Você está na página 1de 19

Vírginia Woolf

MOMENTOS DE VIDA

f1
TRADUÇÃO E NOTAS Eugénia Antunes
.1.

to 5. 4
%;art writing rny

d& 5. .ighty five,

unhappy casô of
Há dois dias domingo, 16 de abril de 1939, para ser maís exata

Nessa —,

disse que, se não começasse a escrever as minhas memórias, em breve seria


3iCk of writing
demasiado velha; teria oitenta e cinco anos e estaria muito esquecida: basta
thrse monrings
lembrar o infeliz caso de Lady Strachey’. Uma vez que estou farta de escrever
tculti.s. In the a vida de Roger, talvez dedique duas ou três manhãs a elaborar um esboço.
igs cari r.m*mb,r; Enfrento várias dificuldades. Em primeiro lugar, a enorme quantidade de
rays in which coisas de que me consigo recordar; em segundo, as várias e diferentes manei
.r r.adr, ras que existem de escrever memórias. Como leitora assídua de memórias,
in to go through
conheço muitas formas diversas. Todavia, se começo a percorrê-las e a analisá
-las, bem como aos seus méritos e falhas, as manhãs não posso despender
and fau1ts

de mais do que duas ou três, no míximo


ro or th.1..
J
4 passar-se-ão. Então, sem parar
para escolher o meu caminho, segura de que ele acabará por surgir

e, caso —

ng to choose my isso não suceda, não importa começo: a primeira recordação.


—,

wl.d.ge that it will É de flores vermelhas e roxas sobre um fundo preto: o vestido da minha
.er—— 1 b.gin: •1 mãe; e ela estava sentada num comboio ou num autocarro, comigo ao colo.
Via, portanto, de perto as flores do vestido que ela usava; ainda consigo ver
ow.rs ou a black
o roxo, o vermelho e o azul, parece-me, contra o preto; acho que deviam ser
anémonas. Talvez fôssemos para St. Ives; se bem que, a julgar pela luz, devia
tting oither
ser de noite, portanto, o mais provável era que estivéssemos de regresso a
hsr ).ap.
Londres. Não obstante, por razões artísticas, é mais conveniente supor que
ing viry elos.; íamos para St. Ives, pois isso conduzirá à minha recordação seguinte,
.I t in1cRginst 1 que parece ser também a primeira, sendo, na realidade, a mais importante de
; todas as minhas recordações. Se a vida possui uma base sobre a qual se ergue,
robably , for from se é uma vasilha que se enche e enche e enche, então a minha vasilha ergue-se,
ming back to ondon.
sem dúvida, sobre esta recordação. A de estar deitada, meio adormecida, meio
hat we wera
A
Jane Maria Strachey (1840—1928), mãe de Lytton Strachey, feminista fervorosa e amante
Recottecrwns ofa Long L(fe, que, na verdade, foram bastante curtas da literatura. Na velhice escreveu Some
4 Athenaeum), o que sugerirá que já se teria esquecido de
(cerca de uma dfizia de páginas publicadas na revista Nation and
muita coisa.

MOMENTOS DE \TIDA 77
1
acordada, na cama do quarto das crianças, em St. Ives. A de escutar as ondas com os de outras pess
rebentarem, uma, duas, uma, duas, salpicando a praia; e rebentar, uma, duas, intensidade desta pril
uma, duas, por trás de um estore amarelo. A de ouvir o estore arrastar o a sensação, como a d
cordão pelo chão quando o vento o puxava para fora. A de estar deitada e uma uva e de ver atr
escutar a água e ver a luz e sentir: parece quase impossível que esteja aqui; de em parte, aos muitC

1
sentir o mais puro êxtase que sou capaz de conceber. foi muito grande. E
Poderia passar horas a tentar escrever isso como deveria ser escrito, a fim. de Lembro-me do escur
transmitir o sentimento que, mesmo neste momento, continua muito forte Mas fixando a mm
dentro de mim. Contudo, não seria bem-sucedida (a menos que tivesse uma
sorte fantástica); atrevo-me a dizer que apenas seria bafejada por tal sorte se
tivesse começado por descrever a própria Virginia.
E aqui me deparo com uma das dificuldades dos autores de memórias,
uma das razões pelas quais, embora eu tenha lido inúmeras, tantas fracassam.
Deixam de fora a pessoa a quem as coisas aconteceram. Tal deve-se ao facto
4,. qual havia uma parti
da minha mãe. A mi:
parede cresciam pass
de roxo, e botões ver
Se fosse pintora,
prateado e verde. H
de ser tão difícil descrever qualquer ser humano. Dizem então: «Isto é o que prateado das flores de
sucedeu», mas não descrevem como era a pessoa sobre quem recaem tais Pintaria um quadro
acontecimentos. E esses acontecimentos pouco valem a não ser que conheça lúcidas; pintaria for;
mos primeiro a pessoa por detrás deles. Quem era eu então? Adeline Virginia nítido. Tudo seria gr
Stephen, a segunda filha de Leslie e Julia Prinsep Stephen, nascida a 25 de ouvido; os sons atravi
janeiro de 1882, descendente de um grande número de pessoas, algumas das imagens. Som e
famosas, outras obscuras; nascida no seio de uma grande rede de conhecimen impressões. Quando
tos, nascida não de pais ricos, mas de pais remediados, nascida num mundo também os grasnido:
de finais do século xix, um mundo muito comunicativo, letrado, epistolar, -se-ia que o som ton
que apreciava fazer visitas e sabia exprimir-se; de tal maneira que, se quisesse o impede de ser aguc
dar-me a esse trabalho, poderia escrever muito aqui, não só sobre a minha refrear o som, deixá-.
mãe e o meu pai, mas também sobre tios e tias, primos e amigos. No entanto, azul e viscoso. O gra
ignoro quanto disso, ou que parte disso, me fez sentir o que senti no nosso duas, uma, duas —

quarto em St. Ives. Não sei até que ponto sou diferente dos demais. Esta é e se avolumava de r
outra das dificuldades do escritor de memórias. Contudo, para nos descrever retirando de tudo is
mos a nós mesmos fielmente, temos de ter algum termo de comparação; era A recordação segu
inteligente, estúpida, bonita, feia, apaixonada, fria? Em virtude, parcialmente, a St. Ives é muito

de nunca ter frequentado a escola, de jamais ter competido em nada com me acalenta; como:
crianças da minha idade, nunca pude comparar os meus dotes e defeitos muitos aromas ao n

78 VTRN;A WooLF
externa por trás da
com os de outras pessoas. Mas é claro que houve uma razão
que no fio do estore;
intensidade desta primeira impressão: as ondas e o berlo
a, de estar dentro de
a sensação, como a descrevo por vezes para mim mesm
transparente, devia-se,
uma uva e de ver através de uma película amarela semi
mudança de quarto
em parte, aos muitos meses passados em Londres. A
boio; e a agitação.
foi muito grande. E houve ainda a longa viagem de com
r.
Lembro-me do escuro, das luzes, o rebuliço da hora de deita
uma varanda, na
Mas fixando a minha atenção no quarto das crianças: tinha
to do meu pai e
qual havia uma partição, mas era adjacente à varanda do quar
roupão branco. Na
da minha mãe. A minha mãe ia às vezes para a varanda de
a de estrela, raiadas
parede cresciam passifloras; havia flores grandes, em form
s vazios.
de roxo, e botões verdes e volumosos, alguns cheios, outro
amarelo-pálido,
Se fosse pintora, pintaria estas primeiras impressões de
; o mar verde; e o
prateado e verde. Havia o estore de um amarelo desmaiado
o, semitransparente.
prateado das flores de maracujá. Pintaria um quadro esféric
que fossem trans-
Pintaria um quadro de pétalas curvas, de conchas, de coisas
sem um contorno
lúcidas; pintaria formas curvas, trespassadas pela luz, mas
ao mesmo tempo
nítido. Tudo seria grande e difuso, e o que fosse visto seria
não se distinguiriam
ouvido; os sons atravessariam esta pétala ou folha, sons que
destas primeiras
das imagens. Som e imagem parecem perfazer partes iguais
manhã cedo, ouço
impressões. Quando penso em mim, deitada na cama, de
grande altura. L)ir
também os grasnidos das gralhas a precipitarem-se de uma
, que o sustém, que
-se-ia que o som tomba através de um ar elástico, pegajoso
nd House parecia
o impede de ser agudo e nítido, O ar que pairava sobre Talla
se preso num véu
refrear o som, deixá-lo afundar-se lentamente, como se estives
das ondas uma,
azul e viscoso. O grasnido das gralhas faz parte do rebentar

o que a onda recuav a


duas, uma, duas e dos salpicos da água ao mesmo temp

, meio adormecida,
e se avolumava de novo, e eu ali deitada, meio acordada
retirando de tudo isso um êxtase que não consigo descrever.
e som pertencem
A recordação seguinte todas estas reminiscências de cor

reu mais tarde. Ainda


a St. Ives é muito mais forte e altamente sensual. Ocor
eiro; exalando

me acalenta; como se tudo estivesse maduro; zumbindo; soalh


que ainda hoje
muitos aromas ao mesmo tempo; e tudo formando um todo

MOMENToS DE VIDA 79
cena aqui e um som ali, disporei uma ficha na parede e escutarei o passado.
Evocarei o mês de agosto de 1890. Sinto que essa emoção forte deve deixar a
sua marca; e é apenas uma questão de descobrirmos como podemos ligar-nos
de novo a ela, para que possamos viver as nossas vidas de novo, desde o início.
Contudo, a singularidade destas duas fortes recordações é cada uma delas ter
sido muito simples. Quase não tenho consciência de mim mesma, mas apenas
da sensação. Sou unicamente o recipiente da sensação de êxtase, da sensação
de arrebatamento. Talvez isso seja próprio de todas as recordações de infância,
talvez explique a intensidade delas. Mais tarde, acrescentamos às sensações
muita coisa que as torna mais complexas e, em consequência, menos fortes;
ou, senão menos fortes, então menos isoladas, menos completas. Porém, em
vez de analisar esta afirmação, aqui fica um exemplo do que quero dizer: a
minha impressão acerca do espelho no vestíbulo.
Havia um pequeno espelho no vestíbulo de Talland House. Tinha, recordo-
1
-me, uma prateleira onde se encontrava uma escova. Pondo-me em bicos dos
pés, era capaz de ver o meu rosto refletido no espelho. Quando tinha seis anos,
ou sete, talvez, adquiri o hábito de ver-me ao espelho. Porém, apenas o fazia
se tivesse a certeza de estar sozinha. Tinha vergonha. Um forte sentimento de
culpa parecia estar naturalmente ligado a este gesto. Mas porquê? Ocorre-me
uma razão evidente: Vanessa e eu éramos o que então se apelidava de marias-
-rapaz, ou seja, jogávamos críquete, subíamos às pedras, trepávamos às árvores,
dizia-se que não ligávamos à roupa e coisas do género. Talvez, em resultado
disso, ser surpreendida a olhar-me ao espelho fosse ir contra o nosso código
de marias-rapaz. No entanto, creio que a vergonha que sentia possuía raízes
mais fundas. Sinto-me quase tentada a trazer à baila o meu avô, Sir James,
que certa vez fumou um cigarro, gostou, e por isso o deitou fora e nunca mais
fumou mais nenhum. Sinto-me quase inclinada a acreditar que herdei um
traço puritano, uma veia do Clapham Sect3. Em todo o caso, a vergonha de
olhar-me ao espelho manteve-se ao longo da vida, muito depois de ultrapas
sada a fase de maria-rapaz. Hoje em dia, não sou capaz de pôr pó de arroz em

no século xix, com sede em


Grupo de reformadores sociais, maioritariamente evangélicos, nascido no seio da Igreja de Inglaterra,
mais tarde, cunhou o termo Clapham Sect
Clapham. James Stephen, bisavô de Virginia, foi membro do grupo e foi ele quem, bastante
para designar o grupo.

N’lo M ENTOS L)E Vi $1


público. Tudo o que tenha que ver com roupa as provas, entrar numa sala
com um vestido novo

isso me ofendeu, de
ainda me assusta; ou, pelo menos, deixa-me enver
sentimento tão atón

gonhada, constrangida, desconfortável. «Oh, ser capaz de correr


pelo jardim o recordo. Isto parec
com um vestido novo, como Julian Morrell4», pensei para mim
mesma, não partes do corpo
há muitos meses, em Garsington, quando Julian abriu um embrulho —

, pôs um lhes toquem há d


vestido novo e correu de um lado para o outro, como uma lebre.

Contudo, 25 de janeiro de 188


a feminilidade era um traço muito forte na nossa família. Éramo
s famosas teve de enfrentar inst
pela nossa beleza; a beleza da minha mãe e a beleza de Stella foram
para mim, E isto lança luz nã
desde que me lembro, uma fonte de orgulho e prazer. O que
terá sido então que abordei na prim
que produziu em mim este sentimento de vergonha, se não ter
herdado um sobre a pessoa à qual
instinto contrário? O meu pai era espartano, asceta, puritano.
Não possuía, mente complicada. \
julgo eu, qualquer sensibilidade para a pintura, não tinha ouvido
para a música ao máximo por expli
nem tão-pouco para a sonoridade das palavras. Isso leva-me
a pensar que o espelho, apenas con
meu diria «o nosso», se soubesse o suficiente acerca de Vanessa, Ihob
ye

Adrian, mas a verdade é que sabemos muito pouco, inclusive haver outras; não ci
acerca de irmãos de um acontecimen!
e irmãs isto leva-me a pensar que o meu amor natural pela beleza
foi
—,

reprimido por algum medo ancestral. Isto, porém, não me impe tenho razões para m
diu de sentir aquilo que apelidam
êxtases e arrebatamentos espontânea e intensamente, sem
qualquer vergonha acontecimentos e de
nem o menor sentimento de culpa, desde que não estives
sem relacionados esta por conhecer. P
com o meu próprio corpo. Deteto assim outra componente
na vergonha que relacionado com o e
sentia ao imaginar ser apanhada a olhar-me ao espelho
do vestíbulo. Uma espelho quando
outra recordação, também do vestíbulo, poderá ajudar a explica
r isto. Junto à por cima do meu or
porta da sala de jantar havia uma prateleira que servia para
pousar os pratos. se aconteceu de ven
Certa vez, quando eu era muito pequena, Gerald Duck
worth pegou-me ao qualquer coisa se de
colo, sentou-me nela e começou a explorar o meu corpo. Record
o a sensação vivo? Não posso ter
transmitida pela sua mão deslocando-se por baixo da minha
roupa, avançando espelho, fosse ele sor
firme e perseverantemente para baixo, descendo cada vez
mais. Recordo o Estas são então a]
meu desejo de que parasse com aquilo; o modo como me
retesei e contorci que, enquanto relato
quando a mão dele se aproximou das minhas partes íntima
s. Todavia, ele não nos lembramos
não parou. Explorou as minhas partes íntimas também. Lem
bro-me de que Se conseguisse recoi
descrever, pelo menc
filha de Lady Ottoline (protetora das artes e, mais tarde, anfitriã
Morrei!. Garsington Manor era a casa da família, regular do Grupo de Bloomsbury) e do político liberal Phillip Infelizmente, apenas
perto de Oxford.
motivo para que um

82 VIRcINJ WOOLF
isso me ofendeu, de não ter gostado: qual é a palavra certa para descrever um
sentimento tão atónito e complexo? Deve ter sido forte, uma vez que ainda
o recordo. Isto parece revelar que um sentimento em relação a determinadas
partes do corpo — que não devem ser tocadas, que é errado permitir-se que
lhes toquem — há de ser instintivo. Prova que Virginia Stephen não nasceu a
25 de janeiro de 1882, mas há muitos milhares de anos e que, desde o início,
teve de enfrentar instintos adquiridos por milhares de antecessoras, no passado.
E isto lança luz não apenas sobre o meu próprio caso, mas sobre o problema
que abordei na primeira página: o motivo por que é tão dificil fazer um relato
sobre a pessoa à qual as coisas acontecem. E evidente que a pessoa é extrema
mente complicada. Veja-se o caso do espelho. Conquanto me tenha esforçado
ao máximo por explicar porque tinha vergonha de olhar para o meu rosto ao
espelho, apenas consegui descobrir algumas razões possíveis para tal; poderá
haver outras; não creio que tenha descoberto a verdade; contudo, trata-se
de um acontecimento simples, que me ocorreu a mim, pessoalmente, e não
tenho razões para mentir acerca dele. Apesar de tudo isto, as pessoas escrevem
aquilo que apelidam de «vidas» de outras pessoas; isto é, reúnem uns quantos
acontecimentos e deixam de fora a pessoa a quem estes sucederam, ficando
esta por conhecer. Permitam-me que acrescente um sonho, pois talvez esteja
relacionado com o episódio do espelho. Sonhei que estava a olhar-me a um
espelho quando uma cara horrível (a cara de um animal) surgiu de repente
por cima do meu ombro. Não tenho a certeza se se tratou de um sonho ou
se aconteceu de verdade. Estaria eu a ver-me ao espelho, um dia, quando
qualquer coisa se deslocou atrás de mim, levando-me a crer que seria um ser
vivo? Não posso ter a certeza. No entanto, nunca esqueci o outro rosto ao
espelho, fosse ele sonho ou realidade, nem que o sucedido me assustou.
Estas são então algumas das minhas primeiras recordações. Mas é claro
que, enquanto relato da minha vida, são enganadoras, porque as coisas de que
não nos lembramos são igualmente importantes, talvez até mais importantes.
Se conseguisse recordar um dia inteiro da minha infância, seria capaz de
descrever, pelo menos superficialmente, como era a minha vida nessa altura.
Infelizmente, apenas nos recordamos do que é excecional; e parece não haver
motivo para que uma coisa seja excecional e outra não. Porque terei esquecido

.MDMENros DE VIDA 83
tantas coisas que, pensando bem, terão sido mais memoráveis do que
aquelas passavam-Se uma ai
de que me recordo? Porque recordo o zumbido das abelhas no jardim
quando sem que nada o flzess
ia a caminho da praia, e esqueci por completo que o meu pai me lançav
a nua violento, uma coisa t
ao mar? (Mrs. Swanwick diz que o presenciou.)
Isto conduz a uma digressão, que talvez possa explicar um pouco exemplos. O primeir
a minha ao outro. Ao erguer c
maneira de pensar, e porventura a de outras pessoas. Amiúde, quando
me outra pessoa? Deixei
encontro a escrever um dos meus supostos romances, sou acometida
por este me esmurrasse a mm
mesmo problema; ou seja, como descrever o que, na minha gíria
privada, desesperada. Foi cor
apelido de «não-presença». Cada dia inclui muito mais não-presença
do que da minha própria ir
presença. Ontem, por exemplo, terça-feira, dia 1$ de abril, foi por
acaso um deprimida. O segun
bom dia; acima da média em «presença». Foi ótimo; gostei de escrev
er estas contemplava o cante
primeiras páginas; senti algum alívio da pressão de escrever sobre
Roger; uma planta com urr
caminhei até Mount Misery e ao longo do rio; e, tirando a maré estar
vazia, que a flor em si fazia
o campo, que observo sempre com atenção, exibia as cores e sombr
as que isso era a flor verdadt
aprecio — lá estavam os salgueiros, recordo-me, todos emplumados, verde-
-claros e roxos contra o fundo azul. Também li Chaucer com prazer comigo achando prc
e comecei caso também se pass
um livro (as memórias de Madame de La Fayette) que captou o meu
interesse. estado em St. Ives e 1
Estes momentos isolados de presença, contudo, estiveram integra
dos num fosse servido, quand
número muito maior de momentos de não-presença. Já esqueci
os assuntos que Mr. Valpy se m:
de que Leonard e eu falámos ao almoço, e ao lanche; não obstan
te tenha caminhando pelo ca.
sido um dia bom, essa virtude estava como que envolvida numa
espécie de relacionada com o hc
algodão em rama. É sempre assim. Uma grande parte de cada dia
não é vivida Fiquei ali estarrecida
conscientemente. Caminhamos, comemos, vemos coisas, lidamos
com o que árvore (era uma noit
tem de ser feito; o aspirador avariado; decidir o jantar; escrever instruç
ões para sem que nada pudes
Mabel; lavar; preparar o jantar; encadernar. Quando o dia é mau,
a proporção conseguia escapar. O
de não-presença é muito maior. Tive um pouco de febre na seman
a passada; Estes são três exer
o dia foi quase todo de não-presença. O verdadeiro romancista
consegue, de cia, ou melhor, eles
algum modo, transmitir ambos os tipos de presença. Creio que
Jane Austen os pus por escrito pe
é capaz de fazê-lo; bem como Troliope; talvez Thackeray, Dicken
s e Tolstói me apercebera. Dois
também. Nunca consegui fazer ambas as coisas. Tentei, em Noite
e Dia e em O outro, pelo conti
Os Anos. Mas vou deixar o lado literário de parte, por enquan
to. acerca da flor, «isto
Em criança, os meus dias continham, tal como acontece agora,
uma grande que guardara na mii
quantidade desse algodão em rama, desta não-presença. Em St.
Ives, as semanas nela e explorá-la. Pe

84 VIR(;INIA WOOLI

•1
passavam-se, uma após a outra, sem que nad
a fizesse mossa em mim. Então,
sem que nada o fizesse prever, acontecia qualqu
er coisa que produzia um choque
violento, uma coisa tão intensa que a recordava
para o resto da vida. Darei alguns
exemplos. O primeiro: estava a lutar com Thoby
na relva. Esmurrávamo-nos um
ao outro. Ao erguer o punho cerrado para lhe bater
, ocorreu-me: porquê magoar
outra pessoa? Deixei cair a mão de imediato,
fiquei ali parada e permiti que ele
me esmurrasse a mim. Recordo-me da sensação
. Foi um sentimento de tristeza
desesperada. Foi como se tivesse tomado cons
ciência de uma coisa terrível; e
da minha própria impotência. Esgueirei-me
dali, sentindo-me horrivelmente
deprimida. O segundo exemplo também oco
rreu no jardim de St. Ives. Eu
contemplava o canteiro junto à porta da frent
e; «Isto é o todo», disse. Observava
uma planta com uma proliferação de folhas;
e pareceu-me subitamente claro
que a flor em si fazia parte da terra; que um círcu
lo rodeava o que era a flor; e
isso era a flor verdadeira; parte terra; parte flor.
Foi um pensamento que guardei
comigo, achando provável que me viesse a ser
muito útil, mais tarde. O terceiro
caso também se passou em St. Ives. Umas pess
oas de sobrenome Valpy haviam
estado em St. Ives e partido, entretanto. Cer
ta noite, esperávamos que o jantar
fosse servido, quando, não sei como, ouvi
o meu pai ou a minha mãe dizer
que Mr. Valpy se matara. Depois, só me lem
bro de estar no jardim, à noite,
caminhando pelo carreiro junto à macieira.
Pareceu-me que a macieira estava
relacionada com o horror do suicídio de Mr.
Valpy. Não consegui passar por ela.
Fiquei ali estarrecida, olhando para as rugas
verde-acinzentadas do tronco da
árvore (era uma noite enluarada) num trans
e aterrorizado. Senti-me arrastada,
sem que nada pudesse fazer, para um poço
de desespero absoluto do qual não
conseguia escapar. O meu corpo parecia paralisad
o.
Estes são três exemplos de momentos excecion
ais. Relato-os com frequên
cia, ou melhor, eles vêm à superfície inesper
adamente. No entanto, agora que
os pus por escrito pela primeira vez, dou-me con
ta de uma coisa de que nunca
me apercebera. Dois destes momentos culminar
am num estado de desespero.
O outro, pelo contrário, acabou num esta
do de satisfação. Quando disse,
acerca da flor, «isto é o todo», senti que tinh
a feito uma descoberta. Senti
que guardara na minha mente uma coisa à
qual devia voltar, para ponderar
nela e explorá-la. Percebo agora que isso marc
ava uma diferença profunda.

MOMENTOS DE \IDA
85
a que chamamos mundo. Porém, não existe nenhum Shak
espeare, não existe
nenhum Beethoven; com toda a certeza e enfaticamente,
não existe nenhum
Deus; nós somos as palavras; somos a música; somos a coisa
em si mesma. E
eu constato isto quando sofro um choque.
Esta minha intuição é tão instintiva que parece ter-me sido concedida

e não produzida por mim moldou sem dúvida a minha vida desde o

momento em que vi a flor no canteiro junto à porta, em


St. Ives. Se quisesse
pintá-la, teria de encontrar alguma coisa uma bitola, digamos assim

que representasse esse conceito. Tal demonstra que a vida


não está limitada
ao nosso corpo e ao que dizemos e fazemos; vivemos
constantemente em
relação a determinadas bitolas ou conceitos subjacentes.
O meu é que existe
um padrão escondido atrás do algodão, e esse conc
eito afeta-me todos os
dias. Demonstro esse facto agora, passando a manhã a escrev
er, quando podia
passear, gerir uma loja ou aprender a fazer qualquer coisa
que venha a ser útil
no caso de vir a haver guerra. Sinto que, escrevendo,
faço algo muito mais
necessário do que qualquer outra coisa.
Todos os artistas, suponho, sentem mais ou menos isto.
É um dos elemen
tos obscuros da vida que nunca foi muito discutido.
É deixado de fora em
quase todas as biografias e autobiografias, inclusive de artis
tas. Porque passou
Dickens toda a vida a escrever histórias? Qual seria
o seu conceito? Men
ciono Dickens em parte porque me encontro de mom
ento a ler Nichotas
Nickteby, e, por outro lado, porque ontem, durante o
meu passeio, me ocorreu
que estes meus momentos de presença formavam uma
espécie de andaime
em pano de fundo; constituíam a parte invisível e silen
ciosa da minha vida em
criança. Contudo, em primeiro plano, havia, como é natu
ral, pessoas e estas
assemelhavam-se muito às personagens de Dickens. Eram
caricaturas, eram
muito simples e intensamente vivas. Podiam ser dese
nhadas com três traços
de caneta, soubesse eu desenhar. Dickens deve o seu espa
ntoso poder de dar
vida às personagens ao facto de as ter visto como uma crian
ça as vê; como eu vi
Mr. Wolstenholme5, C. B. Clarke e Mr. Gibbs.

‘Augustus Carmichaci, a personagem de Rumo ao farol,


foi inspirada nele; Wolstenholme eta amigo de Lestie,
Cambridge. dos tempos de

MOMENTOS DE VII)A 87
Nomeio estas três pessoas porque todas elas morreram quando eu era avançava de uma c
criança. Logo, nunca foram alteradas. Vejo-as precisamente como as via na na poltrona junto
altura. Mr. Wolstenholme era um senhor muito idoso que todos os verões que ela empurrava
passava uns dias connosco. Era moreno; tinha barba, olhos pequeninos e desafinada: «Ron
que encimavam as bochechas rechonchudas e acomodava-se num cadeirão sob o meu peso e
de palhinha como se este tivesse sido o seu ninho. Costumava sentar-se Apenas vinha de vi
nesse cadeirão a fumar e a ler. Tinha uma única peculiaridade: quando frasco de mel a Ad
comia tarte de ameixa, esguichava o molho pelo nariz, ficando com uma e constrangia-me
mancha roxa no bigode grisalho. Era o suficiente para nos deleitar, infalivel a sua visita aceitáv
mente. Chamávamos-lhe «o Lanudo». Caracterizando-o um pouco melhor, autocarro encarnac
1
recordo-me de que tínhamos de ser amáveis com ele, porque o idoso não era pieira; e as amas c
feliz em casa, de que era muito pobre, se bem que certa vez tenha dado meia morreu. É tudo o
coroa a Thoby, e de que tinha um filho que se afogara na Austrália, e sei totalmente real, sei
também que era um grande matemático. Nunca disse uma palavra em todo o
tempo que o conheci, mas ainda hoje me parece uma personagem completa
e sempre que penso nele desato a rir.
‘1 2DEMAIO... Re
para estas notas. 1
Mr. Gibbs era porventura menos simples. Usava um anel de gravata, tinha o suficiente do pr
uma cabeça calva e benevolente, era seco, metódico, escrupuloso e tinha pregas as duas pessoas, o
de pele sob o queixo. Fazia o nosso pai gemer: «Porque não se vai embora, mais, este passado
porque não se vai embora?» E ofereceu-me, a mim e a Vanessa, duas peles hoje não escreverí
de arminho com aberturas ao meio das quais jorrava uma riqueza infinita: porto, será melhe
rios de prata. Também me recordo dele deitado na cama, moribundo, rouco, escrever aos arran
de camisa de noite, mostrando-nos gravuras de Retzsch. A personagem de não tenho energia
Mr. Gibbs também me parece completa e diverte-me muito. arte metódica e
Quanto a C. B. Clarke, era um velho botânico, e certa vez disse ao meu pai: juntas perfazem ui
«Todos vocês, jovens botânicos, gostam dos fetos do género Osmunda.» Tinha arte, tente compoi
uma tia de oitenta anos que fez um passeio por New Forest. É tudo — é tudo Mas, continuan
o que tenho a dizer acerca desses três cavalheiros idosos. Mas como eram reais! porque morreram
Como ríamos deles! Que papel importante desempenharam nas nossas vidas! alterado como eu
Vem-me à memória mais uma caricatura; esta, contudo, tingida pela compai Lushingtons, que
xão. Penso em Justíne Nonon. Era muitíssimo velha. Do seu queixo comprido traços e, por fim,
e ossudo eriçavam-se pequenos pelos. Era corcunda e deslocava-se como uma sou capaz de ver
aranha, tateando o caminho com os seus dedos longos e nodosos, à medida que os vi há um par d

88 VIRGINTA WOOLF
avançava de uma cadeira para outra. Passava a maior parte do tempo sentada
na poltrona junto à lareira. Eu costumava sentar-me num dos seus joelhos,
que ela empurrava para cima e para baixo, cantarolando numa voz roufenha
e desafinada: «Ron, ron, ron et pton, plon, plon...’>, e no final o joelho cedia
sob o meu peso e eu caía ao chão. Era francesa; estivera com os Íhackerays.
Apenas vinha de visita. Vivia sozinha em Shepherd’s Bush e levava sempre um
frasco de mel a Adrian. Eu tinha a impressão de que ela era muitíssimo pobre
e constrangia-me que ela levasse o mel, pois achava que o fazia para tornar
a sua visita aceitável. Ela dizia: «Vim na minha caleche», o que significava o
autocarro encarnado. Também por isto sentia pena dela; e ainda porque tinha
pieira; e as amas diziam que ela não viveria muito mais tempo; e em breve
morreu. É tudo o que sei acerca dela, mas recordo-a como se fosse uma pessoa
totalmente real, sem que lhe faltasse nada, como os três idosos.

2 DE MAIO... Registo a data, pois julgo ter encontrado uma forma possível
para estas notas. Isto é, para fazê-las abranger o presente, ou, pelo menos,
o suficiente do presente para servir de base de apoio. Seria interessante pôr
as duas pessoas, o eu de agora e o eu daquela altura, em contraste. Além do
mais, este passado é muito afetado pelo momento presente. O que escrevo
hoje não escreveria daqui a um ano. Porém, não consigo levar isso a bom
porto, será melhor deixar o meu intento entregue ao acaso, continuar a
escrever aos arrancos, como forma de descansar de Roger. Presentemente,
não tenho energia para despender na laboriosa tarefa de fazer uma obra de
arte metódica e bem enunciada, em que uma coisa se segue à outra e todas
juntas perfazem um todo. Porventura um dia, desobrigada de fazer obras de
arte, tente compor isto.
Mas, continuando, os três idosos e a senhora estão completos, dizia eu,
porque morreram quando eu era criança. Nenhum deles viveu para ser
alterado como eu me alterei, como outros, por exemplo os Stillmans ou os
Lushingtons, que continuaram vivos e foram aumentados, ganharam novos
traços e, por fim, ficaram incompletos, O mesmo se aplica aos lugares. Não
sou capaz de ver os Kensington Gardens como os via em criança, porque
os vi há um par de dias, numa tarde fria em que a luz fria e amarelada de

MOMENTOS DE 89
uma saraivada emprestava às cerejeiras um ar assustador. Sei que eram muito passado. Isto é, qua
maiores em 1890, quando eu tinha sete anos, do que são agora. Por um lado, eles mesmos nos dis
porque não estavam ligados ao Hyde Park. Agora posso ir de um para o outro. o esqueleto de um
Vamos de automóvel e deixamo-lo junto ao novo quiosque. Na altura havia charcos, pois, no nc
o Broad Walk, o Round Pond e o Flower Walk. Nesse tempo — tentarei O pântano tinha si
regressar a essa altura havia dois portões, um em frente a Gloucester Road,

lamacento, e para 1
o outro em frente ao Queen’s Gate. Junto a cada portão sentava-se uma idosa. não podia deixar d
A velha do Queen’s Gate era uma figura alta e emaciada, com uma cara que brejo de Halestown
lembrava um bode, ictérica e bexigosa. Vendia frutos secos e atacadores, se com raízes bolbosa
não me engano. E Kitty Maxse disse a respeito dela: «Coitada, é a bebida transversalmente. 7
que a deixa assim.» Estava sempre sentada, embrulhada num xaile e, no meu como suportes de c;
entender, assemelhava-se tenuemente à minha avó, sendo uma espécie de St. Ives, sempre em
versão degradada desta. A minha avó também tinha o rosto comprido, mas que retirava de pisa
usava um xaile muito macio, como uma sobremesa de tapioca, que punha lhadas pelo Flower
pela cabeça e prendia com uma pregadeira de ametista engastada em pérolas. praia. Por outro lad
A outra idosa era roliça e atarracada. A ela tinha preso um bamboleante aglo que fica no camini
merado de balões. Segurava aquela massa ondeante, sempre em movimento e exposta; e a raiz est
altamente cobiçável, por um cordel. Brilhavam perante os meus olhos, sempre mãos, pois costum
encarnados e roxos, como a flor no vestido da minha mãe; e ondeavam Enquanto camil
sempre no ar. Por um péni, ela destacava um da massa mole e bojuda e passeios invernais,
eu afastava-me com ele na mão, dançando. Também ela usava um xaile e o seu sempre no mesmo]
rosto era enrugado, como os balões ficavam no quarto das crianças, quando de Jim Joe e de H:
duravam a ponto de chegar inteiros a casa. Penso que a ama e Sooney falavam animais e aventura
com ela, mas nunca ouvi o que ela dizia. As anémonas, os ramalhetes azuis e de Jim Joe e Harry
roxos que agora se vendem, fazem-me sempre recordar aquele outeiro trémulo jardim de Talland
de balões junto ao portão dos Kensington Gardens. viviam no monte d
Subíamos então o Broad Walk. O Broad Walk tinha uma característica como me lembro
particular: quando o percorríamos pela primeira vez, regressados de St. Ives, pelos Kensington (
insuhávamo-lo sempre; aquilo não era definitivamente uma colina, dizía grande parte do rei
mos. Aos poucos, à medida que as semanas passavam, a colina ia-se tornando
cada vez mais íngreme, até que, chegado o verão, era de novo uma colina. 6 Referência ao brejo de Ha
O pântano, como chamávamos ao terreno abandonado por trás do Flower 7James Russeli Lowell (181
Walk, possuía, pelo menos para Adrian e para mim, o mesmo encanto do conheceu numa viagem à Améric
Virginia.

90 VIRGINJÁ \VOOLF
passado. Isto é, quando Nessa e Thoby eram pequenos, aquilo era, segundo
eles mesmos nos disseram, um verdadeiro pântano; ali havia sido encontrado
o esqueleto de um cão. E achávamos que devia estar coberto de juncos e
charcos, pois, no nosso entender, o cão estava esfomeado e morrera afogado.
O pântano tinha sido drenado na nossa época, mas o terreno continuava
lamacento, e para nós tinha sempre um passado. Comparávamo-lo, como
não podia deixar de ser, com o brejo de Halestown6, perto de St. Ives. O
brejo de Halestown, onde cresciam as osmundáceas e aqueles fetos cerrados
com raízes bolbosas que tinham árvores marcadas nelas, se as cortássemos
transversalmente. Todos os outonos levava algumas para casa, usando-as
como suportes de caneta. Era natural comparar os Kensington Gardens com
St. Ives, sempre em detrimento de Londres, é claro. Esse era um dos prazeres
que retirava de pisar as conchas que de vez em quando encontrávamos espa
lhadas pelo Flower Walk. Tinham pequenas nervuras, como as conchas da
praia. Por outro lado, a enorme árvore era ela mesma; e continua lá, a árvore
que fica no caminho para o Speke Monument, que tem uma grande raiz
exposta; e a raiz está como que polida, em parte devido à fricção das nossas
mãos, pois costumávamos trepá-la.
Enquanto caminhávamos, para mitigar a monotonia dos incontáveis
passeios invernais, inventávamos histórias, longas, muito longas, retomadas
sempre no mesmo ponto e acrescentadas por cada um, à vez. Havia a história
de um Joe e de Harry Hoe; acerca de três irmãos que tinham rebanhos de
animais e aventuras já esqueci quais. Mais uma vez, contudo, a história

de Jim Joe e Harry Hoe era uma história de Londres; e inferior à história do
jardim de Talland House, sobre Beccage e Hollywinks, espíritos do mal que
viviam no monte do lixo e desapareciam por um buraco na sebe de escalónia,
como me lembro de ter contado à minha mãe e a Mr. Lowell7. Os passeios
pelos Kensington Gardens eram aborrecidos. A não-presença compunha uma
grande parte do tempo que passávamos em Londres, Os passeios, dois ao dia

6 Referência ao brejo de Halsetown, que os Stephen costumavam apelidar de brejo de Halesrown.


7James Russeil Lowell (1819—1891), poeta, editor, critico e diplomata norte-americano; era amigo de Leslie Stephen, que o
de
conheceu numa viagem à América durante a Guerra Civil. Os dois tornaram-se táo amigos que Leslie o convidou para padrinho
Virginia.

MOMENTOS DE VIDA 91
prendemos o Shag a uma grade e umas crian
ças foram dizer ao guarda do
parque que nós éramos cruéis; no entanto, as histó
rias não eram, na altura,
muito emocionantes, não obstante ajudassem
a quebrar a monotonia dos
passeios eternos pelos Kensington Gardens.
Que restou então que fosse interessante? Mais uma
vez, aqueles momentos
de presença. Recordo sempre dois. Houve o
momento da poça de água no
carreiro, em que, sem qualquer razão aparente,
tudo se tornou subitamente
irreal; fiquei em suspenso; não podia saltar por
cima da poça; tentei tocar
em qualquer coisa.., O mundo inteiro torno
u-se irreal. A seguir, o outro
momento em que o rapaz palerma surgiu de repe
nte com a mão estendida,
miando, de olhos semicerrados, orlados de verm
elho; e eu, sem dizer uma
única palavra, horrorizada, despejei na mão
dele um saco de caramelos
russos. Mas não ficou por ali, pois naquela noite
, no banho, o horror mudo
apossou-se de mim. Mais uma vez, aquela triste
za desesperançada, o colapso
que descrevi anteriormente; como se fosse um
ser passivo sob o golpe de
um martelo de forja; exposta a toda uma avala
ncha de significado que se
amontoara e desabara sobre mim, desprotegida,
sem nada com que pudesse
defender-me dela, pelo que me encolhi na minh
a extremidade da banheira,
imóvel. Não era capaz de explicar o sucedido;
não disse nada, nem mesmo a
Nessa, que se esfregava com a esponja na outra
ponta da banheira.
Ao recordar os Kensington Gardens, conquant
o consiga recuperar episó
dios, muitos mais do que a paciência me perm
ite descrever, não sou capaz
de relembrar, excetuando aos soluços, a perspetiva
, as proporções do mundo
exterior. Quer-me parecer que uma criança
deve ter um ponto de visto
curioso; é este que lhe permite ver um balão
ou uma concha com extrema
nitidez; sou ainda capaz de ver os balões, azuis
e roxos, e as nervuras nas
conchas; porém, estes pontos estão contidos em
amplos espaços vazios. Quão
vasto, por exemplo, era o espaço sob a mesa
do quarto das crianças! Vejo-o
ainda como um enorme espaço escuro, com
a toalha pendendo em pregas
na periferia, à distância; e eu vagueando por ali
e encontrando Nessa. «Os
gatos pretos têm cauda?», perguntou-me ela
e eu disse: «Não», e senti-me
orgulhosa, porque ela me tinha feito uma perg
unta. Depois deambulámos
de novo por aquele vasto espaço. O quarto de
dormir também era enorme.

MOMENTOS DE VIDA 93
No inverno, esgueirava-me até lá antes da hora de deitar para espreitar o. pequeno ser; é prec
fogo. Ansiava por vê-lo amortiçado, pois amedrontava-me que continuasse o pequeno ser impt
a arder depois de nos deitarmos. Receava aquela chama que tremeluzia nas pudesse detê-lo ou
paredes, mas Adrian apreciava-a; e para agradar a ambos, a ama punha uma empurrada para em
toalha dobrada sobre o guarda-fogo; mas eu não conseguia deixar de abrir os desenrolar-se, os bc
olhos, e lá estava muitas vezes a chama brwculeante; e eu olhava-a e olhava-a as imagens demasia
e não conseguia dormir e, para ter companhia, dizia: «Que disseste, Nessa?», passou e foi alterad
embora ela já estivesse a dormir, para acordá-la e escutar a voz de alguém. um bebé, que apen
Estes foram os primeiros medos; pois, mais tarde, quando Thoby foi para a fundo preto, na cria
escola e Nessa levava Jacko, o macaco dele, consigo para a cama, assim que eu senti no dia 5 de
a porta se fechava começavam as histórias. A história começava sempre assim: exatos o dia em
—,

«Clémont, minha querida, disse Mrs. Dilke», e prosseguia com relatos tolos Isto demonstra (

acerca da família DiIke9 e de Miss Rosalba, a precetora; que haviam escavado meu esboço, se enc
o chão e descoberto sacas de ouro, que davam banquetes grandiosos e comiam paixões, apegos (n
ovos estrelados «quase estorricados», pois a riqueza dos Dilkes na vida real, de mês para mês) -

comparada com as nossas modestas posses, impressionava-nos. Reparávamos consciência, a outra


na quantidade de roupa nova que Mrs. Dilke usava e que raramente a minha que terminaram n2
mãe comprava um vestido novo. então devia ser fáci
eu tinha treze anos.
Muitas cores garridas, muitos sons diferentes, alguns seres humanos, carica impressões posteric
turas, humor; vários momentos de presença violentos, incluindo sempre um teoria, embora váli
círculo que rodeava a cena em que estes ocorriam: e todos eles circundados Desmorona-se de
por um vasto espaço esta é uma descrição visual aproximada da infância.
— a explicar por que 1
Esta é a forma que lhe dou e o modo como me vejo a mim mesma enquanto os meus sentimentf
criança, andando sem destino naquele espaço temporal que se estendeu entre Até aos meus qua
1882 e 1895. Podia compará-lo a um enorme salão, com janelas que permi Rumo ao FaroP°, m
tem a entrada de luzes estranhas; e murmúrios e espaços de silêncio profundo. dar-me a esse traba
Contudo, de alguma maneira, nesse quadro é preciso incorporar também a de ouvir a sua voz.
sensação de movimento e mudança. Nada permanecia estável durante muito me ocupava das m
tempo. É preciso captar a sensação de tudo a aproximar-se e depois a desa que, ao fim e ao c
parecer, aumentando, diminuindo, passando a diferentes velocidades pelo de qualquer pessoa

‘Vizinhos dos Stephens. ° Começou a ser escrito ei

94 VIRGINIA WOOLF
pequeno ser; é preciso ficar com a impressão que impulsionava a criança,
o pequeno ser impelido pelo crescimento das suas pernas e braços, sem que
pudesse detê-lo ou mudá-lo, compelida do mesmo modo que uma planta é
empurrada para emergir da terra, a elevar-se até o pedúnculo crescer, a folha
desenrolar-se, os botões incharem. Isso é o indescritível, o que torna todas
as imagens demasiado estáticas, pois, mal dizemos isto foi assim, e tudo já
passou e foi alterado. Como deve ser enorme a força da vida que transforma
um bebé, que apenas consegue distinguir um borrão azul e roxo sobre um
fundo preto, na criança que treze anos mais tarde é capaz de sentir tudo o que
eu senti no dia 5 de maio de 1895 faz agora quarenta e quatro anos, quase

• exatos —, o dia em que a minha mãe morreu.


Isto demonstra que, de entre as inumeráveis coisas deixadas de fora no
meu esboço, se encontram as mais importantes aqueles instintos, afetos, —

paixões, apegos (não existe uma só palavra para descrevê-los, pois mudam
de mês para mês) que me uniram, creio, desde o primeiro momento de

consciência, a outras pessoas. Se fosse verdade, como acima disse, que as coisas
que terminaram na infância se descrevem facilmente por serem completas,
então devia ser fácil dizer o que sentia pela minha mãe, que morreu quando
eu tinha treze anos. Deveria ser capaz de vê-la completamente inalterada por
impressões posteriores, tal como vi Mr. Gibbs e C. B. Clarke. No entanto, a
teoria, embora válida para eles, fracassa totalmente no que a ela diz respeito.
Desmorona-se de uma maneira curiosa, que explicarei, pois talvez ajude
a explicar por que me é tão estranhamente difícil hoje em dia descrever tanto
os meus sentimentos por ela como a ela mesma.
Até aos meus quarenta anos poderia precisar a data vendo quando escrevi

Rumo ao FaroP°, mas a informalidade com que aqui escrevo não me impele a
dar-me a esse trabalho a presença da minha mãe obcecava-me. Era capaz
—,

de ouvir a sua voz, de vê-la, de imaginar o que ela faria ou diria enquanto
me ocupava das minhas tarefas diárias. Era uma dessas presenças invisíveis
que, ao fim e ao cabo, desempenham um papel muito importante na vida
de qualquer pessoa. Esta influência (e com isto quero dizer a consciência de

Começou a ser escrito em 1925, tinha Virginia quarenta e três anos, e foi editado dois anos mais tarde.

MOMENTOS DE VIDA 95

Você também pode gostar