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© 1981 – LOU CARRIGAN

Publicado no Brasil pela Editora Monterrey Ltda.


Título original: “Los Dueños Del Sol”
Tradução de Luiz Osvaldo Cunha - Capa de Benicio
Digitalizado por Eduardo Pinheiro Neto
® 400531/531222
PRÓLOGO
Uma bala para “Baby”

A senhorita Gertrude Mc Mahon subiu calmamente a


escada que levava ao segundo andar do palacete onde se
realizava a importante reunião. Reunião que acabara há um
minuto, apenas. Os convidados retiravam-se em seus
superconfortáveis e silenciosos automóveis. A senhorita Mc
Mahon aceitara o convite amável do anfitrião para passar ali
a noite. Era tarde demais para ir ao aeroporto e conseguir
passagem com destino a Los Angeles.
A senhorita Mc Mahon chegou ao pavimento destinado
aos quartos de dormir e encaminhou-se para a porta do que o
gentilíssimo Jefferson De Vries lhe indicara. Parou um
instante e suspirou. Parecia terrivelmente cansada. Talvez
não tivesse o hábito de se deitar tão tarde. Ou talvez fosse
um problema de idade.
Gertrude Mc Mahon aparentava cinquenta e cinco anos.
Era alta, maciça, de seios volumosos, e vestia-se com um
gosto que podia ser qualificado de péssimo. O rosto possuía
certo encanto, mas não tinha sinal algum, indicando que
houvesse sido outrora uma criatura encantadora. Usava
óculos, não se maquilava, os lábios eram finos e os gestos
duros e frios.
Não era a mulher com a qual um homem sonharia passar
a noite. Longe disso! Logo, o fato do dono da casa a ter
convidado para passar ali a noite não continha uma gota
sequer de malícia. Um homem relativamente jovem como o
senhor De Vries, rico, poderoso, podia conseguir
companhias muito mais atraentes que a senhorita Mc Mahon.
Gertrude empurrou a porta do quarto com a direita,
mantendo na esquerda a maletinha vermelha, da qual não se
separara durante a conferência no salão. Daquela maletinha a
senhorita Mc Mahon tirara cigarros, esferográficas,
documentos, isqueiro... enfim, tudo quanto necessitava. Mal
entrou no quarto, a senhorita Mc Mahon recorreu novamente
à sua maletinha, depois de haver fechado a porta pelo lado de
dentro.
Sentou-se em uma das poltronas, colocou a maletinha nos
joelhos e preparou-se para abri-la. Antes, ergueu a cabeça e
olhou com ar sombrio para a porta do banheiro.
Ali se encontrava um homem, alto, imóvel, empunhando
uma pistola munida de silenciador. Um homem que produziu
em Gertrude Mc Mahon um profundo e lento calafrio.
— Não abra — sussurrou o homem.
Tinha mais de um metro e noventa. Os ombros eram
ciclópicos. O tronco parecia o tronco de uma árvore
gigantesca, vestido com um conjunto esportivo de boa
qualidade, mas absolutamente inadequado para a hora. O
rosto era feio e havia em seus olhos uma expressão sinistra e
impenetrável. Gertrude conhecia aquele homem. Chamava-
se Carpenter e era o guarda-costas de Jefferson De Vries, o
dono da mansão.
— Que faz aqui? — perguntou Gertrude, procurando
manter-se calma. — E que significa essa pistola? Previno-o...
— Cale-se — cortou ele secamente. — O senhor De
Vries subirá em seguida. Guarde para ele o que tem a dizer.
Gertrude calou-se, compreendendo que nada mais tinha a
fazer. Ficou imóvel, encarando o olhar fixo do gigante.
— Posso fumar? — perguntou no fim de um segundo.
— Não. Não faça nada Cale-se, apenas.
A senhorita Mc Mahon pousou na maletinha as mãos bem
cuidadas. Mãos surpreendentemente bonitas e aristocráticas.
Finas, delicadas, suaves. Mãos que não combinavam com o
corpo de Gertrude Mc Mahon. Continuou firme, sustentando
o olhar fixo de Carpenter. Um olhar parado, que parecia
querer hipnotizá-la. Minutos depois, quando Jefferson De
Vries entrou no quarto, a situação continuava a mesma.
Carpenter não olhou para o patrão, Gertrude, porém, voltou-
se para ele com uma expressão de espanto e de irritação,
murmurando:
— Senhor De Vries, exijo que...
— Acalme-se — cortou ele secamente. — A senhorita
não está em condições de fazer exigência alguma.
— Acha? Muito bem! Quando o senhor Dulles souber
como estou sendo tratada...
— Meu amigo Sylvester Dulles não se zangará comigo,
por causa do que fizer com a senhorita, garanto — tornou a
cortar De Vries, friamente. — Tenha a bondade de despir-se,
sim?
— O que? — gaguejou Gertrude.
— Disse para se despir, tirar a roupa. Toda. Quero vê-la
pelada, senhorita Mc Mahon. Se não se despir
imediatamente, Carpenter lhe meterá uma bala na barriga.
Imagina que não estou falando a sério?
Gertrude passou a língua pelos lábios. Em seguida,
lentamente, levantou-se e inclinou-se para deixar a maletinha
no chão. Começou a se despir. A expressão de espanto que
se estampou na cara de Carpenter era digna de se ver. De
Vries empalideceu um pouco e nada mais. Empalideceu,
mudando inteiramente de atitude.
Das duas reações masculinas, a de Carpenter era a mais
lógica. Diante dele, à medida que se despia, surgia outra
senhorita Mc Mahon. O sutiã estava recheado de espuma
para dar aos seios uma aparência volumosa. O ventre
aumentara com a faixa também de espuma. Libertando-se da
roupa, a senhorita Mc Mahon exibiu um corpo maravilhoso,
de pele dourada pelo sol, seios empinados, ventre liso,
quadris espetaculares, coxas sólidas e bem torneadas, cintura
fina e flexível. Um corpo tão belo, tão sugestivo, tão
maravilhoso, que os dois homens ficaram sem fôlego.
De Vries foi o primeiro a respirar, como se estivesse
asfixiado, e, com um fio de voz, murmurou:
— A cabeça, também.
— Devo tirar a cabeça também? — perguntou Gertrude,
sorrindo.
— Entendeu perfeitamente.
— Infelizmente, sim.
A senhorita Mc Mahon não tirou a cabeça, é evidente.
Mas tirou a peruca, deixando à mostra um gorro de nylon,
muito justo, que lhe prendia os cabelos verdadeiros. Quando
tirou o gorro, uma cabeleira negra, suavemente ondulada,
espalhou-se sobre seus ombros sedutores, faiscando numa
tonalidade levemente azulada.
— Pronto — murmurou ela, finalmente.
— Tire tudo.
Gertrude suspirou, resignada. Tirou os óculos finos de
plástico que lhe deformavam o nariz e os postiços, também
de plástico, que modificavam o formato de seu rosto, na
altura dos maxilares. Um rosto belíssimo, com enormes
olhos azuis. Mais bonito ainda ficou, quando Gertrude
retirou a maquilagem que lhe cobria os lábios e o queixo. Os
lábios adquiriram outro formato e o queixo exibiu uma
covinha deliciosa.
Carpenter teria caído de costas, se alguém o soprasse no
peito. De Vries mostrava-se inquieto, como se não quisesse
acreditar no que via.
— Mas... você é Brigitte Montfort — balbuciou com
certa dificuldade.
— Esperava outra pessoa? — perguntou a nova senhorita
Mc Mahon, tornando a sorrir.
Jefferson De Vries passou as mãos pelo rosto frio.
— Também a conheço — gaguejou Carpenter. — É a
jornalista indicada, meses atrás, para a presidência dos
Estados Unidos, por um partido de mulheres1. Que faz aqui?
— Ela nos dirá — rosnou De Vries, suspirando
— Não sabe o que faço aqui, senhor De Vries? — disse
Brigitte Montfort, surpresa.
— Sei apenas que usurpou a personalidade de Gertrude
Mac Mehon, a secretária de confiança de Sylvester Dulles,
percebi que não era ela, quando fiz um comentário a respeito
de algo que houve há algumas semanas entre Dulles e eu e a
senhorita não reagiu de um modo lógico.
— Ninguém é perfeito. Ninguém pode saber tudo. Foi
muito, da minha parte, conseguir enganar todos os outros e o
senhor, durante várias horas, não acha? Olhe, senhor De
Vries, vou ser sincera: acabou-se. Não é verdade que o
senhor Sylvester Dulles esteja indisposto em Los Angeles e
que tenha enviado a secretária a esta reunião. A verdade é a
seguinte: o senhor Dulles está preso. Gertrude Mc Mahon, a
verdadeira, também. Caracterizei-me como Gertrude para
inteirar-me dos últimos detalhes de seu plano para boicotar
as eleições presidenciais e descobrir os motivos que o
levaram, e a um grupo de pessoas, a prosseguir com esse
projeto. Projeto que não me agrada, confesso, senhor De
Vries. O plano traçado, utilizando pessoal cubano, pode dar
lugar a muitos acidentes em todo o país. Inclusive pode
provocar um estremecimento nas relações entre Cuba e os
1
Ver aventura Brigitte para Presidente, números 336 e 337 desta coleção.
Estados Unidos. Incidentes capazes de degenerar em
choques armados em diversos lugares. Não compreendeu?
Nem o senhor nem seus amigos viram o que tudo isso pode
provocar?
— Quem é você? — perguntou De Vries, apavorado.
— E o motivo é sempre o mesmo: a ambição pelo poder,
a ambição pelo dinheiro — prosseguiu a senhorita Montfort.
— Francamente! O senhor e seu grupo me dão nojo!
— Quem é você? — repetiu De Vries, quase gritando.
— Já me reconheceu. Sou Brigitte Montfort, jornalista do
Morning News de Nova York.
— Disso eu já sei. Sei também que podia ter sido eleita
presidente dos Estados Unidos, se quisesse. Sei que há
alguns anos ganhou o Prêmio Pulitzer. Sei tudo a seu
respeito. Quero dizer, sei o que o mundo inteiro sabe sobre a
mais famosa jornalista norte-americana. Lembro-me,
inclusive, que foi rainha de um pequeno país, em certa
ocasião2. Nada disso combina com o que está fazendo agora.
— Não complique a vida, senhor De Vries. Nem espere
ajuda de espécie alguma. Amanhã cedo meus Johnnies já
terão capturado todos os membros de seu grupo e seus
planos serão irrealizáveis. Portanto...
— Seus Johnnies? — cortou De Vries, balbuciando. —
Seus Johnnies? Foi o que disse? A quem se refere? Segundo
estou informado, há uma pessoa que utiliza esse nome para
designar todos os agentes da CIA. Refere-se a esses homens?
Disse: meus Johnnies, referindo-se aos agentes da CIA?
— Exato. Pelo que estou vendo, o senhor tem bons
contatos nas altas esferas da espionagem, hem?

2
Ver Sua Majestade Brigitte, número 96 desta coleção.
— Você... é a agente “Baby” da CIA — gaguejou De
Vries, com os olhos arregalados, como se fossem saltar das
órbitas. — Você é “Baby”?
— Seria tolice, de minha parte, negar a esta altura —
respondeu Brigitte Montfort, com um sorriso gelado. — Isso
deve fazê-lo compreender que está tudo perdido para o
senhor. Logo, diga a seu mastodonte para guardar a pistola e
deixe-me usar o radinho que tenho, para chamar meus
Johnnies. Ao menos, assim, os dois salvarão a vida. Não me
obrigue a complicar as coisas, por favor.
— Insinua que minha casa está vigiada?
— Inteiramente cercada por meus companheiros. Seus
amigos, que se retiraram há pouco, já foram detidos ou estão
para ser. Resta apenas o senhor. Jamais conseguirá escapar
do cerco preparado por meus Johnnies, garanto-lhe.
— Então está tudo perdido para mim?
— Inteiramente perdido. Não poderá escapar. Aconselho-
o a desistir de qualquer atitude de represália contra mim. Se
me causar o mínimo dano, meus Johnnies o farão lamentar
ter nascido. Vamos, seja razoável. Está rindo, senhor De
Vries?
— Estou — exclamou De Vries, com uma risadinha seca.
— Rio da senhorita. Quando mandei construir esta casa, tive
uma inspiração.
— Que Inspiração?
— Do porão parte um corredor que ninguém conhece.
Vai até à margem do Potomac. Isso significa que posso ir
embora, apesar da vigilância de seus amigos. Não acredita?
— Por que não? Isso apenas atrasaria de algumas horas
ou de alguns dias a sua captura.
— Quem prepara essa saída, prepara tudo para poder usá-
la, quando necessário, não acha? Preparei bem minha fuga,
acredite. Não imaginei que precisasse um dia usar esse
corredor, mas chegou a hora e vou usá-lo.
— Não irá muito longe.
— Talvez. A senhorita Montfort, porém, irá menos longe
ainda. Se eu conseguir escapar, saberei vingar-me da pessoa
que causou minha ruína total. Terei a satisfação de matá-la,
antes de me retirar. Deite-se na cama.
— Não gostaria de morrer na cama. Ou pretende algo
mais, antes de acabar comigo?
— Ah, estava demorando! Sua beleza feminina! Imagina
que pretendo violentá-la, antes de matá-la?
— Não?
Jefferson De Vries inclinou a cabeça de lado e revirou os
olhos. Contemplou, durante alguns segundos, a beleza
estranha de Brigitte Montfort. Sorriu, de repente, e
sussurrou:
— Compreendo seu jogo. Deve ter sido útil, em outras
ocasiões, hem? Sim, tenho amigos que me contaram histórias
a seu respeito... a respeito da agente Baby” da CIA. Todos a
admiram. É o gênio capaz de solucionar os problemas da
espionagem mundial. Compreendo. Sob seu aspecto
angelical de Brigitte Montfort, pode viajar pelo mundo
inteiro, meter-se em toda a parte, conseguir amigos, fazer
contatos, obter informações... Quando se vê em apuros, sua
beleza resolve a questão. Julga-se capaz de enfeitiçar
qualquer sujeito, enganar a todos, inclusive, oferecendo seu
corpo. Quando os inimigos estão enfraquecidos pelo prazer
ficam à sua mercê, não é assim?
— O senhor é muito fantasioso. Jamais utilizei minha
beleza em meus trabalhos de espionagem. Disponho de
outras armas. Só lanço mão de meus atrativos físicos quando
os outros querem desfrutá-los.
— Outras armas? Quais?
— Em primeiro lugar, minha inteligência. Vamos, senhor
De Vries, não se engane comigo. Sou formosa, sim, e não
vejo motivo para jogar vitríolo no rosto e deixar de ser
bonita. Nem acho aconselhável cortar os seios ou estragar
qualquer ponto de minha anatomia. Mas não uso a beleza
para conseguir o que desejo. Prefiro usar a inteligência. Se
fosse apenas uma espiã formosa, há muitos anos estaria
morta. Não me confunda com a linda espiã que obtém
segredos do velho e gordo general, deitando-se com ele e
enlouquecendo-o de prazer. Não me insulte com um
julgamento desses, por favor!
— Feito. Mas diga-me: como pode sua inteligência
resolver uma situação como esta? Basta ordenar a Carpenter
para puxar o gatilho e de nada servirá sua inteligência.
— A sua também não serve para grande coisa. Enquanto
estamos conversando, meus Johnnies devem ter invadido a
casa, silenciosamente.
— Não — exclamou De Vries, rindo. — De modo
algum! Seus amigos estão lá fora. Isso talvez seja verdade.
Mas não entrarão, enquanto a senhorita não os autorizar,
utilizando o radinho de bolso. Era o que ia fazer, quando
chegou a este quarto, hem? Mas não o fez. Eles aguardarão
seu chamado. E quando, impacientes, decidirem tomar a
iniciativa e entrar na casa... sabe o que encontrarão?
— Diga.
— O cadáver violentado de sua amada “Baby”. Deite-se
na cama!
— Ah, pretende violar-me, não é mesmo?
— Vai ser uma violação muito especial. Dê-me essa
pistola, Carpenter, e amarre a senhorita Montfort na cama.
Use os cordões das cortinas. Quanto à senhorita, coloque-se
em posição. De barriga para cima, sorridente, com as coxas
espetaculares bem relaxadas.
— Vai abusar de mim, tendo uma pistola na mão? —
perguntou Brigitte surpresa.
— Quem a violentará não serei eu.
Carpenter já havia entregue a pistola a De Vries e
arrancara os cordões das cortinas. Brigitte olhou para o
gigante que, por sua vez, olhou para ela. Voltou-se logo para
o patrão, sem esconder seu espanto. Estava tudo bem claro,
mas foi Brigitte quem traduziu:
— Ele vai me violentar?
— Sua inteligência é admirável — respondeu De Vries,
secamente — Deite-se! Não repetirei a ordem! Coloque-se
em posição!
A espiã internacional pestanejou ligeiramente. Em
seguida, sem hesitar, deitou-se na cama, de barriga para
cima, e relaxou as pernas. Carpenter aproximou-se com os
cordões. Jefferson De Vries colocou-se nos pés da cama e
seu olhar cravou-se no sexo de Brigitte. Um brilho sinistro
iluminava seus olhos frios.
De repente, Brigitte Montfort compreendeu as
verdadeiras intenções de Jefferson De Vries. Não. Carpenter
não ia violentá-la. O próprio De Vries se encarregaria da
tarefa. Mas não de um modo comum e sim com a pistola.
Nos olhos brilhantes de Jefferson de Vries a espiã viu a
verdade. Ele introduziria o cano da arma em seu sexo, e em
seguida puxar o gatilho.
Brigitte sentiu um arrepio. Como se milhões de alfinetes
se enterrassem em seu corpo maravilhoso. Respirou fundo e
percebeu que ela estava agindo com uma docilidade
excessiva, perdendo a oportunidade de aproveitar a
aproximação de Carpenter. Viu o gigante inclinar-se e
segurar-lhe o pulso esquerdo para amarrá-la à cabeceira da
cama. Brigitte deixou Carpenter tocar-lhe o pulso.
Bruscamente, porém, a divina ergueu o joelho direito e com
ele golpeou brutalmente o queixo de Carpenter, jogando-o de
encontro à mesinha de cabeceira.
Em meio ao barulho ecoou o tiro abafado pelo
silenciador. A bala enterrou-se numa das pontas do
travesseiro. No momento exato em que Brigitte girava para a
outra ponta. Quando o corpo ágil e despido da espiã passou
por cima do de Carpenter, num salto ágil, De Vries tornou a
atirar, acompanhando a trajetória da adversária.
O tiro ecoou abafado. A bala partiu um milésimo de
segundo atrasada para poder atingir Brigitte. Mas atingiu a
cabeça de Carpenter, que se levantava, estourando-a de um
modo grotesco e arrepiante. Jefferson De Vries não conteve
uma exclamação de fúria e de surpresa ao mesmo tempo.
Diante de seus olhos arregalados, a cabeça de Carpenter
transformou-se numa massa avermelhada.
O reflexo dourado à direita trouxe-o de volta à realidade.
De Vries gritou ao ver que Brigitte Montfort, com seu corpo
dourado pelo sol, pulava em sua direção, em vez de procurar
um abrigo onde se refugiar dos tiros. Viu os enormes olhos
azuis muito abertos, a cabeleira negra esvoaçante e o corpo
brilhante aproximarem-se velozmente.
Sem hesitar, tornou a puxar o gatilho.
E acertou no alvo.
CAPÍTULO PRIMEIRO
A convalescente

— Bom-dia, gostosura! — exclamou alegremente Frank


Minello, inclinando-se. — Como vai, querida?
Deitada de barriga para baixo, no sofá do luxuoso salão
de seu apartamento, Brigitte dirigiu um olhar arrevesado
para seu querido amigo e resmungou:
— Já estou farta de suas tolices, Frankie.
Minello inclinou-se mais, pós a mão atrás da orelha e
avançou o rosto, como se quisesse ouvir melhor, e
perguntou:
— Que disse, gostosura?
Da porta do salão, Peggy, a lourinha sardenta que servia
como governanta de Brigitte há muitos anos, fazia o possível
para conter o riso, coisa nada fácil. Frankie era um louco!
Como nos dias anteriores, chegara ao apartamento de
Brigitte e dirigira-se ao salão onde a amiga se encontrava no
sofá, inteiramente despida e de bruços.
— Acabarei zangando-me com você, Frankie — rosnou
ela, vendo-o dar um tapinha de leve em suas nádegas.
Os olhos de Minello, fixos no belíssimo traseiro da espiã
internacional, brilharam com mais intensidade.
— Se me der palmadinhas, desse jeito, me acabará
machucando — protestou Brigitte.
— Não se preocupe. Baterei de leve. Seu Frankie seria
incapaz de machucá-la. Ao contrário. Vai encher de carícias
esse traseiro tão bonitinho! De carícias e de beijos!
Inclinou-se mais e estalou um beijo sonoro numa das
nádegas da amiga. Bem ao lado do curativo preso com
tirinhas de esparadrapo cor da pele. Peggy, da porta do salão,
não conteve uma gargalhada. Como fazia sempre, levou as
mãos à boca, tentando impedir o riso de sair de sua garganta.
— Oh, desculpe, senhorita — balbuciou, a governanta
sardenta.
— Que graça você acha nas bobagens desse camarada?
— disse Brigitte, num tom de repreensão. — Não beije mais
essa... zona, Frankie! Afaste-se!
— Ai, coitado de mim! — gemeu Minello, endireitando o
corpo. — O traseirinho querido me rechaça!
— Sente-se num lugar de onde não possa incomodar-me!
— ordenou Brigitte.
Frank Minello puxou uma das poltronas e sentou-se
diante da espiã. A dois passos, apenas. Desse modo, tinha ao
alcance da mão o corpo maravilhoso, de seda e sol. As costas
arqueavam-se suavemente na zona lombar. As pernas,
magnificamente bem torneadas, eram um arremate digno
daquela escultura viva. Isso quanto à parte inferior. A
superior, então, era de deixar qualquer homem maluquinho.
Que seios! Que pescoço, que ombros! Brigitte prendera a
cabeleira no alto da cabeça e estava com o ar de uma patrícia
romana. A mais bela romana de todos os tempos.
— Aborreço, ficando aqui? — perguntou ele, docemente.
— Sim.
— Mas não estou fazendo nada!
— Está olhando para mim!
Minello fez uma cara de espanto. Voltou-se para Peggy e
disse com suavidade:
— Ei, sardenta, pode me trazer uma tesoura?
Peggy ficou espantada. Brigitte olhou para o amigo
querido com uma expressão desconfiada. Conhecia-o bem.
Sabia que ele estava tramando alguma das suas.
— Para que quer uma tesoura? — perguntou ela,
apreensiva.
— Ou uma faca, ou um garfo. Tanto faz.
— Para que quer uma dessas coisas?
— Meus olhos podem apenas contemplar sua beleza —
declamou Frank Minello num tom teatral. — Se meus olhos
a aborrecem, só me resta arrancá-los!
— Ah, é por isso? — murmurou Brigitte, sorrindo. —
Está certo, Peggy, traga a tesoura para Frankie. Estou farta
de vê-lo sentado diante de mim, contemplando-me com esse
ar apatetado e indecente.
— Não tenho culpa de você estar nua — defendeu-se
Minello. — Sempre a admirei, bem sabe! Não vejo por que
deixar de fazê-lo, quando está despida. Tenho cara de idiota,
por acaso? Se não quer que eu a veja nuazinha, vista uma
roupa!
— Está quente demais — protestou Brigitte.
— Papagaio! Está um calor infernal! — gritou Minello,
passando a mão pela testa. — Que se passa nesta casa? A
refrigeração enguiçou?
— Mais ou menos — respondeu Brigitte. Minello tirou o
paletó e arregaçou as mangas da camisa. Só então notou que
o calor estava realmente forte. Não era a temperatura
habitual do apartamento de Brigitte, dotado de todos os
avanços técnicos e humanos em matéria de conforto. Situado
no vigésimo sétimo andar do Crystal Building, na Quinta
Avenida, diante do Central Park, era inadmissível que algo
ali funcionasse mal.
— Pois se a refrigeração enguiçou, você devia ter avisado
o velho Pete para que ele, de sua senhorial portaria,
prevenisse a empresa encarregada de...
— Não tenho que avisar ninguém. Esta temperatura está
muito boa — cortou Brigitte.
— Em minha opinião, faz um calor insuportável —
resmungou Minello. — Vou dar uma olhadela no sistema de
refrigeração...
— Vai ficar ai quietinho — ordenou Brigitte.
— Olhando para você?
— Ah, não, isso, não. Peggy, que espera para trazer a
tesoura?
— Sim, senhorita — balbuciou a governanta. — Agora
mesmo!
— Escute, beleza loura — exclamou Minello, erguendo o
dedo. — De passagem, traga uma garrafa de champanha
geladinho, taças e umas cerejas. Já sabe, hem? Faremos um
brinde com Dom Perignon. Papagaio! Que maravilha!
— Ah, veio tomar meu champanha, hem? — rosnou
Brigitte.
— Ora, você tem de sobra, criatura. Aquele velho sinistro
da espionagem francesa manda um montão de caixas, de seis
em seis meses!
— Monsieur Nez não é sinistro — atalhou Brigitte. —
Um pouco sério, apenas. De qualquer modo, é melhor que
você, pois não passa a vida fazendo e dizendo bobagens.
— Ei, acha bobagem desejar um bom-dia a seu
traseirinho lindo, mordido por uma bala cruel? Papagaio!
Que lugar para a bala acertar, hem?
— Existem outros piores — balbuciou Brigitte,
estremecendo.
— Acredito. A cabeça, por exemplo.
— Pior que a cabeça, Frankie.
— O coração?
— Não exatamente — concluiu a divina espiã, rindo.
— O estômago?
— Está perto.
— O fígado?
— Oh, pare de fazer perguntas!
— Papagaio! Gostaria de saber como pôde esse sujeito
meter uma bala nas suas nádegas.
— Eu dei um pulo para cima dele e estava paralelo ao
chão, no momento em que atirou. A bala passou raspando
pela minha cabeça, pelas minhas costas e... abriu um sulco
nessa zona tão comprometida. Santo Deus! Tive a impressão
que me cortavam com uma faca afiada!
— Coitadinho do traseiro — sussurrou Minello, tornando
a dar um tapinha carinhoso nas nádegas de Brigitte. — Que
aconteceu com o sujeito que atirou em você?
— Caí em cima dele. E não pôde atirar mais.
Frankie Minello sentiu, de repente, um vazio no
estômago. Em várias ocasiões desfrutara das aventuras da
espiã, colaborando com ela. Sabia perfeitamente como
costumava agir. O aspecto belíssimo e delicado de Brigitte se
transformava nesses momentos. Ela virava uma verdadeira
pantera, muito perigosa. Podia quebrar a cabeça de um
homem com um único golpe de caratê, estrangulá-lo até
morrer ou fazer coisa piores com os adversários. Muitos
inimigos da espiã se enganaram com a aparência delicada e
suave. Não imaginavam que aquela jovem encantadora
pudesse matá-los com suas próprias mãos.
— Matou o camarada? — perguntou Minello, num
sussurro.
— Tem razão — suspirou Brigitte. — Está fazendo um
calor danado.
— Matou? — insistiu Minello. — Como?
— Uma tacinha de Perignon viria mesmo a calhar —
prosseguiu a divina, sem responder às perguntas do amigo
tão querido. — Champanha frio... não gelado. O champanha
não se toma gelado, sabia, Frankie?
— Já sei disso. Graças a você, aprendi, também, a
escolher minhas gravatas.
— Pois a que usa hoje não me agrada nem um pouco.
— Ora essa! Estou sem gravata!
— É mesmo? Então o que é isso escuro que vejo em seu
peito?
— É o cabelo — riu Minello.
— Pois tem o feitio de uma gravata. Ei, Frankie, você
tirou o paletó. Fez bem. Arregaçou as mangas da camisa.
Perfeito. Desabotoou a camisa. Certo. Espero que suas
manifestações de calor terminem por aqui.
— Está quente de verdade! Sabia que Nova York está
sendo assolada por uma onda de calor assustadora? Já
causou a morte de diversas pessoas.
— Sim, já soube — sussurrou Brigitte.
— Seria conveniente consertar a refrigeração para não
sermos os próximos a morrer, em virtude do calor. Papagaio!
Chame alguém para consertar isso. Mesmo que ponha os
aparelhos funcionando mais ou menos.
— Já estão funcionando, Frankie. Numa marcha regular.
— Ah, estão? Todos deviam fazer isso. Desse modo,
Nova York não sofreria um colapso energético por excesso
de consumo e, ai, acabaria a refrigeração. Fizeram um apelo
nesse sentido, pelo rádio e pela TV, não foi?
Frank Minello interrompeu o discurso ao notar uma
mudança na expressão de Brigitte. Viu a amiga baixar a vista
para o livro que estava ao seu lado no sofá e exclamou:
— Ah, então é isso, hem?
— Isso o que, Frankie?
— Ouviu o pedido para todos diminuírem o consumo de
energia e deixou a refrigeração na metade do ponto habitual,
hem?
— Naturalmente. Era a atitude mais lógica. Ou sentimos
um pouquinho de calor ou morreremos todos. Qualquer um é
capaz de compreender isso.
— Em minha opinião, poucas pessoas atenderam ao
pedido. Porque você atendeu? Está ferida, precisa
permanecer nua desse jeito, para não morrer de calor?
Podiam abrir uma exceção para o seu caso.
— Sem dúvida. Mas meu estado não é tão ruim a ponto
de não poder suportar um calorzinho ligeiro.
— Compreendo — rosnou Frank. — Enquanto milhares
de safados estão consumindo refrigeração nos escritórios,
você, a mais linda espiã do mundo, que arriscou a vida
milhares de vezes pelos outros, sofre esse calor insuportável!
— Sinto-me muito bem, nua. Além disso, ofereço um
bonito espetáculo aos amigos que me vêm visitar.
— Isso é verdade — murmurou Minello, sorrindo. —
Mas eu vou aumentar a refrigeração de seu apartamento.
Vou passar para o ponto máximo!
— Não senhor.
— Você merece mais que os milhões de cretinos
espalhados por ar. Uns safados que não atendem ao pedido
para pouparmos energia! Só pensam no bem-estar pessoal!
— Concordo com você. Mas meu apartamento continuará
na temperatura em que está. Não sou um cordeirinho
solidário com o resto do rebanho, Frankie. Você sabe disso.
Sou egoísta e independente. Sempre faço as coisas a meu
modo. Mas não sou idiota.
— Papagaio! Longe disso! Mas nesta ocasião...
— Nesta ocasião estou sendo tão inteligente como de
costume — cortou Brigitte, sorrindo. — Explicarei como
vejo a situação. Falam na necessidade de se reduzir o
consumo de energia, para que todos possamos dispor dela
numa medida mais ou menos razoável. Obedeço. Os Outros,
não? O problema é deles. Em primeiro lugar, demonstram
ser muito menos solidários e muito menos inteligentes que
eu. Esse tipo de pessoas torna a vida e a convivência mais
difíceis. Pior para eles.
— E você sofre as consequências.
— Não. Porque, em segundo lugar, se o calor me
incomodar muito, querido, pedirei a tio Charlie para enviar
um dos helicópteros do setor e irei para um lugar onde esteja
bem fresquinho. Os outros continuarão em Nova York,
ancorados no calor e no egoísmo.
— Ora! Então eles que tivessem o cuidado de não
provocar uma hecatombe energética na cidade!
— Exatamente. Frankie — murmurou Brigitte, com um
sorriso gentil. — Exatamente.
— São uns burros!
Brigitte não disse mais nada. Segundos depois reapareceu
Peggy, empurrando o carrinho onde trazia o champanha num
balde de prata, cheio de água, e no qual flutuavam alguns
cubinhos de gelo. Minello começou a resmungar. Brigitte e
Peggy o contemplavam, divertidas. Minello, porém, parou
logo de resmungar. Seria perder tempo. Se Brigitte tomara
uma decisão, ninguém a faria mudar de atitude. Além do
mais, por que espantar-se com a atitude da jornalista-espiã?
Se em certas ocasiões arriscara a vida por seus semelhantes,
o fato de ceder-lhes metade da força da refrigeração não era
tão extraordinário assim. Na opinião dele, porém, eram todos
uns burros! Uns burros!
Provou o champanha, em cuja taça Peggy colocara uma
cereja.
— Que tal? — perguntou Brigitte, com ar gozador. —
Está estupendo, não acha?
— Claro — respondeu Minello, sorrindo de orelha a
orelha. — Fresquinho! Um champanha espetacular!
Os três riram. Naquele momento, exatamente, soou a
campainha da porta.
— Santo Deus! — balbuciou Brigitte. — Aí estão!
— Quem? — assustou-se Minello. — Os russos?
— Vá abrir, Peggy — ordenou a divina.
— Sim, senhorita.
— Mas quem é? — rosnou Minello. — Quem está ar?
Que querem?
— Tudo agora depende deles, Frankie.
— Tudo! Seria horrível andar por aí com uma nádega
feia!
— Com uma...
Minello aguçou o ouvido e enrugou a testa. Acabara de
identificar uma das vozes; a de Charles Alan Pitzer, chefe do
Setor Nova York da CIA, a quem Brigitte chamava
carinhosamente de Tio Charlie. O velho abutre, comedor de
carniça! Na certa vinha encarregar Brigitte de uma nova
missão. Nova e perigosíssima.
Peggy entrou no salão, precedendo Pitzer. E outro
homem a quem Minello não conhecia. Um sujeito de estatura
mediana, rechonchudo, de cara simpática, e que suava por
todos os poros, naquele instante, O desconhecido trazia uma
maleta avantajada e foi o que falou em primeiro lugar,
dizendo:
— Bem, vamos ver como ficou meu bordado.
— Olá, Minello — rosnou Pitzer.
Frankie nem sequer se dignou olhar para ele. Sua atenção
concentrou-se no sujeito rechonchudo que se colocara ao
lado de Brigitte e aproximava as mãos gorduchas do lindo
traseiro da jornalista.
Não a tocou. Passou o dedo por cima do curativo colado à
nádega de Brigitte. Fez um gesto de aprovação, pousou a
maleta nos joelhos de Frank, abriu-a e retirou uma pinça.
Com ela descolou as tirinhas de esparadrapo. Frank Minello
esticou o pescoço, curioso.
— Ficou perfeito — exclamou o sujeito rechonchudo. —
Veem alguma marquinha?
Peggy e Pitzer aproximaram-se para olhar a nádega de
Brigitte. Minello esticou ainda mais o pescoço. Uma luz se
fez em seu cérebro. O gorducho era o cirurgião plástico da
CIA, o homem que remendara o ferimento de Brigitte
“Baby” Montfort... e não era a primeira vez que cuidava
dela.
— Não vejo nada — murmurou Peggy.
— Nem eu — comentou Pitzer.
— Pois os dois estão cegos — rosnou Minello, sorrindo.
— Eu vejo um traseirinho maravilhoso!
O cirurgião da CIA voltou-se e encarou Minello, dizendo:
— O senhor é muito amável. Realmente, fiz um bom
trabalho. Veja. Está como se nada houvesse acontecido...
Como se nada tivesse atingido essa zona da senhorita
Montfort.
— Você é um gênio — exclamou Minello. — Convido-o
para tomar champanha. Mas saiba de uma coisa: o traseiro
de Brigitte não é perfeito graças a você. Ela sempre o teve
perfeito. Claro, um remendo bem feitinho colaborou, no
momento...
— Está bem, mesmo? — perguntou a divina. — Vou ver
no espelho como ficou.
Levantou-se, enrolou-se no deshabillé vaporoso e saiu do
salão, correndo, acompanhada por Peggy. Frank Minello
apontou as três taças, piscou um olho e murmurou:
— Que tal, enquanto as mulheres comemoram a
recuperação do traseiro de Brigitte, nós também
comemorarmos, hem?
— As vezes, você tem boas ideias — resmungou Pitzer.
— Sim — retrucou Minello. — Às vezes. E por falar
nisso, acabo de ter uma. Por que não se esquece de Brigitte e
procura outra espiã capaz de arriscar a vida por aí afora, em
suas malditas missões? Hem? Por que? Pode me responder?
— Claro — murmurou Pitzer, depois de saborear um gole
de champanha. — Primeiro: não existe outra igual a “Baby”
no mundo da espionagem. Segundo: é ela que não quer se
afastar. Por mim, Frankie, há muito tempo ela teria parado.
— Mentira! Que faria você sem a ajuda de Brigitte?
Morreria de vergonha, seria um fracassado! Ouçam!
Tocaram a campainha, não foi?
— Parece — murmurou o cirurgião da CIA, sem se
alterar.
— Vou ver quem é — exclamou Minello.
Pousou a taça na mesinha, levantou-se, e dirigiu-se para a
entrada do salão. Atravessou o vestíbulo e parou diante da
porta. Olhou pelo olho mágico e viu o que havia do lado de
fora. Arregalou os olhos e rosnou:
— Papagaio! O calor do deserto me fez ver essas coisas!
CAPÍTULO SEGUNDO
O relógio de ouro

Brigitte ainda estava no quarto, admirando com Peggy o


belo trabalho feito pelo cirurgião da CIA, quando Minello
entrou como um furacão, gritando:
— Visita para você! E não se trata de visões!
— Oh, que susto. — balbuciou Brigitte, estremecendo. —
Já disse mais de mil vezes para não entrar desse jeito,
Frankie! Além do mais, estou nua!
— Ora essa... acabo de vê-la nua um tempão...
— Mas não em meu quarto. E eu estava esperando o
médico. E fazia muito calor.
— Qual é a diferença?
— A diferença é que você me assustou. Oh, como você é
impossível! Visita? Por que falou de visões?
— Pensei, mas não era. Eu olhei pelo olho mágico e...
— Fale de uma vez! Que visita é essa?
— Venha vê-los! Depressa!
Brigitte balançou a cabeça, com ar de resignação. Mas
não se apressou. Depois de mais um olhar satisfeito à nádega
refletida no espelho, começou a vestir-se. Calcinhas, sutiã,
blusa e saia. Calçou sapatos de salto alto e voltou-se para
Minello, que a contemplava abobalhado. Sorriu e murmurou:
— Agora sim. Vamos.
— Felizmente você se vestiu — rosnou Minello. — Ouvi
dizer que essa gente é muito ardente.
Brigitte não perdeu tempo com novas perguntas. Saiu do
quarto, acompanhada por Frank e Peggy, e entrou no salão.
Além do médico da CIA e de Pitzer havia mais três homens
que se voltaram, contemplando-a com os olhos escuros.
Eram árabes e usavam túnicas claras e amplas, de tecido
leve. Dois eram jovens. Vinte e cinco anos, no máximo. O
terceiro andava pela casa dos quarenta e exibia uma barba
muito preta, emoldurando lábios grossos, sensuais e
vermelhos. Era o que segurava a maleta preta com a mão
esquerda. E foi o que perguntou num bom inglês:
— Temos o prazer de admirar a senhorita Montfort?
— Exato — exclamou Frankie. — Quanto ao prazer...
— Por favor, querido — pediu Brigitte, cortando as
palavras do amigo. Voltando-se novamente para os árabes,
acrescentou: — Sou Brigitte Montfort, realmente.
Os três árabes inclinaram-se, levando a mão direita ao
estômago, ao coração e à boca.
— Permita que me apresente — disse o da barba. — Sou
Saddam Ahmed e fui honrosamente designado para trazer-
lhe um convite sincero, senhorita Montfort.
— Convite? Que tipo de convite?
Saddam Ahmed esboçou um sorriso. Dirigiu o olhar a
Minello e de soslaio para Pitzer e o cirurgião da CIA. Nada
mais. Não disse uma só palavra.
— Não pretendo ir embora — rosnou Minello.
Brigitte não deu atenção ao aparte. Continuou observando
os árabes. Principalmente o que se chamava Ahmed. A
atitude dele parecia serviçal, além de amistosa. Atitude
chocante em relação a uma mulher, tratando-se de árabes.
Podia ser falsa. Como inúmeras das armadilhas preparadas
para a espiã internacional. Aqueles homens saberiam que ela
não era apenas a famosa jornalista americana? Saberiam que
se tratava da espiã mais audaciosa e implacável do mundo?
Saberiam que a angelical senhorita Montfort podia
transformar-se na perigosa “Baby”?
— Para dizer a verdade, não costumo despedir meus
amigos com tanta descortesia, senhor Ahmed — disse
Brigitte, sorrindo.
— Muito elogiável — concordou o árabe.
— Podemos sair e voltar, quando nos puder receber a sós,
senhorita Montfort. Peço-lhe apenas para nos ouvir.
Desculpe por meu comportamento descortês. Não se
importaria se eu telefonasse amanhã cedo, solicitando uma
entrevista?
— Sentem-se, por favor — balbuciou Brigitte,
acomodando-se no meio do sofá, como uma rainha.
Saddam Ahmed sentou-se em primeiro lugar. Os
companheiros o imitaram. Pitzer e o cirurgião da CIA se
entreolharam.
— Preciso voltar para Washington — disse o médico
aproximando-se da divina, de mão estendida. — Alegro-me
por ter podido servi-la mais uma vez. Até a próxima, não é?
— Talvez — balbuciou Brigitte, apertando a mão do
cirurgião. — Bem sabe o quanto lhe sou grata, Harold.
— Também tenho umas coisas a fazer — disse Pitzer. —
Depois nos veremos, Brigitte.
— Naturalmente. Até amanhã, Frankie.
Frank Minello abriu a boca duas ou três vezes, mas
tornou a fechá-la ao deparar com os olhos brilhantes de sua
querida amiga. Pitzer segurou-o pelo braço e levou-o para a
saída do salão, perguntando:
— Pode me dar uma carona, Frankie? Cheguei de
helicóptero e preciso ir para a casa de flores.
De má vontade Minello abandonou o salão. Peggy saiu
atrás deles. Voltou, segundos depois, trocou um olhar com a
patroa e ficou imóvel, aguardando novas ordens.
— Não aceitarão uma taça de champanha, é evidente —
murmurou Brigitte, encarando Ahmed. — Talvez minha
governanta tenha um refresco para lhes oferecer. Hem,
Peggy?
— Suco de laranja e Coca-Cola, senhorita — informou a
sardenta.
— Sou capaz de apostar como nossos visitantes preferem
suco de laranja — disse Brigitte, sorrindo. — Acertei?
— Claro — balbuciou Ahmed, também sorrindo. — A
senhorita é muito amável.
— Espero que vocês também sejam, não se importando
se eu tomar champanha.
Saddam Ahmed deu uma risadinha. Os outros dois
olhavam para a belíssima norte-americana de olhos azuis.
Peggy serviu o suco de laranja, pouco depois, e voltou para a
cozinha. Brigitte ficou a sós com os árabes. Ahmed colocou
a maleta nos joelhos e preparou-se para abri-la. Captando um
olhar de alerta da senhorita Montfort, apressou-se a explicar:
— Tomamos a liberdade de aparecer à sua frente com um
presente e desejamos, de todo o coração, que o aceite.
Brigitte não respondeu. Seu olhar estava fixo nas mãos de
Saddam Ahmed. O árabe, após uma ligeira hesitação, ergueu
a tampa da maleta e dela tirou um objeto que Brigitte levou
alguns segundos para identificar. Não, não se enganou.
Tratava-se de um relógio de areia.
— A medida do tempo — disse Saddam, sorrindo. —
Uma clepsidra, realmente. Mede toda a volta da terra. O
percurso do sol.
— Vinte e quatro horas — murmurou Brigitte.
— Sim. De sol a sol. Existem aparelhos mais modernos
para medir o tempo, naturalmente. Sabemos disso. Mas
continuamos acreditando que nada há como o sol, no nosso
universo. Gostaríamos muitíssimo que fosse do seu agrado.
Ahmed aproximou-se de Brigitte, estendendo-lhe o
presente. A espiã tomou-o nas mãos e colocou-o de modo a
que a areia começasse a escorregar para a parte de baixo. O
relógio era feito do mais puro cristal e a armação, que
sustentava as duas partes, era de ouro. A areia, que media o
tempo, não era areia.
— É ouro em pó — sussurrou Brigitte.
— Minuciosamente granulado para que a passagem de
um recipiente para o outro seja exatamente o de um sol.
— Trata-se de um presente muito valioso, senhor Ahmed.
— Não o avalie pela parte material e sim como uma
demonstração de nossa boa vontade.
— É um presente simpático e inteligente, senhor Ahmed.
Fico-lhes muito agradecida.
— Sabíamos que apreciaria a originalidade do nosso
presente.
— Sem dúvida. Torne a sentar-se, por favor. Se for
possível, explique o motivo dessa lembrança. Veio a mando
de algum conhecido meu, de alguma pessoa que se julga em
dívida para comigo?
— Não. De modo algum. A senhorita foi escolhida pela
Chamsedin.
— Escolhida? Para que? Quem é Chamsedin.
— Chamsedin significa “Sol da Religião”. Foi o nome
que demos á nossa organização.
— Ah, sim. Que tipo de organização? A que se dedica?
— Receio não ser o mais indicado para responder às
inúmeras perguntas que sem dúvida fará, senhorita Montfort.
Sou apenas o modesto emissário da Chamsedin e portador de
um convite. Gostaríamos muito que fosse à Espanha.
— A Espanha? — balbuciou Brigitte, arqueando as
sobrancelhas. — Vocês ainda estão lá?
— Voltamos para lá — disse Saddam Ahmed, rindo. —
Desta vez, como visitantes bem recebidos. Como
convidados. A Espanha, como sabe, apesar de nossa visita
anterior, há alguns séculos, é uma nação amiga do mundo
árabe, deixando de lado pequenas tolices, é claro.
— Pequenas tolices? — perguntou Brigitte, surpresa.
— Como dizem na Espanha, o cortês não impede o
valente. Nós árabes somos recebidos amistosamente, em
linhas gerais. E agradecemos a amizade espanhola,
naturalmente. Temos bons amigos por lá e temos mesmo
certos interesses.
— Vejamos, senhor Ahmed: com que objetivo me
convidam a ir à Espanha? Ou mais concretamente ainda: que
espera de mim a organização Chamsedin?
— Alguém da Chamsedin achou que seria muito
agradável contarmos com a sua amizade para determinados
projetos. Compreenderemos que não simpatize conosco,
embora saibamos que não é judia. Explico melhor: se apesar
de não ser israelita suas simpatias se inclinarem para...
— Sou muito pessoal ao repartir minha simpatia, senhor
Ahmed — cortou Brigitte. — O fato de o senhor ser árabe
não o privará dela. Mas quero deixar bem claro que também
não sinto antipatia alguma pelos judeus. Em linhas gerais,
bem entendido.
— É imparcial?
— Inteiramente. Posso ser sua amiga e amiga de um
judeu. Nem um nem outro conseguirá fazer-me mudar de
atitude.
— Não pensamos pedir-lhe uma colaboração contra os
judeus, senhorita Montfort.
— Contra quem então?
— Contra ninguém — respondeu Ahmed, surpreso. —
Trata-se de negócios. Apenas negócios.
— E recorrem a mim, uma simples jornalista americana
que publica uma coluna num jornal americano, para tratar de
negócios? Surpreendente, na verdade. Que tipo de
negócios... Oh, compreendo. Não pode informar-me a esse
respeito. Não pode informar-me praticamente de coisa
alguma, não é?
— Lamento.
— Pode apenas convidar-me a ir à Espanha.
— Chegamos ao aeroporto Kennedy esta manhã, no El
Agib. Gostaríamos muito de voltar, levando-a conosco.
— Que é o Agib?
— O jato número um de nossa frota de aviões
particulares. Agib significa “Maravilhoso”. Tomo a
liberdade de informá-la que só o Pai da Beleza costuma usá-
lo. O fato de colocá-lo à sua disposição indica uma grande
deferência e desejo de amizade.
— Vieram a Nova York num jato particular, para levar-
me à Espanha como convidada. Entendi bem, senhor
Ahmed?
— Muito bem.
— Ótimo. Não gostaria que minhas ideias se
confundissem. Outra coisa: quem é o Pai da Beleza?
— Nós o chamamos Abul Hossn. Significa exatamente
isso: Pai da Beleza.
— Mas é um homem?
— Naturalmente.
Brigitte contemplou novamente o ouro em pó que caía de
um compartimento da ampulheta para o outro. Não parecia
muito espantada. Afinal, ao longo de sua vida de espiã havia
acontecido coisas estranhas. Aquela podia ser mais uma.
Mas por que deveria alterar seus planos, para ser gentil com
os árabes?
— Passei uns dias ligeiramente indisposta, senhor Ahmed
— disse ela, após um instante de reflexão. — O calor tem
sido insuportável. Preparava-me para visitar um amigo num
lugar agradável e descansar um pouco, apanhar sol, nadar...
Uma vida aprazível, que muito me agrada. Se aceitar seu
convite, precisarei privar-me de tudo isso. Logo, dê-me uma
única razão capaz de me convencer a atendê-los e não ao
meu desejo. Uma razão apenas, mas uma boa razão e irei
com os senhores para a Espanha, no Agib.
— Não sei se a razão será bastante boa para a senhorita.
— Exponha-a.
— A organização Chamsedin está planejando fazer do
planeta Terra, dentro de meio século, o lugar mais puro, mais
formoso e mais habitável de todo o Universo.
Fixando os olhos azuis nos olhos escuros do árabe,
Brigitte “Baby” Montfort murmurou:
— Minha bagagem estará pronta em vinte minutos,
senhor Ahmed.
— Pelo jeito, a ideia lhe agradou, senhorita Montfort —
disse o árabe, sorrindo.
— Só faltou o senhor dizer que, dentro de cinquenta anos,
todas as criaturas serão melhores — murmurou Brigitte,
rindo. — Isso entra nos projetos da organização?
— Não pensamos nesse ponto, expressamente —
respondeu Ahmed cauteloso. — Devemos, porém, esperar
que, num mundo melhor, as pessoas sejam também
melhores.
— Acredita?
— Parece razoável, não é mesmo?
— Sim, parece. É o que mais me atrai nessa ideia, O
senhor há de ter observado que, quanto mais a Humanidade
avança em tecnologia e em sistemas de conforto e de saúde,
menos progride quanto a qualidades humanas.
— Perdeu a fé na Humanidade? — balbuciou o árabe,
esboçando um sorriso.
— Minha fé nas pessoas está bastante deteriorada,
digamos. Mas não inteiramente perdida. Se assim fosse, eu
não aceitaria seu convite. Nem me preocuparia com ele. De
qualquer modo, devo adverti-lo de que não tenho grandes
esperanças nos seres humanos. Felizmente ainda restam
algumas pessoas dotadas de sentimentos formosos. Mas esse
número diminui sensivelmente. Receio que a esse tipo de
pessoas acabe acontecendo o mesmo que ao poeta.
— Que poeta? — perguntou Ahmed.
— Não me lembro bem da história. Trata-se de uma, na
qual a Humanidade havia alcançado tal grau de progresso
material que restou apenas um poeta como representante das
Artes. Um único poeta. Todos os outros seres humanos
dedicavam-se às ciências e às tecnologias. O poeta, porém,
dedicava-se a escrever belos versos de amor.
— Um poeta, apenas — balbuciou Ahmed.
— Que aconteceu com ele?
— Meteram-no numa prisão especial para loucos.
— Alá nos proteja! — exclamou o árabe, quase rindo. —
Espero que não aconteça o mesmo conosco!
— Uma coisa lhe garanto — prosseguiu Brigitte. — Se o
senhor sair por aí dizendo que dedica seu tempo e suas
energias para conseguir um planeta melhor, mesmo para o
futuro, todos perguntarão desconfiados: em troca de que?
Que pretende realmente Saddam Ahmed, ou a Chamsedin?
— A senhorita também se faz essa pergunta?
— Para ser sincera, sim. Mas como disse há pouco,
embora deteriorada, ainda conservo minha fé na
Humanidade.
— É natural que tenha certas reservas a respeito. Afinal,
daqui a cinquenta anos não poderei gozar as delícias do
planeta Terra. Nem pessoas como eu, de mais importância,
que se dedicam à mesma tarefa. Encarando a situação deste
ângulo e como, no momento, dispomos dos meios que nos
permitem gozar ao máximo as belezas e os prazeres da
Terra... por que nos preocuparíamos com isso?
— É uma boa pergunta — murmurou Brigitte, sorrindo.
— Que lhe será respondida na Espanha. Observo que a
senhorita Montfort se interessa pela realização dos projetos
da Chamsedin.
— Por quê? Daqui a cinquenta anos também eu....
— Era aonde eu queria chegar — cortou o árabe de
barba. — Dentro de cinquenta anos a senhorita ainda estará
neste planeta. Transformada numa encantadora anciã, sem
dúvida, mas ainda capacitada a gozar um mundo diferente. E
terá a satisfação de ter interferido positivamente para tanto.
— Não sei se me agradaria atingir essa idade, senhor
Ahmed. Mas sou uma criatura prática. Estudarei a proposta
que a Chamsedin tem para mim. Não, não se assuste. Não
farei mais perguntas. Arrumarei minha bagagem e é só.
— Não se afobe. Pensamos sair de Nova York num
horário que nos permita chegar à Espanha durante o dia.
Logo, tem bastante tempo.
— É mesmo? — balbuciou Brigitte olhando para o
relógio de ouro. — Na verdade, o ditado é bem certo, senhor
Ahmed. O tempo é ouro.
— Naturalmente. Mas que importa um dia, num projeto
voltado para daqui a cinquenta anos?
— Muito pouco, sem dúvida — concordou Brigitte. —
Bem, isso permitirá que eu me prepare melhor para a
viagem. Sabe de uma coisa, senhor Ahmed? Estou ansiosa
para ver como é o jato particular do Pai da Beleza!

CAPÍTULO TERCEIRO
O ataque

O Agib era um aparelho espetacular. Dotado de um luxo


verdadeiramente oriental. Tinha saleta, quarto cabines-
dormitório, dois banheiros, televisão, cozinha, cinema,
almofadas, tapetes, ar condicionado, radar e etc. Luxuoso,
enorme e possante. Contava com os serviços de um piloto,
dois ajudantes, um cozinheiro e dois comissários de bordo.
— Não ficou impressionada, hem? — perguntou Ahmed,
quando a costa americana foi desaparecendo à retaguarda.
— Para ser sincera, nem um pouco.
— É uma mulher rica?
— Mais que a Chamsedin.
Ahmed encarou a convidada e enrugou a testa. Mas
relaxou, não contendo uma risada divertida. A espiã
jornalista também riu, divertindo-se, por sua vez, com o fato
do árabe ter tomado sua resposta como uma piada. Mas não
era piada. A senhorita Montfort podia reunir, caso
necessário, a qualquer momento, uma quantidade tal de ouro
que transformaria a Chamsedin numa verdadeira mendiga.
Bastaria recorrer a seus poderosos amigos a quem tivesse
prestado serviços relevantes e eles, em agradecimento, a
atenderiam. Desde o presidente dos Estados Unidos, ao
governo francês, passando pelo rei da Ausvánia, pelo
presidente de Cayo Granada, pela rainha do Atlantic
Kingdom, pelo presidente da república insular de San
Nataniel, todos colocariam à disposição de “Baby” o que ela
pedisse: ouro, dinheiro, homens, armas, serviços de todos os
tipos, frotas, exércitos...
— Bem — exclamou Ahmed, ainda rindo. — Viajar com
uma pessoa tão encantadora, como a senhorita, vai ser
maravilhoso, sem dúvida.
— O senhor é muito gentil. E muito eloquente e
persuasivo.
— Por isso fui o escolhido para visitá-la. Será uma
grande satisfação para mim apresentar-me com a missão
cumprida. Fico-lhe muito grato por tudo. Deseja alguma
coisa? Café? Um sanduíche? Assistir um filme, um
programa de televisão? Música?
— Gostaria de dormir um pouco. É o que costumo fazer
durante a noite.
— Claro — tornou a rir Ahmed. — A mudança de fusos
horários talvez a perturbe um pouco...
— Estou acostumada. Quanto a adormecer de madrugada
nos Estados Unidos e despertar em pleno sol da Espanha,
parece-me fabuloso! A que horas está previsto o pouso?
— Meio-dia, hora espanhola. Nós a avisaremos com
tempo.
— Acordarei sozinha. Tenho um relógio aqui dentro —
disse Brigitte, tocando a testa com o dedo indicador da mão
direita.
— Muito prático. Vou acompanhá-la pessoalmente a uma
das cabines-dormitório. São pequenas, é lógico, mas muito
confortáveis. Espero que descanse bastante.
Minutos mais tarde, Brigitte Montfort preparava-se para
dormir. Ao lado dela estava a bagagem, sobre a qual
repousava a maletinha vermelha, equipada, como de
costume, com uma enorme variedade de truques
proporcionados por Mc Gee, o chefe do Departamento de
Armas Especiais da CIA.
No íntimo, a senhorita Montfort tinha um pressentimento.
Calculava que na Espanha seria obrigada a agir mais como a
espiã “Baby” do que como a jornalista Brigitte Montfort. Era
um pressentimento apenas, é claro. Mas os pressentimentos
de “Baby” raramente falhavam. Ou melhor, jamais falhavam.
***
Cinco minutos depois do meio-dia, o Agib pousou em
terra espanhola. Graças às boas relações de Saddam Ahmed,
as formalidades oficiais foram rápidas. Dois homens subiram
a bordo do jato, conversaram com o árabe, examinaram o
passaporte de Brigitte Montfort e se retiraram. Isso foi tudo.
— Os espanhóis tratam vocês muito bem — comentou
Brigitte.
— Temos bons amigos na Espanha — respondeu o árabe,
sorrindo.
— A Chamsedin talvez conte também com pessoal
espanhol, hem?
— Não, não é isso. A Chamsedin conta exclusivamente
com pessoal árabe. De diversos países árabes, mas apenas
árabes.
— Eu não sou árabe.
— Ninguém é perfeito — murmurou Ahmed, rindo. —
Além do mais, não pretendemos alistá-la na organização.
Desejamos apenas pedir sua colaboração em determinados
negócios.
— Na Espanha?
— Não, não. Na Espanha já possuímos colaboradores
idôneos. A propósito: fala espanhol?
— Sei fazer-me entender — respondeu Brigitte, que
falava corretamente a língua de Cervantes.
— Ótimo. Quase todos os nossos empregados falam
espanhol. Poucos falam inglês. Quando quiser, podemos
desembarcar. Um automóvel nos espera, para levar-nos
diretamente ao Nagma.
— Não iremos para Málaga? Para a cidade?
— Não. Só se a senhorita quiser. Seguiremos em direção
oposta, para Alhaurin da Torre e Alhaurin o Grande.
— Alhaurin é um nome espanhol?
— A senhorita é muito perspicaz — balbuciou Ahmed,
semicerrando s pálpebras.
— Alhaurin, como muitos outros nomes que começam
por Al são... recordações de outros tempos. Mas não importa.
Nos Estados Unidos vocês têm nomes que não são
propriamente ingleses e, no entanto, continuam a usá-los.
Tudo isso é História. Vivamos a realidade atual. Se deseja
visitar Málaga antes de ir para Nagma, não haverá
inconveniente algum. Temos tempo.
— Prefiro ir para Nagma, que também não me parece um
nome espanhol.
— Não é. Nagma significa Estrela da Noite.
— Ah, sim? E o que é Nagma?
— Uma urbanização residencial muito luxuosa.
— Compreendo. A Chamsedin possui uma casa nessa
urbanização?
— Toda a urbanização é da Chamsedin — respondeu
Ahmed, sorrindo.
A bagagem foi levada para o automóvel. Não se tratava
de um Rolls Royce, conforme Brigitte imaginara, e sim um
modesto, mas confortável carro de fabricação espanhola,
branco, limpíssimo. O motorista e os dois acompanhantes de
Ahmed colocaram as duas malas de Brigitte no porta-
bagagem. A maletinha vermelha, porém, ficou nas mãos de
sua dona. Os acompanhantes de Ahmed voltaram para o jato
e o chofer acomodou-se ao volante.
— Seus amigos não vêm conosco? — perguntou Brigitte,
surpresa.
— Eles têm algo a fazer em Málaga. Virão mais tarde.
Sentaram-se no banco de trás. O motorista voltou a
cabeça e Ahmed fez um gesto afirmativo. O carro dirigiu-se
á saída do aeroporto. O sol brilhava no céu muito azul.
O calor estava bastante forte. A refrigeração do veículo
não era das melhores e, por isso, o chofer abaixou o vidro da
frente.
— Temos carros melhores — disse Saddam Ahmed,
levemente irritado. — Mas Abul Hossn preferiu não fazer
ostentações, usando-os em atividades particulares. Sinto
muito...
— Não se preocupe. Gosto do calor.
— É mesmo?
— Claro. Principalmente depois de ter feito um
trabalhinho no Alasca e no Polo Sul.
— Já esteve no Polo Sul3?
— Há tempos. Detestei — murmurou Brigitte. — Peguei
um resfriado daqueles!
— Recordação desagradável, sem dúvida — exclamou
Ahmed, rindo. — Espero que nada semelhante lhe aconteça
aqui.
— Não parece provável.
O sol ardia num resplendor dourado. A retaguarda, o mar
brilhava e sobre ele se recortavam as silhuetas dos edifícios
de Torre Molinos. Atravessaram o povoado de Alhaurin da
Torre e pegaram novamente a estrada. No fim de alguns
minutos de silêncio, Ahmed apontou para frente, dizendo:
3
Ver aventura 86: Alarma no Polo Sul.
— Depois de Alhaurin o Grande, seguiremos por uma
estrada de menor importância, até chegarmos ao Nagma. São
alguns hectares de terra situados ao sul de Sierra de Mijas,
entre Fuengirola e Marbella. De qualquer ponto da
urbanização avista-se o mar. Gosta do mar, senhorita
Montfort?
— Gostar? Adoro! Embora afirmem que o Mediterrâneo
é o mais contaminado do mundo.
— Exagero — balbuciou Ahmed, dando de ombros. E
vendo Brigitte olhar para trás, perguntou: — Que foi?
O chofer árabe disse algumas palavras em seu idioma.
Ahmed também se voltou para trás. Fez uma pergunta em
árabe e o motorista apontou para o espelhinho retrovisor.
— Segundo Mulay, um automóvel nos segue, desde que
deixamos Alhaurin da Torre.
— Isso é mau? — perguntou ingenuamente a espiã.
Ahmed não respondeu em espanhol. Limitou-se a fazer
um comentário num dialeto árabe. O chofer aumentou a
velocidade do carro. Brigitte tornou a olhar para trás.
Contraiu os lábios ao comprovar que o outro automóvel
aumentava a velocidade, mantendo a distancia. Uma
distância que não permitia a Brigitte ver a placa.
Durante dois ou três segundos a situação manteve-se a
mesma. Ahmed enrugou a testa. Talvez pensasse que se
tratava de uma casualidade. Brigitte, porém, afastara essa
possibilidade. O carro os seguia, sem a menor dúvida. Se
quisesse, o motorista poderia ter ultrapassado o automóvel
dos árabes.
Brigitte continuou observando o outro carro. O sol batia
em cheio no para-brisa. Segundos mais tarde a espiã pôde
ver a placa: MA 3229 AB. Com uma calma inquietante a
divina voltou o rosto para frente e abriu a maletinha,
decidida a pegar a pistolinha de cabo de madrepérola,
guardada no fundo falso de seu arsenal ambulante.
O outro carro corria paralelo ao dos árabes. Um homem o
dirigia. Não havia pessoa alguma no assento da direita. De
repente, pela janelinha traseira da direita, cujo vidro estava
abaixado, surgiu uma cabeça masculina que, evidentemente,
se ocultara até aquele momento. Isso foi o suficiente para
Brigitte mudar de posição no banco. Com uma rapidez
inacreditável, torceu o corpo e ficou voltada para a
retaguarda.
Ouviu a exclamação de Ahmed. Mulay deu um grito, em
árabe. Brigitte teve a impressão de que o carro em que se
encontrava corcoveou como um potro selvagem.
Compreendeu o que se passara. Do outro carro haviam
ordenado a Mulay para deter o automóvel. A resposta do
árabe foi aumentar a velocidade.
Estava pegando a pistolinha, quando o vidro traseiro
estilhaçou-se. Uma chuva dourada e brilhante espalhou-se no
interior do veículo. Saddam Ahmed, às costas da espiã, deu
um grito. Brigitte ouviu, em seguida, o baque surdo. Voltou
a cabeça e ainda teve tempo de ver Ahmed caindo para trás e
batendo de encontro à janelinha do lado oposto. Numa fração
de segundo, distinguiu a mancha de sangue no rosto do
árabe. Ahmed caiu de bruços no banco e a pistola que surgira
na mão dele ficou entre Brigitte e a porta.
A agente da CIA preferiu não usar sua pistolinha de cabo
de madrepérola. Empunhou a de Ahmed. Os dois carros
ainda corriam paralelamente. Brigitte acomodou-se como
pôde para ordenar a Mulay que freasse bruscamente,
deixando passar o automóvel perseguidor. Enquanto
estivessem lado a lado, correriam perigo. Ao olhar para a
cabeça de Mulay, estremeceu. Naquele instante, exatamente,
da nuca do motorista jorrou um jato de sangue. A cabeça foi
sacudida pela bala que lhe entrara pela fronte esquerda.
Mulay caiu de lado e o carro ficou sem direção. O outro
veículo aumentou a velocidade, fazendo a ultrapassagem.
Brigitte endireitou o corpo, voltada para a frente.
Apoiando-se no encosto do banco da frente, alcançou o
volante com a mão esquerda. Manobrou-o com precisão. O
carro voltou para o meio da estrada. Pouco a pouco a
velocidade foi diminuindo. Em poucos segundos o carro
deteve-se bruscamente.
Com os olhos arregalados, Brigitte procurou o carro
perseguidor. Estava adiante, a uns quarenta metros de
distância. Dele desceram dois homens. Um de cada porta
traseira. Ambos de pistola em punho. Brigitte encolheu-se,
abrigada atrás da porta. Abriu-a e saiu do automóvel.
Escudando-se junto à porta aberta, apontou a pistola de
Ahmed e puxou o gatilho.
O homem em quem fizera pontaria deu um grito e levou a
mão livre à virilha esquerda. Dando um salto grotesco,
mergulhou de cabeça, rolando pelo asfalto. O outro deteve a
corrida, ergueu o braço direito, segurando o pulso com a
esquerda, apontando a pistola voltada para o carro dos
árabes.
“Baby” Montfort tornou a abrir fogo. O homem pareceu
transformar-se numa estátua. Ficou imóvel na mesma
posição agressiva, com os olhos muito abertos. Permaneceu
assim durante dois segundos e caiu lentamente para trás,
duro como um poste, sem soltar a arma.
Brigitte compreendeu que àquele, sim, causara um dano
terrível. Voltou-se, porém, para o primeiro, que engatinhava
para a margem da estrada, deixando um rastro vermelho e
brilhante no asfalto quente. A espiã poderia tê-lo imobilizado
com uma bala na fronte. Mas não atirou pela terceira vez.
Voltou sua atenção para o carro parado um pouco adiante.
Viu o motorista sair e correr para umas moitas de vegetação
que o esconderam.
— Pretendem atacar-me de fora da estrada — pensou a
divina espiã. — Na certa esperam que eu corra para o outro
lado.
Fez exatamente o contrário. Entrou no carro,
rapidamente, fechou a porta e passou para o banco da frente,
acomodando-se ao volante. Ligou o motor e deu a partida.
Calcou o acelerador e partiu a toda velocidade.
Olhou pelo espelhinho retrovisor. Um homem surgiu na
estrada, à retaguarda, já bem distante. Brigitte pousou a
pistola de Ahmed no banco, empurrando um pouco o
cadáver de Mulay. Avistando um atalho de terra batida, para
lá levou o automóvel, saindo assim da estiada principal.
Suspirou aliviada ao desligar o motor. No silêncio do
meio-dia, começou a ouvir o canto das cigarras. Voltou-se
para ver como estava Ahmed. O árabe continuava na mesma
posição. A espiã saiu do carro e entrou pela porta traseira.
Examinou Ahmed e respirou, ao verificar que estava vivo. O
ferimento sangrava bastante, mas não parecia ser grave.
Brigitte apanhou a pistola que deixara no banco da frente.
Limpou-a com a sala, para apagar suas impressões digitais, e
colocou-a na mão de Ahmed, fechando-lhe os dedos ao redor
do gatilho.
Só então abriu sua maletinha vermelha e apanhou o
necessário para um curativo de emergência. Quando
terminou a tarefa, acendeu um cigarro e preparou-se para
esperar que Saddam Ahmed voltasse a si.
No banco da frente as moscas começaram a zumbir em
volta do cadáver de Mulay. O sol batia em cheio sobre o
carro e o calor tornou-se insuportável.

CAPÍTULO QUARTO
O oásis

Quando Saddam Ahmed abriu os olhos, viu Brigitte


Montfort à sua frente. Contemplou-a com a vista turva,
estremeceu, e deu um pulo, levando as duas mãos à cabeça,
tornando a fechar os olhos.
— Fiz um curativo — explicou Brigitte. — O melhor
possível. Mas o senhor precisa de cuidados médicos. Está
sentado e acho aconselhável permanecer nessa posição.
Procure relaxar.
Saddam Ahmed ouviu a voz da norte-americana como se
viesse de longe. Uma voz suave, tranquila, acariciante.
Relaxou os músculos, deixando as mãos caírem nas coxas. A
lembrança do impacto que recebera na testa obrigou-o a
estremecer novamente.
O canto das cigarras chamou sua atenção. E o zumbido
das moscas.
Ergueu as pálpebras lentamente. Brigitte, sentada ao
volante e voltada para ele, o observava com uma expressão
impassível.
— E Mulay? — perguntou Ahmed, num sussurro.
— Está morto. Coloquei-o no porta-bagagem para evitar
que as moscas o comessem.
Os olhos de Ahmed abriram-se de todo. Ela sozinha
levara Mulay para a mala do carro e o acomodara lá? O
árabe olhou para a direita e para a esquerda. O ar estava
transparente, puro, dourado pelo sol.
— Onde estamos?
— Não faço a menor ideia — respondeu Brigitte.
— Que aconteceu?
— Os homens do outro carro atiraram em nós. Feriram o
senhor e mataram Mulay. Pulei para o banco da frente e
agarrei-me ao volante. O senhor feriu dois deles.
— Eu?
— Claro. Primeiro caiu como morto no banco, mas
ergueu-se logo, dizendo umas coisas que não entendi. Talvez
fossem xingamentos em seu idioma — murmurou Brigitte
sorrindo. — Gritou-me, em seguida, pedindo para parar o
carro. Obedeci. Encolhi-me no banco e o senhor atirou pela
janelinha. Depois mandou que eu prosseguisse na marcha.
Tornei a obedecer. Passamos pelo outro carro, que estava
vazio. Quando perguntei que rumo seguir, o senhor não
respondeu. Tinha perdido os sentidos. Ai, meti-me no
primeiro atalho, detive o carro e fiz um curativo em seu
ferimento. Isso é tudo.
Saddam Ahmed ouviu as explicações, com ar aturdido.
Finalmente balbuciou:
— Eu fiz tudo isso?
— Bem, Mulay estava morto. Logo, só pode ter sido o
senhor. Ou eu. Qual dos dois acha que enfrentou aqueles
homens armados?
— Quantos eram?
— Não sei. Três, parece. Não tenho certeza.
Ahmed levou a mão à testa, com cuidado. Sua cabeça
estava doendo. Não conseguia lembrar-se de tudo aquilo que
a senhorita Montfort estava dizendo.
— A senhorita está bem? — perguntou de repente,
inquieto.
— Fisicamente, sim. Emocionalmente, receio que o
trauma dure uma boa temporada. Não pretendo culpá-lo por
isso, senhor Ahmed, mas eu podia ter morrido. E sem saber
por que, nem quem me matava.
— Lamento profundamente, acredite. O ataque não foi
contra a senhorita, garanto. Lamento que tenha passado uns
momentos angustiantes.
— Se eu perguntar qual é o significado de toda essa
confusão, o senhor responderá que não sabe, hem?
— Ao contrário. Sei perfeitamente. Fomos agredidos
pelos israelitas.
— Ah... sim?
— Só podem ter sido eles.
Brigitte não fez comentários. Encarou Ahmed fixamente,
como se quisesse adivinhar os pensamentos do árabe.
— Mulay morreu mesmo? Tem certeza? — murmurou
Ahmed.
— Quer vê-lo?
Ahmed balançou a cabeça afirmativamente. Brigitte
retirou as chaves do contato e saiu do carro. Ahmed a imitou.
Quando a espiã ergueu a tampa do porta-bagagens, o
zumbido de moscas aumentou de intensidade. Os olhos de
Mulay estavam abertos. A fronte esquerda inchara bastante.
No lugar por onde a bala saíra, os estragos foram de arrepiar
qualquer um. Ahmed fechou o porta-bagagens, tomou as
chaves e murmurou:
— Eu dirijo até Nagma.
— Não vamos prevenir a policia?
— Que ganharíamos com isso?
— Bem, senhor Ahmed, mataram um homem. É possível
que o senhor tenha acabado com um ou dois.
— Antes de tomar uma decisão a respeito, é preferível
chegarmos ao Nagma. Depois, se julgar necessário, poderá
avisar a Guarda Civil. Em minha opinião, porém, o melhor
que podemos fazer para evitar qualquer tipo de problema é o
que a senhorita fez: usar de toda a discrição. Nossa queixa
sobre o que aconteceu de nada adiantaria. Em troca nos traria
uma infinidade de complicações.
— Pensei que na Espanha os senhores estivessem como
em suas casas.
— Não até esse ponto — exclamou Ahmed.
— Compreendo. Bem, não sei o que fazer. O fato de
guardar silêncio sobre o ocorrido não criará problemas para
mim?
— Se continuar calada, nada acontecerá. Será como se
nada se tivesse passado. As autoridades espanholas não se
preocuparão com isso. O problema será nosso e dos
israelitas.
— E meu? Não?
— Nós a manteremos à margem.
— Não sei...
— Por favor... vamos primeiro para Nagma. Depois tome
a decisão que achar mais conveniente.
— Está certo. Falarei com o Pai da Beleza, nessa
urbanização?
— Ainda não. Abul Hossn não está em Nagma. Mas
poderá falar com seu mais querido e chegado colaborador,
Manssur Al-Basri.
— Perfeitamente — resignou-se Brigitte.
— Vamos para Nagma. Faço votos que não nos detenham
pelo caminho.
***
Não tiveram dificuldade alguma. Em Nagma, nada mais
deveriam temer. A luxuosa urbanização demonstrava sua
privacidade, pela quantidade de vigilantes que passeavam
discretíssimos por entre os pinheiros e os jardins. Usavam
calça e camisa brancas. Não pareciam carregar armas.
Brigitte calculou, porém, que elas estivessem escondidas, ao
alcance daqueles homens.
— Precisava ter visto este lugar, antes de nós o termos
transformado no Nagma — explicou Saddam Ahmed. —
Não o reconheceria, garanto. A primeira providência foi
trazer água em abundância, naturalmente. Depois iniciamos
o repovoamento florestal. Pinheiros, palmeiras, flores de
todas as espécies, gramados... De qualquer ponto podemos
ver o mar. É fácil compreender que investimos aqui uma boa
quantidade de dinheiro. Não só na compra dos terrenos, mas
no preparo de tudo. Temos todo o conforto, atualmente.
Desde água a telex. A residência principal, ocupada, em
geral, por nosso amado Abul Hossn, vai surpreendê-la, sem a
menor dúvida.
— Mais que tudo isso? — murmurou Brigitte, fazendo
um gesto amplo com a mão.
— Muitíssimo mais. Logo chegaremos.
Brigitte contemplava o local, levemente extasiada.
Parecia um paraíso cheio de verdor e de colorido de mil
flores. Fontes pequenas lançavam para o alto o jato de suas
águas cristalinas. As casas ficavam muito separadas umas
das outras. Todas amplas, rodeadas de cercas de vegetação,
de flores, de pinheiros, de gramados, de palmeiras. O
colorido era vivo, alegre, agradável. As ruas da urbanização
eram largas e pareciam pavimentadas com vidro moído, tão
fina era a areia. Por entre flores, palmeiras e pinheiros,
Brigitte pôde entrever, de vez em quando, um Rolls Royce,
um Mercedes, um BMW.
— Morar aqui não está ao alcance de qualquer um, hem?
— murmurou ela, maravilhada.
— Acertou. No Nagma só admitimos árabes. Árabes
endinheirados, é claro. O contrário complicaria um pouco as
coisas.
— Em que sentido?
— Daqui a cinquenta anos as coisas podem estar de outro
modo. Por enquanto, são assim. Quer nos agrade ou não,
existem pobres e ricos. E os pobres e os ricos nada têm em
comum.
— Nem sequer o mesmo direito à vida?
— Oh, vamos, senhorita Montfort! Ninguém nega aos
pobres o direito à vida. Mas há de concordar comigo num
ponto: a senhorita mora num edifício em Nova York onde
dificilmente as coisas funcionariam se tivesse vizinhos
diferentes dos que tem. Ou no Crystal Building também
mora gente pobre?
— Não — balbuciou Brigitte.
— Lamentavelmente, existem níveis humanos.
Artificiais, bem sei, pois no início Alá não quis que fosse
assim. Tudo devia ser como parece lhe agradar... e a nós
também. Mas no momento seria impossível. Seria uma
enorme tolice incluirmos no Nagma a presença de pessoas
inadequadas. Tudo a seu tempo. Devemos saber esperar.
— Cinquenta anos?
— Por que não?
Brigitte não respondeu. Vendo tudo aquilo, contemplando
aquela beleza, teve a certeza de que os pobres jamais
viveriam num lugar igual àquele, no planeta Terra. Jamais.
Os que possuíam tanta riqueza não se conformariam em
dividi-la com a grande massa humana dos que nada
possuem.
— Como deve saber, estamos em plena Costa del Sol —
prosseguiu Ahmed. — Conhece-a?
— Um pouco.
— Há alguns anos isto não era assim. O dinheiro mudou
a aparência. Com dinheiro tudo se consegue...
Absolutamente tudo. Não concorda?
— Não.
— Cite algo incapaz de se obter com dinheiro — pediu
Ahmed, rindo.
— Muitas coisas, além da saúde, por exemplo. Já tomou
conhecimento da morte do Xá Mohamed Reza Parhlevi, não
é mesmo4?
— Era um homem moderadamente rico — murmurou o
árabe, sorrindo. — Quanto à saúde... Que mais?
— A lealdade.
— Tudo se compra.
— O que se compra não é lealdade. Apenas: serviços.
Serviços que podem perder-se, se alguém oferecer mais
dinheiro por eles.
— Mas quem os conseguir, o terá feto à custa de
dinheiro. Assim, voltamos ao ponto de partida. Que está
olhando com tanto interesse?
— Os telhados de algumas casas. Não são comuns. Eu
diria que são... ou que parecem... placas solares.
— Acertou — disse Ahmed, entusiasmado. — São placas
solares. Estamos, simplesmente, obtendo energia solar.
Brigitte observou as placas que cobriam os telhados de
algumas casas. Brilhavam ao sol, formando amplos painéis.
4
Mohammad Rezā Shāh Pahlavi foi o xá do Irã de 16/09/1941 até sua derrubada
pela Revolução Iraniana, em 11/02/1979. Nasceu em Teerã, em 26/10/1919 e
morreu em 27/07/1980. NR
Contara seis casas com placas solares no telhado. Na certa
haveria muitas mais.
— Por algum motivo especial? — perguntou ela, de
repente.
— A obtenção de energia solar? Oh, bem, simples
atualização de ideias, previsão do futuro. Como preferir
chamar.
— Um futuro indicando que dentro de cinquenta anos o
petróleo se terá esgotado no planeta Terra?
— Que Alá não o permita — implorou Ahmed. — Estas
instalações de placas solares, na verdade, servem para certos
estudos, não nego. São uma amostra da nossa simpatia para
com Sua Majestade Juan Carlos I.
— O rei da Espanha? Não compreendo.
— Consta-nos que Sua Majestade Juan Carlos I é um
admirador da energia solar. A tal ponto que instalou uma
placa para sua obtenção, nos telhados da garagem do palácio
da Zarzuela. Foi um investimento considerável, mas breve
estará amortizado, com a economia de combustível...
convencional. Por enquanto, essa energia destina-se apenas à
obtenção de água quente para o palácio. Mas talvez seja um
teste visando a uma instalação definitiva para todos os
serviços. Como sabe, a obtenção de energia solar depende
ainda de inúmeros aperfeiçoamentos.
— É o que os senhores fazem aqui? Pesquisas a respeito?
— Não seria inteligente da minha parte negar, pois a
senhorita tem dado provas de sua grande perspicácia.
Estamos chegando ao Generalife.
— Aonde? — balbuciou Brigitte, espantada.
— Ao Generalife — repetiu Ahmed, rindo. — Alegro-me
por tê-la espantado tanto. Sabe o que é El Generalife, sem
dúvida, hem?
— Julgava saber. Mas se me diz que o Generalife está
aqui, perto de Málaga, já não entendo mais nada. Segundo o
que aprendi, o Generalife era o palacete de verão dos reis
árabes residentes em Granada. Não me diga que compraram
o Generalife aos espanhóis e o trouxeram para cá!
— Não, não — murmurou Saddam Ahmed, tornando a
rir. — Além de não ser provável que eles vendessem, seria
muito mais custoso que construir uma réplica no Nagma. O
Generalife autêntico continua em Granada, perto do
Alhambra. Mas ali temos o nosso, senhorita Montfort.
Saddam Ahmed deteve o carro numa pequena elevação
da estrada. A quinhentos metros de distância, no centro de
uma esplanada florida, destacava-se a enorme e branca
construção, com suas grandes arcadas, suas fontes e seus
minaretes. O ruído da água chegou aos ouvidos de Brigitte,
junto com o perfume das mil flores dos jardins. O verde dos
gramados destacava-se ao sol, brilhante.
— Santo Deus! — sussurrou a jornalista internacional. —
É o lugar mais lindo que já vi em toda a minha vida!
— Alegro-me que pense assim. Neste lugar, a senhorita
vai ser a nossa hóspede mais estimada. Que tal
continuarmos? Vai gostar de conhecer Manssur Al-Basri,
garanto. Ele está à nossa espera.
***
Manssur Al-Basri os estava esperando, realmente, numa
das amplas salas mergulhadas na penumbra e envoltas num
frescor delicioso. O sol nada podia contra as grossas paredes
do palacete, nem contra a sabedoria da construção. Através
dos grandes arcos avistavam-se os jardins repletos de flores e
as fontes. O ruído da água, chegando de todos os lados,
contribuía para aumentar a sensação de frescor e de
tranquilidade, de uma paz inacreditável.
Quando entraram na sala, Manssur Al-Basri levantou-se
do monte de almofadas onde estava recostado e no qual
também se encontravam algumas mulheres muito belas e
seminuas. Foi ao encontro dos recém-chegados, fazendo
esvoaçar sua túnica larga, de tecido leve. Em seus lábios,
grossos e arroxeados, cercados por uma barba grisalha,
flutuava um sorriso pastoso, como se fosse feito de mel
reluzente. Contemplando aquelas feições enérgicas, de nariz
aquilino, Brigitte calculou que tivesse quarenta e poucos
anos. Os olhos negros, semelhantes aos de um falcão,
demonstravam a energia que o dominava.
Pararam frente a frente. Manssur ficou diante de Brigitte
e Ahmed um pouco de lado.
— Senhorita Montfort — disse Ahmed —, apresento-a a
Manssur Al-Basri, a mão direita de Abul Hossn e secretário
principal da Chamsedin.
Manssur Al-Basri inclinou-se, tocando com os dedos da
mão direita o estômago, o coração e a boca. Quando ergueu
o olhar, os olhos azuis da jornalista faiscavam.
— Como vai, senhor Al-Basri? — perguntou ela.
— Encantado por conhecê-la. Considero isso um
privilégio.
— Um privilégio? — perguntou Brigitte com ar ingênuo.
— Por que?
— Em minha opinião, a senhorita é uma das pessoas mais
importantes do mundo atual.
— Acha mesmo? — balbuciou Brigitte, espantada. —
Talvez não esteja bem informado a meu respeito, senhor Al-
Basri.
— Sabemos tudo sobre a senhorita — murmurou
Manssur, sorrindo.
Brigitte enrugou deliciosamente a testa. Tudo? Seria
saberem muito. A Chamsedin saberia que ela dirigia uma
organização recentemente em funcionamento e que tinha o
nome de Organização do Amor Unido? Saberia que era a
agente “Baby”. Saberia que sua mãe, Giselle Montfort,
morrera fuzilada pelos alemães no pátio de uma prisão
francesa? Saberia que amava Número Um, o solitário espião
que morava numa vila na ilha de Malta, perto de La Valetta?
Saberia que ela tinha amigos em todos os serviços secretos
do mundo? E inimigos, também, em toda a parte? Saberia
que ela era quinto dan de judô, primeiro dan de caratê, que
podia pilotar qualquer aparelho, atirar com qualquer arma,
fazer frente a qualquer situação? A Chamsedin saberia de
tudo isso a respeito de Brigitte Montfort?
— Isso indica que se interessaram muito pela minha
pessoa. Enganei-me?
— De modo algum. Principalmente a partir do momento
em que, há alguns meses, seu nome soou como um possível
candidato à presidência dos Estados Unidos.
— Ora, aquilo foi quase uma brincadeira de um partido
feminino...
— Brincadeira? — exclamou Al-Basri, arqueando as
sobrancelhas. — Claro que não! Esse partido, o Women
Totaldemocracy Party, tinha e continua tendo os mesmos
direitos legais dos outros partidos americanos. Logo, podia
apresentar um candidato: a senhorita. Sabemos que as
pesquisas norte-americanas apuraram a votação provável. A
senhorita Montfort contaria com a totalidade dos votos
femininos de seu país e com uma grande quantidade de votos
masculinos, obtidos pelas mulheres, mães e filhas dos
americanos. No entanto, renunciou ao posto que o senhor
Carter e o senhor Reagan tanto desejam. Posso saber por que
renunciou?
— Expliquei em minha aparição na TV, senhor Al-Basri.
Tudo isso são águas passadas.
— Claro. Oh, por favor, perdoe minha descortesia. Fez
boa viagem?
— Não.
Manssur Al-Basri assustou-se e seu olhar de falcão pulou
vivamente para Saddam Ahmed, que se apressou a explicar:
— A senhorita Montfort refere-se à última parte da
viagem, sem dúvida. Não é assim, senhorita?
— Realmente.
— Que aconteceu? — perguntou Manssur, tornando a
encarar Ahmed.
— Mataram Mulay — explicou o interrogado. — Quase
me mataram também. Este curativo não foi causado por um
acidente, Manssur, como você pode ter imaginado. Foi uma
bala.
— Os israelitas?
— Quem, senão eles?
— Dadas as circunstâncias, presumo que a senhorita
Montfort esteja fatigada e alterada — disse Al-Basri,
enrugando a testa. — Peço mil perdoes pelos contratempos,
senhorita. Estava à sua espera para almoçarmos juntos, mas
talvez prefira descansar, não é mesmo?
Brigitte compreendeu. Os árabes queriam ficar a sós para
discutir os últimos acontecimentos.
— Para ser sincera, agradeceria muito um banho e um
pouco de descanso — murmurou ela, sorrindo. — Não estou
propriamente cansada. Apenas um pouco alterada. Não tenho
o hábito de me envolver em tiroteios.
— É natural que esteja assim. Não sabe o quanto lamento
essa infeliz circunstância, inteiramente alheia à nossa
vontade.
— Não tão alheia, senhor Al-Basri.
— Pensa assim, hem? — murmurou Manssur, surpreso.
— Ouvido muito que aqueles homens pretendessem
alguma coisa contra mim. Logo, segundo todas as
aparências, deviam querer matar o senhor Ahmed. Assim, o
ataque não era absolutamente alheio aos senhores e sim
relacionado com os senhores.
— Seu raciocínio tem bastante lógica — disse Manssur
Al-Basri, esboçando um sorriso. — Espero que não tenha
novos aborrecimentos desse tipo, no futuro. Mandarei
acompanhá-la até seus aposentos. Mandarei também que lhe
preparem um banho a seu gosto.
— Há banheiros no Generalife?
— Fizemos algumas adaptações no antigo palacete,
condicionando-o aos tempos atuais respondeu Manssur,
depois de dar uma gargalhada. — Encontrará aqui todas as
comodidades modernas, sabiamente harmonizadas com as
belezas arquitetônicas do passado. Vai adorar seus
aposentos, tenho certeza. Encontrará neles uma porta e um
banheiro. Desejo que tique definitivamente claro que a
senhorita é para nós uma pessoa digna das maiores atenções
e de imensa simpatia.
— Era o que eu imaginava. Mas continuo fazendo-me a
mesma pergunta: por que?
— Está disposta a falar com Abul Hossn, amanhã
mesmo?
— Claro. Quanto antes, melhor.
— Prepararei tudo para amanhã. Saddam já deve ter
mandado levar sua bagagem para os aposentos onde ficará
instalada. Assim sendo, só me resta ordenar que a
acompanhem até lá. Se desejar qualquer coisa, é só pedir.
Seja o que for.
— Obrigada.
Manssur voltou-se para o grupo de moças recostadas nos
almofadões e disse algumas palavras em seu idioma. Duas
ficaram de pé imediatamente e se aproximaram de Brigitte.
Uma delas fez um gesto, para apanhar a maletinha vermelha,
mas a espiã a deteve, embora agradecendo com um olhar
aquela ajuda desnecessária.
— Como poderei entender-me com elas? — perguntou,
dirigindo-se a Manssur.
— Falam algumas palavras de francês, entendem um
pouquinho de inglês e quase conseguem comunicar-se em
espanhol. De todas as maneiras, são muito serviçais. Pouco
terá a lhes dizer. Sabem o que devem fazer.
— Perfeito. Até logo.

CAPÍTULO QUINTO
Uma festa das Mil e Uma Noites

Brigitte acordou da sesta por volta das cinco da tarde.


Ficou imóvel, contemplando o teto muito branco. Ouvia o
ruído da água no jardim. Mais nada. Aquela viagem tinha um
lado bom; estava dormindo tanto que suas “baterias de
reserva” se achavam carregadas até às bordas.
Usando apenas a camisola de dormir mais leve que
trouxera na bagagem, aproximou-se de um dos arcos. Pelo
janelão amplo avistou os jardins. O sol ainda brilhava com
intensidade. No quarto, porém, a penumbra dava ao
ambiente um clima gostoso e repousante.
— Estou com fome — disse ela em voz alta.
Bateu palmas e quase no mesmo instante apareceram as
duas moças que a tinham acompanhado, horas antes. Eram
muito jovens. Talvez ainda não tivessem atingido os dezoito
anos. E muito bonitas, com os olhos rasgados, lábios
carnudos e um sorriso doce. A indumentária, quase toda de
gaze, deixava à mostra os selos e o ventre, bem como as
pernas bem tombadas.
— Posso comer qualquer cosa? — perguntou Brigitte. —
Não almocei hoje. Entenderam?
As duas contemplavam a hóspede, sorrindo. Não
pareciam muito seguras do que ela acabara de dizer em
inglês. Brigitte repetiu em francês e em espanhol. No último
idioma foi inteiramente compreendida. Pouco depois
trouxeram uma bandeja cheia de frutas, o que muito agradou
à jornalista-espiã. Enquanto comia, as duas moças ficaram
paradas observando-a, sempre sorridentes e atentas.
— São esposas de Manssur Al-Basri? —perguntou
Brigitte, recorrendo diretamente ao espanhol. — Ou algo
parecido?
— Esposas, não — respondeu uma delas.
— Compreendo. Como se chamam? Seus nomes?
— Zaida.
— Fidda.
Brigitte continuou comendo as frutas. Sentia-se muito
bem ali. O quarto era enorme, fechando-se com uma porta
sólida, de madeira. O banheiro individual também era amplo
e possuía todo o conforto moderno. No interior não haviam
respeitado a distribuição do Generalife original. O banheiro
fora decorado com azulejos e mármore. No quarto havia uma
cama enorme, um armário disfarçado na parede, alguns
almofadões, um divã, duas poltronas e uma escrivaninha de
madeira trabalhada.
— Podem levar — disse Brigitte, parando de comer e
apontando a bandeja. — E, por favor, digam a Manssur que
estou disposta a conversar com ele, quando quiser.
— Manssur não está — informou uma das moças. — Está
em Málaga com Saddam.
— Os dois foram para Málaga? Vejam só... Deixaram
algum recado para mim?
— Voltarão logo — informou Zaida.
— Ainda com o sol — acrescentou Fidda.
Brigitte enrugou a testa um segundo, mas aceitou a
situação, que lhe pareceu um tanto descortês. Escolheu um
vestido de tarde e arrumou-se. Saiu do quarto e percorreu o
palacete durante mais de uma hora. Das galerias em arcadas
avistou umas construções afastadas, em estilo de chalés, em
cujos telhados destacavam-se as placas solares.
— Chocante — pensou mais uma vez.
Embora inteligente. Estarão interessados, também, na
energia nuclear? Na opinião dos entendidos, a energia
atômica é o futuro energético da Terra. Mas existirá algo
mais durável que o sol? Principalmente este, tão brilhante,
tão possante?
Sem a menor dúvida aquele trecho do planeta era uma
das zonas privilegiadas quanto à luz solar. Não apenas na
intensidade. Também na quantidade de dias de sol durante o
ano.
Graças a seu ouvido apuradíssimo, Brigitte foi a primeira
a captar o zumbido do helicóptero. O aparelho apareceu
segundos depois, como uma estrela fulgente brilhando ao
sol. A divina semicerrou as pálpebras e o contemplou, de
uma das galerias, do lado da piscina. Um movimento no
jardim atraiu sua atenção. Dois homens de calça e camisa
brancas apareceram de repente, correndo. Logo
desapareceram do campo visual de Brigitte, que tornou a
olhar para o helicóptero. Voava muito alto e por isso ela
deduziu que não ia pousar na urbanização.
Seguiu por outra galeria, de onde poderia observar o
exterior do palacete. Viu novamente o helicóptero. Nas
habitualmente desertas alamedas do Nagma, surgiram três
automóveis pretos, movimentando-se lentamente. Alguns
dos empregados da urbanização continuavam imóveis junto
aos pinheiros e às palmeiras.
Estariam esperando um ataque, por acaso? Um ataque
judeu?
— Pelo jeito, como sempre, meti-me numa complicação
— murmurou ela, reflexiva.
Um faiscar brotou do helicóptero. A espiã internacional
arqueou as sobrancelhas, surpresa. Aquele faiscar tinha ritmo
e medida. Alguém do helicóptero, utilizando um espelho,
enviava uma mensagem. O aparelho viera da direção sul e
logo desapareceu em direção norte. Minutos após os três
carros pretos também desapareceram das alamedas. Os
homens de branco, que tinham permanecido imóveis juntos
aos pinheiros e palmeiras, também sumiram como por
encanto. O silêncio voltou a imperar. Uma calma absoluta
tomou conta do lugar. Brigitte achou estranho o fato de
ninguém entrar ou sair dos chalés que rodeavam o palacete.
Não se avistava um único ser humano. Nem carros. Exceto
os três que vira pouco antes e que desapareceram, quando o
helicóptero perdeu-se na claridade do céu. Os chalés
estariam desabitados? Ninguém moraria neles? Haveria
apenas o pessoal do palacete?
Minutos mais tarde, Brigitte caminhava ao sol, por uma
das alamedas. Com passos lentos, avançou em direção ao
chalé mais próximo. Por entre a vegetação distinguiu as
roupas brancas dos empregados do Nagma. Nenhum deles,
porém, aproximou-se dela. Como se não estivessem ali,
observando-a. Ou como se ela não existisse, simplesmente.
O silêncio era profundo. Inacreditável. Apesar de ser quase
sete da tarde o sol ainda estava forte. Bem, a Espanha tinha
seu horário de verão. Por ele, ainda eram cinco da tarde.
Brigitte parou diante da porta de um dos chalés com
placas solares no telhado. Suspirou aliviada ao chegar à
sombra do alpendre. Estava tudo em ordem, limpo, perfeito.
Vasos com gerânios enfeitavam a varanda. A porta do chalé
estava fechada à chave. As janelas, protegidas por dentro
com postigos pintados de branco, não deixavam ver o
interior. Tudo continuava igual, como se a espiã não
existisse.
Com o mesmo passo lento e descansado, Brigitte voltou
para o palacete que ocupava o centro da luxuosa e enorme
urbanização. No ponto onde fora construído, não podia ser
visto dos limites externos daquele agrupamento de casas.
Parecia um mundo privado.
“Que teriam ido fazer em Málaga Manssur Al-Basri e
Saddam Ahmed?” — pensou Brigitte, intrigada.
Os dois votaram uma hora mais tarde, de automóvel, pela
parte sul da urbanização.
***
Brigitte notou que o ferimento da testa de Ahmed fora
cuidado por um profissional. Isso nada significava, pois sem
dúvida dispunham de um médico no palacete e Ahmed
poderia ter partido para Málaga depois de atendido.
— Ah, senhorita Montfort — exclamou Manssur Al-
Basri, avançando ao encontro dela. — Pedimos perdão por
tê-la deixado sozinha. Surgiu um imprevisto e, como a
senhorita estava dormindo, achamos que ser a uma
descortesia incomodá-la. Podemos contar com sua
compreensão?
— Claro. Espero que esse imprevisto não seja nada
inquietante, senhor Al-Basri.
— Uma questão de finanças, apenas. Não merece
comentários. Saddam explicou-me o que se passou quando
vinham do aeroporto para cá. Não saberei dizer o quanto
lamento, nem expressar minha admiração e meu
agradecimento pela maneira como a senhorita se comportou.
— Eu apenas dirigi o carro.
— Ah, sim... mas em circunstâncias perigosas. Jamais
nos perdoaríamos se lhe tivesse acontecido alguma coisa.
Seria horrível! Descansou bastante e sente-se à vontade no
palacete?
— Sim, obrigada. É um lugar muito... repousante.
— Há séculos vivia-se de outro modo — murmurou
Manssur, sorrindo. — A arquitetura atual contém mais
elementos de conforto. O mesmo não acontece quanto à
calma, quanto à serenidade. Hoje em dia existem
pouquíssimas pessoas capazes de gozar as delicias do ruído
da água e a beleza do brilho do sol. Sabe que aprecio
imensamente essas coisas?
— O senhor? — balbuciou Brigitte, rindo.
— Sim. Mas não muito. Sou um pouco inquieto. Nosso
Pai da Beleza, em troca, é capaz de passar horas inteiras
sentado, observando as fontes, as fores, apreciando a música
das primeiras e a beleza das segundas. Por falar nisso,
amanhã poderá ver Abul Hossn.
— Ótimo — exclamou Brigitte, encarando Manssur
fixamente. — Que fizeram com Mulay?
— Já cuidamos desse ponto, não se preocupe. Não se
importa de Vaiar de helicóptero?
— Não. Esta tarde passou um por aqui. Sobrevoou o
palacete. Pensei que fossem vocês.
— Não. Saddam e eu vinhamos comentando que talvez a
senhorita gostasse de assistir a uma dança marroquina, esta
noite. Gostaria?
— Sem dúvida — respondeu Brigitte, sempre sorrindo.
— Vocês são marroquinos?
— Já leu as Mil e Uma Noites? — perguntou Manssur
Al-Basri, depois de convidar a hóspede a sentar-se nos
almofadões a seu lado.
— Já. Quem não leu?
— Muita gente, garanto. Bem, se leu, talvez se recorde
dos nomes de alguns personagens. Pois nós usamos nomes
árabes de diversas procedências, principalmente os dos
contos das Mil e Uma Noites.
— Ah, então os nomes de vocês são falsos?
— Sim. A Ghamsedin é composta por árabes de diversas
procedências. Por isso, para nossas relações com pessoas
alheias à organização, adotamos nomes que nada significam.
— Isso não me agrada muito, senhor Al-Basri.
— Compreendo. Mas entenderá amanhã, quando falar
com Abul Hossn. Se aceitar as propostas dele, será
considerada um dos nossos. Se desejar, então, saberá nossos
verdadeiros nomes e os lugares de procedência de cada um,
dentro do mundo árabe. Hum... Fui informado de que esteve
num dos chalés solares e demonstrou vontade de entrar, mas
não conseguiu.
— Exato.
— Se deseja, realmente, não vejo inconveniente algum
em acompanhá-la ao interior do chalé embora deva
esclarecer que nada existe lá dentro capaz de merecer sua
atenção.
— Imagino — murmurou Brigitte. — Tive a impressão
de que estão desabitados. Todos estão assim? Desabitados?
— Não. Apenas alguns. Em outros temos hóspedes. Nos
que há placas solares encontra se o pessoal que trabalha no
aperfeiçoamento da obtenção de energia solar.
— Então o Nagma é uma espécie..... usina... ou uma
instalação industrial?
— Mais ou menos. Temos gente qualificada para essas
pesquisas de aperfeiçoamento. Deseja ver um dos chalés
onde trabalham de sol a sol?
— Gostaria bastante — tornou a murmurar Brigitte.
— Saddam se encarregará dos preparativos da pequena
festa de hoje à noite. Enquanto isso eu terei imenso prazer de
acompanhá-la. Entende um pouco de tudo isso? De termos
científicos, digamos?
— Não creio. Sei apenas que o sol é fonte de energia e
que é possível captá-la por intermédio das placas solares.
— É o suficiente — disse Manssur, balançando a cabeça,
em um gesto de resignação. — Tentaram explicar-me várias
vezes como funciona tudo isso, mas achei complicado
demais para um homem tão ocupado como eu.
— Comigo aconteceria o mesmo — balbuciou Brigitte,
rindo. — Minha curiosidade, portanto, ficará satisfeita,
dando uma olhadela nos chalés.
Manssur Al-Basri levantou-se. Saíram do palacete e
dirigiram se ao chalé no qual Brigitte não conseguira entrar.
— Podemos visitar este, se quiser — disse o árabe. —
Verá apenas instalações preparadas para a chegada de mais
pesquisadores. Acho melhor levá-la a um onde realizam o
trabalho, neste momento.
O chalé seguinte ficava a quase trezentos metros do
anterior e tinha o mesmo aspecto de abandono. Mas a porta
estava aberta. Manssur Al-Basri cedeu a passagem à
convidada. Havia um vestíbulo pequeno, com alguns bancos.
Diante da porta de entrada, abria-se outra. Manssur a
empurrou. O resto da construção destinava se ao laboratório.
Não havia quartos, nem sala nem cozinha. Só o laboratório e
alguns banheiros. Meia dúzia de homens voltou a cabeça,
quando Manssur abriu a porta. Brigitte notou que apenas um
deles era árabe. Os outros eram de raça branca. Um era
alemão, sem a menor dúvida. Todos usavam aventais
brancos, compridos. Nada mais. A temperatura era fresca e
agradável. O zumbido da refrigeração ecoava no ambiente.
Dos seis homens, cinco reiniciaram o trabalho, como se
estivessem sozinhos, como se nada tivesse mudado. O árabe
aproximou-se dos visitantes e perguntou algo em seu idioma
a Manssur.
— Apresento-a a Abdala — disse Manssur Al-Basri,
olhando para Brigitte. — É um dos nossos técnicos em
estudos energéticos e dirige este chalé. Não preciso
apresentá-la. No futuro, poderá entrar aqui quando quiser.
— Abdala compreende minhas palavras, naturalmente.
Acrescentou qualquer coisa em árabe e Abdala
cumprimentou Brigitte, voltando em seguida para o trabalho.
A espiã olhou ao redor. Não entendia nada de tudo aquilo,
mas isso não a deixou preocupada.
— Até agora conseguimos superar bastante as limitações
iniciais a respeito da obtenção da energia solar — explicou
Manssur, apontando uns tubos condutores. — Esquentar
água e obter outras fontes de calor deixaram de ser
interessantes para nós. Preocupamo-nos, atualmente, com a
concentração de energia solar em pilhas ou baterias de
elevada potência. Isso, na verdade, já fazem pesquisadores
de países tecnicamente muito adiantados. Como o seu, por
exemplo. Mas...
— Há aqui algum técnico americano? — perguntou
Brigitte.
— Neste chalé, não. Mas temos alguns. Nós...
— Um momento, por favor — cortou Brigitte. — Aqui só
se trabalha com o sol? Não pensam em contar com a energia
nuclear?
— Se houver necessidade, utilizaremos a energia nuclear
como auxiliar e nada mais. Em nossa opinião, esse tipo de
energia, além de ser perigoso, não tem muito futuro. O sol,
em troca... Ah, o sol! Como sabe, nós, árabes, sempre
amamos o sol. E agora, na era da técnica, vemos que estamos
com a razão. Nada existe na parte do universo acessível a
nós que possa ser superior ao sol. Ele é fonte de toda a vida e
de toda a energia.
— Um dia o sol morrerá — murmurou Brigitte.
— Sim. Mas esse dia está muito longe. Quando ele
chegar, nada mais poderemos fazer. Sem o sol, todos nós
morreremos. Não acha, portanto, inteligente basearmos
nossa vida na vida do sol, aproveitando os benefícios que ele
nos pode oferecer?
— Parece razoável.
— É, sem dúvida alguma. Pois é o que fazemos.
Tentamos descobrir um modo de obter os máximos
benefícios do sol, aperfeiçoando as técnicas conhecidas até
agora. Nosso objetivo é conseguir que um país como a
Espanha, por exemplo, consiga abastecer-se com meia dúzia
de usinas de energia solar, Isso parece muito distante, bem
sei, senhorita Montfort. Mas o que é o tempo? É algo que
durará mais que o sol. Logo, dispomos de tempo em
quantidade ilimitada. Pouco importa se nós dois
desaparecermos. O tempo continuará existindo. E os homens
continuarão procurando um meio de alcançar nossos
propósitos. O tempo é ilimitado. Nós, as pessoas, somos
como as folhas de uma árvore. Umas podem morrer e cair.
Folhas novas brotarão na mesma árvore. O importante,
então, é cuidarmos da árvore. Isto é: da Humanidade. A
Humanidade é a árvore e nós as folhas a serem substituídas.
Acha que devemos deixar de regar a árvore porque um dia
seremos obrigados a nos desprender dela? Seria um egoísmo,
não concorda? Deixarmos a árvore morrer, só porque nós,
um dia, vamos morrer...
— Disse palavras muito bonitas, Manssur — balbuciou
Brigitte.
— Alegro-me que pense assim — murmurou o árabe. —
Isso indica que também cuidará da árvore da vida, sem se
importar com o fato de um dia ser obrigada a se desprender
dela. E faz isso sem o menor egoísmo, pois sabemos que não
tem família. Logo, não age pensando nos parentes, nos
descendentes. Sua generosidade será recompensada,
senhorita Montfort.
— Não espero recompensa alguma.
— Essa é sua melhor recompensa — disse Manssur,
sorrindo. — Não precisar de recompensa alguma. Nem
sequer esperar por ela. O amor pelo amor. Mas voltemos aos
problemas técnicos. Como deve ter compreendido, a
Chamsedin dispõe de recursos financeiros de tal envergadura
que nem eu mesmo e talvez nem o próprio Abul Hossn
poderemos fazê-la compreender a magnitude da organização.
Isso significa que, durante anos e anos, poderemos financiar
qualquer tipo de estudos sobre a energia solar. Voltando a
ela, vejamos: quando o sol incide nos painéis especiais...
— Senhor Al-Basri — cortou Brigitte. — Não se
incomode mais. Já sei o que queria saber. Se quiser saber
mais sobre os processos do trabalho, perguntarei. Ou lerei
qualquer obra de divulgação sobre o assunto. Vocês desejam
que, dentro de cinquenta anos, o mundo esteja são e produza
o melhor que se possa esperar do planeta? Correto?
— Sim, é a ideia base.
— Então explique, agora, o tipo de festa de logo à noite.
Será mais interessante que explicar como conseguir que o sol
faça o que tem feito sempre, isto é: dar vida a tudo quanto
ilumina.

CAPÍTULO SEXTO
Clínica de luxo

— Esta dança chama-se Shidus — explicou Manssur,


apontando os homens e mulheres que dançavam no centro do
salão. — Os homens acompanham-se com aquele
instrumento chamado bandir e as mulheres cantam.
— Que cantam elas? — perguntou Brigitte, divertindo-se
com a festa preparada em sua homenagem.
— Nada importante. As canções costumam ser
improvisadas no momento da dança. Existem inúmeras
variedades. Cada tribo berbere se esmera em oferecer uma
versão mais sugestiva que a outra.
— Compreendo... mas que dizem as canções?
— Falam de amor, de alegrias, de tristezas. Ninguém se
preocupa muito com a letra. O importante é a dança. Observe
como as mulheres ondulam o corpo.
— Não parecem provocantes demais, hem?
— Ah, a ideia não é essa. Os movimentos devem ser
ágeis, agradáveis, mas discretos.
— É mesmo? Pensei que essas danças tivessem a
intenção de... excitar.
— A excitação é um problema pessoal. Também temos
danças para isso, é claro.
— A Dança do Ventre, por exemplo? —murmurou
Brigitte, rindo.
— Por que não? Em minha opinião, porém, existem
coisas melhores para excitar alguém. Mas veja! Agora os
pares dão-se as mãos. Talvez esta dança não seja a mais
original que lhe podemos oferecer. Mas o tempo foi pouco
para a escolha. Na próxima vez, espero conseguir algumas
sijat de Tiznit, por exemplo. São bailarinas que dançam ao
som da música de rabel e vestem-se de negro, usando um
véu branco. O mundo árabe possui tantas danças e
manifestações folclóricas que seria necessário uma vida
inteira para conhecê-las e compreendê-las. E nós, por
enquanto, temos outras coisas mais importantes a fazer.
— Divertir-se, de vez em quando, é bastante saudável.
Ou não?
— Naturalmente — disse Manssur, encarando Brigitte
com um olhar fixo. — Por que falou assim?
— Estava pensando em Mulay. Ele está morto e ainda
hoje pela manhã estava vivo. Talvez ele também gostasse de
assistir a esse espetáculo.
— Compreendo. Conhece literatura árabe, além das Mil e
Uma Noites?
— Não muita — respondeu Brigitte, rindo.
— Há dias lembraram-se de um dos nossos poetas,
falecido no ano 211... quero dizer: no ano 826, segundo as
contas de vocês. O poeta em questão chamava-se Abul-
Atahiya. Vou recitar uns versos dele: A Morte é realidade,
mas eu continuo alegre. E como se sabendo que existe a
negasse.
— Negar a morte?
— Nós também a chamamos “A mãe dos abutres”.
— Chamem como quiser, a morte existe. Santo Deus, que
tolice acabo de dizer! A morte existe! Mas você me
entendeu, não é, Manssur?
— Sim. A Mãe dos abutres existe. Mas isso deve ser
motivo de tristeza? Nosso bom Mulay foi assassinado, é
verdade. Ele, porém, descansa em paz. Nós estamos vivos e
isso não significa que sejamos mais felizes que Mulay.
— Acredita que Mulay esteja no Paraíso de Alá?
— Por que não? Se assim for, há de estar gozando os
cantos e as danças das mais belas huris. Afortunado Mulay!
Brigitte encarou Manssur Al-Basri durante um segundo.
Finalmente, esboçou um sorriso e tornou a voltar sua atenção
para os bailarinos que rodopiavam de mãos dadas. Aquele
mundo onde mergulhara de repente era bem esquisito. O que
para ela não parecia ter significado algum, encantava os
jovens bailarinos. Ahmed e os outros árabes também
pareciam transportados a outro mundo. Todos os convidados
eram árabes. Os empregados de raça branca não
participavam da festa, durante a qual se comia, pilheriava-se
e ria-se. Todos eram muito simpáticos e gentis. Notava-se
que a preocupação principal era agradar a convidada
americana.
O chefe ali, na ausência de Abul Hossn, era
indiscutivelmente Manssur Al-Basri. Ele dirigia tudo com
olhares, com gestos quase imperceptíveis. Brigitte sabia que
ao redor dela, começando pelo próprio Manssur e
terminando pelo sorridente Ahmed, todos os árabes eram
pessoas habituadas a contatos mundanos. Conheciam
refinamentos de sociedade. Eram cultos e inteligentes.
Ela era a convidada e ofereciam o que, na opinião deles,
mais poderia agradar-lhe.
— Posso recitar outros versos de Abul-Atahiya — disse
Manssur, inclinando-se para Brigitte Montfort. — Gostaria
de Ouvir?
— Claro.
— Ouça: caíste neste mundo desnudo e sozinho. E sairás
dele e seguirás sozinho.
— Isso convida à reflexão.
— Tudo que se relaciona com a morte convida à reflexão.
Mas não em momentos como este. Mais um pouco de
caviar?
Brigitte ia responder quando notou a entrada de um
homem no salão. Observou Manssur. Também ele percebera
a chegada daquele homem. Brigitte olhou para o recém-
chegado. Era um dos vigilantes do Nagma, mas estava de
camisa e calça pretas. O homem contornou o grupo de
bailarinos, andando apressado. Ahmed também o viu. Mas o
homem dirigiu-se a Manssur. Inclinou-se para ele e
murmurou algumas palavras ao ouvido do chefe. Brigitte
notou a rigidez das feições de Manssur e ouviu as palavras
dele, baixas e cortantes, em árabe. O vigilante noturno
afastou-se e saiu do salão.
Saddam Ahmed fez uma pergunta a Manssur e este
respondeu rapidamente. Ahmed empalideceu. Levantou-se e,
também contornando os bailarinos, abandonou o salão.
— Aceito — disse Brigitte. — Com um pouquinho de
cebola picada.
— O quê? — balbuciou Manssur, inquieto.
— O caviar. Você me ofereceu caviar. Espero que seu
criado não tenha vindo dizer que acabou e o bom Ahmed
saiu apressado para ir a Málaga comprar mais. Caviar russo,
naturalmente. Não sei por que, há muito tempo o caviar
iraniano perdeu minha simpatia. Sinto muito.
Lentamente um sorriso apareceu nos lábios de Manssur
Al-Basri e com voz suave ele murmurou:
— Não perde detalhe algum do que se passa à sua volta,
hem?
— Um jornalista deve ser uma pessoa observadora. Está
acontecendo algo ruim?
— Pequenos contratempos que não a atingem. Fique
descansada. Temos caviar russo, naturalmente.
— Não vai dizer-me o que está acontecendo?
— Descobriram a presença de um intruso no Nagma.
— Um intruso? Uma pessoa alheia à urbanização?
— É evidente. Escondeu-se em algum lugar, mas será
logo encontrado.
— Claro. Que pode fazer um intruso no Nagma?
— Na certa veio para roubar em algum chalé. Não nos
devemos preocupar.
— Então? Vai pedir meu caviar?
Manssur deu uma risada. Brigitte sorriu. Quem estava
dando importância ao intruso, além de Manssur e de Ahmed,
que saíra do salão a toda a pressa? E os dois ficaram bastante
alterados. Só porque um intruso entrara na urbanização para
roubar um chalé? Que tipo de intruso seria? Até o mais tolo
dos ladrões comuns toma medidas de segurança, antes de
entrar numa urbanização que, como todas as de luxo, tem
vigilância. Seria um homem apenas? Não, não era tolo, nem
era um ladrão vulgar. Um israelita, talvez?
O caviar russo com cebola picada estava uma delícia!
Mas a festa começou a aborrecer a senhorita Montfort.
***
Fechou a porta do quarto, depois de Fidda e Zaida terem
saído. Foi até o armário e pegou a maletinha vermelha. Não
estava disposta a esperar mais. Tentaria comunicar-se com
algum agente da CIA, utilizando seu rádio de bolso
camuflado num maço de cigarros. A distância em linha reta,
de Málaga, não devia superar quarenta quilômetros. Talvez
fossem cinquenta. O radinho especialíssimo ultrapassaria os
cinquenta. Em Málaga devia existir, no mínimo, um agente
da CIA. Ou algum colaborador. E ela estava irritada de ir de
um lado para o outro, às cegas, sem saber o que se passava.
Retirou o rádio do maço de cigarros e mudou a
disposição das placas, colocando-as de modo a poder
sintonizar a onda especial da Espanha, que já usara em
outras ocasiões. Terminada a mudança, tornou a meter o
radinho no maço e puxou o cigarro que abria o canal.
Ouviu uns apitos leves e o crepitar de qualquer coisa. De
repente ecoou uma voz nítida, em espanhol, dizendo:
— Pronto!
— Boa-noite, Johnny. Você está em Málaga? —
perguntou Brigitte em inglês.
Houve um segundo de silêncio. E a mesma voz de
homem, agora em inglês, murmurou cautelosa:
— Quem é você e o que deseja?
— Sabe perfeitamente quem sou eu. Que desejo? Para
começar, que localizem um carro de fabricação espanhola,
com placa número MA 3229 AB. Anotou?
— Olhe, senhora, eu sou um radioamador que...
— Esta onda é clandestina e especial. Logo, não perca
mais tempo, Johnny. Quero saber de quem é o carro cujo
número acabo de lhe dar. Outra coisa: que está acontecendo
por aqui entre árabes e israelitas?
— Não compreendo.
— Voltarei a chamar daqui a vinte e quatro horas, no
máximo. No fim desse prazo, quero as respostas às duas
perguntas que formulei. Sobre o carro e sobre os árabes e
israelitas. Não me chamem. Eu chamarei. Boa-noite, Johnny.
Baixou o cigarro e cortou a comunicação. Brigitte
guardou o rádio na maletinha, fechou-a e levantou-se. Mas
ficou na metade do movimento.
Um lento e profundo arrepio percorreu sua coluna
vertebral.
O árabe estava encolhido do lado esquerdo da cama,
apoiado nela com os cotovelos. Numa das mãos tinha uma
pistola apontada para Brigitte Montfort. O olhar do árabe era
fixo e um pouco atordoado.
Brigitte compreendeu tudo no mesmo instante. Aquele
era o homem a quem procuravam. Na certa pensavam tratar-
se de um intruso, porque o surpreenderam fazendo algo que
não competia a um dos membros da vigilância noturna, da
qual, a julgar pela calça e camisa pretas que usava, aquele
homem pertencia. O sujeito escapara e todos imaginaram
que fosse alguém alheio ao Nagma. Mas não era. Era um
deles. A nova ideia formada na mente de Brigitte completou
sua teoria a respeito. Os sinais do helicóptero... feitos com
um espelho, foram instruções dadas a alguém que se
encontrava no Nagma.
Como em tantas outras vezes, tinha um traidor diante
dela. E esse traidor a vira e ouvira falando em inglês pelo
radinho camuflado no maço de cigarros. Por isso estava
atordoado. Sabia quem era ela e não entendia o que a vira
fazer. A pergunta final: seria aquele homem, aquele árabe
traidor do Nagma, entenderia inglês?
A situação poderia eternizar-se se Brigitte não decidisse
resolvê-la o mais depressa possfvel. Encarou o desconhecido
e perguntou em inglês:
— Que faz aqui?
— Você não é judia — disse o árabe, também em inglês.
— Eu disse que era?
— Quem é Johnny?
Parecia uma brincadeira. Os dois perguntavam e nenhum
obtinha resposta. Brigitte tornou a perguntar:
— Você é o intruso a quem estão procurando? O homem
que recebeu instruções por meio dos sinais feitos do
helicóptero?
O árabe estremeceu, exclamando sobressaltado:
— Como sabe disso?
Finalmente, uma resposta, embora indireta. De qualquer
modo, Brigitte não tinha mais dúvidas quanto à sua teoria.
Ali estava um traidor do Nagma e da Chamsedin. Poderia
manejar aquele homem, usando um pouco de astúcia? Nada
perderia, tentando.
— É melhor parar de me apontar essa pistola — disse a
espiã, sem alterar-se. — Posso ajudá-lo a fugir. Não, não sou
israelita, mas tenho amigos no Mossad, o serviço secreto dos
judeus. Sou da CIA.
O olhar do árabe traduziu uma desconfiança total. A
senhorita Montfort, a convidada da Chamsedin, era uma
agente da CIA, amiga dos israelitas?
— Estou dizendo a verdade — insistiu Brigitte. — Sua
desconfiança só servirá para complicar a situação. Mas do
que já está. Por que o estão perseguindo? Que fez você, esta
noite, na urbanização?
— Como poderia ajudar-me a fugir?
Novamente a conversa absurda, de perguntas sem
respostas.
— Posso pensar num meio, se você disser o que fez e
quais são os dispositivos de segurança da urbanização.
— Eles já sabem o que eu fiz, logo não importa que eu
fale. Entrei num dos chalés para bater umas fotos. De fora
devem ter visto o clarão do flash e fui obrigado a sair
correndo pela porta por fundos.
— Compreendo. Que fotografou por lá?
— Só tive tempo para bater fotografias de uns
apontamentos que se encontravam numa das mesas de
trabalho do laboratório. Não precisaria fazer isso, se eles
tivessem capturado Ahmed hoje de manhã. Falhando o
golpe, tive que agir.
— Por dinheiro?
— Por muito dinheiro.
— Então queriam capturar Saddam Ahmed, hem? Para
que?
— Porque esperavam arrancar de Ahmed a verdade sobre
os trabalhos do laboratório. Eu os informei sobre a viagem
de Saddam. Esperaram que ele voltasse ao aeroporto de
Málaga. Seguiram o automóvel, para atacar no momento
oportuno, mas falharam. Assim, fiquei encarregado de tentar
obter a informação do laboratório.
— De qual deles? De qual laboratório?
— De qual? Só há um.
— Não. Há vários. Cada uma das casas com placas
solares no telhado é um laboratório, onde...
— Não são esses laboratórios os que interessam aos
judeus. Dos que interessam, só há um.
— Quer dizer que num dos chalés há um laboratório
diferente dos outros, dos dedicados à pesquisa da obtenção
de energia solar?
— Exatamente. Estão trabalhando em algo a que chamam
de Noau.
— O que é isso?
— Não sei. Os judeus também não sabem. Mas eu
precisava bater fotografias dos apontamentos e das fórmulas,
para entregar a eles.
Brigitte ficou imóvel, contemplando o árabe. Estaria
dizendo a verdade? Aquele homem sabia que sua vida estava
por um fio. Podia estar mentindo, tentando fazê-la interessar-
se por fantasias, para obter sua ajuda, a fim de fugir dali.
Sim, podia ser isso. Talvez estivesse respondendo às
perguntas para conquistar a confiança da senhorita Montfort.
— Quem o surpreendeu no laboratório conseguiu
identificá-lo? Sabem que era você quem estava lá dentro
batendo fotografias ou viram apenas um homem ao qual
consideraram um intruso?
— Eles me viram perfeitamente — rosnou o árabe. — De
outro modo eu me teria misturado aos outros, fingindo
também estar procurando o intruso e estaria fora de perigo.
Brigitte foi obrigada a admitir a lógica da resposta. Então
o detalhe do laboratório também era verdadeiro? Os árabes
da Chamsedin trabalhavam em algo chamado Noau? Noau...
Parecia um nome polinésio. Havaiano. Que poderiam os
árabes ter com a Polinésia?
— Se não me ajudar, direi o que acabo de ver e de ouvir
— ameaçou o árabe. — Ou saímos daqui os dois, ou nenhum
de nós sairá.
Brigitte o encarou com um olhar sombrio e disse apenas:
— Estou pensando num meio de sairmos.
— Pois pense depressa. Todos estão à minha procura.
Mais cedo ou mais tarde virão a este quarto. Tome cuidado,
porque a matarei se fizer algo que não me agradar.
Brigitte tornou a olhar para a pistola do árabe, munida de
silenciador. Assim deviam ser todas as armas dos vigilantes
do Nagma. Na certa possuíam uma boa quantidade de
pistolas escondidas e o árabe traidor se apoderara de uma
delas durante a fuga. Agora compreendia a alteração brusca
de Manssur Al-Basri e de Saddam Ahmed. Mentiram para
ela, mas ambos sabiam que a tranquilidade da urbanização
não fora perturbada por um intruso e sim por algo muito
pior: por um traidor. Sim, não descansariam. Tratariam de
procurá-lo por toda a parte e, cedo ou tarde, inclusive, no
quarto onde a tinham instalado.
Quanto a sair do Nagma ou mesmo do palacete... Como
conseguir?
Seria impossível. Para ela, talvez não, se precisasse dar o
fora. Poderia esgueirar-se como uma gatinha na escuridão.
Mas aquele homem era um idiota. Demonstrara claramente
ser um idiota. E um traidor. Além disso, se ele fugisse, ela
perderia a oportunidade de continuar em boas relações com a
Chamsedin e descobrir o que estariam realmente tramando.
Não se tratava de energia solar? Que seria então? Que
poderia ser aquele enigma chamado Noau?
— Não encontrou um jeito? — insistiu o árabe.
— Como é seu nome? — disse Brigitte, fulminando-o
com um olhar gelado.
— Zayed.
— Muito bem. Zayed, você complicou tudo para nós dois
e agora espera de mim um milagre, hem? Não posso ficar
calada durante uns minutinhos?
— Quanto mais tempo se passar...
— Feche o bico, de uma vez — cortou a espiã.
Brigitte sentara-se de novo, mas tornou ficar de pé.
Aproximou-se de uma arcada para observar o pátio, onde as
fontes continuavam a murmurar. Ouviu o ruído da água. Em
vários pontos também ecoavam vozes abafadas. Não avistou
vivalma, mas havia gente por perto.
Bem... só restava uma solução. Uma só.
Voltou-se para Zayed e apontou a maletinha que deixara
numa cadeira, dizendo:
— Talvez nós dois possamos sair daqui se você me
deixar chamar novamente meus companheiros da CIA. Posso
atrair para cá dois grupos deles. Um grupo invadirá a
urbanização pelo sul, fazendo-se ouvir, e atrairá para lá os
vigilantes. O Outro grupo chegará pelo norte num
helicóptero. Nós correremos para o norte no momento
oportuno e fugiremos no helicóptero. Se minha ideia não lhe
agrada, vejamos se é mais esperto que eu e encontra outra
solução.
Zayed encarou-a fixamente, com os olhos escuros muito
abertos. Passou a língua pelos lábios, lentamente. Depois
balançou a cabeça e sussurrou:
— Não me ocorre solução melhor. Torne a chamar.
— Muito bem.
Brigitte sentou-se de novo na poltrona, recolocando a
maletinha nos joelhos. Abriu-a.
O rádio estava ali, ao alcance de sua mão. Ela porém
meteu-a mais, procurando o fundo falso onde guardava o
material para determinadas circunstâncias. Ali estavam as
maravilhas criadas por Mc Gee, o chefe do Departamento de
Armas Especiais da CIA. Entre elas, duas pistolas que se
somavam à de cabo de madrepérola. Eram duas armas
especais. Especialíssimas. Uma era elétrica, com diferentes
graduações de intensidade, e sua carga podia privar do
conhecimento ou matar. A outra, uma verdadeira maravilha
do gênio criador de Mc Gee, era a mais mortífera e atirava
raios laser.
As três armas se encontravam no fundo falso, junto do
dinheiro para emergências, dos passaportes falsos, das cargas
suplementares. Brigitte “Baby” Montfort agiu com toda a
naturalidade, sem o menor nervosismo. Usou os dedos para
colocar a pistola elétrica em posição de descarga máxima,
segurando-a, tirou-a da maletinha, apontou-a para o peito de
Zayed e puxou o gatilho.
Um raio minúsculo partiu da pistola, ziguezagueando, e
enterrou-se no peito de Zayed, quatro dedos abaixo da
garganta. O árabe, que estremecera, ficou sufocado,
Interrompendo o arrepio, deu um pulo e arregalou os olhos.
Isso foi tudo.
Brigitte guardou calmamente a pistola, recolocou o fundo
falso, fechou a maletinha e, com ela na mão, aproximou-se
de Zayed. Revistou-o rapidamente. Encontrou no bolso da
camisa a pequena câmara fotográfica com flash embutido.
Balançou a cabeça com ar de Incredulidade. Existiam
câmaras muito mais sofisticadas para a obtenção de
fotografias nas condições em que Zayed fora obrigado a agir.
Isso, porém, não importava. As fotografias, sim. Mas se
retirasse o rolinho de filme e deixasse a câmara, Manssur e
os outros ficariam espantados. Calculariam que Zayed a teria
escondido. Ficar com a câmara, entretanto, seria um estorvo
para ela.
A solução era fácil: podia guardar a câmara com o filme,
no fundo falso da maletinha. Isso acarretaria inúmeros riscos,
sem dúvida. Se algo falhasse e descobrissem o fundo falso
da maletinha, encontrariam uma porção de coisas, mas
nenhuma comprometedora. Nenhuma informando que ela
tinha alguma relação amistosa com os israelitas. Se ficasse
com o material de Zayed, seria natural Manssur calcular que
ela estivesse ligada aos judeus. E isso, sim, seria
extremamente perigoso.
Que fazer então? Onde e como esconder a câmara e o
filme, de modo a poder recuperá-los, pelo menos o filme,
sem grandes complicações? Depois de uma ligeira reflexão,
Brigitte encontrou novamente a solução. Cinco minutos mais
tarde, o cenário estava pronto. Saiu apressada para o
corredor interno e bateu palmas com força. Quase ao mesmo
tempo apareceram Zaida e Fidda, contemplando-a com os
olhos arregalados.
— Chamem Manssur — gritou Brigitte, fingindo um
nervosismo que estava longe de sentir. — Depressa! Tragam
Manssur ao meu quarto!
Manssur Al-Basri, seguido por Saddam Ahmed e por
vários homens de calça e camisa pretas, apareceram um
minuto depois, agitados, mas sem armas visíveis. Brigitte
não lhes deu tempo de fazer perguntas. Nervosa, agitada,
apontou para o interior do quarto, exclamando:
— Há um homem no meu banheiro! Acho que está
morto!
Manssur e Ahmed precipitaram-se no quarto. Quando
entraram no banheiro, viram Zayed cardo atrás da porta, com
o rosto crispado e os olhos fora das órbitas. Empunhava com
a mão direita a pistola. A esquerda fechava-se na altura do
coração.
— Está morto — sussurrou Ahmed.
— Reviste-o — ordenou Manssur.
Mansur saiu do banheiro. Brigitte estava sentada numa
das poltronas. Usava um pijama azul-celeste,
semitransparente. Da porta, os vigilantes da urbanização a
contemplavam com ar libidinoso. Fidda e Zaida estavam
perto dela mas pareciam atordoada sem saber o que fazer.
— Que aconteceu? — murmurou Manssur.
— Encontrei-o lá dentro. Está morto não é?
— Sem dúvida. Parece ter tido um colapso cardíaco.
Manssur apertou os lábios ao ouvir o passos de Ahmed,
saindo do banheiro para informar que o morto nada tinha, de
interessante.
— Reúna todos os homens disponíveis procurem por toda
a parte — ordenou Manssur. — Se os vigilantes viram o
reflexo de um flash, no interior do laboratório, Zayed
carregava uma câmara. Na certa a escondeu em algum lugar.
Procurem até encontrar.
— E ela? — perguntou Ahmed, apontando Brigitte.
— Eu cuido da senhorita Montfort. Quero a câmara,
Saddam!
No quarto ficaram apenas Brigitte, as duas servidoras
pessoais e Manssur Al-Basri.
— Deve ter levado um susto e tanto, hem? — balbuciou
ele.
— Santo Deus! — exclamou Brigitte. — Tinha acabado
de mudar de roupa e arrumado minhas coisas no armário.
Antes de me deitar, costumo ir ao banheiro. Ao entrar
deparei com ele ali, estendido no chão, olhando para mim...
— Não a olhava. Estava morto. Por muito espantoso que
seja, parece ter morrido de medo, encurralado. Com certeza
escondeu-se aqui, imaginando que não o procuraríamos neste
quarto.
— Então... era ele o homem a quem procuravam?
— Exatamente.
— Mas esse homem não era um intruso... era árabe como
vocês.
— Infelizmente. Já deve ter ouvido falar em traidores,
hem? Eles existem por toda a parte, em todas as raças, nos
exércitos, em qualquer sociedade. Zayed era um traidor.
— Que fez ele?
— Ainda não sabemos. Mandaremos retirar o cadáver
para a senhorita poder descansar. Ou prefere ir para outro
quarto?
— Não é necessário. Oh, senhor Al-Basri, há de imaginar
como tudo isso me deixou, não é mesmo?
— Falta pouco para a senhorita falar com Abul Hossn.
Rogo-lhe que espere essas poucas horas. Tudo lhe será
explicado.
— Mas dois homens já morreram diante de mim...
— Compreendo seu atordoamento e não sei como pedir-
lhe perdão por esses acontecimentos desagradáveis. Depois
de falar com Abul Hossn, porém, tudo isso lhe parecerá sem
importância, garanto.
— Muito bem. Mas onde está ele, afinal? Por que não
está aqui?
— Calma. Ele está em Malasol.
— Malasol? O que é isso?
***
— Ali está — disse Manssur Ai-Basri, apontando para
baixo, pela janelinha do helicóptero. — Vamos voar agora
mesmo por sobre as terras de Malasol. Está vendo aquela
parte ali adiante, não é mesmo?
Brigitte, sentada no banco traseiro, ao lado de Manssur,
balançou a cabeça afirmativamente. O helicóptero voava a
pequena altitude, com um árabe no comando e outro a seu
lado. Brigitte e Manssur se encontravam no banco de trás.
Além deles havia mais dois árabes, sem dúvida bem
armados. Embora ela não tivesse visto, tinha certeza de que
havia uma metralhadora no helicóptero, camuflada em algum
ponto do aparelho. Ou uma arma de eficiência semelhante.
Ou, quem sabe, mais eficaz ainda.
Sobrevoavam as terras de Malasol, a clínica mais famosa
da Espanha, em sua especialidade, conforme Manssur
explicara na noite anterior. Abu Hossn, o Pai da Beleza,
estaria enfermo? Não, não estava exatamente enfermo.
Encontrava-se na clinica, por causa de seu excesso de peso.
Abu Hossn estava gordo demais. E Malasol tratava de
pessoas com excesso ou com deficiência de peso. Possuía
uma equipe especializada para obter o perfeito
funcionamento do corpo humano. Equipe que se encontrava
à disposição de todos os clientes capazes de pagar por sua
permanência em Malasol. O que não era fácil, pois, de
acordo com as explicações de Manssur, era um
estabelecimento caríssimo.
— Então Abul Hossn está gastando uma fortuna diária,
para cuidar de sua pessoa — murmurou Brigitte.
— Não pense nisso — respondeu Manssur, sorrindo. —
Malasol pertence ao Chamsedin. Disfarçadamente, é claro.
Brigitte contemplou o enorme e belo jardim que se
estendia lá embaixo. Havia campos de golfe, piscinas,
quadras de tênis, pistas para equitação. Tudo distribuído com
bom gosto numa espantosa quantidade de terra no sul da
Espanha. Ali estava Malasol com seus prados belíssimos,
suas árvores espalhadas, suas flores, o espelho de suas
piscinas e lagos e os campos de golfe. Uma verdadeira
maravilha sob o domínio do capital árabe. O preço diário de
permanência em Malasol era de dez mil dólares.
Várias pessoas se movimentavam pelos arredores da
clínica, ocupando-se com atividades diversas. Ou
repousavam tranquilamente em espreguiçadeiras. Algumas
apanhavam sol inteiramente nuas. Outras preferiam a sombra
das árvores frondosas ou das barracas listradas. Pelas
alamedas transitavam os empregados da clínica, todos de
uniformes brancos. Iam a pé ou de bicicleta. Não se via um
só veículo a motor. A sombra de um pinheiro, Brigitte teve a
impressão de avistar um homem e uma mulher em pleno ato
sexual. Olhou para Manssur, espantado, pestanejando. O
árabe sorriu e desviou o olhar, balbuciando com certa
malícia:
— É um pequeno paraíso.
— Uma antecipação do de Alá?
Manssur Al-Basri soltou uma gargalhada e disse
alegremente;
— Oh, por favor, senhorita Montfort! Não está
imaginando que Alá proíbe seus fiéis de terem o prazer de
gozar o corpo feminino, hem? Ele nos proibiu de muitas
coisas, é verdade, mas não do sexo. Acha isso ruim?
— Quem sou eu para julgar os desígnios e as disposições
de Alá?
Manssur tornou a olhar para ela, com admiração, mas
sem deixar de rir.
— A senhorita é uma criatura encantadora — prosseguiu
ele, sempre de bom humor.
Vai gostar de Abul Hossn, garanto. E ele gostará da
senhorita, com toda a certeza. Vamos pousar dentro de
poucos segundos. Vê aquelas árvores ao redor de um chalé?
Pois é ali, a salvo das indiscrições de todos os clientes de
Malasol, que se refaz, que se recauchuta e que pensa, o nosso
amado Pai da Beleza.
Pouco depois o helicóptero pousou suavemente, a uns
cem metros do chalé indicado por Manssur. Pousou no
gramado e, quando as pás reluzentes pararam de girar, o
silêncio tomou conta do lugar. Um silêncio absoluto que
parecia dominado pelo sol brilhante e ardente.
Por indicação de Manssur, os quatro empregados da
Chamsedin, que os haviam acompanhado na viagem,
permaneceram no helicóptero. O árabe pulou para o chão e
estendeu os braços. Brigitte aceitou o convite mudo e jogou-
se naqueles braços acolhedores e firmes que a ampararam.
Manssur Al-Basri apontou na direção do chalé e os dois
começaram a andar. Brigitte levando na mão sua maletinha
vermelha.
O sol faiscava, como línguas de fogo, arrancando um
brilho espetacular das águas da piscina que havia perto da
casa. Gozando as delícias da água, uma dúzia de jovens ria e
brincava despreocupadamente.
Uma dúzia de jovens louras, esbeltas, de corpo escultural.
A carne, original mente branca, estava levemente tostada
pelo sol e Brigitte observou um detalhe interessante: todas
elas tinham olhos azuis.
Outro detalhe interessante que a jornalista espiã pôde
observar: todas as jovens estavam inteiramente nuas.
Junto à piscina, à sombra de um enorme pinheiro,
recostado num monte de almofadões coloridos, a espiã
internacional avistou, enfim, o Pai da Beleza.
O coração de Brigitte deu um pulo dentro do peito e ela
teve a sensação de que ele ia sair pela boca, tal foi o seu
espanto. Um vazio no estômago a dominou repentinamente
ao contemplar aquela cena.
O pai da Beleza era o homem mais feio, mas horrendo,
que ela já tinha visto em toda a sua vida.

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