamento partido debaixo do blazer — ela não pode

regressar a casa, mas também não pode ficar no meu quarto. Agora não.

Não seria certo.

Verifico se o cobertor azul-miosótis está puxado para baixo, tapando

a entrada para o meu esconderijo, e fecho a porta do quarto. Duas vezes.

Para ter a certeza de que ficou fechada. Só então consigo descer a

escada.
O meu pai está a fritar bacon na cozinha. Não se vira. Uso a

oportunidade para enfiar o bibelô na mala da escola, junto aos exercícios

de matemática para a senhora Thompson. Eles picam-me os dedos em

jeito de censura. Ela distribuiu-os na quinta-feira passada e ainda não os

resolvi.

O meu pai nunca faz coisas fritas nos dias de escola. Só comemos

bacon nas manhãs de domingo, antes do treino de futebol a que ele me

obriga a ir. Não joguei futebol este fim de semana nem me sentei no

banco em Richmond Park que tem o nome da minha mãe gravado. O pai

não foi correr. Se alguém nos tivesse observado, teria percebido que a

rotina da família Wishart — assim como a de Bee Larkham — tinha

sido cancelada.

As minhas pernas querem saltar e não parar de correr até eu estar

tapado com cobertores no canto do meu quarto.

— Pega num prato, Jasper. Está quase pronto. Hoje, precisamos

ambos de um bom pequeno-almoço.

Bom. Outra vez aquela palavra estúpida.

Uma boa noite. Um bom pequeno-almoço. Um bom dia. Não é uma

boa cor; é amarelo insolente com um núcleo de groselha gorduroso.

Não quero o bacon que o meu pai se esqueceu de fritar no domingo.

Agarro na minha tigela preferida às riscas azuis e brancas e estendo o

braço para a embalagem de cereais.

Um ruge-ruge. Travessões estaladiços de alface iceberg.

Os cereais caem na minha tigela, até à borda da segunda risca. Deito

o leite até chegar à racha cinzenta no esmalte. É uma operação delicada.

Se ficar por cima da racha, os cereais ficam estragados e tenho de deitá-

los fora e começar de novo.

O meu pai não se vira, mas deixa escapar pontos castanho-claros de

impaciência.
— Faz como quiseres. Mais fica para mim.

Usando uma pinça, tira o bacon da frigideira e amontoa as tiras no

seu prato. Senta-se no seu lugar habitual à mesa, à minha frente, pois diz

que isso me incentiva a praticar o contacto visual e as minhas

capacidades de conversação.

Gostava que a sua cadeira ganhasse asas por artes mágicas, pairasse

no ar e saísse a voar pela janela da cozinha.

Pego na minha colher e olho para os sete Cheerios que flutuam no

leite como pequenos botes salva-vidas. Sinto um nó na garganta. Volto a

deixar cinco dos Cheerios cair no mar.

— Sentes-te bem hoje, Jasper, é que vou passar o dia em reuniões…

Não consigo detetar um ponto de interrogação naquela frase. Mais

parece uma afirmação.

— Sim. — Mais uma mentira, mas é o que ele quer ouvir. Consigo

dizer coisas que não sinto se isso ajudar o meu pai. Ele faz o mesmo por

mim.

Está a passar um mau bocado. Tal como eu. Mas ele não tem os

botões do casaco de malha da minha mãe para esfregar.

— Ótima notícia. — Expira. — Vou ter uma chamada em

conferência bastante tarde. Vais ter de entrar em casa com a chave

sobresselente.

Tusso quando fico com um Cheerio preso na garganta. Os cereais

sabem mal. A velho. O leite também. Verifico os rótulos para o caso de

o meu pai ter comprado inadvertidamente as marcas erradas. São as

mesmas de sempre. Devo ser eu. Estou diferente esta manhã.

Será que os meus colegas vão notar? E os professores? Será que o

meu pai notou?

— Consegues fazer isso, certo? — pergunta. — Não há problema,

pois não, Jasper? A chave está no lugar do costume. Debaixo do vaso.


Empurro a tigela, brandindo a colher como uma arma.

É demasiado. Não consigo fazer isto.

Há três Cheerios a afogar-se. Não consigo decidir se hei de salvá-los

ou não. Deviam ter aprendido a nadar, mas é errado não ajudar. Seria

como não fazer um telefonema para o 112.

— Sim. Consigo fazer isso. Está bem. Não há problema.

Há um problema. O meu problema. Não quero ficar sozinho aqui,

vigiado pelas janelas da casa de Bee Larkham

— Eu estava a falar a sério ontem à noite — diz ele, comendo o

bacon. — Ambos precisamos de seguir em frente. Deves manter-te

afastado da casa de Bee. Não podes chegar sequer perto dela. —

Mastiga, fazendo os maxilares estalar rosa-bebé. — Não quero vir a

descobrir por um dos vizinhos que tens andado a alimentar os periquitos

depois da escola. Compreendes? O jardim de Bee é uma zona interdita,

juntamente com a viela nas traseiras.

A colher cai-me da mão, com um estrépito impregnado de vermelho.

— E que vizinho lhe iria contar que dei de comer aos periquitos? —

A minha nota de cinco libras dá sinal de vida quando me remexo

desconfortavelmente no lugar. Ainda bem que ele não consegue ver a cor

menta-acinzentada que me sai do bolso, que não é capaz de ver cores

nenhumas. Ele não consegue ver-me. Como deve ser, pelo menos.

O meu pai ri-se, um tom ocre envelhecido e carregado.

— Não vou dizer quem são os meus espiões aqui na rua. Isso ia

estragar o seu disfarce.

Isto, para mim, é novidade, e não é das boas, como ganhar a lotaria

ou descobrir uma cura para o cancro. Há espiões na nossa rua, espiões

para além de mim, que espreitam pelas janelas com binóculos e tomam

notas sobre a vida das pessoas. Espiões para além dos que se encontram
na carrinha de vidros fumados e que nos obrigaram, a mim e ao meu

pai, a falar em código sobre o corpo de Bee Larkham.

Será David Gilbert o espião traiçoeiro? Aposto que é ele.

Sempre pensei que David Gilbert estava apenas a observar os

periquitos, à espera de uma oportunidade para os matar.

Ele levou-me a vigiar o suspeito errado o tempo todo.

— Sim, pai. Ambos precisamos de seguir em frente. — Tal como a

carrinha de ontem à noite, que irá provavelmente regressar mais tarde,

para me vigiar.

— Lindo menino. Agora come. Precisas de ganhar forças. —

Empurra suavemente a tigela na minha direção, entornando leite.

— Não tenho fome.

— Vou fazer uma torrada. Ou talvez possa descongelar um bagel…

Empurro a minha cadeira para trás e vou até à entrada. Lentamente,

enfio os braços no meu velho casaco de inverno. Foi a única coisa que

encontrei para vestir.

— O que foi? Filho?

O meu pai seguiu-me até à entrada.

De início, penso que ele tem visão de raios X e planeia confiscar-me

a nota de cinco libras, mas ele ignora o blazer e espreita por baixo da

minha camisa, mesmo depois de eu lhe dizer que mudei o penso.

— Está com melhor aspeto — diz. — Lembra-te de que não podes

mostrar a barriga a ninguém e que não podes andar a correr no recreio.

Isso pode deixar-te muito pior.

— Não corro, a não ser que alguém me persiga e eu tenha de fugir

— observo. — É a única coisa lógica a fazer. Não posso ficar parado e

deixar-me apanhar. Isso seria uma loucura.

— Jasper…. — Os seus olhos queimam-me a testa.

— Sim?
— Vamos ultrapassar isto, prometo.

O meu pai tem feito muitas promessas, ultimamente. Não lhe vou

cobrar esta, para além de tudo o resto. Respiro fundo e abro a porta da

rua. Esta manhã, o meu pai não pode levar-me à escola porque tem um

dia muito ocupado no trabalho. Ele acompanha-me até ao fim do

caminho do jardim. Sei o que ele está a fazer: está a certificar-se de que

não atravesso a rua e passo pela casa de Bee Larkham. Pior ainda, posso

abrir o portão e ir encher os comedouros dos pássaros. Mas eu não

posso fazer isso porque ele escondeu o meu saco de sementes.

Olho para trás. Assim que ele volta para dentro de casa, desato a

correr, o que me faz doer a barriga. Tenho de sair desta rua o mais

depressa possível. Depois do aviso do meu pai, tenho cuidado,

certificando-me de que David Gilbert não me segue ao longo de Vincent

Gardens até Pembroke Avenue.

Quando chego a Harborne Street, cem por cento seguro de que estou

sozinho, tiro da pasta o bibelô mutilado de Bee Larkham. Ela foi a

primeira senhora de porcelana a ser destruída. Tentei colá-la, mas ela

odeia o aspeto que tem agora: o rosto cheio de imperfeições, o vestido

estragado e a sombrinha quebrada.

Faltam-lhe bocados.

Ela culpa-me.

Atiro-a para dentro de um caixote do lixo e apresso-me a ir para a

escola.

Sinto-me culpado, mas era a atitude mais bondosa.

Eu não podia ajudá-la.

Não podia deixá-la novamente inteira.


8

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Mais tarde nessa manhã

Estou em segurança em Matemática, à primeira hora. Lucas Drury

não vai conseguir encontrar-me na 312b. Não temos aulas juntos; ele é

do décimo primeiro ano. Gosto desta aula, embora seja difícil. Estou

atrasado porque não fiz o trabalho de casa da semana passada. São

apenas umas páginas, mas dá a sensação de que cobriam um programa

de estudos inteiro.

A senhora Thompson prometeu ajudar-me a recuperar a matéria em

atraso. Ela é de longe a minha professora favorita. Tem uma bela voz

azul-marinho escuro e vai rodando as partes de cima que veste,

conjugando-as com calças pretas num calendário fixo. Hoje é quarta-

feira, o que significa que é a vez da blusa verde de competição.

Nenhuma das outras professoras se veste como ela. Têm uma

estranha aversão à cor e à rotina, como os professores, que usam sempre

fatos cinzentos, azuis ou pretos.

Além da sua aparência fácil de identificar, aquilo que a senhora

Thompson tem de melhor é o facto de insistir num mapa de lugares.


Toda a gente tem de se sentar no mesmo lugar em todas as aulas. Sem

discussões nem argumentos.

Eu sento-me sempre lá atrás, quarto lugar a contar da esquerda, o

que significa que tive oportunidade de memorizar a parte de trás das

cabeças de toda a gente e de organizá-las numa grelha.

É mais ou menos assim:

Fila 1, lugar 3: Susie Taylor, crânio em forma de cúpula, cabelo

louro pelos ombros.

Fila 2, lugar 4: Isaiah Hadad, marcas de acne na nuca, cabelo

preto curto.

Fila 3, lugar 1: Gemma Coben, caspa no blazer, cabelo oleoso

louro-acinzentado.

Fila 3, lugar 2: Aar Chandhoke, turbante cinzento.

Fila 3, lugar 3: Jeanne Boucher, trancinhas pretas.

É como jogar ao «Quem é Quem?» de trás para a frente, mas, ao

contrário do que acontece com os outros, este é um jogo que tenho

hipóteses de ganhar. A menos que os meus colegas se virem para trás, é

claro, ou que me peçam para reconhecer os alunos na minha fila, mais

para a direita. Não consigo lembrar-me do seu aspeto. Não consegui

memorizar as suas cabeças a partir da posição em que me encontro.

— As equações algébricas podem escrever-se na forma y igual a mx

mais c — diz a senhora Thompson. — Podemos desenhar um gráfico

em linha reta. Toda a gente começa antes de a campainha tocar e

continuamos na próxima aula.

Deixei a minha régua em casa e tenho de usar a borda do dossiê para

desenhar a linha. Fica tremida, tal como me sinto esta manhã.


Uma cor de sumo de laranja salta da fila 2, lugar 5: Lydia Tyler, de

cabelo ruivo encaracolado, está a discutir com a senhora Thompson.

— É a mais pura verdade, juro! — diz ela em voz alta.

— Decide-te, Lydia. — replica a senhora Thompson como uma

tartaruga zangada. — Sugiro que contes exatamente o que aconteceu

antes que apanhes outro castigo esta semana.

Linhas retas.

Histórias verídicas.

São as melhores histórias, mas também as mais difíceis de contar.

Será que Lucas Drury vai contar a verdade a Richard Chamberlain

acerca de Bee Larkham? O que é que ele já terá contado à polícia? Não

compreendo como é que a polícia foi metida nisto. Lucas disse que tinha

resolvido tudo na semana passada.

O meu pai acredita na minha história. Acho que me safei, mas avisa

a Bee para não tentar contactar-me. Percebeste, Jasper?

— Estás a sentir-te bem, Jasper? Queres que te empreste a minha

régua para te ajudar a desenhar uma linha reta como deve ser?

A senhora Thompson terminou a sua discussão sobre histórias

verídicas com Lydia. Espero que tenha ganhado; tem de se ser

inteligente para dar aulas de Matemática. Está de pé, junto à minha

carteira, a olhar para o meu gráfico patético. Este encolhe-se

envergonhado sob o seu olhar severo.

Linhas bamboleantes de um amarelo-prateado ecoam no ar.

— Salvo pelo toque — diz a senhora Thompson.

Ela está enganada. A campainha não me salvou. É o primeiro

intervalo. Já não me posso esconder por mais tempo na sua sala de aula.

Tenho de enfrentar os corredores.

— Está tudo bem, Jasper? Estás a tremer.


Eu e a senhora Thompson estamos sempre em sintonia. Ela

compreende padrões e a necessidade de ordem. Apetece-me dizer-lhe

que tenho um corte na barriga, como uma boca. Quando me ponho em

pé e empurro a cadeira para trás, abre-se e volta a fechar-se; a dor deixa

estrelas prateadas e pontiagudas a dançar-me na pele.

Não digas a ninguém o que fizeste a Bee Larkham.

Fica de boca calada.

Saio da sala de aulas sem responder porque não quero mentir.

Consigo fazê-lo com outras pessoas, mas não com a senhora Thompson.

A verdade é que não sei como me magoei. Não me lembro do que

aconteceu à minha barriga. Só me lembro de fragmentos de sexta-feira à

noite. O meu cérebro bloqueou o resto. Está tudo nebuloso e não há

nenhuma cor em especial que se destaque.

O meu melhor palpite?

Cortei-me acidentalmente com a faca quando assassinei Bee

Larkham.

Uma mão sai do monte de calças e blazers pretos que andam pelo

corredor. Empurra-me contra a parede. Para ser franco, surpreende-me

ter chegado tão longe sem ser apanhado.

Não consigo distinguir o rosto do rapaz dos Blazers que o

acompanham. Em vez disso, concentro-me na sua mão. Tem um número

de telefone escrito a esferográfica azul na pele. Será que o pai de Lucas

Drury atendia se eu ligasse aquele número? Ou Lee, o seu irmão mais

novo? Lee costumava ter aulas de guitarra elétrica com Bee Larkham.

Eu gostava do seu espetro de cores.

— Não te preocupes — digo. — Ontem, não contei nada à polícia

sobre ti e Bee — garanto. — Eles só me fizeram perguntas sobre amigos


da escola e preservativos.

— Estás a gozar comigo? — O rosto do rapaz aproxima-se

ameaçadoramente do meu; a sua voz é de um castanho noz-moscada

velado. — Porque é que estás a falar de preservativos?

Retraio-me ao ouvir o palavrão cor de açafrão que se segue.

— Eu… eu não sei de nada — gaguejo.

Má notícia.

A mão escrita a esferográfica não pertence a Lucas Drury; a voz tem

a cor errada. Não faço ideia de quem é. A sua cor é semelhante à da voz

de muitos rapazes nesta escola. Castanho-mate, não é interessante o

suficiente para pintar.

Olho para um lado e para o outro do corredor, esperando ver alguém

que não use uniforme. Nada. Quem me dera que a senhora Thompson

aparecesse, mas provavelmente está sentada à secretária, a marcar livros.

É que, além de inteligente e organizada, ela é muito trabalhadora.

— Podes ter a certeza de que não sabes de nada. — A mão do rapaz

mergulha no bolso do meu blazer e tira a minha nota de cinco libras. É

como se ele soubesse exatamente onde encontrá-la. Como é isso

possível?

— É minha — sussurro.

— Como? — O rosto do Mão com Esferográfica aproxima-se mais.

Macilento e com marcas de acne. Não tinha reparado nesses pormenores

antes. Desvio os olhos ao senti-los como que trespassados por adagas.

Preciso do dinheiro para comprar sementes para os periquitos na loja de

animais, mas não consigo encontrar a minha voz. Não consigo dizer

nada ao Mão com Esferográfica.

— Considera isto como um imposto de atrasadice mental. É dinheiro

que me deves por te atravessares no meu caminho. — Volta a apalpar-me


os bolsos. — Deixa ver. Nah! Bem me parecia. Como se tu tivesses

preservativos! Nem por piedade conseguias uma queca!

Embolsa o meu dinheiro, assobiando linhas espiraladas castanho-

amareladas e regressa para junto dos Blazers. O grupo aumentou de

tamanho. As suas risadas e piadinhas são nuvens de trovoada cinzento-

escuras com laivos de verde-couve.

Não tento impedi-lo. Não vale a pena. Tem o dobro do meu tamanho

e não conseguirei reaver o meu dinheiro. E agora o que vou eu fazer?

Tenho menos de meio saco de sementes escondido algures lá em casa e

não me sobrou dinheiro nenhum. Não posso pedir emprestado ao meu

pai, pois ele vai perguntar para que o quero.

Não posso admitir que estou a planear desobedecer-lhe e dar de

comer aos periquitos. Vou voltar a casa de Bee Larkham quando ele

estiver a trabalhar até tarde. Bem, tecnicamente não vou a casa dela. Vou

só ao jardim da frente. Não sou suficientemente corajoso para ir lá

dentro. Tenho medo do que possa encontrar.

Sigo pelo corredor fora, afastando-me do Mão com Esferográfica.

Demasiado lentamente. Passados segundos, ele volta a apanhar-me.

Desta vez, põe a mão no meu ombro, fazendo-me dar um salto. Não

olho para ele. As suas marcas de acne lembram-me crateras lunares. Se

olhar para elas, vão engolir-me e não serei capaz de sair de lá.

— Não tenho mais nenhuma nota de cinco libras — digo.

— Não quero o teu dinheiro, Jasper. — Ele sibila linhas

esbranquiçadas, quase translúcidas. Não consigo identificar a cor

verdadeira. Olho para a sua mão direita. Não tem um número de telefone

escrito.

Não é o Mão com Esferográfica.

Ele sussurra ao meu ouvido:

— Quero saber o que disseste à polícia sobre mim e Bee Larkham.


Não preciso de estudar o seu rosto ou de lhe pedir que fale mais alto

para ver a sua cor genuína. Lucas Drury.

Este é o rapaz que está no centro de tudo, cuja voz é verde-azulada

quando não está a sussurrar.

Era a cor preferida de Bee Larkham; gostava muito mais dela do que

do meu azul-frio.

Outra verdade desconfortável que me foi revelada quando menos

esperava.

— Sei que estiveste ontem na esquadra, Jasper — diz ele baixinho.

— Não vale a pena negares. O meu pai telefonou a um polícia, para

saber as últimas. Ele disse que foste lá para uma conversa, acompanhado

do teu pai.

Cobre-Claro faz-me rir, mas podia ter sido Laranja de Cromo

Oxidado.

— Isto não tem graça, seu idiota! O meu pai passou-se.

— Disseste-me isso na semana passada. Também disseste que

estavas a deitar-lhe terra para os olhos.

— Areia, seu idiota, mas ele percebeu tudo. Encontrou a palavra-

passe do meu Facebook e adivinhou que BL é Bee Larkham. Foi

diretamente à polícia no sábado de manhã e alegou que Bee era pedófila:

uma criminosa em série que se aproveita de rapazinhos. Os meus dois

filhos. Provavelmente, há mais vítimas. Foram exatamente estas as suas

palavras.

Expiro azul-frio com círculos brancos.

— E ele tinha razão? Bee Larkham era uma pedófila que se

aproveitava de rapazinhos, incluindo de Lee?

— Claro que não — diz ele mais alto. — Ela estava apaixonada por

mim. Por mais ninguém, mas… Deixa lá isso agora. Não temos tempo.

Estamos ambos metidos em apuros. Temos de…


O verde-azulado é cortado por castanho-avermelhado brilhante.

— Lucas! O que estás a fazer? Despacha-te!

Lucas olha para trás, para os dois rapazes que se aproximam.

Parecem gémeos idênticos e devem ser amigos dele. Não estão a sorrir.

Quanto a Lucas, não tenho a certeza. Não olhei para ele desde que me

agarrou. A mão dele sai do meu ombro como se tivesse sido queimada.

— Tenho de ir, Jasper. Vou ter contigo à hora de almoço no sítio do

costume, está bem? Precisamos de afinar as nossas histórias, antes que

qualquer de nós volte a falar com a polícia. Combinado?

Movo a cabeça para cima e para baixo porque estou de acordo com

ele em relação às linhas retas e histórias verídicas.

São essas as histórias que ambos precisamos de contar, mas eu não

sou completamente parvo. Lucas Drury tem de ser o primeiro. Deve-me

isso depois de tudo o que tive de fazer por ele e Bee Larkham.
9

A HISTÓRIA DA MINHA MÃE

Esta é a verdadeira história da minha mãe, não a minha. Eu tinha

apenas três ou quatro anos. Estava sentado com ela no quintal da nossa

casa, em Plymouth, numa noite de verão. O meu pai não estava lá.

Estava com os Royal Marines no Afeganistão ou no Iraque. Não tenho a

certeza de qual o país. Não faz mal. Não precisávamos da sua presença

quando nos tínhamos um ao outro.

A relva estava quente debaixo dos nossos pés descalços. Não me

lembro de contorcer os dedos dos pés na relva amarela queimada pelo

sol, mas é o que a minha mãe dizia que ambos fazíamos, enquanto

brincávamos com a minha pick-up vermelha. Tinha vindo socorrer o

carro amarelo acidentado que embatera no pé da minha mãe e capotara.

Ela contou-me esta história vezes sem conta porque eu era

demasiado pequeno para me lembrar de isso ter acontecido. Ela

recordava-a para mim e tornou-se a nossa história preferida antes de

dormir.

— O que é aquilo? — perguntei.

— Estás a falar dos estorninhos? Olha, são os pássaros barulhentos

que estão ali, naquela árvore.


— Não. Não estou a falar desses pássaros. Esses são rosa-

avermelhados. Estou a falar do outro som. Uma linha azul pequena com

bocadinhos cor de limão que se mexem.

— Tu vês cores? — perguntou a minha mãe. — Quando ouves sons?

Eu disse que sim, claro que via. Não sucedia o mesmo com toda a

gente?

A minha mãe beijou o cimo da minha cabeça uma e outra vez.

— Com toda a gente, não — disse ela quando finalmente parámos de

rir. — Nem todas as pessoas compreendem a forma maravilhosa como

nós os dois vemos as cores dos sons, Jasper. E é pena. Pena para eles,

não para nós, porque partilhamos um dom extraordinário.

Passámos em revista uma lista de coisas, a começar pelos barulhos

que podíamos ouvir no quintal, como um cortador de relva, um carro a

acelerar, um avião a passar lá em cima e música de rádio em altos berros

a sair da janela de um vizinho. Disse à minha mãe as cores que via para

cada som.

Cortador de relva: prateado-brilhante

Carro a acelerar: laranja

Avião: verde-claro, quase transparente

Rádio: cor-de-rosa

Avançámos para outras coisas. O som da ventoinha que a mãe tinha

posto no meu quarto para me manter fresco à noite (cinzento e branco,

com lampejos de azul-escuro).

Cães a ladrar: amarelo ou vermelho

Gatos a miar: azul-violeta suave

O meu pai a rir: castanho-amarelado baço


A chaleira a ferver: bolhas prateadas e amarelas

Falámos interminavelmente sobre as minhas cores e a minha mãe

disse que nunca me tinha visto tão feliz. Estava com um sorriso de

orelha a orelha.

Podíamos ter ficado ali a tagarelar e a brincar para sempre, mas a

minha mãe disse que era tarde e que estava na hora de tomar um banho e

vestir o pijama de dinossauros.

— Rugido! — gritei. — De que cor são os rugidos dos dinossauros?

Decidimos ambos que, provavelmente, tinham várias tonalidades de

roxo, porque era o som colorido que o T-Rex fazia sempre que lhe

apertávamos a barriga.

A minha mãe pegou-me ao colo e eu aninhei-me na minha posição

favorita, em cima da sua anca.

— Obrigada por me teres contado o teu segredo, Jasper — disse. —

Posso contar-te uma coisa?

— Sim! — gritei. — O T-Rex também quer ouvir!

— Para mim, os estorninhos são verde-azulados, o pisco é amarelo-

vivo e a chaleira a ferver é cinzento-escura com bolhas cor de laranja. —

Beijou-me ao de leve no rosto. — O pai não gosta que eu fale das cores,

por isso, quando ele voltar, não precisas de lhe falar das tuas. Vai ficar

triste por não conseguir ver o mundo como nós, Jasper. Nem toda a

gente é feita da mesma maneira. Nós temos sorte.

Ela tinha razão, mas a minha sorte acabou por se esgotar. Quando a

minha mãe morreu, perdi a única pessoa na minha vida que conseguia

ver o mundo como eu.

Ela gostava de me ouvir falar sobre as diferentes tonalidades que eu

via e de as comparar com as dela.


As minhas cores sentem a sua falta. Anseiam por ser partilhadas

com alguém que as aprecie tanto quanto eu. Mas de qualquer maneira

tenho de falar sobre as tonalidades que vejo — mesmo com o meu pai

— porque uma parte da mão vive através delas.

É essa a minha história verídica.

Odeio o final, mas não posso mudá-lo.


10

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Tarde

— O laboratório de Ciências é por aqui, meu anormal. — Uma mão

agarra-me pela gola e puxa-me para trás quando saio a correr do

refeitório. — O Lucas disse para eras capaz de tentar fugir depois do

almoço. Ele precisa de te dar uma palavrinha.

Chamo X a este rapaz.

O seu gémeo maléfico, Y, paira em segundo plano, não vá eu ser um

ninja secreto capaz de me desenvencilhar de qualquer situação com a

ajuda das artes marciais.

Não sou e não sou capaz.

Não me tocam, pois isso seria agressão. Sou escoltado em silêncio

pelo corredor. X vai à frente e Y atrás. Ninguém nota que estou a ser

levado contra vontade porque não estou a gritar. Isso seria inútil. Duvido

que alguém ajudasse. Nem mesmo as raparigas que passam por nós.

Sobretudo elas. Provavelmente, iam rir amarelo-ranúnculo.

Quando chegamos ao laboratório de Ciências, Y abre a porta e

empurra-me lá para dentro. Há um rapaz empoleirado na bancada. Tem


o lábio cortado, uma equimose esverdeada na face e uma marca

vermelha e comprida na mão.

Pode ser Lucas Drury. Lucas Drury depois de uma briga com um

tornado, que lhe despenteou o cabelo, lhe rebentou o lábio e arranhou a

mão. Não olhei para a cara dele quando falámos no corredor

anteriormente, por isso não consigo saber com certeza se é o mesmo

rapaz. Não digo nada. É mais seguro assim.

— Alguém vos seguiu até aqui? — A sua voz é baixa e grave. De

uma cor verde-azulada. A cor de Lucas Drury.

— Não sei — diz Y. — Acho que não.

— Nesse caso, para onde raio estão a olhar? Desapareçam! — Verde-

azulado.

Não há dúvida de que é ele.

X e Y encolhem os ombros e batem com a porta atrás deles.

Eu estremeço, não só com a desagradável cor de escaravelho

esmagado de «raio», mas também com o preocupante desenvolvimento

da situação. Não fazia ideia de que havia espiões ali na escola, assim

como na nossa rua — pessoas como David Gilbert, que podiam procurar

provas comprometedoras relativamente a mim e a Bee Larkham.

Agora tenho a certeza de uma coisa: há espiões em toda a parte.

Olho fixamente para Lucas Drury. Está a tremer de raiva diante do

que eu fiz, de todos os erros que cometi. Esfrego o botão da minha mãe

com mais força, enquanto ele avança para mim. Vai imobilizar-me

contra a parede, como da última vez. Instintivamente, recuo. A minha

cabeça bate novamente no meio do poster da tabela periódica. O túlio

está à minha esquerda, o rubídio à direita.

Ele para à minha frente.

— Conta-me tudo.
Não posso. Não quero pensar sobre isso. Viro a cabeça para olhar

para o poster.

Mendelevium, Nobelium, Ytterbium, Thulium.

— Despacha-te, Jasper. Antes que alguém nos encontre aqui.

Precisamos de combinar o que contamos à polícia antes que voltem a

interrogar-nos.

— Laranja de Cromo Oxidado — digo, antes que me consiga conter.

— O quê?

— É um inspetor, como o ator famoso, Richard Chamberlain —

deixo escapar.

— Espera. Estás a confundir-me. Com quem falaste?

— Richard Chamberlain queria um primeiro relato sobre Bee

Larkham, seja lá o que isso for. Ele não explicou.

— O que é que ele te perguntou? Falou em mim?

Despejo as perguntas estranhas sobre rapazes do décimo primeiro

ano, Bee Larkham e preservativos.

— O que lhe contaste?

— Contei-lhe sobre a morte dos meus periquitos e sobre o meu

vizinho David Gilbert, que é assassino de pássaros, mas ele não se

mostrou interessado.

— Merda! Quero lá saber dos periquitos, Jasper.

Sinto picadas no couro cabeludo diante daquela palavra afiada de cor

horrível.

— Jasper! Abre os olhos! Não podes fingir que isto não está a

acontecer. Isto é real. Para nós os dois.

Não quero abrir os olhos. Não quero que isto seja real. Quero

bloquear as cores desagradáveis.

— Não estou interessado nos periquitos e a polícia também não. O

Lee assustou-se na semana passada e falou ao meu pai sobre outras


cartas que encontrou no nosso quarto. Contou-lhe que tu me passavas

coisas na escola e espiavas Bee com binóculos. Isso faz de ti testemunha

em todo este processo.

Ele está a mentir. Eu não estava a espiar Bee Larkham. Estava a

vigiar o seu carvalho e a tomar nota de quem visitava a sua casa e as

casas dos vizinhos. Pensava que isso me podia ajudar a arranjar provas

contra David Gilbert.

— Por favor, Jasper. Concentra-te. O que é que contaste ao inspetor

acerca de mim e Bee? Disseste que me tinhas visto visitá-la? Através dos

teus binóculos? Que nos tinhas visto juntos, sabes, daquela vez…

Cores desconfortáveis tocam ao de leve em redor do meu cérebro.

Não ouso deixá-las entrar. Por fim, abro os olhos e evito olhar para

Lucas. Parece o meu pai. Odeio-o por isso.

Concentra-te. Age com naturalidade. Não agites os braços como um

periquito.

Nunca lhe poderei contar que, enquanto ele partia o coração de uma

mulher adulta em milhões de fragmentos prateados e pontiagudos, eu

lhe fiz algo muito, mas muito pior na sexta-feira à noite.

Algo imperdoável.

— Eu não contei nada a Richard Chamberlain, como o ator, sobre ti

e Bee Larkham. — É a verdade. — Avisei-o sobre as ameaças de morte

aos meus periquitos, mas os meus cadernos de apontamentos estavam

fora de ordem. Ele disse-me para parar de fazer chamadas para o cento e

doze, que só fazem a polícia perder tempo. Eu gritei e vomitei por cima

do sofá dele.

— Ótimo. Bom trabalho. Seja lá o que for que estás para aí a dizer.

Anormal.

Dá-me um murro no braço, mas não é com força. Não me faz chorar.

Não é como os que os rapazes mais velhos me dão depois da escola.


— Escuta, Jasper. Eu estou a negar tudo. A polícia não tem nada,

apenas o que Lee pensa saber e as suspeitas do meu pai depois de ter

encontrado algumas mensagens e fotos da Bee no Facebook. Só isso.

Estou a insistir na história de que o bilhete que me entregaste na semana

passada era uma partida. Foi uma rapariga parva lá da escola a gozar

comigo.

— Uma partida — repito.

— Sim, uma partida. A Bee não assinou a carta com o nome dela.

Usou as iniciais, como de costume. Eles não têm provas, a menos que

lhes contes que foi ela que to entregou. Não fizeste isso, pois não,

Jasper?

— Eu não disse nada ao inspetor.

— Estás a ver? Não há provas. O meu pai diz que a polícia ainda não

conseguiu encontrar Bee e que não vai poder analisar a caligrafia porque

eu comi a carta.

— Tu. Comeste. A carta.

— Sim. Tentei fazer disso uma brincadeira, quando o meu pai me

acenou com ela. Arranquei-lha da mão, mastiguei-a e engoli-a com um

copo de água antes que ele conseguisse tirar-ma da boca. O meu pai não

se riu. — Toca no lábio cortado. — E não achou graça quando me

recusei no fim de semana a contar à polícia o que quer que fosse acerca

de Bee.

— A que sabia? A carta, quero eu dizer.

— Não estás a perceber. Comi-a porque precisava de me livrar da

prova. Tinha de proteger Bee. Sem ela, o meu pai não tem nada de

concreto. Nada que prove que alguma vez estivemos juntos.

— Ainda bem que a comeste. — Continuo curioso em relação ao seu

sabor, mas Lucas não está interessado em partilhar esse pormenor.


— Tens de negar tudo também, se voltarem a falar contigo —

continua. — Diz que o bilhete era de uma rapariga qualquer lá da escola.

Não sabes o nome dela. Encontraste-o enfiado na tua mala ou caído no

passeio à porta de tua casa. Ou volta a dizer essas tretas acerca dos

periquitos, para os despistar. Mas não contes à polícia a verdade sobre as

cartas ou aquela vez em que tu… — Para.

Não consigo olhar para ele.

Não quero pensar nisso.

Quero ser absorvido pela tabela periódica e criar uma explosão

química que me aniquile, assim como a Lucas Drury, Bee Larkham e

todas as cores pútridas que criámos juntos.

Bum!

Luzes flamejantes que produzem amarelos e laranjas corrosivos.

Esfrego o botão da minha mãe com mais força no meu bolso.

— Olha para mim, Jasper — diz Lucas. — Tens de fazer isto por

mim. Tens de resolver esta trapalhada, porque a culpa é tua. O meu pai

anda a ameaçar Bee de todas as maneiras e feitios. Ela pode perder o

emprego e ir parar à prisão, tudo porque tu fizeste asneira. Está tudo

acabado entre nós, mas ela precisa do dinheiro das lições de música

mais do que nunca.

Ele cerra o punho. Fecho os olhos e espero que ele me atinja. Mereço

que ele me bata porque magoei Bee Larkham muito mais do que o pai

dele podia ter feito. Eu mereço ir para a prisão. Talvez isto seja um

truque e Lucas já tenha adivinhado o que fiz.

Talvez tenha a morte dela estampada na cara.

Não acontece nada.

Olho para cima. Lucas dirigiu-se à janela.

— A vida é uma porcaria — diz ele, limpando uma lágrima da cara

— Quem me dera poder voltar atrás no tempo. Mudaria tudo.


Concordo com ele sobre viajar no tempo. A minha vida também é

uma perfeita porcaria. Quero que ele pare de chorar. Então, vou fingir

que não vi aquilo; e ele vai fingir que não o fez. Vamos ambos fingir que

não vimos nada, que não fizemos nada e que não sabemos nada um do

outro.

Mais importante ainda, vamos ambos fingir que não sabemos nada

sobre Bee Larkham nem sobre o que correu horrivelmente mal na

semana passada.

— O que vou eu fazer? — pergunta Lucas, passando as mãos pela

cara. — Não sei o que fazer.

Não faço a mais pequena ideia. Se estivéssemos os dois numa

piscina, não poderia lançar uma boia de salvação a Lucas porque

também me estou a afogar. Não posso ajudar-me a mim, quanto mais a

ele.

Lucas não espera pelo meu conselho inexistente.

— Só tenho quinze anos. Não posso fazê-lo. Tivemos cuidado,

usámos proteção. — Olha para mim. — Achas que o bebé é mesmo

meu?
11

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Ainda nessa tarde

Separámo-nos como uma maçã cortada ao meio, a cuspir as suas

sementes pretas e brilhantes. Sugeri que Lucas saísse do laboratório

primeiro, para evitar que algum espião relatasse o nosso encontro

clandestino à diretora da escola ou à polícia. Esperei quatro minutos e

catorze segundos antes de me dirigir aos serviços médicos, o único

destino possível.

Vomitei assim que lá entrei, antes de a enfermeira ter tempo de se

levantar de trás da secretária e muito menos de me dar uma bacia de

papel. Isso fez-me sentir ainda pior, porque ultimamente ando a dar

trabalho a muita gente em termos de limpar vomitado.

Causo problemas onde quer que vá.

Eu e a enfermeira estamos a discutir há cinco minutos, o seu

calêndula-escuro com o meu azul-frio.

Não posso deixar-te ir para casa sozinho. Tenho de contactar

primeiro o teu pai.

O meu pai tem uma reunião importante e não pode ser incomodado.
Vou tentar outra vez.

Ele tem o telefone desligado. Eu tenho uma chave. Posso entrar em

casa. Estou sempre a fazer isso. Tenho vizinhos que olham por mim.

É mentira, mas é extremamente improvável que ela conheça alguém

que more na minha rua.

Quero ir para o meu esconderijo, para longe das janelas acusadoras

de Bee Larkham, até as cores vivas que me apunhalam o cérebro

deixarem de brilhar.

Preciso de me livrar da imagem que tenho na cabeça do bebé dentro

da barriga de Bee Larkham, o bebé que matei quando matei Bee

Larkham. Tinha assassinado duas pessoas naquele dia, e não uma como

pensava.

É claro que não posso dizer isto à enfermeira. Ela está a tentar ligar

novamente para o meu pai. A minha voz sai mais aguda, com um azul

menos homogéneo e esbranquiçado.

Dói-me a barriga. Eu digo ao meu pai para me levar ao médico esta

noite. Vamos pedir um atestado. E medicamentos. Prometo.

Pensamentos maus e horríveis perseguem-se uns aos outros na

minha cabeça, enquanto ela deixa mais uma mensagem no telemóvel do

meu pai. Não há atestado capaz de atenuar estas sensações.

A verdade é que não posso confessar o que se passa à enfermeira. As

palavras ficam entaladas na minha boca; o meu cérebro está cheio de

pensamentos aleatórios. Uns não conseguem sair de lá e outros não

admitem o que fizeram, não revelando as suas verdadeiras cores.

Ela não ia compreender, como poderia?

O telefone dela toca cor-de-rosa pastilha elástica e ela começa outra

vez a falar.

Tenho de chegar ao meu esconderijo e enfiar-me debaixo dos

cobertores. Vou fechar os olhos, embrulhar-me no casaco de malha da


minha mãe e fingir que ela está deitada ao meu lado, a falar sobre as

cores e formas que vê quando ouve música clássica sozinha, à noite,

quando o meu pai está fora.

A enfermeira desliga o telefone.

— Espera aqui, Jasper. Há um aluno com asma que precisa de

assistência imediata. Vou procurar uma professora assistente para ficar

contigo até o teu pai chegar.

Faço o que me mandam.

A porta fecha-se e aguardo vinte segundos.

Não faço o que me mandam.

Fujo.

Não sei como consegui chegar aqui. Não me refiro a este ponto

terrível da minha vida, aos treze anos, quatro meses, vinte e sete dias e

cinco horas. Estou a falar da viagem física até casa, depois de sair a

correr pelos portões da escola: as ruas que atravessei e as pessoas por

quem passei. Estou grato pelo facto de as minhas pernas continuarem a

mover-se como soldados a resgatar um camarada ferido de trás das

linhas inimigas. Moviam-se sem eu ter de gritar ordens.

Trouxeram-me até aqui, a Pembroke Avenue, onde finalmente paro e

recupero o fôlego. Tenho a respiração ofegante, linhas entrecortadas de

azul-vivo. Tenho a mão e o joelho a latejar. Uma inspeção rápida revela

que rasguei as calças. Tenho sangue no joelho e um arranhão na palma

da mão. A barriga arde-me com estrelas prateadas e pontiagudas.

Não me lembro de ter tropeçado e caído. Nem de me levantar. Nem

de recomeçar a correr.

Mas não importa, porque já estou quase em casa. Seguro o meu

botão; não o larguei quando caí. Dobro a esquina para Vincent Gardens
e avisto-o de imediato: o carro da polícia estacionado à porta da casa de

Bee Larkham.

As minhas pernas param de repente, abandonando a missão de

resgate. Não podem ir mais além. Isso é pedir demasiado a um soldado,

mesmo a um Royal Marine.

Rende-te.

É isso que as pernas me gritam em silêncio.

Entrega-te sem resistência.

Uma vez o meu pai gritou essa ordem a um soldado inimigo.

Encosto-me a um poste de iluminação para me ajudar a recuperar as

forças e partir novamente na minha expedição fatídica. Vai acabar alguns

metros mais à frente, com a agente de rabo de cavalo louro junto ao

carro. Avanço a cambalear na sua direção.

Ela ainda não sabe disso, mas vai resolver o mistério de ninguém

conseguir encontrar Bee Larkham.

A agente de rabo de cavalo louro não me vê aproximar; está a falar

para o rádio, provavelmente a contactar Richard Chamberlain. A pô-lo a

par da situação. Outro agente sobe pelo caminho de acesso à porta de

Bee Larkham e bate com força.

— Miss Larkham. É a polícia. Está em casa? Abra, por favor.

Precisamos de falar consigo com urgência.

Por trás da porta de entrada, fica um hall, pintado de azul-violáceo,

com cabides a transbordar de casacos; uma mala preta que Bee dizia

estar cheia de roupa com brilhantes, especialmente destinada a

despedidas de solteira, e um tapete que diz «Quem te convidou?».

— Hum. Olá, Jasper. — Um homem aparece à minha frente,

bloqueando-me o caminho com as suas palavras amarelas creme de

leite. Larga um cigarro, apagando-o com um sapato de camurça preto. —

Tenho-te visto por aí com o teu pai. Sabes quem eu sou?


Sinto um nó na garganta. Fico nauseado. Este homem corre sérios

riscos de se tornar um dano colateral e ficar todo vomitado se não me

sair da frente. Tento contorná-lo, mas ele volta a mexer-se.

— Sentes-te bem? Estás branco como um lençol.

Isso não é remotamente possível. Não posso parecer algodão

esticado.

Ele estende a mão. Não sei o que vai fazer com ela. Encolho-me.

Pode estar a planear atacar-me.

Olho novamente para ele. Provavelmente, é um inspetor à paisana,

que trabalha com os dois agentes de uniforme. Vieram à minha procura,

enquanto o meu pai está a trabalhar, o que é um bocadinho traiçoeiro.

Pergunto-me se um advogado de uma das séries televisivas que o meu

pai segue não gritaria: Inadmissível!

— Foi Richard Chamberlain quem o enviou? — pergunto.

— Quem?

— Mandou-o cá para me prender?

— O quê? Não. Não me reconheces?

Movo a cabeça de um lado para o outro para dizer que «não», pois

não conheço ninguém com voz amarela creme de leite que use sapatos

de camurça pretos e meias às pintinhas vermelhas e pretas.

— Desculpa, não fomos formalmente apresentados. Sou Ollie

Watkins. Moro ali mais acima, enquanto escolho as coisas da minha

mãe e trato de vender a casa.

Aponta para a casa com uma grande aldraba em forma de mocho na

porta.

— Vi-te a ti e ao teu pai na rua, aqui há uns meses, quando David se

queixou a Bee do barulho que os periquitos faziam — diz. —

Provavelmente, não te lembras. Não conheço muitos dos vizinhos.

Tenho andado um bocadinho desorientado.


Lembro-me, sim. Este é Ollie Watkins, que não gosta de música alta

nem de Ibiza e que não sai muito porque tem andado a cuidar da mãe,

Lily Watkins, que é doente terminal. Ela morava no número 18 e era

amiga da mãe de Bee Larkham, Pauline, que morava no número 20.

Há imenso tempo que não vejo ninguém entrar ou sair do número

18, mas sei que ainda lá está alguém, porque há luzes que se acendem e

apagam. Por esta altura, a senhora Watkins já faleceu; talvez seja por

isso que Ollie Watkins já pode sair outra vez.

Vi o carro funerário estacionado à porta do número 18 de Vincent

Gardens há onze dias, cheio de flores brancas e também de um rosa

delicado. Não são as minhas cores favoritas. Não prestei muita atenção

porque foi o dia em que vi pela primeira vez os filhotes de periquito de

perto.

— A minha mãe morreu de cancro — digo-lhe. — Ela era azul-

cobalto. Pelo menos, acho que era. O meu pai diz que é disso que me

lembro. Não tenho a certeza se ele está a contar a verdade toda sobre

isso.

Sobre o que quer que seja.

— Lamento — diz Ollie Watkins. — O teu pai contou-me.

— Sobre a cor da minha mãe? Que era azul-cobalto? Foi isso que ele

disse? De certeza?

— Não, não sei nada sobre isso. Referia-me ao facto de termos

conversado sobre a morte da tua mãe. Ele foi muito amável quando a

minha mãe faleceu. É muito duro perder a nossa mãe, seja com que

idade for.

— Amável?

— E também foi muito prestável com a logística da morte: tratar da

papelada e do obituário no jornal local. Ele já tinha feito tudo isso antes,
é claro, ao passo que eu não fazia a mínima ideia de por onde havia de

começar.

A logística da morte.

Nunca tinha ouvido aquilo explicado dessa maneira.

— Não tenho autorização para ir a funerais. Posso perturbar as

pessoas e isso seria mau. Para elas.

Ele tosse.

— Desculpa.

— É o tabaco que o faz tossir.

— Na realidade, tive uma infeção nos brônquios há uns meses.

Espero que não volte. Mas tens razão, Jasper. Devia deixar de fumar.

Comecei outra vez quando vim para cá cuidar da minha mãe. Foi do

stresse e tudo o mais.

— O tabaco causa cancro — observo. — Foi isso que matou a sua

mãe. O mais provável é o cancro matá-lo também a si.

O homem não diz nada.

Afasto-me. O seu silêncio significa que a conversa acabou e já não

preciso de agir com naturalidade.

A agente do rabo de cavalo louro já não está no passeio à espera para

me prender. Voltou para dentro do carro e está sentada no lugar do

condutor. O polícia entra para o lado dela e fecha a porta.

Bam! Uma oval castanho-escura com camadas de cinzento.

O motor acelera lanças cor de laranja e amarelas.

Caminho mais depressa. Tenho de pará-los. O meu pai está errado

em relação a isto. Está errado em relação a tudo. Eu não consigo

esquecer. Não posso fingir que não aconteceu. Tenho de confessar.

Tenho de contar à polícia o que fiz.

É a única saída. Não posso continuar assim.

— Jasper.
Viro-me. Este homem usa sapatos de camurça pretos, meias às

pintinhas vermelhas e pretas e tem voz de creme de leite. É Ollie

Watkins, do número 18. Tenho de tomar nota destes pormenores no meu

caderno de apontamentos, para me ajudarem a lembrar-me dele.

— Passa-se alguma coisa? — pergunta. — Queres que telefone ao

teu pai? Não devias estar na escola?

— Não!

O carro da polícia arranca. Perdi a minha oportunidade para

confessar, mas há de surgir outra. Laranja de Cromo Oxidado vai

mandar outra vez o carro. Hoje. Ou talvez amanhã. Ele há de acabar por

perceber o que fiz, não é verdade?

— És amigo da Bee, não és? — pergunta Ollie Watkins.

É uma pergunta impossível de responder. Não abro a boca. Em vez

disso, esfrego o botão entre os dedos.

Uma, duas, três, quatro, cinco vezes.

— Sabes o que a polícia quer dela? É a quarta vez que aparecem em

casa dela desde o fim de semana.

Volto a afastar-me porque a roupa dele precisa de ser lavada. O

cheiro a tabaco velho faz-me doer a barriga.

— Pergunto-me o que terá ela feito, desta vez — diz.

Estou a abanar a cabeça com força. Sou capaz de levantar voo como

o Dumbo e pairar sobre as casas. Vou voar para longe daqui,

encabeçando o bando de periquitos. Tenho a certeza de que eles me irão

seguir. Não vão querer ficar aqui, onde é difícil saber em quem confiar.

— A polícia bateu à minha porta esta manhã, enquanto eu estava a

esvaziar as águas-furtadas da minha mãe e perguntou se eu sabia onde

ela estava.

Ele gosta de falar. Muito. Está a impedir-me de chegar ao meu

esconderijo. Não posso ser mal-educado. Não posso chamar a atenção


sobre mim. Tenho de agir com naturalidade durante mais alguns

minutos.

— Bateram à porta de umas quantas casas aqui na rua. À do David

também.

Porque é que ele não para de falar? Talvez se sinta sozinho depois da

morte da mãe. Como eu.

— A agente também não lhe quis dizer o que queria com Bee, mas

tanto ele como eu pensamos que tem que ver com a música alta. Eu

disse-lhe que achava que ela se tinha ido embora. A casa esteve

silenciosa durante todo o fim de semana. Quando voltar, suponho que vá

apanhar em cheio com a ordem de redução de ruído com que David a

tem ameaçado.

Apanhar em cheio. Não gosto da forma como as palavras cor de

limonada efervescente rolam na sua língua. Mudo de assunto.

— Sabia que as galinhas têm tão boa memória como os elefantes?

Conseguem distinguir uma cara entre mais de uma centena de galinhas.

Se bem que não tenho a certeza se é tecnicamente correto dizer que as

galinhas têm cara. O senhor sabe?

— Não faço ideia — admite Amarelo Creme de Leite. — Ouvi dizer

que tens boa memória para factos e para reconhecer vozes, mas não

tanto para caras. É verdade?

— Quem lhe disse isso?

— David. Ele estava a falar com o teu pai na festa que Bee deu para

conhecer os vizinhos. Lembras-te? Eu saí muito cedo, para cuidar da

minha mãe, mas foi uma noite bastante barulhenta. O David ficou um

bocadinho «tocado». Tal como muitas outras pessoas, segundo ouvi

dizer.

Estremeço. Foi quando o meu pai…


Forço a horrível imagem a sair da minha cabeça. Depois de sexta-

feira à noite, a festa está bem alto na lista de coisas que não quero pintar.

De qualquer forma, não está na altura. Há outras cenas a recriar, antes

disso. Os meus dedos ficam em ânsias ao pensar nas tintas

impacientemente à minha espera no quarto. Talvez me encha de coragem

e as use, em vez de rastejar para o meu esconderijo.

— A música marciana desapareceu e Bee Larkham não deu de

comer aos periquitos.

— Na festa? — pergunta ele.

— Durante o fim de semana. Não houve música marciana. Todos os

comedouros dos pássaros estão vazios. Não há amendoins nem pratos de

maçã e sebo.

— Música marciana? Tens razão. Quando ela põe o volume no

máximo, parece mesmo que há extraterrestres a abanar os pratos no

aparador da minha mãe. Ela suplicava-me que fizesse alguma coisa em

relação a isso, porque não podia sair da cama para ir pedir a Bee.

Sustenho a respiração quando ele pragueja uma cor de vómito

norovírus contra a música.

— Desculpa. Não estou habituado a estar ao pé de miúdos. Não

tenho nenhum meu. Nem sobrinhos ou sobrinhas.

A minha barriga cospe estrelas prateadas.

— Tenho de ir.

— Espera um minuto, Jasper. Tens razão em relação aos periquitos.

Não tinha reparado. Bee não tem reabastecido os comedouros. Não há

dúvida de que está fora. Se a polícia voltar, vou dizer isso mesmo.

— Lamento.

A culpa é minha se os periquitos não têm comida e uma dúzia deles

morreram. A culpa é minha se um bebé morreu. Não faço ideia de como

começar a corrigir tudo o que fiz.


— Lamentas pelos pássaros? — pergunta Amarelo Creme de Leite.

— Claro, esqueci-me. Gostas de pássaros, como eu. Já te tinha visto

ajudar Bee a encher os comedouros. Temos aqui um jovem ornitólogo,

não é verdade? Eu era igual quando tinha a tua idade.

Não quero pensar em Bee Larkham, nos periquitos e em mim. Não

gosto desse triângulo. Tiro-a de cena e, em vez disso, concentro-me nos

periquitos e em mim.

— Ainda tenho meio saco de sementes, mas o meu pai diz que devo

ficar longe da casa de Bee Larkham — digo. — É uma desordeira, uma

galderiazinha destrambelhada e um caso perdido. Não tenho autorização

para tocar nos comedouros. Ele tem espiões nesta rua. Eles vão dizer-lhe

se eu os voltar a encher.

— Ah, deixa-me adivinhar. David? Certo?

— O seu passatempo favorito é matar faisões e perdizes. Bang!

Bang! Bang!

— Bem, ele anda a passear o cão. Conversei com ele depois de a

polícia aparecer. Também bateu hoje à porta de Bee. Está a ser muito

solicitada esta manhã.

Mordo o lábio e cravo os olhos no passeio.

— Estás a pensar no que eu estou a pensar? — pergunta Amarelo

Creme de Leite.

— Porque é que o assassino de pássaros David Gilbert não consegue

deixar Bee Larkham em paz?

Ela detestava as visitas dele. Ouvi-a dizer-lhe para se ir embora e

nunca mais voltar no dia 13 de fevereiro. Ele tinha aparecido no dia

anterior ao de São Valentim com um ramo de flores, enquanto eu estava

a observar os periquitos da janela do quarto dela. Ela não quis as flores.

Eu devia ter chamado a polícia nesse dia. Antes que fosse demasiado

tarde.
Vejo os estorninhos a discutir numa árvore mais ao fundo da rua,

tentando chamar a minha atenção com os seus trinados rosa-coral. As

suas cores nunca conseguirão rivalizar com as dos periquitos. Deviam

desistir. Não vou pintá-los.

— O que eu queria dizer é que o teu pai não me proibiu de dar de

comer aos periquitos, pois não? As pessoas como nós, que gostam de

pássaros, têm de se manter unidas — diz ele.

Pergunto-me o que quer ele dizer com isso. «Manter unidas» soa a

algo permanente, como usar supercola, e no entanto não sei nada sobre

este homem para lá do facto de ambos gostarmos de pássaros, de sermos

solitários e de as nossas mães terem morrido de cancro.

Não quero discutir com ele. Dói-me a barriga, o joelho e a mão.

Quero ir para casa.

— Porque é que não me dás o saco de sementes e eu dou-lhes de

comer por ti? Dessa forma, não estarás a fazer nada de mal. Não te vais

meter em sarilhos com o teu pai.

Penso sobre isto durante dezassete segundos.

— E os homens da carrinha? Irão dizer ao meu pai?

— Que carrinha? — Amarelo Creme de Leite olha para um lado e

para o outro da rua.

— Vou buscar as sementes — digo, ignorando a pergunta. Os

homens da carrinha só estão interessados em mim, mas é melhor que ele

não atraia as atenções sobre si. — Promete que não conta ao meu pai?

Nem a David Gilbert?

— Juro pela minha vida.

Ele não está a falar a sério. Nunca ninguém o faz.

Apetece-me dizer-lhe que já morreu gente suficiente na nossa rua.

Mas não digo.

Não digo nada. É muito mais seguro assim.


Atravessamos a estrada em silêncio e vamos até minha casa.

Amarelo Creme de Leite fica no passeio, junto ao portão, enquanto eu

inclino o grande vaso de mármore e recupero a minha chave. Largo-o

antes que caia e me esmague os dedos.

Depois de entrar, concentro-me em procurar as sementes, antes que

me distraia e esqueça o que ia fazer.

Encontro o saco de sementes no armário da cozinha, atrás da

embalagem dos cereais. O meu pai nunca foi bom a esconder coisas.

Talvez não ensinassem essa técnica nos Royal Marines. Saio a correr,

desço o caminho da entrada, enfio o saco nas mãos do homem e volto a

correr para dentro de casa, batendo com a porta.

Da janela da sala, vejo Amarelo Creme de Leite atravessar a estrada,

com o saco a balouçar na mão direita. Ele abre o portão da casa de Bee

Larkham, para e olha para trás. Um homem dirige-se a ele. O seu cão

ladra. Só há um homem nesta rua com calças de bombazina vermelho-

cereja, boina de pala castanha e um cão que ladra batatas fritas amarelas.

A minha mão mergulha no bolso e encontro o botão da minha mãe.

Esfrega, esfrega, esfrega.

Deve ser o assassino de pássaros David Gilbert, que andava a passear

o cão e voltou mais cedo do que o esperado. Está outra vez à porta do

número 20 de Vincent Gardens. Apanhou outro adorador de pássaros em

flagrante. Ele tem uma caçadeira e já ameaçou usá-la antes. Ameaçou

Bee Larkham.

Fuja do assassino de pássaros David Gilbert!

Amarelo Creme de Leite não se mexe. Não pode. Foi raptado. Deve

saber da arma e não quer correr o risco de fugir. Consegue esconder o

saco de sementes atrás das costas antes de ser levado à força, como eu

fui por X e Y na escola. Sobem o caminho de entrada da casa ao lado.


É o número 22 de Vincent Gardens, a casa de David Gilbert. Eu

tinha razão acerca do homem com o cão. Tem a mão no ombro de

Amarelo Creme de Leite quando entram em sua casa. Está a obrigá-lo a

entrar, quer ele queira ou não fazê-lo, tal como eu fui empurrado até ao

laboratório de Ciências.

Ninguém me ajudou.

Não há aqui ninguém para ajudar Amarelo Creme de Leite. A rua

está deserta.

Não há testemunhas oculares, tirando eu.

David Gilbert vai castigá-lo por tentar dar de comer aos meus

periquitos. Tenho medo, muito medo. Preciso de agir. Há alguém em

perigo, o tipo de perigo terrível que não é possível ignorar.

Não dou ouvidos à voz do meu pai na minha cabeça, a ordenar-me

que não chamasse as atenções sobre mim ou para aquilo que ambos

fizemos.

Ignoro a voz de Laranja de Cromo Oxidado na minha cabeça, que

me diz para deixar de fazer telefonemas de emergência desnecessários.

Ignoro o apelo do meu esconderijo, as tintas e a dor na barriga, que

está a ficar cada vez mais alta e brilhante, como uma estrela prateada

pontiaguda e quente.

Pego no meu telefone e marco o 112. Digo à telefonista que preciso

da polícia e não dos bombeiros, porque não vi chamas. Pelo menos, por

enquanto.

— Na semana passada, aconteceu um homicídio horrível na nossa

rua e agora um homem foi raptado — digo à mulher que está no centro

de controlo. — Foi levado contra vontade para dentro de uma casa.

Corre grande perigo.

Dou-lhe a morada de David Gilbert. Ela pergunta uma série de

pormenores irrelevantes sobre mim: porque é que estou a ligar de casa?


Porque é que não estou na escola? Já alguma vez liguei para o 112?

Onde estão os meus pais? Eles sabem que estou em casa sozinho?

Ela devia fazer perguntas sobre o rapto. Devia exigir informação. Ele

é o verdadeiro vilão nesta história.

— Richard Chamberlain, como o ator, conhece-me — digo. — Ele

disse-me para parar de telefonar para o cento e doze, mas não pode

esperar que eu ignore outra pessoa em perigo nesta rua. Trata-se de uma

emergência absoluta. — Repito-me, para o caso de ela não ter ouvido da

primeira vez. — Houve um rapto, o que não deve ser confundido com

um homicídio.

Desligo o telefone e espero pela polícia junto à janela. Precisam de se

apressar. Os periquitos estão a gritar vidro lapidado verde e azul-pavão

no carvalho de Bee Larkham.

Estão assustados, como eu.


12

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Ainda nessa tarde

O carro da polícia não para com a sirene a tocar ziguezagues

amarelos e cor-de-rosa à porta de David Gilbert. O condutor faz

lentamente marcha-atrás até um lugar de estacionamento. Uma mulher

loura de uniforme preto sai do carro, seguida por um homem. Ele abre

muito a boca e estica os braços por cima da cabeça. Para ser sincero,

estão a encarar esta emergência de forma assustadoramente

descontraída.

A agente pode ser a que vi anteriormente à porta de Bee Larkham.

Não tenho a certeza. Ela sobe o caminho da entrada (porque é que não

vai a correr?) e bate à porta formas castanho-escuras. Passados trinta e

um segundos, a porta abre-se. Aparece um homem, conversam durante

quarenta e quatro segundos e ela entra. O colega espera junto ao carro.

Não sou perito em situações com reféns, mas não devia ser mais

cuidadosa? Nem sequer tinha sacado a arma (se é que a tinha) e está

sozinha na casa de um desconhecido, o que não é boa ideia. As pessoas


têm o hábito de nos atacar quando menos esperamos. O colega não pode

ajudar. Tem o dedo enfiado na narina esquerda.

Passados três minutos e dois segundos, a agente sai da casa com dois

desconhecidos. Descem todos o caminho da entrada e param no passeio,

junto ao segundo agente. Os seus rostos viram-se e olham na minha

direção.

Porque é que o homem de calças de bombazina vermelho-cereja não

está algemado?

David Gilbert devia ser encarcerado numa prisão. O seu lugar é lá.

Caminham em direção à minha casa. Não gosto disto. Porque é que

vêm aqui, quando deviam ir para a esquadra? Afasto-me da janela. Não

posso esconder-me. Não vale a pena. Sabem que estou aqui. Telefonei

para o 112 pelo meu telemóvel. Não porque quisesse fazê-lo, mas porque

fui obrigado a isso.

Não havia mais ninguém que viesse ajudar.

Sou uma testemunha relutante, um ajudante relutante — os papéis

que estou habituado a desempenhar.

Um membro deste grupo bate à porta manchas de castanho-claro

com laivos de chocolate amargo. Não tenho a certeza de qual deles foi,

porque fui para longe da janela. Estou escondido atrás da porta da rua, a

contar os dentes com a língua.

— Olá, Jasper — diz a agente em verde-primavera escuro quando

termino a contagem dos dentes e abro a porta. — Sou a agente Janet

Carter e este é o meu colega, Mark Teedle. Creio que reconheces os teus

vizinhos.

Ela aponta para os dois homens atrás dela. Como é óbvio, não podia

estar mais longe da verdade, mas eu tenho pistas úteis para me ajudar.

Um dos homens usa calças de bombazina vermelho-cereja e saiu de casa

de David Gilbert. O seu cão está a ladrar batatas fritas amarelas por ter
ficado sozinho no número 22 de Vincent Gardens. O outro homem tem

sapatos de camurça pretos, meias às pintinhas vermelhas e pretas e

segura meio saco de sementes.

São o raptor e o seu refém.

A agente olha para os homens atrás dela.

— Queríamos que soubesses que está tudo bem — diz. — Não

houve nenhum rapto nem homicídio. O teu vizinho, o senhor Watkins,

não foi forçado a entrar em casa do senhor Gilbert. Estava a fazer-lhe

uma visita amigável.

— É verdade — diz Amarelo Creme de Leite. — Preparava-me para

encher os comedouros dos pássaros quando David me perguntou se

podia ajudá-lo a mudar um móvel de sítio na cozinha. Era demasiado

pesado para ele conseguir fazê-lo sozinho.

Não tenho a certeza absoluta em relação ao desenrolar dos

acontecimentos. É inesperado e eu não gosto de coisas inesperadas. É

uma palavra laranja lápis de cera da Crayola.

— Ele tinha a mão no seu ombro — observo, recuando um passo. —

Nem mesmo X e Y me fizeram isso há pouco. Ficaram um à frente e

outro atrás de mim, mas não me tocaram porque isso teria sido agressão

e seriam expulsos.

— Acompanhei-o por minha vontade, Jasper. Não havia problema.

Não me importo de ajudar alguém que está em dificuldades. É o que os

vizinhos fazem uns pelos outros, nesta rua. Era o que a minha mãe

sempre dizia.

Sinto uma pontada de dor na barriga e os pelos eriçarem-se na nuca

como os de um cato.

— Ajudava um vizinho mesmo que soubesse que era um assassino

em série ou que tinha ajudado um assassino em série? — pergunto.


A boca da agente abre-se em forma de «O», como a de Bee na

primeira noite que passou aqui. Suponho que esteja tão curiosa como eu

em saber a resposta.

David Gilbert olha para a agente.

— Está a ver o que eu dizia? Estas acusações sem fundamento têm

de parar. O rapaz foi demasiado longe desta vez. É um caso

completamente perdido.

Como Bee Larkham.

Foi como ele a descreveu. Quando estava viva.

— O senhor é um assassino de pássaros — esclareço por uma

questão de justiça, uma vez que não tem um advogado de defesa com

ele. — Eu não o acusei de matar Bee Larkham.

— Espero bem que não! — diz ele muito alto. — De que é que ele

está a falar? O que é que isto tem que ver com Beatrice? — Dirige as

suas palavras vermelho-granulosas aos dois polícias de uniforme. —

Quero que façam alguma coisa em relação a ele. Isto é vitimização. Ele

passa o tempo todo a fazer acusações caluniosas contra mim. Tenho

testemunhas, como o Ollie, que podem corroborar o que digo. Não é

verdade?

O homem ao lado dele move a cabeça e o braço. Não tenho a certeza

do que significa o seu gesto. Será que está a indicar silenciosamente que

vai apoiar David Gilbert ou que se recusa a fazê-lo? É difícil de dizer.

Em vez disso, concentro-me na vitimização. É uma cor interessante,

quase translúcida, com um ligeiro toque de violeta.

A palavra tem como base vítima. Podemos revirá-la na nossa cabeça

para significar coisas diferentes. Talvez também não seja fácil de

perceber quem será a vítima.

— Nós podemos tratar do assunto daqui para a frente — diz a agente

Carter. — Talvez pudessem ambos ir para casa para termos uma


conversa com Jasper a sós, está bem?

Calças de Bombazina Vermelho-Cereja volta para a sua casa, para

junto de Batatas Fritas Amarelas, mas o outro homem, Amarelo Creme

de Leite, não se mexe.

— Se quiserem, posso ficar com ele, uma vez que o pai não parece

estar por perto. — Vira o corpo na minha direção. — Queres que faça

isso, Jasper?

— Bee Larkham não dá de comer aos periquitos desde sexta-feira.

Os comedouros ficaram vazios durante todo o fim de semana.

A agente vira-se para ele.

— É melhor ir-se embora. Nós chamamo-lo, se precisarmos de

ajuda.

— Se é isso que querem…

Não se mexe, o que é irritante.

— Pode encher os comedouros com o saco de sementes que lhe dei,

mas vai ter de comprar mais. Vai precisar de continuar a dar de comer

aos periquitos de agora em diante. Duas vezes por dia. E também pratos

de maçã e sebo. Por favor, não se esqueça!

— Claro. Como queiras. — Afasta-se com o saco a balouçar contra a

coxa.

— Podemos conversar, Jasper? — pergunta a agente Carter.

— Daqui a um minuto ou talvez noventa segundos. — Vejo Amarelo

Creme de Leite regressar à sua missão original. O saco de plástico

enfuna com a brisa, enquanto ele o vira ao contrário e despeja as

sementes nos comedouros. Não há suficiente para os seis, mas pelo

menos três deles ficaram cheios até meio.

Missão cumprida.

Amarelo Creme de Leite espeta o polegar para cima e volta para casa

da sua mãe.
— Agora estou pronto para ir para a esquadra — digo, virando-me

para a agente. — Tenho de vos contar tudo o que aconteceu. Quero

confessar.

— Não há necessidade disso. — Fala em pequenas frases de um

verde-primavera escuro. — Podemos conversar aqui. Podemos entrar?

Não há motivo para te preocupares. Devias ter alguém contigo. Estás

sozinho, não estás? Há alguém que queiras ter aqui contigo?

— Quero a minha mãe. Ela é a única pessoa que quero neste

momento.

— Tudo bem. Ela está a trabalhar? Podemos telefonar-lhe. Tens o

número dela à mão?

— Não podem telefonar-lhe. Ela é azul-cobalto, mas a cor está a

ficar desbotada. — Desato a chorar. Não consigo evitar. A sério que não.

— É tudo culpa de Bee Larkham. Ela diluiu a cor da minha mãe para o

meu pai, mas para mim também, porque não percebi o que estava a

acontecer. Quando dei por isso, já era demasiado tarde para fazer o que

quer que fosse e já a tinha perdido.

— Não faz mal, Jasper. Não te enerves. Lamento ter-te enervado.

Como é que podemos contactá-la?

— Não sei como trazê-la de volta. Não sei como ressuscitar quem

quer que seja.

— Jasper…

— Quero trazê-la de volta, e ao bebé também. Mas não posso! Não

sei onde estão os corpos. Por favor, ajude-me! Ajude-me! Não consigo

fazer isto. Sou demasiado novo. Quero sair daqui.

O seu rosto aproxima-se de mim. E depois outro. Não reconheço

nenhum deles. Um homem está a dirigir-me palavras em voz alta e cores

desagradáveis, mas não sei o que são nem quem ele é. Não quero
analisar as cores mais pormenorizadamente, porque sei que as irei

detestar. Bloqueio-as.

A sua boca é fina e vermelha, como um rasgão. Está a abrir-se e a

fechar-se.

Vejo uma vez mais cristais de azul-glacial com arestas brilhantes e

pingentes de gelo prateados e serrilhados.

Vão magoar-me. Magoar a minha barriga.

Grito sem parar até os pingentes se partirem e desaparecerem em

fragmentos minúsculos.

Não vejo nada.

Nada exceto escuridão a toda a volta, a puxar-me para baixo.


13

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Mais tarde

Estou de volta ao meu esconderijo, com a entrada fechada pelo

cobertor azul-miosótis, agarrado ao casaco de malha da minha mãe. Foi

um erro terrível ter abandonado o meu lugar seguro, os seus botões e o

seu perfume a rosas que quase mascara o cheiro persistente a hospital

que tenho no cabelo e na roupa.

Só que é mais uma mentira. O perfume não é dela. O meu pai lavou

acidentalmente o casaco de malha depois de eu lhe ter vomitado em

cima há dezoito meses. Comprou outro perfume com cheiro a rosa nuns

armazéns e pulverizou o casaco para me ajudar a lembrar da minha mãe.

Disse que ia cheirar ao mesmo.

Estava enganado. Não cheira. É quase o cheiro da minha mãe, mas

não é o mesmo, tal como as pinturas que faço da sua voz. Não a

captaram com exatidão, não totalmente.

Passo os dedos pelos botões.

Às voltas no jardim como um ursinho.


Era o que a minha mãe costumava dizer quando eu era pequeno.

Desenhava a linha vezes sem conta sobre a minha mão quando eu estava

deitado na cama, a olhar para as estrelas fluorescentes que ela colara no

teto.

Os botões são tão lisos como as suas unhas rosa-brilhantes.

Um passo, dois passos, e faço-te cócegas aí debaixo.

Só que a minha mãe não costumava fazer-me cócegas em lado

algum, porque sabia que eu detestava. Em vez disso, deixava-me fazer-

lhe cócegas debaixo do queixo. Isso costumava fazer-nos rir aos dois.

Não fiquei muito tempo no hospital, esta tarde — só até o médico

acabar de me examinar e a polícia ter localizado o meu pai. Duas horas,

talvez três. É difícil de dizer, uma vez que o meu relógio parou de

trabalhar quando caí à porta de casa e perdi a noção do tempo porque o

relógio naquela ala estava atrasado.

Sei este facto importante: foi tempo suficiente para nos causar, a

mim e ao meu pai, um monte de problemas. A agente entrou em pânico

depois de eu ter desmaiado e pediu uma ambulância via rádio. Se

estivesse consciente, tê-la-ia impedido. Mas não estava, não pude fazê-

lo. Estava fora do meu controlo, como muitas coisas que me

aconteceram recentemente. O meu pai não compreende.

Não devias ter fugido da escola.

Não devias ter telefonado para o 112.

O médico examinou-me e viu o buraco na minha barriga. Aplicou-

lhe pequenos pedaços de adesivo, pois era demasiado tarde para pontos

cirúrgicos. Deu-me comprimidos para parar a infeção e aplicou um

bocadinho de pomada antissética. Não lhe contei como tinha magoado a

barriga. Não lhe contei nada. Não fez diferença falar ou não, porque a

agente disse tudo por mim. Disse ao homem o meu nome, idade e
morada. Tinha esses dados registados algures, provavelmente facultados

por Laranja de Cromo Oxidado.

Por essa altura, ela já sabia que o parente mais próximo era o meu

pai, que era o meu único parente vivo, e que não podia telefonar à minha

mãe porque ela estava morta e enterrada, como o periquito bebé.

Como a minha avó e a mãe de Bee Larkham e a mãe de Ollie

Watkins.

Apareceu outra mulher no hospital. Conversou com o meu pai em

privado quando ele apareceu finalmente, sem fôlego e todo transpirado.

Tinha sido arrancado de uma reunião importante. Ela era uma assistente

social. Vamos voltar a vê-la em breve, agora que o médico examinou a

minha barriga com mais atenção, disse o meu pai. Provavelmente,

também vamos falar com um psicólogo infantil, assim como com todos

os agentes policiais envolvidos.

Não vale a pena falar com nenhum deles: Laranja de Cromo

Oxidado, a agente verde-primavera escuro que pediu uma ambulância

via rádio, a assistente social ou o psicólogo infantil.

Nenhum deles me pode ajudar. Ouvem o que querem ouvir, veem o

que querem ver e ainda não encontraram Bee, nem sequer ouvem

quando repetidamente tento dizer-lhes que ela está morta.

Também não quero falar com o meu pai. Não posso falar-lhe sobre o

bebé. O bebé de Bee Larkham. Ainda não. Não quero rolar a palavra

«bebé» laranja-vivo na minha língua.

Vejo verde-acinzentado quando o meu pai liga o rádio na cozinha lá

em baixo. Ecoam linhas verticais esverdeadas que alastram de forma

repetitiva para cima e para baixo. As cores chegam-me de forma

ambivalente. Nem gosto, nem desgosto. Sou neutro. São tons que era

capaz de usar em quadros, se me apetecesse, mas que não me deixariam

destroçado caso a tinta acabasse e não conseguisse tirar a quantidade


suficiente do tubo. Não seria como ficar sem as minhas cores azuis

favoritas: numa escala de catástrofes de um a dez, isso seria

provavelmente um nove.

Nove e meio.

A faixa muda em plena cor quando o meu pai passa para outra

estação de rádio. As cores fazem-me chorar. Não de tristeza, desta vez,

mas de alegria. De alegria com aquelas cores.

É «Diamonds», de Rihanna, só que não vejo diamantes no céu, como

ela. Vejo estrelas de ouro e prata a explodir, formando ondas e

expandindo-se em mares de rosa-flamingo e melancia. O rosa muda de

forma constante e magnífica para violeta e novamente para rosa, com

linhas amarelas subjacentes.

Faz-me esquecer o hospital, o meu pai e todos os agentes da polícia e

médicos e assistentes sociais. Saio do meu esconderijo e sinto as cores a

abraçar-me, a reconfortar-me. Apetece-me dançar. Tenho de dançar, da

mesma forma que Bee Larkham dançava.

Agito os braços. É assim que gosto de dançar, com todos os

membros a mover-se em simultâneo. É egoísmo não partilhar as cores.

Enfio a mão por baixo das cortinas e abro a janela. Quero que os

periquitos apreciem a música; não a ouvem desde que Bee Larkham

morreu. Devem estar a sentir a falta das cores, dos tons e das formas.

Precisam de compreender que a vida continua, apesar de não voltar a

ser a mesma. Os comedouros serão reabastecidos vezes sem conta pelo

homem que mora temporariamente ao lado da casa de Bee Larkham.

Eles têm de se sentir bem-vindos, caso contrário irão abandonar-me.

Não tinha percebido de todo o quanto queria voltar a ouvir música.

Espreito por entre as cortinas. Será que os periquitos ouviram? Há três a

discutir ruidosamente durante a serenata.

Azul-violáceo carregado com soluços amarelos.


Mais periquitos pousam na árvore e juntam-se ao coro conflituoso.

Estão a discutir sobre o que sucedeu, a tomar partido.

David Gilbert contra mim e Bee Larkham.

Eu contra Bee Larkham.

Os meus braços voltam ao lugar onde pertencem. As minhas pernas

deixam de se mexer. Fico imóvel, tomado por um impulso muito mais

forte do que a vontade de dançar. Pego no meu pincel porque a

necessidade de pintar a verdade é brilhante e reluzente como fitas de

Natal douradas.

Estou pronto.

Os periquitos não podem contar a ninguém o massacre que o seu

bando sofreu. Não podem explicar como é que caíram na armadilha.

Precisam que alguém conte a sua história. Tenho de reatá-la no ponto

onde fiquei, porque está a aproximar-se o dia em que chegaram.

Pego numa folha de papel nova e admiro a sua reconfortante

brancura. Escolho as tintas: terra de Siena queimada, vermelho-cádmio

e amarelo, antes de passar aos meus tubos favoritos de azul.

Está na hora de pintar a próxima cena.


14

18 DE JANEIRO, 6H50

Laranja-Escuro com Azul-Cobalto e

Estrelas Carmesins em papel

Na manhã a seguir à Mulher Sem Nome se ter mudado para lá e ter

posto música marciana em altos berros, vi laranja-escuro e serrilhado.

Saltei da cama, peguei nos binóculos e fiquei de pé à janela.

Primeiro, vi o carvalho, mas o periquito mantinha-se afastado depois do

ataque gratuito da pega. Havia dois pombos lá pousados, desconhecendo

a emboscada anterior.

Escrevinhei a hora num caderno de apontamentos. O despertador

tocou -suave pelo quarto, como de costume. Ia mesmo para a escola.

Sem discussão.

Os pombos levantaram voo, perturbados por formas abomináveis e

pontiagudas.

Chegou outra carrinha de transporte com cores vermelho-alaranjadas

mais brutais do que o veículo do dia anterior. Também não levou

mobília. Em vez disso, descarregou um contentor de lixo à porta do

número 20 de Vincent Gardens.


Um carro buzinou, estrelas carmesim-brilhantes, quando um homem

abriu a porta da carrinha e saltou de lá sem aviso. O amigo fez um gesto

feio ao condutor, que retaliou com outra buzinadela escarlate-vivo.

Os estorninhos também tinham chegado à árvore da nossa vizinha,

juntamente com um pisco. Os seus trinados tímidos eram linhas

titubeantes azul-claras por baixo de um arrogante rosa-coral. As horas

estão todas registadas no meu caderno de apontamentos.

A Mulher Sem Nome saiu de casa a correr, descalça, vestindo um

roupão azul-brilhante com um decote fundo em V. Os homens abriram a

boca para formar palavras. Acho que não saiu nada, porque os seus

lábios não mudaram de forma. A cor do seu roupão também me tirou o

fôlego.

Azul-cobalto.

Ohmeudeus, ohmeudeus, ohmeudeus!!!!!!

Traço uma linha debaixo destas palavras no meu caderno de

apontamentos e acrescento seis pontos de exclamação.

Era a cor exata de azul-cobalto, a cor que me induziu em erro muito

mais tarde. Tenho de confessar o meu engano, o primeiro de muitos

relacionados com Bee Larkham. As primeiras impressões podem ser

erradas. Agora sei disso. Quem me dera não saber.

Quando vi o azul-cobalto do roupão, também ouvi a voz da minha

mãe na minha cabeça.

Amo-te daqui até à lua e da lua até aqui.

Amo-te sempre.

A nitidez da voz da minha mãe tirou-me o fôlego. Era brilhante e

alta, como se ela estivesse no quarto a olhar por mim, embora nunca

tivesse morado nesta casa. Pensava que a tinha perdido para sempre, que

a tínhamos deixado no cemitério em Plymouth.


Naquela fração de segundo, senti uma verdade essencial: a minha

mãe tinha jurado nunca me abandonar.

Ela tinha cumprido a sua promessa.

Tinha-me voltado a encontrar.

Aqui, em Vincent Gardens.

Os meus joelhos foram-se abaixo e agarrei-me ao peitoril da janela.

Sabia que, se o largasse, nada me impediria de cair. Não no chão, muito

para lá dele. Senti um buraco sem fundo abrir-se no tapete, a tentar

engolir-me.

Não consegui ouvir o que a Mulher Sem Nome disse aos homens da

carrinha, mas deve ter sido hilariante. Eles atiraram a cabeça para trás e

riram bolhinhas laranja-escuras, enquanto ela enrolava o seu cabelo

louro e comprido à volta do dedo.

Quando eles voltaram para a carrinha, ela amarrou melhor o cinto do

roupão. Era decotado à frente, mas ela não queria saber do frio.

A carrinha arrancou e buzinou estrelas-cadentes de um carmesim-

escuro com arestas douradas. A Mulher Sem Nome olhou para o

contentor durante quinze segundos, antes de colher uma flor do jardim,

creio que uma margarida. Fez o caminho de volta até à porta, mas, em

vez de entrar, virou-se.

Olhou diretamente para mim e acenou-me graciosamente, como uma

princesa. A manga do seu roupão deslizou-lhe pelo braço.

Eu agachei-me por baixo do peitoril.

Tarde demais. A Mulher Sem Nome tinha-me visto a observá-la

através dos binóculos.

Essa foi a primeira vez que ela me viu à janela do meu quarto.

Receava que ficasse aborrecida e não quisesse conhecer-me; que se

queixasse ao meu pai e se risse de mim com os novos vizinhos; que me

chamasse mirone.
O mais curioso, aquilo que ela me disse muito mais tarde quando nos

tornámos Grandes Amigos, é que ela gostava disso.

De ser observada, quero eu dizer.

Não se importava. Gostava de ter assistência. Dizia que a fazia

sentir-se viva.

Mais tarde nessa manhã, 18 de janeiro, 7h45

Blocos Cor de Canela em papel

A minha observação dos periquitos continuou.

Segurava os binóculos numa mão e um caderno de apontamentos na

outra, calculando que havia uma probabilidade inferior a treze por cento

de o pássaro da minha espécie favorita regressar antes de eu ir para a

escola. As cores horríveis tinham-no mantido afastado. Já tinham

afugentado os outros pássaros. Não conseguia ver nenhuma das suas

cores na nossa rua. Não escrevi uma única nota.

Provavelmente, a Mulher Sem Nome não se apercebia disso, mas

estava a desencorajar acidentalmente a vida selvagem local,

arremessando os seus pertences para dentro do contentor: uma estante,

livros, cadeiras, bibelôs, tachos e panelas, jornais, abat-jours e cortinas.

Bam! Bum! Blocos cor de canela que se transformavam em

tonalidades castanho-alaranjadas.

A mulher andava de um lado para o outro, a entrar e a sair de casa, a

trazer coisas que não queria. Cada vez havia mais caixas de cartão com

lixo. Eu queria que ela se despachasse — quanto mais depressa acabasse

de deitar tudo fora, maior a probabilidade de o periquito aparecer outra

vez antes de eu ir para a escola.

Possivelmente, uma probabilidade de vinte e dois por cento.


Através dos meus binóculos, conseguia ver que algumas das caixas

estavam fechadas com fita-cola. Não fazia ideia do que tinham feito para

a aborrecer, mas ela não gostava de nenhuma delas. Não queria ver o seu

conteúdo. As cortinas finas também acabaram no contentor. Tinham-na

ofendido por razões desconhecidas e deviam ser abandonadas.

Observei o carvalho do jardim do número 20 de Vincent Gardens, à

procura de sinais de vida de periquitos, durante catorze minutos e vinte

e cinco segundos, antes de o meu pai bater círculos castanho-claros na

porta do meu quarto. Queria verificar se eu estava a despachar-me para

ir para a escola.

Claro que estava. Tínhamos discutido o assunto na noite anterior.

Todos temos de fazer coisas que não queremos.

— Quem é ela? — voltei a perguntar-lhe. — Aquela mulher ali?

Porque é que ela não gosta de mobília?

— Deve ser uma parente, porque anda a esvaziar a casa — replicou.

— O David conheceu-a ontem à noite. Se quiseres, pergunto-lhe quando

voltar do trabalho. Ele há de saber os mexericos todos, como de

costume.

Mostrei-lhe que gostava da ideia movendo a cabeça para a posição

correta. Esperava que o meu pai não voltasse a fazer asneira. O primeiro

encontro era de uma importância crucial, ele dizia que era quando se

formavam as primeiras impressões. Ela era capaz de não gostar de mim

se não gostasse dele.

— Ela não quer guardar nada — observei. — Nem uma única coisa.

Está a virar a casa da senhora Larkham do avesso. Daqui a pouco, não

vai sobrar nada.

O meu pai admitiu que tinha visto a mulher da janela da sala de estar

— duas pessoas da mesma casa a observá-la ao mesmo tempo. Só que

eu tinha binóculos.
— É incrível ver as coisas que as pessoas deitam fora — disse,

aproximando-se mais da janela. — Ela devia ter contratado uma

empresa de avaliação de recheios para vir cá e escolher as coisas com

valor. Teria ganhado algum dinheiro. Há coisas boas no contentor.

— Talvez ela não queira que ninguém fique com nada que estivesse

nesta casa. Talvez deteste a ideia de outra pessoa usar ou contemplar

alguma dessas coisas.

— Bem visto — disse ele. — Mas isso não vai impedir as pessoas de

vasculhar aquilo tudo, à procura de coisas valiosas com que ficar ou para

vender. Um revendedor vai querer aquelas cadeiras. Parecem estar em

bom estado.

1
Um traficante ?

— Isso é permitido? Isso não é roubo?

— Bem, se deitámos as coisas fora, não podemos impedir alguém de

o fazer — observou. — A partir do momento em que deixamos as coisas

ao deus-dará para outras pessoas levarem, já não é propriedade nossa.

Eu podia impedir os ladrões de contentores e os traficantes. Tinha de

o fazer. E se a Mulher Sem Nome mudasse de ideias e quisesse ficar

com uma das caixas ou cadeiras?

Não era a primeira nem a última vez que ligava o 112 para pedir

ajuda, mas era o primeiro telefonema de emergência que fazia

relacionado com Bee Larkham.

Liguei o meu telemóvel e premi os três números, enquanto o meu pai

lia um jornal na casa de banho. Comuniquei um roubo à Mulher Sem

Nome.

Um potencial futuro roubo do contentor que está à porta do número

20 de Vincent Gardens.

Os traficantes não deviam poder expulsá-la dali, da mesma maneira

como as pegas tinham assustado o periquito.


A operadora pediu-me para passar o telefone ao meu pai. Eu pedi

desculpa e disse-lhe que ele não podia. Estava a fazer as necessidades e

não gostava de ser incomodado. Ela insistiu; eu tentei. Bati três círculos

castanho-claros e fi-lo destrancar a porta. Passei-lhe o telefone pela

fresta. Conversaram durante alguns minutos, enquanto o meu pai estava

sentado na sanita.

Eu volto a falar com ele, prometo. Peço desculpa. Ele excita-se

demasiado com o que acontece. Pensa que é mais importante do que na

realidade é. Eu sei. Eu compreendo.

Mais pedidos de desculpa. Ouvi o leve roçagar rosa-acinzentado do

papel higiénico e as lantejoulas azul-prateadas do autoclismo.

Agarrei na mala da escola e saí a correr, antes que tivesse de ouvir

mais um dos seus sermões. Não queria conversar com ele. Porque é que

ele não me defendeu perante a operadora da central da polícia?

Ele vê séries policiais na televisão todas as noites e tem de saber que

roubar é uma prova de falta de carácter.

Porque, se alguém rouba, provavelmente está preparado para fazer

algo muito, mas muito pior.

Tive dificuldade em concentrar-me na escola durante o resto do dia

— muito mais do que de costume. Desta vez, as cores de fundo e a

mancha indistinta de rostos anónimos não foram as responsáveis. A

culpa era da Mulher Sem Nome.

Anotei os factos importantes sobre ela no interior da capa do meu

livro de Matemática:

1. Ela gosta de música marciana.

2. Ela gosta de azul-cobalto.


3. Ela gosta de dançar.

4 . Ela não gosta de nada do que estava na casa antes de ela vir.

5. Ela é parente ou amiga de Pauline Larkham, que morreu num

outro lar.

6. Ela vai ser uma desordeira (opinião do meu pai).

7. Ela põe a música demasiado alto (opinião de David Gilbert e

Ollie Watkins).

Acima de tudo, queria saber as duas coisas que me faltavam na lista:

Como é que ela se chama?

Qual é a cor da sua voz?

Seria azul? Tinha de ser um tom de azul. Tinha ar de ter uma voz

azul. Esperava que tivesse.

Não podia ter uma voz castanho-amarelada quebradiça ou de um

laranja-desabrido.

Seria como descobrir um ramo de flores putrefacto — tinha

potencial para cheirar bem e ser deslumbrante, mas perdera o viço e

ficara castanho, impróprio para outra coisa que não fosse o caixote do

lixo.

Isso iria estragar tudo.

Passei o dia inteiro a matutar na sua cor e pouco falei, até mesmo

com Jeanne e Aar, que me encontraram no lugar habitual à hora de

almoço.

— Alguém te voltou a aborrecer, Jasper? — perguntou Aar (cor de

peixinho-vermelho).

— Sim — respondi.

Era verdade.
— Devias falar com um professor, Jasper — disse Jeanne (amarelo

pôr do sol). Não devias ter de aguentar ser maltratado todos os dias.

Lembro-me de como fui rápido a sair em defesa da Mulher Sem

Nome. Ela não podia evitar se tivesse uma voz de uma cor putrefacta, e

eu ainda não tinha a certeza disso. Estava a tirar conclusões precipitadas

sem ter todos os factos importantes alinhados à minha frente.

— A culpa não é dela — observei. — Há coisas que não se podem

evitar, seja a pessoa quem for. Escapam ao nosso controlo.

— Não, não é assim, Jasper — insistiu Jeanne. — Os miúdos que se

metem contigo sabem muito bem o que fazem. É isso que eles querem

que tu penses: que a culpa é tua, quando não é. É deles. Eles é que são

uns falhados.

Apunhalei os brócolos que tinha no prato com o garfo. A frase de

Jeanne era desconcertante. Ninguém tinha tentado meter-se comigo hoje.

— Pensa nisso — disse Aar. — Agir é melhor do que ficar por aí

sentado e infeliz.

Aar tinha razão.

Eu tinha de agir. Não podia deixar o trabalho importante de

descobrir o nome da minha nova vizinha entregue ao meu pai. O mais

provável era ele voltar a fazer asneira. Ele também não me podia dizer a

cor da sua voz, uma vez que não seria capaz de a ver.

Tinha de estar preparado. Depois de almoço, fiz uma lista das frases

de abertura e das possíveis conversas, tal como o meu pai me ensinara, e

memorizei-as durante a aula de História. A revogação da Lei dos

Cereais já tinha acontecido. Podia esperar.

Olá. Sou o Jasper Wishart.

Olá. Sou o Jasper. Como se chama?

Olá. Quem é a senhora? Eu sou o Jasper.


Que idade tem? Eu tenho treze anos, dois meses, um dia e quatro

horas.

Fui melhorando a minha apresentação vezes sem conta até ter a

certeza de que estava exatamente como devia ser.

Olá. Bem-vinda à nossa rua. Sou Jasper Wishart. Tenho treze anos e

moro no número 19 de Vincent Gardens. Frequento a Escola

Secundária de St. Alton e gosto de pintar. Como se chama?

Isto era relevante e ia direito ao assunto. Continha toda a informação

importante e deixava a Mulher Sem Nome com a responsabilidade de

me facultar uma descrição semelhante da sua pessoa.

Não conseguia pensar em mais nada. Levei o dia a repetir

mentalmente aquelas palavras. Sempre que o professor me fazia uma

pergunta, eu bloqueava-a e respondia em silêncio:

Olá. Bem-vinda à nossa rua, etc.

Quando chegou a hora de ir para casa, já tinha memorizado tudo na

perfeição. Estava preparado para conhecer a Mulher Sem Nome.

1 O equívoco de Jasper surge por via da língua inglesa, em que a palavra dealer tanto pode

designar um revendedor como um traficante de droga. (N. da T.)


15

18 DE JANEIRO, 15H31

Azul-Celeste Conhece Azul-Frio em tela

Apareceu uma mulher à porta do número 20 de Vincent Gardens,

rodeada de caixas de cartão e sacos de lixo pretos cheios. Eu tinha

batido uma vez com força, mas só depois de as cores das notas do piano

se terem esbatido. Não tinha querido interromper as gotículas de azul-

elétrico e as vagas do elegante e cintilante azul-marinho. Esperar

também me permitiu acalmar a dor pungente de lado depois de os

Blazers me terem perseguido dois quintos do meu percurso até casa.

Ela tinha chegado passado um minuto e vinte e cinco segundos, o

que apreciei quase tanto como apreciei as cores musicais. Gosto de

pessoas que não se atrasam a fazer coisas importantes.

Analisei a figura. Parecia a Mulher Sem Nome, só que era mais

pequena do que esperava e fazia-me lembrar um filhote de pássaro. Era

magra, como eu, e só tinha mais uns quantos centímetros.

Tinha o cabelo louro preso atrás das orelhas, exibindo uns brincos de

prata minúsculos em forma de andorinha. A camisola que vestia tinha

um decote fundo em «V» que parecia esforçar-se por chegar à cintura da

sua saia comprida. Vi as borlas presas à bainha do tecido roçar o chão.


Ruge-ruge.

Queria examinar melhor os seus brincos, mas isso significava ver

outra vez o decote, que parecia do outro mundo, como na primeira noite.

— Olá! Posso ajudar-te?

Azul-celeste.

Um céu azul-claro sem nuvens, daqueles que se veem numa tarde

perfeita e quente de verão na praia — uma mistura de azul-ultramarino

e azul-celeste.

A sua voz era quase azul-cobalto, como a da minha mãe, mas não

era igual. Contudo, era suficientemente parecida, mais do que alguma

vez esperara, mais do que pensara ser possível. Desde a morte da minha

mãe, nunca tinha encontrado ninguém que se aproximasse tanto da sua

cor.

Tive uma branca e esqueci-me de tudo o que tinha memorizado

sobre mim.

1
— Jasper é uma pedra semipreciosa — disse.

Ela riu um azul-celeste deslumbrante orlado de azul-ultramarino.

— Tens toda a razão. É uma das minhas favoritas desde sempre.

Sabes que se acredita que tenha poderes curativos muito fortes?

Levantei os olhos das suas borlas, enquanto ela continuava a falar.

— Proporciona consolo, segurança e força, assim como grande

alegria. — Sacudiu o cabelo para trás dos ombros. Queria que ela

limpasse a testa, que tinha vestígios de pó cinzento.

— Porque é que tu gostas de Jasper?

— É esse o meu nome. Que idade tem?

— Eh lá! Vejo que vais logo direito ao assunto, não é verdade? Será

que te apercebes de que não podes fazer uma pergunta tão pessoal como

essa a uma mulher?


— Porquê? Moro do outro lado da rua. — Apontei para a minha

janela. — O meu quarto fica lá em cima. É aí que eu durmo.

— Ah, o rapaz dos binóculos. O que está à janela com o pai giro.

Sobre esta última parte não sabia, pois nunca tinha ouvido

chamarem isso ao meu pai, mas confirmei que era o Rapaz dos

Binóculos. Duvidava que houvesse outro naquela rua, pelo menos que eu

tivesse visto.

— Eu uso binóculos para a observação de aves — expliquei.

— É uma forma de descrevê-lo. — Riu-se azul-claro com margens

brancas. Eu não ri com ela, porque a observação de aves não é piada

nenhuma. É uma coisa muito séria: observar e registar todas as aves que

vejo. Leva tempo a aprender todas as espécies que existem no Reino

Unido, quanto mais no mundo inteiro.

— Vai morrer em breve? É por isso que não me quer dizer que idade

tem?

— O quê? Espero que não. Tu fazes perguntas engraçadas!

— Obrigado.

— És um rapaz fora do comum — disse a mulher. — Acho que

nunca conheci ninguém como tu.

Movi os cantos dos lábios, curvando-os para cima, porque ela tinha

dado a ideia de que ser fora do comum era uma coisa boa. Comecei

novamente a minha apresentação, porque tinha feito asneira na primeira

tentativa — como costumo fazer quando me distraio e ponho demasiada

água no pincel.

— É uma apresentação impressionante — replicou quando terminei.

— Obrigada.

— Posso ouvir a sua? — incitei.

— Bem, deixa-me ver. Regressei da Austrália para o casamento de

uma amiga e para tratar da casa. Vou ter de morar neste pardieiro
merdoso até decidir o que fazer com ele. Vai precisar de muito trabalho

antes de poder pô-lo à venda.

Tentei concentrar-me na cor global da sua voz e não no palavrão

tangerina-pastoso.

— É sobrinha, amiga ou a filha há muito perdida de Pauline

Larkham? — perguntei, tentando encaixar aquela peça no puzzle. A

parte australiana surpreendeu-me. Ela não tinha sotaque.

— Uma filha há muito perdida? — As borlas da mulher voltaram a

fazer ruge-ruge, enquanto ela ria azul-celeste brilhante. — Sobre isso,

não tenho a certeza. Eu nunca estive perdida. Suponho que nunca quis

ser encontrada, sabes? Queria desaparecer. Não ia aparecer ninguém à

minha procura, muito menos a minha mãe.

— Como aquelas coisas todas? — pergunto, olhando para trás. —

Quer que as encontrem? Ou importa-se se alguém as levar?

Não é que pudessem fazê-lo, agora que alertei a polícia. Tinha-me

certificado disso.

As caixas estavam amontoadas no contentor. A Mulher Sem Nome

devia ter trabalhado bastante durante todo o dia, a limpar a casa.

— Fora com o velho, viva o novo, é esse o meu lema — disse. —

Não quero ficar agarrada ao passado. Estou a tentar não ficar com

demasiadas coisas velhas da minha mãe. De qualquer forma, não há

praticamente nada que valha a pena salvar, tirando uns quantos móveis e

livros de cozinha antigos.

Não quero ficar agarrada ao passado.

Fingi que concordava, movendo a cabeça para cima e para baixo,

mas sabia que ela estava enganada. Não é possível ficarmos agarrados ao

passado, mesmo que queiramos fazê-lo; ele tem o hábito de nos escapar

da mão.
— Eu vi-te a observar-me esta manhã — continuou. — Estava com

esperança de que tu ou o teu pai giro me viessem ajudar a tirar estas

coisas cá para fora. As caixas são pesadas.

— Eu estava a observar o seu carvalho — corrigi, ignorando a

referência ao meu pai. — Não temos árvores no nosso jardim. Há muitos

pássaros que visitam a sua árvore. O que eu mais queria ver era o

periquito.

— Viste um periquito selvagem?

Confirmei o seu nome em latim: Psittacula krameri.

— Fixe. Eu estava sempre a ver periquitos quando morava na

Austrália. São iguais, certo?

— Têm as mesmas características, como bicos curvos e patas

zigodáctilas, isto é, dois dedos a apontar para a frente e dois para trás.

— Uau! Moro em frente de um perito. Que empolgante!

Senti as faces a arder.

— Vou tratar de estar atenta. — A mulher olhou para baixo, para as

suas caixas. — Vou ter muito que fazer hoje a tornar a sala de estar

apresentável para as visitas. Vou voltar ao trabalho. Mas foi um prazer

conhecer-te, miúdo.

— Não terminou a sua apresentação! — Estava ansioso para que ela

continuasse, porque, agora que sabia a cor da sua voz, precisava de um

nome para ligar à cor.

Reflexos azul-celeste esbatidos.

— Hum… Pensava que nos estávamos a despedir! Deixa-me ver. Sou

música profissional. Pelo menos, era na Austrália, mas agora estou a

pensar trabalhar como professora de piano e guitarra até ter o assunto da

casa resolvido. Porque adoro música. Gosto mais de música do que de

qualquer outra coisa.


— Música alta — disse, movendo a cabeça para cima e para baixo.

— E é assim que deve ser tocada.

— Ah, estamos em sintonia, certo? Não tenho a certeza de que os

vizinhos da minha mãe sintam o mesmo. Quer dizer, esta é uma rua

velha, não é? Nem acredito no número de rostos de antigamente que

continuam por aqui. Estou habituada a estar perto de gente jovem e não

de idosos e moribundos.

— Não sei grande coisa acerca da idade das pessoas — admiti. —

Mas pode perguntar a David Gilbert, que mora já a seguir, daquele lado.

— Apontei para a casa dele. — O meu pai diz que ele é a fonte de todo o

conhecimento. Ou fontanário. Não me consigo lembrar da palavra certa.

— Obrigada pela dica, mas eu conheci-o em miúda. Como disse,

esperava que já se tivesse mudado, por esta altura. Estou a pensar evitar

essa velha «chaga» como a peste. E o filho pródigo, também.

Fiquei calado porque «chaga» era uma palavra com cor de ranho e a

menção a «velha» não melhorava a sua tonalidade. Além disso, não

queria admitir que não conhecia a identidade do filho pródigo. Não sabia

dizer ao certo se ela estava preocupada com o facto de David Gilbert

espalhar a peste. Desconfiava que não.

Ela parecia estar a sorrir, como se tivesse contado uma piada

engraçada sobre pestes e pandemias, mas o meu conhecimento sobre

surtos de doenças infecciosas cingia-se ao que tinha aprendido na escola

sobre a Peste Negra e o Grande Incêndio de Londres.

— Quem é a senhora? — perguntei de repente.

— Desculpa! O meu nome é Bee Larkham, e Bee escreve-se com

um «e» e não com um «a», como noutras pessoas.

2
— Ainda bem — disse eu —, porque adoro a cor das abelhas .

— Sim! As mentes brilhantes pensam da mesma forma. Elas têm

uma cor dourada tão bonita… Tenho a sensação de que vamos ser
grandes amigos.

Ela estava enganada por duas razões: a palavra «abelha» é de um

azul-esfumado com laivos de limão-pálido, ao passo que o seu zumbido

é azul sarapintado com riscas vacilantes e intermitentes cor de laranja e

amarelas.

Mas Bee Larkham com um «e» em vez de um «a» estava certa ao

dizer que íamos ser grandes amigos.

— Posso entrar?

— Hoje não, se não te importas. Estou quase a sair. Talvez amanhã

ou algo do género?

Ela tinha uma voz de uma cor encantadora, quase tão maravilhosa

como a da minha mãe, e uma péssima memória. Então, ela não ia fazer

uma seleção das coisas e pôr a sala de estar apresentável para as visitas?

Baixei os olhos a pensar na sua falta de concentração e reparei no

tapete.

Quem Te Convidou?

— Amanhã — disse, confirmando o nosso encontro.

Repeti a palavra duas vezes, uma vez em voz alta e uma segunda vez

baixinho, para dar sorte.

Foi o que a minha mãe me ensinou a fazer pouco antes de morrer.

Ela queria ajudar-me a memorizar as horas das reuniões com os

auxiliares de educação na escola quando ela já cá não estivesse para me

lembrar.

— Adeus, Bee Larkham.

— Obrigada por me teres vindo cumprimentar, John. Adeus.

John?

1 Na língua inglesa, este nome próprio é também um nome comum, que significa «jaspe». (N. da

T.)
2 Também aqui, na língua inglesa, o nome próprio «Bee» pode ser um nome comum, que

significa «abelha». (N. da T.)


16

A HISTÓRIA DA AVÓ

Depois do funeral da minha mãe, não me mexi nem falei durante

duas semanas. Não me apercebi de que tinha sido tanto tempo, mas o

meu pai deu-me os pormenores, mais tarde. Fiquei na cama e fui visto

por médicos que tentaram todos persuadir-me a falar.

Não sei porque queriam que abrisse a boca e formasse uma frase.

Não tinha nada para dizer a ninguém. Não me consigo lembrar de uma

única tonalidade desses dias sombrios. A cor abandonou-me no

momento em que a minha mãe deixou de respirar. Ou talvez eu tenha

deixado de olhar e ouvir.

Foi horrível, mas ao mesmo tempo parecia a coisa certa a fazer. As

coisas tinham de estar desconexas, erradas e deslocadas. Não podiam

continuar como antes; todo o mundo ruíra e não voltaria a haver azul-

cobalto.

Deixei de falar e o meu pai deixou os Royal Marines; ambos

abdicámos de coisas. Lembro-me da paleta de silêncio vazia.

Haveria alguma cor quando o caixão da minha mãe foi baixado à

terra? Os tons castanho-abafados dos soluços? Nuvens verdes e

lamentosas? Condolências cinzento-ardósia murmuradas pelos

camaradas do meu pai? Imagino as suas espingardas a disparar formas


preto-petróleo para o ar, tal como fazem na América nos funerais

militares.

Nunca saberei quais as cores que prestaram a última homenagem à

minha mãe. Nunca poderei pintar esse derradeiro quadro.

As semanas esbateram-se em sussurros branco-acinzentados. As

primeiras cores que voltei a lembrar eram tão brilhantes e vivas que

pensei que as minhas retinas estavam em chamas. A minha avó

conseguiu fazer-me levantar e sair de casa. Não faço ideia como. Levou-

me ao parque que havia perto da nossa antiga casa porque o meu pai

precisava de «espaço». O parque tinha muito espaço se ele se tivesse

dado ao trabalho de olhar — um grande parque de aventuras do lado

direito do campo, à saída da rua.

Sei que era um dia turquesa — sábado — porque havia muitos

miúdos e pais no parque infantil.

Ruído cinzento-esbranquiçado pontuado por pontos súbitos de

vermelho-vivo e amarelo.

Sustive a respiração. Era um choque voltar a ver cor, perceber que ela

não tinha desaparecido completamente do mundo, juntamente com a

minha mãe. As crianças riam e gritavam como se nada tivesse

acontecido.

— Vá, Jasper! — disse a minha avó, tossindo baforadas de tons rosa

manjar-branco e violeta. — Vai brincar. Faz-te bem. Porque é que não

vais ter com aqueles meninos que têm a bola?

Ela apontou para longe, mas eu não segui a direção do seu dedo.

Fiquei a olhar para as fitas rosa-claras, quase translúcidas, dos comboios

de alta velocidade que por ali passavam. A linha férrea ficava por trás de

uma vedação perto do parque, o meu lugar favorito quando lá ia com a

minha mãe. Ela deixava-me ficar junto à vedação durante horas e nunca
tentava persuadir-me a ir para o balouço ou para o balancé, que me

deixavam sempre enjoado.

Via as pessoas de relance nos comboios, uma névoa de feições

indistintas. Como é que podiam estar a viajar num dia como este?

Parecia uma falta de respeito para com a minha mãe as suas viagens

terem continuado depois da morte dela. Nem sequer tinham reparado

que agora havia só uma pessoa junto à vedação a observar o seu

comboio, e não duas como de costume.

Olhei em volta para dizer à minha avó que queria ir para casa, mas

não consegui encontrá-la. Havia um grupo de cinco pessoas à minha

direita e um de três à minha esquerda. Havia três que estavam sozinhas,

a olhar para os telemóveis. Não reconheci nenhuma delas.

— Avó! — berrei. — Onde está?

Os gritos azul-esverdeados da minha voz subiram em espiral como

um dragão, elevando-se sobre o parque infantil, prontos a atacar tudo e

todos. As lágrimas corriam-me pelo rosto, enquanto eu girava sem parar.

— Socorro! Ajude-me! Onde está?

O chão pulou subitamente na minha direção e esmurrou-me com

força no rosto. Senti alguma coisa quente e pegajosa na bochecha.

Ouvi uma tosse áspera de um lilás-rosado e passos azulados com

contornos pretos e vacilantes. Uma mulher arfou ziguezagues de mousse

de framboesa, enquanto se ajoelhava ao meu lado.

— Estou aqui, Jasper. É a avó. Tropeçaste?

Agarrei-lhe o braço com força, receoso de que, se não o fizesse, ela

desaparecesse numa baforada de fumo lilás.

— Não se vá embora! Não se vá embora! Não me deixe sozinho.

Nunca mais me deixe sozinho.

— Eu não vou deixar-te — disse. — Prometo.


Mas deixou. A culpa não foi dela. Não tinha intenção de quebrar a

promessa. Morreu passadas duas semanas. Também não fui ao seu

funeral. O meu pai não me deixou porque eu não parava de balouçar

para a frente e para trás e de agitar os braços, e isso era embaraçoso.

Nunca mais voltei a ver tosse de um lilás-claro e delicado e rosa

manjar-branco, nem ziguezagues de mousse de framboesa. Isto deixou-

me ainda mais triste. Eram cores sinceras. Eu gostava delas e elas

gostavam de mim, sem nunca quererem favores difíceis em troca.


17

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Noite

Obrigada por me teres vindo cumprimentar, John. Adeus.

«John» é uma palavra cor de prego enferrujado e afiado. Tentei calar

a tonalidade do doloroso erro de Bee Larkham escondendo-me debaixo

do meu edredão, mas finalmente chegou a altura de ser honesto comigo

mesmo. Bee não me convidou para entrar na sua casa quando nos

conhecemos. Ela nem conseguiu lembrar-se do meu nome.

Agora que recriei todas as cores certas, não suporto voltar a olhar

para a pintura. É embaraçoso. Os meus erros são demasiado dolorosos

de ver, mesmo em privado, quando ninguém se pode rir de mim.

Salto da cama e viro a pintura para a parede. Consulto os meus

apontamentos e encontro a entrada original daquele dia.

É como eu receava

Não registei a gafe de Bee Larkham no meu caderno de

apontamentos no dia 18 de janeiro. Só contém a data e a hora da minha

visita, que durou cinco minutos e dezoito segundos, sem pormenores

adicionais.
Não me recordo de quando aconteceu, mas em algum momento no

tempo permiti-me só preservar o azul-celeste do nosso encontro inicial.

Contaminou todas as outras cores e sobrepôs-se-lhes de forma

implacável. Não tentei impedi-lo porque a tonalidade era muito

semelhante à da minha mãe. Nunca teria deixado outra cor fazer isso.

A cor da voz de Bee Larkham pintada sobre a cena na soleira da

porta, encobrindo a desconfortável verdade — que este encontro era

muito mais significativo para mim do que alguma vez seria para ela.

Não tenho tempo para chafurdar no meu orgulho ferido ou no que

quer que seja que me deixou um horrível gosto metálico na boca. Peço

desculpa aos meus quadros por amaldiçoá-los.

Tenho de voltar a pintar mais cenas, enquanto elas me vêm à cabeça.

O meu pai não vai aparecer para ver como estou. São 22h03. Foi para a

cama cedo. Não consigo ver as cores da televisão; deve estar a ler um

livro. Provavelmente, o mesmo livro que estava a fingir ler há um mês:

um policial de Jack Reacher, da autoria de Lee Child. Só que, quando

entrei no quarto do meu pai, ele não estava a ler um livro do seu autor

favorito e escondeu o que estava realmente a ler por trás da capa do livro

de Lee Child.

Compreender o autismo do seu filho e outras dificuldades de

aprendizagem.

Espero que esteja a estudá-lo neste preciso momento. A tentar

perceber por que razão sou difícil. Por que razão sou diferente dos

outros rapazes adolescentes.

Por que razão sou tão difícil de amar.

Aposto que o livro não diz nada sobre as minhas cores. Não são tão

difíceis de amar como eu, a não ser quando exigem atenção constante.

Mergulho o meu pincel duas vezes no copo de água e respiro devagar

pelo nariz, ao mesmo tempo que a boca na minha barriga acorda. Vou
limitar-me a pintar mais duas cenas do dia da minha primeira conversa

com Bee Larkham.

Estou a ser seletivo. Tenho de ser.

Não quero repetir-me. Bee Larkham voltou a pôr música marciana

muito alta na noite de 18 de janeiro. Eu já tinha registado as cores da

noite anterior e duvido que possa melhorar o que fiz.

Há outros pormenores importantes a recordar, outras histórias para

contar. Vai levar tempo a revelar as suas verdadeiras cores.

Trinta a quarenta quadros — é o que teria de pintar se quisesse

captar as cores dramáticas que caracterizam a música marciana de Bee

Larkham a partir desta data. Se me obrigasse a pintar todas estas telas,

teria de adicionar castanho-escuro, formas retangulares irregulares com

anéis cinzento-azulados no canto inferior esquerdo de cada uma delas.

Isso seria alguém a bater à porta dela, normalmente um homem, a

altas horas da noite, quando a música tinha atingido os seus picos mais

brilhantes. Muitas vezes, o homem visitava a casa de Bee Larkham e

voltava para dentro da casa de David Gilbert. Às vezes, o homem

voltava para a casa de Ollie Watkins; outras vezes ia da casa de Bee

Larkham para a de David Gilbert e depois para a de Ollie Watkins. Isso

dificultava o controlo das suas identidades, pois estavam sempre a trocar

de casa.

Também havia outras pessoas da rua a visitar Bee Larkham ao final

da noite, quando ela ouvia música em altos berros. Não voltavam para as

casas de David Gilbert ou Ollie Watkins. Anotei os seus endereços nos

meus cadernos de apontamentos, para o caso de alguma vez precisar de

os mostrar à polícia: eram sobretudo dos números 13, 17 e 25. Ted, que

tinha sido considerado excedentário no seu emprego na área da TI, mora

sozinho no número 13. É calvo, usa óculos pretos retangulares e é fácil

de identificar. Karen é jornalista e geralmente anda com um telefone


prateado-brilhante colado ao ouvido. Reside na casa ao lado, no número

17, e Magda, Izaak e o seu bebé, Jakub, moram no número 25.

Izaak tem a tatuagem de uma cruz na mão direita, por baixo do

polegar, mas é impossível ver isso da minha janela. A polícia não devia

confiar nos meus registos: podiam ter sido pessoas diferentes a sair do

número 25 para se queixarem da música. Na altura, Magda e Izaak

tinham muitas visitas que queriam ver o seu bebé.

Preciso de azuis-claros delicados e castanhos-escuros e lamacentos

para recriar a cena. Eles cortam a escuridão, levando cor a uma tela em

branco.

Tenho de fazer com que esta pintura se destaque, porque era

diferente do padrão que se desenvolveu ao longo dos meses seguintes.

Bee Larkham discutiu com um desconhecido, e não teve que ver com a

sua música marciana. A briga aconteceu antes de ela ligar a música no

volume máximo do seu iPod, e não depois, como de todas as outras

vezes que se seguiram.

Este quadro tem de ser uma palavra colorida sarapintada de lápis-

lazúli.

Tem de ser único.


18

18 DE JANEIRO, 21H02

Fora com o Velho, Viva o Novo em papel

Eu estava a pintar vozes no meu quarto na altura — azul-cobalto,

azul-frio e azul-celeste —, para ver que aspeto teriam durante uma

conversa imaginária.

A resposta? Ficavam perfeitamente juntas, falando a uma só voz.

Eram amigas. Grandes Amigas.

Bam, bam, bam.

Nuvens sombrias cor de chocolate negro.

Pousei o pincel e espreitei pela janela, quase arrancando as cortinas

do varão quando as puxei para trás. Quinze minutos antes de o próximo

recital de música marciana ter começado, segundo o meu caderno de

apontamentos.

Estava um homem à porta de Bee Larkham. Era de altura mediana, o

que para mim significava que não era nem mais alto nem mais baixo do

que outros homens que já tinha visto antes na rua. A sua roupa também

não tinha nada que chamasse a atenção. Não tinha um cão com ele.

Eu tinha escrito: Provavelmente, não é David Gilbert, mas podia ter

deixado o Batatas Fritas Amarelas em casa.


A mulher loura usava um vestido comprido azul-pervinca. Tinha de

ser Bee Larkham, porque era a única mulher que eu tinha visto naquela

morada. Ela gostava de música alta e detestava desfazer as malas. Tinha

dito que eu era fora do comum, no bom sentido.

Abri a janela para ouvir. Captei fragmentos de azul-vivo, mas

esfumaram-se antes de poder compreender o seu significado. O homem

virou-se e apontou para o contentor, o que fez com que a mulher

encolhesse os ombros.

— Não quero saber! Não quero saber!

Aquelas foram as únicas palavras azul-celeste que consegui ouvir,

atiradas para a noite. Perguntei-me de que é que Bee Larkham não

queria saber, ou de quem, ou porquê. O meu melhor palpite? Da cor do

contentor. Ela não queria saber daquele amarelo desagradável porque ele

estava a cumprir a sua missão, a livrá-la de tudo o que a perturbava

naquela casa.

Fora com o Velho, Viva o Novo.

Senti pena de Bee Larkham porque tinha a certeza de que ela não

tinha tido uma palavra a dizer em relação à cor do contentor. Se assim

não fosse, teria seguramente escolhido uma tonalidade de azul, tal como

eu. Tinha a certeza de uma coisa: Bee Larkham estava a ser atacada por

algo de que não tinha culpa.

Quis alertar a polícia, embora o meu pai me tivesse confiscado a

Enciclopédia das Aves durante dois dias depois do meu telefonema para

o 112 sobre potenciais ladrões de contentores. Antes de poder procurar o

meu telemóvel, a discussão terminou. Não podia ter sido nada de muito

sério, porque já tinham feito as pazes. Enquanto o homem descia o

caminho de volta à rua, a mulher — Bee Larkham — gritava-lhe:

«Ainda bem! Ora, ainda bem!»


Talvez o homem tivesse contado uma piada. Não sabia o que ele

sentia porque não conseguia perceber se estava contente ou triste. Ele

parou e olhou para o contentor, antes de se ir embora. Fiquei aliviado ao

vê-lo desaparecer, mas também desiludido. Não consegui identificá-lo

pela casa em que entrou na nossa rua.

Anotei no meu caderno de apontamentos que era provavelmente um

desconhecido, alguém que não pertencia à nossa rua. Era outro homem

que lhe queria dar as boas-vindas ao bairro.

Bee Larkham voltou a aparecer passados alguns minutos, enquanto

eu tomava notas à janela. Desceu o caminho da entrada, carregando uma

caixa com mais coisas para deitar fora, que não podiam esperar até de

manhã. Quando chegou ao contentor, virou a caixa ao contrário,

destruindo o conteúdo — faiança, a julgar pelas cores.

Explosões repetidas de branco-brilhante e tubos prateados e

reluzentes.

Mais tarde nessa noite, 15h03

O Diabo em papel

Horas mais tarde, muito depois de as cintilantes e atraentes

tonalidades da música marciana de Bee Larkham terem finalmente

desaparecido, fui acordado por tonalidades diferentes, mais guturais.

Castanhos rudes e ásperos com camadas de laranja rugoso.

De início, pensei que eram raposas. Elas correm por aqui à noite, e

também de dia. Já não têm medo dos humanos. Calculam que as suas

hipóteses de sobrevivência são altas, com base no facto de a maior parte

dos humanos não ter o impulso de matar ou mutilar.


Raposada, uma palavra com forma de ovo estrelado e cor de túlipa

vermelha. É esse o nome para o nome coletivo de raposas.

Fiquei a ouvir o som por mais uns minutos antes de sair da cama.

Sem acender a luz, fui até à janela e peguei nos meus binóculos. Não

precisei de lanterna nem dos óculos de visão noturna do meu pai

(comprados com desconto no eBay porque ele não pôde trazer material

quando saiu dos Royal Marines) para me guiar. Estavam exatamente

onde os tinha deixado: no peitoril da janela.

As desagradáveis cores castanhas e laranja vinham do contentor. Não

conseguia ver bem porque o candeeiro à porta da casa de Bee Larkham

tinha tremulado durante meses até deixar de dar luz. O poste de

iluminação seguinte ficava a quinze metros e não era suficientemente

forte.

Espreitando pelos binóculos, de início não consegui identificar a

criatura. Não era uma raposa. Era demasiado grande para ser fêmea ou

macho ou as suas crias. O que quer que fosse agachava-se à maneira de

um sapo sobre as caixas de cartão, abrindo-as e esquadrinhando o

interior.

Um monstro. Estava demasiado amedrontado para me mexer quando

a criatura mudou de posição. Virou-se lentamente, ainda com as costas

arqueadas. Olhou diretamente para mim, através de mim, dentro de

mim, rasgando-me com o seu olhar.

Desabei para trás, deixando cair os binóculos no tapete.

O meu corpo estava frio e pegajoso, os braços pendiam inutilmente

junto ao corpo. Mesmo que conseguisse mexê-los, não teria tentado

alcançar o meu telemóvel. Sabia que não valia a pena ligar para o 112.

Tinha a certeza de ter visto o Diabo no contentor de Bee Larkham; e

ele tinha-me visto. O Diabo queria fazer-me mal porque eu era a única

pessoa da rua que o tinha visto.


Mas lembro-me de um pormenor importante que nunca esteve no

quadro original, as cores e texturas de um lilás e azul diáfanos que

deixei de fora.

Embora estivesse aterrorizado, ou precisamente porque o estava,

tinha de me certificar que o Diabo não tinha saído do contentor e

conseguido entrar na casa de Bee Larkham ou na minha.

Tinha de ser corajoso. Tinha de proteger a minha nova vizinha das

forças maléficas da nossa rua. Voltei à janela do meu quarto.

Bam, bam, bam!

Formas tubulares cor de jacinto e campainha.

Antes de ter tempo de mudar de ideias, bati na minha janela para

afugentar o monstro. Ele deslizou pela parte lateral do contentor e fugiu

em direção à viela que traçava uma linha divisória entre as casas de Bee

Larkham e de David Gilbert.

Passou um carro e faróis amarelos incidiram em duas pernas —

humanas, e não de bode — com calças de ganga. Antes de ele ser

engolido pela escuridão, vi-lhe as mãos. Não estavam a segurar nada.

A sua mão esquerda enluvada estava fechada com toda a força.


19

QUARTA-FEIRA

(BRANCO PASTA DE DENTES)

Mais tarde nessa noite

Volto a correr para a cama e envolvo-me no edredão, apertando-o

com força à minha volta. Tive razão em telefonar à polícia naquela

manhã.

O meu pai tinha-me avisado sobre os traficantes. O operador de

serviço devia ter-me ouvido. E o meu pai também.

Um homem tinha andado à procura de alguma coisa no contentor de

Bee Larkham, não o Diabo. Ele não conseguira encontrar o que queria

entre os seus pertences velhos e indesejados e a faiança partida.

Ele pode voltar.

Eu não quero que ele venha à minha procura.

Ele não me pode encontrar.

Escondo a cara debaixo da almofada, mas ainda consigo ver as

tonalidades do contentor. As cores da cozinha de Bee Larkham.

Não posso fugir delas.

Preciso de dormir.

Quero fechar os olhos e nunca mais ver pingentes de gelo.


Estou a cair pela toca do coelho da Alice no País das Maravilhas, às

apalpadelas para encontrar um ponto de apoio.

Come-me.

Bebe-me.

Agora estou a nadar na Piscina de Lágrimas. Houve outros animais

e pássaros que foram arrastados pelas lágrimas, juntamente comigo.

Pelo menos, não estou sozinho.

Tartarugas. Elefantes. Cangurus.

Periquitos.

Doze periquitos também estão na água, mas não tentam chegar a

terra firme como os outros. Já estão mortos.

Uma gigantesca bailarina de porcelana perfila-se imóvel nas

margens, com sangue a cair no seu vestido branco e brilhante

imaculado. Vê vinte e quatro melros passar por ela a flutuar. Não

pertencem aqui. E ela também não.

A boca da minha barriga está em ânsias. Quero abri-la e deixar os

pássaros sair. Não posso.

Estou de volta à cozinha do número 20 de Vincent Gardens.

Brancos-cristalinos deslumbrantes.

Odeio-te!

Estás a matar-me!

Para, suplico-te!

Estou deitado em cima de Bee Larkham. Ela tem os olhos fechados.

Levanto-me a cambalear. Ela está deitada de costas no chão da

cozinha. Não se levanta. Não abre os olhos.

Há salpicos de sangue nos mosaicos e no seu vestido azul-cobalto.

O sangue pinga-me da mão. Tenho a camisola toda suja de sangue.

Pingentes de gelo prateados e brilhantes aguilhoam-me a barriga.

Lamento.
Desta vez, Bee não tenta impedir-me. Já não dá luta. Desistiu. Sabe

que acabou.

Os seus olhos continuam fechados quando volto a agarrar na faca

que está no chão. Ela não quer ver. Os periquitos também não. Viram a

cabeça. A bailarina de porcelana nem pestaneja. Encolheu para o seu

tamanho normal e não consegue tirar os olhos da arma.

Brilha, brilha, brilha.

Acordo a suar, incapaz de me mexer, incapaz de me livrar das

tonalidades do meu sonho.

Abro a boca e grito silenciosamente pela minha mãe.

Esse tipo de gritos nunca produz qualquer cor.


20

QUINTA-FEIRA (VERDE-MAÇÃ)

Manhã

Dias puros verde-maçã normalmente fazem com que valha a pena

levantar-me, porque tenho duas aulas de arte antes do almoço. Hoje é

diferente. O meu pai não quer que eu vá à escola. São 8h46 e estou

deitado na cama, a olhar para as cinquenta e duas estrelas incrustadas no

teto. O meu pai tentou recriar o quarto que eu tinha em Plymouth,

aquele que a minha mãe decorou quando eu era pequeno, antes de

andarmos sempre a mudar de poiso por todo o país, em casas alugadas

asquerosas.

Não podes ficar agarrado ao passado.

Tinha querido contar a Bee Larkham esse facto importante no

primeiro dia em que falámos, mas não podia correr o risco de a

transtornar com a verdade. Deixei para demasiado tarde com Bee.

Preciso de ensinar essa lição ao meu pai antes que ele cometa outra gafe,

que nos meterá em sarilhos ainda maiores.

Ele não tem culpa que as estrelas estejam nos lugares errados. Eu

lembro-me onde deviam estar no mapa que tenho na minha cabeça, onde

estavam em Plymouth, mas não posso devolvê-las à sua verdadeira casa.


Agora mora lá outra pessoa. Elas nunca poderão regressar. Se as tentar

tirar de onde estão, irão arrancar teimosamente a tinta e deixar o teto

cheio de marcas e horrível. Acabaria por não se sentir amado, pois EU

não voltaria a olhar para ele.

Deixá-lo em paz. É a melhor estratégia.

É o que penso em relação a reposicionar as estrelas, mas também em

relação às outras coisas. Ontem à noite, estava decidido a fazer a coisa

certa depois de ter pintado o quadro verdadeiro do meu primeiro

encontro com Bee Larkham. Agora a minha determinação vacila como

geleia de Halloween verde.

Provavelmente por causa do Diabo em papel e do meu pesadelo mais

recente.

Quero mesmo passar em revista a história de Bee Larkham? Não

será melhor fazer o que o meu pai sugeriu e voltar a pintar o que está

mal com cores novas e não corrompidas?

Esquece tudo.

Agarro na fotografia da minha mãe que está ao lado da cama. Conto

as cabeças e encontro-a no grupo, agarrada a um rapazinho, como se

não suportasse largá-lo. Eu.

Rapazinho corajoso.

Era o que ela me costumava chamar, mesmo quando eu não o era.

Mesmo quando eu chorava porque não gostava das cores e formas

pontiagudas dos camiões que passavam, enquanto descíamos a rua.

Não me sinto corajoso, agora. Não consigo aquecer, por mais

cobertores que leve do meu esconderijo para a cama. Sinto o toque dos

pingentes de gelo.

Tenho medo do homem que saiu do contentor de Bee Larkham. Ele

não encontrou o que procurava nessa noite, o que significa que pode

voltar. Ele viu o meu rosto. Sabe onde moro.


Tenho medo do Homem de Boné de Basebol Azul-Escuro que bateu

à porta de Bee Larkham. Ele também me viu.

Tenho medo de cães: o Triângulos Laranja-Avermelhados de Lucas

Drury e o Batatas Fritas Amarelas de David Gilbert.

Acima de tudo, tenho medo de desiludir a minha mãe. Ela ia querer

que eu continuasse, tenho a certeza.

Quando tinha nove anos, disse-me que eu tinha de ser corajoso, mais

corajoso do que alguma vez fora na minha vida.

É importante dizer a verdade, mesmo quando ela te assusta.

Disse que os médicos não conseguiam fazer com que o seu cancro

melhorasse. Tinha todo o direito de ficar zangado, mas a culpa não era

dos médicos, nem dela, nem do meu pai, nem minha. A culpa não era de

ninguém.

Ela também estava zangada. E assustada. Era essa a sua verdade. E

também isto:

Não vais passar por isto sozinho, prometo.

O papá está aqui para te amparar e eu vou amar-te sempre.

Serás sempre o meu rapazinho corajoso e lindo.

Nada há de mudar isso.

Acredita em mim, Jasper.

É isso que vou fazer. Vou ouvir o azul-cobalto sincero da minha mãe

e ignorar o ocre-baço e enganador do meu pai. Vou pintar durante todo o

dia e toda a noite, durante toda a semana, até me lembrar corretamente,

até absolutamente todas as pinceladas estarem no devido lugar. Pode

deixar marcas feias, como um teto sem estrelas, mas é a coisa certa a

fazer.

Antes de começar, vejo por trás das cortinas. O carro da polícia que

estava estacionado à porta de Bee Larkham gerou outro.

Um, dois, três, quatro.


É o número de agentes que estão a bater às portas pela rua fora. Sei

que não vão descobrir nada de útil porque os vizinhos não sabem o que

se passou. Karen, que mora ao meu lado, está sempre ocupada a fazer

reportagens sobre as histórias de outras pessoas; Ted, do número 13,

provavelmente saiu, à procura de emprego; e Magda e Izaak, do número

25, empurram um carrinho de bebé vermelho carro de bombeiros a

horas estranhas do dia e da noite. O meu pai diz que só falam sobre

Jakub e em como ele dorme mal.

David Gilbert sabe tudo, é claro.

Então, o meu coração dá um salto. Parece que está a tentar explodir-

me do peito, tipo extraterrestre. Abro as cortinas. Há periquitos em

todos os comedouros no jardim de Bee Larkham. O homem do número

18 — Amarelo Creme de Leite — tinha-me ouvido.

Comprou sementes depois de me ter deixado com a agente e encheu

os seis comedouros. É um bom homem; não se importa com a reação de

David Gilbert. Quer fazer o que é certo. Como eu.

— A polícia voltou.

A voz ocre-baça junto à porta faz-me suster a respiração. Viro-me de

repente, não caindo por pouco.

— Desculpa. — O homem, o meu pai, vem ter comigo. Veste calças

de ganga e uma camisa azul. — Não queria pregar-te um susto. Estás a

observá-los?

Não quero falar com ele. Obrigo-me a pronunciar as palavras.

— Sim. Estou a observar os periquitos. Os mais novos ainda não se

foram embora. Talvez levem mais uns dias até estarem cobertos de

penas.

— Estava a falar da polícia, mas deixa estar. Há imensos periquitos

hoje, certo? Não me parece que tenha morrido algum. Pelo menos, não

tantos como dizes.


— Doze — murmuro. — Exatamente doze, nem mais nem menos.

— Como podes saber isso?

Não respondo. Não vale a pena. O meu pai não pode fazer o tempo

voltar atrás e trazer todos os periquitos do mundo dos mortos. Não pode

pintar por cima desses factos. Eu não deixo.

— A polícia ainda não sabe nada da Bee — continua. — Isso

significa que foi outra pessoa que encheu os comedouros esta manhã.

Não pode ter sido David e duvido de que tenha sido Ollie. Ele detesta a

algazarra que eles fazem e não vai querer contrariar David.

É outra mentira, porque Ollie Watkins gosta de pássaros, como eu.

Também perdeu a mãe. Pode ser uma artimanha. O meu pai pode estar a

tentar fazer-me admitir que tenho um cúmplice. Se eu confirmar que

Ollie Watkins está a dar de comer aos periquitos, ele vai obrigá-lo a

parar de fazer isso.

— Não fui eu — sublinho.

— Eu sei disso, Jasper. — Afasta-se da janela. — Cuidado. Os

agentes pensam que estamos a vigiá-los.

Uma mulher de uniforme levanta a mão.

Não me mexo.

— E estamos — observo. — Desta vez, não estamos a usar

binóculos porque isso seria considerado uma indelicadeza pelas outras

pessoas. Ninguém gosta de espiões.

— Afasta-te daí. Eles vão perguntar-se o que estamos a tramar.

— Demasiado tarde — digo. — Creio que já sabem o que estamos a

tramar.

A mulher de uniforme atravessa a estrada e caminha em direção à

nossa casa. Apoio-me no peitoril da janela, as minhas pernas tremem e o

meu coração bate formas de ameixa pisada.


— Ela vem aí, pai. Ela vai prender-me pelo que eu fiz a Bee

Larkham. A polícia descobriu tudo. Eles resolveram o crime.

— Ninguém te vai prender e, pela última vez, para de te preocupar

com Bee Larkham. — A voz do meu pai soa irritada e dura. — A

polícia ainda não sabe nada do que se passou na sexta-feira à noite. Tens

de fazer exatamente o que eu disser. Fica cá em cima e não desças. Eu

resolvo isto.

Desceu a escada e deve ter chegado à porta antes da agente porque

não vejo nenhuma forma castanho-escura. Vou em bicos de pés até ao

cimo das escadas.

— Olá! Posso ajudá-la?

— Será que posso entrar, senhor Wishart? — Cor de atum enlatado.

— Para ser sincero, estou à espera de uma chamada importante. Hoje

estou a trabalhar a partir de casa.

É outra mentira, tenho a certeza. Não o facto de estar a trabalhar a

partir de casa. Refiro-me ao telefonema. A voz dele escureceu porque a

mentira está a contrair-lhe a garganta, mas a agente não vai notar. Ela

não se apercebe de como são as cores quando ele mente, ao contrário de

mim.

— São só uns minutos.

— Claro. Entre. Peço desculpa pela desarrumação. A empregada da

limpeza não veio esta semana.

Isso é porque a empregada limpeza não existe, a menos que

contemos com o meu pai, de luvas de borracha amarelas, a esfregar o

lavatório da casa de banho sem grande empenho de quinze em quinze

dias.

Ouço passos laranja-escuros no corredor. Quando eles entram na

sala, desço as escadas, tendo o cuidado de evitar o quinto degrau que

range rosa-acastanhado. A porta está aberta e há um estalido castanho-


avermelhado quando alguém se senta na poltrona de couro. O meu pai,

provavelmente. É o seu lugar favorito. Deve ter ido mais depressa que a

agente, para se sentar lá primeiro.

— O que faz, senhor Wishart, se é que posso perguntar? — diz a

agente. — Em termos de trabalho?

— Pode tratar-me por Ed — diz ele. — Agora trabalho para uma

companhia de software comercial, a desenhar aplicações.

— Parece entusiasmante.

— Nem por isso. São coisas como sistemas de informação e

aplicações de pesquisa, que são incrivelmente desinteressantes, mas

tenho um horário regular, pelo menos a maior parte das vezes, quando

não estamos a tentar conseguir novos contratos. Consigo passar mais

tempo com Jasper. É importante, com os problemas que ele tem. De

qualquer forma, com certeza que não quer ouvir isto tudo. Em que posso

ajudar?

— É sobre a sua vizinha, Bee Larkham — diz a mulher. — Até que

ponto a conhece?

O meu pai pensa durante alguns segundos. Aprendeu esta técnica

nos Royal Marines e em séries televisivas como Mentes Criminosas.

É importante parar e pensar antes de deixar escapar alguma coisa

sem querer. Não ceder às técnicas de interrogatório.

— Para ser sincero, não a conheço muito bem — diz ele finalmente.

— Quer dizer, apenas na medida em que conheço as outras pessoas da

rua. O suficiente para a cumprimentar.

— O seu filho é visita regular da casa dela, não é verdade? — Há um

barulho de papel. A agente deve estar a consultar as suas notas, tal como

eu faço, para se certificar de que não cometeu nenhum erro. — Ele tem

aulas de música com ela?


— Não, não é nada assim tão formal. Ele gosta de ouvir música.

Gostam ambos. Costumava aparecer lá depois da escola para observar os

periquitos da janela do quarto dela. — Para. — Uau! Isto soa mal dito

em voz alta. Jasper disse que era de onde se via melhor. Não pensei em

questionar tal coisa. Parecia inocente. Jasper é inocente.

Mais silêncio.

— Obviamente, pus um ponto final a tudo isso agora, tendo em

conta as alegações — diz. — Disse-lhe para não se aproximar da casa de

Bee, nem mesmo para dar de comer aos periquitos.

Só o meu pai é que fala, o que viola as regras.

Não tentes preencher os silêncios.

— Quer dizer, tem de perceber que nunca o teria deixado lá ir, muito

menos ao quarto dela, se desconfiasse de alguma coisa estranha.

Finalmente, a agente fala.

— E agora suspeita de que se passou alguma coisa estranha no

número vinte de Vincent Gardens?

— Sinceramente, não sei o que pensar. Quer dizer, as alegações do

pai daquele rapaz são chocantes. Tenho dificuldade em acreditar nelas,

mas porque é que ele havia de mentir sobre algo tão sério como isso?

Outro breve silêncio.

— Posso perguntar-lhe porque é que tem dificuldade em acreditar no

que alegadamente aconteceu entre Bee Larkham e um menor?

Isto apanhou o meu pai de surpresa. Murmura qualquer coisa. As

palavras saem atabalhoadas, por isso começa de novo.

— Quer dizer, ela nunca me pareceu do tipo predador, ou seja,

pedófila. Parecia uma pessoa normal. Não dava a ideia de estar

interessada em Jasper. Pelo menos, dessa forma. Eram amigos.

— Não achou estranho que uma mulher com mais de vinte anos

quisesse ser amiga de alguém com a idade do seu filho?


A cadeira range círculos castanho-avermelhados mais escuros.

— Escute, já lhe disse. Não suspeitei de nada. Não fazia ideia dos

bilhetes e presentes que Jasper entregava em nome dela, segundo vocês

dizem. Bee e Jasper gostam ambos de música. Gostam dos periquitos

que fazem ninho na árvore dela. Também têm isso em comum. Foi isso

que os juntou.

E também Lucas Drury.

— Mais alguma coisa? Tenho de ir andando. Estou à espera de uma

chamada do trabalho a qualquer momento. — A cor irrompe novamente

da cadeira quando o meu pai dá sinais de impaciência.

— Só mais umas perguntas, senhor Wishart, se não se importa. Sabe

se Miss Larkham tem alguma família e se pode ter ido visitá-los?

— Não me parece que ela tivesse mais família. A sua falecida mãe

morava nesta rua há imenso tempo, mas estavam de relações cortadas. O

David, do número vinte e dois, deve saber mais sobre outros possíveis

conhecidos, ou o Ollie do número dezoito. A mãe deste faleceu

recentemente e ela era a melhor amiga de Pauline Larkham, segundo

parece.

— E amigos ou namorados? Há alguém que possa ajudar-nos a

descobrir o paradeiro dela?

Só o meu pai sabe o segredo do paradeiro de Bee Larkham, mas é

improvável que ele forneça a localização do seu corpo.

— Não sei dizer, lamento — diz o meu pai. — Mais uma vez, David

Gilbert é a sua melhor aposta. Ele mora aqui há anos e é sempre o

primeiro a saber o que acontece nesta rua. Está a par da vida de toda a

gente, se é que me entende.

— Não faz ideia de onde Miss Larkham possa estar?

O meu pai não hesita um momento.


— Absolutamente nenhuma. — Respira fundo. — Não a vejo há

dias.

Até eu percebo que ele cometeu um erro. Devia ter terminado a frase

depois de «nenhuma». Não devia ter entrado em pânico e continuado a

falar, pois suscitou outra pergunta por parte da agente.

— Quando foi a última vez que a viu?

— Deixe-me ver. — O meu pai está desorientado. A sua cadeira está

a ranger um tom ameixa-acastanhado escuro. — Ela costuma estar em

casa ao fim de semana, porque põe a música muito alta, o que aborrece

os vizinhos. Não me lembro de ouvir nada neste fim de semana.

Perguntou ao David ou ao Ollie, que moram do outro lado da rua?

Está novamente a tentar ganhar tempo, mas a agente notou que ele

não respondeu convenientemente à pergunta.

— Vou perguntar-lhes, obrigada. Quando foi a última vez que viu

Miss Larkham?

Sustenho a respiração. Tudo se resume a isto. Será que o meu pai vai,

ou não, contar finalmente a verdade?

— Eu? Provavelmente, deve ter sido na passada sexta-feira. Sim,

decididamente foi na sexta-feira. Sexta foi a última vez.

— E onde foi?

— O que quer dizer com isso?

— Onde é que viu Miss Larkham? Aqui? Noutro lugar?

— Ah, está bem. Aqui, na rua. Bem, em casa dela. Isto é, à porta

dela. Não entrei.

— Que horas eram?

— Deviam ser cerca de nove e meia da noite, suponho. Não sei, ao

certo.

As minhas mãos agarram-se ao corrimão com força.

— Qual foi a finalidade da sua visita?


O meu pai volta a mexer-se na poltrona, fazendo as cores dançar

ruidosamente.

— Queria falar com ela sobre Jasper.

— Então, sempre tinha alguma preocupação relativamente ao

comportamento de Miss Larkham para com o seu filho?

— Não, nada disso. Ela tinha deixado Jasper perturbado. Tinham

tido um desentendimento por qualquer motivo e eu queria discutir o

assunto com ela. Remediar quaisquer mal-entendidos que pudessem ter

existido.

Mordo o lábio com força.

— Estava mais alguém com ela?

— Não. Creio que estava sozinha, mas não posso ter a certeza. Como

disse, não cheguei a entrar.

— E como é que ela lhe pareceu?

— Talvez incomodada. Agitada por causa da discussão com Jasper,

mas esclarecemos as coisas. Não falámos mais do que dois minutos, se

tanto. Pensei que tinha ficado tudo resolvido. Voltado ao normal. Depois

disso, teve a música em altos berros durante horas, provavelmente até

cerca da uma da manhã.

— E foi… — A voz da agente para. — Ouve-se um crepitar rosa

pastilha elástica vindo do seu rádio. — Recebido. — O rádio volta a

crepitar. — Tenho de ir, senhor Wishart. Talvez possamos voltar a falar

sobre isto mais tarde? E, se entretanto vir Miss Larkham, por favor diga-

lhe que nós precisamos urgentemente de falar com ela. Ela deve dirigir-

se à esquadra com o seu advogado quando regressar.

— Claro. Não sei o que possa dizer mais para vos ajudar, mas estou

a trabalhar em casa durante toda esta semana, porque o meu filho não

está bem.
Discutem brevemente este assunto. Só consigo captar as palavras

«escola», «hospital» e «assistente social».

— Obrigada pelo seu tempo.

Volto a subir rapidamente as escadas, enquanto os passos ecoam

rumo ao hall. A porta de casa abre-se e volta a fechar-se, círculos

castanhos.

— Já podes descer — diz o meu pai. — Ela já se foi embora.

Creio que as cores do patamar me denunciaram, mas depois lembro-

me de que ele não as consegue ver.

— Sei que estás aí, Jasper. Não vale a pena fingires.

Levo quarenta e cinco segundos a descer as escadas.

— Não contou tudo à agente — observo.

— Contei-lhe o suficiente. Contei-lhe tudo o que ela precisava de

saber sobre sexta-feira à noite, sem nos deixar a ambos em apuros.

Paro ao fundo das escadas, agarrado ao corrimão.

— Não acha que ela precisava de saber do bebé que Bee Larkham

tinha na barriga?

— O quêêê? O que queres dizer com isso?

Não consigo olhar para ele, não depois das inconsistências

deliberadas da sua história.

Será que o meu pai vai ser apanhado? Será que a polícia vai voltar a

verificar a história, da mesma forma que confronto os meus quadros e

cadernos de apontamentos entre si, à procura de pinceladas enganadoras

e de cores trapaceiras?

Não vale a pena fingir.

— Precisamos de falar, Jasper. Antes que isto vá mais longe. Antes

que tu…

— Não está à espera de uma chamada de trabalho importante? —

interrompo.
Eu sei a resposta. Estou a testá-lo.

— Eu só disse isso para me livrar da agente — diz ele, caindo na

minha armadilha. — Ninguém está a tentar contactar-me. Pelo menos

hoje.

Apanhei-te!

Detetei mais oito mentiras na história que ele tinha contado à

mulher-polícia. Podia haver mais, mas deixei de contar.

Tentar acompanhar todas as mentiras do meu pai é complicado. Não

sou assim tão inteligente.

Na minha cabeça, pintei por cima de todas as mentiras que o meu

pai contou à agente com um pincel grande e macio. Não quero voltar a

olhar para elas nem para as que ele me contou na cozinha depois de ela

se ter ido embora.

Ele recusa-se a acreditar naquilo que Lucas Drury me contou no

laboratório de ciências: o bilhete que Bee Larkham me obrigou a

entregar em casa dele na semana passada revelava que ela estava grávida.

Ela queria encontrar-se com ele para decidirem o que fazer.

Eu não sabia de nada, Jasper. Juro.

Agora estamos num duelo ao estilo western.

Bang! Bang!

Estás morto.

Como os faisões. E as raposas. E os periquitos.

Olho pela janela. Três dos comedouros já estão vazios e os restantes

têm menos de um terço. Os periquitos tiveram um festim. Será que hoje

Amarelo Creme de Leite se vai lembrar de voltar a encher os

comedouros?
Os periquitos estão a custar-me uma fortuna. Por mais que encha os

comedouros durante o dia, garanto que estarão vazios à noite. Eles

estão sempre com fome.

Era o que Bee Larkham costumava dizer. Bem, pelo menos é assim

que me lembro, mas a minha memória pode estar a pregar-me partidas,

tal como fez em relação ao nosso primeiro encontro e ao Diabo no

contentor.

Eu era um pintor íntegro.

Isso já não é verdade, embora use sempre tintas acrílicas, que me

dão tons e texturas que não consigo obter com aguarelas.

Os meus pincéis desiludem-me com frequência.

Tenho de me agarrar aos factos e pintá-los com todas as suas cores

tristes, embaraçosas, ofensivas, pungentes e tortuosas.

Devo registar com precisão o meu segundo encontro com Bee

Larkham — o dia em que ela decidiu mudar drasticamente as cores da

nossa rua.

Era terça-feira, o dia verde-garrafa em que eu concordei ser seu

cúmplice.
21

19 DE JANEIRO, 15H18

Azul-Celeste Premiada em papel

O nosso primeiro contacto tinha acontecido logo depois da escola,

por isso calculei que fosse essa a hora a que me esperava no dia seguinte.

Não queria chegar atrasado porque as segundas impressões também são

importantes.

Desatei a correr, mas, ao passar o portão da escola, esbarrei em

alguém que se atravessou no meu caminho.

— Desculpe — murmurei. — A culpa foi minha.

Uma mão agarrou-me o pulso.

Recuei, sem olhar para cima. Na minha visão periférica, tive um

vislumbre de azul e não do blazer cinzento de que estava à espera.

Era uma mulher com cabelo ruivo comprido, vestida em tons de

azul.

— Peço desculpa — berrei, para o caso de a pessoa não ter ouvido

da primeira vez. — Por favor, largue-me.

A mão soltou-me. Devia ser uma mãe que ia buscar um aluno do

sétimo ano.

A minha mãe teria feito isso por mim durante os primeiros períodos.
— És o rapaz dos binóculos — disse uma voz azul-celeste.

Adorava essa cor, a voz de Bee Larkham. Desta vez, olhei para cima.

Estava enganado. A voz desta mulher tinha a exata tonalidade azul-

celeste, mas o seu cabelo era ruivo-cereja vivo e não louro. Não era a

minha nova vizinha.

Vestia um casaco azul-escuro e tinha-se esquecido de abotoar alguns

botões da sua leve blusa azul-violácea, que se abriu. Eu desviei o olhar.

Não sabia quem era esta desconhecida com aquela pele do outro mundo,

nem quem lhe tinha contado sobre os meus binóculos, mas a notícia

tinha corrido assustadoramente depressa da minha rua para a escola e

vice-versa.

— Desculpe — repeti mais uma vez. — Tenho de ir. Estou atrasado

para um encontro importante.

— Chamas-te John, não é? Não, mas é qualquer coisa começada por

«J». — A mulher fez uma pausa. — Jasper! És o rapaz da minha rua que

gosta tanto de periquitos como eu.

O quê?

A pergunta formou-se como um balão de banda desenhada azul-frio

no exterior do meu corpo e voou para longe, por cima dos portões da

escola.

— Sou a Bee. Bee Larkham. Não te lembras? Foste ontem a minha

casa cumprimentar-me. Moro mesmo à tua frente. Sou a tua nova

vizinha em Vincent Gardens.

— Claro. Desculpe. — Preguei os olhos nos bocados de pastilha

elástica branca colados ao passeio. Esta era Bee Larkham, mas não se

parecia com Bee Larkham. Esta mulher tinha cabelo ruivo-cereja vivo, e

não louro. E usava bolotas de prata nas orelhas e não andorinhas. Todos

os meus indicadores estavam diferentes.

— Não me estás a reconhecer, pois não? — perguntou.


Não queria mentir, não a Bee Larkham. Seria mesmo ela?

Sinceramente, não conseguia dizer. Tinha de confiar na sua voz.

Azul-celeste.

— Está diferente — observei —, mas a voz é a mesma.

— É do cabelo. Pintei-o esta manhã. Queria cortar com o passado.

Gostas?

— Não. Não gosto de ruivo-cereja. Ficava melhor loura.

— Caramba, isso é que é franqueza, hã? Dizes as coisas como elas

são, certo?

Não sabia dizer se ela tinha ficado aborrecida ou não, por isso

apenas podia repetir a verdade.

— Não parece a mesma pessoa. Não tem cabelo ruivo. Devia ser

louro. Louro é a sua verdadeira cor.

— Bem, não é louro natural. É castanho-dourado, mas talvez tenhas

razão. A minha mãe sempre detestou cabelo ruivo. Pensei em

experimentar, embora não tivesse a certeza se ia gostar deste tom. —

Brincou com as pontas. — Não é permanente. Posso tirá-la com água.

— Ainda bem. Assim, vai parecer Bee Larkham e ficar outra vez

bonita.

A imitadora de Bee Larkham fez um barulho tipo tubo oco azul-

escuro, algo entre um resmungo e uma gargalhada.

— Vou pedir-te um favor, Jasper, e, já que foste tão mau para mim,

não podes dizer que não. Não agora que feriste os meus sentimentos.

Mordo o lábio com força, a tentar imaginar o que poderia ter dito

para a deixar magoada.

— Estou a distribuir estes folhetos sobre as minhas aulas de música

— disse. — Podes ajudar-me nessa tarefa?

Movi a cabeça para cima e para baixo. Devíamos encontrar-nos em

casa dela, mas não me importava com o facto de ela ter alterado o local à
última hora. Assim, não ia chegar todo transpirado e cheio de calor.

Por sorte, tinha esbarrado nela por acaso; caso contrário, teria batido

com o nariz na porta. Eu estaria lá e ela aqui, à porta da minha escola.

Entregou-me um monte de papel azul ovo de pato, com palavras

impressas em letras enormes:

AULAS DE MÚSICA COM PROFESSORA

INTERNACIONALMENTE PREMIADA

Aulas experimentais gratuitas de piano, guitarra e guitarra elétrica

Ensinam-se todos os instrumentos. Os cantores são bem-vindos!

— Que prémios internacionais é que ganhou? — perguntei.

Não olhei para ela nem para mais ninguém, enquanto estendia a mão

que segurava o papel. Concentrei-me em certificar-me de que fazia o

trabalho corretamente, para impressionar Bee Larkham e fazê-la

perceber como lhe podia ser útil. Assim, ela era capaz de pensar em

mim se precisasse de mais favores.

Não tenho a certeza de quem levou os meus folhetos. Não sei se

Lucas Drury aceitou um dela ou de mim quando saiu da escola nesse

dia. Talvez já se sentisse atraído por Bee Larkham. Ou talvez tivesse

sido o irmão dele, Lee. Suponho que não interessa qual de nós foi o

responsável, ambos somos culpados. Lee Drury começou as suas aulas

de guitarra elétrica pouco depois.

— Oh, recebi todo o tipo de prémios importantes na Austrália, antes

de ir para professora — replicou ela. — Fiz parte de algumas bandas, a

tocar teclas e guitarra. E cantava, às vezes. Lá, as pessoas adoravam-me,

sabes?

— Que bandas? — perguntei. — Como se chamavam?


— Não terás ouvido falar delas aqui. — Parou de falar, enquanto

entregava mais um folheto. — Só estou a dar aulas de música para

arranjar algum dinheiro, enquanto restauro a casa e decido o que fazer a

seguir. A minha prioridade é regressar à indústria da música, sabes? Vou

precisar de dinheiro para mandar reparar o telhado e modernizar a

instalação elétrica. A casa da minha mãe está um caos. Não a posso pôr

à venda assim, porque ia perder muito dinheiro, dinheiro de que preciso

para gravações demo e vídeos. Para já, tenho de aguentar morar aqui.

Eu não sabia nada sobe a indústria da música, mas pensei que Bee

não ia ter dificuldade nenhuma em regressar ao meio. Eu já acreditava

nela, mesmo sem a ter ouvido cantar uma única nota.

— Obrigada, obrigada. — Bee Larkham repetia as palavras enquanto

distribuía cada folheto. Estava a fazer um trabalho muito melhor do que

eu, por isso tentei acelerar, mas os papéis teimavam em colar-se uns aos

outros. Não queria distribuir dois ou três de cada vez.

Na minha visão periférica, vi um grupo de Blazers altos a sair da

escola. Aceitaram os folhetos da mão de Bee Larkham, não da minha.

Que sorte.

— Uau! — exclamou ela depois de eles se afastarem. — Os rapazes

não eram assim quando eu andava no sexto ano. Será que há alguma

coisa na água da torneira por aqui?

— Não faço ideia do que há na água. — Porque é que não sabia

responder à sua pergunta? Eu bebia constantemente água da torneira, e

Bee Larkham, que regressara há pouco tempo ao país, já tinha percebido

que era venenosa. Achei que talvez fosse mais seguro beber água

engarrafada a partir de agora.

— Cuidado! Estás a deixar cair alguns — gritou.

Dois dos papéis escaparam-me dos dedos e foram levados pelo

vento.
— Desculpe. Lamento imenso. — Tentei recuperá-los, mas ela

agarrou-me pelo braço.

— Não! Não faz mal. Olha, olha! — Atirou os papéis ao ar, para se

juntarem aos meus. — São livres!

Ambos nos rimos enquanto eles dançavam juntos ao vento, como se

nada os pudesse separar. Como as nossas cores. Não me lembro de os

ver cair no chão.

— Deixaste-me a pensar, depois de termos falado ontem — disse

ela, olhando para o céu. — Comprei uns comedouros e sementes para

atrair periquitos ao meu carvalho. O homem da loja de animais diz que

há um grande poleiro comunitário nas proximidades. Quero trazer cor a

esta rua, mas vou precisar da tua ajuda. Posso contar contigo, Jasper?

— Sim, sim, sim! — gritei. — Adoro cores vivas e periquitos, mais

do que qualquer outra coisa no mundo. Farei tudo o que quiser, Bee

Larkham. Tudo.
22

22 DE JANEIRO, 7H02

Pandemónio em tela

Por fim, três dias mais tarde, as cores que Bee Larkham e eu

queríamos desesperadamente trazer a Vincent Gardens chegaram.

Aguaceiros de um alegre rosa-fúcsia e azul-safira com gotículas

douradas.

Azuis-violáceos e azuis-safira transformados em azuis-cobalto,

violetas e novamente em azuis-cobalto, com lampejos de amarelo-

dourado brilhante.

Agarro nos binóculos e abro a janela. A vista faz-me gritar nuvens de

um azul-vivo.

O periquito voltara e não estava sozinho. Trouxera reforços, um

pandemónio.

Os pássaros estavam aglomerados junto dos seis comedouros no

jardim de Bee Larkham. Eu tinha-a ajudado a pendurá-los no carvalho

depois de termos voltado juntos da escola.

Chegavam cada vez mais periquitos.

Contei vinte.
Centenas de gotículas douradas minúsculas explodiram como uma

fonte triunfante de azuis, rosas e roxos cintilantes.

Era como ser convidado VIP no melhor espetáculo de fogo de

artifício do mundo, pondo de parte eu não ser o único espectador.

Olho de relance para o meu caderno de apontamentos desse dia.

A janela de cima do quarto ao lado da casa de Bee Larkham abre-se

e aparece um homem. Não reconheço o seu pijama verde-couve, mas sei

que David Gilbert vive sozinho no número 22.

— Xô! Saiam daqui! — Grita palavras irritadas vermelho-tomate

aos periquitos, uma tonalidade mais viva e mais frágil do que o habitual

vermelho-baço granuloso.

Não tem importância. As aves não querem saber; não fogem.

Mais periquitos chegam no meio de um coro de azul-ultramarino

brilhante polvilhado de lilases e violetas elétricos.

A janela do número 22 bate ao fechar-se e as cortinas agitam-se por

trás do vidro. Enquanto registo rapidamente os pormenores no meu

caderno de apontamentos, abre-se outra janela na rua. Desta vez

pertence à casa de que mais gosto — o número 20.

Uma mulher com cabelo comprido e uma t-shirt branca acena-me.

Tem de ser a internacionalmente premiada professora de música Bee

Larkham, embora o seu cabelo não seja ruivo. Ela deve tê-lo pintado

novamente de louro.

Acenei de volta.

— Eles vieram, Bee Larkham! — gritei com voz rouca. — Os

comedouros resultaram!

Por sua causa, apeteceu-me acrescentar, mas a minha voz estava

reduzida a um delicado azul casca de ovo. Os periquitos tinham vindo

por causa do acolhimento magnífico de Bee Larkham, por causa dos

seus comedouros.
— Conseguimos! — gritou ela. Azul-celeste vivo.

— Com quem estás a falar?

Não me virei. Reconheci a cor da voz do meu pai e mais nenhum

homem podia estar na casa àquela hora.

— Com Bee. Bee Larkham.

Eu não lhe tinha contado que a visitara em sua casa e que ela tinha

dito que ele era «giro», nem que a tinha ajudado a distribuir os folhetos

à porta da minha escola e a pendurar os comedouros de pássaros no seu

jardim. Ele não fazia parte da nossa amizade. Eu não queria que ele

fizesse.

— Quem? — Atravessou o quarto até à janela, com os boxers

cinzento-claros da Calvin Klein. Os pelos do seu peito arrepiaram-se,

envergonhados. Os meus também o teriam feito, se eu os tivesse.

— Oh! A vizinha nova. Era para te ter dito: o David diz que ela é a

filha perdida da senhora Larkham. Um caso completamente perdido, ao

que parece, desde miúda. Estavam de relações cortadas há anos. Nunca

visitou a mãe no lar e nem sequer apareceu no funeral. Só voltou porque

herdou a casa.

«Relações cortadas» era uma expressão lascada, nada agradável de

contemplar durante muito tempo.

— Talvez se tenha mantido longe porque sabia que não era amada —

digo. — Percebeu que a mãe não a queria e pensou que estava a estorvá-

la

— Se tu o dizes. Duvido que fique por cá muito tempo.

Provavelmente, vai pôr a casa em condições de a vender e sair daqui o

mais depressa possível. Nesta rua, é como um peixe fora de água.

O meu pai estava enganado em muitos aspetos. Bee Larkham nunca

tinha falado em peixe e tinha comprado comedouros de pássaros para


atrair os periquitos. Isso significava que estava a construir um lar. Ela ia

ficar.

Bee Larkham voltou a dizer adeus. Debruçou-se tanto para fora da

janela que fiquei com medo que caísse.

O meu pai encolheu a barriga, ao mesmo tempo que retribuía o

aceno.

— Talvez devêssemos lá ir apresentar-nos. Acho que ela ia gostar

disso, sabes? De se sentir bem-vinda a esta rua.

Ignorei-o e observei os periquitos. O meu pai estava outra vez

enganado; Bee Larkham já se sentia bem-vinda. Não precisava de o

conhecer agora que nos tínhamos tornado tão grandes amigos.

Mais tarde nessa manhã, 8h29

Pandemónio em Grande Perigo em tela

— Alguma coisa tem de ser feita quanto a esta situação antes que

nos fuja das mãos. — Palavras vermelhas, ásperas, murmuradas

raivosamente sobre a tela de cores que irrompia alegremente do carvalho

de Bee Larkham.

Os comedouros estavam vazios desde as 7h31, mas os periquitos

continuavam a sua serenata empoleirados nos ramos. Eu estava a

apreciar o recital antes de ir para a escola, de pé ao lado do meu pai no

passeio, até que um homem se aproximou com um cão a ladrar batatas

fritas amarelas. As suas calças de bombazina eram de uma familiar cor

de cereja.

— Chiu — disse eu, apontando para a árvore. — Não os perturbe,

David Gilbert.
— Ele está a brincar? — perguntou o homem com a voz vermelho-

baça granulosa. — Eu é que tenho de ficar em silêncio?

— Ele adora aves, principalmente periquitos — respondeu o meu

pai. — Não consigo arrastá-lo daqui.

Ouvi a forma geométrica preto-acinzentada de passos. Um homem

com uma canadiana preta dirigiu-se a nós, a fumar um cigarro. Eu dei

meia-volta a fim de olhar para a árvore, com medo de perder alguma

coisa.

— O que pensas de tudo isto, Ollie? — perguntou a voz ocre-baça do

meu pai. — És um fã da nova visitante da nossa rua ou não?

Não prestei atenção aos murmúrios ou ao fumo do cigarro porque

cinco periquitos esvoaçavam de um ramo para outro, piando tonalidades

cintilantes de azul-violeta.

— Vou dizer-te o que penso — rugiu a voz vermelho-baça

granulosa. — Essas pestes acordaram-me. Quero fazê-los explodir

naquela árvore com a minha caçadeira.

David Gilbert.

Fechei os olhos e tentei bloquear a tonalidade tóxica de óleo

derramado da caçadeira. Ela subjugou facilmente os azuis-ametista dos

periquitos. Fundiu-se no palavrão rançoso de alga, produzindo algo

muito mais perigoso.

Algo que podia varrer toda a vida selvagem da nossa rua.

— Vá lá, David, não é assim tão mau — disse o meu pai.

Não consegui falar. Não consegui defender as aves. Não consegui

mexer-me.

Esta foi a primeira vez que os deixei ficar mal, mas não foi a última.

Foquei-me nos pormenores importantes da ameaça de morte, que

podia registar mais tarde no caderno de apontamentos de modo a servir


de prova para a polícia. Verifiquei o relógio e fechei os olhos outra vez.

8h29. O potencial assassino era David Gilbert do número 22.

Havia três testemunhas fidedignas: eu, o meu pai e o Homem da

Canadiana Preta a fumar. Eu não tinha visto a cor da voz deste homem,

mas o meu pai chamara-lhe Ollie. Isto provavelmente fazia dele Ollie

Watkins, do número 18, mas tinha de confirmar mais tarde com o meu

pai, para ter a certeza de que os meus registos no caderno de

apontamentos eram realmente precisos.

Bee Larkham não ouviu a ameaça. Ela tinha estado resguardada das

cores horríveis, mas elas escureceram rapidamente para uma tonalidade

ainda mais nojenta de que eu não a podia proteger.

Formas não estruturadas castanho-escuras.

Bam, bam, bam.

Os meus olhos abriram-se de repente. Calças de Bombazina Cor de

Cereja já não estava no passeio. Encontrava-se junto à casa de Bee

Larkham, a bater com força à porta. O seu cão ladrava batatas fritas

amarelas ao seu lado.

Desta vez agi porque a minha amiga, bem como os periquitos, estava

em perigo. Corri para David Gilbert.

— Volta, filho! Tens de ficar fora disto. Esta luta não é tua. Vais

chegar atrasado à escola!

O meu pai foi atrás de mim. Tentou agarrar-me o braço, mas eu

sacudi-o. Ele estava enganado, uma vez mais. Eu tinha de proteger a

minha amiga. Esta briga era minha. Ela era minha amiga. Aqueles eram

os nossos periquitos. Tínhamo-los trazido para esta rua. Estávamos

juntos nisto.

Bee Larkham levou quarenta e cinco segundos a abrir a porta. Vestia

novamente o seu roupão azul-cobalto.


— Uau! Tenho um comité de boas-vindas logo de madrugada. —

Olhou para o homem que estava à sua porta, para mim e depois para o

meu pai. Por último, olhou para lá de nós, enquanto amarrava o roupão

com firmeza. O Homem da Canadiana Preta a fumar tinha ficado para

trás, no passeio… devia ter querido ficar fora da discussão. Os cantos da

boca de Bee não se viraram para cima. Nem sequer se contraíram.

— Quero falar contigo sobre os periquitos, Beatrice — disse David

Gilbert.

— Ela chama-se Bee com um «e» e não com um «a». — A minha

voz cedeu. — E devia retirar-se, David Gilbert.

Devo ter falado demasiado baixo porque David Gilbert não se

corrigiu. Não se foi embora.

Tentei falar de novo, mas as minhas palavras azul-frio foram varridas

pelos estilhaços de vidro vermelho-ásperos.

— Tens seis comedouros pendurados naquela árvore. — Apontou

para trás. — Eles estão a encorajar os pássaros a infestar a nossa rua,

que é algo que seguramente não queremos.

Um ligeiro suspiro azul-sombrio escapou dos lábios de Bee.

— É esse o objetivo, David, encorajar os pássaros a visitar a rua.

Eles são lindos, não acha? Têm umas cores tão vivas, tão exóticas!

Fazem-me lembrar a minha casa, na Austrália. Fazem-me sentir

saudades.

— Isso é tudo muito bonito, mas eles fazem um barulho incrível.

Aqui, são tratados como pragas, como as raposas. Se os encorajares com

os teus comedouros, vão acabar por ficar. Este tipo de pássaros

desenvolve hábitos muito rapidamente. Acredita, eu sei. Destroem

habitats e expulsam outras espécies.

— Bem, espero mesmo que fiquem nesta rua — disse ela. — Creio

que ela precisa de alguma coisa que a anime. Vão injetar cor na vida de
toda a gente. Agitar as coisas por aqui.

O meu pai olhou para mim quando aplaudi. Era exatamente o que eu

pensava; falávamos a uma só voz azul. Tínhamos enfrentado David

Gilbert, algo que mais ninguém naquela rua se atrevia a fazer.

— Não vais retirar todos os comedouros depois de te ter alertado

para um problema potencialmente grave? — perguntou David Gilbert.

— Depois de os periquitos terem acordado metade da rua esta manhã

com a algazarra que fizeram?

— Não, não vou. Isto é a natureza, David. Quem sou eu para

interferir com o ciclo da vida? Os periquitos são livres de ir e vir do meu

jardim sempre que lhes apetecer.

— Estás a interferir com a natureza ao encorajar os pássaros. Seis

comedouros é um perfeito exagero. — A sua voz adquiriu uma

tonalidade mais escura de vermelho-sanguíneo. — Os pássaros não só

são um problema ao nível do ruído, como também podem estragar os

jardins dos moradores. Vão arrancar todos os botões das árvores quando

chegar a primavera.

Bee Larkham cruzou os braços e não respondeu.

— Depreendo pelo teu silêncio, Beatrice, que não vais ser razoável

em relação a isto. Nem em relação à música que pões a tocar em altos

berros desde que te mudaste para cá. Nem em relação ao carro que

abandonaste, a perder óleo, mesmo em frente da casa da senhora

Watkins. É uma contrariedade para Ollie, que agora tem de estacionar

muito mais abaixo. — Apontou para o Homem da Canadiana Preta a

fumar, que não se tinha mexido de onde estava.

— Lamento que estejas aborrecido, mas tenho de continuar a deitar

fora a merda toda que a minha mãe colecionou ao longo dos anos —

disse ela bem alto. — Tenho de deitar tudo fora. Mesmo os preciosos
bibelôs de que os velhos como vocês parecem gostar tanto. Não quero

ficar com nenhum deles.

Disse adeus, penso que para mim, por isso retribuí o aceno

vigorosamente, para mostrar que estava cem por cento de acordo com

ela.

Era seu aliado num ambiente hostil, apesar dos seus palavrões.

Quando ela tentou fechar a porta, David Gilbert avançou o pé. A

porta voltou para trás e produziu um tom castanho-vivo quando bateu no

seu sapato.

— O que pensas que estás a fazer? — perguntou ela.

— Não pareces entender como é que as coisas funcionam nesta rua,

Beatrice — disse ele. — Nós olhamos uns pelos outros. Tratamos bem

os nossos vizinhos, como a tua mãe costumava fazer. Não nos

esforçamos deliberadamente por perturbar o equilíbrio.

— Ótimo. Tu e o teu amigo podem dar o exemplo e não voltarem a

incomodar-me. Já estou farta dos dois e ainda nem há uma semana

regressei.

— Peço desculpa… — começou o meu pai.

— Por favor, tira o pé, David — disse Bee Larkham calmamente. —

Antes que eu faça alguma coisa de que duvido que me arrependa.

— Com certeza, mas deixa-me dizer-te algo que duvido que saibas

— disse David Gilbert, recuando da soleira. — Os periquitos foram

declarados oficialmente uma praga pela Natural England. Isso permite a

um proprietário ou a uma pessoa autorizada abatê-los a tiro no caso de

provocarem um problema específico.

— A sério? Estás a ameaçar-me? É isso que estás a fazer?

— Estou a ameaçar os periquitos — disse David Gilbert. — Lembra-

te disso, Beatrice.
— Deixem-me em paz, que inferno! Todos vocês! — Bateu com a

porta, retângulos castanhos e brilhantes.

Gritei em silêncio, ao mesmo tempo que batia com os pés no chão

vezes sem conta. Nunca tinha sentido um impulso tão forte de pontapear

alguém como naquele momento, ao lado de David Gilbert.

— Isso era necessário, David? — perguntou o meu pai. — São

apenas pássaros. Não vale a pena arranjar uma zanga deste calibre por

causa deles.

David Gilbert aproximou-se um pouco mais.

— Sim, creio que era necessário. Beatrice Larkham precisa de saber

as regras básicas. Tem de compreender que haverá repercussões sérias, a

menos que comece a acatar as regras estabelecidas na minha rua.


23

QUINTA-FEIRA (VERDE-MAÇÃ)

Tarde

Confirmo da minha janela — Bee Larkham já desapareceu há muito,

mas a linha de batalha ficou. Não se esbateu com as pessoas a passarem-

lhe todos os dias com os sapatos por cima nem foi lavada pela chuva.

Não desapareceu no dia em que ela morreu. Continua com uma cor viva

e forte porque David Gilbert não foi a lado nenhum. Leva a sua vida

como de costume, como se nada tivesse mudado.

A linha sabe que não é assim. Ficou permanentemente gravada no

passeio à porta da nossa casa no dia em que ele fez a primeira ameaça,

atravessando a estrada de forma desafiadora com uma cor azul-celeste

viva, sem se importar com o que os outros vizinhos pensavam ou

diziam. Cercava o jardim de Bee Larkham e desaparecia na viela por

trás da sua casa.

Metodicamente, examino os meus cadernos de apontamentos sobre

os pássaros e amontoo-os junto às telas que concluí — Pandemónio e

Pandemónio em Sério Perigo.

Estão os dois virados para a parede; os periquitos devem ser

protegidos das cores perversas de David Gilbert.


Também há uma linha nos meus cadernos de apontamentos que

divide o avistamento das aves antes e depois desta data. A partir do dia

em que David Gilbert fez aquelas ameaças, não me limitava a registar o

avistamento de periquitos, chapins-carvoeiros, pombos, pintassilgos e

tentilhões na nossa rua.

Iniciei um registo detalhado dos movimentos de David Gilbert, as

idas e vindas do homem do número 22. Apontei também a descrição de

toda a gente que subia o caminho da entrada da casa de Bee Larkham,

para o caso de constituírem uma ameaça para os periquitos, incluindo os

alunos de música. Era necessário, pois havia a possibilidade de David

Gilbert agir de forma tortuosa e conseguir que outras pessoas se

pusessem do seu lado, da mesma forma que, segundo o meu pai, pedira

a todos os vizinhos para assinarem a sua petição para instalar lombas na

rua.

Para jogar pelo seguro, anotei também as movimentações de outros

vizinhos — particularmente de Cindy, moradora no número 24, que é

supervisora de refeitório numa escola primária local e tem duas filhas.

Tinha visto Calças de Bombazina bater à sua porta várias vezes, o que

significava que podia estar de conluio com ele.

Tinha de criar um dossiê que pudesse apresentar à polícia depois de

ter reunido provas suficientes, porque eles não tinham levado a sério o

meu primeiro telefonema para o 112 sobre a ameaça de morte.

Isto fazia-me perder imenso tempo, mas era absolutamente

necessário.

Tinha de recolher provas de prática criminosa.

Provas de uma ameaça séria e iminente aos periquitos.

Provas que a polícia não pudesse ignorar.

Verifico o meu caderno de apontamentos do dia 22 de janeiro,

folheando para a frente e para trás, e confirmo aquilo que já sei. O meu
sistema de registo tinha uma falha crucial: demasiadas lacunas gritantes.

Tinha registado a primeira ameaça de David Gilbert de matar os

periquitos, mas não anotei com precisão o que ele disse a Bee Larkham

na soleira da sua porta minutos depois. Tentei ser exato, mas lembro-me

de arrancar a página do caderno e rasgá-la em pedacinhos nessa noite.

As palavras horríveis tinham-me magoado os olhos em demasia.

Foi um erro, a par de todas as outras lacunas no meu registo, as

páginas incriminatórias em branco que se seguiram.

Sei que não é desculpa, mas eu não podia guardar o carvalho vinte e

quatro horas por dia. Tinha de ir para a escola. Tinha de dormir. Tinha

de comer. Não podia ficar dia e noite à janela, de binóculos, por mais

que quisesse fazê-lo.

Perderam-se vidas durante um desses espaços em branco em que não

detetei o perigo. Não estava por perto para impedir o ataque.

A minha falha levou a uma dúzia de periquitos mortos.

Não posso preencher aquelas lacunas no papel em branco da mesma

forma que voltei a pintar as cenas perturbadoras da nossa rua.

Não por tê-las apagado da memória ou por não me conseguir

lembrar, mas porque não sei exatamente quando aconteceu o massacre.

Outro mistério para eu resolver e sei que não vou gostar daquilo que

irei acabar por descobrir.

Amarelo-amanteigado e macio. O meu pai sobe sorrateiramente as

escadas para ver o que estou a fazer. Não suporto falar com ele. Olhar

para ele, ver a cor das suas mentiras sobre Bee Larkham e sobre a minha

mãe.

Salto para a frente e ponho uma cadeira debaixo do puxador da

porta.

Toc, toc, toc. Pontinhos de caramelo.


Ignoro as cores e as formas enquanto o puxador se move

impacientemente.

— Jasper? Filho? Podes deixar-me entrar?

Alinho os meus pincéis e volto a arranjar as tintas, pronto para a

próxima cena. Não quero ser interrompido. Não quero que as minhas

memórias sejam coloridas pelo meu pai. São minhas, não dele. Como os

meus binóculos. Ele não pode pedi-las emprestadas. Podia danificá-las e

torná-las inúteis.

— Quero pedir desculpa pelo que disse lá em baixo — diz ele em

voz alta. Há uma mancha de castanho-caqui quando ele encosta a cabeça

devagarinho contra a porta. — Devíamos falar sobre Bee. E também

sobre o bebé que tu pensas que ela vai ter, se é isso que queres. Fiz mal

em impedir-te de falar sobre ela. Agora sei disso. — A porta faz outra

mancha castanho-clara. — Estou a tentar entender o que aconteceu.

Estará?

Não acredito nele. Odeio-o. Ele mente. O tempo todo.

Observo a porta. O puxador parou de se mexer, mas eu sei que ele

ainda está ali. O soalho range rosa-escuro. Quero que a cor dele se

desvaneça e desapareça por completo.

— Lamento o que aconteceu há pouco, Jasper. A sério que sim.

Quem me dera poder retirar as coisas que disse.

Lamento o que aconteceu há pouco.

Foi o que o meu pai disse da primeira vez que se encontrou com Bee

Larkham.

Fecho os olhos e já consigo ver o quadro que tenho de tentar fazer a

seguir. A voz do meu pai: formas embotadas e suaves de ocre-baço e

claro.

Vou fazer o ocre-baço dançar no papel com o azul-celeste de Bee.

As cores vão andar à volta uma da outra, desconfiadas de início, antes de


se fundirem como se devessem estar juntas.

O que não devem.

Tenho de trabalhar arduamente para as manter separadas. Não quero

que as suas cores se misturem. Não suporto ver isso acontecer. Não

quero olhar para a tonalidade que produzem.

— Vá-se embora! — grito para a porta. — Estou cansado. Vá-se

embora e deixe-me em paz. Odeio-vos aos dois.

— Jasper!

Ambos podemos mentir.

— Só quero dormir. Preciso de dormir. Vou voltar para a cama.

— Está bem, está bem. Isso vai fazer-te bem — diz o meu pai. —

Mas não posso deixar que te tranques aí dentro. Não posso deixar que te

magoes outra vez. Vou-me embora agora e venho ver-te daqui a quinze

minutos. Vou marcá-los no meu cronómetro. Se a porta não estiver

destrancada quando eu voltar, Jasper, vou deitá-la abaixo, estejas tu a

dormir ou não. Compreendes?

Olho para o meu relógio. São 13h30. Vou cronometrá-lo no meu

relógio, que ele arranjou. Está a enganar-me uma vez mais. Vai voltar

daqui a dez minutos, não quinze, mas é tempo suficiente para tentar

pintar outro quadro inquietante.

Devo recriar a cor desagradável produzida quando o ocre-baço é

misturado com o azul-celeste.


24

22 DE JANEIRO

Círculos Verde-Sapo Sujos em papel

A ameaça de fazer mal aos periquitos pairou sobre mim na escola,

muito depois do telefonema para o 112 que eu tinha feito da casa de

banho.

O meu professor de Geografia, o senhor Packham, estava aborrecido

porque eu tinha dado pontapés às cadeiras e recusado sentar-me. Ele não

percebia que eu não podia guardar o meu telemóvel. Tinha de ficar com

ele na mão e esperar que um inspetor da polícia me retribuísse a

chamada. Precisava de saber o que é que a polícia planeava fazer em

relação a David Gilbert.

O senhor Packham tentou tirar-me o telefone e eu gritei-lhe nuvens

azul-esverdeadas elétricas. Ele levou-me ao gabinete da diretora, em vez

de me levar para as aulas de apoio. Sentei-me na cadeira azul-marinho

ao lado da porta durante três minutos e doze segundos. Quando a

senhora Moore me disse para entrar, já sabia a história. Tinha telefonado

para o trabalho do meu pai e falado com a polícia. Eles tinham registo

das minhas outras chamadas para os pouco solícitos operadores do 112.


O teu pai diz para não te preocupares com os periquitos. A polícia

registou a tua chamada. Não deves ficar enervado com isto. Não é um

problema.

O que significa «registado»? A polícia estará efetivamente a fazer

alguma coisa? Estará a investigar David Gilbert? Irão prendê-lo e fazer

patrulhas à nossa rua para proteger os periquitos enquanto estou na

escola? O que estarão realmente a fazer?

A senhora Moore não sabia, o que a tornava uma pessoa

completamente inútil, como não me cansei de sublinhar. Depois disso,

tive de trabalhar na sala de apoio durante todo o dia e nem sequer saí

para ir ao refeitório à hora de almoço. Uma auxiliar de educação trouxe

um tabuleiro e sentou-se ao meu lado. Os seus maxilares faziam

estalidos rosa-escuros enquanto mastigava uma sanduíche, o que me fez

roer as unhas até ao sabugo.

O dia foi passando, sem que nenhum inspetor viesse falar comigo.

Má notícia.

Receava que a polícia tivesse encerrado o caso antes mesmo de o

abrir, por envolver periquitos e não seres humanos, que eram a sua

primeira prioridade. Eu sabia que isto era um erro enorme.

Disse a outro auxiliar de educação que veio acompanhar-me, mas ele

não estava interessado. Disse-me para parar de falar e continuar a

trabalhar. Depois disso, desisti. Fingi que estava a trabalhar.

Fingi que era normal.

Lá no fundo, não acreditava na minha diretora. Não acreditava no

meu pai. Passei o dia preocupado com Bee Larkham e os periquitos.

Quando voltei da escola, duas dúzias de periquitos esvoaçavam em

torno do carvalho de Bee Larkham. Bee também tinha pendurado fiadas


de nozes de macaco nos ramos da bétula vermelha, mais pequena.

Galguei a escada para o meu quarto e fiquei de vigia à janela com os

meus binóculos, mas não vi David Gilbert e a sua caçadeira em lado

nenhum. Talvez estivesse enganado e a polícia não tivesse ignorado a

minha chamada. Talvez tivessem patrulhado a rua, enquanto eu lá não

estava, e protegido o pandemónio de periquitos.

Eu tinha afugentado David Gilbert.

Apesar disso, o meu pai estava preocupado com a nossa nova vizinha

quando chegou a casa do trabalho. Disse que devíamos confirmar que

ela estava bem depois da discussão com David. Eu disse que era

desnecessário, uma vez que a polícia sabia tudo sobre o assassino de

pássaros que morava no número 22 de Vincent Gardens.

A minha barriga roncou cores verde-periquito, assinalando que

estava na hora de lanchar. Embateram num ramo de tulipas roxas

murchas que o meu pai tinha comprado a caminho de casa.

— Vamos lá agora para a apanharmos em casa — insistiu ele. — Ela

pode sair à noite.

Pegou nas flores com a mão direita, da mesma forma que tinha

pegado nos meus binóculos na noite em que a vimos dançar. Com

firmeza. Como se nunca mais quisesse largá-los.

— Ela não sai à noite — argumentei. — Fica em casa e ouve música

marciana ou toca piano. Outras vezes, tapa os olhos com as mãos e

dança, enquanto segura um livro azul. Eu vi-a da minha janela.

— Olha. Vamos fazer isto e quando voltarmos vamos ter uma

conversa sobre respeitar a privacidade das outras pessoas. Vens ou não?

Ele tirou o boné de basebol azul-escuro do bengaleiro da entrada.

Segui-o até à porta de casa dela, do outro lado da estrada. Não queria

que ele estragasse as coisas entre mim e Bee Larkham. A altura também

era errada: quase seis da tarde, quando eu devia comer.


O meu pai parou a olhar para o telhado.

— O que foi? — Esperava que tivesse pensado melhor e fosse para

casa cozinhar a minha empada de galinha, o nosso jantar habitual à

sexta-feira.

— Vi um periquito. Entrou no beiral. Ali vai outro.

— Uau!

Espreitei lá para cima, esperando vislumbrar penas de cauda verdes

ou um bico, precisamente quando Bee Larkham abriu a porta.

— Olá outra vez, Jasper. — Azul-celeste.

Olhei para baixo e contei sete caixas de cartão na entrada.

— Tem binóculos para observar os periquitos lá em cima? —

perguntei, a apontar.

— Hum, à mão não. Porquê? Esqueceste-te dos teus?

— Sim. Hei de lembrar-me da próxima vez.

Olhei para o cabelo dela: louro, não ruivo. Os brincos eram pequenas

andorinhas de prata.

— Uma andorinha está de pernas para o ar.

— A sério? — Olhou para o telhado. — Com o periquito?

Eu ri bolhas azul-frio.

— Essa tem graça! As andorinhas e os periquitos nunca se

recolheriam juntos. São espécies totalmente diferentes.

O meu pai interveio com ocre-baço antes de eu conseguir explicar

que estava a falar do brinco.

— Não tive a oportunidade de me apresentar convenientemente esta

manhã. Sou o pai de Jasper, Ed. Moramos ali. — Apontou para trás.

— Eu sei onde moram — replicou ela. — Já tive uma conversa com

Jasper sobre periquitos e binóculos. Sobre o facto de observar tudo a

partir da janela do seu quarto, sabe?


O meu pai tirou o boné da cabeça e olhou para mim. Passou a mão

pelo cabelo.

— Não sabia. Desculpe. Já falámos sobre os binóculos, mas Jasper

adora observar aves.

— E o senhor? Gosta de aves?

O meu pai tossiu nuvens de ocres tingidos de ferrugem.

— De algumas. Há algumas de que gosto muito.

— Ouça bem o que diz! Ainda vão pensar que está a namoriscar

comigo, Eddie.

— Acho que não — repliquei, antes que o meu pai dissesse alguma

tolice. — Ele queria dizer-lhe o nome dele, que é Ed, e não Eddie. Só

isso. Agora vamo-nos embora porque são quase seis horas e está na hora

de lanchar.

O meu pai riu-se.

— Estas flores são para si — disse, entregando-lhe as tulipas. —

Peço desculpa, mas não consegui nada melhor. Eram as únicas flores

que ainda não estavam mortas na florista local. Esqueça o que aconteceu

de manhã. Eu não fazia ideia de que David ia perder a cabeça daquela

maneira por causa dos periquitos. Ele é bem-intencionado, mas por

vezes é um bocadinho obsessivo-compulsivo.

— Isso é o eufemismo do ano! — disse ela. — Ainda agora voltei e

ele tem aparecido praticamente todos os dias para se queixar disto ou

daquilo, e agora dos periquitos. Ele tem mesmo uma arma? Tenho

razões para ficar preocupada?

— Sim — intervenho. — Tem razões para ficar extremamente

preocupada. David Gilbert gosta de caçar faisões e perdizes, o que faz

dele um assassino. Não podemos deixá-lo matar os periquitos.

— Claro que não — replicou ela. — Não vou deixar isso acontecer.

Prometo que vou protegê-los com a minha vida, Jasper.


Brindei-a com o meu melhor sorriso porque acreditei nela. Pensei

que ela faria absolutamente qualquer coisa para proteger os periquitos,

da mesma forma que eu.

— Já se apercebeu de que eles estão no seu beiral? — perguntou o

meu pai, olhando para cima. — Os periquitos, quero eu dizer. Isso pode

causar ainda mais problemas se, por exemplo, decidirem insensatamente

fazer ninho no beiral de David.

— Não me diga! — Ela saiu cá para fora.

— É verdade! — Os círculos ocre-baços do meu pai misturaram-se

com o azul-celeste dela. Eu estremeci ao ver os círculos verde-sapo

sujos.

Ficaram lado a lado, a olhar para cima. Ela e o meu pai. Eu do lado

oposto. O braço dela quase roçava no do meu pai. Naquele dia não

estava de azul, o que era uma desilusão. A parte de cima tinha um

decote fundo em «V» e os seus braços estavam cruzados por baixo dele,

fazendo aparecer pele de outro mundo, que saía em montes do tecido.

— A sua roupa é demasiado pequena para si — disse eu. — Fica

ridícula, assim tão apertada. Precisa de comprar um tamanho acima.

— Jasper! — O meu pai recuou. — Isso é uma grosseria. Pede

imediatamente desculpa a Miss Larkham.

Pelo canto do olho, vi Bee puxar a camisola para cima.

— Ups! O decote é demasiado grande. Desculpem. Esta é a versão

censurada. Tratem-me por Bee, já agora. Está melhor assim?

Não sabia por que razão me sentia zangado quando devia estar feliz.

Os periquitos gostavam tanto de Bee Larkham que tinham procurado

uma maneira de entrar em sua casa. Se tinham conseguido instalar-se no

seu beiral, talvez também viessem para o nosso.

Talvez persuadissem Bee Larkham a ficar.


— Tenho fome — disse. — Quero ir para casa. Já passam três

minutos da hora de lanchar.

— Peço desculpa. — O meu pai virou-se para Bee. — Receio que

ele não tenha filtros. Normalmente, diz a primeira coisa que lhe vem à

cabeça.

— Não se preocupe — replicou ela. — Não me ofendo com

facilidade. Ele já me aconselhou a mudar a cor do meu cabelo. — Senti

o seu olhar virar-se para mim. — Tinhas razão em relação a isso, Jasper.

Não parecia eu. O louro fica-me muito melhor do que o ruivo.

Transferi o peso do corpo de um pé para o outro enquanto o meu pai

ria círculos suaves cor de bolo de cenoura.

— Tenho de ir andando e fazer-lhe o lanche antes que ele fique ainda

mais rabugento. Diga-me se alguma vez precisar de alguma coisa. Bata à

porta. Estou em casa na maioria das noites.

— Obrigada. Sou capaz de lhe cobrar a oferta, para levantar as

coisas mais pesadas: móveis e caixas que preciso de deslocar.

— Com certeza. Quando quiser. — O meu pai afastou-se e parou. —

A propósito, diga-me se Jasper se tornar maçador e eu falo com ele. Tem

tendência para se fixar nas coisas. E nas pessoas. Apega-se muito

rapidamente, sobretudo às mulheres. Não sei se sabe, mas a mãe… —

Para de falar. — De qualquer maneira, peço desculpa antecipadamente

se ele a aborrecer em demasia.

Nunca tinha detestado tanto o meu pai como naquele momento.

Queria explicar a Bee que ele não estava a contar toda a verdade. Eu

tinha interesses e passatempos, apenas isso. Isso não fazia de mim

maçador.

— O Jasper nunca será uma maçada para mim — disse ela sem

hesitar. — Já foi extremamente prestável. Não sei o que teria feito sem

ele no início desta semana.


Bee Larkham explicou ao meu pai o episódio dos folhetos —

compreendendo instintivamente que ele estava a tentar deixar-me ficar

mal. Ela acreditava em mim, e não nele. Bee tinha trocado de posição e

estava agora do meu lado.

— Na verdade, queria pedir-te outro favor, Jasper, se não te

importares. Espera um minuto. — Voltou a entrar apressadamente em

casa e regressou com um punhado de folhetos.

— Não se importa que Jasper distribua estes folhetos na escola, na

semana que vem?

O meu pai encolheu os ombros enquanto olhava para os folhetos.

— É música? — disse ele em voz suave, novamente da cor de

torrada quente com manteiga. — Estou impressionado.

— Estou a dar aulas experimentais gratuitas. Pensei que Jasper podia

distribuí-los entre os amigos.

Senti-me lisonjeado pelo facto de ela pensar que eu tinha muitos

amigos; havia pelo menos trinta folhetos, o que sobrestimava

enormemente a minha popularidade. Mesmo assim, o coração caiu-me

aos pés.

— Vem comigo? — Olhei para cima esperançado, mas ela tinha os

olhos cravados no meu pai.

— Receio não poder. Tenho de pôr a casa como deve ser antes de

começar a dar aulas. Há mais para fazer do que inicialmente pensei. A

casa esteve tanto tempo desprezada… É o que acontece quando é

habitada por uma pessoa de idade, suponho.

— Oh!

Não lhe podia dizer que não, mas tinha detestado distribuir folhetos

da última vez. Não queria chamar as atenções sobre mim. É difícil ser

invisível quando estamos a tentar que as pessoas reparem no que temos


na mão. A melhor parte de ajudar Bee Larkham era a atirar os papéis ao

ar e ficar a vê-los voar.

— Vou pensar numa prenda, se conseguires trazer alguém às aulas

— disse ela.

— Que tipo de prenda?

— Bem, gostas de pássaros, não gostas? E que tal a oportunidade de

observar os periquitos da janela do meu quarto? Assim, podes vê-los de

perto. Podes trazer os binóculos, se quiseres.

— Posso vir sempre que quiser?

— Bem…

— Agora é que arranjou a bonita — disse o meu pai, a rir. — Já

estou a ver-me a ter de arrastá-lo para fora do seu quarto.

— Ah! Já se está a imaginar no meu quarto, não é verdade? Seu

desavergonhado do caraças!

Dei um salto. Não queria que Bee Larkham usasse palavras com cor

de diarreia de cão, que não estavam à altura de alguém como ela.

Grosseiro. É uma palavra vermelha e oca com cauda esverdeada, que

a minha mãe usava para descrever pessoas que praguejavam. Ela sentia a

mesma coisa que eu em relação a palavras menos próprias. Também

detestava as suas cores.

Desviei o olhar de Bee Larkham para o meu pai. Ela estava a rir-se e

a enrolar o cabelo no dedo médio, como fizera com o homem das

mudanças. Ele tinha as faces vermelhas como molho de chili, o que

supus querer dizer que estava envergonhado com o seu erro.

Ela tinha-me convidado a mim para observar os periquitos da janela

do seu quarto, e não a ele.

Ele tinha ficado horrivelmente baralhado e perturbado, e era por isso

que eu não queria que ele lá fosse.

— Não. Bem, isto soou mal. O que eu queria dizer era…


— Sabe que uma visita-surpresa é sempre uma visita bem-vinda —

disse ela, interrompendo os seus tons ocre-escuros.

— Não me vou esquecer. — O olho esquerdo do meu pai fechou-se e

voltou a abrir-se.

Bee Larkham riu bolhas ainda maiores de um suave azul-celeste.

— Eu sou a anfitriã perfeita. É raro virar as costas a alguém.

Os círculos verde-sapo sujos fazem-me estremecer quando verifico

as horas no meu relógio. Tenha exatamente seis minutos e trinta

segundos para acabar a pintura antes de o meu pai abrir a porta do meu

quarto com farpas afiadas laranja-cintilantes.

Preciso de pintar com precisão a semana seguinte, sem deixar de

fora toda e qualquer tonalidade grosseira.

Olhando pela janela, agarro no pincel com força. Não consigo largá-

lo, embora receie para onde as suas pinceladas acusadoras me possam

levar.

A rua está deserta.

Os carros da polícia desapareceram; os agentes desistiram de

procurar pistas. Porque é que não foram ver à viela que passa por trás

das casas do lado oposto da rua? Ou será que foram?

Será que não viram o rasto de migalhas que leva à porta das traseiras

de Bee Larkham?

O meu pai não podia deixar o corpo dela dentro de casa.

Os corpos em decomposição cheiram mal e atraem moscas; ele devia

saber disso por causa das séries policiais que vê na televisão. Deve ter

carregado o corpo sem vida de Bee Larkham pela porta das traseiras e

através da viela na sexta-feira à noite — a mesma rota que utilizei para

fugir de casa dela.


O meu pai deve ter percebido que a porta da frente era demasiado

arriscada.

Ele sabia onde é que Bee Larkham guardava a chave da porta das

traseiras, porque eu lhe tinha dito onde ficava o lugar secreto depois de

ele me ter encontrado no meu esconderijo com a faca.


25

27 DE JANEIRO, 16H30

Verde-Azulado e Verde-Abeto em tela

— Já são aquelas horas? — Bee Larkham abriu a porta de casa cinco

dias depois e expirou bolhas azul-celeste brilhantes. Estava descalça e

tinha o cabelo solto sobre os ombros, como eu gostava. Contei sete

caixas de cartão na entrada, outra vez.

— São exatamente dezasseis e trinta — disse eu, olhando para o

relógio. — Ainda não tirou as caixas daqui. São as mesmas que cá

estavam antes.

— O quê? Ah, sim, sou lenta. A minha mãe tinha enchido aquelas

antes de ir para o lar. Já deitei umas quantas no contentor. Há tanta bosta

velha para escolher, que estou sempre a adiar. Não consigo tratar disso

sem ficar irritada. Demasiadas memórias tristes, sabes?

Tentei levantar os cantos dos lábios para formar um sorriso,

enquanto entrava. Ela tinha de parar de usar palavras com cores

nojentas.

— Podemos ir para o seu quarto, por favor?

Ela riu-se, manchas circulares azul-celeste e reluzentes, abrindo mais

a porta.
— Não és pessoa para estar com rodeios, não é verdade? Como é que

posso recusar esse tipo de proposta vinda de um cavalheiro adorável

como tu?

Descalcei os sapatos e coloquei-os muito direitinhos ao pé das caixas

fechadas. Esperei que ela subisse primeiro. Era o que o meu pai tinha

dito que eu devia fazer.

Não te entusiasmes e não subas a escada a correr antes de ela dizer

que podes entrar no quarto. Faz exatamente o que ela te disser, caso

contrário ela pode não voltar a convidar-te.

— Deixa-me mostrar-te onde te podes instalar — disse ela. — Tenho

de ser rápida porque as minhas aulas de música estão prestes a começar.

Precisas de ficar em silêncio, está bem?

Movi a cabeça para cima e para baixo, para mostrar que

compreendia.

Bee Larkham subiu os degraus vermelhos e gastos e desapareceu a

seguir ao patamar, no segundo quarto à esquerda. Eu segui-a, sustendo a

respiração. O tapete estava manchado e cheirava mal, provavelmente

fervilhava de germes. Talvez ácaros.

— É o antigo quarto da minha mãe, mas estou a usá-lo agora —

disse.

O quarto estava tão vazio quanto a sala de estar, e também era frio. A

música tinha expulsado a maior parte da mobília para a carrinha ou para

o contentor lá fora. As janelas estavam abertas e as paredes eram de um

branco boneco de neve derretido, com bocadinhos cinzentos e rugosos,

exceto em duas pequenas áreas, onde conseguia ver claramente as

formas de duas cruzes gravadas a branco imaculado.

— Os crucifixos de porcelana da minha mãe foram os primeiros a ir

para o contentor — disse ela, seguindo o meu olhar. — Por mais que

esfregue o papel de parede, não consigo livrar-me das marcas.


— O diabo andava à procura dos crucifixos — disse eu, lembrando-

me da coisa que tinha visto no contentor.

— Quem?

Abanei a cabeça. Mencionar o Diabo tinha sido um erro; podia

afugentá-la. Eu não queria que ela vendesse a casa e se fosse embora.

Ela tinha de ficar com os periquitos e comigo.

— Ninguém. Nada.

— Desculpa a confusão. — Pegou num saco de lixo preto a

transbordar de roupa em tons de cinzento e castanho. — Amanhã,

preciso de levar a roupa velha da minha mãe para uma loja de caridade.

Provavelmente, também vou tentar arranjar um roupeiro novo. O antigo,

que era dela, está a cair aos bocados e as portas não fecham como deve

ser. Não quero nada caro. Apenas alguma coisa para encher o quarto

para quando mostrar a casa.

Presentemente, o quarto tinha uma cómoda junto à janela, quatro

sacos de lixo, uma pá e uma vassoura, uma lata de produto para dar

lustro aos móveis e três caixas de cartão. As cabeças de senhoras de

porcelana espreitavam da caixa maior.

— Não tem cama — disse eu, apontando para o colchão insuflável

que estava no chão. Gostava do seu saco-cama. Azul meia-noite.

— O colchão estava estragado. Livrei-me dele. O meu também. Não

conseguia enfrentar a ideia de dormir no meu antigo quarto. Desocupei-

o e limpei-o com cristais. Está tudo no contentor, exceto algumas das

minhas antigas revistas, que não me lembrava de ter guardado.

— Ia deixá-la muito triste dormir no seu antigo quarto — disse eu, a

tremer de frio. — Ia lembrar-lhe do tempo em que era criança, como eu.

Eu guardo revistas sobre aves porque me fazem feliz. Pensar na sua

falecida mãe e nos seus crucifixos ia deixá-la triste.

Bee Larkham aspirou laivos azul-esbranquiçados.


— Não. Aí é que tu te enganas, Jasper. Aquela bruxa velha deixa-me

furiosa como um raio, mesmo agora. Teria atirado as suas coisas para

uma fogueira gigante no quintal, se não tivesse pensado que isso ia fazer

os vizinhos aparecer novamente. Ainda sou capaz de o fazer. Era capaz

de me fazer sentir melhor. Mostrar que já não tenho medo, sabes? Que

sou forte.

Mexi nos meus binóculos. De relações cortadas. Tinha sido essa a

expressão que o meu pai usara para descrever a relação de Bee Larkham

com a mãe. Na altura, não tinha compreendido o que ele queria dizer.

Agora, sim.

Significava uma pessoa odiar tanto alguém que estava morto e

enterrado, que queria queimar os seus pertences e destruir as suas

coisas. Queria obliterá-los até restar apenas um monte de cinzas.

A senhora Larkham devia ser uma pessoa horrível para Bee dizer

coisas tão más sobre ela. Aposto que a voz da mãe era de uma cor

castanho-alaranjada de cromo perfeitamente hedionda. Não podia ser

azul-celeste, como a de Bee, nem azul-cobalto, como a da minha mãe.

Provavelmente, a bruxa velha também teria detestado os periquitos, da

mesma forma que David Gilbert.

Fui até à janela porque não queria que ela visse as rugas entre os

meus olhos. Devia ter razões válidas para odiar a mãe. Pestanejei para

afastar a cor azul-cobalto que me veio à cabeça. Queria protegê-la da cor

de abóbora de «relações cortadas».

— Podes fechar a janela, se quiseres. Está um gelo, aqui. Estava a

tentar arejar o quarto.

Não me importava com o frio porque tinha o anoraque vestido. O

bengaleiro lá em baixo não tinha um cabide livre, pelo menos um que

não parecesse enferrujado, e eu não podia deixá-lo no tapete cheio de

germes.
— Os periquitos! Uma vista perfeita! — Debrucei-me sobre o

peitoril e as rugas desapareceram do meu rosto como manteiga numa

frigideira. A senhora Larkham, a bruxa velha que morreu num lar, foi

para longe do meu pensamento. Havia três periquitos pousados num

ramo tentadoramente próximo da janela. Se esticasse o braço e eles não

fugissem, quase seria capaz de lhes tocar. Para que vejam como estavam

próximos.

— Eu sei. Adoro-os. — Os periquitos pairaram mais alto sobre a

árvore quando ela se juntou a mim à janela. — São a primeira coisa que

vejo de manhã. Fazem-me sentir feliz. Ajudam-me a esquecer as coisas

más, sabes? Desaparecem.

Como manteiga numa frigideira.

— Eu também me sinto assim — disse. — Quando pinto os

periquitos. Quando a pinto a si.

— Uau! Andas a pintar-me agora, é? Vais ter de me mostrar.

— E mostro. Da próxima vez que cá vier ver os periquitos, trago os

meus quadros para lhe mostrar.

— Ah, vai haver uma próxima vez? — perguntou Bee. — Não me

lembro de te ter convidado, Jasper.

Mordi o lábio com força. Até sentir o gosto do cobre. Tê-la-ia

interpretado mal, tal como acontecera com o meu pai em relação a ir ao

quarto dela? Ela não me tinha convidado para lhe mostrar os quadros?

Ou será que, na minha excitação, a tinha percebido mal?

— Ignora-me. Estou a ser uma cabra. Desculpa. É claro que podes

voltar. Tiveste grande sucesso com os folhetos. Tive imensos contactos

dos pais dos teus amigos.

Não faço ideia de quem levou os folhetos. Tinha-os deixado

espalhados pela escola, para não ter de os distribuir pessoalmente.


Preparava-me para lhe dizer a verdade — preferia encontrar outra forma

de lhe ser útil — quando tocaram à porta.

Linhas azul-prateadas.

— Olha, é ele.

Estremeci.

— David Gilbert? Com a caçadeira?

Bee resfolegou pedrinhas azul-escuras.

— É bom que não seja ele outra vez. Preciso de um pau para pôr

esse homem a andar daqui para fora. E ao amigo, também.

— Eu não tenho paus. — Perscrutando o quarto à procura de uma

arma, tirei um bibelô da caixa de cartão.

— Outra piada de mau gosto, desculpa. É o meu primeiro aluno de

música. Não faças barulho aqui em cima, está bem? Vão chegar mais

miúdos depois dele. Conto demorar cerca de uma hora.

Fiquei de atalaia ao cimo do patamar, a segurar a figura fria de

porcelana na mão esquerda, para o caso de ela estar enganada e de David

Gilbert ter aparecido.

— Olá! Bem-vindo! — A voz de Bee ecoou vinda lá de baixo. —

Entra! Entra! És muito bem-vindo. Vamos divertir-nos.

Não vi o aluno de música que murmurou cores branco-acinzentadas.

Não estava interessado nisso. Voltei para o quarto e contava pôr o bibelô

no sítio onde o tinha encontrado, até o observar mais atentamente.

A senhora de porcelana segurava as suas saias de um azul-glacial

para que eu as admirasse. Ela não queria voltar para a caixa. Ansiava por

ser admirada. As amigas puseram as cabeças e ombros de fora do papel

de jornal amarfanhado, tentando libertar-se e juntar-se a ela.

Pus a Bailarina de Porcelana em cima da cómoda e empurrei a caixa

mais para junto da janela, de modo que as amigas também pudessem

observar os periquitos.
Perdi a noção do tempo no quarto de Bee Larkham, sugado por uma

toca de coelho para um mundo novo e colorido, e não queria voltar à

minha vida antiga, onde as cores eram menos vibrantes. Menos reais.

Escrevinhei febrilmente notas sobre os periquitos, o seu número,

movimentações e trinados. Não queria esquecer-me de nada. Tinha de

pintar mais tarde cada um dos sons coloridos que recordava.

O seu coro era acompanhado pelo azul-safira do piano; pelas formas

brancas e prateadas da guitarra com núcleos cianos; e pelas formas

pontiagudas ametista-reluzentes e douradas da guitarra elétrica.

Chegaram mais periquitos para o recital.

Quando o meu pai enviou uma mensagem de bolhas vermelhas e

amarelas para o meu telefone, apercebi-me de que os instrumentos

musicais lá em baixo tinham parado. Estava escuro lá fora, mas os

periquitos continuavam a lançar cores dos ramos.

Ainda estás em casa da Bee? Está na hora do lanche.

Não podia ser. Olhei para o relógio: 19h00, já passava muito da hora

do lanche e já era muito mais tarde do que fora convidado a ficar. As

aulas de música tinham acabado há hora e meia, segundo os cálculos de

Bee Larkham, e ela devia estar a perguntar-se o que me tinha

acontecido.

De repente, tubos prateados e verdes brilhantes iluminaram-se e

transformaram-se em berlindes olho de gato: música marciana, e não

instrumentos musicais ao vivo.

Dei uma última olhadela. Estava suficientemente perto da árvore

para ver dois periquitos desaparecerem num buraco. Esperei alguns

segundos para ver se saíam outra vez.

O meu telefone assinalou mais bolhas vermelhas e amarelas.


Vem já para casa, Jasper.

Articulei um adeus silencioso aos periquitos junto à janela e desci as

escadas a correr, excitado com o facto de Bee Larkham querer partilhar

a sua música marciana, enquanto eu descrevia o que tinha visto durante

as últimas duas horas e meia.

O hall estava escorregadio e eu deslizei de meias para dentro da sala

de estar. Uma mulher estava esparramada num pufe, com o cabelo louro

e comprido a tocar nas tábuas do soalho. Ao lado dela, encontrava-se um

rapaz sentado numa almofada e a segurar uma guitarra.

— Não há dúvida de que sabes como fazer uma entrada triunfal,

Jasper! — A voz a mulher era azul-celeste. Bee Larkham.

O rapaz que estava no chão riu pontinhos verde-abeto.

— Que idiota!

Outro rapaz encontrava-se encostado à parede, como se estivesse

com medo de que esta caísse. Inicialmente, não tinha reparado nele.

Pensava que Bee estava com um rapaz e não com dois. Por cima da

cabeça deste rapaz estava a marca que eu tinha visto recortada na parede

do quarto, uma cruz.

Ela estendeu a mão para o rapaz que se encontrava junto à parede,

embora eu estivesse mais perto.

— Ajuda-me a levantar, está bem?

O rapaz arrastou-se até lá e esticou o braço. Tentou puxá-la para

cima, mas ela desequilibrou-se e voltaram a cair os dois em cima do

pufe.

— Ai! Estás a esmagar-me!

— Desculpe! — Belo verde-azulado. — Não está a ajudar!

Bee Larkham não parecia estar a sofrer. Ria-se, juntamente com o

rapaz — uma fusão de azul-celeste com verde-azulado. Não me juntei


ao riso; a combinação de cor tinha-me deixado sem fôlego.

— Já conhecias o Lucas, Jasper? — perguntou ela, enquanto ele

tentava levantar-se uma vez mais. — Veio buscar o irmão, que por acaso

é um músico nato extraordinariamente dotado.

O rapaz mais pequeno sentado no chão resmungou uma cor verde-

abeto mais escura, o que me deu ideia de que não tinha ficado

particularmente contente ao ouvir isto.

— Distraímo-nos a ouvir a minha música — continuou. — Sentimo-

nos absorvidos por ela, sabes? Faz-nos querer viver o momento e

esquecer tudo o resto.

Eu sabia. Era isso que sentia quando ouvia música marciana.

Quando observava os periquitos. Quando passava tempo com Bee

Larkham.

— Vi vinte e um periquitos na sua árvore — disse. — Tudo porque

pôs bandejas com maçã, assim como cinco fiadas de amendoins e seis

comedouros, obrigado.

— Não eram vinte ou vinte e dois? — perguntou ela.

— Vinte e um, decididamente. Contei-os um por um. E a seguir

voltei a contá-los, para ter a certeza.

Não devo ter confirmado a notícia em voz suficientemente alta

porque ela não respondeu. O rapaz na almofada riu círculos cinzento-

esverdeados.

— Acho que são capazes de ter vindo para ficar — acrescentei. —

Gostam de estar aqui. Na sua árvore. Na nossa rua. Consigo.

Se os periquitos quisessem ficar, será que ela também ficava?

Bee Larkham acenou com a cabeça em direção aos outros dois

rapazes na sala.

— Andam os dois na mesma escola que tu, Jasper. Sabias? Estes são

Lee e Lucas Drury.


— Vinte e um periquitos — repeti. — Que vieram para ficar.

Não tinha a certeza de que os periquitos tivessem vindo para ficar,

mas tinha esperança, a tal palavra cor de ketchup. Foi por isso que não

respondi à pergunta que ela me fez: era demasiado banal comparada

com a notícia importantíssima que eu lhe dera.

Os rapazes pareciam-me iguais. Usavam o uniforme da minha escola

e deviam ser alunos, mas não reconheci os seus nomes. Duvidava que

gostassem tanto de periquitos, ou mesmo de música marciana, como eu.

Não podiam apreciar as cores da mesma forma que eu, em toda a sua

glória tecnicolor.

— O meu pai quer que eu vá para casa, para lanchar — disse. —

Mas não tenho de ir. Posso falar-lhe sobre os periquitos. Tomei imensas

notas. — Levantei o meu caderno de apontamentos e os meus binóculos.

O rapaz sentado no chão voltou a rir verde-abeto.

Eu queria que ela insistisse para eu ficar e ouvir a música com eles,

enquanto eu explicava cada som colorido e cada movimento dos

periquitos. Em vez disso, riu um azul-celeste muito claro e brincou com

o cabelo, enrolando-o e desenrolando-o à volta do indicador.

— Claro, Jasper. Deves ir para casa.

— Mas eu…

— Estavas tão calado lá em cima que já me tinha esquecido de ti —

continuou ela a falar por cima da cor da minha voz. — Importas-te que

não te leve à porta? Estou a morrer por um copo de vinho depois de

tantas horas de ensino. É um trabalho que dá sede. Alguém quer uma

cerveja?

Bee Larkham não voltou a olhar para mim. Ela observava um dos

rapazes, o mais alto. Talvez tivesse medo de que ele fugisse com uma

guitarra.
Voltei a mover a cabeça, segurando os binóculos com força ao sair.

A minha nuca ardeu desconfortavelmente com o tilintar de riso azul-

esverdeado, enquanto eu apertava os atacadores no hall.

Tinha feito alguma coisa que ofendera Bee Larkham, mas não sabia

o quê. Pressentia uma mudança. A cor da minha voz tinha mudado

subtilmente e ela não gostava tanto deste tom. Pelo menos, não tanto

como do verde-azulado do outro rapaz. A minha voz não era

suficientemente bonita para ela.

Como é que eu podia rivalizar com verde-azulado? Tinha de

trabalhar mais para fazer com que ela gostasse de azul-frio.

Ao fechar a porta da rua atrás de mim, percebi que me tinha

esquecido de lhe agradecer por me deixar observar os periquitos.

Tinha sido indelicado. Imperdoavelmente indelicado.

O meu pai obrigara-me a prometer que lhe agradecia, e eu até tinha

ensaiado mentalmente o discurso, mas as visitas inesperadas — os

rapazes que podiam ficar até tarde a ouvir música marciana e a beber

cerveja — tinham-me desconcentrado.

Jurei compensar Bee Larkham. Ia aperfeiçoar um pedido de

desculpas ainda melhor do que o que tinha ensaiado. Ia pintar a voz dela

vezes sem conta para poder revelar-lhe toda a sua beleza; a cor que só eu

podia ver. Também ia pintar as melhores imagens que pudesse dos sons

das últimas horas: o piano, as guitarras acústica e elétrica e os

periquitos.

Ia surpreender Bee Larkham apresentando-lhe todas as minhas

pinturas e telas. Ela ia aceitar o meu pedido de desculpas e voltar a

convidar-me para observar os periquitos. Iríamos observar os pássaros

juntos, lado a lado, porque os outros rapazes — sobretudo o que tinha a

voz colorida atraente — não estariam lá.


Ficaríamos sozinhos no seu quarto, com as senhoras de porcelana, e

desta vez o meu pai não iria interromper-nos.


26

QUINTA-FEIRA (VERDE-MAÇÃ)

Ainda nessa tarde

Consigo afastar a cadeira e saltar para dentro da cama segundos

antes de o meu pai rodar o puxador da porta. As minhas pinturas — as

originais da primeira visita de Lucas Drury a casa de Bee Larkham e as

que voltei a pintar dessa noite (o som dos periquitos no carvalho com os

instrumentos musicais como pano de fundo) — estão espalhadas pelo

tapete. Não tive oportunidade de compará-las à procura de diferenças e

de colocá-las pela ordem correta, antes de as pôr em fila.

São 13h43.

O meu pai chegou dois minutos mais cedo.

Não fecha a porta atrás dele, como eu esperava. Em vez disso, entra

no quarto. Ouço um delicado roçagar verde-lima junto à janela. Ele

pegou num quadro.

O que está ele a fazer?

Isto testa muito mais o meu poder de concentração do que se ele me

tivesse olhado fixamente, à procura de sinais de vida.

Apetece-me atirar o edredão para trás e gritar: Tire as mãos do meu

quadro. A Bee Larkham não é sua. Nunca foi! Ela não é sua!
Mas, em vez disso, fico perfeitamente imóvel. As minhas pestanas

nem sequer tremem, enquanto ele se demora a observar uma pintura em

particular. Não tenho a certeza, mas desconfio que é o seu primeiro

encontro com Bee: Círculos Verde-Sapo Sujos em papel.

O que é que ele vê quando olha para aquilo, agora? Trar-lhe-á

memórias felizes ou tristes? Tive dificuldade em decifrar o quadro. Ele

deve vê-lo com clareza, a linguagem secreta que ambos usaram e que eu

não consegui descodificar estando ali ao pé deles, na soleira da porta.

Ouço um castanho-abafado com manchas brancas.

Quero sentar-me na cama e ver o que ele está a fazer, mas cravo as

unhas na pele para não o fazer. Ouço outro som abafado de uma cor

mais carregada. Espreito com meio olho aberto. Há lágrimas a correr-lhe

pela face.

Está a chorar por Bee Larkham. Lamenta que ela esteja morta e não

tenha uma sepultura condigna.

Lamenta o que aconteceu na sexta-feira à noite.

Eu também!

As palavras são um grito azul-esverdeado na minha cabeça. Não sai

nada da minha boca.

Há outro roçagar verde-folha quando a pintura volta ao tapete. A

porta fecha-se. O meu pai foi-se embora.

Eu fico em alerta, caso ele esteja no patamar, à espera para me

apanhar em flagrante.

Fico na cama durante quatro minutos e quinze segundos até ver

círculos de madeira castanho-claros. A porta da rua abre-se e volta a

fechar-se.

A sério? Vai deixar-me sozinho?

Salto da cama e espreito por trás das cortinas. O meu pai está vestido

como se fosse correr: t-shirt branca, calças de treino azul-escuras e boné


de basebol. Só se vira quando chega ao portão. Agacho-me quando ele

olha para cima.

Conto até sessenta antes de voltar a espreitar. Desta vez, está ao

fundo da rua. Agora desapareceu.

Caiu no meu embuste e pensa que estou a dormir profundamente.

Não faz ideia de como está longe da verdade. Não tenho tempo para

dormir porque preciso de corrigir todos os erros terríveis que ambos

cometemos.

Tinha planeado continuar a pintar, mas isto muda tudo. Nunca

esperei que ele saísse de casa.

Antes que ele mude de ideias e volte, investigo o seu quarto.

Está uma confusão, como de costume; não se deu ao trabalho de

endireitar o edredão que não é lavado há três semanas e meia. Há uma

chávena meia de chá preto na mesa de cabeceira e um prato lascado com

uma côdea de uma torrada velha. Eu limpava aquilo, se isso não

alertasse o meu pai para o facto de eu ter andado a bisbilhotar.

Estou à procura da roupa que ele usou na sexta-feira à noite.

Também deve ter ficado com sangue.

Terá lavado a roupa? Tê-la-á destruído? Ou tê-la-á deitado fora,

juntamente com o corpo de Bee Larkham?

Sustenho a respiração e limito-me a remexer no cesto da roupa suja

durante vinte segundos — é radioativo.

A seguir, procuro no fundo do roupeiro, por trás da sua velha

mochila militar, aquela que ele gosta de levar para Richmond Park.

Ajuda-o a fingir que ainda está nos Royal Marines e que finalmente se

alistou no SAS, em vez de ter sido forçado a desistir do curso de seleção

do regimento porque a minha mãe estava doente.

As suas botas de caminhada estão cheias de lama. Não me lembro de

ele as ter usado nos nossos passeios por Richmond Park para observar as
aves. Normalmente, vai de ténis. Quando foi a última vez que ele usou

estas botas? Não voltámos a acampar desde o último desastre. Pode tê-

las usado na sexta-feira à noite. Tinha chovido e elas teriam ficado

enlameadas; ele tinha deixado pegadas número 46 na viela por trás da

casa de Bee Larkham.

Quero ficar ali, mas há outras coisas a fazer, enquanto ele está fora.

Desço a escada a correr e encontro o bilhete que ele me deixou em cima

da mesa da cozinha. Está rabiscado a caneta vermelha. Não estava à

espera de que eu o chegasse a ver.

Se vieres cá abaixo, fui dar uma corridinha para desanuviar

a cabeça. Volto em breve. Deixei uma sanduíche de queijo no

frigorífico. Toma o analgésico que está no pires para a barriga.

Não abras a porta. Não atendas o telefone. Não telefones

para a polícia.

Ponho o comprimido na boca e engulo-o com um gole de água pela

caneca que diz Melhor Filho.

COME-ME.

BEBE-ME.

Voltei a Alice no País das Maravilhas, como no meu sonho horrível,

e estou novamente sozinho.

Será que o meu pai já tinha feito isto antes?

Esgueirar-se-á com frequência de casa, quando pensa que estou a

dormir ou quando estou no meu esconderijo?

Sempre presumira que ele estava no escritório, a testar aplicações no

seu portátil, ou a ver televisão lá em baixo, enquanto eu me tapava com

cobertores e segurava o casaco de malha da minha mãe, esfregando os

botões.
E se ele não fica comigo o tempo todo?

E se ele aproveita a oportunidade para sair de casa, quando pensa

que nunca irei descobrir?

Isto volta a perturbar uma vez mais a minha fita do tempo. O meu

pai podia ter transportado o corpo de Bee Larkham durante o fim de

semana e não na sexta-feira à noite, quando sabia que eu estava no meu

esconderijo. Podia ter levado mais tempo a limpar tudo e encontrado o

local de enterro perfeito muito mais longe do que eu previra, em algum

sítio com lama onde precisasse de usar as botas de caminhada e o

camuflado.

Podia ter conduzido durante horas, com o corpo de Bee Larkham na

mala do carro, e ter chegado a casa antes de eu sair do meu esconderijo.

O que mais terá feito o meu pai quando pensa que não estou por

perto?

Onde é que ele escondeu a arma do crime?

Eu vou livrar-me da faca e da tua roupa, disse ele. Nunca mais terás

de voltar a vê-las.

Bato numa cadeira ao atravessar a cozinha.

Coágulos toscos.

Endireito a cadeira virada e volto a pô-la no seu lugar exato. Não

posso deixar nenhuma pista, nem móveis fora do lugar ou pegadas

enlameadas. Não posso deixar vestígios de que estou a tentar seguir os

movimentos do meu pai, que estou à procura do seu esconderijo de

eleição.

Saio pela porta das traseiras e paro, de costas contra a parede. Os

batimentos do meu coração são cor de ameixa vermelha. Vejo o verde-

azulado de um tordo a desafiar-me, a incitar-me a continuar.

Corro pelo relvado; a relva está alta e mal-amada, com manchas de

amarelo-sujo. Pelo canto do olho, vejo a cruz minúscula que assinala a


sepultura do filhote de periquito. Não suporto olhar diretamente para lá.

Faço chiar a porta do barracão, verde-garrafa escuro, e fecho-a atrás

de mim. Dirijo-me ao corta-relva avariado e desloco-o para o lado,

fazendo levantar folhas velhas e empoeiradas e uma grande aranha

ressequida.

O seu carregamento de cigarros está intacto, mas não vejo a faca, as

minhas calças de ganga, camisola ou anoraque.

Dou um pontapé a um balde e pá velhos e volto a enrolar a

mangueira. Depois de procurar durante três minutos e vinte e três

segundos, desisto.

Nada.

O meu pai não levou apenas o corpo; ele fez desaparecer tudo o que

me liga ao local do crime.

Deve ter percebido que eu sabia deste seu esconderijo e arranjou um

mais seguro. Talvez o tenha descoberto durante uma das suas corridas

secretas, quando me julgava adormecido ou quando eu estava enroscado

no meu esconderijo a chorar pela minha mãe.

O que mais terá o meu pai encoberto? Que história estará ele a tentar

contar em meu nome?

Olho para o portão das traseiras. Agora não posso parar. Ou posso?

Será que ele se lembrou de fechar a porta das traseiras da casa de

Bee Larkham e de trancá-la? Terá devolvido a chave ao seu esconderijo?

Antes de ter tempo de me dissuadir daquilo, subo o relvado a correr.

O portão abre-se, verde-petróleo. Certifico-me de que a rua está deserta

antes de ir até à viela. Desapareço em trinta segundos. Os espiões de

Laranja de Cromo Oxidado não terão dado por mim se tiverem desviado

o olhar no momento crucial. Não ouço as batatas fritas amarelas do cão

de David Gilbert. Estou safo.


Avanço por entre tralha; há ervas daninhas a sair de um velho

lavatório e um regador partido. Tinha tropeçado neles quando fugi dali

na sexta-feira à noite. Também não deve ter sido fácil para o meu pai, a

carregar o corpo de Bee Larkham às escuras.

Esquadrinho o terreno, mas não vislumbro manchas de sangue nem

fragmentos de roupa rasgada, pistas que eu ou o meu pai tivéssemos

deixado. Talvez ele tivesse voltado aqui à luz do dia para verificar que

estávamos a salvo.

Hesito depois de dobrar a esquina. Cheguei ao portão das traseiras

de Bee Larkham. Será que quero ir mais além? Será que quero

reconstituir os meus passos de sexta-feira à noite?

Tenho de o fazer. Já cheguei até aqui. Agora não posso voltar para

trás. Não até saber mais. Quero lembrar-me. Preciso de preencher as

lacunas nos meus cadernos de apontamentos e pinturas.

As lacunas na minha memória.

O meu coração está a bater vermelho-elétrico brilhante quando

estendo a mão para empurrar o portão. Está estragado e não abre nem

fecha como deve ser, tal como alguns dos painéis da vedação.

Bee planeava arranjar o quintal, mas nunca chegou a fazê-lo. Está tão

cheio de ervas daninhas como o nosso. Mantenho os olhos baixos para

não ter de olhar para as janelas acusadoras. Na minha visão periférica,

consigo ver a porta das traseiras fechada. Não me lembro de a abrir ou

fechar na sexta-feira à noite.

Só me lembro de fugir.

Encontro o pequeno flamingo ornamental em pedra e inclino-o para

trás. Mudo-o de sítio até ter a certeza absoluta.

Não está ali nada.

A chave extra de Bee Larkham também desapareceu. O meu pai

esqueceu-se de a devolver ao seu lugar depois da operação de limpeza.


Se a polícia revistar a nossa casa e encontrar a chave dela num frasco ou

num pote, esse erro pode pregar connosco os dois na prisão.

Estou prestes a bater em retirada quando vejo dardos verde-petróleo

e pretos.

Alguém está a mexer no trinco do portão das traseiras.

Provavelmente, é a polícia.

Também vêm à procura de provas do que aconteceu a Bee Larkham.

Seguiram finalmente o rasto das migalhas.

Não posso ser apanhado aqui. Como é que saio? Não tenho como

fugir. Os meus braços não são suficientemente fortes para poder içar-me

sobre a vedação. De qualquer forma, é demasiado alta. Não quero passar

para o quintal do lado através do buraco na vedação porque posso ficar

com farpas espetadas.

Não tenho escolha.

Atiro-me para o meio dos caixotes da reciclagem, debaixo do

alpendre. Há moscas a zumbir à volta dos sacos, que deviam ter sido

postos na rua para serem recolhidos na segunda-feira de manhã.

Bee não seguiu a rotina habitual do início da semana.

Outra pista que Laranja de Cromo Oxidado e os outros agentes

deviam ter identificado, juntamente com os comedouros vazios.

Ténis brancos produzem um som preto-azulado ao passar por mim e

param na porta das traseiras. As pernas vestem calças de ganga. Olho

para cima. Não é um agente da polícia. Um homem com um boné de

basebol azul-escuro está junto à porta, com as mãos no vidro. Está a

olhar para dentro de casa, à procura de Bee Larkham. Se olhar para

baixo, vai ver-me. Não me posso mexer.

Sustenho a respiração quando ele se inclina e agarra num tijolo com

a mão esquerda.
Ele viu-me! Vai agredir-me até me matar pelo meu crime horrível.

Abro a boca, prestes a gritar, quando vejo cubos de gelo esverdeados

com arestas afiadas. O homem larga o tijolo, que faz um baque ardósia

no chão.

Vejo o seu braço desaparecer através do vidro partido. A sua mão

roda o puxador pela parte de dentro.

— Merda!

A sua mão volta a aparecer e ele leva-a à boca. Suga a pele, ao

mesmo tempo que o sangue lhe escorre pelo braço e salpica o chão. Uma

gota cai no seu ténis branco.

Vou vomitar.

O sangue salpicou o chão da cozinha de Bee Larkham quando

lutámos pela posse da faca.

Ping, ping, ping.

O braço do Homem de Boné Azul-Escuro entra novamente através

do vidro partido e, desta vez, ele recua, abrindo a porta.

Invadiu a casa de Bee Larkham.

Devia impedi-lo. Não consigo respirar. Fecho os olhos. Se o meu pai

não tiver levado o corpo, se não tiver conseguido passar pela viela, o

ladrão vai encontrá-lo. Vai dar com Bee Larkham deitada de costas na

cozinha, com salpicos de sangue no seu vestido não azul-cobalto.

Foi onde a deixei depois de ela ter caído para trás, tentando escapar

aos golpes da minha faca. Na verdade, esse facto também está errado. A

faca não era minha. Usei a faca de Bee Larkham, a faca que ela usara

para cortar a empada que tinha feito para o meu lanche.

— Ei, tu! O que estás a fazer aqui? — É uma voz vermelho-baça

com riscos granulosos. David Gilbert. Um cão ladra batatas fritas

amarelas.
Tenho tentado encobrir o que fiz porque eram essas as ordens do

meu pai. Já não quero cumprir as suas ordens. Quero que tudo isto

acabe.

— És amigo de Beatrice?

Estou prestes a sair de onde estou e a confessar tudo ao assassino de

pássaros quando outra voz masculina fala. É castanho-escura e baça.

— Desanda, pá, e fica fora disto. — Esta cor vem dali, ao meu lado,

onde o Homem de Boné Azul-Escuro se encontra.

Há dois homens no quintal. Um, o que usa calças de bombazina

vermelho-cereja e boina de pala castanha, está junto ao portão. Um cão

puxa pela trela que ele segura.

— Vai ter de perceber que isto me diz respeito, uma vez que dirijo a

Vigilância de Bairro local — diz David Gilbert. — Partiu esse vidro?

Desconheço a identidade do homem de boné de basebol azul-escuro.

Ele deu-me algumas pistas: o boné de basebol e a cor da sua voz, que

me são ambos vagamente familiares.

Ele já aqui esteve. Eu registei um Homem de Boné de Basebol Azul-

Escuro no meu caderno de apontamentos. Ele estava a gritar nuvens de

castanho-sujo recortadas a antracite junto à porta de entrada de Bee

Larkham quando voltámos da esquadra na terça-feira. Viu-me a

observá-lo da janela e dirigiu-se à nossa casa, mas não chegou a bater à

porta.

O Homem do Boné de Basebol Azul-Escuro afasta-se da porta.

Afasta-se de mim.

— Gostas de vigiar o que se passa por aqui, pá?

David Gilbert recua um passo quando o Homem do Boné de Basebol

Azul-Escuro se aproxima.

— Diz-me uma coisa. Onde raio estava um maldito metediço como

tu quando os meus filhos foram abusados por esta pedófila?


— Eu… eu… não sei do que está a falar. — David Gilbert está

encostado ao portão. O seu cão ladra cores amarelas mais vivas e

espinhosas. — Não sei nada acerca das atividades de Beatrice.

— Atividades? É isso que lhe chamas? Põe-te a andar e deixa-me

fazer o que a polícia devia ter feito há dias.

Dirige-se novamente para a casa.

— Eu não o aconselho a fazer isso. Vou chamar a polícia. Não

interessa o que pensa que Beatrice possa ter feito, está a invadir

propriedade privada. — David Gilbert remexe no bolso e deixa cair o

telemóvel. Cai com estrépito de linhas castanhas curtas com sombras

roxas no chão. Quando se baixa para o apanhar, vê-me.

— Jasper? — Ele apanha o telemóvel e leva-o ao ouvido.

O Homem de Boné de Basebol Azul-Escuro olha para baixo.

— Jasper Wishart? És tu? Sai daí!

Tento chegar-me mais para trás entre os caixotes quando ele me

agarra pelo ombro. Consigo libertar-me, mas ele segura-me pela perna e

puxa. Eu agarro-me ao caixote. Está escorregadio e a minha mão

resvala.

— Estás outra vez a fazer o trabalho sujo daquela galdéria?

— Largue-me! — grito. — Tire as mãos de cima de mim! — Tento

atingi-lo com pontapés, mas ele é demasiado forte. Enquanto ele me

puxa para fora, grito nuvens irregulares cada vez maiores de azul-

esverdeado. Ouço o vermelho-baço da voz de David Gilbert em segundo

plano a dizer-lhe para parar.

— Não até me dizeres onde ela está! — O Homem do Boné de

Basebol Azul-Escuro puxa-me para junto do seu rosto irado. Está

vermelho e transpirado. Tem os olhos esbugalhados e o seu hálito cheira

à festa em casa de Bee Larkham.

Cerveja e mentiras.
De perto, o boné de basebol não parece azul-escuro. É de um azul-

marinho desbotado e tem as iniciais NYY bordadas à frente.

Já o tinha visto antes.

— Diz-me o que é que ela fez ao Lee. Tu sabes o que se passa. Ela

também o molestou? Ou foi só ao Lucas? Diz-me! Tenho de saber se ela

tocou no meu filho mais novo. Ele acabou de fazer doze anos, por amor

de Deus! O que mais lhe andava ela a dar de graça, além das aulas de

música?

Fecho os olhos para não lhe ver o rosto nem as cores. Este homem é

o pai de Lucas Drury. O boné de basebol serve de identificação; lembro-

me bem dele. Não consigo esquecê-lo.

Bee Larkham tinha-me avisado em relação a este homem:

Ele tem mau génio. Lucas está mais seguro comigo do que em casa.

Posso protegê-los, a ele e ao irmão, desde que Lee continue com as

aulas de música. Vou dar-lhas de graça. Dessa forma, ambos os rapazes

podem continuar a vir para aqui e a ficar longe do pai. Tu ajudas-me a

fazer isso, não ajudas, Jasper? Ajudas-me a manter aqueles pobres

rapazes a salvo de um pai abusivo?

Sinto-me como se estivesse a cair, mas não chego a bater no chão. As

mãos do Homem do Boné de Basebol Azul-Marinho Desbotado

levantam-me.

— Não posso fazer isto. Sou demasiado novo. Não posso fazer isto.

Não posso fazer isto.

— Para com isso! — Abana-me com força pelos ombros. — Eu sei

que isso é teatro, um teatro que tu e o Lucas congeminaram para

proteger aquela pedófila! Podes enganar a polícia, mas a mim não me

enganas. Sei que estão ambos a tentar defendê-la. Porquê? Porque é que

hás de ajudar uma pervertida daquelas? Será porque também estás a

receber algum extra?


— Largue-o! Está a assustá-lo! — Vermelho-baço granuloso.

Abro os olhos. Vejo mãos em frente do meu rosto. Estão a lutar com

o Homem do Boné de Basebol Azul-Marinho Desbotado. Deve ser

David Gilbert, porque continuam a estar apenas dois homens no quintal

de Bee Larkham. O cão ladra sem parar.

— E tem razão para estar assustado — diz o Homem do Boné de

Basebol Azul-Marinho Desbotado. — Posso obrigá-lo a dizer a verdade

à força. A escolha é dele. Vou arrancar-lha de uma maneira ou de outra,

porque a polícia não conseguiu nada dele. Sei isso de fonte segura.

— Eu liguei à polícia e eles vêm a caminho — diz David Gilbert. —

Agora largue o Jasper antes que piore as coisas para si. Tocar-lhe dessa

maneira é agressão, e já partiu uma janela.

O punho cerrado do Homem do Boné de Basebol Azul-Marinho

Desbotado dispara para cima. Vai bater-me para me obrigar a confessar,

mas é isso que tenho tentado fazer desde o primeiro relato na esquadra.

— Não, pá, agressão é isto! — diz ele.

Ouço um som surdo cor de púrpura quando o seu punho bate num

rosto. Não é no meu. O outro homem — David Gilbert — solta um grito

de farpas vermelhas e quebradiças e cai no chão. O cão gane batatas

fritas congeladas e pálidas, e esconde-se atrás dele.

— Eu disse-te para ficares de fora disto! Este assunto só diz respeito

a mim! Eles são meus filhos! — O Homem do Boné de Basebol Azul-

Marinho Desbotado vira-se novamente para mim.

— Ela tem algum portátil ou computador ali dentro? — Faz sinal

com a cabeça em direção à casa. — Ou um iPad? Alguma coisa que me

diga onde diabo está escondida?

Volta a abanar-me com força, mas os meus lábios congelaram e não

conseguem formar palavras. Não posso contar-lhe a verdade: não faço


ideia de onde ela está porque o meu pai nunca me disse o que fez com o

corpo na sexta-feira à noite ou, possivelmente, durante o fim de semana.

Quando me larga, caio no chão ao lado de David Gilbert, o assassino

de pássaros. Corre sangue da sua face e está ofegante. Segura-me no

braço, enquanto o outro homem se afasta rapidamente.

— A polícia deve estar a chegar a qualquer momento — diz. — Eles

encarregam-se dele. Até lá, fica junto de mim. Eu não deixo que ele te

faça mal, prometo.

Ao longe, ouço os ziguezagues amarelo-pastel e rosa-suave das

sirenes da polícia.

— Vem aí a polícia. — Levanta-se a cambalear. — Precisamos de

voltar para a rua. Estamos mais seguros lá.

Ele oscila, com a mão na face. Estende a outra mão, para me ajudar a

levantar. Demasiado tarde. O Homem do Boné de Basebol Azul-Escuro

sai disparado da casa, com um iPad enfiado debaixo do braço. Enquanto

corre, a sola do seu ténis projeta uma lasca prateada e afiada que cai no

chão. Esta ressalta e vem parar ao pé de mim.

Eu conheço-te.

— Ela fugiu, não foi? Limpou tudo antes de se ir embora. Consigo

sentir o cheiro a desinfetante na cozinha. Para onde é que ela foi?

Aposto que te disse, certo? Não ia deixar o pau-mandado sem saber. —

Levanta o iPad. — Ou enviou-te um e-mail? Qual é a palavra-passe?

Ouço soluços marmoreados de azul. Vêm da minha boca, enquanto

apanho o objeto que o pai de Lucas Drury trouxe por acaso de dentro de

casa agarrado aos pés.

— Afasta-te dele. Não podes fazer isto. — David Gilbert barra-lhe o

caminho, mas o Homem do Boné de Basebol Azul-Marinho Desbotado

empurra-o para o lado.


— Ah, posso, sim! A polícia não está a fazer nada para encontrar

Bee Larkham. Vou fazer isso por eles e vou dar-lhe uma sova quando a

encontrar.

A sirene da polícia produz ziguezagues de amarelos e rosas elétricos.

— Onde é que está aquela galdéria?

Ele vai encostar novamente o seu rosto ao meu. Vai agredir-me, da

mesma forma que esmurrou a face de David Gilbert e a transformou

numa papa vermelha e arroxeada. Vai deitar-me ao chão e nunca mais

me vou conseguir levantar. Aperto o objeto com força na mão até senti-

lo furar-me a pele.

— Não vai conseguir encontrá-la! — grito. — Nunca irá encontrá-

la!

— Seu sacana! — Precipita-se sobre mim. — Onde é que ela está?

Diz-me! Diz-me o que ela fez ao meu Lee!

Ouço as formas em torpedo negro de passos e o verde-petróleo do

portão a abrir-se. Dois polícias correm na nossa direção.

— Diz-me! — guincha o Homem do Boné de Basebol Azul-

Marinho Desbotado ao ser atirado ao chão. — Diz-me! Tenho o direito

de saber!

Tento bloquear a cor dos seus gritos. Não consigo. Estão a

trespassar-me as mãos, que estão coladas aos ouvidos, e a furar-me os

tímpanos.

— Será que nenhum de vocês percebe? — grito. — Porque é que

ninguém me ouve?

Abro o punho fechado e atiro bem alto o seu brinco favorito em

forma de andorinha.

— Bee Larkham está morta e o seu bebé também — berro. — Parem

de fingir que eles vão voltar! Não vão! Não podem!


27

QUINTA-FEIRA (VERDE-MAÇÃ)

Ainda nessa tarde

Quando é que o meu pai volta da sua corrida?

Aperto mais o cobertor à volta dos ombros, sentado no banco de trás

do carro da polícia parado em frente da nossa casa. Permitiram que eu

deixasse a porta aberta depois de eu lhes explicar que estava com medo

de ficar encurralado lá dentro.

Dois agentes algemaram o pai de Lucas Drury e levaram-no para um

carro há seis minutos e dois segundos, precisamente às 14h14. A

ambulância também partiu com David Gilbert lá dentro, deitado numa

maca, com um grande penso na face. A mulher-polícia disse que ele não

podia levar o cão para o hospital. Bateu a aldraba em forma de mocho da

porta do número 18 de Vincent Gardens e pediu ao homem que lá mora

temporariamente — Ollie Watkins — para olhar por Monty. Até hoje,

não sabia que o cão se chamava Monty. Continuo a não gostar da sua

cor.

A porta do número 18 de Vincent Gardens volta a abrir-se e um

homem com uma canadiana preta sai de lá, com um grande cão pela

trela. Fala com um agente antes de atravessar a rua. Não tem sapatos de
camurça pretos calçados nem meias às pintinhas vermelhas e pretas, mas

veio da casa da senhora Watkins e dirige-se a mim.

— Jasper, é o Ollie — diz ele, ao aproximar-se da porta do carro.

Amarelo creme de leite. — Ollie Watkins, do número dezoito. Estás

bem? Lamento imenso o que aconteceu. É horrível. Simplesmente

horrível.

Ele não precisava de confirmar a sua identidade. Eu tinha visto o

número da porta e reconhecido a cor da sua voz. Quem me dera que ele

não tivesse atravessado a rua para falar comigo.

— Detesto cães. As cores dos cães são pavorosas.

— A sério? Desculpa. Eu gosto de labradores pretos. Não o deixo

chegar perto de ti.

Ele puxa pela trela. O teimoso Batatas Fritas Amarelas não arreda

pé. Amarelo Creme de Leite vira-se e vê os polícias do outro lado da

rua.

— Mais drama na nossa rua — diz. — E, surpresa das surpresas,

Bee Larkham está outra vez envolvida. Ela sempre gostou de ser o

centro das atenções, desde miúda. Era o que a minha mãe e David

costumavam dizer sobre ela. Não me lembro muito dela, nessa altura.

Estava longe no colégio interno e depois em Cambridge. Os nossos

caminhos não se cruzaram muito.

Não quero saber.

Puxa novamente pela trela. Batatas Fritas Amarelas senta-se. Ponho

o cobertor por cima da cabeça. Quero abafar tudo à minha volta, como

faço no meu esconderijo.

— Pergunto-me de que andará a polícia à procura em casa de Bee —

diz a voz amarela creme de leite. — Estão lá dentro há imenso tempo e é

óbvio que ela não está em casa. Como disseste, ela não voltou para

reabastecer os comedouros dos pássaros.


Ele muda de assunto para me perguntar o que quero ser quando for

adulto. Agora está a contar que estudou economia numa universidade

católica antes de fazer carreira numa cidade e de ter sido transferido

para um banco na Suíça, onde a sua noiva mora. Deixei de o ouvir.

Dou um salto ao sentir uma mão no ombro através do cobertor. É

quente e pesada. Não gosto dela.

— Queres esperar pelo teu pai em casa da minha mãe? Lá estarás

mais confortável. — É a mesma cor da voz de Ollie Watkins. Ele ainda

não se foi embora.

Conto os dentes com a língua, um por um.

— Está bem — continua ele. — Creio que queres ficar sozinho. Bate

à minha porta se mudares de ideias. O teu pai já não deve demorar.

— Lembrou-se de comprar mais sementes para os periquitos? —

pergunto de baixo do cobertor. — Tem de continuar a dar de comer aos

pássaros ou eles vão-se embora.

— Sim, Jasper. Prometo que faço isso por ti. As promessas são muito

importantes para mim. Eu cumpro sempre as minhas.

— Eu tento cumprir as minhas, mas nem sempre consigo —

confesso. — Há outras pessoas assim. Estão sempre a quebrar promessas

e nunca pedem desculpa por isso.

— Isso é uma vergonha, Jasper. Vou encher os comedouros agora.

Podes observar para ver se estou a fazê-lo como deve ser, se quiseres.

Através da trama do cobertor, vejo-o voltar a atravessar a rua. Tenho

um breve vislumbre de batatas fritas amarelas quando ele abre a porta e

leva o cão lá para dentro. Ele não quer ir com Ollie.

Será que Monty está envergonhado por não ter feito nada para

proteger o seu dono, David Gilbert, quando o pai de Lucas Drury o

atacou? Ou será que o cão não percebe que foi cometido um crime

debaixo do seu nariz?


Arranco o cobertor de cima quando a porta da casa de Bee Larkham

se abre. Aparece uma mulher com cabelo louro.

Não pode ser. É impossível.

Expiro pequenas manchas azul-brumosas.

Ela está de uniforme. É uma agente e não Bee Larkham. Aperta a

mão a um polícia na rua. Ele também entra e voltam a fechar a porta

atrás deles.

É curioso. Embora saiba o que aconteceu a Bee Larkham, continuo à

espera de a ver sair porta fora para me falar de dar de comer aos

periquitos.

Uma minúscula parte de mim não acredita que ela está morta. Na

maior parte das manhãs, quando acordo, sinto a mesma coisa em relação

à minha mãe.

Hoje, lembro-me de Bee Larkham na soleira da porta. A conversar

comigo. A falar sobre a sua tonalidade preferida de verde-azulado.

Pintei essa cena há três meses.

Está na caixa número 12 (dourado-mate altivo), escondida na parte

de trás do meu roupeiro, onde o meu pai não irá procurar.


28

28 DE JANEIRO, 17H03

Azul-Celeste Salva Verde-Azulado em papel

— Não é preciso pedir desculpa por ontem — disse Bee Larkham

quando parou finalmente de tocar bolinhas azul-esverdeadas no piano e

abriu a porta.

Tinha lá ido mostrar-lhe catorze novas pinturas das cores dos

periquitos vistos da janela do quarto dela. Tinha ficado acordado até às

2h14 para as acabar, escolhendo as notas mais agudas e coloridas dos

seus trinados. Tinha querido captá-las exatamente como eram, porque

tinha a certeza de que isso ia fazer com que ela gostasse novamente do

meu azul-frio, depois da minha indelicadeza.

— Sei que estavas grato por observares os periquitos — continuou

ela. — De qualquer forma, era o mínimo que podia fazer, tendo em

conta a ajuda que me tens dado. És de longe a pessoa mais simpática

desta rua. Não que tenhas muita gente com quem competir.

A minha boca abriu-se numa grande ranhura. Pensei que ela era a

pessoa mais simpática que eu alguma vez conhecera, tirando a minha

mãe, é claro. Essa era incomparável.


— Porque é que não entras um minutinho? — disse ela. — Tinha

esperança de que me viesses visitar hoje. Queria pedir-te outro

favorzinho.

Oh-oh.

— Não tenho de distribuir mais folhetos, pois não?

— Não, não é isso. Acho que já distribuí os suficientes. Porque é que

não bebemos qualquer coisa na cozinha?

— Não bebo cerveja — disse, lembrando-me da noite anterior. —

Não tenho autorização. — Para ser sincero, não achava que fosse gostar

muito, mesmo que o meu pai me deixasse experimentar álcool.

Bee afastou o cabelo dos ombros para me mostrar as andorinhas de

prata que tinha nas orelhas.

— Estava mais a pensar numa lata de Coca-Cola ou algo assim?

Não quis confessar que também não tinha autorização para beber

refrigerantes de lata. Fiquei calado. Ela fez-me passar ao lado de uma

única caixa de cartão e levou-me até à cozinha, que tinha uma grande

mesa, cadeiras e um louceiro cheio de livros de cozinha. Examinei as

paredes, mas não vi a marca de nenhuma cruz. A cozinha era

completamente isenta de Jesus, provavelmente porque tinha sido expulso

pelo cheiro a gordura e a comida velha.

— A minha mãe era especialista em comprar livros de cozinha e em

não fazer nada do que vinha neles. Gostava de olhar para as imagens.

Suponho que não podia fazer grande coisa com o seu forno a gás

imundo. — Parou junto ao louceiro e passou o dedo por cima dos livros.

— Adoro cozinhar e não consegui livrar-me deles. Bem, pelo menos

para já. Preciso de dar uma vista de olhos a todos e ver quais é que vale

a pena guardar.

— A minha mãe também adorava cozinhar — disse. — Estava

sempre a fazer-me bolos. Os meus preferidos eram os scones com


passas.

— Sortudo. — A mão dela deslizou da prateleira. Foi até ao

frigorífico e tirou uma lata de Coca-Cola.

Eu sabia que não era sortudo porque nunca mais tinha comido bolos

ou scones caseiros. Apenas coisas compradas feitas. Os bolos da minha

mãe tinham sido há muito tempo. O meu pai não guardou as suas

formas; disse que não valia a pena. Ele não sabia fazer bolos — o meu

pai declarava que era coisa de mulheres. Eu disse-lhe que isso era

estúpido, mas mesmo assim ele deitou fora as formas.

Eu não queria pensar nos cozinhados da minha mãe nem na cor

amarelo-brilhante que ela costumava fazer quando fechava a porta do

forno.

— Esta é a senhora, Bee Larkham — disse, entregando-lhe a minha

estimada pintura, enquanto nos sentávamos à mesa.

Bee olhou para a folha de papel, bebericando da sua lata. A seguir,

olhou para mim. O seu rosto não deixava transparecer nada e eu não

consegui interpretá-lo.

— Não gosta? — perguntei.

— Adoro as cores, mas… Não te ofendas, Jasper, mas não está nada

parecida comigo. Nem sequer consigo ver as minhas feições. Boca,

lábios, percebes? Esqueceste-te de acrescentá-los?

— Não pinto rostos ou objetos — disse-lhe. — Só vozes e outros

sons. Isto é uma pintura da sua voz maravilhosa. É uma tonalidade

perfeita de azul-celeste.

— A minha voz é azul-celeste? Vês isso?

Mexi a cabeça para cima e para baixo, para dizer que sim.

— Vejo a cor dos sons e da música. Consigo ver a cor da voz de uma

pessoa, como a sua, azul-celeste, e focar-me na cor das palavras numa

frase. Por exemplo, «voz» é sorvete de pêssego.


— Uau!

Queria mostrar-lhe o que mais conseguia fazer.

— Vejo a cor das letras e dos dias da semana. Por isso, hoje, quinta-

feira, é verde-maçã. Os meus números têm cores e também

personalidades. Gosto do número seis, é rosa-escuro e amigável.

— Uau! Isso é muito fixe! E os outros quadros?

Ela passou catorze minutos a olhar para todas as minhas pinturas e a

fazer perguntas sobre as cores que eu via para os periquitos e para as

notas agudas e crescendos do seu piano. Disse-lhe que a minha cor

favorita era o azul-cobalto da minha mãe, mas que a dela vinha logo a

seguir.

— Isto foi um prazer para os meus olhos — disse ela, levantando-se.

— Não fazia ideia de que tinhas tanto talento, Jasper. Tens um

verdadeiro dom. Posso ficar com estas duas? — Mostrou-me as minhas

telas de periquitos favoritas. As suas cores eram as mais profundas, as

mais significativas. Ela também conseguia ver isso.

Senti a garganta fechar-se. Mexi a cabeça para cima e para baixo.

— Obrigada, Jasper. Significa muito para mim. — Foi até ao

louceiro e tirou um envelope branco. — Agora, em relação àquele favor

que mencionei. Preciso que entregues isto a Lucas Drury na escola,

amanhã. É urgente.

— O quêêê?

Lucas era o rapaz alto, com a voz de cor atraente, que estava

encostado à parede da sala na noite anterior.

— Gosta mais da cor dos periquitos do que do verde-azulado dele?

— perguntei, segurando o meu quadro.

— Isto não é nada com que tenhas de te preocupar. — A voz azul-

celeste de Bee soou tensa e pontiaguda. Ignorou a minha pergunta. — A

única coisa que tens de fazer é encontrar o Lucas amanhã na escola e


entregar-lhe este envelope. Não é nada de transcendente. Qualquer

pessoa podia fazê-lo, mas escolhi-te a ti, Jasper.

Eu não queria confessar que aquilo não era simples para alguém

como eu. Era a coisa mais difícil do mundo, porque eu nunca iria

conseguir encontrar Lucas Drury. Era impossível.

— Não posso fazer-lhe antes outro favor? — perguntei. — Como

distribuir os folhetos à porta da escola?

Também detestava fazer isso, mas não seria tão difícil como a última

missão proposta por Bee Larkham: localizar um rapaz entre centenas.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas porque eu a tinha enervado

com a minha estupidez. Talvez ela tivesse intuído a minha incapacidade

para reconhecer rostos ou alguém da rua lhe tivesse falado da minha

inaptidão.

— Desculpe — disse. — Sei que a culpa é minha. Não consigo

evitar. Por favor, não chore. Faço qualquer coisa para que deixe de

chorar.

— Entrega este bilhete — Firmemente, ela pôs o envelope na minha

mão. Olhei para ele. Tinha as palavras Lucas Drury impressas na parte

da frente, a tinta azul, juntamente com Turma: Claythorne.

Senti uma ponta de ciúme, uma palavra tipo picle de cebola

desenxabido. Ela já sabia o nome da turma dele, mas nunca tinha

perguntado qual era o nome da minha.

— Dorset — esclareci.

— O quê?

A minha turma.

— Não pediu o número de telefone ao Lucas? — insisti. — Isso seria

a coisa certa a fazer. Podia ligar e pedir ao irmão que marcasse outra

aula de música consigo. A escola é grande. Posso não o ver amanhã ou

não ser capaz de encontrá-lo.


— Não tem que ver com as aulas. É importante que o pai não saiba

que enviei a carta. Não te pedia isto se não estivesse desesperada, Jasper,

mas o Lucas diz que o pai lhe confiscou o telemóvel e lhe vê os e-mails.

Não tenho forma de o contactar sem passar primeiro pelo pai.

O seu corpo estremeceu e ela pôs os braços à volta dele.

— Porque é que precisa de o contactar? — continuei. — Porque é

que precisa de falar com Lucas Drury?

Esperava que ele não voltasse. Ia estorvar os planos para eu e Bee

observarmos os periquitos juntos.

Ela respirou fundo.

— Posso confiar em ti, Jasper?

— Sou uma pessoa digna de confiança — confirmei —, mas fico

confuso com frequência. O meu pai está sempre a dizer isso. Tenho de

me concentrar. Esforçar-me mais do que os miúdos normais porque as

coisas são mais difíceis para alguém como eu.

— Bem, é assim, Jasper. Estou preocupada com o Lucas e com o

Lee também, depois das coisas que eles deixaram escapar ontem à noite.

Creio que o pai deles tem mau génio, como a minha mãe tinha. —

Limpou as lágrimas do olho direito. — Sei como pode ser mau crescer

numa casa assim. Quero que o Lucas se sinta seguro e compreenda que

estou aqui, se alguma vez quiser falar.

Os ombros dela estremeceram e rolaram mais lágrimas.

— Quero ajudar aqueles pobres rapazes porque nunca ninguém me

ajudou quando eu tinha a idade deles. Nunca tive ninguém a quem

recorrer, alguém que me apoiasse sem querer nada em troca. Prometes-

me que vais encontrar o Lucas e dar-lhe pessoalmente este bilhete?

Os meus dedos fecharam-se à volta do envelope.

— Não vou desiludi-la, Bee Larkham. Nunca iria querer fazer uma

coisa dessas. Vou ajudá-la sempre que estiver em apuros. Pode contar
comigo. Prometo.

Não quebrei propriamente a promessa que fiz a Bee Larkham, mas

também não a cumpri propriamente. Não conseguia lidar com a ideia de

tentar descobrir Lucas Drury nos intervalos das aulas. Não tinha

esperança de o encontrar, ou ao irmão, sem persuadir de alguma forma a

secretaria da escola a anunciar os seus nomes pelo altifalante, pedindo

que fossem buscar o bilhete, o que como é óbvio não podia fazer.

Também não podia contar a Bee os problemas que tinha com rostos.

Como podia fazê-lo? Ia mudar de opinião em relação a mim; ia tornar-

me menos útil. Ia pensar que eu era um anormal, como o meu pai

pensava.

Em vez disso, na manhã seguinte, saí para a escola mais cedo do que

o habitual. Encontrei a sala da turma de Lucas, Claythorne, destrancada

e deixei o envelope na secretária do senhor Luther. Ele daria a carta a

Lucas quando fizesse o registo das presenças. Ele encontrá-lo-ia com

muito mais facilidade do que eu. Era quase como dar o bilhete a Lucas

pessoalmente.

Lucas deve tê-lo recebido, porque uma mulher que parecia Bee

Larkham estava à janela do número 20 de Vincent Gardens quando

cheguei a casa da escola, nessa tarde. Ela disse-me adeus e soprou-me

um beijo — um agradecimento por ter levado a cabo com sucesso a sua

primeira missão.

Ela devia ter calculado que a tinha ajudado.

Não a tinha desiludido com a minha incapacidade de distinguir

Lucas Drury dos outros rapazes.

Bem, pelo menos para já. Estou a adiantar-me em relação às cores.

Isso aconteceu mais tarde.


29

QUINTA-FEIRA (VERDE-MAÇÃ)

Ainda nessa tarde

— O que aconteceu, filho? — O homem está a ofegar um tom de

ocre-escuro. É o meu pai, mas a sua voz soa diferente quando acaba de

correr. — O que estás a fazer num carro da polícia? — Tem a t-shirt

colada ao peito e gotas de suor no rosto enquanto se apoia na porta do

carro. — O que fizeste agora?

Tenta ajudar-me, mas eu afasto-o, dirijo-me à parte da frente da casa

e sento-me. Fecho os olhos, enquanto ele me segue, porque não me

quero lembrar do seu rosto. Volto a pôr o cobertor em cima da cabeça

para filtrar a luz do Sol também.

— A andorinha quis escapar, mas não conseguiu. Queria fugir do pai

de Lucas Drury. Ele é um homem violento. É capaz de já ter estado em

casa de Bee Larkham. Lembro-me da cor dele. Partiu o vidro da porta

das traseiras.

— O quê? Ele esteve aqui hoje? Em casa de Bee?

Debaixo do cobertor, vejo um pontinho vermelho na palma da mão.

Foi onde apertei o brinco com força, uma dolorosa lembrança de que

Bee Larkham continua comigo. Não se vai embora. O seu fantasma está
a observar os polícias a abrir e a fechar a porta de sua casa. Está a tentar

perceber o que se passa.

Ela quer saber se estou a dizer a verdade em relação ao que fiz.

Se vou remediar as coisas e deixá-la descansar em paz.

Um carro para e a porta abre-se e fecha-se numa oval de cinzento-

acastanhado.

— Oh, meu Deus! — diz o meu pai. — Era só o que nos faltava.

Pressiono os dedos sobre os olhos. O segundo recém-chegado

caminha com grandes retângulos pretos. Passos.

— Olá outra vez — diz a voz ocre-baça do meu pai. — Pode fazer o

favor de me dizer que diabo se passa? Que história é essa sobre o pai de

Lucas Drury?

— O Jasper apanhou um susto — responde uma voz laranja de

cromo oxidado. — Talvez possamos entrar, senhor Wishart, pode ser?

Devíamos falar em privado.

Laranja de Cromo Oxidado.

Richard Chamberlain, como o ator, está de volta.

Era só o que nos faltava.

— O quê? Sim. Venha comigo. Vai ter de me desculpar. — O meu

pai para de falar e recomeça. — Preciso de tomar um duche. Fui dar

uma corrida. Só estive fora cerca de vinte minutos.

— Sim, disseram-me que esteve ausente nesta última meia hora.

Jasper viu-se envolvido num incidente grave.

— O que aconteceu? Deixei-o sozinho por pouco tempo. Quase

nenhum. — O meu pai está a falar em sequências curtas. — Ele estava

deitado, a dormir. Eu precisava de apanhar ar. Tem sido uma semana

diabólica. Com certeza que poderá imaginar.

— Vamos fazer isto lá dentro, está bem?


As mãos do meu pai tocam-me através do cobertor, desviando-me da

casa de Bee Larkham em direção à nossa, levando-me para mais longe

da verdade. Os seus dedos enterram-se nos meus ombros, para me

controlar.

Não digas nada.

Não contes à polícia o que fizeste a Bee Larkham.

Não contes à polícia sobre a faca.

Não posso dizer a Laranja de Cromo Oxidado onde está escondida

porque o meu pai não me confidenciou tal coisa. Não confia em mim o

suficiente. Pensa que podia denunciá-lo.

As mãos dele empurram-me para dentro de casa até ao fundo das

escadas.

— Volta para a cama, Jasper. Quando acabar aqui em baixo, já lá

vou ter contigo.

— Eu entendo que ele esteja abalado e que precise de descansa —

diz Laranja de Cromo Oxidado —, mas vou precisar de falar com Jasper

mais tarde Precisamos de esclarecer umas quantas coisas. Vamos falar

aqui dentro, está bem, senhor Wishart?

— Vai lá para cima — ordena o meu pai.

Subo a escada, contando até cinquenta, e sento-me no degrau do

topo, debaixo do cobertor. Ouço a porta da sala fechar-se, mas pouco

atenua os sons e as cores.

Laranja de Cromo Oxidado conta ao meu pai que o pai de Lucas

Drury foi preso por agredir David Gilbert, por me ter abanado, por ter

forçado a entrada em casa de Bee Larkham e por ter ameaçado matar

um agente. Eu não ouvi isso, portanto deve ter acontecido quando foi

posto no carro da polícia.

— Jasper testemunhou o ataque inicial porque estava escondido no

quintal de Miss Larkham, segundo o vosso vizinho, o senhor Gilbert.


Faz alguma ideia do que estaria a fazer ali?

O meu pai murmura fitas de um laranja um tanto escuro.

— Ele fez algumas declarações surpreendentes na presença dos

agentes — continua Laranja de Cromo Oxidado. — Afirma que Miss

Larkham está na realidade morta e não desaparecida, como nós

pensávamos inicialmente. Também afirma que ela está grávida. Já o

ouviu insinuar tal coisa?

A cadeira chia um tom de ameixa-carregado quando o meu pai se

remexe nela.

— Esta manhã, Jasper disse que Bee estava grávida. Lucas Drury

disse-lhe isso na escola ontem, em conversa, o que o deixou de cabeça

perdida. Foi por isso que ele saiu da escola sem autorização. Foi por isso

que estava naquele estado quando ligou para o cento e doze a comunicar

que Ollie tinha sido raptado.

Desço as escadas para ouvir melhor Laranja de Cromo Oxidado.

— E não pensou que isso podia ser relevante para a nossa

investigação sobre a relação entre Miss Larkham e Lucas Drury? Não

pensou em comunicar uma alegada gravidez com um menor?

— Hoje foi a primeira vez que Jasper me falou sobre isso — diz o

meu pai. — Eu não acreditei. Não quis acreditar. Achei que Jasper tinha

percebido mal aquilo que Lucas lhe disse. É frequente ter dificuldade em

entender o que as pessoas lhe dizem.

— Compreendo. E quanto à alegação de que Miss Larkham está

morta? Ele repetiu isto vezes sem conta aos agentes. Disse que era por

isso que era impossível encontrá-la, porque tinha morrido na sexta-feira

à noite.

— O Jasper fica tremendamente confuso. Ele ficou perturbado com a

vossa investigação e com o facto de Bee ter deixado os periquitos sem

comer. Tentei tranquilizá-lo, mas, como diz, ele parece ter metido na
cabeça que ela está morta, o que é absurdo. É óbvio que fugiu quando

percebeu que estava em maus lençóis com a polícia por causa de Lucas.

— Era o que pensávamos — diz Laranja de Cromo Oxidado. —

Parecia ser o que fazia mais sentido, mas começamos a pensar que

devíamos ver isto por um prisma diferente.

— O que quer dizer com isso?

— Miss Larkham agora está oficialmente dada como desaparecida.

Não compareceu numa festa de despedida de solteira no sábado. Ela

tinha programado o seu regresso da Austrália de modo a coincidir com

esse evento. As amigas tentaram contactá-la repetidamente e as

mensagens foram parar ao correio de voz. E encontrámos, por acaso, o

telemóvel dela dentro de casa, juntamente com a mala e a carteira.

— Não fazia ideia — diz o meu pai. — Não fazia a mínima ideia.

— Ninguém comunicou ter visto Miss Larkham desde sexta-feira,

apesar de a sua descrição ter circulado pelas forças policiais de todo o

país. Ela não tentou reservar um bilhete de comboio ou de avião para

deixar o país. E não tocou na conta bancária desde a semana passada.

— Acham que aconteceu mesmo alguma coisa a Bee? — pergunta o

meu pai. — Alguma coisa má?

— Nesta fase, é uma investigação de desaparecimento, que estamos a

desenvolver paralelamente com a nossa investigação inicial do seu

alegado relacionamento com um menor.

— Meu Deus! Isto não vai desaparecer, pois não?

Não, não vai, pai.

— Está a complicar-se cada vez mais — continua o meu pai. — Será

possível que se tenha matado? Procurado a saída mais fácil antes de ser

presa por andar metida com miúdos? Não que suicidar-se seja uma saída

fácil, é claro. Percebe o que quero dizer.


— Não sabemos o que lhe aconteceu — admite Laranja de Cromo

Oxidado. — Estou curioso em relação às afirmações que o seu filho fez.

Temos registo de ele ter feito um telefonema para o cento e doze ontem,

alegando que tinha ocorrido um homicídio nesta rua, assim como um

rapto.

— Não foi um rapto, já sabe disso. Como disse, o Jasper ficou

confuso. E transtornado depois do rumor da gravidez. Tenho a certeza

de que também deve ter ficado baralhado em relação ao resto. Não

houve um homicídio nesta rua. Pelo menos, que eu saiba.

— Passei em revista as gravações da nossa primeira entrevista.

Jasper referiu-se especificamente a um homicídio. Lembro-me que foi

claro em relação a esse facto.

— Ele estava a falar dos periquitos — insiste o meu pai. — Está

obcecado com os periquitos e receia que David Gilbert lhes queira fazer

mal. Ele ficou perturbado depois de um filhote de periquito ter morrido

e crê que mais doze foram mortos.

— É o que o senhor diz. E lá voltamos nós aos periquitos mortos.

— Não acredita em mim? É disso que se trata?

— De modo algum — replica Laranja de Cromo Oxidado. — Estou

a pensar se Jasper saberá o que está a dizer e se não seremos nós que o

entendemos mal, e não o contrário. Acha que é possível? Que tenhamos

sido nós a não compreender bem a situação?

— Para ser franco, não, acho que não. Aprendi a ouvir tudo o que

Jasper diz com as devidas ressalvas. É preciso, com uma criança assim.

Não é fácil.

— Tenho a certeza. Mas o seu filho é observador. Ele gosta de

observar pessoas, não gosta? Haverá alguma possibilidade de ele ter

visto alguma coisa durante o fim de semana que o tenha levado a

acreditar que Miss Larkham está morta?


— Jasper esteve doente, de cama, durante todo o fim de semana —

sublinha o meu pai. — Fiquei com ele o tempo todo. Não podia ter

visitado Bee. Não podia ter visto nada de importante porque não saiu de

casa. Posso garantir isso.

— Eu estava a falar em ter visto através dos binóculos, enquanto

observava pela janela do quarto. Ele passa muito tempo a fazer isso, não

é? É o que os vossos vizinhos dizem. Verifiquei lá fora e do quarto dele

Jasper tem uma linha de visão direta para o quarto de Miss Larkham.

Ele mencionou ter visto alguma coisa que o tivesse deixado perturbado?

— Jasper não estava suficientemente bem para usar binóculos este

fim de semana. — O ocre-baço está tenso.

Faz-se outra vez silêncio antes de Laranja de Cromo Oxidado mudar

bruscamente de assunto.

— Sim, claro. Relembre-me lá como é que o Jasper arranjou aqueles

ferimentos de faca na barriga…

— Já contei isso ao outro polícia, no hospital — diz o meu pai. —

Perdi-o de vista durante um curto período de tempo e ele magoou-se na

cozinha. Foi um erro estúpido.

— E não pensou em levá-lo ao médico? Ele precisava de pontos,

mas o senhor retardou o tratamento, segundo as notas do hospital.

O meu pai suspira botões de ocre-claro.

— Escute, vou ser sincero consigo. Cometi um erro. Devia tê-lo

levado a um médico, mas sabia a ideia que ia dar. Isso ia significar novo

envolvimento dos serviços sociais, levando-os a perguntar-se como é

que eu podia ter deixado acontecer uma coisa daquelas.

— Como hoje? Isso surpreende-me, senhor Wishart. Porque é que

deixou Jasper sozinho, sabendo que havia o risco de ele se voltar a

magoar? E sabendo que os serviços sociais já estão envolvidos, depois


do acidente com a faca, e que já tinham estado envolvidos anteriormente

por sua causa.

— Isso foi há anos — observa o meu pai. — A minha mulher

faleceu e eu tinha saído dos Royal Marines. As duas coisas trouxeram

grandes mudanças à minha vida. Estava por minha conta. Não tinha

família alargada que pudesse ajudar. Estava deprimido e mudámos de

casa várias vezes, mas dei a volta por cima. Já não estou medicado.

Tenho um bom emprego. O Jasper tem uma vida estável, agora. Criámos

raízes aqui. Somos felizes.

Laranja de Cromo Oxidado volta a falar.

— O senhor foi o primeiro a dizer que Jasper está perturbado com

tudo o que se passa, e deixou-o sem vigilância.

— Como já lhe disse, pensava que ele estava a dormir. Queria

alguma paz de espírito. Precisava de correr. Ajuda-me a pensar. Nunca

me passou pela cabeça que ele acordasse e fosse a casa de Bee. Eu tinha-

o avisado…

— Tinha-o avisado sobre o quê?

— Para não voltar a ir a casa dela e para não dar de comer aos

periquitos. Pensava que ele tinha compreendido, mas é óbvio que não.

Não ouviu ou não compreendeu totalmente.

— Estou a ver.

Há um roçagar cor de pistácio.

— Sabe o que está dentro deste saco de plástico? — pergunta

Laranja de Cromo Oxidado.

— Hum… Parece um brinco. Um brinco com um pássaro.

— Os meus colegas acreditam que pertence a Miss Larkham. Jasper

estava a escondê-lo na mão quando os agentes chegaram. Tentou atirá-lo

para longe e ficou agitado quando ele foi recuperado.


— Não faço ideia de como foi parar à mão dele — diz o meu pai. —

Ele adora pássaros. Talvez o tenha encontrado algures. Ou talvez Bee lho

tenha dado.

— Não tinha visto Jasper com ele antes?

O meu pai fica calado. Não sei que gesto faz com a cabeça.

— Se olhar com atenção para o brinco, segurando-o na direção da

luz — diz Laranja de Cromo Oxidado. — Sim, exatamente assim.

Consegue ver uma mancha castanho-escura?

— Hum, acho que sim.

— Estamos a testá-la para ver se é sangue. Também pedimos a uma

equipa forense que levasse a cabo um exame minucioso da casa dela,

sobretudo da cozinha, onde há um forte cheiro a desinfetante. Há outras

coisas que nos preocupam.

— Porque é que me está a dizer isso? — pergunta o meu pai.

— Se há alguma coisa que ache que devamos saber sobre Jasper, esta

é a altura certa para nos dizer — diz Laranja de Cromo Oxidado. —

Antes que isto vá mais longe. Antes que se torne ainda mais grave.

— Não há nada. Não sei nada sobre o que aconteceu a Bee, se é que

aconteceu, e o Jasper também não. Isso não tem nada que ver com

nenhum de nós.

— Gostava de falar com Jasper, se puder, para ouvir isso da boca

dele.

— Isso não vai acontecer — replica o meu pai. — Não posso deixar

que o perturbe outra vez. Ele está muito frágil. O senhor foi o primeiro a

dizer que ele apanhou um susto. Voltar a falar consigo pode levá-lo ao

limite. Ele precisa de tempo para estar sozinho no seu esconderijo, lá em

cima. É o seu mecanismo de defesa, juntamente com a pintura.

— Muito bem, mas é possível que tenhamos de insistir em falar com

ele em breve. Dependendo do que as equipas forenses encontrarem em


casa de Miss Larkham.

— Terá de falar primeiro com o meu advogado — diz o meu pai. —

Porque só assim terá contacto comigo e com Jasper a partir de agora.

— Com certeza. Podemos utilizar os canais formais, se é assim que

deseja.

— É.

— Devo avisá-lo de que este assunto já saiu da minha alçada. Os

serviços sociais vão ser hoje informados sobre isto. O Jasper foi

testemunha de um crime grave e foi agredido depois de ter sido deixado

sozinho em casa.

— Não é ilegal, com a idade dele — grita o meu pai. — Estamos a

falar de cerca de vinte minutos, provavelmente menos. Não fazia ideia

de que o pai de Lucas Drury ia aparecer e comportar-se como um louco.

E como poderia? Não sou vidente!

— Acalme-se, senhor Wishart.

— Quem me dera que nos deixassem em paz! Estou a fazer o melhor

que posso. Sou um pai sozinho, viúvo, com um filho que tem profundas

dificuldades de aprendizagem. Será que não vê o quanto me esforço?

— Vejo. Isto é pura formalidade. Não é nada de pessoal.

O meu pai levanta-se da poltrona de couro com um som ameixa-

carregado.

— O que não compreendo é porque é que vêm atrás de mim, em vez

de irem atrás do pai de Lucas Drury — diz. — Ele atacou David e

ameaçou o meu filho. Não será possível que também tenha magoado

Bee? Tem motivo, tendo em conta o que pensam que ela fez com Lucas.

Será que não descobriu que ela estava grávida do filho e resolveu agredi-

la?

— Estamos a encarar o senhor Drury com um espírito aberto —

replica Laranja de Cromo Oxidado. — Os meus colegas vão interrogá-lo


hoje, com vista a apresentar queixa por roubo e agressão, assim como

por ter feito ameaças de morte. E a partir daí logo se verá relativamente

à investigação do desaparecimento.

— Ótimo — diz o meu pai. — Espero que isso esclareça tudo e

possamos todos seguir em frente.

A porta range ao abrir, castanho-café claro, mas eu não tento

esconder-me. As cores param ao fundo das escadas. Vejo duas figuras

indistintas através do cobertor.

— Adeus, Jasper — diz Laranja de Cromo Oxidado. — Somos

capazes de nos voltar a ver em breve.

— Eu sei — digo. — Ainda bem que a encontraram.

— Estás a falar de Miss Larkham? Ainda não a encontrámos.

Continua desaparecida.

— A andorinha dela é fêmea e merecia ser encontrada — esclareço.

— Ia sentir-se sozinha sem a andorinha macho. Têm de fazer par.

Devem estar juntas. São os brincos preferidos de Bee Larkham.

— Sabes onde está o outro brinco? — pergunta Laranja de Cromo

Oxidado.

Encolho-me debaixo do cobertor porque consigo ver o brinco

nitidamente, mesmo de olhos fechados. Estava na orelha de Bee

Larkham quando ela jazia morta no chão da cozinha. Creio que a

Bailarina de Porcelana também o viu.

O meu pai fica na entrada depois de a porta se fechar com estrondo,

retângulos castanho-escuros. Também deve estar a contar os passos

escuros de Laranja de Cromo Oxidado, a calcular quando será seguro

falar. Será que Laranja de Cromo Oxidado já está suficientemente longe

para não ouvir o que dizemos?


— Isto está a ficar um caso sério para ambos — lá acaba por dizer.

— Percebes isso, Jasper? Se encontrarem vestígios de sangue na casa…

Do teu sangue.

— A minha roupa e a faca não estão no barracão.

— Claro que não — diz ele. — Eu disse-te que ia resolver tudo, e foi

isso que fiz. Não tens de te preocupar em relação a isso. Já está tratado.

— Estou preocupado — observo. — Esqueceu-se de pôr a chave

outra vez no sítio. Isso foi um grande erro. Ia gritar comigo se eu fizesse

uma coisa tão estúpida como essa.

— Não faço ideia do que estás a falar. Que chave?

— A porta da chave das traseiras de Bee Larkham. Não está no

jardim, debaixo da estátua do flamingo, onde ela costumava guardá-la.

Verifiquei antes do pai de Lucas Drury chegar e atacar David Gilbert.

— Não toquei na chave de Bee.

— Tocou, sim. Usou-a na sexta-feira à noite para entrar em casa

dela, mas não a voltou a pôr no lugar onde a encontrou. Isso foi um erro.

Conto quinze dentes com a língua enquanto dura o silêncio.

— Escuta, Jasper. Juro que não toquei na chave de Bee. Fui lá na

sexta-feira à noite, como disse que faria, mas não fui pelas traseiras, mas

sim pela porta da frente.

Ele deve estar a mentir. Ou com o pânico ter-me-ei esquecido de

voltar a pô-la no lugar?

— Eu entrei e saí pela porta das traseiras, o que significa que devo

ter usado a chave, porque está sempre trancada — grito, sem querer

saber se Laranja de Cromo Oxidado está a ouvir do outro lado da porta.

— Lembro-me sempre de voltar a pôr lá a chave. Nem quando o

periquito bebé morreu me esqueci! Onde é que está a chave, agora?

— Não sei. Talvez Bee a tenha mudado de lugar…

— Isso é impossível. Não pode ter feito isso.


— Ou… não sei…

— Ou o quê?

— Se a puseste novamente no lugar, só resta outra possibilidade.

Bato impacientemente com o pé, fazendo bolhas castanho-

acinzentadas.

— Mais alguém sabia onde é que a Bee guardava a chave — diz ele

finalmente. — E tirou-a de lá depois de tu teres fugido do quintal na

sexta-feira à noite.

Revejo sistematicamente as minhas pinturas antigas porque estou

determinado a manter a minha promessa de ser um artista íntegro.

Não devo tentar falsear a verdade com cores diferentes quando

revisito cenas recentes.

Encontro a tela do dia em que descobri pela primeira vez a chave de

Bee Larkham e coloco-a no tapete junto da minha cama. Olho para ela

com um olho fechado, como me ensinaram na aula de artes.

Usa o teu olho crítico.

Esse é o meu olho esquerdo. Ajuda-me a pôr as coisas em perspetiva

e a reavaliar os meus quadros.

Esta não é nem remotamente a minha melhor pintura. Misturei os

sons dos periquitos com vozes de pessoas, usando gel de empastamento

para criar as texturas certas. Também fiz marcas de água e borrões

irritantes em baixo no canto direito.

Muito ansioso.

Pior que isso, esta imagem é altamente enganadora.

Falta alguma coisa.

Eu não quero revelar a localização do esconderijo da chave no jardim

das traseiras de Bee Larkham porque nunca pinto o que vejo — apenas o
que ouço. É o que conta.

Porém, esta pintura estava definitivamente a tentar ocultar alguma

coisa — uma pista que não estava preparada para abrir o seu caminho

através das outras tonalidades até à superfície.

Ainda não, em todo o caso.

Misturo as cores e recomeço.


30

6 DE FEVEREIRO, 10H04

Azul-Celeste com Ocre-Baço, Azul-Frio e Safira em tela

— Acha que posso levar o Jasper por uns minutos, Eddie?

Uma mulher loura, com um vestido cinzento-pomba que eu não

conhecia, estava especada à nossa porta no sábado de manhã (turquesa).

Inspecionei-lhe as orelhas (enfeitadas com andorinhas). Tinha uma voz

azul-celeste. Era Bee Larkham.

Estava a falar com o meu pai, mas a olhar para mim. Devia ter

saudades minhas; embora acenássemos um para o outro da janela dos

nossos quartos de dormir, há oito dias que não falávamos

convenientemente cara a cara. Tinha-lhe batido à porta três vezes para

lhe contar a notícia incrível: os periquitos estavam a fazer ninho na

árvore dela.

O meu sentido de oportunidade não tinha sido dos melhores.

Esperara que o ciano-prateado das guitarras ou o azul-real das aulas de

piano terminassem e o rapaz ou rapariga saíssem lá de casa, mas Bee

Larkham estava sempre ao telefone ou a falar pelo Skype com uma

amiga na Austrália e não podia interromper.


— Podes trazer os binóculos contigo, se quiseres, Jasper. Na verdade,

tens de trazer os teus binóculos. Insisto. Tenho uma enorme surpresa

para ti.

— Claro, Bee — disse o meu pai. — Se tem a certeza absoluta de

que ele não a vai incomodar…

— De todo!

Eu pulava de um pé para o outro, pronto para ir. Já tinha os

binóculos à volta do pescoço, porque tinha estado a observar os

periquitos da janela do meu quarto.

— Bem, antes que me esqueça, está livre na sexta-feira à noite? —

perguntou ela, olhando agora para o meu pai. — Vou convidar os

vizinhos para irem lá a casa beber um copo, para nos ficarmos a

conhecer. Quer ir? Não se preocupe, se já tiver outros planos. Eu sei que

é muito em cima da hora.

— Adorava ir — disse ele. — Nunca tenho planos nas sextas à noite.

— Oh, meu Deus! Vejam só! Pensava que um homem assim tão

bem-parecido saísse todas as noites com uma mulher diferente.

— Quem me dera! As mulheres tendem a perder o interesse quando

lhes conto que sou um pai sozinho com um filho que…

Ele esqueceu-se de terminar a frase e parou de falar de repente.

— Elas é que perdem — disse Bee. — Não deve perder tempo com

mulheres que não estão interessadas em crianças.

— Obrigado, tenho a certeza de que tem razão.

— Vamos a sua casa ou não, para a surpresa? — perguntei. —

Pensava que o plano era esse.

— Sim, Jasper, desculpa — disse Bee a rir. — Nós, os adultos, às

vezes esquecemo-nos do que devíamos estar a fazer. Não é assim,

Eddie?
— Até sexta à noite, se não for antes — replicou ele. — Estou

ansioso por isso.

— Eu também, Eddie. Vai ser uma noite fantástica. Mal posso

esperar para conhecer melhor as pessoas desta rua.

O meu pai fechou a porta atrás de nós. Atravessámos a rua, olhando

para ambos os lados, porque morrem cerca de quatro mil peões

atropelados por ano.

— Também posso ir? — perguntei.

— Onde?

Bee já se tinha esquecido. Tinha uma péssima memória.

— À festa dos vizinhos? — relembrei.

— Claro que podes, se o teu pai te deixar, mas, na verdade, não é

para os vizinhos. Vou convidar montes de velhos amigos que não vejo há

anos. Só vou convidar os vizinhos para ver se me largam da mão.

— Porque é que não a largam da mão?

— Diz-me tu, Jasper.

— Não sei esse facto em particular — observei.

Bee suspirou espirais de um azul-celeste quase translúcido.

— A minha mãe morreu e o tempo de ser tratada abaixo de cão já

terminou há muito. Não tenho de voltar a aturar semelhante coisa. Não

tenho de ficar calada. Posso fazer barulho. Dou uma festa, se quiser.

As minhas preocupações já tinham desaparecido quando chegámos à

porta da casa dela; ela não tinha explicado quem é que andava a tratá-la

mal. David Gilbert era o meu suspeito número um.

— Bolas! Deixei a chave lá dentro. Temos de ir pelas traseiras.

Desculpa, Jasper.

Segui-a pela viela, caminhando cautelosamente sobre o lixo. A relva

era alta e estava molhada, deixando a bainha das minhas calças de ganga

húmida e a roçar nos tornozelos.


— Cá vamos nós. — Ela usou o ombro direito para empurrar o

portão que dava para um quintal nas traseiras cheio de ervas daninhas.

— Lar, doce lar.

Dirigiu-se a um flamingo de pedra junto à porta das traseiras. Depois

de deslocá-lo com o pé, inclinou-se e tirou uma chave para fora.

— O velho esconderijo secreto da minha mãe. — Enfiou a chave na

fechadura. — O advogado levou-a quando fechou a casa. Disse que um

ladrão podia encontrá-la e pilhar o recheio. Eu disse-lhe que tanto fazia.

Aqui não há nada que valha a pena roubar.

Eu não estava interessado na chave nem no advogado da senhora

Larkham.

— O meu pai chama-se Ed, e não Eddie. Ele diz que, se alguém me

tratar mal na escola, devo ripostar. Contar a um professor faria de mim

um bufo.

— O quê? Hum, está bem. Anda e olha para isto. Agarrou-me pela

mão e levou-me pela cozinha. Tirei os sapatos e segui-a até lá acima.

Tinha limões debaixo dos pés. Deixavam-me as meias húmidas, mas era

melhor do que o mau cheiro do antigo tapete.

— O que achas, Jasper?

O quarto da mãe tinha mudado desde a última vez que lá estivera.

Um novo roupeiro tinha chegado, enquanto eu estava na escola e uma

cama grande e um edredão azul-escuro substituíam o colchão no chão.

Por cima dela, onde antes o papel de parede tinha as formas das cruzes

impressas, estavam penduradas as minhas telas com periquitos.

— Queria tapar aquelas marcas horríveis com as tuas obras-primas

— explicou Bee. — Agora tenho os periquitos dentro e fora do meu

quarto. O que mais posso pedir?

Fiquei tão feliz que nem tentei reprimir o agitar dos braços.
— Eles movem-se exatamente assim. — Bee riu esferas de azul-

celeste e também agitou os braços. — Os pássaros estão em toda a parte:

dentro, fora, no meu jardim, no jardim de David. Eles não têm

fronteiras, como nós. Não podemos impedi-los de fazer o que é natural.

Eles querem ser felizes.

Foi preciso um esforço enorme para pôr os meus braços junto ao

corpo. Segui-a até à janela. A Bailarina de Porcelana já não estava

sozinha na cómoda. Tinham-se juntado a ela outras treze amigas, a fazer

piruetas, a brincar com arcos e sombrinhas, a afagar animais e a fazer

vénias.

Espalhadas entre elas, estavam pedras cintilantes roxas e pretas.

Queria tocar-lhes, mas tinha receio de derrubar os bibelôs. Depreendi

que fossem preciosos para Bee Larkham, pois não tinham acabado no

contentor, ao contrário da caixa de cartão fechada que avistara entre as

velharias, a caminho dali. Bee nem sequer se dera ao trabalho de ver o

que estava lá dentro antes de a deitar fora.

— Acreditas em amor à primeira vista, Jasper? Mesmo que as outras

pessoas pensem que estás enganado?

— Os periquitos não estão enganados — repliquei. — Não têm nada

de errado. Sentem exatamente o que é certo.

Tinha-me apaixonado pelos periquitos desde o primeiro dia. Não

conseguia descrever as sensações que experimentava quando os via e

ouvia. Só podia pintá-las. E as minhas cores nem sempre lhes faziam

justiça. Não conseguiam fazê-lo na totalidade. Nem mesmo o melhor

pintor do mundo conseguiria captar os seus sons.

— E parece mesmo certo. Toda a gente merece ser feliz, Jasper,

mesmo nós. — Pôs um braço à volta do meu ombro. — Sabes? Tu és

como o irmão mais novo que eu nunca tive, o irmão mais novo que

gostava de ter tido quando crescia nesta casa.


— Esta parece a sua irmã mais nova — disse, agarrando na bailarina

que eu tinha usado como potencial arma contra David Gilbert. Ela era a

atração principal da exposição efetuada junto à janela, colocada em

frente das outras, com a melhor vista para os periquitos. Eu estava

satisfeito por ela não ter voltado para a caixa. — É bonita, como a Bee.

— Ah! — Deixou cair o braço ao longo do corpo. — Essa

lambisgoia está a causar-me mais problemas do que a merda dos

periquitos!

Estremeci. Detestava a cor bronze-esverdeada de «lambisgoia».

Misturava-se de forma desagradável com o laranja-vómito do palavrão.

Não gostava de estarem ambas tão perto dos periquitos, no final da frase.

Pousei o bibelô, com cuidado para não o quebrar.

— Certifica-te de que consegues vê-la como deve ser da janela —

disse Bee, a rir. Empurrou o bibelô ainda mais para a ponta da cómoda.

— Pronto, assim está melhor. É uma vista perfeita, certo?

— Vou confirmar quando chegar a casa — prometi. Não achava que

tivesse dificuldade em ver as senhoras da janela do meu quarto, usando

binóculos.

Lado a lado, observámos quando um periquito voou para dentro de

um buraco com raminhos no bico.

— Olha, Jasper! Acho que estão a fazer ninho. Era essa a surpresa

que te queria mostrar. Querem ficar nesta rua, algo que nunca pensei que

alguém ou alguma coisa quisesse vir a fazer.

Eu tinha-me apercebido deste facto dias antes e dormira pouco desde

então porque tinha de pintar cada vez mais quadros dos seus sons.

Pressentira que alguns também estariam a fazer ninho no beiral.

Não sabia como fingir-me surpreendido com a notícia de Bee

Larkham, por isso abri a boca o mais possível num sorriso rasgado,

enquanto ela continuava a falar.


— Creio que os periquitos vieram para ficar. O David disse que vão

começar a reproduzir-se e fez com que isso parecesse a pior coisa do

mundo, o que não é, obviamente. Como é que ele pode opor-se ao início

de vida nova? É disso que esta rua precisa. Esperança.

Movi a cabeça para cima e para baixo e bati palmas. Era isso que eu

também tinha: uma palavra cor de ketchup, porque talvez Bee Larkham

também quisesse ficar nesta rua, com a sua família de periquitos.

— Sabia que ias ficar entusiasmado — disse ela. — Desculpa não ter

podido falar contigo quando passaste por cá. As aulas de música levam

muito do meu tempo. Isso e renovar a casa. É extenuante.

Eu não conseguia desviar os olhos nem o pensamento dos periquitos.

— Eles não têm medo de David Gilbert nem da sua caçadeira,

embora ele seja um assassino de pássaros e um homem

extraordinariamente perigoso. Eu contei à polícia esses factos

importantes quando liguei para o cento e doze.

Bee enrolou uma madeixa de cabelo à volta do dedo.

— Tu denunciaste David Gilbert à polícia?

Ela riu azul-vivo quando confirmei que o tinha feito.

— Ainda bem para ti, Jasper. Talvez eu devesse fazer o mesmo. —

Foi até à cama e agarrou num pequeno envelope almofadado branco.

Não tinha reparado nele quando entrei. — Surgiu um imprevisto e

preciso urgentemente que entregues isto ao Lucas amanhã, na escola.

Fechei os olhos. Pensava que a última carta tivesse sido caso único.

E mesmo assim já me tinha deixado suficientemente enervado:

encontrar a sala de aulas de Lucas antes do registo de entrada e esperar

que o professor lha entregasse sem a abrir primeiro.

Esperar não ter desiludido Bee Larkham.

— Por favor, Jasper. É importante que lho dês. Já te disse que não

posso telefonar-lhe nem enviar-lhe um e-mail por causa do pai. Quero


dar-lhe um telemóvel de emergência, para ele me poder ligar se houver

algum problema em casa.

— Ele podia falar com a polícia — disse. — Se marcasse o cento e

doze.

— Sim, também podia fazer isso. Tu queres ajudá-lo, não queres,

Jasper? Ele apreciou imenso o outro bilhete que lhe entregaste. Creio

que o fez perceber que tem o nosso apoio.

Então, Lucas Drury sempre recebeu a carta. Mas isso não queria

dizer que eu quisesse tentar outra vez.

— Olha, sei que é uma chatice teres de procurar o Lucas durante os

intervalos. E que tal fazermos um trato?

— Um trato?

— Tu entregas isto e eu deixo-te cá vir depois da escola durante uma

hora, todos os dias desta semana, para veres os periquitos.

Todos os dias desta semana.

— Se eu não estiver em casa ou se estiver ocupada a dar uma aula,

podes entrar usando a chave que está debaixo da estátua — continuou

ela. — Tu viste onde a pus, certo? O que achas? Estarias a ajudar o

Lucas e a vigiar os periquitos. Porque eu acho que tens razão em relação

ao David. Ele esteve aqui outra vez ontem, a ameaçar os periquitos com

a sua caçadeira. Estou preocupada com eles, Jasper. Horrivelmente

preocupada.

De imediato, concordei em ajudar e peguei no envelope. Bee

Larkham era a única pessoa nesta rua, tirando eu próprio, que percebia

que os periquitos corriam um grande perigo. Tinha de ajudar a salvá-los

de David Gilbert, enquanto Bee Larkham trabalhava noutra missão de

salvamento.

— Vai salvar Lucas e Lee Drury do pai? — perguntei.


— Com toda a certeza — replicou Bee. — Creio que o Lucas precisa

de mim mais do que nunca.


31

8 DE FEVEREIRO, 9H13

Encontrar Verde-Azulado Arruinado

por Risinhos de Alumínio em papel

Acidentalmente, cheguei atrasado na segunda-feira de manhã para

salvar Lucas Drury, porque não conseguia encontrar uma camisa lavada.

Tive de recuperar uma do fundo do cesto da roupa suja e passá-la a ferro

com os punhos antes de sair para a escola. Os super-heróis nunca tinham

este tipo de problema.

Entrei na sala de aulas de Lucas já depois do registo de presenças, e

não antes como planeara, e os alunos já estavam nas suas carteiras. Um

homem ficou a olhar para mim quando irrompi pela sala. Estava sentado

ao computador, virado de frente para as carteiras, o que significava que

devia ser o professor. O senhor Luther.

— Bem, o que foi? O gato comeu-te a língua?

Risinhos de alumínio.

— Tenho uma carta — disse finalmente. — Para Lucas Drury.

— Bem, dá-lha antes que eu faça a chamada.

Fiquei onde estava.

— De que estás à espera? Despacha-te. Não tenho o dia todo.


Não conseguia mexer-me. Segurei o envelope com mais força.

— É para Lucas Drury — disse em voz alta. — Da professora de

música Bee Larkham. Ela quer falar contigo.

— É a nova professora substituta? — perguntou o homem à

secretária. — Vem cá, Lucas. Requerem a tua presença.

Mais risinhos abafados da cor do aço, glóbulos alongados com orlas

cor-de-rosa.

— Já vou! — Um rapaz na terceira fila a contar do fundo avançou

com passos arrastados na minha direção. Tinha cabelo louro

desgrenhado, o que não ajudava. Parecia idêntico ao colega sentado à

frente dele. O rapaz não olhou para mim, enquanto caminhava por entre

as carteiras. — Volto já, professor!

Segui-o para fora da sala de aula. Ele ia ficar desiludido. Bee

Larkham não estava ali. Provavelmente, estava em casa, a esvaziar

armários e a fazer limpezas.

Antes que eu pudesse explicar, ele agarrou-me pelas lapelas do

blazer e encostou-me à parede.

— Não voltes a vir à minha sala de aulas, Rapaz dos Binóculos —

sibilou. — Não fales comigo na escola. Nunca. A menos que eu diga que

podes fazê-lo. Compreendes?

Eu não compreendia porque é que ele estava relutante em deixar que

eu e Bee Larkham o salvássemos, mas de qualquer forma mexi a cabeça

para cima e para baixo. Talvez ele tivesse medo. Não me parecia

particularmente grato, mas podia estar enganado.

— Quando tiveres mensagens para mim, deixa-as nas gavetas por

baixo do poster da tabela periódica no Laboratório de Ciências 3c —

disse. — Nunca ninguém vai lá ver. Doravante, é assim que vamos

comunicar. Compreendes?

Movi a cabeça nas posições certas.


— Ótimo. — Largou-me e abriu o envelope.

A sua boca rasgou-se num sorriso; devia ter mudado de ideias em

relação a ser salvo. Tirou o telemóvel do envelope e leu as palavras numa

folha de carta azul-sombrio.

— Diz à Bee que estamos combinados para sábado — disse. —

Agora desaparece antes que alguém me veja a falar contigo, idiota.


32

QUINTA-FEIRA (VERDE-MAÇÃ)

Mais tarde

O meu pai está a perturbar o meu trabalho, toldando as tonalidades

vitais.

Lá em baixo, ele grita palavras cor de ameixa putrefacta para o

telefone. Não pode ser a polícia, porque Laranja de Cromo Oxidado já

se foi embora. Também não é um telefonema de trabalho;

provavelmente, seria despedido se praguejasse com o chefe daquela

forma. Desço mais a escada, tendo o cuidado de evitar o degrau que

chia, rosa-acastanhado.

— Não preciso de outra assistente social, caraças! Não me ajudaram

antes, pois não? Quando eu precisava realmente de vocês. Bom, agora

estamos a safar-nos bem, obrigado por perguntarem. Estou a lidar bem

com a situação. Foi um acidente bizarro que podia ter acontecido com a

porra do filho de qualquer um!

Ele precisa de um puxão de orelhas e de lavar a boca com sabão.

Era o que a avó costumava dizer sempre que ele praguejava à frente

dela.
Retiro-me para a segurança do meu quarto. Tenho de preparar a

minha próxima tela e escolher os tubos certos de acrílico.

Passados uns minutos, ouço amarelo-narciso escuro quando o meu

pai sobe a escada a correr. Para à minha porta, mas não bate.

Passos de pintainho amarelo-claro dirigem-se para a casa de banho.

O chuveiro está a correr.

Cinzento-escuro desfocado e linhas claras e cintilantes.

Eu vi os mesmos tons indistintos na noite da festa de Bee Larkham,

mas não vou pintá-los agora.

Em vez disso, devo misturar a cor de múltiplas ameaças

entrecruzadas.
33

12 DE FEVEREIRO, 19H39

Néons Cintilantes Assediados por Vermelho-Áspero

O meu pai passou exatamente catorze minutos no duche antes da

festa. Saiu da casa de banho a cantarolar baixinho e a cheirar a citrinos.

Disse que era importante fazermos um esforço pelas senhoras, porque

elas apreciam pequenos gestos. Foi por isso que vestiu a sua melhor

camisa azul.

— Não me parece que vás gostar desta noite — disse, apertando os

botões ao espelho do quarto. — Vai ser aborrecido para um miúdo estar

rodeado de adultos a conversar e a beber. Podias ficar em casa e eu

atravesso a rua de vez em quando para ver como estás.

— Posso usar os seus óculos de visão noturna? — perguntei.

— O quê? Em casa?

— Na festa. Bee disse que esta noite não era para si, nem para

nenhum dos vizinhos. Só está a fazê-lo porque as pessoas não a largam

da mão.

— Foi isso que ela te disse?

— E disse que eu podia ficar no quarto dela, a vigiar o carvalho.

Preciso de proteger os periquitos.


— Acho que posso emprestar-tos — disse o meu pai, suspirando. —

Se tem de ser.

Confirmei que tinha de o fazer. Era imperativo. Bee Larkham tinha-

me falado das múltiplas ameaças de morte feitas por David Gilbert.

Tinha de ficar de vigia toda a noite porque ele podia usar o convite para

a festa para lançar um ataque furtivo.

Estaria camuflado atrás das linhas inimigas.

— A Bee disse mesmo isso acerca da festa? — perguntou o meu pai,

enquanto saíamos de casa.

— Ela não quer ser tratada abaixo de cão seja por quem for —

repliquei. — Não vai ficar calada. Quer fazer muito barulho.

— Mais alguma coisa?

Na verdade, muita, mas nada que eu lhe fosse contar.

Depois de lhe ter transmitido a mensagem de Lucas na segunda-feira

à noite, ela tinha-me dado um abraço e observei os periquitos da janela

do seu quarto durante mais quinze minutos e vinte e três segundos do

que o acordado. Ela também me tinha explicado as propriedades das

pedras colocadas entre as senhoras de porcelana: ametista para limpar o

quarto de energias negativas, e turmalina preta para proteção.

— Bee Larkham diz que aguarda com muito mais ansiedade por

amanhã à noite do que por esta festa chata — disse eu, finalmente.

— Porquê? Ela tem namorado? Tem algum encontro amoroso antes

do Dia dos Namorados?

— Oh, não! Não é nada disso. — O meu pai estava completamente

equivocado, como de costume, mas eu não lhe podia contar nada sobre

Lucas Drury.

Sabia que Bee Larkham não ia gostar disso. Ele era o nosso segredo.
David Gilbert tinha acampado na sala de estar de Bee Larkham.

Desconfiava que ela só o tinha convidado para tentar arrancar-lhe

informações sobre os seus planos para os periquitos. Ele já ia no terceiro

copo de vinho tinto e não tinha falado em matá-los. Pelo menos, foi o

que o meu pai disse quando ligou a luz do quarto às 21h43. Pedi-lhe que

a apagasse porque afetava os óculos de visão noturna, mas ele não via

onde punha os pés.

Embora a luz estivesse acesa, tinha dificuldade em andar em linha

reta e bateu na cómoda junto à janela.

— Cuidado — disse eu, apontando para os bibelôs. Bee Larkham

tinha posto a minha cadeira junto à janela, para ter a melhor vista

possível da árvore. — A Bee quer que eu veja as senhoras de porcelana

da janela. Gosta muito delas.

— Dá para ver — disse. — É uma coleção e tanto, para quem gosta

desse tipo de coisas.

— Vai dançar como as senhoras de porcelana?

— O q-q-quê?

— Ao som da música lá em baixo — repliquei. Verde-elétrico

brilhante e violeta. — Está alta, como a Bee gosta.

— Bem podes dizê-lo — murmurou o meu pai. — Não sentes o

chão a vibrar?

— Descalcei os sapatos. As cores néon provocam-me arrepios

agradáveis nas plantas dos pés.

— Para ser sincero, não faço ideia de quem é a maioria das pessoas.

Vou voltar lá para baixo, se me dizes que está tudo bem contigo.

Não precisava do meu pai. Ele estava a distrair-me da a minha vigia.

— Quero apanhar o Ollie — continuou. — Ele ligou para falar com

David. Está num estado deplorável. Provavelmente, esta música não

ajuda. É difícil ser cuidador no final, sobretudo com a idade dele.


Examino os óculos de visão noturna, desejando que ele se vá

embora.

— Jasper? Ouviste o que eu disse?

— É difícil no final. Pode dançar lá em baixo, como as senhoras de

porcelana. Eu não me importo. A Bee gosta tanto de dançar como dos

seus bibelôs.

Ele suspirou brumas de ocre-acastanhado claro.

— Não tardo a vir buscar-te.

A porta fechou-se atrás dele com um som de manchas cor de trigo.

Não pousei os óculos quando ela se voltou a abrir passados quatro

minutos. A luz não chegou a acender-se, mas os passos pintaram riscas

amarelo-escuras nas tábuas do soalho. As cores pararam perto das

senhoras de porcelana e dos cristais.

— Desculpe. Pensei que era a casa de banho. — Uma voz vermelha,

grave e áspera, com uma leve bruma desértica.

— Está enganado. Vá-se embora, por favor.

Não me dei ao trabalho de olhar para trás porque os passos riscados

retiraram-se. Também não foram para a casa de banho. Não vi a cor da

descarga do autoclismo do outro lado do corredor. A pessoa devia ter

voltado a descer para se juntar à festa.

Conseguia sentir o cheiro a fumo de cigarro. Tinha subido a escada,

juntamente com os tubos verde-néon. Não queria deixar-me sozinho no

quarto de Bee Larkham; os vapores pensavam que eu queria companhia

e agarraram-se ao mal-amado papel de parede, a descolar-se.

A minha mãe nunca fumou e mesmo assim morreu de cancro do

pulmão.

A vida é injusta, dissera a minha avó. Podem acontecer coisas

horríveis às melhores pessoas.


Tinha razão, como de costume. Não há um dia em que não deseje

que não tivesse.

O meu pai nunca chegou a vir buscar-me; tive de o encontrar entre

dúzias de desconhecidos. Eram 23h43. Doíam-me as pálpebras, mas não

queria dormir na cama de Bee Larkham. Isso seria indelicado.

Não tinha visto os periquitos toda a noite, como é óbvio, mas era

importante estar de sentinela. Os pássaros estavam em segurança nos

seus ninhos, longe de David Gilbert. Ninguém se tinha aproximado do

carvalho, embora cinco pessoas tivessem passado por ele ao sair.

Entraram em portas que ficavam mais para cima e mais para baixo na

rua: 25, 24, 17 e 13. Calculei que a festa estivesse perto do fim; a música

não ia produzir cores néon durante muito mais tempo.

Um homem que não reconheci precipitou-se na minha direção, à

entrada.

— Desculpe — disse eu automaticamente.

Cheirava a cigarros e a cerveja. Ele disse «olá» e «adeus», e eu repeti

as palavras pela mesma ordem, enquanto ele saía de casa, para o caso de

nos conhecermos. Duvidava. Tinha ténis brancos gastos e uma voz

avermelhada e rouca.

Chamei pelo meu pai na cozinha. Houve dois homens num grupo de

seis que se viraram, mas ninguém veio ter comigo. Calculei que não

estivesse ali. A sala de estar, que criava todas as cores musicais, era uma

aposta mais segura.

Uma mulher com cabelo louro comprido dançava no centro da sala,

segurando um copo de líquido amarelo. Usava um vestido preto curto, o

que não ajudava muito — havia imensas mulheres vestidas de preto

espalhadas pela sala. Examinei as andorinhas de prata que enfeitavam as


orelhas da dançarina. Tinha de ser Bee Larkham, a não ser que ela

tivesse emprestado as suas joias a outra pessoa. Uma mulher com cabelo

ruivo e curto e um vestido verde dançava à volta dela, segurando-lhe a

mão.

A divisão cheirava a fumo e tinha agora um grande sofá azul-real e

cadeiras. Devia ter sido outra entrega, enquanto eu estava na escola,

porque não tinha dado pelas cores do camião a chegar. Havia homens e

mulheres espalhados entre a mobília e encostados à parede, mas não

olharam para mim. Estavam de olhos postos nas mulheres que

dançavam, enquanto fumavam cigarros que causavam cancro.

— Bee Larkham — gritei para me sobrepor à música, em direção à

mulher com mais probabilidades de ser a minha vizinha e amiga. — Viu

o meu pai?

— O Eddie está ali. — A mulher loura apontou, a rir. — Passaste

mesmo por ele, seu cabeça no ar!

Segui a direção do seu dedo. Um homem de camisa azul estava

afundado no sofá, com uma lata de cerveja equilibrada na entrepernas

das calças de ganga.

— Jasper! — Tentou pôr-se em pé, mas voltou a cair em cima das

almofadas. A camisa parecia a mesma que o meu pai tinha passado três

minutos a admirar ao espelho antes de sairmos de casa, só que esta tinha

uma mancha molhada onde o líquido se entornara.

— Alguém está em mau estado. — Uma voz grave, bordeaux turvo,

soltou um riso abafado. Vinha do homem sentado em frente, que

segurava um copo de vinho. O seu pulôver azul-marinho tinha um

padrão de losangos.

— Tenho de levar o Jasper para casa — disse o homem que estava no

sofá. A sua voz era ocre-baça. — É tarde. Estás pronto para ir, filho?
Enrolei a fita à volta dos óculos de visão noturna, como o meu pai

fazia, para lhe agradecer por me ter ajudado a confirmar a sua identidade

sem me envergonhar.

— Ele está com um ar estafado. Também tenho de ir andando, Ed.

Fiquei mais tempo do que pretendia. Saio convosco, se não se importam.

— O homem do pulôver com losangos levantou-se, cambaleante. —

Ups! Sou capaz de ter bebido uns copos a mais. Há álcool a rodos, esta

noite.

— Pode agarrar-se a mim, se quiser — disse o pai. — Creio que

estou relativamente sóbrio. Relativamente.

— O quê? Não se podem ir embora já. A festa ainda agora começou!

— Bee rodopiava sem parar, entornando o vinho. — Não seja um

desmancha-prazeres, Eddie.

— Peço desculpa, mas tenho de ir. O Jasper precisa de se ir deitar.

— Oh, que pena! Esperava que ficasse para uma última bebida.

— Gostava de ficar. Gostava muito, mas sabe…

— Não se preocupe, Bee Larkham — disse eu. — Não creio que seja

necessário alguém continuar levantado. Os periquitos estarão em

segurança esta noite. Tenho estado de sentinela o tempo todo. David

Gilbert não chegou perto dos ninhos durante toda a noite.

— Ah! Isso é porque não consigo v-v-ver essas pestinhas à noite —

disse o homem ao meu lado, arrastando a fala em pedaços de gravilha

bordeaux. — Espera até de manhã quando eu conseguir vê-los melhor.

Não vou falhar. S-s-sou um excelente atirador.

Recuei um passo. Nem pensar. O homem com o pulôver de losangos

que o meu pai se oferecera para ajudar a levantar da cadeira não era

outro senão o assassino de pássaros, David Gilbert. Tinha conseguido

fintar o meu sistema de identificação; não vestia calças de bombazina

vermelho-cereja e não trazia o Batatas Fritas Amarelas com ele. A sua


voz enganara-me ao passar de vermelho-baço granuloso para bordeaux

turvo, provavelmente por ter estado a beber. Ainda mais confuso era o

facto de eu ter falado com alguém com uma voz de cor semelhante no

hall.

Bee estava enganada — convidá-lo para ir ali não nos ia ajudar. Fora

um grande erro. Ele tinha aproveitado a oportunidade para fazer o

reconhecimento do local onde se encontravam os periquitos.

— O David está a brincar — disse o meu pai. — Não faças caso

dele, Jasper. Ele não está a falar a sério.

Cravo as unhas na palma da mão, mas isso não me impede de

começar a balouçar-me nos calcanhares.

— Eu estou a falar a sério — ripostou David Gilbert. — Ele pode

dizer isso à polícia, se quiser. Outra vez.

— Por favor, não faça isso, David — disse o meu pai. — Está a

enervá-lo.

— Sim, acalme-se! — gritou Bee. — Isto é uma festa, lembra-se,

David? Estamos a tentar divertir-nos.

— Estamos? Não sei bem o porquê desta festa. — David Gilbert

pousou o copo de vinho com força, fazendo-o entornar-se, e cambaleou

em direção a Bee. — Desculpa. Já o disse antes e volto a repetir: aqueles

pássaros são uma grande maçada. Tens de fazer alguma coisa em relação

a isso agora. Vão começar a aparecer para comer cada vez mais cedo,

assim que as manhãs ficarem mais claras.

— Adoro o som que eles fazem — replicou Bee —, o que significa

que não tenho de fazer nada.

— É injusto para os teus vizinhos, sobretudo para a mãe de Ollie, no

tempo que lhe resta — continuou David. — E o mesmo se aplica à tua

música e bricolage a todas as horas. O Ollie diz que tem de bater na

parede porque o barulho constante está a torturá-la nas suas últimas


semanas de vida. Não percebes o que estás a fazer àquele homem e à sua

pobre mãe?

— Percebo que está a interferir em coisas que não lhe dizem respeito

— disse ela. — Esta é a minha casa. Faço aquilo que quiser.

— É a casa da tua mãe, Beatrice. Vim cá visitá-la muitas vezes

desde que me davas pelo joelho. Pauline era uma boa amiga minha,

assim como de Lily. Sei que ela ia ficar envergonhada pela forma como

te comportas e pelo que estás a fazer à Lily.

— O senhor nunca foi meu amigo — gritou Bee. — Nunca! Nem

quando eu era criança, nem agora. O Eddie tem razão. Está na altura de

se ir embora. Voltou a passar dos limites.

E dirigiu-lhe um palavrão putrefacto.

Cerrei os punhos com força. David Gilbert não se mexeu. Tinha

voltado a ameaçar os periquitos e não dava ouvidos a Bee Larkham nem

ao meu pai.

— Ouviu o que Bee Larkham disse! — berrei. — Vá para casa,

David Gilbert, e não volte. Os cigarros são a causa de cem mil mortes

por ano no Reino Unido. Espero que morra de cancro. Espero que morra

em breve. Vai ser o meu desejo de aniversário este ano. Odeio-o!

— Jasper! Basta! Vamos embora.

O meu pai agarrou-me pelo braço e puxou.

Gritei-lhe grandes nuvens azul-esverdeadas com superfícies

irregulares, mas ele não me largou. Atirei os óculos ao chão, fazendo um

som castanho-avermelhado com nós pretos nas tábuas do soalho.

— Não! — berrou o meu pai.

O verde-vivo e o roxo desapareceram quando a música parou. Bee

não estava a dançar. Pousou o seu copo ao lado do iPod e veio ter

connosco. Baixando-se, apanhou os óculos e entregou-os ao meu pai.


— Obrigada por me defenderes, Jasper. Nunca ninguém fez isso por

mim, nunca ninguém me tinha defendido. — Virou-se para David

Gilbert. — Saia da minha casa, seu hipócrita detestável!

Bee Larkham estendeu os braços em direção a mim e ao meu pai.

Quereria tocar-me? Abraçar-me? Manifestar a sua solidariedade em

relação a mim?

Não esperei para descobrir. Fugi de casa dela para escapar às garras

de David Gilbert.

O meu pai atravessou a estrada atrás de mim e seguiu-me até

entrarmos em casa. Não disse nada até eu sair da casa de banho, depois

de escovar os dentes e de vestir o pijama.

— Tu não podes dizer aquelas coisas às pessoas. Sobre morrerem de

cancro. Mesmo que não gostes delas. Não podes. Está bem? Amanhã,

vais ter de pedir desculpa ao David. Vou ter de te levar lá. Não podes

dizer às pessoas que esperas que morram.

Ele tinha-se repetido. Eu não estava arrependido. Esperava mesmo

que David Gilbert morresse de cancro. Pronto. Agora fora eu a repetir-

me e não tinha bebido uma única cerveja, ao contrário dele.

— O Ollie Watkins vai pedir desculpa por bater na parede de Bee

Larkham? — perguntei. — Porque isso é indelicado. Aposto que Bee

respondeu na mesma moeda. Seria o que eu faria se alguém batesse na

minha parede.

— Estás a mudar de assunto. Isso é uma coisa completamente

diferente. A mãe de Ollie está a morrer de cancro e ambos querem ter

alguma paz e sossego nos últimos meses ou semanas que irão passar

juntos.
— Também é isso que eu quero. Paz e sossego. Vá-se embora, por

favor.

Fechei a porta do meu quarto e encostei-me a ela, porque não queria

que o meu pai entrasse e repetisse tudo outra vez. Tinha de ligar o

despertador, embora amanhã fosse sábado.

David Gilbert planeava matar os periquitos de manhã, provavelmente

quando eles se juntassem para comer. Eu ia ligar para o 112 antes que

ele tivesse oportunidade de sair de casa com a sua caçadeira. A polícia

tinha de apanhá-lo em flagrante. Desta vez, iam acreditar em mim e

armar-lhe uma emboscada.

Envolvi-me no edredão. A minha cabeça zunia, mantendo-me

acordado, mas sentia as pálpebras a ficarem pesadas. Vi a cor da

televisão lá em baixo e o som branco-prateado de garrafas de cerveja a

tilintar quando o meu pai abriu o frigorífico. As suas cores apareciam

em segundo plano, porque tubos cintilantes amarelos, azuis e verdes

continuavam a sair da casa de Bee Larkham.

Ao adormecer, pareceu-me ver outra coisa por baixo da música:

Círculos castanho-claros.

Devia estar enganado. Não podia ter sido a porta da rua a abrir-se e a

fechar-se porque a televisão continuava a zumbir linhas pretas com fios

cinzentos e irregulares.

O meu pai não ia deixar-me sozinho à noite. Eu costumava ter

pesadelos em que acordava na nossa antiga casa em Plymouth e

descobria que estava sozinho. A minha mãe disse que isso nunca iria

acontecer.

Deixar-me sozinho teria todas as tonalidades associadas a algo de

errado.
34

SEXTA-FEIRA (ANIL)

Manhã

Os astronautas chegaram à rua ontem à noite, às 20h02. Vestiam

fatos brancos que lhes cobriam o corpo inteiro, da cabeça aos pés,

quando entraram no número 20 de Vincent Gardens. Ficaram lá até à

meia-noite e depois deixaram dois agentes num carro.

Oito horas e quarenta e dois minutos mais tarde, as pessoas com fato

de astronauta regressaram a casa de Bee Larkham, e Shona, uma

assistente social, apareceu na nossa. As duas chegadas não podem ser

uma coincidência; as suas cores têm praticamente as mesmas

tonalidades.

Shona tinha uma voz cinzenta e rouca porque tinha a garganta

inflamada. Expliquei-lhe que as suas cores seriam completamente

diferentes se ela não estivesse doente, porque as vozes podem mudar

drasticamente com isso. Discutimos qual cor poderia ser e eu escolhi o

verde. Não sabia dizer ao certo qual o tom, talvez feto ou carro de

corrida.

— Posso contar-te um segredo? — sussurrou. — Gostava que fosse

escarlate-vivo. É a minha cor preferida.


— Está a ser tonta — repliquei. — Os sussurros não podem ser

escarlate-vivo. São sempre linhas brancas ou cinzentas em movimento,

que escondem a verdadeira cor.

A seguir, disse-lhe que ela precisava de usar luvas se queria ver a

minha barriga e, provavelmente, também tinha de usar uma máscara na

boca para que eu não ficasse infetado com os seus germes. Shona pediu

desculpa e disse que não tinha nenhuma. Tossiu muito e fez-me imensas

perguntas sobre as idas ao médico de clínica geral e a frequência com

que o meu pai me deixava sozinho em casa.

Eu disse «uma vez», porque essa era a verdade relativa ao dia

anterior.

Falámos do buraco na minha barriga. Inicialmente, Shona queria que

eu brincasse com uma boneca, para reconstituir a forma como me tinha

magoado, mas desistiu porque eu não conseguia parar de rir.

Tenho treze anos, não três.

Cingi-me às deixas que o meu pai me tinha dado antes de ela chegar.

Creio que fiz um bom trabalho. Não me desviei do guião.

Estava a brincar com uma faca na cozinha, na nossa cozinha,

quando ela me resvalou da mão e me cortou. De início, não contei ao

meu pai porque não queria metê-lo em sarilhos. Encobri o sucedido e

fingi que não se tinha passado nada. O meu pai tinha-me dito centenas

de vezes para não brincar com facas.

Isto não era uma total mentira, uma vez que o meu pai me tinha dito

para não brincar com facas, e Shona pareceu contentar-se com os setenta

e cinco por cento da verdade. Creio que só tinha tempo para isso. Ainda

tinha de visitar outro rapaz cuja família tinha «problemas complexos».

Foi-se embora há dez minutos, depois de prometer voltar a visitar-me

em breve.
O meu pai tem estado à janela da sala desde então. Deve querer ter a

certeza de que ela se foi mesmo embora.

— A equipa forense está a demorar uma eternidade em casa de Bee

— acaba por dizer. — Com certeza, devem estar quase a ir embora, não?

Saio da sala e subo para o meu quarto, sem responder. Preciso de

examinar as minhas pinturas de periquitos, enquanto ainda tenho essa

oportunidade. Os astronautas não vão sair do número 20 de Vincent

Gardens até encontrarem o que querem: provas do meu crime.

Eles não são parvos como Laranja de Cromo Oxidado.

Vão encontrá-las em breve. Ambos sabemos disso.

É só uma questão de tempo.


35

13 DE FEVEREIRO, 8H22

Periquitos Agitados em papel

Catorze periquitos levantaram voo dos comedouros no carvalho com

pios de reprovação face aos sons verdes dos estilhaços.

Era a manhã a seguir à festa e uma mulher de cabelo louro e

comprido tinha atirado garrafas de vinho e cerveja vazias para dentro do

contentor que estava à porta do número 20. Eu parei de pintar e fui até

ao outro lado da rua. Murmurei um «bom dia» aos periquitos enquanto

me aproximava.

— Como é que está o teu pai esta manhã, Jasper? — perguntou ela,

enfiando as mãos no saco. — Pareceu-me que gostou da minha festa.

— Está na cama, Bee Larkham. Está com dores de cabeça.

— Já imaginava. — Riu fitas de azul-celeste.

— Denunciei David Gilbert à polícia às seis horas e cinquenta e dois

minutos. Não tenho a certeza se vão fazer alguma coisa em relação a ele.

Ainda não apareceram.

— A polícia nunca aparece quando é precisa — replicou ela

baixinho. — Nunca serve de muito, mas obrigada por tentares.

— O que é que vamos fazer? — perguntei.


— Podes começar por me ajudar a arrumar as coisas, se não te

importas. Tenho de ter tudo em ordem antes de anoitecer.

Eu estava a falar de David Gilbert, mas não fazia mal. Talvez ela

quisesse falar dele dentro de casa, onde tínhamos mais privacidade.

— Quer ter tudo em ordem antes de Lucas Drury aparecer —

especifiquei.

— Sim, antes disso. — Bee atirou outra garrafa para dentro do

contentor. Não falou durante um minuto e onze segundos porque estava

concentrada no seu objetivo.

— Jasper, sabes que não podes contar a ninguém sobre o Lucas, não

sabes? Nem na escola nem a ninguém desta rua. Nem sequer ao teu pai.

Sobretudo ao teu pai.

— Está bem. Mas, provavelmente, o meu pai ia compreender porque

é que quer salvar o Lucas. Ele esteve nos Royal Marines e salvou a vida

a muita gente antes de ter de se vir embora.

— E, provavelmente, também matou muita gente.

Nunca tinha pensado nisso. Não queria fazê-lo. A morte assustava-

me. Tal como o meu pai, às vezes.

— Desculpa. Não devia ter dito isso. Estou a ser uma autêntica

bruxa, esta manhã. Não estou em mim depois daquela discussão com

David. Já tomaste o pequeno-almoço?

— Ainda não. O meu pai não está levantado.

— Entra — disse ela. — Eu trato de ti. Vamos brincar às famílias

felizes e fingir que somos mãe e filho. Ias gostar disso, não ias, Jasper?

Mexi a cabeça para cima e para baixo, o padrão de um gesto

afirmativo.

— Ótimo. Vamos falar sobre David e os periquitos e posso mostrar-

te os novos cristais que comprei. Como este. — Tirou de debaixo da

camisola um fio de prata comprido. Preso a uma ponta, estava uma


pedra tubular preta. — A obsidiana é uma das pedras de proteção mais

fortes do mundo, Jasper. — Aproximou-se mais de mim. — O que

significa que já não precisamos de ter medo de nada.

Os cereais de Bee Larkham não eram os mesmos que eu costumava

comer, por isso fingi que não estava com fome, pois não queria magoá-

la. Ela deu-me um saco do lixo e luvas e eu andei pelo rés do chão, a

ajudar a apanhar latas e beatas de cigarro. Quando acabei, fui direito ao

quarto dela, que era o meu lugar favorito naquela casa.

Bee não tinha tido tempo de fazer a cama. O edredão estava puxado

para trás e, debaixo da almofada, as orelhas de um coelho branco saíam

do canto de um caderno de apontamentos azul-aço. Não lhe toquei

porque era pessoal. Eu também guardava os meus cadernos de

apontamentos ao pé da cama e não gostava que o meu pai os abrisse.

Ao lado da cama, estava uma pedra pequena e transparente e

invólucros de guloseimas. Atirei o lixo para dentro do saco e avistei uma

lata de cerveja no canto, mas o som dos periquitos atraiu-me para o pé

da janela.

Oh! Porque é que não tinha trazido os binóculos comigo? Jurei

trazê-los sempre comigo.

Formas alongadas de um castanho-avermelhado escuro.

Alguém estava a bater à porta. Não consegui ver quem era quando

olhei diretamente lá para baixo, nem mesmo quando encostei o corpo ao

vidro. Bee parou com as espirais cinzentas e brancas do aspirador e

abriu a porta.

Dois periquitos saíram do buraco e foram ter com os amigos, num

ponto mais alto da árvore.


De início, não ouvia o que estavam a dizer lá em baixo. Os pássaros

zangados gritavam verde-glacial e vidro amarelo uns aos outros,

distraindo-me.

A voz de Bee ecoou, azul-celeste luminoso com pontinhos brancos:

— Não!

Estaria David Gilbert de volta? Fui ao bolso para tirar o telemóvel.

Não estava lá. Tinha-o deixado em casa. Corri até à ponta do patamar,

de punhos cerrados. Desta vez, não agarrei numa das senhoras de

porcelana porque sabia o quanto significavam para Bee.

— Não vou mudar de ideias — disse ela. — A resposta é não.

Uma voz — esbranquiçada com linhas trémulas quase translúcidas e

uma tonalidade vermelho-clara — murmurou suavemente:

— Por favor.

David Gilbert devia ter querido que Bee aceitasse as suas desculpas

relativamente à noite anterior, porque é indelicado perturbar a anfitriã.

Não ouvi o que mais ele disse, mas ainda a enervou mais.

— Não quero as suas flores! Como se isso resolvesse tudo!

Fiquei orgulhoso de Bee, da forma como enfrentou o perigoso

assassino de pássaros. Não parecia precisar da minha ajuda.

O homem murmurou outro conjunto de linhas vacilantes e brancas,

com rebordos avermelhados.

— Pare de vir aqui! — disse ela. — Caso contrário, chamo a polícia.

E vou contar-lhes tudo. Vou dar-lhes o meu diário. Estou a falar a sério.

É um registo de tudo o que aconteceu.

Não fazia ideia de que ela também tinha um registo dos movimentos

de David Gilbert.

Aplaudi vigorosamente quando fechou a porta com estrondo.

Castanho-escuro com preto no meio.


Bee subiu a escada a correr, passou por mim e entrou no quarto, sem

dizer uma palavra. Segui-a enquanto abria a janela e se debruçava. Não

queria que eu a visse chorar.

— Não se preocupe, Bee Larkham — disse. — A polícia vai dar-lhe

ouvidos, se o denunciar. Se lhes der o seu diário, isso vai ajudar o nosso

caso contra ele. Vão ter mais em conta os seus registos do que os meus

cadernos de apontamentos, porque eu sou apenas um miúdo e não

acreditam em mim.

Bee virou-se. Agarrou numa das senhoras de porcelana que estava

em cima da cómoda. A mulher segurava firmemente uma sombrinha.

— De que caso estás tu a falar, Jasper?

— Das ameaças de David Gilbert de que ia matar os periquitos —

repliquei.

— Ah, isso.

A sua mão deve ter afrouxado acidentalmente quando voltou a

debruçar-se à janela. Ouvi centenas de pequenos tubos branco-prateados

quando a estatueta se partiu lá em baixo, no chão.

— Lamento — disse.

— Não lamentes — replicou. — Não és a pessoa que vai lamentar e

muito.

Mais tarde, nessa noite, tentei consertar o bibelô. Tinha ido ao

jardim e apanhado o maior número de fragmentos possível. Queria

devolvê-lo, para que Bee Larkham o voltasse a pôr à janela, mas não

consegui encontrar todos os bocados da sombrinha e do vestido. Tinham

ficado reduzidos a pó.

Fiquei demasiado envergonhado com a colagem defeituosa, o rosto

estalado da senhora e o vestido e sombrinha estragados para lha


devolver. Pu-la debaixo da cama porque não queria deixar Bee Larkham

aborrecida. Queria protegê-la da verdade:

Há coisas que são demasiado frágeis para este mundo. É impossível

consertá-las.
36

SEXTA-FEIRA (ANIL)

Ainda nessa manhã

Espalho todas as minhas pinturas de periquitos sobre o tapete e

comparo-as com os meus cadernos de apontamentos. Consigo detetar

um padrão em que nunca tinha reparado. Sempre que deixava um dos

envelopes de Bee Larkham na gaveta do laboratório de ciências, passava

uma hora no quarto dela, depois da escola, o que mais tarde dava origem

a três pinturas e, às vezes, a cinco ou seis.

Tive sorte em Bee ter continuado a escrever bilhetes, quando podia

enviar mensagens a Lucas pelo telemóvel que eu lhe tinha entregado. Ela

disse-me que gostava de comunicar à moda antiga, que era mais pessoal.

Além disso, Lucas precisava desesperadamente de coisas que só podiam

ser postas dentro de envelopes: dinheiro, jogos da Xbox e até cigarros

para o animar.

Salvar Lucas Drury para o matar com cigarros que provocavam

cancro parecia-me um plano estúpido. Alinhei porque calculava que o

primeiro periquito bebé nascesse por volta de 27 de fevereiro. Semanas

depois disso, era capaz de os vislumbrar pela primeira vez,

provavelmente lá para o final de março.


Eu tinha de pintar as cores dos seus primeiros chilreios.

Tinha deixado de me preocupar com o facto de levar os bilhetinhos e

pequenos pacotes devido à nossa rotina. Entregava um envelope de Bee

Larkham a Lucas Drury na segunda-feira, à hora de almoço, e à quarta

de manhã ia ver se havia lá alguma coisa de Lucas Drury para levar a

Bee Larkham. Nove em cada dez vezes, não havia, mas eu gostava de ser

minucioso.

Este calendário regular ajudava-me a pintar quadros melhores porque

via as cores dos trinados dos periquitos adultos mais de perto, do quarto

de Bee Larkham; superavam as tonalidades mais esbatidas que via do

outro lado da rua.

Por algum motivo, não tinha registado nos meus cadernos de

apontamentos todos os pormenores relativos às visitas com a finalidade

de observar os pássaros — as perguntas que o meu pai me fazia sempre

que eu voltava da casa de Bee, como por exemplo:

Como está a Bee? Não está doente.

O que anda ela a tramar ultimamente? Não compreendo a pergunta.

Alguma vez fala em mim? Não.

Estas são outras coisas que recordo das visitas ao quarto dela e que

não têm que ver com os periquitos:

1. Invólucros de guloseimas.

Havia uns cor de orquídea púrpura, prata e safira ao lado da

cama.

2. O caderno de apontamentos azul-aço com o coelho branco na

capa.
Estava sempre por perto — em cima da mesa, no chão ou

meio tapado por uma almofada.

3. O cartão da biblioteca de Lucas Drury.

Encontrei-o em cima da mesa de cabeceira. Bee Larkham

devia tê-lo pedido emprestado por estar demasiado ocupada

para pedir um para si.

4. As senhoras de porcelana.

À medida que a minha coleção de quadros de periquitos ia

aumentando, o número de senhoras de porcelana ia

diminuindo. Os periquitos e os bibelôs não conseguiam viver

lado a lado. Não se davam bem.

Mais tarde, percebi que Bee Larkham estava a ficar cada vez mais

desastrada. Ia deixando cair as senhoras de porcelana da janela do

quarto, uma por uma. Sempre que encontrava um bibelô partido no seu

jardim, não tentava colá-lo. Apanhava os fragmentos e deitava-os fora,

antes que ela tivesse de voltar a ver os rostos desfigurados.

Creio que ficava satisfeita por ajudá-la a livrar-se das provas.

Bee nunca me perguntou o que fazia com os corpos decapitados.

Não tinha saudades deles. Nenhumas.


37

12 DE MARÇO, 14H23

Periquitos a Alimentar as Crias em tela

Os periquitos andavam numa roda-viva há semanas, entre o buraco

na árvore, os comedouros e o beiral há semanas, mas eu não tinha

conseguido vislumbrar aquilo de que tinha a certeza: devia haver crias

dentro dos ninhos.

Possivelmente, uma ou duas por família, o que quer dizer que seis

ninhadas podiam estar escondidas no interior da árvore.

Os periquitos adultos tinham-se recusado a deixar-se intimidar por

David Gilbert e tinham ficado para se reproduzir, da mesma forma

corajosa como Bee Larkham o enfrentara. Ela disse que não estava

preocupada com o facto de ele ter requerido à câmara municipal uma

ordem de diminuição do ruído contra ela. Tinha-o invetivado com um

palavrão cor de tangerina podre quando ele a informou.

Bee estava a olhar pela janela ao meu lado e tirou fotografias com o

telemóvel de dois periquitos adultos a espreitar pelo buraco e uma de um

único periquito a arranjar as penas com o bico e a limpar as patas.

— O tonto do Lucas perdeu o telemóvel que eu lhe dei — disse. —

Vou ter de correr o risco e marcar estas fotos para ele ver no Facebook,
porque este fim de semana vai estar ocupado com o torneio de futebol.

Vai adorá-las. Eles são tão fofos!

— Já está quase a acabar de salvá-lo? — perguntei.

Tinha medo da resposta, medo de que Bee já não precisasse de mim

para entregar as suas mensagens. Ela podia deixar de me conceder

tempo para observar os pássaros da janela do seu quarto num período

crucial. Pelos meus cálculos, as ninhadas mais velhas tinham apenas

duas semanas, pelo que ainda eram demasiado jovens para pôr a cabeça

de fora do buraco.

Eu precisava de mais tempo.

— Sinceramente, não sei — disse Bee. — É uma perfeita loucura,

mas parece que não consigo parar, sabes?

Sim, eu sabia.

Uma pequena parte de mim — cinco por cento — desejava que ela

parasse, porque não gostava do que ela dizia sobre Lucas Drury.

Também não confiava nele. Porque é que ele se deixava distrair por

torneios de futebol, em vez de se concentrar em ser salvo por Bee

Larkham? Os restantes noventa e cinco por cento queriam que aquela

situação se prolongasse. Pelo menos, até eu ver a cor cores dos primeiros

chilreios dos periquitos bebés e até eles aprenderem a voar.

— Não deve parar — disse-lhe. — Devemos manter o plano

original, aconteça o que acontecer.

Nessa noite, 20h45

Traça Esmagada e Círculos Cor de Tangerina em papel

Algumas pessoas não acham importante manter-se fiéis aos planos.

Rasgam-nos e espalham os bocadinhos à sua volta para os outros os


apanharem como se fosse lixo, porque são egoístas e não se preocupam

com as consequências.

Também deambulam pelo exterior das casas às escuras, com bonés

de basebol bem descidos sobre o rosto para o ocultar.

Interrompo a minha observação dos beirais com os binóculos e

aponto-os para um vulto que está lá fora, junto à parede da casa de Bee

Larkham. Não estava vestido como David Gilbert e não tinha um cão

com ele, mas olhava fixamente para o carvalho. Isto fez dele um suspeito

e possivelmente uma ameaça para os periquitos.

Registei o facto no meu caderno de apontamentos e anotei a data.

A casa de Bee Larkham estava envolta na escuridão, tirando a janela

do quarto lá em cima, onde havia um candeeiro ligado. As cortinas

estavam fechadas.

A pessoa — um «ele» — mexeu em alguma coisa que tinha no

bolso. Estaria à procura de uma arma? Agarrei no telemóvel e desci a

escada a correr, enquanto o meu pai conversava com alguém ao

telemóvel na casa de banho. Quando cheguei à porta da frente, o vulto já

tinha entrado na viela.

Saí de casa a correr.

Seria David Gilbert disfarçado? Teria levado a cabo alguma missão

de reconhecimento para espiar os periquitos e estaria agora de regresso a

casa pela viela e quintal de modo a despistar-me?

Ao dobrar a esquina, ofeguei espirais azul-frio. O portão de Bee

Larkham estava aberto. Movi-me rapidamente pela viela, trepando por

cima de tralha dispersa. Um vulto estava inclinado sobre a estátua do

flamingo junto à porta das traseiras quando tropecei no portão. A pessoa

endireitou-se, segurando a chave escondida.

— Ponha isso no sítio! — exclamei em voz alta. — Isso não lhe

pertence.
Os meus dedos já tinham marcado o 112 no meu telemóvel. Estava

pronto para premir «Chamar».

A silhueta com o boné de basebol azul-escuro virou-se.

— Caramba! Pregaste-me um susto de morte, Jasper.

Ele conhecia-me e tinha uma voz verde-azulada. Só tinha conhecido

uma pessoa recentemente com essa cor de voz: Lucas Drury.

Porém, ele não devia estar ali, mas num torneio de futebol. Fora o

que Bee dissera quando discutimos os planos dele para o fim de semana.

— Andas a espiar-me, Jasper? Com os teus binóculos?

— Não, Lucas Drury — repliquei, segurando a fita dos binóculos

com mais força.

— Tu não me viste aqui, está bem? — Destrancou a porta das

traseiras e pôs a chave no bolso.

O meu palpite em relação à sua identidade estava correto porque ele

não me deu outro nome, mas mesmo assim algo não me parecia bem.

Talvez o torneio tivesse sido cancelado no último minuto. Ou ele não

tivesse ido, deixando os organizadores na mão. Aquilo atingiu-me como

o tipo de coisas Lucas Drury faria. Ele não se importaria de mudar os

planos das outras pessoas sem pedir permissão.

Aproximei-me mais. O boné de basebol era na verdade azul-marinho

desbotado, com as iniciais NYY num anil mais carregado, que quase

passava despercebido no algodão.

— New York Yankees — exclamei.

— O quê?

— O teu boné. Devias voltar a pôr isso no lugar.

Lucas Drury puxou mais o boné sobre a cara.

— É do meu pai. Trouxe-o emprestado.

— Eu estava a falar da chave — esclareci. — Devia estar por baixo

da estátua do flamingo. Tens de a pôr no lugar.


— Hum, está bem. Obrigado. — Inclinou-se e deslocou a estátua. —

Agora desaparece, Jasper.

— Tens um encontro com a Bee? — perguntei.

— O quê? Não exatamente. É uma visita-surpresa, mas ela não me

vai mandar embora. Ela disse que posso usar a chave sobresselente

sempre que queira. — Ele inspirou uma névoa sombria de verde-azulada

ao abrir a porta. — Esquece que te disse isto, Jasper. Não deves falar

sobre isto na escola, está bem? Ou em qualquer outro lugar. Isto é um

assunto particular entre mim e Bee.

Mexi a cabeça para cima e para baixo. Esperava que Bee Larkham

viesse à porta e pudéssemos falar. Ia perguntar-lhe porque é que tinha

contado a Lucas Drury onde ficava o esconderijo da chave.

Pensava que era um segredo nosso, uma das coisas que tornavam a

nossa amizade tão especial. Não queria partilhar esse laço com Lucas

Drury, mas não podia intrometer-me na missão de salvamento de Bee

Larkham.

— Não vou contar a ninguém sobre a tua visita-surpresa, Lucas

Drury — confirmei.

O olho esquerdo dele abriu-se e fechou-se quando ele entrou. Ele

não chamou Bee quando fechou a porta e se entranhou na casa às

escuras.

Regressei a casa e vigiei o carvalho com os meus binóculos até

depois da meia-noite. Ninguém saiu do número 20 de Vincent Gardens

nem da viela. A operação especial de Bee Larkham para salvar Lucas

Drury prolongou-se pela noite dentro, acompanhada por círculos de

traça esmagada e cor de tangerina da música que tocava no quarto.

Pensei que aquelas cores eram más, mas pior era terem voltado doze

dias depois.
Eu veria uma tonalidade e uma forma que obliteraram a maioria das

pinceladas dadas antes e depois e que quase me destruíram.

Linhas curtas de preto com sombras laranja-sanguíneas.


38

24 DE MARÇO, 19H02

A Morte em papel

O meu pai tinha-me levado à cidade depois da escola, para comprar

ténis, e tínhamos lanchado numa pizaria nova. Ele tinha passado quatro

dias a preparar-me para esta expedição, mostrando-me fotografias do

restaurante e da sapataria nos mapas do Google, para evitar surpresas

desagradáveis.

Quando parámos o carro à porta de nossa casa, o telemóvel do meu

pai tocou e ele teve de atender um telefonema de trabalho. Correu para

dentro de casa, mas eu deixei-me ficar para trás.

Tive imediatamente a sensação de que as cores estavam erradas,

horrivelmente erradas. Os periquitos gritavam e grasnavam, a pedir

ajuda. Atravessei a estrada a correr, esquecendo-me de olhar primeiro.

Um carro buzinou estrelas deformadas de um vermelho-carregado.

Ignorei-o. Os pássaros voavam da árvore para o chão e novamente para a

árvore, gritando e gemendo tonalidades mais vibrantes e dolorosas.

Vi a trouxinha minúscula de penas verdes, ao aproximar-me.

— Não! — gritei num azul acre e agudo.

Uma cacofonia de cores atrozes e vulgares ecoou pela rua.


Peguei no periquito bebé e segurei-o com cuidado nas mãos.

O pássaro estava frio, com minúsculas gotas de sangue espalhadas

pelo peito macio. Tinha caído do ninho e morrido antes que eu pudesse

ajudá-lo.

A soluçar, bati à porta. Bee Larkham tinha de saber a má notícia por

mim, e não por outra pessoa. Tinha a certeza de que ela estava em casa.

Fitas alegres de música salmão e rosa ratinho de açúcar ganhavam cores

cada vez mais arrojadas por trás das cortinas da janela do quarto.

Os lindos fios de cor entrelaçados tinham-na distraído, caso

contrário teria aberto a porta. Dei a volta pelas traseiras e entrei no

quintal, segurando o periquito bebé. A chave extra estava no seu lugar,

por baixo da estátua do flamingo.

Destranquei a porta, entrei em casa e subi a escada a correr.

Conseguia ouvir um barulho rítmico a combater as fitas musicais cor-de-

rosa, sobrepondo-lhes linhas curtas de preto com sombras laranja-

sanguíneas.

Um ranger, como se Bee estivesse aos saltos na cama como eu faço

todos os domingos de manhã antes do futebol.

— Bee! — gritei. — Bee Larkham, venha depressa! É uma

emergência.

Abri a porta do quarto e foi nessa altura que o tempo parou e as

coisas mudaram para sempre.

Vi uma mulher loura e nua em cima da cama. Estava a saltar em

cima de um corpo, que também estava nu. Não olhei para o rosto. Vi

demasiada carne estranha. Havia invólucros de guloseimas roxos e

brilhantes espalhados sobre o edredão.

— Merda — exclamou uma voz verde-azulada.

A mulher caiu de lado, quase escorregando da cama.

— Veste-te, Lucas! Rápido! — Azul-celeste.


Eu desci a escada a correr e saí pela porta das traseiras, atirando a

chave para o seu esconderijo. Felizmente, não havia carros a passar,

porque atravessei a rua sem olhar, carregando o pássaro bebé morto,

com os gritos dos periquitos nos meus ouvidos.

Não me lembro de muito mais sobre essa noite, por exemplo,

quantas senhoras de porcelana tinham visto Bee Larkham e Lucas Drury

nus. Não me lembro como é que o meu pai conseguiu que me acalmasse

— provavelmente, deixando-me esfregar os botões do casaco de malha

da minha mãe no meu esconderijo e a girar na cadeira da cozinha.

Mas há três factos de que me lembro:

1. Sepultei o periquito bebé no nosso quintal. Nada de muito

elaborado. Ainda não me sentia bem o suficiente para decorar a

sepultura ou fazer uma cruz. O meu pai disse-me para pôr uma

pedra em cima porque um gato ou uma raposa ainda ia tentar

desenterrá-lo.

2. Bee Larkham apareceu mais tarde, nessa noite. Não entrou.

Desta vez, vinha vestida. Vi uma mulher com uma saia comprida

de um azul-glacial através do corrimão e ouvi o meu pai chamar-

lhe Bee.

Nunca disse ao meu pai que a tinha visto nua porque pensava

que ele podia ficar zangado. Mas disse-lhe que nunca mais queria

voltar a ver os periquitos da janela do quarto dela.

Eles tiveram uma discussão, mas eu só ouvi fragmentos. Bee

disse tu eras apenas um caso de uma noite. O meu pai gritou

com ela por causa dessa mentira. Ele achava que significava mais

do que isso. Voltaram a discutir. Fiquei satisfeito por ele ter

tomado posição contra Bee. Ela merecia.


Lembro-me nitidamente deste terceiro facto porque o repeti vezes

sem conta para mim mesmo nessa noite, na cama:

3. Detestava o corpo flexível e do outro mundo de Bee Larkham.

O meu pai também a detestava. Chamou-lhe galderiazinha

destrambelhada quando bateu com a porta, retângulos castanhos com

sombras a carvão.

Por uma vez, concordávamos em alguma coisa.


39

SEXTA-FEIRA (ANIL)

Tarde

Os pingentes de gelo vieram outra vez atrás de mim. Estão a tentar

puxar-me pela toca do coelho em direção ao Chapeleiro Louco.

Ele está dentro da cozinha de Bee Larkham, juntamente com

astronautas que envergam os seus fatos brancos. Não deviam ter

visitado esta rua. Vão ser mortos.

Doze deles.

Preciso de impedir o massacre. Não consigo. Tenho de fugir de casa,

mas a porta da rua está fechada à chave.

Corro para a porta das traseiras porque encontrei a chave secreta.

Continuo sem conseguir fugir. O Chapeleiro Louco não me deixa.

Bloqueia-me a passagem. Usa um boné de basebol azul-escuro.

— Acorda, Jasper. Isto é urgente.

Uma mão entra no meu esconderijo. Dirige-se ao meu ombro. Abro a

boca, pronto para gritar nuvens de azul-esverdeado.


— Sou eu. É o pai. Tens de sair daí. Aconteceu uma coisa e

precisamos de falar.

Ele afasta-se do esconderijo porque sabe que não gosto de sentir

gente em cima de mim. Enquanto me arrasto lá para fora, ele vai até à

janela e encosta-se ao peitoril.

— Precisas de te sentar, Jasper. Tenho uma coisa triste para te contar.

— Tinha-me deitado porque estava cansado, depois de andar a ver as

minhas pinturas dos periquitos — observo. — Isso significa que não

preciso de me sentar outra vez, obrigado.

— Está bem. — O meu pai suspira suaves círculos ocre-baços.

Espero que ele recomece a falar.

— O inspetor Chamberlain telefonou enquanto estavas a dormir. Tem

notícias que vais achar perturbadoras.

— Os astronautas encontraram manchas do meu sangue na cozinha

que levam até à porta das traseiras? — pergunto. — Suponho que

também podem ter encontrado vestígios na viela.

O meu pai esfrega o rosto, como costuma fazer quando está a

espalhar a espuma de barbear.

— O inspetor Chamberlain não mencionou nada em relação ao

aspeto forense, mas disse que a investigação do desaparecimento de Bee

está a avançar a ritmo acelerado. A equipa anda a fazer horas

extraordinárias.

— Acelerado a que ponto? — indago. — Ele especificou a

velocidade?

— Estamos a desviar-nos do assunto quando precisamos de nos

concentrar naquilo que estou a tentar dizer-te. A questão é que, esta

manhã, um homem que andava a passear o cão encontrou algo

desagradável numa mata não muito longe daqui. O inspetor Chamberlain


queria que soubéssemos primeiro por ele, porque pode aparecer no

noticiário local, esta noite.

— Em que noticiário? No da ITV London ou no da Capital FM?

— Em ambos, provavelmente. O homem que estava a passear o cão

encontrou um corpo, Jasper, ao início desta manhã. Encontrou o corpo

de uma mulher.

— Encontrou o corpo de Bee Larkham — confirmo.

Isto não representa um grande choque para mim, uma vez que o meu

pai o deve ter deslocado para algum lado, caso contrário as pessoas com

fatos de astronauta que estão do outro lado da rua já o teriam encontrado

por esta altura.

— O inspetor Chamberlain disse que não têm a certeza absoluta.

Ainda não identificaram o corpo. Não é cem por cento seguro, mas há

uma pequena hipótese… Poderá ser… O que estou a tentar dizer, Jasper,

é que devíamos preparar-nos para o pior cenário possível: a polícia ter

encontrado o corpo de Bee.

— Como é que não tem a certeza de que é a Bee, se levou o corpo

dela do número vinte de Vincent Gardens, o transportou de carro até

uma mata e o deixou lá para o homem que andava a passear o cão a

encontrar? — pergunto.

— Jasper! Para com isso!

— Encontrei as suas botas de caminhada no fundo do seu roupeiro, o

que significa que o terreno estava enlameado. Deixou o corpo dela na

lama porque não queria que eu tivesse problemas com a polícia. Agora

também está envolvido nisso e vamos ambos para a prisão.

— Cala a boca! — Agarra-me pelos braços e aperta-os com força.

Com demasiada força. — Preciso de tempo para pensar antes de

voltarmos a falar com o inspetor Chamberlain.

— Largue-me! — berro.
Dou-lhe pontapés nas canelas com força. Ele larga-me e eu sou tão

rápido quanto um periquito. Saio do quarto para o patamar. Desço a

escada a correr. Ele é David Gilbert e vem atrás de mim, a tentar

apanhar-me. Sou o periquito bebé a voar em direção à segurança. Já

avistei a armadilha: a corrente da porta da rua que me impedirá de sair

do ninho.

— Volta!

Não volto. Mudo de direção. Tiro o telemóvel do meu pai da

mesinha da entrada e deslizo para a casa de banho, batendo à porta com

força. Ele bate à porta círculos castanho-escuros, mas não consegue

entrar. Eu tranquei a porta.

— Desculpa, Jasper! Desculpa. Por favor, acredita! Não devia ter-te

agarrado assim. Nem ter gritado contigo.

Marco o 112. O meu pai alterou a palavra-passe para me impedir de

usar o telefone dele, mas não preciso dela para as chamadas de

emergência.

Estou em contacto com a telefonista.

— Por favor, ajude-me! O meu pai está a tentar matar-me.

Despachem-se!

— Jasper! — O meu pai bate à porta com mais força. — Não faças

isso! Abre, agora! Eu não queria magoar-te. Abre ou terei de deitar a

porta abaixo!

Desta vez, a telefonista não perde tempo a fazer-me perguntas

pessoais estúpidas. Devem ter essa informação registada.

— Vamos a caminho, meu querido — diz a mulher. — Não abras a

porta até um agente te dizer que é seguro fazê-lo. Aguenta firme. Eles

não demoram.

As minhas pernas não me seguram por mais tempo. Estatelo-me no

chão. Bee Larkham tinha-me avisado sobre o meu pai.


Ela disse que ele tinha matado pessoas.

Acho que tinha razão.

Ele provou uma e outra vez que não é digno de confiança.

Ele mente o tempo todo.

Ele enganou-me fazendo-me pensar que partilhava do meu interesse

pelos periquitos bebés e que os protegeria e a mim do mal

Vou contar à polícia tudo o que o meu pai fez.

Não acredito numa palavra do que ele diz.

Vou contar à polícia todas as coisas que ele fez.


40

31 DE MARÇO, 8H01

Periquitos Bebés em papel

O primeiro vislumbre que tive de um periquito bebé devia ter sido

empolgante, mas as cores no meu quadro estavam demasiado esbatidas,

cobertas com o mais claro dos tons pastel e minúsculas e inseguras

formas circulares.

O meu pai e eu observámos duas minúsculas carinhas verdes a

assomar do buraco do carvalho de Bee Larkham.

— A natureza é espantosa — disse ele. — Corta-me a respiração. É

pena que David não perceba a sorte que temos. Mas não te preocupes

com ele, Jasper. Não vou deixar nunca que ele faça mal aos periquitos

bebés, prometo.

— Chiu! — repliquei. — Não consigo ouvir os periquitos bebés

como deve ser.

— Lamento.

Eu também lamentava. Mesmo quando abria a minha janela e me

debruçava lá para fora, estava demasiado longe para os ouvir como devia

ser.

Se voltasse ao quarto de Bee Larkham, tudo seria diferente.


Isso não podia acontecer. Não queria pensar em linhas curtas de

preto com sombras laranja-sanguíneas.

Ver aquelas cores tinha-me deixado doente e afastado da escola

durante dias. Tive dificuldade em bloqueá-las. O meu pai não as tinha

visto. Ele não ia compreender.

Ficava no meu esconderijo e fechava bem a entrada com o cobertor

azul-miosótis quando não estava a observar os periquitos bebés.

Tentei esquecer, mas, por mais cobertores que empilhasse à entrada,

as repulsivas tonalidades e matizes do quarto de Bee Larkham

conseguiam chegar lá dentro.

2 de abril, 11h01

Pontos Azul-Elétricos e Salpicos de Amarelo-Suave em tela

No dia do funeral da senhora Watkins, aqueles tons e texturas

horríveis desapareceram finalmente, juntamente com o caixão.

— O corpo está lá dentro? — perguntei ao meu pai.

Vimos o carro funerário parar em frente do número 18 de Vincent

Gardens, da janela da nossa sala de estar, num sábado (turquesa) de

manhã. Estremeci quando vi as flores brancas e cor-de-rosa

marshmallow. Nunca tinha gostado muito de doces maldosos que se

colavam aos dentes. Por isso, olhei antes para o carvalho de Bee

Larkham, na esperança de vislumbrar outra vez os periquitos bebés.

— Sim, filho. A senhora Watkins foi levada para uma casa funerária

depois de o médico ter declarado o óbito há uma semana, na sexta-feira.

No dia a seguir ao periquito bebé ter morrido.

— Tem lá estado desde então? — Estremeci. — Sozinha?


— Bem, o seu corpo estava lá. Ela não terá dado por isso porque…

— Esqueceu-se do que estava a tentar dizer e começou novamente. — A

alma já não estava no corpo. Tinha ido para o Céu.

— Para o sítio onde está a alma da mãe?

— Sim, exatamente.

— Até soa bem, se acreditarmos nisso. Eu não acredito que a mãe

esteja no Céu porque não acredito em Deus.

— Bem, a escolha é tua, filho.

Não me tinha expressado bem. Queria dizer que me recusava a

acreditar em Deus.

Um homem de fato preto saiu do número 22 de Vincent Gardens.

Juntou-se a outro homem de fato preto, que saiu do número 18. Pararam

e conversaram no passeio do outro lado da rua.

— Tenho de ir dar as condolências a Ollie — disse o meu pai. — Já

que não posso ir ao funeral.

— Por minha causa.

— Os funerais não são lugar para crianças e não há ninguém para

ficar contigo. A menos que tenhas mudado de ideias em relação a ficar

com Bee?

Eu não falava com ela desde as linhas curtas de preto com sombras

laranja-sanguíneas.

E também não a tinha visto, a não ser ao longe. Ela tinha-me dito

adeus da janela do seu quarto. Mas eu não retribuí o aceno. Ela pensara

erradamente que estava a olhar para ela, mas eu só queria ver as cores

dos periquitos bebés.

A menção do nome de Bee Larkham varreu as cores do quarto da

minha cabeça e só consegui ver azul-celeste.

— O pai falou com ela? — perguntei.

— Com Bee? Sim. Por acaso, ontem.


— O que estava ela a fazer? — indaguei, ao mesmo tempo que o

seguia para a porta da frente. — O que andava a tramar? Perguntou por

mim? — Mordo a língua. Tinha repetido exatamente as mesmas

perguntas que o meu pai me fizera sobre Bee Larkham a seguir à festa

para os vizinhos que na verdade não era para os vizinhos.

— Deixa-me ver, estava a despedir-se de um aluno de música. Ao

princípio, depois da nossa discussão, foi um pouco estranho, mas ela

pediu desculpa por não te ter apoiado quando o periquito bebé morreu e

por se ter irritado comigo naquela noite. Disse que foi um mal-

entendido. Não tem estado em si ultimamente e lamentava ter-nos

enervado aos dois. Penso que estava a ser sincera. Concordámos em pôr

um ponto final no assunto.

Olhei para a linha de batalha que se estendia até ao outro lado da

rua. Continuava a existir porque David Gilbert não estava no caixão. A

senhora Watkins tinha morrido de cancro. Era possível que o desejo que

formulara na noite da festa tivesse corrido mal e acabado por atingir a

pessoa errada por acidente, fazendo de mim um assassino.

— Provavelmente, Bee Larkham estava a dar uma aula de guitarra

verde-elétrica e roxo-explosiva a Lee Drury.

— Não faço ideia — admitiu o meu pai, saindo para a rua primeiro.

— A aula tinha acabado quando lá cheguei.

Quando nos juntámos aos dois homens no passeio oposto, a janela

do quarto do número 20 de Vincent Gardens abriu-se e o Carnaval dos

Animais, de Saint-Saëns, elevou-se no ar. Reconheci as cores dos pianos

e cordas: a «Introdução» e a «Marcha Real do Leão».

O meu pai tinha chamado Bee Larkham como que por magia e ela

tinha respondido com as cores mais barulhentas e vibrantes que

conseguiu invocar. Duas bailarinas de porcelana observavam aquele

aparato da janela do quarto dela.


— Que falta de respeito — murmurou um dos homens em linhas

cinzentas e suaves.

Não conseguia distinguir os dois homens, com os seus fatos pretos e

as cores esbatidas das vozes sussurradas.

De qualquer forma, fosse ele quem fosse, estava enganado.

Soube de imediato que aquela música me era dirigida — a forma de

Bee Larkham pedir desculpa, pois sabia o quanto eu gostava daquelas

cores, e os periquitos também. Gritaram de alegria e juntaram-se ao

coro. Um bebé enfiou a cabeça de fora do buraco na árvore.

Azul-violáceo claro com salpicos de amarelo-suave.

Outro periquito bebé surge numa reentrância no beiral.

Manchas trémulas de miosótis e leves salpicos de areia do deserto.

Eu não precisava de ouvir Bee falar.

Tinha visto a verdadeira cor dos periquitos bebés pela primeira vez.

Reconheci o seu remorso nos pontinhos azul-elétricos e nos

castanhos-avermelhados dos painéis de madeira. Suplicava que a

perdoasse porque tinha saudades minhas. Não a tinha visitado nos

últimos nove dias. Não tinha entregado qualquer bilhete a Lucas Drury.

Não tinha visto uma tonalidade que se parecesse com azul-celeste.

— Mudei de ideias — disse ao meu pai. — Pode ir ao funeral. Quero

ir para casa de Bee Larkham. Quero ver a cor dos periquitos bebés de

mais perto, da janela do quarto dela.

— Tens a certeza? É que, se não te importares, posso ir rapidamente

a casa e vestir alguma coisa mais adequada.

— Alguma coisa preta — disse —, que é um sinal de respeito pelos

mortos.

A porta abriu-se e uma mulher saiu com um deslumbrante vestido

comprido azul-celeste. Trazia o pendente de obsidiana à volta do

pescoço.
— Santo Deus! — murmurou o meu pai. — A Bee não deve saber.

— Oh, sabe, sim. — O homem de preto tinha uma voz vermelha

granulosa e baça. Tinha de ser David Gilbert. — Pus-lhe um bilhete

debaixo da porta, a comunicar-lhe a hora a que chegava o carro

funerário.

— A Bee gosta de bilhetes, por isso com certeza que o leu — disse.

— Diz que são mais pessoais do que e-mails ou mensagens.

Disse-me adeus, mas a vivacidade do azul e os tons reluzentes da

música tinham-me colado os braços ao corpo. Aquilo apagou a paleta de

cores que eu tinha visto no quarto dela, eliminando os matizes de Lucas

Drury. Misturavam-se de forma agradável com os azuis-safira e os

fúcsias dos periquitos.

Concentrei-me nas cores musicais que se contorciam e dançavam à

minha frente. O murmúrio cinzento-esbranquiçado das vozes

permaneceu em segundo plano.

Ignora-a

O que está ela a fazer?

Ela está deliberadamente a provocar-te

Vamos embora

A porta de um carro fechou-se. Forma oval castanho-escura, preto-

reluzente e linhas cinzentas.

— Jasper? Jasper! Ouviste o que eu disse?

Arrastei-me para longe das cores da música e concentrei-me na voz

ocre-baça.

— Disse que, afinal, não tenho a certeza de que isso seja uma ideia

assim tão boa. Talvez seja melhor ficar em casa contigo, não?

— Não, pai. Deve ir ao enterro da senhora Watkins com os homens

de preto. Não gosto das cores deles. Prefiro azul-celeste. Quero azul-
celeste e a cor dos periquitos bebés. Tenho de pintar as suas cores

genuínas. Devo-lhes isso.

— Primeiro que tudo, quero dizer quanto lamento a morte do

periquito bebé — disse Bee Larkham, enquanto me levava para a sala de

estar. — Tenho pensado muito nisso. Fiquei triste, extremamente triste,

por não podermos chorá-lo juntos, e a culpa é inteiramente minha. Fiz

mal em pedir-te para te ires embora quando estava ocupada. Peço

desculpa, Jasper.

Ela tinha-me pedido isso? Não me lembrava dela ter falado comigo,

apenas com Lucas Drury. Ele tinha de se vestir. Rápido.

Porque eu tinha visto o seu corpo de extraterrestre. E o dela também.

— As aulas de música e arranjar a casa levam muita da minha

energia — continuou. — Tenho andado muito ocupada, mas devia ter

arranjado tempo para ti quando precisavas de mim.

Ainda bem que ela tinha falado na música. Ela estava a pintar uma

cena nova na sua cabeça, com tons que eu não reconhecia. Porém,

preferia muito mais esta imagem do que a do quarto. Aceitei-a sem

questionar, grato pelo facto de as cores antigas terem desaparecido.

Tinham sido um erro terrível de que ela se arrependia.

— Sepultei o periquito bebé no nosso quintal e recitei um poema

porque não aceito que haja um Deus que deixa morrer as boas pessoas

— disse. — Ou os periquitos. — Gostava de ver a sepultura?

— És muito amável, Jasper. Sim, gostava de lhe prestar homenagem.

Talvez possa recitar alguma coisa, também. O teu pai já saiu, não já? É

seguro ir lá agora?

Fui até à janela. O carro vermelho-papoila, normalmente estacionado

à porta de nossa casa, já lá não estava. O meu pai ia a caminho do


crematório, a seguir os homens de preto.

— É seguro — repeti, vendo de relance o seu reflexo no vidro antes

de olhar para a árvore. Captei um fragmento de azul de esmalte dos

periquitos bebés. — O seu vestido é azul-celeste.

— Sabia que ias gostar desta cor. Espera aqui, enquanto vou buscar

as minhas coisas.

Esperava que ela me convidasse a subir, para ver os periquitos bebés,

mas a normalidade ainda não estava reposta. Ela subiu sozinha e voltou

a descer, trazendo o caderno de apontamentos com o coelho branco.

Enfiou-o na mala ao mesmo tempo que a pendurava ao ombro.

— Vamos a isso, Jasper. — Bee estendeu a mão e eu agarrei-a. Ela

não voltou a falar no assunto tabu.

E eu também não.

Bee chorou muito quando viu a cruz minúscula. Eu tinha-lhe dito

que o periquito bebé tinha quase quatro semanas. Ela disse que estava

indizivelmente triste com o sofrimento de um ser tão pequenino; era

errado magoar os mais jovens.

Onde estavam os pais dele? Porque é que não o protegeram?

Abracei-a pela cintura para a reconfortar, depois de ela ter colocado

uma pedra de jaspe com propriedades curativas em cima da sepultura.

— Obrigada — disse ela, esfregando o seu fio. — Este é um dia de

emoções fortes, para mim. Pensava que ia conseguir aguentar toda a

pressão de ter voltado aqui, mas não sei se serei suficientemente forte. É

demasiado difícil. Creio que cometi um erro terrível.

Esta foi a única vez em que reconheceu que o que tinha acontecido

entre ela e Lucas Drury era errado. Para mim, era quanto bastava. Ainda

bem que estava arrependida.


Ela tirou o caderno de apontamentos da mala e folheou-o, enquanto

eu olhava para o coelho branco da capa.

— Espero que não te importes, Jasper, mas não vou recitar um

poema. Quero ler excertos de um livro que adorava e fui forçada a

detestar em criança: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.

— O meu pai leu-mo quando eu era pequeno — disse. — Também

não gostei. O Coelho Branco estava aflitivamente atrasado e eu tinha

medo do Chapeleiro Louco.

— Eu também. Ele falava por enigmas, e os enigmas podem ser

difíceis de compreender. A maioria das pessoas tem problemas com

eles. — Ela limpou as lágrimas. — De qualquer forma, anotei esta

citação de Alice no País das Maravilhas. Costumava lê-la vezes sem

conta. Estás pronto?

Confirmei que sim.

Ela deu-me a mão.

— Lembra-te, esta história é sobre como era ser Alice. Esta é a

história dela, de mais ninguém. São as palavras dela.

Começou:

Primeiro, no entanto, esperou alguns minutos para ver se não

ia encolher ainda mais: sentia-se um bocadinho nervosa com

essa possibilidade, «pois ainda posso acabar por me extinguir

completamente, como uma vela», disse Alice para consigo.

«Pergunto-me qual seria o meu aspeto, então?» E tentou

imaginar como é a chama de uma vela depois que a vela se

apaga, pois não conseguia lembrar-se de alguma vez ter visto tal

coisa.
Não me conseguia lembrar de Alice no País das Maravilhas a dizer

aquilo. Não me parecia importante. Não o teria anotado.

— Não gosto. Acho que a Alice está triste.

— Ela está triste — replicou Bee — mas esforça-se por regressar ao

seu estado normal, e é isso que conta. Lembra-te, ela teve de fazer isso

sozinha. É duro para qualquer criança.

— Eu também me esforço por ser normal — confessei. — E comigo

também nem sempre resulta.

Bee Larkham ficou mais animada depois de termos entrado em casa

e de eu lhe ter mostrado os quadros dos periquitos bebés que estavam no

meu quarto. Estava particularmente interessada nos registos que eu fazia

dos movimentos das pessoas na nossa rua. Tirei todas as minhas caixas

do fundo do roupeiro e mostrei-lhe os cadernos de apontamentos mais

recentes.

Depois de os folhear um por um, levantou finalmente a cabeça.

— Bom trabalho, Jasper. Estes registos são incrivelmente

pormenorizados em relação às horas das minhas aulas de música.

Mencionaste o nome de algum dos meus alunos? Ou de alguma das

minhas visitas, como, por exemplo, Lucas ou o seu irmão Lee?

— Não — repliquei. — Não estou interessado neles. Mencionei

David Gilbert sempre que tinha a certeza de que era ele, quando o via

voltar para o número vinte e dois. Cem por cento confirmado.

— Ótimo. Isto deve ajudar o nosso caso contra David. As ameaças

que ele fez e a caçadeira. Se alguma vez precisarmos de recorrer à

polícia outra vez.

Movi a cabeça para cima e para baixo.

— O seu diário também irá ajudar o nosso caso.


— Este? — Bee enfiou a mão na mala e tirou o caderno de

apontamentos azul-aço que continha o seu excerto favorito de Alice no

País das Maravilhas. Olhei novamente para o coelho branco da capa.

Não tinha a certeza se podia confiar nele. Se não fosse o coelho, Alice

nunca teria descido pela toca e nunca se teria metido naqueles

problemas todos.

— Sim, acho que podes ter razão. Está tudo aqui, preto no branco.

Tudo o que aconteceu. — Bee levou a mão à testa. — Jasper, posso

pedir-te um favor enorme?

— Siiim. Acho que sim. Porque somos outra vez amigos.

— Podes ir buscar-me um copo de água? Estou a sentir-me enjoada e

com tonturas. Tenho estado a vomitar toda a manhã e não consigo

segurar nada no estômago. Não faço ideia do que se passa comigo hoje.

— O enjoo pode ser causado por muitas coisas, como gastrenterite

ou intoxicação alimentar. Talvez tenha comido carne malpassada ou

peixe fora do prazo. — Vi o rosto de Bee Larkham ficar com um tom

desmaiado de torta de limão. — Por vezes, deve-se a outras razões como

ténias, uma úlcera, uma desordem alimentar ou uma gravidez.

A cor do rosto de Bee Larkham mudou para nata coalhada.

— Jasper — disse ela baixinho —, preciso mesmo de um copo de

água.

Fiquei contente por poder voltar a ser útil. Enchi-lhe o copo na

cozinha, usando a água engarrafada do frigorífico que pedira ao meu pai

para comprar depois de ela me ter posto de sobreaviso em relação à água

da torneira.

— Obrigada — disse ela, quando voltei ao quarto. Tinha guardado o

seu caderninho e estava empoleirada na borda da cama. — Está

deliciosamente fria, como eu gosto. — Pousou o copo e foi até à janela,

segurando a sua mala. Parecia-se mais com ela de novo, embora as suas
faces estivessem da cor das framboesas. — Então, é este o aspeto da

minha árvore vista daqui. Perguntei-me muitas vezes como seria.

— Sim.

— Consegues ver os periquitos bebés razoavelmente bem, daqui,

mas vê-se muito melhor da janela do meu quarto. Tenho sorte. Consigo

ver as crias de tão perto que não preciso de binóculos.

— Senti saudades de ver os periquitos de lá — admiti. — Senti

saudades suas, Bee Larkham.

— Eu também. Esta situação entristeceu-nos aos dois. Porque é que

não nos esforçamos por não voltar a ficar infelizes?

Ela virou-se e atravessou o quarto.

— Volta para mim, Jasper. Volta para os periquitos. Eles também

têm saudades tuas.

Voltou a enfiar a mão na mala e tirou um envelope azul-arroxeado.

Eu recuei; nenhum dos dois disse uma palavra.

Ela não falou em Lucas Drury. Não precisava. O nome dele estava

escrito no envelope a tinta preta.

Não disse a Bee Larkham que tinha descoberto que os invólucros de

guloseimas brilhantes continham preservativos. Tinha encontrado um na

gaveta da mesa de cabeceira do meu pai e tinha feito um balão de água,

enquanto ele estava a trabalhar.

Enquanto eu refletia sobre o que fazer a seguir, captei um clarão de

cor, um grito surdo de um periquito do outro lado da rua.

Um passo na direção dela — foi tudo o que foi preciso.

Estendi uma mão trémula e peguei no envelope — um gesto ínfimo

com consequências que mudaram a vida de ambos.

De imediato, voltámos à nossa antiga rotina como se nada tivesse

acontecido.
Como se eu tivesse caído na toca de coelho de Alice no País das

Maravilhas e nunca tivesse contado a ninguém o que aconteceu depois

de regressar finalmente a casa.

O nosso segredinho.

É para que vejam o quanto queria pintar os sons coloridos dos

periquitos bebés.
41

SEXTA-FEIRA (ANIL)

Noite

Rodar, rodar, rodar.

É o que anseio fazer, mas não estou na cozinha da minha casa. Estou

numa casa estranha que pertence a uma família de acolhimento de

emergência. Só há uma cadeira neste quarto e não anda à roda. É

estática.

Definição: imóvel, imutável.

As cortinas são de um branco quase creme com arcos-íris, que estão

errados. Os arcos-íris a sério não têm essas cores. Devia dizer-lhes, mas

não quero ir lá abaixo. Eles chamam-se Mary e Stuart. Tapei os ouvidos

com as mãos quando cheguei, porque não queria ver as cores deles.

Acabei por ter de ouvir as suas palavras.

O meu pai foi preso por ter gritado com os agentes da polícia e

empurrado um deles. Isso é agressão. Não me deram muito tempo para

arrumar as minhas coisas: dez minutos para meter alguma roupa e

artigos pessoais como um pente, escova de dentes e roupa interior na

velha mochila preta que a mulher-polícia encontrou no meu roupeiro.

Não ligo a essas coisas.


E as minhas tintas e pinturas e caixas de cadernos de

apontamentos?

Não podes levar tudo. Escolhe o que é mais importante para ti.

Detestei ter de fazer isso.

Mas eu tinha de defender os periquitos mais novos, cada um deles.

Disse à mulher-polícia que deixar para trás um pássaro antes de lhe

crescerem as penas era um crime terrível.

A voz de Mary é da cor da pele e a de Stuart cinzento-ardósia.

Acabei por ter de ouvir as suas palavras. Tinha de ver as suas cores. Não

são tonalidades más.

Eles dizem que posso andar pela casa à vontade. Posso tirar comida

do frigorífico ou do armário da cozinha se tiver fome. Posso ir à casa de

banho. Posso ver televisão na sala. Eles podem ir para outra divisão se

eu me sentir mais à vontade com isso.

Eu não estou à vontade em nenhuma divisão desta casa.

Tenho o casaco de malha da minha mãe. Esfrego os botões, cada vez

com mais força.

A minha nova assistente social, Maggie, com a voz damasco-clara

brilhante, não me deixou voltar ao meu quarto e desmantelar o meu

esconderijo. Não tive tempo de o fazer. Eu queria voltar a construí-lo

aqui, do zero, mas ela disse que, provavelmente, o acolhimento de

emergência seria apenas por uma noite ou duas, no máximo, até as

coisas acalmarem em casa e a polícia resolver assuntos importantes

com o meu pai.

Este quarto não é tão grande como o que tenho em casa. Não há

espaço suficiente para dispor todos os meus quadros dos periquitos

bebés no tapete verde-claro cheio de manchas.


Ao lado da cama, em baixo, um miúdo chamado Seb tinha gravado o

seu nome na tinta. Não o conheço e não quero conhecê-lo.

Tenho um punhado de tubos de tinta, os que consegui agarrar antes

de esgotar os meus dez minutos. Trouxe todos os quadros dos periquitos

bebés, mas fui obrigado a deixar os outros para trás. Estou preocupado

com eles. Estão sozinhos no meu quarto.

Eles vão perguntar-se por onde ando. Podem estar assustados.

As caixas de cadernos de apontamentos também não vão gostar de

eu estar temporariamente ausente. Detestam estar fora de ordem. Eu sei

que estão misturadas. Lembro-me agora — um maldito coelho branco

saltou para dentro de uma das caixas. Laranja de Cromo Oxidado

descobriu o caderno de apontamentos azul-aço de Bee durante a minha

primeira entrevista na esquadra. Não sei como lá foi parar nem a razão

da sua visita.

O que sei é que as minhas pinturas e cadernos de apontamentos vão

sentir a minha falta, da mesma forma como eu sinto a falta da minha

mãe.

Azul-cobalto.

Da mesma forma que sentia a falta de Bee Larkham quando não a

via, embora não quisesse sentir isso e nunca tivesse percebido que era

isso que estava a acontecer. Queria-a de volta, fossem quais fossem as

imagens que ela criava.

Porque eu adorava as suas cores; ela fazia-me sentir mais próximo da

minha mãe.

Não quero pintar aqui, porque não conheço o rapaz que dormia nesta

cama antes de mim.

Seb.

Talvez o pai dele também o tivesse tentado matar. Só que o meu pai

disse à polícia que não estava a fazer isso.


Era um mal-entendido. Um mal-entendido da minha parte.

O meu pai estava a tentar ajudar-me, não a matar-me.

Esfrego os botões do casaco da minha mãe uma e outra vez.

Esfrefa, esfrega, esfrega.

Quero rastejar para dentro do meu esconderijo e nunca mais sair de

lá. Tom de Pele bate à porta.

— Posso entrar, Jasper?

— Não! Não consigo fazer isto! Sou demasiado novo!

— Por favor, Jasper. Podemos conversar? Gostava de te conhecer

melhor.

Arranco os livros da estante e arrasto móveis até junto da porta,

entalando-os debaixo do puxador. Uma barricada.

Ignorando as suas tonalidades suplicantes cor de pele, puxo o

edredão sobre a minha cabeça. A estante dos livros está desordenada e

fere-me os olhos.

Sinto-me tão mal como quando acabei as minhas três últimas

pinturas. As tonalidades apunhalaram-me os olhos e fizeram-me chorar

quando dei as últimas pinceladas. Deixei-as atrás do meu roupeiro, mas

tento lembrar-me do que aconteceu depois.

Nada estava certo naquela tarde de terça-feira, 5 de abril.

Esse foi o dia verde-garrafa em que o plano se descontrolou porque

Lucas Drury e Bee Larkham não o respeitaram. Porque é que eles não

perceberam que um plano só funciona se toda a gente fizer a coisa certa

à hora prevista? Se não o fizerem, provocam o caos.

Os periquitos pressentiram esta mudança antes de mim. As

tonalidades dos seus gritos tornaram-se mais carregadas.

Tudo começou a implodir.

Implodir: verde-amarelado claro, palavra banana verde.

Significado: colapsar para dentro de forma súbita e violenta.


Abraço o casaco da minha mãe com mais força.

Esfrega, esfrega, esfrega.


42

5 DE ABRIL, 13H32

Tintas Verde-Azuladas Diáfanas sobre Azul-Celeste em papel

A carta de Bee Larkham ainda estava na gaveta do laboratório de

ciências, onde eu a tinha deixado na segunda-feira à tarde. Um dia mais

tarde, Lucas Drury não tinha ido buscá-la, embora Bee dissesse que

continha uma nota de vinte libras e três cigarros.

Ela tinha-me interrogado depois da escola, na noite anterior.

— Tens a certeza de que a entregaste?

— Sim, tenho a certeza. Talvez esteja doente.

— O Lucas pareceu-te doente quando lhe deste a carta?

Complicado: uma palavra verde-pepino.

— Hum, não. — Era setenta e cinco por cento verdade porque eu

não o tinha visto, por isso não me tinha parecido doente. Nenhum de nós

lhe tinha contado como trocávamos as cartas na escola, e agora não era

boa altura para confessar o sistema que púnhamos em prática no

laboratório de ciências.

— Podes levar outra carta amanhã? — perguntara. — É urgente.

— Não é assim que o nosso plano funciona. Eu entrego às segundas,

não às terças. Os dias são escarlates, não verde-garrafa.


— Eu sei, mas isto é importante. Estou preocupada com Lucas.

Estou assustada com o que pode estar a acontecer com o pai dele. Eu já

te disse que ele é violento, lembras-te?

Eu não disse nada.

Sabia que as coisas deviam estar más lá em casa, para Lucas Drury

não conseguir ir ao lugar habitual recolher as cartas. Era por isso que ela

queria falar com ele. Não era sobre a outra coisa, a coisa no quarto com

os invólucros brilhantes, porque ela lamentava o sucedido. Tinha sido

um erro terrível, de que se arrependia. Era por isso que nunca falávamos

disso. Ela queria esquecer as cores, tal como eu tinha esquecido.

— Posso observar os jovens periquitos da sua janela, quando chegar

a casa? — perguntei. — Quero descobrir se a cor dos seus sons mudou.

— Leva esta última carta e não terás de merecer o tempo que passas

a observar os bebés da minha janela. Podes vir cá durante quarenta e

cinco minutos, três vezes por semana, prometo, sem qualquer tipo de

amarras. Na verdade, pode ser quatro vezes.

Eu tinha ignorado o comentário sobre eu não ter amarras porque era

um perfeito disparate. Idem em relação aos periquitos. Tecnicamente, já

não eram bebés. Em pouco menos de duas semanas, alguns estariam

aptos a voar.

De qualquer forma, foi assim que dei por mim no laboratório de

ciências deserto à hora de almoço da terça-feira verde-garrafa, a pôr

outra carta em cima da que Lucas Drury não tinha conseguido recolher

na segunda-feira escarlate porque as coisas se tinham complicado em

casa.

— Para! — gritou uma voz verde-azulada.

Quase fiz chichi nas calças. Não tinha ouvido ninguém entrar no

laboratório. Virei-me. Um rapaz de uniforme avançava em direção a

mim.
— Eu paro. Vou-me embora.

— Não, o que eu queria dizer era para parares com as cartas, Jasper.

Eu sabia que ela não ia perceber a mensagem e que te ia mandar aqui

outra vez. Não quero que voltes a entregar-me cartas de Bee. Vocês os

dois têm de parar com isso. — Verde-azulado.

— Lucas Drury.

— Sim, Jasper?

— Mas é o que combinámos. Eu entrego-te as cartas de Bee

Larkham e venho sempre ver se há alguma coisa para levar. Ela não me

disse que o plano tinha mudado outra vez.

— Isso é porque ela não consegue aceitar que acabou. — Lucas tirou

as cartas da gaveta e deitou-as no caixote do lixo. — É preciso obrigá-la

a compreender.

— Não compreendo o que estás a dizer — repliquei. — Ela não

recebeu a mensagem. E eu também não.

— Jasper, Jasper, Jasper. — Lucas bateu nas têmporas com os

punhos cerrados. — Estás a dar-me cabo da cabeça!

Pedi desculpa.

— Não sei o que fazer. Bee Larkham não me disse o que fazer.

— Não consegues pensar por ti próprio, uma vez que seja? — berrou

Lucas. — Não precisas de Bee Larkham.

Agarrou-me pelo pescoço e apertou com força, imobilizando-me

contra a parede. A minha cabeça bateu, castanho-baço, num poster da

tabela periódica. Estrelas cor de cereja zumbiram furiosamente dentro

dos meus ouvidos, enquanto lutava por respirar. Lucas estava enganado.

Eu precisava dela, e os periquitos também. Ela dava-lhes de comer e

protegia-os de David Gilbert.

— Não con… consigo respirar. — As minhas mãos arranharam as

dele. — Desculpa.
Ele largou-me.

— Desculpa! Desculpa, Jasper. Não devia ter feito isso. É só

porque… Tu tens de seguir com a tua vida para a frente, caso contrário a

Bee vai arrastar-te para o fundo com ela. Agora vejo isso. Pensava que

isto tinha que ver comigo, mas não. Tem tudo que ver com Bee e com os

seus problemas.

— Eu não vejo nada — redargui em voz rouca. — Não sei o que

fazer em relação às cartas. Ela não me disse o que fazer.

Lucas suspirou uma ligeira bruma verde-azulada ao mesmo tempo

que recuava.

— Muito bem. Se isso ajudar a livrar-me de ti, podes dar uma última

mensagem a Bee da minha parte. Diz-lhe que eu estava a falar a sério.

Acabou. Não posso fazer isto. Sou demasiado novo.

— Vais ter de escrever a mensagem para eu lha poder entregar —

disse, a tossir. — O acordo é esse. Eu dou-lhe o envelope e ela deixa-me

observar os periquitos durante quarenta e cinco minutos, depois da

escola. São menos quinze minutos do que antes, mas continua a valer a

pena.

— Não, Jasper. Estou farto desses bilhetes estúpidos. Estou farto de

tudo isto. Quero pôr um ponto final no assunto. É demasiado. Dá-lhe

isto.

Enfiou-me um objeto na mão.

— É o teu telemóvel perdido — disse. — Encontraste-o.

— Devolve-lho. Não quero os seus presentes. Não quero o seu

dinheiro. Não quero nada dela. Quero que ela me deixe em paz.

— Não queres ser salvo — esclareci.

— Sim, é isso. Gosto de uma miúda que anda no mesmo ano que eu

e não quero que a Bee dê cabo da minha relação com ela. É da minha
idade, Jasper. Parece natural. Parece normal. A Bee precisa de encontrar

alguém da sua idade.

— Que idade devo dizer-lhe que é correta? — perguntei, franzindo a

testa.

Lucas passou uma mão pelo cabelo, confirmando que estava no

lugar.

— Repete esta mensagem depois de mim, Jasper: Não posso fazer

isto. Sou demasiado novo.

Fecho os olhos e obedeço.

— Não posso fazer isto. Sou demasiado novo.

— Isso mesmo. Agora repete até memorizares. Até isso não te sair

da cabeça e só conseguires pensar nisso.

— Não posso fazer isto. Sou demasiado novo. Não posso fazer isto.

Sou demasiado novo. Não posso fazer isto. Sou demasiado novo. Não

posso fazer isto. Sou demasiado novo.

Repeti a mensagem a Bee Larkham, palavra por palavra, depois de

acabar as aulas. Lágrimas riscaram a sua face.

— Porque é que não posso ter o que toda a gente tem, Jasper? Porque

é que não posso encontrar finalmente a felicidade, onde quer que ela

possa estar? Porquê? Diz-me, Jasper. O que é que faz de mim uma

pessoa tão detestável?

Eu afastei-me de volta a casa. Não conseguia ficar a vê-la chorar.

Tinha demasiada vergonha para admitir que não sabia as respostas às

suas perguntas. Nunca cheguei a ver os periquitos da janela do quarto

dela. Não era um bom dia para pedir.

Tinha medo, um medo horrível de que ela pudesse dizer: «Não,

Jasper. Nunca mais.»


43

6 DE ABRIL, 17H13

Tintas Azul-Celeste sobre Azul-Frio em papel

Tens de vir esta noite. Desculpa não te ter deixado ficar mais ontem.

Bee Larkham tinha batido à porta da frente de minha casa às 7h51 e

convidou-me a regressar depois da escola. Disse que se sentia culpada

por se ter desviado do plano combinado e ia deixar-me ficar mais tempo

esta noite.

— Bee! Olha para este!

Agora estávamos à janela do quarto, a ver os jovens periquitos a

bater as asas e a chilrear por entre a segurança dos ramos. Azul-violáceo

com manchas de violeta e rosa-claro.

— Ali está outro! — gritei, quando um jovem periquito levantou voo

do beiral e aterrou no carvalho com uma névoa de azul a fugir para o

lilás. — Ele não quer que o deixem ficar para trás.

— Nunca ninguém quer, Jasper. Mas tu podes ajudar a impedir isso

de acontecer. — Fitas azul-celeste.

Bee Larkham dirigiu-se à cama e sentou-se. Eu fiquei a olhar

fixamente para a cómoda, tentando perceber o que ela estava a dizer.


Só restava um bibelô em cima da cómoda, a última Bailarina de

Porcelana. Senti pena dela; parecia solitária, sem as suas frágeis

companheiras. Todas a tinham abandonado. Não deviam ser amigas a

sério.

De repente, percebi que era eu, Jasper Wishart: um bibelô de

porcelana em forma humana, vestido de calças de ganga e camisola

verde.

Frágil.

À espera de ser desfeito em fragmentos minúsculos que não podiam

ser reconstruídos. Ninguém ia tentar consertar-me.

Ficaria sozinho quando os periquitos plenamente desenvolvidos

saíssem dos ninhos. Os seus pais iriam abandoná-los em breve e eles

iriam juntar-se a um poleiro comunitário.

Será que Bee via isso também? Estaria a tentar avisar-me?

— Sou tua amiga, não sou, Jasper? — disse Bee antes que eu

pudesse pedir que me esclarecesse. — Faz-me só este último favor. Leva

esta última carta. Diz ao Lucas que é uma emergência e que tenho de o

ver. Preciso de falar com ele.

Bee estava outra vez a confundir as coisas, quando devia estar

concentrada em como iríamos garantir que os pássaros continuavam a

voltar à árvore depois de terem saído do ninho.

Eu já tinha entregado uma última carta no dia anterior, no

laboratório de ciências. Não podia haver outra. Era esse o acordo. O

plano tinha sido rasgado. Considerado nulo.

— Não quero voltar a fazê-lo — repliquei. — Nem o Lucas. Ele

disse que estava tudo acabado. Não quer que o salve. Não quer voltar a

ter notícias suas nem receber mais presentes. Ele gosta de uma rapariga

que anda no mesmo ano que ele. Não quer que a Bee estrague as coisas

com ela. Isso, sim, parece natural. Parece normal.


— Sim, já me contaste tudo isso, o que foi realmente muito útil, mas

eu sei que, se falar com ele, posso fazê-lo mudar de ideias. Ele vai

perceber o que estou a passar. Por favor, Jasper. Tenho de vê-lo esta

noite. Ou amanhã à noite. Não te pedia isto se não fosse urgente.

— Não, obrigado. Já entreguei a sua última carta ontem, conforme

acordado, e o Lucas pô-la no caixote do lixo, juntamente com a outra.

Continuamos amigos, obrigado.

Bee levantou-se.

— Acho que devias ir para casa, Jasper. Imediatamente. — O azul-

celeste tinha-se transformado em aço-escuro.

Olhei para o relógio.

— Só estou aqui há vinte e três minutos. Acordámos quarenta e

cinco.

— Tudo mudou — disse Bee. — Não creio que possamos ter um

acordo depois da forma como te comportaste hoje.

— O que quer dizer com isso? Disse que continuávamos amigos. E

somos, não somos? Fiz aquilo que me disse. Entreguei a sua última

carta. E disse que, se eu fizesse isso, podia vir cá três vezes por semana

durante quarenta e cinco minutos. Na verdade, podia vir quatro.

— Detesto a pessoa em que me tornei. — Ela tapou o rosto com as

mãos. — A pessoa em que ele me transformou.

— Não compreendo.

Ela olhou para cima.

— É simples, Jasper. Faz isto por mim esta noite ou nunca mais te

deixo observar os periquitos da janela do meu quarto. Vou deixar de lhes

dar de comer, a não ser que faças exatamente o que eu disser.

6 de abril, 18h02
Formas Triangulares Laranja-Avermelhadas em papel

Abomino ainda mais estas cores e formas do que detesto as batatas

fritas amarelas do cão de David Gilbert.

Também vi outras cores e formas: os sons pontiagudos ametista e

jade da guitarra elétrica. Relâmpagos dourados familiares. Vinham da

morada que Bee Larkham me deu.

Glynbourne Road, número 17.

A casa de Lucas Drury.

Percorri o caminho da entrada e parei à porta, de mão levantada para

bater. A carta não podia esperar até à escola. Tinha de entregá-la naquela

noite, caso contrário os periquitos não teriam sementes para o jantar,

nem para o pequeno-almoço e almoço do dia seguinte.

Tínhamos estudado os mapas do Google e eu tinha praticado

mentalmente o caminho, sem cometer erros; não ficava longe e eu

estaria de volta muito antes de o meu pai voltar do trabalho.

Vinte minutos, no máximo.

Como Bee Larkham era minha amiga, tínhamos analisado tudo o

que podia acontecer, de forma que me sentisse melhor com o facto de ir

a casa de um desconhecido, ainda por cima sozinho.

Se fosse o pai a abrir a porta:

Finge que és amigo de Lucas e pergunta se ele está em casa.

Se Lucas não estivesse:

Não deixes a carta. Pergunta a que horas volta e diz que passas por

lá mais tarde porque é isso que os amigos fazem.

Toco à campainha. As linhas vacilantes de um azul prateado

desencadearam triângulos laranja-avermelhados. Um cão a ladrar.

No meu quadro, aquela cor obliterou os verdes e roxos vivos da

guitarra elétrica. Os lindos acordes tinham sido atacados mortalmente.


— Vai ver quem é, está bem, filho? — gritou uma voz castanho-

escura e baça. — Estou ao telefone.

Tínhamos falado muito sobre o pai de Lucas.

Não o enfureças. Ele tem um mau génio terrível.

Bee não me tinha preparado para isto.

Eu não me tinha candidatado a isto: um cão.

Os triângulos vermelhos alongam-se em flechas pontiagudas de um

laranja-profundo.

— Por amor de Deus, cala-te, Duke! Vai abrir a porta! Eu continuo

em espera. — Espigões castanho-sujos com arestas cinzentas.

Preparava-me para me ir embora, mas hesitei por uma fração de

segundo a mais. A porta abriu-se. Gritei, tropecei ao recuar e caí quando

um cão saltou para fora. Apoiado nos joelhos, vi o arco do seu salto em

câmara lenta, sabendo que estava prestes a aterrar em cima de mim. De

repente, voltou para trás e ladrou formas ameaçadoras vermelho-escuras.

— Sim? — Um rapaz com o mesmo uniforme que eu estava ao lado

do cão, um pastor-alemão, creio eu. A mão dele voltou a dar um puxão.

— Quieto, Duke! — Olhou para mim. — Jasper? De Vincent Gardens?

Vês as pessoas da janela do teu quarto com binóculos.

— Sim, obrigado. — Lucas Drury confirmara que me conhecia. Isso

era suficiente para mim.

Não prestei muita atenção à sua voz. Os triângulos vermelhos e

laranja-escuros abafavam a maior parte da cor rival. Levantei-me com

dificuldade e estendi o envelope. Tinha uma única palavra escrita:

Lucas.

Repeti o que Bee me tinha mandado dizer.

— É uma emergência. Ela tem de falar contigo esta noite. Amanhã,

o mais tardar. É importante. Usa a chave das traseiras. Não digas a

ninguém. Sobretudo ao teu pai.


— Hã? O quê? — disse o rapaz.

Um homem com um boné de basebol azul-marinho desbotado

juntou-se a ele na porta. Calças de ganga. Ténis brancos, possivelmente.

Eu estava concentrado nos triângulos vermelhos e pontiagudos do cão,

incapaz de desviar o olhar.

— Quem é?

— Ninguém importante. Um anormal lá da escola.

Virei-me e fugi no caso de ele largar a trela e o cão correr atrás de

mim.

— A propósito, Rapaz dos Binóculos — gritou ele, verde-escuro

com uma pontinha de azul-musgo. — Este bilhete é para o Lucas ou para

mim?

Oh, não! Oh, não! Oh, não! Oh, não!

Não respondi.

Continuei a correr até chegar ao parque. Fiquei nos baloiços durante

quarenta e três minutos, reproduzindo a conversa vezes sem conta na

minha cabeça.

Este bilhete é para o Lucas ou para mim?

Revi as cores na minha cabeça: Lucas Drury era verde-azulado e Lee

Drury verde-abeto.

A cor do rapaz com quem tinha falado tinha sido abafada pelas

tonalidades do cão, mas lembrava-me de haver mais verde do que azul

no seu tom.

Não tinha falado com Lucas.

Tinha dado o bilhete de Bee Larkham a outro rapaz que se parecia

com ele, usava o mesmo uniforme, morava em casa dele e tinha uma voz

com uma cor similar.

Lee Drury. Que estava ao lado de um homem com uma voz

castanho-escura baça. O pai dele.


Passaram-se mais vinte e um minutos antes de conseguir ir para casa.

Quando cheguei à minha rua, corri o mais depressa que pude.

Se estivesse em casa, a pintar esta cena de novo no meu quarto, teria

acrescentado uns quantos pontinhos violeta-acinzentados ao meu

quadro. Era o som de alguém a bater no vidro.

Bee Larkham estava cá em baixo, à janela, enquanto eu caminhava

pesadamente pelo passeio, produzindo formas em disco pretas. Fingi que

não a ouvi a bater. Não podia falar com ela. Não podia dizer-lhe que

tinha entregado o bilhete ao irmão errado.

Ela nunca mais me ia deixar ver os periquitos da janela do seu

quarto.

No dia seguinte, na escola, Lucas Drury sibilou tubos ocos e brancos

para mim no corredor, porque eu tinha mexido num ninho de vespas. O

seu pai tinha lido o bilhete de Bee Larkham e fora aos arames.

Lucas disse que estávamos ambos safos por agora porque o pai não

sabia que o bilhete era de Bee. Ela não o tinha assinado com o seu

nome, como de costume: só iniciais. Eu não devia dizer a ninguém que

ela me tinha dado aquele bilhete. Eu tinha de entregar uma mensagem

dele a Bee Larkham esta noite.

Não tentes contactar-me ou vamos todos ficar em sérios apuros.

Movi a cabeça para cima e para baixo, porque isso queria dizer que

Lucas Drury ia largar o meu blazer e desaparecer nas ondas dos rostos

anónimos no corredor.

Não admiti a verdade — eu não podia dizer a Bee Larkham o que

tinha acontecido.

Eu tinha de proteger os periquitos. Isso era a coisa mais importante.

O meu plano original.


Era a única coisa que eu queria.

Lembro-me melhor desse facto do que de todas as outras coisas

terríveis que aconteceram a seguir.


44

SÁBADO (TURQUESA)

Manhã

Tinha retirado a barricada improvisada com a estante e já estava

vestido quando Maggie, a nova assistente social, chegou para me levar à

esquadra. Não me tinha deitado. Não tinha dormido. Não tinha pintado.

Não tinha falado com Tom de Pele ou Cinzento-Ardósia ou pedido

desculpa por ter estragado alguns livros. Não tinha tomado o pequeno-

almoço porque não gostei da cor da embalagem de cereais, mas Maggie

disse que podíamos parar pelo caminho e comprar alguma coisa para

comer.

Levou-me novamente para aquela sala, com o livro de Harry Potter

com os cantos dobrados, o anuário Top Gear e o diabólico palhaço

maneta. Quando entrei, receberam-me como um amigo há muito

perdido, mas eu disse-lhes que não gostava de estar ali e que queria ir

para casa, ver os meus cadernos de apontamentos que estavam fora de

ordem.

Era o quadragésimo nono dia.

Alguns dos novos periquitos já estariam plenamente desenvolvidos e

deviam abandonar os ninhos hoje. Eu tinha de me despedir, antes de se


irem embora.

A sala parece-me igual, incluindo as manchas de vómito no sofá, as

manchas do meu vómito. Maggie tinha avisado os inspetores sobre o

espelho traiçoeiro, que tinha feito jogos psicológicos comigo da última

vez. Eles não querem correr riscos. Livraram-se dele. A câmara está no

mesmo sítio que da última vez.

A observar-me. A tentar apanhar-me com a boca na botija.

Laranja de Cromo Oxidado regressou hoje, infelizmente. Maggie

disse que o seu chefe estava encarregado da investigação do homicídio.

Ela pensava que era importante que eu falasse com alguém com que já

tivesse alguma ligação, alguém que tivesse sido especialmente treinado a

falar com crianças e jovens.

O chefe estava errado.

Eu não tenho nenhuma ligação com Laranja de Cromo Oxidado. Ele

pode falar, mas desconfio que faltou à sessão de ouvir.

Também estão presentes um advogado e um adulto adequado, porque

eu não quero ver o meu pai. Ainda não. De qualquer forma, não iam

deixá-lo entrar aqui. Há outro inspetor a interrogá-lo sobre a nossa

discussão.

Ele também vai ser interrogado sobre o que aconteceu a Bee

Larkham, disse Maggie.

Nas séries policiais televisivas, não permitem que os suspeitos sejam

interrogados juntos porque podem alterar as suas histórias e tentar torná-

las iguais. Eu decidi manter-me fiel à minha versão. Não sei que história

é que o meu pai está a contar.

A adulta adequada falará por mim, disse Laranja de Cromo Oxidado.

Ela está aqui para olhar pelos meus interesses porque o meu pai não

podia estar presente.


Nunca tinha visto esta mulher adequada na minha vida e não faço

ideia de como é que ela podia olhar pelos meus interesses. Ela não sabe

quais são. Provavelmente, não sabe uma única coisa sobre periquitos,

quadros ou cores. Queria a Maggie porque gosto da cor dela, mas ela

tinha outro compromisso.

— Quero que sejas claro em relação ao que está a acontecer, Jasper

— diz Laranja de Cromo Oxidado. — Quero ter a certeza de que

compreendes por que razão estás aqui hoje.

— Está bem. — Esfrego o botão que tenho no bolso.

É um alívio confessar, finalmente. Sem o meu pai aqui para me

impedir, posso dizer tudo a Richard Chamberlain — como o ator. Bem,

dizer-lhe outra vez. Vou ter de ser paciente porque ele não tem nada de

luminoso, para além do laranja de cromo oxidado da sua voz.

— Muito bem, Jasper — diz Laranja de Cromo Oxidado.

Esfrego o botão mais depressa. Com mais força. A sua voz fere-me

os ouvidos, arranha-me as costas e incendeia minúsculas bolas de fúria

na minha cabeça.

— Talvez me possas explicar porque é que achas que estás aqui

hoje…

Maggie, a assistente social, tinha-me feito sentar e explicara-me

alguns factos importantes antes de virmos para a esquadra. Pensava que

eu ia chorar e pôs uma caixa de lenços de papel em cima da mesa de

centro de Cor de Pele. Não precisei deles porque já sabia noventa e nove

por cento daquilo que ela me contou.

Eu sabia que Bee Larkham tinha sido assassinada.

Tinha imaginado que o corpo na mata fosse o dela.

Não sabia que o seu corpo tinha sido enfiado dentro da mala com as

coisas para a despedida de solteira. Esse era o um por cento restante.

Respiro fundo.
— Porque encontraram o corpo da minha vizinha Bee Larkham. Um

homem que andava a passear o cão encontrou a mala numa mata não

muito longe de Vincent Gardens, por volta das oito e quarenta e cinco da

manhã do dia de ontem. E querem fazer-me perguntas sobre o homicídio

de Bee Larkham.

— Muito bom. — Laranja de Cromo Oxidado abana a cabeça para

cima e para baixo. Faz-me lembrar um velho anúncio de televisão com

um cão a acenar com a cabeça. Gosto desse cão. Não gosto de Laranja

de Cromo Oxidado. O facto de Bee Larkham ter sido assassinada não

tem nada de «bom». Será que ele não devia ser repreendido por dizer

uma parvoíce dessas? O seu assassinato é provavelmente o oposto de

«muito bom».

— Agora quero que penses cuidadosamente antes de responderes à

próxima pergunta, Jasper. — Conto cinco segundos. — Sabes dizer-me

quando foi a última vez que viste Bee Larkham?

Outra pergunta simples.

— Vi-a no dia em que ela morreu. Há uma semana, na sexta-feira.

— Isso é interessante, Jasper. E útil.

Tento abafar um suspiro em forma de mancha circular, mas escapa-

me da boca. Não é interessante nem útil. É a verdade. É o que lhe disse

durante o primeiro relato, se ele se tivesse dado ao trabalho de ouvir.

Cristais de azul-glacial com arestas brilhantes e pingentes de gelo

prateados e serrilhados.

— Podes explicar a todos nós o que queres dizer quando dizes que

foi esse o dia em que Bee Larkham morreu? — continua Laranja de

Cromo Oxidado.

A sério? Não fui suficientemente claro?

— Sexta-feira, oito de abril — sublinho —, foi o dia em que Bee

Larkham foi assassinada.


O meu advogado escrevinha no seu bloco. Porque é que está a

escrever o que eu disse quando pode passar a gravação da câmara? Terá

medo de que não esteja a funcionar?

Laranja de Cromo Oxidado inclina-se para a frente.

— É essa a parte que gostava que me explicasses, Jasper. Como

podes ter a certeza de que foi esse o dia em que Bee Larkham foi

assassinada?

Respiro fundo, mais fundo do que da vez em que saltei todo vestido

para o lago quando fui acampar com o meu pai em Cumbria. Sabia que a

água estava fria, mas não estava preparado para a forma como as

profundezas geladas transformaram as minhas pernas em pedra,

arrastando-me para o fundo.

O meu pai saltou lá para dentro para me salvar. Ele não está aqui

hoje. Não pode voltar a salvar-me porque está a tentar salvar-se. Outros

inspetores estão a comparar a história dele com a minha, à procura de

falhas nas nossas histórias.

— Porque eu assassinei Bee Larkham.

Cinco palavras. Esperava que elas provocassem uma torrente de

perguntas da parte de Laranja de Cromo Oxidado, mas a sala permanece

em silêncio. Talvez ele continue sem perceber. Talvez não consiga

encaixar as peças.

— Assassinei Bee Larkham na sexta-feira, oito de abril.

Reorganizo as palavras noutra frase para ajudar Laranja de Cromo

Oxidado a perceber. Estou a construir a história, pincelada a pincelada.

— Lamento — acrescento. — Não fazia ideia de que ia matá-la

quando fui lanchar a casa dela, nem que o meu pai ia limpar o sangue

todo e esconder o corpo na mala que estava na entrada e levá-la para

uma mata próxima de nossa casa.


— Creio que agora é uma boa altura para o meu cliente fazer uma

pausa — diz o meu advogado. A sua voz é de uma reconfortante cor de

café com generosas gotas de leite.

Agora? Ainda agora comecei a confessar. A este ritmo, vai levar uma

eternidade.

— Eu estou bem — digo. — Quer dizer, não propriamente bem.

Como é óbvio, não posso estar bem quando matei Bee Larkham.

Nunca mais vou voltar a estar bem. Só posso estar mal. É o que mereço.

Se acreditasse no Inferno, ia direitinho para lá, sem mais delongas.

— Precisamos de fazer uma pausa, Jasper — diz o advogado. — Tu

e eu precisamos de conversar antes que digas mais alguma coisa ao

inspetor.

Preparo-me para dizer que quero continuar, mas a cor de Laranja de

Cromo Oxidado cobre a minha voz.

— Com certeza. Jasper Wishart pediu que o interrogatório seja

suspenso. Este interrogatório terminou às dez e quinze.

— Não fui eu que pedi que o interrogatório fosse suspenso. — Falo

entredentes, com as mãos à frente da boca. — Quem pediu foi o

advogado.

— Foi tomada devida nota, obrigado, Jasper — diz Laranja de

Cromo Oxidado. — Não há problema. Podemos recomeçar o

interrogatório quando te sentires pronto. Queres alguma coisa para

comer ou beber? Temos latas de Coca-Cola e chocolates na máquina de

venda automática, se quiseres.

— Obrigado, mas o meu pai diz que a cafeína e o chocolate me

deixam hiperativo.

— Bem, diz-nos se mudares de ideias.

Já mudei de ideias.
O facto de o meu pai descobrir que bebi uma lata de Coca-Cola e

comi um chocolate será, provavelmente, o menor dos meus problemas,

agora que confessei um homicídio. Também pode ser a última

oportunidade de comer algo assim, pois duvido que haja máquinas de

venda automática nas instituições para jovens criminosos ou onde quer

que seja que planeiam prender-me.

De qualquer forma, é demasiado tarde. Laranja de Cromo Oxidado

já saiu dali. A porta fecha-se com um clique num círculo texturado. Na

sala, fico apenas eu, o meu advogado e a adulta adequada. Ela não disse

uma palavra. Decididamente, não sabe os meus interesses.

Sinto-me completamente sozinho. Não consigo parar de tremer.

Voltei a saltar para o lago gélido. Desta vez, ninguém quer ajudar a tirar-

me de lá para fora. Estou no fundo do lago.

Ninguém me consegue encontrar. Ninguém se dará ao trabalho de

procurar.
45

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 10H30

O advogado tinha razão. Eu precisava de uma pequena pausa de

Laranja de Cromo Oxidado. As suas cores confundiam-me e produziam

formas estranhas e indesejadas. O nome do meu advogado é Leo, o que

me faz pensar num leão, uma palavra rosa-melancia.

Leo tem uma voz cor de café com leite e não parece um leão, o que é

dececionante. Tem a vantagem de ter uma barbicha e óculos vermelhos

fáceis de memorizar. Leo comprou-me uma lata de Coca-Cola e um Kit

Kat porque a máquina de venda automática já não tinha Mars. Eu tinha-

o avisado de que era capaz de ficar a bater os braços como um periquito,

mas ele disse que eu podia fazê-lo à vontade, o que foi simpático da sua

parte. Para ser sincero, ele não tinha visto a minha figura quando faço

isso.

Ele estava muito mais interessado em falar sobre os meus direitos e

em discutir o que eu queria contar à polícia. Eu disse-lhe o que tinha

acontecido. Disse que era um peso que queria tirar do meu peito. É a

frase que a professora assistente usa quando eu apareço para as nossas

reuniões na escola.

Há alguma coisa que te aflija e que me queiras contar para tirar

esse peso do peito?


Achei estranho da primeira vez que ela o disse, mas agora rimo-nos

disso. Tornou-se uma coisa só nossa depois de eu lhe dizer que aquilo

me fazia lembrar a criatura que sai do peito do homem no filme Alien.

Laranja de Cromo Oxidado acabou de explicar que fui formalmente

detido pelo homicídio de Bee Larkham. Agora tenho certos direitos,

como o de não dizer nada. Posso ficar em silêncio absoluto.

— Compreendes o que te expliquei? — pergunta Laranja de Cromo

Oxidado.

Movo a cabeça para cima e para baixo. Não tenho de dizer nada, ele

acabou de explicar isso mesmo.

Ele diz-me que preferia que eu dissesse a palavra «sim» em voz alta,

mas a câmara vai gravar o meu gesto de anuência.

Não digo nada. Movo a cabeça de novo.

— Podemos continuar? — pergunta ele.

Leo confirma que podemos, e a sua voz ganha um tom mais grave,

de café com leite gordo cremoso.

— Vamos retomar o nosso interrogatório às dez horas e trinta — diz

Laranja de Cromo Oxidado. — Toda a gente que está presente queira

fazer o favor de dizer o seu nome, para que conste.

Começamos, um por um. Leo fala por mim, porque eu não o quero

fazer. Há mais outra pessoa, Sarah Harper. É também inspetora, como

Laranja de Cromo Oxidado, mas a sua voz tem uma cor mais suportável.

Verde-claro baço.

Não é cor que queira pintar, mas consigo tolerá-la para já.

Laranja de Cromo Oxidado pede-me para confirmar que nenhum

agente da polícia me interrogou sobre esta investigação durante a pausa,

enquanto a câmara estava desligada. Depois de Leo confirmar, Laranja

de Cromo Oxidado começa no sítio certo, por uma vez, precisamente no

ponto onde ficámos.


— Gostava de ler o que disseste durante o nosso último

interrogatório. Disseste: «Assassinei Bee Larkham na sexta-feira, oito de

abril.» Lembras-te de ter dito isso?

Lembro. Tento não me rir porque isto é sério. Estou a imaginar um

extraterrestre a sair do peito de Laranja de Cromo Oxidado.

— Podes fazer o favor de responder sim ou não, Jasper?

— Sim.

Começo a balançar-me para a frente e para trás. Não consigo evitar.

Ninguém me repreende nem me diz para parar. Talvez não tenham

reparado.

— Vão-me levar diretamente para a prisão? Quero ver o meu pai

antes de ir para lá. Posso vê-lo agora?

— De momento, estamos apenas a fazer perguntas — replica. — É

só isso que está a acontecer. Não vais ser levado para a prisão. Não tens

de te preocupar com isso.

— Estou preocupado com o que irá acontecer ao meu pai, se eu for

para a prisão. Não me parece que vá ficar muito bem.

— O teu pai está ótimo — diz Verde-Claro Baço. — Vamos fazer-te

mais umas perguntas e depois podes fazer outra pausa.

Ela não respondeu se posso ou não ver o meu pai. Suponho que isso

signifique que «não». Talvez me deixem depois de eu confessar como

deve ser.

— Talvez possamos voltar a esse dia — sugere ela. — Ao dia em que

afirmas ter assassinado Bee Larkham.

Não compreendo muitas vezes a forma como as pessoas falam. Bem,

a maior parte do tempo, na verdade. As pessoas não dizem o que querem

nem querem dizer o que dizem. Falam num código que eu não consigo

decifrar. Não sou estúpido. A forma como ela diz aquilo faz-me pensar

que talvez não acredite na minha história.


Agora quero bloquear as cores dela, assim como as de Laranja de

Cromo Oxidado.

Afirmas ter assassinado Bee Larkham.

Imagino as suas outras tiradas, à medida que formos avançando com

o interrogatório.

Afirmas muita coisa, não é, Jasper?

O que mais vais afirmar hoje?

Porque é que havemos de acreditar no que uma pessoa como tu

afirma?

Aceitei a cor da sua voz quando ela disse o seu nome, para que

constasse. Agora não gosto dela. Não consigo confiar nela, da mesma

forma que não consigo confiar na cor de Laranja de Cromo Oxidado.

Não posso basear-me nos meus primeiros instintos no que respeita a

vozes. Sou o culpado que não é digno de confiança.

Pouso a cabeça sobre as mãos. As cores verde-claro baço e café com

leite fundem-se numa mistura grumosa com laranja de cromo oxidado.

Vai explodir na minha cabeça como um míssil mortífero, rebentando

com a minha massa cinzenta e destruindo todas as células pelo caminho.

— O meu cliente deu indicação de que deseja cooperar plenamente

— diz Café com Leite —, mas tem dificuldade em lidar com tudo isto,

como certamente ambos poderão compreender. Acho que é melhor ser

eu a falar em seu nome, nesta fase.

Nenhum dos inspetores diz seja o que for. Pergunto-me se estarão a

mover a cabeça da esquerda para a direita ou para cima e para baixo. De

qualquer forma, tenho de admirar a perícia de Leo a cortar a direito

através das cores dissonantes. Eu não conseguiria fazê-lo sozinho.

Perdi a concentração, o fio condutor de toda a história.

— O Jasper está preparado para fazer um depoimento completo por

escrito sobre a forma como matou acidentalmente Bee Larkham com


uma faca durante uma altercação na cozinha dela, na noite de oito de

abril. Ele fugiu de lá, com a faca e os quadros dos periquitos, e ficou no

seu esconderijo até o pai regressar a casa do trabalho.

— Uma faca? — diz Laranja de Cromo Oxidado, como um eco.

— Sim, uma faca — confirma Café com Leite. — Se bem percebi,

Bee Larkham tinha uma faca comprida na gaveta da cozinha. Nesse dia,

usou-a para cortar uma empada.

Endireito-me na cadeira e olho para Leo. Está a fazer um bom

trabalho a lidar com Laranja de Cromo Oxidado, apesar de ter de repetir

palavras e frases como se estivesse a falar com um surdo. Também está a

omitir fragmentos e a saltar para a frente e para trás, mas a culpa é

minha.

Não tenho a certeza se lhe contei absolutamente tudo.

— Jasper diz que Bee Larkham tinha feito uma empada

especialmente para ele, nessa tarde — continua Leo.

As bocas de Laranja de Cromo Oxidado e de Verde-Claro Baço

rasgam-se num sorriso ao olhar para mim.

— Foi simpático da parte de Miss Larkham — diz Laranja de

Cromo Oxidado. — Fazer-te uma empada.

Começo a gritar com ele porque é o homem mais estúpido que

alguma vez conheci. Gritos azul-esverdeados esculpidos de forma cruel

com pináculos pontiagudos e gélidos.

A empada não tinha nada de simpático. Nada mesmo.

Era uma arma, muito mais maldosa e calculista do que a faca que

usei para matar Bee Larkham.


46

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 10H43

Não preciso de um pincel. Estou a pintar as cores na minha cabeça

enquanto Leo fala com os inspetores.

O dia em que Bee Larkham foi assassinada devia ter sido um anil de

cortar a respiração, porque era sexta-feira, mas tudo o que conseguia ver

era azul-celeste. A cor da voz de Bee Larkham.

Andava a evitá-la desde quarta-feira à noite. Saía a correr de casa e

quando voltava da escola já vinha de chave na mão para abrir a porta e

me esconder lá dentro. Mantinha as cortinas fechadas, verificando os

comedouros através da fresta no tecido. O meu plano tinha resultado.

Bee Larkham continuava a alimentar os periquitos porque ainda não

tinha descoberto o meu erro catastrófico.

Lucas não lhe tinha contado. Não queria nada que ver com ela. Eu

tinha escrito a mensagem no meu caderno de apontamentos — a avisá-la

para não tentar contactá-lo —, mas não a tinha transmitido. Não podia.

Não dormia decentemente desde então, desde que tinha entregado o

bilhete.
O meu timing ficou comprometido desde que acordei na sexta-feira,

8 de abril. O meu despertador não tocou. Nem o do meu pai. Ambos

corremos pela casa como loucos.

— Até logo à noite — berrou o meu pai.

— À noite — confirmei, fechando a porta com força. Um grande

retângulo castanho-ferruginoso a expandir-se. Corri pelo caminho da

entrada.

— Espera, Jasper! Sou eu. A tua amiga, Bee Larkham. — A sua voz

azul-celeste estava orlada a gelo.

Tinha estado à espera que eu fechasse o portão. As suas andorinhas

de prata voavam em direções opostas e os seus olhos estavam

vermelhos. Não queria parar para falar com Bee, porque ela podia

obrigar-me a contar-lhe o erro que cometera.

— Tenho de ir, Bee Larkham. Estou atrasado. Como o Coelho

Branco na sua história preferida.

— Odeio a minha história. Já te tinha dito. O meu final não é assim.

Pestanejei. Não vi os seus lábios mexer-se porque estava a olhar para

o passeio. Devo ter imaginado aquilo, porque me lembrava de ela dizer

que era a sua história preferida em criança. Antes de crescer e deixar de

gostar dela.

Desta vez, olhei para ela quando voltou a falar, para ter a certeza de

que não cometia outro erro estúpido.

— Entregaste o bilhete que te dei na quarta-feira à noite? —

perguntou.

— Sim. Entreguei-o no número dezassete de Glynbourne Road. Tem

de continuar a alimentar os periquitos, como combinámos.

— E entregaste-o ao Lucas, de certeza?

— Preciso de ir andando. Cumpri o novo acordo. Adeus.

— Espera, Jasper! Temos de falar sobre isto. É importante.


— Entreguei o bilhete em casa dele, está bem? Ele recebeu-o.

Não era cem por cento mentira porque tinha sido um «ele» que

recebera o bilhete. Só não era o «ele» que devia ser.

— Ele não veio ver-me na quarta-feira nem ontem à noite. Viste-o

abrir o envelope? Ele leu-o mesmo?

— Não sei. Não fiquei à espera. Não entrei em casa dele. — Tentei

contorná-la, mas ela mudou de posição.

— Devia ter-te dito para esperares por uma resposta — disse Bee. —

Esse foi o meu erro.

— Não — repliquei. — O cão que ladrava triângulos laranja-

avermelhados saltou. Da porta. Para cima de mim. O erro foi esse.

Bee ignorou a minha revelação bombástica.

— Deve ter acontecido alguma coisa com o pai dele. Deve ser isso,

porque ele não ia ignorar-me desta maneira, não depois de eu lhe ter

dado a notícia.

— O Lucas não quer que o salve. Disse que a Bee arrasta as pessoas

para o fundo consigo.

Bee olhou-me fixamente. Não sabia dizer se estava zangada ou triste.

— Vem ter comigo depois da escola, por favor.

— Não. Detesto cães. Não posso voltar a casa do Lucas. Não me

pode obrigar a voltar lá. O acordo não foi esse. Eu cumpri a minha parte.

Ela puxou um caracol de cabelo de trás da orelha e enrolou-o à volta

do dedo. Tinha umas marcas estranhas nos pulsos, como riscas

vermelhas numa bengala doce.

— Sinto-me pessimamente por te ter tratado tão mal, Jasper. Quero

compensar-te. Por favor, deixa-me fazer isso. Estou a pensar num grande

presente: muito tempo durante toda a próxima semana, para veres os

periquitos. Isso deve dar-te muita coisa para pintar em casa.

Porque é que não fugi antes de voltar a beber as suas palavras?


— Tenho saudades de ver os teus quadros — continuou ela. —

Deduzo que tenhas trabalhado muito neles porque as cortinas do teu

quarto têm estado fechadas. Tens andado a pintar os periquitos, não

tens? Vens cá mostrar-me os quadros, depois da escola? Podemos vê-los

juntos, depois de teres observado os periquitos da minha janela.

Um homem aproximou-se de nós e murmurou Olá, Beatrice. Ela não

disse nada; também não o devia ter reconhecido. Falava com suavidade,

em linhas indistintas cinzento-esbranquiçadas. Contei dez passos

quando ele passou por nós. Ao décimo primeiro, olhou para trás. Talvez

esperasse que Bee o tivesse reconhecido finalmente, mas ela estava a

olhar para mim. Desta vez, segurava o seu pendente de obsidiana, em

vez do cabelo.

— Quero ver as pinturas que fizeste dos periquitos. Dá-me tanta

alegria olhar para elas. Ajudam-me a esquecer as coisas más.

Bee já tinha dito isto no seu quarto. Continuava sem perceber o que

queria dizer com isso. Virou-se e olhou para a estrada, mas não devia ter

visto nada de mal. Estava vazia, tirando um homem, provavelmente

aquele que passara por nós e a cumprimentara. Ele virou à direita, ao

fundo da rua.

— É só isso que quer fazer? — perguntei. — Quer falar sobre os

quadros dos periquitos? Não vai falar sobre Lucas Drury?

— Bem, não vou falar apenas sobre isso, Jasper.

Afastei-me para um lado.

— Eu não volto àquela casa. Àquele cão enorme, com os seus latidos

de cores horríveis.

Bee passou uma mão pelo cabelo. Eu cravei os olhos no seu pulso

porque não queria olhar para o rímel esborratado e as maçãs do rosto

sulcadas de lágrimas.

— Linhas vermelhas cruzadas.


— Deixa lá as tuas cores — disse ela. — Estou preocupada com os

periquitos.

— Está a dar-lhes de comer porque eu fiz exatamente o que me disse

— observei. — Entreguei o bilhete em casa de Lucas Drury. Ambos

cumprimos a nossa parte do acordo.

— Eu sei, mas o David anda a ameaçar-me outra vez. Já está a tentar

obter uma ordem de redução de ruído contra mim. Ele vai voltar a

queixar-se dos periquitos à câmara, a menos que eu deixe de lhes dar de

comer. Posso ter de deixar de alimentá-los, Jasper.

— Não pode deixar de lhes dar de comer — protestei.

— Foi isso que eu disse ao David. Ele assusta-me, Jasper. Assusta-

me a sério. Não é como as pessoas normais. Gosta de matar. Se não for

ele a abater os pássaros, é capaz de encontrar alguém que o faça. Diz

que os funcionários da câmara encarregados do controlo de pragas

podem aceder a propriedade privada para destruir os periquitos, se eles

se tornarem um problema. Têm esse tipo de poder.

Tirei o telemóvel para fora do bolso do meu anoraque.

— Não, não, não me parece que possamos ligar para o cento e doze

ainda. Pensei que podíamos arranjar um plano juntos para o combater.

Sei que tens imensas anotações. A polícia vai ter de ouvir-nos aos dois,

se juntarmos as provas que temos. Podemos ver exatamente o que temos

contra ele, um padrão de ações incriminatórias.

— Sim, Bee Larkham — disse sem hesitar. — Temos de fazer isso.

Eu venho cá depois da escola, com as minhas notas.

— E as tuas pinturas. Não te esqueças delas. Gostava de as ver.

Preciso de me animar e elas fazem-me sempre sentir tão feliz.

— Não se preocupe, Bee Larkham. Eu não me esqueço.

— Ótimo. — Juntou as mãos. — Que tal às seis da tarde? Porque é

que não ficas para comer? Assim, não tens de estar à pressa. Gostas de
piza?

— Esta noite é empada de galinha, e não piza. É o que como sempre

à sexta-feira à noite. O meu pai vai trabalhar até tarde e deixou a caixa

no frigorífico. Tenho de cozinhá-la no forno a cento e oitenta graus

durante trinta minutos.

— Nesse caso, vou fazer-te a melhor empada de galinha caseira que

já comeste — disse Bee. — Já encontrei uma receita num dos velhos

livros de cozinha da minha mãe. Vais adorar.


47

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 11H01

— Quero que faças isto com calma — diz Laranja de Cromo

Oxidado. — Desde a altura em que entraste em casa de Bee Larkham na

noite de sexta-feira, oito de abril. Não precisas de ter pressa. Podemos

fazer isto ao teu ritmo.

Leo explica que não quero ninguém a olhar para mim enquanto falo.

Eles concordam. Não consigo encontrar as palavras certas, nem mesmo

quando trocam de lugar. Laranja de Cromo Oxidado sugere que

experimente de outra forma.

Diz-me para pintar mentalmente um quadro — uma boa ideia, mas é

difícil porque tenho medo das cores. Sei que querem fazer-me mal.

Lembra-te, uma pincelada atrás da outra. É só isso que tenho de

fazer: contar esta parte da história com uma pincelada, uma mancha de

cor, de cada vez.

— Vieste, Jasper! — Uma mulher loura estava à porta do número 20

de Vincent Gardens. O cabelo caía-lhe sobre os ombros, húmido e


virado nas pontas. Cheirou-me a coco, o que não me era familiar, mas

tinha andorinhas de prata nas orelhas e um pendente preto ao pescoço.

Obsidiana: a pedra de proteção mais forte do mundo.

— Não tinha a certeza de que viesses.

Azul-celeste. Decididamente, Bee Larkham. A sua voz tinha uma cor

tão característica que era impossível confundi-la com a de outra pessoa

qualquer.

— Cumpres sempre a tua palavra — continuou. — É isso que adoro

em ti, Jasper. Nunca me desiludes. Queres fazer sempre o que é certo.

Segurei o meu portefólio junto à barriga com mais força. Ao ombro,

trazia um saco de cadernos de apontamentos, que continham o registo

das ameaças de David Gilbert. Preguei os olhos no tapete da entrada,

que tinha bocados de lama seca nas suas cerdas.

Ao lado dele, estava uma grande mala preta, pronta para ir embora.

— Entra, entra.

Voltei a sentir o cheiro a coco nas narinas quando a porta se fechou.

Ela pegou no meu anoraque e pendurou-o no bengaleiro.

— O que achas? — Deu uma voltinha. O seu vestido azul comprido

abriu-se em leque, enquanto fazia piruetas.

— Fiquei a pensar no que me disse esta manhã. Precisa de instalar

câmaras de vigilância no exterior da sua casa porque não posso estar de

sentinela o tempo todo na janela do meu quarto. Tenho de ir à escola e

de dormir. Assim, podíamos apanhar David Gilbert a invadir o seu

jardim.

— Não, eu estava a falar do meu vestido. Usei-o especialmente para

ti porque sei que adoras a cor. É azul-cobalto. A tua cor preferida.

— Não é azul-cobalto.

— Tenho a certeza de que é, Jasper. A senhora da loja disse-me.

— Estava enganada. É demasiado escuro para ser azul-cobalto.


Bee riu azul-celeste com picos cinzento-escuros, mais altos e

pontiagudos do que antes. Se estivesse a pintar a cena, faria refletir isso

nas pinceladas.

— Se tu o dizes, Jasper. Quer dizer, tu é que és o especialista em

cores e tintas, e não eu! De qualquer forma, queria que soubesses que

estava a pensar em ti quando ontem o comprei. A senhora da loja

afirmou que era azul-cobalto e eu acreditei na sua palavra. Que tonta

que eu sou. Era essa a cor da tua mãe, não era? Azul-cobalto?

— A minha mãe era sempre azul-cobalto.

— E que cor sou eu?

— Azul-celeste. Já lhe tinha dito isso, Bee Larkham. Devia pôr uma

cerca à volta do carvalho, para proteger os periquitos. Também

podíamos telefonar para a Real Sociedade para a Proteção das Aves, em

vez de ligarmos à polícia. Encontrei o número de telefone na Internet.

Bee bateu as mãos.

— Claro! Azul-celeste. Que tonta que eu sou! Isso significa que eu e

a tua mãe temos praticamente a mesma cor. Isso quase nos torna irmãs.

Bem, pessoas da mesma família, pelo menos. A família é importante,

Jasper. Não achas? É algo que nunca tive e sempre quis.

A minha mãe não tinha irmãs. Era filha única. Além disso, o azul-

cobalto é feito usando óxido de cobalto e sais de alumina. Foi usado pela

primeira vez como nome de uma cor em inglês, em 1777.

— Em 1818, o aguarelista John Varley sugeriu substituir azul-

cobalto por azul-ultramarino quando pintava céus — repliquei.

— Hum. — Nuvens turvas quase taparam o seu azul-celeste.

Bee sacudiu o cabelo para um lado. Mais coco.

— Porque é que não vens até à cozinha e te sentas, enquanto acabo

de me preparar? — disse ela. — Tenho estado ocupada a guardar roupa

com brilhantes na mala, para o fim de semana da despedida de solteira


da minha amiga. Não conseguia decidir o que havia de levar. Acabei por

pôr tanta coisa dentro da mala que tive de me sentar em cima dela para

correr o fecho. De qualquer forma, perdi a noção do tempo.

— São seis da tarde — redargui. — A hora que combinámos para eu

vir cá falar sobre os nossos planos para David Gilbert e para ver os meus

quadros dos periquitos.

— Sim, mas tu és o único rapaz que conheço que aparece a horas. A

maior parte dos rapazes chegam atrasados. O Lucas chegava sempre

atrasado. Não te lembras como ele estava sempre atrasado?

Não me lembrava disso. Não o conhecia suficientemente bem para

dizer se isso era verdadeiro ou falso.

— Ele estava na escola, hoje — disse. — Não sei se estava atrasado

ou não para as aulas. Ele é mais velho do que eu e não andamos na

mesma turma.

Segui-a até à cozinha. Não tinha o aspeto ou o cheiro do costume.

Havia pratos, tigelas e outros utensílios empilhados no lava-louça, por

lavar. Tachos e panelas sujos em todas as superfícies, incluindo a mesa

onde eu contava dispor as minhas pinturas. Tinha três caroços de maçã

castanhos e um bocado de açúcar entornado de um grande pacote

branco. Bee também se tinha esquecido de deitar fora uma embalagem

de leite vazia.

— Viste-o?

— Quem? — Queria que Bee andasse pela cozinha a limpar, tal

como a Branca de Neve fazia com todos aqueles animais da floresta:

esquilos, coelhos e ratos.

— Lucas.

Estávamos de volta ao tema preferido de Bee Larkham, tirando os

periquitos, os periquitos para que deveríamos estar a olhar se ela

limpasse a mesa. A culpa era minha. Ela tinha-me convidado para ir ali
falar sobre David Gilbert e eu tinha falado no nome de Lucas Drury por

acaso. Tinha sido eu, e não ela. Porque é que eu tinha feito uma coisa

dessas?

— O senhor Paulson, o subdiretor da escola, leu o nome de Lucas

Drury durante a assembleia e um rapaz foi receber o prémio da sua

turma — esclareci. — Ganharam o desafio da reciclagem, esta semana.

E, já agora, Lucas Drury não chegou atrasado. Só levou vinte e nove

segundos a subir ao palco. Foi rápido. Há miúdos que chegam a levar

um minuto e dezassete segundos para fazer o mesmo.

Bee brincou com o vestido. Não achava que lhe ficasse bem. E

também não condizia com o pendente.

— Talvez Lucas goste de me fazer esperar. Como na quarta-feira à

noite, quando não apareceu. Cozinhei-lhe uma ceia e esperei durante

duas horas, Jasper. Consegues imaginar? Quem é que deixa uma senhora

à espera esse tempo todo, depois de ela ter cozinhado uma bela refeição?

— Uma pessoa que não tenha relógio? — sugeri.

— Não alguém como tu, Jasper. — Bee agachou-se e espreitou para

dentro do forno. — Não tenho temporizador. Temos de ficar de olho na

minha empada. — Calçou umas grandes luvas às riscas azuis e brancas

e abriu a porta, inspirando profundamente.

— Ahhh! — exclamou, fechando os olhos.

Também senti o cheiro de alguma coisa deliciosa. Empada de

galinha.

— Tu nunca me deixarias à espera dessa maneira, pois não, Jasper?

És um cavalheiro. Um verdadeiro cavalheiro.

— Tenho um relógio. Isso significa que chego sempre a horas.

— Essa é outra coisa de que gosto em ti, Jasper. — Fechou a porta

do forno com força. — Faíscas amarelas. — O cumprimento de

horários é uma qualidade rara nos rapazes, assim como as boas


maneiras. Ambas são totalmente subestimadas hoje em dia, mas as

mulheres gostam de cavalheiros.

Ela ignorou a desarrumação e abriu o frigorífico. As minhas mãos

palpitavam de ansiedade. Porque é que ela não estava a limpar tudo?

Tirou para fora uma garrafa de vinho e segurou-a em ambas as mãos.

— Preciso de uma bebida. Não fazes ideia do quanto quero um copo

de vinho, Jasper, mas não posso.

— Eu não me importo — retorqui. — Se tem sede, deve beber.

Bee guardou novamente a garrafa no frigorífico.

— Obrigada, mas estou a portar-me bem. Tenho de ser boazinha. O

que é difícil para mim. Porque ser má é muito mais divertido, não achas?

— Soltou um coro de gargalhadas raiado de azul.

Abri o meu portefólio, sem saber o que dizer ou fazer.

Queria expor todas as oito pinturas, para ambos as analisarmos. Era

esse o plano original, depois de termos falado sobre David Gilbert, mas

a mesa estava peganhenta e atravancada. Para além do açúcar

derramado, ela tinha-se esquecido de limpá-la a seguir ao pequeno-

almoço. Havia dois flocos de milho colados à madeira. Deixei-me cair

numa cadeira e raspei a crosta de cereal com a unha. Já tinha secado, por

isso estava dura e afiada.

— Ai! — Enfiou-se debaixo da unha, penetrando-me a cutícula.

Bee Larkham não disse nada, enquanto eu chupava a pele. Trauteou

uma melodia tipo sabrina cor-de-rosa na minha direção, uma melodia

que não reconheci.

— Ainda bem que mencionaste o facto de o Lucas estar na escola

hoje — disse ela finalmente. — Tenho andado preocupada com ele. E

contigo também. Não vejo nenhum dos dois desde que te pedi para lhe

entregares o meu bilhete.


Mexi-me desconfortavelmente no lugar. Não queria falar sobre o

ladrar laranja-avermelhado do cão, nem do castanho-sujo com arestas

cinzentas do pai de Lucas a gritar novamente.

— Tenho de ir. — Levantei-me, derrubando a cadeira e irradiando

círculos castanho-baços.

— Desculpa, Jasper. Volta a sentar-te.

— Quero levar as minhas pinturas e cadernos de apontamentos para

casa. Disse que queria vê-los, mas não perguntou uma única vez por

eles. Só faz perguntas sobre Lucas. É a única coisa que lhe interessa,

quando devia estar interessada em proteger os nossos periquitos.

— Isso não é verdade — disse Bee. — Não queria perturbar-te,

Jasper. Mas é que estou perturbada. Como tu.

Olhei para o sangue que se acumulava por baixo da minha unha. O

floco de milho era afiado, como uma faca minúscula. Como é que uma

coisa tão pequenina podia provocar tanta dor?

— Não te posso deixar espalhar os teus lindos quadros na minha

mesa suja. Senta-te outra vez, enquanto arranjo espaço para ti.

Hesitei. Da mesma forma que tinha hesitado quando ela me apanhou

na rua.

Ir embora ou ficar.

Ficar ou ir embora.

Queria ir embora, mas Bee andava de um lado para o outro, como a

Branca de Neve, sem animais para a ajudar, a limpar a mesa. Pôs a

embalagem de leite vazia no lixo, apanhou os caroços de maçã e o

açúcar derramado e atirou uma pilha de jornais para o caixote da

reciclagem.

— Espera, espera, ainda não acabei! Sou mesmo desmazelada. Tem

sido uma semana difícil. Deixei as coisas acumular-se. Nem sequer


olhes para a louça toda que tenho para lavar. A máquina avariou e eu

deixei atrasar as coisas.

Ensopou uma esponja azul debaixo da torneira. Linhas cinzentas e

azul-claras.

A água saltou para os mosaicos brancos.

Ping, ping, ping.

Formas de dedal mais escuras.

Bee estava em risco de escorregar na água derramada e de se

magoar. Havia uma grande probabilidade de acidentes em casa, que

resultavam em cerca de seis mil mortes por ano.

Antes de ter tido tempo de avisá-la, deixou cair água em cima da

mesa, salpicando uma das pinturas que eu tinha no colo. Empurrei a

cadeira para trás e levantei-me, agarrando a cadeira para impedir que

voltasse a cair e produzisse mais formas.

— Desculpa, desculpa. Quero que esteja tudo perfeito para os teus

quadros. A mesa tem de estar completamente limpa para expor o teu

trabalho. Não sei onde tinha a cabeça, para não ter limpado tudo antes

de chegares.

Olhei para o meu quadro. Uma manchinha molhada estava a

aumentar de tamanho, o que fez com que o som azul-safira do periquito

adulto esbarrasse no tom mais claro da sua prole. Isso alterou o tempo

das suas vozes, tornando-as desafinadas.

— O meu quadro está estragado.

— Não está estragado, Jasper — disse Bee.

Ela estava enganada, da mesma forma que se tinha enganado antes

em relação a outras coisas. Não gostei da sua voz. Tinha arestas afiadas

e formas pontiagudas.

— Estragado não é uma mancha de água num quadro. Mal se nota.

Estragado é quando a nossa vida vai pelo cano abaixo e não há nada que
possamos fazer para o impedir. Estragado é perder o amor da nossa vida

e não saber como recuperá-lo.

Fechei os olhos e dei por mim a balançar para a frente e para trás.

Não queria que as canções dos periquitos ficassem estragadas, quando

eles as cantavam tão bem.

Não era justo. Estaria a desiludir os pássaros se não captasse as suas

cores na perfeição.

— Os periquitos são o amor da minha vida — observei. — Pelo

menos, agora. Antes, era a minha mãe. Ela também teria adorado os

periquitos. Não teria querido perdê-los. Não quero perdê-los para David

Gilbert. Quero parar David Gilbert antes que ele lhes faça mal.

— E lá voltamos nós aos periquitos — disse Bee. — O que me deixa

perfeitamente esfuziante…

Ela suspirou, bruma branco-azulada em movimento.

Não soava como um suspiro ansioso, como um desejo de ver as suas

vozes e música, como a ânsia que eu sentia quando os via e ouvia. Pela

primeira vez, tive a sensação de que ela não sentia o mesmo que eu.

Mesmo quando dizia as mesmas palavras que eu, elas tinham um matiz

estranho e hostil.

— Sinceramente, ainda bem que estamos a falar outra vez dos

periquitos. Iupi! Também podemos analisar agora as tuas interessantes

teorias da conspiração sobre David Gilbert, se quiseres.

— Sim, é isso que quero.

Ela secou a mesa com uma toalha que tinha comida velha e seca

agarrada.

— Olha, está como nova! Agora podes deixar-me olhar para os teus

quadros.

Apontei para uma poça.

— Está molhada, ali.


— Desculpa. — Esfregou com mais força. — Numa altura em que a

minha vida está uma confusão tão grande, perdoa-me por não ter tudo

absolutamente perfeito para ti, como tu gostas.

As palavras naquela frase tentavam ser amáveis. Parecia que Bee

estava a fazer um esforço, um esforço condigno. Mas os cantos da sua

boca não se tinham movido e as suas cores estavam contaminadas. Só

tinha reconhecido um sorriso — um sorriso com dentes à mostra —

quando ali chegara.

— Ainda quer ver as minhas pinturas? — Tinha de confirmar. Não

sabia o que ela queria, nem o que ela estava a pensar. Não tínhamos uma

ligação. Eu tinha-a quebrado de alguma forma, depois de ter entrado na

sua cozinha desarrumada e do seu sorriso ter desaparecido.

— Sim, por favor. — Pegou na bainha do vestido e fez uma vénia. —

Ficaria radiante se me desses essa honra. Não consigo pensar noutra

coisa. O suspense está a dar cabo de mim.

A sério que não queria matar Bee Larkham. Demorei a dispor as

pinturas em cima da mesa. Tinham de estar na ordem correta, na mesma

sequência que os cadernos de apontamentos, mas Bee Larkham estava a

bater com o pé no chão, produzindo círculos cor de urso de peluche, o

que me distraía.

— Quer vê-los cronologicamente, por ordem de data? Ou por tema?

Por exemplo, ordenados por chilreios, hora de comer, recolha de ramos,

luta, a espreitar pelo buraco ou pousados nos ramos. Ou talvez…

— A verdade é esta — atalhou Bee. — Tenho tentado perceber

porque é que Lucas não apareceu para falar comigo depois de ter lido o

meu bilhete. Isso deixou-me a pensar. E se a culpa não for do Lucas? E

se for por tua culpa?

Senti a barriga contrair-se ao ouvir aquelas palavras ácidas.


— Esta é a coleção do pôr do sol — continuei. — E estas são as

canções de madrugada.

— Lindos. Os teus quadros são lindos, Jasper. Como de costume. E

eu sei que me ouviste. — Falava em voz baixa, como se tivesse medo

que houvesse alguém à escuta. — Há pessoas nesta rua, como David

Gilbert, que pensam que és burro. Dizem-me que és burro porque não és

como os miúdos normais, mas eu sei que não. E sei que me ouviste,

Jasper.

Continuei a organizar a minha obra, dispondo os quadros dos

periquitos a comer e a lutar, a cantar e a conversar.

— Cometeste algum erro quando entregaste o meu bilhete, Jasper?

Entregaste-o na casa errada, na quarta-feira? Deste-o a outra pessoa que

não ao Lucas? Diz-me o que correu mal!

— Triângulos laranja-avermelhados e espigões castanho-sujos com

arestas cinzentas!

— Responde-me como deve ser, Jasper. Em inglês. Não compreendo

a língua das cores. Cometeste um erro? Eu perdoo-te, se admitires que o

cometeste. Toda a gente comete erros. Eu estou sempre a cometê-los.

O meu rosto estava molhado de lágrimas. Não suportava olhar para

ela. Continuei a olhar para as minhas pinturas.

Pôr do sol, madrugada, hora de comer.

— Jasper?

— Pensei que era o Lucas — disse. — Entreguei-o ao rapaz de

uniforme que abriu a porta.

— Agora, isto é importante. — Falava devagar, como o meu pai fazia

quando estava aborrecido ou quando me queria acalmar. — Demora o

tempo que quiseres para responder, Jasper. Há alguma possibilidade, por

mais remota que seja, de teres entregado o bilhete a Lee, o irmão dele?

Não precisei de tempo nenhum.


— É possível. Não sei. Não lhe perguntei o nome. Lamento. O cão

que ladrava triângulos laranja-avermelhados confundiu-me. Tinha de me

vir embora depressa.

Bee abanou a cabeça.

— Menos mal. Não é tão mau como receava. Pelo menos, entregaste

na morada certa. A carta está algures naquela casa.

— Está a queimar.

— Estava alguma coisa a queimar em casa de Lucas? Foi isso que te

desorientou?

— Não! No seu forno.

— Bolas! A minha empada! — Voou pela cozinha e abriu a porta do

forno. — Que alívio! Pensava que a tinha estragado! — Pegando na

toalha suja, tirou a empada lá de dentro e atirou-a para cima da bancada.

Bam! Faíscas vermelhas.

— Está quente, está quente! — Soprou os dedos e enfiou-os debaixo

da torneira. Linhas cinzentas indistintas.

— Tenho de ir para casa. O meu pai deve estar a pensar onde é que

me meti.

— Isso é pouco provável, não é? — Bee falou sem olhar para trás.

Parecia uma pergunta, mas não esperou pela resposta. — Duvido que ele

dê pela tua falta porque ainda não voltou do trabalho, pois não?

Olhei para o meu relógio, por baixo da mesa. Ela tinha razão.

— Chegaste sequer a dizer-lhe que vinhas visitar-me hoje à noite? —

perguntou. — Ele sabe onde estás?

Continuei a examinar o meu relógio.

— Não te preocupes, Jasper. Tenho a certeza de que o teu pai não se

importa. Ele gosta de mim. Sempre gostou, desde a festa. Talvez até

tenha gostado à primeira vista. Vi-os aos dois a observar-me da janela

do teu quarto, na noite em que voltei para esta rua amaldiçoada.


Não tinha a certeza se o meu pai gostava de Bee porque lhe tinha

chamado galderiazinha destrambelhada, mas não queria aborrecê-la

outra vez. Ela pensava que alguém a tinha amaldiçoado. Eu não.

— Lamento que tenha queimado os dedos. E que Lucas não tenha

aparecido para falar consigo. E ter entregado o seu bilhete importante ao

irmão errado. Lamento, lamento, lamento.

A palavra azul-esverdeada e angulosa parecia um trinado nos meus

lábios.

— Não lamentes, Jasper. Estou muito mais feliz agora, que sei o que

aconteceu. O Lucas não chegou a receber o meu bilhete. O irmão deve

ter-se esquecido de lho entregar. Sabes como são os miúdos, certo? Não

nos podemos fiar neles. Deitam tudo a perder. Mesmo coisas

importantes.

Contei os dentes com a língua porque me tinha esquecido de pôr o

botão da minha mãe no bolso.

— Onde é que estão as minhas maneiras, Jasper? Deves estar a

morrer de fome. Vamos comer um bocado da empada.

— Não estou assim com tanta…

— Por favor, não digas que não tens fome, Jasper, porque isso seria

indelicado, depois de todo o trabalho que tive a fazer-te uma empada

especial. Até fiz a massa, em vez de comprá-la feita.

Eu não queria ser indelicado, mas ela tinha sido indelicada primeiro.

Não tinha olhado para as minhas pinturas. Não como devia ser. Não

tinha pedido para ver os meus cadernos de apontamentos nem avançado

mais ideias para atacar David Gilbert. Só queria falar sobre Lucas Drury

e dos motivos para ele não ter vindo ter com ela. Voltei a hesitar,

enquanto ela tirava uma faca da gaveta.

— E que tal uma bela fatia? — Não esperou pela minha resposta e

enfiou o metal através da massa castanho-escura com uma longa


laceração.

Eu não conseguia tirar os olhos da faca. O aço brilhava debaixo da

luz do candeeiro que pendia por cima. Por uma fração de segundo, vi o

meu reflexo distorcido no metal.

Depois, desapareci, como se nunca tivesse estado na cozinha de Bee

Larkham. Como se nem sequer existisse.


48

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 11H23

— Estás a ir bem, Jasper. Podemos voltar a falar sobre a faca? —

pergunta Laranja de Cromo Oxidado. — A faca que Bee Larkham usou

para cortar a empada?

Volto a fechar os olhos e sinto o pincel na mão. Está a tentar

defender-me.

Mas não serve de nada.

Toda a gente sabe que um pincel não pode vencer uma luta contra

uma faca.

— O que achas da minha empada de galinha, Jasper?

A massa era folhada, como eu gostava, mas estava demasiado cozida

por cima. Eu tinha tirado os bocadinhos queimados quando Bee

Larkham não estava a olhar, mas ainda conseguia sentir o sabor a cobre.

Não era igual à empada de galinha que habitualmente comia à sexta-

feira à noite, e que vinha dentro de uma caixa de cartão.

— Acho que está quase boa. — Um pedaço de carne escura não

identificado tinha vindo ao de cima no recheio. Empurrei-o com o garfo.


— Quase boa? É difícil agradar-te, Jasper.

— O recheio está grumoso e sabe a moedas, e a massa está

demasiado cozida e amarga — murmurei. — Fora isso, está boa.

— Uau! Obrigada pelo elogio. Estou impressionada. — Deu uma

dentada, fechando os olhos. — Mmmm! Deliciosa. É curioso como uma

boa refeição caseira tem a capacidade de nos fazer sentir melhor. Uma

refeição que cozinhámos do zero e de que sabemos a origem de todos os

ingredientes.

Não tinha a certeza deste facto. O meu pai e eu nunca cozinhávamos

nenhum prato do zero. Normalmente, a comida vinha de uma

embalagem conservada no frigorífico ou no congelador e tinha de ser

reaquecida no micro-ondas ou no forno. A especialidade do meu pai era

lasanha pré-cozinhada.

— Agora que me sinto menos atordoada, já posso ver os quadros dos

periquitos como deve ser. Passa-mos para cá, Jasper. Desculpa não ter

prestado atenção suficiente, há bocadinho.

Manifestei repetidamente a preocupação de que ela pudesse deixar

marcas de gordura nos meus quadros, mas Bee insistiu em que teria

cuidado. Olhou para cada um deles — entre dez a quinze segundos por

quadro — e foi-os amontoando muito bem na cadeira ao lado dela.

O último tinha a mancha de água no canto. Bee não a mencionou.

Este era o seu preferido, por alguma razão bizarra. Ela não conseguia

ver que estava estragado, como eu via.

— Quero este para a minha coleção. Ofereces-me o teu quadro

maravilhoso? Gostaria de o pôr ali. — Apontou para a parede branca

atrás de mim, vazia à exceção de um prego ferrugento. — Era onde a

minha mãe tinha aquela horrível paisagem marítima que sempre detestei.

— Tem a certeza? — perguntei. — Já fiz pinturas muito melhores,

como aquela que está no princípio do monte. Esta está estragada.


— Não, sinto alguma coisa quando olho para este quadro que não

sinto quando olho para os outros — replicou. — Não me interpretes

mal, são todos fabulosos. É só porque este é como eu: imperfeito, mas

lindo apesar disso. Tenho razão, não tenho, Jasper? Tu vês todos os meus

defeitos, mas mesmo assim gostas de mim, não é verdade? Gostas muito

de mim.

— Gosto da cor da sua voz e da sua música — admiti. — É linda e

adora periquitos. Quer protegê-los de David Gilbert. É minha amiga.

— Obrigada. És um querido. Desculpa ter-me irritado contigo, há

bocado. Estava doida de preocupação. E também te acho perfeito. És um

pintor espantoso, Jasper, e um ser humano de exceção. — Desatou a rir.

— Olha bem para nós, cheios de pieguices!

Estendeu a mão e esperou. Passei-lhe o prato, tentando não olhar

para as riscas vermelhas que ela tinha no pulso. Tinha acabado a empada

e, provavelmente, ela queria lavar a louça.

— Não. Eu queria dar-te a mão, Jasper. Posso? Sei que muitas

crianças autistas detestam que lhes toquem e detestam música alta, mas

o teu pai disse que és diferente. Não és como as outras crianças autistas.

Mas tens outros problemas. Muitos, segundo ele, o que torna a vida

difícil.

Quando é que o meu pai tinha falado sobre mim? O que mais dissera

sobre a minha pessoa?

Ela esperou até eu estender a mão esquerda, deixando os nossos

dedos quase a tocar-se. A minha mão hesitou e tive vontade de a

esconder debaixo da mesa. Eu não sabia o que é que ela queria fazer.

— Mais perto — disse ela. — Eu sei que consegues.

Mexi-me desconfortavelmente no lugar, com as pontas dos dedos a

roçar as dela. De repente, ela agarrou-me a mão com força. — Como é

que vamos resolver o problema que causaste, Jasper?


Tentei retirar a mão, mas ela continuou a segurá-la.

— Não te voltaria a perguntar se não estivesse desesperada, e estou.

Não sabes o que tenho passado nos últimos dias. Estava doida de

preocupação.

— Lamento — balbuciei. — Já lhe disse que lamento. Eu vejo, mas

não vejo rostos. Lembra-se do que disse acerca do canzarrão que ladra

triângulos laranja-avermelhados? Não posso voltar lá.

Tentei libertar a mão, mas ela continuou a agarrar-ma.

— Largue-me!

— Acalma-te, Jasper, e para de gritar. — Libertou-me. — Não é

simpático. Os rapazes simpáticos não fazem isso.

Esfreguei o pulso. Queria levantar-me, mas sentia-me demasiado

tonto. As suas palavras tinham-me deixado pregado à cadeira, como se

ela tivesse enchido o assento de cola. Ela não me ia deixar ir embora.

Estava preso, como Alice no País das Maravilhas, e não conseguia

escalar a toca do coelho para voltar para lugar seguro.

— Sou demasiado novo. Não quero entregar as suas cartas. Não

quero falar com Lucas. Odeio-o!

— Isso não é verdade, Jasper. Não o odeias. Ódio é uma palavra

muito forte para um rapaz pequeno como tu.

— Ódio é uma palavra verde-esfumada — corrigi. — E não sou

pequeno! Tenho um metro e meio, o que me deixa só ligeiramente

abaixo da altura média para a minha idade.

O seu olhar enterrou-se na minha testa. Apeteceu-me atirar com

alguma coisa, para a fazer parar. A única coisa que conseguia ver à

minha frente era o prato da empada. O recheio estava a escorregar para

fora, dando-me a volta ao estômago. Desviei o olhar e olhei antes para a

faca.
— Olhe para as minhas pinturas, mas não para mim! Não gosto

disso.

— Desculpa, Jasper. Não vou olhar para ti, prometo. Preciso que me

faças um último favor. Amanhã de manhã, preciso que entregues outro

bilhete a Lucas em casa dele, antes de o pai dele acordar. Vou escrevê-lo

agora.

— Não, não! Não vou alinhar nisso. Vou para casa. — Levantei-me e

quase caí. Comecei a ver tudo a andar à roda, o que me desequilibrou.

Se caísse, duvidava que Bee Larkham me levantasse do chão.

— Não, Jasper, não vais. Não vais ainda a lado nenhum. Tentei ser

simpática. Olhei para os teus quadros. Até vou pendurar um na minha

parede. Deixei-te estar para aí a falar sobre a tua obsessão com David

Gilbert. Se te recusares a fazer isto por mim, eu… — A voz sumiu-se.

Conseguia senti-la a olhar para mim, depois de ter prometido que

não o faria.

Olhei para a faca. Brilhava intensamente debaixo da luz.

Brilha, brilha, brilha.

Não conseguia desviar os olhos do utensílio, embora as suas cores

colidissem. A faca era prata reluzente, mas a palavra era roxo-carregado

com um núcleo vermelho-irisado.

Bee inclinou-se para a frente. Conseguia ver as suas feições

grotescamente distorcidas na lâmina. Mesmo quando mudava de posição

na cadeira, ela continuava ali, refletida no gume afiado.

— Tu sabes sobre mim e o teu pai, não sabes?

1
— O meu pai chamou-lhe galderiazinha destrambelhada. — Ele

estava enganado, muito enganado em relação a isso. As «tartes»

evocavam imagens de morangos suculentos ou de maçãs doces com

canela polvilhadas de açúcar glacé, mas eu sentia um gosto desagradável

e ácido na boca.
— Ah, sim? Foi assim que ele gostou de mim na noite da festa. Na

noite em que tivemos sexo, lá em cima, no antigo quarto da minha mãe,

enquanto tu estavas a dormir do outro lado da rua.

Sexo: uma palavra cor-de-rosa pastilha elástica com um malicioso

matiz lilás.

Tapei os ouvidos com as mãos e fechei os olhos.

— Não foi o melhor sexo que já tive, para ser totalmente sincera.

Pensei que me ia ajudar a tirar o Lucas da cabeça. Estava enganada.

Pensei no Lucas o tempo todo. O teu pai estava embriagado e com pena

de si próprio, com pena que fosses filho dele. Disse que era difícil para

ele ter um filho como tu. Gostava de voltar a ser solteiro.

As palavras passaram por entre as pontas dos dedos e entraram-me

nos ouvidos. Tentei filtrá-las, mas eram como pequenas partículas de

gasóleo no ar, que entram nas vias respiratórias das pessoas e se alojam

nos pulmões, provocando cancros.

— Não significou nada para mim, mas aquela noite podia mudar a

tua vida para sempre, Jasper. Podia significar a diferença entre morares

com o teu pai nesta rua, ou noutro lugar qualquer, com estranhos que

não compreendem as tuas necessidades especiais. Eles não irão

compreender que as coisas têm de ser feitas de determinada maneira,

nem que precisas de ajuda para reconhecer os rostos. Porque é esse o teu

problema, não é, Jasper? Agora, percebo.

Senti arrancarem-me as mãos dos ouvidos.

— Posso dizer que o teu pai me violou, Jasper. Que estava

embriagado e me possuiu à força naquela noite. Os serviços sociais iam

afastar-te dele. Afastar-te dos teus preciosos periquitos e pôr-te numa

nova casa, muito longe dos pássaros.

Gritei nuvens brancas irregulares com picos azul-esverdeados.


— Seria a minha palavra contra a dele — continuou ela por cima dos

meus gritos. — Ninguém ia acreditar em ti, se repetisses o que disse. A

polícia não ia acreditar numa palavra do que dissesses. És aquilo a que

chamam uma testemunha duvidosa.

As minhas mãos lutaram para se libertar, investindo contra azul-

celeste, engalfinhando-se com algo sólido.

O que estava a dar-me luta?

Caí para o chão, agarrando alguma coisa na mão.

— Bolas! Partiste-me o fio.

Dedos arrebataram a pedra do meu punho fechado.

— Tens de fazer isto por mim, Jasper. Deves-me isso!

— Não! Não, não, não!

Tinha de levar os meus quadros. Tinha de salvar os meus periquitos e

fugir. Não podia deixá-los sozinhos naquela casa. Abrindo os olhos,

agarrei-me à perna da cadeira e levantei-me. Bee Larkham estava a

tapar-me a passagem. Não conseguia passar por ela.

Em vez disso, lancei-me sobre a mesa em direção à empada.

1 Em inglês, tart, que, além de «galdéria», também tem o significado de «tarte», o que é

relevante para o que se segue. (N. da T.)


49

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 11H39

— Foi nessa altura que pegaste na faca? — pergunta Laranja de

Cromo Oxidado. — Na faca que usaste para apunhalar Bee Larkham?

— Ainda não. Demasiado cedo.

Como de costume, o seu sentido de oportunidade é péssimo. Não

quero falar sobre isso. Dói-me a cabeça e preciso de encontrar outra

cadeira.

Uma onde possa andar à roda.

Rodar, rodar, rodar.

— Estás a ir mesmo muito bem, Jasper — diz Laranja de Cromo

Oxidado. — Já está quase. Agora descontrai e fecha os olhos. Quero

levar-te lá novamente.

Faço como ele diz e estou de volta à cozinha de Bee Larkham. Estou

a esticar-me por cima da mesa. Em imagem parada. Incapaz de avançar

ou de recuar até Laranja de Cromo Oxidado dar a ordem.

— Leva o tempo que quiseres — diz ele. — Podes fazer isto ao teu

próprio ritmo, com as pausas que desejares. Não é preciso ter pressa.
Está enganado, como de costume. Precisava desesperadamente de

me apressar. Tinha de resgatar os meus quadros e cadernos de

apontamentos. Isso dependia de mim. O meu pai não nos podia salvar.

Ainda não tinha voltado do trabalho. E não sabia que eu estava aqui.

É difícil para ele ter um filho como tu.

Ele gostava de voltar a ser solteiro.

Sexo: uma palavra cor-de-rosa pastilha elástica com um malicioso

matiz lilás.

A cor da voz de Bee Larkham tinha entrado na minha cabeça e não

conseguia tirá-la de lá, por mais que tentasse. O azul-celeste paralisou-

me, passando através do sangue. Não tardaria a controlar todo o meu

corpo. Tinha de fazê-lo parar.

A mesa era demasiado larga. Não conseguia esticar-me

completamente sobre ela, de forma a chegar aos quadros. Ao esticar-me,

o meu braço bateu na empada. A faca deslizou do prato, rodopiando

sobre a mesa.

Continuou a girar, jogando o seu próprio jogo mortífero de roleta

russa.

Vive, morre, vive, morre, vive, morre.

Palavras e cores opostas:

Verde-jade, vermelho-berrante, verde-jade, vermelho-berrante.

Bee apanhou a faca, baixando a mão com força. Cores de madeira

rugosa em forma de dardo.

— Cuidado, Jasper. Podias ter-te magoado. — Deu a volta à mesa.

— É isto que tu queres? Os teus preciosos quadros de periquito? Toma,

fica com eles.

Ela atirou as pinturas para cima de mim. Elas espalharam-se em

diferentes direções, sobre a mesa, sobre uma cadeira. Algumas aterraram

no chão sujo e manchado.


— Mas vou ficar na mesma com este, Jasper. — Segurou a tela

esborratada. — Vou pendurá-lo na minha parede, para me lembrar de

como és um rapazinho horrível e egoísta. — Bateu com o quadro no

louceiro atrás dela, junto ao fio partido. Os pratos tremeram de raiva.

Os meus tímpanos quase rebentaram com o ódio por Bee e com o

ódio de Bee por mim, que era muito mais poderoso. Entrou-me pelos

ouvidos, envenenando-me. Senti-o a penetrar cada vez mais fundo no

meu corpo.

Azul-celeste.

Não azul-cobalto.

Nunca azul-cobalto.

Tinha salvado três quadros. Não era o suficiente. Nem de perto.

Tinha de consegui-los a todos. Quatro, cinco. Estiquei-me para apanhar

outro. Seis. Também tinha de libertar os meus cadernos de

apontamentos.

Ninguém é deixado para trás.

Não era esse o mantra do SAS? O tema favorito do meu pai.

Bee ainda não tinha terminado comigo. Nem com os meus

periquitos.

— Onde é que estão as minhas maneiras? Deste-me um presente,

Jasper. Devia dar-te um, em troca.

Eu baixei-me e resgatei a pintura que tinha aterrado debaixo da

mesa. Não podia deixá-la reivindicar outra pintura.

— Não. Quero. Presente. — Não tenho a certeza se disse as palavras

em voz alta ao endireitar-me, mas senti as suas cores rondar

desconfortavelmente a minha cabeça. Estavam a esforçar-se ao máximo

por se fazer notadas.

Bee virou-se e olhou para a estante, junto ao louceiro.


— Onde é que está? — Trauteava baixinho. Reconheci as notas de

açúcar rosa queimado de «Aviário», do Carnaval dos Animais.

— Ah! Aqui está. — Tirou para fora um livro empoeirado cor de

vinho, exatamente da mesma cor que a palavra «final».

— O Livro de Gestão Doméstica da Senhora Beeton. Nem vais

acreditar nas receitas estranhas que aqui vêm, Jasper, sobretudo numa

secção sobre cozinha australiana. Não podia deitá-lo fora. É diferente.

Como tu.

Voltei a contar os meus quadros.

Sete. Tinha-os todos, exceto a tela danificada que Bee não me

devolvia, que estava em cima do louceiro. Não podia salvá-la.

Empurrei as minhas pinturas para dentro do estojo, enquanto ela

continuava a folhear o livro, molhando a ponta do dedo antes de virar

cada página. Os meus quadros não estavam pela ordem correta. Não

havia tempo para os ordenar. Enfiei os cadernos de apontamentos no

saco e peguei no portefólio, abraçando-o junto ao peito. Não tinha tempo

para o fechar.

— Olha esta receita, por exemplo — continuou ela. — É a empada

que fiz hoje. Tive de usar quatro fatias de bacon, seis fatias finas de

carne de vaca magra e três ovos cozidos para a empada, a empada que tu

comeste, Jasper, e achaste que estava apenas aceitável.

Não quero saber.

Pensava que tinha dito aquilo baixinho, mas não. As palavras saíram

da minha boca em bolhas de um azul-glacial prateado que aborreceram

Bee Larkham.

— Acho que vais querer saber, Jasper.

Agarrei-me à cadeira para me equilibrar. Tinha de dar a volta à mesa,

sair da cozinha, chegar ao hall, abrir a porta da frente e fugir.

Não era longe, mas conseguiria fazê-lo?


— Vais querer saber ainda mais quando te disser o que é que a

empada que comeste esta noite continha. É que, não sei se sabes, mas

menti-te, Jasper. Não era empada de galinha.

Empurrou o livro para a minha frente.

— O que achas disto, Jasper? É o teu tema favorito.

Não senti o portefólio escapar-me das mãos ou o saco com os

cadernos de apontamentos escorregar do meu ombro.

Sussurros de verde-menta claro.

Todas as minhas pinturas se espalharam, aterrando à volta dos

pratos, da empada e da faca sobre a mesa.

Ouvi o breve baque vermelho-ferrugem quando o portefólio e o saco

atingiram o chão. Não conseguia apanhá-los.

O meu olhar estava preso naquela página.

EMPADA DE PERIQUITO

Ingredientes — 1 dúzia de periquitos, algumas fatias finas de

carne de vaca magra (carne malpassada e fria é melhor para esta

receita), 4 tiras de bacon, 3 ovos cozidos, salsa finamente picada

e casca de limão ralada, sal e pimenta, massa folhada, farinha.

Preparação — Forre uma forma de empada com a carne de

vaca magra e disponha seis dos periquitos por cima, intercale

rodelas de ovo, salsa e raspa de limão, polvilhe levemente com

farinha e tempere com sal e pimenta. Cubra com o bacon cortado

em tirinhas, disponha as restantes aves por cima, intercale

rodelas de ovo, tempere com sal e pimenta, e polvilhe com salsa

e raspa de limão, tal como antes; cubra com massa folhada e leve

ao forno durante uma hora.


Tempo — 1 hora.

Suficiente para 5 ou 6 pessoas.

Adequado para qualquer estação do ano.

Não conseguia gritar porque estava a vomitar.

Vómito coalhado, vermelho-claro.

Cada vez mais.

— Jasper!

Levei os dedos à boca vezes sem conta. Tinha de deitar a empada cá

para fora. Não resultou. Os periquitos mortos estavam aprisionados no

meu corpo. Tinha de os libertar. As pinturas em cima da mesa gritavam

amarelos-esverdeados glaciais e safiras geladas. Estiquei-me sobre a

mesa e peguei na faca. Virei-a para a minha barriga.

— Para, Jasper! Não!

A minha voz voltou. Não reconheci a cor.

— Odeio-a — berrei. — Está a matar-me!

Fechei os olhos e senti a ponta da faca penetrar o tecido e encontrar

a minha barriga.

Pele suave e amanteigada.

Corta, corta, corta.

Bee gritou cristais de azul-glacial.

Uma mão agarrou-me. Empurrei-a. Pingentes de gelo de um azul-

prateado golpearam repetidamente.

— Desculpa! — gritou a voz azul-celeste. — Para, Jasper! Fui longe

demais. Estava a brincar. Contei uma piada de mau gosto para te

castigar. Desculpa! Não é verdade. Era galinha. Só galinha. Juro!

Perdoa-me.
Não lhe perdoo!

Brindei-a com gritos turquesa-vivo em forma de adagas brancas

serrilhadas.

A minha cabeça queria dividir-se em duas, como uma melancia

sumarenta. Não conseguia ouvir os seus cristais azuis ou pingentes de

gelo porque tinha lançado um contra-ataque, uma tempestade de um

chocante azul-esverdeado.

Tenazes em brasa queimavam-me a barriga, mas eu só conseguia ver

a cor dos meus gritos, misturada com o piar agudo dos periquitos.

Amarelo-esverdeado com safiras geladas.

Os seus gritos de aflição elevavam-se dos meus quadros, a acusar-me

e a manifestar o seu ódio. Eu não tinha conseguido protegê-los. Tinha-os

comido.

Dá-me a faca.

Não. Tenho de os tirar para fora.

As mãos de Bee voltaram a tentar agarrar a faca.

Eu não a larguei. Não podia. Não enquanto os periquitos

continuassem dentro de mim. Não podia parar. Tinha de a impedir.

— Dá-ma!

— Não!

Golpeei o ar e, desta vez, a faca encontrou a pele dela.

Cristais serrilhados azul-claros.

Bee agarrou o braço direito. O sangue passou-lhe por entre os dedos.

— Por favor, Jasper. Desculpa. Não queria magoar-te. Se pudesse

retirar o que disse, fazia-o. Perdoa-me!

Golpeei a minha camisola e deixei novamente a carne a descoberto.

— Não! A sua cor não é azul-cobalto! Nunca foi. Enganou-me!

— Jasper! Para, suplico-te!

A mão dela estava no meu caminho.


— Tens de pousar a faca, antes que ambos fiquemos gravemente

feridos. Vais meter-nos em apuros.

Tentou arrancar-me a faca das mãos. Um de nós tropeçou. Não sei de

quem foi a culpa. Ambos cambaleámos; a cozinha tinha-se inclinado

como um barco incapaz de navegar. Bee Larkham tropeçou para trás,

segurando-me o pulso. Tinha os olhos fixos na faca.

Caímos os dois.

Os periquitos piaram para termos cuidado.

Bee Larkham gritou.

Cristais de azul-glacial com arestas brilhantes e pingentes de gelo

prateados e serrilhados.

Ela caiu primeiro, e eu a seguir. A cabeça dela bateu no chão com

um estrondo cor de carvão sujo.

Aconteceu por essa ordem. Tenho a certeza. Porque essa é a única

explicação que tenho para ter acabado em cima de Bee Larkham.

Passados quatro segundos, rolei de lado e vi mais salpicos de sangue

sobre os mosaicos.

Salpico, salpico, salpico.

Pingava-me da barriga e escorria pelas calças de ganga. Esparrinhava

para cima do vestido azul-cobalto de Bee que não era azul-cobalto,

escorrendo-lhe pelo braço direito e da palma da sua mão esquerda.

Os gritos dos periquitos dentro da minha cabeça tinham-se

transformado em branco ofuscante, que consumia tudo. Voltei a pegar

na faca para os salvar.

Bee Larkham não conseguiu impedir-me, desta vez. Não abriu a

boca nem os olhos. Não se mexeu.

Os cristais de azul-glacial e os pingentes de gelo prateados tinham

desaparecido, levando consigo todas as arestas serrilhadas e brilhantes.

Estava sozinho com a faca e o alarido dos periquitos aterrados.


50

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 12H15

Leo, o meu advogado, repete constantemente as palavras «acidente»

e «homicídio involuntário». Já contei essas palavras oito vezes desde

que me foi dito, isto é, me foi aconselhado a deixar de falar.

Fortemente aconselhado.

Laranja de Cromo Oxidado e Verde-Claro Baço concordam em que

esta cena crucial — eu a segurar a faca sobre o corpo imóvel de Bee

Larkham — é uma pausa natural na história.

Temos de descobrir como é que isto encaixa naquilo que o pai dele

diz ter acontecido e em que ponto é que ele se envolveu nisto. Estamos

interessados no que Ed Wishart fez naquela noite e no que ele disse a

Jasper para fazer a seguir.

A minha adulta adequada quer outra pausa. Deve estar cansada.

Talvez tenha dificuldade em concentrar-se, como eu.

Há demasiada coisa para lembrar de uma só vez; e muitas que

continuam teimosamente em falta. Pelo menos, consigo lembrar-me

daquele pequeno segmento.

A seguir, há um grande hiato.


É a parte que deviam perguntar ao meu pai: como é que ele meteu o

corpo de Bee Larkham na mala que estava na entrada e a levou para a

mata. Não posso ajudá-los com essa parte da história. Também não sei o

que ele fez com a roupa da despedida de solteira que estava na mala.

— O que vão fazer com o corpo de Bee Larkham, agora que o

encontraram? — pergunto. — Porque ninguém me soube dizer isso, logo

de início.

O murmúrio branco e cinzento das vozes desvaneceu-se. O laranja

de cromo oxidado persiste, como um cheiro indesejado: o aroma a

massa queimada.

A empada de periquitos chamuscada.

— Não tens de te preocupar com isso, Jasper — diz o meu advogado.

Não é nada que te diga respeito.

— Diz, sim. Toda a gente merece um funeral condigno. A mãe, a

avó, a senhora Larkham, o periquito bebé e a senhora Watkins. Os doze

periquitos não. Esses não tiveram direito a funeral.

Fecho os olhos e vou riscando mentalmente os corpos. Creio que

enumerei as mortes pela ordem correta, porque isso é importante.

— A resposta mais honesta é que ainda não sabemos — diz Verde-

Claro Baço. Estamos a tentar descobrir se há outros membros da

família. O corpo de Miss Larkham está com o médico-legista, enquanto

se procede ao exame post mortem. Tem de se determinar a causa da

morte. Os testes estão a demorar mais algum tempo a realizar, em

virtude de ser um sábado.

Tinha sido preciso quase um dia inteiro, mas eu pensava que

tínhamos finalmente determinado que matei Bee Larkham com a sua

faca, a faca que ela usou para cortar a empada da senhora Beeton.

Não quero voltar atrás e explicar tudo de novo pelo facto de terem

percebido mal ou de não terem ouvido o que disse.


— Posso ver o meu pai? — pergunto.

Verde-Claro Baço diz que lamenta, mas temos de ficar separados por

enquanto. Faz parte do protocolo policial.

— Ainda continuas com medo do teu pai, Jasper? — pergunta

Laranja de Cromo Oxidado. — Ontem, disseste aos agentes que ele

tinha matado pessoas antes e que achavas que ele te estava a tentar

matar.

Digo-lhe que cometi um erro terrível. O meu pai não estava a tentar

matar-me. Eu estava confuso. Estava perturbado por causa de Bee

Larkham. Não devia ter inventado acusações sobre ele e estou

arrependido. Aposto que ele também está arrependido de ter empurrado

o agente. Ele não tinha essa intenção.

Eu tinha-o levado ao ponto de rutura, como de costume.

Não lhe conto o resto. Richard Chamberlain — como o ator — não

percebe nada.

Tenho medo pelo meu pai, especialmente agora.


51

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 14H00

— Sei que isto vai ser difícil para ti, Jasper. Mas, antes de falarmos

sobre o que aconteceu a seguir, com o teu pai, gostávamos de voltar a

falar na empada de galinha de Bee Larkham contigo.

Será que Laranja de Cromo Oxidado não estava com atenção?

— A empada de periquito — esclareço, para que conste.

Tive outra pausa para comer alguma coisa, mas evitei as sanduíches

porque o camarão faz-me vomitar. Estou a tentar ser prestável. É um

esforço. Quero ver o meu pai. Quero dizer que me arrependo de ter

marcado o 112 e de o ter envolvido nisto.

— A receita dizia para usar doze periquitos — continuo.

— Isso foi uma crueldade da Bee — diz Cromo de Laranja Oxidado.

— Fazer-te pensar que tinhas comido periquitos, os teus pássaros

favoritos. Deve ter-te deixado incrivelmente furioso e perturbado.

A boca da minha barriga abre-se e fecha-se uma vez, para dizer sim.

— Jasper?

Ele não recebeu o sinal secreto através da minha camisa. Talvez o

tecido seja demasiado grosso. Ou talvez esteja a pensar noutra coisa

qualquer.
— Comer os meus periquitos deixou-me furioso.

Não posso dizer nada demasiado complicado. Ele terá mais

facilidade em compreender, se eu usar frases simples.

— Tu não os comeste realmente, Jasper — diz Laranja de Cromo

Oxidado. — Quero que percebas isso. Tenho a certeza. Bee Larkham

fez-te pensar que tinhas comido periquitos, para ser cruel. Percebeu que

não te conseguia manipular para levares mais mensagens a Lucas e ficou

consternada quando descobriu que estava grávida. Queria magoar-te.

Muito. Da mesma forma como a tinham magoado.

Infelizmente, não acredito numa palavra do que ele diz.

— Eu também a magoei. Com a faca. Havia muito sangue. Lamento.

Sinto vontade de lhe contar que estudámos A Quinta dos Animais, de

George Orwell, na aula de Inglês.

Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros.

Tinha sido assim com Bee e comigo. Provavelmente, Laranja de

Cromo Oxidado nunca ouviu falar da Quinta dos Animais nem de 1984.

Não ia compreender o que lhe quero dizer:

Bee Larkham e eu éramos igualmente culpados, mas,

provavelmente, eu era mais culpado do que ela.

— Vamos deixar a empada por agora e discutir uma coisa que te

pode deixar mais à vontade — diz Laranja de Cromo Oxidado. —

Gostava de falar sobre as tuas pinturas, se não te importares. És um

artista espantoso, Jasper. Quem me dera que os meus filhos tivessem um

bocadinho do teu talento. Passam o tempo todo a jogar Minecraft, mas

tu podes ser famoso quando cresceres.

— Minecraft, repito. — Não sei o que é mais surpreendente: o facto

de ele ter filhos ou o de eles jogarem um dos melhores jogos de

computador de todos os tempos.

— De que cor são? — pergunto.


— Como?

— A cor das vozes dos seus filhos. São iguais à sua? — Por favor,

diga-me que não.

— Não sei, desculpa.

— Está bem.

— Os teus quadros dos periquitos são os meus preferidos. Acho-os

sensacionais. É mesmo arte abstrata maravilhosa.

Laranja de Cromo Oxidado agarra num grande saco de plástico que

está ao lado da mesa e coloca-o à sua frente. Vejo uma mancha de cor.

Não podem ser os meus quadros. Esses estão a salvo, em casa.

— Quero que saibas que pedi autorização ao teu pai para ver os

quadros dos periquitos, Jasper — diz.

Olho com mais atenção. Vejo uma confusão de periquitos a lutarem

para respirar debaixo do plástico.

Estão a sufocar.

— Ele deu-nos autorização para os ir buscar ao teu quarto. Podemos

olhar para eles juntos?

— Não! — Azul-esverdeado lancinante com arestas brancas.

— Vamos só olhar para eles — diz Laranja de Cromo Oxidado. —

Compreendemos que eles são preciosos para ti. Vamos devolvê-los

assim que possível.

Recuso-me a olhar para ele. Odeio-o.

O meu pai nunca devia ter deixado a polícia entrar no meu quarto.

Os meus quadros estão misturados. As caixas dos meus cadernos de

apontamentos estão fora de ordem.

Assim como as perguntas de Laranja de Cromo Oxidado.

— Já encontrou o coelho branco? — pergunto, porque essa criatura

também está fora do sítio.


— Só estamos interessados nos quadros dos periquitos, para já —

responde ele. — O teu pai explicou que só pintas sons, e não objetos a

sério. Isso é extraordinariamente original, Jasper. Extraordinário.

Quando é que começaste a pintar assim?

Cinco, quatro, três, dois, um. Três, cinco, quatro, um, dois.

Ele não responde à minha pergunta, eu não respondo à dele.

Conto para trás e fora de sequência, misturando as cores dos meus

números numa gigantesca folha branca na minha cabeça. Agora estou a

pintar azul-cobalto por cima do laranja de cromo oxidado.

— Quer experimentar uma nova linha de interrogatório? — pergunta

o meu advogado.

— Muito bem, vamos começar, Jasper. São estas as pinturas dos

periquitos que levaste para casa de Bee Larkham na noite de oito de

abril?

Ele empurra as pinturas aprisionadas no plástico em direção a mim.

— Umas são em papel, outras em tela. Deixaste-as separadas de

todas as outras pinturas de periquitos. Escondeste-as num estojo preto

— um portefólio de arte, segundo me disseram — debaixo dos

cobertores do teu esconderijo.

Ele esteve dentro do meu esconderijo?

Não me tinha atrevido a olhar para os quadros desde essa noite — só

espreitei para dentro do portefólio uma vez para verificar se lá estavam

os sete. No entanto, lembro-me das pinceladas de cada um deles.

— Consigo ver as datas no verso das pinturas — diz Laranja de

Cromo Oxidado. — Pintaste-as todas na semana em que Bee Larkham

morreu. Talvez possas olhar para elas outra vez? Para verificar se estas

são as pinturas certas?

Não quero. Sei sem as ver que estão todas erradas, como tudo o mais

hoje. As madrugadas vão estar misturadas com os pores do sol, as lutas


com jogos de alegre perseguição. Não vou deixá-lo irritar-me. Não

quero que ele ganhe.

— Acho estes quadros surpreendentes, Jasper, e não é só por pintares

os sons dos periquitos. Queres saber o que acho surpreendente?

Não. Começo outra vez a pintar mentalmente, manchando as suas

palavras com um delicado azul-esfumado Não estou interessado em

nada do que ele tem a dizer. Laranja de Cromo Oxidado continua a falar

na mesma.

Continua a repetir a palavra «surpreendente» e agora a única coisa

que consigo ver é o amarelo-prateado da palavra. As minhas cores não

são suficientemente fortes para pintar por cima dela.

— Acho surpreendentes que tenhas tido a presença de espírito de

reunir todos os teus quadros, o portefólio e o saco e os teres levado para

casa depois de teres esfaqueado acidentalmente Miss Larkham até a

matares.

Laranja de cromo oxidado outra vez, salpicando os prateados e

amarelos que tenho na cabeça. Ele adiantou-se a mim, deixando a cena

do crime.

— O teu advogado afirma que levaste a faca e os quadros para casa

depois de teres esfaqueado Miss Larkham — diz Laranja de Cromo

Oxidado. — Isso está correto? Ou alguém te ajudou?

Tento outra vez. Pinto veios de azul-cobalto na minha cabeça. É tão

bonito! E também é calmante.

Antes de teres sido avisado de que podias não responder, Jasper,

disseste que o teu pai limpou todo o sangue e levou o corpo — diz

Verde-Claro Baço. — Ele estava contigo nessa altura? Ele levou as

pinturas para casa?

Tapo os olhos e pinto uma nova imagem na minha cabeça: um

periquito a gritar, a exigir que os comedouros de Bee Larkham sejam


reabastecidos. Será que Amarelo Creme de Leite vai ouvir? Ter-se-á

lembrado de lhes dar de comer? Ele disse que nunca quebrava uma

promessa.

— Jasper foi específico na nossa conversa e disse que foi ele que

levou a faca e os quadros para casa sozinho — diz Leo. — Pô-los no seu

esconderijo para ficarem a salvo e esperou que o pai regressasse a casa

depois do trabalho.

— É sobre isso que precisamos de falar um pouco mais — diz

Laranja de Cromo Oxidado. — Onde é que estava exatamente o pai dele

quando isto aconteceu? Precisamos de aprofundar as horas, quem estava

onde e quando. Quem fez o quê.

Linhas indistintas cinzento-esbranquiçadas.

— Jasper? — Café com leite.

Afasto as mãos do rosto.

— O inspetor Chamberlain quer falar contigo para saber como

levaste os quadros para tua casa depois da discussão com Bee Larkham

— diz ele.

— Está bem.

Olho fixamente para a mesa porque não quero olhar para Laranja de

Cromo Oxidado.

— Sabes, Jasper, o problema é o seguinte — continua ele. — Não

percebemos como é que conseguiste levar tudo contigo sem deixar

impressões digitais ensanguentadas em nenhum dos quadros, no

portefólio e no saco. Estavas a sangrar de uma ferida na barriga e

também levavas a faca. Os investigadores forenses disseram que nenhum

sangue teu foi encontrado nas pinturas e no saco. Como é que isso é

possível se saíste da casa sozinho, como dizes?

Não tenho palavras. Não tenho cores, não vale a pena fingir que sim.

Lembro-me das manchas de sangue no chão, em Bee Larkham e em


mim. Não sei onde mais podia estar.

— Talvez pudéssemos avançar — diz Leo.

— Claro — diz Laranja de Cromo Oxidado. — Levaste esta pintura

para casa de Miss Larkham nessa noite, juntamente com as outras sete?

Ele empurra uma fotografia na minha direção, e não um quadro, mas

reconheço os remoinhos de tinta característicos.

Sustenho a respiração, espirais de massa branco-azuladas.

— Sim. Salpicos de água.

— Obrigado por confirmares, Jasper — diz ele. — Estás a ver, esta

pintura é diferente das outras. Interessa-nos particularmente.

Não percebo. Porque é que toda a gente gosta deste quadro? Bee

Larkham estragou-o com salpicos de água, mas mesmo assim escolheu-

o como seu favorito. Isso era o mais estranho: ela adorava-o porque era

imperfeito.

Como ela.

Suspiro. Linhas translúcidas em movimento, com um toque de azul.

— Sabes onde é que encontrámos este quadro?

Não, não sei.

— Estava pendurado na parede da cozinha de Miss Larkham — diz

ele. — Viste-a pô-lo lá?

Hesito, depois abano a cabeça. Não, definitivamente não a vi pô-lo

lá.

Deve ser mentira. Está a tentar enganar-me.

— Foi descoberta uma grande mancha de sangue de Miss Larkham

na parte de trás deste quadro, juntamente com as suas impressões

digitais ensanguentadas. Também não há vestígios do teu sangue neste

quadro.

— Percebes o que o inspetor Chamberlain te está a dizer? —

pergunta o meu advogado.


Não. Movo a minha cabeça para um lado e para o outro.

Ele fala agora com Laranja de Cromo Oxidado.

— Está a confundi-lo. Tem de ir direito ao assunto, em vez de tentar

orientá-lo. Faça-lhe perguntas diretas, por favor.

— Consegues explicar como é que este quadro acabou pendurado na

parede de Bee Larkham, se não a viste pendurá-lo antes de a matares?

Impossível!

Claro que não consigo!

Como posso fazê-lo?

— Desculpa se te estamos a baralhar — diz Laranja de Cromo

Oxidado. — O que estamos a tentar clarificar é como é que esta tela foi

parar à parede da cozinha.

Não sei. Não sei.

— Foste tu que penduraste este quadro na parede, depois de

esfaqueares Miss Larkham? Antes de fugires de casa dela?

Não, não, não.

— Viste alguém pendurar este quadro na cozinha naquela noite? —

continua ele. — Pode ter sido o teu pai? Ele estava contigo na cozinha

quando mataste Bee Larkham?

Cubro os olhos com as mãos e começo a balançar o corpo para trás e

para a frente.

Não consigo fazer isto. Sou demasiado novo. Não consigo fazer isto.

Sou demasiado novo.

— Queres dizer alguma coisa em resposta a estas perguntas, Jasper?

— pergunta Leo.

— Diga-lhes que quero o meu quadro de volta — grito por trás das

mãos. — Não pertence a Bee Larkham. Agora, não. Nunca pertenceu.

Não vi o meu pai tocar nele e não pode ter sido Bee Larkham. Os
mortos não podem pendurar quadros. É impossível. Toda a gente sabe

disso!
52

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 15H10

Tive direito a outra pausa com a adulta adequada a reboque. O que é

que o meu pai estará a dizer à polícia? Ainda não me deixaram vê-lo,

porque ele foi preso por ligação ao homicídio de Bee Larkham. Quero

pedir-lhe desculpa. Desculpa por tudo.

Leo diz que os investigadores estão confusos, sobretudo sobre como

os quadros dos periquitos foram levados para casa, quem me ajudou e

quem pendurou o quadro na parede. Preciso de explicar tudo isso outra

vez, de forma mais pormenorizada possível.

Tenho de me esforçar para pôr tudo na ordem certa desta vez.

Começo assim que nos voltamos a reunir porque não quero que me

digam que faça as coisas com calma, neste interrogatório. Quero

despachar isto rapidamente, porque esta é a parte que incrimina o meu

pai.

Fecho os olhos.

Começo.

Ping, ping, ping.


Estou outra vez em pé, a segurar a faca. Bee Larkham está no chão

da cozinha. Não se mexe.

Não me lembro de ver o quadro dos periquitos pendurado na parede.

Vejo o padrão de sangue no chão. Salpico, salpico, salpico.

Olho para a faca. Brilha, brilha, brilha. Os periquitos não querem

mais cortes. Gritam-me para fugir.

Fujo da casa de Bee Larkham, que está morta.

Atravesso a estrada e entro em minha casa.

Para! Volta para trás!

Esqueci-me de todos os meus quadros e cadernos de apontamentos.

Hesito no fundo das escadas.

Demasiado tarde para voltar para trás.

Sou o pior soldado do mundo. Deixei os meus periquitos atrás das

linhas inimigas. Comi alguns e abandonei os outros.

Não posso voltar, não posso voltar, não posso voltar.

Não posso ver a empada de periquitos mortos.

Não posso ver Bee Larkham morta.

Agora estou no meu esconderijo com o cobertor puxado para baixo.

A entrada está fechada. Esfrego sem parar o botão do casaco de malha

da minha mãe. A boca da minha barriga grita-me: Mataste Bee

Larkham!

Tento gritar pelo meu pai, mas não sai nada da minha boca

verdadeira. Não consigo ver cores nenhumas em casa. Está tudo em

silêncio. Ele ainda não regressou do trabalho.

A faca fica comigo no meu esconderijo, a velar por mim. A minha

roupa está salpicada de sangue. Não posso tirá-la. Os meus braços não

funcionam. A minha boca não funciona. As minhas pernas não

funcionam.

A boca da minha barriga dói.


Como é que Bee matou os doze periquitos? Terá pedido a caçadeira

de David Gilbert emprestada para lhes dar um tiro? Terá montado uma

armadilha? Terão sofrido?

Quando é que ela os matou? Enquanto eu estava na escola? Na noite

em que lhe entreguei a mensagem de Lucas e ela chorou? Na quinta-

feira à noite, porque pressentiu que a deixara ficar mal? Ou esta manhã,

quando percebeu que eu tinha estado a mentir o tempo todo?

A porta da entrada fecha-se com estrondo: uma forma vagamente

retangular de um castanho-vivo.

— Sou eu! Cheguei! — Ocre-baço.

Não sei há quanto tempo estou sozinho em casa. Do meu

esconderijo, não consigo ver o relógio. Não consigo mexer-me. Não

consigo olhar para baixo, para o relógio à volta do meu pulso.

O meu pai galga as escadas, produzindo cores de banana demasiado

madura, e entra no meu quarto.

— Está tudo bem, Jasper? Comeste?

Esfrega, esfrega, esfrega.

A boca da minha barriga grita por socorro. Ele não ouve. Vai-se

embora.

Volte!

— Chama-me se precisares de alguma coisa. Vou lá abaixo comer

qualquer coisa.

Esfrega, esfrega, esfrega.

O meu pai foi-se embora.

Não. Estou enganado.

A porta volta a abrir-se, castanho casca de amendoim. Volta com um

rangido rosa-escuro ao meu esconderijo.


— Há sangue na escada, Jasper. E há sangue aqui no tapete também.

O que aconteceu? Estás ferido?

O cobertor é puxado para baixo. Vejo uma mão a entrar. Grito

formas serrilhadas de azul-glacial.

— OhmeuDeus! O que aconteceu? Santo Deus! De onde vem esse

sangue todo?

A mão puxa-me para fora. Eu esperneio e grito cristais azul-

esverdeados ainda mais em bruto. Deixo cair a faca.

— Jasper, meu Deus! O que fizeste a ti próprio?

Abro os olhos. Agora sou eu que estou no chão e ele está em pé com

a faca na mão. Larga-a quando levanto a camisola.

— Oh, meu Deus! — Arranca a sua camisa e comprime-me a

barriga com ela. — Tenho de parar esta hemorragia. — Comprime com

mais força. — Porquê, Jasper? Porque é que fizeste isto a ti próprio? Foi

por eu ter de trabalhar até tarde? Estás a castigar-me? Desculpa, Jasper.

Não pude evitar. A reunião prolongou-se.

Comprime com mais força. Sinto estrelas prateadas e pontiagudas a

perfurar-me em todo o corpo.

— Está a magoar-me!

— Desculpa. — A pressão sobre a camisa abranda. — Deixa-me ver

e eu não toco, desta vez. Prometo. Vou só olhar.

Ele olha fixamente para a minha barriga.

— Obrigado, Jasper. Estás a portar-te lindamente. Vais ficar bem.

Isto parece superficial, mas vamos precisar de te levar a um médico, para

te observar.

— A Bee disse…

— A Bee disse o quê?

Olho para o sangue nas minhas mãos e camisola. Também há

salpicos nas calças de ganga e no anoraque. Como é que aquelas


manchas irão sair?

— Jasper? Ela sabe disto? Como é que ela sabe?

— Não posso ir ao médico — grito. — A Bee diz que vou meter-nos

em apuros.

— Ela viu-te fazer isso e não me ligou? Não te levou às urgências?

Estou a tremer e a chorar. O ranho escorre-me pelo rosto.

Silêncio.

— Espera! Foi ela que te fez isto, Jasper?

— Não! — grito. — Esfaqueei-a porque ela merecia.

— Jasper! — Volta a pegar na faca. — Magoaste a Bee com isto?

— Sou demasiado novo. Não posso fazer isto. Sou demasiado novo.

Não posso fazer isto, sou demasiado novo.

— Oh, meu Deus! — Corre até à janela. — Ela tem a luz da sala

acesa e não vejo nenhuma ambulância parada lá fora. Talvez não a

tenhas ferido com gravidade. Porque é que estavam a discutir?

Estou a balançar para a frente e para trás, para a frente e para trás.

— Periquitos.

— Santo Deus! Feriste-a com que gravidade, Jasper? Lembras-te?

Ela também precisa de ir ao hospital?

Fecho os olhos para não deixar entrar a cor, mas o vermelho infiltra-

se por baixo das pálpebras.

— Para, estás a matar-me!

O meu pai larga a faca e deixa-se cair sobre o tapete, ao meu lado.

— Pode ser um engano. Podes ter-te enganado, não é verdade?

Quero vomitar. Tenho arrancos repetidos, mas não sai nada.

— Vou tratar de ti e depois vou lá a casa — diz. — Vou resolver o

assunto, prometo. Vou tratar de Bee. Vou ligar à polícia e chamar uma

ambulância quando souber a gravidade.

— Desculpe, desculpe, desculpe.


Ele obriga-me a levantar e encaminha-me para a casa de banho.

— E aquilo? — Viro-me e aponto para a arma que está em cima do

tapete.

— Não te preocupes. Vou livrar-me da faca e da tua roupa. Não terás

de voltar a vê-las.

Ele abre a torneira do duche e não espera que eu responda.

— Isto muda tudo, Jasper. Não te posso levar ao médico até ver o

que se passa com Bee. Posso fazer-te um penso na barriga, mas preciso

de evitar qualquer tipo de infeção. Tenho antibióticos, por isso consigo

tratar disso. Já vi muito pior nos Royal Marines, certo? Vamos

ultrapassar isto. — Faz-me sentar na borda da banheira e despe-me,

tirando-me a roupa lentamente. — Quando acabar, vou dar-te um

analgésico e meio comprimido para dormir. Quando acordares, amanhã

de manhã, este pesadelo já terá terminado e já terei resolvido tudo com

Bee Larkham. Compreendes?

Sim.

Digo-lhe onde encontrar a chave da porta das traseiras de Bee

Larkham.

Paro de falar.

Durmo.
53

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 15H43

O meu advogado e Laranja de Cromo Oxidado estão extremamente

interessados no «cocktail de medicamentos» que o meu pai me deu: os

antibióticos, os analgésicos e o comprimido para dormir, o que explica

algumas das falhas na minha memória.

Não tenho resposta para as suas perguntas. Não sou médico.

Porque é que não perguntam ao meu pai? Disseram que ele está

detido. Está a ser interrogado por outros inspetores. Não trocam

informações, como nos filmes? Não falam uns com os outros?

Não me lembro de quantos comprimidos tomei. Não me lembro de

os ter engolido. Não me lembro de o meu pai me ter ajudado a tomar

duche, a vestir o pijama, a tirar os cobertores manchados de sangue do

esconderijo ou a pôr-me novamente lá dentro com o casaco da minha

mãe.

Deve ter feito todas essas coisas, mas um turbilhão de névoa cinzenta

desceu sobre essa cena na casa de banho. Lembro-me de ela entrar e sair

do meu cérebro, arrancando memórias dos lugares mais recônditos.

Tentei segurá-las, em particular uma coisa que precisava de dizer ao meu

pai.
Alguma coisa que ver com os periquitos. Alguma coisa que ele tinha

de fazer em casa de Bee Larkham.

Ele tinha de salvar os periquitos.

De quê? O que é que ele tinha de fazer?

A névoa arrancou-me o pensamento da cabeça.

Os periquitos tinham desaparecido. O meu pai também.

Estava sozinho.

De que te lembras a seguir, Jasper? Fecha os olhos. Não estás nesta

sala de interrogatórios. Imagina que estás no esconderijo do teu quarto

outra vez.

Obedeço a Laranja de Cromo Oxidado.

Voltei para lá.

Estou sentado e vejo o meu esconderijo a andar à roda.

Esqueci-me dos quadros dos periquitos. Esqueci-me dos cadernos de

apontamentos. Deixei-os em casa de Bee Larkham.

Era isso que eu precisava de dizer ao meu pai. Ele ainda agora estava

ali. Ou talvez tivesse sido há mais tempo. Não tenho a certeza. Não sei

que horas são.

Os meus quadros estão sozinhos na cozinha. Com Bee Larkham. O

pai está a tratar dela. Porque eu fiz uma coisa má. Magoei-a com uma

faca. A faca que ela usou para cortar a empada de periquito.

— Pai? — A minha voz é um crocitar azul-acinzentado. Saio a

rastejar do meu esconderijo para o quarto escuro. Os meus olhos estão

enevoados e não conseguem focar o relógio. O meu também não está no

pulso. Não sei onde está.

Estou no patamar. A porta do quarto do meu pai está aberta. A cama

está vazia. Ninguém dormiu nela. Isso é porque o meu pai não está a

dormir. Está na casa em frente. É a última coisa que me lembro de ele

ter dito.
Vou lá a casa. Vou tratar de Bee.

Devia ajudá-lo. Tenho de recuperar os meus quadros. Ele não se vai

lembrar deles. Nem dos meus cadernos de apontamentos. Não vai achar

que sejam importantes. É capaz de se distrair com aquele sangue todo e

nem dar por eles.

Desço a escada de rabo no chão. A corrente de segurança da porta da

frente está posta. A porta da sala de estar está fechada. A porta da

cozinha está aberta. É para aí que vou. Ouço um barulho ritmado

castanho-escuro que vem da sala.

Seguro-me aos móveis e chego à porta das traseiras sem esbarrar em

nada. Rodo o puxador. A porta não está trancada. Encontro-me lá fora.

A chuva fustiga-me o rosto. Com força. Pica-me a pele através do

pijama.

Passo pelo portão das traseiras e sigo a linha de batalha do outro lado

da estrada. Mantém-me firme e no caminho certo. Guia-me em direção à

viela, por cima da tralha abandonada até chegar ao portão das traseiras.

Estou no quintal de Bee Larkham.

Na porta das traseiras.

Alguma coisa está fora do lugar.

Agora estou na cozinha de Bee Larkham. As coisas mudaram por

aqui — o meu portefólio de pintura e o saco para os cadernos de

apontamentos.

Outras coisas também, mas a névoa está a descer novamente e

transforma-se num nevoeiro cerrado. Não há luz suficiente. Também há

um cheiro estranho, que faz estrelas dançarem na minha barriga.

Bee Larkham continua deitada no chão.

Não se mexe. Não quero olhar para ela.

O meu pai já ali está.

Está a tratar de Bee, como disse que faria.


Está ajoelhado ao lado dela. Calças de ganga, boné de basebol azul-

escuro e camisa azul: o uniforme habitual.

— Bee Larkham está morta? — pergunto.

Ele dá um salto, apoia a mão no chão e olha em volta. Sustém a

respiração, espirais de massa brancas.

— Matei-a, pai? — volto a perguntar.

Ele não olha para mim. Não suporta olhar para mim. A névoa está a

puxar-me para longe. Tenho de tentar concentrar-me.

— Diga-me, pai. Matei?

A sua cabeça levanta-se de repente.

— Matei-a?

— Sim, filho. — O sussurro cinzento-esbranquiçado passa através do

nevoeiro.

— Desculpe, desculpe, desculpe. Ajude-me, pai!

Ele levanta o braço e aponta para a mesa. Vejo o saco com os meus

cadernos de apontamentos e o portefólio fechado.

O meu pai tratou de tudo. Guardou os meus quadros dentro do

estojo.

Volta a mover o braço. Desta vez, aponta para a porta. Não precisa

de me dizer o que fazer. Sei que tenho de fugir. Sei que não posso voltar

a falar sobre isto.

O meu pai tem de continuar a tratar de Bee Larkham.

Ele disse que ia fazer isso.

Está a ajudar-me.

Agarro no portefólio e nos cadernos de apontamentos, dou meia-

volta e fujo.
54

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 16H10

Recua! Marcha-atrás!

Como é que acabámos neste novo local desconhecido? Laranja de

Cromo Oxidado obrigou-nos a efetuar uma inversão de marcha no nosso

interrogatório. Arrancámos com um chiar de pneus no nosso veículo de

fuga — para longe da faca, dos quadros dos periquitos e do meu pai a

tratar de Bee Larkham — para um local inteiramente novo.

Aconteceu depois de o terem chamado para fora da sala e de ter

voltado sete minutos e quarenta e um segundos depois. Agora não

consigo acompanhar, mesmo depois de ter feito outra pausa. Nem sequer

estou a tentar.

O meu pensamento está preso na cena na cozinha de Bee Larkham

quando regresso.

O portefólio e o saco dos cadernos de apontamentos estavam

decididamente em cima da mesa. A empada de periquito tinha

desaparecido e alguma outra coisa lhe roubara o lugar, algo que não

devia estar ali. É difícil lembrar. As células do meu cérebro dançam de

forma descontrolada, misturando as tintas.


Se ao menos tivesse olhado para a direita. Podia ter visto o quadro

dos periquitos na parede, onde o meu pai o deve ter pendurado depois de

ter tratado de Bee Larkham.

Não podia ter sido Bee Larkham a pô-lo lá, porque já estava morta.

Ainda lá deve estar, na parede, a gritar por socorro, a suplicar que o

salvem.

Laranja de Cromo Oxidado diz que ainda não posso ter as minhas

outras pinturas de volta, pois são uma prova da polícia. Já perdeu o

interesse no meu trabalho e quer antes falar do pescoço de Bee

Larkham.

— Não sei se posso ajudá-lo — digo. — Não sou otolaringologista.

— O que é isso? — pergunta Laranja de Cromo Oxidado.

— Um cirurgião da cabeça e pescoço nos Estados Unidos.

Parvo.

— Sabemos que falar sobre o teu pai te deixou perturbado — diz

Verde-Claro Baço. — Precisamos que te concentres, se puderes, Jasper.

Gostávamos de avançar, antes de fazermos outra curta pausa.

— Posso ver o meu pai?

— Vamos despachar isto primeiro, por favor — diz ela. — O

inspetor Chamberlain está a perguntar se tocaste na cabeça ou pescoço

de Miss Larkham.

Pondero a pergunta desconcertante durante treze segundos, até a

curiosidade levar a melhor.

— Porquê?

— Podes responder à pergunta, por favor, Jasper? — intervém

Laranja de Cromo Oxidado. — Já nos tinhas contado que partiste o

pendente de Miss Larkham. Agarraste-a sem querer pelo pescoço

quando isso aconteceu?


— Porque é que não pode responder à minha pergunta? — ripostei.

— Eu perguntei primeiro. As suas cores são indelicadas e arrogantes.

Deviam ir para a fila e esperar pela sua vez. Porque é que havia de tocar

no pescoço de Bee Larkham?

Leo empurra um copo na minha direção. Eu empurro-o de volta,

derramando água sobre a mesa. Foi um erro. Aquilo faz-me lembrar Bee

Larkham a salpicar água sobre a mesa da cozinha com uma esponja.

— Ela era desleixada — digo. — Não gostava de limpar. Não lavou a

louça porque a máquina estava avariada.

— Irritou-te o facto de a cozinha dela estar desarrumada, quando tu

prezas tanto a ordem e a limpeza? — pergunta Laranja de Cromo

Oxidado. — Deu-te vontade de lhe tocar no pescoço?

— Não gosto do seu pescoço!

— Descreveste a forma como Miss Larkham caiu, depois de terem

lutado pela faca — diz ele. — Queríamos saber se pousaste a faca e lhe

apertaste o pescoço, enquanto ela estava deitada no chão da cozinha,

antes de teres ido para casa e de teres contado ao teu pai o que

acontecera?

A fita do tempo continua teimosamente ensarilhada na minha

cabeça. Não creio que alguma vez consiga endireitá-la. Saltámos para a

frente e para trás tantas vezes que é impossível endireitá-la e preencher

as lacunas. Como é que havia de suportar tocar em Bee Larkham?

Laranja de Cromo Oxidado volta a falar.

— Puseste as mãos à volta do pescoço de Miss Larkham, para

tentares sentir o pulso, antes de fugires para casa?

— Ela estava morta. Matei-a.

— Não agarraste Miss Larkham pelo pescoço, apertando com força?

Talvez sem querer?

— Não!
— Viste o teu pai pôr as mãos à volta do pescoço dela em algum

momento?

— Não sei do que está a falar! — Levanto-me e agarro no copo de

água. — Odeio-o!

Arremesso-o sobre a mesa. Laranja de Cromo Oxidado baixa-se

mesmo a tempo.
55

INTERROGATÓRIO:

SÁBADO, 16 DE ABRIL, 16H24

Pedi desculpa, é claro. Tive de fazê-lo. Por ter atirado o copo a

Laranja de Cromo Oxidado, quero eu dizer. Não pela parte de não lhe ter

acertado na cabeça devido à minha péssima pontaria. Sou assim em

todos os jogos com bola, na escola.

Agredir um agente da polícia é um crime grave e não preciso disso a

engrossar a minha lista de crimes.

Desculpe. A minha cabeça estava prestes a explodir. Às vezes, fico

desvairado.

— Aceito as tuas desculpas — diz Laranja de Cromo Oxidado. —

Sei que isto é stressante para ti. Vais sentir-te melhor depois de dormires

e de recarregares as tuas baterias.

Não sou um carro, meu palerma.

— Já lhes disse que fui eu que a matei. Já podem levar-me para a

prisão. Não quero responder a mais perguntas. Quero ir embora.

— Tu não vais para a prisão.

Ele não me perdoou. Está a tornar as coisas mais difíceis para mim

porque quase o agredi com um copo de água.


— Tem razão. Um centro de detenção juvenil ou uma instituição

para jovens criminosos — clarifico. — Como lhe quiserem chamar.

— Já não precisamos de ti, por agora — diz ele. — Estamos a tratar

com os serviços sociais para te levarem de volta para a família de

acolhimento temporário. Se precisarmos de voltar a falar contigo

amanhã, informamos a tua assistente social e ela tratará de te trazer aqui,

outra vez.

Não me mexo. Devo ter ouvido mal. Aquilo não pode ser verdade.

Matei Bee Larkham e quase agredi um agente da polícia.

Sou culpado.

— És livre de ir com o teu advogado, Jasper — diz Laranja de

Cromo Oxidado. — Maggie, a tua assistente social, cuidará de ti.

— E o meu pai?

— O teu pai ainda está a ser interrogado. Vai ficar connosco mais

algum tempo, enquanto aguardamos os resultados forenses.

Estou pregado à cadeira, com as mãos à volta do corpo.

A polícia e o meu advogado devem ter feito confusão uma vez mais.

Provavelmente, Laranja de Cromo Oxidado tentou explicar a situação ao

seu chefe, enquanto eu estava fora da sala de interrogatório e percebeu

tudo mal.

Como de costume.

Espero que se apercebam do seu erro. Não vale a pena levantar-me

para me voltar a sentar logo a seguir.

— Não compreendo — digo. — Cristais de azul-glacial com arestas

brilhantes e pingentes de gelo prateados e serrilhados.

— Escuta, Jasper. — O laranja de cromo oxidado de Richard

Chamberlain tem uma tonalidade mais esbatida do que antes. —

Estamos a deixar-te ir embora porque não és responsável pelo homicídio

de Bee Larkham. Não acreditamos que a tenhas matado.


As suas palavras não fazem sentido.

O meu pai disse que o pesadelo teria terminado quando acordasse no

dia a seguir a tê-la esfaqueado, mas não terminou. Prolongou-se

indefinidamente.

— Fui eu! — grito. — Já lhe disse que fui eu! Matei Bee Larkham!

Não culpe o meu pai! Ele estava a tentar proteger-me!

Respiro fundo.

— Confessei ter matado Bee Larkham com a faca e agora tenho de

ser castigado — digo com firmeza. — Era isso que devia acontecer. É

essa a sequência de acontecimentos correta. Porque é que não

conseguem ver isso?

Laranja de Cromo Oxidado e Verde-Claro Baço trocam um olhar.

— Ele precisa de saber tudo — diz o meu advogado. — Poderá

compreender melhor o que se passa se lhe explicarem todos os factos.

A cabeça de Laranja de Cromo Oxidado move-se para cima e para

baixo.

— Vamos deixar-te ir embora, Jasper, porque recebemos os

resultados preliminares do exame post mortem. Já sabemos como é que

ela morreu.

Enquanto o observo, a minha mão fecha-se automaticamente em

torno de uma lâmina imaginária, a faca que Bee Larkham usou para

cortar a empada de periquito. A faca que eu agarrei. A faca que usei para

a matar.

Laranja de Cromo Oxidado inclina-se para a frente na sua cadeira.

— Tinhas razão em relação a Miss Larkham estar grávida, Jasper.

Estava na fase inicial. Estamos a fazer um teste de paternidade a partir

do ADN de Lucas Drury e do teu pai para saber quem era o pai.

A minha mão continua a empunhar a faca invisível.


— O exame post mortem revelou um historial de marcas de golpes

de faca repetidos no pulso e coxas, que desconfiamos que terá infligido a

si mesma. O braço direito e a mão esquerda apresentavam golpes

superficiais, que pensamos que lhe terás feito nessa noite. Porém, não

eram ferimentos que pusessem a sua vida em risco. Não foi por causa

deles que ela morreu.

— Eu matei-a — repito. — Ela estava a sangrar. Estava morta no

chão da cozinha. O meu pai disse-me que fui eu que a matei.

— Não, Jasper — diz Laranja de Cromo Oxidado. — Ela foi

estrangulada até à morte, e não esfaqueada. Não a mataste, Jasper.

Acreditamos que foi outra pessoa que matou Bee Larkham.


56

A HISTÓRIA DO MEU PAI

É curioso como duas pessoas conseguem lembrar-se da mesma coisa

de forma diferente, como se tivessem sido convidadas em festas

totalmente independentes. Conseguem viciar a tômbola, tirando para

fora as lembranças mais agradáveis e ignorando as verdades

desconfortáveis que lhes roçam os dedos ao de leve.

Escolhe-me, fotografa-me, fala às pessoas sobre mim.

Talvez esteja enganado. Talvez não vejamos tudo ou esqueçamos

coisas importantes. Ninguém é perfeito. Muito menos o meu pai e eu.

Ele diz que a nossa viagem de acampamento a Cumbria, há dois anos,

foram umas férias fantásticas.

Era capaz de dizer um palavrão, mas não quero ver a sua cor.

— Vai ser épico! — dissera o meu pai, enquanto enrolávamos a

nossa roupa em cima da cama dele. — Uma aventura épica para os dois.

Enrolar era importante porque era o que os soldados faziam para que

a sua roupa coubesse nas mochilas, antes de partirem para operações

especiais no Afeganistão e noutras zonas de guerra em todo o mundo.

Enrola, enrola, enrola.

Parecia que estávamos a fazer massa para um concurso de tartes de

maçã, e não a prepararmo-nos para a guerra. Enrolei t-shirts e camisolas


de uma ponta à outra, mas elas não gostavam daquelas formas e

contorciam-se até se libertarem. Queriam fazer as suas próprias formas

na minha mochila do Star Wars.

— Não estás a fazer isso bem — disse o meu pai. — Deixa-me fazer

isso por ti. — Moldou a minha roupa em forma de salsichas compridas.

— Podem ir aqui. — Pegou na grande mochila que tinha comprado

numa loja de excedentes do Exército e da Marinha. Já ma tinha

mostrado oito vezes, verificando os compartimentos e mexendo nas

correias vezes sem conta. Devia estar com medo de deixar cair alguma

coisa. Isso também me deixou nervoso.

— Não precisas de levar a tua mochila do Star Wars. Não é

adequada. Esta é que é uma mochila a sério.

Continuei a encher a minha mochila com roupa enrolada como

salsichas. Tinha um grande fecho de correr em cima, como uma boca.

Nada podia cair dali. Nada podia fugir.

— Sei que gostas da tua mochila, Jasper, mas não é necessário

quando tenho esta tão grande.

Ponho outra t-shirt lá dentro.

— Olha, a tua é de brincar. Não é suficientemente robusta. Pode

estragar-se ou ficar suja. Não ias querer que isso acontecesse, pois não?

Ias ficar perturbado. E eu não quero que fiques perturbado este fim de

semana.

Uma mochila de brincar?

Senti-me indignado em nome do Senhor das Trevas. Darth Sidious

não tinha nada de brincalhão.

— Tenho de a levar. Vou com ela para todo o lado.

— Eu sei que sim, mas penso que seria bom se te habituasses a não a

levar para todo o lado contigo.

Às vezes, o meu pai tinha ideias bizarras.


— Porque é que eu havia de querer fazer isso?

Sentou-se na cama.

— Porque as coisas não podem ficar iguais para sempre, Jasper, por

mais que gostasses que isso acontecesse. Podemos fazer mudanças,

como este fim de semana. Podemos ser impulsivos e deixar-nos ir na

onda. Podemos decidir ir acampar à última hora. Podemos levar uma

mochila grande, em vez de duas. Nem tudo tem de ser estritamente

organizado o tempo todo.

O que o meu pai dizia não fazia sentido nenhum. Ele tinha comprado

uma mochila militar porque tinha saudades daquela vida. Estávamos a

guardar a nossa roupa como se fôssemos soldados. Senti um aperto no

peito. Tirei para fora a fotografia do local de acampamento que ele me

dera para me ajudar a habituar à ideia. Olhei-a fixamente. Depois da

morte da minha mãe, o meu pai tinha dito que precisávamos de passar

tempo juntos para criarmos uma ligação. Eu não conseguia compreender

porque é que precisávamos de estar sentados juntos em silêncio num

campo alagado, quando não éramos capazes de falar um com o outro

quando estávamos em casa.

— A minha mochila também tem muitos compartimentos — disse.

— Posso pôr pedras lá dentro.

— Podes pôr as pedras que quiseres aqui dentro. Olha para todas as

bolsas que isto tem. — O meu pai voltou a abrir a mochila. — É como a

que eu costumava ter nos Royal Marines.

— Hum. — Esfreguei as mãos uma na outra e sentei-me na cama.

— O que é agora, Jasper?

Pensei bastante durante trinta e sete segundos

— Darth Sidious morreu durante a batalha de Endor.

— Está bem! Leva a porra da mochila! Mas para de balançar, está

bem?
Tapei os ouvidos com as mãos para diluir a cor do palavrão: laranja

cera de ouvido pegajosa.

— Vamos tentar fazer com que este fim de semana resulte — disse

ele. — Por favor, preciso desta folga. Por favor, faz isso por mim, Jasper.

Consegues fazer isso por mim?

O meu pai não se lembra de ter querido deixar a minha mochila do

Darth Sidious em casa. Fala sobre como trabalhámos juntos para armar

a tenda na primeira noite, debaixo de chuva torrencial, e mais tarde

assámos marshmallows na fogueira de outra família, porque não

tínhamos lenha seca. Ele publicou as fotos no Facebook.

— O local da nossa primeira aventura!!! — escreveu, com três

pontos de exclamação. Um não era suficiente.

Lembro-me dessa viagem para acampar de maneira diferente.

Lembro-me de nos termos perdido numa caminhada à chuva.

Lembro-me de a tenda deixar passar água e, ao acordar, darmos com

a minha mochila no meio de uma poça de água suja, encharcada e

estragada.

Lembro-me de o meu pai dizer que tínhamos poupado imenso

dinheiro em comida depois de outras famílias nos terem convidado para

jantar à volta das suas fogueiras.

— Tenho pena de si — dissera uma mulher na primeira noite. —

Deve ser duro ser pai solteiro.

A cabeça do meu pai mexeu-se para cima e para baixo.

Estas são as outras coisas que me ficaram gravadas na memória:

1. Não dormir porque a chuva martelava formas de borrões de

tinta roxos na nossa tenda, durante a primeira noite.

2. Soluçar porque a minha mochila estava ensopada e

enlameada na manhã seguinte.


3. Atirar a minha mochila estragada para o lago.

4. Respirar fundo e saltar para a água, para a salvar.

5. O meu pai saltar para o lago para me salvar, mas não à minha

mochila.

Só agora me lembro de outra coisa.

Lembrar não é a palavra certa, porque eu não me tinha esquecido

dela. Não tinha como saber este facto importante naquela altura.

Apercebo-me agora de como o meu pai se pareceu com Bee Larkham

quando discutimos por causa da minha mochila do Darth Sidious no seu

quarto.

Por favor, faz isso por mim, Jasper. Consegues fazer isso por mim?
57

DOMINGO (ALPERCE)

Manhã

Estou de volta à casa da minha família de acolhimento temporário.

Dói-me a barriga e não quero falar com Tom de Pele nem com Cinzento-

Ardósia. Não os conheço. Tenho de esperar que o meu pai me venha

buscar porque ele não me ia deixar sozinho mais uma noite numa casa

desconhecida, sobretudo quando tenho de ir para casa procurar no meio

dos meus cadernos de apontamentos e quadros e despedir-me dos

periquitos.

Ainda não compreendo o que Laranja de Cromo Oxidado me disse

ontem na esquadra nem a forma como Leo o explicou depois.

Não matei Bee Larkham. Foi outra pessoa que a matou.

Volto a repetir as palavras vezes sem conta, enquanto esfrego os

botões do casaco de malha da minha mãe, mas não fazem sentido.

O meu pai estava na cozinha dela, a resolver aquela trapalhada: o

corpo e as manchas de sangue. E outras coisas também.

Perguntei-lhe se eu tinha matado Bee Larkham.

Sim, filho.

Ter-se-á esquecido que lá estava? Terá mentido para me proteger?


Poderá ter bloqueado aquilo que fiz, da mesma forma que não

consigo lembrar-me realmente de tudo?

Não sei de que é que o meu pai se lembra sobre a noite em que Bee

Larkham foi assassinada. Ele não me disse porque não gosta de falar

sobe ela.

Quero pintar até o meu pai aqui chegar. Dei uma lista de coisas a

Maggie e ela foi buscá-las ao meu quarto. Ao meu verdadeiro quarto.

Volto para lá esta noite. Maggie viu periquitos no carvalho do jardim de

Bee Larkham. Não conseguiu dizer quantos. Pediu desculpa por não os

ter contado.

Ela diz que isto é uma colocação temporária e que os Serviços de

Proteção de Menores iam precisar de uma ordem judicial para me

manterem aqui por mais tempo. O meu pai está a cooperar totalmente

com a polícia e já facultou uma amostra de ADN, para que não seja

preciso fazer isso, a não ser que seja acusado de um crime.

Ela espera que ele seja libertado sob fiança ainda hoje. Se isso

acontecer, poderá voltar para casa com medidas de coação, como a

apresentação regular na esquadra e a entrega do passaporte.

Ainda bem. Não quero ir ao tribunal. O meu pai também não deve

querer ir. Ele não fez nada de mal, a não ser tentar ajudar-me.

Hoje, vou ser especialmente corajoso por nós dois. Só restamos nós.

A nossa família só tem dois membros porque a minha mãe e a minha

avó morreram e abandonaram-nos, não para ir para o Céu, mas para

outro lugar qualquer. Não sei onde.

O meu pai e eu.

Eu e o meu pai.

Pela primeira vez, vou tentar pintar cristais de azul-glacial com

arestas brilhantes e pingentes de gelo prateados e serrilhados para me

ajudar a recordar corretamente todos os pormenores daquela noite. Não


tenho o material certo para o fazer convenientemente. Esqueci-me do gel

de empastamento, de que preciso para fazer as texturas dos gritos de Bee

Larkham, e só tenho uma tela grande; foi tudo o que Maggie conseguiu

trazer juntamente com as minhas outras coisas.

Devia ter duas telas: uma para pintar as cores de Bee Larkham

quando a feri com a faca, e outra para mostrar as cores quando voltei à

cozinha para ir buscar os meus cadernos de apontamentos e quadros.

Duas cenas separadas.

Dois quadros.

Porém, só tenho uma tela, ou seja, uma oportunidade para pintar o

quadro como deve ser.

Preparo as minhas tintas em fila: ultramarino, azul-celeste e azul-

cobalto, assim como preto. Esqueci-me do branco-titânio, que é

luminoso, e tenho de me contentar com o mais mortiço branco-zinco.

Encho de água o meu frasco favorito, o que Maggie encontrou na casa

de banho, lá em casa.

Quando já não posso adiar o momento por mais tempo, tento pintar a

cor e forma do homicídio de Bee Larkham:

Cristais de azul-glacial com arestas brilhantes e pingentes de gelo

prateados e serrilhados.

Pensava que as cores e formas originais estavam corretas, mas

Laranja de Cromo Oxidado insiste em que estão erradas.

Eu não matei Bee Larkham.

Não estou familiarizado com esta imagem nova e estranha que tenho

de criar. Não tentei pintá-la antes.

Tenho de pintar a minha versão da verdade, e não a de mais

ninguém.

Mergulho o pincel em água e tinta branca, esfregando-o na tela.

Salpico azul-celeste por cima e misturo preto e branco para fazer a cor
dos espigões serrilhados prateados. Aplico-o com pequenos toques de

pincel porque não posso usar aparas de cartão para moldar as pontas e

os pingentes de gelo em picos sem o gel de empastamento.

É o melhor que consigo fazer:

Isto é Bee Larkham a gritar ao cair.

O seu corpo jaz no chão da cozinha, perto da porta para o hall.

Tem os olhos fechados.

Há salpicos de sangue nos mosaicos e no vestido azul-cobalto que

não é azul-cobalto de Bee. Há uma poça de vermelho-claro, vómito

coalhado.

Os quadros dos periquitos estão espalhados sobre a mesa.

A empada de periquito está em cima da mesa.

A cozinha está uma confusão, com tachos e panelas empilhados no

lava-louça.

Tenho a faca na mão.

Pensava que tinha acabado o meu quadro, mas vêm-me à cabeça

mais cores e formas.

Pontos amarelo-claros. O relógio da cozinha estava a fazer

tiquetaque. Acrescento os pontinhos no canto superior direito.

Uma forma estranha saiu da boca de Bee, branco-crespo, com uma

textura inconsistente, enquanto ela ofegava. Tento recriá-la, mas mais

uma vez é impossível fazê-lo convenientemente sem empastamento.

O meu pincel avança, não quer demorar-se demasiado tempo sobre a

morte.

Segue os meus passos alaranjados até à entrada. Vi a mala da

despedida de solteira. Estava pousada ao alto e fechada, junto ao

bengaleiro. Tirei o meu anoraque do cabide, vesti-o, enfiei a faca

debaixo dele e saí a correr daquela casa.


Junto uma forma castanho-escura, quase como uma vassoura

alongada, quando a porta se fechou com estrondo.

O quadro está terminado — uma reprodução exata do que aconteceu

na cozinha de Bee Larkham. Porque é que aquilo me está a induzir em

erro?

Quero que o meu pai me explique onde cometi o erro crucial, mas

ele não pode. Ainda está a explicar à polícia como as coisas se passaram.

Imagino que esteja a dizer aos inspetores que também acreditou nas

cores do meu quadro original. Pensou que eu tinha matado Bee Larkham

e tentou encobrir o crime, para impedir que eu fosse parar à cadeia. Pôs

o corpo dela na mala que estava à entrada e levou-a de carro até uma

zona de mata.

As cores enganaram-nos a ambos.

Tenho de tentar novamente.

Desta vez, vou pintar as novas cores por cima da minha tela acabada,

para criar a cena que vi mais tarde, nessa noite.

Esfrego um botão até me sentir melhor a fazer aquilo.

Vou voltar à cozinha de Bee para salvar os quadros dos periquitos e

os cadernos de apontamentos. Tenho de entrar novamente, desta vez

através de outra porta.

A porta das traseiras.

Instintivamente, dou uns toques de castanho-acinzentado no canto

inferior esquerdo — sou eu a deslocar a estátua do flamingo, para tirar a

chave extra de Bee Larkham. A cor contamina a tinta branca que está

por baixo, ficando instantaneamente com o aspeto errado.

Não pertence ali.

Tapo a mancha colorida com pinceladas de branco porque está

errado.
Quando cheguei da segunda vez, a porta das traseiras já estava

aberta e a chave estava na fechadura, do lado de fora. O meu pai deve tê-

la deixado lá.

Agora estou de volta à cozinha.

Não tenho de acrescentar os pontinhos amarelo-claros do tiquetaque

do relógio porque já estão na minha tela.

O meu pincel hesita.

Tenho setenta e cinco a oitenta por cento de certeza de que não vi

formas branco-crespas — os sons que vinham da boca de Bee Larkham

quando voltei.

A cozinha parecia diferente, mais escura também, mas não consigo

pintar os pormenores novos e confusos que me afluem à cabeça porque

só pinto sons, nunca objetos.

A Bailarina de Porcelana tinha chegado, e de certeza que não estava

lá antes. Os meus quadros tinham voltado para dentro do seu portefólio,

ao lado do saco dos cadernos de apontamentos, sobre a mesa.

Aquela noite teve dois espectadores: eu e o meu pai.

O meu pai usava um boné de basebol azul-escuro e estava ajoelhado

ao lado do corpo de Bee Larkham. Talvez estivesse a procurar sinais de

vida no pescoço, como Laranja de Cromo Oxidado sugerira que eu

podia ter feito.

Eu não consegui olhar.

Ele susteve a respiração com espirais de massa brancas e falou em

sussurros cinzento-esbranquiçados, que acrescento rapidamente à tela.

Desta vez, não vi a mala porque tirei o meu estojo de cima da mesa,

juntamente com o saco de cadernos, e fugi pela porta das traseiras.

Estava aberta. Não a fechei nem devolvi a chave ao flamingo. Nunca

olhei para trás, enquanto saía a correr do quintal e descia a viela, com a

chuva a fustigar-me o rosto.


As cores voltam mais depressa quanto mais me afasto da casa de Bee

Larkham.

Um carro buzinou ao longe formas pontiagudas e rombas de um

vermelho-almiscarado. Uma raposa atravessou a estrada a correr, comigo

atrás dela. Separámo-nos junto ao portão verde-petróleo que rangia.

Estava de volta ao meu jardim e depois à cozinha da nossa casa;

havia um copo de sumo de laranja meio bebido sobre a bancada, no

mesmo sítio onde o deixara.

Misturo uma cor de chocolate preto aveludado à minha paleta e traço

linhas sobre a tela. Um padrão rítmico.

O mesmo barulho castanho que ouvi quando saí de casa.

Corri para o meu esconderijo. Subi a escada, amarelo pastel, claro e

turvo.

Há mais quatro cores distintas de que não me lembrei até agora.

Passos escuros cor de banana demasiado madura subiram a escada,

enquanto eu enfiava o portefólio debaixo de cobertores, no meu

esconderijo.

Silêncio, tirando os círculos gema de ovo do meu relógio.

Passados alguns segundos, outra cor e forma: cinzento-escuro

indistinto e linhas claras e brilhantes, quase como estática na televisão,

mas não exatamente.

O meu pai estava a tomar um duche.

Não conseguia sair do meu esconderijo. Abracei o casaco de malha

da minha mãe.

Azul-cobalto.

Passo a cor da voz da minha mãe sobre a tela inteira, para me sentir

melhor. Tentar criar este quadro hoje sem o material certo foi um erro.

Tudo nele parece estar errado.


Não confio nas cores, nem nos brancos glaciais, nem nas formas

espiraladas, nem nos sussurros, nem nas linhas de estática na televisão

do meu pai.

Só posso confiar na minha mãe.

Só posso confiar no azul-cobalto.

A minha mãe e eu tínhamos cores diferentes para dias da semana,

números e música, mas isso não tinha importância.

Partilhávamos uma linguagem que ambos conseguíamos

compreender. Uma linguagem que nunca deixou o meu pai entrar.

Sinto a falta da minha mãe.

Quero-a de volta.

Ela gostava de fazer puzzles, palavras cruzadas e resolver problemas.

Preciso que ela me ajude a resolver o meu puzzle. Não me parece que

consiga fazê-lo sozinho. Não sou suficientemente esperto. Não tenho as

peças todas, e aquelas que tenho não fazem sentido. Estão misturadas e

não posso ir para casa, para as ordenar.

Bee Larkham tem a peça em falta.

Ou o meu pai.

Leo, o meu advogado, disse que, inicialmente, a polícia pensava que

eu tinha sido a última pessoa a ver Bee Larkham com vida.

Agora pensam que foi outra pessoa.

Penso que essa pessoa deve ser o meu pai.

É definitivamente o meu pai.


58

DOMINGO (ALPERCE)

Tarde

Não gostava do quarto de Seb, mas agora estou demasiado assustado

para me ir embora. Tenho medo de regressar a casa e deparar-me com

um carvalho e um beiral vazios. Ninhos abandonados. Os jovens

periquitos já se podem ter juntado a um poleiro, sem terem esperado

para se despedir.

Percorro o «S» encaracolado do seu nome com o dedo, enquanto

estou deitado na cama do rapaz desconhecido. Partilhamos essa letra nos

nossos nomes.

S-E-B

J-A-S-P-E-R

O «S» e também um «E». Nada mais. Desconheço os passatempos

ou interesses de Seb. Não sei onde ele está agora.

Cravo a unha no «E».

Não consigo esquecer.

Arrumei as minhas tintas e o resto das minhas coisas. A minha

mochila está à espera, ao lado da cama. Está a vigiar a porta.

E eu também.
Tenho medo de me ir embora desta casa com o meu pai.

Tom de Pele e Cinzento-Ardósia estão a falar com a assistente social,

Maggie, lá em baixo. Estão todos a falar com o meu pai, porque os

inspetores deixaram-no sair da esquadra, para já. Não foi acusado de

agressão nem do homicídio de Bee Larkham.

Libertaram-no sob fiança, como Maggie esperava. Pode ser chamado

novamente à esquadra para novo interrogatório. Os inspetores entrarão

em contacto com o advogado dele. Não é Leo. É outra pessoa. Uma

mulher chamada Linda.

Maggie diz que os serviços sociais discutiram o meu caso durante

muito tempo. Tiveram em conta o facto de não haver outros familiares

com quem possa ficar e também que o estar com estranhos é uma

situação particularmente traumática para alguém como eu.

Vão deixar-me voltar a Vincent Gardens com a supervisão contínua

do seu departamento.

O meu pai diz que é inocente e que está na hora de irmos os dois

para casa.

No carro, o meu pai explicou que a polícia teve de o deixar vir

embora porque não havia provas suficientes para o colocar no local do

crime.

A investigação forense encontrou dúzias de impressões digitais em

casa de Bee Larkham. Algumas correspondiam às dele porque tinha

estado na sua festa, juntamente com muitas outras pessoas.

Isso não prova nada.

A polícia está a tentar localizar todas as pessoas que visitaram a

casa, incluindo todos os alunos de música. Estão a fazer mais

inquirições porta a porta ao longo da rua e a reexaminar os depoimentos


das testemunhas. Continuam a analisar o ADN encontrado no corpo e na

mala de Bee.

Os resultados iniciais excluem o meu pai, o que são boas notícias

para nós os dois.

Tens de acreditar em mim. Não tive absolutamente nada que ver com

nada disto.

Não sei em quem ou no que hei de acreditar.

Sei que nada parece certo nesta rua porque:

1. Os comedouros dos pássaros estão vazios. Não consigo ver

um único periquito no carvalho ou no beiral.

2. A Bailarina de Porcelana não conseguiu voltar a subir a

escada até ao seu lugar habitual, à janela. Deve ter ficado na

cozinha.

3. A fita amarela da polícia esvoaça em torno da porta da

entrada de Bee Larkham.

4. Um homem de chapéu preto não cumprimentou o meu pai

quando saímos do carro. Recusou-se a revelar a cor da sua

voz. O meu pai disse que o homem era David Gilbert e que

estava deliberadamente a ignorá-lo porque sabia que a polícia

o tinha detido. Provavelmente, David Gilbert também pensava

que ele era culpado.

Nada parece estar certo no meu quarto porque:

1. O meu esconderijo foi deitado abaixo e alguém tentou voltar

a erguer os cobertores. Fizeram tudo mal.

2. O casaco de malha da minha mãe não cheira ao mesmo,

embora eu o tenha levado para casa de Cor de Pele e


Cinzento-Ardósia. Não tinha ficado ali sozinho.

3. Os meus quadros parecem tristes, como se não me quisessem

voltar a ver. Não sei se os culpo por isso.

Tudo está fora do sítio (uma expressão de um preto-acastanhado

escuro). O pó cinzento-claro mancha provocadoramente o meu roupeiro,

sem querer saber dos vestígios. Quando olho de mais perto, vejo as

formas das impressões digitais. Por trás das portas, está tão mau como

supunha. As minhas caixas não estão na ordem correta.

— Alguém andou a mexer no meu roupeiro, enquanto cá não estive

— grito. — Abriram as minhas caixas e remexeram os meus cadernos

de apontamentos. Sei que não estão como deviam.

O meu pai está sentado à mesa, a segurar uma bebida quente, quando

irrompo pela cozinha.

— Desculpa, Jasper. Devia ter-te explicado no carro. A polícia

revistou a nossa casa, enquanto estávamos fora. Levaram alguns objetos,

mas estão todos especificados. Posso mostrar-te a lista, se quiseres.

— Levaram os meus quadros dos periquitos e eu quero-os de volta

— insisto. — Todos eles. O que tem marcas de água, também.

— Vão ficar na posse deles, para já, assim como alguns dos teus

cadernos de apontamentos. Os outros estão nas respetivas caixas, lá em

cima.

— Não estão como deviam — digo. — Estão fora de ordem. Estão

todos mal.

Olho para o outro lado da cozinha. A gaveta dos talheres também

tem marcas cinzentas. Mais impressões digitais.

— Não te preocupes com isso. — O meu pai pousa a caneca. — A

polícia andava à procura de impressões digitais. Eu disse-lhes que tinha

guardado ali a faca, a faca de Bee, depois de… tu sabes…


Aquilo é verdade? Eu tinha a certeza de que ele escondera a faca em

algum lugar secreto fora da casa e do jardim, em algum lugar onde sabia

que eu nunca a iria encontrar.

— Vou livrar-me da faca e da tua roupa, foram exatamente essas as

suas palavras — observo.

— Sim, tens razão. Fiz isso. Deitei fora toda a tua roupa

ensanguentada, incluindo o teu anoraque. Sabia que nunca mais a irias

usar. Guardei a faca na gaveta porque não sabia o que fazer com ela.

Queria esquecer o assunto.

— Mentiu na altura — digo. — E está a mentir-me agora.

— Não, tu não compreendeste bem o que eu disse, Jasper. Não

compreendeste nada do que eu disse acerca de mim e da Bee, desde o

início.

— Fez sexo com Bee Larkham. Compreendo isso! E compreendo

que ela não era a mãe. Não era azul-cobalto! Nunca foi azul-cobalto!

Nem sequer parecida era!

Saio a correr da cozinha e subo a escada. O meu pai não tenta

impedir-me, nem mesmo quando entro no quarto dele.

Encontro o livro que ele escondeu debaixo da capa de Lee Child.

Compreender o autismo do seu filho e outras dificuldades de

aprendizagem.

Rasgo as páginas, uma por uma.

— Não sou um manual! Não sou um manual!

Ele está parado na soleira da porta. Não tenta salvar o livro. Não me

contradiz.

— Eu não matei Bee Larkham! — grito.

— Eu sei disso — diz ele baixinho. — Nunca pensei que o tivesses

feito, Jasper. E tens de acreditar em mim quando digo que também não a

matei.
— Não acredito! Não acredito numa palavra do que diz!
59

SEGUNDA-FEIRA (ESCARLATE)

Manhã

É demasiado assustador despejar todas as caixas que estão no meu

roupeiro para o chão, ao mesmo tempo. Não conseguia fazer isso. Tenho

de revistar uma caixa de cada vez, à procura do caderno de

apontamentos do coelho branco desaparecido. Posso limitar as buscas.

Laranja de Cromo Oxidado tirou-o de uma das caixas durante o meu

primeiro relato, a 12 de abril. Depois a criatura desapareceu de novo

porque não queria ser apanhado a invadir propriedade alheia.

Começo a procurar antes de Maggie chegar para falar connosco,

enquanto não vou à escola. Ela vai visitar-nos regularmente a partir de

agora e vai levar-me outra vez à esquadra, amanhã, para ver se consigo

lembrar-me de mais alguma coisa sobre a noite de 8 de abril. Só tenho

cinco minutos até ela chegar, o que não é suficiente. Os coelhos são

criaturas tímidas. Não saem do seu esconderijo se tiverem medo.

Devia dizer isso a Maggie. Se me esquecer, posso sempre telefonar-

lhe. Ela deu-me um número de telefone especial. Posso ligar-lhe a

qualquer hora do dia ou da noite, se estiver assustado.


Eu e o meu pai vamos fazer o seguinte, agora que Maggie já se foi

embora, depois de beber uma chávena de chá e de comer duas bolachas

recheadas.

Cada um de nós vai fazer uma lista de factos importantes durante os

próximos quinze minutos e depois vamos compará-las. Quando

trocarmos, podemos levantar a mão para fazer uma pergunta, se não

entendermos um facto ou quisermos dizer alguma coisa.

Factos importantes do meu pai

1. Não matei Bee Larkham.

2. Não estive na cozinha de Bee Larkham na sexta-feira à noite.

3. Não esvaziei a mala dela nem pus o corpo lá dentro para o

levar para uma mata.

4. Falei com Bee por volta das 21h30 de sexta-feira à noite, à

porta da frente de casa dela. Já lá tinha ido bater várias

vezes, mas ela estava a ouvir música em altos berros e,

provavelmente, não ouviu.

5. As minhas botas estavam enlameadas por ter ido a pé para o

trabalho e por ter tomado um atalho, à chuva. O meu boné

de basebol está debaixo dos casacos, no bengaleiro, à

entrada. Foi onde o deixei depois da minha corrida. Podes

verificar. A sua cor é preto-desbotado.

Comparo-a com a minha lista:

Factos importantes do Jasper

1. Não matei Bee Larkham.

2. O meu pai tinha um boné de basebol azul-escuro na cozinha

de Bee Larkham, na sexta-feira à noite.


3. O meu pai confirmou que eu tinha matado Bee Larkham.

4. O meu pai mentiu em relação ao que fez à faca.

Levanto a mão de imediato.

— Está a dizer a verdade sobre o número dois da sua lista? É

diferente do meu.

— Sim, filho.

Não consigo respirar.

Largo a lista e subo a escada a correr. Empurro a cadeira para

debaixo do puxador da minha porta. Não vou telefonar a Maggie. Ela

não me pode ajudar.

Tenho de ligar para o 112 porque isto é uma emergência.

Preciso de dizer à polícia que, decididamente, penso que foi o meu

pai que matou Bee Larkham.

Teve de ser ele.

Estava no local. Na cozinha de Bee Larkham. E tinha um boné de

basebol azul-escuro. Estava a tocar no pescoço dela.

— Jasper! Juro que é verdade! Não estive lá, nessa noite!

Deixei o telemóvel lá em baixo.

Bato nos vidros da janela. Ninguém me ouve. Não conseguem ver as

minhas cores.

— Não fiz nada de mal! — repete o meu pai atrás da porta. — Tens

de acreditar em mim, Jasper! Eu não estava lá. A sério que não! A

polícia acredita em mim. Nunca me teriam deixado trazer-te para casa se

pensassem que eu era perigoso. Estão a interrogar novamente o pai de

Lucas Drury. Ele é suspeito, agora. Já foi acusado de agressão, assalto e

de ter proferido ameaças de morte. Ele nega tudo, mas o inspetor

Chamberlain crê que vão arrancar-lhe uma confissão porque o bebé era
do Lucas. Não era meu. A polícia já confirmou isso com os testes ao

nosso ADN.

Não sei em quem hei de acreditar.

No meu pai.

No pai de Lucas.

No Lucas.

Não vou sair dali. O mundo para lá da porta do meu quarto é

demasiado perigoso.

Os periquitos jovens perceberam isso. Alguns já podem voar, mas

ficam perto do ninho à noite. Vi-os empoleirados nos ramos do carvalho,

com os pais por perto.

Não querem deixar-me sozinho. Sabem que não estou em segurança

aqui no meu quarto e a morar nesta rua.


60

SEGUNDA-FEIRA (ESCARLATE)

Tarde

Reconstruí o meu esconderijo e todas as tintas que foram comigo

para a família de acolhimento estão de volta ao seu devido lugar.

Isso faz-me sentir melhor.

Desta vez, vou pintar a noite do homicídio de Bee Larkham como

deve ser, usando duas telas separadas. Assim, posso olhar para os dois

quadros, lado a lado, e perceber onde é que cometi erros.

Estou a fazê-lo da forma correta, usando as tintas e materiais

apropriados, que dispus sobre a mesa: chaves, pentes, o cartão de crédito

antigo do meu pai e tiras de cartão, assim como pincéis e espátulas.

Usando um pincel grande e macio, dou uma aguada branca sobre a

tela, antes de dividir o meu gel de empastamento em três partes na

paleta. Misturo tinta branca, azul-celeste vivo e cinzento em cada uma

delas.

O meu azul é exatamente da tonalidade que preciso, duro e metálico.

Implacável.

Disponho a mistura azul em camadas com a ajuda de uma espátula,

construindo picos grandes e afiados com um bocado de cartão e com a


ajuda dos dedos. Aplico tinta branco-titânio de um tom vivo nos

pináculos azuis e acumulo mais nas arestas pontiagudas, com os dedos e

uma chave.

A seguir, aplico o cinzento, moldando pingentes de gelo afiados com

o cartão de crédito e um pente. O meu professor de Artes Visuais

recomendou que fizéssemos experiências em casa com ferramentas

invulgares, e estas são as melhores para criar formas afiadas como

lâminas.

Sei que estes sons estão corretos. Bee Larkham a gritar quando caiu

para trás.

Eu caí a seguir.

Bee estava deitada de costas no chão, de olhos fechados.

Usando mais mistura branca, faço a forma espiralada que saiu da

boca dela, e acrescento a cor do relógio.

Dato o quadro corretamente na parte de trás da tela:

8 de abril

Cristais de Azul-Glacial com Arestas Brilhantes e Pingentes de

Gelo Prateados e Serrilhados em tela

Coloco o quadro junto à janela e começo o meu segundo quadro,

mais problemático, que mostra o meu regresso a casa de Bee Larkham

mais tarde, nessa noite.

Recrio o amarelo-pálido do tiquetaque do relógio. Depois de o fazer,

hesito, como da última vez, mas não é por duvidar das minhas

ferramentas nem por querer pedir desculpa à minha tela.

É verdade que a cor do relógio é a mesma neste quadro e no que está

debaixo do peitoril, mas preciso de me concentrar nas diferenças. O


ruído branco espiralado que saiu da boca de Bee Larkham está ausente.

Estou cem por cento certo disso agora.

Também há outras coisas que estão diferentes.

Quando estava em casa de Cor de Pele e Cinzento-Ardósia, tinha

tentado lembrar-me da cor dos sons na cozinha, mas, decididamente,

não eram essas as mudanças mais importantes.

Era o que eu via, e não as cores que ouvia, que tinha sofrido mais

alterações.

Bee Larkham jazia no chão com os olhos fechados quando a deixei.

Mas, quando voltei à cozinha, para resgatar os meus quadros, ela tinha

os olhos abertos.

Estava a olhar para mim, morta, sem dúvida.

A minha mão treme. Os seus olhos assustaram-me naquela noite.

Agora aterrorizam-me.

Todos os aspetos deste quadro estão errados. Não são apenas os

olhos: fechados então e abertos agora.

Bee vestia um top preto e uma saia turquesa, subida até aos joelhos.

Carne do outro mundo. Tinha trocado de roupa e de posição, uma vez

que se encontrava estendida no chão do outro lado da mesa, em vez de

estar junto à porta que dava para o hall.

Tinha a mão esquerda envolta em ligaduras.

A divisão estava mais escura que antes — a luz do teto estava

apagada, só havia um pequeno candeeiro de mesa.

Recordando essa noite, os meus olhos querem focar-se nos salpicos

de sangue no chão da cozinha, mas eles desapareceram, juntamente com

a poça de vomitado.

Levaram os pratos e os tachos sujos com eles; toda a louça por lavar

desapareceu. A cozinha está limpa e arrumada. A empada de periquito

desapareceu da mesa e a Bailarina de Porcelana tomou o seu lugar.


Ela está a ver um homem com um boné de basebol azul-escuro a

inclinar-se sobre o corpo de Bee Larkham.

Os olhos de Bee Larkham parecem pedras opacas.

Volto a estremecer.

Lembro-me de sentir o cheiro de alguma coisa estranha e acre:

desinfetante. Também há outro odor que me faz doer a barriga. Já o

cheirei antes.

O meu portefólio de arte estava fechado em cima da mesa limpa,

com o saco dos cadernos ao lado.

Alguém tinha arrumado tudo: limpado o sangue e o vomitado e

lavado a louça. E também tinha reunido os meus quadros.

Eu pensava que essa pessoa era o meu pai, o Homem do Boné de

Basebol Azul-Escuro, para me ajudar. Mas isso não explica porque é que

Bee parecia diferente e estava deitada numa nova posição.

Quando comparo este quadro com a tela junto à janela, as diferenças

deixam-me aterrado.

Elas provam que não matei Bee Larkham. Ela deve ter-se levantado

do chão depois de eu sair de lá. Tinha ligado a mão e trocado de roupa e

lavado o chão com desinfetante. Tinha apanhado os meus quadros e

pendurado um na parede, pondo os outros no portefólio.

Vejo o que não conseguia ver antes.

Este é o quadro correto, aquele em que devia ter acreditado desde o

início. É uma reprodução fiel do que aconteceu.

Vou chamar-lhe:

8 de abril: A verdade em tela

O primeiro quadro — Cristais de Azul-Glacial com Arestas

Brilhantes e Pingentes de Gelo Prateados e Serrilhados — induziu-me

gravemente em erro.

É uma farsa.
Não sei as cores ou formas do homicídio de Bee Larkham.

Nunca soube. Não estava lá quando ela morreu.


61

SEGUNDA-FEIRA (ESCARLATE)

Mais tarde nessa tarde

Concordei em falar com o meu pai, mas não vou abrir a porta.

Estamos sentados em lados opostos. Ele passou a lista pela frincha em

baixo, porque eu disse que queria discutir o número quatro.

— Disse-te que ia tratar da Bee, e foi isso que fiz — diz o meu pai.

— Visitei-a, enquanto estavas a dormir, e perguntei-lhe que raio se tinha

passado. Ela tinha uma ligadura na mão. Disse-me que tu ficaste furioso

quando ela se recusou a ir à polícia por causa das ameaças de David aos

periquitos. Que a atacaste com a faca e que te cortaste para dar ideia de

que ela te tinha atacado primeiro. Disse ainda que estavas descontrolado

e violento. Disse que eras uma ameaça.

— É tudo mentira — digo, pondo as mãos sujas de tinta sobre a

porta. — É tudo mentira.

— Eu sei, desculpa. Lidei com tudo da forma errada. Devia ter-te

levado a um médico naquela noite. Não devia ter dado ouvidos a Bee.

Devia ter conversado contigo sobre o que aconteceu depois, mas só

queria esquecer aquilo. Não fazia ideia…

Para de falar e depois começa novamente.


— A Bee disse que, a título de favor pessoal, não ia apresentar

queixa por agressão — continua. — Ela não queria falar com a polícia.

Avisou-me que, se te levasse a um médico, os serviços sociais e a

polícia iam ser envolvidos. A polícia ia apresentar queixa contra ti, quer

ela cooperasse ou não. Ambos concordámos em ficar calados, para teu

bem. Não diríamos a ninguém o que tinha acontecido. Nenhum de nós

voltaria a tocar no assunto. Foi por isso que te disse para ficares calado,

Jasper. Foi a única razão, juro!

Bee tinha pintado o quadro errado, um quadro falso com cores

enganosas, como aquele que eu fizera há pouco. Tinha-o oferecido ao

meu pai, para pendurar na parede do quarto dele, e ele aceitara-o sem

reservas, preterindo as cores que eu pintara.

Ele tinha ficado do lado de Bee Larkham, não do meu.

— Ela fez-lhe um favor porque fizeram sexo depois da festa —

replico.

Silêncio.

— Não vou negá-lo. Mas estamos a falar de um caso isolado.

Arrependi-me disso, mais tarde. Lamento imenso.

— Da mesma forma que lamenta ter-me. É difícil para si ter um filho

como eu. A Bee disse-me. Quem lhe dera ser solteiro outra vez.

— Não! Isso não é verdade! Olha, há muito tempo que eu devia ter

posto um ponto final no teu relacionamento com Bee. Não fazia ideia da

forma como ela te estava a manipular. A manipular toda a gente nesta

rua. Ela está na tua cabeça, Jasper, e tu tens de a tirar de lá. Ela mentiu.

Não consigo.

— Eu não estava a tentar substituir a mãe, se é isso que pensas —

prossegue o meu pai. — Não teve nada que ver com a mãe. Sentia-me

sozinho.

Eu também.
— E agora, já sais daí?

— Tenho de pintar. Tenho de encontrar o coelho branco antes que

me esqueça outra vez.

Ouço a cor do seu suspiro através da porta.

— Vamos falar mais sobre o que aconteceu depois — diz ele. —

Porque há uma coisa que preciso que compreendas, Jasper. Eu falei com

Bee às nove e meia da noite de sexta-feira, mas os vizinhos também

ouviram a sua música alta até depois da uma da manhã. Eles verificaram

o meu relato. David Gilbert passou por lá para se queixar novamente do

barulho. Teve outra discussão com Bee. Ele foi a última pessoa a ver

Bee Larkham com vida, não eu.


62

SEGUNDA-FEIRA (ESCARLATE)

Ainda nessa tarde

Não tenho de ir lá abaixo — o meu pai deixou uma sanduíche de

queijo num prato à porta do meu quarto. Espero até a cor dos seus

passos se desvanecer, antes de o ir buscar. Volto a pôr a secretária no

lugar, entalo a cadeira entre o puxador da porta e o fundo das gavetas.

Se o meu pai tentar abrir a porta com um encontrão, ela não vai

ceder.

Diz que não vai fazer isso porque não me quer matar.

Ele não matou Bee Larkham.

Não esteve na cozinha de Bee Larkham na sexta-feira à noite.

Posso ter imaginado ver alguém por causa da medicação que o meu

pai me deu. Ele não me ouviu sair de casa.

Talvez eu não tenha regressado.

Talvez o meu pai tenha razão. Foi só um pesadelo horrível. Sonhei

aquilo tudo, uma cena que não se enquadrava nem fazia sentido.

Conversei com Maggie através do seu número de telefone especial.

Ela diz que é bom eu falar com o meu pai.


Vou deixar os quadros por agora, porque são demasiado confusos.

Começo novamente a caça ao caderno do coelho branco; ele não

pertence a esta casa. O animal vive do outro lado da rua, mas a porta

está vedada com fita, por isso ele não pode voltar. Talvez seja por isso

que a criatura me visitou.

Encontro-o ao fundo do roupeiro, na quarta caixa que abro, enfiado

entre cadernos antigos que contam os meus primeiros meses a morar

naquela rua.

Eu não pus o coelho naquela caixa. Em nenhuma caixa. A única

possibilidade de ele ter ido lá parar é Bee Larkham ter-se esquecido dele

quando esteve no meu quarto. Mas não o deixou por ali, à espera de ser

encontrado por acaso; deve tê-lo guardado deliberadamente na caixa.

Será que ela não o queria?

Será que ela me deixou um presente-surpresa.

Ou será que ela se esqueceu de me fazer prometer que o manteria a

salvo?

Abro na primeira página.

Este diário pertence a Beatrice Larkham, de nove anos e três

meses. Se encontrar este diário, é favor devolvê-lo ao número 20

de Vincent Gardens.

Desculpe, já não posso fazer isso.

Bee — não posso chamar-lhe Beatrice, como David Gilbert — tinha

desenhado coelhos no verso da capa. Para ser sincero, os desenhos são

péssimos. Ao lado está o excerto de Alice no País das Maravilhas que

ela leu junto à sepultura do periquito bebé. Esta caligrafia parece

diferente. Mais cuidada.


Vou folheando o diário. É matéria enfadonha: o que comeu, as

meninas com que brincou na escola. Isso quando estava na escola.

Passou páginas e páginas doente em casa, a ler a Bíblia. Não sei bem o

que se passava com ela.

Passo para uma página que tem o canto dobrado. Endireito-o porque

os vincos dão mau aspeto e, se não o fizer, vai incomodar-me o dia todo.

Quinta-feira

A mamã diz que fui uma menina malcomportada e atrevida.

Um quarto desarrumado é pecado. Tivemos de ler a Bíblia

juntas durante duas horas! Nada de televisão. Quem me dera

conseguir lembrar-me de ser uma boa menina. É difícil ser

boazinha.

A mamã e a senhora Watkins vão a uma reunião de oração,

amanhã à noite. Eu fico em casa. Espero que o babysitter não me

obrigue a ler a Bíblia. É enfadonha. Não posso dizer isso à

minha mãe, senão ela vai zangar-se outra vez.

Sexta-feira

Estou desejosa de que a minha mãe saia. Vi o meu babysitter

no caminho da escola para casa e perguntei-lhe sobre a Bíblia.

Ele disse que podíamos fazer um chá do Chapeleiro Louco, como

o do meu livro preferido, Alice no País das Maravilhas. Mal

posso esperar!!!!!

Subo para o meu esconderijo e ponho o diário debaixo de um

cobertor. A infância de Bee Larkham era desinteressante. Se não tivesse

sido assassinada, dir-lhe-ia que não tinha apreciado grandemente o seu

presente. Ia devolver-lho sem dizer «obrigado». Preferia ver os


periquitos da janela do seu quarto. Seguramente que ela podia adivinhar

este facto importante.

Não percebo o que espera que eu faça com o seu aborrecido diário.

O que é que Bee Larkham estava a tentar dizer-me?


63

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Manhã

Maggie chega dentro de dez minutos para me levar à esquadra de

carro. Pelo sim, pelo não, não vou deslocar a secretária ou tirar a cadeira

de debaixo do puxador até ela chegar.

Estou a ler o diário de Bee Larkham a partir do ponto onde o

larguei; não regista a sua vida com exatidão. Ando para trás e para a

frente. Há demasiadas lacunas: páginas arrancadas e entradas escritas

por cima a caneta preta, com violência, rasgando o papel.

Quem me dera não ter lido algumas das páginas. Quem me dera que

ela não as tivesse escrito. O Chapeleiro Louco fizera-lhe coisas horríveis

na noite do chá e nas outras noites em que ficou a tomar conta dela,

enquanto a senhora Larkham ia a reuniões de oração. Quem me dera não

saber isso, mas não consigo espremer as cores da minha cabeça.

Quem me dera poder voltar atrás no tempo e dizer à senhora

Larkham para encontrar um babysitter diferente.

Releio uma das entradas de Bee Larkham:


Porque é que a mamã não acredita em mim? Porque é que

sou tão malcomportada? Odeio o Chapeleiro Louco. Odeio-o!

Quero que ele deixe de vir cá a casa. Quero que pare de me fazer

chorar. Vou pedir ajuda a Deus outra vez. Ele tem de me ajudar.

Bee desenhou a Lebre de Março, o Arganaz e o Chapeleiro Louco,

que nem parece ele. Não tem chapéu. É uma figura humana estilizada, a

segurar uma chávena.

O coelho branco salta de uma página para a outra, ao longo do

diário, e para finalmente na contracapa. Agora jaz morto no chão, com

as quatro pernas espetadas no ar. Há sete palavras escritas em

maiúsculas por baixo do animal morto:

DEUS NÃO ME VAI AJUDAR. QUERO MORRER.

— Bee Larkham queria morrer — digo a Laranja de Cromo

Oxidado, na sala de interrogatório. — É verdade. Deus não fez nada. Ele

nunca ajuda porque não está em lugar nenhum.

Maggie está comigo e com Leo. Eu disse a Laranja de Cromo

Oxidado que não precisava de um adulto adequado porque Leo e

Maggie são muito adequados. Ele concordou e disse bem visto.

— Foi alguma coisa que ela te contou? — pergunta Laranja de

Cromo Oxidado. — Ela disse-te porque é que andava a automutilar-se?

Não sei bem o que isso significa.

— Ela odiava o coelho. Eu sei disso. Matou-o, no fim. E também

odiava o Chapeleiro Louco.

— Sabe de que coelho está ele a falar? — pergunta Laranja de

Cromo Oxidado a Maggie.


— É a primeira vez que me fala nisso — replica ela. —

Normalmente, só fala dos periquitos.

— Ainda não foram alimentados — observo. — Os comedouros

estavam outra vez vazios esta manhã. Não temos sementes nem maçãs.

Ainda não fomos às compras. Será que a polícia lhes pode dar de

comer?

— Podes ter a certeza de que vou tentar saber se é possível, Jasper —

diz Laranja de Cromo Oxidado.

— A mãe de Ollie Watkins morreu de cancro. Pergunto-me se terá

sido por isso que ele se esqueceu de dar de comer aos periquitos. — Está

triste e sozinho, como eu.

— Não te preocupes — diz Maggie. — Podemos comprar sementes

no caminho para casa.

Depois disso, Laranja de Cromo Oxidado explica-me novamente a

história do meu pai, a sua versão dos acontecimentos. O meu pai já me

tinha contado algumas daquelas coisas em casa. Mas deixou de fora

outras, como ter adormecido na sua poltrona favorita depois de falar

com um amigo ao telefone e de beber umas quantas cervejas a mais.

O meu pai disse à polícia que foi aí que dormiu na noite de sexta-

feira, depois de ter ido visitar Bee Larkham, mas sem entrar lá em casa.

Não passou da porta. Foi por isso que não o vi no quarto, se realmente

me levantei durante a noite.

Mais tarde, pensou ter ouvido barulho, o que o acordou. Tomou um

duche para aliviar a rigidez no pescoço e foi para a cama.

A sua história foi confirmada. David Gilbert ouviu Bee a passar

música em altos berros até à uma da manhã. Bateu à porta de casa dela e

queixou-se. Ela insultou-o e ele foi-se embora. Foi interrogado pela

polícia e diz que também não foi ele que a matou.


Depois de termos arrumado esse assunto, continuamos sempre a

falar da mesma coisa: a cena na cozinha de Bee Larkham e o Homem do

Boné de Basebol Azul-Escuro. Eu levei os meus quadros comigo, mas

Laranja de Cromo Oxidado não olhou para eles. Tem cada vez mais

perguntas.

Terás sonhado que foste uma segunda vez a casa de Bee?

Talvez.

Lembras-te de mais algum pormenor que possa ser útil?

A Bailarina de Porcelana não devia estar na cozinha.

Tens a certeza de que viste o bibelô? Encontrámos o fio com a

obsidiana partido na cozinha, mas não a figura de porcelana.

Tenho a certeza de que a Bailarina de Porcelana estava lá. Ela viu

tudo.

Viste a mala na entrada, quando voltaste? Tinha mudado de posição?

Eu não entrei no hall.

Foste lá acima, para ver os periquitos da janela?

Não.

Tens a certeza de que não viste roupa no quarto, em cima da cama?

Roupa que pensamos que Bee tinha guardado na sua mala e que outra

pessoa voltou a tirar para fora nessa noite?

Eu não fui lá acima. Não vi a roupa com brilhantes para a

despedida de solteira. Não vi os periquitos.

Lembras-te das cores de algum som na cozinha?

Do relógio.

Que horas eram?

Não vi.

Lembras-te de algum cheiro?

A desinfetante e a outra coisa qualquer. Não me consigo lembrar a

quê. Não gostei. Fez mal à boca da minha barriga.


Consegues descrever o homem que viste inclinado sobre o corpo de

Bee?

Boné de basebol azul-escuro. Calças de ganga e camisa azul.

Conseguiste ver bem a cara dele?

Sim, vi a cara dele.

Reconhecia-lo se o voltasses a ver?

Não. Não sou capaz de descrever a cor do cabelo, porque estava

tapado pelo boné, mas normalmente não olho para esse tipo de coisas.

Não reconheci a forma da sua cabeça. Nem as suas meias.

— Podia ser alguém que conheces, tirando o teu pai? — pergunta

Laranja de Cromo Oxidado. — Alguém com quem já tivesses falado?

Reconheceste a cor da sua voz?

Não. Ele sussurrou linhas esbranquiçadas.

— Reconheceste o boné de basebol?

Não. Azul-marinho escuro, azul-escuro e preto são cores vulgares em

bonés de basebol. Não as posso usar como marcadores para me lembrar

dos rostos. São fáceis de confundir, pois são muito semelhantes ao

longe. Além disso, havia só uma luz acesa na cozinha.

— Consegues calcular a idade da pessoa que viste?

Não. Não sou bom com idades. Ele estava ajoelhado sobre Bee.

Também não sei a altura dele.

— Poderia ser um rapaz, em vez de um homem?

Não sei.

— Tiveste a sensação de que te conhecia?

Ele viu-me, se é isso que quer dizer. De certeza que me viu. Não

disse o meu nome. Sussurrou-me duas palavras inclinado sobre o

cadáver de Bee Larkham: Sim, filho.

Ele sabia que o meu pai me dizia isso ou então teve um palpite

certeiro.
— Há alguma coisa, seja lá o que for, que te consigas lembrar e que

nos possa ajudar a descobrir quem fez isto a Bee Larkham?

— Bee já tinha querido morrer antes — replico. — Depois, eu parti

o fio que a protegia, sem querer, e ela não teve escolha. A culpa é minha.

Peço desculpa. Peço desculpa por tudo.

— Não faz mal, Jasper — diz Laranja de Cromo Oxidado. — Não te

preocupes. A culpa não é tua.

Eu estou preocupado.

Vi um assassino, mas não consigo lembrar-me do seu rosto.

Ele também me viu.

Provavelmente, lembra-se do meu rosto.


64

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Tarde

Maggie concordou em parar numa loja de animais a caminho de

casa. O homem com voz cor de ameixa bolorenta disse que as sementes

tinham acabado e só haveria mais daí a uma semana. O iPhone dela

mostrou uma lista de outras lojas de animais no raio de quinze

quilómetros, mas ela não tinha tempo para me levar a mais lado

nenhum. Tinha de visitar outro rapaz.

O meu pai sai de casa quando paramos o carro; estava à janela, à

minha espera. Vai até ao lado do condutor, onde Maggie está sentada.

Conversam baixinho, enquanto eu espero no passeio, a olhar para o

carvalho.

Ela deve tê-lo informado sobre o problema das sementes antes de

arrancar.

— Vamos comprar sementes hoje, prometo — diz o meu pai.

— Podíamos tentar junto de Ollie Watkins. Ele deve ter sementes.

Os periquitos não deviam ter de esperar mais.

— Duvido que Ollie tenha alguma coisa desse género em casa —

replica. — Os pássaros não fazem o género dele. Detesta tanto o barulho


que eles fazem como o David.

Está enganado, porque já não é a primeira vez que Ollie Watkins dá

de comer aos periquitos. Não compreendo porque é que deixou de fazê-

lo. Ele gosta de pássaros, como eu. Atravesso a estrada, olhando para os

dois lados para ver se vêm carros.

— Espera, Jasper. Volta.

Percorro o caminho da entrada da casa dele, o número 18 de Vincent

Gardens, e bato à porta, castanho mais claro a irradiar do escuro.

— Não acho que seja boa ideia — diz o meu pai. — Vamos para

casa. Prometo que voltamos a sair para comprar as sementes.

A porta abre-se.

— Não deu de comer aos periquitos — digo ao homem de calças de

ganga azul e camisola cinzenta. — Prometeu! Promessa é promessa. Foi

isso que disse. Que cumpre sempre as suas promessas.

— Como? — Uma tonalidade baça, vermelho-escura e granulosa.

— David! As minhas desculpas. — O meu pai dá um passo em

frente. — O Ollie está? O Jasper meteu na cabeça que ele é capaz de ter

sementes.

Recuo, hesitante.

— Não pertence aqui, David Gilbert! Está fora da ordem. E também

não está a usar a roupa certa.

Calças de ganga azul, em vez de bombazina vermelho-cereja.

— Também não estava à espera de ver nenhum dos dois — diz o

homem. — Pensava que estavam os dois na esquadra.

— Nenhum de nós foi acusado de nada, David — diz o meu pai com

uma aresta áspera e sombria na sua voz. — Porque nenhum de nós fez

nada de mal.

— O meu pai foi libertado sob fiança — esclareço, ao mesmo tempo

que outro homem aparece à porta. Este está de calças de ganga


vermelha. — Nós não matámos Bee Larkham nem escondemos o seu

corpo. Não fui eu que levei a Bailarina de Porcelana. Foi outra pessoa.

Foi o Homem de Boné de Basebol Azul-Escuro.

Os dois homens estão dentro de casa, lado a lado. Têm a mesma

altura e ambos têm cabeças em forma de cúpula. Obrigo-me a comparar

o cabelo dos dois: ambos são escuros. Um tem madeixas grisalhas.

Calças de ganga azul/pulôver cinzento.

Calças de ganga vermelha/camisola preta.

Não sei dizer a cor das suas meias. A roupa está toda errada, deviam

trocar. Em vez disso, concentro-me nas suas vozes.

— De que está ele a falar, desta vez? — pergunta Vermelho Baço

Granuloso. — Normalmente, é dos periquitos. — Este tem de ser David

Gilbert, é a cor da sua voz.

Opto por interpelar o segundo homem, o que usa calças de ganga

vermelha.

— Eles precisam de ser alimentados — digo-lhe, porque deve ser

Ollie Watkins, a menos que tenha voltado para a sua noiva, na Suíça, e

alguém se tenha mudado para o número 18 de Vincent Gardens.

— Entrem. — O homem tosse amarelo creme de leite arranhado

com laivos de cores estranhas. — Não fiquem aí fora, a fazer cerimónia.

— Bem, se não te importas, Ollie — diz o meu pai. — Não nos

demoramos. Tenho de dar o almoço ao Jasper.

A porta abre-se mais e o meu pai entra.

— Vens, Jasper? São só uns minutos. O almoço só precisa de ir ao

micro-ondas.

Entro e a porta fecha-se atrás de mim. Não consigo avançar mais.

Lembro-me da festa de Bee. Lembro-me dos meus quadros. Não quero

estar aqui. Quero dar de comer aos periquitos.


— Sentes-te bem, Jasper? — O homem que está ao meu lado veste o

uniforme habitual: camisa azul, calças de ganga azul. O meu pai.

— São só uns minutos — repito. — Mais tempo não. É hora de

almoço. Macarrão com queijo.

Seguimos os dois homens até à cozinha. Tenho a sensação de que há

algo de errado; tudo parece estar às avessas.

David Gilbert está aqui, mas Batatas Fritas Amarelas não. Ollie

Watkins mora aqui, mas não foi ele que abriu a porta e veste calças de

ganga vermelha e tem tosse seca com tons a condizer, em vez do

Amarelo Creme de Leite puro.

A divisão para onde somos levados é igualmente desconcertante.

Tem a mesma forma da cozinha de Bee Larkham, mas a mobília acabou

no lugar errado. Um louceiro com bibelôs de animais e pratos

decorativos está encostado à parede contígua à casa de Bee.

— Desculpem a confusão — diz o homem de calças de ganga

vermelha, apontando para uma pilha de caixas no canto. — Suponho

que, com mais umas quantas viagens à loja de beneficência, a casa fica

pronta para pôr à venda. Em breve, vou poder reservar o voo de regresso

à Suíça.

Ollie Watkins.

— É decididamente o fim de uma era — diz Vermelho Baço

Granuloso. — Vou ter pena de te ver ir embora, Ollie. É tão triste… a

tua mãe e Pauline, as duas morreram com um intervalo de nove meses.

Creio que é frequente isso acontecer quando um amigo íntimo morre.

Deixa a outra pessoa muito afetada.

— E a Bee — digo. — Não se esqueçam que Bee Larkham também

morreu. Foi assassinada na cozinha, por trás deste louceiro, do outro

lado da parede. Estrangulada até à morte, e não esfaqueada, como eu

inicialmente pensava.
O meu pai e os dois homens olham para mim. Vou até ao louceiro e

viro-lhes as costas. Um dos pratos tem um rebordo cor de jade, que

disputa as atenções com um prato maior com orla turquesa.

— Há alguma novidade da polícia nessa frente? — pergunta

Vermelho Baço Granuloso. — Também me interrogaram, mas não

contam nada do que se está a passar nos bastidores.

— O pai daquele rapaz ainda é suspeito — diz calmamente a voz

ocre-baça do meu pai. — Ele tem um historial de violência. Se querem

saber o que penso, creio que é um candidato provável, mas a polícia

também não me conta grande coisa.

— Esperemos que a polícia o acuse em breve. — Amarelo creme de

leite com arranhões profundos.

— Uma situação terrível. — Novamente Vermelho Baço Granuloso.

— E pensar que aconteceu na nossa ruazinha, tão sossegada. Não me

sinto seguro na minha própria casa. Não depois de ele nos ter atacado, a

mim e a Jasper, daquela maneira no jardim de Bee.

— Não se preocupes com ele, David. — O ocre-baço do meu pai. —

Prenderam-no por agressão contra si e Jasper, pelo menos. Vai ter um

dia ocupado no tribunal. Não há nenhuma hipótese de ser libertado nos

tempos mais próximos.

— Talvez tenha sido outra pessoa. Pode ter sido um ataque ao acaso

perpetrado por um perfeito desconhecido. — Amarelo creme de leite até

o homem tossir estilhaços escuros cor de ruibarbo.

— Isso ainda é pior! Como é que vou conseguir dormir a pensar que

um maluco qualquer pode entrar em minha casa?

— Não se preocupe, David. A polícia pensa que, provavelmente, foi

alguém conhecido, porque não há sinais de terem forçado a entrada. Ela

deixou essa pessoa entrar em sua casa na sexta-feira, uma visita tardia.
— Não — digo a Ocre Baço, sem me virar. — Ela não o deixou

entrar. O Homem do Boné de Basebol Azul-Escuro usou a chave extra

que estava debaixo da estátua do flamingo, no quintal. A porta das

traseiras estava aberta. A senhora Larkham escondia a chave debaixo da

estátua. Quando ela morreu, o advogado levou-a e Bee voltou a pô-la lá

porque não havia nada que valesse a pena roubar naquela casa. Agora,

desapareceu.

— Não é assim, Jasper — diz Ocre Baço. — A polícia tem a chave.

Estava debaixo da estátua, como disseste. Encontraram-na quando

revistaram o quintal. Mostraram-ma num saco de provas, no sábado, e

perguntaram se alguma vez a tinha visto.

— Não estava lá na quinta-feira à tarde, antes de David Gilbert ter

aparecido e ter dito ao pai de Lucas Drury que eu estava escondido entre

os contentores da reciclagem. — Examino um prato com padrões de

azul.

— Não, Jasper. A chave esteve sempre lá. Não a deves ter visto

quando olhaste.

Quem está enganado é o meu pai, e não eu.

— Foi por isso que entrou no quintal, David Gilbert? — pergunto.

— Esqueceu-se de que tinha levado a chave e percebeu que tinha

cometido um erro? Tinha de voltar a pô-la no sítio, mas foi

interrompido.

— O quê? Não. Ouvi vozes alteradas, enquanto estava a passear o

Monty. Foi quando te encontrei. Eu impedi que aquele homem te fizesse

mal. Não te lembras?

— Alguém sabia que a chave estava ali — faço notar. — Foi o que o

meu pai disse. Alguém percebeu que não a devia ter tirado de lá e pô-la

outra vez no lugar depois do homicídio de Bee, porque percebeu que

tinha cometido um erro.


— Isso é impossível — diz o meu pai. — A equipa forense chegou

na quinta-feira à tarde, depois de o pai de Lucas Drury ter invadido a

casa de Bee. A polícia disse que o portão das traseiras estava selado,

para preservar eventuais provas. Ninguém podia ter entrado por ali. A

polícia teria dado por isso.

Fico a pensar naquilo durante alguns segundos. Tinha visto os

agentes no carro-patrulha, em frente da casa. Tenho a certeza de que o

portão das traseiras é outra peça em falta no puzzle.

— De qualquer forma, como é que alguém havia de saber onde

procurar a chave? — pergunta o meu pai. — Com certeza que não era do

domínio público que Bee a escondia debaixo da estátua.

— Lucas Drury sabia onde estava a chave e gostava de fazer visitas-

surpresa — murmuro. — Ele tem mau génio, como o pai, e não queria

que Bee estragasse as coisas com a namorada nova lá da escola. Ele

levou o boné do pai. Ele não põe as coisas no lugar onde deve.

As cores atropelam-me, obscurecendo o meu azul-frio.

— Agora que penso nisso, era aí que a mãe dela guardava a chave —

diz David Gilbert. — Eu e Lily usávamo-la para regar as plantas de

Pauline sempre que ela estava internada no hospital. Eu disse ao

advogado onde a podia encontrar quando ele fechou a casa, depois da

morte dela, mas o rapaz tem razão, Beatrice deve ter voltado a pô-la aí.

Jasper contou à polícia que a chave tinha desaparecido quando a

procurou? Pode ser importante!

— Não tenho a certeza. — Ocre-baço. — Não estive presente em

nenhum dos interrogatórios formais. Eles estão a sacar-lhe a informação

lentamente, à medida que ele se vai lembrando, pedaço a pedaço.

Pensam que ele recalcou as memórias dessa noite e as baralhou na sua

cabeça devido ao choque do que testemunhou. Todos os dias se lembra


de pormenores novos, mas vai levar tempo até ter a história toda na

sequência correta.

Desloco-me ao longo do louceiro e pego numa coelhinha de

porcelana castanha com um vestido cor-de-rosa, unida pelo quadril a

uma amiga de vestido azul. Tem um nome na base, que eu já li antes.

Verifico o coelho castanho que se segue, e o próximo. Têm o mesmo

nome. Os dezoito coelhos vestem todos roupa de tons pastel. Uns tocam

instrumentos ou leem livros.

— Royal Doulton — digo. — Como as bailarinas de porcelana.

Quando me viro, Vermelho Baço Granuloso diz:

— Adoro a Royal Doulton. É a melhor porcelana do mundo. Lily

tinha muito bom gosto. Colecionava peças dessa porcelana. E Pauline

também.

— Estes coelhos são todos castanhos — replico —, mas Bee

detestava o coelho branco. Matou-o no final da história porque ele a

obrigou a descer pela toca e a fazer aquelas coisas. Ela odiava-o. Fazia-a

sentir-se mal.

Desloco-me ao longo da prateleira e levanto uma chávena com

motivos brancos do seu pires. A porcelana tem uma rachadela quase

impercetível, que corta um animal ao meio.

— Essa é uma lebre, não é um coelho — diz Vermelho Baço

Granuloso. — Dá para ver pelo comprimento das orelhas. São muito

mais compridas. E eu que o diga. Já matei bastantes lebres e coelhos no

passado. Parece-me uma Lebre de Março.

A minha mão treme. O assassino de pássaros — e assassino de

coelhos — David Gilbert está mesmo atrás de mim, a olhar para o objeto

delicado que tenho nas mãos. Ele quer matar esta lebre, tal como quer

matar todos os seres vivos. Só que esta lebre não está viva. Já foi partida.

O bule e três dos pires também, mas foram novamente colados.


— O famoso serviço de chá do Chapeleiro Louco — continua David

Gilbert. — Lembras-te, Ollie? A Beatrice partiu-o durante um dos seus

ataques de fúria. Era uma criança tão malcomportada! A tua mãe chorou

durante dias. Pauline ficou para lá de envergonhada e eu também fiquei

desolado. A Lily costumava emprestar-mo sempre que Clara, a minha

sobrinha, me vinha visitar. Por vezes, Clara e Beatrice faziam chás com

o serviço do Chapeleiro Louco na minha cozinha quando Pauline

precisava de sair, mas tudo isso acabou quando Bee o estragou.

— Só me lembro de algumas coisas. Riscas de um amarelo creme de

leite. — Foi há muito tempo. A Bee partiu o serviço de chá, enquanto eu

estava em Cambridge.

— A sério? Tenho ideia de Lily dizer que a tinhas ajudado a colá-lo.

— E ajudei. A minha mãe ligou para a universidade e contou-me o

que a Bee tinha feito. Vim passar o fim de semana a casa, para a

consolar.

— Claro, sempre foste um bom filho para a Lily, o perfeito oposto de

Beatrice com Pauline. Pouco depois desta vaga de destruição, também

partiu algumas figuras da coleção de porcelana da mãe: as estatuetas de

anjos.

— Não me lembro. Provavelmente, já tinha regressado a Cambridge

nessa altura.

— O comportamento dela não melhorou com a idade. Sabiam que,

depois da morte de Pauline, partiu as suas preciosas figuras de

porcelana? Tentei chamá-la à razão, mas ela não me deu ouvidos, como

sempre. Foi por puro despeito, sobretudo porque Pauline tinha

prometido deixá-las à tua mãe. Também não me importava de ter

algumas no meu louceiro. Eu disse-lho, não que isso tenha adiantado de

muito.
— A Bee sempre fez o que lhe apetecia, quer isso magoasse alguém,

ou não. — A voz de um amarelo creme de leite de Ollie Watkins tosse

de forma violenta, fazendo manchas castanho-avermelhadas. —

Desculpem. Pensava que já me tinha livrado desta infeção respiratória.

— Ficaste abatido com tudo o que passaste. — Vermelho-baço

granuloso. Tens de cuidar de ti, Ollie. Vai ao médico e pede um

antibiótico. Isso deve resolver o problema, juntamente com deixares de

fumar, é claro.

— Beatrice Larkham tinha nove anos e três meses e queria morrer

— digo em voz alta. — Achava que a mãe era uma bruxa velha. Odiava

o Chapeleiro Louco porque ele lhe fazia mal. Segurava uma chávena de

chá e fazia-a chorar.

— A coleção da minha mãe é delicada. Por favor, não lhe toques. —

Umas mãos retiram-me a chávena — Podia partir-se outra vez e não

íamos querer que isso acontecesse, pois não, Jasper?

Olho ao longo da prateleira e depois novamente para o Homem das

Calças de Ganga Vermelha e para o Homem das Calças de Ganga Azul.

Estão lado a lado.

Eles contra mim.

Trocaram de roupa. As suas vozes fundem-se, falando em uníssono,

ao mesmo tempo que as suas cores mudam.

Há uma nova linha de batalha e já não é ao longo da rua. É dentro

desta cozinha. Dou um passo em direção ao meu pai porque ele não

percebe que podemos estar em perigo: uma palavra laranja chamuscada

com tonalidades de um vermelho-berrante.

— Tudo está a mudar hoje, como aconteceu na cozinha de Bee no

dia oito de abril. A Bailarina de Porcelana não estava lá e depois

apareceu e tudo ficou diferente.


— Desculpa, estou confuso — diz Vermelho Baço Granuloso. —

Não faço a mais pequena ideia do que estás a dizer.

— Anda, Jasper. É melhor irmos embora. — Esta é a cor do meu

pai.

— Os periquitos não foram alimentados — recordo-lhe. — É por

isso que estamos aqui. Viemos para vir buscar sementes e não para um

chá do Chapeleiro Louco com pessoas que nunca foram amigas de Bee

Larkham.

— Receio já não ter sementes. Tenho andado ocupado a tratar da

casa, antes de regressar à Suíça. Lamento, Jasper.

— Tu tens dado de comer aos periquitos, Ollie? És tão mau como a

Beatrice. Onde é que estavas com a cabeça? Estou capaz de te torcer o

pescoço.

— É um assassino, David Gilbert — digo calmamente. — Os

coelhos e os periquitos também sabem disso. É culpado. Sempre soube

disso, mas ninguém me deu ouvidos.

— O que é que esse rapaz disse? — Vermelho-baço. Vermelho-baço

granuloso, decididamente.

— Vamos embora agora, Jasper — diz o meu pai. — Há mais

algumas lojas de animais onde podemos tentar. Vamos lá depois de

almoço, prometo. Alguma deve ter sementes em stock, a menos que toda

a população da parte ocidental de Londres tenha decidido alimentar os

periquitos selvagens.

— Deus nos livre! — murmura um dos homens, produzindo cacos

vermelho-escuros.

— Acho que ele é o Chapeleiro Louco que fez Bee Larkham chorar

— digo quando saímos para a rua.

— Quem? — pergunta o meu pai. — David ou Ollie?

— Não sei a cem por cento.


Não consigo decidir-me porque ambos me confundiram de maneiras

diferentes. Preciso de olhar novamente para o coelho branco e decidir

qual deles é o verdadeiro culpado.


65

TERÇA-FEIRA (VERDE-GARRAFA)

Mais tarde

O meu pai não cumpriu a sua promessa. Mais uma vez. Não

podemos ir comprar sementes juntos por causa de uma emergência no

trabalho. Tinha qualquer coisa que ver com uma falha num disco rígido

e ter de restaurá-lo a partir de backups e voltar a testar tudo outra vez.

Não faço ideia do que ele está a falar, mas ele disse que era um

autêntico pesadelo. Se não fosse imediatamente para o escritório

resolver o assunto, o chefe ia dar em doido e ele podia perder o emprego.

O meu pai riu-se quando perguntei se o chefe preferia caju ou castanha-

1
do-maranhão, por isso não podia estar assim tão precupado.

De qualquer forma, ele fez mais uma promessa: comprava sementes

pelo caminho, quando voltasse para casa.

Não devo abrir a porta a ninguém enquanto ele estiver fora. Nem

mesmo se conhecer o nome da pessoa. A menos que seja um agente da

polícia, como Laranja de Cromo Oxidado. O meu pai levou a chave, por

isso não precisa que lhe abra a porta.

Também não devo ligar para o 112. A menos que a casa esteja a

arder, o que é pouco provável, depois da substituição da instalação


elétrica no ano passado e por não haver eletrodomésticos ligados, como

o ferro ou a fritadeira.

O meu pai escreveu alguns factos importantes para me ajudar a

lembrar deles:

1. Não te preocupes com a possibilidade de a casa arder. Não

devia ter dito isso. Está tudo bem com a casa.

2. Não abras a porta a ninguém, a não ser que seja um polícia

ou uma assistente social.

3. Não vai haver nenhuma emergência. Não precisas de ligar

para o 112.

4. Não me voltes a meter em sarilhos ligando para o 112!! Eu

não te deixava sozinho, se não fosse absolutamente

necessário.

Usando um planeador de itinerários no portátil do meu pai,

estimámos que ele estaria fora durante setenta e quatro minutos. Podia

voltar mais cedo, dependendo de aparecer mais alguém para ajudar.

Não precisas de te preocupar com nada. Nada mesmo.

O meu pai disse que podia pedir a um dos vizinhos para ir para lá,

mas eu recusei. Não gosto de babysitters ou chás. Fico mais seguro

sozinho.

Agora que ele se foi embora, estou preocupado.

Preocupado com o coelho branco e com o serviço de chá do

Chapeleiro Louco que Bee Larkham partiu aos nove anos.

Preocupado com Lucas Drury e a sua visita-surpresa que eu tinha de

manter em segredo. Ele usou o boné de basebol do pai e esqueceu-se de

pôr a chave de Bee no lugar, por baixo da estátua do flamingo, na noite

da visita-surpresa. Agarrou-me pelo pescoço no laboratório de ciências e


apertou-o com força, deixando-me com dificuldade em respirar. Passada

uma semana — depois de Bee ter sido assassinada —, parecia que

enfrentara um tornado: tinha um lábio ferido e um arranhão na mão.

Culpara o pai por isso.

E se Bee tivesse resistido quando foi atacada?

Reordeno os meus quadros e tintas em cima da secretária, no meu

quarto. Começo de novo, aplicando tinta branca no papel, mas está seca

e com textura macilenta. As minhas pinceladas arranham no papel e têm

falta de precisão.

Não consigo pintar como deve ser, quando estou a pensar no coelho

branco. Tiro o diário de Bee debaixo do cobertor, no esconderijo.

Folheio-o para lá da entrada sobre o chá do Chapeleiro Louco.

Ela fez um desenho numa das páginas: Alice com o Chapeleiro

Louco, a Lebre de Março e o Arganaz. Por baixo, tinha acrescentado um

grande bule, uma chávena e um pires. Não deve ter saído como ela

queria, como me acontecera com a tinta branca. A página está toda

riscada com caneta preta.

A senhora Watkins concorda com a mamã em que sou uma

rapariga detestável que está a contar mentiras sobre uma pessoa

boa. Ambas vão rezar pela minha alma. Não estou a mentir.

Odeio o Chapeleiro Louco. Ele não para. Quero que ele me

deixe em paz.

Fecho o diário. Tenho medo de David Gilbert, que mora no número

22 de Vincent Gardens. Entra em casas que não são suas, como a da

senhora Watkins, e sabe onde as pessoas escondem as suas chaves. Usa

chapéus: um preto e uma boina de pala castanha. Pode ter um boné de

basebol em casa. Toda a gente tem um, não é?


Era amigo da mãe de Bee, Pauline Larkham, e da mãe de Ollie, Lily

Watkins. Tem ligação com toda a gente, com tudo.

Pensava que ele detestava Bee Larkham por ser barulhenta e gostar

de periquitos, mas ele detestava-a muito antes disso. Beatrice Larkham

era uma criança malcomportada. Partiu o serviço de chá do Chapeleiro

Louco Royal Doulton da senhora Watkins e destruiu as senhoras de

porcelana Royal Doulton da senhora Larkham, uma por uma. Ambas as

mulheres eram amigas dele.

David Gilbert adora Royal Doulton. Confessou ter pedido o serviço

de chá do Chapeleiro Louco emprestado para a sobrinha e podia ter sido

o babysitter de Bee Larkham quando ela tinha nove anos. Também

gostava das senhoras de porcelana.

Estaria à procura de bibelôs no contentor à porta da casa de Bee

Larkham, na noite em que eu pensava ter visto o Diabo?

Talvez ele quisesse a última figura — a Bailarina de Porcelana —

antes que Bee tivesse oportunidade de a partir. Teria tentado levá-la

durante a festa? Lembro-me do homem com a voz avermelhada e áspera

a dizer que estava à procura da casa de banho.

Isso era mentira, porque ele tinha ido direitinho aos bibelôs.

Era por isso que a Bailarina de Porcelana estava na cozinha na noite

em que Bee morreu. Ele tinha-a roubado do quarto e planeado fugir pela

porta das traseiras.

Será que Bee estava lá em baixo, em vez de estar na cama? Talvez

tivesse adormecido no sofá da sala. E foi nessa altura que o surpreendeu,

depois de ter roubado o bibelô e quando se preparava para ir embora.

Ouviu um barulho e acordou.

Tenho de contar à polícia a minha nova teoria.

Poderei considerar isto uma emergência? Deverei ligar para o 112?

Penso no assunto durante dois minutos e trinta segundos. Não creio que
o meu pai descrevesse necessariamente a situação como uma

emergência, porque amanhã vou estar novamente com Laranja de

Cromo Oxidado. Posso contar-lhe este facto importante número 1 na

esquadra. Se telefonar agora, isso vai deixar novamente o meu pai

metido em sarilhos.

Olho para o relógio. O meu pai foi-se embora há catorze minutos.

Pode voltar dentro de uma hora. Ou até antes. Posso contar-lhe quando

ele voltar. Levo o pincel comigo para ir lá abaixo buscar um copo de

água, pois ele pode não gostar de ficar sozinho no meu quarto. A casa

emite rangidos suaves cor-de-rosa, como se um rato minúsculo andasse a

correr de um lado para o outro.

Também tenho de falar a Laranja de Cromo Oxidado sobre a chave

na fechadura da porta das traseiras de Bee Larkham. Lucas Drury sabia

onde ela a guardava, e David Gilbert também. Talvez o perigoso

assassino de pássaros estivesse a tentar pô-la no lugar e o senhor Drury,

com o boné de basebol que Lucas lhe pedira emprestado, lhe tivesse

estragado os planos.

David Gilbert deve ter voltado mais tarde, depois de a polícia se ter

ido embora. Ter-se-ia esgueirado pela viela atrás de sua casa? Não faço

ideia de como é que a polícia selou o portão das traseiras de Bee, mas

possivelmente com fita adesiva que podia ser facilmente retirada…

De qualquer forma, a chave é o facto importante número 2.

Também tenho de dizer outra coisa a Laranja de Cromo Oxidado.

Tenho a certeza de que saí daquela casa uma segunda vez. Não estava a

sonhar. Vi a pessoa com o boné de basebol azul-escuro. Não era o meu

pai. Toda a gente acredita nisso agora, incluindo eu. Podia ser David

Gilbert disfarçado.

Ele sabe que não o reconheço. O meu pai disse-lhe na festa de Bee

que tenho problemas com rostos. Ele ouviu o meu pai tratar-me por
«filho». Pode ter copiado a sua vestimenta habitual de calças de ganga

azul e camisa azul. Anoto mentalmente o facto importante número 3

para dizer a Laranja de Cromo Oxidado.

Ponho a água a correr no lava-louça durante vinte segundos porque

gosto das linhas cinzento-azuladas que produz, uma cor diferente da do

chuveiro. O relógio da cozinha marca 14h02. O meu pai pode estar de

volta dentro de cinquenta e sete minutos. Passo pela porta da sala, que

está aberta.

Estava fechada, naquela noite. Ouvi linhas cor de chocolate escuro

aveludado.

O meu pai a ressonar.

Seguidas da cor do chuveiro.

Esses são os factos importantes número 4 e 5.

As minhas cores confirmam a história do meu pai. Ele está a dizer a

verdade. Disse que pensou ter ouvido um barulho por volta das 3h15.

Tomou um duche quente porque lhe doía o pescoço por causa de ter

adormecido na poltrona que faz rangidos castanho-avermelhados.

Quem me dera que ele voltasse. Ia dizer-lhe que acreditava nele. Não

penso que ele tenha estado na cozinha de Bee Larkham. Mas não há

dúvida que vi alguém e que estive lá. Lembro-me do cheiro a

desinfetante e de outro odor desagradável. Fez-me lembrar a festa de Bee

Larkham e de ter confundido David Gilbert e Ollie Watkins.

Esse é o facto importante número 6.

Levo o copo comigo para cima. O degrau cor de maçã tocada range.

Antes que o meu pé toque no degrau seguinte, ouço uma chave na porta

de casa.

Verde-escuro sombrio com uma consistência quebradiça.

Camisa azul e calças de ganga azul entra em casa. Não traz nenhum

saco na mão.
— Voltou antes do tempo, pai. Não comprou as sementes. Vai ter de

sair outra vez.

O meu pai tem os olhos pregados no chão. Terá ficado perturbado

com o ralhete? Zangado? Aborrecido? Não sei dizer.

— Desculpe e muito obrigado por tentar, mas tem de tentar outra

vez. Quando voltar, digo-lhe quem eu penso que assassinou Bee

Larkham e porquê. Está tudo no diário dela.

Ele olha para o bengaleiro em vez de olhar para mim. Ele examina o

meu cachecol da escola, enrola a ponta à volta da mão.

O meu telemóvel vibra bolhas vermelhas e amarelas no meu bolso, o

que é estranho, porque a única pessoa que me liga ou envia mensagens é

o meu pai.

Abro a mensagem enquanto continuo a subir a escada para o meu

quarto.

Trabalho cancelado! Comprei sementes. Não demoro. Beijos Pai x

Deixo cair o copo de água.

Socorro.

Digito a palavra, mas o telemóvel voa-me da mão antes de poder

premir «enviar». O homem de calças de ganga azul e camisa azul galga

a escada e agarra-me pelo tornozelo. Eu esperneio e consigo libertar-me,

mas a sua mão fecha-se sobre o meu outro pé.

— Largue-me, David Gilbert! — grito.

— Onde está o diário de Bee? — Sibila linhas irregulares cinzento-

esbranquiçadas.
Dou-lhe um pontapé na cara. Com força. Ele pragueja baixinho,

glóbulos esbranquiçados. Recuo apressadamente, mas ele é mais rápido.

Está em cima de mim, a esmagar-me o peito.

— Onde está? — Linhas brancas, duras e vibrantes. Está outra vez a

sussurrar.

— Não. Consigo. Ouvi-lo.

— Onde diabo está o diário? — Tosse violentamente, vermelho

coalhado e amarelo.

— No meu esconderijo. No meu quarto.

O cachecol está à volta do meu pescoço. A apertar cada vez mais.

Não consigo respirar.

Ele arrasta-me pelo cachecol até ao corrimão.

O seu hálito cheira à festa de Bee Larkham. À sua cozinha. À

cozinha da casa da senhora Watkins.

Fumo de cigarro.

A sua voz é mais amarelo creme de leite do que vermelha.

Dois homens não podem fundir-se num só.

Homem errado.

Ele trocou de roupa para parecer o meu pai.

A cor da sua voz também mudou.

Não consigo respirar.

Estou a sufocar.

Pai.

Quero ocre-baço.

Mãe.

Quero ainda mais azul-cobalto.

— Ollie Watkins — ofego. — Sei quem é.

O seu aperto afrouxa.

— Estás enganado.
Respiro a custo quando as suas mãos deslizam pelo meu pescoço.

— Não estou enganado — replico, tossindo azul-safira escuro. —

Não me engano em relação à cor das vozes. Mesmo quando elas me

passam rasteiras, acabo por conseguir vê-las.

— Jasper, Jasper. — A sua cabeça move-se de um lado para o outro.

— O que estás para aí a dizer desta vez?

Inspiro uma grande golfada de ar.

— A infeção respiratória mudou a cor da sua voz. Passou de amarelo

creme de leite a vermelho-áspero, o que me baralhou, mas o Chapeleiro

Louco é o Ollie. Esteve na festa. Tinha uma voz avermelhada porque

estava doente. Entrou no quarto de Bee para ir buscar a Bailarina de

Porcelana e disse-me adeus à entrada. — Respiro ruidosamente e

recomeço a falar. — Voltou no Dia de São Valentim. Disse «desculpa» a

Bee, à porta de casa dela, e tentou dar-lhe flores. Era o Ollie o tempo

todo. Falou em sussurros branco-acinzentados sobre o corpo de Bee na

cozinha.

Ollie Watkins expele manchas vermelhas raiadas de amarelo.

— É uma tragédia quando uma criança se suicida, não achas? Não

conseguiste lidar com o trauma do assassinato de Bee e com a nuvem de

suspeita que paira sobre o teu pai. Ainda pode ser acusado, certo?

Porque é que saiu a correr de casa e partiu de carro a toda a velocidade?

Foi muito irresponsável em deixar alguém tão vulnerável como tu

sozinho em casa. Ninguém irá desconfiar da tua morte por

enforcamento. Não com os problemas que tens. É triste, mas

compreensível.

A minha mão tenta segurar o cachecol quando ele o puxa com mais

força. Tenta passá-lo à volta do corrimão. A minha outra mão agarra no

pincel. Levanto-o e espeto-o no olho de Ollie Watkins. Ele grita


manchas amarelas e vermelho-escuras, o cachecol afrouxa e ele cai para

trás pela escada.

Eu corro. Subo até ao patamar e entro no quarto. Ele vem aí. Passos

de um amarelo-carregado, quase castanho, ecoam escada acima. Atrás

de mim.

Bato com a porta, agarro na cadeira e enfio-a debaixo do puxador.

Fica presa debaixo da secretária.

Bam! Bam! Bam!

Ele já está ali, mas a cadeira está firmemente presa.

A barricada está montada.

Será que aguenta? Será que aguenta?

Bam! Bam!

A cadeira abana, a porta abana. Ele lança-se contra ela vezes sem

conta. Há estrelas vermelhas a explodir dos grandes retângulos

cinzentos.

Corro para a janela e bato nos vidros, estilhaços de lilás quebradiço.

— Socorro! — Movo os lábios repetidamente formando a palavra.

Dói-me a garganta. Não consigo falar. — Socorro!

Abro a janela, os periquitos esvoaçam à volta do carvalho de Bee

Larkham.

Socorro!

As pancadas na porta param.

Ouço passos a descer a escada. Linhas indistintas de amarelo.

Agora vejo pontas brancas e afiadas e tubos azul-esverdeados

brilhantes e glaciais.

Ele está a partir coisas na cozinha. A atirar coisas de vidro.

Agito os braços para um carro. Ele passa sem parar, um torpedo de

um ameixa-carregado envolto numa névoa azulada, seguido de uma

mota, linhas cinzentas e pretas que se movem entre si. Um homem de


boina de pala castanha e calças de ganga sai do número 22 de Vincent

Gardens com um cão que ladra batatas fritas amarelas. Aceno com a

mão ao homem que deve ser David Gilbert, mas ele deixa cair as chaves

e baixa-se.

Bam, bam, bam! Na porta do meu quarto. Dardos vermelhos mais

intensos. Retângulos castanhos de maior dimensão.

— Desculpa, Jasper. Perdi as estribeiras. Não te devia ter tocado.

Dá-me o diário de Bee e eu deixo-te em paz. Não te faço mal, prometo!

Ollie Watkins está de volta. Ele não cumpre as suas promessas. Não

deu de comer aos periquitos, pois odeia-os tanto como David Gilbert.

Ele estrangulou Bee Larkham.

Vai matar-me e fazer com que o meu pai pense que eu queria morrer.

Vai levar o diário de Bee Larkham.

É por isso que ele está aqui. Quer destruir as provas.

Ele sabe que li o diário. Ele é o Chapeleiro Louco que fez mal a Bee.

Roubou a Bailarina de Porcelana porque a queria para a falecida mãe.

Penduro-me mais da janela. A rua está deserta: não passa um único

veículo ou pessoa, tirando David Gilbert, que está a afagar o Batatas

Fritas Amarelas. Até os periquitos pararam de cantar.

Há uma cor nova. Verde lago, em espirais escuras.

Volto-me. O parafuso do puxador da porta está a mexer-se.

Ollie Watkins encontrou uma chave de parafusos na gaveta da

cozinha. Está a desmontar o puxador.

O homem e o cão descem pelo caminho da entrada do número 22 de

Vincent Gardens.

Ajude-me! Ajude-me! Ajude-me! Não consigo gritar — a garganta

dói demasiado.

O puxador chocalha tons violentos de laranja. Cai para baixo da

cadeira. A porta volta a abanar.


Atiro um livro pela janela e o meu frasco de tinta favorito. Parte-se lá

em baixo, no chão. Tubos glaciais esverdeados. O homem que usa boina

de pala castanha para e olha na minha direção.

Atiro os binóculos. Atiro os cadernos de apontamentos. Atiro pela

janela tudo o que encontro, transformando as cores em novas

tonalidades perturbadoras quando as coisas batem no chão.

Ele está a andar em direção à nossa casa. Em direção a mim? A

porta do quarto produz grandes formas laranja-berrantes espinhosas. São

agora ainda mais espinhosas e vivas.

A porta abre-se e bate repetidamente na secretária, afastando-a para

o lado. Vejo um pé.

Subo para fora da janela, metade dentro, metade fora do meu quarto.

— Não, Jasper! Não! — O homem larga a trela do cão e desata a

correr. Olho para trás.

Vejo uma perna lá dentro e meio corpo logo a seguir. A barricada

está a desmoronar em estilhaços laranja pontiagudos e maníacos. Ollie

Watkins está a abrir caminho. Vai alcançar-me numa questão de

segundos.

Passo a minha outra perna pela janela, agachando-me no peitoril.

— Para! Para! — O homem de boina está a gritar escarlate-vivo.

Atravessa a correr à frente de um carro.

Este buzina-lhe manchas rosa-avermelhadas em forma de estrela,

assustando os jovens periquitos no carvalho de Bee Larkham.

Elevam-se dos ramos com uma onda de grasnidos azul-pavão, verde

e violeta.

Um vitral reluzente.

Estão todos a abandonar a rua.

Não podem ficar mais tempo. Os comedouros estão vazios. Não

precisam dos seus ninhos ou dos ramos da árvore à noite, ganharam


coragem suficiente para irem para o poleiro.

Vão deixar-me sozinho com o assassino de Bee Larkham, Ollie

Watkins, que mora no número 18 de Vincent Gardens.

E levam com eles as suas cores maravilhosas.

Voltem!

Esperem por mim!

Não suporto as horríveis formas laranja espinhosas no meu quarto.

Quero os azuis-brilhantes e suaves e as gotículas douradas e

curvilíneas no céu.

Estendo os braços.

— Esperem! — Azul-frio com picos brancos pontiagudos.

As minhas cores misturam-se na perfeição com os pássaros.

Fecho os olhos e impulsiono o corpo com os pés.

Voo.

1 Na língua inglesa, «dar em doido» corresponde à expressão idiomática go nuts, sendo que nuts

remete igualmente de forma objetiva para uma série de frutos secos, incluindo os referidos por

Jasper. (N. da T.)


EPÍLOGO

Três meses depois

— Vim assim que ouvi a notícia na rádio. É verdade? Acabou de

vez? — As perguntas de um vermelho-baço granuloso chovem sobre o

meu pai na soleira da porta. — Ou percebi mal o que o jornalista disse?

— Não, percebeu bem. Foi uma autêntica bomba para nós, e também

para a polícia e para o advogado dele. Entre! Vou fazer um chá.

— Tem a certeza de que não incomodo, Ed? — A voz dele escurece

para um tom mais bordeaux, mas continua nitidamente granulosa. —

Sei que não tem mãos a medir.

O meu pai não levava nada nas mãos quando saiu da sala. Pousou o

jornal ao meu lado, no sofá, onde estou a descansar a perna. Deve ser

por isso que insiste em que não há problema nenhum em fazer uma

bebida quente.

Não preciso de ouvir o meu pai dizer o nome do homem nem de ver

as suas calças de bombazina vermelho-cereja para saber que é David

Gilbert, do número 22, o vizinho que eu pensava que ia fazer mal aos

periquitos, a Bee Larkham e muito possivelmente a mim, precisamente

por esta ordem.

Estava enganado em relação a ele, tal como estava enganado em

relação a muitas pessoas.


David Gilbert atravessou-se à frente de um carro, numa tentativa

para me salvar de Ollie Watkins. Depois de eu ter saltado do peitoril da

janela, cuidou de mim até a ambulância chegar, porque, afinal, não

consigo voar como um periquito.

O paramédico disse que eu tinha tido azar porque batera num poste

de cimento por baixo da janela e caíra numa posição estranha,

fraturando a perna e o pulso direitos com gravidade. Ele não

compreendeu que era exatamente o contrário: tive imensa sorte. A mão

esquerda com que pintava não estava magoada. Não tinha sequer um

arranhão.

Nesse dia, David Gilbert foi mais do que nosso vizinho e socorrista

de reserva. Tornou-se igualmente uma testemunha decisiva para a

investigação policial.

Ollie Watkins não pôde fugir da nossa casa porque David Gilbert

ficou comigo no jardim, bloqueando-lhe o caminho da fuga. A porta das

traseiras estava trancada e ele não conseguiu encontrar a chave. Depois

de arrombarem a porta da entrada, os agentes da polícia descobriram

Ollie Watkins no meu esconderijo. Ele foi preso e acusado de assassinar

Bee Larkham e de ter tentado fazer o mesmo comigo.

O meu pai tinha começado a preparar-me para o julgamento, pois

dizia que ambos teríamos de contar as nossas histórias a um júri, dentro

de algum tempo. David Gilbert também teria de se preparar para prestar

depoimento em tribunal.

Estes factos importantes mudaram com um único telefonema de

Laranja de Cromo Oxidado, quando estávamos a chegar a casa da minha

consulta no hospital. Ele informou o meu pai de uma audiência frente a

um juiz, como preparação para o julgamento.

As acusações foram lidas a Ollie Watkins, que desatou a chorar no

banco dos acusados. A sua ex-noiva também chorou quando ele se


declarou culpado de ambos os crimes para surpresa de toda a gente,

incluindo do seu advogado, que se levantou de um salto e pediu algum

tempo a sós com o seu cliente.

Laranja de Cromo Oxidado contou-nos que tinha sido um autêntico

espetáculo (uma palavra de madrepérola iridescente). O juiz disse que

não gostava de surpresas e mandou toda a gente sair do seu tribunal.

Ollie Watkins e o advogado de defesa tiveram uma discussão nas celas

da cave do tribunal e regressaram quinze minutos depois.

Nessa altura, o advogado explicou ao juiz tudo o que Ollie Watkins

tinha feito naquela noite e no dia em que me atacou.

Ele queria tirar aquele peso do peito.

O juiz passou diretamente à pronúncia da sentença porque, tal como

eu, não gostava de delongas. Condenou Ollie Watkins à única pena

possível por homicídio e tentativa de homicídio: prisão perpétua.

Laranja de Cromo Oxidado disse que ele foi levado em lágrimas do

banco dos acusados.

Estávamos à espera de que Ollie Watkins quisesse arriscar um

julgamento com júri, apesar das provas contra ele serem irrefutáveis.

O meu pai admitiu que também estava chocado, mas aliviado por eu

não ter de passar pelo trauma de descrever as cores horríveis de Ollie

Watkins em tribunal.

Podemos todos seguir em frente. Tentar esquecer tudo isto.

Não fiquei surpreendido com a decisão de Ollie Watkins porque

aprendi nos últimos seis meses que as pessoas fazem muitas vezes

planos e depois alteram-nos de forma inesperada. Às vezes, sentem-se

culpadas por estar a destruir os planos originais de outras pessoas e,

outras vezes, não se importam com isso, pura e simplesmente.

Os seus pensamentos mudam da mesma forma que as cores das suas

vozes.
O meu pai está a conversar com David Gilbert na cozinha — tem

alguma coisa que ver com provas irrefutáveis. A porta está entreaberta

uns quinze centímetros, mas só consigo ouvir fragmentos de cor. Agarro

nas muletas e saio com cuidado do sofá. A minha perna está a queixar-

se, mas eu mando-a calar-se. Avanço lentamente em direção às sombras

esbatidas.

Paro à porta, apesar de ninguém gostar de espiões.

— O inspetor Chamberlain diz que os especialistas forenses tinham

provas mais do que suficientes para o fazer bater com os costados na

prisão — diz a voz ocre baço do meu pai, sobrepondo-se ao borbulhar

prateado e amarelo-brilhante da chaleira a ferver. — Ele não tinha

escapatória possível.

Não sei muito bem onde é que Ollie Watkins bateu ou por onde se

escapou, tirando a porta do meu quarto, mas sei que a polícia descobriu

a Bailarina de Porcelana numa caixa, na casa da sua falecida mãe,

juntamente com um boné de basebol azul-escuro. O meu pai contou-me

isto depois da conversa que teve com Laranja de Cromo Oxidado.

— Ao que parece, encontraram vestígios do seu ADN na roupa de

Jasper e no corpo e na mala de Bee — continua o meu pai. —

Descobriram um fio de cabelo dela no porta-bagagem do carro de Ollie.

A polícia também encontrou vestígios da lama agarrada à mala

proveniente do quintal de Bee num tapete que se encontrava no interior

do número dezoito.

O meu pai conta a David Gilbert que Ollie Watkins se lembrou de

limpar as impressões digitais da porta das traseiras de Bee, mas que a

polícia encontrou uma fibra presa na cerca do quintal que corresponde

ao material de uma das suas camisolas. Ele passara pela abertura para

devolver a chave depois de a polícia ter selado o portão que dava para a

viela. Tinha-se apercebido do seu erro e tivera de repô-la no seu lugar.


O buraco na cerca era uma pista crucial que me escapara quando não

consegui perceber como é que o assassino tinha regressado ao quintal

das traseiras de Bee Larkham.

O meu pai esqueceu-se de mencionar outra prova decisiva contra

Ollie Watkins: eu consegui identificar a sua voz, na altura do ataque.

Não havia como confundir o seu amarelo creme de leite, mesmo com os

laivos vermelhos da infeção respiratória. As suas impressões digitais

também estavam na nossa chave extra, aquela que ele me viu tirar de

debaixo do vaso, no dia em que fugi da escola.

— Estou aliviado por saber que o seu rapaz não precisa de ir a

tribunal. Nem o Ed. Já sofreram ambos o suficiente.

O meu pai balbucia em ocre-baço.

— Também passei noites sem dormir por causa de ir prestar

depoimento, mas mesmo assim gostava de poder olhá-lo nos olhos,

olhá-lo realmente nos olhos — diz a voz vermelha granulosa e baça. —

Preciso de compreender porque é que ele fez aquelas coisas horríveis à

pobre Beatrice.

Richard Chamberlain — como o ator — disse que a equipa de

investigação do homicídio já sabia disto antes de Ollie Watkins se

declarar culpado. Conseguiram reconstituir o que aconteceu a partir das

páginas do diário de Bee, dos meus cadernos de apontamentos e dos

interrogatórios que fizeram, a mim e a David Gilbert.

A senhora Larkham contratava frequentemente Ollie Watkins como

babysitter, quando ele vinha a casa da universidade, e ele brincava com

Bee ao chá do Chapeleiro Louco antes de abusar dela. A mãe de Bee e a

mãe de Ollie nunca acreditaram nela quando lhes contou o que ele fazia.

Tomaram o partido de Ollie por ele ser tão bom rapaz e Bee ser uma

criança malvada e diabólica. Ela castigou-as partindo as suas coleções

de porcelana.
Depois da morte da senhora Larkham, Bee tentou castigar

novamente a senhora Watkins pondo a música em altos berros e

recusando-se a entregar as senhoras de porcelana que a mãe lhe deixara

em testamento. Em vez disso, atormentava Ollie Watkins, colocando os

bibelôs à janela antes de os partir um a um.

O meu pai acaba de explicar estes factos importantes a David

Gilbert.

— Sinto-me pessimamente, Ed. — Dardos vermelho-baços

granulosos entremeados de cereja-escuro. — Nunca me apercebi do

sofrimento da jovem Beatrice. Quem me dera tê-la podido ajudar nessa

altura, mas nunca desconfiei de nada. — Para de falar ao mesmo tempo

que o ocre-baço do meu pai se mistura com as suas palavras. — Não,

Ed, é verdade! Devia ter sido mais amável com ela. Quando regressou,

fiz-lhe a vida num inferno, a queixar-me da música e dos periquitos.

Disse-lhe coisas horríveis na noite em que morreu. Quem me dera poder

retirar o que disse, mas não é possível…

— Não se atormente, David. A culpa não é sua. Não deve

recriminar-se por isto.

O meu pai tem razão. David Gilbert nunca fez mal a ninguém.

Ele não é culpado de nenhum crime, embora eu tenha ligado muitas

vezes para o 112 a dizer à polícia que o devia prender.

O culpado de tudo é Ollie Watkins.

Ele fez com que Bee Larkham tivesse vontade de morrer em criança

e assassinou-a em adulta, porque ela ameaçou repetidamente denunciá-

lo à polícia e entregar o seu diário. Segundo Laranja de Cromo Oxidado,

Ollie Watkins tinha muito a perder: o emprego bem remunerado num

banco e a noiva na Suíça.

A mãe de Ollie Watkins tinha-lhe dito onde é que Bee guardava a

chave extra. Foi isso que o advogado de defesa disse em tribunal.


Quando a música parou, ele pensou que Bee estava a dormir e, por volta

das três da manhã, introduziu-se lá em casa pela porta das traseiras, para

procurar o diário que descrevia os atos vis e as tentativas de Bee para

que a senhora Larkham e a senhora Watkins a ajudassem. Ollie estava

transtornado, com medo que os inspetores tentassem instaurar-lhe um

processo, usando as entradas que Bee registara durante a infância; ele

não sabia que muitas das páginas tinham sido arrancadas e escritas por

cima. Não conseguiu encontrar o diário porque Bee o tinha escondido

na caixa que estava no meu roupeiro. Levou a Bailarina de Porcelana,

antes de Bee o ter surpreendido na cozinha e de terem discutido. Ela

ameaçou contar à namorada dele e à polícia — a qualquer pessoa que

lhe desse ouvidos — antes de ele a ter agarrado pelo pescoço. Ele

matou-a e despejou a mala lá em cima, para poder arrastar o corpo dela

até à sua casa.

Quando voltou à cozinha, viu-me de pijama e fingiu que era o meu

pai, tratando-me por filho. Achava que se tinha safado, mas deteve-me

propositadamente na rua, depois de eu ter vindo a correr para casa.

Queria testar a minha reação ao ver novamente o seu rosto.

David Gilbert ajudara-o inadvertidamente, ao explicar-lhe que eu

tinha dificuldade em reconhecer as pessoas, na festa de Bee Larkham.

Também lhe contou que o meu pai usa sempre camisas e calças de ganga

azuis para eu ter mais facilidade em identificá-lo sempre que estamos

em público. Foi por isso que ele trocou de roupa quando decidiu atacar-

me, embora não tenha sido intencional na noite em que assassinou Bee.

O meu pai transmitiu estes factos importantes depois de ter

perguntado ao nosso vizinho se punha açúcar no chá. David Gilbert

confirmou que punha uma colher e quis saber de tudo, embora aquilo o

deixasse incrivelmente perturbado.


Costumava pensar que nunca teria nada em comum com o assassino

de pássaros David Gilbert, mas isso não é cem por cento exato. Todas as

semanas, ele compra amendoins e alpista para os periquitos e enche os

comedouros de Bee quando a perna me dói demasiado para atravessar a

estrada.

Depois de Laranja de Cromo Oxidado ter ligado, eu também disse ao

meu pai que queria saber de tudo, mesmo as partes com palavras de

cores horríveis que me assustam e me dão vontade de esfregar os botões

do casaco de malha da minha mãe no meu esconderijo.

Tinha de saber a verdade sobre Ollie Watkins, o homem que fingiu

gostar de pássaros, como eu, e que se fez passar por meu amigo. Devia

isso a Bee Larkham, pois ela já não podia explicar a história completa.

Alguém tinha de fazê-lo por ela.

O meu pai está agora a repetir-se, a dizer a David Gilbert que a culpa

não é dele. Não percebo porque é que ele não compreende que Ollie

Watkins se declarou culpado. Ninguém culpa David Gilbert, nem

mesmo eu.

— É muito amável, Ed, mas não consigo deixar de pensar no quanto

aborreci Bee, sobretudo por causa dos periquitos. Não posso pedir-lhe

desculpa, mas não é demasiado tarde para tentar compor as coisas…

Perco o equilíbrio e a porta abre-se. Sopa de galinha cremosa.

— Jasper! Eu e o teu pai estávamos precisamente a falar sobre Bee

Larkham.

— Eu sei, David Gilbert. Eu estava a ouvir às escondidas e empurrei

a porta sem querer.

Ele e o meu pai desatam a rir. As suas vozes misturam-se e criam um

lisonjeiro castanho-avermelhado. Nunca pintei esta combinação de vozes

e anseio por começar uma nova tela no meu quarto.


Não sei porque é que eles acham graça àquilo que eu disse, porque

era a mais pura verdade. A seguir, lembro-me do que o meu pai me disse

no dia em que fui internado no hospital: que devíamos contar a verdade

um ao outro a partir daquele dia, sem tentar enfeitá-la fosse de que

maneira fosse.

Eu tinha desatado a rir apesar da dor prateada e latejante, pois

imaginei imediatamente a palavra envolta num vestido floral e encimada

por um chapéu vaporoso e ridículo.

Provavelmente, o meu pai e David Gilbert também estão a enfeitar

mentalmente as palavras com roupa divertida.

— Ia precisamente dizer ao teu pai que quero fazer com que as

coisas sejam diferentes nesta rua, a partir de hoje — diz David Gilbert.

— Isso significa que preciso de pedir o teu conselho em relação a uma

coisa, Jasper.

— Devia parar de caçar faisões e perdizes — replico. — É esse o

meu conselho.

— Obrigado, Jasper. Vou ter isso em conta. Tem que ver com isto,

pois está a deixar-me muito confuso.

Passa-me uma brochura para a mão.

— Trouxe isto da loja dos animais, quando fui comprar alpista.

Talvez me possas ajudar… És capaz de me dizer qual é a melhor casinha

para aves? Estou a pensar em pôr uma no jardim da entrada, para poder

continuar a dar de comer aos periquitos depois de o número 20 ser

vendido.

O meu pai fala, enquanto eu analiso atentamente as páginas.

— É uma ideia maravilhosa, David, obrigado.

— Bem, nunca se sabe quem é que irá morar para a casa da senhora

Larkham, não é verdade? Desejamos que sejam pessoas do tipo certo, de


preferência uma família com crianças que apreciem tanto a fauna

selvagem local quanto o Jasper.

— Compre esta, por favor, David Gilbert! — Aponto para uma

estação de alimentação de luxo, com quatro comedouros suspensos e

dois bebedouros. A brochura diz que está concebida para atrair uma

grande variedade de pássaros. — Bee Larkham teria aprovado esta

compra. Ela sempre quis trazer o máximo de cor possível à nossa rua!

Depois de almoço, eu e o meu pai visitámos a nossa antiga vizinha

no cemitério, porque tínhamos imensas novidades. Assim que tivera alta

do hospital e conseguira apoiar-me novamente no pé, tínhamos ido até lá

para lhe fazer companhia. Na altura, contei a Bee Larkham que o pai de

Lucas Drury não tinha ido para a prisão por agredir David Gilbert e por

forçar a entrada em casa dela. Um outro juiz tinha-o condenado a uma

pena suspensa.

Mas hoje havia mais uma novidade: Laranja de Cromo Oxidado diz

que Lucas e Lee moram agora com a mãe e com o namorado desta. Vão

para uma escola diferente, em setembro, porque ambos precisam de

começar de novo.

Também contei a Bee Larkham sobre a estação de alimentação para

pássaros de David Gilbert e a viagem da família Wishart para acampar

no próximo verão. Vamos passar um ano inteiro a prepararmo-nos para

isso e posso escolher a tenda e uma mochila nova numa loja de

equipamento para atividades ao ar livre.

Reservei as novidades mais difíceis para o fim. Expliquei que as

lágrimas que corriam pelo rosto de Ollie Watkins no tribunal queriam

provavelmente dizer que ele estava arrependido pelas coisas horríveis

que nos fez aos dois, sobretudo a ela.


Deixei-lhe uma pena de periquito na sepultura porque já a tinha

perdoado pela empada — de galinha, e não de periquito. Laranja de

Cromo Oxidado e o meu pai disseram-me isso vezes sem conta, e

finalmente acredito neles.

Bee Larkham era minha amiga 95,7 por cento do tempo. Era boa e

má e milhares de matizes intermédios. Prefiro recordar o seu azul-

celeste e agarrar-me a essa cor. Ajuda a desvanecer as outras cores

desagradáveis, sobretudo o amarelo creme de leite do dia de hoje.

Eu e o meu pai vamos continuar a visitar a sua sepultura todas as

semanas — assim como o banco de homenagem à minha mãe, em

Richmond Park — porque alguém tem de olhar por ela, já que não tem

mais ninguém. Há uma sepultura de criança ao lado dela. Sempre que a

vejo, penso que podia ter sido eu, sepultado ali ao pé, a fazer-lhe

companhia a tempo inteiro neste lugar estranho e silencioso.

Da última vez que conversei com Bee Larkham, vi um homem a pôr

flores no túmulo da criança. O meu pai corrigiu-me em relação a isto —

afirma que não era apenas um homem, mas sim dois homens diferentes,

ambos com roupa escura idêntica. Laranja de Cromo Oxidado diz que

nos vai ajudar com o meu problema: vai pôr o meu pai em contacto com

alguém capaz de avaliar as minhas dificuldades em reconhecer pessoas.

Ele disse ao meu pai para não ficar demasiado esperançado, pois não há

cura para a cegueira facial ou para a forma diferente como vejo o

mundo.

Ainda bem, porque eu não quero uma cura para a sinestesia. Não

estou doente. Não quero perder as minhas cores. Também consigo viver

com a outra coisa — tenho as minhas formas de lidar com isso, como,

por exemplo, usar grelhas de cabeças na escola, para poder memorizar a

identidade dos meus colegas.


Eu e o meu pai estamos de volta a casa, a pintar. Não é o meu estilo

habitual: estamos a usar rolos para redecorar o meu quarto. Estou

sentado, a misturar as cores que escolhemos juntos com todo o cuidado,

enquanto o meu pai está em cima de um escadote, a arrancar as estrelas

que nunca quiseram vir para aqui.

Esta não era a sua casa. O seu lugar era em Plymouth.

Enquanto eu estava no hospital, o meu pai perguntou-me se queria

mudar outra vez de casa. Assim, não teria de ver a de Ollie Watkins e

Bee Larkham todos os dias, depois de ter alta.

Tive muito tempo para pensar na sua pergunta porque a única coisa

que podia fazer horas a fio era estar deitado na cama e pensar em Bee

Larkham, Ollie Watkins, Lucas Drury, David Gilbert, no meu pai e no

que aconteceu nesta rua.

Sabia que não nos podíamos ir embora. Tinha de atrair novamente os

periquitos com amendoins e sementes. Além disso, tinha de ficar no

número 19 de Vincent Gardens e mudar as cores que eu e o meu pai

tínhamos começado a criar juntos.

Ambos sabemos que ainda não estão perfeitas. Precisam de mais

trabalho, mas não faz mal.

O meu lugar é aqui, onde a voz da minha mãe me encontrou, embora

nunca me tenha visitado; onde um vizinho que eu detestava, David

Gilbert, acabou por me ajudar e por se arrepender de não ter ajudado

primeiro Bee Larkham.

O rádio está a pulsar pontos cor de bronze e formas de botões

alaranjados, mas as tonalidades dos periquitos do lado de fora da janela

são mais fortes e vibrantes. Querem ver-me, por isso sirvo-me das

muletas para chegar à janela. Não consigo andar depressa, mas eles são

pacientes porque sentem que não vou ficar assim para sempre. O médico
diz que posso tirar o gesso na semana que vem e que um fisioterapeuta

vai ensinar-me exercícios para fortalecer os músculos da perna.

Creio que os periquitos querem despedir-se como deve ser, desta vez.

Encontraram o grande poleiro que existe ali perto, com centenas de

periquitos. Voltam todos os dias à procura de comida, porque eu encho

os comedouros com a ajuda do meu pai e de David Gilbert.

Os periquitos levantam voo do carvalho de Bee Larkham num

gigantesco tapete de penas verdes e um coro musical de rosa-flamingo,

roxos e azuis rumorejantes, e uma explosão de gotículas douradas.

— Adeus — sussurro.

São as cores mais bonitas de sempre.

— Está tudo bem, Jasper? — pergunta o meu pai. — Estás

demasiado cansado para continuar?

A minha resposta surpreende-me.

— Não, eu quero continuar.

Não pensava que quisesse fazê-lo quando os periquitos me

abandonassem, como a minha mãe e avó tinham feito. Pensava que ia

ficar demasiado triste para continuar.

Mas sei que os periquitos vão voltar à procura de comida. Vão voltar

a fazer ninho no buraco do carvalho e no beiral, no ano que vem.

Tão certo como o número um ser cinzento-esbranquiçado e o

número oito renda azul-escura.

Posso esperar que os periquitos voltem. O amanhã já não me assusta.

Estamos a decorar o meu quarto com a cor que devia ter. Criámos

juntos a tonalidade exata.

É a única cor que podia ser.

Encosto as mãos à parede, junto à janela, e sinto a tinta molhada

debaixo das pontas dos dedos.

Hoje é a cor perfeita.


Hoje é azul-cobalto.
AGRADECIMENTOS

Estou imensamente grata a um grande número de pessoas que me

ajudaram a criar o meu romance. Em primeiro lugar, um enorme

agradecimento a Martha Ashby, a minha editora incrivelmente talentosa,

que me apoiou desde o início, e ao resto da equipa da HarperCollins,

que tornou o meu percurso até à publicação tão aprazível. A minha

querida editora nos EUA, Tara Parsons, e a sua equipa da Touchstone

demonstraram idêntico entusiasmo e apoio. Obrigada.

Belisco-me constantemente para ter a certeza de que é verdade e de

que tenho a sorte de ter a maravilhosa Jemima Forrester como minha

agente. Acreditaste em mim desde o primeiro dia, trabalhaste

incansavelmente em meu nome e ajudaste a cumprir a ambição de me

tornar autora de ficção para adultos. Agradeço igualmente à equipa

responsável pelos direitos de autor, na David Higham Associates, que

vendeu o meu livro pelo mundo fora, e a Michelle Brower, da Aevitas

Creative Management.

Tenho uma dívida especial para com a generosidade da comunidade

de sinestesia no Reino Unido, EUA e Alemanha. Não poderia ter escrito

este livro sem aprender com a vossa experiência. Uma menção particular

aos entrevistados, incluindo a inspiradora Amythest Schaber (que

também me ajudou a compreender a cegueira facial e o autismo),

Susanne Geisler, Alisha Brock, Victoria Schein e Julia Nielson. Fui


ajudada por James Wannerton, da Associação de Sinestesia no Reino

Unido; Jamie Ward, professor de neurociência cognitiva na Universidade

de Sussex; Dra. Mary Jane Spiller, regente na Faculdade de Psicologia

da Universidade de East London; professor Sean Day, do Trident

Technical College, Carolina do Sul, e membros da sua mundialmente

famosa Lista de Sinestesia, em particular Sigourney Harrington.

Relativamente à prosopagnosia, recebi informações inestimáveis de

Hazel Pastow, da Face Blind UK, e de Robyn Steward, através da

National Autistic Society. Agradeço igualmente ao diretor de campanhas

e difusão pública desta sociedade, Tom Purser, e ao seu assessor de

imprensa, Piers Wright, pelas orientações que me deram.

Aprendi sobre periquitos com o incrivelmente paciente «Birdman» –

não queres que cite o teu nome, mas estou em dívida para contigo –,

assim como com o Dr. Hazel Johnson, do Durrell Institute of

Conservation and Ecology (DICE) da Universidade de Kent e com o Dr.

Kirsi Peck, da RSPB.

A artista Reshma Govindejee teve a amabilidade de me deixar

misturar tintas acrílicas na sua companhia e recriar a cor das vozes e

gritos no papel. Para tudo o que tem que ver com a polícia, tive a

enorme sorte de contar com a ajuda da inspetora Karen Stephens, da

Federação Policial de Inglaterra e Gales, e com o principal repórter

criminal do Daily Mail, Chris Greenwood, que também me ajudou com

os procedimentos judiciais. Agradeço igualmente a Tracey Puri pela

ajuda nas questões ligadas à assistência social; ao advogado Andrew

Moxon, por responder às dúvidas jurídicas; ao Royal College of

Surgeons, por tudo o que se relaciona com ossos; e à Dra. Helen Day,

regente da cadeira de Literatura Inglesa na Universidade de Central

Lancashire, por partilhar o seu vasto conhecimento sobre a senhora

Beeton.
Além de agradecer às pessoas acima nomeadas, devo ainda

acrescentar que quaisquer erros no livro são da minha exclusiva

responsabilidade. Também fiz uso de alguma liberdade poética em

alguns sítios.

Lindsay, Victoria, Richard, a minha mãe, pai e marido, Darren,

ajudaram nas primeiras leituras e revisões ao texto. Contei com o apoio

de outros autores e amigos, incluindo Beezy, Chris, Charlotta, Jo e irmã,

Rachel. A minha antiga agente, Ajda Vucicevic, nunca duvidou de que

eu conseguia fazer isto, tal como velhos companheiros de escrita em

Bristol, John e Caroline.

Finalmente, agradeço aos meus adoráveis filhos, James e Luke, que

perdoam a minha memória de peixinho de aquário quando estou a

escrever, e a Darren. Leste este livro vezes sem conta e completas a

minha vida. Tenho mais sorte do que alguma vez conseguirei expressar

por contar com o apoio e amor da minha família.


BIBLIOGRAFIA

Livros

Wednesday is Indigo Blue, Richard Cytowic e David Eagleman

The Frog Who Croaked Blue, Jamie Ward

Prosopagnosia, Face Blindness Explained, Lyndsay Leatherdale

Understanding Facial Recognition in Children, Nancy L. Mindick

Face Recognition and its Disorders, Sarah Bate

What Color Is Monday?, Carrie Cariello

M is for Autism pelos alunos da Limpsfield Grange School

Artigos científicos

«Color and texture associations in voice-induced synaesthesia», Anja

Moos, David Simmons, Julia Simner e Rachel Smith. Publicado em

Frontiers in Psychology

«Is synaesthesia more common in autism?», Simon Baron-Cohen et al.,

publicado em Molecular Autism

Whitchurch, A.K. (1922). «Synaesthesia in a child of three and a half

years», American Journal of Psychology, 33, 302-303. Este rapazinho,

Edgar Curtis, também foi referido numa edição da revista Popular

Science em novembro de 1922

YouTube/filmes
Filmes de sinestesia do professor Jamie Ward no «gocognitive»

An Eyeful of Sound, um documentário sobre sinestesia realizado por

Samantha Moore

Olivier Messiaen 1908-1992: Messiaen and Synaesthesia, Philharmonia

Orchestra

Vlogs YouTube de Amythest Schaber, Ask an Autistic

The Autistic Me (documentário da BBC)

Websites

www.uksynaesthesia.com

www.daysyn.com

www.faceblind.org.uk

www.autism.org.uk

prosopagnosiaresearch.org/about/children

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