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Anne Mather

Corações indomáveis
(Master of Falcon´s Head)

Copyright: ANNE MATHER


Título original: MASTER OF FALCON'S HEAD
Publicado originalmente em 1970 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra.
Tradução: SUZI MAY ELSTON
Copyright para a língua portuguesa: 1979, Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Composto e impresso nas Oficinas da Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Caixa Postal 2372 — São Paulo
Foto da capa: TRANSWORLD

Tamar e Ross nasceram e cresceram juntos


numa pequena aldeia de pescadores na
costa oeste da Irlanda. Ainda jovens se
apaixonaram, mas o romance não deu
certo. Quando Ross estava de casamento
marcado com outra garota, Tamar resolveu
tentar reconstruir sua vida longe dali. Foi
para Londres, na esperança de um dia
encontrar a verdadeira felicidade. Teve
sucesso como pintora, mas jamais
conseguiu se livrar das sombras do
passado. Então, anos depois, resolveu
voltar para a Irlanda. Mas, ao reencontrar
Ross, percebeu que ainda o amava. Poderia
continuar ali e ser feliz, mesmo sabendo que Ross nunca seria
seu?

PROJETO REVISAR

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.


Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

1
Digitalização: Palas Atenéia
Revisão: Cris Paiva

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CAPÍTULO I

Tamar Sheridan percorreu vagarosamente a galeria, parando aqui e ali para


analisar os quadros com olhar crítico. O lugar agora estava vazio e as luzes esmaecidas
davam-lhe um ar bem melancólico.
Mais uma faceta de experiência emocional, um outro mergulho sentimental,
outra dimensão — pensou Tamar — divertindo-se com esses pensamentos tão
dramaticamente inconseqüentes. Dava asas à imaginação, pois a exposição já havia
terminado e, apesar de muitos quadros ostentarem o cartão de “Vendido”, ela mesma
estava se sentindo meio melancólica, já que nunca mais iria sentir as emoções da
primeira exposição.
Voltou pela galeria. Viu bem no escritório envidraçado, conversando com Joseph
Bernstein. Fumavam charutos e pareciam muito satisfeitos. Tamar dirigiu-lhes um leve
sorriso. Era muito bom, imaginava, ser um sucesso da noite para o dia. Entretanto,
como em qualquer sucesso, havia uma nota de desapontamento. Suspirou. Ainda bem
que havia uma festa à noite! Sacudiu os ombros num esforço para se livrar da
depressão.
Quase no fim da galeria, porém, parou em frente ao único quadro com um cartão
dizendo "Não está à venda". Não era um dos melhores, Tamar reconhecia agora. As
pinceladas eram muito duras, as cores insípidas, mas mesmo assim nunca iria vendê-lo.
As cores pálidas davam a impressão de nevoeiro e chuva, impressão essa aumentada
por suas próprias experiências. Sentiu-se deprimida. Quem poderia imaginar que essa
tentativa amadora de transferir para a tela a esplêndida magnitude do castelo Cabeça
do Falcão representasse todo o isolamento de sua vida?
Virou-se subitamente, sem conseguir encarar mais a pintura, pois lembrava
demais sua amargurada juventude. Será que só fazia sete anos que deixará aquele
vilarejo Porto do Falcão? Só fazia sete anos que deixara de ser a impressionável
garota de dezoito anos, com uma imaginação fértil e talento para encrenca? Tanta
coisa tinha acontecido desde então, tantas experiências tinham sobrepujado a dor e a
humilhação que sofrerá naquela ocasião. Era agora uma mulher, madura e dedicada à
sua carreira.
Por que então guardava o quadro? Por que se agarrava a ele, continuando a se
torturar desse modo? Se ela era mesmo sofisticada e madura como imaginava, por que
não se desfazia da pintura?
Porque, respondeu ferozmente a si mesma, enquanto eu tiver aquele quadro, não
me esquecerei que um dia fiz um erro terrível, e só meu talento, minha pintura, me
salvou da extrema humilhação!
— Um tostão por eles!
Quase deu um salto, tão absorvida estava em seus pensamentos.

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— Oh! Ben! — exclamou, conseguindo se controlar. — Você me assustou!
— É verdade. — Ele sorriu para ela e depois transferiu o olhar para o quadro. —
O que é, Tamar? O que há nesse quadro que a perturba tanto?
Tamar deu as costas à pintura deliberadamente. — Não há nada com ele, Ben —
negou. —- Estava só comparando meu trabalho de agora com essa tentativa anterior.
Terrível, não é? — Deu o toque certo de pouco caso a voz.
Ben perguntou: — Então por que você o guarda?
Tamar encolheu os ombros. — Talvez para me lembrar do meu começo humilde
— respondeu. — Sobre o que você e o sr. Bernstein conversavam?
Ben acompanhou-a até o escritório e disse: — Ele está tremendamente
satisfeito com o seu sucesso, é claro. E de certo modo, também o dele, é lógico.
— Lógico — repetiu Tamar secamente, olhando para Ben com interesse.
— Ele quer fazer outra exposição com você no outono — continuou Ben. — Você
acha que daria para preparar?
Tamar hesitou. As coisas pareciam estar andando depressa demais. — Oh, não
sei, Ben. Preciso de um descanso.
— O quê? Na sua idade? — Ben riu.
— É sério, tinha pensado em tirar umas férias.
— Bom, bom! Eu irei com você. Levaremos seus apetrechos e durante todo o
verão você poderá pintar quanto quiser.
— Não! — A voz de Tamar estava um tanto ácida. Deu então um aperto no braço
dele. — Por favor, Ben. Não me apresse. Preciso de tempo para pensar. Acho que não
tive um minuto para mim nestas três últimas semanas. Você está indo depressa
demais. Vá mais devagar!
Ben suspirou. — Neste jogo, você tem que bater enquanto o ferro está quente.
No momento, o público está prestigiando o trabalho de Tamar Sheridan. Quer que
algum futuro artista roube sua glória?
Tamar encolheu os ombros. — E isso é possível?
— Querida, neste jogo tudo é possível! — resmungou Ben. — De qualquer modo
não provoque um ataque de coração no velho Joseph. Diga que vai pensar no assunto,
como um favor para mim!
Tamar olhou para ele. — Está certo, Ben — disse conformada, e entrou no
cubículo cheio de fumaça de charuto.
Joseph Bernstein tinha quase sessenta anos e era muito conhecido por seu
apoio aos jovens artistas. Não por motivos puramente altruístas, é claro; mas Tamar
gostava dele e confiava em seu julgamento. Era amigo de Ben e era a Ben que ela devia
tudo.

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— Tamar — disse Bernstein, sorrindo —, Ben já falou com você sobre nossa
proposta?
— Sim, sr. Bernstein, ele me falou.
— Bom, bom. Quero que continue, enquanto está tudo correndo bem, concorda?
Sua exposição foi muito bem sucedida, Tamar. Isso não é comum na primeira vez. Mas
acho que o público está apreciando novamente o apelo simples, e sua pintura tem um
certo, como direi, certo charme e simplicidade? Sim, uma simplicidade muito atraente.
Para uma moça de sua idade, você é extremamente talentosa. Parece que há em suas
pinturas a mesma experiência dos famosos pintores do passado, como se você tivesse
sofrido muito.
Tamar sentiu um rubor invadindo seu rosto. O sr. Bernstein era astuto, mas de
confiança.
— Estou muito grata por sua ajuda, é claro — começou ela, só para ver os olhos
de Ben implorando. — Quero fazer o que me pede, posso tentar, mas eu…
Ainda bem que não precisou continuar. Bernstein interrompeu-a. — É claro, é
claro, Tamar. Estamos apressando você demais. O artista verdadeiro não gosta de ser
apressado. Posso sentir isso. Você está cansada, entendo. Precisa de tempo para
assimilar sua posição, descobrir seus desejos reais. É o Ben. Ele que anda me
instigando. Perdoe-me!
Tamar olhou para Ben, que deu um meio sorriso. — Está bem, está bem — disse,
encolhendo os ombros. — Eu sei; não sou artista nem patrono. Venha, Tamar, vamos a
um barzinho tomar uma bebida. Você vem conosco, Joe?
Bernstein sacudiu a cabeça. — Não, obrigado, Ben. Sua estrela está cansada de
falatório. Converse com ela sobre coisas mais interessantes. Com certeza você não
precisa de mim para dizer quais são essas coisas, não?
Ben riu. — Não, é claro. Você vem, Tamar?
Lá fora, caía uma chuva fina, e as luzes refletiam-se nas poças d'água da rua.
Londres à noite, pensou Tamar. Quantos artistas tinham tentado pintá-la? Resolveu
expulsar de sua cabeça todo pensamento sobre arte e concentrou-se em evitar as
poças e acompanhar os passos de gigante de Ben até o estacionamento para pegar o
carro.
Dentro do automóvel ele virou-se para ela, passando um braço pelo encosto,
possessivamente. — Oh, Tamar — murmurou suave: — Amo você!
Seus lábios procuraram os dela rápida e gentilmente, para depois dar a partida
no carro. Não esperava uma resposta. Tamar estremeceu; as emoções de Ben
perturbavam-na. Por que não conseguia corresponder-lhe? Seria uma mulher fria ou a
experiência anterior tinha destruído qualquer emoção quê pudesse sentir? Às vezes
esses pensamentos a amedrontavam e hoje estava sensível demais.
Foram ao bar preferido, um porão debaixo de um hotel perto de Piccadilly, e ali,

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na atmosfera discreta mesclada pelo aroma de vinhos finos e charutos caros, Ben lhe
disse:
— O que você tem hoje, Tamar? De algum modo, parece diferente, quase que
introspectiva.
Tamar olhava o líquido âmbar em seu copo. — Não sei, Ben. Não sei mesmo. De
algum modo, hoje, a exposição, tudo, de repente me pareceu vazio!
— Vazio? — Ben chamou o garçom outra vez. — Mais um uísque — pediu,
desapontado, e virou-se para Tamar. — Por quê? É algo conosco? Comigo?
— Oh, não! — Tamar sacudiu a cabeça e passou os dedos pela fazenda macia do
casaco dele. — Como é que poderia ser você, Ben? Sem você eu não seria nada!
— Duvido disso. Duvido mesmo! — retrucou Ben inflamado. — Mais cedo ou mais
tarde você acabaria sendo um sucesso. Eu só apressei o processo, só isso.
Tamar foi afetuosa. — Obrigada, Ben. Você é um amor.
Ben acendeu outro charuto. — Eu não quero ser um amor — murmurou
impaciente. — Você sabe o que eu quero: me casar com você.
Tamar baixou a cabeça. — Oh, Ben, queria tanto acreditar que isso fosse bom
para nós dois. — Olhou para cima. — Mas por que eu? Quero dizer, você é Benjamin
Hastings. Seu pai é Allen Hastings, presidente das empresas Hastings. Tenho certeza
que ele teria algo a dizer, se pensasse que você está falando sério. — Sorriu caçoando.
— Eu? Tamar Sheridan! Não sou ninguém, não tenho grandes conhecimentos!
— Isso não é justo! — reprovou Ben. — Você sabe que meu pai é seu grande
admirador.
— Um admirador do meu trabalho — disse Tamar pensativa-mente. — Não sei se
ele me receberia bem como nora.
— É claro que sim. Além disso — havia um traço de arrogância na voz de Ben —,
pretendo escolher minha própria esposa e você é a eleita.
Tamar suspirou. — Como eu queria amar você, Ben! Seria tudo tão simples.
Ben soltou uma exclamação exasperada. — Querida, é simples! Eu a amo, você
sabe disso, e estou preparado para me casar agora e ensiná-la a me amar.
Tamar franziu o cenho. — E pode-se ensinar alguém a amar? — perguntou
curiosa.
Ben olhou para sua bebida e moveu a cabeça. — Tamar, Tamar! — disse
desanimado. — Será que é necessário você explorar cada faceta de nosso
relacionamento? Nós nos damos bem, você sabe que isso é verdade. Nossos interesses,
nossos gostos são semelhantes. Por que nosso casamento não seria um sucesso como
qualquer outro?
Tamar mordeu o lábio. — Não sei, Ben. Antigamente eu achava… oh, o que

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adianta? Por favor, me arranje um cigarro.
Ben estendeu a cigarreira, ela tirou um e acendeu. Depois passou o braço pelo
dele.
— Não vamos ficar muito sérios esta noite, Ben. Ainda temos a festa. Foi ótimo
você tê-la arranjado e hoje eu não quero me aborrecer.
— Aborrecer? — Ben olhou-a triste. — Eu queria anunciar nosso noivado esta
noite!
— Oh, Ben!
— É verdade! Tamar, você não pode aceitar o que temos? Tamar apertou as
mãos contra o rosto. — Você tem que me dar tempo, Ben.
— De quanto tempo você precisa?
Tamar percebeu o olhar de desânimo em seu rosto atraente e sentiu remorso.
— Está certo, Ben — disse vagarosamente —, dê-me até hoje à noite, até a festa.
Você pode me levar para casa? Tenho que mudar de roupa e quando você for me
buscar lhe darei minha resposta, de acordo?
Ben encarou-a. — De verdade?
— É claro.
Ele aquiesceu e terminou a bebida depressa. Quando saíram, Tamar segurando o
casaco apertado contra o corp para se proteger do vento gelado, ele disse
suavemente:
— Apesar de minha impetuosidade, quero que saiba que se sua resposta for não,
tenho que continuar me encontrando com você!
Tamar olhou para ele. — Ben!
— Olhe, comigo é assim. Quero dizer, não brigue comigo por causa disso. Se não
pudermos ser mais do que amigos, pelo menos continuemos assim. Não pense que eu
deixaria um constrangimento pairar entre a gente.
— Oh, Ben! — Tamar sacudiu a cabeça, sentindo as lágrimas queimando no fundo
dos olhos. — Por que eu? Por que eu?
Ben levantou os ombros. — Não sei. Sou meio louco, eu acho. O apartamento de
Tamar era em um prédio novo, de frente para Regent Park.
— Dentro de uma hora estarei pronta — disse, e ele concordando, deixou-a.
No apartamento, o quarto andar, moravam Tamar e Emma Latimer, que
funcionava como empregada e dama de companhia. De idade incerta, Emma tinha
respondido ao anúncio que Tamar pusera no Times dois anos antes, quando sua renda
tinha começado a ficar um pouquinho maior. Completando sua renda com trabalho
comercial, Tamar tinha podido alugar o apartamento e empregar Emma por um salário
pequeno. Ela quase não tinha acreditado na sorte de ter encontrado uma pessoa como

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Emma por um salário tão baixo, e foi só mais tarde, quando ficaram amigas, que
descobriu que Emma tinha passado a vida inteira cuidando dos pais doentes e só
quando eles morreram é que se libertara. Não estava preparada para enfrentar um
mundo onde as qualificações contam tanto e o anúncio tinha sido uma bênção para as
duas.
Agora o ordenado de Emma era mais do que adequado e o apartamento estava
mobiliado como Tamar sempre tinha sonhado. Entrando no minúsculo vestíbulo, Tamar
tirou o casaco antes de passar à sala enorme e gritou:
— Emma! Cheguei!
Emma Latimer saiu da cozinha. O cabelo amarelado repuxado em um coque.
Andava sempre vestida com roupas fora de moda, mas Para Tamar ela era muito mais
que uma empregada, era quase mãe.
— Oh! — disse Emma. — Acabou, então?
Tamar assentiu, sentando-se no sofá, esticando as pernas esguias e chutando os
sapatos.
— Acabei de fazer um pouco de chá. Quer uma xícara?
Tamar sorriu e disse: — Sim, por favor. Depois tenho que tomar um banho. Ben
vem me apanhar em menos de uma hora.
O chá estava forte e quente, como Emma sempre fazia, e Tamar saboreou
agradecida. Era divino relaxar e não precisar pensar em nada por alguns minutos.
Emma ficou por perto e Tamar disse:
— Sente-se, Emma. Quero falar com você.
Emma hesitou e acabou sentando-se na beirada de uma cadeira. — Sim? O que
é?
Tamar recostou-se, preguiçosa. — Ben me pediu em casamento.
Emma fez um gesto resignado. — Isso não é surpresa.
Tamar sorriu. Emma era sempre tão direta! — Não, acho que não — disse. — O
problema é saber se devo.
Emma sacudiu os ombros. — Você é quem tem que decidir.
Tamar ficou impaciente. — Eu sei. Mas o que você acha?
Emma baixou a cabeça e examinou suas unhas. — Você quer minha opinião?
—Quero.
— Então devo dizer que não. Tamar franziu a testa. — Por quê?
— Faz sentido, não acha? Se você quisesse realmente se casar com.o senhor
Hastings, não ia querer saber minha opinião. Só ia me contar!

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— Oh, Emma! — Tamar baixou a xícara e levantou-se. — Você faz tudo parecer
tão simples.
— Assim é que deve ser. Não adianta se casar com o rapaz, se tem alguma
dúvida. Já existem casamentos infelizes demais! Sinto muito se não foi a resposta que
queria, Tamar, mas foi o que me perguntou.
— Sim, é verdade, - concordou Tamar, infeliz. — Mesmo assim, não tenho
certeza que esteja certa. O casamento é um passo muito sério, e só tenho você para
perguntar.
Emma sacudiu os ombros. — Ninguém pode tomar a decisão por você.
— Eu sei — concordou Tamar.
— Nunca houve uma mulher que soubesse o que queria logo de cara — comentou
Emma com perspicácia. — Não vejo por que você não possa se casar com o senhor
Hastings. Ele é um bom rapaz, atraente, bondoso e certamente não tem problemas de
dinheiro. Tudo depende do que você esteja procurando. Pessoalmente, nunca gostei de
homens claros. Gosto dos morenos, de pele queimada, olhos escuros e cabelos também!
De repente, Tamar sentiu um aperto dentro de si ao ouvir. os comentários de
Emma. Estava se lembrando novamente do Cabeça do Falcão e isto parecia
sintomático, pois também acontecera à tarde na galeria. Para esconder essas emoções,
perguntou:
— Você gostou de muitos homens, Emma?
— Só um, Tamar. Mas não voltou de El Alamein.
— Oh, sinto muito, Emma. — Tamar emergiu de sua depressão e por um
momento ficou tentando imaginar como Emma deveria ter ficado, quando o homem que
amava não voltou da guerra. Será que tinha sido por isso que sua devoção aos pais fora
tão grande? Sua vida emocional morrera com esse homem?
— Não há nada com que se preocupar — ponderou Emma. — Já se passaram
muitos anos e eu só sinto um pouco de saudade. — Seus olhos penetrantes encararam
então os olhos azuis-escuros de Tamar. — Todos nós temos nossas mágoas, não é,
Tamar?
Tamar sentiu uma onda de calor no rosto. Como sempre, Emma era muito
perspicaz.
— Deus! — Tamar olhou para o relógio. — Já é tarde demais! Preciso ir tomar
meu banho. Se o Ben chegar antes de eu estar pronta, por favor diga a ele para
esperar, sim?
O que estava acontecendo com ela hoje? Por que parecia que tinha chegado a
uma encruzilhada? Isso era fantasia. Tamar estava cansada. Tinha dito isso a Ben, mas
ele não acreditara. Mas estava mesmo! Precisava de férias!
Deitou-se na banheira de água quente e perfumada e fechou os olhos. Claro,

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Emma não podia ter idéia de seu passado e, mesmo sem saber, tinha colocado o dedo
na única coisa que podia perturbá-la.
Impaciente, sentou-se e começou a se esfregar. Estava sendo tola!
Estava ali sentada e triste, só porque se lembrava de sete anos atrás, quando
tudo tinha começado. Devia era estar se lembrando do passado com prazer, pelo
simples fato de ser passado. Como estava agora, parecia uma adolescente abobalhada,
deixando que as emoções a perturbassem. Deveria estar estudando a proposta de Ben
com seriedade e não relembrando o frio esplendor do Cabeça do Falcão e a arrogância
de seu proprietário.
Mas, quanto mais pensava, mais se convencia de que enquanto não aceitasse
completamente o passado não conseguiria aceitar o presente. Apesar da amargura que
sentia, o passado viria sempre atormentá-la, enquanto assim o permitisse.
Mas qual a solução? Como escapar da amargura? A não ser…
Sacudiu violentamente a cabeça. Não, aquilo era impossível!
Mas quanto mais pensava, mais se tornava imperativo que ela descobrisse de
uma vez por todas se estava mesmo completamente mudada. E o único meio de saber
seria voltar, voltar para Porto do Falcão, o vilarejo na Irlanda do Sul, onde tinha
passado os primeiros dezoito anos de sua vida.
Tinha sido criada pelos avós. Sua mãe tinha morrido no parto, e seu pai, um
inglês sem-vergonha, segundo seu avô, só apareceu novamente muito tempo depois.
Após a morte de seus avós, não havia mais nada que a prendesse ali. Nada mesmo,
Tamar recordou com tristeza, saindo do banho.
Enquanto se enxugava ficou em pânico. Como poderia voltar? De que jeito? O
vilarejo recebia poucos visitantes no verão. Havia pouca coisa ali, além do castelo
Cabeça do Falcão, é claro.
E enquanto pensava no Cabeça do Falcão descobriu o que deveria fazer. Deveria
voltar, como artista que era, e pintar o castelo novamente. Então poderia destruir a
pintura antiga e toda a tristeza e dor iriam embora também. Assim seriam suas férias
— alguns meses na Irlanda.
Mas como Ben aceitaria isso? E o que diria a ele quando lhe pedisse resposta à
sua pergunta? Como poderia esperar que ele entendesse sua ida à Irlanda, em primeiro
lugar? E ainda mais o fato de querer ir só, para acabar com os fantasmas do passado?
Ao se maquilar mais tarde no quarto, ficou pensando por que ainda tinha dúvidas
quanto a Ben, por que hesitava em dar o primeiro passo? Se tinha mesmo que ir a Porto
do Falcão, não seria muito mais fácil se levasse o anel de noivado no dedo?
Mas não podia fazer isso! Não poderia usar Ben desse jeito. Teria que dizer a
ele que precisava de descanso, dessa viagem ao passado e, depois disso, daria sua
resposta.

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Como esperava, Ben opôs-se violentamente a que ela saísse da Inglaterra.
— Se insiste em tirar férias, pelo menos fique perto, para que eu possa visitá-
la, se não quer que eu vá com você — implorou.
— Você não entende, Ben — disse sem jeito. — Aquele lugar era meu lar.
— Mas você me disse que seus pais morreram.
— E é verdade. Você sabe que meu pai morreu seis meses depois que chegamos
aqui.
— Isso mesmo. — Ben tinha conhecido Trevor Sheridan. Não tinha sido por isso
que conhecera a filha?
— Então! — Tamar suspirou. — Ben, quando eu saí da Irlanda, não esperava, nem
queria, voltar. Mas de algum modo isso incomoda… — Procurou as palavras certas para
explicar. — É como… bem, como alguma coisa maior que a própria vida. Eu… eu tenho
que voltar para colocar isso em minha cabeça na devida proporção. Tente me
compreender, Ben. Preciso ir.
Ben ficou pensativo. — Havia um homem? — perguntou rouco. O rosto de Tamar
ficou vermelho. Empurrou as ondas de cabelo castanho-dourado do rosto e disse:
— Não do jeito que você pensa.
— E que outro jeito há?
Tamar engoliu em seco. — Não posso dizer. Deixe que eu vá e quando voltar lhe
contarei tudo.
Ben resmungou. — E eu tenho alguma escolha?
— Você podia terminar comigo aqui e agora. Não poderia culpá-lo.
Ele sacudiu a cabeça. — Não eu, Tamar.
— E então?
Está bem, vá para a Irlanda, para esse vilarejo horrível. Mas lembre-se, se não
estiver de volta dentro de seis semanas, vou buscá-la.
Tamar aquiesceu. — Posso telefonar para você, Ben. Eles já têm telefone…
Ben deu um meio sorriso. — Você me espanta! Está bem, telefone quando souber
onde vai ficar. Existem hotéis lá?
Tamar moveu a cabeça. — Não. Há uma hospedaria, acho que se chama Armas do
Falcão. Provavelmente ficarei lá no começo. Depois vou ver se alugo um chalezinho.
Ben fez uma careta. — O nome Falcão aparece muito nesse lugar, não? —
comentou secamente.
Tamar baixou a cabeça. — É verdade. A família Falcon é praticamente dona do
lugar.

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Ben olhou para ela de modo estranho. Suas reações ao nome Falcon não tinham
passado despercebidas. — De qualquer modo, já que vai mesmo, pelo menos me deixe
acompanhá-la ao bota-fora. Já fez seus planos?
— Não, ainda não. Pensei que talvez no próximo fim de semana.
— Tão cedo?
— Quanto mais cedo for, mais cedo voltarei.
— É verdade. Vai de avião?
— Sim. Vou voar até Shannon. Porto do Falcão fica na costa oeste. Posso alugar
um carro no aeroporto, pois prefiro não depender de transporte.
— Você podia ficar com o meu Míni-Cooper, se quisesse — ofereceu Ben.
Mas Tamar sacudiu a cabeça. — Não. Quero ficar independente por mais um
tempinho — replicou, sorrindo gentilmente para ele. — Se eu me sentir muito solitária,
telefono e você vai me encontrar, está bem?
Ben apertou a mão dela com força. — Sim — respondeu, com sentimento.

CAPÍTULO II

Tamar passou a noite em Limerick. Só tinha visitado a cidade uma vez antes,
quando estava indo para a Inglaterra com seu pai, e era um lugar tão atraente que ela
ficou com vontade de passar mais que uma só noite. Mas não adiantava adiar seu
destino e como o pequeno Vauxhall que ela tinha alugado estava pronto e esperando no
estaciomento do hotel, não ia atrasar a partida.
Então, no dia seguinte, colocou todo o material de pintura, cavaletes, telas,
tintas e pincéis, na parte de trás do carro, junto com as duas malas que trouxera, e
seguiu viagem.
Era uma manhã fresca de abril, mas as cercas vivas já estavam explodindo em
cores e o perfume da grama molhada e da terra misturava-se com o cheiro todo
especial do mar. Seguiu para oeste, saindo de Limerick, às vezes seguindo a linha da
costa e em outras seguindo mais para o interior, onde as cercas brilhavam com as
fúcsias que desafiavam o vento gelado das tempestades do Atlântico, que muitas
vezes caíam sobre a região nessa época do ano. Ela tinha esquecido, deliberadamente
recusava lembrar, a beleza da ilha, e sentiu uma grande saudade. Tudo era tão verde,
mais verde do que ela se lembrava, em contraste com o litoral áspero, rochoso e
dramático. Seus dedos já sentiam vontade de transferir parte de toda aquela
grandeza para uma tela, e ela percebeu que longe de estar escapando de sua profissão,
simplesmente a encorajava. A região era um paraíso para qualquer artista e ela devia
ter percebido isso há muito tempo.

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Mesmo assim tinha esperado até agora para ter coragem de voltar. Porto do
Falcão ficava em uma dobra dos penhascos. O rio Falcão ficava ao norte e a leste e as
espumantes águas do Atlântico formavam uma barreira natural a oeste. Chegava-se ao
vale do Falcão por uma estradinha estreita e sinuosa, onde, do alto, já se avistavam as
casinhas brancas do vilarejo. Do mesmo modo também se via a fachada de pedra do
castelo Cabeça do Falcão. Ficava no alto de um penhasco, frio e isolado, um símbolo de
poder e arrogância aos olhos de Tamar, o lar da família Falcon por muitas gerações.
Eram os donos das terras e tinham sobrevivido a guerras e privações, sempre
mantendo sua posição, sob quaisquer circunstâncias. Na verdade, Tamar não podia
imaginar ninguém os desafiando, muito menos ela.
Desviando os olhos do castelo, deixou o carro descer as curvas da estrada, sem
querer admitir que estava um pouco nervosa. As pessoas talvez a reconhecessem,
como talvez ela também. Mas, a não ser o padre Donahue e mais uma ou duas pessoas,
ela tivera muito poucos amigos. Seus avós não tinham encorajado amizades suas com
os meninos e meninas da vila e por isso mesmo fora uma criança bastante solitária.
Apesar disso, por certo iria haver curiosidade, pois qualquer estranho em Porto do
Falcão era um acontecimento ou, pelo menos, sempre fora assim.
A rua principal do vilarejo acompanhava o rio, que desaguava nas águas bravias
do oceano logo adiante. Ali, na maré baixa, havia um pântano, e foi onde Tamar sentira
seu primeiro desejo de pintar. Ela adorava o lugar, principalmente no fim da tarde,
quando o sol parecia uma bola vermelha se escondendo. Descalça, procurava conchas e
ovos de pássaros marinhos, escutava o grito das gaivotas e se divertia com os
caranguejos que andavam de lado.
Tamar sentiu que sorria. Talvez houvesse algo mais na visita, além do que ela
mesma queria admitir.
Agora já estava entre as casas, muitas das quais com mulheres na soleira das
portas, imaginando quem é que estaria chegando e por quê. As crianças espiavam pelos
vidros do carro, e Tamar foi obrigada a ir bem devagar.
Ali estava a taverna da vila, onde todos os homens do lugar se encontravam e
onde começavam quase todos os mexericos. Viu o correio e a loja que vendia
praticamente de tudo que alguém precisasse. Logo em seguida, vislumbrou a fachada
um pouco mais imponente da hospedaria Armas do Falcão, com suas pedras cinzentas
gastas pelo tempo e pelos ventos gelados do inverno, que sopravam do Atlântico.
Tamar entrou no estacionamento da hospedaria e parou o carro perto de um
canteiro de flores coloridas que brilhavam à luz do sol. Desceu e de repente se
lembrou do terninho de lã azul-claro que usava. Enquanto tal roupa nem seria notada
em Limerick, não poderia deixar de causar comentários em Porto do Falcão, e ela devia
ter pensado nisso antes.
Mesmo assim, que adiantava? pensou com impaciência. Não pretendia ser
novamente vítima das convenções tolas daquele lugar e além disso não era mais a

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adolescente pobre que dali sairá, sete anos atrás.
Tirou a bolsa do carro, ajeitou-a no ombro e entrou na hospedaria antes que
alguém se aproximasse. Antes, deu um olhar à volta e sua expressão suavizou-se ao ver
mais ao longe as paredes brancas da igreja de St. Patrick. Imaginou se o padre
Donahue ainda estaria lá.
Depois, com um suspiro, caminhou pelo corredor até o salão, onde cortinas
neutralizavam um pouco a claridade. Parecia mais frio que lá fora. Um homem polia o
balcão, e ficou surpreso, quando a viu.
— Sim, senhorita? — disse, observando-a com curiosidade. — Quer alguma
coisa?
Tamar atravessou o aposento, olhando para ele também curiosa. — Olá, sr.
0'Connor. É Tim 0'Connor, não é?
— Sou eu! — O homem franziu a testa e endireitou-se. — Será que conheço. —
Deu um soco no balcão. — Deus do céu, é Tamar Sheridan?
Tamar relaxou um pouco. A partida inicial tinha sido ganha com pouca
dificuldade.
— Sim, sr. 0'Connor, sou eu mesma. Fico muito contente em ver que se lembra
de mim.
Tim 0'Connor, um homem de quase cinqüenta anos, com o cabelo começando a
ficar grisalho, cocou a cabeça meio sem jeito. — Ora, pelo amor de Deus, imagine se eu
não ia me lembrar da filha da nossa Kathleen — disse sacudindo a cabeça. — Eu e
Kathleen fomos à escola juntos! — Suspirou. — Você é muito parecida com ela, Tamar.
Tamar sorriu e sentou-se em um dos banquinhos do bar. Sabia que sua mãe e Tim não
eram parentes, mas tinham sido namorados, antes que seu pai chegasse e conquistasse
a bela Kathleen. Seus avós tinham contado muitas outras coisas, mas ela tinha dado o
desconto pelo fato de eles não suportarem os ingleses. Por outro lado, seu pai nunca
tinha se dado bem com os sogros.
— Diga-me — disse Tim, sem poder conter a curiosidade — o que veio fazer em
Porto do Falcão? Ouvi dizer que você vive da pintura! — Parecia muito espantado.
Tamar sorriu e acendeu um cigarro. — Bem, é verdade. Pelo menos agora estou
de férias. Eu… eu quis voltar, rever onde nasci. — Olhou à volta. — Nada parece ter
mudado. — Sorriu.
O rosto de Tim ficou sombrio. — Oh, tem havido mudanças — disse com a voz
menos jovial. — Minha Betsy faleceu no ano passado.
— Sua esposa? — Tamar estava espantada.
— Sim, é verdade. Foi um ataque de coração, meio de repente. Estava bem, e
logo depois… — Suspirou. — Mas, você não está interessada em meus problemas — e
quando ela ia protestar — continuou: — As coisas nunca são as mesmas, Tamar. Não

14
sabia disso?
Tamar baixou a cabeça. — Acho que sim. — Depois levantou os olhos. — E sobre
acomodações? Você ainda aluga quartos para os turistas de verão?
Tim sacudiu a cabeça. — Não. Nestes dois anos não foi preciso, e acrescentou:
— Tamar, você precisa de um lugar para ficar?
Tamar assentiu. — Mas talvez em algum outro lugar… — Franziu a testa. Não
queria voltar para Limerick nessa noite, não agora que quebrara o gelo. Duvidava que
tivesse coragem de guiar pela rua principal outra vez.
Tim estava de testa franzida, também. — Não sei o que sugerir, Tamar. Ah, mas
aí está um amigo seu. Com certeza ouviu dizer que você tinha chegado.
Tamar sentiu a cor sumir de seu rosto e virou-se no banquinho exclamando: —
Padre Donahue! — Sentiu-se aliviada quando viu o padre parado na soleira da porta do
salão.
— Tamar! É você mesmo? — perguntou, o rosto enrugado, todo feliz —
0'Rourke, da taverna, disse que era, mas eu não podia acreditar. Tamar Sheridan, por
todos os santos!
Tamar levantou-se, deixando que o padre a levasse até uma das janelas, onde
puxou a cortina para entrar mais luz. Então ela disse:
— Padre, é tão bom vê-lo novamente. Como está o senhor?
O padre moveu a cabeça. — Claro, estou ótimo. Estava pensando em você. Está
mais magra, Tamar! O que tem feito? São todos assim magrinhos na Inglaterra?
— Isso não é um cumprimento — protestou Tim atrás deles. — Acho que a moça
está muito bem!
Tamar lançou-lhe um sorriso e o padre meneou a cabeça de novo. —- Ah, é bom
ter você conosco outra vez. Como é que é? Está de férias? Ou veio para ficar?
— Férias — disse Tamar, sentindo-se culpada. Desde que deixara o vilarejo
tinha escrito para o padre Donahue exatamente seis vezes. embora ele tivesse escrito
muito mais. Desistiu quando viu que ela não respondia. Mas como é que ela poderia ter
explicado que queria cortar todos os laços que a ligavam a esse lugar?
O padre então disse: — Bem, Tamar, você vem até minha casa e toma uma
xícara de chocolate comigo? — Sei que é tarde, quase hora do almoço, mas a sra.
Leary vai precisar de tempo para preparar um prato a mais.
— É bondade sua — começou Tamar, apertando os lábios. Olhou para Tim
0'Connor. — Eu o verei antes de ir embora, sr. 0'Connor.
— Claro, você não vai embora tão cedo! — exclamou Tim 0'Connor. — Daremos
um jeito de acomodá-la, de um modo ou de outro.
Tamar sorriu. — Vamos ver. De qualquer forma, muito obrigada.

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Saiu com o padre e atravessaram a rua estreita que descia até o porto, onde os
barcos de pesca estavam ancorados. O cheiro de sal era mais forte ali e as aves
marinhas esvoaçavam acima deles. Tamar olhou para cima e suspirou.
— Eu tinha esquecido como isto é bonito — disse suavemente e o padre
concordou.
— Existe beleza em todas as coisas, se procurarmos bem — acrescentou ele.
A casa do padre, ao lado da igreja, era um chalezinho com banheiro e luz
elétrica, luxo que nem todas as outras casas possuíam. Um belo fogo ardia na lareira
da sala e Tamar foi muito bem recebida pela sra. Leary, que cuidava da casa do padre
Donahue. Enquanto tomavam o chocolate o padre conseguiu ter, por meio de perguntas
sutis, uma idéia de como tinha sido a vida de Tamar na Inglaterra até conhecer o
sucesso.
— Diga-me — disse ele de repente — por que você voltou, Tamar? Seriamente!
— Mordeu o lábio. — Não quero me meter, você entende, mas aconteceram coisas,
depois que você foi embora, que, se eu tivesse podido, gostaria de ter discutido com
você.
Tamar levantou-se e foi à janela para olhar o porto, com o penhasco e o castelo
dominando toda a cena. Seu olhar foi forçado a levantar-se, mas ela desviou os olhos.
—Coisas, padre? — perguntou, tentando conservar a voz normal. — Que coisas!
— Ross Falcon — disse o padre sem rodeios. Tamar ficou tensa, mas não se
virou.
— O que especialmente sobre Ross Falcon? — perguntou em voz quase inaudível.
— Você o conhecia?
— E todos não o conhecem? — respondeu tentando ganhar tempo.
— Ross Falcon é o chefe da família, Tamar. Todos sabiam disso. Todos o
conheciam como um homem justo, que sabia sua posição na sociedade e o que se
esperava dele. Eu quis dizer, você o conhecia pessoalmente, não é verdade?
Tamar virou-se e, ao fazer isso, a porta que dava para a sala se abriu e um
homem parou na entrada — alto, magro, com traços duros, moreno, olhos e cabelos
escuros, como Emma tinha descrito, vestido com calças e casaco também escuros, o
cabelo teimando em cair sobre a testa, apesar dos esforços para mantê-lo para trás.
Seus olhos percorreram o aposento e fixaram-se em Tamar. Em seguida, gritou com
selvageria:
— Por Deus, Kinraven estava certo!
Tamar sentiu o sangue sumir de seu rosto. Ross Falcon em pessoa! Mais velho do
que ela se lembrava, claro, ele agora devia ter quase quarenta anos, mas tão poderoso
e arrogante quanto antes.
O padre Donahue parecia perturbado. — Ross, o que está fazendo aqui?

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Ross Falcon fez um ar de zombaria. — O senhor está brincando, é claro. Eu
queria ver com meus olhos se era Tamar Sheridan e não uma brincadeira de mau gosto.
O padre apertou as mãos. — Agora que já a viu, não vai cumprimentá-la?
Tamar encolheu-se ante o ódio negro que viu nos olhos de Ross.
— O que eu deveria dizer, padre? — indagou rouco. — Acha que eu deveria
cumprimentá-la por estar de volta? Talvez ache que eu me sinta feliz por vê-la?
Tamar ficou gelada. Estava sendo pior do que ela imaginara.
— Ross! — exclamou o padre em tom súplice. — Esta é uma casa de Deus, um lar
de amor, não de ódio!
Os olhos de Ross voltaram-se para o padre. — Sim, padre, isso é verdade. Mas o
vilarejo é meu, não é? Assim, tenho o direito de — sua expressão era dura e tensa, —
inspecionar os visitantes! — Havia desprezo em cada palavra que dizia. Depois se
endireitou. — Mas como o senhor diz, esta é uma casa de Deus, e não tenho o direito
de violar seu santuário. Desculpe-me, padre! — Sem outra palavra, virou-se e saiu da
sala.
Depois dele sair pesou um terrível silêncio e Tamar desejou que o chão se
abrisse pára engoli-la. Tinha imaginado encontrar Ross, tinha imaginado ser friamente
polida com ele, tratá-lo com um pouco da pose com que ele às vezes tratava os outros.
Mas nunca, em seus sonhos mais loucos, tinha suposto que ele reagisse como o fez. Ele
a odiava, odiava mesmo! Mas por quê? O que ela tinha feito para merecer isso? Na
verdade, era ela quem deveria sentir ódio. Mas com a atitude dele, todas as suas
idéias preconcebidas tinham caído por terra. Como sempre, Ross Falcon, era
imprevisível, como seus ancestrais espanhóis, que tinham se instalado na costa oeste
muitos anos antes, ao afundar seu navio nas rochas do litoral.
O padre Donahue atravessou cansado o aposento e fechou a porta com
movimentos deliberadamente vagarosos. Estava dando a ela tempo para se recompor.
Tamar ficou grata por isso.
Procurou um cigarro na bolsa e acendeu-o com dedos trêmulos. Depois tragou
profundamente e, andando até perto do fogo, estendeu as mãos de repente geladas
sobre as chamas. Acabou o chocolate de um gole e sentiu um tremor.
O padre encostou-se na porta e deu um grande suspiro. — Sinto muito, Tamar —
disse por fim.
Tamar virou-se. — O senhor sente? — perguntou distante. — Não é sua culpa.
Nunca deveria ter voltado, pois as coisas são diferentes do que imaginei.
O padre também chegou perto do fogo e esfregou as mãos. — Talvez, talvez —
disse pensativamente. — Os Falcon sempre foram gente muito orgulhosa.
Tamar sacudiu a cabeça. — Ele estava tão amargo! — murmurou, quase para si
mesma.

17
— É verdade. Ross tem muitos motivos para ficar assim.
— Por quê? — Tamar encarou-o surpresa. — Por quê?
O padre Donahue moveu a cabeça. — Você saiu daqui, Tamar. Foi embora porque
quis. Afastou-se de nossas coisas. Suas razões deveriam ser boas, imagino. Acho que
você voltou só de passagem, e não cabe a mim revelar coisas sobre um homem que
respeito e admiro.
O rosto de Tamar queimava. — O senhor está certo, é claro — disse, séria. —
Eu não devia ter perguntado. — Apertou os lábios, quando então a sra. Leary entrou
para anunciar que o almoço estava pronto.
A refeição foi servida, e apesar da sopa, do peixe e da salada de frutas
estarem deliciosos, Tamar quase não conseguiu comer. Com alguns goles de água,
engoliu um pouco de peixe e algumas colheradas de fruta, mas sentia a garganta
apertada, não conseguindo se relaxar.
Ao se levantarem, disse: — Acho que talvez fosse melhor eu voltar para
Limerick esta noite.
O padre Donahue sacudiu a cabeça vigorosamente. — Oh, não, minha criança,
por favor. Não vá embora por causa de Ross. Tenho certeza que depois ele vai pedir
desculpas…
— Não! — protestou Tamar. — Duvido disso, padre — acrescentou mais calma. —
Ele acha que eu não deveria ter voltado e, com toda a honestidade, estou quase
concordando com ele.
— Então, por que veio, Tamar? — perguntou de repente. — Você ainda não me
disse.
Ela encolheu os ombros. — Minhas razões são meio obscuras — murmurou. —
Existe um homem em Londres, Ben Hastings, que quer se casar comigo.
— Sim?
— É verdade. — Tamar mordeu o lábio. — Não pretendo me casar. Não o amo.
Acho que não vou conseguir amar mais ninguém.
O padre Donahue pegou suas palavras. — Mais ninguém, Tamar?
— Sim. Acho que sou fria.
O padre sorriu. — Com esse cabelo, eu duvido!
Tamar sorriu tristemente.
— Bem, de qualquer modo este lugar me persegue. Tenho um quadro, lembra-se?
Uma pintura a óleo que eu fiz do castelo, antes de ir embora. Acho que queria voltar
aqui antes de mudar de vida. — Suspirou. — Pode entender isso?
O padre franziu a testa. — Tem certeza que é o lugar que a persegue, Tamar?
Ou é Ross Falcon?

18
— Não sei o que quer dizer.
O padre não disse o que pretendia. — Deus me perdoe! — resmungou. — É claro
que você sabe! — Deu um soco na palma da mão. — Será que não acabei de
testemunhar com meus próprios olhos sua reação frente a ele?
Tamar gostava do padre Donahue; era o único homem em todo o vilarejo com
quem podia ser ela mesma, mas nem mesmo ele deveria saber o quanto sofrerá por
causa de Ross Falcon.
— Está enganado, padre — disse secamente. — Minha reação a Ross Falcon foi a
de uma pessoa normal diante de um ódio tão grande. Não sei por que ele me odeia,
mas, se isso é verdade, então é melhor eu ir embora. Não quero complicações.
O padre parecia impaciente. — Tamar, já houve complicação bastante há sete
anos. Está bem, vá! Fuja uma segunda vez, mas não me diga que é indiferente a Ross
Falcon, porque eu simplesmente não acredito. — Encarou-a, quase perdendo a calma. —
Você pode até odiá-lo, mas não foi indiferença que senti há pouco.
Tamar virou as costas. — O senhor está enganado, padre.
Donahue respondeu cético.
— Está bem, está bem! Se é isso, por que vai embora? Seus atos contradizem
suas palavras!
Tamar estava nervosa. Claro que o padre estava certo. Se ela fugisse uma
segunda vez, nunca mais iria voltar, nunca iria descobrir a verdade sobre seus
sentimentos.
Mas ela queria mesmo saber? Não estava secretamente amedrontada com o que
pudesse descobrir? E, se fosse embora, ia ficar para sempre com o quadro da Cabeça
de Falcão a persegui-la? Seria uma pessoa tão fraca? A experiência não tinha servido
para nada? Onde estava o escudo íntimo que ela criara para se proteger de tais
situações? Ela era mesmo uma tola. O padre Donahue estava certo, ela ia embora
porque estava com medo.
Virou-se. — Não há lugar para eu ficar — disse.
— Isso não é desculpa. Você pode ficar aqui, pelo menos temporariamente. —
Olhou à volta. — Há espaço aqui em casa e talvez, se preferir, possamos encontrar um
chalé ou uma casinha para alugar. Há a do velho Flynn, perto da praia. Ele foi visitar a
família em Cork e ainda não voltou.
Tamar sentiu os nervos tensos, depois suspirou e encolheu os ombros.
— Está bem — disse, cansada —, eu fico.
— Ótimo. Agora, vamos tomar um cálice de vinho para celebrar?

19
CAPÍTULO III

O quartinho de Tamar no presbitério do padre Donahue era pequeno e


despretensioso, com tapetes de tricô no chão encerado e uma cama de ferro, mais
macia do que parecia. Havia uma penteadeira com uma bacia e um jarro antigos e uma
cômoda enorme, a maior que Tamar já vira. O quarda-roupa também era imenso.
Durante a tarde, enquanto o padre tratava de seu serviço, Tamar ficou dentro
de casa e só à noitinha, quando achou que todos estivessem jantando, é que se atreveu
a sair outra vez. Vestiu um casaco leve sobre o vestido de lã, desceu até o porto,
tremendo um pouco com o vento frio que começara a soprar. As estrelas brilhavam
num céu sem nuvens e uma lua pálida nascia no horizonte.
Tamar andava vagarosamente, os braços apertando o casaco contra o corpo. O
cabelo macio e penteado estava agora todo emaranhado com o vento. Apesar das
ansiedades por que passara durante o dia, do seu reencontro com o lugar onde nascera
e da cena violenta com Ross Falcon, sentia-se, como nunca, muito mais à vontade. Havia
paz naquela solidão, uma sensação de bem-estar nos gritos dos pássaros. Porto do
Falcão podia ser uma vila isolada, mas lhe dava uma coisa que Londres, com todo seu
esplendor, nunca poderia, pelo menos para ela: o sentimento de pertencer…
O caminho que levava ao cais desviava-se depois e subia os penhascos em
direção ao castelo. Mas, abaixo daquela impressionante morada fortificada, havia um
chalé, agora deserto, e que gradualmente ia se deteriorando; o mato crescia à sua
volta e se insinuava por todos os cantos. Tinha sido o chalé de seu avô, mas os
proprietários, como de todas as outras casas da vila, eram os Falcon. A casa agora
estava abandonada à própria sorte.
Tamar não subiu até o chalé. Seus sapatos não eram apropriados para o caminho
pedregoso e, além disso, o lugar despertava-lhe muitas lembranças. Ficou imaginando
por que tinham deixado a casa assim. Por seu estado parecia que não tinha sido usada
desde que seu avô morrera e ela fora embora.
Voltou, tropeçando um pouco com a pressa, sempre consciente das luzes na casa
do alto do morro. Imaginou se Ross estaria lá agora, e o que estaria fazendo. Virgínia
também estaria lá, é claro, e a criança, fosse menino ou menina. Ela poderia perguntar
ao padre Donahue sobre a criança. Claro que não seria considerado curiosidade! O
padre não queria discutir sobre os Falcon com ela, poderia saber das novidades na
hospedaria ou na taverna, mas não tinha vontade de falar sobre os Falcon a não ser
com ele.
Ao voltar, andando pelo cais, imaginou também o que teria acontecido com a mãe
de Ross. Devia estar bem velha agora, com mais de setenta anos — a velha Bridget
Falcon, a mais arrogante de todos eles. Seus olhos se suavizaram quando se lembrou
de como seu avô nunca abaixava a cabeça para Bridget Falcon. Não tinha medo dela,
como a maioria dos outros habitantes.

20
Virou na rua que ia dar na casa do padre Donahue, e quase morreu de susto
quando uma voz disse perto: — Alô, Tamar. Na escuridão não tinha visto ninguém se
aproximar, mas agora podia distinguir a silhueta de um homem. Quando o encarou,
sentiu uma onda de apreensão, mas de repente o reconheceu.
— Steve! — exclamou, atônita. — É o Steve, não é?
O rapaz sorriu, os dentes brancos aparecendo no escuro da noite. — Em pessoa.
Você é a sensação do vilarejo, sabia?
Tamar riu e recuperou a calma. No começo tinha pensado que fosse Ross, mas
em seguida percebeu que se tratava de Steve Falcon, seu irmão mais moço.
— Duvido muito — disse Tamar, movendo a cabeça. — Mas por que está aqui? É
uma coincidência?
— Não, claro que não. Vim procurar você. Ross me disse que estava aqui. —
Disse a última frase meio seco, e Tamar percebeu que ele sabia da atitude do irmão.
Tamar umedeceu os lábios secos. — Sim, vi Ross mais cedo. Ele foi à casa do
padre Donahue, onde estou hospedada por enquanto.
Começaram a andar pela rua em direção ao presbitério e Steve disse: — Por que
você voltou? Não para ficar, tenho certeza.
Tamar fez que não com a cabeça. — Precisava de umas férias e resolvi passá-las
em Porto do Falcão.
— Diabos! — Steve parecia incrédulo. — Como se a famosa Tamar Sheridan não
pudesse encontrar um lugar mais excitante que Porto do Falcão para passar suas
férias! — exclamou. Tamar sacudiu os ombros. — E por que eu não deveria voltar? —
perguntou calmamente. — Era meu lar!
— Oh, sim. Era, isso mesmo, era! Honestamente, todos nós ficamos
espantadíssimos. Nunca pensamos… pelo menos… De qualquer modo, conte-me sobre
você. Como tem passado? Parece-me que seu pai morreu logo depois que você foi para
a Inglaterra, não é?
— É verdade. — Tamar mordeu o lábio. — Bem, acho que tive sorte. Papai tinha
conhecimentos. Também era um artista, a seu modo. — Suspirou. — Quando se
esforçava… Apresentou-me a Ben Hastings. Ben é filho de Allen Hastings, você deve
ter ouvido falar dele. — Steve concordou. — Ben não é exatamente um patrono das
artes ou algo assim, mas tem dinheiro e pode reconhecer talento, pelo menos acredito
que sim — acrescentou modestamente. — De qualquer modo, ele me apresentou às
pessoas certas, e consegui um emprego como desenhista de capas de livros, revistas e
coisas no gênero, com tempo livre suficiente para treinar minha verdadeira vocação.
Ben tem sido maravilhoso!
— Deve ser mesmo — comentou. — Ouvi dizer que você fez uma exposição.
Tamar encarou-o. — É verdade. Como é que você soube?

21
— Não somos selvagens aqui — respondeu Steve friamente. Tamar corou.
— Não quis dizer isso. Desculpe-me, é que…
— Eu sei, eu sei. De qualquer modo, soubemos.
Tamar assentiu com a cabeça. — Foi muito emocionante para mim, mas exaustivo
também. Entre Ben e Joseph Bernstein, o dono da galeria, tive a impressão de perder
minha própria identidade. Pode entender isso?
— Talvez — admitiu Steve.
Chegaram ao portão que dava para a igreja e para o presbitério.
— Quer entrar? — perguntou Tamar, olhando para a casa. Steve encolheu os
ombros. — Não, é melhor não — disse sem jeito.
— Será que podemos conversar um pouco?
Tamar franziu a testa. — Estou cansada, Steve. Em outra ocasião, está bem?
Steve segurou-lhe o braço. — Vai ficar muito tempo aqui?
— E isso importa?
— Sim.
— Por quê?
Steve soltou-a, sacudindo a cabeça. — À toa — replicou, mas Tamar sabia que
havia alguma razão. De repente ficou impaciente. Tanta intriga, tanta reticência. Era
ridículo!
— Estou vendo que você ainda continua aqui — observou. Steve suspirou. — Sim,
ainda estou aqui. Cheguei a ir para Dublin alguns anos atrás, mas acabei voltando.
— Você se casou, Steve? — perguntou.
Ele concordou. — Sim, estou casado, Tamar. Casei-me com uma moça de Dublin,
Shelagh Donavan.
— Um nome bem irlandês — comentou Tamar secamente. — Eu não sabia, é
claro. Vocês têm filhos?
— Não, infelizmente não. — Steve virou-se, enfiando as mãos nos bolsos da
calça. — É melhor deixar você entrar. Não gostaria que o padre Donahue pensasse que
eu a estava detendo.
Tamar percebeu uma sensação de derrota no rapaz e ficou com pena. Com
Steve, apesar de ele ser cinco anos mais velho que ela, sempre se sentira mais forte.
Era diferente de Ross como a água do vinho.
— Eu… eu gostaria de ver você outra vez — disse meio sem jeito. — Isto é, se
você quiser.
Steve olhou para ela. — Você está mudada, Tamar — comentou. — Esqueceu-se

22
de que aqui é Porto do Falcão, não Londres. Temos que seguir as convenções. Se eu
fosse visto em sua companhia muitas vezes, o pessoal começaria a falar.
— Oh, é verdade! — Tamar abriu o portão, entrou, fechou e se debruçou sobre
ele. — Eu tinha me esquecido, Steve. Você é um homem casado agora.
— Diabos, Tamar, por que você foi embora? — explodiu ele com raiva. — Se você
e Ross não acertaram, poderia ter dado certo comigo. Sempre achei que combinávamos
bem!
Tamar ficou atônita. — Steve! — exclamou. — Honestamente nunca suspeitei…
— E como poderia? Você estava sempre com Ross por perto. Nunca conheci uma
mulher que conseguisse emocionar Ross como você. Ele sempre parecia tão mais velho,
tão mais superior… e então… então. ..
— Esqueça, Steve, por favor. Não quero falar sobre Ross.
— Por quê? Está com medo?
— De Ross?
— Sim.
Tamar sacudiu a cabeça. — E por que deveria ter medo?
Steve deu alguns passos pela rua. — Se você não sabe, não sou eu quem vai dizer
— replicou enigmaticamente, e foi embora, deixando Tamar mais confusa e perturbada
que antes.
Na manhã seguinte tudo, parecia diferente. Deitada na cama, escutando o
barulho do mar que se quebrava nas pedras abaixo do castelo, Tamar achou que tinha
deixado os acontecimentos da véspera ultrapassarem as devidas proporções. No dia
anterior sentira-se cansada e apreensiva, sujeita portanto a se preocupar com
qualquer coisa. Sabia que não seria fácil se acostumar novamente com a mentalidade
retrógrada dos habitantes locais e a atitude de Ross Falcon somada à fraqueza de
Steve levaram-na a valorizar demais coisas de importância secundária. Além de tudo,
pouco se importava com a atitude que os Falcon pudessem tomar em relação a sua
chegada, pois não dependia mais deles para viver. Era apenas uma visita, como o padre
tinha dito, e como tal teria que evitar qualquer envolvimento.
Firme nessa decisão, olhou para o relógio e levantou-se da cama. Eram só sete e
meia, mas sabia que o padre Donahue tomava café às oito, quando voltava da missa, por
isso lavou o rosto na água gelada que havia no jarro e vestiu uma camisa xadrez azul e
branca e calças de veludo bege. Depois penteou o cabelo curto e crespo. Examinou o
rosto no espelho e analisou sua aparência com olhos críticos. Olhos azuis, levemente
levantados nos cantos, nariz pequeno e boca grande. Não era bonita, mas o rosto tinha
charme, apesar de ela mesma não se achar atraente. Só suas pestanas longas, que
cobriam seus olhos, e a personalidade que se escondia atrás do seu sorriso é que
davam a ela algo de indefinível, algo em que Ben estava sempre reparando. Sorriu.
Certamente, pensou, passaria despercebida em uma multidão.

23
Saiu do quarto, desceu as escadas em curva e passou pela porta da cozinha. A
sra. Leary estava ocupada fritando toicinho, cujo aroma delicioso impregnava o ar.
— Ora, srta. Sheridan! — exclamou ela surpresa. — Eu ia levar uma bandeja em
seu quarto mais tarde, pensei que não quisesse acordar tão cedo.
Tamar sorriu. — Oh, por favor — pediu —, não faça cerimônia comigo. Gostaria
de sentir que não estou dando trabalho.
— Céus, senhorita, não está dando nenhum trabalho — declarou a sra. Leary
veemente. — Faz bem ao padre ter companhia de vez em quando. Ele é um homem
solitário, pois é o único padre nessa região. A não ser algumas visitas ao castelo, nunca
vai a parte alguma.
Tamar concordou e sentou-se à mesa da cozinha. — Ele geralmente come aqui,
sra. Leary?
— De manhã, quase sempre — concordou a criada —, mas agora vou pôr a mesa
na sala.
— Não vai, não — protestou Tamar. — Eu gosto demais da idéia de comer aqui.
Faz com que me lembre de minha casa — suspirou.
A sra. Leary ficou com pena. — É verdade, foi um dia bem triste aquele em que
o barco de Daniel Donnelly virou. — Sacudiu a cabeça.
Tamar ergueu os ombros. — Foi mesmo, sra. Leary. Meu avô já era velho demais
para sair com o barco. Não teve chance. Mas ninguém podia falar nada para ele, não
era? — sorriu. — Ele era sempre o melhor!
A sra. Leary virou-se novamente para a frigideira. — E era mesmo, srta. Tamar.
Era um bom homem. Acho que não ligava mais para a vida depois que sua avó morreu.
— Não, ambos se foram com menos de seis meses de diferença. — Tamar
aceitou uma xícara de chá. — Foi horrível.
— E aqueles advogados, procurando seu pai daquele jeito. Entretanto, talvez
tenha sido melhor mesmo. Ele a afastou de toda aquela tristeza.
Tamar baixou a cabeça. — É verdade — respondeu com um nó na garganta,
sabendo que a sra. Leary não tinha a menor idéia da tristeza que sentira na ocasião.
— E como é que foi em Londres? — quis saber a sra. Leary. Tamar sacudiu os
ombros. — Londres é muito grande. A gente se sente na solidão, mesmo com toda
aquela gente. Mas, por sorte, meu pai conhecia um homem que me ajudou a arranjar um
emprego e, quando morreu, consegui sobreviver sozinha. Há apenas alguns anos é que
comecei a pintar como profissional.
— E o que vai querer no café? — perguntou a boa senhora. — Dois ovos com
presunto e talvez umas torradas?
— Céus, não! — disse Tamar. — Em casa só tomo suco de fruta e café.

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A sra. Leary pareceu chocada e o padre Donahue, que entrava naquele instante,
disse:
— Eu sabia, sra. Leary. A garota está sumindo! Temos que fazer o possível para
que ela engorde um pouquinho.
Tamar sorriu. — Oh, bom dia, padre.
— Dormiu bem?
— Na verdade, dormi — admitiu Tamar, que supusera fosse passar a noite em
claro, depois dos acontecimentos do dia anterior.
— Ótimo! É o ar, é claro. Muito estimulante! E não quer me acompanhar nos ovos
com toicinho, Tamar? Não gosto de comer sozinho.
Tamar riu acanhada. — Está bem — disse, percebendo que estava com fome. —
Mas, se eu ganhar alguns quilos, vocês vão ter que me dar roupas novas!
O padre riu com vontade, e, ao ver a roupa que ela usava, limitou-se apenas a
uma eloqüente sacudida de cabeça.
Depois do café, quando o padre foi estudar em seu pequeno escritório, Tamar
colocou um agasalho alaranjado e saiu de casa. Sentia-se mais à vontade para
encontrar as pessoas que conhecia. Levou com ela seu bloco de desenho.
Foi até a loja da vila e comprou cigarros, deu um dedo de prosa com o
proprietário e, imaginando que isso iria provocar mexericos o dia inteiro, saiu andando
rápido ao longo do cais e subiu o caminho pedregoso até o chalé, onde tinha nascido.
Era um dia fresco, com uma névoa no horizonte e nuvens escuras ameaçando
chuva. Enquanto subia, deu uma olhada para trás, vendo o pequeno porto onde
ancoravam os barcos de pesca. A pesca era, na verdade, a única indústria do vilarejo, e
assim mesmo não era muito ativa. A maioria dos homens que não tinha seus próprios
barcos de pesca, trabalhavam para a família Falcon, cuidando das lavouras que
cresciam com dificuldade no terreno ruim. Havia alguns animais que davam leite e
carne para a comunidade e eram também uma fonte de renda para os Falcon.
Mas Ross Falcon não dependia dessa renda para seu sustento. A família sempre
tivera dinheiro e investimentos que rendiam bastante. Independente disso, Ross era
historiador e escrevia muito sobre o país. Tinha diversos livros publicados, que Tamar
sempre comprava, mesmo depois de deixar Porto do Falcão. Um de seus livros tinha
sido adotado nas escolas e tornara-se um sucesso. Fora o fato de ele ser escritor que
os aproximara. Ele a tinha encorajado na pintura, percebendo seu talento muito antes
do que ela.
Tamar estremeceu. Tudo aquilo era passado. Qualquer interesse que Ross
pudesse ter tido por ela já tinha sido pago de muitas maneiras. O chalé não estava
trancado, e a porta se abriu provocando um rangido assustador nas dobradiças e um
ruído estranho na poeira do chão, como se ali houvesse outros pequenos habitantes.
Tamar passou um trapo nas janelas, deixando entrar mais um pouco de luz. Apertou

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então os braços contra o corpo para expulsar tanto o frio do presente quanto o do
passado. Fechou a porta da frente para evitar o vento e abriu a da cozinha.
Ali estava a pia com a bomba manual toda enferrujada e cheia de teias de
aranha. E ali estava a mesa, suja e grudenta, onde ela e seus avós tomavam as
refeições. Ficou pensando se as coisas teriam sido diferentes se sua mãe não tivesse
morrido e sacudiu a cabeça. Era melhor mesmo que ela estivesse morta. Seu pai nunca
iria ficar muito tempo em um mesmo lugar, ela mesma tinha percebido isso longo.
De repente escutou um barulho no outro aposento e assustou-se. Ficou imóvel,
lembrando as palavras da avó sobre a vida depois da morte e imaginando apreensiva se
o visitante era espiritual ou físico.
A porta que dava para a cozinha se abriu de uma vez, batendo com força no
fogão de ferro e Tamar soltou uma exclamação assustada. Acalmou-se quando viu que
era uma criança, entre cinco ou seis anos, parada, olhando para ela. À primeira vista
Tamar não soube dizer se era menino ou menina, mas de algum modo, depois de um
momento, achou que era uma garota. Usava calça de brim, camiseta e um agasalho
pendurado nos ombros. Tinha o cabelo preto, todo encaracolado, e parecia solitária e
abandonada. Tamar deu um passo à frente.
— Alô — disse rindo. — Quem é você?
A criança não respondeu e andou para trás, como se não tivesse certeza se
Tamar era amiga ou inimiga.
Tamar imaginou quem poderia ser. Poderia ser de qualquer um. Havia muitas
crianças no vilarejo, e talvez ela tivesse visto Tamar enquanto subia e resolvera segui-
la.
— Qual é seu nome? — perguntou Tamar, agachando-se para ficar da altura da
criança. — Meu nome é Tamar, eu morei aqui há muito tempo. Provavelmente antes de
você nascer.
À menina se afastou ainda mais, até chegar à metade da sala. Tamar suspirou e
levantou-se. Geralmente fazia amizade facilmente com crianças e ficou pensando se
tinha alguma coisa que pudesse ajudar. Então se lembrou do bloco de desenho e dos
lápis. Foi até a mesa onde tinha deixado o material e pegou-o, ignorando a incerteza
dos gestos da criança, pronta para fugir se necessário.
— Olhe — disse Tamar agachando-se novamente e desenhando rapidamente. —
Veja, você sabe quem é?
Só demorou um instante para esboçar os traços da criança, de modo que
ficassem reconhecíveis. Depois estendeu o papel para a menina. Primeiro ela se
recusou a pegar, mas quando Tamar deixou o bloco em uma cadeira e saiu de perto, a
criança veio cautelosamente e espiou o que Tamar tinha desenhado.
Tamar tinha esperado alguma reação, alguma palavra de surpresa, mas a menina
nada disse, só ficou olhando para o desenho e depois tirou a folha do bloco e guardou-

26
a no bolso do agasalho.
Tamar sacudiu a cabeça. Obviamente, fosse quem fosse, não tinha a intenção de
fazer amizade. Tinha voltado a ficar perto da porta e olhava para Tamar com uns
olhos escuros, que de algum modo pareciam familiares.
Então, a porta se abriu abrupta e violentamente, quase derrubando a criança.
— Lucy, que diabo! Já falei para não vir aqui! — disse Ross Falcon entrando na
sala, com voz áspera e irada. Tamar sentiu suas pernas amolecerem. Será que a criança
era dele? Quando viu Tamar, ele parou abruptamente. — Devia ter imaginado que você
viria aqui. — Segurou o ombro da menina com energia e puxou-a para si. Mesmo assim,
a criança foi de boa vontade, e Tamar percebeu que ele às vezes devia ser bem gentil.
Engoliu em seco, limpou a garganta e perguntou: — A menina Lucy é sua filha?
Ele encarou-a com desprezo, examinando-a com insolência, até fazê-la sentir o
sangue queimar o rosto. Então falou:
— Sim, Lucy é minha — respondeu friamente. — Por que está surpresa?
Tamar sacudiu a cabeça com violência. — Não… não! Isto é.. . por que… por que
deveria estar?
Ele sacudiu os ombros. — Na verdade por quê? — resmungou amargamente. —
Entretanto, não tem importância. Ela é tão amada quanto qualquer outra criança! —
disse ele na defensiva, e Tamar não entendeu.
— Nunca duvidei disso — gaguejou. — Se… se me dá licença! Quis sair, mas ele
bloqueou a passagem, Tamar estava precisando de ar.
Ross encostara-se no batente da porta. — E se eu não der? — replicou,
caçoando.
Tamar armou-se de toda a coragem e disse: — Não vamos discutir, pois acho
que não temos mais nada para conversar.
— Aos diabos, com sua opinião! — explodiu ele com raiva. — Pensa que pode vir
chegando aqui, com suas roupas da cidade e seus modos da cidade e me fazer de tolo?
— Não era minha intenção — respondeu Tamar, virando o bloco nas mãos.
Ele olhou-a com desprezo. — Verdade? Então por que voltou? Tamar ficou
impaciente. Ali estava ela, deixando que ele desse ordens, como um ditador poderoso!
— Já estou ficando cansada de responder a essa pergunta — disse ela
levantando a cabeça. — Este é um país livre e não tenho que dar satisfações de meus
atos. Agora, com licença.
Ross Falcon ficou tenso, os olhos brilhando de raiva, e Tamar viu que era por
isso que tinha achado os olhos de Lucy familiares. Sentiu um aperto no coração. Este
era o homem por quem uma vez estivera apaixonada, o homem que só brincara com ela,
pois suas intenções mais sérias estavam voltadas para outro lado. Como se atrevia a

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tratá-la desse modo, despertando-lhe tantas memórias dolorosas.
Com as pernas tremendo, atravessou a sala e disse: — Vai me deixar sair, ou vou
ter que gritar e assustar a menina?
Os olhos de Ross anuviaram-se por um momento, ela pensou que ele fosse
agredi-la. — Você não poderia assustar Lucy — argumentou —, e sabe muito bem disso!
Tamar franziu a testa. — Está fazendo charada, sr. Falcon?
— Estou? Será que está negando que o padre Donahue tenha lhe falado de meus
azares na vida?
Tamar sacudiu a cabeça. — Não sei o que quer dizer. O padre não discutiu sua
vida comigo. Você devia saber disso.
Ross Falcon ergueu os ombros largos. Tinha um corpo rígido, mais magro do que
ela se lembrava, mas viril do mesmo modo. Ele sempre tinha feito com que os garotos
com os quais ela crescera, parecessem tolos e convencidos.
— De qualquer modo, você já está na vila há mais de vinte e quatro horas e deve
ter ouvido,
— Ouvido? Ouvido o quê? — A curiosidade de Tamar foi mais forte que sua
atitude hostil. Ela olhou para a criança. Lucy estava parada, olhando para ela com
aqueles olhos escuros, e ela sentiu como se uma faca penetrasse em suas entranhas,
ao lembrar-se que uma vez imaginara ter filhos com Ross.
Ele hesitou um momento, depois escancarou a porta. — Vá! Não pretendo ficar
discutindo com você.
Tamar estava se sentindo sem jeito. Lógico que uma criança da idade de Lucy
entenderia um pouco da situação e quereria saber o que estava acontecendo. Imaginou
se Ross estaria preocupado com isso e se a criança tocaria no assunto com a mãe.
— Adeus, Lucy — disse, sorrindo para a menina, mas Lucy não respondeu. Enfiou
as mãos nos bolsos da calça e olhou para suas sandálias gastas.
Tamar passou por Ross, sentindo-se nauseada. Teoricamente era fácil resolver
o que e como ia fazer, o que ia sentir, mas na prática era extremamente difícil.
Parou no alto do caminho e olhou para trás. Ross e a filha tinham saído do chalé
e estavam parados, olhando para ela.
Suspirou. Apesar de tudo, queria ter feito amizade com Lucy. De algum modo,
parecia uma criança solitária e ela imaginou se Virgínia também teria mudado. Será
que seria do tipo de relegar responsabilidades para outra pessoa? Tamar nunca a
achara maternal. Estava sempre preocupada demais consigo mesma, com suas roupas,
seu cabelo, sua maquilagem. Num vilarejo como aquele, ela parecia deslocada. Ainda
assim Ross tinha se casado com ela. Tinha-a desejado, feito amor com ela, dado a ela
uma criança.
Tamar sacudiu a cabeça e, virando-se, desceu depressa o caminho. Estava

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ficando tarde. Logo seria a hora do almoço. Era bom pensar em outras coisas. Afastar
de seus pensamentos os ocupantes do castelo da Cabeça do Falcão.

CAPÍTULO IV

Os dias em Porto do Falcão eram muito parecidos, a ponto de perderem sua


identidade. Tamar descobriu nos dias que se seguiram que sua própria existência
adaptara-se à mesma rotina. Ela geralmente tomava café com o padre, depois saía, às
vezes desenhava; outras, só explorava, saindo com o carro e descobrindo novamente
as belezas da costa agreste. Não tinha ainda entrado na água. O mar estava muito
bravo e muito frio. Mas andava muito pela praia, colecionando conchas e
perfeitamente integrada nessa vida preguiçosa.
Não que se sentisse exatamente feliz, era mais uma questão de preencher os
dias, deixando de lado qualquer pensamento perturbador e tomando um copo de uísque
irlandês à noite com o padre Donahue, o que fazia com que sempre dormisse bem.
O padre estava conversando com os Falcon sobre o aluguel do chalé de Flynn,
mas Tamar não tinha certeza se ia ficar tanto tempo como pensara. De algum modo
parecia que nada tinha dado certo e ela estava se sentindo inquieta a maior parte do
tempo. Ben tinha escrito para contar sobre a cobertura que a imprensa dera sobre a
exposição e sobre as sugestões de diversos produtores de televisão no sentido de que
fizesse painéis ou tomasse parte em programas de debates. Tamar ficou contente,
mas não se interessou, apesar de disfarçar isso quando respondeu a Ben.
Uma manhã estava no correio, mandando uma carta, quando uma mão se fechou
em seu ombro. Era Ross Falcon outra vez.
Ela se moveu, forçando-o a tirar a mão, apesar de sua expressão continuar a
mesma. — Quero falar com você, srta. Sheridan — disse em tom ríspido. — Venha aqui
fora.
Sentindo que estavam chamando a atenção na loja, Tamar não discutiu, mas saiu
na frente dele sem dizer uma palavra. Do lado de fora enfrentou-o zangada,
reprovando o modo como ele lhe falara.
— Sim? — indagou com frieza. — O que quer? Na rua chamavam quase tanta
atenção quanto dentro da loja, e Ross olhou à volta impaciente. Um grande carro verde
estava parado ali perto.
— Venha — disse ele, indicando o carro. — Aqui é público demais.
— Nossa conversa é particular? — perguntou distante. Ross a ignorou e, levou-a
pelo braço em direção ao carro. Tamar deu um puxão desvencilhando-se dele.
— O que quer que você tenha a dizer pode ser dito aqui mesmo! — exclamou

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furiosa.
Ross olhou zangado para ela. — Quer que eu a carregue e a coloque no carro? —
gritou.
Tamar estava irritadíssima, mas percebendo que estavam atraindo atenção cada
vez mais, ignorou-o e entrou no veículo. Ross bateu a porta, depois deu a volta para
ocupar o volante. Deu a partida e o carro subiu roncando a rua principal. A meio
quilômetro da vila parou o carro outra vez e, desligando o motor, virou-se para ela.
Tamar olhava para a frente, recusando-se a permitir que ele a assustasse como
tinha feito no chalé. Ele ficou olhando para seu perfil por um momento, depois tirou
um pedaço de papel do bolso, segurou-o em frente dos olhos dela de modo a que ela
fosse obrigada a olhar. Era o esboço que fizera de Lucy.
— O que é que tem? — perguntou, sem olhá-lo.
— Como é que a menina arranjou isto?
Tamar olhou para ele. Seus olhos estavam frios e indignados. — Por que não
pergunta para Lucy? — retrucou ferozmente.
Ross encarou-a com firmeza, os olhos estreitando-se, as pestanas encobrindo
sua expressão. Seus olhos às vezes eram estranhos. Podiam ser cinzentos como o mar
num dia de tempestade, verdes como a grama, amarelos como os de um tigre. Agora
eram cinza e frios como cubos de gelo.
— Lucy é surda-muda — contou com dificuldade.
No começo Tamar sentiu-se amortecida. Não podia acreditar! Não podia
acreditar que aquela criança saudável não pudesse falar nem escutar. Não era à toa
que tinha parecido tão amedrontada, com tão pouca vontade de fazer amizade com
uma estranha. Devia ter ficado pensando no que Tamar estava fazendo e por que
estava ali.
Sacudiu a cabeça incrédula e disse atrapalhada: — Sinto muito!
O olhar de Ross não se desviou. — Você não sabia?
— Não, claro que não! Como é que podia saber? O padre Donahue não é de
contar mexericos e não vi mais ninguém.
— Steve não contou para você?
— Não.
Tamar saiu do carro de repente. Os olhos de Ross eram penetrantes e atentos
demais, e ela temia que ele visse nos seus olhos o sentimento de tristeza que havia lá
no fundo.
Ross também saiu do carro. Sua expressão glacial não demonstrava a menor
preocupação com o choque que a revelação causara em Tamar.
— Mas a pergunta ainda persiste! Como é que Lucy arranjou isto? — insistiu ele,

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indicando o desenho.
Tamar suspirou, o rosto tenso e nervoso. — Quando eu a encontrei no chalé! —
disse erguendo os ombros. — Ela estava tão tímida, sem querer fazer amizade. Pensei
que fosse uma das crianças da vila…
— E ela é!
— Você sabe o que eu quero dizer! — exclamou tremendo. — Bem, como eu
estava com meu bloco de desenho, fiz um esboço dela, só uns traços que a permitissem
reconhecer-se a si mesma. — Virou-se. — Ela pareceu gostar. Arrancou a folha e
colocou no bolso.
— E tem estado sempre com ela desde aquele dia — disse ele, enfiando as mãos
nos bolsos do casaco.
Tamar olhou para ele. Era difícil não encará-lo. Era o único homem que fazia
isso com ela. Não era bonito, seus traços eram muito severos, muito rudes para serem
bonitos. Mas era atraente, a pele morena enfatizando sua aparência de estrangeiro.
Não era à toa que Virgínia tinha usado de todas as armas para prendê-lo Talvez ela
tivesse ficando com medo que Ross também agisse como agira com Tamar.
Tamar falou então: — Isso é tudo?
Ross sacudiu os ombros. — Não, isso não é tudo. Minha mãe quer vê-la. — Disse
isto com relutância, com tanta relutância que Tamar quase pôde ouvir a discussão que
devia ter havido quando Bridget Falcon fez a sugestão.
— Ela quer? — perguntou, conseguindo manter a voz calma indiferente. — Mas
se ela sabe onde estou hospedada, por que não vem me procurar?
Ross olhou para ela com desprezo. — As coisas estão diferentes srta. Sheridan,
como decerto notou. Minha mãe está presa a uma cadeira de rodas. Teve um derrame
há alguns anos e ficou semi-paralítica.
Tamar apertou as palmas das mãos contra o rosto. Estava com uma terrível
sensação de sufocamento, mas não podia deixar que ele percebesse como a estava
magoando. Mordendo os lábios para que parassem de tremer, disse. — Você está
adorando isto, não, Ross? Forçando-me a enfrentar situações embaraçosas! Por que
está fazendo isso? Que razão tem para me odiar tanto? Não tenho culpa do defeito
de sua filha, nem da doença de sua mãe! — Ela parou de falar e se afastou dele
tremendo violentamente.
Ross agarrou-a pelos ombros e virou-a para si. — Não tem? — explodiu com
raiva. — Não tem culpa de nada?
Tamar lutou para se libertar e como começasse a chover, ela não conseguia mais
enxergar direito. — Você está louco! — gritou. — Preferiu casar-se com Virgínia…
preferiu… antecipar seu casamento. — Com um movimento brusco livrou-se das mãos
dele.

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— Antecipar meu casamento? O que você está insinuando? Tamar sacudiu a
cabeça. — Nada, nada! Olhe, vá embora! Não quero mais vê-lo!
Ross voltou para o carro. — Venha — disse —, vou levá-la de volta.
Tamar ignorou-o e começou a correr, descendo a estrada em direção ao
vilarejo. Ross teve que virar o carro e se ela conseguisse alcançar o campo, pegaria um
atalho até a igreja. Daquele modo não teria mais que suportá-lo.
Infelizmente a chuva aumentou e ela teve dificuldade em enxergar o caminho.
De repente, torceu o pé e caiu no meio da estrada, bem onde o carro ia passar. Ross
brecou a seu lado e as rodas jogaram lama por cima dela. Sentiu lágrimas quentes
escorrerem pelo rosto, tanto de dor quanto de raiva e humilhação.
Ross saiu do carro, deu a volta e levantou-a sem cerimônia. Então olhou para ela
atentamente. Sua expressão estava desanimada, o cabelo escorrido pelo rosto, tão
sujo de lama como as roupas. Sorriu para ela e Tamar sentiu uma raiva enorme pela
complacência dele.
— Eu odeio você, Ross Falcon — gritou sufocada. — Oh, vá embora, vá embora.
Me deixe sozinha! Tudo isso é sua culpa. Se não fosse por você eu não estaria aqui
agora! Olhe para minhas roupas, que droga! — Lágrimas escorriam pelo seu rosto, e ela
tentava enxugá-las com as mãos, num esforço para esconder suas tolas emoções.
Surpreendentemente o rosto de Ross abriu-se um pouco e sua voz era quase
gentil quando disse: — Sinto muito, Tamar. A culpa foi minha. Devia ter feito você
entrar no carro. Devia saber que ia fazer alguma bobagem!
Tamar olhou zangada para ele. — Alguma bobagem! — repetiu. — Será que
imagina que estou arrependida pelo que fiz? Pois não estou! Não entro outra vez em
seu carro, nem que tenha que me arrastar até em casa na lama!
Ross olhou para ela por mais um instante, depois ergueu os ombros e, virando-
se, foi para o carro e entrou. Deu a partida e sem outra palavra foi embora, deixando-
a ali na chuva para que fosse a pé até o presbitério. Tamar não podia acreditar que ele
tomasse suas palavras ao pé da letra!
Enxugando os olhos, começou a andar, devagar no começo, e depois mais
depressa, enquanto a chuva começava a encharcá-la. Pegou o atalho pelo campo,
rezando para que ninguém a visse, e chegou até a casa do padre sem que acontecesse
mais nada.
A sra. Leary estava na cozinha preparando o almoço quando Tamar entrou. Ela
olhou para Tamar e disse espantada:
— Deus do céu! — exclamou. — O que aconteceu?
Tamar sacudiu a cabeça. — Seria possível eu tomar um banho? — perguntou. —
Como pode ver, caí na lama e fui apanhada pela chuva.
— Tudo bem! Tenho água quente aqui no fogão, mas você vai ter que levar a água

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para cima. O padre não está em casa e eu não posso carregar peso depois que fiz a
operação, você sabe.
Tamar suspirou. — Está bem, sra. Leary. Eu levo.
Mas depois de ter levado diversas vasilhas para cima, Tamar não estava mais
tão entusiasmada. E pensar que ela tinha deixado em Londres um apartamento
moderno para ficar em uma vila onde água encanada era um luxo! Devia estar louca!
Entretanto, depois de ficar deitada por quase uma hora no banho perfumado
que preparara sentiu-se mais calma. Até mesmo seu encontro com Ross Falcon já não
era tão chato, apesar de ainda senti uma dor no fundo do estômago cada vez que
pensava nele.
Nessa mesma tarde, Tamar recebeu um telegrama de Ben, avisando que havia
encontrado o número do telefone da hospedaria e que, se ela pudesse estar naquele
lugar às oito horas da noite, ele iria telefonar.
Foi como se recebesse notícias de um outro mundo. Tamar dobrou o papel com
satisfação. Seria bom falar com Ben outra vez. Durante a última semana tinha se
desligado quase que completamente da sua outra vida em Londres, e isso na verdade
não era nada bom. Londres era a realidade, e o vilarejo uma parte transitória de sua
vida.
Tim 0'Connor ficou muito feliz em oferecer um aperitivo a Tamar enquanto ela
esperava o telefonema. Quando a ligação foi feita, ele, com muito tato, foi cuidar dos
outros fregueses.
A voz de Ben soava oca e distante, e Tamar disse: — Nem sabe como é bom
escutar você, Ben! — num tom quente e entusiasmado.
Ben deu uma risadinha. — Talvez você devesse sair mais vezes, se esse é o
efeito que provoca — brincou. — É sério, querida, eu senti muita falta de você. E você,
ficou com saudades?
Será que ela tinha sentido falta dele? Ou será que ele, como aquela sua vida de
Londres, tinha se tornado irreal e distante?
— É.. . é claro que senti, seu tolo — respondeu animada, esforçando-se para
acreditar. — E você, como está?
— Oh, tudo bem!
— Foi a algum lugar diferente?
— Na verdade não sai de casa — replicou Ben desanimado. Ele tinha um
apartamento na cidade, mas quando ele dizia "de casa", Tamar sabia que se referia à
casa da família, em Cambridge.
— Você não saiu? E por quê?
— O aniversário de Margareth foi há alguns dias. Papai deu uma festa e eu tive
que vir. Desde então não consegui ir embora. Você sabe como mamãe é! — Tamar sabia

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muito bem. Enquanto o sr. Hastings não a perturbava, achava bem mais difícil
entender a sra. Hastings. Ela deveria ser uma mulher muito feliz, com uma bela casa,
dois filhos adoráveis (Margareth era a irmã mais moça de Ben) e dinheiro em
abundância para seus gastos. Ao invés disso, passava todo o tempo reclamando do
vazio de sua vida e agarrando-se aos filhos possessivamente. Tinha ciúme de qualquer
um que pudesse atrapalhar seu domínio sobre os filhos, e por isso Tamar não era
recebida com entusiasmo.
— Sei — disse Tamar. — Você está ligando daí?
— Sim. Hoje à tarde achei que estava ficando maluco. Tinha que falar com você.
Por que não respondeu minha carta?
— Respondi. Coloquei-a hoje cedo no correio. Esta manhã! — Tamar lembrou-se
dos acontecimentos daquela manhã com uma clareza meridiana.
— Então preciso voltar para Londres. Você nunca me escreveu antes. Vou
guardar sua carta como um tesouro, querida.
Tamar apertou o telefone. Por que será que não conseguia amar Ben? Por que
não podia se casar com ele? Se estivessem casados, talvez não estivesse atravessando
uma fase tão complicada a ponto de sentir o coração em pedaços.
Ben continuava falando. Contou-lhe dos produtores de televisão e disse-lhe que
Joseph Bernstein a achava a pintora mais talentosa do ano. Contou onde planejava
levá-la quando voltasse. Tamar respondeu. Imaginou que tivesse usado as palavras
certas, pois Ben pareceu satisfeito, mas seu cérebro estava distante da conversa. De
repente percebeu que estava com vontade de desligar, cortar o vínculo com sua outra
vida, ser novamente a garota despreocupada de antes.
Então o bom senso venceu e, quando ele desligou, tinha a promessa dela de que
estaria no mesmo lugar, duas noites depois, para onde ele telefonaria novamente.
Tamar recolocou o fone no gancho e ficou sentada olhando para o aparelho
pensativamente. Ficou imaginando o que diria se Ben tivesse dito que, antes de se
casar com ela, teria que voltar a sua cidade natal ou a algum outro país, onde ele
tivesse conhecido grandes tristezas e grandes alegrias. Por que persistia em tratar
Ben de um modo tão deselegante? Claro que ia se casar com ele. Cedo ou tarde ele a
acabaria persuadindo, e essa temporada em Porto do Falcão cairia no esquecimento.
Na manhã seguinte, depois de o padre sair para sua ronda, a sra. Leary entrou
na sala dizendo que Tamar tinha uma visita. Tamar levantou-se ao ver Ross Falcon logo
atrás da criada. Sentiu uma estranha satisfação quando se lembrou que estava muito
bem vestida. Usava um conjunto creme que destacava a cor de seus cabelos
brilhantes.
— Obrigada, sra. Leary — disse. — Bom dia, sr. Falcon. Quer alguma coisa?
Ross esperou até que a sra. Leary fechasse a porta. Depois a examinou
detidamente, fazendo-a corar de novo. Ross vestia um imaculado terno cinza, a camisa

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branca contrastando com o tom queimado da pele. Só o cabelo, um pouco longo,
teimava em cair na testa. Tamar enfrentou-o com menos confiança, agora que a criada
tinha saído.
— Imagino que esteja pronta — disse vagarosamente, em tom menos agressivo,
como se estivesse tentando ocultar seus verdadeiros sentimentos.
— Pronta? — Tamar estava surpresa. — Para o quê?
— Eu disse ontem. Minha mãe deseja vê-la. Espero que não vá desapontá-la.
Tamar virou-se, olhando para fora da janela. — Eu, bem… tinha me esquecido —
respondeu sem jeito. — Em outra ocasião, talvez.
— Agora — disse ele asperamente, colocando a mão no trinco da porta.
Tamar sentiu-se tensa. Virou-se então para ele e disse: - Acho que você não tem
nenhuma autoridade sobre mim. Se sua mãe quer me ver, vou combinar a visita numa
outra ocasião. Tenho meu carro. Sou perfeitamente capaz de ir sozinha ao castelo e
voltar. Agora, se me dá licença, tenho trabalho para fazer…
— Você vem comigo — disse ele, ignorando as palavras dela. — Tem um casaco?
Alguma coisa com a saia um pouco mais comprida, talvez? Minha mãe pensa à maneira
antiga e acha que as mulheres não devem ficar mostrando as coxas para qualquer um!
Tamar ficou atônita e escandalizada. Sua saia não era tão curta!
— Como… como se atreve? — perguntou zangada. — Como se atreve!
Ross parecia agora aborrecido. — Por favor — disse, — sou um homem ocupado.
Pegue seu casaco!
— E se eu me recusar?
Ele ergueu os ombros. — Você me conhece muito bem para fazer isso — disse
friamente e, abrindo a porta, saiu da sala.
Tamar suspirou. Se não quisesse causar um escândalo, era melhor não recusar e,
afinal de contas, o que ele estava pedindo? Que ela fosse visitar a mãe dele. Não era
nada apavorante, na verdade. Ela não era mais a estudante tola de alguns anos atrás.
Bridget Falcon não iria amendrotá-la agora, como não o conseguira com seu avô.
Foi até o vestíbulo. Ross estava conversando com a sra. Leary como se tudo
estivesse normal, pensou Tamar com impaciência. Ele era tão arrogante, tão
autoconfiante. Como é que ela podia lhe dizei que o que mais a perturbava era a mulher
dele e não a mãe? Estava se lembrando da última vez em que vira Virgínia e não queria
encontrá-la novamente.
Mas não era derrotista, por isso pôs um casaco de lã creme, pegou a bolsa
marrom e disse: — Estou pronta, sr. Falcon. — Sua voz soou tensa.
O carro estava lá fora, com Lucy atrás. Tamar sorriu feliz ao vê-la tão bem
arrumada e limpinha, com uma roupa de lã verde, o cabelo crespo penteado e o rosto

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brilhando. Era uma bela criança, toda ela Falcon, e Tamar sentiu um aperto na
garganta ao se lembrar do Problema dela. Lucy passou os braços pelo pescoço do pai
quando ele se sentou à direção, dando-lhe um abraço, e Tamar teve um vislumbre do
Ross Falcon que ela conhecia antigamente. Quando sorriu, eliminou algumas rugas do
rosto, deixando-o mais atraente e calmo. Estava infinitamente mais perturbador, e
Tamar sentiu o coração bater mais forte. Isto era loucura, disse furiosamente para si
mesma. Viera para apagar a lembrança deste homem, não para arranjar outras e
torturar-se ainda mais.
Falou com Lucy, mostrando que gostava dela e não a tinha esquecido. Depois
perguntou: — Que idade tem Lucy?
— Seis, por quê?
Seis? É claro, tinha que ter seis anos, pensou Tamar. Tolice dela perguntar.
— Ela, quero dizer, vocês tentaram educá-la para que aprendesse a falar e a
ler?
— Não! — A voz de Ross soou dura.
— Por quê? Não querem que ela seja normal?
Ele protestou com raiva! — Preocupe-se com sua droga de vida!
Desta vez, Tamar não se sentiu ofendida. Estava se acostumando com o gênio
violento de Ross. Só sacudiu os ombros e virou-se para observar o campo por onde
estavam passando.
Quando saiu do vilarejo, Ross virou o carro para a estrada que subia o penhasco
e ia dar na casa de sua família. Estava uma manhã bem melhor, um sol pálido,
gradualmente dispersando as nuvens, Tamar ficou imaginando por que Bridget Falcon
queria vê-la. Essa convocação tinha todas as características de um chamado real e ela
não podia negar um leve sentimento de apreensão, agora que estavam chegando.
O Cabeça do Falcão era construído de pedra cinza, suas linhas severas e
impressionantes. Parecia-se com o dono, pensou Tamar fantasiando. Ross parou o carro
no pátio. Os jardins e a área cultivada se estendiam até os penhascos, onde uma
escadaria estreita e em curvas descia até a praia, lá embaixo. Na maré alta, os
degraus de baixo ficavam cobertos pela água e o mar batia violentamente contra a
parede dos rochedos. Tamar sabia de tudo isso por experiência própria. Tinha passado
muito tempo com Ross, apesar da desaprovação da mãe dele.
Tamar saiu do carro sem esperar a ajuda de Ross, apertou o casaco contra o
corpo, pois o vento a essa altura era muito mais forte. Lucy saltou logo depois dela,
como se quisesse saber por que Tamar fora chamada.
Ross bateu a porta do carro e subiu os degraus que levavam à porta de madeira
com cravos de ferro. Olhou para Tamar parada perto do carro, estudando a fachada
da casa.

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— Ande — disse, e ergueu os ombros. Tamar caminhou em sua direção.
Lucy foi atrás, como se quisesse ter certeza de que ela não iria mudar de idéia.
Ross virou-se para abrir a porta. Entraram então num vestíbulo meio escuro, forrado
de lambris de madeira e cuja única iluminação vinha de um vitral no alto da porta.
Todas as outras portas que davam para este vestíbulo estavam fechadas, e mesmo a
pequena janela no meio da escadaria deixava passar pouca luz. Mas o aposento estava
pelo menos quente, e Tamar logo percebeu que deviam ter instalado um sistema de
aquecimento depois que ela fora embora. Uma passadeira vermelho-escura subia pelas
escadas e desaparecia no andar de cima.
Olhou à volta, encolhendo um pouco os ombros, e Ross disse provocando: — O
Cabeça do Falcão é um prédio antigo, sem refinamentos como painéis de vidro e grades
de ferro, devia saber disso, srta. Sheridan!
O próprio modo como pronunciou seu nome era de zombaria, e Tamar encarou-o
com impaciência.
— Por que é que você persiste em me tratar como uma débil mental? —
perguntou. — Se quer saber, gosto dele assim como é. Só acho que sua decoração
deixa muito a desejar!
— É verdade? — Outra voz cortou a conversa, e Tamar percebeu que uma das
portas tinha se aberto e uma cadeira de rodas encaminhava-se para eles.
Olhou para Bridget Falcon, primeiro apreensiva, embaraçada, e depois com uma
mistura de surpresa e compaixão. Bridget Falcon tinha sido uma mulher alta, forte e
corpo bem feito, mas agora era apenas uma sombra do que fora, meio encolhida na
cadeira de rodas. O cabelo, de que Tamar se lembrava bem, era negro, com alguns fios
grisalhos. Agora estava branco e seu rosto cansado e enrugado. Mãos cheias de veias
salientes seguravam as rodas da cadeira. Apenas sua voz fez Tamar lembrar-se da
temível mulher que a intimidara na juventude.
— Eu… eu sinto muito, sra. Falcon — disse então, olhando zangada para Ross. —
Minhas palavras não eram dirigidas à senhora. Nem eram tampouco gentis. Acho que os
modos de seu filho deixam bastante a desejar.
Tamar escutou Ross prender a respiração, mas não olhou para ele. Estava
atenta à mulher na cadeira de rodas. Lucy, quase esquecida até aquele momento,
passou por Tamar e foi encostar a cabeça no ombro da avó.
Bridget agradou a neta com ternura, depois olhou para Tamar com olhos
penetrantes, fazendo com que a moça percebesse que, se seu corpo estava gasto, seu
espírito certamente não estava.
— Meu filho nunca foi um homem fácil de se lidar, Tamar Sheridan — disse com
orgulho. — Quando à casa, sabemos o que falta nela, sem precisarmos de seu conselho.
— Já disse que sinto muito — repetiu.
— Sim, eu sei. — A sra. Falcon afastou a menina com delicadeza. — Venha,

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vamos para o escritório. Quero falar com você.
Ross adiantou-se com impaciência. — É claro que qualquer coisa que a senhora
queira dizer para a srta. Sheridan pode ser dita aqui e agora — disse asperamente. —
Depois eu a levo de volta ao presbitério antes de ir para Cork.
Sua mãe olhou-o firme. — Sua presença não é necessária aqui, Ross — disse com
arrogância. — Vá para Cork, trate dos seus negócios. Tamar Sheridan vai ficar aqui e
almoçar comigo. Vou mandar um recado ao padre Donahue. Você pode levá-la de volta
hoje à tarde.
Ross parecia furioso, e Tamar disse: — Oh, mas eu… — e parou incerta.
Bridget Falcon virou a cadeira. — Venha logo, Tamar Sheridan, antes que meu
filho descubra mais algum motivo para você não passar um pouco de tempo comigo.
Tamar suspirou de novo. Mesmo agora, a mãe de Ross mantinha uma atitude de
domínio e onipotência, difícil de resistir. Encolhendo os ombros, seguiu a cadeira de
rodas, consciente da raiva de Ross, e do olhar de impotência em seu rosto.
Lucy pareceu entender que não fora convidada, pois ficou com o pai. Quando
Tamar fechou a porta do escritório, a mando de Bridget, viu Ross olhando para a filha
com um olhar estranho.
O escritório era um dos aposentos que Tamar conhecia bem. Lá Ross e ela
tinham passado muitas horas juntos, discutindo o trabalho dele e sua própria aptidão
para o desenho. Era como uma biblioteca, com muitas prateleiras de livros e uma
escrivaninha plantada no meio, sobre o tapete verde-escuro. O tapete era novo, como
eram as cortinas de veludo das janelas, que davam para a ponta de pedra, com uma
vista magnífica para o céu e para o mar, onde rochas cinzentas, como sentinelas,
apareciam sobre a água na maré baixa.
— Sente-se — ordenou Bridget Falcon. Tamar obedeceu, mas justificou seu
gesto, dizendo que era isso mesmo que ela ia fazer. Tirou um cigarro, acendeu e tirou
uma baforada, enquanto a dona da casa tocava uma campainha. Quando uma criada
apareceu, ordenou café para as duas.
— Agora — disse a mãe de Ross com um suspiro de satisfação, —agora podemos
conversar!
Tamar olhou para a porta do escritório ao ouvir uma batida forte. Bridget
sorriu.
— Não se preocupe, Tamar Sheridan. Foi a porta da frente. Ross saiu.
Tamar apertou os lábios por um momento. — Na verdade, sra. Falcon, eu estava
imaginando o que poderia querer comigo.
Bridget Falcon olhou para ela pensativamente. — Estava mesmo? E não lhe
ocorreu que poderia ser sobre Ross?
— Sim, ocorreu. Entretanto, acho que não tenho nada a ver com os assuntos de

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seu filho.
A sra. Falcon ficou momentaneamente sem ação. — Não banque a superior
comigo, mocinha — protestou orgulhosamente. — Eu a conheço desde que usava
fraldas e não vou agüentar desaforos!
Tamar corou. — Não estava fazendo desaforos, pelo menos não
conscientemente. Entretanto, como já provei um bocado da reação explosiva de seu
filho, não quero repetir a experiência, só porque ele Pode imaginar que fiquei ouvindo
mexericos por parte de sua mãe!
A sra. Falcon encarou-a, e depois deu uma gargalhada. — Tam Sheridan, vejo
que me enganei em relação a você. Não é nem u pouco como eu me lembrava. Parecia
um ratinho insignificante, naquele tempo. Não conseguia nem dizer seu próprio nome.
Agora, aí está você, sem se intimidar com minha autoridade. Estou contente
A criada voltou trazendo o café. Bridget encarregou-se de servi depois de
colocar a bandeja sobre a escrivaninha. Tamar levantou-se para pegar sua xícara, mas
não aceitou os biscoitos. Nessa hora, não sentia fome. Que a sra. Falcon a
considerasse mais corajosa ou não tinha importância, ela queria saber o motivo que a
velha senhora tinha para trazê-la até ali. Ross obviamente não aprovava, e talvez
achasse que a mãe estava sendo indiscreta. Mas sobre o quê? Em Tamar, já sabia
sobre Lucy, e o que mais haveria? A não ser que fosse algo sobre Virgínia, a esposa de
Ross. Até então não tinha aparecido e isso soava muito estranho.
Bridget Falcon tomou seu café vagarosamente e, ao terminá-lo disse: — Então
está curiosa para saber por que a trouxe até aqui não é?
Tamar debruçou-se para colocar a xícara na bandeja. — Sra. Falcon, estamos
aqui há vinte minutos e não resolvemos nada. Se estou ansiosa é apenas por saber que
nunca fui bem aceita aqui no Cabeça do Falcão.
A sra. Falcon concordou amavelmente. — É verdade. Eu nunca a apreciei, Tamar
Sheridan. Seu pai era um vagabundo e um gastador e só se casou com sua mãe porque
foi obrigado!
Tamar levantou-se furiosa. — Como se atreve!
— Sente-se, menina, sente-se! Você sabe que é verdade! Assim que sua mãe foi
enterrada ele sumiu e não foi mais visto no vilarejo até que fosse chamado! — afirmou
a velha implacavelmente.
Tamar virou-se. — Se esse é o assunto da nossa conversa, então prefiro ir
embora agora — advertiu friamente. — A senhora n tem nada a ver com a vida de meus
pais, quaisquer que tenham si seus defeitos, e não sou obrigada a ficar aqui para ser
tratada como uma ignorante qualquer!
Bridget Falcon suspirou. — Ora, está bem. Talvez eu tenha si um pouco rude,
mas seu pai causou complicações para mim, de um jeito ou de outro. Você sabia que ele
levou dinheiro meu para investir naquela galeria, prometendo-me que ia fazer uma

39
fortuna? E por acaso quer meu dinheiro de volta? De jeito nenhum!
Tamar virou-se novamente. — Sinto muito sobre isso. Eu não sabia que meu pai
devia algo para a senhora.
— E como podia saber? Você nem tinha nascido. Foi só depois que você
apareceu, e então… mas tudo isso já passou e, se eu ofendi seu orgulho de família,
desculpe-me. Agora, não quer sentar-se e acabar com essas bobagens?
Tamar queria recusar, queria dizer a essa velha aristocrática exatamente o que
pensava dela, mas, ao lembrar-se de Ross e daquela criança encantadora, não
conseguiu. Por que Bridget Falcon queria tanto falar com ela?
Sentou-se, porém, e lembrou-lhe: — Não é bobagem respeitar-se a memória do
pai!
Bridget Falcon não fez comentários e disse: — Bem, vou direto ao ponto: minha
neta Lucy.
Tamar relaxou-se um pouco. Ela também queria falar sobre Lucy.
— Sim?
— O que você sente em relação a ela?
Isso era totalmente inesperado. — Em relação a quê? — perguntou,
estranhando.
— Ela é a filha de Ross — disse a sra. Falcon secamente. — Eu tinha a impressão
de que você já se sentia atraída por meu filho.
Tamar baixou a cabeça. — E daí?
— Então… você se preocupa com o problema de Lucy, ou ele não lhe afeta?
Tamar levantou a cabeça. — Ninguém pode deixar de se preocupar com uma
criança com um problema tão terrível! — exclamou.
— Oh, sim, mas tem gente assim! Principalmente se a criança fosse o resultado
do enorme egoísmo de uma mulher!
Agora Tamar estava completamente atônita. — Egoísmo enorme de uma mulher?
— gaguejou. — De quem?
— De Virgínia — replicou a sra. Falcon sem rodeios. — Deus me perdoe! — E
levantou os olhos para o céu.
Tamar sacudiu a cabeça. — Sra. Falcon, não estou entendendo nada. O que tem a
ver o problema de Lucy com Virgínia? E, de qualquer modo, onde está ela?
Bridget Falcon encarou-a. — Não sabe que Virgínia morreu?
—Morreu? — Tamar ficou meio tonta. — Como?
— Obviamente meu filho não lhe contou nada — disse a velha — Claro! Nem
podia. É orgulhoso demais. Demais mesmo, eu sempre afirmei. Se não fosse tão

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orgulhoso, teria ido a Dublin e forçado Virgínia a voltar, antes que a situação dela a
obrigasse! — Sacudi a cabeça tristemente. — Se! — repetiu. — Uma palavra tão curta
de tão grande responsabilidade.
Tamar acendeu um cigarro com os dedos trêmulos. Virginia morta; Ainda não
conseguia acreditar.
— Foi uma seqüência de fatos — continuou Bridget. — Quando você foi embora,
meu filho casou-se com Virginia.
— Sim, eu sei — disse Tamar com amargura, sem querer prolongar o assunto.
— Bem, depois, foi horrível! Ross e Virginia brigavam como cão e gato. Era uma
luta contínua! — Suspirou. — Deus, como eu desejei que ele nunca tivesse posto os
olhos em Virginia! — Depois se controlou e continuou: — Por fim, Virginia foi embora
para Dublin e, durante algum tempo, a paz reinou no Cabeça do Falcão. — Passou os
dedos pelo braço da cadeira. — É fácil dizer agora que Ross devia ter feito com que
ela voltasse, mas acho que ele estava tão contente quanto eu, e Steve também, por nos
vermos livres dela. Quando voltou, foi só para trazer mais problemas.
Tamar sentia como se uma faca a estivesse cortando por dentro. As palavras da
sra. Falcon eram muito perturbadoras, muito cheias de emoção. A tal ponto que ela
estava conseguindo rever Ross como era naquele tempo: mais moço, atraente, calmo,
amando a ela e não a Virginia! Levantou-se de repente. Não podia ficar quieta com tais
pensamentos!
A sra. Falcon olhou para ela com perspicácia e disse: — O que há? Você não
sabia nada disso?
Tamar respondeu desconfiada: — É claro que não! Como é que eu podia? Estava
na Inglaterra!
— Bem… de qualquer modo — a sra. Falcon suspirou mais uma vez, — pode ter
certeza que sua partida trouxe uma série de acidentes. — O que aconteceu depois? —
Tamar estava impaciente.
— Calma, calma, estou contando, não é? Quando Virginia voltou, estava grávida.
Oh, não se preocupe, o bebê era de Ross, sim: as datas, o tamanho, tudo estava de
acordo; além disso, ela não se atreveria a voltar se não tivesse certeza. E então Lucy
nasceu! — Interrompeu-se de repente e levou a mão à boca. — Era tão parecida com
Ross e Steve, naquela idade! — Sacudiu a cabeça. — Bem, mas não sei que tipo de vida
Virginia andava levando, só posso imaginar, mas estava sem forças quando o parto
começou, e sobreviveu apenas mais alguns dias. Foi internada em um hospital perto de
Limerick e teve o melhor tratamento possível. Ross providenciou tudo, mas não
adiantou. Ela morreu. E depois descobrimos que Lucy era… — Torcia as mãos,
desesperada. — Virginia não queria a criança. Só Deus sabe o que andou fazendo para
se livrar dela!
— Sra. Falcon!

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Bridget Falcon virou-se e olhou para a moça com os olhos tristes. — O que há de
tão chocante? Que mais poderia… — parou novamente.
Tamar levantou-se e foi até a janela, deixando a velha mergulhada em sua
tristeza.
— E seu ataque de coração? — perguntou baixinho. — Estava ligado a esses
acontecimentos?
A sra. Falcon aquiesceu e assoou o nariz. Tamar sentiu-se absolutamente
desanimada. Não era sem motivo que Ross parecia tão duro e amargo. Tantas coisas
tinham colaborado para que perdesse a esposa e quase a filha. Mesmo assim, como é
que podia ter acontecido isso? Virginia tinha dito…
Tornou a sentar-se. — Mas, voltando ao presente, em que medida isso está
ligado a mim? Que motivos tem para me confiar esse segredo?
— Motivos! É uma palavra muito dura, Tamar Sheridan!
— E por acaso houve entre nós uma troca de palavras gentis?
— Não, creio que não. Está bem, vou lhe dizer por que pedi que viesse. Lucy tem
seis anos, logo vai fazer sete e deveria entrar para a escola — uma escola especial —
para aprender a falar e a ler!
— Eu sei. Até mencionei isso a Ross quando vínhamos para cá.
— Você fez isso? — A sra. Falcon pareceu interessada. — E que disse ele?
— Disse para eu me ocupar de minha própria vida — respondeu Tamar, falando a
verdade.
O rosto severo da sra. Falcon abriu-se num sorriso. — Como lhe disse, meu filho
é um homem muito orgulhoso. Entretanto, algum modo ele tem que ser persuadido a
deixar Lucy ir para escola e não há mais ninguém a quem eu possa apelar!

CAPÍTULO V

— A senhora quer que eu convença Ross a deixar Lucy ir à escola? — perguntou


Tamar à sra. Falcon.
— Sim.
— Deve estar louca! — Tamar não estava disposta a ser delicada.
— Seu filho me odeia! Eu seria a última pessoa que ele iria escutar!
— Bobagem! — disse a sra. Falcon. — Você é a única pessoa que ele talvez
escute.

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Tamar estava surpreendida. — Como pode afirmar isso?
— Não tenho a menor dúvida de que você é a única pessoa que pode tirar Ross
dessa apatia em que vive, há muitos anos. Posso ver agora, embora devesse ter me
dado conta disso muito antes.
Tamar levantou a mão, sacudindo a cabeça e. sentindo seus joelhos tremerem. —
Oh, não — protestou. — Sua atitude não teve nada a ver com o fato de eu ter deixado
Porto do Falcão. Fui porque quis!
— Não faz diferença. Você é jovem e atraente, embora mais magra que Virgínia,
e estou certa de que tem tudo para enfrentá-lo. Eu não Posso mais, estou muito velha.
Toda a batalha que ganho de Ross, é porque ele me concede a vitória. Por favor, Tamar
Sheridan, pense na criança, se não pode fazê-lo por mim.
Tamar sentia-se doente. É claro que a sra. Falcon tinha que mencionar Lucy para
conseguir o que queria. Era fácil recusar a fazer qualquer coisa por Ross, por Bridget,
enfim por qualquer outro membro da família, menos por Lucy, cuja vida passava sem
que ela percebesse.
— A senhora está fazendo uma chantagem terrível — disse Tamar, mordendo o
lábio para que parasse de tremer.
Bridget parecia cansada. — Tamar Sheridan, eu usaria de qualquer meio para
ajudar minha neta, a única que provavelmente vou ter. — Suas últimas palavras soaram
com amargura.
— Mas Steve…
— A esposa dele não pode ter filhos. — Oh!
— Será que não percebe? Lucy é a última dos Falcon. Você acha? que posso
ocultar isso da menina?
Tamar virou-se. — Não sei. Honestamente não sei. Se Ross não quer que ela seja
normal, ninguém pode fazer nada.
— Você sempre foi assim tão derrotista? — perguntou a sra. Falcon com raiva.
— Se é verdade, então merece menos do que conseguiu na vida!
Tamar reagiu. — A senhora é muito rude! Além do mais, acho que não pode falar
em derrotismo. A senhora mesma não está desistindo de lutar por sua neta?
— Não, estou somando esforços! — respondeu a velha, rápido. — Ora, vamos,
assim não resolvemos nada. O que você diz?
Tamar sacudiu a cabeça. — Não sei. Ainda não acredito que Ross vá me escutar.
— No começo, não vai mesmo. Mas se você insistir…
— Como a senhora está fazendo?
— É. Use de qualquer meio. Não me incomodo, se Lucy conseguir o que merece.
Quanto tempo vai ficar aqui?

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— Não tenho certeza. Estava pensando em ir embora na próxima semana.
— Mas o padre Donahue estava tratando do aluguel do chalé do Flynn!
— Eu sei, mas isso foi antes — disse Tamar.
— E agora?
— Não sei. Não sei. — Tamar apertou os lábios. — Está bem — admitiu —, vou
falar com ele, não tenho a mesma confiança da senhora.
Bridget Falcon parecia feliz e aliviada. — Ótimo, ótimo. — Esfregava as mãos. —
Agora vou mandar um recado ao padre Donahue avisando que você vai almoçar comigo.
Durante a tarde, enquanto Bridget descansava, Tamar ficou no escritório
folheando alguns livros, alguns dos quais ainda não tinham sido abertos. Imaginou se
Ross estava escrevendo algum livro no momento, mas não encontrou nenhum sinal do
trabalho. Ficou meio desapontada. De qualquer forma se sentia bem à vontade.
Começou a sentir devagar uma gostosa sonolência e, sem perceber, acabou
adormecendo. Acordou assustada com um ruído diferente. Viu então Lucy em pé na
porta e seu pai logo atrás.
Tamar irritou-se por ter sido pega de surpresa, por isso sua voz soou seca
quando respondeu a Ross, que perguntava por sua mãe.
— Descansando — retrucou, enfiando os pés nos sapatos e tentando arrumar a
saia, que tinha se levantado. Depois, com a voz mais calma, perguntou: — Ela não
descansa sempre à tarde?
Ross levantou as sobrancelhas escuras, desabotoou a jaqueta, espreguiçou-se e
respondeu:
— Acho que sim, mas como estava com você, pensei que fugisse a essa rotina.
Tamar não respondeu. Como tinha acabado de acordar, sentia-se sem o escudo
mental que adotara em relação a Ross. Naquele momento, porém, deu-se conta de que
ele a atraía demais. Ross como se percebesse, olhou bem dentro de seus olhos. "Oh!
Deus!", pensou Tamar, apertando a mão contra o estômago. Não se podia permitir
outra vez!
Desviou-se de seu olhar, voltando sua atenção para Lucy. Sorriu Para a menina,
tentando desesperadamente reganhar o controle de seus nervos.
— Ela saiu com você? — perguntou, sem olhar para ele.
Ross atirou-se na poltrona atrás da escrivaninha e pegou um cigarro. — Sim —
respondeu, acendendo o cigarro e dando uma tragada. — Você e minha mãe
conversaram bastante? Dissecarar a minha vida? — Seu tom agora era duro.
Tamar estava mostrando a Lucy seu relógio, pendurado por uma corrente ao
pescoço. A garota parecia confiar em Tamar e aproximara-se para tocar o relógio de
ouro. Mas diante das palavras de Ross Tamar levantou a cabeça indignada.

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— Como você é pretensioso! — exclamou furiosa. — Não consegue admitir que
possamos ter conversado sobre outro assunto sem! ser você, não é?
Ross sacudiu os ombros com impaciência. — Está querendo me: dizer então que
não falaram sobre mim e meus problemas? — perguntou secamente.
Tamar percebeu que ficava vermelha. — Não, é claro que não. E lembre-se de
que seu ego não é a coisa mais importante do mundo. Lucy, sim, é importante: sua vida,
suas vontades e oportunidades!
Ross deu um murro na mesa. — Oh, sim, é claro… Lucy! Você acha que eu me
esqueço de minha filha Lucy… minha pobre filha. surda e muda?
— Ross! — Tamar olhou apreensiva para Lucy. Ross levantou-se.
— Não se preocupe, ela não ouve nada! E como é feliz! Como € é imensamente
feliz!
— Como pode dizer isso?
— E por que não? Lucy tem sorte. Que preocupações ela terá? Que problemas
afligirão seu cérebro? Que desordens emocionais ela sofrerá? Eu lhe direi, Tamar,
nenhuma! Nenhuma mesmo! E acho isso formidável!
— Não pode estar falando sério! — exclamou incrédula.
— Por que não?
— Cada soco que a vida nos dá, faz-se acompanhar de um tapinha de estímulo
nas costas, ou não sabia disso?
Ross olhou para ela com desprezo. — Oh, é verdade? E de onde você imagina que
possam vir meus tapinhas de estímulo? Até agora; só recebi uma série de socos e, se
permitir que minha mãe mande: Lucy para a escola, estarei me expondo a mais uma
série de desilusões!
Tamar acariciou os cabelos da menina. Eram macios e espessos, como os de
Ross, mas o dele era liso e o dela, crespo. Tamar alisou os caracóis atrás das pequenas
orelhas da criança e percebeu que a menina olhava para ela com interesse. Oh, ela era
mesmo adorável! O coração de Tamar enterneceu-se por ela. Sentiu vontade de
abraçá-la apertado. Tamar já a estava amando. Amando! Sentiu um aperto no coração.
Não, aquela era a palavra errada; gostava da criança, preocupava-se com ela, queria
ajudar, tinha pena, mas não a amava! Percebeu então que Ross olhava para ela e disse:
— Você não tem o direito de negar a Lucy o tipo de educação que deve ter, a vida
normal que pode levar. Não quer que ela faça tudo o que uma criança normal pode
fazer? Não quer que ela se desenvolva e se torne uma bela moça, que um dia se case e
tenha filhos?
— Não! — Ross foi veemente.
— Oh, você é impossível! — Tamar sentia-se impotente. — Será que não percebe
que a está privando de tudo!

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— Essa é sua opinião — retrucou friamente, e dirigiu-se para a porta. — Vou
procurar Hedges para fazer um chá antes que você vá embora.
— Não é necessário! — gritou Tamar com raiva, mas ele já tinha saído.
Lucy continuava perto dela. Parecia ter se encantado com Tamar pois, além de
examinar o relógio, ficou tocando seus cabelos, seu vestido e olhando o livro que ela
estivera lendo. Tamar sentiu-se frustrada. Não tinha a menor idéia de como uma
criança como Lucy teria que ser educada ou então tentaria ela mesma alguma coisa. Em
tais circunstâncias, podia apenas indicar os objetos e pelo movimento dos lábios tentar
fazê-la repetir os gestos correspondentes as palavras para aprendê-las.
Mas Lucy gostava de brincar fora de casa, quase sempre junto do pai, por isso,
depois de algum tempo, se cansou e saiu para fazer outra coisa. Antes que Ross
voltasse, a sra. Falcon aproximou-se de Tamar com sua cadeira de rodas e disse, com
um ar de conspiração:
— Vi que Ross voltou. Teve oportunidade de falar com ele? Tamar suspirou. —
Sim, mas não adianta. Não deu a menor atenção a minhas palavras.
—De qualquer modo ainda é muita cedo. Tenho certeza de que vai ceder, com o
tempo.
— Gostaria de ter essa certeza. — Retrucou Tamar seca, enquanto a criada
trazia o carrinho com o chá. — Independente do que venha a acontecer, não posso
ficar aqui indefinidamente, senhora Falcon.
A velha fingiu não ter ouvido e Tamar sentiu-se deslocada, como antigamente.
Como podia se defender ante tamanha intolerância?
Ross só apareceu quando terminaram o chá. Parou na soleira da porta e disse: —
Se a senhorita Sheridan está pronta, poderei levá-la de volta à vila.
Tamar levantou-se, mas a sra. Falcon impediu-a.
— Fique para o jantar, menina. — Tamar, porém, sacudiu firmemente a cabeça.
— Hoje não, senhora Falcon — respondeu. — Já passei bastante tempo aqui.
Muito obrigada pelo almoço.
— Eu é que agradeço, querida. Não vai se esquecer do que eu disse?
— Como se eu pudesse… — comentou Tamar, enquanto Ross segurava o casaco
para ajudá-la a vestir. Tirou-o, entretanto, de suas mãos, procurando evitar que a
tocassem, pois não queria que aflorassem mais uma vez aquelas emoções há muito
enterradas.
A promissora manhã de sol pouco durara. Garoava forte e o nevoeiro reduzia a
visibilidade a quase nada.
O carro, porém, estava aquecido, mas não havia Lucy no banco de trás para
evitar a intimidade que Tamar tanto temia. Não que houvesse algum perigo de Ross
tentar alguma coisa, mas por que tinha medo de que seus sentimentos a traíssem mais

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uma vez.
Ross guiava devagar. Tamar sentiu de repente suas mãos úmidas. Pensava
demais nele e o fato de estar viúvo, portanto livre, não devia significar tanto para ela.
Ele tinha destruído todas suas esperanças anos atrás e só uma tola podia voltar a
alimentá-las.
Acho que qualquer palavra seria melhor que o silêncio pesado que se instalou
entre eles, disse: — Você ainda está escrevendo?
— De vez em quando.
— Comprei dois de seus livros, em Londres. Gostei muito!
— Gostou? — perguntou, caçoando. — E por que estaria interessada no que
escrevo?
— Gosto de História! — respondeu na defensiva.
— História da Irlanda?
— Não importa de que país — retrucou Tamar, olhando para a frente.
— Bem, sinto dizer que não vi nenhuma exposição sua.
— Só fiz uma.
— Isso me surpreende. — Imagino que uma moça como você pudesse alcançar o
sucesso com muito mais facilidade.
Tamar ficou furiosa. — O que você quer dizer?
— Existe uma predominância de homens no meio artístico, não é? Tamar nunca
sentiu tanta raiva e tanta impotência! Queria pular
fora do carro e fugir para mais longe possível daquela língua sarcástica. Mas na
prática era impossível! Deliberadamente então desligou a chave do motor, esperando
que o carro diminuísse a marcha para poder saltar e desaparecer de sua vista.
Mas não tinha contado com a reação imediata de Ross, que pisou forte no freio,
fazendo com que ela fosse jogada para a frente e quase batesse a cabeça. Virou-se,
procurando o trinco da porta, mas Ross passou o braço pela sua frente e impediu-a.
Ao fazer isso, provocou o que Tamar mais queria evitar, isto é, ficar mais
próxima dele. Seus rostos quase se tocavam Ross encarou-a fria e zombeteiramente,
embora em seus olhos houvesse um brilho que hipnotizou Tamar. Suas pestanas
escuras velavam seu magnetismo. Com uma das mãos ele segurou seu pescoço e
encarou-a mais de perto. Uma veia pulsava em suas têmporas e Ross parecia estar
motivado mais pelo desejo de machucá-la do que qualquer outra coisa. Apertou-a com
mais força e disse com voz rouca:
— Eu já quis matar você, Tamar!
Tamar moveu o pescoço, tentando se libertar, lutando contra a força de Ross. O
peso de seu corpo contra o dela estava produzindo efeitos assustadores em seus

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nervos e, de repente, deu-se conta de que não queria mais escapar. Queria tocá-lo,
acariciá-lo, fazer amor com ele!
Soltando o trinco da porta, Ross segurou um punhado do cabelo de Tamar e
forçou sua cabeça para trás. Havia, porém, um certo carinho neste toque. O olhar de
Ross caminhou de seu rosto para sua garganta e desceu até onde o decote revelava a
curva de seus seios.
Tamar percebeu então seu olhar voltar-se para seus lábios, que
involuntariamente se abriram.
Com um gemido, puxou-a contra seu corpo e beijou-a com rude; sofreguidão.
Seus beijos tinham antigamente a emoção quase animal de agora. Ross não parecia
esconder seu desejo de possuí-la e Tamar não resistiu! — Envolveu-o com seus braços
e entregou-se sem pensar em mais nada. Acariciou-lhe os cabelos e o pescoço,
enloquecendo-o de desejo.
— Deus! — exclamou ele, soltando-se dela e passado os dedos pelo cabelo. — Foi
para isso que voltou?
Suas palavras grosseiras foram como uma ducha fria, fazendo Tamar cair em si.
Ela devia estar louca! Louca em se deixar envolver com Ross! Deixara que ele a
tratasse como uma garota qualquer! E não fora para isso que voltara!
Queria magoá-lo, mas não sabia como e, ao esboçar um gesto para esbofeteá-lo,
Ross lembrou-lhe:
— Já não é um pouco tarde para isso?
Tamar estava irritadíssima. — Ross, você é desprezível! Por favor, leve-me para
casa!
Ross sacudiu os ombros e deu a partida no carro. Tamar sentia-se culpada. Fora
ela quem desligara a chave e praticamente se atirara a ele. Era degradante, era
humilhante, não dava para agüentar!
Ao chegarem perto do vilarejo, Ross disse:
— Não pense nem por um momento que aquela pequena cena significou alguma
coisa para mim! Você é uma bela mulher, Tamar, e chega mesmo a me atrair
sexualmente. — As palavras eram duras e brutais.
Tamar engasgou. — Você está deliberadamente tentando me humilhar. Por quê?
Ele parou o carro perto do portão do presbitério. — Eu não ficaria sentado
muito tempo aqui no carro, Tamar. As pessoas vão comentar — advertiu.
— O quê?
— Sobre nossas relações. Além de tudo, esperam que eu me case j de novo e
antigamente você estava na lista, lembra-se?
—Estava? — Agora era Tamar que o encarava com desprezo. — Não me lembro!

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A expressão de Ross se endureceu. — Oh, você se lembra muito bem —
protestou com violência — e vou fazê-la pagar pelo privilégio, antes que vá embora!
— E como pretende fazer isso? — perguntou, meio trêmula.
— Isso é uma coisa, que você vai descobrir com o tempo — respondeu com
desprezo.
Tamar encarou-o por mais um instante, depois abriu a porta e saiu do carro,
esperando que as pernas a sustentassem. Por que Ross estava tão amargo? Por que a
odiava tanto?
Hesitou ao lado do carro como se quisesse falar mais alguma coisa, mas Ross
puxou a porta e bateu-a com força.
A raiva de Tamar voltou com violência, mas ao se virar viu uma figura familiar
aproximando-se, vinda do presbitério.
— Ben! — exclamou sem acreditar. — O que está fazendo aqui?
Ben alcançou-a e, sem ligar para os olhares das pessoas que passavam, tomou-a
nos braços. — Não imagina por que, anjo? — perguntou. — Como é bom vê-la
novamente!
Tamar não podia entender. Ben em Porto do Falcão! E ele tinha prometido não
aparecer se ela não o chamasse!
— Ben, você prometeu — foi tudo o que pôde dizer, tentando escapar dos
braços dele sem sucesso. Mais do que tudo estava consciente do carro de Ross ainda
parado perto da calçada e de seus olhos observando tudo.
— Prometi? Prometi o quê? Que a deixaria solta durante seis semanas? Ora,
isso foi tolice e, depois de ler sua carta, decidi que não podia esperar mais e vim! Não
está contente em me ver?
Tamar sentia-se desesperada. — Eu… bem, sim, é claro que estou feliz em ver
você, Ben — disse, meio aflita e ao conseguir escapar do alvoroço de Ben, ouviu o ronco
do carro de Ross ao fazer a curva em direção à rua principal.

CAPÍTULO VI

Ben olhou o carro até que desaparecesse de vista, depois se virou e olhou com
curiosidade para o rosto tenso de Tamar.
— Quem é? — perguntou.
Tamar apertou os lábios, fez um gesto casual com os ombros e disse: — Ross
Falcon.

49
Ben franziu a testa. — Parece que conheço esse nome!
— Se você lê livros de História, é possível — disse Tamar, ainda tensa, tentando
desesperadamente controlar a situação.
Ben franziu ainda mais a testa. — É claro. Já sei onde vi o nome. Você tem
alguns livros dele.
— É, tenho sim. — Tamar abriu o portão do presbitério e caminhou em direção à
casa.
Ben deu o braço a ela. — Ei, espere! Tamar, o que está havendo? Está
aborrecida?
— Oh, não, Ben, não é nada disso. É… é que eu tive um dia cansativo, só isso.
Quando você chegou?
— Esta tarde. Não estou sozinho, Margaret também veio.
— Sua irmã? — Tamar estava espantada. Que Ben tivesse chegado sem avisar,
era uma coisa, mas que trouxesse a irmã junto era assombroso! Não era comum vê-los
juntos. Ela era parecida demais com a mãe, e a surpresa de Tamar estampou-se em seu
rosto, pois Ben disse:
— Eu sei, eu sei, você está espantada. Bem, eu também estou. Mas, na verdade,
Margaret é que é a responsável por estarmos aqui. Foi idéia dela que viéssemos fazer-
lhe uma surpresa.
Tamar queria saber por quê, mas achou que o momento não era oportuno. Tinha
uma suspeita muito grande de que a mãe de Ben estivesse atrás de tudo isso, pois não
gostava de Tamar. Talvez tivesse desconfiado do motivo da viagem tão repentina para
a Irlanda e a separação de Ben. Talvez suspeitasse que Tamar tivesse um admirador
secreto e que, mandando Ben com um pretexto inocente, ele tivesse oportunidade de
descobrir facetas obscuras do caráter de Tamar.
Tamar sentiu-se mesquinha e egoísta. Estava deixando que a amargura de Ross
Falcon contaminasse seus próprios pensamentos. Ao diabo com Ross Falcon! Só porque
ele a tinha beijado com raiva um pouco antes ela estava se deixando envolver,
baixando o escudo protetor que imaginava tivesse conseguido erguer a ponto de ser
impaciente com Ben e com qualquer um que ameaçasse intervir. Tinha sido uma tola em
vir, e tinha que aceitar isso, e mais tola ainda em ter continuado ali depois de saber
dos sentimentos de Ross. Mas agora havia Lucy, e Tamar não podia abandoná-la. Ou
será que Lucy era apenas uma desculpa. Tamar estava desesperada. O que lhe estava
acontecendo?
Por causa disso havia muito mais calor em sua voz quando olhou para Ben e
disse: — Você certamente me surpreendeu, amor.
— Mas não agradavelmente — acrescentou Ben.
— Não seja bobo. Você só me pegou de surpresa, foi apenas isso — explicou

50
Tamar, sacudindo a cabeça. — Mesmo assim, você disse que esperaria até que eu o
chamasse.
— Eu sei, Tamar, mas sou humano. E quando Margaret sugeriu que pegássemos o
carro e viéssemos vê-la, não posso negar que achei ótimo.
— Mas por que Margaret? Quero dizer, nunca achei que vocês fossem muito
amigos.
Tinham chegado à porta do presbitério e Ben suspirou. — Eu sei, eu sei. Mas
mamãe…
— Sua mãe? — indagou Tamar, seca. — O que sua mãe tem a ver com isso?
— Bem, na verdade, nada. Ela apenas disse que achava uma boa! idéia virmos ver
você e que faria bem a Margaret. Ela andou meio desanimada ultimamente. Seu
namorado arranjou um emprego oficial em Cingapura e ela se sente meio perdida.
— Sei, sei. Não vou aborrecer mais você, só quero saber quanto tempo vai ficar
aqui.
Ben olhou espantado para ela. — Quanto tempo "nós" vamos ficar! —corrigiu. —
Pensei que você iria se decidir.
— O que você quer dizer com isso?
— Bem, pensei que voltaríamos todos juntos — replicou Ben, tentando ficar
zangado.
— Não, Ben. Não posso voltar por enquanto. Fiz uma promessa para a sra. Falcon
e acho que não vai ser fácil cumpri-la.
— A sra. Falcon! — Ben enfiou as mãos nos bolsos da calça.
— E quem é essa sra. Falcon? Tamar, não me faça de bobo!
— Não é isso. Oh, Ben. É uma longa história. Deixe isso de lado, por enquanto.
Se vocês estão planejando ficar no vilarejo é preciso que saiba que não há mais
nenhum hotel aqui.
— O padre Donahue me disse. Vamos ficar em Killarney. Há um hotel lá, bem à
margem do lago. Disseram-me que há bastante peixe e um ótimo campo de golfe, por
isso não ficarei o tempo todo sem fazer nada.
— E onde está Margaret?
— Ficou no hotel. Eu queria me encontrar com você sozinho. Tamar apertou os
lábios. — Desculpe meu mau humor, mas não tem sido fácil ficar insensível a todas as
mudanças que aconteceram.
— Suspirou e Ben passou um braço pelos seus ombros.
— Bem, de qualquer modo, o padre me convidou para jantar, por isso acho bom
entrarmos.

51
Tamar concordou e eles entraram no presbitério.
O padre Donahue parecia gostar de Ben, se bem que de um modo meio contido,
como se tivesse pouco tempo para gastar com gente da cidade. De qualquer modo, a
refeição transcorreu agradavelmente e Tamar ficou satisfeita por o padre não ter
tentado perguntar sobre seu dia no castelo.
Depois do jantar, Tamar e Ben foram dar uma volta, ambos evitando falar sobre
a volta a Londres. Ben falou sobre Joseph Bernstein e a televisão e Tamar contou que
tinha feito alguns esboços úteis, que mais tarde iria transferir para tela.
Como a maré estava baixa, tiraram os sapatos e andaram pela areia. Estava
fresco e agradável e Tamar sentiu uma estranha sensação de bem-estar. Ben estava
analisando suas reações com muita atenção e de repente disse:
— Você não está querendo ir embora, não é?
Tamar gostou que a escuridão ocultasse seu rubor. — Ben! É claro que quero!
Vou tentar explicar.
Pararam e Tamar encostou-se em um tronco de árvore que crescia esplêndida e
solitária na beira do pântano. Ben ofereceu-lhe um cigarro, que ela aceitou, deixando
que o acendesse. Depois soprou a fumaça para o ar e disse:
— Quando eu morava aqui, há sete anos, imaginei que estivesse apaixonada por
Ross Falcon. Ele era mais velho, muito arrogante, mesmo naquele tempo, e eu não era
ninguém. De qualquer modo, ele não me quis e eu fui embora. Acho porém que deixei
sua imagem permanecer em meus pensamentos. Queria voltar a vê-lo e ao "Cabeça do
Falcão" também.
— O quadro! — exclamou Ben. — É claro!
— Sim, o quadro. De qualquer modo, eu queria voltar, mas… as coisas mudaram.
A mulher de Ross — ele se casou logo depois que eu parti — morreu e a filha é surda-
muda.
Ben sacudiu a cabeça. — Que trágico!
Tamar concordou, mordendo o lábio. Era assim que devia ter recebido as
notícias. Que trágico! Só isso. Nada mais. Nenhuma perturbação emocional, só um
sentimento casual de compaixão por uma criança defeituosa. Mas em vez disso se
sentia envolvida — como se os problemas de Lucy fossem seus, ou causados por ela,
Tamar, como Ross tão rudemente a acusara. E Bridget Falcon tinha levantado todo o
peso do problema e colocado inteiro sobre seus ombros.
Mesmo assim uma vozinha dizia: "Você tem que ir embora agora, ir embora com
Ben, esquecer de Lucy, de Bridget, de Porto do Falcão e, mais que tudo, de Ross
Falcon". Ninguém a estava impedindo de fazer isso! Por que então queria ficar?
Ben falou: — Eu ainda não vejo o que tudo isso tem a ver cota você — disse. —
Quero dizer, você ainda imagina que está apaixonada por esse homem? Ou ele por

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você?
— Ross? — perguntou com desprezo. — Ross me odeia! E não creio que ainda o
ame. Não é Ross que me prende aqui. É Lucy.
— A criança?
— Sim. — Tamar atirou o cigarro longe, a ponta brilhante descrevendo um arco
de fogo por um instante. — Bridget, a mãe de Ross, pediu-me para persuadi-lo a deixar
a criança freqüentar uma escola especial. Mas ele não quer nem ouvir falar nisso.
— Mas por que você?
Tamar sacudiu os ombros. — Não sei. Talvez porque Lucy gosta! de mim —
explicou meio sem jeito.
— É absurdo! — gritou ele impaciente. — Será que eles não sabem quem é você?
E onde fica seu mérito artístico nisso tudo?
Tamar sorriu de leve. — Oh, Ben — disse, sacudindo a cabeça —I as coisas não
são assim, aqui. Claro que eles sabem que eu pinto…
— Pinta! Pinta! — Ben cerrou os punhos. — Você não pinta! Você cria! É uma
artista, não uma droga de decoradora!
Tamar deu uma gargalhada, sentindo que um pouco da tensão que sentia estava
deixando seu corpo. Pelo menos com Ben ela podia se relaxar completamente.
— Oh, Ben — disse apertando o braço dele — você faz tanto bem ao meu ego.
Ben resmungou. — De qualquer modo, acho absolutamente ridículo você ter que
ficar aqui para convencer um tolo habitante da vila a mandar sua filha para a escola, só
porque você o conheceu há alguns anos e a criança gosta de você!
Tamar baixou a cabeça. — Ele não é nenhum tolo — respondeu baixo. — Tem
suas razões para se sentir assim. Talvez você o conheça enquanto estiver aqui e
descubra essas razões por si mesmo.
— Estou certo de que você não vai me contar quais são essas razões.
— Não. Não são importantes para nós. Tudo o que interessa é saber por que eu
quero ficar.
— Você quer ficar?
— Quero ajudar Lucy — corrigiu Tamar, sem duvidar da verdade de suas
palavras.
Ficou combinado que Tamar passaria o dia seguinte com Margaret e Ben, em
Killarney. O padre sugeriu que Ben voltasse para o jantar, como tinha feito antes, mas
desta vez trazendo a irmã. Tamar estava relutante em aceitar o convite do bondoso
padre, pois sabia que sua renda era muito pequena, mas Ben aceitou, com a condição de
que pudesse trazer alguma coisa para ajudar no jantar, como um peru e frutas e
creme para a sobremesa.

53
Margaret Hastings era pequena e delicada, com longos cabelos castanhos. Usava
roupas terrivelmente modernas, pijamas de seda e saias muito curtas, e geralmente se
comportava como uma gatinha em relação ao irmão mais velho. Ben a tolerava, mas, que
Tamar soubesse, nunca a tinha levado a passear.
Quando Tamar a encontrou no dia seguinte, no saguão do hotel, estava usando
um conjunto de saia e colete de couro escarlate, com uma blusa branca muito feminina
e cheia de babados. Imediatamente Tamar sentiu-se deslocada no terninho de lã
creme que estava usando. Mas Ben percebia bem que, apesar de Margaret ser tão
graciosa, Tamar com seu corpo esguio e elegante estrutura óssea, era muitíssimo mais
atraente.
— Alô, Tamar — disse Margaret, passando a língua pelos lábios vermelhos. —
Imagino que teve uma enorme surpresa quando viu Bem ontem.
— Tive mesmo — respondeu Tamar distante. — E como está você, Margaret?
Sinto ter perdido sua festa de aniversário. Você se divertiu bastante?
— Todo mundo se divertiu bastante — disse Margaret maciamente —, inclusive
Ben. Ele não lhe contou?
Tamar nem ligou para o atrevimento de Margaret. Já estava acostumada com
suas tentativas para embaraçá-la. Por outro lado, Ben lançou-lhe um olhar como se
pedisse para ter paciência.
— E o que vamos fazer, Ben? — perguntou Tamar.
Ben consultou alguns folhetos que tirou do bolso. — Disseram que não devíamos
deixar de fazer um passeio de carro até o chalé de Kate Kearney para tomarmos café
irlandês e passear de barco pelo lago. Podemos também ir até a abadia de Muckross,
um convento Franciscano do século XV. — Ele riu e levantou os olhos.
— Oh, pelo amor de Deus, pare de falar como um guia turístico! — disse
Margaret reclamando. — Esses prazeres simples devem agradar a gente simples, mas
eu prefiro um passeio pelas lojas para poder comprar um corte de boa lã e um suéter.
Ben tirou a cigarreira. — Margaret, faça como quiser, mas Tamar e eu não
vamos passar este dia glorioso percorrendo loja.
Margaret sacudiu os ombros. — Você é impossível! Tamar, você está interessada
no chalé dessa mulher — qual é mesmo o nome? Kate alguma coisa, ou nesse convento
franciscano? — Estava implorando.
Tamar hesitou, olhou para Ben e sorriu. — Bem, não sei por que não podemos
conciliar as duas coisas. Podemos fazer compras pela manhã, se é o que você quer,
Margaret, e visitar os monumentos antigos de Ben na parte da tarde.
Margaret concordou. Na verdade, foi um dia muito agradável. Margaret, depois
de gastar muitas libras nas lojas, estava de bom humor, e a contribuição de Ben deu-
lhes uma boa visão do passado da ilha. Muita coisa a própria Tamar não sabia e achou
que Ross tinha escolhido um assunto muito interessante para estudar. Mas

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deliberadamente pôs de lado todos os pensamentos sobre Ross e também não se
preocupou mais com os problemas dele, o que foi até fácil na companhia de Ben, a
milhas de distância de Porto do Falcão.
À noitinha, voltaram para o vilarejo, depois de Margaret ter trocado de roupa e
colocado uma saia preta longa em vez do atrevido conjunto de couro vermelho. Se isso
foi idéia dela ou sugestão de Ben, Tamar não ficou sabendo, mas com qualquer roupa
Margaret era um deleite para os olhos.
O padre Donahue esperava por eles. Tomaram um cálice de cherry, enquanto
esperavam a sra. Leary terminar o jantar.
Estavam tomando café e conhaque na sala, quando a sra. Leary bateu e disse que
o sr. Falcon queria ver a srta. Sheridan.
Imediatamente Tamar se sentiu apreensiva. Que era isso agora. — Peça, por
favor, que entre, sra. Leary — disse o padre, se consultar Tamar.
Tamar logo percebeu o interesse de Ben e de Margaret, que cruzou rápidos
olhares com ela e Ben.
Ross entrou na sala vagarosamente, alto e atraente, com uma camisa de gola
olímpica preta e terno cinza. Mais velho que Ben, tinha toda a segurança de seus
ancestrais. Tamar percebeu de imediato a reação de Margaret a seu magnetismo.
— Boa noite, padre — cumprimentou, acenando em direção ao padre Donahue. —
Desculpe-me se estou importunando.
— Não está não — disse Margaret Hastings lentamente, recostando-se na
cadeira com um copo na mão.
O padre surpreendeu-se com o comentário da moça, mas não disse nada, apenas
perguntou: — Há algo errado, Ross?
Tamar, sentada em sua cadeira, apertou o copo com tanta força que ficou
surpresa de ele não se quebrar em sua mão. Não conseguia olhar para Ross, pois não
podia impedir que ele a intimidasse, que caçoasse dela, só com os olhos.
— Na verdade não há nada de errado — respondeu Ross. — Minha mãe esperava
a srta. Sheridan hoje no castelo. Como ela não apareceu, pediu-me que viesse saber o
que tinha acontecido. Só agora tive tempo.
— Tamar saiu com os amigos o dia todo, Ross — disse o padre. — Deixe-me
apresentá-lo: Ben e Margaret Hastings. Este é Ross Falcon, proprietário do castelo
Cabeça do Falcão.
— O dono da aldeia? — perguntou Margaret sorrindo.
— Mais ou menos isso — concordou Ross, sorrindo de volta, e fazendo Margaret
quase se contorcer de prazer.
Tamar sentiu-se agredida. Ao diabo com os Falcon! Quando percebeu que tinha
que falar alguma coisa, disse: — Não me lembro de sua mãe ter sugerido que eu

55
voltasse hoje.
— Acho que minha mãe se confundiu então — replicou Ross, também distante. —
Entretanto, como o padre disse, você está com seus amigos…
Ben olhou para ela estranhando. — Lógico que você deve ir amanhã, se prometeu
— observou desanimado. — Eu planejei fazer uma Pescaria, portanto…
— Não! Isto é… — Tamar apertou os lábios. — Suponho que o sr. Falcon não vai
se incomodar se eu for ou não, não é, sr. Falcon?
Ross olhou para Tamar. — Não tenho nada com isso, srta. Sheridan. Minha mãe
foi quem fez os arranjos, não eu. Eu só concordo com seus pequenos desejos.
— Quer dizer que eu sou "um pequeno desejo"?
Ross sorriu caçoando. — Acho que foi isso que eu quis dizer — respondeu com
desprezo.
Tamar ficou furiosa, principalmente por Ben e Margaret estarem! presentes.
Ben meio aborrecido e Margaret divertindo-se.
O padre Donahue interveio. — Eu acho, Tamar, que a sra. Falcon sendo idosa e
doente, deve ter certos direitos, minha querida. Além disso, você não estava
esperando pelo sr. Hastings, não é mesmo? Eu na verdade acho que você deveria ir até
o castelo amanhã, se é o que ela quer.
Tamar ficou dividida. Não queria se envolver mais com os Falcon, mas de que
jeito? Para qualquer lado que fosse, encontrava obstáculos.
— Não quer ficar e tomar um pouco de conhaque conosco, sr. Falcon? —
perguntou Margaret, levantando-se e permitindo assim que Ross a visse por inteiro.
Ross olhou para Ben e depois sacudiu a cabeça. — Acho melhor não, srta.
Hastings — replicou suavemente. — Preciso ir embora.
Margaret protestou. — Oh, não me chame de srta. Hastings. Meu nome é
Margaret.
Ross sorriu; Tamar levantou-se de repente e disse: — Vou acompanhá-lo, sr.
Falcon.
Ross acenou com a cabeça para Margaret e Ben, desejou boa noite ao padre e
deixou que Tamar seguisse à sua frente ao sair da sala. Deliberadamente fechou a
porta quando passou, isolando-os no pequeno vestíbulo. Havia pouca luz e Tamar ficou
tremendamente consciente da presença dele no espaço confinado.
— Então você vem? — perguntou ele baixinho, e Tamar concordou, abrindo a
porta de fora. — Você está com medo de quê? — perguntou ao passar por ela. — De
mim? Ou de você mesma?
Tamar sentiu raiva, o que já era um hábito, do tom gozador das palavras dele.
— Nunca conheci um homem tão egoísta! — exclamou furiosa — Quaisquer que

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sejam os pensamentos sujos que estejam povoando seu cérebro, saiba que acabou de
conhecer o homem com quem vou me casar!
E agora, por que teria dito isso? - pensou com amargura. Comprometendo-se
com algo até então impensável!
Enfim Ross saiu da apatia costumeira. — Você pretende casar-se com Ben
Hastings?
— Não vi nenhum outro homem solteiro naquela sala, e você? — retrucou,
escondendo preocupação atrás de seu atrevimento.
Ross ficou olhando para ela por um momento, depois quase fez seu coração
parar ao estender a mão e segurar o relógio que tanto tinha encantado Lucy. Ficou com
ele na mão e quando Tamar imaginou que tinha se enganado ao pensar que ele ficara
zangado, torceu a corrente com os dedos e obrigou-a a chegar bem perto dele.
— E quando pretende se casar com esse homem? — perguntou grosseiramente.
— Ross! — gritou, tentando evitar que a corrente a machucasse demais. Não
sabia que ele podia ser tão cruel.
Como se só então tivesse percebido o que fazia, soltou-a e resmungou: — Por
Deus, Tamar, o que está tentando fazer comigo? — Seus dedos abandonaram a
corrente e passaram a acariciar o pescoço e o ombro de Tamar, que sentia toda sua
resistência se esvair. Olhou para ele suplicante. Ambos então ouviram a maçaneta da
porta virando atrás deles.
Estavam distantes um do outro quando Margaret apareceu. A garota franziu a
testa antes de dar um sorriso convidativo para Ross.
— Ainda está aí, sr. Falcon? — perguntou sedutora, olhando pensativa para
Tamar.
Ross estava perfeitamente controlado, enquanto os nervos de Tamar estavam
em frangalhos.
— Estávamos combinando o programa de amanhã — respondeu com facilidade. —
Eu já estava indo. Boa noite, senhoritas.
Virou-se e saiu. Tamar já tinha fechado a porta quando se lembrou de que não
tinha a menor idéia do programa do dia seguinte.
Margaret virou-se então para Tamar e disse numa voz fria e caçoísta — O que
há de errado, Tamar? Você está com um ar de culpa!
Tamar cruzou as mãos, sabendo da opinião da irmã de Ben.
— E por que eu estaria assim? — respondeu, dirigindo-se para a porta da sala,
que Margaret havia fechado.
— Espere! — Margaret andou rápido, impedindo-a. — Quero falar com você por
um instante, Tamar.

57
— Sobre o quê?
— Ross Falcon!
Tamar sentiu um calor subindo pelo rosto. — O que há?
Margaret franziu a testa novamente e, chegando perto de Tamar, disse: — Sua
corrente parece ter ferido seu pescoço, Tamar. Está sangrando.
Tamar passou a mão na nuca e seus dedos ficaram levemente sujos de sangue.
Ficou horrorizada.
Margaret analisava sua expressão. — Então — disse —, além de moreno, esguio
e atraente, é também perigoso?
Tamar olhou para ela. — O que está insinuando, Margaret?
— Simplesmente isso, minha querida futura cunhada, se eu fosse você me
agarraria ao Ben, que faz muito mais o seu tipo. Você não é garota para gostar de
homens violentos, mesmo que sejam atraentes. Enquanto eu… bem, eu gosto de um
homem que… bem, que seja primitivo.
Tamar limpou o pescoço com o lenço. — Acho que você está cometendo um
engano, Margaret — conseguiu dizer friamente.
— Ora, Tamar. Às vezes me sinto muito mais velha que você! Será que imagina
que suas reações àquele homem passaram desapercebidas? É claro que não. O ar
estava elétrico. Entretanto, sou capaz de apostar que ele não liga a mínima para você.
Você deve ter percebido que mamãe estava muito desconfiada de seus motivos para
vir cá e, naturalmente, não querendo perder o carneirinho dela, mandou-nos
depressinha para descobrirmos você numa situação comprometedora. Mas, claro, isso
não aconteceu e, com toda a franqueza, depois de conhecer sua paixão secreta, estou
disposta a deixar você ficar com Ben sem problemas, se puder passar algum tempo
com o sr. Falcon!
— Ross Falcon não é minha paixão secreta! — protestou Tamar furiosa. — Mas
você está certa, eu suspeitei mesmo que sua mãe estivesse por trás dessa sua viagem!
Quanto a deixar Ben para mim, com certeza é ele quem tem que decidir!
Margaret sorriu provocante e sacudiu os ombros. — Querida, não fique tão
zangada! Céus, esse tipo de coisa acontece todos os dias em Londres! Não me culpe
por ficar louca pelo piratão irlandês! — Riu caçoando.
Tamar agarrou a maçaneta da porta. — Você me deixa doente, Margaret!
— É verdade, queridinha? Por quê? Será porque estou um pouco perto demais da
verdade? De qualquer modo, se eu fosse você, iria lavar o pescoço, antes que Ben
comece a fazer perguntas. Não se preocupe, não vou contar a ele. Esse vai ser nosso
segredinho!
Tamar hesitou um momento, soltou uma exclamação e subiu correndo as
escadas. No quarto, examinou o pescoço com cuidado. Havia uma marca no lugar em

58
que um dos anéis da corrente lhe arranhara a pele.
Lavou o lugar e aplicou um pouquinho de maquilagem. Ficou quase invisível. Com
as pernas tremendo, voltou à sala. Margaret conversava com o irmão e o padre
Donahue, e lançou para Tamar um olhar de cumplicidade quando ela entrou na sala.
Ben levantou-se e aproximou-se dela. — Venha, vamos dar uma volta antes de eu
ir embora.
Tamar concordou e foi buscar o casaco. Lá fora, a lua brilhava. Caminharam até
o porto, Tamar esperando o que era inevitável.
— Você não me disse que esse homem, Falcon, era… bem, era do jeito que é! —
disse Ben, reclamando.
— O que você quer dizer? — Tamar fugia do óbvio.
— Você é quem deve saber. A reação que ele provocou em você!
— Reagi contra os modos dele —- explicou Tamar com impaciência. Esse homem
me odeia, está sempre tentando me fazer de boba!
— Mas por quê?
— Eu não sei, esta é a verdade.
Ben sacudiu a cabeça. — É uma situação esquisita. Como eu queria que você
largasse tudo isso e fosse embora comigo!
— Eu queria poder — disse Tamar, meio triste.
— E não pode por causa da criança?
— É isso.
—Droga, mas existem escolas para crianças como ela.
— Eu sei. E é isso o que Ross não quer aceitar.
Ben chutou uma pedrinha. Depois parou e ficou olhando o mar com um ar
desanimado. — Será que sua carreira não significa nada para você?
— Claro.
— E eu?
— Nós já conversamos sobre tudo isso, Ben. Você sabe como eu me sinto.
— Será que eu sei, será? Se você tem tanta certeza de que não ama esse
sujeito, Falcon, ou qualquer outro, por que então não concorda em ser minha noiva?
Tamar mordeu o lábio com força. E por que não? pensou com amargura.
— É isso o que quer, Ben? — perguntou baixinho. — Nos meus termos?
— De qualquer jeito — respondeu Ben com fervor.
Tamar hesitou só por um instante. — Está bem, então, eu concordo Ben ficou

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olhando para ela e depois de um pulo pegou-a nos braços. — Você não vai se
arrepender, Tamar — assegurou-lhe, afundando o rosto na maciez de seus cabelos.
— Espero que não — disse Tamar, com voz quase inaudível.

CAPÍTULO VII

Quando Tamar acordou no dia seguinte e se lembrou dos acontecimentos da


véspera, quis rolar para o outro lado e continuar a dormir para esquecer tudo
novamente. Mas quando o impacto do que tinha feito se tornou bem claro, não
conseguiu ficar na cama. Levantou-se e lavou o rosto na água gelada.
Depois escovou os dentes, penteou os cabelos, vestiu uma calça marrom e um
pulôver verde e nem se incomodou de passar uma pintura no rosto. Desde que chegara
ao vilarejo tinha se acostumado a só usar batom, e só a chegada de Ben a tinha feito
lembrar-se da maquilagem. Mas nesse dia não ia ver Ben, e isso lhe deu uma estranha
sensação de alívio. Ele ia passar o dia pescando e, apesar de ter dito que gostaria de
voltar para vê-la, ela achou melhor que não abusassem da hospitalidade do padre
Donahue. Em vez disso, prometera passar com ele o dia seguinte, quando iriam
comprar o anel de noivado.
Deixando esses pensamentos de lado, Tamar desceu as escadas a tempo de
tomar café com o padre. Não sentia muita fome, mas assim mesmo conseguiu engolir
alguma coisa, para evitar perguntas embaraçosas.
O padre ficou olhando para ela pensativamente, depois disse: — Vai ao Cabeça
do Falcão hoje?
— Eu prometi que iria.
— Bridget Falcon está usando você, não é? — Era muito astuto.
— Ela quer que Lucy seja mandada para uma escola especial — concordou Tamar.
— Pediu-me que tentasse convencer Ross a deixá-la ir.
— Ross nunca vai concordar! — disse o padre, sério. — Sabe que todos nós já
tentamos diversas vezes? Acha que é melhor que a criança ignore os problemas do
mundo.
— Mas isso é terrível! — exclamou Tamar impulsivamente.
— Céus, será que ele não percebe que mesmo o sofrimento pode produzir… Bem,
não consigo explicar melhor, mas ser parte do mundo, viver essa vida meio louca, é isso
mesmo, viver! E se somos felizes ou miseráveis, todos nós nos agarramos
desesperadamente à vida!
O padre sorriu. — Eu sei exatamente o que você quer dizer, Tamar — concordou

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ele. — As pessoas têm que sofrer para encontrar a paz e o prazer. Sem um nunca
conheceríamos o outro.
— Isso mesmo! — Tamar respirou fundo e acendeu um cigarro com impaciência.
— E o senhor não poderia explicar isso para Ross?
— Não, acho que não. Assim mesmo, desejo sorte a você. Mas fico imaginando
por que ela escolheu justamente você para fazer isso.
— Acho que porque sou uma cara nova no lugar — disse Tamar, meio sem jeito.
— Uma cara que Ross gostaria muito de esquecer — resmungou o padre
secamente.
Tamar ficou espantada. — Por quê? Por quê?
— E você não sabe?
— Se eu soubesse, não estaria perguntando. — Tamar levantou-se de repente da
mesa. — Por que é que todo o mundo me trata como se eu fosse vidente? Como é que
eu poderia saber por que é que sou a última pessoa a quem Bridget Falcon deveria
pedir esse favor? Ross me odeia, posso perceber, mas não sei o porquê disso. Eu é que
deveria odiá-lo!
O padre franziu a testa. — E por que você deveria odiá-lo? Você não tem tudo o
que sempre quis? Sucesso, uma bela carreira, um homem gentil e educado que vai ser
seu marido? Oh, sim, ele me contou que vocês vão se casar.
Tamar virou-se. — E pensa que foi por isso que saí de Porto do Falcão? Por
causa da minha carreira?
— Todo mundo sabe que seu pai também era meio artista. Quando ele voltou
para levar você, você não precisava ir, se não quisesse.
Tamar engasgou. — Certo! E o que eu poderia ter feito? — perguntou, num tom
também duro.
— Todo mundo pensava que você e Ross…
Tamar sentiu o sangue fugir de seu rosto. — Oh, sim, eu e Ross. Ou melhor,
Ross… e Virgínia.
Ross nunca amou Virgínia! — disse o padre, sério.
Tamar encarou-o com raiva, esquecendo-se por um momento de quem ele era. —
Então não deveria ter-se casado com ela, padre. Ou melhor, ter-se colocado na posição
de ser obrigado a se casar com ela.
O padre Donahue torcia as mãos sem parar, e Tamar acabou ficando
envergonhada. Esse não era um problema do padre e ela estava descarregando sua
irritação em cima dele.
— Desculpe-me, padre — disse, tensa, ao ouvir uma batida na porta.
Era somente Patrick 0'Hara, que tinha vindo combinar para cortar a grama do

61
cemitério ao lado da igreja.
Tamar pegou seu agasalho e saiu para respirar o ar morno da primavera. Era o
dia mais quente de todos e ela sentiu um enorme e inesperado bem-estar.
Saiu do jardim do presbitério, pegando o caminho para o porto, rindo e
conversando com as pessoas que encontrava. O mar estava azul e transparente e no
céu também azul só se via alguns fiapos de nuvens.
Tomou o caminho do velho chalé e, parada em frente a ele, ficou imaginando se
as coisas teriam sido diferentes se seu avô não tivesse morrido e os advogados não
tivessem encontrado seu pai. Será que ele um dia apareceria sozinho? Duvidava. Nos
poucos meses em que tivera contato com Trevor Sheridan, percebera que ele só
pensava em si mesmo e que só se interessara por ela por causa de seu talento.
Numa ocasião, em que se sentira muito triste, imaginara que talvez; ele a
trouxera não por amor paternal, mas sim, por perceber que podia capitalizar seu
talento, já que ele nunca o tivera. Pôs de lado tais; pensamentos, julgando-se, ao
mesmo tempo ingrata. Mas seu pai nunca lhe tinha dado amor nem carinho. A relação
entre ambos fora, sempre superficial. Só Emma tinha parecido se interessar por ela,
e, ao pensar em Emma, sentiu saudade de seu apartamento, em Londres, das coisas
com as quais tinha se acostumado.
Talvez estivesse sarando, pensou, esperançosa. Talvez o encantamento que o
vilarejo tinha lançado sobre ela estivesse se quebrando um pouquinho.
Então viu Lucy e percebeu que apenas tentava enganar-se a si mesma.
A criança estava sentada num muro de pedra do lado do chalé mastigando um
talo de capim e olhando silenciosamente para o mar, onde um barquinho se balançava
nas ondas. Tamar também olhou para o barco. Era de Ross.
Então se dirigiu para a menina, vagarosamente, a fim de não assustá-la.
Como se percebesse sua presença, a criança virou-se, e um sorriso alegrou seu
rosto.
— Olá — disse Tamar, sentando-se ao lado dela. Estavam vestidas! do mesmo
modo, com calça comprida e agasalho, e a criança reparou nisso, gesticulando para
Tamar. A moça concordou movendo a cabeça e Lucy, sorrindo de novo, saltou do muro.
Tamar levantou-se e a garota, segurando-lhe a mão, apontou para cima, para os
degraus que subiam até o castelo. Tamar hesitou. Tinha dito ao padre que pretendia ir
até o Cabeça do Falcão, mas agora estava com medo das emoções que as visitas àquela
casa lhe provocavam, perturbando-lhe a calma que procurava a todo custo.
Mas não podia discutir com Lucy e ficou com medo de romper o primeiro fio de
amizade que se criara entre elas. Lucy, depois de subir alguns degraus, pegara um
atalho e outros degraus que desciam até a praia. Tamar olhou para o barco. Parecia
vazio, mas não tinha certeza, e era para lá mesmo que Lucy estava se dirigindo.

62
Quis voltar para o presbitério, mas foi uma sensação passageira, trazida mais
por um sentimento de culpa em relação a Ben, já que ela desejava seguir as ordens do
coração, ou seja, aproveitar o belo dia de sol.
Então deixou que Lucy a guiasse degraus abaixo, até a areia da praia. Tirou as
sandálias, enterrando os pés na areia úmida. Lucy fez o mesmo, rindo o tempo todo.
Tamar estava percebendo que, apesar do defeito, ela era uma companhia muito
agradável.
Andaram pela estreita faixa de areia protegida pelos altos penhascos e rochas
que formavam uma piscina natural. Tamar lamentou não ter trazido o maio. O mar
estava ótimo para nadar.
Lucy tirou o agasalho e apontou em direção ao mar, para o barquinho. Tamar fez
com a boca: — Seu pai? — Lucy pareceu não entender. Com dificuldade, disse: — Dá! —
Tentava falar!
Tamar ficou impressionada. Tentar sozinha era uma boa indicação de como Lucy
reagiria se fizesse um tratamento sério.
Agora Tamar podia ver que o barco estava preso à praia e Ross debruçava-se
sobre ele, ajustando uma vela. Até então as rochas tinham escondido as duas, mas
agora não mais. Ross olhou para cima e viu-as.
— Eu lhe disse para ficar no rochedo — disse, olhando para Lucy e apenas de
relance para Tamar.
Lucy pareceu reagir à expressão dele, pois olhou implorando. Tamar tirou seu
agasalho e disse do modo mais casual possível:
— Lucy me trouxe até aqui. Não esperava encontrá-lo.
— Sei que é a mim que quer ver, não é? Tamar suspirou. — O que quer dizer?
— Minha querida mãe não pediu a você que me persuadisse a mandar Lucy para a
escola?
Tamar corou. — Por que está dizendo isso?
— É a verdade, não é? — Soltou uma exclamação impaciente. — Oh, Tamar, vá
embora. Não me aborreça!
Tamar apertou os lábios e, sem mais uma palavra, virou-se e dirigiu-se
rapidamente para os degraus de pedra. Não percebeu que Lucy a tinha seguido até que
sentiu a menina puxando seu agasalho.
— Não, Lucy — disse Tamar, olhando à volta. Depois sacudiu a cabeça como se
ilustrasse o que estava dizendo. — Não.
Lucy pareceu entender e fitou Tamar com um ar triste, quase chorando.
Tamar não conseguiu ficar olhando para ela sem se comover; virou-se então e
subiu os degraus correndo, até perder o fôlego. Precisou parar para se recuperar.

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Ofegando, olhou para trás, e daquela altura podia avistar o barquinho, Ross e Lucy.
Lucy parecia estar chorando e Ross estava agachado ao lado dela, tentando consolá-la.
Tamar subiu o resto dos degraus mais devagar. No alto, atravessou o gramado
até a casa. Pelo menos podia ver a sra. Falcon e contar a ela que não adiantava fazer
outras tentativas. Ross queria apenas vingar-se dela.
Mas quando entrou, a primeira pessoa que viu foi Steve, e junto com ele, uma
moça muito atraente que Tamar imaginou ser a esposa, Shelagh.
— Olá, Tamar! — exclamou ele. — Que surpresa! Veio ver mamãe?
Tamar aquiesceu, ainda meio descontrolada, e Steve, lembrando-se de Shelagh,
as apresentou. Tamar gostou do jeito da esposa de Steve e Shelagh pareceu
retribuir-lhe a simpatia, pelo modo amistoso como a recebeu. Talvez ela esteja se
sentindo solitária, pensou Tamar. Sem crianças e sem trabalhar, o que mais havia para
fazer? O amor do marido, dizia uma vozinha dentro dela, mas de algum modo ela não I
conseguia se sentir satisfeita apenas com a companhia de Ben.
Shelagh convidou-a para tomar café na sala, enquanto Steve ia avisar a mãe de
que Tamar havia chegado. Na sala espaçosa de onde se avistava o mar, as duas moças
começaram a se conhecer.
— É uma linda vista — comentou Tamar, sentada perto da janela. Notou que,
apesar de o barquinho estar ancorado, não se via nem Ross nem Lucy.
Shelagh suspirou. — Sim, é linda mesmo. Mas eu preferiria ter uma casa só
nossa, pois este castelo nunca vai ser nosso.
Tamar franziu a testa. — É, Steve que não quer ir embora, não é?
—Ele parece muito contente em viver aqui. Se tivéssemos filhos seria
diferente, teríamos nossa própria casa.
Tamar concordou. — Vocês já pensaram em adotar uma criança?
— Eu já, mas Steve não quer nem saber. Acho que ele não consegue se imaginar
criando um filho de outra pessoa. Mas parece tão injusto. Virgínia nunca quis ter um
filho, no entanto, teve um, enquanto eu…
Tamar sentiu pena. Shelagh daria uma ótima mãe. Ela tinha carinho e gentileza
inatos.
— Você passa muito tempo com Lucy? — perguntou.
— Às vezes. Steve não perde muito tempo com ela e, para ser franca, não me
anima a levá-la conosco quando saímos.
Tamar achou que Steve se tornara tremendamente egoísta, principalmente
depois de seus comentários no dia em que ela chegara. Era como se ele estivesse
culpando Shelagh pelo fato de não terem filhos, quando podia muito bem ser culpa
dele.

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Então a sra. Falcon chegou e a conversa se generalizou. Steve precisou então
sair e Shelagh se desculpou dizendo que tinha umas costuras para fazer.
Depois que saíram, a velha senhora disse: — Viu Ross outra vez?
— Sim. Olhe, não adianta. Ele não vai escutar nem a mim, nem a ninguém,
segundo o padre Donahue.
A sra. Falcon franziu a testa, pensativa. Então levantou os olhos num olhar
penetrante. — Estão dizendo que seu namorado chegou da Inglaterra.
Tamar assentiu: — Sim. Ben Hastings. Ele veio com a irmã.
— E por que veio?
— Para me levar de volta.
— Mas você não vai, não é?
— E por que não? Não adianta nada ficar, em tais circunstâncias.
— Bobagem. Desde que você chegou, não sei se para melhor ou pior, Ross está
mudado.
— O que quer dizer?
— Apenas que, quer você goste ou não, Ross está consciente de você, de sua
presença na vila. E isso, depois de anos de indiferença, é suficiente para me garantir
que, com o tempo, você vai dobrá-lo.
Tamar quase riu. Não conseguia imaginar ninguém dobrando Ross. Nesse
instante a porta se abriu e o próprio Ross apareceu.
— Bem, bem! — disse, irônico. — Aí estão vocês de novo!
— Ross, pelo amor de Deus! — exclamou a mãe. — O que há com você? Será que
não consegue ser educado em sua própria casa?
Ross deu um sorriso de zombaria. — Perdão, mamãe, estava me esquecendo.
Entretanto, prometo ser mais educado no futuro.
A sra. Falcon sentia-se nervosa. — Bem, vai ter que ser educado; amanhã à
noite. Decidi dar um jantar.
Tamar encarou a velha e Ross parecia achar que a mãe tinha perdido a razão.
— Um jantar! — exclamou. — E quem é que você imagina que virá jantar aqui?
— Bem… deixe-me ver… — Contou nos dedos. — Sim… oito pessoas. Steve e
Shelagh, os dois amigos de Tamar, o padre Donahue, Tamar, você e eu!
— Está brincando! — Ross fechou a cara. — Se imagina que vou ficar sentado,
conversando polidamente com gente de quem nem mesmo gosto, está muito enganada!
— Ross! — A sra. Falcon zangou-se também. — Você pode ser: o chefe aqui, mas,
até que se case novamente, eu sou a dona, e você não vai deixar mal sua própria mãe,

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recusando!
Ross disse, impaciente: — Não damos mais jantares no Cabeça do Falcão há
muito tempo.
— Não, mas pretendo acabar com isso. Você está virando um ermitão, Ross.
Anda introvertido demais, e não é bom que um homem fique assim. Você ainda é moço
e fisicamente está muito bem. Não há razão alguma para levar essa vida sem atrativos.
— Não sou um animal social! — replicou ele, irritado. — O noivo da srta.
Sheridan é muito mais do seu tipo, mamãe!
— O noivo da srta. Sheridan? — A sra. Bridget franziu a testa. Não sabia que
estava noiva. Tamar Sheridan, você não me contou isso.
— E por que deveria? — comentou Ross, irônico. — A senhor sabe como ela é
independente!
A sra. Bridget parecia aborrecida. — Bem, de qualquer modo, não faz diferença.
Mesmo assim, pretendo dar o jantar; por isso, é melhor se conformar, Ross!
Ross olhou furioso para Tamar. — Isto é mais uma coisa que eu devo agradecer
a você!
— As decisões de sua mãe não têm nada a ver comigo — retrucou ela.
—Se não fossem você e seus amigos, não haveria esse problema — respondeu
Ross friamente. — Seria normal convidarmos o padre Donahue. Mas agora… — Virou-se
como se fosse sair, mas a mãe o impediu.
— Ross, espere!
— O que é? — Seus olhos não podiam ser mais frios, e Tamar ficou imaginando
se algum dia ainda o veria sorrir para ela outra vez. Parecia, porém improvável.
— Aonde você vai? Ele se encostou negligentemente na porta. — Quer que eu
faça uma relação das coisas que faço, também? — perguntou sarcástico.
A princípio, pareceu que a mãe ia contestá-lo, mas depois se controlou e disse:
— Você vai para a enseada de Dunwherry, não é?
—Sim Lucy e eu vamos fazer um piquenique — respondeu, distante. — Que
outros planos maldosos você está tramando agora?
— Quero que leve Tamar Sheridan com você — disse a velha tão casualmente
como se estivesse fazendo um comentário sobre o tempo.
— Não pode estar falando sério, mamãe!
— E por quê? A menina gosta dela, você sabe disso. Será que não pode levar
Lucy em consideração pelo menos uma vez, seu egoísta?
Ross apertou com força a maçaneta da porta. — Se a senhora fosse homem, não
se atreveria a falar comigo dessa maneira! — replicou.

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— Mas não sou! — exclamou Bridget. — E então? Vai levá-la? Tamar sentiu-se
constrangida. — A senhora não me perguntou se eu queria ir — disse baixo. — Não
tenho a menor vontade de sair com seu filho, senhora Falcon.
— Mas, de qualquer modo, vai, nem que seja só por Lucy. Não iria se recusar a
sair com a criança, não é, Tamar Sheridan?
Tamar sentia o rosto queimar.
— A senhora é impossível! — exclamou, embaraçada.
— É, ela é mesmo, não é? — comentou Ross, com uma expressão irônica no rosto.
— Entretanto, ela usa de qualquer método para conseguir o que quer. Basta você
recusar. Você sabe o que sinto?
— Oh, sim, não tenho dúvidas sobre o que sente — respondeu Tamar com raiva.
Ross ainda tinha o poder de magoá-la, e muito.
— E então — Ross estava esperando que ela recusasse. Esperava que dissesse
não, mas algum demônio interior dentro de Tamar queria que ela aceitasse.
— Eu vou, mas por Lucy — concordou. — Ouviu então a sra. Bridget dar uma
risadinha de satisfação.
Ross obviamente ficou furioso, mas não disse mais nada, limitando-se a sair.
— É melhor você ir logo — disse a sra. Falcon a Tamar. — Duvido de que ele vá
ficar esperando.
— Eu também, — admitiu Tamar, completamente sem jeito.
O carro estava no pátio, em frente à casa — Tamar viu Ross guardando uma
cesta de piquenique no porta-malas, ajudado pela filha. Pensou, desanimada: ah, se ela
também fosse minha!
Não havia nenhum traço de dúvida em sua voz, quando perguntou: — Posso
entrar no carro?
Ross encarou-a. — Não pergunte para mim. Sou apenas o motorista!
— Oh, Ross, pare com isso! — exclamou zangada, já farta de discussões.
Ross fechou o porta-malas e colocou Lucy no assento traseiro d carro. Depois
olhou para Tamar com indiferença e, abrindo a porta sentou-se à direção. Tamar abriu
a porta de seu lado no veículo: sentou-se. Gostaria de ter-se sentado atrás, junto com
Lucy, mas tal atitude seria infantil.
Ross ligou o motor e o carro saiu rápido, deixando o castelo para trás. Estava
uma manhã maravilhosa. E, sem querer, admitiu que lhe dava prazer a companhia de
Ross, apesar de tudo. Talvez porque com ele se sentisse inteiramente feminina, coisa
que nenhum outro homem conseguira fazer.
Procurou nos bolsos pelo maço de cigarros, mas não o encontrou, ou esquecera
em casa ou perdera na praia. Suspirou, aborrecida.

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Ross olhou de relance para ela. — O que há de errado? Preferia não ter se
arriscado?
Tamar ainda podia achar graça na situação, apesar de tudo e deu-se conta de
que sorria. — Não — replicou calmamente. — Perdi ou esqueci meus cigarros.
— E está querendo um?
— Sim.
Ele enfiou a mão no bolso da jaqueta, tirou um maço e um isqueiro e deixou-os
cair no colo de Tamar.
— Obrigada — agradeceu, sorrindo. Ross não disse nada. Ela acendeu então um
cigarro, deu uma tragada e suspirou outra vez. Depois colocou o maço e o isqueiro no
painel do carro para que ele pudesse pegá-los quando quisesse. Sorriu para Lucy e
propôs a ele: — Será que só por hoje não poderíamos pelo menos ser educados um com
o outro, como sugeriu sua mãe.
Ross saiu da estrada principal e começou a descer a estradinha estreita e
tortuosa que levava à enseada de Dunwherry.
— Por que você concordou em vir? Poderia ter dito não.
— Era isso o que você queria que eu fizesse?
— Claro. — Deu uma olhada para Lucy. — Minha filha e eu passamos muitas
horas juntos. Não precisamos de mais ninguém.
Tamar sentiu-se magoada, como antes. Ele nem parecia perceber como era
cruel. Resolveu prestar atenção aos lugares por onde passavam. As sebes estavam
cobertas de flores e o sol, batendo no mar. doía nos olhos. Não fora até lá desde que
voltara, pois até então adiara a visita ao lugar onde Ross e ela haviam passado tanto
tempo. Será que ele imaginava no que ela estava pensando? Será que se lembrava de
que esse lugar era especial para ambos? Aparentemente não. Ele devia ter voltado ali
dezenas de vezes, e o que para ela tinha um sigificado particular para ele era apenas
mais um lugar para fazer piquenique.
Pararam nas dunas que desciam, em curvas suaves, até a praia. A água espumava,
mais abaixo, e a areia estava seca e fofa. Lucy pulou do carro assim que Ross parou,
ansiosa para tirar a calça comprida e a blusa e ficar só com o maio listrado de rosa e
branco que trazia por baixo.
Tamar também desceu, rindo das brincadeiras de Lucy, imaginando como Ross e
ela iriam agüentar um dia inteiro, juntos. Se ele relaxasse e voltasse, só uma vez, a ser
o homem a quem ela amara tão desesperadamente…
Mas não era mais aquele homem, dizia uma vozinha interior. Tinha sido por isso
que ela tinha ido embora.
Mas, assim mesmo, era muito difícil ver nele o rapaz que tinha seduzido
Virgínia, como ela contara. Com dezoito anos, Tamar era jovem e impressionável, mas

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agora, sete anos depois, podia olhar para trás e refletir melhor.
Quando Ross abriu o porta-malas para pegar as esteiras e a cesta, Lucy voltou e
apanhou o balde e a pazinha; e, segurando a mão de Tamar, foi descendo pelas dunas
até perto da água, onde as rochas formavam laguinhos cheios de conchas e cascalho.
Tamar enrolou as pernas das calças, tirou as sandálias e chapinhou na água junto com a
criança.
O sol estava quente, em seus ombros, queimando através da fazenda fina da
camisa. Lucy parecia não ligar para o calor e espirrava água na companheira com um ar
maroto, como qualquer criança faria. Tamar, de bom humor, devolvia a brincadeira e no
fim acabou se retirando derrotada, quando suas roupas começaram a ficar molhadas.
Olhou para onde Ross estava deitado, na areia, como se não percebesse a presença
delas. Tinha trazido alguns papéis e alguns livros grossos que pareciam ser de
consulta. Tamar achou que ele devia estar fazendo pesquisas para um outro livro.
Deixando Lucy com suas brincadeiras inocentes, subiu pela praia e ficou olhando
para Ross com curiosidade. Percebendo isso, ele perguntou, em tom de zombaria: —
Acabou a brincadeira?
Tamar enterrou os pés na areia. — Oh! Vamos parar com isso, Ross — implorou.
— Você está fazendo pesquisas para o novo livro?
Ross sentou-se, tirou os óculos escuros e assim ela pôde ver seus olhos.
Estavam amarelados e, apesar de não parecerem exatamente amistosos, pelo menos
não revelavam o ódio de antes.
— Já acabei o livro — disse, meio relutante. — Estou só conferindo alguns
pontos.
— E sobre o que é?
Os olhos de Ross apertaram-se. — Mas você está realmente interessada?
Tamar sentiu vontade de sacudi-lo, de tanta raiva. — É claro que sim! —
exclamou, impaciente. — Eu… eu sempre estive.
Ross baixou a cabeça e pegou um cigarro. Depois ofereceu um a ela e acendeu os
dois.
— Não vai se sentar? — perguntou. Tamar sentia-se nervosa. — Está me
convidando? Ross olhou para ela. — Sim, Tamar. Estou convidando. Ela não conseguiu
encará-lo. Estava com medo. Mas não dele.
Em vez disso, sentou-se na esteira, derrubando os livros. — Oh, me desculpe —
disse, sem jeito. — Sou tão desastrada!
— E nervosa? — perguntou ele.
— Você sabe que sim.
— Por quê? Está com medo de mim? Tamar encolheu os ombros. — Às vezes…

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— E tem mesmo que ter — advertiu Ross, deitando-se outra vez e recolocando
os óculos escuros.
— Mas por que, Ross? O que você faria?
— Algumas vezes cheguei a imaginar meios de matá-la, sem ser apanhado —
disse secamente.
Tamar estremeceu, apesar do calor. Ele falava calmamente, e ela foi forçada a
acreditar.
Mudando de assunto, Tamar pediu. — Fale-me sobre o livro.
— Bem, o que quer saber?
— Oh, Ross! — exclamou, dobrando os joelhos e neles apoiando o queixo.
Ele sentou-se de repente, olhando para sua figura abatida. Depois afastou o
cabelo para um lado e observou seu pescoço. — Fui eu quem fez isso? — perguntou
rouco!
Tamar sentiu todo seu corpo pegar fogo e o ar vir em golfadas. — Sim —
conseguiu dizer, sufocada.
Ele se inclinou acariciando-lhe o cabelo, e ela sentiu o calor da boca de Ross
contra sua pele, tocando de leve o lugar onde o cordão a tinha ferido. Tamar sentiu-se
levada por uma onda em que nada importava, a não ser o prazer que só poderia levá-los
à explosão do amor total. Podia perceber, pela respiração descompassada, que ele
também estava perturbado. Murmurou então: — Ross…
De repente, Ross levantou-se e começou a tirar a areia da roupa, enquanto se
aproximava Lucy, mostrando o achado que trazia no baldinho. Tamar não percebeu a
menina, e lhe foi difícil controlar suas emoções e falar calmamente com a criança. Mas
Ross estava perfeitamente tranqüilo, e ela ficou pensando se tinha sido imaginação sua
a ternura que sentira em seus lábios.

CAPÍTULO VIII

Almoçaram logo depois e, em seguida, Ross saiu com Lucy, deixando Tamar
sozinha. Ela folheou diversos anuários de conventos, pensou em examinar o manuscrito
de Ross, mas mudou de idéia. Ele tinha deixado o maço de cigarros e ela se recostou e
ficou tomando banho de sol, fumando de vez em quando. Tudo estava em paz. Na
verdade, havia um certo contentamento só em ficar ali, mas, agora que estava sozinha,
sua mente começou a ficar perturbada por outros pensamentos. Por que estava
sempre pensando sobre o resultado dessa viagem à Irlanda? Qual a razão para se
sentir tensa? E, mais do que isso, por que se importava tanto com o que Ross pudesse
pensar dela? Virou-se de bruços, enfiando os dedos na areia fofa e encostando a

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cabeça num dos braços. Sentiu-se desligada das coisas que até então lhe tinham sido
familiares. Podia ter dezoito anos outra vez, deitada ali, na areia da enseada,
esperando que Ross saísse da água. Então ele viria, pingando, ficar de pé a seu lado,
rindo. Cairia então na areia e a seguraria em seus braços, e a cobriria de beijos. Ela
era feliz então, tão feliz, sem imaginar que a felicidade pudesse ser destruída da
noite para o dia.
Virou-se de costas outra vez e sentou-se. Podia ver Ross e Lucy na beira da
água. Ross tinha tirado as calças e ficado de short, tentando ensinar Lucy a nadar.
Obviamente, ela já sabia alguma coisa, pois de vez em quando escapava dele e
mergulhava, vindo depois a nadar como cachorrinho, espirrando água para todos os
lados.
Tamar sorriu. Lucy era uma criança adorável, e ela lamentou não ter trazido
também seu maio. Mas era melhor assim. Eles pareciam não precisar de mais ninguém,
nenhum intruso como ela.
Já era tarde quando voltaram da praia e Tamar olhou apreensiva para Ross,
imaginando o que poderia acontecer. Mas ele apenas se enxugou, fazendo com que
Tamar ficasse estranhamente consciente da musculatura de suas pernas e de seu
peito.
Lucy tinha colocado alguns bichinhos na água do balde, mas quando quis levá-los
para o carro, Ross sacudiu a cabeça, indicando que ela deveria devolvê-los ao mar. Com
muitas caretas, Lucy acabou concordando e foi, tristonha, levá-los de volta. Tamar
ficou olhando; depois levantou a esteira, sacudiu-a ê levou-a também para o carro.
Ross pegou a esteira com um ar casual e Tamar voltou para apanhar a cesta vazia,
enquanto ele enfiava o suéter. Não disseram uma palavra. Quando Lucy voltou,
entraram todos no carro e voltaram para casa.
No caminho, Tamar procurou dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Era como se
o incidente na praia nunca tivesse acontecido. Não sabia se devia ficar triste ou
alegre. Ross parou o carro no portão do presbitério, não dando a ela a oportunidade de
lhe sugerir voltar ao castelo para ver sua mãe.
— Obrigada — disse, sorrindo. — Gostei muito!
— Gostou? — O tom de zombaria voltava outra vez à sua voz.
— Ótimo!
Tamar hesitou. — E você? Gostou?
— Eu sempre gosto da companhia de Lucy — respondeu, malcriado.
O rosto de Tamar queimava. — Às vezes odeio você, Ross Falcon — disse com
amargura.
— Só às vezes? — perguntou, irônico. — Gostaria de contar com sua tolerância.
— Passou o dedo pelo volante. — Antes que me esqueça, vou dizer a minha mãe que
você tentou novamente me fazer mudar de idéia sobre Lucy.

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— O quê?
— Ora, era esse seu objetivo, não era?
— Oh, Ross! Ele sorriu com malícia. — Você tentaria qualquer coisa, não é,
Tamar? Infelizmente, suas chances de ganhar não são muito grandes.
Ela cerrou os punhos. — É claro! — exclamou. — Foi por isso que arranjou o
piquenique, não é? Sabia que eu ia até sua casa e descobriu um jeito de me evitar!
Ainda bem que Lucy não partilha seu entusiasmo pela rudeza!
Virou-se, passou pelo portão e atravessou o gramado do presbitério. Ross partiu
velozmente, provocando uma ventania na rua estreita.
Ben chegou na manhã seguinte, dirigindo o conversível que ele e a irmã tinham
trazido da Inglaterra. Margaret estava junto e o bom humor de Tamar desapareceu.
Será que tinham que agüentar a companhia da irmã de Ben durante o dia todo?
Saiu para recebê-los, exatamente quando Shelagh chegava. A moça chegou até
o portão, sorrindo amistosamente para Tamar.
— Olá! — disse. — Vim só lembrá-la de pedir a seu noivo e à irmã para irem
jantar lá em casa esta noite.
Tamar, que tinha se esquecido completamente disso desejava se esquivar do
convite, mas Margaret, que já tinha saído do carro, escutou a conversa.
— Que maravilha! — exclamou. — Ben, querido, a sra. Falcon nos convidou para
jantar, esta noite, e Tamar também, é claro.
Ben olhou para Tamar. — Você sabia disso?
— Soube ontem — respondeu Tamar. — Você quer ir?
— É claro que iremos! — exclamou Margaret, respondendo por ele. — Quem é
você? — perguntou para Shelagh, querendo descobrir o grau de parentesco com o
atraente dono do castelo.
— Sou Shelagh Falcon, esposa de Steve Falcon — respondeu a moça, admirando
o traje de Margaret, um vestido de mangas compridas de linho azul com um casaco
sem mangas.
— Steve Falcon… — Margaret franziu a testa. — Oh, deve ser o irmão de Ross?
— Você conhece Ross?
— Eu o conheci há dois dias, — disse Margaret, olhando de lado para Tamar. —
Diga-me, o que faz, sra. Falcon? Num lugar como Porto do Falcão não deve haver muita
coisa para se passar o tempo.
— Oh, eu leio, costuro — disse Shelagh. — Geralmente faço minhas roupas e
tricô também.
— Que interessante! — comentou Margaret, com uma careta.

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Ben então disse, seco:
— Não é todo o mundo que precisa de divertimentos artificiais, Margaret!
Margaret olhou para ele. — E especialmente você não devia dizer isso —
retrucou, friamente. — Apenas Tamar tem experiência de uma vida no campo! — Seu
tom agora era de zombaria.
Tamar não tomou conhecimento. — Sempre tenho muito que fazer aqui —
prosseguiu Shelagh —, adoro a natureza e o mar. Nunca me sentirei aborrecida em
Porto do Falcão.
— Aposto que não! — exclamou Margaret secamente. Ben repreendeu-lhe com
um olhar.
— Vamos esquecer isso, Margaret, sim? — propôs, impaciente. — Tamar, você
está pronta? Pensei em irmos até Limerick e almoçarmos lá. Podemos comprar o anel
de noivado lá também.
— Seu anel de noivado? — perguntou Shelagh, interessada.
— Sim. Eles vão logo marcar a data — comentou Margaret num tom distante. —
Talvez o jantar de hoje servisse para celebrar.
— Oh, não! — Tamar imediatamente percebeu que não fora delicada e
desculpou-se: — Isto é… bem, isso é um assunto particular. Não gostaria de fazer dele
um espetáculo!
Ben lançou-lhe um olhar estranho, mas não deu maior importância a suas
palavras. — De qualquer modo, acho bom irmos andando — lembrou.
Margaret olhou pensativa para Tamar e depois se voltou para Shelagh. —
Escute — disse, cheia de charme, — será que você não me convidaria para passar o dia
com você? Quero dizer… naturalmente, Ben e Tamar querem ficar sozinhos e eu não
tenho mais nada para fazer.
— Você vai precisar trocar de roupa, se formos ao jantar desta noite — disse
Ben, obviamente aborrecido por Margaret estar se excedendo.
Margaret nem se perturbou. — Querido, tenho certeza de que Tamar pode me
emprestar um vestido, quando voltar, à tarde. Vou dar um jeito de estar a tempo aqui
na casa do padre Donahue. Tenho certeza de que ele não vai se incomodar se eu
também usar o quarto de Tamar.
Tamar concordou e Shelagh, educada demais para pensar em alguma desculpa
razoável, disse simplesmente: — É claro que pode ficar, se quiser. — Não havia, porém,
o menor entusiasmo em sua voz.
Tamar estava espantada com o atrevimento de Margaret, mas não havia nada
que pudesse fazer, e as duas moças foram embora juntas. Ben suspirou.
—Sinto muito, Tamar, mas o que eu poderia dizer?

73
— Não tem nada a ver com você ou comigo — respondeu Tamar, um pouco tensa,
e foi buscar seu casaco.
Passaram um dia sossegado em Limerick e, se o entusiasmo de Tamar, ao
comprar o anel, foi um pouco forçado, Ben pareceu não perceber.
Escolheram uma pérola rodeada de pequenos diamantes. Era uma bela jóia!
Parecia também muita cara, e Tamar teve a impressão de que fora por isso que Ben
gostara dela.
Depois foram a um restaurante almoçar. Demoraram-se ali um bom tempo,
aproveitando o sossego que a ausência de Margaret representava. À tarde
aproveitaram para visitar a catedral de Santa Maria e o castelo do rei Jorge. Depois
tomaram chá, antes de voltar para Porto do Falcão.
— Você está preocupada — comentou Ben, enquanto ainda estavam no
restaurante. — O que está acontecendo?
— Nada em particular — respondeu Tamar, sorrindo. — Você fez uma boa
pescaria ontem?
— Ah, sim, ótima. Não pesquei muito, mas me diverti um bocado. E você, o que
fez? Foi até o castelo?
Tamar concentrou-se no anel por um momento. — Sim, só que, na verdade, não
passei o dia lá. Saí com Ross e Lucy.
Os olhos de Ben ficaram sombrios. — Ah, é? E aonde foram?
— Bem, a sra. Falcon me disse que Ross ia levar a filha para um piquenique e,
quando ele apareceu, ela praticamente o obrigou a me levar junto. Ela é teimosa
demais e está muito preocupada com o problema de Lucy! — A última frase foi dita de
um só fôlego, como se ela quisesse que a explicação servisse de justificativa pelo que
acontecera.
Ben continuou fumando. — Sei. E ele aceitou?
— Como? — Por um momento não entendeu.
— Ele concordou?
— Oh, não! E acho que não vai adiantar.
— Tamar, você já está aqui há um bom tempo. Será que já não achou o que
andava procurando para satisfazer sua necessidade interior? Já viu esse Ross Falcon,
já descobriu o que aconteceu com as pessoas que você conhecia. Será que não pode
deixar isso, agora, e voltar para Londres? Haverá tantas coisas para fazermos, depois
que nos casarmos… Quero levá-la a tantos lugares!
Tamar olhou para ele com carinho. Por que não podia amar Ben? O que a
impedia? Ele era, como Emma bem dissera, um homem bom, gentil; por que o romance
deles não assumia proporções mágicas, como um dia ela imaginara que o amor deveria
ser?

74
Suspirou e, ao terminar de tomar o chá, disse: — Se a sra. Falcon não tivesse
me contado nada, não teria remorsos, Ben. Mas, do jeito que as coisas estão… oh, eu
não sei. É como se fosse uma batalha, eu acho.
Ben levantou-se e segurou a cadeira para ela. — Você sabe o que estou
pensando?
Tamar corou. — Não, o quê?
— Acho que está usando Lucy como desculpa, pois estou quase certo de que
você não quer voltar.
— Oh, Ben, nós já falamos sobre isso.
— É o que você diz. Entretanto eu não tenho certeza. Tamar, se eu resolvesse
arranjar uma casa aqui, morar aqui, pelo menos durante parte do ano, você gostaria
disso?
Agora Tamar estava pálida. — Não, Ben, não acho que isso seria uma boa idéia —
argumentou, ao deixarem o restaurante. Ben ficou calado, suspirou e limitou-se a
segui-la. No carro, voltando para a vila, ela disse: —- Estive pensando, Ben.
Minha primeira intenção era ficar aqui por seis semanas. Se eu diminuir para um
mês, você me dá esse tempo, pelo menos?
— Quer dizer… você quer que eu volte para Londres e a deixe aqui por mais ou
menos dez dias?
— Exatamente.
— Eu podia ficar aqui, esse tempo.
Tamar mordeu o lábio. — Está bem, fique. Mas pelo menos me dê esses dias.
— Está bem. Não vou mais falar nisso — Ben concordou, e Tamar sentiu-se mais
à vontade. Dez dias. Tanta coisa podia acontecer em dez dias!
Margaret já estava no presbitério, quando eles chegaram. Estava usando um dos
vestidos de noite de Tamar, de cetim dourado, que combinava muito bem com seus
cabelos escuros.
— Espero que não se incomode por eu ter pegado seu vestido, querida — disse
Margaret, quando Tamar e Ben entraram na sala, onde ela conversava com o padre
Donahue.
Tamar sacudiu a cabeça. — Pode ficar com ele, Margaret — disse friamente. —
Eu quase não o uso.
Margaret comprimiu os lábios. — Obrigada, querida, mas tenho roupas
suficientes.
Tamar ignorou sua resposta.
O padre Donahue, que estava de costas para a lareira, disse então: — Eu
também fui convidado para a festa no castelo, hoje à noite. Será que me dá uma

75
carona até lá, sr. Hastings?
Ben sorriu. — É claro, padre. Só espero que não seja preciso roupa a rigor.
— Oh, não — retrucou o padre, sacudindo a cabeça. — Não é nada tão formal
assim.
— Com licença — pediu Tamar, e saiu para se aprontar. Em se quarto, o caos a
esperava. Obviamente, Margaret tinha examinado todas as suas roupas em busca de
algo para usar, e não tinha se dado ao trabalho de guardar tudo outra vez. Tamar
demorou-se algum tempo, colocando as coisas em ordem, por isso, teve que se arrumar
depressa, embora indecisa na escolha de sua roupa.
Optou por uma saia longa de veludo verde e uma blusa negra de mangas
franzidas. Perto de Margaret, tinha a certeza, iria parecer simples demais. Quando
chegou, porém, tanto Ben quanto o padre a cumprimentaram pela escolha da roupa;
Margaret não disse nada. Foram para a casa dos Falcon às sete horas. O jantar seria
servido às sete e meia; assim teriam tempo de tomar algum aperitivo antes.
A casa estava toda iluminada, e, quando Hedges os fez entrar no vestíbulo,
puderam ouvir música vindo da sala. A criada pegou os casacos para guardá-los e foi
então que a sra. Falcon apareceu, muito atraente e com as feições rejuvenescidas.
Usava um vestido grená que contrastava com seu cabelo grisalho bem penteado.
Estava acompanhada por Steve e Shelagh, e Tamar imaginou, um pouco ansiosa, se
Ross iria desafiar a mãe e deixar de comparecer ao jantar, como tinha ameaçado.
Depois das apresentações, a sra. Falcon dirigiu-se para a sala. Margaret estava
olhando à volta, interessada. — Deve ser uma construção bem antiga, sra. Falcon —
comentou, com a voz mais sedutora do mundo.
— É verdade — respondeu a velha senhora, sempre interessada em conversar
sobre os ancestrais dos Falcon. O comentário casual de Margaret ofereceu-lhe essa
oportunidade. — Esta casa resistiu a incêndios e crises, pobreza e riqueza, por mais
de duzentos anos. Foi construída no século dezoito, quando o protestante Henry
Grattan era o líder do Parlamento Irlandês.
— Tenho certeza de que a srta. Hastings não está interessada na história do
lugar, mamãe — observou Steve depressa.
— Bobagem! — exclamou a sra. Falcon, e silenciou-o com um olhar. — Ross
estava me dizendo ainda hoje que a srta. Hastings tem grandes conhecimentos sobre a
história da Irlanda, você sabia?
Tamar ficou tensa. É claro! Margaret tinha passado o dia com Shelagh. Sem
dúvida, tinha visto Ross novamente. Esse era seu objetivo principal. Deu uma olhada
para Margaret, fixou-se em seus olhos por um instante e depois desviou o olhar.
— Eu não sabia que você estava interessada na história da Irlanda! — exclamou
Ben, com toda a inocência. — Você nunca demonstrou isso antes.
Margaret fez-lhe uma careta e disse: — Céus, Ben, não seja tolo! Você não sabe

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tudo sobre mim. Esta tarde, Ross e eu discutimos sobre os livros dele e descobrimos
interesses comuns. — Deu uma olhada irônica para Tamar.
— O senhor não sabia que sua irmã esteve aqui mais cedo, hoje? — indagou a
sra. Falcon, olhando atentamente para Ben.
— Bem, eu sabia que ela tinha se convidado para vir junto com sua nora —
comentou ele secamente. — Com tudo o que aconteceu durante o dia, acabei, na
verdade, me esquecendo de que ela poderia ter passado algum tempo com seu outro
filho. Sei que é um escritor e, aliás, escolheu um assunto fascinante. Tamar e eu
visitamos algumas construções históricas, justamente hoje à tarde, em Limerick.
— Oh, é verdade? Quais? — A sra. Falcon puxou Ben para seu lado, e Tamar
teve que ficar com Margaret e Shelagh, pois o padre tinha se juntado a Steve e
conversavam, aparentemente, sobre assuntos da vila.
Margaret suspirou. — E por falar nisso, onde está Ross? — perguntou a
Shelagh. — Ele me disse que estaria aqui, esta noite.
Shelagh não respondeu logo. Estava elegante, com sua saia preta e blusa
listrada de rosa e branco, e parecia mais à vontade do que de manhã. — Não tenho
certeza — respondeu finalmente a Margaret. — Ele deve estar pondo Lucy na cama.
Ela adora, quando ele faz isso.
Margaret pareceu aborrecida, à menção da criança, e, com nova olhada em
direção a Tamar, foi até onde Ben e a sra. Falcon conversavam. Depois que ela se
afastou, Shelagh soltou um suspiro e Tamar percebeu seu significado.
— Desconfio que você já conheceu o suficiente de minha cunhada, por um dia,
não é?
Shelagh voltou-se, de modo a não ser ouvida, e, depois de apanhar dois copos na
bandeja de bebidas que Hedges oferecia, e de estender um para Tamar, disse: — Você
está brincando! Na verdade, pensei que ela quisesse atacar Steve, e, quando ela
sugeriu vir para cá hoje cedo, tive vontade de recusar. Mas Steve nem ligou para ela;
apenas Ross conseguiu manter uma conversa.
Tamar ficou olhando, pensativa, para a bebida. — Eu bem que desconfiava que
ela estava interessada em Ross — disse, após tomar um gole de cherry. — Estou
achando que ela está de olho nele.
— Sorte dela, pois Ross deve mesmo arranjar uma nova esposa.
— Quem? Margaret?
— Não necessariamente, mas, depois de ficar viúvo durante tanto tempo, acho
que ele vai demorar para se acostumar com a idéia. Quero dizer, acho que ele deveria
ter um caso. Tenho a impressão de que, nestes termos, daria certo com Margaret.
— Você está sendo maldosa! — disse Tamar, num falso tom despreocupado,
quando se sentia mortificada por dentro.

77
Estava com ciúme? Não podia ser! Não agora. Não hoje, com o anel de noivado
recém-colocado em seu dedo. Margaret nem tinha reparado, e ela mesma tinha
procurado evitar atrair atenção para a jóia. Talvez Ben tivesse ficado desapontado
com isso. Sentia-se a pessoa mais egoísta do mundo. Mesmo assim, estava agora
inconscientemente esperando a chegada de Ross, pois, até que ele chegasse, não
haveria alegria na sala.
Todos já tinham acabado as bebidas e o ar estava impregnado de fumaça de
cigarro, quando a sra. Falcon lembrou: — Está quase na hora, Shelagh, Steve! Onde
está Ross?
Steve aproximou-se. — Não sei, mamãe. Talvez esteja no estábulo. Negra está
para dar cria.
— No estábulo! — repetiu sra. Falcon zangada. — Deus do céu, será que não
temos um empregado? — Segurou com força os braços da cadeira, — Não há um
veterinário, a oitenta quilômetros daqui!
— Não fique preocupada, mamãe — pediu Steve, segurando seu braço.
— Preocupar-me? Preocupo-me quando quiser! Ele disse que não viria, que não
era um animal social! Vou dar-lhe…
— O que vai me dar, mamãe? — perguntou Ross com uma voz arrastada,
encostado preguiçosamente no batente da porta. Vestia um terno cinza-escuro e
camisa branca. Parecia esguio, atraente e sociável.
— Ross! — exclamou Margaret, chegando perto dele. — Estávamos esperando
por você. Onde estava?
— Fazendo umas coisas por aí — explicou sem se comprometer e sorriu para o
padre Donahue. — É um prazer vê-lo de novo, padre. Não aparece tanto como antes.
O padre concordou de bom humor e Shelagh disse: — Ross, você conhece Ben
Hastings, o noivo de Tamar?
Ross fez que sim, de um modo seco, e apertou a mão de Ben. Os dois homens
pareciam estar se medindo.
— Ouvi dizer que é um patrono das artes, sr. Hastings — comentou Ross com
frieza.
— Não é bem isso, sr. Falcon. Eu posso reconhecer talentos, ou melhor, pelo
menos acho que sim.
— E reconheceu talento no trabalho de Tamar? Era a primeira vez que Ross
pronunciava seu nome desde que chegara e Tamar teve que se esforçar para não ficar
de olhos pregados nele. Margaret a observava e não se incomodava em magoar
ninguém, contanto que conseguisse o que queria. E no momento queria Ross Falcon.
E foi naquele instante revelador que Tamar descobriu que ela também o queria.
Era por isso que se sentia dilacerada por dentro.

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Não, não, não! Engoliu depressa demais o resto de sua bebida e quase se
engasgou, passando a vergonha de tossir e sufocar até chorar. Na hora desejou que o
chão se abrisse para engoli-la.
Mas não podia ser verdade, não podia ser verdade! Ela não queria Ross Falcon, e,
se estava imaginando isso, era apenas uma atração física, nada mais. Ele era atraente,
sempre fora, e além do mais ela era humana!
Virou-se e conseguiu sorrir. — Que bobagem minha! — disse num tom que até
para ela pareceu estranho. — Fazendo papel de boba, justo hoje. Será que Shelagh já
contou que hoje é um dia muito especial para Ben e para mim? Ficamos noivos hoje,
isto é, oficialmente. Viram meu anel? Gostaram? Sou mesmo uma garota de sorte!
O jantar não foi um grande sucesso. Quase só o padre e a sra. Falcon é que
conversaram e, apesar de a comida estar deliciosa, Tamar quase não tocou em nada.
Margaret sentou-se ao lado de Ross e tentou forçá-lo a conversar, mas ele estava
pensativo e silencioso, os olhos escuros observando os convidados.
Depois voltaram para a sala, onde as portas que davam para o terraço estavam
abertas. A noite estava quente, apesar da brisa fresca vinda do mar.
Steve tinha desencavado um gramofone velho e alguns discos que tinham sido
populares há dez anos. Ele e Shelagh convidaram os outros para dançar. Ross
desapareceu logo depois do jantar. Como Margaret estivesse sem par, juntou-se a Ben
e Tamar, e ficou reclamando.
— Este lugar é uma droga — resmungou, acendendo um cigarro. — Não sei como
conseguem viver tão isolados! Sem cinema, sem shows, sem festas, nem mesmo
televisão.
— Fique quieta! — advertiu Ben. — A sra. Falcon pode ouvir!
— E pensa que eu ligo? Aqui só há uma pessoa interessante e que infelizmente
desapareceu.
— Quer dizer Ross Falcon? — perguntou Ben, sério.
— É claro. — Margaret olhou intencionalmente para Tamar. — Você descobriu
isso há muito tempo, não Tamar?
Tamar aceitou um cigarro de Ben. — Por que você está sempre tentando
embaraçar as pessoas, Margaret?— disse friamente, espantada por poder controlar
tão bem a voz. — Só porque Ross Falcon não deu bola para você, não venha provocar
problemas entre mim e Ben.
Margaret parecia furiosa. — Acho que você não precisa de ajuda para isso —
replicou malcriada. — Sua demonstração de alegria ao participar seu noivado esta
noite foi inútil para nós. Você não é uma atriz, querida, nem nunca foi. Todo mundo
podia perceber, porque você estava fazendo papel de boba!
— Margaret! — Ben agora estava realmente zangado. — Como se atreve a falar

79
assim com Tamar?
— Pelo amor de Deus, Ben, não me diga que você também caiu nessa!
— Não é questão de cair nessa ou não — replicou Ben secamente.
— Tamar e eu tínhamos mesmo combinado de não chamar a atenção de ninguém
para nosso noivado.
— Obrigada, Ben — disse Tamar agradecida, mas Margaret não sossegou.
— Oh, pelo amor de Deus! Pare com essa bobagem. Quando vamos embora? Ou
essa também é uma pergunta grosseira?
Shelagh aproximou-se deles. — Tamar — disse, em seu jeito amigo —, pode me
dar um momento?
Tamar assentiu, sorriu para Ben, e, levantando-se, seguiu Shelagh até o
vestíbulo. Então respirou aliviada. Não imaginara o que seria, e agora estava vendo o
motivo. Lucy, de pijama, estava sentada no último degrau da escada e não queria
aceitar que Hedges a levasse para a cama.
— O que está acontecendo? — perguntou Tamar, olhando para Shelagh.
— Ela sabe que Negra vai ter um cavalinho esta noite. Acho que Ross contou
para ela naquele jeito especial que eles têm de se comunicar e ela não quer ir para a
cama antes de vê-lo.
Tamar franziu a testa. — Sei. Mas ela não pode ir até os estábulos de pijama.
— Eu sei disso, você também, mas ela não. Tentei de tudo para convencê-la. Se
Ross estivesse aqui, ela obedeceria.
Tamar mordeu o lábio. — Onde está Ross?
— Nos estábulos, suponho. Mas você sabe onde eles ficam? Do outro lado do
campo! Ê muito longe para ir a pé no escuro e, além disso, Ross não gostaria de ver
ninguém ali por perto atrapalhando.
Tamar apertou os olhos. — Você não espera que eu vá buscá-lo, não?
— Bem, você sabe dirigir, eu não. Podia pegar a perua de Steve.
— Oh, não! — Tamar sacudiu a cabeça. — Deixe que Steve vá.
— Se Steve for, Ross não vai dar a mínima.
— Bobagem! — contestou Tamar. — Shelagh, por que Steve não vai? — insistiu.
Shelagh corou. — Oh, você sabe como Steve é. Ele não quer se envolver com
Lucy. Provavelmente ele se recusaria a ir e a mandaria dormir com umas boas
palmadas.
— Oh! — Tamar concordou. É claro, era isso mesmo que Steve faria. — Bem,
onde está a perua, então?

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— Vou mostrar. — Shelagh olhou para Lucy e sacudiu a cabeça. — Você é uma
menina feia, atrapalhando todo mundo assim!
Lucy apenas ficou segurando o queixo com as mãozinhas e sorriu com um ar
maroto. Tamar de repente sentiu vontade de abraçá-la. Era tão pequenina, tão
engraçadinha…
A perua estava na garagem, do lado direito da casa, e Shelagh deu as chaves a
Tamar dizendo: — Puxa, obrigada! — Tamar fez que sim com a cabeça, virou a chave e
deu a partida no carro.
Os campos perto da casa estavam iluminados pela lua, mas como havia nuvens no
céu, às vezes a iluminação vinha só dos faróis, e ela acabou ficando um pouco nervosa.
Tinha sido muito fácil concordar em vir, dentro da sala iluminada! Era porém coisa bem
diferente guiar no escuro até aqueles estábulos isolados, na busca de um homem que
uma vez tinha ameaçado matá-la.
Os estábulos apareceram logo à frente. Uma luz de lampião mostrava que havia
mesmo alguém ali. Tamar parou o motor, saiu do carro e hesitou antes de abrir à porta
e entrar na atmosfera quente e cheirando a feno do estábulo. Ao fazê-lo, ouviu a voz
de Ross dizendo: — É você, Pat? — Tamar franziu a testa. Será que era Pat 0'Malley,
o veterinário, que ele estava esperando?
— Não, Ross, sou eu! — respondeu, aproximando-se dele. Obviamente sem ligar
para ela, estava agachado ao lado da égua, deitada no capim, enquanto ao lado, uma
réplica pequena da mãe, de pernas trêmulas, se estremecia perto da cerca que dividia
as baias.
— Oh! — exclamou Tamar encantada. — Oh, Ross! Que lindo! Ross levantou-se
rapidamente, o rosto zangado e sombrio. — O que você quer? — perguntou seco.
Tamar esfregou as mãos, nervosa. — Shelagh me pediu que viesse — disse
atrapalhada. — Lucy quer ver o cavalinho. Não está querendo ir para a cama até que
veja. Shelagh quer que você volte e dê um jeito.
— Então mandou você!
— É. — Tamar mordeu de novo o lábio. — Há algo errado? Negra… sua égua não
está boa?
Ross ficou calado. Depois sacudiu os ombros desanimado e disse: — Parece que
ela está com febre. Acho que vai ficar boa, mas mandei chamar 0'Malley assim mesmo.
— Ele ainda é o veterinário daqui?
— Algumas coisas não mudam — comentou Ross sério. — Obrigado pelo recado.
Irei logo que puder. Richards, o empregado, logo vai voltar do jantar. Quando ele vier,
eu vou.
Tamar ainda ficou por ali. De algum modo tudo parecia íntimo, o ar aquecido, o
milagre do nascimento ainda presente.

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— Você… quero dizer… você estava perto quando… — Parou de falar.
— Já sei o que você está querendo dizer — interrompeu-a comi voz cansada. —
Sim, eu estava aqui. Não foi um parto difícil.
— Você parece cansado — disse impulsivamente, olhando para ele sob aquela luz
esmaecida.
Ross encarou-a por um longo momento, depois disse: — Tenho certeza de que
sabe que está muito bela!
Tamar deu um passo na direção dele. — Você acha? Acha mesmo, Ross? —
sussurrou.
— Tamar! — falou baixo. — Não brinque comigo! Não sou um homem bem-
educado!
Ela estremeceu levemente quando percebeu o que estava fazendo a Depois se
virou, um soluço escapando da garganta. Ben estava esperando por ela no castelo! Ben,
seu noivo!
Mas de repente Ross, num gesto, agarrou seus ombros com violência, puxando-a
contra si, a boca procurando a curva macia de sua garganta. O calor de seu corpo
másculo atravessou a fazenda fina de seu vestido e com um gemido beijou-lhe
sofregamente a boca, sem ligar para ninguém, a não ser para esse homem agora
estranhamente vulnerável. Passou os braços pelo pescoço dele, enquanto seus lábios se
acariciavam, despertando nela emoções desconhecidas.
— Oh, Deus! Eu desejo você! — Ross falava baixo. A paixão transmitida por suas
mãos não era mais selvagem, apenas exigente.
Por fim, com um gesto brusco afastou-a e arrumou o cabelo, passando as costas
da mão nos lábios como se quisesse apagar qualquer lembrança de seus beijos.
— Imagino que esteja satisfeita agora! — exclamou asperamente. — Sua missão
foi um sucesso! Pelo menos parece!
— Ross! — gritou Tamar desesperada. — Não!
— Não? Não o quê? Não quer que eu diga a verdade? Que você se tornou uma
pequena sem-vergonha e egoísta?
— Ross! — Sua voz sumiu de repente.
— Por favor, não chore! Isso seria inteiramente inútil. Você tentou de tudo, de
demonstrações de raiva a acessos de carinho. Poupe agora suas lágrimas!
Tamar cerrou os punhos. Como ele podia machucá-la! Como podia ser tão
deliberadamente cruel. Queria implorar que a escutasse, que a perdoasse se tinha se
enganado a seu respeito, mas seu orgulho impediu que ele percebesse que a dominara
por completo. Em vez disso, irritou-se e tornou-se tão cruel quanto ele.
— Está bem, Ross — disse gelada. — Pode se. divertir! Fazer-me de boba! Mas

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se pensa que fazendo isso vai me fazer mudar de idéia sobre você, está muito
enganado! Quando vim para cá, odiava você, acredite-me! Agora você me odiar é muito
ridículo! Que motivos têm para isso, afinal? Por que talvez eu tenha ferido seu
orgulho? Por que revelei ao pessoal da vila que não fui enganada por suas
demonstrações?
— Que diabo está querendo dizer?
— Você sabe muito bem o que digo, Ross. Estou falando sobre o que aconteceu
há sete anos e você sabe disso!
— Continue! — Tamar deveria ter parado então. O tom gelado de sua voz
deveria tê-la prevenido de que ele não era um homem habituado a ser dominado por
pessoa alguma, muito menos uma mulher. Ainda mais por uma que odiava e desprezava.
— Bem, o que quer saber? Você sabe tudo, não sabe, Ross? Afinal de contas, era
você que levava uma vida dupla, não eu!
— Vida dupla? Demonstrações? Tamar, você está ficando louca!
— Não, não estou ficando louca. Muito pelo contrário, agora é que estou ficando
lúcida! Quer que eu explique? Eu sabia sobre Virgínia e sobre a criança!
Lançou as palavras no rosto dele com raiva, e caminhou para a porta. Mas Ross
bloqueou-lhe a saída com o corpo.
— Sabia sobre Lucy? — perguntou.
— Sim! Oh, como eu era tola naquele tempo, Ross! Tão facilmente enganada!
Deve ter sido engraçado para você colocar-nos uma contra a outra.
— Tamar, estou avisando…
— O quê? A verdade? Não é do conhecimento de todos que você teve que se
casar com ela porque já estava grávida?
—Meu Deus! — Ele deu um passo atrás, olhando para ela com os olhos cheios de
dor. — Você não sabe o que está dizendo!
— Não? Não sei? Oh, pelo menos me dê algum crédito de inteligência, Ross.
Virgínia nunca se interessou por outra pessoa. Como poderia estar grávida de outro
rapaz? Além disso, Lucy é sua filha, quanto a isso não há dúvida!
Ross afastou-se da porta e, quando olhou para Tamar, só viu dor em seus olhos
atormentados. — Vá — disse cansado. — Pelo amor de Deus, vá! Se é isso que está
pensando de mim, nunca mais quero vê-la enquanto viver! Saia!
Tamar encarou-o, um pouco atrapalhada. — O que quer dizer? Ross sacudiu a
cabeça. — Não tenho que lhe dar explicações, Tamar. Mas, só para esclarecer, Lucy
nasceu um ano depois de nosso casamento! Fez seis anos há apenas algumas semanas!
Tamar ficou olhando para ele, um das mãos contra a boca, enquanto o
significado do que ele dissera alcançava seu cérebro. Depois deu um grito, virou-se e

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correu para a perua, deixando Ross parado e silencioso na porta do estábulo.

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CAPÍTULO IX

— Mas eu não entendo, Tamar! — exclamou Ben, sacudindo a cabeça espantado.


— Ainda ontem você me disse que queria ficar ainda mais uns dez dias aqui e eu
concordei. Por que mudou de idéia?
Era o dia seguinte ao jantar no castelo, e Ben e Tamar estavam discutindo na
sala do padre Donahue.
Tamar levantou os ombros meio sem jeito. — Ben, eu pensei melhor, só isso.
Além disso, resolvi me meter só com a minha vida em vez de estar querendo interferir
na dos outros!
Ben parecia meio cético. — E você tem certeza sobre isso? Não vai mudar de
idéia mais tarde e lamentar não ter ficado?
— Claro que não, Ben. Quando podemos ir embora?
— Imagino que Margaret iria hoje mesmo, se pudesse — comentou Ben —, mas
acho que posso arranjar um vôo para amanhã.
— Então arranje, Ben. Explicarei ao padre Donahue, ele não vai se incomodar.
Ben suspirou. — Gostaria de saber por que você está fazendo isso. Tem algo a
ver com ontem à noite? O que Ross disse a você quando foi aos estábulos? Você
parecia bem aborrecida quando voltou!
Tamar corou. — Acho que se pode dizer que tem a ver com aquilo — concordou,
admitindo a verdade. — Ross nunca vai acreditar no que digo, tenho certeza, e como
isso tem a ver com o motivo de eu estar aqui, é melhor desistir agora do que mais
tarde. — Acendeu um cigarro com mãos trêmulas, esperando que Ben não percebesse.
Ben soltou outro suspiro. — Eu pelo menos vou gostar de voltar para a
Inglaterra. Você mudou, Tamar, no pouco tempo em que ficou aqui. Estava tão
interessada em sua carreira! Não consigo entender a mudança!
— Não houve mudança, Ben. Talvez durante algum tempo eu tenha me
atrapalhado, é só isso. Mas agora já passou. Eu sei o que tenho que fazer; não vou
voltar nunca mais para Porto do Falcão.
Ben sacudiu a cabeça, ainda um pouco espantado com essa mudança de
comportamento, e disse: — Então o que pensa fazer hoje?
— Primeiro, vou arrumar minhas coisas. Depois, é claro, irei procurar o padre
Donahue e pedir a ele que explique as coisas para a sra. Falcon.
— E por que não vai você mesma conversar com ela? — perguntou Ben, curioso.
— Será que está com medo de Ross?
— Claro que não! — exclamou Tamar perturbada. — Entretanto acho que não
adiantaria nada ir lá e ficar discutindo com ela. Sei que ela não vai aceitar meus

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argumentos e mais uma vez tentará fazer com que eu fique. Não agüento mais isso.
Ben ficou olhando para cia pensativamente. — E por quê? Está com medo que ela
a convença?
— Sim, estou… Você sabe, ainda há Lucy…
Ben concordou. — Está certo. E o que você quer que eu faça? Que eu fique aqui?
Ou volte e conte as novidades para Margaret?
Tamar conseguiu dar um sorriso. — Conte para Margaret — disse. — Imagino
que ela vai inventar um outro motivo por eu ter mudado de idéia.
— Ela ficou de fato furiosa por você ter mudado de idéia ao voltar dos
estábulos ontem à noite, quando antes você se declarara feliz por ficar mais uns dias.
Tamar suspirou. — E você, Ben? O que acha? Ben franziu a testa. — Não tenho
certeza. Olhe, Tamar, sei que você não me ama, já me disse isso muitas vezes, mas
esse homem, Ross Falcon, tem certeza de que não o quer?
A expressão de Tamar de repente assumiu um ar irônico. — Meu querido Ben,
que eu queira ou deixe de querer Ross não tem a menor importância. Ele não me quer!
Os olhos de Ben se anuviaram. — E ele disse isso a você?
— Sim! Não! Quero dizer… não, é claro que não! Oh, Ben, não me faça perguntas
pessoais, por favor!
— Mas eu quero saber! Tenho o direito de saber. Você é minha noiva agora,
lembra-se?
Tamar baixou a cabeça. — E se eu dissesse que meus sentimentos por Ross
Falcon nunca mudaram? Que eu é que pensei que eles tinham mudado? Que eu o amei
há sete anos e que ainda o amo? — Levantou os olhos. — E então, Ben?
Ben encarou-a sem acreditar. — Não pode estar falando sério!
— E por que não?
— Porque… bem, porque você disse…
— Eu disse uma porção de coisas, Ben, a maioria bobagens! Não sou uma boa
pessoa para se conhecer. Acabei de descobrir isso!
Ben passou a mão pelo cabelo. — Isso é verdade? Ou você está falando por
hipóteses?
Tamar levantou os ombros, deixando-os cair depois. — Acho que é verdade, Ben.
Nosso noivado está desfeito?
— Por Deus, me dê uma chance! Não posso tomar uma decisão como essa assim
de repente! Você sabia disso ontem, quando compramos o anel?
— Não conscientemente. No subconsciente acho que sempre soube. Por causa
disso é que eu sempre guardava o quadro do Cabeça do Falcão.

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De repente Ben pareceu muito cansado. — Quer que terminemos nosso noivado?
Tamar sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto. Fazia tempo que não chorava.
— Eu não sei, Ben. Nessas circunstâncias, não me parece justo para com você.
Ben cerrou os dentes. — Oh, Tamar, eu amo você. Quando se ama alguém, não se
pára de amá-lo só porque não se recebe amor de volta.
— Eu sei disso… oh, eu sei disso — murmurou Tamar emocionada.
— Mas o fato de amar você e saber que você não me amava, mas também não
amava mais ninguém, era uma coisa; agora, saber que você não me ama, mas ama outro
homem, é bem diferente. Preciso de tempo para pensar sobre isso, Tamar. Mas, creia-
me, não quero desistir de você.
— E amanhã? Você ainda quer viajar comigo para a Inglaterra? Ou prefere que
eu faça meus próprios planos?
— Eu acho que assim seria melhor — disse Ben, sério. — Eu telefono quando
você estiver de volta.
— Está certo, Ben. Eu sei que parece estranho, mas me desculpe. Ben fingiu não
se importar. — Acho que não é sua culpa. Podia acontecer com qualquer pessoa. Então
não sei?
Depois que ele saiu, Tamar sentiu-se mais solitária do que nunca. O padre
Donahue estava na igreja ouvindo confissões e, num impulso, Tamar saiu do presbitério
e seguiu pelo caminho de pedras até a pequena igreja de pedra cinzenta. A igreja
parecia deserta. Achou que o padre já tinha ido embora, mas depois de um instante o
viu ajoelhado em frente ao altar. Ali dentro havia uma espécie de paz, o silêncio
acalmou sua mente atordoada. Silenciosamente seguiu pela nave, admirando os bancos
de madeira polida e o vitral acima do altar. Sentou-se quieta, esperado que o padre
percebesse sua presença.
Quando ele se levantou e a viu, veio e sentou-se a seu lado. — Bem, Tamar —
disse suavemente —, por que está aqui? Algum problema?
— O senhor deve ser vidente, padre — disse tristemente, sacudindo a cabeça.
— Eu vou-me embora amanhã.
— Amanhã? Mas por quê? A senhora Falcon me deu a entender que você estava
tentando persuadir Ross a deixar Lucy ir à escola.
— Estava sim. Foi por isso que concordei em ficar. Mas não adianta, padre. Ross
nunca vai me escutar. Ele me odeia.
— Ódio é uma palavra muito forte, minha criança. Tenho certeza de que Ross já
se esqueceu desse ódio há muito tempo. O que ele sente talvez seja ressentimento e
não ódio.
Tamar encarou o padre. — Mas por que Ross me odeia? — Sacudiu a cabeça. —
Não entendo por quê!

87
— Não, você não entende. E nem eu, Tamar! Diga-me, com toda a sinceridade,
por que foi embora da vila?
— O senhor sabe por quê — desabafou. — Meu avô tinha acabado de morrer. Os
advogados procuraram meu pai. O que mais eu poderia ter feito?
— Era do conhecimento geral que você namorava o jovem proprietário do
Cabeça do Falcão — retrucou o padre. — Ross não tinha conversado com você sobre
algo mais sério?
Tamar baixou a cabeça. — O senhor quer dizer casamento?
— É claro.
— Bem, não nessas palavras. Mas durante algum tempo achei que nossa ligação
era séria.
— E ele também! — exclamou o padre. — Mas você foi embora!
— Padre, Virgínia Allen também morava no castelo!
— Virgínia Allen era prima em segundo grau da mãe de Ross, não era? Para onde
mais ela iria depois que os pais morreram tão tragicamente naquele desastre de trem?
— Oh, eu sei disso. Sei que teve que vir para cá. Sei que foi aceita por causa do
grau de parentesco. Mas… mas… — interrompeu-se, os lábios tremendo. Depois
prosseguiu com dificuldade: — O senhor sabia que Ross estava tendo um caso com
Virgínia?
O padre Donahue ficou olhando para ela espantado. Depois franziu a testa com
raiva. — Você está inventando isso, Tamar — disse secamente. — Ross não queria
saber de mais ninguém a não ser de você!
Tamar não podia acreditar. — O senhor não pode ter certeza disso!
— É claro que posso. Lógico que Ross se queixava da perseguição da moça. A
mãe dele talvez quisesse o casamento, mas ela era a única. Além disso, Steve passava
mais tempo com ela do que Ross. Ele próprio poderia ter dito a você que não havia nada
entre Virgínia e Ross enquanto você morava aqui!
— Não acredito! — Tamar enrubesceu. — Não posso acreditar!
— E por que não?
— Na noite seguinte à chegada de meu pai, Virgínia veio me ver. Estava num
estado lastimável. Ela me contou que estava grávida e que Ross era o pai da criança!
— Minha Nossa Senhora! — O padre fez depressa o sinal da cruz. — Desculpe-
me, mas como é que ela podia ter dito uma coisa dessas?
Tamar baixou a cabeça. Contou-me que Ross e ela eram amantes e que ele tinha
me usado para que o pessoal da vila não desconfiasse de nada.
— E por que ele iria fazer tal coisa?

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— Não sei. Ela disse que poderia haver falatório pelo fato de os dois morarem
na mesma casa e tudo o mais. Disse uma porção de coisas. Eu tinha só dezoito anos,
padre! Só dezoito! Como podia duvidar? Eu… eu não pude deixar de acreditar nela.
Estava tão nervosa, eu… eu nunca duvidei…
— E você não falou imediatamente com Ross sobre isso? Tamar sacudiu a
cabeça com força. — É claro que não. Eu não poderia perguntar a ele uma coisa dessas!
Além disso, estava tão desapontada, sentia-me até doente… — Limpou uma lágrima do
rosto. — Quando Trevor sugeriu que eu fosse embora com ele, não quis esperar nem
mais um minuto. Não queria ver Ross nunca mais, enquanto vivesse!
— Mesmo assim, você voltou. Por quê?
— Acho que é porque ainda o amo. Oh, padre, não adianta nada ficar falando
sobre o passado, assim. Na noite passada Ross me contou que Lucy nasceu quase um
ano depois do casamento deles. Virginia ou tinha se enganado ou estava mentindo.
— Mentindo sim, Tamar, mentindo! Minha criança querida, Virginia podia estar
tendo um caso com Steve, ou achar que estava grávida, ou ainda nervosa, mas era Ross
quem ela queria, porque ele era o filho mais velho e herdeiro da casa. Isso é tudo!
Acredite-me! Ela achava que, uma vez casada com Ross, poderia gastar algum dinheiro
dele, divertindo-se em algum outro lugar. Foi por isso que ela foi para Dublin. Você
soube que ela foi para Dublin, suponho?
Os olhos de Tamar arregalaram-se: — Sim!
— Apenas o fato de estar grávida é que a trouxe de volta. Mas então ela e Ross
já estavam casados há mais de seis meses.
— Então teve mesmo um filho dele? — insistiu Tamar.
— Sim, teve um filho dele, Tamar, não seja ingênua! Quando você partiu sem
deixar recado nem endereço, Ross ficou louco! Tentou encontrar você, mas Londres é
um lugar muito grande, e os advogados que trataram do caso de seu avô não quiseram
ajudar.
— Nós… quero dizer… meu pai trocou de endereço quando nos mudamos para
Londres. O apartamento que ele tinha era muito pequeno, então fomos para outro.
— Certo. Isso os advogados disseram, e um pouco mais tarde começamos a ouvir
coisas sobre você, sobre seu trabalho, nos jornais e revistas. Ross ficou então
completamente amargurado.
Tamar sacudiu a cabeça. — Quando é que ele se casou com Virginia?
— Depois de não conseguir encontrar você; quando ficou claro que você não
tinha intenção alguma de procurar por ele. Foi um casamento normal por uns dois
meses, depois Virginia foi para Dublin sozinha.
Tamar nunca se sentira tão deprimida! Tudo o que Virginia lhe havia dito voltou-
lhe à cabeça com toda a clareza. Havia amado Ross sim, mas ele era bem mais velho,

89
mais distante, e sempre temera que o namoro tivesse segundas intenções. Quando
Virginia contara aquelas coisas terríveis, encontrara uma ouvinte interessada, alguém
propenso a acreditar em qualquer coisa por sua própria falta de confiança.
— Então é por isso que ele me odeia — concluiu. — E eu pensei que o ódio era
apenas meu!
O padre concordou com sabedoria. — Sim, minha filha. Você deve ir procurá-lo,
contar a verdade, explicar o que Virginia fez…
— Não! — Tamar sacudia a cabeça com violência. — Não, padre, não posso fazer
isso. Além disso, não adiantaria nada. Ross não ia acreditar. Virginia foi sua esposa,
mãe de Lucy e ele deve ter sentido alguma coisa por ela. De qualquer modo, eu devia
ter acreditado nele ou pelo menos ter tido a coragem de esclarecer minhas suspeitas.
Não há desculpas pelo fato de eu ter fugido. Parece que eu vivo fazendo isso —
concluiu tristemente.
O padre Donahue segurou-lhe os ombros, sacudindo-a um pouco. — Tamar, você
não pode fazer isso, não outra vez. Se for embora agora, nunca mais vai ver Ross. Tem
coragem de fazer isso? Para ele? Para você?
— É a única coisa que posso fazer — replicou baixinho. — Não vê, padre? Isso
tudo aconteceu há sete anos. Talvez então ele realmente me amasse e provavelmente
teríamos sido felizes. Mas agora muitas coisas aconteceram: Lucy, a morte de Virgínia,
a doença de sua mãe. Acho que foi tudo culpa minha, como disse Ross.
— Ele disse isso? — As mãos do padre desprenderam-se dela.
— Disse.
Tamar levantou-se. — Tenho que ir, padre. Preciso fazer as malas. Vou embora
esta tarde. É a melhor solução! Vou até Limerick, devolver o carro e sigo para Londres
amanhã.
— Mas você disse que ia amanhã! — O rosto enrugado estava ansioso.
— Acho melhor ir hoje — disse suspirando. — Creia em mim, padre!
O avião aterrissou no aeroporto de Londres às sete da noite, e Tamar estava
louca de vontade para chegar logo em casa, ver Emma novamente e tentar esquecer
todos os erros do passado. Ben estava certo. Tinha mesmo que voltar para casa e ver
as coisas sob uma outra perspectiva.
Se Emma ficou surpresa em vê-la quando abriu a porta, conseguiu disfarçar.
Depois de cumprimentá-la, reclamou:
— Você devia ter mandado um telegrama ou telefonado. Não há quase nada na
geladeira.
Tamar sorriu-lhe cansada. — Emma, querida, comida é a última das minhas
preocupações. Oh, é tão bom vê-la outra vez!
E era bom estar de volta, surpreendentemente bom. Tomou um banho delicioso,

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lavou a cabeça e quando saiu, vestindo só um roupão azul, Emma a esperava com uma
deliciosa omelete, acompanhada de salada e morangos como sobremesa.
— Você é espantosa, Emma! — disse Tamar suspirando, enquanto fazia justiça à
comida, com a ajuda de um copo de vinho. — Como é que passou esses dias? Sentiu
saudade de mim?
— Claro que senti — respondeu-lhe seca. Estava de pé perto da porta da
cozinha.
— Oh, sente-se, Emma — pediu Tamar. — Estou precisando de companhia, de
sua companhia sem complicação.
Emma deu um sorrisinho e sentou-a na beirada de uma cadeira.
— E como foram suas férias? — perguntou. — Parece cansada e triste. Não
andou dormindo direito?
— Não dormi muito bem a noite passada, mas nos outros dias foi tudo bem.
Sabia que Ben apareceu por lá? — Estendeu a mão.
— Gosta?
— Pérolas para lágrimas — comentou Emma. — Então resolveu? Tamar tirou o
anel do dedo e largou-o na mesa. — Sim, resolvi, mas não tenho certeza se ainda está
tudo bem ou não.
Emma pareceu espantada. — O que é que não está certo? — perguntou.
— Oh, Emma, não sei se devo contar a você.
— Contar o quê?
Tamar acabou a sobremesa com um suspiro e recostou-se. — Sobre minhas
razões de ter ido à Irlanda.
— Havia um homem — disse Emma seca.
— Sim, é claro. Sempre há um homem. — Tamar ficou olhando para o vinho
pensativa. — Mas tudo aconteceu há sete anos.
— Vou buscar o café — disse Emma, levantando-se.
— Traga duas xícaras — pediu Tamar, acendendo um cigarro. Emma fez que sim
com a cabeça antes de levar a bandeja com os pratos embora.
O café estava delicioso e Tamar tomou várias xícaras. — Você faz um ótimo
café, Emma. Senti falta dele também.
Emma sorriu. — Acho que tem algo mais que não quer me contar — observou. —
Tem a ver com o quadro daquela casa antiga?
— Como adivinhou?
— Muito fácil. Se você se recusa a vendê-lo é porque tem valor sentimental.

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— É sim, tem mesmo. É a casa da família Falcon. Fica na vila onde nasci. O
castelo é chamado Cabeça do Falcão. Seu proprietário é Ross Falcon. O pai morreu
quando ele' era ainda bem moço; ele e a mãe tomam conta de tudo.
— Sei — concordou Emma. — E é esse o homem ligado a seu passado?
— Sim. — Tamar baixou a cabeça. — Nunca falei sobre isso, porque sempre foi
muito triste pensar nele. Mas ontem eu soube que a razão que me levou a fugir de lá, e
olhe que fugi mesmo, não sra importante. Era uma mentira. Não havia motivo para
minha fuga.
— E ele casou-se com outra, quando você saiu de lá?
— Sim. Mas ela morreu ao dar à luz a filha… Lucy. Ela tem seis anos e é surda-
muda.
— Oh, coitadinha! — Emma sacudiu a cabeça com pena. — E você encontrou-os
novamente? Esse homem e a criança?
— Sim. Oh, Emma, é uma coisa horrível. Eu ainda o amo. Fiquei me enganando
todos esses anos! Pensei que tivesse acabado, mas não.
— Mas qual é então o problema? Se ele é viúvo, com certeza…
— Oh, não é assim tão simples — disse Tamar com voz cansada. — Não é nem um
pouco simples. Ross me odeia. Ele acha que eu fui embora do vilarejo por causa de
minha carreira. Pensa que eu só estava interessada nisso. Meu sucesso serviu para
confirmar sua idéia.
— Mas você não explicou a ele que não era esse o motivo?
Tamar sentiu os olhos cheios de lágrimas quentes. — Não — respondeu triste. —
Não disse, mas de qualquer jeito ele não ia me acreditar. Fugi novamente, só que desta
vez para sempre! Ele não vai tentar me encontrar agora. Parece que só sirvo para isso:
fugir!
— Oh, que bobagem, criança! Você tem um enorme prazer com sua pintura. Só
isso já é uma enorme realização.
— Uma realização vazia — protestou Tamar. — E quanto a Ben estou realmente
confusa.
— Você ainda está pensando em se casar com ele? Ele sabe da existência desse
outro homem?
— Sabe sim. Contei-lhe ontem. Ficou chocado, é claro. Tínhamos comprado o
anel apenas dois dias antes.
— Bem, acho você muito boba! — disse Emma secamente, olhando para Tamar
meio aborrecida. — Acabou se colocando em uma situação impossível. Uma vez pediu
meu conselho, e eu não dei. Dou agora. Não pode se casar com o sr. Hastings. Sabe
disso tão bem quanto eu.

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— Acha então que eu devo ficar solteira?
— Como eu? Deus me livre, não! Você só está querendo pegar o próximo vôo para
a Irlanda e ir procurar o homem que ama. É o único com quem você deve se casar e
sabe bem disso.
— Oh, Emma, não posso agir assim!
— Por quê? — perguntou Emma. — É orgulhosa demais, não é isso?
— Não, não é. — Tamar tentou apontar suas razões. — Talvez esteja certa.
Pode ser orgulho. Mas tentei ser sua amiga e ele simplesmente me rejeitou! Ele me
odeia!
Emma deu um suspiro. — Você também é teimosa — observou friamente. Tamar
apagou o cigarro desanimada.
De repente a campainha tocou. Tamar assustou-se e olhou para o relógio em
cima do aparador. Já passava das onze horas.
— Quem será? — disse Emma, franzindo a testa.
Tamar sacudiu os ombros, apertando o roupão junto ao corpo. — Só pode ser
Ben, mas dificilmente ele viria me procurar a essa hora.
— Será que devo abrir? — perguntou Emma ansiosa, quando a campainha tocou
uma segunda vez.
— Oh, sim. Acho que sim. Seja quem for, deve ter visto as luzes acesas, por isso
nem podemos fingir que estamos dormindo. Deve ser um dos vizinhos. Um ladrão
dificilmente tocaria a campainha.
Emma resmungou enquanto se dirigia até o vestíbulo e ao abrir a porta disse
seca: — Sim? O que deseja? — Seu tom era pouco amistoso e Tamar percebeu que ela
não conhecia o visitante.
— Quero ver a srta. Sheridan — disse uma voz que fez o coração de Tamar
disparar. — Ela mora aqui, não é?
Tamar conseguiu levantar-se, com as pernas trêmulas, ao ouvir Emma dizer: —
Sim, ela mora aqui, mas isso não é hora para se fazer visitas!
— Emma — corrigiu Tamar —, está tudo bem. Deixe-o entrar. É Ross Falcon.
Emma fez uma exclamação involuntária. — Oh! Oh, está bem, então é melhor
entrar, eu acho — disse, desculpando-se. Tamar estava de pé ao lado do sofá,
segurando firme o roupão. Emma então lhe perguntou: — Vai precisar de mim?
— Eu acho que não, obrigada, Emma. Boa noite!
— Boa noite. — Emma olhou de relance para Ross e depois saiu.
Ross entrou vagarosamente, parecendo estranho e diferente num sobretudo
grosso por cima de um terno escuro. Estava chovendo e seu cabelo brilhava com as
gotas de chuva.

93
— Não quer se sentar? — perguntou Tamar sem jeito, tentando
desesperadamente imaginar por que ele estaria ali. — Tire o casaco.
Ross desabotoou o casaco devagar, depois disse: — Então é este o lugar onde a
famosa Tamar Sheridan produz suas obras de arte?
— Seu tom era irônico. Olhou à volta interessado.
Tamar virou-se de costas, sem poder agüentar mais. — Por que veio, Ross? —
perguntou incerta.
— Não sabe?
— Não, é claro que não. Se eu soubesse não estaria perguntando!
— Falou rápido e caminhou trôpega até a bandeja de bebidas.
— Quer um uísque?
— É irlandês?
— Não, é escocês.
— Está bem, mas só um pouco. — Ross tirou o casaco e percorreu vagamente a
sala, parando para admirar os quadros e gravuras que enfeitavam as paredes. Tamar
virou-se e estendeu-lhe a bebida, consciente da pouca roupa que usava. Não esperava
receber ninguém.
— Não vai me acompanhar? — perguntou, mostrando o uísque.
— Não, obrigada. Eu bebo pouco e já tomei um pouco de vinho durante o jantar.
— Ah, sim, já comeu.
— E você, não?
Ross sorriu. — Na verdade, não como desde de manhã. Você sabe cozinhar? Se
sabe, podia me arranjar um pouco de comida!
Tamar hesitou, na dúvida se Ross estava brincando ou não. — Eu podia preparar
uma omelete e um pouco de salada — respondeu sem jeito.
— Isso me parece ótimo! — exclamou, fazendo uma mesura. Tamar apertou os
lábios e dirigiu-se à cozinha.
Ele foi atrás e ficou encostado no batente da porta, enquanto ela batia os ovos,
esquentava a frigideira e fazia a omelete. Colocou queijo e tempero e, em seguida,
pegou a salada da geladeira. Serviu-lhe a salada e a omelete, colocando o prato no
balcão, onde tomava café. Puxou um banquinho, arrumou os talheres e perguntou: —
Café?
Ele concordou. — Ótimo. — Tamar foi então fazer. Estava consciente de seu
nervosismo crescente. Tinha a impressão de que ele estava brincando com ela, como
um gato brinca com o rato antes de matá-lo. Temia que Ross a fosse destruir, se não
física, pelo menos mentalmente.

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Ele sentou-se no banquinho e comeu a salada e a omelete com gosto. Tamar
ofereceu-lhe como sobremesa morangos com creme. A essa altura o café já estava
pronto e ela serviu duas xícaras. Sentou-se então em outro banco, esperando que ele
terminasse.
Ficou pensando no pouco que tinha conseguido comer e ficou com raiva ao vê-lo
devorar tudo com tanta vontade, sem ligar para seus sentimentos. E por que teria ele
vindo para a Inglaterra e, mais exatamente, procurá-la a essa hora? Já era quase
meia-noite. Será que não percebia que isso não era correto? Mas ele não era como
Ben, lembrou-se de repente. Ross Falcon era sempre imprevisível.
Satisfeito, ele levantou-se e disse: — Você faz uma omelete deliciosa, Tamar.
Precisa me fazer uma outra, em alguma outra ocasião.
Tamar evitou responder e voltou para a sala. Ross foi atrás, apagando a luz mais
forte e deixando aceso apenas um abajur.
— Assim! — disse. — Assim é muito mais agradável e confortável não acha?
Ignorando a sua inquietação, Ross sentou-se muito à vontade no sofá, afroxou a
gravata, relaxando-se completamente.
— Ross, você tem idéia de que horas são? É quase meia-noite. A maioria das
pessoas já está dormindo a essa hora.
— O quê? Mesmo a turma de Londres?
— Aqueles da turma de Londres que têm que trabalhar também — retrucou ela,
friamente.
— Está bem, então vamos dormir! — Sorriu preguiçosamente para ela. — Tamar,
venha cá — pediu.
Tamar enrubesceu. — Ross, pelo amor de Deus — murmurou, virando-se e
segurando-se trêmula na mesa.
De repente sentiu os braços dele a sua volta e seus lábios beijarem seu
pescoço. Suas mãos a acariciavam enquanto a beijava. Disse-lhe então: — Se eu disser
que amo você, vai parar de ter medo de mim?
Tamar ficou fraca repentinamente e teve que se apoiar contra o corpo dele. —
Ross, o que você quer dizer? — perguntou insegura.
Ele virou-a de frente, os olhos ternos pela primeira vez desde que o vira
novamente. — É simples — sussurrou em voz baixa. — O padre Donahue me contou a
verdade.
— E.. . e você acreditou?
— Então não era a verdade? — Seus olhos estavam alerta.
—Oh, Deus, Ross, é claro que era a verdade — murmurou, passando os braços
pela cintura dele e abraçando-o depois. — Nunca imaginei, porém que você fosse

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acreditar.
— Por quê? - perguntou, acariciando-lhe os cabelos loiros gentilmente.
— Virgínia era sua mulher. Eu tinha a certeza…
— Você nunca devia ter certeza de coisa alguma. — Seus dedos tocavam de leve
o pescoço de Tamar. — Oh, você não pode imaginar o que seja isto. Encontrá-la e estar
agora aqui a abraçando, sabendo que tenho o direito de amá-la, de desejá-la, de
precisar de você. E eu preciso, pode acreditar!
Seus lábios se aproximaram suavemente para depois se devorarem no mais louco
desejo. — Você só está vestindo isso? — perguntou Ross.
— É! — respondeu sorrindo. — Não deve ser usado para receber visitas. Você
gosta?
Ele afastou-a um pouco. — Sim, gosto. Acho que até demais!
Tamar sorriu e, segurando a mão dele, levou-o para o sofá. — Venha — sente-se.
Temos muito que conversar.
Ross sentou-se a seu lado, mantendo, a distância com dificuldade. Tamar
acendeu dois cigarros, deu-lhe um e depois disse: — Como é que me encontrou? E tão
tarde?
Ele sorriu e recostou a cabeça no encosto macio. — É uma longa história. O
padre me contou tudo ontem, mas era tarde demais para achar você. Quando cheguei a
Limerick você já tinha partido e não adiantava mais nada. Então tive a brilhante idéia
de ir até Killarney, procurar Ben.
— Ben? Você viu Ben?
— Sim. — Ross deu-lhe um olhar de esguelha. — Eu disse a ele que ia me casar
com você.
— Que arrogância! — exclamou Tamar baixinho.
— Você acha?
— Acho. E se eu recusar?
Ele a puxou para perto. — Por favor, Tamar, não me torture! - pediu. — Já
esperei demais.
Tamar arrependeu-se, beijando seus olhos e seu rosto com ternura, até que
Ross, de repente, perdeu o controle e beijou-a novamente com sofreguidão. Por um
longo tempo reinou o silêncio no apartamento, e quando ele se afastou, disse com voz
rouca: — Não me tente demais, Tamar. Já estou perdendo o controle. E eu desejo
você demais.
Tamar ficou vermelha e disse: — Está bem, continue. — Conte-me sobre Ben.
Ross sacudiu a cabeça — deu uma tragada do cigarro e continuou: — Oh, sim,
Ben. No começo ele ficou espantado, mas não demais, eu acho. De qualquer modo, ele

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parecia saber como você se sentia em relação a mim.
— Eu contei para ele ontem — esclareceu Tamar. — Oh, Ross! Parece que já faz
tanto tempo!
Os olhos de Ross sorriram com ternura. — Ele e Margaret já tinham reservado
passagem no vôo para Londres.
— Oh, sim, Margaret. — Tamar ficou pensativa. Ross sorriu. — Você teve ciúme
de Margaret?
— Você pretendia que eu tivesse?
— Sim, acho que sim. Se é que pensei nisso conscientemente. Quando descobri
que você estava noiva de Hastings, fiquei meio perdido.
— E Ben deu-lhe meu endereço?
— Deu. Mas não consegui um vôo logo e depois, quando consegui, ele se atrasou.
— Mas você não me disse como conseguiu encontrar Ben.
Ele riu. — Não disse? Bem, fui a diversos hotéis até que encontrei o dele. Não
existem muitos hotéis em que um homem como Ben Hastings possa ficar. Dei uma de
detetive, não acha?
Tamar concordou e de repente lhe ocorreu uma lembrança: — Eu… eu bem que
queria que você tivesse me encontrado… anos atrás — murmurou com suavidade.
— Sete anos atrás?
— Sim. Oh, Ross, vamos nos casar logo! Não vamos mais perder tempo!
— Não pretendo mesmo! — disse ele de volta.
— E Lucy?
Ele ficou tenso. — O que, sobre Lucy?
Tamar suspirou. — Você ainda não vai aceitar?
— Oh, sei. — Relaxou. — Você quer dizer sobre a escola dela?
— O que mais poderia ser?
— Eu… eu… bem, passou pela minha cabeça que você podia não querer uma
criança de outra mulher!
— Oh, Ross! — Tamar encarou-o. — É claro que não. Lucy é sua filha. E eu a
adoro. Mas você vai deixar que agora ela vá à escola, não vai? Quero dizer… sua
proteção já é dispensável, não acha?
— Você e suas conversas! — exclamou. — Está bem, se é o melhor para ela. Você
acha mesmo que é?
— Acho. Em algum lugar perto da gente, de modo que ela possa ficar conosco
nos fins de semana e também nas férias. — Tamar continuou: — Steve e Shelagh vão

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ter que arranjar uma casa só para eles, o que vai deixar Shelagh bem feliz, porque o
castelo do Falcão vai ficar cheio de gente quando começarmos a ter nossos filhos . .
Ross interrompeu-a com os lábios. — Adoro você — murmurou. — Mas ainda há
um problema. Tamar franziu a testa. — Qual?
— Seu trabalho.
— E por que seria um problema?
— Bem, você precisa estar em Londres para as exposições e.. .
— Não, não em Londres, querido. Não vou fazer mais exposições em Londres.
Não digo que vou desistir, porque gosto demais da pintura, e foi ela que nos juntou, na
verdade. Mas não vai mais ser a coisa mais importante de minha vida.
Ross beijou-a demoradamente. — Vamos voltar amanhã para Porto do Falcão,
está bem? Ou melhor, hoje.
— Oh, sim. Imagino o que Emma vai achar da idéia.
— Aquele dragão que me deixou entrar?
— Ela não é um dragão e você não deve falar assim. Um instante antes de você
chegar, ela estava insistindo em que eu deveria voltar para ver você e contar a
verdade!
— É mesmo? Então ela é uma amiga para o resto da vida!
Tamar suspirou, depois disse: — Ross, você acredita que Virgínia falou aquelas
coisas?
Ross olhou para ela solenemente. — Sim, acredito. Virginia era completamente
sem escrúpulos quando queria alguma coisa. Eu aprendi isso. Se você tivesse me
contado, eu poderia mostrar como as palavras dela eram inverídicas! — Sacudiu a
cabeça.
— Tamar abraçou-o com força. — Eu também fui tão tola! — admitiu. — Oh,
Ross, sinto muito!
— Não fique assim. Não agora. Tudo já passou. Virginia… bem, ela já não pode
fazer mais nada.
— Não. Pobre Virginia! — Tamar agora podia sentir pena da moça. Suspirou e se
ajeitou mais perto de Ross. — Amo você — sussurrou.
— Mas eu tenho que pensar em ir indo embora — murmurou Ross relutante,
escutando a chuva que batia nas janelas do apartamento.
—Você tem que ir mesmo? — Tamar olhou para ele significativamente.
Ross deu um meio sorriso. — Você não está sugerindo que a gente deixe Emma
chocada, está, Tamar? — perguntou com os olhos cheios de desejo.
Tamar sorriu. — Bem, temos este sofá… — murmurou, baixando as pestanas até

98
cobrir completamente os olhos.
FIM

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