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A GRAMÁTICA DA EMÍLIA

Maria Augusta Bastos de Mattos


IEL – UNICAMP

Este texto fez parte de uma mesa-redonda comemorativa dos quarenta anos da morte
de Monteiro Lobato, coordenada pela Profª. Marisa Lajolo, por ocasião do XXXV
Seminário do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado de São Paulo, realizado em
Taubaté, no ano de 1988.

Quando Lobato escreveu A menina do Narizinho Arrebitado em 1921, ele o


fez para que fosse um livro de leitura para as escolas e escreve então a Godofredo
Rangel: Mando-te o Narizinho escolar. Quero tua impressão de professor acostumado a
lidar com crianças. Experimente nalgumas, a ver se se interessam. Só procuro isso; que
interesse ás crianças.

Aliás, em diversas cartas que manda a seu correspondente de tantos anos, é


clara sua preocupação com o que as crianças têm para ler. Numa, já de 1916, ele
declara: é de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a
iniciação de meus filhos. É por isso que ele pensa – e de fato o realiza – em vestir á
nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas
moralidades. Lobato quer recriar a literatura infantil, revendo criticamente seus valores
e adaptando-a ao público brasileiro.

Ganhando forma a sua preocupação com a literatura para crianças, Lobato vai
escrevendo sua série fabulosa de livros infantis mas agora já não mais como livros
didáticos, ao contrário do que fora o Narizinho Arrebitado.

Sua literatura infantil compõe-se de alguns livros que poderiam ser chamados de
paradidáticos se por isso entendermos aqueles que recriam os conteúdos ensinados nas
escolas. entrariam aí a Geografia de Dona Benta, a Aritmética da Emília, a Emília no
País da Gramática. Quanto a seus livros considerados de pura diversão como O Saci,
Caçadas de Pedrinho, O Picapau Amarelo, A Reforma da Natureza, A Chave do
Tamanho e outros, não notamos que apresentem mais fantasia que os seus paradidáticos.
Nesse aspecto, uns e outros não se diferenciam. Tampouco se nota qualquer diferença de
profundidade dos paradidáticos em relação àqueles que refletem interesses que
ultrapassam a mera visão escolar referindo-se seja à astronomia, seja à civilização
grega, às grandes descobertas da humanidades, seja mesmo ao problema do petróleo
nacional.

Isto é, de um lado Lobato não apresenta às crianças a matéria escolar nos moldes em
que esta é ensinada nas escolas e, de outro, não reflete diferentemente sobre aquilo que
é tido, por tradição, como conhecimento “para as crianças” e sobre o que seria um
conhecimento – digamos assim – mais “erudito”. Ele se põe inteiro em toda a sua obra,
ele, o Lobato pai, o Lobato escritor, o Lobato editor, o Lobato adido cultural, o Lobato
nacionalista.
Lobato vai refletir igualmente três tendências suas: o divertimento, a formação das
crianças e a atenção aos problemas pelos quais ele, na sua reflexão de adulto, está
passando.

Analisando mais de perto:

• haverá mais magia ao se receber o Peter Pan no Sítio do que ao se visitar o bairro das
sílabas na Cidade das Palavras?

• o que é mais “didático”: Dona Benta ensinando geografia aos netos ou a incrível
viagem ao céu?

• e o seu fabuloso A Reforma da Natureza não é o eco do seu romance O Presidente


Negro, publicado como folhetim no jornal A Manhã, em 1926, no qual temos uma
mostra do que seria o mundo no ano de 2228 se fosse Lobato a reformá-lo?

• e o Poço do Visconde não é uma obra na qual Lobato claramente mostra, através das
personagens do Sítio, a sua disposição para dotar o Brasil de petróleo, que ele
considerava essencial para o progresso industrial?

É nessa perspectiva que falaremos um pouco da sua obra Emília no País da Gramática:
paradidática sim, mas com iguais porções de divertimento, de magia e de reflexo das
suas preocupações como escritor, adulto, editor e brasileiro.

Muitos estudiosos de Lobato já afirmaram que ele tenha escrito a Emília no País da
Gramática por “vingança” de ter siso reprovado aos quatorze anos de idade na prova de
Português. Realmente, em suas cartas, sempre transparece essa questão. dezenove anos
depois da reprovação, ele ainda lembra o fato com igual ressentimento: Da gramática
guardo a memória dos maus meses que em menino passei decorando, sem nada
entender, os esoterismos do Augusto Freire da Silva. Ficou-me da ‘bomba’ que levei, e
da papagueação, uma revolta surda contra a gramática e gramáticos, e uma certeza: a
gramática fará letrudos, não faz escritores. E mais tarde: Estou com aquele conto
gramatical a me morder a cabeça como um piolho. Vida, aventuras, males, doenças e
morte trágica dum sujeito, tudo por causa da gramática. Nasce em conseqüência dum
pronome fora do eixo e morre vítima de outro pronome mal colocado.

Não é de se espantar, pois, que um dia, quase vinte anos depois da intenção, em 1934, a
desforra de Monteiro Lobato se transformasse num livro para crianças no qual ele
descreve as aventuras de Emília, Pedrinho, Narizinho, Visconde de Sabugosa e Quindim
no País da Gramática. E que o livro se iniciasse com Pedrinho, então porta-voz de
Lobato, no início relutando em ter aulas de português com a avó, nas férias, e depois
descobrindo interesse nelas: Se meu professor ensinasse como a senhora, a tal gramática
até virava brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de definições
que ninguém entende. Ditongo, fonema, gerúndio...

Os gramáticos são vistos sempre como apegados às tradições e, portanto como entrave
para a língua evoluir e o estilo florescer. Diz Pedrinho rodeando a casa de Dona
Etimologia: Chi!... está ‘assim’ de carranças lá dentro. Impossível que ela nos receba
hoje. Os carranças estão de óculos na ponta do nariz e lápis na mão, tomando notas. Os
tais “carranças” a que o menino se refere eram filólogos, gramáticos e lexicógrafos.
Isso, transposto para a reflexão de Monteiro Lobato adulto e escritor, assim se revela:
Aqui em São Paulo o brontosauro da gramática chama-se Alvaro Guerra, um homem
que anda pela rua derrubando regrinhas como os fumantes derrubam pontas de cigarro.
As regras desse homem tremendo, quando vem ao bico da pena dos escritores, matam,
como unhas matam pulgas, tudo o que é beleza e novidade de expressão – tudo que é
lindo mas a Gramática não quer.

A sua atenção para o estilo também é perceptível paralelamente na Emília no País da


Gramática e nas cartas a Godofredo Rangel: Emília comenta que gosta de advérbios
porque eles prestam enormes serviços a quem fala e o nosso autor, ao elogiar o estilo de
Euclides da Cunha, afirma que este é alérgico aos advérbios terminados em -mente
preferindo, com muito acerto, as suas formas analíticas.

Euclides da Cunha é visto como modelo de estilo sóbrio, pessoal e vigoroso. Ele, por
exemplo, nunca antepõe adjetivos a substantivos e é justamente essa a ordem que a
Dona Sintaxe vai ensinar aos visitantes do País da Gramática.

Na sua busca de um estilo pessoal, sem vícios, Lobato se entrega à história das palavras.
Não é por acaso que as crianças do Sítio visitam com vivo interesse a Dona Etimologia
e concluem que o povo muda a língua com os sus ditos erros, ou seja, que o erro, num
certo momento, passa a ser considerado uso. E, assim como certas palavras passam a
pertencer ao acervo de uma língua, outras morrem por desuso ou, pelo menos, se
transformam em arcaismos. Observemos esta conversa entre a palavra Bofé e as
crianças:

– Então, como vai a senhora?

– Mal, muito mal – respondeu a velha. Nos tempos de dantes fui moça das mais
faceiras e fiz o papel de ADVÉRBIO. os homens gostavam de empregar-me sempre que
queriam dizer EM VERDADE, FRANCAMENTE. Mas começaram a aparecer uns
advérbios novos, que caíram no goto das gentes e tomaram o meu lugar. Fui sendo
esquecida. Por fim, tocaram-me de lá do centro. “Já que está velha e inútil, que fica
fazendo aqui?” – disseram-me. “Mude-se para os subúrbios dos Arcaismos” e eu tive de
mudar-me para cá.

As palavras novas também são contempladas pelo escritor: numa carta ele emprega um
certo

neologismo e comenta que se arrepiara ao ouvi-lo pela primeira vez mas que depois
compreendera o seu valor expressivo. Emília, ao visitar os vícios da linguagem
encarcerados por Dona Sintaxe, revolta-se ao encontrar o Neologismo entre eles e o
solta.

– Não mexa, Emília – gritou Narizinho. Não mexa na língua que vovó fica
danada...

– Mexo e remexo! replicou a boneca batendo o pezinho –e foi e abriu a porta e


soltou o Neologismo, dizendo: Vá passear entre os vivos e forme quantas palavras
novas quiser.
Lobato é tão partidário do neologismo como recurso estilístico que inventa um, o verbo
josezar,

para indicar a atividade estafante do substantivo José a batizar todas as crianças que têm
esse nome.

E quando comenta que as traduções das obras de Grimm estão numa


linguagem muito lusitana e que é preciso abrasileirar a língua, não está muito longe da
atitude da Emília ao libertar das grades também o Provincianismo.

Tantas outras semelhanças se notam: Emília quer visitar a Dona Prosódia pois
errava muito na pronúncia e queria aprender. Lobato descobre certo dia, em 1909, ao
pesquisar em dicionários, que acentuava erradamente certas palavras: epifania, homilia,
índigo, liturgia, hílare e outras tantas.

também na acentuação gráfica os dois se aproximam: Emília concorda com a Ortografia


Simplificada, condenando por exemplo o uso do trema e do acento grave. Lobato,
mesmo nas cartas posteriores à reforma de acentuação, resiste marcando a crase através
do acento agudo.

Interessante é se observar, por fim, a atualidade das ponderações acerca da


relação linguagem/mundo. Monteiro lobato se interessa igualmente pela fazenda que
herdara do avô, pelo petróleo, por jogo de xadrez, pelas crianças, pela editora e pela
linguagem: estuda-a, discute-a com os amigos, luta para que ela seja limpa, nacional,
clara; não a quer acadêmica, não a quer rançosa; quer vê-la liberta de gramatiquices,
expressiva, atual, viva.

As suas personagens também “vivem” a língua: brincam de cortar as palavras,


arrancando-lhes a desinência para daí derivar outras.

As crianças do Sítio lidam com as palavras sem diferenciá-las das coisas.


Vejamos este diálogo entre Dona Sintaxe e Emília:

– [...] a boa ordem das palavras na frase ajuda a expressão do pensamento,


ensinava a Dona Sintaxe.

– A senhora tem toda a razão – concordou a boneca. Lá no sítio de Dona Benta o


Substantivo Nastácia também gosta de dar ordens a tudo, porque a ordem facilita as
coisas, diz ela.

E mais tarde, quando aprende que na mesóclise o pronome fica embutido no verbo, a
bonequinha

reflete: Tal qual tia Nastácia costuma fazer com os pimentões. Abre os coitados pelo
meio, tira as sementes e enfia dentro uma carne oblíqua. E, de repente, caindo numa
gargalhada: Estou me lembrando dos pimentões mesoclíticos que tia Nastácia faz sem
saber...
Através de toda a Emília no País da Gramática nota-se essa fusão de palavras
e coisas. Ao explicar á Dona Etimologia que o Quindim é africano, Emília lhe pergunta:
A senhora conhece a África? E Dona Etimologia: Sim, é uma palavra de origem latina,
ou melhor, puramente latina, porque não mudou.

E finalmente mais uma passagem que atesta bem que Lobato, através de suas
personagens, viveu a língua portuguesa: quando as crianças estavam no bairro do
refugo, viram uma praça muito maltratada, cheia de capim, sem calçamento nem
polícia, onde brincavam bandos de peraltas endiabrados. Eram as palavras da Gíria. Ao
conversar com algumas, todas muito malandras, Pedrinho por precaução abotoou o
paletó: A Gíria dos gatunos metia-lhe medo...

Bem, muito se poderia dizer sobre esse livro “delicioso”, nas palavras do
escritor Jorge Amado, mas vou encerrar aproveitando o último parágrafo da obra, logo
depois da Emília ter obrigado o pobre do Visconde de Sabugosa a devolver á língua
portuguesa o ditongo ão que ele roubara:
Meia hora mais tarde já estavam todos no sítio, contando ao Burro Falante o
maravilhoso passeio pelas terras da Gramática.

Sabemos que o Burro Falante era cultíssimo e que, portanto, tudo o que ele
terá ouvido das crianças já lhe seria muito conhecido. É nessa perspectiva que me valho
desse parágrafo para finalizar minha fala, já que, sem ele, ela deveria vir revestida de
desculpas por eu ter falado de Monteiro Lobato a seus conterrâneos e por ter falado de
língua e este grupo de lingüistas.

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