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JULIANA BERTUCCI BARBOSA

MARÉNALVA VOEIRA BARBOSA


(organizadoras)

LEITURA E
MEDIAÇÃO:
reflexõessobre a
formação do professor

Participação

João Wanderley Geraldi


Rodolfo llari
Valdir Barzotto
Claudia Riolfí
Juliana Loyola
fani Tabak
Mana Fernanda Oliveira
Danielle Menezes
Melena Magalhães
Tanta Marine
Carlos Morais
Deolinda Freire
Jauranice Cavalcanti
Mana Eunice Barbosa V. Mendonça

AtP(HDO'
m LETPHS
Dados Internacionais de Catalogaçãona Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Leitura e meaiaçao : reliexóes sobre a formação do
professor./ Juliana Bertucci Barbosa , Marínalva Vieira
Barbosa, organizadoras . - 1. ed. - Campinas, SP
Mercado de Letras,201 3

Bibliografia.
Vários autores
ISBN 978-85-7591-222-5 Descobri que a kitt4ra é ama eq)éde ü sonho esnaü%apor,
se dedo sotlbarporque ,tão sonhar os meus próprios sonhos?
1. Educação básica 2. Escolas públicas 3. Leitura 4.
(Fernando Pessoa).
Literatura 5. À4ediação 6. Pedagogia 7. Professores
Formação 1. Barbosa,Juliana Bertucci. 11.Barbosa,
MarinalvaVieira.

13-03591 CDD-370.71
Índices para catálogo sistemático:
1. Leitura, literatura e mediação : Professores:
Formação: Educação370.71

capa e gerência editorial: Vande Rotta Gomide


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lg edição
Um público coppQrometido
coma leiteira é critico, rebelde,
abril/2013
IMPRESSÃO DIGITAL inquieto, pot+co matüp lavei e ttão crê em Lemas que alguns
IMPRESSO NO BRASIL Jag:em.Faltar.pof /de/ai.(Mário Vergas Llosa)

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TODO MENINO QUE NASCER,
ATIRA-LO-EISAO N l LO - OU
N UM MANANCIAL DE TEXTOSI

raldirH CitarBamouo

Quando penso em leitura nos dias de hoje, a melhor


metáfora que me ocorre é a de um manancial de textos. Estamos
todos entreguesa uma torrente que nos arrasta,por vezes nos
atordoa, porque nos faz girar em todas as direções.Então,
recorro à imagem bíblica do rio Nulo e à história de Moisés para
pensar a leitura e a escrita.

Proponho reter a imagem de um manancialde textos


e pensarno rio Nulo como um texto ou comoo conjunto de
textos que nos traga para uma correnteza.
Lembremos de Êxodo 1, 22 e 2, 1-10. O Faraó
ordenou que todos os meninos fossem atirados ao l:io para que
morressem. A mãe de Moisés, por sua vez, prepara um cesto,
colocao alho e o leva para o mesmo rio. O menino é salvo.

l Uma primeira versão desse mago foi publicada na Reõú/a IJ#gxa Porlwg#eia.

Epeaa/1-2aywa2eme Pizf #óí&ke,


n.' 30, Editora Segmento, 2009

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Eis a diâculdade,trata-sedo mesmo rios Como sabero mulheres,a inserçãono universo da leitura é um valor positivo,
modo de se comportar denso do rio e o que vai acontecer no no qual resta implícito o objetivo de hgietlização da cultura
percurso? Nos encorajando um pouco, a história ensina que são anterior de quem lê, o que pode fazer com que os adultos se
dois os propósitos que levam a lançar os meninos ao rio: matá- descuidem.
los ou salva-los. À medida que crescem imersos no rio de leituras, os que
Com a participação das mulheres, subestimadas pelo crescem tem a difícil incumbência de aprender a separar,muitas
Faraó, Moisés segue o dest:ino da vida. A mãe o lança ao rio, a vezes sozinhos, um texto dc outro, uma perspectiva de outra.
irmã estabelecevigília e, quando a filha do Faraó o encontra, a Enfrentam também a tarefa de separar-sedas leituras que fazem.
irmã se oferece para procurar uma hebreia que possa amamenta Tarefa tão ou mais complexa que a de Palomar, personagem de
lo. É a própria mãe a hebreia que o amamenta e o cria. Mais Italo Calvino que, "em pé na praia" pretende observar "uma"
tarde a filha do Faraó o adota. Tudo isso iniciado com a recusa onda e não "as ondas". Mais complexa talvez pois, enquanto o
das parteiras em obedecer à ordem de matar os bebês meninos. personagem tenta levar a cabo seu intento da praia, o sujeito de
Do mesmo modo que Moisés, uma vez lançados em num linguagem está imerso nos textos que o constituem.
manancial de textos, pelo menos dois destinos se delineiam: Enquanto crescem, vão enfrentando os estágios que

afogar-se ou chegar a um lugar onde a vida seja possível. permitem se constituírem como sujeitos.Aprendendo a falar
Moisés saiu do outro lado fortalecido por agregarduas aprendem a falar de si, a capturar e a dar a ver uma imagem de

culturas, mas o interesse do Faraó egípcio era outro. Ele havia si. Uma vez aprendidasas primeiras levas, uma vez articuladas

percebido que os hebreus tinham se tornado numerosos e as primeiras frases e os primeiros textos escritos,caem no
poderiam representar uma ameaça,por isso resolve dar fim à rodamoinho eternamente repetido: os fitos de ler e de escrever.
continuidade de sua cultura. Em minhas pesquisas,remando como posso, tenho
procurado compreender como se dá a conquista da escrita, em
O que tem de interessantepara se comparar com a leitura
qualquer dvel, quando estamos expostos a tantos textos para ler.
é que o manancialé o mesmotanto para se conqustaruma
Meu ponto de partida é a compreensão do processo vivenciado
cultura como para se deixar desapropriar dela. Muitas crianças
pela criança ao tornar-se sujeito. Minha hipótese é a de que
perderam o direito de nascer em um mundo sem textos. Elas já
nascem imersas na corrente. A metáfora interessa ainda mais tal processo é atualizado a cada vez que somos convocados a
escrever. Somos, portanto, sempre meninos lançados ao rio.
porque no Brasil de hoje a mortalidade de meninos, seja íisica,
Em certa medida, o mesmo vale para falar. Tirando as situações
sejacultural, é muito alta, sendo que estaúltima pode chegar
usando um texto como barca. em que bastam as frases pré-moldadas como "por favor, me
passeo sal", entre outras, há várias situaçõesem que somos
Torna-se mais difícil a reflexão à medida que se percebe
convocados a falar ou escreveralgo mais do que aquilo que já
uma diferença.Enquanto a ordem do Faraó para matar os
está pronto
meninos é explícita, o que atavaa defesa da vida própria

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Se me disponho a gastar energia na reflexão sobre esta recorro também à metáfora do rio Nilo, que é o mesmo para
hipótese é porque estou apostando que a melhoria das condições funções diferentes. A mesma água pode refietü imagens úteis
do aprendizado da leitura e da escrita depende do modo como para ajudar a compor a imagem própria também pode consumir
sedá a re]açãodo sujeito com a linguageme do papel exercido o col:po que sevê refletido.
pelos mais experientescomo participantes na construção desta A seguir tento demonstra, por meio de uma breve
relação. É disso que depende o fortalecimento das crianças que apresentação dessesdois momentos e de alguns exemplos, os
nascem imersas nesse grande e perigoso Nulo de textos. No movimentos de conquista da escrita.
curso desserio, a cadavez que somos lançados, temos de reviver
o processo de constituição de nossa subjetividade.
O rapo de@ezlzfndó.
Lacan afirma que há um momento
Para melhor compreender este movimento de textos em que a criança não se diferencia do corpo da mãe, nem do
que nos conduz recorro a dois momentos vivenciadospela ambiente em que se encontra. Uma vez que a criança entende
criança, descritos por Lacan -- roça depeíãzfuda e giüz#o da ePeZZo.
que forma um só corpo com sua mãe, consequentemente
ele
Fundamentalmente, Lacan aborda essesdois momentos em dois
seria composto de dois pedaços separados. Daí chamar-se roda
textos publicados em seu livro intitulado Erów/ai. O primeiro de@eóZzfado.
Ao mesmo tempo, a criança percebe cada parte de
chama-se O estádiodo e9elbo como.P)amadordo Ea tai comoele nos seu corpo como uma parte isolada. Trata-se daquele momento
é reveladotia expeHência
da psicanálisee o aptesenüdo no XN\
em que o bebê começa a se olhar, a gastar algum tempo do seu
Congresso internacional de psicanálise de Zurique, em 1949. O dia olhando partes de seu corpo, examinando-o cuidadosamente.
segundo, intitulado O&fe/'ufãí iaZ'rerawx /auy2adeZ)a /e/lzgafóe;
A este tempo associo, na escrita, o momento que podemos
;'Psicanálisee estmt ra ch personaliüde", ê de L96Q e $1o{esclàto
chamar o texto de /nu&aZZodeipezãzfuda.Mais conhecido como
como reação ao texto de Lagache apresentado no Colóquio de
faZróade r?/azia,é aquele trabalho em que o sujeito que escreve
Royaumont, em 1958. vai observandovários üabalhos e recolhendo deles fechos
No texto de 1960,Lacan escrevesobre o.pairoafeífag e quc pensa que poderiam ser seus,que podem ser assumidose
a .r##b//a/ m r?a#ãzde da ie rapa, o que o coloca na con(tição
incorporados ao seu,para formar o seupróprio texto. Portanto,
de depender sempre do fornecimento de uma imagem externa o seutexto e o texto que lê, formam um só corpo. Mas, quando
para se reconhecer.Em função dessepouco acesso é que alguém lê o texto apresentado como seu, percebe que suas
retomo os momentos nomeados com rapo de@eéãzfnda
e eiüda partes nào formam um todo, é composto de pedaçosisolados,
da peZZa
pararefletir sobrea leitura e a escrita,pois entendo apenas Justapostos.
que também ao escrevernosso acesso à imagem que se dá a
Neste momento, este sujeito aprendenteainda não
ver, ou a ler, por meio da escrita é bastanteprecário. Produzir
aprendeua diferenciarum autor do outro, nem de si mesmo,
textos a partir de outros textos, a meu ver correspondea se
apenas reconhece, pela superfície, que algumas passagens
ver a partir das imagensque nos são oferecidasde fora:..Algo
podem se tornar suas,mas ainda não percebe os modos como
permanece inacessível e impossível de ser verbalizado. Por isso

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elas podem se aproximar ou se distanciar da possibilidade de de afogamento,de quem percebeque o texto apresentadoé
construção da própria imagem. um conjunto de retalhos de vários ouros corpos: "Não, não
Do mesmo modo que nào é possível olhar e apreender fica clara a sua posição, pois até agora você apenas mcoq)orou
ao seu texto autores que tratam do mesmo assunto,mas isso é
o próprio corpo, neste momento vivenciado pela criança >
conhecido como corpo despedaçado,de modo a apreender o pouco para aproximar estesautores e para deânir suapostura.
todo, este autor em formaçãotambém não apreendeainda o São intervenções necessárias, que podem ser feitas,
pr(5prio texto. O que ele faz é apenasreconhecer partes que desdeque com cuidado, nos círculos famiLaresou de amizade,
podem ser suase toma-las para si. Se não transpuserbem este e principalmente por professores que se colocam na posição
momento, corre o riso de embeber-senaságuasdo Nulo e rodar de parceiros do aluno em sua trajetória na conquista da escrita.
pela correnteza sem conseguir transformar o que encontra em Com isso se auxilia quem está escrevendo a construir um lugar
suporte para se por em pé. A tendência é afogar-se nas palavras onde possa por os pés e manter a cabeça fora d'água.
do ouço confundindo
os movimentos
de aspirarcom o de Tais intervenções, no entanto, precisam ser feitas por
expiar. quem tem algum desprendimento com relaçãoàs correntes de
Em dados coletados para a pesquisa "Movimentos do pensamento. O que quero dizer com isso é que, por vezes, o
escrito", desenvolvida pelo G7w@ade E;/xdai e Peia ü Praz Cifrão sujeito que escreve, incluindo o mais experiente, instaura-se em
EíónZa e .Px/au#áZzieGEPPEP, encontramos exemplos da uma postura reverente demais aos autores que leu, deixando-
postura vigilante em comentados escritos por professores se levar por qualquer onda que o atinja. Por isso é importante
à margem de trabalhos acadêmicos submetidos à avaliação. também aproveitar oportunidades em que pareça haver indício
Observações como "...você precisa ser mais critico com o que de. alguma criticidade se instaurando e apoia-las, ainda que de
lê." podem funcionar como bóias colocadasà disposiçãode modo meio deslocado.
quem está rodando no rio. O problema é que neste momento Vejamos um exemplo. Um professor, percebendo que
da escrita que associo ao coito despedaçado,aquele que um estudante de pós-graduação apenas concordava com
está tentando escrever pode sentir-se uma continuidade do todos os autoresque tinha hdo, mesmo que alguns não fossem
manancial que o arrasta e não ter condições de segurar-seà bóia. compatíveis entre si, aproveitou uma frase para tentar fazê-la ter
Por isso convém insistir, lembrando-se de que Moisés contou reverberações sobre a própria atitude do aluno.
com as mulheres que Ihe serviram de âncoras,na importância Quando o aluno escreve, apenas concordando com mais
da atuação de um parceiro para ajudar na busca de um ponto de
um dos autores que leu quando esteafirma que a leitura pode
apoio para encontrar um caldinho próprio.
servir "apenaspara conârmar nossospontos de vista ou para
Em ouço trabalho, após encadear várias citações, o autor problematizar, questionar o que, aparentemente,não pode ou
tenta concluir seu texto aârmando: "Fica clara, assim, minha não deve ser questionado.-", o professor escreveao lado 'Tor
posição teórica com relação ao assunto aqui tratado." Ao.lado isso é preciso discutir o seu próprio embasamento teórico."
desta frase encontra-se um comentário de quem percebe o risco
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Para chegar a este dvel, no qual se consegue discutir o fazer o trabalho adicional de fazer de seu texto um corpo, de
próprio embasamento, faz-se necessário que o menino imerso compatibilizar as partes teóricas, de fazer convergir a teoria
em suas leituras comece a perceber que o corpo de seu texto sobre os dados.
não é o corpo do texto lido, o que talvez só comece a se tornar Percebe-sepelo exemplo a necessidadede o professor
possível no momento seguinte. fazer mais intervenções com relação à escrita da aluna, mas
Em se tratando de um professor que queira estabelecer também, a necessidadede que o sujeito em formação também
parceria com o aluno para sustentar suas iniciativas rumo se comprometacom a construçãode um texto que Ihe seja
à conquista da escrita, o problema que se coloca é sobre a proPao
necessáriamaturidade que este professor precisa ter atingido Ouros três alunos da mesma turma montaram seus
para inspirar confiança ao seu aluno. Para atingi-la, vale a pena uabalhos a partir de colete de trechos publicados em meio
pensar em nosso posicionamento como leitores e produtores de eletrânico.Em grande medida tratava dos trechos mais
textos desdeo momento em que estamosnos preparando para comuns a respeito do assunto que pesquisavam, os quais foram
nos tornarmos professores. apresentados em forma de citação ou de paráfrase bastante
Exemphâca bem o caso de uma aluna de graduação que próxima da versão publicada. Trata-se do mesmo fenómeno,
cursou uma disciplina que exigia o desenvolvimento de uma cada aluno recolhe trechos que podem se tornar seus,ou criar
pesquisadurante o semesue.A disciplina foi ministrada na uma aparência de que o que estão escrevendo é de sua autoria.
perspectiva de que a pesquisanão pode se separardo ensino. Embora uma reunião de fechos feita dessemodo forme um
Então, além do conteúdo especíâco,o professor foi ensinando corpo mais articulado que o do exemplo anterior, ainda assim
as etapas da pesquisa, desde a colete de dados até a apresentação percebe-sea ausênciade atuação de quem escreve sobre o
por escrito em um uabalho anal. Foram feitos exercíciosem assunto t:datado.Tudo o que vai sendo escrito, foi escrito em
sala para que os alunos soubessem diferenciar a apresentação, outro lugar e o que se sabe de fato é que o aluno acreditou que
descrição e análise dos dados. Os alunos também puderam aqueles trechos poderiam ser seus.
experimentar a escrita de textos em que apresentavam,depois Nesse caso, mais do que a inten'enção do professor e
resumiam e depois apreciavam os textos fadospara embasamento.
do compromissodo aluno em fazer um texto próprio, Já se
A cada um desses passos ensinados a turma era orientada a torna necessáriodiscutir a cultura de produção de uabalhos
incorporar as partes escritasem atendimento aos diferentes acadêmicos que está se formando, textos assim tem sido cada
exercíciosde salade aula, uma vez que tudo estavavinculado à vez mais aceitou desde que os alunos tinham acesso somente ao
pesquisa que estavam fazendo na disciplina, ao trabalho escrito íi:opresso.
anal, no qual deveria estar exposta toda a pesquisa realizada no
semestre. A intervenção e a mudança de posição nessequadro de
relação com a escrita é uma condição pma que o professor possa
Uma aluna, no entanto, diferentemente do restante da
estabelecer parcel:ia com seu aluno.
turma, imprimiu todas estaspartes, grampeou e entregou, sem
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E.rMdza do ePeZ%a.
Momento da absorção da própria autores que lê, que estão em voga em documentos oâciais, na
imagem oferecida de fora. A criança recebe a imagem de seu fala de orientadores, nos escritos de lideranças intelectuais.
corpo e o diferenciade outros corpos e dos outros elementos Fora dos meios escolares,o mesmo pode-sedizer de um
do ambiente que o cerca. Essa assunção da própria imagem adulto que seja convocado a dar sua opinião sobre um assunto
ocorre, em geral,com a intervenção de um adulto mais próximo qualquer.Ele pode estar de tal modo embebidodas palavras
quando mostra a imagem da própria criança no espelho ou Ihe do ouço, da imagem que o rio de textos Ihe oferece, que pode
apresentauma fotografia e Ihe diz "olha o nenê". Quando o apenasoferecer como fala aquilo que foi dito que ele deve falar.
adulto apresenta para a criança, em seu discurso, o que ela é por
Neste tempo, o pesquisador,ou o adulto de modo geral;
meio da imagem que o adulto faz dela. A criança absorve e diz
iá sabe que precisa adotm uma postura, mas ainda não a tem
de sua própria imagem refietida no espelho ou na fotografia, do
claramente delineada, nem se pode depreender esta postura de
mesmo modo que o faz o adulto: "olha o nenê". O próximo seustextos, âcando, assim, refém de uma imagem de si mesmo
passo será reconhecer-se como "eu" diante de perguntas como
que Ihe é apresentadade fora, por terceiros,pelo Outro.
"cadê o nenê?", ou quando reconhece seu nome.
E nestemomento que o pesquisadorem formação busca
Associo este tempo àquele ponto em que, na escrita,
deânir-se em termos de perspectiva teórica, de posicionamentos
convocado a fazer um texto próprio, que represente um
ideológicos. Seus textos abundam de tomadas de posições
posicionamento próprio ou uma produção de conhecimento, o
ou de demonstração
de sensocritico.No entanto,muito
sujeito recorre a lugares comuns. Esse momento corresponde
frequentemente, estas posições soam um tanto obrigatórias,
à .íxómã;.2a.zazZzü zxoó mó /ra por meio da reproduçãode
por um lado, pois ele precisaser aceito em um grupo, e um
elementos correntes, lá que se nata de identificar-se a uma
tanto óbvias, por outro, pois ele adere às correntes disponíveis
perspectivaque Ihe é fornecida de fora e de devolver uma
e mais divulgadas. Para passar uma imagem de esclarecido
imagem de si que corresponda ao que os outros querem dele.
politicamente adere frequentemente às criticas fáceis e pré-
A escrita que associoao Fado do peZZoé a do sujeito fabdcadas como aquelas formuladas contra os políticos, a
que já compreendeuque seutexto não forma um corpo com polícia ou a educação.Também servem como exemplo as
o texto do outro, oferecendo uma escrita que não corresponde propostas correlatas a essescampos que aparecem na mmona
mais ao rapo dePe&fadoou à raáÉade re/aZZo.r.
A identidade do das plataformas eleitorais: combate à corrupção, investimento
coITo do texto nessetempo é absorvidae encenadatendo em segurança, educação e saúde. São imagens absorvidas
como referência a proposição de uma imagem externa. Mesmo por uma relação especular com o mundo externo, elas não
quando é um adulto que escreve,ele é menino na situação,pois conferem necessariamenteautenticidade a quem as profere, mas
precisa apropriar-se de uma imagem integral do corpo de seu funcionam como demonstração de que a necessidadede exibir
texto. No caso de um pesquisador em formação, por exemplo, um posicionamento foi percebida.
trata-se da alienação a um discurso configurado nos textos dos

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Fica mais evidente ainda em um relatório de um aluno
Somos muitos os meninos que, quando percebemos
que precisamos exibir uma visão de mundo para validar nossa de pós-graduação em que ele cita um longo trecho de um autor

condição de adultos, repetimos em uma conversa informal que goza de uma posição de destaque no meio acadêmico. As
matérias inteiras lidas em uma re«isto ou em :«n jornal como se aârmações recolhidas do autor são componentes do senso
fossem reflexões nossas, sem indicar a fonte. comum sobre o ensino da leitura, tais como "os professores
não ensinam a ler", "não há trabalho com leitura na escola", e
Na produção de um texto, oral ou escrito, é comum que
assim por diante. O aluno, pesquisador em formação, mas com
a reproduçãode avaliaçõese demonstraçãode sensocrítico
experiência como professor, compõe em seu texto uma imagem
apoie-se em posições correntes, compardlhadas por um grande
que Ihe foi fornecida de fora. É como se dissesse "é assim que
número de adeptos.Aquele que repete,acredita oferecer aos
eu devo me mosüar ao público, já que é assimque dizem que
leitores ou ouvintes uma imagem adequada,de acordo com
eu sou". Ocorre que, poucas páginas depois, o aluno relata sua
o seu tempo. No entanto, justamente por se"m pos:çoes
prática como professor justamente com o ensino da leitura, mas
correntes elas podem nos amarrar ou nos arrastar. E eis que nos
sem contestar a postura do autor citado. A essaaltura lê-se ao
encontramos ateados ao rio.
lado o comentário de seu professor "faça valer sua experiência
O perigo reside no fato de que, embora a passagempor e discuta a posição citada acima". Talvez esseprofessor tenha
esterio sejaimportante para a absorção de uma imagem própria,
vislumbrado na sequência das exposições um indício de desejo
também se pode sustentar imagens que nos são desfavoráveis,
de construir suaprópria imagem a seu modo, pois, emboranão
que impedem nossapassagemem direção à vida. E comum tenha se autorizado a fazer uma critica direta, a exposição de
encontrarmos dados em nossa pesquisa que exemphâcam
uma prática que consideravaexitosa com o ensino de leitura
a adesãopor parte de um pesquisadorem formaçãoa uma estavalá.
imagem desfavorável. É o caso da repetição de críticas que se
Embora possa ser verdade que a prática nem sempre
voltam sobre quem as faz, pois trata-se de toma uma Imagem
seja suficiente para fazer contraposição aos autores de renome,
de si fornecida pelo outro, que nem sempre está a nosso favor,
também é muito frequente um autor senta a necessidadede
que pode ser )ustamentequem nos atira ao do pa'a se livrar de
nos devolver em seu texto a imagem que Ihe foi ofertada. Em função
disso ele repete criticas confia ele mesmo.
São bons exemplos os professores que, ao escrever seus
Ainda um outro exemplo para reforçar a necessidade
trabahos de pesquisa aderem a perspectivas que são destruidoras
que vimos apontando desdeo item anterior de que observemos
de suas próprias identidades. Em nossos dados, uma aluna de
nossa própria relação com a escrita para estabelecermos nosso
mestrado, depois de citar vários autores que atacam a posição
trabalho junto ao aluno. Uma professora,ao apresentarum
do professor, fala de seus ll anos de prática sem fazer com
Uabalho em um evento, reclamava da falta de originalidade nos
que este tempo de experiência tenha valor de contraposição aos
textos dos alunos, já que para ela, isso era uma cmactedstica
posicionamentos dos autores citados.
importante para o texto solicitado. Ocorre que a atividade que

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ela deu aos alunos não foi criada, nem elaborada por ela. Ela Conclusão

obedeceu acriticamente o que preconizam os documentos


oficiais repercutidos no material didático adotado.A questão que Para concluir gostaria de reafirmar o que tentei expressar
se coloca a estaprofessora é sobre o próprio exemplo em que ao longo do texto. Ao serem lançados ao rio minha metáfora
ela se converte para o aluno. Como ela poderia dar a mão para para a leitura -- de onde se retiram elementos para a escrita, estes
seu aluno se encaminharem direção à consuução de um corpo meninos podem ver suaspróprias imagens refiet:idasna água.A
próprio, ou à margem do rio para descobrir os contornos do imagem que veem pode ser absorvidas como parte da sua com
seu corpo? Ao menos na advidade que ela mesma apresentava, a qual compõem seu coITo ou o corpo de seustextos, fazendo
ela apresentava-sesubmersanos textos que tentavam formatar com que ofereçam uma imagem de si aos pedaços, fragmentada.
seu trabalho. Ou então, podem ser absorvidas como suas num momento em

É possível que esta professora, ao apresentar-se ao aluno que lá sabem que precisam assumir uma imagem própria, mas
com suasatividades, o tenha feito tentando corresponder a uma o fazem atabalhoadamente,por vezes mostrando-se de uma
convocação muito semelhante à que já esteve presente em sua maneira que, de fato não queriam ou não poderiam para garantir
uma saída honrosa do rio.
vida por meio da base aZZóz
o e él Sem dúvida, em sua formação,
alguémIhe disseoZ%.z
a.Pl2áeiaxn4e tal como na suainfância o Enquanto não forem capazesde se sustentar sobre os
fornecimento destaimagem teria continuado: uma professora de próprios pés e saírem,precisarãode apoio, de alguémque
português é lê x extrai e dá aos alunos atividades tipo y e espera forneça elementos que os mantenham vivos até conseguirem
z. Ou seja,do mesmomodo que a criançareíiete a imagem ser o suporte de uma imagem própria. Nesse período precisam
que Ihe é oferecidapelo oZZa
o e & a professora,quandoa de alguém que esteja em outro patamar, com pés firmes no chão
situação de estar em frente de uma turma de alunos Ihe coloca e mais clareza sobre seus próprios contornos.
a pergunta andaa.prqÁeifonn?se apresenta tentando responder ao -Ainda que inserir a criança no manancial de textos possa
que entendeu ser a imagem carreta dada pelo azia a .p77@iiaHn/ parecer sempre positivo, cabe aos adultos, aos mais experientes,
Faltou o trabalho de apropriar-se desta imagem e mais que tal qual as mulheres da história de Moisés,colocarem-seem
poderia construir e fazer de tudo isso um corpo próprio. Até vigília. Lembremos que, mesmo sendo recolhido pela filha do
o momento em que compareceuao evento para apresentarseu Fmaó, faltava o leite para criar o menino.
trabalho,elavia o problemaapenasno texto do aluno e não O papel de quem percebe o outro rodando no
percebia que ela mesma se colocava diante dos textos que lia rodamoinho de textos que o leva, semsabero que exatamenteé
e dos textos que deveriaescreverpara a sua aula,do mesmo seu,é ajuda-lo a apropriar-se da própria imagem. E bom também
modo que seu aluno. Nesse sentido, ela pode ser considerada
recomendarpaciênciapara não inverter o fluxo daspalavras,ou
competente e seus alunos também, pois eles remetiam a imagem
seja, engolindo-as ao invés de solta-las.
de leitor que ela lhes apresentava.

170 1 71
Como última consideração gostaria de chamar a atenção
para a diferença entre o mais experientee o que chamei de
menino ou criança. E preciso ficar claro que não setrata somente
de uma idade cronológica.
Retomandoa hipóteseexpressano início do texto de
que a cada vez que o sujeito é convocado a escrever ele refaz o
pe:curso do sujeito de entrada na linguagem, pode-se dizer quc
mais experiente é aqueleque estáem constante vigília sobre as
posições que assumefrente aos textos que lê e sobre a própria
escrita. Como estanão é uma tarefa fácil, é necessário sempre o
Uabalho em conjunto, sem a obrigação de estabelecer consenso,
para que sempre se possa contar com alguém que ajude a sair
do rio.

hjevÊttcias bibliográficas

CXVINO, 1. (1994). "Palomar na praia -- Leitura de uma onda."


EHZowízc
São Paulo: Companhia das Letras.
L.AC-AN,J. (194911966])."Le stade du miroir comme formateur
de la fonction du Je telle qu'elle naus est revelée dons
I'expedence psychanalytique." Éów/T.Édidons du Seuil.
(1966). "Remarque sur le rapport de l)aniel Lagache:
Psychanalyse et structure de la personnahté." EówZx. Edi-
tions du Seuil.

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